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INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE

Diretor-Presidente José Inácio Ramos

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER


Diretor Mauro Fernando Meister

Fides reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora


Mackenzie, 1996 –

Semestral.
ISSN 1517-5863

1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação


Andrew Jumper.

CDD 291.2

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American
Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16th Flr., Chicago, IL 60606, USA,
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(www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71).

Editores Gerais
Daniel Santos Júnior
Dario de Araujo Cardoso

Editor de resenhas
Filipe Costa Fontes

Redator
Alderi Souza de Matos

Editoração
Libro Comunicação

Capa
Rubens Lima
Volume XXII · Número 2 · 2017

Edição ESpEcial
5º cEntEnário da rEforma protEStantE

Igreja Presbiteriana do Brasil


Junta de Educação Teológica
Instituto Presbiteriano Mackenzie
CONSELHO EDITORIAL
Augustus Nicodemus Lopes
Davi Charles Gomes
Heber Carlos de Campos
Heber Carlos de Campos Júnior
Jedeías de Almeida Duarte
João Alves dos Santos
João Paulo Thomaz de Aquino
Mauro Fernando Meister
Valdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata é uma publicação semestral do


Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não
representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação
desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

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Editorial
Em 31 de outubro de 2017 completam-se 500 anos do marco histórico da
Reforma Protestante. O monge agostiniano Martin Luther, professor de Bíblia
da Universidade de Wittenberg, afixou nas portas da igreja da cidade 95 teses
que criticavam a prática da venda de indulgências por ameaçar o verdadeiro
tesouro da igreja: o evangelho. Essa publicação provocou uma discussão de
proporções seculares e deu ocasião à maior cisão da Igreja do ocidente na
história. As repercussões do movimento iniciado por Lutero transformaram
completamente a sociedade e a cultura da Europa e, nestes 500 anos, alcan-
çaram todo o mundo.
São incalculáveis os tesouros teológicos acumulados nesse período.
A Reforma Protestante teve papel fundamental em grandes transformações
eclesiásticas, políticas, científicas, educacionais, culturais, sociais, etc. Por
outro lado, meio milênio é tempo suficiente para o esquecimento de verdades
preciosas e o (res)surgimento de velhos e novos enganos e distorções da fé e
da prática cristãs. Nem tudo são flores nesses quinhentos anos.
Nesta edição especial da revista Fides Reformata, os professores do Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper reuniram-se para promover
um mergulho na história e no pensamento da Reforma Protestante.
No primeiro artigo – “A Reforma e os historiadores” – Alderi Souza de
Matos apresenta as diferentes abordagens e avaliações de historiadores so-
bre a Reforma Protestante e traz à luz os desafios envolvidos no estudo e na
compreensão de movimentos históricos. Em seguida, em “O papel da música
na Reforma e a formação do Saltério de Genebra”, Dario de Araujo Cardoso
descreve as contribuições que Lutero e Calvino trouxeram no que diz respeito
ao uso da música no culto e ao canto congregacional. Destaca como os refor-
madores reconheceram e utilizaram o poder de mobilização e edificação da
música para a promoção dos valores da Reforma.
No terceiro artigo – “Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica
da lei?” – Heber Carlos de Campos Jr. mostra que o movimento reformado
não era monolítico e apresenta uma das discussões internas ao luteranismo
acerca da relação do arrependimento com a lei e o evangelho. O texto mostra
como Lutero, Melanchton e João Agrícola discutiram sobre a necessidade de
pregar a lei para promover o arrependimento. Mostra também que a resposta
antinomista à discussão da relação entre lei e evangelho, longe de ficar restrita
ao contexto luterano, ressurgiu entre os ingleses e está presente no cenário
evangélico contemporâneo. Vemos assim que o antinomismo é um desafio
frequente a ser enfrentado pela teologia oriunda da Reforma.
O artigo “O perigo a ser evitado numa reforma”, de Heber Carlos
de Campos, apresenta-nos dois aspectos da teologia de Melanchton que se
afastaram do pensamento de Lutero. Eles dizem respeito à participação do
homem na salvação e à presença de Cristo na Ceia. O artigo mostra como esse
distanciamento posteriormente causou conflitos e divisões entre os luteranos
e levou Melanchton a perder o lugar de destaque que possuía nessa tradição
da Reforma.
A escatologia tem sido apontada como o aspecto ausente do pensamento
da Reforma. Entretanto, o artigo “O pensamento escatológico de Calvino”,
de Leandro Antonio de Lima, faz-nos perceber que importantes tópicos desse
campo da teologia estão presentes nos escritos de Calvino. O reformador ge-
nebrino escreveu sobre o Anticristo, a vida futura, a ressurreição, o milênio e o
estado intermediário. O artigo trata, por fim, da percepção de Calvino sobre as
limitações da linguagem humana para descrever como será o mundo vindouro,
chamando nossa atenção para os cuidados necessários a essa discussão.
Os estudos hermenêuticos fazem-se presentes no artigo “A hermenêutica
cristotélica de João Calvino”, de João Paulo Thomaz de Aquino. Nele vemos
que Calvino praticou uma interpretação que buscava demonstrar como os textos
do Antigo Testamento apontavam para Cristo. Para ilustrá-la o autor apresenta
afirmações de Calvino sobre a lei, os profetas e os salmos. O artigo também
promove uma comparação com a abordagem de Erasmo de Roterdã, chamada
de cristológica, e a de Lutero, denominada cristocêntrica.
Os debates teológicos também são o tema do artigo “Calvino e o lapsaria-
nismo”, de João Alves dos Santos. Os calvinistas dividiram-se em dois grandes
grupos no que diz respeito à relação entre os decretos da eleição e da reprovação
dos homens. Tanto supralapsarianos quanto infralapsarianos afirmam seguir
o pensamento do Calvino sobre o tema. O artigo analisa a discussão e mostra
que uma pesquisa nos escritos de Calvino, ainda que forneça algum apoio, não
confirmará as alegações de nenhum dos grupos.
O artigo em inglês dessa edição foi escrito por Elias Medeiros. “The re-
formers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker’s
arguments – part 2” é a continuação do artigo publicado por Medeiros na edi-
ção de 2013-1 de nossa revista. Seu objetivo é contestar, com base em obras
primárias, a tese de alguns historiadores de que os reformadores não tinham
preocupação com missões estrangeiras.
A seção de resenhas continua o espírito celebrativo da edição e também
se dedica a obras que fazem referência à Reforma. Nesta edição trazemos
avaliações dos livros Calvino e a Vida Cristã, O Legado Missional de Calvino,
O Pensamento da Reforma e Cuidado com o Alemão.
Dario de Araujo Cardoso apresenta-nos Calvino e a Vida cristã, do norte-
-americano Michael Horton. Através de uma rica exposição, a obra busca
mostrar que a teologia de Calvino não provém de um intelectualismo árido,
mas está calcada num sólido e frutífero conceito de piedade.
Filipe Costa Fontes escreveu a resenha de O Legado Missional de Calvino,
do inglês Michael Haykin e do estadunidense C. Jeffrey Robinson. A obra
busca mostrar a presença do conceito de missões no pensamento e nas ações
de Calvino. Apresenta também como o tema foi abordado pelos herdeiros
da tradição calvinista. Na resenha de O Pensamento da Reforma, do norte-
-irlandês Alister McGrath, Filipe Fontes convida-nos a uma leitura abrangente,
didática e instrutiva da história e do pensamento da Reforma em seu caráter
eminentemente religioso.
Na resenha de Cuidado com o Alemão, do português Tiago Cavaco, o
convite de Tarcízio José de Freitas Carvalho é para conhecer mais profunda-
mente o impacto do pensamento de Lutero sobre sua época e sobre a cultura
ocidental posterior.
Em face do atual contexto de imediatismo existencial que despreza o
passado e reduz o futuro à projeção de interesses pessoais, esta edição de Fides
Reformata permitirá ao leitor um vislumbre da grandeza e da abrangência dos
eventos e do pensamento da Reforma e o desafiará a refletir com mais profun-
didade sobre como as ações e movimentos do presente refletem o passado e
qual o potencial de seus efeitos para o futuro.
É um prazer apresentar a edição especial de Fides Reformata dedicada
à celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. Esperamos que ela seja
de grande contribuição espiritual e acadêmica para todos os que a receberem.
Sejam todos bem-vindos.

Dr. Dario de Araujo Cardoso


Editor
Sumário

Artigos
A reforma e os historiadores
Alderi Souza de Matos................................................................................................................... 11

O papel da música na Reforma e a formação do Saltério de Genebra


Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 23

Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei?


Heber Carlos de Campos Júnior................................................................................................... 43

O perigo a ser evitado numa reforma


Heber Carlos de Campos............................................................................................................... 67

O pensamento escatológico de Calvino


Leandro Lima................................................................................................................................. 85

A hermenêutica cristotélica de João Calvino


João Paulo Thomaz de Aquino...................................................................................................... 99

Calvino e o lapsarianismo: uma avaliação de como Calvino pode ser lido


à luz da discussão supra e infralapsariana
João Alves dos Santos.................................................................................................................... 117

The reformers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter,


and Tucker’s arguments – part 2
Elias Medeiros............................................................................................................................... 139

Resenhas
Calvino e a vida cristã (Michael Horton)
Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 163

O legado missional de Calvino (M. A. G. Haykin e C. J. Robinson)


Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 169

O pensamento da Reforma (Alister Mcgrath)


Filipe Costa Fontes........................................................................................................................ 175

Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho Lutero dá à nossa época
(Tiago Cavaco)
Tarcizio Carvalho........................................................................................................................... 179
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22

A Reforma e os Historiadores
Alderi Souza de Matos*

RESUMO
A Reforma Protestante, movimento que completa o seu 5º centenário,
tem sido objeto de intenso escrutínio por parte dos estudiosos. Esse interesse
se deve à relevância do fenômeno e suas vastas consequências para o mundo
moderno. Ao mesmo tempo, trata-se de um tema altamente controvertido, no
qual variam grandemente as perspectivas e interpretações. Inicialmente, este
artigo faz algumas considerações historiográficas gerais, passando em seguida
a abordar alguns tópicos que têm sido objeto de divergências e reconsiderações
nas últimas décadas. São eles o caráter múltiplo da Reforma do século 16, suas
fontes intelectuais, sua motivação prioritária e suas consequências. Por últi-
mo, são feitas algumas considerações sobre o legado duradouro desse evento
histórico iniciado há 500 anos.

PALAVRAS-CHAVE
Reforma Protestante; 500 anos da Reforma; Historiografia; Historiadores;
Interpretações da Reforma.

INTRODUÇÃO
Como é natural, o transcurso do 5º centenário da Reforma Protestante
tem suscitado um grande número de reflexões de natureza bíblica, teológica,
litúrgica e pastoral. Embora essas perspectivas sejam altamente relevantes, as
comemorações, por sua própria natureza, remetem em primeiro lugar ao aspecto
histórico. É acima de tudo um evento ou conjunto de eventos – o início do
movimento protestante – que está sendo lembrado. Ao mesmo tempo, o estudo

* Doutor em Teologia (Th.D.) pela Escola de Teologia da Universidade de Boston, professor de


teologia histórica no CPAJ, historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil.

11
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES

do protestantismo emergente como fenômeno histórico levanta uma série de


questões teóricas e metodológicas que precisam ser consideradas.
Desde o seu início, a Reforma tem sido objeto de diferentes interpreta-
ções e avaliações, dependendo da perspectiva do estudioso. Por muito tempo,
as abordagens foram fortemente condicionadas por preocupações polêmicas
e apologéticas de protestantes e católicos, ou mesmo dos diferentes grupos
evangélicos. A partir do século 18, com o desenvolvimento da história em
bases científicas, surgiu um tratamento mais objetivo e menos partidário do
tema. Porém, dada a imensa complexidade da Reforma em suas múltiplas di-
mensões – religiosa, teológica, política, social – multiplicaram-se grandemente
as interpretações de suas origens, natureza e significado.
Este artigo considera inicialmente alguns aspectos historiográficos gerais
para então se concentrar nas maneiras pelas quais a Reforma tem sido avaliada
por diferentes historiadores recentes, religiosos e seculares, progressistas e
conservadores. Vale lembrar que, ao lado das inevitáveis diferenças de pers-
pectiva, as extensas pesquisas das últimas décadas também têm resultado em
alguns consensos importantes e valiosos no que diz respeito a muitos aspectos
da Reforma. No final, são feitas algumas considerações sobre a relevância atual
da obra dos reformadores.

1. QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS
James Bradley e Richard Muller observam que “antes de meados do
século 18, o estudo da história da igreja era acrítico; ela era quase invariavel-
mente escrita desde uma perspectiva confessional, sendo qualquer coisa menos
desinteressada”.1 Dois exemplos clássicos são encontrados no próprio século 16.
Um deles são as famosas Centúrias de Magdeburgo (1559-1574), escritas por
um grupo de estudiosos liderados por Matias Flacius Illyricus. Essa história
da igreja produzida sob o ponto de vista luterano procurou demonstrar que
o luteranismo era uma afirmação do que havia de melhor na antiga tradição
cristã. Em resposta, o erudito católico César Barônio publicou seus igualmente
volumosos Anais Eclesiásticos (1588-1607), argumentando em favor da conti-
nuidade entre o catolicismo do século 16 e os primeiros séculos da era cristã.2
Em meados do século 18, na esteira do Iluminismo e em certa medida
do Pietismo, duas mudanças básicas de perspectiva foram essenciais para o
surgimento da historiografia crítica: maior preocupação científica com a aná-
lise de documentos originais e liberdade para interpretar as fontes de maneira
mais isenta e objetiva. Surgiu assim uma importante linhagem de historiadores
em moldes científicos, todos eles alemães, a começar de Johann Lorenz von

1 BRADLEY, James E.; MULLER, Richard A. Church history: An introduction to research,


reference works, and methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 11. Minha tradução.
2 GONZÁLEZ, Justo L. The changing shape of church history. Saint Louis, MO: Chalice Press,
2002, p. 133-136.

12
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22

Mosheim (1694-1755), considerado “o pai da história da igreja”. Vieram a


seguir, sob a influência do movimento romântico, Gottfried Herder (1744-1803),
August Neander (1789-1850) e Friedrich Tholuck (1799-1877). Nos Estados
Unidos, um personagem muito influente foi Philip Schaff (1819-1893), consi-
derado o pai da história da igreja americana. Todos eles se preocuparam com a
objetividade no estudo histórico, com dados factuais e com a dedução de leis
gerais de desenvolvimento histórico.3
Ao longo da primeira metade do século 20 ocorreu uma oscilação nes-
se último tópico, alguns historiadores questionando e outros defendendo a
importância da busca de significado na história da igreja e a possibilidade de
uma visão objetiva do passado. As décadas mais recentes, posteriores a 1950,
testemunharam vários desdobramentos historiográficos importantes, como o
surgimento do interesse pela participação histórica das mulheres e de grupos
minoritários; a chamada “nova história”, com seu apelo às ciências sociais;
a ênfase na micro-história, com sua concentração em tópicos extremamente
delimitados, e o enfoque mais colaborativo e interdisciplinar. Bradley e Muller
defendem que o alvo do historiador deve ser a reintegração das partes analisadas
separadamente em um todo maior, de âmbito mais geral.4
Uma questão permanentemente debatida tem a ver com a objetividade no
estudo da história. Nos séculos 19 e 20 esse interesse se tornou o principal crité-
rio de avaliação nas ciências históricas, conforme exemplificado por estudiosos
como Leopold von Ranke e Adolf von Harnack. Dizia-se que “a principal tarefa
da história era apresentar os eventos como eles aconteceram e até mesmo lê-los
com tamanha objetividade que o historiador os entendia melhor do que aqueles
que os vivenciaram”.5 Todavia, o que se constatou é que nenhum historiador é
totalmente isento, mas transfere para o seu trabalho suas preferências, pressu-
posições e compromissos filosóficos. Para muitos estudiosos, essa ânsia pela
objetividade é na verdade algo indesejável. O pesquisador mexicano Carlos
Rojas considera o mito da objetividade e da neutralidade um “pecado capital”
dos historiadores não críticos.6 Um simpatizante do pensamento marxista, ele
acredita que é impossível conceber-se uma história na qual o estudioso não se
envolva de algum modo, mantendo total desinteresse e indiferença.7
Essas considerações têm evidente relevância para os estudos históricos
sobre a Reforma Protestante. Essa história só poderá ser entendida adequa-
damente mediante o estudo criterioso das fontes documentais primárias e

3 BRADLEY e MULLER, Church history, p. 13-20.


4 Ibid., p. 25.
5 GONZÁLEZ, The changing shape, p. 139. Minha tradução.
6 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Antimanual do mau historiador. Ou como se fazer uma boa
história crítica? Londrina, PR: Eduel, 2007, p. 29.
7 Ibid., p. 30.

13
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES

secundárias. Essa história precisará deter-se nos aspectos pontuais, tais como
personagens e eventos, e ao mesmo tempo relacioná-los com o quadro mais
amplo, o contexto religioso-político-social da Europa quinhentista. Essa história
deve buscar a objetividade e a serenidade na análise dos dados, sem deixar
de lado a simpatia pelo assunto, o envolvimento pessoal com os temas sob
estudo. Para os cristãos que creem na ação providencial de Deus, ela também
inclui a busca de significados maiores, muitas vezes não inteiramente óbvios,
que trazem lições para a contemporaneidade.

2. ABORDAGENS DOS HISTORIADORES


São muitos os estudiosos que se têm debruçado sobre o estudo histó-
rico da Reforma, quer como pesquisadores da história da igreja em geral,
quer como especialistas sobre os próprios fenômenos do século 16. Entre os
primeiros, são mais conhecidos nos círculos protestantes indivíduos como
Williston Walker, Kenneth S. Latourette, Owen Chadwick, Earle E. Cairns e
Howard Clark Kee; entre os últimos, Thomas M. Lindsay, John T. McNeill,
James Hastings Nichols, Roland Bainton, Harold J. Grimm e muitos outros.8
Todavia, o objetivo deste artigo é considerar as abordagens e interpretações
sobre a Reforma fornecidas por uma geração mais recente de historiadores de
diferentes persuasões. Trata-se de uma lista seletiva e exemplificativa, visto
ser impossível considerar todos os autores que têm se dedicado ao tema. O
objetivo é fornecer um panorama dos principais interesses e enfoques que os
estudiosos da Reforma têm demonstrado na atualidade.

2.1 Pluralidade de reformas


Até algum tempo atrás, falava-se sempre em “Reforma do século 16”,
no singular, como se ela fosse um movimento monolítico e uniforme. Além
disso, o termo era aplicado quase que exclusivamente às igrejas protestantes,
à exclusão da Igreja Católica Romana. Hoje é lugar comum na historiografia
falar-se nas “reformas” ocorridas naquele período. Isso pode ser percebido, por
exemplo, em textos do luterano Carter Lindberg, professor emérito de história
da igreja na Escola de Teologia de Universidade de Boston, como o conjunto
de ensaios “A Idade Média tardia e as reformas do século 16”9 e o importante
livro As Reformas na Europa.10

8 A mais antiga história da Reforma publicada continuamente no Brasil até o presente é História
da Reforma do Décimo Sexto Século, do pastor protestante suíço Jean-Henri Merle D’Aubigné (1794-1872).
O primeiro a traduzir essa obra para o português foi o escritor Júlio Ribeiro.
9 Parte III de: KEE, Howard Clark et al. Christianity: A social and cultural history. Nova York:
Macmillan; Toronto: Collier Macmillan, 1991.
10 LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2001. Outra ocorrência
do conceito pode ser encontrada em: DOWLEY, Tim (Org.). História do cristianismo: Guia ilustrado.
Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1995, p. 410.

14
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22

Essa ênfase significou uma valorização de dois grupos em particular – os


anabatistas e os católicos romanos. Por muito tempo, a chamada “reforma ma-
gisterial”, ou seja, o luteranismo, a reforma suíça e o anglicanismo, recebeu
todas as atenções. Trata-se dos grupos protestantes originais que receberam
forte apoio e envolvimento dos magistrados, as autoridades civis. A “reforma
radical”, representada principalmente pelos anabatistas, era o “primo pobre”
do século 16, ocupando um lugar periférico nos estudos sobre a Reforma Pro-
testante. Hoje, esse movimento recebe grande atenção dos pesquisadores, que
reconhecem sua importância, originalidade e contribuições.
Quanto à Igreja Romana, tradicionalmente se falava apenas em “Con-
trarreforma”, algo que incluía a Inquisição, a ação dos jesuítas e as guerras
religiosas. Sem deixar de reconhecer esse fenômeno de grandes consequências,
a maior parte dos autores atuais argumenta que também houve uma verdadeira
“Reforma Católica”, certamente diferente do que ocorreu no âmbito do protes-
tantismo, porém ainda assim um conjunto de esforços que revelaram genuíno
interesse em corrigir antigos males e aperfeiçoar o arcabouço doutrinário dessa
igreja. A principal expressão dessa reforma católica foi o Concílio de Trento
(1545-1563).

2.2 As origens da Reforma


Tradicionalmente, as fontes do movimento protestante e do pensamento
dos reformadores sempre foram associadas com a Bíblia e com o período pa-
trístico, notadamente o pensamento amadurecido do grande bispo e teólogo
Agostinho de Hipona. Era como se os reformadores do século 16 tivessem
se reportado somente ao cristianismo antigo, não tendo recebido nenhuma
influência do seu próprio tempo ou dos séculos imediatamente anteriores.
Hoje se reconhece que as origens da Reforma também devem ser buscadas no
escolasticismo do final da Idade Média e no humanismo renascentista. Um dos
autores que trabalham essa questão é o historiador e teólogo irlandês Alister
McGrath, em seus livros Origens Intelectuais da Reforma e O Pensamento
da Reforma.11
Apesar de sua imagem negativa, o escolasticismo foi um importante
esforço no sentido de justificar racionalmente as crenças cristãs por meio da
reflexão filosófica, e apresentá-las de modo sistemático, formando um sistema
intelectual abrangente e integrado. Foi, assim, um modo particular de articu-
lar e estruturar a teologia. A chamada escolástica teve duas fases, a primeira
dominada pelo “realismo” (c.1200-c.1350) e a segunda pelo “nominalismo”
(c.1350-c.1500), posições opostas no que diz respeito à existência concreta dos
conceitos universais. O escolasticismo do tipo realista teve duas manifestações,

11 MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007; O
pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.

15
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES

o tomismo (de Tomás de Aquino) e o scotismo (de Duns Scotus), os quais não
exerceram maior influência sobre a Reforma. A vertente nominalista também
se dividiu em duas alas, a via moderna e a schola augustiniana moderna, sen-
do a primeira de tendência pelagiana e a segunda alinhada com a teologia de
Agostinho e sua ênfase na plena soberania de Deus na salvação. Esta última
teve um impacto considerável no pensamento de Lutero.
Quanto ao humanismo, McGrath observa: “Dos muitos afluentes inte-
lectuais e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente
o mais importante foi o humanismo renascentista”.12 Os humanistas, ou seja,
os intelectuais do Renascimento, eram indivíduos religiosos e se interessavam
pela renovação da igreja. Seu famoso lema Ad fontes – “de volta às origens” –
dirigiu suas atenções não somente para os textos da antiguidade clássica de
um modo geral, mas para uma obra em particular, a Bíblia, vista como o
instrumento para dinamizar e revitalizar o cristianismo da época. Quem mais
insistiu nisso foi o holandês Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”,
em seu livro Enchiridion militis christiani (“Manual do soldado cristão”), no
qual exaltou o papel dos leigos e seu direito de amplo acesso à Escritura. Ele
também foi responsável por uma edição do Novo Testamento em grego e latim
(1516), que causou profundo impacto na época, em parte pelo fato de apontar
alguns erros de tradução na Vulgata de Jerônimo. McGrath argumenta que a
influência do humanismo foi muito maior na Reforma suíça do que na alemã.13
Alguns autores, como Pierre Chaunu e Steven Ozment, colocam as reformas
do século 16 num contexto mais amplo de reformas que vinham ocorrendo
desde o século 13.14

2.3 A motivação primária


Uma questão constantemente discutida com relação à Reforma diz respeito
à sua natureza primordial. Historiadores com viés marxista tendem a ignorar
ou minimizar o aspecto religioso, não somente no que diz respeito à Reforma,
mas a qualquer outro fenômeno histórico. Para eles, indo contra tantas evidên-
cias factuais, a religiosidade é uma questão subalterna, decorrente de outros
fatores de maior relevância histórica. Carlos Rojas, ao defender a importância
de uma história total, afirma que “é igualmente relevante estudar o cultural, o
social, o econômico, ou o político, o psicológico, o geográfico, etc.”,15 deixando,
caracteristicamente, de mencionar o elemento religioso.

12 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 54.


13 Ibid., p. 73-75.
14 CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). 2 vols. Lisboa: Edições 70, 1993 (1975).
OZMENT, Steven. The Age of Reform 1250-1550: An intellectual and religious history of late medieval
and Reformation Europe. New Haven, CT: Yale University Press, 1980.
15 ROJAS, Antimanual do mau historiador, p. 95.

16
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22

Todavia, existem aqueles que, mesmo reconhecendo a preponderância


do fator religioso na Reforma, nutrem uma desconfiança em relação ao
mesmo. Daí a advertência do ilustre historiador e teólogo holandês Heiko
Oberman, que lecionou nas universidades de Harvard, Tübingen e Arizona.
Ele argumentou que os estudiosos da Reforma devem resistir a algumas
tendências modernas. Uma delas é a atitude daqueles que, movidos por in-
tenções ecumênicas, atribuem a divisão da cristandade ocidental a disputas
dogmáticas vistas como “equívocos”. Oberman observa que qualquer apro-
ximação ecumênica feita dessa maneira só poderá ocorrer “se a doutrina
da justificação, central para a Reforma, for truncada para se encaixar nos
pronunciamentos do Concílio de Trento ou reformulada em termos de ser
a precursora da ‘autorrealização’ psicológica”. Ele conclui: “Em qualquer
caso, o preço é exorbitante: a própria doutrina da justificação”.16 Esse é, por
exemplo, um dos problemas com a chamada “nova perspectiva sobre Pau-
lo”, que considera inadequado o entendimento luterano e calvinista clássico
acerca da justificação pela fé somente.
De modo menos otimista, o autor Euan Cameron avalia que a Reforma foi
a primeira ideologia de massa dos tempos modernos. Todavia, ele reconhece
o primado do elemento religioso e doutrinário ao afirmar:

A qualidade singular da Reforma Protestante consiste no fato de que ela tomou


uma única ideia essencial; apresentou essa ideia a todos e incentivou a discus-
são pública; então deduziu dessa ideia o restante das mudanças no ensino e no
culto; finalmente, desmontou todo o tecido da igreja institucional e construiu
novamente a partir da estaca zero, incluindo somente o que era consistente com
a mensagem religiosa básica, e exigido por ela.17

Muitos historiadores contemporâneos negam que a Reforma tenha


resultado de uma suposta corrupção católica. O historiador Patrick Collin-
son, professor emérito de história moderna na Universidade de Cambridge,
observa: “Explicações da Reforma em termos de decadência, irreligião e
corrupção são as mais tradicionais e ainda infestam manuais medíocres”.18
Diarmaid MacCulloch, professor de história da igreja na Universidade de
Oxford, acrescenta:

16 OBERMAN, Heiko A. The Reformation: roots and ramifications. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1994, p. xii. Minha tradução.
17 CAMERON, Euan. The European reformation. New York: Oxford University Press, 1991, p. 422.
Minha tradução.
18 COLLINSON, Patrick. The late medieval church and its reformation: 1400-1600. In: MCMAN-
NERS, John (Org.). The Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press,
1992, p. 246. Minha tradução.

17
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES

Uma conclusão a ser tirada do acúmulo das pesquisas recentes sobre a Igreja
Latina antes da convulsão é que ela não era tão corrupta e ineficaz como os
protestantes tendem a retratá-la, e que ela em geral satisfazia as necessidades
espirituais das pessoas do final do período medieval.19

Ao mesmo tempo, esses autores reconhecem o tremendo apelo popular


que as ideias religiosas da Reforma exerceram no século 16. Falando sobre
o extraordinário crescimento do protestantismo na França, Collinson observa
que em 1560 mais da metade da nobreza era protestante e com ela grande
parte da nação. Esse fenômeno resultou de milhares de decisões pessoais de
abraçar o evangelho, tão pessoais como a constatação da esposa de um comer-
ciante de Lião “de que ela encontrava mais satisfação espiritual ao ler a sua
Bíblia e ao ouvir pregadores calvinistas do que nas ministrações do sacerdote
a quem devia confessar”.20 Collinson observa que na França, na Inglaterra e
na Holanda, centenas de pessoas comuns, de ambos os sexos, se dispuseram
a ser queimadas vivas por suas novas convicções protestantes, e conclui que a
Reforma “foi feita na sociedade, e não imposta sobre ela”.21

2.4 As consequências da Reforma


A questão dos efeitos da Reforma ou da sua influência sobre a sociedade
e a cultura nos séculos posteriores, o chamado mundo moderno, é outro tema
altamente debatido nos estudos históricos. As opiniões acerca do assunto abran-
gem um espectro de grande amplitude, desde aqueles que, de modo ufanista,
atributem ao movimento protestante um conjunto estupendo de legados para
o mundo ocidental, até os que questionam ou relativizam tais contribuições.
Um exemplo dessa última atitude é o livro Reforma: o Cristianismo e o Mun-
do 1500-2000, de Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson, autores que
se identificam respectivamente como “um católico romano, com tentações
tridentinas às quais resiste nostalgicamente” e um “evangélico protestante,
com tendências carismáticas cultivadas parcimoniosamente”.22 Esses autores
opinam que as mudanças comumente atribuídas à Reforma parecem menos
convincentes com o passar do tempo e que “é difícil resistir à impressão de
que um preconceito favorável ao protestantismo influenciou a forma pela qual
alguns efeitos de grande alcance foram atribuídos a ele”.23

19 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xx. Minha tradução.
20 COLLINSON, The late medieval church and its reformation, p. 245. Minha tradução.
21 Ibid. Minha tradução.
22
FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo
1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 12.
23 Ibid., p. 372, 376. Ao mesmo tempo, o livro procura transmitir uma visão quase benigna da
Inquisição (p. 384).

18
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22

Poder-se-ia argumentar que a recíproca é inteiramente verdadeira: o pre-


conceito contra o protestantismo também pode contribuir para minimizar ou
relativizar as consequências muitas vezes atribuídas ao movimento. Entre os
efeitos questionados por esses dois autores estão o individualismo, a ascensão
do capitalismo, o declínio da magia, a revolução científica, o sonho america-
no e as liberdades civis. Tudo isso é intrigante diante do fato de que uma das
propostas do livro é conclamar católicos e protestantes a se unirem na luta
contra o secularismo.24
Outro autor que não tem simpatias pelas contribuições do protestantismo
é o historiador galês Christopher Dawson (1889-1970), educado como angli-
cano e convertido ao catolicismo. O título de um de seus livros, A Divisão da
Cristandade, expressa fielmente a sua posição. Para ele, a Reforma, acima de
qualquer outra consideração, provocou a ruptura da unidade cristã e os efeitos
foram catastróficos. Diz ele:

Ao longo de três séculos, o abismo entre o mundo católico e o protestante per-


sistiu e cresceu cada vez mais com o passar do tempo. E foi esse cisma cultural
e político, bem como religioso e eclesiástico, que, em última análise, foi o
responsável pela secularização da cultura ocidental.25

Uma atitude semelhante é demonstrada por Diarmaid MacCulloch, que,


embora não seja um protestante praticante, diz reter uma cordial simpatia pelo
anglicanismo no que ele tem de melhor. Para ele, no século 16 a “sociedade
ocidental, previamente unificada pela liderança simbólica do papa e pela posse
de uma cultura latina comum, foi dilacerada por profundos desentendimentos
sobre como os seres humanos devem exercer o poder de Deus no mundo,
discussões até mesmo sobre o que significava ser humano”.26
Uma das obras mais influentes sobre os primórdios da Reforma foi pu-
blicada em 1928 pelo historiador francês Lucien Febvre (1878-1956), um dos
fundadores da Escola dos Annales e precursor da chamada Nova História. Sua
magistral biografia de Lutero, calcada em vasta pesquisa documental, contempla
em especial os anos de 1517 a 1525 da vida desse “profeta inspirado”. O autor
chega a conclusões sombrias: para ele, o reformador alemão fracassou e seu
destino foi trágico. Em sua avaliação, quando Lutero, no final da vida, “lançava

24 Nos anos 60, no contexto do Concílio Vaticano II, autores católicos publicaram avaliações mais
positivas da Reforma. Por exemplo: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma. São
Paulo: Quadrante, 1996 (1961); DOLAN, John P. History of the Reformation: a conciliatory assessment
of opposite views. Nova York: Desclee, 1965.
25 DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade: da Reforma Protestante à era do Iluminismo.
São Paulo: É Realizações, 2014, p. 194.
26 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xix.

19
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES

o olhar em volta de si, via no solo mais ruínas que construções”.27 Ele sacudiu o
jugo do papa, mas colocou em seu lugar o jugo ainda mais opressor do Estado.

3. O LEGADO DA REFORMA
Como se pode observar, o juízo dos historiadores seculares, católicos e até
mesmo de muitos protestantes sobre a Reforma Protestante pode ser bastante
severo. No entanto, alguns estudiosos procuram destacar diversos legados
construtivos, como é o caso de Alister McGrath. Falando sobre o impacto da
Reforma na história, ele arrola os seguintes fatores: uma atitude positiva em
relação ao mundo, a ética protestante do trabalho, sua influência sobre o ca-
pitalismo, as mudanças políticas, sua conexão com o surgimento das ciências
naturais.28 No final do seu livro sobre as reformas na Europa, Carter Lindberg
afirma que “os legados das Reformas afetaram cada aspecto da vida e do pen-
samento modernos”.29 Ele menciona, entre outras, as seguintes áreas que foram
atingidas: política, cultura, mulheres, tolerância, economia, educação, ciência,
literatura e artes. O historiador Patrick Collinson observa: “É inevitável que
uma coisa tão ampla como a Reforma tenha sido considerada causa de muitas
coisas... é possível considerá-la causa de quase tudo o que quisermos”.30
É preciso lembrar que, sendo a Reforma acima de tudo um movimento
de natureza religiosa e doutrinária, o seu maior legado se deu nessa área. O
eminente historiador Owen Chadwick, falecido em 2015, observou: “Depois
de Lutero, não era possível, seja aos protestantes ou aos católicos, imitar
algumas das velhas maneiras de negligenciar a graça e a soberania de Deus.
Na medida em que o Protesto consistiu no brado de Lutero de que a salvação
não era por meio do ritual... o Protesto foi triunfante”.31 Mais concretamente,
Lutero insistiu no fato de que o ser humano só pode ser salvo pela graça de
Deus, e não por qualquer mérito, virtude ou esforço pessoal. Somente pela fé,
ela mesma também uma dádiva divina, podemos nos apropriar do que Cristo
fez por nós. Collinson observa: “A doutrina de Lutero de que o homem é re-
dimido exclusivamente por meio da fé libertava o homem da moralidade, mas
também para a moralidade”. E conclui: “Aí se encontra a diferença essencial
entre o que se tornaria o Protestantismo e o Catolicismo, tal como este foi
reconstituído no Concílio de Trento”.32

27 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Porto Codex, Portugal: Edições Asa, 1994,
p. 264.
28 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 286-300.
29 LINDGERG, As reformas na Europa, p. 423.
30 COLLINSON, Patrick. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 229-230.
31 CHADWICK, Owen. The Reformation. The Pelican History of the Church. Londres: Penguin,
1988, p. 444.
32 COLLINSON, A Reforma, p. 75. Minha tradução.

20
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22

O historiador norte-americano Mark Noll, depois de reconhecer deficiên-


cias na Reforma e na personalidade de Lutero, argumenta que a concepção
do reformador acerca de Deus deixou marcas profundas na história cristã.
Ele se refere especificamente à chamada “teologia da cruz”, já presente nas
teses 92-95 de 1517.33 Para Lutero, encontrar a Deus era encontrar a cruz.
“O cristianismo torna-se uma realidade nas vidas humanas quando homens e
mulheres participam da morte de Cristo ao experimentarem a destruição de suas
próprias pretensões quando estão coram Deo (na própria presença de Deus)”.34
O reformador contrastou essa atitude com a “teologia da glória”, que leva os
seres humanos a confiarem em si mesmos, na sua própria percepção acerca
de Deus e do mundo. Aquele que deseja encontrar a Deus tem de olhar para
o Calvário, onde Deus se revelou plenamente. Nas palavras de Noll: “A cruz
mostra o Criador, o Deus majestoso e todo-poderoso sofrendo – e sofrendo por
nós. Lutero até mesmo podia dizer que a cruz nos mostra o terrível mistério
de Deus experimentando a morte por nós”.35

CONCLUSÃO
Os exemplos arrolados neste artigo mostram o quanto os compromissos
prévios dos historiadores afetam a maneira como interpretam a história da
Reforma. Assim como alguns deles, principalmente secularistas e católicos
romanos, tendem a relativizar a importância desse movimento, os evangélicos
(no sentido original da palavra) se sentem no dever de apontar os elementos
apreciáveis e construtivos dessa história. Eles não se recusam a admitir que a
Reforma teve suas falhas. O protestantismo gerou uma grande cisão no mundo
cristão e muitas vezes atribuiu importância excessiva aos governantes civis,
praticou ações intolerantes, envolveu-se em guerras, não soube manter a sua
própria unidade interna. Assim, os 500 anos, longe de serem uma ocasião para
celebrações ufanistas, devem ser um convite para a reflexão, para a reafirmação
de princípios, para a gratidão a Deus pela longa caminhada desse movimento,
que, apesar dos percalços, têm produzido frutos extraordinários na vida da
igreja e do mundo.
Fazendo uma avaliação final da Reforma e suas vicissitudes, MacCulloch
fala pelos seus contemporâneos secularizados do início do século 21 ao declarar:
“Nós não temos o direito de adotar uma atitude de superioridade intelectual
ou emocional, especialmente à luz das atrocidades que a Europa do século 20

33 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. Trad. Alderi S. Matos. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 170-173.
34 Ibid., p. 174.
35 Ibid., p. 176. Ver também: MCGRATH, Alister E. Lutero e a teologia da cruz: a ruptura teológica
de Martinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.

21
ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES

produziu por causa de sua fé em ideologias mais novas, seculares”.36 A reforma


do século 16 não deve ser julgada pelos excessos de alguns de seus personagens
e movimentos, em grande medida próprios de sua época, mas pela relevância
das ideias e perspectivas da vida que ela promoveu, principalmente acerca do
relacionamento das pessoas com Deus, e também em muitas outras áreas da
experiência humana sobre a terra. Nestes 500 anos, pode-se dizer que o seu
legado é profundo, rico e duradouro.

ABSTRACT
The Protestant Reformation, a movement that commemorates its fifth
centennial, has been the object of intense investigation by many scholars.
This interest on the topic is due to the relevance of the Reformation and its
vast consequences for the modern world. At the same time, it is a highly
controversial subject, with a wide variety of perspectives and interpretations.
Initially, this article makes some general historiographical considerations about
the Reformation. Then it adresses several aspects that have given occasion
to disagreements and reappraisals in the last decades. They are the multiple
character of the Reformation, its intellectual sources, its primary motivations,
and its consequences. Finally, the author makes some considerations about the
lasting legacy of the Reformation.

KEYWORDS
Protestant Reformation; 500th anniversary of the Reformation; Historio-
graphy; Historians; Interpretations of the Reformation.

36 MACCULLOCH, The Reformation, p. 683.

22
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

O Papel da Música na Reforma


e a Formação do Saltério de Genebra
Dario de Araujo Cardoso*

RESUMO
Destacamos no presente artigo a importância que teve para os refor-
madores a discussão sobre o uso da música na liturgia. Mostramos que tanto
para Lutero quanto para Calvino o poder de mobilização emocional da música
deveria ser utilizado para conduzir os crentes à adoração de Deus. Calvino
destacou-se por defender que esse poder deveria estar a serviço da edificação
e do ensino e incentivou a produção de cânticos de fácil assimilação, cujas
letras conduzissem à meditação em Deus e em suas obras. O cântico de salmos
e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão mostrou-se
o meio mais apropriado para isso e resultou na produção da obra que ficou
conhecida como o Saltério de Genebra.

PALAVRAS-CHAVE
Reforma; Liturgia; Música; Lutero; Calvino; Cântico de Salmos.

INTRODUÇÃO
A liturgia é um dos aspectos primordiais de uma religião. Ela é o elemento
que dá forma e expressão às crenças de determinado grupo. Antes mesmo do
discurso é a liturgia o primeiro aspecto a observar quando da aproximação a
determinada crença. Durkheim demonstrou que as crenças e os ritos são os

* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências da
Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ.
Coordenador e professor do Departamento de Teologia Exegética do Seminário Presbiteriano Rev. José
Manoel da Conceição. Membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana do Centenário, em São Paulo.

23
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

aspectos fundamentais a serem abordados no estudo das religiões.1 Assim, o


estudo da Reforma deve tratar com atenção os aspectos litúrgicos envolvidos
em sua concepção e desenvolvimento.
Nas palavras de Witvliet,

Alguns dos mais dramáticos e reveladores desenvolvimentos no período foram


litúrgicos. Nós não podemos entender completamente as dimensões religiosas
deste (ou de qualquer outro) período sem compreender as variações e mudanças
nos modos pelos quais os fiéis prestavam culto a Deus.2

McKee observa que, além da teologia e da política eclesiástica, a Reforma


trouxe grandes mudanças na liturgia. Nesse campo, continua ela, Calvino e
Genebra devem receber especial atenção “porque aquele padrão é usualmente
reconhecido como o mais significativo para a teologia e liturgia reformada
posterior”.3 Noll relata que a hinologia foi uma marca tão importante da Re-
forma que personagens importantes da Igreja Católica pensaram em proibir o
uso da música na missa. Ele afirma:

A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as


primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica
Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira
tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que
alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram
a proibição da música nas missas.4

Dessa forma, a consideração dos aspectos litúrgicos não dever ser vista
apenas como subsidiária, mas como elemento essencial para a compreensão e
análise da Reforma. Em particular, o estudo das questões relacionadas ao papel
da música na liturgia e dos instrumentos preparados para este fim servirá de
grande proveito para o desenvolvimento desse campo de pesquisa.
Neste artigo descrevemos o pensamento de Lutero e Calvino sobre o
uso da música na liturgia. Em seguida focalizamos os desdobramentos dos
princípios de Calvino na proposição e confecção do Saltério de Genebra. A
exposição é feita sob o referencial teórico semiológico de Nattiez, que propõe
que a música remete a seu ambiente filosófico, ideológico e religioso, entre

1 DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996,
p. 457.
2 MAAG, K.; WITVLIET, J. D. Worship in Medieval and Early Modern Europe: Change and
continuity in religious pratice. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 1.
3 MCKEE, E. A. Reformed Worship in Sixteenth Century. In: VISCHER, L. (Org.). Christian
Worship in Reformed Churches Past and Present. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, p. 3.
4 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã,
2000, p. 206.

24
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

outros, de modo que seu estudo procura distinguir três tipos de temporalidade:
“o tempo da obra (seu desenrolar no tempo), o tempo dos processos que a ori-
ginaram e das estratégias perceptivas que ela coloca em movimento, e o tempo
da história”.5 Lidaremos especialmente com a segunda forma de temporalidade.

1. LUTERO E O USO DA MÚSICA NA REFORMA

1.1 A importância da música como instrumento litúrgico


Antes da Reforma, o povo podia ouvir a música sacra, mas não podia
participar dos cânticos. Silva descreve assim esse contexto:

O canto litúrgico medieval era marcado por sua origem monástica, um canto
“clerical”, elaborado e estabelecido para ser entoado por “profissionais” da
religião, que dispunham de tempo e conhecimentos musicais para um apri-
moramento e uma exaustiva complexidade, chegando a ponto de surgir uma
rivalidade entre os diferentes mosteiros na execução destes requisitos, uma forma
deturpada dos levitas bíblicos. A celebração da missa era o lugar da apresentação
do desenvolvimento de suas técnicas e aprimoramento de sua arte. O povo parti-
cipava passivamente, assistindo a um espetáculo musical em que não entendia o
porquê da música, nem o que se cantava, porque não compreendia a letra cujos
arranjos altifônicos sufocavam a compreensão.6

Coube a Lutero o importante papel de quebrar esse paradigma e restaurar


o cântico congregacional na língua do povo.7 Raynor, buscando destacar a
importância de Lutero para a história da música, escreve que “sua dedicação
total à música teve influência em tudo o que fizesse, não apenas na sua liturgia
alemã, mas também na sua educação alemã, e a sua vida foi quase tão importante
para o futuro da música como o foi para o futuro da religião”.8
Lutero tinha a música em mais alta conta. Para ele, a música era o mais
precioso dos tesouros celestes. Por meio dela são dominados os pensamentos
e sentidos, o coração e o espírito. Ela consola o aflito e abranda o arrogante.

Portanto, [escreveu Lutero] não foi sem razão que os padres da Igreja, e os
profetas, sempre quiseram intimamente juntas a Música e a Igreja; e, por isso,

5 NATTIEZ, J. J. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1990, p. 31.
6 SILVA, Jouberto Heringer da. A música na liturgia de Calvino em Genebra. Fides Reformata
VII-2 (2002): 85-104, p. 93.
7 SANTOS, G. Do Salmo 5 ao “Atos 2” – Uma panorâmica sobre salmos e hinos na música
evangélica no Brasil. Ex Corde, 2006, p. 2. Disponível em: http://www.hinologia.org/do-salmo-5-ao-
-atos-2-uma-panoramica-sobre-salmos-e-hinos-na-musica-evangelica-no-brasil-gilson-santos/. Acesso
em: 28 ago. 2017.
8 RAYNOR, H. História social da música: Da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1972, p. 129.

25
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

temos tantos hinos e salmos. É mediante esse precioso dom, atribuído apenas à
humanidade, que todo homem lembra seu dever de sempre louvar e glorificar
a Deus.9

O reformador alemão entendeu que era impossível substituir o enorme


reservatório de devoção pessoal encontrado na celebração da missa, nos ges-
tos rituais e na música. Não obstante, viu a necessidade de inserir todas essas
coisas num novo contexto doutrinário e por isso “dava ênfase à doutrina com
estrutura tradicional da missa, que mantinha quase toda a estrutura musical”.10
Reynor faz o seguinte registro sobre a liturgia de Lutero:

“Muita música na missa”, escreveu Lutero no Vermahnung zum Sakrament, “é


excelente, pois exprime agradecimento e é muito apreciada. Em partes como o
Gloria in excelsis, o Credo, o Prefácio, o Sanctus e Benedictus e o Agnus Dei
há tão só agradecimento e louvor, e por essa razão as mantemos na missa. De
toda a música na missa, o Agnus Dei é o que mais autenticamente corresponde
ao sacramento, porque louva a Cristo, que carregou nossos pecados; em simples
palavras ele aumenta a nossa reverência pela Paixão de Cristo”.11

Assim, Lutero deu grande atenção à estrutura musical. Por isso, chamou
Johann Walther, músico experimentado que chegou a ser Kappellmeister do
eleitor da Saxônia, para realizar minuciosa organização musical da música
luterana.12
Além do aproveitamento de vários elementos musicais na liturgia, Lutero
mostrou-se um profícuo compositor de hinos e corais. Costa registra que ele
compôs 36 hinos e várias melodias.13 A mais conhecida de suas composições
é uma paráfrase do Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo Forte”),
que se tornou o hino do protestantismo por toda parte. Esse modo de tratar os
salmos para o cântico destacou-se na produção de Lutero, pois outro impor-
tante hino de sua autoria é uma paráfrase do Salmo 130, Aus tiefer Not (“Em
profunda aflição”).
Vemos que Lutero tinha na liturgia um instrumento de instrução e forta-
lecimento doutrinário e que foi pródigo no emprego da liturgia como elemento
propagador da doutrina e da fé. Vemos também que ele tinha no canto um dos
principais elementos da liturgia. O valor que Lutero dava à música era tão

9 Ibid.
10 Ibid., p. 130.
11 Ibid., p. 132.
12 Ibid., p. 130.
13 COSTA, Hermisten M. P. da. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã,
2009, p. 185.

26
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

grande que afirmou dogmaticamente que um professor deveria saber cantar


e que alguém que não tivesse estudado e praticado música não deveria ser
admitido ao ministério. Assim, “nas escolas religiosas a música era entusias-
ticamente ensinada não só como valiosa disciplina intelectual, mas também
como dever religioso e prazer social”.14
Não obstante, é preciso observar que o modo pelo qual Lutero valorizava
a música levou os luteranos, principalmente nos grandes centros, a preferir a
qualidade musical à fidelidade doutrinária. Raynor observa que

num centro musical como a Thomaskirche em Leipzig, ou a Michaeliskirche em


Lüneburg e a Kreuzkirche em Dresden, a qualidade musical mais que a crença
doutrinária ou fidelidade sectárias governavam a escolha de música, em razão
do modo pelo qual Lutero, desde o início da revolta, considerara a qualidade
musical um elemento importante na sua liturgia.15

É interessante que Lutero, diferentemente de Calvino, não nutria simpa-


tia pelo canto congregacional uníssono, mas preferia o canto coral acompanhado
pela congregação. No entanto, por causa de sua preocupação doutrinária, via o
canto congregacional como um proveitoso exercício devocional. Assim permitia
e até mesmo incitava o canto congregacional “apenas para que a congregação
fizesse uma declaração de fé como uma compreensão completa do que estava
cantando”.16 Por isso, prefaciando o livro coral publicado por Rhau e Foster
em 1538, Lutero escreveu:

Quando a música natural é aperfeiçoada e polida pela arte, começa-se então a


perceber a grande e perfeita sabedoria de Deus em sua maravilhosa obra musical,
quando uma voz assume uma única parte, e em torno dela cantam três, quatro
ou cinco outras vozes, saltando, rodando, enfeitando maravilhosamente a parte
original, como uma dança celeste.17

Vê-se que em Lutero a música é um instrumento primordialmente de


impressão, só então de expressão. A música, entendida como um dom divino,
teria em si mesma a capacidade de enlevo e aperfeiçoamento espiritual. A
preocupação com o que será cantado é limitada, embora não deixasse de zelar
por aquilo que contribua para a propagação da mensagem da Reforma.

14 RAYNOR, História social da música, p. 135.


15 Ibid., p. 30.
16 Ibid., p. 132-133.
17 Ibid., p. 133.

27
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

1.2 Divergências entre os reformadores sobre a presença


e o papel da música na liturgia
No entanto, ainda que os protestantes concordassem que deveria haver
uma absoluta conexão entre a fé e a liturgia da Reforma, havia reformadores que
tinham postura bastante divergente da de Lutero. Segundo White, em 1529, o
encontro de líderes protestantes em Marburg demonstrou que eles não podiam
concordar em todos os assuntos de culto e que seu desejo de total acordo não
era possível, ainda que fosse possível ter unanimidade em um ou outro item.

Eles logo descobriram que, embora todos viessem de uma única tradição cristã,
tinham dois espíritos diferentes – que Lutero apontou com cândida observação,
provavelmente a Martin Bucer: “Você tem um espírito diferente do meu”. Lu-
tero representava a velho ensino e piedade. Zuínglio, Bucer, Oecolampadius
representavam o novo ensino e o novo tipo de piedade.18

Entre essas divergências estava o uso da música na liturgia. Zuínglio,


por exemplo, demonstrou “profunda suspeita com o que chamava de ‘seduti-
vo’ poder da música, banindo da Igreja todo tipo de música”.19 Martin Bucer
(1491-1551), em Estrasburgo, seguiu padrão comedido, mas não tão radical.
Descrevendo o culto, ele relata: “Após a remissão de pecados para aqueles
que creem, toda a congregação canta pequenos salmos ou hinos de louvor...”.20
Desde 1525, os salmos eram cantados pelos exilados alemães e franceses em
Estrasburgo.21 Esse padrão proposto por Bucer foi de grande importância para
o ensino e a prática litúrgica proposta por Calvino.
Guilherme Farel (1489-1565), pregador responsável pela permanência de
Calvino em Genebra, também manifestou simpatia pelo canto congregacional,
particularmente dos salmos. Na controvérsia no Convento de Rive (1535), ele
declarou: “Não é mau que todos os fiéis, ao se reunirem, cantem juntos, com
o coração e também com a boca, salmos, em sua língua, que todos entendem,
louvores a Deus”.22
Discordando de Zuínglio, Calvino, além dos perigos e seduções, via na
música um poderoso instrumento de auxílio à edificação e ao zelo espiritual.
No Prefácio ao Saltério de Genebra ele escreveu: “E na verdade nós sabe-

18 WHITE, J. F. Protestant Worship: Traditions in Transition. Louisville: Westminster/John Knox,


1989, p. 58.
19 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 86.
20 Apud BARD, T. (Org.). Liturgies of the Western Church. Philadelphia: Fortress, 1980, p. 87.
21 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 91.
22 AUGUSTIN, C.; VAN STAM, F. P. (Orgs.). Ioannis Calvini. Epistolae, vol. 1 (1530–set. 1538).
Genebra: Librairie Droz, 2005, p. 158; D’AUBIGNÉ, J. H. M. History of the reformation in Europe in
the time of Calvin. Vol. 5, p. 310. Londres: Longmans, Green, and Co., 1869, p. 310ss.

28
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

mos, por experiência, que cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar
os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais
veemência e ardente zelo”.23 Isso implica o esforço em insistir que a música
fosse utilizada na liturgia com esse sublime fim: “É preciso haver canções não
somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar
e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.24
Por isso, a música deveria ter foco no que se cantava, ser simples e apropriada
para ser cantada sem treinamento, e em uníssono.25

2. CALVINO E OS PRINCÍPIOS QUE LEVARAM À PRODUÇÃO


DO SALTÉRIO DE GENEBRA

2.1 Os princípios que devem orientar a música na liturgia


segundo Calvino
A tradição litúrgica de Calvino formou-se a partir daquela praticada por
Bucer em Estrasburgo, mas seguiu seu próprio e marcante caminho, tendo
na promoção do cântico de Salmos sua característica mais marcante. White
descreve:

Diferente da tradição luterana, onde o cântico de hinos era encorajado, ou da


Reforma de Zurique, onde nenhum cântico era permitido, Calvino fez com que os
salmos fossem colocados em métrica francesa por Clément Marot (1497-1544)
e outros. Ele encorajou compositores como Claude Goudimel (c. 1510-1572) e
Louis Bourgeois (1510-1561) a produzir músicas.26

A tradução e a metrificação de salmos para o cântico não eram algo iné-


dito. Como foi dito, Farel tinha preferência por elas no cântico congregacional
e Bucer já havia promovido essa prática em Estrasburgo. Em seu primeiro
período em Genebra (1536-1538), Calvino havia proposto o uso do cântico
de salmos, provavelmente em prosa, na liturgia. “Nós desejamos”, escreveu
Calvino, “que os salmos sejam cantados na igreja de acordo com o antigo uso
e testemunho de S. Paulo”.27
Foi em Estrasburgo que a prática do cântico de salmos conquistou o co-
ração de Calvino e se tornou um elemento de seu projeto ministerial. Halsema
observa que, ao chegar a Estrasburgo, muito agradou Calvino o fato de que

23 CALVINO. J. Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, 1543, p. 3. Disponível em: http://
www.monergismo.com/textos/jcalvino/prefacio_salterio_genebra_calvino.htm. Acesso em: 5 ago. 2008.
24 Ibid., p. 5.
25 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 88.
26 WHITE, Protestant Worship, p. 66.
27 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press,
1967, p. 139

29
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

os refugiados franceses já cantassem salmos em francês havia dez anos e que


cantavam com entusiasmo, dando gosto de ouvi-los.28
Costa registra que

Calvino foi influenciado de certa maneira pela adoração dirigida por Martin
Bucer em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541),
pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar sua fé em liberdade.
Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses
ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto.29

Ainda assim, pode-se considerar Calvino como o grande incentivador


dessa prática e o principal promotor do processo que culminou na publicação
do Saltério de Genebra. Santos afirma que “ele desejava que os salmos vol-
tassem a ser cantados nos cultos, como hinos, tal como o livro dos Salmos, os
quais haviam sido compostos em poesia hebraica e eram cantados no segundo
templo de Jerusalém”.30
Por isso, em 1539, publicou, em Estrasburgo, um saltério francês intitu-
lado Aulcuns Psaulmes et Cantiques mys em chant. Esse saltério continha 18
salmos metrificados, cinco da lavratura de Calvino e os demais retirados da
edição de Clement Marot para a corte francesa. Esse saltério foi a gênese do
Saltério de Genebra.
A importância que Calvino deu a essa prática pode ser vista no prefácio à
edição do Saltério publicada em 1543, agora com a participação direta de Marot.
Calvino inicia o prefácio defendendo que o culto deve ser útil para todo
o povo. Esse princípio da utilidade do culto para a edificação parece ser o
princípio fundamental da proposta litúrgica de Calvino. Ele diz:

Pois nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos obedecer quando nos
reunimos em Seu Nome, somente para entreter o mundo quando este olha e
observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para todo o seu povo; como São
Paulo testemunhou, ordenando que tudo que for feito na Igreja seja direcionado
à edificação comum de todos; isto ao servo não teria ordenado, não fosse esta a
intenção do Mestre. Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos instruídos
a usar a inteligência em tudo que foi ordenado para o nosso proveito. 31

Costa afirma que para Calvino a preocupação teológica deveria “ater-se


à edificação da igreja”. Mais à frente ressalta que “para Calvino, a doutrina
estava relacionada à nossa vida; é para ser crida, vivida e ensinada. [...] não

28 VAN HALSEMA, Thea B. João Calvino era assim. São Paulo: Vida Evangélica, 1968, p. 100.
29 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.
30 SANTOS, Do Salmo 5 ao “Atos 2”, p. 2.
31 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.

30
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

estava teorizando ou simplesmente fazendo uma abstração”32. Nas palavras


de Calvino,

O evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar-
-se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se
de forma total quando ele possui toda alma, e penetra no mais íntimo recesso
do coração. [...] os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o evangelho em
seus lábios, porém não em seus corações.33

Portanto, a doutrina só pode ser sã quando ensinada com o intuito de


beneficiar e que se mostre proveitosa a seus ouvintes.34
Por causa desse princípio de utilidade, Calvino considerava uma grande
tolice praticar orações e cerimônias que as pessoas não pudessem entender.
Sua defesa dessa questão é bem clara:

Portanto, se realmente queremos honrar as santas ordenanças de nosso Senhor


que usamos na Igreja, a primeira coisa que devemos é saber o que elas contêm e o
que elas significam e querem dizer e para que fim foram instituídas, para que
o uso delas seja útil e salutar e consequentemente corretamente administrados.35

No tratado que escreveu em 1544, onde expôs diante do imperador Carlos


V as razões que justificavam a Reforma, Calvino descreveu o modo de oração
que estava sendo implantado nas igrejas

O método pelo qual, em nossas igrejas, todos oram em comum na língua popular,
e homens e mulheres indiscriminadamente cantam os salmos, nossos adversários
podem ridicularizar se quiserem, aprouve ao Espírito Santo trazer testemunho
a nós do céu, enquanto ele repudia os sons confusos e sem significado que são
pronunciadas em outro lugar.36

Seguindo esse princípio, ele defende que há três elementos ordenados


para o culto: a pregação da Palavra, as orações públicas e solenes e a adminis-
tração dos sacramentos.37 A partir desses três elementos, Calvino considera o
cântico como uma forma de oração. “Quanto às orações públicas, há dois tipos.
Aquelas somente com palavras, e outras cantadas”.38 Por isso, a música no

32 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 226, 229.


33 Apud Ibid., p. 230.
34 CALVINO, J. Pastorais. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 163.
35 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1.
36 CALVIN, John. The Necessity of Reforming the Church. Dallas, TX: The Protestant Heritage
Press, 1995, p. 57.
37 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 2.
38 Ibid. p. 3.

31
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

culto deve ser objeto de especial cuidado e consideração. Calvino registra que
“cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens
para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.39
Por isso, Calvino requer que as músicas tenham peso e majestade, rejei-
tando aquelas que sejam frívolas ou triviais, que haja diferença marcante entre
a música de entretenimento e o que é cantado na igreja e que ela seja usada com
moderação de modo que sirva a coisas honesta e não dê lugar à dissolução ou
se torne instrumento de lascívia ou impureza. Isso não quer dizer que Calvino
queria que a música ficasse restrita aos cultos. Ao contrário, seu intuito era
que ela, como de fato aconteceu, fosse cantada nos campos e nos lares como
o que ocorria na igreja cristã por volta do quarto século.40 Sua preocupação
era precaver-se de futilidades e alegrias tolas e viciosas e conduzir a igreja à
alegria espiritual recomendada nas Escrituras. “É preciso haver canções não
somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar
e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.41
O cântico de salmos é, dessa forma, o corolário do princípio da utilidade
do culto para a edificação. Ainda que haja outros cânticos apropriados, ne-
nhum deles pode superar os salmos em virtude de que estes foram dados por
inspiração do Espírito Santo. Calvino escreve: “Portanto, quando procuramos
diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais
apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o
Espírito Santo falou e preparou através dele”.42
Em confirmação disso, cita Agostinho, que viu no cântico de salmos o
modo de usufruir da música sem pecado, que dizia que “ninguém é capaz de
cantar algo digno de Deus, exceto aquilo que recebemos dele”; e Crisóstomo,
ardoroso defensor do cântico de salmos, que entendia que essa prática nos faz
associados à companhia dos anjos.43

2.2 O impacto do Livro de Salmos em Calvino


O impacto que o Livro de Salmos causou na vida de Calvino está bem
documentado. Como foi dito acima, em Estrasburgo, Calvino ficou muito
impressionado com “o entusiasmo com que os exilados franceses cantavam
salmos quando se dirigiam ao culto”.44 Não que cantar salmos fosse uma ideia
nova para Calvino. Em sua primeira estada em Genebra, propusera o cântico de

39 Ibid.
40 CARDOSO, Dario A. O cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma. Ciências da Re-
ligião – História e Sociedade, v. 9, n. 2 (2011): 26-51, p. 35ss.
41 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 3-5.
42 Ibid., p. 5.
43 Ibid.
44 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161.

32
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

salmos que seria ensinado por um coro de crianças à congregação. No entanto,


essa ideia se tornou um propósito em Estrasburgo. “Quando Calvino retornou
a Genebra, adaptou muitos elementos da liturgia de Bucer, tornando-se o rito de
Genebra (1542) a base para a adoração das igrejas calvinistas em toda a Europa –
Suíça, França, Alemanha, Holanda e Escócia”.45 Esse padrão litúrgico tinha o
cântico de salmos como um de seus principais elementos.
Na dedicatória de Calvino ao Comentário de Salmos, ele faz impressionan-
tes menções ao valor desse livro. Essa dedicatória foi endereçada aos leitores
piedosos e sinceros. Ao explicar as razões de sua relutância em empreender
uma série de pregações no livro de Salmos, Calvino reconheceu sua limitação
em expor a riqueza de seu conteúdo.

As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo
fácil de se expressar em palavras; tanto é verdade que estou bem consciente de
que, seja como melhor me expresse, estarei longe de revelar todas a excelência
do tema.46

Além da excelência, Calvino reconhecia a absoluta abrangência do livro


acerca das emoções e necessidades humanas. É bem conhecida a alcunha
atribuída por Calvino a esse livro:

“Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”, pois não há sequer uma emoção
da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada
como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas
as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as
perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana
se agita47.

Dessa forma também ficam expostas nossas debilidades e os vícios a


que estamos sujeitos, e o nosso “coração é trazido à claridade e purgado da
mais perniciosa das infecções – a hipocrisia!”. Mais adiante, ele diz que “tudo
quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração,
nos é ensinado nesse livro”.48
O valor dos salmos para a promoção de uma genuína e fervorosa oração
também é registrado nessa dedicatória. Diferentemente das outras partes das
Escrituras em que são registrados os mandamentos de Deus aos homens, aqui
os profetas “são descritos falando com Deus e pondo a descoberto todos os
seus mais íntimos pensamentos e afeições”, e demonstram

45 Ibid., p. 290.
46 CALVINO, Pastorais, p. 26.
47 CALVINO, J. O livro dos Salmos. vol. 1. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 27.
48 Ibid., p. 27.

33
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

... como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança,
e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não pode
ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à
proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também
alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial.49

Através dos salmos aprendemos a colocar diante de Deus aquelas fraque-


zas que tememos confessar diante dos homens e “não há outro livro em que
somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou
em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exer-
cício”. Neles também somos estimulados a uma vida cristã que seja plena “de
santidade, de piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão
e nos exercitarão para podermos levar a cruz”.50
A menção da cruz nesse trecho deixa bem claro que a piedade promovida
pelos salmos não pode ser denominada veterotestamentária, no sentido de ser
pré-cristã, mas bíblica e cristã no melhor sentido dos termos. Dessa forma,
não há para Calvino a necessidade de cristianizar os salmos, como mais tarde
propôs Charles Wesley. Portanto, não é por acaso que seja nessa dedicatória
que encontramos as mais claras declarações de Calvino quanto à sua conversão.
A partir dessa visão de Calvino, o jovem pastor norte-irlandês Angus Stewart
faz a seguinte observação sobre a atualidade:

Se isso é verdade, devemos confessar o quanto precisamos dos Salmos! Po-


demos tê-los em excesso, se a oração cristã (que o Catecismo de Heidelberg,
Dia do Senhor 45, chama de “a parte principal da gratidão, que Deus requer
de nós”) é tão forte ou fraca quanto a nossa compreensão sincera dos Salmos?
O raciocínio de Calvino aqui deveria nos estimular a ler, cantar e meditar nos
Salmos. Está o Reformador de Genebra aqui identificando o problema com a
oração em nosso país? A ignorância dos Salmos e a popularidade dos hinos
modernos não-inspirados?51

2.3 Elementos distintivos do cântico de salmos proposto por


Calvino
Ao unir-se à longa tradição da igreja de cantar de salmos, Calvino, seguin-
do a prática dos reformadores, traz inovações importantes. A mais evidente é o
uso da língua vernácula. Esse princípio protestante não se limitou às traduções
da Bíblia. Assim como Lutero, que introduziu o alemão na prática litúrgica,

49 Ibid.
50 Ibid., p. 29.
51
STEWART, A. João Calvino sobre a Excelência dos Salmos, 2007, p. 4. Disponível em: <http://
www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinonpsalms.htm> Acesso em: 16 dez. 2010.

34
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

Calvino queria que seus irmãos cantassem em francês. No prefácio do Saltério


de Genebra ele diz: “Por isso, é um grande descaramento por parte daqueles
que introduziram a língua latina na igreja, onde geralmente não é entendida. E
não há nem sutileza nem casuísmo que possa desculpá-los, porque essa prática
é perversa e desagrada a Deus”.52 Por conta disso, não mais era apropriado
que os salmos continuassem a ser cantados em latim como se fazia nas missas
romanas.
Outro elemento distintivo da tradução e cântico de salmos foi o uso da
metrificação, e não do cântico dos salmos em prosa. Pode-se depreender que
essa técnica foi adotada com vistas a facilitar a memorização. Segundo Calvino,
o maior proveito do uso dos salmos não pode ocorrer se eles não estiverem
impressos em nossa memória. “Após a inteligência, deve seguir o coração e a
afeição, uma coisa impossível de acontecer exceto se tivermos o hino impresso
em nossa memória, a fim de nunca cessarmos de cantar”.53 De fato, os registros
pessoais dos calvinistas demonstram que a memorização dos salmos foi um
importante elemento de apoio nas mais diversas situações.

2.4 O cântico de salmos não era propriamente exclusivo


Deve-se observar que, conquanto Calvino manifeste preferência pelo cân-
tico de salmos, não parece ter defendido que isso se fizesse exclusivamente. Na
edição de 1545 das Formas de Oração na Igreja Francesa ele assim descreve
a ordem litúrgica do culto: “Começamos com a confissão de pecados. (...)
Continuamos com salmos, hinos e louvor, a leitura do evangelho, a confissão
de nossa fé (ou seja, o Credo Apostólico), e as santas oblações e oferendas...”.54
É importante notar, então, que desde a primeira e em todas as suas edições
o Saltério de Genebra não foi composto unicamente pelos salmos bíblicos. Ha-
via versões metrificadas de “cânticos bíblicos, da Oração do Senhor, do Credo
dos Apóstolos, dos Dez Mandamentos, e paráfrases de passagens familiares do
Novo Testamento”.55 Além de vários salmos, Calvino traduziu o Cântico de
Simeão, conhecido com Nunc dimittis, e os Dez Mandamentos para o francês
e compôs um hino. Segundo Cabaniss “essa tradição aponta para uma antiga
percepção de que os salmos são quase, mas não totalmente, suficientes para
a adoração cristã”.56
No decorrer da história da formação e da propagação do saltério, pode-
-se registrar, além dos 150 salmos metrificados, onze metrificações de outros

52 CALVINO, Prefácio, p. 3.
53 Ibid., p. 5.
54 Apud COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 295.
55 CABANISS, A. The Background of Metrical Psalmody. Calvin Theological Journal, v. 20,
n. 2 (1985): 191-206, p. 203.
56 Ibid.

35
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

textos canônicos e cinco de hinos não canônicos. Os outros hinos canônicos


eram o Decálogo, o Cântico de Ana, o Primeiro Cântico do Servo, o Cântico de
Jonas, o Cântico de Maria, o Cântico de Zacarias, duas versões do Cântico
de Simeão, Romanos 8, o Hino filipense e o Hino colossense. Os extrabíblicos
são o Cântico dos Três Jovens (presente na LXX e na Vulgata),57 o Credo, o Te
Deum, a Pergunta e a Resposta nº 1 do Catecismo de Heidelberg e Um Hino
para o Pentecoste.58
McNeill registra que Calvino também escreveu poemas. Não afirma se
eles eram cantados, mas diz que, na edição de Genebra em 1545, foi incluído
o melhor poema de Calvino, “Je Te salue, mon certain Redempteur”, uma
declaração de fé fervorosa e pessoal.59 Entretanto, essa prática foi abandonada
por Calvino, preferindo a proposta de metrificação do texto bíblico. Sobre o
uso do texto bíblico como fonte da liturgia protestante, Raynor faz uma inte-
ressante observação

Para os luteranos, como para os reformadores mais radicais, a autoridade em


religião estava na Bíblia, a Palavra de Deus, mais que na tradição viva da Igreja.
Tudo o que se dissesse na Igreja era retirado de textos bíblicos, e quase em grau
igual preces como o Kyrie e textos instrutivos como os do Credo tinham de ser
ouvidos e compreendidos; as palavras não deviam ser apenas matérias-primas
da música para dar uma estrutura e se destinarem a certa coisa autonomamente
musical, como foi o caso da maioria das obras de mestres do Renascimento. Caso
fossem musicadas, era dever do compositor cuidar para que fossem transmiti-
das com toda clareza. Essa atitude para com a música não era, evidentemente,
especificamente protestante; era apenas uma revivescência numa nova situação
das objeções católicas tradicionais à música religiosa por demais complicada e
assinala um ponto no qual se encerrava um ciclo e os protestantes extremados
viram-se utilizando os mesmos argumentos que os conservadores extremados
na Igreja Católica.60

Por reformadores mais radicais e protestantes extremados deve-se enten-


der os calvinistas. Percebe-se aqui a ligação com as discussões que envolveram
a salmódia desde o 4º século. A observação mostra-se verdadeira uma vez
que o próprio Calvino citou várias vezes Agostinho e uma vez Crisóstomo no
Prefácio do Saltério de Genebra.

57 Essa porção do livro de Daniel foi posteriormente considerada apócrifa, ou seja, não canônica,
pelas igrejas protestantes.
58 KOYZIS, D. T. The Genevan Psalter, 2010. Disponível em: http://genevanpsalter.redeemer.ca/.
Acesso em: 14 dez. 2010.
59 MCNEILL, The History and Character of Calvinism, p. 148.
60 RAYNOR, História social da música, p. 137.

36
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

2.5 Os salmos metrificados por Calvino


Koysis informa que os salmos metrificados por Calvino não sobrevive-
ram. Segundo ele, o reformador era melhor teólogo do que poeta. De fato,
61

todas as metrificações de Calvino presentes na versão do saltério publicada


em Estrasburgo foram substituídas pelas produzidas por Clement Marot e
Teodoro Beza. Costa registra que Calvino fez metrificações dos salmos 25, 36,
43, 46, 91, 113, 120, 138 e 142.62 Das composições originais de Calvino foi
possível localizar apenas uma. Trata-se da metrificação do Salmo 113 feita a
partir da metrificação do mesmo salmo em alemão em 1525 em Estrasburgo.
Esse salmo metrificado encontra-se sob o número 374 na revisão de 1964 do
Psaumes Cantiques et Textes pour le culte à l’usage des Eglises réformées
suisses de langue française.

Figura 1: Salmo 113 metrificado por Calvino

61 KOYZIS, The Genevan Psalter.


62 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 182.

37
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

O texto francês pode ser traduzido da seguinte forma:

Vós, servidores do Deus do céu,


Louvai o seu nome constantemente
Que a cada dia, em todos os lugares,
Seu povo a si mesmo dirige.
Desde a manhã até a noite
Louvai, louvai seu nome bendito
Com canções de alegria.

Único todo-poderoso, único Senhor


A ele pertence o império.
Ele tem o seu trono no mais alto céu
Sobre tudo o que respira.
Mas do mais humilde ele se lembra,
Em seu amor ele o mantém,
Seu cuidado está sobre nossas vidas.

A quem ele vê pobre e sofredor


Sua graça libera.
Ele nos abençoa em nossos filhos,
Ele é em si mesmo um pai.
Ninguém além dele é glorioso,
Louvai seu nome sobre a terra.

A comparação com a versão Almeida Revista e Atualizada auxilia na


percepção dos aspectos envolvidos no processo de metrificação utilizado por
Calvino.

1
Aleluia!
  Louvai, servos do Senhor,
  louvai o nome do Senhor.
2
Bendito seja o nome do Senhor,
  agora e para sempre.
3
Do nascimento do sol até ao ocaso,
  louvado seja o nome do Senhor.
4
Excelso é o Senhor, acima de todas as nações,
  e a sua glória, acima dos céus.
5
Quem há semelhante ao Senhor, nosso Deus,
  cujo trono está nas alturas,
6
que se inclina para ver
  o que se passa no céu e sobre a terra?

38
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

7
Ele ergue do pó o desvalido
  e do monturo, o necessitado,
8
para o assentar ao lado dos príncipes,
  sim, com os príncipes do seu povo.
9
Faz que a mulher estéril viva em família
  e seja alegre mãe de filhos.
 Aleluia!63

É possível perceber que certos elementos como o dever de louvar a Deus


e a descrição de seus atributos são transferidos quase que literalmente para a
metrificação. No entanto, os elementos circunstanciais de seus atos são contex-
tualizados e descritos em termos da experiência coletiva descrita na primeira
pessoa do plural, enquanto no salmo são descritos em terceira pessoa. Com
essa simples técnica, o salmo recebe um caráter atual e prático, tendo a graciosa
providência de Deus como elemento teológico que exige que o Senhor seja
louvado e que se dê testemunho do cuidado que ele tem dispensado.

2.6 Clement Marot e o benefício de cantar salmos


Um personagem chave na história do Saltério de Genebra é Clement Marot.
Cabaniss descreve Marot como um filho da Idade Média, um poeta refinado
e brilhante.64 Marot e Calvino se conheceram na corte da Duquesa de Ferrara,
na Itália, em 1536. Quando passou por Genebra, no final de 1542, Calvino o
contratou para dar continuidade ao projeto de metrificação dos salmos.65
Marot dedicou a edição de 1542 ao rei Francisco I. Nela, ele descreve
o livro de salmos como “real e cristão”, escrito e cantado por Davi sob a ins-
piração do Espírito Santo. Também afirma que os salmos não descrevem um
amor terreno, como a Eneida ou a Ilíada, mas que na obra de Davi poderia
ser encontrado o verdadeiro Amante, o Rei dos reis, e por isso Davi supera
Homero e Horácio. Continua Marot que os corações gentis e as almas amáveis
encontram neles consolação em todas as tribulações.66 Os temas espirituais são
proeminentes nesse primeiro prefácio. Além da inspiração dos salmos, Marot
menciona o cuidado providencial de Deus, a importância da lei na distinção
entre o bem e mal e a prefiguração dos sofrimentos de Cristo como temas
importantes dos salmos.
Curiosamente, no prefácio à segunda edição (1543), Marot acrescenta
uma palavra às senhoras “encorajando-as a abandonar as canções mundanas

63 Sociedade Bíblica do Brasil. Bíblia Sagrada – Almeida Revista e Atualizada, com números de
Strong (Ps 113:1–9). Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil.
64 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 200.
65 VAN HALSEMA, João Calvino era assim, p. 100, 143; COSTA, Ibid., p. 182.
66 CABANISS, The Background of Metrical Psalmody, p. 201.

39
DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO...

em favor daquelas que ele lhes oferecia”.67 Assim, ao presumir que elas teriam
interesse em canções de amor, ressalta que os salmos falam somente de Amor e
que, de fato, foram compostos por aquele que é o próprio Amor. Então, conclui
o seu apelo dizendo:

Comecem, minhas senhoras, a promover a idade áurea na qual Deus é adorado


como ele próprio ordenou, cantando este livro sagrado de canções. Vocês têm
sorte, minhas senhoras, de poderem ver a hora se aproximar quando um traba-
lhador em seu trabalho, um condutor em seu carro, um artesão em sua oficina,
ilumina sua labuta com salmo ou cântico, quando pastores e pastoras fazem as
rochas ecoarem com música louvando o santo nome de seu Criador.68

Cabaniss, observa que, propriamente falando, Marot não era protestante.


Ele parece pertencer a um grupo evangélico, bíblico e humanístico chamado
“círculo de Meaux”.69 Entretanto, foi muito bem recebido em Genebra e tanto
ele quanto sua poesia granjearam a mais alta consideração de Calvino, de modo
que um de seus salmos é utilizado no início da versão francesa do Novo Tes-
tamento publicada em Genebra em 1543. Essa admiração perdurou por toda a
vida do reformador, o que é demonstrado pelo fato de que na Páscoa de 1564,
última ocasião em que Calvino, já muito adoecido, participou da Comunhão,
foi cantada no encerramento do culto a versão do Nunc dimittis metrificada
por Marot em 1543,70 não obstante, Calvino ter feito anteriormente sua própria
versão metrificada do cântico de Simeão.
Em 1543, os teólogos da Sorbonne condenaram formalmente as tradu-
ções de Marot ao considerarem uma ameaça a prática protestante do uso do
vernáculo nos cultos. Ainda assim, suas melodias eram cantadas tanto por
católicos quanto por protestantes. Foi somente depois da edição de 1551, que
foi expandida por Teodoro Beza, que “os salmos e suas melodias se tornaram
muito mais fortemente identificados com a causa huguenote”.71 Dessa forma,
Henrique II, que em sua juventude havia cantado na corte as traduções de
Marot, baniu oficialmente o cântico público de salmos em 1558. Tal proibição
e o importante papel simbólico do Saltério de Genebra nas guerras da religião
levaram a um baixo índice de sobrevivência das suas fontes musicais. Os

67 Ibid.
68 Apud Ibid.
69 Ibid., p. 202.
70 Ibid.
71 BROOKS, J. Les cent cinquante pseaumes de David, mis en musique a quatre parties. 1998, p. 1.
Disponível em: <http://www.thefreelibrary.com/Les+cent+cinquante+pseaumes +de+David,+mis+en+
musique+a+quatre+(et...-a020825591> Acesso em: 18 dez. 2010.

40
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41

militantes católicos se comprometeram a destruir todas as cópias do Saltério


que caíssem em suas mãos.72

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos neste artigo o importante espaço que a música ocupou nas
discussões da Reforma. Notamos que de modos diferentes Lutero e Calvino
reconheceram o valor litúrgico da música e empenharam seus melhores es-
forços para que seus benefícios fossem sentidos na vida da igreja. Um ponto
relevante dessa discussão é a ênfase que Lutero deu ao poder de impressão
que a música poderia exercer sobre os crentes, ao passo em que Calvino pre-
feriu investir na música como um meio de expressão da fé e de ensino. Para
Calvino, desde que fosse simples e focada no que se cantava, a música tinha
o poder de envolver os homens na adoração a Deus e na meditação acerca de
suas obras. O reformador encontrou nos salmos o ponto máximo do princípio
da utilidade da música para a edificação. Com isso, um dos grandes projetos
de seu ministério foi a produção de um livro de cânticos composto de salmos e
outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão. Essa obra
ficou conhecida como o Saltério de Genebra.
Com Lutero e Calvino aprendemos sobre a importância do investimento
na produção musical para a edificação da igreja. Para isso, não podemos tratar
a questão musical como uma discussão de estética clássica ou contempo-
rânea. Precisamos nos certificar de que a música utilizada no culto reflita a
majestade de Deus, incite os crentes à adoração e mova mentes e corações
para o louvor de Deus e para o compromisso com sua Palavra.

ABSTRACT
This article highlights how important it was for the reformers to discuss
the use of music in liturgy. It shows that for both Luther and Calvin the emo-
tionally mobilizing power of music should be used in order to lead believers
to worship God. Calvin was known for stressing that this power should be
instrumental to upbuilding and teaching. He emphasized the production of songs
that were easy to be learned and whose lyrics led to meditation upon God and
God’s works. The singing of psalms and other biblical passages, metrified
and adapted to the Christian context, proved to be the most adequate means to
meet this goal and it resulted in the production of the work that became known
as the Geneva Psalter.

KEYWORDS
Reformation; Liturgy; Music; Luther; Calvin; Singing of Psalms.

72 Ibid.

41
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

Lutero e os Antinomistas:
Qual é a visão evangélica da lei?
Heber Carlos de Campos Júnior*

RESUMO
Depois de apresentar os componentes essenciais da doutrina luterana
de justificação em diálogo com os intérpretes de Martinho Lutero, este artigo
introduz a controvérsia antinomista com João Agrícola na qual ele questio-
na se o arrependimento era resultado da exposição da lei ou da pregação do
evangelho. É apresentada como cenário da discussão a estrutura hermenêutica
de lei e evangelho e resumida a oposição de Agrícola aos ensinos de Filipe
Melanchton, seguida da resposta de Lutero e da ratificação da Fórmula de
Concórdia. O propósito em resumir a controvérsia antinomista em contextos
luteranos é suscitar pontos de contato com antinomismos na Inglaterra do
século 17, quando surgiram discussões semelhantes, e consequentes lições
para os dias atuais. Este artigo defende que há uma necessidade de contar essa
história novamente para atender a certas necessidades do cenário evangélico
brasileiro e internacional.

PALAVRAS-CHAVE
Martinho Lutero; Antinomista; Antinomismo; João Agrícola; Justificação;
Lei e evangelho; Arrependimento.

INTRODUÇÃO
É bem sabido que a doutrina da justificação ocupou lugar central na Refor-
ma Protestante do século 16. Utilizando linguagem aristotélica, os historiadores
tendem a denominar essa doutrina o “princípio material” da Reforma, isto é,

* Doutor em Teologia Histórica pelo Calvin Theological Seminary, em Grand Rapids, Michigan;
professor de teologia histórica e teologia sistemática no CPAJ; pastor da Igreja Presbiteriana Aliança,
em Limeira (SP).

43
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

a matéria prima com a qual ela foi moldada.1 Em contrapartida ao conceito


católico romano de justiça infusa, derramada no interior do ser humano para
torná-lo pessoalmente justo, a Reforma passou a falar de uma justiça atribuída
ao ser humano. Sua diferença quanto à doutrina de Roma era mais do que mera
semântica, ou apenas uma falta de distinção entre justificação e santificação,
mas, de acordo com os reformadores, atingia a pureza do evangelho (boa nova).
Essa diferença pode ser expressa com a seguinte pergunta: Como você quer ser
avaliado por Deus e pelos homens, pela quantidade de justiça que há em você
ou pela justiça atribuída a você? Em outras palavras, você quer ser recebido
por Deus baseado em seu próprio desempenho ou baseado no desempenho de
outro (Cristo) a seu favor? Você acha que os relacionamentos na igreja devem
se iniciar e se perpetuar com base em uma pureza inerente às partes ou no
perdão restaurador? Essas perguntas revelam qual é a base de nossas relações
verticais e horizontais.
Foi na doutrina da justificação que Martinho Lutero (1483-1546) trouxe
algumas de suas maiores contribuições teológicas para a Reforma. Podemos
resumir algumas de suas contribuições em três pontos que estão interligados.
Primeiro, Lutero descobriu uma justiça salvadora, antes que punitiva. No
renomado trecho autobiográfico contido no prefácio de suas obras em latim
publicadas no final de sua vida (1545),2 Lutero relembra que quando era um
jovem monge a expressão “justiça de Deus” (Rm 1.17) aterrorizava a sua
alma. Todas as suas tentativas de satisfazer a Deus – orações, jejuns, vigílias,
boas obras – não lhe aquietavam a alma, pois ele sempre se julgava aquém
do padrão de santidade em Deus. Continuamente confessava suas falhas mais
insignificantes ao seu mentor, Johann von Staupitz, a ponto de cansá-lo. Além
disso, Lutero diz que nutria certa fúria velada contra o Deus que pune peca-
dores.3 Sua descoberta, contudo, se deu quando a “justiça de Deus” passou de
castigo para a provisão redentora de Deus. Sua alma encontrou alívio, nasceu
de novo, quando ele mudou seu entendimento do que era a “justiça de Deus”

1 MCGRATH, Alister E. O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 113.
Aristóteles desenvolveu uma teoria quanto à causa das coisas no mundo natural, como forma de investi-
gação do mundo ao nosso redor. Esta teoria é descrita de forma praticamente idêntica em Física II.3 e em
Metafísica V.2. Sendo que Aristóteles está buscando uma resposta para a pergunta “por quê?” podemos
pensar na causa como um certo tipo de explicação. Cada uma das quatro causas é a explicação de algo.
Eis as quatro causas: 1) “causa material”, aquilo do qual sai algo, e.g. o bronze de uma estátua; 2) “causa
formal”, o relato do que há de se tornar, o formato da estátua; 3) “causa eficiente”, a fonte primária de
mudança, o artesão; 4) “causa final”, o propósito de algo, o embelezamento de um prédio e a glória
de um imperador. FALCON, Andrea. “Aristotle on Causality”. Stanford Encyclopedia of Philosophy.
Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/aristotle-causality/. Acesso em: 29 ago. 2017.
2 Cf. LULL, Timothy F. Martin Luther’s Basic Theological Writings. 2ª ed. Minneapolis: Fortress,
2005, p. 8-9.
3 GEORGE, Timothy. Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 64, 66.

44
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

em Romanos. Heiko Oberman diz que as doutrinas medievais de justificação


tratavam daquele que está no estado de graça como tendo recebido a iustitia
Christi (justiça de Cristo) sacramentalmente, mas que restam as obras de
obediência à lei divina para satisfazer as exigências da iustitia Dei (justiça
de Deus). Lutero perturbava-se com o conceito de iustitia Dei, pois sempre se
via distante de uma obediência satisfatória. A grande descoberta de Lutero foi
esta: “O coração do evangelho é que a iustitia Christi e a iustitia Dei coincidem
e são concedidas simultaneamente”.4 Essa descoberta foi seu grande deleite, e
um dos marcos na transição para uma teologia madura do reformador.
Em segundo lugar, Lutero enfatizou uma justiça passiva (isto é, que eu
recebo), não ativa.5 Lutero rompeu com a tradição medieval ao asseverar que
certos homens são intrinsecamente pecadores, mas extrinsecamente justos. En-
quanto a tradição agostiniana de justificação progressiva entendia a expressão
simul iustus et peccator (simultaneamente justo e pecador) significando “em
parte” pecador e “em parte” justo – como num processo de santificação – a
ênfase de Lutero recaía em sermos pecadores em nós mesmos e justos porque
Cristo nos foi dado.6 Ele compreendeu que é possível alguém ser internamente
poluído ainda que seja tratado por Deus como puro. Enquanto na teologia me-
dieval o veredito de justificação vinha por meio da infusão de uma qualidade
sobrenatural (“graça habitual”) que habilitava o homem a fazer boas obras,7
Lutero destacou como o crente é visto por Deus como justo (mediante o per-
dão dos pecados) ainda que não tenha obras suficientes em si mesmo. Essa é
outra forma de falar de “justificação pela fé somente”. Fé, aqui, não é uma das
virtudes teológicas agostinianas como esperança e amor, mas constitui uma
relação de confiança (fiducia) em Deus por causa da obra de Cristo. Lutero
reconhece que a palavra “somente” não é derivada de um texto da Escritura,
mas contra a tradição medieval solidifica a necessidade de a fé ser o único
instrumento pelo qual somos justificados por Deus em Cristo. Tanto é que sua
tradução de Romanos 3.28 ficou polemicamente famosa quando ele inseriu a
palavra “somente” (allein em alemão) para captar a ênfase paulina, ainda que
o original não explicitasse tal qualificação.8

4 OBERMAN, Heiko A. ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’: Luther and the Scholastic Doctrines
of Justification. Harvard Theological Review, vol. 59, no. 1 (Jan. 1966), p. 19.
5 Lutero escreveu: “A justiça que provém de nós não é a justiça cristã, e por ela não nos tornamos
justos. A justiça cristã é bem o contrário, a justiça passiva, que apenas recebemos, em que não agimos,
mas deixamos um outro agir em nós, Deus”. Apud EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma
introdução. São Leopoldo: Sinodal, 1988, p. 96.
6 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 72-73.
7 Ibid., p. 66.
8 CAMPOS JÚNIOR, Heber Carlos de. O lugar da fé e da obediência na justificação: Um histó-
rico das discussões reformadas do século XVII. In: FERREIRA, Franklin (Org.). A glória da graça de
Deus: Ensaios em honra a J. Richard Denham Jr. sobre história, teologia, igreja e sociedade. São José

45
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

Em terceiro lugar, Lutero ressaltou que se trata de uma justiça alheia, não
minha. No sermão de 1519 intitulado “Duas espécies de justiça”,9 Lutero fala
de uma primeira justiça que vem de outro (iustitia aliena), que vem de fora.
Essa justiça de Cristo é a fonte da segunda justiça, produzida dentro de nós.
A ênfase primária numa justiça que vem de fora é um ataque à antropologia
pelagiana antes do que um claro pronunciamento da justificação forense, isto é,
legal.10 É bom lembrar que a descoberta das verdades protestantes acontece de
forma gradativa. Nesse sermão, ele ainda sustenta a ideia de justificação como
um processo de santificação: “E assim Cristo expulsa Adão dia a dia, mais e
mais, na medida em que crescem aquela fé e o conhecimento de Cristo; pois
a justiça alheia não é infundida toda de uma vez, mas começa e progride e é
levada finalmente à perfeição com a morte”.11 Em A Liberdade de um Cristão,
de 1520, Lutero expressa a justificação de tal forma que recebemos tudo de
Cristo por estarmos unidos a ele e de que Cristo recebe os nossos vícios.
Essa analogia de união com Cristo e a metáfora do casamento, que Lutero
muito apreciava, tem sido interpretada de forma diversa. Por razões diferentes,
tanto o renomado especialista Karl Holl quanto a escola finlandesa de inter-
pretação de Lutero (Tuomo Mannermaa é um dos intérpretes finlandeses mais
destacados) entendem que Lutero tinha um entendimento mais ontológico de
justificação e, portanto, diferente do conceito mais forense de seu colega Filipe
Melanchton (1497-1560). Holl pende para uma interpretação que ressalte a
natureza ética da justificação em Lutero enquanto a escola finlandesa prefere
associá-la à noção oriental de theosis (deificação ou divinização).12 Alister

dos Campos, SP: Editora Fiel, 2010, p. 355-356. Para uma visão mais detalhada da interpretação de
Lutero de Romanos 3.28 com implicações para a doutrina da justificação pela fé somente, ver os dois
debates sobre o tema em LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. Vol. 1: Os primórdios, escritos de
1517 a 1519. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1987, p. 201-239.
9 Cf. LUTERO, Obras selecionadas, vol. 1, p. 241-248.
10 “O ‘extra nos’ para Lutero é a conexão entre a doutrina da justificação e a antropologia teoló-
gica. Essa expressão, contudo, não deve ser mal-entendida no sentido forense da palavra. O conceito
central de ‘extra nos’ não se coloca ao lado de uma justificação por imputação em oposição a uma
justificação por união. Ela não prova que somos justificados ‘fora de nós mesmos’ perante o trono de
Deus o juiz (in foro Dei), de tal forma que a graça não seria imposta [i.e. colocada dentro] mas ‘somente’
imputada. A intenção do ‘extra nos’ é mostrar que a justificação não é baseada no homem se apropriar do
que é devidamente seu, como numa debitum iustitiae”. OBERMAN, ‘Iustitia Christi’ and ‘Iustitia Dei’,
p. 21. Para uma discussão aprofundada da antropologia de Lutero dentro da estrutura de “dois tipos de
justiça”, ver KOLB, Robert; ARAND, Charles P. The Genius of Luther’s Theology: A Wittenberg Way
of Thinking for the Contemporary Church. Grand Rapids: Baker, 2008, p. 21-128.
11 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 1, p. 243.
12 TRUEMAN, Carl. Simul peccator et justus: Martin Luther and Justification. In: MCCORMACK,
Bruce L. (Org.). Justification in Perspective: Historical Developments and Contemporary Challenges.
Grand Rapids: Baker Academic, 2006, p. 88-89.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

McGrath aceita, ao menos em parte, a intepretação finlandesa da influência da


ideia oriental de deificação sobre Lutero.13
Por outro lado, Carl Trueman, seguindo a linha de Lowell Green e Robert
Kolb, apresenta vários problemas com a disjunção feita entre Lutero e Me-
lanchton. Em primeiro lugar, essa disjunção desconsidera o desenvolvimento
teológico de Lutero (de 1515 a 1520) saindo de um conceito transformativo e
ontológico de justificação rumo a uma ideia mais relacional, de status. Enquanto
os intérpretes da disjunção se fiam nas obras iniciais de Lutero, Trueman de-
monstra como a partir de A Liberdade de um Cristão, mas principalmente no
Comentário de Gálatas (preleções de 1531 cujas anotações foram publicadas
em 1535), vemos que Lutero abandona não só a antropologia pelagiana da
teologia medieval, mas, impulsionado pelo voluntarismo da via moderna, ele
intensifica a importância da decisão divina na justificação do homem. Isto é,
a identidade do homem perante Deus é uma questão de status, dependente da
decisão divina, não da transformação no homem.14 Em segundo lugar, a disjun-
ção entre Lutero e Melanchton desconsidera a grande admiração que Lutero
tinha pelos escritos de seu colega mais novo. Ele não só louva o comentário
de Romanos escrito por Melanchton (1532), mas se une ao seu colega numa
carta (12 de maio de 1531) opondo-se à noção de justificação proposta por
Johannes Brenz.15 Em terceiro lugar, a disjunção proposta separa Lutero não só
de Melanchton, mas de toda a tradição luterana confessional produzida tanto

13 MCGRATH, Alister E. Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification. 3ª ed.
Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 225-226. Se essa avaliação estiver correta, e Cristo
se torna um pecador por união, então Lutero é passível da crítica que Richard Baxter levantou contra
o antinomista Tobias Crisp cerca de 150 anos mais tarde na controvérsia antinomista na Inglaterra. Cf.
CAMPOS JÚNIOR, O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 363-364. Todavia, parece prudente
concluir que nos escritos de Lutero não encontramos uma discussão tão clara sobre a natureza da trans-
ferência do nosso pecado a Cristo.
14 TRUEMAN, Simul peccator et justus, p. 77-83.
15 Ibid., p. 90-91. Johannes Brenz descrevia a justificação como dependente do cumprimento da
lei operada pelo Espírito Santo ao invés da imputação de Deus por causa da obra de Cristo; a teologia
de Brenz lhes parecia muito próxima do catolicismo romano. Trueman afirma que o posfácio da carta de
Melanchton, escrito por Lutero, apresenta uma linguagem alternativa, mas não discordante do seu colega
de trabalho em Wittenberg. As diferenças se resumem na ênfase e na escolha de linguagem (p. 91, nota 42).
Martin Brecht, em contrapartida, acredita que o posfácio da carta traz uma ênfase diferente, ainda que
sem criticar Melanchton. Brecht afirma que a visão de Lutero era menos precisa que a de Melanchton,
mas evitava separar a declaração divina da justificação da justificação em si mesma. Algumas páginas à
frente, Brecht afirma que no grande comentário de Gálatas de Lutero (1535), baseado em suas preleções,
os editores, que eram discípulos de Melanchton, adaptaram a doutrina da justificação e as afirmações
sobre a lei feitas por Lutero às ideias de Melanchton. BRECHT, Martin. Martin Luther: Shaping and
Defining the Reformation, 1521-1532. Minneapolis: Fortress, 1994, p. 451, 455. Percebe-se que Brecht
promove a disjunção entre Lutero e Melanchton. Ainda assim, não se pode negar que escrever um pos-
fácio a uma carta de Melanchton não pode significar alguma diferença significativa com Melanchton,
do contrário não faria sentido se unirem na confrontação de um colega.

47
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

durante a vida de Lutero (v.g., Confissão de Augsburgo, 1530) quanto depois


de sua morte (Fórmula de Concórdia, 1577).16
Toda essa discussão sobre a correta leitura de Lutero confirma que não
é fácil discernir com precisão o grau com o qual Lutero apreendeu o aspecto
forense da justificação e quando ele o teria feito. Parte dessa dificuldade em
interpretá-lo é refletida ainda em sua vida, como veremos mais adiante neste
artigo. No entanto, ele foi fundamental em apontar para a obra de Cristo para
alguém ser aceito diante de Deus.
O elemento forense da justificação ficaria mais nítido na pena de Filipe
Melanchton. Se Lutero lançou o fundamento de uma justiça extrínseca a nós,
é principalmente com Melanchton que o conceito de justiça imputada é de-
senvolvido.17 Stephen Strehle historia que a partir da tradução de Erasmo de
Roterdã de Romanos 4:3 (traduzindo o grego logizomai por imputo ao invés
de reputo, como na Vulgata), Melanchton passou a enfatizar a obra de Cristo
e o aspecto forense. Na Apologia da Confissão de Augusburgo, escrita por
Melanchton em 1531, ele afirma que ser justificado “não significa que um
homem ímpio é feito justo, mas que ele é pronunciado justo de uma forma
forense” (artigo 4, parágrafo 252). Na controvérsia com Andreas Osiander,
Melanchton o acusou de trocar a “causa”, que é a obra de Cristo, pelo “efeito”,
por falar de justificação sobre as nossas obras resultantes da novitas criada
em nós.18
Essa doutrina da justificação propagada por Lutero e lapidada por Me-
lanchton se tornou o estandarte da reforma “evangélica” (termo usado para se
referir aos luteranos no começo da Reforma), uma doutrina tão cardeal para
Lutero que ele a chamou de “o artigo pela qual a igreja se sustenta ou cai”. Ele
temia que após a sua morte essa doutrina viesse a ser distorcida. Ele escreveu
que Satanás, no que lhe é possível, tenta impedir “que a salutar doutrina da
justificação permaneça pura na Igreja”.19 Esse temor se explica não só pelos
séculos de teologia escolástica que obscurecera o fulcro da teologia paulina

16 TRUEMAN, Simul peccator et justus, p. 90-91.


17 MCGRATH, Iustitia Dei, p. 229; LOHSE, Bernhard. Martin Luther’s Theology: Its Historical
and Systematic Development. Minneapolis: Fortress Press, 1999, p. 262; cf. GREEN, Lowell. How
Melanchthon Helped Luther Discover the Gospel: The Doctrine of Justification in the Reformation.
Fallbrook, CA: Verdict, 1980.
18 STREHLE, Stephen. Imputatio iustitiae: Its Origin in Melanchthon, Its Opposition in Osiander.
In: Theologische Zeitschrift, vol. 50, no. 3 (1994), p. 201-219. “Para Osiander, o conceito melanchtoniano
de justificação como somente ‘declarar justo’ era totalmente inaceitável: a justiça salvadora era nenhuma
outra senão a inerente justiça essencial de Cristo, provinda de sua divindade ao invés de sua humanidade.
A justificação, portanto, deve ser entendida como consistindo da infusão da justiça essencial de Cristo”.
MCGRATH, Iustitia Dei, p. 241-242.
19 LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. Vol. 4: Debates e controvérsias, II. São Leopoldo/
Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993, p. 394.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

de justificação,20 mas porque mesmo em vida Lutero experimentou confusão


nessa doutrina com a chamada “controvérsia antinomista”.
A controvérsia antinomista girou em torno do papel da lei na justifica-
ção. Um dos seus discípulos, João Agrícola21 (1594-1566), passou a defender
interpretações do Lutero mais jovem sobre o arrependimento ser produzido
pelo evangelho à parte da lei. Tais interpretações suscitaram a oposição do
próprio Lutero e de Melanchton. Posteriormente à morte de Lutero, o assunto
voltou a ser alvo de polêmica e a posição luterana oficial foi estabelecida na
Fórmula de Concórdia (1577). Esse segundo momento esclareceu e ratificou
pontos que já estavam presentes na primeira controvérsia.
O propósito deste artigo é resumir a controvérsia antinomista em contex-
tos luteranos do século 16 para suscitar pontos de contato com antinomismos
na Inglaterra do século 17 e lições para os nossos dias. Tais conexões visam
apontar “pontos cegos” de algumas tradições teológicas dentro do movimento
evangélico e apontar a necessidade de cada geração compreender as implicações
de um entendimento adequado de lei e evangelho. Por isso, começaremos nossa
história apresentando o binômio lei/evangelho como estrutura da justificação
para, então, compreendermos os detalhes da controvérsia antinomista como a
busca por uma compreensão evangélica da lei.

1. ESTRUTURA DA JUSTIFICAÇÃO: LEI E EVANGELHO


A distinção entre lei e evangelho é estrutura fundamental de toda a teologia
evangélica de Lutero. E ela ganhou contornos ainda mais claros na controvérsia
antinomista, quando Lutero respondeu perguntas suscitadas quanto ao lugar
da lei. Paul Althaus afirma que para Lutero, a lei não era encontrada apenas
no Antigo Testamento, pois até Cristo pregou a lei, confirmando a lei mosaica
e interpretando-a no “evangelho” (aqui a expressão era usada por Lutero no
sentido amplo, envolvendo toda a proclamação de Jesus e dos apóstolos).22
Lei, portanto, é tudo que nos faz perceber o pecado e acusa nossa consciência,
independentemente de estar em Cristo ou em Moisés.23 O evangelho, num
sentido mais restrito, é a boa nova de salvação. De acordo com Althaus, a fé
sempre se move da lei para o evangelho, mas nunca faz o trajeto inverso.24

20 GEORGE, Teologia dos reformadores, p. 70.


21 “Seu nome era Johann Schneider, que se transformou em ‘Schnitter’ (ceifeiro). Aplicado à
agricultura, se tornou ‘Agrícola’ em latim, como era uso na época”. WARTH, Martim C. Introdução
a “Lutero e os antinomistas”. In: LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 376.
22 Quando Lutero afirma que Cristo “censura, acusa, ameaça, aterroriza por todo o Evangelho
e exerce semelhantes ofícios da lei”, ele está usando o termo “evangelho” para se referir aos escritos
apostólicos que também incluem a lei. LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 386.
23 ALTHAUS, Paul. The Theology of Martin Luther. Minneapolis: Fortress Press, 1966, p. 261.
24 Ibid., p. 265.

49
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

Markus Wriedt resume a teologia de Lutero assim:

Por lei, Lutero entendia todas as afirmações da Escritura que descobrissem os


pecados dos seres humanos e os acusassem. Em contraste, o evangelho inclui
todas as afirmações que prometem conforto, redenção e a graça de Deus. O
evangelho não pode estar limitado ao corpo de texto contido no Novo Testa-
mento, nem pode cada verso da Escritura ser exclusivamente designado como
evangelho ou lei. Suas respectivas funções são reveladas num contexto de
relacionamentos complexos, a situação pessoal do ouvinte ou leitor, e o plano
de salvação de Deus como um todo.25

Além de reforçar que lei e evangelho estão presentes em toda a Escritura,


inseparavelmente entremeados, Wriedt está dizendo que as mesmas porções
da Escritura podem assumir funções diferentes dependendo da situação do
ser humano.
Bernhard Lohse faz um resumo semelhante dessa importante distinção
entre lei e evangelho em Lutero, que se fundia com sua doutrina da justificação.
A distinção é uma nova versão da distinção agostiniana entre “lei e graça” pro-
posta pelo bispo de Hipona em De Spiritu et Littera.26 Lohse diz que o sentido
de Agostinho era histórico-redentivo, enquanto que em Lutero lei e evangelho
se mantinham em relação dialética tanto na antiga como na nova aliança.27 Lei
e evangelho não podem ser associados com Antigo e Novo Testamentos, nem
com passagens específicas, como se um texto fosse só lei e outro somente
evangelho. A maioria das passagens bíblicas tem ambos misturados.
Ainda que não devamos cultivar uma visão reducionista de Agostinho,
como se ele restringisse a graça ao período neotestamentário,28 a verdade é
que essa distinção foi trabalhada pela tradição agostiniana. Heiko Oberman
mostra como o teólogo medieval Gabriel Biel (†1495) expôs seminalmente
alguns conceitos desenvolvidos por Lutero.29 Como Lutero conhecia a teologia
de Biel, talvez ele tenha se apoiado mais em pensadores medievais do que se
admite. No entanto, é inegável que Lutero tenha sido inovador ao enxergar
lei e evangelho como uma lente hermenêutica para a Bíblia, uma estrutura de
categorias teológicas abrangentes.

25 WRIEDT, Markus. Luther’s Theology. In: MCKIM, Donald K. (Org.). The Cambridge Com-
panion to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 106.
26 “A lei é dada para que a graça seja buscada; a graça é dada para que a lei seja cumprida”. De
Spiritu et Littera 19.34.
27 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 268.
28 João Calvino, por exemplo, cita Agostinho inúmeras vezes no capítulo em que ele trabalha a
graça presente na antiga aliança. CALVIN, John. Institutes of the Christian Religion. Ed. John T. McNeill,
trad. Ford L. Battles. Philadelphia: The Westminster Press, 1960, II.vii (p. 348-366).
29
OBERMAN, Heiko A. The Harvest of Medieval Theology: Gabriel Biel and Late Medieval
Nominalism. Grand Rapids: Baker Academic, 2000, p. 112-119.

50
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

A distinção sem separação deveria ser mantida com muito zelo. A lei só
pode cumprir a função intentada por Deus quando vista em contraste com o
evangelho, assim como o evangelho é propriamente pregado somente em con-
traste com a lei. A Escritura tem uma natureza dupla. Enquanto lei ela ensina
o que são as boas obras, mas não nos fornece poder para realizá-las. Contudo,
enquanto evangelho, a Escritura nos convida à fé a fim de que a promessa de
Deus realize o que os mandamentos exigem.30 O termo “lei” carrega um sen-
tido mais negativo para Lutero, e seu gosto amargo cessará apenas no porvir,
quando não mais revelará nosso pecado.31
Lutero fala de um “duplo uso da lei”, quando expõe o decálogo em 1523.
O conceito de “usos” da lei em relação às suas várias funções e efeitos, con-
forme Lohse, é sem precedentes na tradição cristã.32 Tal conceito está mais
amadurecido nas palestras sobre Gálatas em 1531, mas Lutero não lhe dá
nenhuma tratativa sistemática mais elaborada. O primeiro uso é o “político”
ou “cívico” e o segundo é “teológico” ou “pedagógico”. O primeiro assegura
ordem na terra e justiça entre os homens. A igreja não deve ensinar as autori-
dades a governar, mas deve lembrá-las da tarefa dada por Deus de assegurar
paz exterior e ordem neste mundo transitório.33 O segundo uso é o espiritual,
para convencer as pessoas de seus pecados. A lei “acusa”, “causa horror”
no pecador culpado. Ela revela a pecaminosidade e a aumenta, mas não pode
assistir no alcance da justiça que vem por meio do evangelho. Este segundo
uso, se não conduzir a Cristo, leva ao desespero ou à autojustiça.
Em continuidade com a tradição cristã, Lutero fala da lei natural encra-
vada no coração de todos os homens. Pessoas de diversas épocas e lugares
reconhecem certos crimes. Todavia, como não se pode tirar conclusões de tal
conhecimento nato, Deus renovou o conhecimento da lei através de Moisés.34
A corrupção da natureza humana também obscurece a cognição natural da lei.

30 WENGERT, Timothy J. Law and Gospel: Philip Melanchthon’s Debate with John Agricola of
Eisleben over Poenitentia. Texts & Studies in Reformation & Post-Reformation Thought. Grand Rapids:
Baker, 1997, p. 17.
31 James Nestingen traz uma citação de Lutero no qual o reformador fala que no futuro a lei não
seria abolida, mas permaneceria ainda a ser cumprida pelos condenados ou já cumprida pelos fiéis. Essa
linguagem histórica de “já” cumprida pelos fiéis e “ainda não” parece reforçar que a lei em Lutero é
“essencialmente” reveladora de pecado. Enquanto Nestingen tenta utilizar essa e outras citações para
distanciar Lutero tanto de Melanchton quanto da Fórmula de Concórdia, não se pode concluir a partir
dessa argumentação que Lutero tinha uma visão consistentemente positiva da lei, nem que ele tenha
proposto algo que foi abandonado pela tradição luterana. Cf. NESTINGEN, James A. Changing the
Definitions: The Law in Formula VI. Concordia Theological Quarterly 69 (2005), p. 262-263.
32 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 270.
33 Ibid., p. 272.
34 Ibid., p. 274.

51
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

“Por isso foi e sempre é necessário transmitir às pessoas esse conhecimento


da lei, para que conheçam a magnitude de seu pecado, da ira de Deus, etc.”.35
Filipe Melanchton foi quem organizou os três usos da lei, começando
em 1528, e desenvolvendo o conceito na década de 1530. Porém, isto não
significa que Lutero não visse utilidade para a lei na vida do justificado. Suas
exposições do Decálogo atestam sua preocupação de ensinar a lei de Deus ao
povo. Além de continuamente relembrá-lo de que não consegue satisfazer a
exigência divina de justiça, a lei tem uma função educativa. Todavia, por causa
do antagonismo paulino contra a lei absorvido pelo reformador alemão, Lutero
prefere falar de ‘mandamento’ antes do que de ‘lei’.36 O propósito duradouro
da ‘lei’, para Lutero, era expor a pecaminosidade humana.37

2. A OPOSIÇÃO DE AGRÍCOLA
A controvérsia antinomista, despertada em meios luteranos enquanto
Lutero ainda vivia, lidou com duas questões importantes: primeiramente, se a
pregação do arrependimento (poenitentia) pertence teologicamente à exposi-
ção da lei ou deve seguir à pregação do evangelho; em segundo lugar, em que
medida é tarefa da igreja pregar a lei.38 Em relação à segunda questão, Lutero
vigorosamente protestou contra a tese antinomista (não encontrada em Agrí-
cola, mas provavelmente proferida pelos seus adeptos) de que a igreja deveria
pregar o evangelho e o decálogo pertencia ao âmbito político. Lutero cria que
a lei também deveria ser pregada nas igrejas.39
Em relação à primeira, é importante destacar que a falta de sistematiza-
ção teológica de Lutero permitiu interpretações diferentes. No começo de sua
oposição a Roma, Lutero chegou a dizer tanto que o arrependimento pertencia
à esfera legal quanto que “o verdadeiro arrependimento” começa “com o amor
pela justiça e por Deus”.40 Ele disse tanto que a “verdadeira contrição é fruto da
percepção da bondade de Deus em Cristo”, quanto enfatizou a necessidade
da pregação da lei para despertar o senso de pecado como algo preliminar à
pregação do evangelho da graça.41
João Agrícola, de Eisleben, um pupilo de Lutero desde as palestras de
Romanos em 1515-1516, apropriou-se apenas de parte desse ensino e enfatizou
que o arrependimento é um fruto do evangelho já que a lei não conduz à fé.

35 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 395.


36 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 275.
37 WRIEDT, Luther’s Theology, p. 107.
38 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 178; WRIEDT, Luther’s Theology, p. 106.
39 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 381, 416.
40 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 178-179.
41 MACKINNON, James. Luther and the Reformation. Vol. 4. New York: Russell & Russell, 1962,
p. 163.

52
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

Agrícola consistentemente expressou uma baixa estima da lei e sua função,


além de definir o arrependimento como uma nova forma de pensar baseada na
promessa antes do que como afeições interiores do indivíduo.42 Para Agrícola,
à parte da fé somos incapazes de qualquer conhecimento do pecado.43 Por
isso, somos chamados a pregar o evangelho do arrependimento, não a lei do
arrependimento. Cristo cumpriu a lei e, por conseguinte, a aboliu como forma
de salvação; o evangelho não consiste em regras, pois a lei não foi dada para
o justo (ver 1Tm 1.8-9).44 Agrícola assume que lei deva ser identificada com o
Antigo Testamento e o evangelho com o Novo. É no evangelho que Deus nos
dita como devemos viver. Como Cristo emitiu novas leis, o evangelho também
é, de certa forma, uma lei.45
Quem o enfrentou mais intensamente em disputa teológica na década
de 1520 foi Melanchton. Este acreditava que o conhecimento da lei era ab-
solutamente necessário para se experimentar o evangelho nos corações, um
primeiro passo na vida de fé. Por vezes ele enfatizava o terror que devemos
ter em relação à ira de Deus por causa de nossos pecados. Comentando os Dez
Mandamentos, Melanchton escreveu: “Onde não há temor, não pode haver
fé. Pois a fé deve confortar o coração aterrorizado, de tal forma que sustenta
firmemente que Deus perdoou o pecado por causa de Cristo”.46 Melanchton
fez várias críticas veladas ao pensamento de Agrícola na primeira edição de
seu Comentário de Colossenses (1527).47
A controvérsia eclodiu publicamente quando Agrícola escreveu a Lutero
uma carta em agosto de 1527 reagindo ao ensino de Melanchton a outros pas-
tores. O eleitor48 da Saxônia autorizara uma visita às igrejas de seu principado
e Melanchton foi designado para escrever um resumo da teologia que guiaria
os pastores da Saxônia. Nessa obra de Melanchton de 1527 (“Instruções aos
Visitadores das Igrejas da Saxônia”), ele encorajou os visitadores a pregarem a
lei aos espiritualmente calejados a fim de produzir contrição e assim prepará-los
para a fé salvadora no evangelho, e dividiu o arrependimento (poenitentia) em
contrição, confissão e satisfação: a lei conduz o pecador à convicção de que
pecou (a parte principal do arrependimento), depois ele é levado a reconhecer
seu pecado diante de Deus, e então recebe perdão por intermédio da obra ex-
piatória de Cristo. Ele estava seguindo a linguagem dos teólogos medievais,

42 WENGERT, Law and Gospel, p. 45, 74.


43 Ibid., p. 73.
44 Ibid., p. 85-86.
45 LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 181.
46 Apud WENGERT, Law and Gospel, p. 78.
47 Cf. Ibid., p. 79-94.
48 O eleitor era o príncipe alemão que tinha o direito de participar da escolha do imperador do
Sacro Império.

53
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

mas trocando o conceito de satisfação por meio das obras e substituindo-o


pela propiciação de Cristo pelos nossos pecados.49 No entanto, ele claramente
destacou a importância da contrição e de como as pessoas devem ser constan-
temente exortadas a tal por intermédio da lei, para que não haja libertinagem
ou falsa segurança.50
Agrícola rejeitou essa abordagem como sendo descaridosa e romanista
(principalmente por causa da terminologia antiga).51 Agrícola criticou Me-
lanchton por enfatizar que a tristeza pelo pecado vinha não do evangelho
e do amor de Deus, mas pelo temor da punição incitado pela lei. Agrícola se
contrapunha dizendo que a lei não conduz ao arrependimento, mas somente
ao orgulho (rei Saul) ou ao desespero (Judas). Só o crente no evangelho pode
chegar ao arrependimento (Pedro).52 A verdadeira pregação de arrependimento,
no contexto eclesiástico, não deveria focar na violação da lei, mas na violação
do Filho de Deus, com quem os crentes foram unidos no batismo.53
Mediante a preocupação do príncipe com tal controvérsia, Lutero precisou
intermediar o desacordo entre dois dos seus alunos mais destacados. Lutero
garantiu ao monarca que a terminologia era antiga, mas não havia retorno à
doutrina papal.54 Foi em uma confrontação pública no castelo do eleitor em
Torgau, em 1527, que um posicionou-se a favor de fé pressupondo o arrepen-
dimento, e o outro colocou-se contra; no mesmo encontro Lutero fez distin-
ções entre tipos de fé para apaziguar o desafeto.55 Em meio a uma guerra de
palavras, Lutero sugeriu que cada lado cedesse. Agrícola não foi convencido
pela fórmula conciliatória de Lutero (nem Melanchton mudou sua teologia),
e continuou ensinando sua teologia alegando estar calcado no que Lutero en-
sinou no começo do movimento da Reforma. A antítese entre lei e evangelho
ensinada por Lutero e Melanchton era considerada por Agrícola como pura,
mas essa pureza estava sendo abandonada com a mistura de Moisés e Cristo56
Enquanto Melanchton se fortalecia no entendimento da lei e desenvolvia a

49 WENGERT, Law and Gospel, p. 98.


50 Ibid., p. 100, 102.
51 Lutero já rompera definitivamente com o sacramento medieval da penitência no seu tratado de
1520, O Cativeiro Babilônico da Igreja. WENGERT, Law and Gospel, p. 16.
52 WENGERT, Timothy J. Antinomianism. In: HILLERBRAND, Hans J. (Org.). The Oxford
Encyclopedia of the Reformation, vol. 1, p. 51.
53 Ibid., p. 52. Ironicamente, essa distinção entre violação da lei (não mais sendo o problema do
cristão) e violação do Filho de Deus é semelhante à dicotomia entre pacto de obras e pacto da graça
encontrada em arminianos e neonomistas, antes do que em antinomistas ingleses do século 17. Cf.
CAMPOS JÚNIOR, O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 360, 365.
54 WENGERT, Antinomianism, p. 51.
55 BENTE, F. Historical Introductions to the Book of Concord. St. Louis, MO: Concordia Publishing
House, 1965, p. 163.
56 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 164.

54
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

noção do “terceiro uso da lei” (1534; terceira edição do Comentário de Co-


lossenses), diminuía a função que Agrícola concedia aos Dez Mandamentos
na vida do cristão.57 A insistência de Agrícola acabou suscitando a oposição
de Lutero na década seguinte.

3. A RESPOSTA DE LUTERO
A controvérsia antinomista, com a participação de Lutero, é costumeira-
mente datada de 1537 a 1540.58 Depois de uma convivência menos bélica na
década de 1520, Agrícola voltou a Wittenberg em 1536 e Lutero cordialmente
o apontou como seu substituto tanto no púlpito quanto nas palestras da univer-
sidade quando Lutero precisou se ausentar para a Conferência de Esmalcalda
no início de 1537. Meses depois Lutero ficou sabendo por seus amigos que o
seu substituto suscitava inovações em seus sermões. Simultaneamente, algu-
mas teses que atacavam Lutero e Melanchton por abandonar sua teologia em
prol do legalismo circulavam anonimamente.59 A situação se agravou quando
Agrícola burlou a supervisão de Lutero ao submeter uma obra para publicação
cuja introdução argumentava que o arrependimento e o perdão deveriam ser
pregados somente com base no evangelho.60
Lutero não deixou de proferir seus ensinamentos nessa polêmica, primei-
ramente através de debates (disputationes) em 1537 e 1538, e depois através do
tratado Contra os Antinomistas, escrito em 1539. Os debates promovidos por
Lutero foram três e Agrícola esteve presente apenas no segundo deles, quando
admitiu seus erros publicamente. Como Lutero ouviu que Agrícola havia sido
insincero, promoveu um terceiro debate, mas sem a presença de Agrícola. Em
dezembro de 1538, ele aproximou-se de Lutero pedindo que este escrevesse
uma revogação oficial que ele assinaria. A obra de Lutero de 1539 contém uma
frase que funciona como uma revogação, mas em meio a severas críticas con-
tra Agrícola e seus seguidores, colocando-os lado a lado com seus maiores
adversários. Agrícola se sentiu humilhado e, por isso, apelou ao reitor da uni-
versidade, depois ao eleitor da Saxônia, para uma investigação mais imparcial.
Tal atitude qualificou Agrícola como desonesto diante de seus ex-amigos e ele
acabou fugindo para Berlin em 1540 para uma função de pregador na corte
do eleitor Joaquim II. Posteriormente, a pedido de Melanchton, ele removeu
sua reclamação formal contra Lutero, apresentou uma revogação teológica e

57 WENGERT, Antinomianism, p. 52.


58 Para uma cronologia detalhada desses anos de embate entre Lutero e Agrícola, focando mais
nos eventos do que na teologia, ver: EDWARDS, Mark U., Jr. Luther and the False Brethren. Stanford,
Califórnia: Stanford University Press, 1975, p. 156-179.
59 WENGERT, Antinomianism, p. 52.
60 EDWARDS, Luther and the False Brethren, p. 158-162.

55
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

conseguiu reaver formalmente sua relação com as autoridades da Saxônia.61


No entanto, isso não evitou que essa tivesse sido uma das controvérsias mais
amargas para Lutero, por ter acontecido dentro de seu próprio círculo de amigos.
Lutero procurou “limpar o seu nome” de associações dos antinomistas
com o seu ensino. Por isso, em seus escritos antinomistas ele é firme em suas
afirmações. Ele entendia que quem abolisse a lei acabava abolindo o evangelho.
Afinal, sem lei não há pecado, e se não há pecado Cristo não é nada; portanto,
qualquer propósito diabólico de remover a lei, na verdade, tenta remover a
Cristo, o cumpridor da lei.62 Além disso, eliminar a lei é transformar o evangelho
em uma nova lei, o que suscitaria a ira divina.63 Quando os antinomistas ligavam
a ira de Deus com o evangelho (interpretação de Romanos 1) e a penitência
como resultante de profanar o Filho, Lutero responde que a revelação da ira é
a mesma coisa que a revelação de pecado pela lei; não se pode confundir lei
e evangelho.64 Para Lutero, deve haver pregação tanto da lei quanto do evan-
gelho para o arrependimento.65 E isso é necessário tanto aos piedosos quanto
aos ímpios. Estes precisam da lei para reconhecer seu pecado e os piedosos
precisam crucificar sua carne constantemente.66
A lei não é necessária para a justificação no que tange à causalidade – ela
mata e, por isso, não conduz à justificação –, mas é um pressuposto necessário
conhecer e experimentar a lei a fim de entender a Cristo.67 Na Bíblia, a sequência
sempre é a de que a palavra de conforto do evangelho é precedida pela lei de
juízo.68 Em Romanos, Paulo primeiro chamou a atenção de seus leitores para a
ira de Deus diante de pecadores culpados para depois ensinar-lhes como obter
misericórdia e ser justificados.69 Quanto ao arrependimento, Lutero entendia que
incluía tanto a lei como o evangelho. Ele é primeiro evocado com a pregação
da lei, mas para conduzir à conversão e não ao desespero, ele é efetuado pela
pregação do evangelho. Enquanto a lei despertava a consciência do pecado e
o desespero da perdição, só o evangelho era capaz de acalmar a consciência

61 BRECHT, Martin. Martin Luther: The Preservation of the Church, 1532-1546. Minneapolis:
Fortress, 1994, p. 169.
62 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 383-384, 392; LUTERO, M. Against the Antinomians.
In: LEHMAN, Helmut T. (Org.). Luther’s Works. Vol. 47: The Christian in Society IV. Philadelphia:
Fortress Press, 1971, p. 110.
63 WENGERT, Antinomianism, p. 52.
64 LUTERO, Obras Selecionadas, vol. 4, p. 407-409.
65 LUTERO, Against the Antinomians, p. 111-112.
66 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 391, 402, 414-415.
67 Ibid., p. 382-383, 406. A distinção escolástica é que a lei não é necessária “causaliter”, mas é
necessária “materialiter”. LOHSE, Martin Luther’s Theology, p. 182.
68 BRECHT, Martin Luther: The Preservation of the Church, p. 161.
69 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 395-396; LUTERO, Against the Antinomians, p. 114.

56
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

perturbada. Tanto a condenação da lei quanto a salvação do evangelho verba-


lizam o ensino do Espírito. A lei permanecerá válida para toda a eternidade,
descumprida nos condenados e cumprida nos remidos;70 por isso, Lutero
considerava um erro satânico afirmar que a validade da lei era meramente
temporária. A lei foi cumprida em Cristo, começa a ser cumprida na vida do
fiel e é aperfeiçoada na vida do porvir. “A lei não faz nada na justificação, mas
a justificação é necessária para cumprir a lei”.71 Era assim que Lutero visava
harmonizar seus ensinamentos anteriores sobre lei e evangelho.72
James MacKinnon faz uma longa citação de Lutero para mostrar que essa
harmonização veio a partir do entendimento de que certos momentos exigem
ênfases distintas. No começo de seu ensino, Lutero enfatizara o evangelho,
pois para a consciência de homens oprimidos e aterrorizados pelo papa não
havia a necessidade de inculcar a lei. Naquele tempo, os homens estavam tão
moídos pelo papado e tão conduzidos ao desespero, que era necessário tirá-los
de sua miséria o mais rápido possível. No final da década de 1530, contudo,
os tempos eram outros. Porém, sem discernir tal diferença os antinomistas de
palavras mansas acabavam assegurando aqueles que já estavam tão seguros
que poderiam até cair da graça. Para o aflito e contrito prega-se a graça o
máximo possível, mas não para os seguros, desleixados, adúlteros e blasfemos.73
Essa história demonstra que ênfases são necessárias, mas elas também trazem
perigos de distorção e desequilíbrio.
J. Wayne Baker faz uma conexão entre o aspecto teológico e o aspecto
social do pensamento de Lutero. Ele alega que Agrícola não compreendeu o
ensino de Lutero de simul iustus et peccator no contexto da doutrina dos dois
reinos. Pois, se por um lado o cristão está livre da lei por ter sido justificado,
como ele ainda é pecador no reino temporal, ele fica sujeito à lei enquanto
permanecer na carne.74 O próprio Lutero, no primeiro debate contra os anti-
nomistas, afirmou que pecado e justiça existem em nós em graus diferentes.75
Era assim que ele se referia à tensão da vida cristã. Por outro lado, o desen-

70 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 396, 397, 405; BRECHT, Martin Luther: The Preser-
vation of the Church, p. 159.
71 BRECHT, Martin Luther: The Preservation of the Church, p. 163.
72 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 167-168.
73 MACKINNON, Luther and the Reformation, vol. 4, p. 171-172. Paul Althaus diz que essa citação
vem do Terceiro Debate contra os Antinomistas (até o momento apenas em alemão na coleção crítica
de Weimar) e comprova que o espírito da época exige diferentes tipos de pregação. ALTHAUS, The
Theology of Martin Luther, p. 262, nota 74.
74 BAKER, J. Wayne. Sola Fide, Sola Gratia: The Battle for Luther in Seventeenth-Century
England. The Sixteenth Century Journal, vol. 16, no. 1 (Spring 1985), p. 118.
75 LUTERO, Obras selecionadas, vol. 4, p. 403.

57
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

tendimento de Agrícola não foi único. Outros debates em torno desse assunto
surgiriam no mundo luterano e exigiriam uma resposta mais clara e definitiva.

4. RATIFICAÇÃO NA FÓRMULA DE CONCÓRDIA


A discussão não cessou durante a vida de Lutero e Melanchton. A Fórmula
de Concórdia (1577), que define a ortodoxia luterana em meio às controvérsias
internas, gasta os capítulos 5 (“Lei e Evangelho”) e 6 (“A Terceira Função da
Lei”) para tratar da questão antinomista.
No capítulo 5, a pergunta levantada é a seguinte: “É a pregação do Santo
Evangelho estritamente falando somente uma pregação da graça que proclama
o perdão dos pecados, ou é também uma pregação de arrependimento e repro-
vação que condena a descrença, já que a incredulidade é condenada não só
na lei mas por todo o evangelho?”76 Seguindo o sentido amplo de evangelho
como “toda a doutrina de Cristo”, destacado por Melanchton, a tendência dos
“filipistas” (Viktorin Strigel, Paul Crell) – como eram chamados os seguidores
de Filipe Melanchton – era defender que o evangelho também era doctrina po-
enitentiae, reprovando o maior dos pecados, a incredulidade. O partido oposto
(os principais representantes eram Matthias Flacius, Matthias Judex e Johann
Wigand) entendia que o evangelho não é uma proclamação de arrependimen-
to – uma função restrita à lei – mas apenas de graça e misericórdia.77 Estes
julgavam que tal conceito amplificado de evangelho confunde lei e evangelho.
A resposta da Fórmula constitui em fazer uma distinção entre as duas
formas em que a palavra ‘evangelho’ é utilizada. Ora “evangelho” significa
toda a doutrina de Cristo conforme o Novo Testamento, e nesse caso engloba a
chamada ao arrependimento e ao perdão de pecados (Mc 1.1, 4), ora é contras-
tado com a lei (Moisés), onde já não representa uma proclamação de contrição,
mas, estritamente falando, apresenta uma mensagem confortadora para os de
consciência ferida, vivificando-os pelos méritos de Cristo (Mc 1.15).78 Esse
segundo sentido recebe maior tratativa com direito a várias citações de Lutero
respaldando a distinção entre lei e evangelho. A pregação da lei sem Cristo
conduz à presunção ou ao desespero. Por isso o Novo Testamento contém a lei,
mas logo acrescenta as promessas da graça pelo evangelho (Gl 3.24; Rm 10.4).
No capítulo 6, a Fórmula de Concórdia ratifica a tríplice divisão quanto
aos usos da lei: manter disciplina externa contra homens desregrados; conduzir
homens ao conhecimento de seu pecado; depois de renascidos, prover uma
regra definida com a qual devem padronizar suas vidas.79 Embora libertos da

76 TAPPERT, Theodore G. (trad. e org.). The Book of Concord: The Confessions of the Evangelical
Lutheran Church. Philadelphia: Fortress Press, 1959, epitome, V.1 (p. 477-478).
77 Ibid., V.2 (p. 558).
78 Ibid., epitome, V.5-6 (p. 478); V.3-6 (p. 558-559).
79 Ibid., epitome, VI.1 (p. 479-480).

58
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

maldição e da coerção da lei, não permanecem sem lei, pois foram redimidos
para exercitarem-se a si mesmos na lei. “Da mesma forma nossos primeiros
pais mesmo antes da Queda não viveram sem lei, pois a lei de Deus estava
escrita em seus corações quando foram criados à imagem de Deus”.80
Um dos partidos ensinava que os regenerados não aprendem a nova
obediência a partir da lei, mas somente pelo impulso do Espírito Santo operam
espontaneamente para fazerem o que Deus exige. O outro partido não descartava
a motivação do Espírito e a voluntariedade na obediência, mas compreendia
que o Espírito utiliza a lei escrita para conduzir a uma vida piedosa.81 O se-
gundo grupo está claramente mais próximo da verdade. Por isso, a Fórmula
de Concórdia ainda afirma que a pregação da lei serve não só para descrentes
e impenitentes, mas também para crentes genuínos. Esse documento distingue
as obras da lei e os frutos do Espírito não quanto à matéria (pois ambos obe-
decem a mesma lei), mas quanto à fonte motivadora (o primeiro sob coerção
e ameaça, o segundo espontaneamente).
Com a Fórmula de Concórdia, a ortodoxia luterana foi estabelecida quan-
to aos debates relacionados a lei e evangelho, justificação e santificação. No
entanto, tais debates seriam revisitados na Inglaterra a partir de referenciais
um pouco diferentes, ainda que com resultados semelhantes.

5. DEBATE REVISITADO EM SOLO INGLÊS


Se as controvérsias antinomistas em campo luterano suscitaram impor-
tantes formulações teológicas, os debates antinomistas ingleses do século 17
foram ainda mais longe em levantar perguntas e promover disputas. O espec-
tro de tópicos em solo inglês cobriu desde o papel da lei na vida do crente, o
escopo do evangelho (só promessas ou inclui mandamentos?) e a natureza da
fé e das boas obras, até questões como segurança da salvação, ser de Deus,
história da salvação, condições pactuais, imputação do pecado e justificação
desde a eternidade. Algumas dessas discussões teológicas extrapolaram a Grã-
-Bretanha, invadindo o continente europeu. A literatura secundária é vastíssima
sobre tais discussões e é melhor compreendida quando associada às diferentes
ocasiões de tal controvérsia.
Houve três ondas de antinomismo no domínio inglês no século 17, as quais
levantaram discussões semelhantes. A primeira começou em Londres na década
de 1620 e atingiu o seu clímax nos anos de 1640 com algumas publicações;82

80 Ibid., epitome, VI.2 (p. 480).


81 Ibid., VI.2-3 (p. 564).
82 KEVAN, Ernest F. The Grace of Law: A Study in Puritan Theology. Ligonier: Soli Deo Gloria
Publications, 1993; CAMPBELL, K. M. The Antinomian Controversies of the 17th Century. In: Living
the Christian Life. Huntington: Westminster Conference, 1974, p. 61-81; WALLACE, Dewey D., Jr.
Puritans and Predestination: Grace in English Protestant Theology, 1525-1695. Eugene, Oregon: Wipf

59
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

a segunda surgiu na colônia de Massachusetts entre 1636 e 163883 e a terceira


brotou nos anos de 1690 na Inglaterra com a republicação de um tratado do
antinomista Tobias Crisp.84 Esta seção irá focar apenas a primeira onda e será
seletiva em procurar assuntos que se conectam com as controvérsias antino-
mistas no contexto luterano.
O alvo principal dos antinomistas ingleses foi uma suposta corrupção
moralista da graça presente no puritanismo. Bozeman fala sobre os “olhos de
Deus fixos sobre os fiéis” como um tema comum entre os puritanos, um patru-
lhamento divino que estimulava “precisão de santidade”.85 Esse tipo de crítica
ao puritanismo é claramente evidenciada nos escritos do controverso John Eaton
(1575-1630?). Sua obra póstuma, The Honey-Combe of Free Justification in
Christ Alone (O favo de mel da livre justificação em Cristo somente, 1642),
é reputada por Bozeman como uma expressão ímpar da opinião antinomista
do século 17.86 Essa obra tem como principais adversários os protestantes que
alegam defender a livre justificação, mas que não entendem a doutrina nem
sentem sua “doçura”, e no afã de estabelecer sua própria justiça “não somente
anulam a Livre Justificação... [mas também] enfraquecem a fé de outros... e
apertam as mãos com [os papistas] nos principais pontos da salvação”.87 Eaton

& Stock, 1982; BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 115-133; BOZEMAN, Theodore Dwight. The Glory
of the “Third Time”: John Eaton as Contra-Puritan. Journal of Ecclesiastical History, vol. 47, no. 4
(Oct. 1996), p. 638-654; The Precisianist Strain: Disciplinary Religion & Antinomian Backlash in Puri-
tanism to 1638. Chapel Hill: University of North Carolina, 2004, p. 183-210; COMO, David R. Blown
by the Spirit: Puritanism and the Emergence of an Antinomian Underground in Pre-Civil-War England.
Stanford, California: Stanford University, 2004; PARNHAM, David. The Covenantal Quietism of To-
bias Crisp. Church History, vol. 75, no. 3 (Sept. 2006), p. 511-543; John Saltmarsh and the Mystery of
Redemption. Harvard Theological Review, vol. 104, issue 3 (July 2011), p. 265-298; BEEKE, Joel R.
e JONES, Mark. A Puritan Theology: Doctrine for Life. Grand Rapids: Reformation Heritage Books,
2012, p. 135-150, 325-337.
83 HALL, David D. The Antinomian Controversy, 1636-1638: A Documentary History. Middletown,
Conn.: Wesleyan University, 1968; PETTIT, Norman. The Heart Prepared: Grace and Conversion in
Puritan Spiritual Life. New Haven e Londres: Yale University, 1966, p. 125-157; STOEVER, William K.
B. “A Faire and Easie Way to Heaven”: Covenant Theology and Antinomianism in Early Massachusetts.
Middletown, Conn.: Wesleyan University, 1978; BOZEMAN, The Precisianist Strain, p. 211-332.
84 TOON, Peter. Puritans and Calvinism. Swengel, PA: Reiner Publications, 1973, p. 85-106; The
Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity. Eugene, OR: Wipf & Stock, 2011, p. 49-69;
DANIEL, Curt. John Gill and Calvinistic Antinomianism. In: The Life and Thought of John Gill
(1697-1771): A Tercentennial Appreciation, ed. Michael A. G. Haykin. Leiden: Brill, 1997, p. 171-190;
RAMSEY, D. Patrick. Meet Me in the Middle: Herman Witsius and the English Dissenters. Mid-America
Journal of Theology 19 (2008), p. 143-164; BRINK, Gert van den. Calvin, Witsius (1636-1708), and the
English Antinomians. Church History and Religious Culture 91, ns. 1-2 (2011), p. 229-240.
85 BOZEMAN, The Glory of the “Third Time”, p. 639. Como segue Bozeman nessa leitura da
crítica antinomista. COMO, Blown by the Spirit, p. 188.
86 BOZEMAN, The Glory of the “Third time”, p. 642.
87 EATON, John, The Honey-Combe of Free Justification in Christ Alone. Londres: Robert Lan-
caster, 1642, p. 44.

60
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

lamentava que os puritanos falavam mais de santo proceder e menos de livre


graça. Para Eaton, qualquer ênfase em santidade externa, na necessidade dos
meios de graça para nutrir a verdadeira fé, na guerra virulenta contra nossos
pecados e nos efeitos psicológicos sobre os fiéis para que se arrependessem
eram sinais de um retorno à doutrina romana.88
Os antinomistas costumavam defender que o crente é livre da lei moral,
negavam a condicionalidade do pacto da graça e outros até excluíam os im-
perativos do evangelho por não caberem dentro da notícia.89 Os antinomistas
tinham dificuldade com os imperativos do evangelho. John Saltmarsh, outro
antinomista muito contestado, dizia que o evangelho “persuade antes que or-
dena... o Evangelho nos ordena por padrão antes que preceito e por imitação
antes que por ordem”.90 Este ponto vai de encontro à linguagem da Confissão
de Fé de Westminster que fala em “obedecer ao evangelho” (CFW 3.8; 33.2).
Mesmo no sentido restrito o evangelho contém imperativos, condições, que
não são a mesma coisa que a lei. Nisto a ortodoxia diferiu dos antinomistas
(dizendo que tem imperativos e condições) e dos neonomistas (dizendo que
não é lei).91
Joel Beeke e Mark Jones traçam um panorama de como Samuel Rutherford
e Anthony Burgess responderam às visões antinomistas sobre lei e evangelho.
Esses dois grandes teólogos foram apenas dois entre os vários puritanos com
grande respaldo teológico que escreveram contra os antinomistas. Em resposta
à objeção antinomista de que erra quem afirma que o pacto da graça é condi-
cional, Rutherford faz coro com a tradição protestante quando fala que as obras
são necessárias para a salvação. Isto é, Deus exige obediência evangélica, a fé
é colocada como condição (Catecismo Maior de Westminster, pergunta 32).
Para Rutherford, o evangelho apresentava tanto indicativos como imperativos,
e nessa ordem.
Anthony Burgess escreveu um importante livro sobre as alegações da
lei (Vindiciae Legis) em 1646. Burgess, em continuidade com a tradição re-
formada, distinguiu entre a lei vista de forma mais ampla (toda a dispensação
mosaica contendo promessas) e de forma mais restrita (como regra de justiça,
apresentando a vida sob perfeita obediência). No primeiro sentido, a lei é uma
dispensação ou administração no pacto da graça e no segundo sentido a lei
funciona como o pacto das obras. Quando trata do sentido mais amplo, não há

88 COMO, Blown by the Spirit, p. 192, 197-199.


89 BEEKE e JONES, A Puritan Theology, p. 328.
90 Apud Ibid., p. 332.
91 Para uma explicação de como os neonomistas se opõem aos antinomistas, ver CAMPOS JÚNIOR,
O lugar da fé e da obediência na justificação, p. 362-368.

61
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

diferença essencial, mas apenas de grau. Assim como Calvino (ver comentário
de 2Co 3.6-7), Burgess falava que tanto a lei quanto o evangelho condenam.92
Ernest Kevan é outro estudioso que explorou a riqueza de material puri-
tano sobre o papel da lei nos embates contra os antinomistas. Os puritanos não
só entendiam que todo pecado (original ou atual) era inconformidade com a lei,
mas que a habilidade da lei de aparentemente “provocar” o pecado ao invés de
restringi-lo apenas, é um “efeito acidental da Lei” – e não essencial a ela – a
saber, por causa de nossa pecaminosidade.93 Por que a lei funciona como um
espelho que revela nosso pecado, os puritanos enfatizavam a necessidade de se
pregar a lei, já que alguém pode ser convencido do pecado sem o evangelho,
mas nunca sem a lei.94 Inclusive, as promessas do evangelho só poderiam ser
válidas para aqueles que primeiramente haviam sido “sensibilizados” quanto
ao seu pecado. Argumentar que o arrependimento não é produzido pela lei, mas
pelo Espírito é confundir as categorias, pois o evangelho enquanto conteúdo
também é ineficiente para salvar à parte do Espírito.95 Os antinomistas não
deveriam amar o evangelho à parte da lei, pois não há oposição absoluta entre
ambos. O contraste feito por Paulo é entre o uso pervertido da lei efetuado pelos
judeus e o evangelho.96 Afinal, a lei é perene e permanece como parâmetro de
nossa obrigação moral.97
J. Wayne Baker diz que toda a controvérsia envolveu um debate para ver
quem era genuíno seguidor de Lutero. Os pregadores ingleses considerados
antinomistas eram frequentemente comparados com Agrícola por seus opo-
nentes. Em quase 100 páginas que Samuel Rutherford gasta para descrever o
debate entre Lutero e Agrícola,98 o argumento é que os antinomistas não tinham
o direito de apelar a Lutero.99 Por outro lado, John Eaton chegou a citar Lutero
mais de 100 vezes (principalmente seu Comentário de Gálatas) no seu livro
sobre justificação.100 Quando Eaton citava Lutero para rejeitar as “preparações
para a graça” e enfatizar a justiça “passiva” da fé, Lutero parecia tão antino-

92 BEEKE e JONES, A Puritan Theology, p. 333-334.


93 KEVAN, The Grace of Law, p. 80-81.
94 Ibid., p. 83-86. Para surpresa de muitos comentaristas modernos, os puritanos interpretavam o
“espírito de escravidão” de Romanos 7 como uma referência à obra do Espírito de convencer os homens
do pecado (p. 86-89).
95 KEVAN, The Grace of Law, p. 90.
96 Ibid., p. 131-134.
97 Ibid., p. 167-193.
98 RUTHERFORD, Samuel. A Survey of the Spiritual Antichrist. London: J. D. & R. I., 1648,
p. 68-163.
99 BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 118.
100 Ibid., p. 121.

62
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

mista como ele.101 Todavia, David Como demonstrou de modo preciso como
Eaton utilizou Lutero seletivamente, citando principalmente os seus escritos
antilegalistas (v.g, o Comentário de Gálatas) enquanto ignorou as denúncias
de Lutero contra Agrícola e seus seguidores; “Eaton estava em essência des-
pertando o Lutero antinomista”.102 Até o próprio Anthony Burgess, em meio
à controvérsia, perspicazmente observou como no início Lutero destacou os
abusos da lei conforme encontrados na Epístola aos Gálatas, mas que depois
de observar como sua doutrina fora abusada pelos antinomistas, ele se opôs a
eles no seu Comentário de Gênesis (uma de suas últimas obras).103
Em seu artigo, Baker faz críticas muito leves aos antinomistas para
depois considerar Eaton como muito mais preciso do que Rutherford. Além
de demonstrar imprecisão ao colocar Rutherford na mesma categoria de
Baxter,104 Baker ainda desconsidera a linguagem teológica precisa do século
17 ao dizer que foram “menos precisos do que Lutero”,105 quando na verdade
vimos neste artigo que parte da primeira controvérsia antinomista com Lutero
foi decorrente de sua comunicação confusa no início de seu ministério. Nos
debates ingleses houve muita imprudência de termos ou ênfases exageradas
de ambas as partes.106 Eaton chegou a dizer que a expressão “Deus justifica
o ímpio” significa uma justificação não só “judicial” (imputando a justiça de
Cristo), mas também de significado “natural e próprio” (renovando-nos com
o seu Espírito), e conclui dizendo: “Portanto, Deus não justifica nenhum ím-
pio, mas primeiro o torna justo e reto em e por Cristo, e depois ele é contado
como justo”.107 Sua linguagem descuidada se parece muito com o conceito
de transformação do romanismo. Tal deslize ilustra como no afã de destacar
algum aspecto doutrinário ou prático, alguns desses teólogos falhavam em
outras áreas. Não se pode negar que o esforço por corrigir certa tendência pode
trazer o perigo de exageros.

101 Ibid., p. 121-122.


102 COMO, Blown by the Spirit, p. 185-186.
103 BURGESS, Anthony. Vindiciæ legis: or, a vindication of the morall law and the covenants,
from the errours of papists, Arminians, Socinians, and more especially, Antinomians. In XXX. lectures,
preached at Laurence-Jury, London. The second edition corrected and augmented. London: printed by
James Young, for Thomas Underhill, at the signe of the Bible in Wood-street, 1647, p. 21.
104 BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 123-126. “Os antinomistas operaram mais claramente dentro
da estrutura original de sola fide e sola gratia do que seus oponentes ortodoxos, dos quais a maioria
tendia a misturar a lei moral com o evangelho... Exceto pelos antinomistas e os calvinistas mais rígidos
[“high Calvinists”], a teologia da justificação em Lutero foi fortemente rejeitada ou mal-entendida no
bicentenário de seu nascimento” (p. 127, 130).
105 BAKER, Sola Fide, Sola Gratia, p. 133.
106 Cf. JONES, Mark. Antinomianism. Phillipsburg: P&R, 2013, p. 111-121.
107 EATON, The honey-combe of free justification, p. 22-23.

63
HEBER CARLOS DE CAMPOS JÚNIOR, LUTERO E OS ANTINOMISTAS

CONCLUSÃO
Essa breve história dos debates luteranos e ingleses quanto ao antinomis-
mo comprova que assuntos como a doutrina da justificação e o entendimento da
graça em relação à lei divina sempre são alvos de questionamentos e confusão.
Os debates se devem não só a diferentes entendimentos de uma doutrina, mas
também a ênfases e omissões quanto ao que é dito. Isso não significa minimizar
a importância do debate. Afinal, ênfases podem e devem ser suscitadas por uma
necessidade específica (como Lutero fez no início de seu ministério), mas as
ênfases precisam ser salvaguardadas pela doutrina. Ênfases são necessárias,
mas não podem ser conceitualmente confusas.
Há uma necessidade de contar essa história novamente para atender a
certas necessidades do cenário evangélico brasileiro e internacional. Por um
lado, há os que fazem uma ligação muito estreita entre aspectos da lei mosaica
e os nossos dias (adventistas, teonomistas), sem considerar as descontinuidades
pertinentes ao que era sombra por conta do papel que a lei operou na história
bíblica. Por outro lado, há quem promova uma rígida separação entre o Anti-
go Testamento e os nossos dias (alguns dispensacionalistas, teólogos da nova
aliança), criando descontinuidade entre a lei de Deus no Antigo Testamento e
a “lei de Cristo” no Novo Testamento. Ambos expressam um desconhecimento
da distinção entre lei e evangelho enfatizada por Martinho Lutero. Enquanto a
primeira tendência é um legalismo teológico, a segunda expressa uma espécie
de antinomismo.
Se algumas das imprecisões acima quanto ao entendimento de lei e
evangelho parecem raras em certas igrejas históricas, outras têm sido muito
comuns. Vemos moralismo em sermões sobre passagens do Antigo Testamento,
nos quais se dá mais ênfase ao que fazemos para Deus do que ao que Deus
fez e ainda faz por nós. Eles perdem de vista a grande história da salvação e
como o evangelho é a grande mensagem de esperança das Escrituras (seriam
fortemente criticados pelos antinomistas e ortodoxos do passado). Por outro
lado, existem aqueles que restringem o “evangelho” à doutrina da justificação,
e falam da “graça” que perdoa sem equilibrá-la com a graça que restaura (um
tipo de antinomismo atual). Estes se esquecem de que o evangelho não só
trata do que Deus fez por nós, mas também do que está fazendo em nós.108 E
tal obra de transformação envolve tanto os indicativos da obra divina em nós
quanto os imperativos do que somos ordenados a fazer.
Portanto, há várias lições que o contingente evangélico precisa aprender
à medida que procura entender o lugar da lei divina na história da redenção.
Há certas lições que são aprendidas com uma visão mais holística da história.
Por exemplo, Lutero não destacou a dinâmica da graça que conduz à lei – uma

108 JONES, Antinomianism, p. 45-47, 50-53.

64
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 43-65

ênfase presente na tradição reformada a partir de João Calvino e seu apreço pelo
terceiro uso da lei como o “principal” –, mas ele trouxe à tona a importância
da lei e de termos a lei sempre em vista para entendermos o evangelho. Não
é que Lutero não enxergasse a lei como tendo de ser cumprida. Ele cria que
ela seria cumprida pelos crentes no porvir. No entanto, nesta vida a palavra
“lei” significava mais uma ferroada (por causa do segundo uso da lei) do que
um deleite. Foi a tradição reformada que enfatizou a importância de encontrar
deleite na lei do Senhor. Ainda assim, o fato de Lutero não descartar a lei como
parte do processo redentor foi o pontapé inicial para uma visão “evangélica”
da lei. Contudo, tal visão passaria por grande desenvolvimento pelo menos
até o século 17 na Inglaterra e início do século 18 na Escócia, com a Marrow
Controversy (Controvérsia da Medula).

ABSTRACT
After presenting the essential tenets of the Lutheran doctrine of justifi-
cation in dialogue with interpreters of Martin Luther, this article introduces
the Antinomian Controversy with Johann Agricola in which he questions if
repentance was the result of the exposition of the law or the preaching of the
gospel. The law/gospel hermeneutical structure is presented as the scenario
for the debate, Agricola’s opposition to the teachings of Philip Melanchthon
is summarized, followed by Luther’s response and the ratification of the For-
mula of Concord. The purpose in summarizing the Antinomian Controversy
in Lutheran settings is to raise points of connection with Antinomianisms in
seventeenth century England, when similar debates arose, and consequent
lessons for today. This article argues that there is a need to tell this story again
in order to meet certain needs in the evangelical scenario both in Brazil and
abroad.

KEYWORDS
Martin Luther; Antinomian; Antinomianism; Johann Agricola; Justifica-
tion; Law and gospel; Repentance.

65
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

O Perigo a Ser Evitado Numa Reforma


Heber Carlos de Campos*

RESUMO
Existe uma curiosa tensão entre os dois principais fundadores da tradição
luterana: Martinho Lutero e seu colega e sucessor Filipe Melanchton. Embora
tenha nutrido grande amizade e admiração pelo seu mestre ao longo da vida,
Melanchton veio a afastar-se do pensamento do pioneiro em duas questões
importantes: as ações divina e humana na salvação e o entendimento da pre-
sença de Cristo na Ceia. Deixando o seu monergismo inicial, a afirmação da
incapacidade da vontade humana, o Mestre da Alemanha veio a abraçar uma
postura sinergista, insistindo no “consentimento da vontade à palavra de Deus”
como um dos requisitos para a salvação. No que diz respeito ao sacramento
da Ceia, Melanchton afastou-se sutilmente da consubstanciação para uma po-
sição mais próxima de Calvino, com o seu entendimento da presença real no
sentido espiritual. Essas posturas deram origem a um forte e duradouro debate
entre os partidários dos dois reformadores – gnesio-luteranos e filipistas – que
perdura até hoje.

PALAVRAS-CHAVE
Martinho Lutero; Filipe Melanchton; Livre arbítrio; Monergismo; Si-
nergismo; Ceia do Senhor; João Calvino; Consubstanciação; Presença real.

INTRODUÇÃO
“Tempos de Reforma são sempre bem-vindos”. Esta frase agradava aos
que viviam no século 16 e estavam cansados da mesmice e de erros de sé-
culos que eram vigentes na igreja medieval. Todavia, esses tempos não eram

* Doutor em Teologia (Th.D.) pelo Concordia Seminary, Saint Louis, Missouri; professor de
teologia sistemática no CPAJ; pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana Paulistana.

67
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

bem-vindos para aqueles que apreciavam o status quo eclesiástico – o grupo


do lado de Roma.
“Tempos de Reforma podem ser muito amargos”. Via de regra, os campos
opostos entram em choque profundo e sempre uma parte, quando não as duas,
sai ferida. Esses tempos amargos produzem alguns resultados bons dum lado
e ruins do outro.
“Tempos de Reforma podem favorecer o radicalismo”. Um dos resultados
amargos de uma reforma é o surgimento de radicalismo de ambos os lados.
Dificilmente um grupo é concessivo em suas posições. Como cada grupo quer
manter a sua posição, eles vão a extremos, nem sempre convenientes.
“Tempos de Reforma podem ocasionar alijamentos”. A consequência do
radicalismo se mostra muito evidente nos alijamentos teológicos e mesmo no
alijamento de vidas ocorridos na história. Todo radicalismo leva a compor-
tamentos extremos nos quais uma parte fica ferida e se sente alijada. Essas
reações são quase inevitáveis, mas algumas delas podem ser pecaminosas. Via
de regra, os que vencem no movimento são os que alijam aqueles que pensam
diferentemente. O alijamento pode ser de natureza teológica ou mesmo física.
Neste artigo, analisamos, sob a ótica do luteranismo mais ortodoxo
evidente na opinião recente de elementos ligados aos luteranos do Sínodo de
Missouri, os desvios teológicos de Philip Schwartzerd que veio a ser conhecido
historicamente como Filipe Melanchton (1497-1560).

1. O QUE ACONTECEU COM A TEOLOGIA DE MELANCHTON?


Melanchton nasceu numa família proeminente em Bretten, na Alemanha.
Era 14 anos mais jovem do que Martinho Lutero (1483) e 12 anos mais velho
que João Calvino (1509). Por causa de sua inteligência e de seu preparo huma-
nista, foi conhecido e altamente respeitado como o “Professor da Alemanha”
(Praeceptor Germaniae).1
Como é comum em grandes líderes, sempre há mudanças de pensamento
teológico na carreira de um grande expoente de teologia. Não foi diferente com
Melanchton. O problema é que para alguns as mudanças foram para melhor e,
para outros, elas foram para pior. Aos olhos dos luteranos conservadores, as
mudanças de Melanchton foram para pior.
Vistos pela perspectiva luterana, ele teve duas falhas teológicas, que lhe
custaram muito caro, não especialmente em sua época, mas posteriormente.
Uma de suas “falhas” teve uma conotação ligeiramente libertária e outra uma
conotação calvinista sobre a ceia. Como um reformado, penso que a primeira
mudança em Melanchton foi para pior e a segunda para melhor, mas essa é ape-
nas uma questão de opinião. Vejamos a primeira falha teológica de Melanchton.

1 Ver o artigo “The Synergistic Controversy”, The Concordia Lutheran, set.-out. 1995. Disponível
em: http://www.concordialutheranconf.com/clc/cl_articles/CLO_articlePRB_sept1995.cfm. Acesso em:
jul. 2005.

68
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

1.1 A falha sinergista de Melanchton


O sinergismo que começou a existir dentro dos círculos luteranos na
época da Reforma e que foi defendido por Melanchton tinha como raciocínio
o seguinte:

Visto que todos os homens que estão perdidos são eternamente condenados
por suas próprias faltas, de modo que Deus não deve ser culpado, mas somente
eles, por rejeitarem a graça de Deus em Cristo Jesus, aqueles que são conver-
tidos devem ao menos receber um pequeno crédito em relação à sua salvação
eterna – talvez uma melhor atitude para com o Evangelho do que aqueles que
são perdidos. Nesse assunto, o sinergismo é evidentemente muito sutil e perigo-
so... visto que ele reduz a cooperação do homem a um mínimo aparentemente
inofensivo que um cristão que não desconfia poderia facilmente aceitar para a
sua eterna destruição.2

A fim de compreender o desenvolvimento do pensamento teológico de


Melanchton, de maneira muito rápida, vejamo-lo em três décadas sequenciais
de sua vida.

1.1.1 O Melanchton da década de 1520 era monergista


Em 1520, nas notas preliminares de sua primeira edição dos Loci Commu-
nes (Lugares Comuns), Melanchton negou à vontade humana qualquer tipo
de liberdade. Na edição dos Loci de 1521, ele escreveu: “Visto que todas as
coisas que ocorrem, ocorrem necessariamente, de acordo com a predestinação
divina, a liberdade da vontade humana não é nada”.3 As ideias de Melanchton
no começo da Reforma podem ser entendidas como chegando às raias do
determinismo, que era um pensamento não muito comum naquela época. No
começo da Reforma, portanto, certamente Melanchton não tinha nenhuma
tendência sinergista. Nas primeiras edições de seus Loci Communes ele parecia
mais um partidário da dupla predestinação.
No tempo em que escreveu a Confissão de Augsburgo e sua Apologia,
Melanchton tinha evitado qualquer erro sinergista. Os homens caídos não
possuíam qualquer liberdade espiritual para o bem. Ele incluiu um artigo so-
bre o livre arbítrio na Confissão de Augusburgo (1530), no qual admitiu uma
liberdade qualificada, tal como usar ou não usar um casaco. Mesmo nesta
matéria, ele a chamava de “uma espécie de liberdade” (quaedam libertas).
O homem poderia escolher fazer alguma coisa na esfera da justiça civil, mas
não da justiça espiritual. Melanchton ficou com essa posição por vários anos,

2 Ibid.
3 Corpus Reformatorum, 14, apud DRICKAMER, John M. “Did Melanchton Become a Synergist?”
Springfielder, Vol. 40, Nº 2 (abril 1976). Disponível em: http://www.ctsfw.net/media/pdfs/drickamer-
melanchtonsynergist.pdf. Acesso em: jul. 2017. Grifos meus.

69
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

tendo-a ensinado também em seus comentários sobre o Evangelho de João


(1523) e Provérbios (1524), e nos sumários doutrinários que escreveu para
Filipe de Hesse, em 1524.4
Tem sido sugerido que Melanchton começou a alterar o seu conceito de
conversão durante a controvérsia entre Lutero e Erasmo de Roterdã sobre a
liberdade da vontade. Ele ficou alegre quando Erasmo asseverou a liberdade
da vontade em sua obra Diatribe (1524), por causa do apreço de Erasmo pelo
humanismo, que ficou claro em sua controvérsia com Lutero, o qual, por sua
vez, acabou escrevendo a famosa obra De Servo Arbitrio (1525), na qual foi
negado qualquer tipo de liberdade em assunto espiritual.
Entretanto, na edição de 1525 dos Loci Communes ele fortaleceu algu-
mas das afirmações sobre a predestinação. Dois anos mais tarde, em 1527,
num comentário sobre Colossenses, ele novamente negou que a vontade
humana pudesse contribuir em qualquer coisa para a conversão. A conversão
era inteiramente um feito de Deus.5 Nessa década, assim como Lutero, ele era
realmente um monergista!

1.1.2 O Melanchton da década de 1530 começou a pender para o


sinergismo
Os pressupostos libertários de Erasmo influenciaram a mente mais bri-
lhante da Reforma Luterana, Filipe Melanchton. À medida em que o tempo
passava, mais a teologia dele

inclinou-se para o pensamento libertário de Erasmo, e isto já pode ser deduzido


de uma carta datada de 22 de junho de 1527, escrita a Veit Dietrich, em que
ele disse que desejava uma exposição mais completa também das doutrinas da
predestinação e da do consentimento da vontade.6

Entretanto, ainda que tivesse mantido em segredo a sua posição ligeira-


mente sinergista, ao seu grande companheiro de luta essa nova inclinação não
passou despercebida.

1.1.2.1 Lutero sabia do sinergismo de Melanchton


Um pouco depois de 1530, Melanchton já não parece concordar de coração
com Lutero nas doutrinas da graça e do livre arbítrio. Lutero não ignorava essa
tendência libertária secreta de Melanchton, que vinha de Erasmo. Em 1536,
quando os desvios de Melanchton chegaram de forma escrita aos olhos de
Lutero, este exclamou: “‘Haec est ipsissima theologia Erasmi’ (Esta é uma

4 DRICKAMER, “Did Melanchton Become a Synergist?”.


5 Ibid., p. 13.
6 BENTE, F. Historical Introductions to the Book of Concord. St. Louis, MO: Concordia Publishing
House, 1965, p. 128. Grifos meus.

70
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

teologia idêntica à de Erasmo), e não pode haver qualquer coisa mais oposta
à nossa doutrina”.7
Melanchton começou a sua primeira grande revisão dos Loci em 1533 e a
publicou em 1535. Nessa época, ele já estava falando de uma real contribuição
da vontade humana no processo da conversão. Ele alterou a apresentação sobre
a necessidade e a liberdade para incluir a ideia de que os homens e demônios
eram livres para se opor a Deus e ao evangelho. Comentando sobre os Loci de
Melanchton de 1535, Paul Tschackert (1848-1911) diz:

Melanchton quer tornar o homem responsável por seu estado de graça. Nem a
vontade humana em razão do pecado original perde a capacidade de decidir-se
quando incitada; a vontade não produz nada novo por seu próprio poder, mas
assume uma atitude para com aquilo que a aborda. Quando o homem ouve a
Palavra de Deus, e o Espírito Santo produz afeições espirituais em seu coração,
a vontade pode tanto assentir como voltar-se contra ela.8

Enquanto Melanchton (em seus Loci de 1543) havia falado de três causas
de uma boa ação (bonae actionis), ele agora publicamente advogava a doutrina
das três causas concorrentes da conversão. Repudiando o monergismo de Lute-
ro, ele esposou e defendeu os poderes da vontade livre em assuntos espirituais.9

1.1.2.2 Melanchton admitiu o seu sinergismo


Depois de ficar do lado de Lutero a respeito da incapacidade humana em
questões espirituais, no começo de sua carreira em Wittenberg, Melanchton
deu uma guinada teológica afirmando que há três causas concorrentes da con-
versão (o Espírito Santo, a Palavra e o consentimento da vontade do homem),
discordando do monergismo de Lutero.
Durante o restante do tempo de vida de Lutero, Melanchton não fez mais
nenhum progresso em direção ao seu sinergismo. Ele próprio admitiu que
dissimulava, mantinha suas opiniões consigo mesmo e as escondia de seus
amigos. Entretanto, após a morte de Lutero, ele saiu publicamente em favor
do sinergismo, endossando até mesmo a definição de Erasmo de livre arbítrio
como sendo “o poder no homem para aplicar-se à graça”.

1.1.3 O Melanchton da década de 1540 em diante tornou-se mais


claramente sinergista
A terceira geração dos Loci de Melanchton pode ser datada de 1544,
embora não apresente muitas mudanças como aconteceu com as edições da

7 Ver ibid.
8 Ibid.
9 Ibid., p. 129.

71
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

segunda geração, na década de 1530. Lutero havia examinado as primeiras


edições e não falou nada contra elas. Mais tarde, em 1544, ele escreveu:
Não tenho absolutamente nenhuma suspeita em relação a Filipe, Flacius e
Hesshusius, que se tornaram amargos oponentes do sinergismo no passado,
quando a controvérsia surgiu.10
No entanto, Lutero elogiou fortemente a edição de 1545 dos Loci. Prova-
velmente, Lutero não teve coragem de criticar seu antigo e amado companheiro
de teologia. É importante reconhecermos que as nossas afeições podem frear os
nossos desejos de destruir aqueles que pensam diferentemente de nós! Talvez
por essa razão Lutero silenciou diante do sinergismo de Melanchton, mesmo
sabendo do que acontecia dentro da alma do seu companheiro e de suas ligeiras
menções ao seu próprio sinergismo.

1.2 As três causas de Melanchton


Na edição de seus Loci em 1559, Melanchton mencionou novamente
“as três causas”, que são conectadas, de alguma forma, ao libertarismo: “A
Palavra de Deus, o Espírito Santo e a vontade humana assentindo à Palavra
de Deus e não se opondo a ela”.11 Ele escreveu que “Deus começa e atrai por
sua Palavra e seu Espírito Santo, mas nós deveríamos ouvir e aprender, isto é,
apreender a promessa e assentir a ela, não nos opor a ela, não dar lugar para
desconfiar ou duvidar dela”.12
Melanchton não vê isto como o homem começando a conversão, mas
reagindo à Palavra de Deus. Entretanto, ele vê algumas coisas que a vontade
humana faz, consentindo no que o Espírito faz.

A obra do Espírito é eficaz somente se a mente abraça a promessa e luta contra a


falta de fé. Ele até admitiu a ideia de o homem possuir uma faculdade de aplicar
a si mesmo a graça, em termos de ouvir a promessa, tentar assentir e rejeitar os
pecados contra a consciência.13

Quando perguntado sobre “Por que alguns aceitam e outros não?”, ele
respondeu que a diferença está no homem. Ele cita o exemplo de Saul ter
rejeitado e Davi ter aceito. Há alguma ação dissimilar nos dois.14 Na verdade,
esse pensamento chamado sinergista é do luteranismo conservador, não sim-
plesmente de Melanchton.

10 Apud DRICKAMER, “Did Melanchton Become a Synergist?”, p. 98. Grifos meus.


11 Ibid.
12 Ibid.
13 Ibid.
14 Ibid.

72
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

1.2.1 Os anos de sinergismo secreto de Melanchton


Nos seus primeiros anos, Melanchton ensinou forte monergismo, om-
breando com Lutero contra Erasmo, mas em meados da década de 1530,
iniciou uma inclinação para o sinergismo. No final de seus dias, ele ensinou o
sinergismo que manteve ligeiramente secreto durante anos. Não podemos nos
esquecer de que Melanchton “não foi acusado de sinergismo em sua época ou
por mais de uma década, ainda que afirmações similares a estas tivessem sido
publicadas em vários lugares”.15

1.2.2 A reação de Lutero ao sinergismo de Melanchton


Lutero, que o acompanhou em sua trajetória, e que expressava muito
fortemente um monergismo, “nunca objetou à doutrina da conversão de
Melanchton”.16 Se Lutero tivesse alguma coisa séria contra Melanchton, ele
teria dito do seu descontentamento a algum amigo próximo.17 Talvez Lutero
não tenha dito nada a respeito do pensamento de Melanchton pela grande
apreciação e respeito de que este gozava.

1.2.3 A reação dos luteranos radicais ao sinergismo de Melanchton


Foi somente após o Interim de Leipzig, no final de 1548, mais de dois anos
após a morte de Lutero, que alguns luteranos começaram a criticar o libertaris-
mo de Melanchton. Na verdade, os gnesio-luteranos criticam em Melanchton
o que eles mesmos creem sobre a relação entre a obra do Espírito e a Palavra.

2. A FALHA CALVINISTA DE MELANCHTON


Este segundo erro foi ainda mais dolorido para os luteranos radicais
porque Melanchton começou a pender para o pensamento dos zuinglinianos
e calvinistas, a quem ele tanto combateu no início de sua carreira teológica à
frente do luteranismo.

2.1 Melanchton ombreia com Lutero na Eucaristia


Nos seus primeiros anos, Melanchton ombreou com Lutero na doutrina
da eucaristia. Schaff diz que, nos seus primeiros anos, Melanchton esforçou-
-se por encontrar nos pais da igreja pessoas que ficassem do lado de Lutero
na doutrina da Eucaristia. Ele citou Cirilo, Crisóstomo, Hilário, Cipriano, etc.
Ele até tentou trazer Agostinho para o lado de Lutero, mas não foi muito feliz
em seu intento. Admitiu que havia escritos de outros pais, como Jerônimo,

15 Ibid., p. 98.
16 Ibid.
17 Ibid.

73
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

Gregório de Nazianzo e Basílio que poderiam ser contra a doutrina da euca-


ristia de Lutero.18
Melanchton havia sido fiel aos ensinos de Lutero sobre a Ceia até 1529,
no Colóquio de Marburg, quando ele se insurgira contra o radicalismo teoló-
gico de Zuínglio. Em 15 de maio de 1529, em sua Opinion, ele escreveu: “Eu
estou satisfer ito de que não concordarei durante toda a minha vida com os
de Estrasburgo, e sei que Zuínglio e seus companheiros escrevem falsamente
com respeito ao Sacramento”.19 Em 20 de junho do mesmo ano, numa carta
a Jerome Baumgaertner, ele também escreveu: “Eu preferiria antes morrer
do que ver nosso povo tornar-se contaminado por associação com a causa
zuingliniana”.20 Melanchton veio a fazer exatamente o que ele condenou nos
seus adversários envolvidos na questão sacramentária. Vejamos, de forma bem
resumida, o desenvolvimento do seu pensamento eucarístico.

2.2 Melanchton se aparta de Lutero na Eucaristia


Melanchton deu um salto teológico, ainda que imperceptível aos que
não estão familiarizados com a grande controvérsia havida entre luteranos,
zuinglinianos e posteriormente, calvinistas.

2.2.1 Na Confissão de Augsburgo de 1530 ele ombreou com Lutero


na questão da Eucaristia
Melanchton havia sido o autor da Confissão de Augsburgo em 1530,
expressando a confissão luterana sobre a eucaristia.

Art. 10 – “A respeito da Ceia do Senhor, eles ensinam que o corpo e o sangue


de Cristo estão verdadeiramente presentes, e são distribuídos (comunicados)
àqueles que comem na Ceia do Senhor. E eles desaprovam aquele que ensinam
de outra maneira”.

A princípio, portanto, Melanchton discordou do radicalismo teológico de


Zuínglio, mas pouco a pouco foi estabelecendo correspondência com Martin
Bucer e João Calvino, ficando totalmente convencido de que Agostinho dava
suporte ao pensamento reformado na interpretação simbólica das palavras da
instituição.21

18 SCHAFF, Philip. The Creeds of Christendom. 3 vols. Grand Rapids, MI: Baker, 1984, vol. 1,
p. 263.
19 Citado por BENTE, Historical Introductions, p. 175.
20 Ibid.
21 Neste particular Schaff diz que Melanchton foi fortemente influenciado pelo Dialogus de Eco-
lampádio (1530), dirigido contra as suas Sententiae. SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 264,
nota 1.

74
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

2.2.2 Na Confissão de Augusburgo de 1540 ele começou a divergir


de Lutero na questão da Eucaristia
Embora nunca tenha formulado um documento bem desenvolvido sobre
a presença real, Melanchton veio a concordar substancialmente com Bucer e
Calvino. Logo depois de seus contatos mais constantes com os reformadores
de Estrasburgo e Genebra, ele começou a desistir da interpretação literal das
palavras da instituição, como ensinada por Lutero. Desistiu também da man-
ducatio oralis do corpo de Cristo.
Depois dos seus contatos com Bucer e com Calvino, ele introduziu no ar-
tigo sobre a Ceia uma nova convicção, aproximando-se da visão reformada de
Eucaristia, que passou a ser parte da nova versão da Confissão de Augsburgo,
dez anos depois, em 1540. Essa nova edição da Confissão passou a ser conhecida
como Variata.

Art. 10 – “Com respeito à Ceia do Senhor, eles ensinam que ‘com’ o pão e o
vinho são verdadeiramente exibidos o corpo e o sangue de Cristo àqueles que
comem na Ceia do Senhor”.

Segundo os luteranos rígidos, as mudanças de opinião sacramentária


de Melanchton culminaram na sua alteração do Artigo 10 da Confissão de
Augsburgo, na edição de 1540, que ficou sendo conhecida como Variata, para
favorecer os calvinistas.
Sendo um pouco ácido em sua crítica, e torcendo ligeiramente uma cita-
ção de Schaff, Bente diz: “A ideia de Calvino da ceia do Senhor foi, de vários
modos, oficialmente reconhecida na Confissão de Augsburgo de 1540”.22 O
que Bente não coloca é o que o próprio Schaff diz:

A ideia posterior de Melanchton sobre a ceia do Senhor, que essencialmente


concordava com a de Calvino, foi por vários anos acolhida pela maioria dos
teólogos luteranos, mesmo em Wittenberg e Leipzig, e na corte do Eleitor da
Saxônia. Ela foi também de vários modos oficialmente reconhecida com a
Confissão de Augsburgo de 1540, que foi por muito tempo considerada como
uma melhora antes do que uma edição alterada.23

Toda a região do sul da Alemanha estava altamente influenciada pelo


pensamento de Calvino quanto à ceia. E os teólogos da fonte do luteranismo, de
Wittenberg, também estavam do lado dos calvinistas. Isto causava dor profunda
nos gnesio-luteranos, que passaram a odiar o conteúdo alterado da Variata. De

22 BENTE, Historical Introductions, p. 178.


23 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 280. Grifos meus.

75
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

fato, ela era uma melhora antes do que uma simples alteração. Assim sempre
sentiram os reformados, que vieram a subscrevê-la, sobretudo Calvino.
Em 1540 e 1542, Melanchton reescreveu algumas partes da Confissão
a fim de reconciliá-las com a visão calvinista. O próprio João Calvino assi-
naria a Confissão de 1540. Melanchton apresentou uma visão modificada da
presença real ensinada por ele próprio na edição de 1530. Todavia, nunca
gostou da ideia de uma presença simbólica proposta por Zuinglio, nem ado-
tou abertamente a visão calvinista de uma presença real espiritual, mas ficou
bem perto dela, ao ponto de Calvino publicamente ter declarado que ele e
Melanchton eram inseparavelmente unidos nesse ponto.24
Portanto, as diferenças entre Lutero e Melanchton afetaram as futuras
relações entre luteranos e calvinistas, por causa das posições tomadas no
último estágio da vida teológica de Melanchton, especialmente nas matérias
relativas à eucaristia.

2.3 Influência de Ecolampádio e Bucer sobre Melanchton


Contudo, antes dos dez anos de reflexão terminarem, Melanchton já
mostrava sinais de dúvida com respeito à unio sacramentalis. Seeberg descreve
que “em 1531 Melanchton secretamente já expressava sua opinião de modo
claro o suficiente para se reconhecer a presença da divindade de Cristo na Ceia
do Senhor, mas não a união do corpo e o pão”.25
A semente de dúvida nascera nos contatos com pensadores reformados,
como Bucer e Ecolampádio. Numa carta a Johannes Brenz, Melanchton reco-
nhece que levou o pensamento de Bucer para Wittenberg. Nessa carta, datada
de 12 de janeiro de 1535, está afirmado:

Meu caro Brenz, se houvesse qualquer diferença de nós com respeito à Trin-
dade e outros artigos, eu não teria nenhuma aliança com eles... A respeito da
Concórdia, contudo, nenhuma ação foi ainda tomada. Eu somente trouxe as
opiniões de Bucer para cá [Wittenberg]. Mas eu gostaria de falar pessoalmente
com você a respeito da controvérsia. Eu não constituo a mim mesmo um juiz,
e prontamente concedo a você, que governa a igreja, e eu afirmo a presença de
Cristo na ceia.26

Estes reformados criam que o corpo e o sangue de Cristo eram verdadeira


e substancialmente recebidos no sacramento, mas eles não estavam realmente
conectados com o pão e o vinho. Negavam a união sacramental. No seu ardor
extremamente luterano, F. Bente diz que Melanchton

24 A frase latina de Calvino é esta: “Confirmo, non magis a me Philippum quam a propriis visce-
ribus in hac causa posse divelli”. Citado por SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 264, nota 2.
25 Apud BENTE, Historical Introductions, p. 176-177.
26 Apud ibid., p. 178. Grifos meus.

76
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

permitiu-se ser guiado pelas autoridades humanas antes do que pela clara Pala-
vra de Deus somente, isto porque Melanchton havia mencionado numa carta a
Lutero que o pensamento de Ecolampádio sobre a ceia era exposto “com maior
exatidão do que ele próprio escreveria”.27

Na avaliação ardorosa de Bente, a visão calvinista da presença real de


Cristo na ceia era produto das “autoridades humanas” e a visão de Lutero era
“a clara Palavra de Deus somente”. Conheci pessoalmente essa visão luterana
quando estudei entre membros do Sínodo de Missouri, em Saint Louis. A visão
de ceia que eles tinham estava acima de qualquer suspeita.
Em dezembro de 1534, Melanchton foi a uma conferência com Bucer em
Cassel, e nessa ocasião Lutero instou-o a defender a unio sacramentalis e o
comer e o beber no sentido oral.28 Ao retornar da conferência, Melanchton já
estava convencido de que o pensamento de Bucer e Ecolampádio estava mais
próximo da verdade do que o da interpretação literal de Lutero. O convenci-
mento de Melanchton começou com uma aprovação disfarçada do pensamento
reformado. Sem tomar abertamente a posição dos reformados, Melanchton foi
tolerante com eles e aprovou-os na sua teologia quando deixou de reprová-los, o
que era o intento de Lutero quando o enviou ao encontro de Bucer em Cassels.
Em fevereiro de 1534, Melanchton escreveu a Brenz: “Eu claramente julgo que
eles (Bucer e os outros) não estão longe da opinião dos nossos homens; aliás,
na matéria em si, eles concordam conosco; nem eu os condeno”.29
Contudo, escrevendo a um amigo, Erhard Schnepf, quando as suas con-
cessões começam a se mostrar claras, Melanchton diz: “Ele [Bucer] confessa
que, quando essas coisas, pão e vinho, são dadas, Cristo está verdadeira e
substancialmente presente. Quanto a mim, eu não exigiria nada mais”.30 A
união sacramental não fazia muito mais diferença para Melanchton. Essa era
a razão do descontentamento entre os luteranos radicais.

2.4 A confissão de sua tendência calvinista a dois amigos


Em 10 de janeiro de 1535, escrevendo ao seu amigo Camerarius a respeito
de sua ida a Cassel como mensageiro de Lutero para lutar pela unio sacramen-
talis, Melanchton mostra com mais clareza o seu posicionamento em relação
a Lutero e a sua própria crença antiga sobre a ceia:

Não peça a minha opinião agora, porque eu era um mensageiro de uma opinião
estranha à minha, embora eu não esconderei o que penso quando tiver ouvido

27 Apud ibid., p. 177.


28 BENTE, Historical Introductions, p. 177.
29 Corpus Reformatorum 2.843, apud BENTE, Historical Introductions, p. 177.
30 Corpus Reformatorum 2.787, apud BENTE, Historical Introductions, p. 177.

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HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

o que os nossos homens responderem. Mas a respeito dessa matéria toda lhe
direi pessoalmente ou quando tiver mensageiros confiáveis.31

Em carta enviada a Brenz em 12 de janeiro de 1535, comentando sobre a


opinião de Bucer e dos reformados sobre a ceia, Melanchton diz claramente:

Eu não desejo ser o autor ou defensor de um novo dogma na igreja, mas vejo
que há muitos testemunhos de escritores antigos que, sem qualquer ambiguida-
de, explicam o mistério com tipos e tropos, enquanto os testemunhos opostos
são ambos, mais modernos e espúrios. Você também terá de investigar se você
defende a opinião antiga.32

Desse período em diante, Melanchton nunca mais haveria de interpretar


literalmente as palavras da instituição, que foram básicas e fundamentais para
toda a teologia luterana da eucaristia. Certamente, o contato com Bucer e outros
reformados foi importante para a decisão de Melanchton, mas ele já foi para
aquela reunião de Cassel com ideias discordantes das de Lutero. Ele já não se
sentia confortável com a unio sacramentalis, e a sua dúvida cresceu no con-
tato de Cassel. A influência de Bucer e Ecolampádio foi a gota d’água, mas
os pensamentos de Melanchton já titubeavam antes mesmo desse confronto
pessoal de suas ideias com as deles.

2.5 Mudanças refletidas de Melanchton


As mudanças teológicas sobre a eucaristia na mente de Melanchton não
vieram arbitrariamente, repentinamente, sem qualquer reflexão. Ao contrário,
Melanchton era profundamente estudioso e altamente reflexivo. Suas mudan-
ças de posição teológica nasceram na consciência de um verdadeiro erudito,
que refletiu muito sobre suas ideias. Em carta ele confidenciou a um amigo:
“Não há um dia ou noite nestes últimos dez anos que eu não tenha meditado
sobre a doutrina da ceia do Senhor”.33 Suas mudanças foram nascidas numa
reflexão madura, sem o ímpeto de seus primeiros anos. O seu “calvinismo na
eucaristia” foi produto de muita maturidade teológica. Obviamente, este não
é o pensamento luterano que, apaixonadamente, na época, o considerou como
virulento traidor.

3. DOIS TIPOS DE LUTERANISMO


Lutero, o Reformador da Alemanha, e Melanchton, o Mestre da Alema-
nha, depois do ano de 1533, embora continuassem se respeitando mutuamente,

31 Corpus Reformatorum 2.822, apud BENTE, Historical Introductions, p. 177.


32 Corpus Reformatorum 2.823s, apud BENTE, Historical Introductions, p. 178.
33 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 261.

78
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

vieram a dar origem a dois tipos de luteranismo. Lutero gerou um luteranismo


conclusivo e exclusivo; Melanchton gerou um luteranismo expansivo e do tipo
unionista. Lutero era mais conservador e adversário ferrenho dos opositores;
Melanchton era mais aberto e disposto ao diálogo com os que criam de modo
diferente. Os dois tipos de luteranismo, os gnesio-luteranos e os filipistas, vão
se chocar posteriormente, em especial depois de Calvino entrar em cena.

3.1 Os filipistas e a controvérsia


A doutrina da eucaristia, que refletia o ponto de refrega dentro do pró-
prio luteranismo, era o teste da verdadeira ortodoxia. A doutrina da eucaristia
era dependente da doutrina cristológica assumida. Referindo-se a essas duas
doutrinas, Bente nos diz que

as doutrinas de Lutero sobre a Ceia do Senhor e sobre a pessoa de Cristo como


sendo em cada particular o ensino claro e inconfundível da Palavra Divina – duas
doutrinas, que talvez mais do que qualquer outra, servem como o teste para se
saber se a atitude fundamental da igreja ou de um teólogo é verdadeiramente
bíblica e plenamente livre de qualquer infecção racionalista e entusiástica.34

Mas não era esse o pensamento dos filipistas. Como sacramentários que
eram, começavam a divergir do radicalismo e do literalismo dos gnesio-lute-
ranos. As acusações dos luteranos radicais contra os filipistas eram que eles
estavam sendo calvinistas nas suas ideias sobre a ceia. A acusação tornava-se
mais ácida porque os calvinistas, segundo os luteranos, não eram nada mais
nada menos do que o zuinglianismo revivido, embora ligeiramente modificado.
Os calvinistas são considerados pelos luteranos radicais como aqueles
que usam palavras parecidas com a teologia luterana, para se aproximar dos
luteranos, mas o conteúdo do que creem é totalmente diferente. Na Fórmula
de Concórdia pode ser lido:

Embora alguns sacramentarianos se esforcem por empregar palavras que


cheguem tão perto quanto possível da Confissão de Augsburgo e a forma e o
modo de falar nas suas igrejas, e confessem que na Santa Ceia o corpo de Cristo
é verdadeiramente recebido pelos crentes, ainda, quando insistimos que eles
afirmem o significado própria, sincera e claramente, eles todos declaram una-
nimemente dessa forma: que o verdadeiro essencial corpo e sangue de Cristo
estão ausentes do pão e do vinho consagrados na Santa Ceia, da mesma forma
que os mais altos céus estão distantes da terra.35

34 BENTE, Historical Introductions, p. 172.


35 Ibid., p. 174.

79
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

Os calvinistas fizeram algumas concessões para poderem se aproximar


dos luteranos. Calvino elaborou o Consenso Tigurino e ali, num esforço para
unir todos os reformados, evidenciou a sua crença que era uma forma modifi-
cada de zuinglianismo. Os reformados não poderiam crer de outra forma. Os
pressupostos luteranos e calvinistas eram muito diferentes para que entre eles
houvesse pleno acordo. Houve uma tentativa da parte de Calvino de concordar
com Melanchton e de assinar a Confissão de Augusburgo. Isso de fato acon-
teceu. Calvino assinou essa confissão luterana de 1540 e, em alguns círculos,
foi geralmente considerado um luterano.36 Mas o que Calvino na verdade
havia assinado era a Variata, já com as mudanças na doutrina da eucaristia.
Sobre isso, ele escreveu: “Eu não repudio a Confissão de Augsburgo, a qual
previamente subscrevi no sentido em que o próprio autor [Melanchton] a tem
interpretado”.37

3.2 Os criptocalvinistas
A doutrina calvinista da Santa Ceia atraiu muitos territórios luteranos,
especialmente no sul da Alemanha e na Saxônia. Durante as controvérsias
sacramentárias no Palatinado, e na Westfália com Calvino, Melanchton perma-
neceu silencioso, e esta sua atitude valeu-lhe e aos seus seguidores o apelido
de criptocalvinistas. Estes haviam adotado secretamente a doutrina calvinista
e, por isso, foram chamados criptocalvinistas, ou seja, calvinistas mascarados
ou escondidos. Muitos teólogos e leigos que tinham assinado a Confissão de
Augsburgo e haviam expressado lealdade à teologia luterana, ocupando posições
importantes na igreja luterana, faziam propaganda calvinista, esforçando-se por
retirar os livros e doutrinas de Lutero, substituindo-os pelos de Calvino.38 Essa
atitude dos filipistas trouxe muita amargura aos chamados gnesio-luteranos.
Assim, os dois luteranismos, o remanescente de Lutero e o de Melanchton, se
chocavam, embora estivessem rodando na mesma direção, mesmo que sobre
trilhos diferentes que frequentemente se cruzavam. Todos eram luteranos. Isto
ninguém podia negar, mas os desencontros da controvérsia sobre a eucaristia
produziram muitos trens descarrilhados.

3.3 Os luteranos radicais e a controvérsia


Provavelmente pelo respeito que Lutero tinha pelo grande mestre da
Alemanha, ele nunca fez uma oposição virulenta contra o seu companheiro
de muitos anos. Contudo, somente após a morte de Lutero, em 1546, é que a

36 Ibid.
37 Apud ibid., p. 174. A frase latina original de Calvino é: “Nec vero Augustanam Confessionem
repudio, cui pridem volens ac libens subscripsi, sicut eam auctor ipse interpretatus est” (Corpus Refor-
matorum 37, p. 148).
38 Ibid., p. 175.

80
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

controvérsia ficou cheia de azedume. Melanchton morreu em 1560, catorze


anos depois de Lutero, mas nesse meio tempo ele sofreu violentas críticas
e perseguição da parte dos luteranos genuínos, também chamados gnesio-
-luteranos. Depois da morte de Lutero, os dois luteranismos ficaram ainda
mais evidentes. Como se fossem dois exércitos inimigos, eles se digladiaram
em várias controvérsias,39 incluindo a da eucaristia.

3.4 Lutero é “deificado”


Como uma espécie de desprezo às posições melanchtonianas e uma agres-
são a ele, alguns importantes partidários de Lutero, conhecidos como gnesio-
-luteranos,40 começaram a tratar Lutero como antipapal e antizuingliano, como
se fosse o teólogo mais correto e sua ortodoxia a mais sadia de todas. Eles não
conseguiam enxergar em Lutero alguma coisa de errado. Schaff diz que eles

fizeram de sua fraqueza uma virtude, tornaram suas extravagâncias polêmicas


em dogmas, e converteram a expansão católica da Reforma num exclusivismo
sectário. Eles denunciaram cada compromisso com Roma, e cada abordagem
da comunhão reformada, como uma deslealdade extremamente covarde para a
causa da verdade evangélica.41

Os gnesio-luteranos possuíam a “convicção de que cada ponto do ensino


de Lutero era, de fato, nada senão a própria pura Palavra de Deus”.42 Lutero
era visto por eles “como um profeta quase inspirado, e criam na sua interpre-
tação (da Bíblia) como final”. No prefácio da Confissão de Magdeburgo, de
1550, Lutero é chamado de “terceiro Elias”, “o Profeta de Deus”, e a doutrina
de Lutero, sem qualquer qualificação, é chamada de “doutrina de Cristo”.43

39 Há pelo menos seis outras controvérsias teológicas que apareceram entre a morte de Lutero em
1546 até 1578: 1) Controvérsia Adiaforística (1548-1555), que versou sobre a reintrodução de ritos e
cerimônias romanos na igreja luterana; 2) Controvérsia Majorística (1551-1562), na qual George Major
e Justus Menius defenderam a frase de Melanchton de as boas obras são necessárias para a salvação;
3) Controvérsia Sinergística (1555-1560) onde vários teólogos luteranos defenderam com Melanchton
que o homem por seus próprios poderes naturais coopera em sua conversão; 4) Controvérsia de Flácio
(1560-1575) na qual Flacius, com apoio de outros, sustentou que o pecado original não é um acidente,
mas a verdadeira substância do homem caído. Os Luteranos, inclusive os Philipistas se opuseram a esse
erro; 5) Controvérsia com Stancarus e Osiander (1549-1566). Osiander negou o caráter forense da jus-
tificação, e ensinou que Cristo é a nossa justiça somente de acordo com a sua divina natureza; Stancarus,
de modo oposto, ensinou que a nossa justiça é somente de acordo com a natureza humana de Cristo; 6)
Controvérsia Antinomística (1527-1556) onde várias idéias sobre a Lei e o Evangelho foram expostas
por João Agrícola, que dizia que o arrependimento não era trazido pela lei, mas pelo evangelho (ver em
BENTE, Historical Introductions, p. 103).
40 Entre outros podemos mencionar Amsdorf, Flacius, Jonas, Westphal.
41 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1, p. 267.
42 BENTE, Historical Introductions, p. 172.
43 SCHAFF, Creeds of Christendom, vol. 1., p. 268.

81
HEBER CARLOS DE CAMPOS, O PERIGO A SER EVITADO NUMA REFORMA

3.5 Melanchton é reverenciado pelos filipistas


Diferentemente, os filipistas reverenciavam Melanchton simplesmente
como um grande mestre, um homem aberto e desejoso de uma comunhão
mais fraterna entre os líderes do movimento da Reforma. Schaff afirmou que

ambos os partidos sustentavam a suprema autoridade da Bíblia, mas os lute-


ranos ficaram do lado da Bíblia como entendida por Lutero, e os filipistas do
lado da Bíblia como entendida por Melanchton, com a adicional diferença de
que o primeiro grupo olhava para Lutero como um apóstolo quase inspirado,
e cria em sua interpretação como final, enquanto que o segundo reverenciava
Melanchton simplesmente como um grande mestre, e reservava uma margem
maior para a razão e para a liberdade.44

Agora, Melanchton estava no lado oposto, justamente do lado daqueles


que ele outrora atacara. Depois daquela data, ele havia refletido durante cerca
de 10 anos, muito seriamente, sobre o peso dessa doutrina, e isso intrigava e
irritava os luteranos radicais.

3.6 O que os luteranos radicais mais recentes fizeram com


Melanchton?
Quando estudei entre os luteranos, em Saint Louis, Missouri, eu frequen-
tava diariamente a bela e rica biblioteca do Seminário Concordia. Todavia, eu
me incomodava com um fato: no hall de entrada da biblioteca havia painéis
que homenageavam Lutero e vários outros “heróis” da Reforma Luterana,
menos Melanchton. Certa feita, perguntei ao bibliotecário chefe sobre a razão
da ausência da figura de Melanchton, e ele me respondeu que era por causa
dos dois erros mencionados neste pequeno artigo. Então, perguntei: “Como
vocês podem ignorar, deixando de homenagear, o grande homem que escreveu
a Confissão de Fé de Augsburgo e sua Apologia?” Ele ficou meio sem graça
diante da pergunta, e não respondeu nada. Entretanto, algum tempo depois,
confessou-me que estava havendo um movimento de pessoas dentro do lutera-
nismo que estavam tentando recuperar a memória de Melanchton, restaurando
o seu prestígio dentro da denominação. Eles puniram Melanchton depois da
sua morte!

CONCLUSÕES

O que fazer diante de um movimento de reforma?


Os reformadores primavam pela verdade e sentiam fortes dores quando
a verdade era torcida. Os reformadores não hesitavam em punir os que não

44 Ibid., vol. 1, p. 267-268.

82
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 67-83

tinham a verdade da Escritura em alta conta. Hoje as igrejas não mais punem
pastores por questões teológicas, apenas por questões morais. Hoje as igrejas
não exercem disciplina sobre presbíteros que discordam dos nossos padrões
de fé.

O que devemos abandonar da Reforma?


Devemos abandonar o espírito de perseguição a pessoas e o espírito
separatista. Devemos abandonar o espírito de não ouvir o que os outros têm
a dizer teologicamente. O grande problema é distinguir entre o que é e o que
não é fundamental na fé para estabelecer padrões de condenação. Outro grande
problema é de natureza hermenêutica ou de oposição ou adição às Escrituras.

O que devemos manter da Reforma?


Devemos continuar com o espírito de luta contra pensamentos teológicos
perniciosos. Mas, ao mesmo tempo, devemos cultivar um espírito irênico até
onde possível. Devemos nos concentrar nas coisas em que concordamos com
outros irmãos e não nas coisas nas quais discordamos deles.

ABSTRACT
There is a singular tension between the two founders of the Lutheran
tradition – Martin Luther and his colleague and successor Philip Melanchthon.
Despite his lifelong friendship with and admiration for the older reformer,
Melanchthon distanced himself from the thought of the pioneer around two
important issues: the role of divine and human actions in salvation and the
understanding of Christ’s presence in the Supper. Leaving behind his initial
monergism, the assertion of the inability of the human will, the Master of Ger-
many came to embrace a synergistic stance by affirming the “consent of human
will to God’s word” as a requirement for salvation. Regarding the sacrament
of the Supper, Melanchthon distanced himself subtly from consubstantiation
to a position closer to Calvin, with his understanding of a real presence in the
spiritual sense. These new views gave rise to a strong and lasting debate between
the followers of the two reformers – Gnesio-Lutherans and Philipists – which
reverberates until today.

KEYWORDS
Martin Luther; Philip Melanchthon; Free will; Monergism; Synergism;
Lord’s Supper; John Calvin; Consubstantiation; Real presence.

83
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

O Pensamento Escatológico de Calvino


Leandro Lima*

RESUMO
Uma vez que Calvino não escreveu um comentário bíblico sobre o Apo-
calipse, existe a tendência de acreditar que ele não se importava muito com
escatologia ou que se considerava incapaz de tratar do assunto. Este artigo
mostra que essa posição pode estar equivocada por vários motivos, entre eles o
que Calvino de fato considerava como escatologia, sua preocupação em evitar
especulações e a consciência da limitação da linguagem humana para descrever
o mundo vindouro. A partir de uma análise contextual da obra do reformador
de Genebra, o artigo busca esclarecer que há uma ligação indissociável en-
tre Escatologia e Soteriologia na obra dos reformadores, especialmente em
Calvino, e que embora sempre preocupado em evitar especulações, Calvino
não fugiu do debate em vários pontos que considerava essenciais para manter
a doutrina reformada, especialmente no que diz respeito à ressurreição e ao
estado intermediário.

PALAVRAS-CHAVE
Calvino; Escatologia; Apocalipse, Teoria da acomodação; Ressurreição.

INTRODUÇÃO
Parece evidente para qualquer leitor dos textos da Reforma que a escatolo-
gia não foi um dos assuntos mais importantes para os reformadores. O simples

* Doutorando em Novo Testamento pela Universidade de Kampen, na Holanda; Doutor em Lite-


ratura e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Mestre em Teologia
Histórica pelo CPAJ; professor de Novo Testamento no CPAJ; pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana
de Santo Amaro, São Paulo. Autor de diversos livros sobre temas teológicos e da ficção “Crônicas de
Olam”, trilogia baseada em uma cosmovisão bíblica que está sendo produzida pela Tolk Publicações
(selo da Editora Fiel).

85
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

fato de Calvino não ter escrito um comentário sobre Apocalipse,1 ou sequer


dedicado tempo para pregar sistematicamente o livro, parece uma evidência
irrefutável que confirma essa impressão.2
No entanto, essa percepção pode estar errada, ao menos parcialmente. É
verdade que aquilo que hoje em dia se costuma chamar de escatologia, e que
diz respeito principalmente às discussões envolvendo o milênio, o arrebata-
mento, a batalha do Armagedom e temas semelhantes, passou bem distante da
pena do reformador de Genebra e dos outros reformadores. Porém, o primeiro
questionamento a ser feito é se esses temas resumem de fato o que significa
escatologia à luz das Escrituras, ou seja, se escatologia deve ser entendida
apenas como eventos pontuais que antecipam ou sucedem a segunda vinda de
Jesus, ou se, como aponta Moltmann “o cristianismo é total e visceralmente
escatologia, e não só a modo de apêndice; ele é perspectiva e tendência para
frente, e por isto mesmo, renovação e transformação do presente”.3 Mesmo
não partilhando da agenda escatológica de Moltmann, é preciso reconhecer
que a sua definição é preferível à anterior, isso porque, como já afirmei em
outro lugar, “não apenas o cristianismo que brota do Novo Testamento é esca-
tológico, como toda a mensagem da Bíblia do Antigo e do Novo Testamento
é escatológica. Desde que a primeira palavra da Bíblia, o ‘no princípio’ foi
declarada, o fim já foi evocado, porque na própria ideia de ‘princípio’ há a
ideia de ‘fim’”,4 uma vez que “existe uma profunda e inseparável conexão
entre criação e consumação, o começo e o fim”.5
As principais doutrinas que estiveram no centro das discussões no tempo
da Reforma evidentemente foram aquelas de caráter soteriológico, ou seja, que
tratavam de definir com precisão como funciona o sistema bíblico de salvação,
em contrapartida a todas as invenções romanas. Mas isso não significa que os
reformadores, e especialmente Calvino, não pensaram ou escreveram sobre
escatologia, até porque soteriologia e escatologia são loci bastante interligados
na enciclopédia teológica. Basta lembrar que salvação é “de” alguma coisa
“para” alguma coisa. No caso, é salvação dos nossos pecados e da condenação
deles, para desfrutar das benesses divinas no futuro. A respeito disso, Barnes

1 No Novo Testamento, apenas 2 e 3 João, além de Apocalipse, não foram contemplados por
Calvino.
2 Embora ninguém possa dizer com certeza qual foi o motivo que levou Calvino a não comentar
o Apocalipse, o fato de que igualmente as cartas de 2 e 3 João não foram comentadas sugere que foi
simplesmente por falta de tempo, tendo morrido um tanto cedo o grande reformador de Genebra, perto
de completar 55 anos.
3 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 22.
4 LIMA, Leandro A. de. Razão da esperança. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 545.
5 VAN GRONINGEN, Gerard. Criação e consumação. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002,
p. 29.

86
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

diz: “Os ensinos escatológicos dos reformadores protestantes foram para eles
não menos teologicamente centrais que suas respostas ao problema da justifi-
cação; de fato essas duas dimensões de seus pensamentos são inseparáveis”.6
No caso de Calvino, mais do que em qualquer outro, isso é evidente.

1. O PAPA E O ANTICRISTO
Um aspecto bastante estudado sobre a escatologia ou o apocaliptismo da
Reforma7 foi a tendência de interpretar o Apocalipse na ânsia de identificar
suas cenas e personagens com o próprio momento histórico vivido.8 Exceção
deve ser feita a João Calvino (1509-1564), pois, como já foi dito, o Apoca-
lipse foi um dos poucos livros que ele não comentou, nem se encontra nos
seus escritos qualquer uso exagerado ou pictórico desse texto bíblico. Lutero
(1483-1546) interpretou o livro no sentido linear-histórico, entendendo que a
história o capacitava a decifrar o Apocalipse.9 É curiosa a interpretação dos
três “ais” anunciados pela águia em Ap 8.13 por parte do grande reformador
alemão. O primeiro “ai” era o herético Ário, o segundo, o ataque maometano
à Igreja, o terceiro, o império papal.10

6 BARNES, Robin B. “Eschatology, Apocalypticism, and the Antichirst”. In: WHITFORD,


David M. (Org.). T&T Clark Companion to Reformation Theology. Londres; Nova York: T&T Clark,
2012, p. 234.
7 Paul D. Hanson defende que há uma tríplice divisão dentro do campo apocalíptico que a termi-
nologia precisa distinguir. Apocalipse seria o gênero literário, escatologia apocalíptica uma espécie de
cosmovisão ou mentalidade e o apocaliptismo um movimento social. “Apocalypse, genre; Apocalypti-
cism”. In: CRIM, Keith (Org.). The interpreter’s dictionary of the Bible. Nashville: Abingdon Press,
2000, p. 27-34.
8 O grande precursor desse tipo de interpretação foi, provavelmente, o abade franciscano calabrês
Joaquim de Fiore (c. 1135-1202). Segundo Bernard McGinn, ele disse ter recebido a chave da interpre-
tação através de uma inspiração divina. “Apocalipse”. In: ALTER, Robert; KERMODE, Frank (Orgs.).
Guia literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997, p. 573. Joaquim escreveu seu comentário em 1195.
Para Joaquim, o Apocalipse engloba os dois últimos status da história: a Era do Filho e a Era do Espírito.
As primeiras seis partes de seu comentário referem-se à Era do Filho (quarenta e duas gerações com
cerca de trinta anos) e a parte sete aborda a Era do Espírito. A parte oito, extremamente curta, trata dos
eventos meta-históricos na Jerusalém celestial. BACKUS, Irena. Reformations Readings of the Apoca-
lypse: Geneva, Zurich and Wittemberg. Nova York: Oxford University Press, 2000, p. xvii. A parte 1
(Ap 1-3) contém sete gerações e trata da luta dos apóstolos contra a sinagoga. A parte 2 (4.1-8.1) enfoca
a luta dos mártires contra as perseguições pagãs. A parte 3 (8.2-11.18) abrange a luta dos doutores da
Igreja contra os hereges até o estabelecimento de Constantino. A parte 4 (11.19-14.20) refere-se à luta
das ordens monásticas contra o Islã. A parte 5 (15.1-16.17) representa o conflito entre a Igreja de Roma
e o Sacro Império. A parte 6 (16.18-19.21) expõe a luta dos homens espirituais (representados por duas
novas ordens religiosas), contra o dragão e contra as duas bestas, que representam, respectivamente,
Saladino (contemporâneo de Joaquim) e o maximus Antichristus, uma pessoa que combina a heresia do
Islã e todas as heresias ocidentais. BACKUS, Reformations Readings of the Apocalypse, p. xvii-xviii.
9 MCGINN, “Apocalipse”, Guia literário da Bíblia, p. 576.
10 Ibid.

87
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

Inicialmente Lutero teve dificuldade em aceitar a própria canonicidade


do livro, pois fazia pouca referência a Cristo, segundo o reformador alemão.
Entretanto, como diz Backus, parafraseando Lutero: “O Apocalipse era cer-
tamente obscuro e não ensinava Cristo. Poderia, entretanto, ensinar sobre o
Anticristo, que poderia ser e certamente tinha sido identificado com o papa
em muitos dos comentários radicais dos séculos 14 e 15”.11 Posteriormente, se-
gundo McGinn, os luteranos encontraram um local para o próprio Lutero no
Apocalipse, identificando-o com o anjo que transporta o evangelho eterno em
14.6-7.12 Os católicos, por sua vez, apresentaram outra interpretação. Roberto
Belarmino (1542-1621) identificou o anjo do abismo, a figura demoníaca de
Apocalipse 9.11, com Lutero e o luteranismo.13
Como já foi dito, Calvino não se manifestou sobre o Apocalipse, mas seus
discípulos se pronunciaram. A Bíblia de Genebra, uma Bíblia comentada por
calvinistas do século 16, atribuiu sem pudor a identidade de criaturas hostis do
livro do Apocalipse a cargos e personagens católicos romanos. No comentário
de Apocalipse 9.3, que descreve os gafanhotos demoníacos que saem do abismo,
a nota diz: “Gafanhotos são falsos mestres e hereges mundanos, prelados,
monges, frades, cardeais, patriarcas, arcebispos, bispos, doutores, bacharéis e
mestres que abandonaram Cristo para manter a falsa doutrina.14
E mais à frente, quando aparece o chefe das criaturas, o anjo do abismo,
o mesmo que os católicos disseram ser Lutero, a nota explicativa da Bíblia diz:
“Esse Anticristo é o papa, rei dos hipócritas e embaixador de Satanás”15. De
fato, o que havia em comum em praticamente todos os intérpretes da Reforma
era a concepção de que o papa era o Anticristo.
Os puritanos calvinistas da Inglaterra cristalizaram na Confissão de Fé
de Westminster (1648) essa interpretação clássica do papa como o Anticristo:

Não há outro Cabeça da Igreja senão o Senhor Jesus Cristo; em sentido algum
pode ser o papa de Roma o cabeça dela, mas ele é aquele Anticristo, aquele
homem do pecado e filho da perdição que se exalta na Igreja contra Cristo e
contra tudo o que se chama Deus (XXV.6).

Apesar desse último texto parecer apontar para a figura de um papa es-
pecífico como Anticristo, essa não parece ter sido a intenção dos autores da

11 BACKUS, Reformations Readings of the Apocalypse, p. 7.


12 MCGINN, “Apocalipse”, Guia literário da Bíblia, p. 577.
13
KOVACS, Judith; ROWLAND, Christopher. Revelation: the Apocalypse of Jesus Christ. Malden:
Blackwell, 2004, p. 20.
14 “Locusts are false teachers, heretics, and worldly subtle Prelates, with Monks, Friars, Cardinals,
Patriarchs, Archbishops, Bishops, Doctors, Bachelors and masters which forsake Christ to maintain false
doctrine” (1602, 1989, Ap 9:3).
15 “Which is Antichrist the Pope, king of hypocrites and Satan’s ambassador” (1602, 1989, Ap 9:11).

88
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

CFW. É um fato que eles estavam seguindo a interpretação de Calvino nesse


ponto, e o próprio Calvino, embora defendesse abertamente que o papa era o
Anticristo, no entanto via na figura do Anticristo não um rei, mas um reino.
Comentando 2Tessalonicenses 2, e explicando aos seus leitores sobre a figura do
Anticristo, Calvino relembra a crença antiga, que ele considera uma fábula
de velhas, sobre Nero retornar dos mortos como o anticristo. Contra isso, ele
declara: “Paulo, entretanto, não fala de um indivíduo, mas de um reino, que
era para ser tomado como possessão de Satanás, para que ele possa se assentar
como abominação no meio do templo de Deus – que nós vemos se cumprir no
papado”.16 Não se trata, portanto, de um único indivíduo, mas “ele descreve
aquele reino de abominação sob o nome de uma única pessoa, porque é um
único reino, onde um sucede o outro”.17 Assim, o papa que naqueles dias se
assentava em Roma podia ser considerado o Anticristo “ainda que ele fosse
um menino de dez anos de idade”, como lembra Calvino. Porém, uma vez que
ele roubava para si atributos exclusivos de Deus, não haveria, segundo o refor-
mador, “grande dificuldade em reconhecer o Anticristo”.18
Portanto, nesse ponto Calvino não destoou inteiramente da interpretação
medieval que via o cumprimento das promessas escatológicas em seus dias,
mas, por outro lado, ele não viu isso como algo definitivo para seus dias, mas
como algo que já vinha se cumprindo ao longo da história, e que ainda poderia
se alongar muito. O papa em si podia ser considerado como Anticristo somente
no sentido em que o papado era o reino anticristão. Calvino conclui com as
seguintes palavras: “Não é um indivíduo que é representado sob o termo An-
ticristo, mas um reino, que se estende através de muitas eras”.19

2. MEDITANDO NA VIDA FUTURA


Embora não tenha escrito um comentário sobre o Apocalipse, ou mesmo
um tratado escatológico específico, Calvino entendia ser fundamental “meditar
na vida futura”. Porém, não como um modo de alimentar a curiosidade ou a
especulação das pessoas, e sim como um modo de reconhecer a bondade de
Deus e a grandiosidade do evangelho.
A meditação da vida futura para Calvino é algo que se ancora na situação
presente de tribulação. Nesse ponto, há um complexo pensamento desenvolvido
pelo reformador que explica a própria existência da tribulação e dos sofri-
mentos da vida presente. Segundo Calvino, Deus permite a tribulação na vida
presente para que aprendamos a desprezá-la, a fim de que sejamos despertados

16 CALVIN, John. Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians,
and Thessalonians. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2010, p. 327.
17 Ibid.
18 Ibid., p. 329.
19 Ibid., p. 333.

89
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

a considerar e valorizar a vida futura: “Com qualquer gênero de tribulação,


porém, que sejamos premidos, é preciso levar sempre em conta este fim: que
nos acostumemos ao menosprezo da presente vida e daí sejamos despertados
à meditação da vida futura”.20 Essa é a primeira e mais importante declaração
de Calvino sobre escatologia. Ou seja, nós só seremos despertados a meditar
na vida futura se aprendermos a desprezar a vida presente. É a certeza da
existência da vida futura que nos torna diferentes dos animais:

Pois nos envergonhamos de não superar em nada aos animais irracionais cuja
condição em nada seria inferior à nossa, a não ser que nos restasse a esperança
da eternidade após a morte. Com efeito, se examinares os planos, os esforços,
os feitos de cada um, outra coisa aí não verás senão terra.21

A razão das tribulações é descrita em linguagem impressionante:

Portanto, para que não se prometam profunda e segura paz nesta vida, ele per-
mite que sejam frequentemente inquietados e molestados ou por guerras, ou por
tumultos, ou por assaltos, ou por outros malefícios. Para que não anelem com
demasiada avidez às riquezas aleatórias e instáveis, ou se arrimem naquelas que
possuem, ora pelo exílio, ora pela infertilidade do solo, ora pelo fogo, ora por
outros modos, os reduzem à pobreza, ou pelo menos os mantém em condição
modesta. Para que não se deliciem em demasiados afagos nos deleites conjugais,
ou faz com que sejam atribulados pela perversidade das esposas, ou os humilha
com uma prole má, ou os aflige com a perda desses membros da família. Pois
se é mais indulgente com eles, em todas essas coisas, contudo, para que não se
entumeçam de vanglória, nem borbulhem de confiança pessoal, lhes põe diante
dos olhos, através de enfermidades e perigos, quão instáveis são e aleatórios
todos e quaisquer bens que estão expostos à mortalidade.22

Ao estilo que soa o mais pessimista possível com relação a esta vida e
suas alegrias, Calvino assevera:

Portanto, afinal, fruímos adequadamente proveito da disciplina da cruz quando


aprendemos que esta vida, quando é estimada em si mesma, é inquieta, turbu-
lenta, de inúmeras maneiras miserável, em nenhum aspecto absolutamente feliz;
que todas as coisas que são contadas por bênçãos são incertas, inconstantes,
fúteis e viciadas de muitos e mesclados males; e disso, ao mesmo tempo, con-
cluímos que aqui nada se deve buscar ou esperar senão luta; que nossos olhos
devem estar voltados para o céu, quando pensamos acerca da coroa que nos está
reservada. Assim, pois, importa que nunca nosso ânimo se eleve seriamente à

20 CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Edição Clássica. 4 vols. São Paulo: Cultura
Cristã, 2006, 3.9.1.
21 Ibid.
22 Ibid.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

aspiração e à meditação da vida futura, a não ser que esteja antes imbuído de
menosprezo da presente vida.23

Ao mesmo tempo, paradoxalmente, o desprezo da vida presente para


Calvino não é, nem pode ser, uma ingratidão contra Deus. Aqui entendemos
que para o reformador é a grandiosidade da vida futura que torna a presente
desprezível:

Mas de fato os fiéis se acostumam ao desprezo da presente vida, de modo que


nem lhe gera ódio nem ingratidão para com Deus. Com efeito, esta vida, por
mais que seja saturada de infinitas misérias, contudo, é merecidamente contada
entre as bênçãos de Deus que não se deve desprezar.24

O ponto específico que Calvino está expondo fica claro quando ele de-
clara: “Quando se chega a esta comparação, então de fato aquela pode não
apenas ser tranquilamente negligenciada, mas diante desta pode ser totalmente
desprezada e desdenhada”.25
A fim de que não reste dúvida de que ele não está falando de um desprezo
ingrato da vida presente, mas em razão da necessidade da comparação que há
com a vida futura, na qual a presente se torna desprezível, Calvino conclui:

Portanto, se a vida celestial for comparada à terrena, não há dúvida de que seja
incontestavelmente não apenas desprezível, mas até mesmo digna de ser calcada
aos pés. Por certo que nunca deve ser tida em ódio, senão até onde ela nos man-
tém sujeitos ao pecado; aliás, esse ódio nem deve voltar-se propriamente contra
ela. Seja como for, convêm, entretanto, de tal modo devemos deixar-nos afetar
por ela, seja de enfado, seja de insatisfação, que, desejando-lhe o fim, também
estejamos predispostos a permanecer nela ao arbítrio de Deus, em termos tais
que de fato nosso enfado esteja longe de toda murmuração e impaciência.26

As implicações desse tipo de pensamento são efetivamente práticas. É


nesse sentido que escatologia para o reformador passa longe do caminho da
especulação e situa-se no contexto do viver a presente vida responsavelmente:

Mas, nenhum caminho é mais seguro e mais expedito do que aquele que nos
resulta do menosprezo da presente vida e da meditação da imortalidade celeste.
Ora, daqui seguem-se duas regras: primeira, que os que usam deste mundo sejam
dispostos exatamente como se dele não usassem; os que contraem matrimônio,
como se o não contraíssem; os que compram, como se não comprassem, como

23 Ibid.
24 Institutas 3.9.3.
25 Institutas 3.9.4.
26 Ibid.

91
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

preceitua Paulo [1Co 7.29-31]. Segunda, que saibam suportar a penúria não
menos serena e pacientemente, quando se desfruta de abundância moderada.
Aquele que prescreve que deves usar deste mundo como se dele não usasses,
aniquila não apenas a intemperança da gula na comida e na bebida, a modera-
da indulgência na mesa, na moradia, na indumentária, a ambição, a soberba, a
arrogância, o enfado, como também todo cuidado e predisposição que te afaste
ou impeça do pensamento da vida celeste e do zelo de nutrir a alma.27

3. A RESSURREIÇÃO, O MILÊNIO E O ESTADO INTERMEDIÁRIO


Embora não tenha reservado muito espaço em seus escritos para descrever
sobre assuntos relativos ao futuro, Calvino não os deixou sem atenção. Porém,
nesse ponto, do mesmo modo que em todos os outros da sua teologia, Calvino
não está interessado em discussões inúteis.
O aspecto central da escatologia para Calvino é a ressurreição. Ela é a
grande expectativa do crente. Calvino diz: “Por isso, eu disse que dos benefí-
cios de Cristo nenhum fruto perceberam, senão aqueles que alçam a ânimo à
ressurreição”.28 Essa é uma declaração poderosa. Na opinião do reformador,
se a ressurreição não é o grande anseio de uma pessoa, isso significa que ela
não “percebeu” nenhum fruto dos benefícios de Cristo. Portanto, a escatologia
para o reformador concentra-se em estudar e compreender a ressurreição.
Calvino, de fato, parece ter certo anseio de brevidade em escrever sobre
os eventos futuros, talvez porque não veja vantagens práticas em simplesmente
satisfazer a curiosidade das pessoas, ou talvez por entender que o conhecimento
e a certeza da ressurreição futura é a baliza para uma vida operante no presente,
tendo em vista os terríveis distúrbios do tempo presente:

E para que nesta corrida seu ânimo não desfaleça, o mesmo Paulo evoca por
companheiros a todas as criaturas [Rm 8.19]. Pois uma vez que se contemplam
por toda parte ruínas disformes, ele declara que tudo quanto há no céu e na terra
luta por sua renovação.29

A ressurreição do crente, entretanto, não pode ser vista dissociada da


ressurreição de Cristo. Por esse motivo, o reformador gasta tanto tempo, logo
após falar sobre a expectativa da ressurreição futura, reafirmando a certeza
da ressurreição passada de Jesus, pois ela é a garantia e o penhor da nossa
própria ressurreição.30 Portanto, o que parece preocupar mais a mente do re-
formador é que, sem a ressurreição, toda a estrutura do evangelho é demolida,
uma vez que “cairia por terra sua autoridade, não apenas em uma parte, mas

27 Institutas 3.10.4.
28 Institutas 3.25.2.
29 Institutas 3.25.2.
30 Institutas 3.25.3.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

em seu todo, a que abarca não só a adoção, mas também a efetuação de nossa
salvação”.31 Por isso, como já foi dito, não é possível dissociar escatologia de
soteriologia na obra do reformador de Genebra.
O próprio Calvino reconhece a brevidade de sua descrição:

Estou a restringir, com parcimônia, coisas que não só poderiam ser tratadas mais
extensamente, mas até merecem ser mais esplendidamente adornadas. E, no
entanto, confio que em minhas poucas palavras os leitores piedosos encontrem
bastante material que seja suficiente para que sua fé seja edificada. Portanto,
Cristo ressuscitou para que nos tivesse como companheiros da vida futura.32

Mesmo assim, Calvino não foge a uma série de discussões a respeito da


segunda vinda de Cristo, ou mesmo do estado intermediário. Quanto ao milênio,
ele claramente se posiciona contra a interpretação literal:

Deixo de considerar o fato de que já no tempo de Paulo Satanás começou a


pervertê-la; mas, pouco depois, seguiram-se os quiliastas, que limitaram o reinado
de Cristo a mil anos. E, em verdade, a ficção desses é por demais pueril para
que tenha necessidade de refutação ou seja ela digna. Tampouco Apocalipse lhes
empresta suporte, do qual certamente tiraram pretexto para seu erro, quando no
número milenário [Ap 20.4] não se trata da eterna bem-aventurança da Igreja,
mas apenas de agitações várias que aguardavam a Igreja a militar na terra. Além
disso, toda a Escritura proclama que jamais haverá fim para a bem-aventurança
dos eleitos, nem para suplício dos réprobos [Mt 25.41, 46].33

A declaração, é verdade, não nos permite entender exatamente qual era


a interpretação de Calvino sobre Apocalipse 20.4, mas é bem evidente que
ele não aceitava a ideia de um reino literal de mil anos, pelo simples fato de
que entendia que o reino de Cristo não podia ter fim. Calvino não esperava
uma melhora gradual deste mundo, como alguns acreditam, antes entendia
que perseguição e apostasia estão na rota deste mundo até o fim. Comentando
2Tessaloniscenses 2, que menciona a apostasia como condição sine qua non
para a vinda de Cristo, Calvino diz: “Este discurso inteiramente correspon-
de com o que Cristo sustentou na presença de seus discípulos, quando eles
perguntaram a respeito do fim do mundo. Pois ele exorta-os a se prepararem
para enfrentar duros conflitos (Mt 24.6)”. Assim, Calvino conclui que Paulo
“igualmente declara que os crentes precisam enfrentar combate por um longo
período, antes de triunfar”.34 Calvino rejeita a interpretação de que a queda

31 Ibid.
32 Ibid.
33 Institutas 3.25.5.
34 CALVIN, Commentaries on the Epistles of Paul the Apostle to the Philippians, Colossians, and
Thessalonians, p. 325.

93
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

do Império Romano seria a causa dessa apostasia,35 e igualmente se recusa a


aceitar que seja algo localizado: “Paulo, entretanto, emprega o termo apostasia
para significar um terrível abandono de Deus, e que não parte de um ou poucos
indivíduos, mas como algo que se espalha amplamente através de um grande
número de pessoas”.36 Por outro lado, Calvino é extremamente otimista no que
diz respeito ao avanço do evangelho em todo o mundo. Podemos dizer que ele
via o progresso do evangelho, mas não o progresso do mundo.
Quanto ao estado intermediário e à situação das almas após a morte,
Calvino relutantemente entra na discussão com um pouco mais de vigor, pois
reage fortemente à ideia de que a alma não sobrevive independente do corpo
após a morte:

De modo bem diferente, a Escritura compara o corpo a uma habitação da qual


diz migrarmos quando morremos, porquanto nos avalia em função desse ele-
mento, o qual nos distingue dos animais brutos. Assim Pedro, próximo à morte,
diz haver chegado o tempo em que entrega seu tabernáculo [2Pe 1.14]. Paulo,
ademais, falando acerca dos fiéis, depois de dizer que “temos nos céus um edi-
fício, quando nos for demolida a morada terrestre” [2Co 5.1], acrescenta que
“peregrinamos longe do Senhor enquanto permanecermos no corpo” [2Co 5.6];
mas, “desejamos antes deixar este corpo, para habitar com o Senhor” [2Co 5.8].
A não ser que as almas fossem sobreviventes aos corpos, o que estaria presente
com Deus depois de haver separado do corpo? O Apóstolo, porém, remove
toda dúvida quando ensina que fomos reunidos “aos espíritos dos justos” [Hb
12.23], palavras estas que nos fazem entender que somos associados aos santos
patriarcas, os quais, ainda que mortos, cultivam conosco a mesma piedade, de
modo que não podemos ser membros de Cristo, a não ser que nos unamos com
eles. Também, a menos que, despojadas dos corpos, retivessem as almas sua
essência e fossem capazes da bem-aventurada glória, Cristo não teria dito ao
ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso” [Lc 23.43]. Estribados em testemu-
nhos tão claros, não duvidemos que, segundo o exemplo de Cristo [Lc 23.46],
em morrendo, recomendamos nossas almas a Deus; ou, segundo o exemplo de
Estêvão, as confia à guarda de Cristo [At 7.59] que, não sem motivo, é chamado
o fiel Pastor e Bispo delas [1Pe 2.25].37

Calvino defende que as almas dos salvos estão com Deus após a morte,
desfrutando das benesses preparadas para elas. No entanto, isso não significa
que Calvino tenha uma posição inegociável a respeito do lugar onde as almas
dos crentes descansam, nem acredita que seja possível definir isso com total
precisão:

35 Ibid., p. 325-326.
36 Ibid., p. 326.
37 Institutas 3.25.6.

94
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

Entretanto, inquirir de seu estado intermediário, com demasia curiosidade, não


é lícito, nem convém. Muitos se atormentam em demasia, disputando que lugar
ocupam as almas nesse estado e se porventura já desfrutam ou não da glória
celestial. Com efeito, é estulto e temerário indagar de causas desconhecidas
mais profundamente do que Deus nos permita saber. A Escritura não avança
além de dizer que Cristo está presente com elas e as recebe no Paraíso, para
que desfrutem de consolação, e que as almas dos réprobos, porém, sofrem tor-
mentos segundo seu merecimento. Que doutor ou mestre, agora, nos revelará
o que Deus ocultou? Quanto ao lugar, a questão não é menos imprópria e fútil,
quando sabemos que a alma não tem essa dimensão que tem o corpo. Que o
bem-aventurado congresso dos santos espíritos é chamado o seio de Abraão
[Lc 16.22], abundante penhor nos é de sermos, nesta peregrinação, acolhidos
pelo pai comum dos fiéis, para que partilhe conosco o fruto de sua fé.38

Em outro lugar das Institutas ele voltaria a afirmar que definir o lugar
exato das almas, ou seja, se estão no céu com Deus, ou em algum outro
lugar também com Deus, não era um assunto central da fé cristã, nem devia
ser causa de divisões:

Há outros pontos em que não concordam todas as igrejas e, contudo, não rompem
a união da igreja. Assim, por exemplo, se uma igreja sustém que as almas são
transportadas ao céu no momento de separar-se de seus corpos, e outra, sem se
atrever a determinar o lugar, diz simplesmente que vivem em Deus, quebrariam
estas igrejas entre si o amor e o vínculo da união, se esta diversidade de opinião
não fosse por polêmica ou por obstinação?39

A melhor explicação que ele oferece do estado intermediário é a seguinte:

Enquanto isso, uma vez que a Escritura por toda parte nos ordena que depen-
damos da expectativa da vinda de Cristo e que prorroga a coroa de glória até
esse momento, estejamos contentes com estes limites divinamente prescritos:
uma vez desincumbidas de sua militância, as almas dos piedosos passam para
o bem-aventurado descanso, onde, com feliz alegria, aguardam desfrutar da
glória prometida, e assim todas as coisas sejam tidas em suspenso todas até que
Cristo apareça como Redentor. Os réprobos, porém, não há dúvida de que têm a
mesma sorte que é prescrita a Judas e aos diabos, a saber, são mantidos atados
por cadeias, até que sejam arrastados ao suplício a que foram destinados [Jd 6].40

4. AS LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM
O mais próximo que Calvino chega de algum tipo de especulação é no
que tange a definir a natureza do corpo ressuscitado, porém, ainda assim, con-

38 Ibid.
39 Institutas 4.1.12.
40 Institutas 3.25.6.

95
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

tidamente ele evita excessos, prendendo-se firmemente ao que Paulo ensinou


em 1Coríntios 15:

Resta agora tratar brevemente do modo da ressurreição. Assim falo porque,


chamando-o um mistério, Paulo nos exorta à sobriedade, para que freemos o
excesso de mais livre e mais sutilmente especular. Em primeiro lugar, cumpre-
-nos sustentar o que já dissemos: que, no que tange à substância, haveremos de
ressuscitar na mesma carne que possuímos, mas a qualidade haverá de ser outra;
assim como, quando a mesma carne de Cristo que foi oferecida como sacrifício
ressurgiu, no entanto excedeu em outros dotes, como se fosse completamente
outra, o que Paulo mostra com exemplos familiares [1Co 15.39]. Ora, assim
como a substância da carne humana e da animal é a mesma [1Co 15.39], porém
não a qualidade; e como a matéria de todas as estrelas é a mesma, porém diversa
a luminosidade [1Co 15.41], assim, embora haveremos de ter a substância do
corpo, ele ensina que haverá de sofrer mudança [1Co 15.51, 52], de modo que a
condição lhe seja muito mais eminente. Portanto, para que sejamos ressuscitados,
o corpo corruptível não perecerá, nem se desvanecerá, mas, deposta a corrupção,
se revestirá da incorrupção [1Co 15.53, 54]. E como Deus tem a sua disposição
todos os elementos, nenhuma dificuldade poderá impedir que ordene à terra, às
águas e ao fogo que devolvam o que parecia haver consumido. Assim também
testifica Isaías, ainda que em linguagem figurativa: “Eis que o Senhor sairá de
seu lugar para que visite a iniqüidade da terra, e a terra porá a descoberto seu
sangue, nem mais ocultará seus mortos” [Is 26.21].41

Portanto, continuidade e descontinuidade estarão presentes no mundo


por vir em relação a este mundo.
Explicar como será a felicidade no mundo vindouro é algo que Calvino
reconhece ser impossível. Nesse ponto, porém, provavelmente Calvino fez
a mais importante e relevante contribuição para a compreensão do gênero
apocalíptico e, por sua vez, para a própria escatologia, tanto do Antigo quanto
do Novo Testamento. Na citação acima, ele já mencionou que Isaías usou
“linguagem figurada”. É um princípio bem conhecido de Calvino a questão
da ideia da “acomodação” divina à linguagem e percepção humanas em todo
o processo da revelação.42 E isso é ainda mais destacável ao tratar dos assuntos
relativos ao mundo vindouro:

41 Institutas, 3.25.8.
42 Segundo Alister McGrath, Calvino desenvolveu, no século 16, uma teoria incrivelmente sofistica-
da sobre a natureza e a função da linguagem humana. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã,
2004, p. 154. Para Calvino, quando Deus fala, “ele se acomoda à nossa capacidade”. 1Coríntios. Trad.
Valter Graciano Martins. São Bernardo do Campo, SP: Edições Parákletos, 1996, p. 82 (1Co 2.7). Nas
Escrituras, segundo Calvino, Deus se revela por meio de palavras. Essas palavras humanas conseguem
falar algo sobre Deus, mas são limitadas. Aqui está uma das grandes contribuições de Calvino para o
pensamento cristão: o princípio da acomodação. Ou seja, a palavra divina adapta-se ou acomoda-se à
capacidade humana, para suprir as necessidades da situação. Em outras palavras, Deus se retrata de uma
forma que o homem tinha condições de compreender. LIMA, Leandro de. O futuro do calvinismo. São
Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 183.

96
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 85-98

Mas então, uma vez, finalmente, cumprida a profecia quanto à morte ser tragada
pela vitória [Is 25.8; Os 13.14; 1Co 15.54, 55], tenhamos sempre em mente
a felicidade eterna que é propósito de nossa ressurreição, de cuja excelência,
quanto as línguas humanas pudessem proclamar, seria apenas uma parte in-
significante do que se merece. Ora, por mais que seja verdadeiramente o que
ouvimos, de que o reino de Deus haverá de ser cheio de esplendor, de alegria, de
felicidade, de glória, no entanto, aquelas coisas que se enumeram, permanecem
mui remotas de nosso senso e como que envoltas em obscuridade, até que tiver
chegado aquele dia em que ele mesmo haverá de exibir-nos sua glória para ser
contemplada face a face [1Co 13.12]. Sabemos que somos filhos de Deus”, diz
João, “mas, isso ainda não se fez manifesto. Quando, porém, formos semelhantes
a ele, então o veremos tal qual ele é” [1Jo 3.2]. Por isso é que os profetas, não
podendo exprimir em suas próprias palavras aquela bem-aventurança espiri-
tual, como que simplesmente a delinearam sob a forma das coisas corpóreas.43

O reformador de Genebra, portanto, não busca interpretação literal nos


textos que falam do mundo vindouro; antes, entende que a limitação da lingua-
gem presente nos impede de descrever e de compreender o mundo vindouro,
e isso serve de alerta contra qualquer tipo de especulação nociva:

E, quando tivermos avançado bastante nesta meditação, no entanto reconhece-


remos que, se a concepção de nossa mente for comparada com a sublimidade
deste mistério, ainda nós ficaremos nas raízes mais inferiores. Portanto, de-
vemos, neste aspecto, curvar-nos com mais sobriedade, para que, esquecidos
de nossa própria limitação, pelo que com mais audácia subamos ao alto, o
fulgor da glória celestial não nos trague. Sentimos também quão desmesurado
é nosso desejo de saber mais do que é lícito, do quê jorram incessantemente
questões não apenas frívolas, mas até mesmo nocivas. Chamo frívolas aquelas
das quais não se pode tirar nenhum proveito. Mas, este segundo tipo é pior,
porque os que se entregam a elas se enredilham em especulações perniciosas,
razão por que as chamo nocivas.44

Ele descreve sua própria postura particular quanto a esse assunto com as
seguintes palavras:

Quanto a mim respeita, não só pessoalmente me contenho de investigação su-


pérflua de coisas inúteis, mas ainda sou de parecer que me devo acautelar para
que não fomente a leviandade de outros, respondendo a questões como essas.
Homens famintos de vão conhecimento indagam quão grande distância existe
entre profetas e apóstolos; por outro lado, quão grande a distância entre após-
tolos e mártires; de quantos graus diferirão as virgens das mulheres casadas,
enfim, nenhum canto do céu deixam sem revolver em seu perscrutar.45

43 Institutas, 3.25.10 (destaque nosso).


44 Ibid.
45 Institutas, 3.25.11.

97
LEANDRO LIMA, O PENSAMENTO ESCATOLÓGICO DE CALVINO

A conclusão, portanto, é límpida: “que este nos seja o caminho mais


curto: nos contentemos com o espelho e o enigma, até que contemplemos face
a face [1Co 13.12]”.46

CONCLUSÃO
Vemos, portanto, em Calvino uma escatologia sóbria, inteiramente a
serviço da vida presente, distanciada de especulações, despreocupada em res-
ponder a todas as curiosidades dos homens, focada na ressurreição de Cristo
e intimamente conectada com os conceitos soteriológicos desenvolvidos no
período da Reforma. A linguagem e a concepção da mente humana nos impedem
de entender plenamente o futuro e suas implicações, mas isso não significa
que meditar sobre a vida futura seja algo inútil e infrutífero. Ao contrário, é
uma tarefa sublime e necessária, desde que nos contentemos com o espelho
e aprendamos a desprezar coerentemente a presente vida.

ABSTRACT
Since Calvin did not write a commentary on the book of Revelation, there
is a tendency to believe that he did not care much about eschatology or that he
felt unable to discuss the subject. This article demonstrates that such view can be
wrong for several reasons, such as how Calvin in fact understood eschatology,
his concern to avoid speculations, and his consciousness of the limitations of
human language to describe the world to come. Departing from a contextual
analysis of the Genevan reformer’s works, the article tries to highlight that
there is an unbreakable connection between eschatology and soteriology in
the work of the reformers, especially in Calvin. Despite his constant concern
to avoid speculations, he did not evade the debate around several topics that
he considered essential in order to maintain Reformed doctrine, particularly
concerning resurrection and the intermediate state.

KEYWORDS
Calvin; Eschatology; Revelation; Theory of accommodation; Resurrection.

46 Ibid.

98
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

A Hermenêutica Cristotélica de João Calvino


João Paulo Thomaz de Aquino*

RESUMO
Visando convencer intérpretes e pregadores de um modo específico de
encontrar Cristo na leitura do Antigo Testamento, o presente artigo defende
que a maneira como Calvino interpreta o Antigo Testamento é adequadamente
descrita pelo termo “cristotélica”, no sentido de que ele, em contraste com
Erasmo e Lutero, encontrava Cristo no Antigo Testamento com base em uma
teologia bíblica saudável que pressupunha a unidade dos testamentos.

PALAVRAS-CHAVE
Hermenêutica; Cristocêntrica; Cristológica; Cristotélica; Calvino; Lutero;
Erasmo.

INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos tem-se falado bastante sobre pregação cristocêntrica.1
Livros, artigos e palestras corretamente procuram convencer os pregadores
de que Jesus Cristo tem que ser o assunto central e o alvo de toda pregação

* Mestre em Antigo Testamento (CPAJ, 2007) e Novo Testamento (Calvin Seminary, 2009),
doutor em Ministério (CPAJ, 2014) e doutorando em Novo Testamento pela Trinity International Uni-
versity. Professor de Novo Testamento no CPAJ. Editor dos websites issoegrego.com.br e yvaga.com.
br. Agradeço a graciosa leitura e revisão feitas pelo amigo Dr. Christian Medeiros, o que evidentemente
não o torna responsável pelos meus equívocos.
1 LAWSON, Steven J. “The Kind of Preaching God Blesses”. Eugene, OR: Harvest House
Publishers, 2013; CARDOSO, Dario de Araújo. Uma abordagem cristocêntrica para os sermões bio-
gráficos. Fides Reformata 15-1 (2010): 57–79; GREIDANUS, Sidney. Pregando Cristo a partir do
Antigo Testamento. São Paulo: Cultura Cristã, 2006; CLOWNEY, Edmund P. Preaching Christ in All of
Scripture. Wheaton, IL: Crossway Books, 2003; CHAPELL, Bryan. Pregação cristocêntrica: restaurando
o sermão expositivo – um guia prático e teológico para a pregação bíblica. São Paulo: Cultura Cristã,
2002; GOLDSWORTHY, Graeme. Preaching the Whole Bible as Christian Scripture: The Application
of Biblical Theology to Expository Preaching. Grand Rapids: Eerdmans, 2000.

99
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

bíblica, não somente do Novo, mas também do Antigo Testamento. É eviden-


te, no entanto, que uma pregação cristocêntrica somente é possível com uma
hermenêutica cristocêntrica. Embora esses assuntos estejam sempre em pauta,
o advento do movimento denominado Interpretação Teológica da Escritura
(Theological Interpretation of Scripture, TIS) com sua ênfase na recuperação da
exegese pré-crítica, tem contribuído ainda mais para a promoção de discussões
relacionadas ao papel de Cristo na hermenêutica.2
O presente artigo pretende contribuir com essas discussões, defendendo
de forma introdutória que a hermenêutica de João Calvino era “cristotélica”,
diferindo das hermenêuticas cristológica e cristocêntrica que caracterizavam
respectivamente Desidério Erasmo e Martinho Lutero.3 Visando defender
essa tese, serão apresentadas introduções brevíssimas ao papel de Cristo na
interpretação de Erasmo e Lutero, e a interpretação cristotélica de Calvino será
defendida como a mais teologicamente saudável.

1. A HERMENÊUTICA CRISTOLÓGICA DE ERASMO


A hermenêutica de Desidério Erasmo (1466-1536) foi influenciada pelos
pais da igreja, especialmente Orígenes de Alexandria (185-254), bem como pelo
seu amigo John Colet (1467-1519).4 Erasmo considera Jesus como o centro de

2 BARTHOLOMEW, Craig G.; EMERSON, Matthew Y. A Manifesto for Theological Interpreta-


tion. Grand Rapids: Baker Academic, 2016; KURUVILLA, Abraham. Privilege the Text! A Theological
Hermeneutic for Preaching. Chicago: Moody, 2013; GOLDSWORTHY, Graeme. Christ-Centred Bibli-
cal Theology: Hermeneutical Foundations and Principles. Nottingham: Apollos, 2012; VANHOOZER,
Kevin J. The Drama of Doctrine: A Canonical-Linguistic Approach to Christian Theology. Louisville:
Westminster John Knox Press, 2005, p. 346s; CHAN, Mark L. Y. Christology from Within and Ahead:
Hermeneutics, Contingency and the Quest for Transcontextual Criteria in Christology. Leiden: Brill,
2001, p. 275s.
3 É evidente que os termos cristocêntrico, cristológico e cristotélico podem ser usados com
diferentes conotações e, de fato, têm sido. Deixaremos claro na sequência do artigo as diferenças que
atribuímos a cada um desses termos. Embora eu não tenha extraído a ideia dele, um dos primeiros
autores a utilizar o termo “cristotélico” foi Peter Enns em “Apostolic Hermeneutics and an Evangelical
Doctrine of Scripture : Moving beyond a Modernist”. Westminster Theological Journal 65 (2003). De sua
autoria, ver também: Inspiration and Incarnation: Evangelicals and the Problem of the Old Testament.
Grand Rapids: Baker Academic, 2015. Vanhoozer usa o termo cristotópico e Jeff Fisher, cristoscópico.
Ver VANHOOZER, The Drama of Doctrine: A Canonical-Linguistic Approach to Christian Theology,
p. 346; FISHER, Jeff. A Christoscopic Reading of Scripture: Johannes Oecolampadius on Hebrews.
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2016.
4 Os pontos principais da hermenêutica erasmiana podem ser assim listados: (1) deve-se ter um
coração puro; (2) deve-se aprender hebraico, grego, latim e formar-se nas disciplinas liberais, espe-
cialmente gramática e retórica; (3) o estudante deve perceber as complexidades dogmáticas dos vários
textos da Escritura e trazer esse todo multifacetado a Cristo como o centro; (4) deve-se praticar uma
exegese espiritual; (5) deve-se praticar esse trabalho com metodologia sã e não abusar da dialética.
Cf. CHANTRAINE, Georges G. “The Ration Veare Theologiae (1518)”. In: DEMOLEN, Richard L.
(Org.). Essays on the Works of Erasmus. New Haven: Yale University Press, 1978, 179-80. Ver outra
lista em DOCKERY, David S. “The Foundation of Reformation Hermeneutics: A Fresh Look at Eras-
mus”. In: BAUMAN, Michael; HALL, David (Orgs.). Evangelical Hermeneutics. Camp Hill, PA:

100
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

todas as coisas. “O conteúdo essencial da Sagrada Escritura é o próprio Cristo.


Parte da encarnação de Cristo é a sua incorporação na Escritura”.5 Esse último
aspecto levantado por Kohls é muito importante, pois faz com que Erasmo
não abandone a interpretação alegórica medieval, visto que, para ele, ao ler a
Escritura o intérprete está se encontrando com o próprio Cristo.6
Para Erasmo, encontramos nas Escrituras, especialmente nos evangelhos
e nas cartas, a verdadeira filosofia que ele denomina philosophia Christi.7 Essa
filosofia de Cristo, “um novo e maravilhoso tipo de filosofia”, é uma construção
de Erasmo que engloba a compreensão dele acerca da história de Cristo nar-
rada nos evangelhos, bem como o seu significado apresentado nas cartas (sua
obra).8 Hall não faz jus à riqueza do conceito quanto diz que a philosophia
Christi “não diz respeito a uma estrutura intelectual, mas a um relacionamento
vivo com Cristo”.9 Aldridge é mais fiel à complexidade do tema em Erasmo:

A philosophia Christi que Erasmo extrai como a mensagem do Novo Testamento


é uma filosofia daquilo que Erasmo sentia que deveria ser a religião. Ela tem
Cristo como o seu centro, mas os caminhos que levam ao centro são muitos.
Há a piedade, que Erasmo via como amor, simplicidade e pureza. Há o aspecto
racional que dá ao homem um lugar importante em alcançar esse objetivo. E,
então, há a concepção idealista de que a estrada para a filosofia de Cristo deve
passar pelas grandes ideias do classicismo. Em um sentido, todas essas estradas
levam para trás; para trás em direção ao Cristo simples dos evangelhos, para trás
em direção ao classicismo, e a estrada do conhecimento tem o seu movimento
para trás porque é nas fontes que adquirimos o nosso conhecimento.10

Christian Publications, 1995, p. 9-10. “A hermenêutica erasmiana é notoriamente difícil de se descrever


claramente, pois Erasmo está sempre olhando em duas direções ao mesmo tempo – tanto para a Palavra
ideal e perfeitamente expressiva, quanto para a multidão de palavras humanas imperfeitas apanhadas
no tumulto da história e da transmissão”. BARNETT, Mary Jane. “Erasmus and the Hermeneutics of
Linguistic Praxis”. Renaissance Quarterly 49 (1996), p. 542.
5 KOHLS, Ernst W. “The Principal Theological Thoughts in the Enchiridion Militis Christiani”.
In: DEMOLEN, Richard L. (Org.). Essays on the Works of Erasmus. New Haven: Yale University Press,
1978, p. 65.
6 “O coração do conceito de Escritura de Erasmo está exatamente onde ele diz que a presença
viva, real e salvífica de Cristo está – na preocupação centrada em Cristo pelo sensus spiritualis. Nessa
presença pessoal de Cristo na Escritura está a razão pela qual, para Erasmo, a preocupação última não
é uma questão de conhecimento, mas de encontrar salvação – o que qualquer cristão pode experimentar
diretamente por contato pessoal com a Escritura”. Ibid., p. 70.
7 ERASMUS, Desiderius. Enchiridion Militis Christiani. London: Methuen & Co., 1905, 10.
Disponível em: https://books.google.com/books?id=XfVMAAAAMAAJ&printsec=frontcover#v=one
page&q&f=false.erasmus.
8 Paraclesis 10/95.
9 HALL, B. “Erasmus: Biblical Scholar and Reformer”. In: DOREY, T. A. (Org.). Erasmus.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 1970, p. 106.
10 ALDRIDGE, John William. The Hermeneutic of Erasmus. Richmond: John Knox Press, 1966,
p. 40.

101
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

A philosophia Christi, portanto, engloba aspectos práticos e existenciais,


bem como aspectos ligados à história, exemplo e doutrina de Cristo e, a partir
desses, ao uso proveitoso de diversas fontes de conhecimento clássico. Tal
filosofia é, no entanto, um construto humano; é a filosofia que o humanista
Erasmo extraiu de suas leituras do Novo Testamento. Aldridge nos auxilia
novamente a compreender o problema quando afirma que Erasmo caminhou
para a criação de uma filosofia de Cristo em vez de uma teologia de Cristo.11
Chantraine mostra de maneira mais clara como esse método resulta em uma
leitura alegórica:

A fim de discernir a doutrina de Cristo na Escritura, deve-se descobrir mais do


que o sentido literal encontrado na narrativa, é necessário associar as palavras
com a pessoa que está falando e a história com o ato de expiação de Cristo. É
necessário, na verdade, considerar como essas palavras procedem da pessoa de
Cristo e como este está dentro de suas Palavras.12

Por causa de tal concepção da Escritura, Erasmo classificava os livros


bíblicos por ordem de importância, considerando sua centralidade em Cristo.
Assim, os evangelhos e as epístolas paulinas detinham o centro e o Antigo
Testamento estava à margem. Compier nos fornece um resumo proveitoso
dessa característica:

Um princípio hermenêutico fundamental emerge da doutrina cristocêntrica de


Erasmo sobre as Escrituras: para qualquer lugar que se olha em qualquer um
dos testamentos deve-se “fazer cuidadosa consideração do maravilhoso e har-
monioso ciclo [orbem] da história [fabulae] inteira de Cristo” (Ratio, 216/45).
Tudo na Bíblia visa apontar para Jesus, que é o centro e a chave hermenêutica da
Escritura. Assim, o que Erasmo chamou de scopus Christi, torna-se o princípio
organizador do todo, dando ao santo escrito a sua unidade.13

Pode-se, portanto, classificar a hermenêutica de Erasmo como uma


hermenêutica cristológica. Esse termo cabe bem para uma hermenêutica que
começa baseada em uma filosofia cuja origem e conteúdo tem Cristo como seu
centro, mas também lança mão de outras fontes de conhecimento.14 Embora a
denomine como cristocêntrica, a explicação de Wedel deixa ainda mais claro

11 Ibid., p. 41.
12 CHANTRAINE, “The ration veare theologiae (1518)”, p. 182.
13 COMPIER, Don H. “The Independent Pupil: Calvin’s Transformation of Erasmus’ Theological
Hermeneutics”. Westminster Theological Journal 54 (1992), p. 222.
14 “Para Erasmo, Cristo era o centro da Escritura, não, no entanto, como redentor que, hoje, nos
une a Deus, mas, em vez disso, como o grande exemplo do passado que nos instrui nas virtudes que
agradam a Deus”. RUNIA, Klaas. “The Hermeneutics of the Reformers”. Calvin Theological Journal
19 (1984), p. 128-129.

102
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

o motivo pelo qual escolhemos o termo cristológica para identificar a inter-


pretação do humanista de Roterdã: “A teologia de Erasmo é marcadamente
cristocêntrica; ela inclui a doutrina de satisfação, mas enfatiza ainda mais
Cristo como mestre e exemplo”.15

2. A HERMENÊUTICA CRISTOCÊNTRICA DE MARTINHO


LUTERO
A hermenêutica de Lutero pode ser chamada com justiça de cristocêntrica,
pois, para o reformador alemão, Cristo era realmente o centro de ambos os
testamentos.16 Jesus Cristo é o sensus literalis da Escritura.17
Comentando acerca do primeiro livro de Lutero sobre os salmos, que
reflete sua hermenêutica ainda não madura, Ebeling afirma: “Primeiro, Lute-
ro embasa a exegese cristológica do Saltério sobre seu caráter profético”.18
Lutero, no entanto, defende que esse significado profético surge do significado
histórico e também é parte do sentido literal do salmo, pois está de acordo com
a intenção profética do autor.19 Nessa fase, Lutero ainda usa a quadriga, mas
submete-a à importante distinção hermenêutica entre letra e espírito e faz com
que, ao mesmo tempo, Cristo seja a origem e o alvo do processo hermenêutico.20
A hermenêutica de Lutero é cristocêntrica, pois a sua teologia e concepção
acerca da Bíblia são cristocêntricas:

Para Lutero, a escritura tem autoridade última porque ela contém a palavra de
Deus, e, em particular o dom mais importante de Deus, o evangelho da justifi-
cação pela fé em Cristo. Ele é muito claro com relação ao conteúdo e propósito
do evangelho: ele comunica a obra salvífica da morte e ressurreição de Cristo
para a humanidade. Sua avaliação da escritura é assim altamente cristocêntrica

15 CHRIST-VON WEDEL, Christine. Erasmus of Rotterdam: Advocate of a New Christianity.


Toronto: University of Toronto Press, 2013, p. 1463.
16 “A questão principal é que o fundamento para a abordagem claramente cristocêntrica de Lutero
à Escritura é principalmente uma conclusão textual gerada por seu relato principalmente messiânico
da referente cristológica de ambos os testamentos, que, juntos, formam o ‘caráter da Escritura cristã’
como um todo”. MARSH, William M. Martin Luther on Reading the Bible as Christian Scripture:
The Messiah in Luther’s Biblical Hermeneutic and Theology. Eugene, OR: Pickwick Publications, 2017,
p. 123.
17 “O propósito desse estudo foi penetrar no coração do que é responsável em última instância
pela assim chamada visão “cristocêntrica” da Bíblia por Lutero. A tese defendida foi que Lutero afirma
que Cristo é o sensus literalis da Escritura primariamente devido à preocupação bíblica com a esperança
messiânica”. Ibid., p. 193.
18 EBELING, Gerhard. “The Beginnings of Luther’s Hermeneutics”. LQ 7 (1993), p. 454.
19 Ibid., p. 455.
20 Sobre letra x espírito em Lutero, ver: GLEASON, Randall C. “‘Letter’ and ‘Spirit’ in Luther’s
Hermeneutics”. Bibliotheca Sacra 157 (2000): 468-485. Ver também a distinção correlata de Lutero
entre lei e evangelho: FORDE, Gerhard O. “Law and Gospel in Luther’s Hermeneutic”. Interpretation
37 (1983): 240-252.

103
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

e evangelho-cêntrica: ele prioriza aquelas partes da Bíblia onde acredita que


Cristo é pregado mais claramente (como a epístola de Paulo aos Romanos) e
está disposto a omitir ou diminuir a importância de certas partes se elas não “te
apresentam Cristo”.21

Lei e Evangelho exercem um papel muito importante na hermenêutica


de Lutero e demonstram claramente a centralidade de Cristo. Comentando
Romanos 7.5-6, Lutero diz:

A real diferença entre a velha e a nova lei [leia-se: evangelho] é esta: a velha
lei diz àqueles que são orgulhosos por sua própria justiça: você deve ter Cristo
e seu Espírito; a nova lei diz àqueles que, humilhados, reconhecem sua total
carência de justiça e procuram a Cristo: Vejam, aqui está Cristo e seu Espírito.
Aqueles, portanto, que interpretam o evangelho como outra coisa em vez “boas
novas”, ainda não entenderam o evangelho. Precisamente isto deve ser dito
àqueles que transformaram o evangelho em lei, em vez de interpretá-lo como
graça e que colocam Cristo diante de nós como um Moisés.22

Vê-se na abordagem do reformador alemão que, para ele, tanto a lei


quanto o evangelho têm seu centro em Cristo: aquela apontando aos homens a
sua necessidade de Cristo, este apresentando-lhes o Senhor. Assim, o princípio
fundamental da hermenêutica de Lutero é o próprio Cristo. Lutero usa expres-
sões como “o todo da Escritura”, “o sol e a verdade da Escritura”, “o escopo
da Escritura” para se referir ao relacionamento entre Cristo e a Bíblia. Esse
aspecto da hermenêutica de Lutero foi o que lhe deu consciência da unidade
dos Testamentos: “Essa unidade [do Antigo e do Novo Testamentos] tem seu
fundamento no fato de que Jesus é o centro de toda a Escritura. Nessa conexão,
Lutero fez uso da figura do punctus mathematicus: Cristo, o centro do círculo,
ao redor do qual são colocados círculos concêntricos”.23
Portanto, há um grande avanço quando se comparara a hermenêutica de
Lutero à hermenêutica reinante na Idade Média: Lutero, em sua fase mais ma-
dura, lutou por um sentido único (literal) e batalhou contra as alegorias, ainda
que não tenha, na prática, conseguido desvencilhar-se completamente delas.
Há também uma importante mudança quando se compara Erasmo e Lutero em
suas hermenêuticas: enquanto a de Erasmo é cristológica, no sentido de que
começava com a filosofia de Cristo e relegava a segundo plano certas partes
da Bíblia, Lutero apresenta uma interpretação cristocêntrica das Escrituras, que

21 COX, Jillian E. “Martin Luther on the Living Word: Rethinking the Principle of Sola Scriptura”.
Pacifica (2017), p. 13.
22 LUTHER, Martin. Luther: Lectures in Romans. Ed. Wilhelm Pauck. Louisville, KY: Westminster/
John Knox Press, 1961, p. 199.
23 RUNIA, “The hermeneutics of the reformers”, p. 128-29.

104
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

tem a justificação e a redenção em Cristo como o tema e o centro de ambos


testamentos.24 No entanto, por vezes há um descuido exegético em Lutero;
no afã de encontrar Cristo, algumas passagens do Antigo Testamento não são
interpretadas de acordo com o seu contexto.25

3. A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO


João Calvino foi o principal exegeta da Reforma. Aqui, em vez de uma
exposição da interpretação de João Calvino, focaremos em mostrar como o re-
formador de Genebra encontrava Cristo em sua leitura do Antigo Testamento.26
Este artigo deu o nome de hermenêutica cristológica (Cristo + logos,
estudo de) à interpretação de Erasmo tendo em vista que o ponto inicial de sua
interpretação bíblica é um construto filosófico humano baseado na pessoa e
obra de Cristo. Para a interpretação de Lutero foi dado o nome de hermenêutica
cristocêntrica visto que ele pressupõe a presença de Cristo em qualquer texto
da Escritura e começa o processo hermenêutico visando encontrá-lo.27 Nas
próximas páginas será defendido que a interpretação bíblica de João Calvino
pode ser denominada cristotélica (Cristo + telos, fim, objetivo), visto que o
reformador francês faz uma exegese que respeita mais o contexto histórico do
Antigo Testamento, mas ao mesmo tempo mostra como cada texto específi-
co se relaciona com Jesus Cristo de acordo com a história da redenção.28 No
comentário de João 5.39, Calvino afirma:

24 Dockery contrasta as hermenêuticas de Lutero e Erasmo da seguinte forma: “A ênfase de Lutero


no aspecto cristológico da interpretação, que inclui o tema da justificação e redenção em Cristo, diferiu
do princípio cristológico de Erasmo, que focou nos ensinos de Jesus”. DOCKERY, “The Foundation of
Reformation Hermeneutics: A Fresh Look at Erasmus”, p. 70.
25 A visão aqui apresentada da interpretação de Lutero se coaduna com a de BORNKAMM,
Heinrich. Luther and the Old Testament. Minneapolis: Fortress Press, 1969. Marsh, por sua vez, afirma
que a hermenêutica de Lutero era mais próxima à de Calvino nesse quesito. Ver MARSH, Martin Luther
on Reading the Bible as Christian Scripture: The Messiah in Luthers Biblical Hermeneutic and Theology.
26 Para estudos sobre a hermenêutica de Calvino em geral ver: SILVA, Moisés. O argumento em
favor da hermenêutica calvinista. Fides Reformata 5-1 (2000): 1-17; MEISTER, Mauro. A exegese bíblica
em Calvino: princípios, método e legado. Fides Reformata 14-2 (2009): 115-27; COSTA, Hermisten.
Calvino de A a Z. São Paulo: Vida, 2006, p. 13-44; 147.
27 A seguinte citação de Alderi Matos apresenta a diferença entre as hermenêuticas de Calvino e
Lutero de forma bastante clara: “A interpretação cristológica da Escritura deve ser histórica bem como
teológica. Nesse aspecto, Calvino rompeu com a interpretação espiritual do passado e até mesmo com a
ideia de Lutero de ver ‘Cristo em toda a Escritura’. Para ele, Cristo era o cumprimento do Velho Testamento
e o tema do Novo Testamento, mas isso não significava que todo versículo necessariamente continha
alguma referência oculta a ele. A abordagem de Calvino é mais sutil: o intérprete deve relacionar cada
passagem da Escritura com Cristo, qualquer que seja o sentido primário da mesma”. MATOS, Alderi
Souza de. Calvino, o exegeta da Reforma. História da Igreja, n.d. Disponível em: http://cpaj.mackenzie.
br/historiadaigreja/pagina.php?id=302.
28
Para maiores detalhes da influência de Erasmo e Lutero na Hermenêutica de Calvino, ver:
TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin. Edinburgh: Scottish Academic Press, 1988.

105
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

Repetindo, somos instruídos por esta passagem que, se quisermos obter o co-
nhecimento de Cristo, devemos buscá-lo nas Escrituras, pois os que imaginam
qualquer coisa que acaso decidam acerca de Cristo, por fim nada terão dele senão
uma sombra fantasmagórica. Antes de tudo, devemos crer que Cristo não pode
ser propriamente conhecido de qualquer outra forma senão nas Escrituras; e se
esse é o caso, segue-se que devemos ler as Escrituras com o expresso propósito
de encontrar Cristo nelas.29

Hans-Joachim Kraus chama essa característica da interpretação de João


Calvino de “escopo de Cristo”:

A interpretação cristológica nos comentários de Calvino do Antigo Testamento


olham para o futuro para o cumprimento das promessas e profecias, e seus co-
mentários do Novo Testamento tem como fator determinante para a exegese um
movimento de volta a Cristo, movimento este sempre baseado na convicção de
que a claridade das Sagradas Escrituras está fundamentada somente em Cristo.30

Para esclarecer e exemplificar essa característica da hermenêutica de


Calvino, segue-se uma análise introdutória da mesma aplicada à lei, aos salmos
e aos profetas.

3.1 O princípio cristotélico aplicado à lei


A concepção calvinista da lei é bastante diferente daquela que encon-
tramos em Lutero. Para Lutero, a lei visa mostrar ao homem a sua condição
desesperadora e sua necessidade de salvação, e o evangelho é a resposta ao
anseio gerado pela lei. O conceito de Calvino é mais elaborado e profundo,
incluindo e extrapolando o de Lutero.31

29 CALVINO, João. O Evangelho Segundo João. São José dos Campos, SP: Fiel, 1998, p. 235-36.
Disponível em: http://www.ministeriofiel.com.br/bibliotecajoaocalvino. Embora grande demais para
aparecer no corpo do artigo, vale a pena ler o que Calvino diz mais à frente: “Mas a razão porque a
maioria dos homens é impedida de se beneficiar é que não tem do assunto nada mais que um vislumbre
superficial e displicente. Contudo, ele requer a máxima atenção, e por isso Cristo nos ordena a sondar
diligentemente este tesouro oculto”.
30 KRAUS, Hans-Joachim. “Calvin’s Exegetical Principles”. Interpretation 31 (1977): 17-18.
31 “Oposto à perspectiva radical de Lutero, que claramente separava a lei e o evangelho, Calvino
tentou explicar a dialética entre lei e evangelho apontando para a natureza normativa da própria lei,
que não é diferente do evangelho circa essentiam. Como um cristão que experimentou uma conversão
repentina pela qual o seu coração se tornou ensinável para a verdade de Deus, Calvino concluiu que o
que mudou desde a queda não foi a verdade ou ensino da lei em si, mas a condição e qualidade da hu-
manidade... Portanto, com a vinda de Cristo como mediador, a revelação da lei se tornou perfeita como
uma regra de vida (regula vivendi) e, ainda mais, como uma regra de vivificação (regula vivificandi).
Calvino afirma claramente que Cristo, como a substância da Lei, cumpriu a lei. MOON, Byung-Ho.
Christ the Mediator of the Law: Calvin’s Christological Understanding of the Law as the Rule of Living
and Life-Giving. Milton Keynes, UK: Paternoster, 2006, p. 82.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

Para Calvino, o Pentateuco se divide em narrativa e doutrina. A narrativa


tem por objetivo demonstrar o poder e a bondade de Deus e também, através
dos exemplos de punição, inspirar reverência nos corações.32 A doutrina é
dividida por Calvino em: 1) Prefácio; 2) Os Dez Mandamentos (o cerne), que
são a vontade de Deus para todos os crentes, vontade esta que só pode ser levada
a cabo pela graça; 3) Os suplementos: sendo os dos quatro primeiros manda-
mentos (a primeira tábua) as leis cerimoniais e os dos últimos mandamentos
o que chamamos de leis civis; e finalmente 4) O fim e uso da lei:

Mas quando Deus nos atrai de forma tão gentil e graciosa pelas suas promessas,
e além disso nos persegue com os trovões de sua maldição, é parcialmente para
tornar-nos inescusáveis, e, parcialmente para nos deixar despojados de toda
confiança em nossa própria justiça, de modo que podemos aprender a abraçar
seu pacto da Graça, e procurar refúgio em Cristo, que é o fim da lei. Esta é a
intenção das Promessas nas quais ele se declara misericordioso, desde que há
pronto perdão para o pecador, e quando ele oferece o Espírito de Regeneração.
Disto depende aquela sentença de São Paulo de que Cristo é o fim da Lei.33

Isso se coaduna com o que o reformador diz nas Institutas:

Deus jamais se mostrou propício aos patriarcas do Antigo Testamento, nem


jamais lhes deu esperança alguma de graça e de favor sem propor-lhes um
Mediador. Não falo dos sacrifícios da Lei, com os quais clara e evidentemente
foi ensinado aos fiéis que não deviam buscar salvação mais que na expiação
que só Jesus tem realizado. Somente quero dizer que a felicidade e o próspero
estado que Deus tem prometido à sua Igreja está fundado sempre na pessoa de
Jesus Cristo. Porque ainda que Deus tenha compreendido em seu pacto a todos
os descendentes de Abraão, sem dúvida com toda razão conclui são Paulo que,
propriamente falando, é Jesus Cristo aquela semente na qual haviam de ser
benditas todas as gentes (Gl 3.16); pois sabemos que nem todos os descendentes
de Abraão segundo a carne são considerados linhagem sua (2.6.2).

Ainda nas Institutas, Livro II, capítulo 6, Calvino demonstra que a sal-
vação, o consolo e a esperança nunca deixaram de estar em Cristo, mesmo no
Antigo Testamento. O sétimo capítulo, dedicado à lei, começa assim:

A religião mosaica, fundada sobre o pacto da graça, apontava para Jesus Cristo.
De tudo o que temos exposto se deduz muito facilmente que a Lei não foi dada

32 CALVIN, John. Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a
Harmony. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1852, XV. Disponível em: https://books.google.com/
books?id= uYk9AAAAYAAJ.
33 Ibid., XVIII. Mais à frente, no comentário, Calvino afirma: “Além disso, devemos notar que
as gerações do povo antigo foram trazidas a um fim pela vinda de Cristo, porque as sombras da Lei
terminaram quando o estado da Igreja foi renovado e os gentios foram unidos no mesmo corpo” (p. 231).

107
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

quase quatrocentos anos depois da morte de Abraão para afastar de Cristo o


povo eleito, mas sim precisamente para [1] ter os ânimos em suspense até que
viesse, [2] e para incitá-los a um maior desejo de sua vinda, e [3] para animá-
-los nesta esperança para que não desmaiem com o longo tempo de sua espera
(Institutas 2.7.1).

Cristo é a razão de ser de cada um dos três motivos elencados por Calvino.
O princípio cristotélico também fica claro naquilo que Calvino chama os três usos
da lei moral: 1) fazer conhecer a cada um a sua própria injustiça; 2) fazer temer
pela pena aqueles que ficam impassíveis sem uso de força; 3) ensinar a vontade
de Deus aos que anelam conhecê-la (cf. Institutas 2.7.6-12). Para Calvino, tanto
a lei cerimonial quanto a lei moral têm Cristo como sua razão de ser e objetivo.
No comentário de Romanos 10.4, Calvino confirma essa concepção
dizendo que

a lei fora promulgada para guiar-nos pela mão a outra justiça. Aliás, cada dou-
trina da lei, cada mandamento, cada promessa, sempre aponta para Cristo [...]
Esta notável passagem declara que a lei, em todas as suas partes, aponta para
Cristo, e, portanto, ninguém será capaz de entendê-la corretamente, a não ser
que se esforce constantemente por atingir este alvo.34

É comum em sua harmonia da lei ver Calvino explicando textos e situa-


ções com base naquilo que o Novo Testamento explica sobre tais situações
ou personagens. Por exemplo, Calvino usa Hebreus 11.24-26 para explicar
porque Moisés deixou a corte egípcia, tendo preferido o opróbrio de Cristo.35
O reformador francês também cita 1 Coríntios 10.4 em sua explicação de que
há uma íntima relação entre o anjo do Senhor que guiava o povo no deserto e
o próprio Senhor Jesus e interpreta o maná como sendo um tipo de Cristo.36
Ao mesmo tempo, por vezes Calvino critica uma interpretação que “salta” para
Cristo sem o devido respeito exegético. Esse é o caso do seu comentário sobre
Êxodo 4.13 (“Ah! Senhor! Envia aquele que hás de enviar, menos a mim”):

Aqueles que interpretam essa passagem como aludindo a Cristo, como se


Moisés estivesse dizendo que o poder dele era necessário para realizar tal tarefa
tão difícil, introduzem um sentido forçado e implausível que é contradito pelo
contexto, pois Deus não teria ficado tão irado por tal oração.37

34 CALVINO, João. Romanos. São José dos Campos, SP: Fiel, 2014, p. 358. Disponível em: www.
ministeriofiel. com.br/bibliotecajoaocalvino.
35 CALVIN, Commentaries on the Four Last Books of Moses Arranged in the Form of a Harmony,
p. 46.
36 Ibid., p. 61, 270.
37 Ibid., p. 93.

108
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

A lei aponta para Cristo e Cristo, em certo sentido, nos aponta para a lei
como maneira de viver. Veja o comentário de Moon:

Como uma regra de vida justa e piedosa, a lei nos torna conscientes de nossa
capacidade limitada e nos faz entender a necessidade de um mediador. Além
disso, a lei revela a promessa da vinda de Cristo como o Mediador. Da mesma
forma, Cristo media a lei como o Reconciliador para satisfazer suas exigências,
como Intercessor para restabelecer a comunhão entre Deus e nós e eliminando
a sua maldição, e como Mestre ele revela a sua verdadeira natureza.38

Muito mais poderia ser dito e a exegese calvinista da lei é um campo


riquíssimo que merece estudos posteriores, mas fica claro pelo apresentado
acima que Calvino não lia a lei com o objetivo primário de encontrar Cristo,
mas interpretava os textos em seus termos e depois os relacionava com Cristo
da maneira adequada àquele texto específico. Há uma estrutura de pensamento
que permeia a reflexão de Calvino em sua leitura do Antigo Testamento, que
inclui conceitos como a salvação dos pecadores sob a velha e a nova aliança
acontece por meio da fé no Mediador, a lei veio como uma adição para guiar
o povo, a revelação é progressiva, o Antigo Testamento apresenta a sombra
e o Novo apresenta o desenho, a lei é a tutora que conduz a Cristo e o povo de
Israel é a igreja em diferente forma.39 Há, portanto, uma teologia centrada em
Cristo por meio da qual Calvino lê o Antigo Testamento.
Quando olhamos a profecia, não há muita distinção daquilo que vimos
até aqui, pois para Calvino os profetas são principalmente expositores da lei:

É costumeiramente feito um grande número de declarações e dissertações sobre


o ofício dos Profetas. Mas, na minha opinião, o caminho mais curto para tratar
deste assunto é relacionar os Profetas à Lei, de onde eles derivam sua doutrina
como um rio de uma fonte.40

Vejamos, então, como o princípio cristotélico de interpretação se apre-


senta nos profetas.

38 MOON, Christ the Mediator of the Law: Calvin’s Christological Understanding of the Law as
the Rule of Living and Life-Giving, p. 119.
39 PARKER, Thomas H. L. Calvin’s Old Testament Commentaries. Edinburgh: T. and T. Clark,
1986, p. 45s; 85s.
40 CALVIN, John. Commentary on Isaiah. Edinburgh: Calvin Translation Society, n.d., XXVI.
Disponível em: https://books.google.com/books?id=Qzi4AxJbzysC. Ainda sobre a lei, nessa mesma
página, Calvino afirma: “Agora, a Lei consiste principalmente de três partes: primeira, a doutrina da
vida; segunda, tratados e promessas; terceira, o pacto da graça, que, sendo fundado em Cristo, contém
em si todas as promessas especiais”.

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JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

3.2 O princípio cristotélico aplicado aos profetas


Os profetas são principalmente expositores da lei de Deus. Calvino afirma
que “quando os profetas inculcam deveres morais, eles não trazem à tona nada
novo, mas somente esclarecem aquelas partes da Lei que têm sido esquecidas
[por seus contemporâneos]”.41 Já no que concerne às promessas de Deus rela-
cionadas à salvação, Calvino afirma que os profetas são mais completos por
conta de suas visões. Em suma, existe uma diferença de maior revelação nos
profetas quando comparados com a lei:

A respeito da livre aliança que Deus estabeleceu com os patriarcas em épocas


antigas, os profetas são muito mais específicos, e contribuem mais para for-
talecer o afeto do povo neste sentido; para quando desejam confortar o pio,
lembram-nos sempre dessa aliança, e representam-lhes a vinda de Cristo, que
era tanto o fundamento da aliança quanto o vínculo da mútua relação entre Deus
e o Povo, e a quem, deve ser compreendido, toda a extensão das promessas se
refere. Quem entende isto compreenderá facilmente o que deve procurar nos
Profetas e qual é o propósito dos seus escritos; e isto é tudo que deve ser dito
sobre este assunto.42

Por causa de sua firme convicção de que toda a Escritura testemunha


de Cristo, Calvino despreza com palavras duras e jocosas grande parte da
interpretação judaica.43 Por outro lado, ele também “condena os intérpretes
cristãos por desrespeitarem a linguagem e contexto do Antigo Testamento e
por encontrarem somente aquilo que querem encontrar no texto”.44 É por esse
motivo que Pucket afirma que Calvino tomou uma Via Media em sua maneira
de lidar com o Antigo Testamento.45
A interpretação calvinista de Isaías 2 fala sobre o reino de Cristo.46 O rei
Ezequias é um tipo de Cristo;47 a restauração prometida em Oséias aborda a
restauração de Israel como nação, mas “estende suas predições ao reinado de
Cristo”.48 Muitas profecias são interpretadas como claramente apontando para
a vinda do Messias e de seu reino. A maneira como Calvino aborda a profecia
de Isaías 5 também chama a atenção. Em vez de saltar para os usos neotesta-

41 Ibid., xxviii.
42 Ibid., xxix.
43 PUCKETT, David Lee. John Calvin’s Exegesis of the Old Testament. Louisville, KY: Westminster
John Knox, 1995), p. 82-88.
44 Ibid., p. 54.
45 Ibid., p. 105s.
46 CALVIN, Commentary on Isaiah, p. 91s.
47 Ibid., p. 485s.
48 CALVINO, João. Comentário Sobre Oséias. Brasília: Monergismo, 2008, p. 70. Disponível
em: http://monergismo.com/joao-calvino/joao-calvino-comentario-sobre-oseias/.

110
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

mentários dessa figura, ele explica a profecia em seus termos e somente no


final fala de Jesus Cristo como a vinha dos cristãos.49
Por outro lado, Calvino discorda de muitos intérpretes de sua época ao
dizer, por exemplo, que a pessoa que aparece em Isaías 6 não é diretamente
Cristo,50 a mulher referida em Jeremias 33.12 não é Maria,51 o profeta Ezequiel
em Ez 4.4 não aponta para Cristo.52 Cada uma dessas era uma interpretação
cristocêntrica comum em seus dias.
Assim, Calvino é muito claro em mostrar a conexão direta entre algumas
profecias e a pessoa e obra de Cristo, mas também é muito cuidadoso em ana-
lisar o contexto histórico de cada profeta e não fazer saltos improváveis para
aplicar um texto a Cristo.
Muller explica a qualidade da interpretação de Calvino com base no uso do
esquema de promessa e cumprimento. O reformador evita equacionar a expressão
“dia do Senhor” com eventos neotestamentários ou escatológicos e apresenta uma
consciência do esquema “já e ainda não” nos seus comentários, por exemplo, de
Amós 9.11, de Daniel, de Joel 2.30-32 e de Isaías 65.17, entre outros.53

O estrito modelo promessa-cumprimento, em que o Antigo Testamento é cum-


prido no Novo Testamento, junto com a ideia de um significado amplo que
abranja todo o reino de Deus, deram a Calvino uma estrutura de interpretação
dentro da qual tanto uma leitura histórico-gramatical do texto quanto uma forte
tendência para aplicação contemporânea podem funcionar.54

Em termos da teologia bíblica, Muller argumenta de modo convincente


que conceitos como escatologia inaugurada, múltiplos cumprimentos e pers-
pectiva profética já podem, em certa medida, ser encontrados na interpretação
do reformador francês.55 Wilcox concorda com Muller quanto a esse aspecto
e o coloca de forma ainda mais clara:

49 CALVIN, Commentary on Isaiah, p. 170.


50 Ibid., p. 201.
51 CALVIN, John. Commentaries on the Book of the Prophet Jeremiah and the Lamentations.
Vol 4. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1850, p. 113s. Disponível em: https://books.google.com.
uy/books?id= fag9AAAAYAAJ. Citado também em: PUCKETT, John Calvin’s Exegesis of the Old
Testament, p. 53.
52 CALVIN, John. Coomentaries on the First Twenty Chapters of the Book of the Prophet
Ezekiel. Edinburgh: Calvin Translation Society, 1849, p. 179. Disponível em: https://books.google.com/
books?id=VmAzAQAA MAAJ.
53 MULLER, Richard A. “The Hermeneutic of Promise and Fulfillment in Calvin’s Exegesis of
the Old Testament Prophecies of the Kingdom”. In: The Bible in the Sixteenth Century, ed. David C.
Steinmetz. Durham, NC: Duke University Press, 1990, p. 68-82.
54 Ibid., p. 71.
55 Muller conclui seu artigo da seguinte forma: “A exegese de Calvino representa uma hermenêu-
tica mais textual, gramática e historicamente orientada, mas ela permanece dentro dos limites de uma

111
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

A marca característica da exposição que Calvino faz dos profetas é a sua visão
de que a profecia tem uma referência tripla. Ele afirma primeiro que ela se
refere a um evento histórico iminente (como o retorno do povo do exílio), em
segundo lugar a Cristo (pelo qual ele pode querer dizer “a encarnação” ou “a
ascensão” ou até mesmo “a era apostólica e a pregação do evangelho”) e o ter-
ceiro ao curso inteiro da história até o Último Dia (base sobre a qual ele aplica
as profecias à igreja do século dezesseis). Assim, ele constrói a história do povo
de Deus pelo menos desde o tempo da volta do povo de Israel do exílio, como
a história do reino de Cristo.56

3.3 O princípio cristotélico aplicado ao saltério


Os salmos para Calvino apresentam uma anatomia de todas as partes da
alma, são o melhor manual de oração e a melhor regra de louvor.57 Encontramos
o princípio cristotélico já no Salmo 1. Depois de mostrar uma impressionante
consciência canônica, afirmando que este salmo é um prefácio ao livro todo,
Calvino comenta os versos 5-6 dizendo: “...no presente estado, devemos esperar
o dia da revelação final, quando Cristo separará as ovelhas dos cabritos”.58
Comentando o Salmo 2, que na época de Calvino era interpretado como
apontando diretamente para Cristo, Calvino mostra claramente sua forma
cristotélica de interpretar as referências a Davi fazendo-as chegar a Cristo:

Mas agora é tempo oportuno de buscarmos a substância do tipo. Que Davi


profetizava a respeito de Cristo é claramente manifesto à luz do fato de que ele
sabia que seu próprio reino não passava de mera sombra. E para que aprenda-
mos aplicar a Cristo tudo quanto Davi, em tempos passados, cantou acerca de
si mesmo, devemos considerar este princípio, o qual encontramos por toda a
parte em todos os profetas, a saber, que ele, com sua posteridade, foi feito rei,
não por sua própria causa, mas para ser um tipo do Redentor.59

Portanto, Calvino interpreta o Salmo 2 como fazendo referência ao pró-


prio Davi, mas este como um tipo de Cristo. No comentário do Salmo 5, vemos
Davi afirmar que a interpretação do Salmo por Paulo 5 já fora pretendida pelo
Espírito Santo.

Quando Paulo [Rm 3.13], ao citar esta passagem, a estende a todo o gênero
humano, tanto judeus quanto gentios, ele não lhe imprime maior amplitude do

abordagem hermenêutica na qual a implicação final de qualquer texto é determinada pelo contexto maior
de promessa, cumprimento e a história contínua do povo de Deus”. Ibid., p. 82.
56 WILCOX, Pete. “Calvin as Commentator in the Prophets”. In: Calvin and the Bible2. Ed. Donald
McKim. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 121.
57 CALVINO, João. O Livro Dos Salmos. São Paulo: Parácletos, 1999, p. 33-35.
58 Ibid., p. 57.
59 Ibid., p. 61.

112
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

que aquela que o Espírito Santo pretendia imprimir. Visto que ele lhe aplica uma
substância inegável, ou seja, que sob a pessoa de Davi, se encontra descrita a
igreja, tanto na pessoa de Cristo, que é a cabeça, quanto em seus membros...60

Já o Salmo 21, que fala sobre o reino de Davi, tem como objetivo “di-
rigir a mente dos fiéis para Cristo, que era o fim e a perfeição desse reino, e
ensinar-lhes que só poderiam ser salvos sob o Cabeça que Deus mesmo lhes
havia designado”.61 São raros os salmos que Calvino não interpreta como tendo
uma relação com Cristo, seja como uma profecia, seja como uma tipologia de
Cristo, de seu reino ou de sua igreja.62 Uma expressão comum no comentário
de Calvino, após falar do significado histórico de um salmo, é “ao mesmo tem-
po”, e então Calvino mostra o cumprimento tipológico do salmo em Cristo.63
Para de Greef, as maneiras como Calvino relaciona os salmos com Cristo
são quando o Novo Testamento faz referência ao salmo; os salmos como pro-
fecia seja dos sofrimentos, seja do reino de Jesus, e Davi como representante
de Cristo e modelo para os cristãos.64
Em seu afã por uma interpretação literal, algumas vezes Calvino vai
contra a interpretação cristocêntrica de alguns salmos. Isso acontece em sua
interpretação dos salmos 72 e 16, por exemplo.65 Comentando sobre a inter-
pretação calvinista do Salmo 72, Muller afirma:

A reclamação de Calvino contra a interpretação cristológica excessiva prova-


velmente deve ser vista no contexto do famoso comentário dos salmos de Faber
Stapulensis, no qual, em nome de um único sentido literal, Cristo é interpreta-
do como sendo a única referência do texto e Davi desaparece completamente
como um foco do significado. A advertência de Calvino não é uma objeção à
hermenêutica cristológica de promessa e cumprimento, mas é um apelo para que
a figura histórica de Davi tenha o seu lugar de direito no esquema de promessa
e cumprimento e que o significado literal do texto seja alojado na promessa
primeiramente dada ao Davi histórico.66

60 Ibid., p. 117.
61 Ibid., p. 454 (grifo meu).
62 Um pouco diferente em sua avaliação, De Greef comenta assim: “É notável na interpretação dos
salmos de Calvino que ele não tenta relacionar todos e cada salmo com Jesus Cristo. Em sua exposição
de diversos salmos, ele nunca menciona o nome de Cristo. Ainda assim, há salmos que ele conecta com
Jesus Cristo e seu reino; mas somente quando há justificativa real para fazê-lo”. DE GREEF, Wulfert.
“Calvin as Commentator on the Psams”. In: Calvin and the Bible. Ed. Donald K. McKim. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006, p. 99.
63 Cf. Comentário de Calvino dos Salmos, p. 22, 45, 47.
64 Ibid., p. 99-103.
65 PUCKETT, John Calvin’s Exegesis of the Old Testament, p. 54.
66 MULLER, “The Hermeneutic of Promise and Fulfillment in Calvin’s Exegesis of the Old Testa-
ment Prophecies of the Kingdom”, p. 77.

113
JOÃO PAULO THOMAZ DE AQUINO, A HERMENÊUTICA CRISTOTÉLICA DE JOÃO CALVINO

Assim como acontece na lei e nos profetas, a interpretação de Calvino dos


salmos não tem como primeiro objetivo encontrar Cristo em cada salmo, mas
entende cada salmo em seu contexto histórico e depois apresenta uma conexão
com Jesus Cristo que respeite o significado histórico e seja derivada deste.

CONCLUSÃO
Como certamente ficou evidente ao leitor, as análises aqui oferecidas da
hermenêutica de Erasmo, Lutero e Calvino são apenas introdutórias e visam
a fomentar mais pesquisa e discussão sobre esse assunto tão importante, que
certamente tem potencial para gerar diversos livros e teses. O nosso foco pre-
sente, no entanto, além de introdutório quanto a estudos acadêmicos, visa a
prática dos pregadores de nosso país.
Muitos pregadores querem pregar o Antigo Testamento de maneira
cristocêntrica. O problema é que, quando são sérios com relação à exegese e
ao sentido do texto, por vezes é difícil saber onde “encaixar” Jesus Cristo no
sermão. O presente artigo mostrou que esse não é um problema novo, mas já
no século 16 existiam diferentes maneiras de ver Cristo nas páginas do Antigo
Testamento. Erasmo, Lutero e Calvino consideravam a pessoa de Cristo como
central para a interpretação das Escrituras, mas cada um tinha a sua própria
maneira de relacionar os textos específicos à pessoa de Cristo.
Erasmo construiu uma filosofia de Cristo, um amálgama entre a vida e
obra de Cristo e a filosofia clássica e, a partir dessa filosofia, expunha os textos
das Escrituras, lançando mão de uma interpretação alegórica. Lutero lutou por
encontrar um sentido literal, mas ao começar, o objetivo de encontrar Jesus
Cristo por vezes não fazia justiça ao sentido histórico do texto.
João Calvino parte de uma compreensão da unidade das Escrituras em
torno de Jesus Cristo: Cristo é o Mediador tanto no Novo quanto no Antigo
Testamento; a igreja se faz presente no Antigo Testamento; a salvação em ambos
os testamentos acontece mediante a fé; a lei aponta para Jesus Cristo e este é o
mestre e o objetivo da mesma; as profecias apontam para Cristo, sua vinda e
seu reino futuro, tendo, contudo, um significado e cumprimento para a época
da escrita; os salmos e profecias contêm pessoas, ofícios e situações que são
tipos e/ou sombras de Cristo, seu reino e seu povo. Existe, portanto, uma forma
de compreender a Escritura que guia Calvino em sua interpretação cristotélica
do Antigo Testamento. Na interpretação de Calvino, Cristo é o alvo (telos) da
lei, dos profetas e dos salmos e não será encontrado de forma correta, a não ser
que o texto seja interpretado fazendo jus à gramática e ao contexto histórico.
Portanto, com uma compreensão bíblico-teológica influenciada pela
teologia calvinista os intérpretes e pregadores podem ter mais sucesso em sua
busca por Jesus nas páginas do Antigo Testamento, não como quem o traz à
força, mas como quem o encontra naturalmente depois de estudar o texto em

114
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 99-115

seus próprios termos. Isso é praticar, junto com Calvino, uma interpretação
cristotélica da Escritura.67

ABSTRACT
Having in view to convince interpreters and preachers about a specific
way to find Christ in the Old Testament, this article contends that Calvin’s
interpretation of the Old Testament is well defined by the word “Christotelic”,
in the sense that he, unlike Erasmus and Luther, found Christ in the Old Testa-
ment on the basis of a healthy biblical theology that presupposed the unity of
the testaments.

KEYWORDS
Hermeneutics; Christocentric; Christological; Christotelic; Calvin; Luther;
Erasmus.

67 As seguintes notas podem ser úteis para tornar ainda mais clara a utilidade desse conceito para
a pregação: “O termo que eu prefiro usar para descrever essa hermenêutica escatológica é ‘cristotélica’.
Eu prefiro este em vez de ‘cristológica’ ou ‘cristocêntrica’, visto que estes são suscetíveis a um ponto
de vista que eu não estou advogando aqui, qual seja, a necessidade de ‘ver Cristo’ em todas ou quase
todas as passagens do Antigo Testamento. Telos é a palavra grega para ‘fim’ ou ‘conclusão’. Ler o An-
tigo Testamento ‘cristotelicamente’ é lê-lo já sabendo que Cristo é de alguma forma o fim para o qual
a história do Antigo Testamento está se dirigindo”. ENNS, Inspiration and Incarnation Evangelicals
and the Problem of the Old Testament, p. 154. “A abordagem cristotélica habilita o expositor bíblico a
determinar como um texto particular aponta para Cristo de forma a não ter que forçá-lo em cada texto.
Adicionalmente, ele torna o expositor responsável por ser fiel ao significado histórico do texto para a
audiência original”. VINES, Jim S. J. Progress in the Pulpit: How to Grow in Your Preaching. Chicago:
Moody Publishers, 2017.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

Calvino e o Lapsarianismo:
Uma Avaliação de como Calvino pode ser lido
à Luz da Discussão Supra e Infralapsariana
João Alves dos Santos*

RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar alguns dos escritos de
Calvino sobre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, à luz
da discussão atual sobre a ordem que se deve dar aos decretos da eleição e da
reprovação de homens em relação à queda, no cumprimento que Deus faz de
seus propósitos, procurando saber se é possível classificar o reformador em
qualquer das duas principais linhas de pensamento, geralmente conhecidas
como supralapsarianismo e infralapsarianismo. O autor opta pela resposta
negativa, à luz da abordagem que Calvino faz dos textos bíblicos estudados e
do seu pressuposto de que não é dada ao homem a capacidade de entender os
decretos divinos, e o modo como são executados pelo seu criador, por meio do
seu raciocínio finito e limitado de criatura.

PALAVRAS-CHAVE
Calvino; Supralapsarianismo; Infralapsarianismo; Predestinação; Repro-
vação; Queda.

INTRODUÇÃO
Dá-se o nome de “lapsarianismo” à discussão sobre a ordem ou sequência
dos decretos de Deus no que diz respeito especificamente aos decretos da

* O autor é mestre em Divindade e em Teologia do Antigo Testamento pelo Faith Theological


Seminary (EUA) e em Teologia do Novo Testamento pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da
Conceição. É professor de Novo Testamento e coordenador de Educação a Distância (EaD) do Centro
Presbiteriano de Pós-graduação Andrew Jumper (CPAJ) e de língua grega no Seminário Presbiteriano
Rev. José Manoel da Conceição. É ministro jubilado da Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil.

117
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

eleição e da reprovação dos homens. O nome deriva-se da palavra latina


lapsus, que quer dizer “queda”. Assim, a queda do homem é o fator decisivo
nessa discussão. Dentre outras menos comuns, duas posições são as que do-
minam o campo da discussão entre os calvinistas, as quais levam o nome de
supralapsarianimo e infralapsarianismo (ou sublapsarianismo) Esses prefixos
também são latinos e significam “acima” ou “anterior” (supra) e “abaixo” ou
“posterior” (sub ou infra). O supralapsarismo coloca tanto o decreto da elei-
ção para a vida como o da reprovação ou predestinação para a morte como
ocupando lugar antes do decreto da queda (daí o nome supralapsarianismo),
ao passo que o infralapsarianismo coloca o lugar de ambas depois do decreto
da queda, em ordem ou sequência histórica, por isso é chamado de infra ou
sublapsarianismo. Assim, de acordo com a ordem supralapsariana, também
conhecida como ordem lógica, Deus determinou, dentre todos os homens a
ser criados, eleger alguns para a vida e outros para a morte eterna, para a sua
própria glória. Para cumprir esse decreto ele propôs criar os homens, eleitos
ou reprovados, permitir ou mesmo ordenar a queda de todos e depois enviar
Cristo para redimir os eleitos, deixando os não eleitos sujeitos à merecida
punição pelos seus pecados.
Para a ordem infralapsariana, também conhecida como ordem histórica,
Deus determinou primeiro criar os homens, depois permitir ou ordenar a queda
de todos eles e, só então, eleger, dentre todos os caídos, alguns para a vida
eterna, preterindo os demais e preordenando-os a sofrer a justa punição pelos
seus pecados, e, depois, enviar Cristo para redimir os eleitos.
Qual seria a posição de Calvino, é a pergunta proposta, se ele pudesse ser
classificado à luz desses dois conceitos? É verdade que esta é uma pergunta
descabida, por não ter sido uma discussão em vigência na sua época e muito
menos de interesse para o seu contexto histórico-doutrinário. Mas é possível,
estudando seus escritos, chegar-se a alguma conclusão sobre qual poderia ter
sido a sua posição. É o que se pretende fazer de modo ligeiro e compreensivel-
mente superficial, pois analisar todas as referências de Calvino ao assunto no
presente trabalho seria tarefa impossível, dado o volume de seus escritos e os
diversos contextos em que ele se refere à matéria. O que se pretende fazer é
apresentar algumas amostras a partir das quais se pode deduzir o pensamento
do reformador a respeito desses dois decretos: o da predestinação para a
vida, dos eleitos, e o que ele chamou de “decreto espantoso”,1 o da reprovação
para a morte.

1 Institutas III. 23.7. O termo latino é horribilis, que significa “horrível”, “terrível”, “assombro-
so”, “surpreendente”. A tradução que lhe é dada geralmente é abrandada, como neste caso, mas o uso
do termo por Calvino mostra como ele via com temor e assombro a natureza desse decreto.

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FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

1. A JUSTIFICATIVA PARA A DISCUSSÃO


Ambas as correntes têm em mente a tentativa de justificar a natureza de
Deus com respeito à origem do pecado e, por conseguinte, a origem do mal
na raça humana. Ambas negam que Deus seja o autor do mal ou que seja o
responsável pelo pecado do homem.2 Mas como conciliar o decreto da queda
com essa premissa de que Deus não é o responsável por ela?
A corrente supralapsariana parte do princípio de que Deus é soberano e,
como tal, tem o direito de determinar aquilo que está de acordo com o conselho
de sua vontade (cf. Efésios 1.11), sem violar a sua própria natureza e sem dever
explicações a quem quer seja sobre o seu modo de agir. É como diz Paulo em
Romanos 9.11-18, referindo-se a Jacó e Esaú:

E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal
(para que o propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras,
mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais
moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú. Que diremos,
pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! Pois ele diz a Moisés:
Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei
de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer
ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Porque a Escritura diz
a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para
que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele misericórdia
de quem quer e também endurece a quem lhe apraz.

E quando ele levanta a possibilidade retórica de alguém questionar a


justiça de Deus por assim agir, Paulo responde:

Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto
perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito
sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para de-
sonra? Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer
o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados
para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória
em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão? (Rm 9.20-23).

2 É verdade que há alguns supralapsarianos que chegam a afirmar que Deus é, de fato, o autor
do mal ou do pecado, ainda que no sentido metafísico, pois esta lhes parece ser a única alternativa
admissível em face da doutrina dos decretos e, em particular, a respeito da origem do mal. Recusam-se
a admitir que a natureza de Deus e os seus decretos não possam ser entendidos em todos os seus aspectos
pela razão humana e, por isso, procuram formular respostas que sejam “compatíveis” e “coerentes” com
o nosso raciocínio lógico. Uma amostra dessa posição pode ser vista em escritos de Vincent Cheung,
publicados no site monergismo.com, tais como “O Autor do Pecado” (http://www.monergismo.com/
textos/problema_do_mal/cheung_autor_pecado.htm) e “Deus, o Autor” (http://monergismo.com/vincent-
-cheung/deus-o-autor/). Acesso em: 28 set. 2017.

119
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Com esta argumentação Paulo nega o direito a quem quer que seja de ques-
tionar a justiça do Deus criador por agir de modo aparentemente incompatível
com o senso de justiça da criatura. O argumento é o de que a soberania de Deus,
como criador, esvazia qualquer pretensão ou questionamento da criatura, dadas
as diferenças entre os dois seres. Assim, não seria arbitrário para Deus eleger
desde o princípio, dentre os homens a serem criados e conforme o conselho
da sua vontade, alguns para a vida eterna e preordenar os demais para a morte
eterna. É o que Paulo diz no texto acima citado: “Terei misericórdia de quem
me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter
compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas
de usar Deus a sua misericórdia”. Em outras palavras, Paulo está dizendo que
não temos o direito de medir o padrão de justiça do Deus soberano e criador
infinito pelo nosso padrão de meras criaturas finitas.
A corrente infralapsariana também parte de textos das Escrituras, mas
daqueles que se referem à causa da condenação do homem como ligada não
diretamente ao decreto da criação, mas ao da queda, ou seja, ao pecado como
sua consequência.
O próprio texto de Romanos 9.22-23, acima citado, também pode ser
usado para defender esse ponto de vista. Se, por um lado Paulo apresenta a so-
berania de Deus como a causa justificadora da feitura de vasos de ira e vasos de
misericórdia, a própria qualificação desses “vasos de ira” pressupõe o pecado:

Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu
poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a
perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em
vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão?

Só há ira divina, assim como misericórdia, onde há pecado. Então, o


pecado, e não a soberania de Deus, é que está apresentado neste texto como
causa (pelo menos causa próxima) da condenação dos não eleitos, assim como
ele é também o motivo da manifestação da graça de Deus exercida na sua mi-
sericórdia em perdoar o pecador eleito. Só há misericórdia onde há necessidade
dela, devido à transgressão e queda.
Outra demonstração de que esta passagem está se referindo também e
principalmente ao pecado está nos verbos que Paulo usa quando se reporta aos
“vasos de ira” e “vasos de misericórdia”. Os vasos de ira são “suportados”
com muita longanimidade por Deus, para que através deles ele mostrasse a
sua ira e o seu poder, o que pressupõe o seu trato com o pecado. Já os vasos de
misericórdia servem ao propósito divino de dar a conhecer as riquezas da sua
glória, através da manifestação da sua graça ao perdoar os pecados dos eleitos.
Outro detalhe importante nesta passagem é que Paulo usa diferentes
verbos gregos conjugados em diferentes vozes para se referir à “preparação”

120
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

dos vasos. Para os vasos de ira, nos quais Deus tem como propósito “mostrar
a sua ira e dar a conhecer o seu poder”, ele usa o verbo katarti,zw (“preparar”,
“adequar para um determinado fim”) na voz passiva, sem identificar quem é
o agente da ação. Já para os vasos de misericórdia, cuja finalidade é “dar a
conhecer as riquezas da sua glória”, ele usa o verbo proetoima,zw (“preparar
de antemão”, “preparar para seu próprio uso ou propósito”, conforme traduz
o léxico de Liddell e Scott)3 Paulo usa a voz ativa para indicar claramente
que o agente nesse preparo dos vasos de misericórdia é Deus.
Claro que se ambos os “preparos” fazem parte do eterno decreto de Deus,
como todas as demais coisas que acontecem, é inescapável reconhecer que
Deus é o autor de ambas as predeterminações. Essa é a conclusão natural de
nosso raciocínio lógico. Daí a ênfase do supralapsarianismo na predestinação
tanto para a vida como para a morte eternas, por ser inescapavelmente lógica.
Mas Paulo tem o cuidado de não atribuir diretamente a Deus a responsabi-
lidade pela perdição dos não eleitos, como parece ficar claro deste texto das
Escrituras. Como conciliar, então, a lógica do raciocínio com este ensino
das Escrituras? Como conciliar a soberania de Deus com a responsabilidade
humana? É o que se pretende considerar a seguir.

2. O PROBLEMA COM ESSA DISCUSSÃO


A primeira dificuldade a ser encarada nessa discussão é se podemos dividir
os decretos de Deus em partes e, a partir daí, colocá-los em alguma ordem.
Em outras palavras, podemos atribuir ao pensamento de Deus algo que para
nós é indispensável e até natural ao raciocínio, ou seja, uma ordem que, ainda
que não cronológica precisa ser pelo menos lógica? Temos nós, como seres
finitos e limitados, a capacidade de atribuir a Deus categorias de cognição e de
raciocínio que são apenas nossas, até onde podemos saber? Podemos conhecer
a mente do Deus que não está preso ao tempo e para quem todas as coisas estão
sempre nuas e patentes (cf. Hb 4.13), assim como julgar o exercício de sua
vontade, usando as categorias e normas que nos são próprias, como criaturas
finitas e extremamente limitadas? Podemos nós esquadrinhar os pensamentos
de Deus para, a partir deles, estabelecer ordens ou critérios adequados para
os seus decretos?
A própria Bíblia nos dá a resposta quando, através do profeta Isaías,
Deus diz:

3 Liddell e Scott apresentam esse verbo como sendo usado, neste segundo sentido, na medicina, por
Heródoto. Friberg acrescenta em seu dicionário que ele é usado neste sentido de “preparar de antemão”,
no Novo Testamento, apenas para obras de Deus. O outro uso que encontramos no NT é feito também
por Paulo, em Ef 2.10, referindo-se às “obras que Deus preparou de antemão” para que andássemos
nelas.

121
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos


caminhos, os meus caminhos, diz o senhor, porque, assim como os céus são mais
altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos
caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos
(Is 55.8-9).

O salmista Davi, por sua vez, exclama em um de seus cânticos: “São


muitas, senhor, Deus meu, as maravilhas que tens operado e também os teus
desígnios para conosco; ninguém há que se possa igualar contigo. Eu quisera
anunciá-los e deles falar, mas são mais do que se pode contar” (Sl 40.5). E,
em outro lugar, outro salmista considera: “Quão grandes, senhor, são as tuas
obras! Os teus pensamentos, que profundos!” (Sl 92.5).
Também Paulo, depois de revelar doutrinas as mais profundas para a
nossa capacidade de compreensão, conclui:

Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus!


Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos.
Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou
quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e
por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente.
Amém! (Rm 11.33-36).

A Bíblia preponderantemente se refere aos decretos de Deus como sendo


um só. Tratando da predestinação para a vida, Paulo diz que “fomos... pre-
destinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o
conselho da sua vontade” (Ef 1.11). Ele usa duas expressões que são referentes
ao que chamamos de decreto ou até mesmo sinônimo dele: “propósito”, que
também tem o sentido de “plano”, “desígnio” (pro,qesin) e “conselho da sua
vontade” (boulh.n tou/ qelh,matoj auvtou/). Outra expressão para “conselho da sua
vontade” usada por Paulo (em Ef. 1.9) é “seu beneplácito” (euvdoki,an auvtou).
Todas essas expressões se referem ao decreto de Deus no singular. Em Atos
2.23 Pedro, em seu discurso no dia de Pentecostes, se refere a Cristo como
tendo sido “entregue pelo determinado desígnio (ou conselho, cf. a ARC) e
presciência de Deus” (th/| w`risme,nh| boulh/| kai. prognw,sei tou/ qeou/). Aqui
Pedro acrescenta a palavra “presciência” (prognw,sei) que, usada para Deus,
é sinônimo de predeterminação. Deus conhece de antemão todas as coisas
porque foi ele mesmo quem as predeterminou. A presciência não é a causa
do decreto, mas o decreto é a causa da presciência. Assim, Pedro acrescenta
ao “desígnio determinado de Deus”, mencionado pouco antes, a qualidade de
“predeterminado”.
Deste modo, tudo o que está predeterminado e que comumente chamamos
de “decretos” faz parte do conjunto daquilo que a Bíblia chama de “propósito”,
“desígnio” ou “conselho de sua vontade”.

122
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

Há sabedoria na posição do teólogo Robert L. Dabney que preferiu não


tomar partido nessa discussão (sobre a ordem dos decretos) por entender que
ela é descabida e vai além dos limites da revelação bíblica. Falando sobre a
singularidade ou unicidade dos decretos divinos, ele diz:

É um só ato da mente divina e não muitos. Este ponto de vista é, pelo menos,
sugerido pela Escritura, que fala dele usualmente como uma pro,qesij, “um
propósito”, “um conselho”. Ele decorre da natureza de Deus. Como o conheci-
mento natural de Deus é totalmente imediato e contemporâneo, não sucessivo
como o nosso, e sua compreensão de todo o seu propósito sempre infinitamente
completa, fundada sobre ele próprio, esse propósito tem que ser um só ato, todo
abrangente e simultâneo. Além disso, o decreto inteiro é eterno e imutável. Tudo,
portanto, deve coexistir sempre junto na mente de Deus. Por fim, o plano de
Deus é mostrado, em sua realização, como sendo um só. A causa é ligada ao
efeito e o que era efeito torna-se causa; influências de eventos sobre eventos se
entrelaçam entre si, descendo em fluxos estendidos para eventos subsequentes, de
modo que todo o seu complexo resultado é interligado por todas as suas partes.
Como os astrônomos supõem que a remoção de um planeta de nosso sitema
modificaria de alguma forma o equilíbro e as orbitas de todo o resto, também a
falha de um evento neste plano desarranjaria o todo, direta ou indiretamente. O
plano de Deus nunca é produzir um resultado à parte de sua causa, mas sempre
por meio de sua própria causa. Como o plano de Deus é, desta forma, uno em sua
realização, também o deve ser em sua concepção. A maioria dos erros que têm
surgido na doutrina tem vindo do equívoco de imputar a Deus a compreensão
de seu propósito em partes sucessivas, à qual a limitação de nossa mente nos
conduz, em sua concepção.4

3. COMO O ASSUNTO É TRATADO EM CONFISSÕES OU


DOCUMENTOS CALVINISTAS
Antes de conhecermos o modo como Calvino trata o assunto é interes-
sante conhecer também como alguns dos principais símbolos de fé calvinis-
tas o fazem. Percebe-se claramente em suas formulações que eles tiveram o
cuidado de não ir além do que as Escrituras dizem a respeito do decreto da
reprovação dos não eleitos, de modo a não atribuir a Deus a responsabilidade
dessa reprovação como sendo a sua causa efetiva e geradora. Em geral, nesses
documenos, os termos usados para ambos os decretos não são os mesmos,
ainda que, em última instância, pudessem ser tidos como sinônimos. Faz-se
uma diferenciação entre eles, certamente para não se atribuir diretamente a
ambos a mesma volição da parte de Deus. E é por isso mesmo que eles são
considerados como preponderantemente infralapsarianos. Vejamos:
A Confissão de Fé de Westminster afirma que:

4 DABNEY, Robert L. Lectures in Systematic Theology. Grand Rapids, MI: Zondervan, 1972,
p. 214. Minha tradução.

123
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria
vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo
que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é
tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas”
e que “pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e
alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados para
a morte eterna.5

Observa-se que ela usa a expressão “predestinar para a vida eterna” como
aplicada para alguns homens e alguns anjos e “preordenar para a morte eterna”
para os outros.
Embora tragam a mesma ideia de predeterminação desde toda a eternidade,
o uso de verbos diferentes revela o cuidado para não atribuir a Deus a mesma
volição com respeito a ambas as classes referidas. Continuando a formulação, ela
volta a fazer a diferenciação entre esses dois aspectos do decreto, ao dizer que
“esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são particular
e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido, que não pode
ser nem aumentado nem diminuído”6. Aqui ambos os verbos (predestinados e
preordenados) são usados para os eleitos para a vida. Mais adiante a Confissão
usa o verbo “preordenar” para se referir aos meios que Deus usa para condu-
zir à fé os que são “eleitos” ao dizer: “assim como Deus destinou os eleitos
para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre propósito da sua vontade,
preordenou todos os meios conducentes a esse fim”7 e, mais adiante ainda,
ela faz referência ao texto de Romanos 9, já visto acima, no que diz respeito à
soberania de Deus em conceder ou recusar misericórdia, contemplando assim
a situação pecaminosa de todos, em que a alguns ele revela sua misericórdia
e aos demais a sua justiça. Aqui são usados dois verbos com repeito aos não
eleitos para a vida eterna. O primeiro, em forma negativa, “não contemplar” ou
“preterir”, e o segundo, em forma positiva, “ordenar” ou “destinar”. O primeiro
refere-se àquilo que é chamado pelo sistema infralapsariano de “preterição” ou
“não escolha” e o segundo é sinônimo de “destinar” e, dentro do contexto da
afirmação anterior, “preordenar para a morte eterna”. Ela diz:

Segundo o inescrutável conselho da sua própria vontade, pela qual ele concede
ou recusa misericórdia, como lhe apraz, para a glória do seu soberano poder
sobre as suas criaturas, o resto dos homens, para louvor da sua gloriosa justiça,
foi Deus servido não contemplar e ordená-los para a desonra e ira por causa
dos seus pecados.8

5 A Confissão de Fé. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, III.1,3. Destaques meus.
6 Ibid. III, 4. Destaques meus.
7 Ibid. III.6. Destaque meu.
8 A Confissão de Fé, III.6. Destaques meus.

124
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

É como a Confissão de Fé de Westminster vê e trata o assunto. Igualmente


clara fica essa diferenciação de termos na resposta que o Catecismo Maior dos
Símbolos de Fé de Westminster dá à pergunta 13, quando diz que Deus

... em Cristo, escolheu alguns homens para a vida eterna... e também, segundo o
seu soberano poder e o conselho inescrutável da sua própria vontade (pela qual
ele concede, ou não, os seus favores conforme lhe apraz) deixou e preordenou
os mais à desonra e à ira, que lhe serão infligidas por causa dos seus pecados,
para a exaltação da glória da justiça divina.9

Os Cânones de Dort são mais explícitos ainda nesta questão de não atribuir
a Deus a responsabilidade pela condenação dos ímpios, mesmo conferindo
ao seu decreto eterno o conceder a fé a alguns e a outros não. Eles dizem nos
seus artigos 4-6 do 1º capítulo da doutrina: A Divina Eleição e Reprovação:

A ira de Deus permanece sobre aqueles que não creem no Evangelho. Mas
aqueles que o aceitam e abraçam a Jesus, o Salvador, com uma fé verdadeira e
viva, são redimidos por ele da ira de Deus e da perdição, e presenteados com
a vida eterna (Jo 3.36; Mc 16.16). Em Deus não está, de forma alguma, a causa
ou culpa dessa incredulidade. O homem tem essa culpa, assim como a de todos
os demais pecados. Mas a fé em Jesus Cristo e também a salvação por meio dele
são dons gratuitos de Deus, como está escrito: Porque pela graça sois salvos,
mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus... (Ef 2.8). Semelhantemente,
Porque vos foi concedida a graça de ... crer em Cristo (Fp 1.29).

Deus nesta vida concede a fé a alguns enquanto não concede a outros. Isto
procede do eterno decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que ele “faz
estas coisas conhecidas desde séculos” e que ele “faz todas as coisas conforme
o conselho da sua vontade” (At 15.18; Ef 1. 11). De acordo com este decreto,
ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e
os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, ele
deixa os não‑eleitos em sua própria maldade e dureza de coração. E aqui espe-
cialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa
distinção entre homens que estão sob a mesma condição de perdição. Este é
o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os
homens perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição,
ele dá um inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus.10
E continuam a dizer no artigo 15 desse mesmo capítulo:

9 O Catecismo Maior. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, pergunta 13, p. 173. Destaques
meus.
10 Os Canones de Dort. Org. Cláudio Antônio Batista Marra. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
sem data, p. 18-19. Itálicos no original.

125
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

A Escritura Sagrada mostra e recomenda a nós esta graça eterna e imerecida


sobre nossa eleição, especialmente quando, além disso, testifica que nem todos
os homens são eleitos; alguns, pois, são preteridos na eleição eterna de Deus.
De acordo com seu soberano, justo, irrepreensível e imutável bom propósito,
Deus decidiu deixá‑los na miséria comum em que se lançaram por sua própria
culpa, não lhes concedendo a fé salvadora e a graça da conversão. Para mostrar
sua justiça, decidiu deixá‑los em seus próprios caminhos e debaixo do seu justo
julgamento e, finalmente, condená‑los e puni‑los eternamente, não apenas por
causa de sua incredulidade, mas também por todos os seus pecados, para mostrar
sua justiça. Este é o decreto da reprovação, o qual não torna Deus o autor do
pecado (tal pensamento é blasfêmia!), mas o declara o temível, irrepreensível
e justo Juiz e Vingador do pecado.11

Citamos apenas três desses documentos, mas é sabido que a maioria dos
demais segue a mesma linha de pensamento, qual seja, a de usar uma lingua-
gem que, ao mesmo tempo em que contempla o beneplácito da vontade de
Deus como a causa última de todas as coisas, não atribui a ele a origem ou a
agência do mal.

4. COMO CALVINO PODE SER LIDO À LUZ DESSA DISCUSSÃO:


PODERIA ELE SER ROTULADO COMO DEFENSOR DE
QUALQUER DESSAS CORRENTES, CASO ESSE ASSUNTO
ESTIVESSE EM DISCUSSÃO NO SEU TEMPO E CONTEXTO?
Antes de qualquer outra consideração, é preciso salientar que Calvino
não estava comprometido com qualquer outra fonte de conhecimento de Deus
a não ser aquele revelado nas Escrituras Sagradas, ainda que essa revelação
pudesse contrariar o raciocínio lógico do homem. Seu compromisso era com
a Bíblia e não com a lógica humana. Sobre isso lemos afirmações suas como:

... para que tenhamos aqui bom equilíbrio, devemos examinar a Palavra de Deus,
na qual temos excelente regra para o entendimento firme e correto. Porquanto,
a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, assim como nada que seja útil
e salutar conhecer é omitido, assim também não há nada que nela seja ensinado
que não seja válido e proveitoso saber.12
A mente piedosa [...] contempla somente o Deus único e verdadeiro, nem lhe
atribui o que quer que à imaginação haja acudido, mas se contenta com tê-Lo tal
qual Ele próprio Se manifesta...”. Deus, acomoda-se ao nosso modo ordinário
de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se me é permitida a
expressão, gagueja.13

11 Ibid., p. 22.
12 CALVINO, João. As Institutas. Edição especial. Trad. Odayr Olivetti. Vol. 3, Cap. 7. São Paulo:
Editora Cultura Cristã, 2004, p. 42.
13 CALVIN, John. Commentary on the Gospel According to John (Calvin’s Commentaries,
vol. XVIII), p. 229. Calvino, As Institutas, I.2.2.

126
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

A Palavra de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja profundidade a


frágil mente humana não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que
o Espírito abra os olhos ao cego.14

Quando trata da doutrina da Predestinação, de modo particular, ele adverte


àqueles que querem enveredar-se nos segredos de Deus que estão acima do
entendimento humano, dizendo:

Portanto, primeiro que se lembrem de que, enquanto investigam a predesti-


nação, tentam penetrar nos íntimos recessos da divina sabedoria, na qual, se
alguém segura e confiantemente irrompe, tampouco conseguirá saciar-se com
sua curiosidade, e estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma
saída. Pois não é justo que impunemente procure o homem devassar as coisas
que o Senhor quis que fossem escondidas em si próprio e esquadrinhe desde a
própria eternidade a sublimidade da sabedoria que ele quis que seja adorada e
não que seja apreendida, para que também por meio dela ele viesse a ser admi-
rado. Os desígnios secretos de sua vontade que determinou devessem ser-nos
desvendados, esses no-los revelou em sua Palavra.15

E continua pouco depois:

Se reina em nós o pensamento de que a Palavra do Senhor é o único caminho


que nos conduz a investigar tudo quanto é justo dele sustentar-se, é a única
luz que à frente nos resplandece para bem perceber tudo quanto a respeito dele
convém considerar-se, de toda temeridade facilmente nos conterá e coibirá.
Porque sabemos que no momento em que transpusermos os limites assinalados
pela Escritura, seremos perdidos fora do caminho e entre trevas espessas, no
qual teremos necessariamente que vagar, muitas vezes, sem rumo, resvalar e a
tropeçar. Portanto, que antes de tudo isto esteja diante dos olhos: que procurar
outro conhecimento da predestinação além daquele que se expõe na Palavra de
Deus, é como se um homem quisesse andar fora do caminho por rochas e penhas-
cos, ou quisesse ver em densa escuridão. Aliás, tampouco nos cause vergonha
ignorar algo nessa matéria na qual há certa douta ignorância. Antes, de bom
grado nos abstenhamos da perquirição desse conhecimento cuja afetação é tão
estulta quão perigosa, e até mesmo fatal. Porque, se a intemperança da mente
nos acossa, é oportuno que sempre se lhe oponha este provérbio com que seja
repelida: “Comer mel demais não é bom; assim, a busca da própria glória não é
glória” [Pv 25.27]. Ora, há razão para recuarmos atemorizados dessa ousadia,
a qual nos pode precipitar à ruína.16

E sobre os que negam a necessidade de se investigar e expor esse assunto,


dada a sua complexidade, ele responde:

14 João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, p. 89.


15 Institutas III.21.1.
16 Ibid. III.21.2.

127
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Portanto, para que também neste aspecto mantenhamos o legítimo limite, é


preciso retornar à Palavra do Senhor, na qual temos segura regra à compreensão.
Pois a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não se deixa de pôr coisa
alguma necessária e útil de se conhecer, nem tampouco se ensina nada mais além
do que se precisa saber... Portanto, tudo quanto na Escritura se dá a conhecer
acerca da predestinação, é preciso cuidar para que disso não privemos os fiéis,
a fim de que não pareçamos ou maldosamente defraudá-los da benevolência de
seu Deus, ou acusar e escarnecer o Espírito por haver divulgado essas coisas que
seria proveitoso fossem suprimidas e mantidas em segredo. Insisto que devemos
permitir ao homem cristão abrir a mente e os ouvidos a todas as palavras de Deus
que lhe são dirigidas, desde que se faça com esta moderação: que assim que o
Senhor haja fechado sua santa boca, também fecha ele atrás de si o caminho
à especulação. Aqui está o melhor limite da sobriedade: que ao aprendermos
sigamos a Deus, deixando que ele fale primeiro; e se o Senhor deixa de falar,
tampouco nós queiramos saber mais, nem avançar mais um passo.17

Com esta visão em mente, Calvino não se atrevia a dar explicações sobre
os fatos decretados por Deus e revelados nas Escrituras que estivessem acima
de sua capacidade de compreensão e nem se envergonhava de reconhecer que
não tinha essas explicações. Sua abordagem foi sempre a de expor o ensino
das Escrituras em seus diferentes aspectos e em toda a sua extensão, ainda que
parecessem contraditórios à nossa razão. É como ele trata a questão da soberania
de Deus e da responsabilidade humana relacionadas com a sua providência.
Falando sobre o modo como Deus decreta e dirige todas as coisas, não
titubeia e nem usa meias palavras para atribuir a Deus, no seu trato com o
homem, ações que, ao nosso raciocínio parecem ser contrárias ao conceito da
livre agência humana, mas que são ensinadas nas Escrituras. Ele diz:

No que tange a estas injunções secretas, o que Salomão declara do coração


do rei [Pv 21.1], de inclinar-se para cá ou para lá conforme apraz a Deus, na
verdade deve estender-se a todo o gênero humano e equivale a tanto como se
dissesse que tudo quanto concebemos na mente é dirigido para seu fim pela
inspiração secreta de Deus... Nada, porém, mais claro se pode desejar que isto:
tantas vezes declara que ele cega o entendimento dos homens e os fere de ver-
tigem [Dt 28.21], embriaga-os de um espírito de torpor, lhes infunde loucura
[Rm 1.28], endurece o coração [Ex 14.17, passim]. Muitos, porém, lançam estes
fatos à conta da permissão, como se, ao rejeitar aos réprobos, Deus os deixasse
entregues a Satanás para que os cegasse. Todavia, uma vez que o Espírito Santo
declara expressamente que cegueira e insânia são infligidas pelo justo juízo de
Deus [Rm 1.20-24], essa solução se torna muitíssimo frívola.18

17 Ibid. III.21.3.
18 Ibid. I.18.2.

128
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

Calvino usa o caso de Faraó para mostrar como ambos os aspectos, tanto
o da soberania de Deus como o da responsabilidade do homem, estão presentes
na sua obra da Providência, usando os seguintes argumentos:

Está escrito que ele endureceu o coração de Faraó [Ex 9.12]; de igual modo,
que o fez pesado [Ex 10.1] e o enrijeceu [Ex 10.20, 27; 11.10; 14.8]. Alguns
contornam essas formas de expressão através de sutileza insípida, porquanto
nessas referências a vontade de Deus é posta como a causa do endurecimento,
enquanto em outro lugar [Ex 8.15, 32; 9.34] se diz que o próprio Faraó havia
endurecido o coração. Como se, na verdade, se bem que de modos diversos, não
se harmonizem perfeitamente bem entre si estes dois fatos: que o homem, quando
é acionado por Deus, contudo ele, ao mesmo tempo, está também agindo. Eu,
porém, lanço contra eles o que objetam, porque, se endurecer denota permissão
absoluta, o próprio impulso da contumácia não estará propriamente em Faraó.
Com efeito, quão diluído e insípido seria interpretar assim, como se Faraó
apenas se deixasse endurecer! Acresce que de antemão a Escritura corta a asa a
tais subterfúgios: “Mas eu”, diz Deus, “lhe endurecerei o coração” [Ex 4.21].19

Mesmo quando ações são atribuídas a Satanás, Calvino não foge às Es-
crituras para mostrar que também tais ações são o modo de Deus cumprir os
seus decretos e de administrar aquilo que está de acordo com o seu desígnio.
É como diz:

Sem dúvida, confesso que frequentemente Deus age nos réprobos pela inter-
posição da ação de Satanás, contudo de modo que, por seu impulso, o próprio
Satanás execute seu papel e avance até onde lhe foi concedido. Um espírito ma-
ligno atormenta a Saul; diz-se, porém, que é da parte de Deus [1Sm 16.14], para
que saibamos que a insânia de Saul procedia da justa vingança de Deus. Diz-se
ainda que o mesmo Satanás ‘cega o entendimento dos incrédulos’ [2Co 4.4]; mas
donde vem isso senão que do próprio Deus promana a operação do erro, para
que creiam em mentiras os que se recusam a obedecer à verdade? [2Ts 2.11].
Conforme a primeira noção, assim se diz: “Se qualquer profeta houver falado
enganosamente, eu, Deus, o enganei” [Ez 14.9]; conforme a segunda, porém,
diz-se que ele próprio entrega os homens a uma disposição réproba e os lança a
vis apetites [Rm 1.28], porquanto de sua justa vingança ele é o principal autor;
Satanás, na verdade, é apenas seu ministro... Seja esta a síntese: uma vez se diz
que a vontade de Deus é a causa de todas as coisas, a providência é estatuída
como moderatriz em todos os planos e ações dos homens, de sorte que não apenas
comprove sua eficiência nos eleitos, que são regidos pelo Espírito Santo, mas
ainda obrigue os réprobos à obediência.20

19 Ibid.
20 Ibid.

129
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Também ao comentar o ensino de Paulo em Romanos 9, mesmo aquelas


passagens que parecem favorecer a ordem infralapsariana dos decretos, como as
que falam em “vasos de ira e de misericórdia” e que pressupõem, numa ordem
histórica e até lógica, a presença do pecado, como já vimos acima, Calvino as
liga ao decreto único do beneplácito de Deus no exercício da sua soberania,
sem distinção de categorias. Sem dúvida, para ele essa é a base para justificar
as ações divinas no cumprimento do seu beneplácito.
No seu comentário de Romanos 9.17-23, ele enfatiza o aspecto da sobera-
nia de Deus mais do que qualquer outro e chega a colocar tanto a manifestação
da ira quanto a da misericórdia de Deus como o propósito divino naquilo que
alguns supralapsarianos chamam de dupla predestinação. No comentário do
v. 17 ele diz:

Paulo, então, chega à segunda parte, ou seja: a rejeição do ímpio. Visto haver
aqui, aparentemente, certo fator menos racional, ele se empenha muito mais para
esclarecer como Deus, ao rejeitar a quem ele quer, não só permanece irrepreen-
sível, mas também permanece excelsamente maravilhoso em sua sabedoria e
retidão. O apóstolo, pois, extrai seu texto-prova de Êxodo 9.16, onde o Senhor
declara que foi ele mesmo quem levantou Faraó precisamente para aquela fina-
lidade, com o propósito de provar por meio de sua imperfeição e subjugação,
ao empenhar-se obstinadamente por destruir o poder divino, quão invencível
é o braço de Deus. Nenhuma força humana é capaz de detê-lo, muito menos
quebrá-lo. Note-se o exemplo que o Senhor quis oferecer no caso de Faraó.
Portanto, consideremos dois pontos aqui: primeiro, a predestinação de Faraó
para a destruição, a qual se relaciona com o justo e secreto conselho de Deus;
segundo, o proposito desta predestinação, que era o de proclamar o nome de
Deus. É sobre este que Paulo particularmente insiste. Se o endurecimento do
coração de Faraó foi de tal vulto que trouxe notoriedade para o nome de Deus,
então é blasfemo acusá-lo de injustiça.21

Infelizmente, Calvino não comenta nesta passagem de Romanos 9. 22-23 o


uso que Paulo faz de diferentes verbos em diferentes vozes, a que nos referimos
em tópico anterior deste trabalho, e que pode mostrar uma ênfase diferente ao
propósito de Paulo neste texto.22
Mas, ao mesmo tempo em que ressalta o propósito de Deus de “predestinar
Faraó para a destruição”, qual seja, o de proclamar o nome de Deus, também
coloca a rejeição do pacto por parte de Ismael e Esaú como a razão ou causa

21 CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura, Exposição de Romanos. Trad. Valter Gra-
ciano Martins. São Paulo: Editora Paracletos, 1997, p. 335-336. Destaques meus.
22 Nem todos concordam que esta seja a ênfase principal de Paulo nesta passagem, por razões que
não cabe discutir aqui, algumas das quais estão apresentadas em nota de rodapé pelo editor e tradutor do
seu comentário para o inglês, John Owen. Ver: Commentary on The Epistle of Paul the Apostle to the
Romans by John Calvin, traduzido e editado por John Owen. Grand Rapids: Baker Book House, 1981
(volume XIX da série Calvin̕ s Commentary – Acts 14-28 – Romans 1-16), p. 360-361).

130
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

do exercício do justo juízo divino. Comentando o fato de Deus repudiar al-


guns do mesmo tronco de Abraão, como Ismael e Esaú e, depois, quase todo
o Israel, ele diz:

A história sacra repete isso algumas vezes, para que o admirável segredo da
graça de Deus se patenteie melhor nesta mudança. Reconheço que Ismael, Esaú
e outros foram alijados da adoção por sua própria falha e culpa, porquanto
se opuseram à condição de que cumprissem fielmente o pacto de Deus, o qual
violaram perfidamente. No entanto, este foi um benefício singular de Deus, ou,
seja, que se dignara preferi-los aos demais povos, como se diz no Salmo: “Ele
não agiu assim com nenhuma outra nação, nem lhes manifestou seus juízos”
[Sl 147.20].23

Mesmo usando estes e outros textos bíblicos, Calvino não se vê obrigado


a supor que Deus tenha dupla vontade, pois atribui à incapacidade de nossa
mente a falta de compreensão desse seu agir, sem que lhe seja imposta a res-
ponsabilidade por atos de suas criaturas. Ele ressalta:

Contudo, nem por isso Deus se põe em conflito consigo mesmo, nem se muda
sua vontade, nem o que quer finge não querer; todavia, embora nele sua vontade
seja uma só e indivisa, a nós parece múltipla, já que, em razão da obtusidade de
nossa mente, não aprendemos como, de maneira diversa, o mesmo não queira
e queira que aconteça. Paulo, onde disse que a vocação dos gentios era “um
mistério escondido [Ef 3.9], acrescenta, pouco depois [Ef 3.10], que nela mani-
festara a polupoi,kilon [multiforme] sabedoria de Deus. Porventura porque, em
decorrência da lerdeza de nosso entendimento, a sabedoria de Deus se afigura
múltipla, ou, como a verteu o tradutor antigo, multiforme, deveríamos nós, por
isso, sonhar no próprio Deus qualquer variação como se mudasse de plano ou
divergisse de si mesmo? Antes, quando não apreendemos como Deus queira
que se faça o que proíbe fazer, venha-nos à lembrança nossa obtusidade, e ao
mesmo tempo consideremos que a luz em que ele habita não em vão se chama
inacessível [1Tm 6.16], já que de trevas é rodeada.24

Ainda considerando esse assunto, Calvino vê nessa aparente dupla vontade


de Deus a resposta para outra objeção, a saber:

... Se Deus não só se serve da operação dos ímpios, mas inclusive lhes governa
os desígnios e intenções, é ele o autor de todas as impiedades e, consequente-
mente, os homens são imerecidamente condenados, se estão a executar o que
Deus decretou, uma vez que estão a obedecer-lhe à vontade?25

23 Institutas III.21.6. Destaques meus.


24 Ibid. I.18.3.
25 Ibid. I.18.4.

131
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

E nesse ponto ele faz uma diferenciação entre vontade e preceito, quando
diz:

Ora, erroneamente, eles confundem sua vontade com seu preceito, a qual de
inúmeros exemplos transparece diferir dele desmedidamente. Pois, visto que,
enquanto Absalão violou as concubinas do pai [2Sm 16.22], Deus quis com esse
ato infamante punir o adultério de Davi, entretanto nem por isso preceituou ao
filho celerado cometer o incesto, senão que o preceituou talvez com respeito a
Davi, como este mesmo fala acerca das insultuosas acusações de Simei. Pois,
enquanto confessa [2Sm 16.10] que aquele amaldiçoava por injunção de Deus,
de modo algum lhe recomenda a obediência, como se aquele cão insolente es-
tivesse obedecendo ao imperativo de Deus, mas, reconhecendo que a língua era
o azorrague de Deus, se deixa pacientemente castigar. Isto nos cabe realmente
sustentar: enquanto por instrumentalidade dos ímpios Deus leva a bom termo o
que decretou em seu juízo secreto, não são eles escusáveis, como se estivessem
obedecendo a seu preceito, o qual deliberadamente violam em sua desregrada
cupidez.26

E mais adiante conclui: “A não ser que esteja enganado, já antes expliquei
claramente como, em um mesmo ato, tanto se manifesta o delito do homem,
quanto refulge a justiça de Deus”27

5. COMO OS DOIS PONTOS DE VISTA PODEM SER VISTOS


EM CALVINO
Fiel ao seu método de interpretar e expor as Escrituras, é possível fazer
uma leitura de seus escritos tanto sob o ponto de vista supralapsariano quanto
sob o infralapsariano, embora não com a mesma ênfase e intensidade. Conforme
vimos acima, Calvino não faz uma dicotomia entre esses dois sistemas que,
depois dos seus dias, tornou-se foco de debates e até de divisão de denomina-
ções, entre grupos calvinistas.
Sua ênfase maior é sobre a eleição ou predestinação para a vida, assunto
que ele trata não no capítulo sobre a doutrina de Deus, mas no da doutrina da
salvação e depois que os pontos principais dessa já tinham sido tratados, e o faz
em resposta a uma pergunta que poderia surgir do fato de o evangelho (que ele
chama de pacto de vida) não ser pregado igualmente entre todos os homens e
de não ter igual aceitação mesmo entre aqueles a quem ele é pregado. Ele diz:

Mas, já que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente,
e entre aqueles a quem é pregado não acha a mesma receptividade, quer qua-
litativa, quer continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável
profundeza do juízo divino. Pois não há dúvida de que esta variedade serve
também ao arbítrio da eterna eleição de Deus. Porque, se é notório que pelo

26 Ibid. Destaques meus.


27 Ibid.

132
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

arbítrio de Deus suceder [sic] que a salvação é oferecida gratuitamente a uns,


enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem
grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma,
se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição
e predestinação. Questão assaz intrincada, como parece a muitos, porquanto
pensam não ser de modo algum coerente que da multidão comum dos homens
uns sejam predestinados à salvação, outros à perdição. Claramente se verá,
pela argumentação que empregaremos nesta matéria, que são eles que, por fal-
ta de discernimento, se enredam. Acresce ainda que na própria escuridão que
aterra se põe à mostra não só o lado útil desta doutrina, como também seu fruto
dulcíssimo. Jamais haveremos de ser claramente persuadidos, como convém,
de que nossa salvação flui da fonte da graciosa misericórdia de Deus, até que
sua eterna eleição se nos faça conhecida, a qual, mercê deste contraste, ilumina
a graça de Deus, a saber, que ele não adota à esperança da salvação a todos
indiscriminadamente; ao contrário, ele dá a uns o que nega a outros.28

Ao discorrer sobre a predestinação e a presciência como elementos cor-


relatos, sem que esta seja a causa daquela, ele diz:

Ninguém que queira ser tido por homem de bem e temente a Deus se atreverá a
negar simplesmente a predestinação, pela qual Deus adota a uns para a espe-
rança da vida, a outros destina à morte eterna, porém, a envolvem em muitas
cavilações, sobretudo os que fazem da presciência sua causa. E nós, com efeito,
admitimos que ambas estão em Deus, porém o que agora afirmamos é que é to-
talmente infundado fazer uma depender da outra. Quando atribuímos presciência
a Deus, queremos dizer que ele tem sempre e perpetuamente permanente sob
as vistas, de sorte que, ao seu conhecimento, nada é futuro ou pretérito; ao
contrário, todas as coisas estão presentes, e de fato tão presentes que não as
imagina como meras ideias – da maneira como imaginamos aquelas coisas das
quais nossa mente retém a lembrança –, mas as visualiza e discerne como se
estivessem verdadeiramente diante dele. E esta presciência se estende a todo o
âmbito do mundo e a todas as criaturas”.29

E depois de fazer essa correlação, ele define a predestinação como faz


hoje qualquer supralapsariano:

Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem
determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis
criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna;
a outros, a condenação eterna. Portanto, como cada um foi criado para um ou
outro desses dois destinos, assim dizemos que um foi predestinado ou para a
vida, ou para a morte.30

28 Institutas III.21.1. Destaques meus.


29 Ibid. III.21.5. Destaques meus.
30 Ibid. Destaques meus.

133
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Ao afirmar que a causa da eleição e da reprovação têm a mesma fonte, o


beneplácito divino, ele não deixa de reconhecer que esta não é uma doutrina
acessível ao entendimento humano, quando continua a dizer:

Tampouco se pode tolerar a obstinação dos que não permitem que se lhes po-
nha um freio com a Palavra de Deus, tratando-se de um juízo incompreensível
dele, o qual até mesmo os próprios anjos adoram. Com efeito, já ouvimos que
o endurecimento está não menos na mão e no arbítrio de Deus quanto depende
de sua misericórdia. Aliás, como o exemplo a que me referi previamente, tam-
pouco Paulo se esforça ansiosamente por isentar a Deus de falsidade e mentira;
apenas adverte que não é lícito à coisa modelada contender com seu modelador
[Rm 9.20]. Ora, aqueles que não admitem que alguém seja reprovado por Deus,
como se desvencilharão dessa sentença de Cristo: “Toda árvore que meu Pai não
plantou será arrancada?” [Mt 15.13]. Ouvem expressamente que aqueles que o
Pai celestial não teve por bem plantar em seu campo, como árvores sacrossan-
tas, estão evidentemente destinados à perdição. Se negam ser este um sinal de
reprovação, não há nada tão claro que lhes possa ser provado.31

Mas embora Calvino atribua ao beneplácito da vontade de Deus a es-


colha em criar e predestinar a uns para a vida e outros para a morte, como
lemos acima, ele de igual modo atribui a rejeição de Ismael e Esaú, como a de
todos os outros não eleitos para a vida, aos seus próprios pecados. São estas
suas palavras:

A história sacra repete isso algumas vezes, para que o admirável segredo da
graça de Deus se patenteie melhor nesta mudança. Reconheço que Ismael, Esaú
e outros foram alijados da adoção por sua própria falha e culpa, porquanto
se opuseram à condição de que cumprissem fielmente o pacto de Deus, o qual
violaram perfidamente.32

Certamente Calvino pode ser chamado de contraditório, se ele for


julgado à luz de nossa lógica de raciocínio. E quando ele sumaria o seu en-
sino sobre a doutrina da predestinação, é ainda mais claro sobre como ele
vê ambos os aspectos, tanto o da soberania de Deus em exercer sua livre
graça e misericórdia a quem quer, como o da responsabilidade humana, por
considerar a condenação dos não eleitos como o exercício da justiça de Deus
como retribuição pelos seus pecados. São essas suas palavras comentando a
passagem de Romanos 9. 19-23.

Portanto, estamos afirmando o que a Escritura mostra claramente: que designou


de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer

31 Ibid. III.23.1.
32 Ibid. III.21.6. Destaques meus.

134
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

que se salvem, e também àqueles que quer que se percam. Este desígnio, no que
respeita aos eleitos, afirmamos haver-se fundado em sua graciosa misericórdia,
sem qualquer consideração da dignidade humana; aqueles, porém, aos quais
destina à condenação, a estes de fato por seu justo e irrepreensível juízo, ainda
que incompreensível, lhes embarga o acesso à vida. Da mesma forma ensinamos
que a vocação dos eleitos é um testemunho de sua eleição; em seguida, a justi-
ficação é outro sinal de seu modo de manifestar-se, até que se chega à glória, na
qual está posta sua consumação. Mas, da mesma forma que pela vocação e pela
justificação o Senhor assinala seus eleitos, assim também ao excluir os réprobos,
seja do conhecimento de seu nome, seja da santificação de seu Espírito, mostra
com esses sinais qual será seu fim e que juízo lhes está preparado.33

Uma importante evidência de que Calvino jamais atribui a Deus a origem


do mal está na sua exposição do texto de Isaías 45.7, que tem sido usado por
muitos como se estivesse afirmando tal impropriedade. O texto diz: “Eu formo
a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o senhor, faço todas estas
coisas”. Comentando essa passagem, ele diz:

Os fanáticos torcem esta palavra “mal” como se Deus fosse o autor do mal, isto
é, do pecado; mas é bem óbvio quão ridiculamente eles abusam dessa passa-
gem do profeta. Isto é suficientemente explicado pelo contraste, cujas partes
devem concordar entre si; pois ele contrasta a “paz” com o “mal”, ou seja, com
aflições, guerras e outras ocorrências adversas. Se ele comparasse a “justiça”
com o “mal”, haveria alguma plausibilidade em seus raciocínios, mas este é
um claro contraste de coisas opostas entre si. Por conseguinte, não devemos
rejeitar a distinção natural de que Deus é o autor do “mal” da punição, mas não
do “mal” da culpa.34

Para Calvino, tanto a reprovação quanto a eleição são atos da vontade de


Deus, pois ela é a causa de tudo e, para ele, é grande improbidade meramente
indagar as causas da vontade divina (Institutas III.23.1-3). Ele diz:

A vontade de Deus é a tal ponto a suprema regra de justiça, que tudo quanto quei-
ra, uma vez que o queira, tem de ser justo. Quando, pois, se pergunta por que o
Senhor agiu assim, há de responder-se: Porque o quis. Porque, se prossigas além,
indagando por que ele o quis, buscas algo maior e mais elevado que a vontade
de Deus, o que não se pode achar. Portanto, contenha-se a temeridade humana
e não busque o que não existe, para que não venha, quem sabe, a acontecer que
aquilo que existe não ache. Afirmo que, com este freio, bem se conterá quem
quer que queira com reverência filosofar acerca dos mistérios de seu Deus.35

33 Ibid. III.21.7. Destaques meus.


34 Commentary on the Prophet Isaiah. Vol. III, p. 403 (Calvin̕ s Commentaries, vol. VIII). Grand
Rapids: Baker, 1981.
35 Institutas III.23.1.

135
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

Mas ao mesmo tempo ele usa a natureza pecaminosa do homem como


resposta à pergunta “por que Deus no início predestinou alguns à morte, os
quais, como ainda não existissem, não podiam ainda ser merecedores de juízo
de morte”. Desta forma, pressupõe a queda como a razão para a predestinação
para morte. Ele diz:

... à guisa de resposta lhes indaguemos, por nossa vez, se pensam que Deus
deve algo ao homem, caso o queira estimar por sua própria natureza? Como
estamos todos infeccionados pelo pecado, não podemos deixar de ser odiosos a
Deus, e isso não por crueldade tirânica, mas por razão de justiça mui equitativa.
Porque, se todos são passíveis de juízo de morte, por condição natural, os que
o Senhor predestina à morte, pergunto de que iniquidade sua para consigo, se
hajam de queixar-se?36

E continua com o argumento que bem atende à visão infralapsariana sobre


a causa da reprovação dos não eleitos, ao dizer:

Venham todos os filhos de Adão; contendam e alterquem com seu Criador


por que antes mesmo de serem gerados foram predestinados à perpétua miséria por
sua eterna providência. Que poderão vociferar contra esta vindicação quando,
em contrário, Deus os haverá de convocar ao exame de si próprios? Se de massa
corrupta foram todos tomados, não é de admirar se estão sujeitos à condena-
ção. Logo, não acusem falsamente a Deus de iniquidade, se de seu eterno juízo
foram destinados à morte, à qual são por sua própria natureza conduzidos por
vontade própria, queiram ou não queiram, eles mesmos sentem. Do quê (sic)
se faz evidente quão perversa é a afetação de vociferar contra Deus, porque
suprimem, deliberadamente, a causa da condenação que em si são compelidos
a reconhecer, para que o pretexto de Deus os livre. Com efeito, ainda que eu
confesse cem vezes ser Deus o autor de sua condenação – o que é mui verda-
deiro –, entretanto, não se purificarão do pecado que está esculpido em suas
consciências, e que a cada passo se apresenta ante seus olhos.37

Reconhecendo essa aparente incoerência, Calvino responde que a justiça


de Deus não está sujeita ao nosso questionamento e que a causa dessa conde-
nação está escondida nele mesmo. Ele diz nas Institutas III.23.4-7:

Objetam ainda se foram predestinados por disposição de Deus a esta corrupção,


que ora afirmamos ser causa de sua condenação. Porque, se é assim, quando
perecem em sua corrupção, outra coisa não estão pagando senão as penas de
sua miséria, na qual, por sua predestinação, Adão caiu e arrastou com ele
toda sua progênie. Deus, pois, não será injusto, que tão cruelmente escarnece
de suas criaturas? Sem dúvida confesso que foi pela vontade de Deus que todos

36 Ibid. III.23.1.
37 Institutas III.23.1, 2 ou 3.

136
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 117-138

os filhos de Adão nesta miserável condição em que ora se acham enredilha-


dos. E isto é o que eu dizia inicialmente: por fim, tem-se sempre de volver ao
mero arbítrio da vontade divina, cuja causa está escondida nele mesmo. Mas,
não se segue diretamente que Deus esteja sujeito a esta injúria. Pois em Paulo
encontramos isto: “Quem és tu, ó homem, que discuta com Deus? Porventura
o objeto moldado dirá àquele que o moldou: Por que me moldaste assim? Por
acaso não tem o oleiro poder para fazer de uma só massa um vaso para honra,
e outro para desonra?” [Rm 9.20, 21].38
Portanto, o Apóstolo não volveu os olhos com evasivas, como se estivesse em-
baraçado; simplesmente mostrou que a justiça de Deus é demasiado profunda e
sublime para poder ser determinada com medidas humanas e ser compreendida
por algo tão tacanho como é o entendimento humano.De fato, o Apóstolo con-
fessa que os juízos divinos são tão secretos [Rm 11.33], por cuja profundeza
seriam tragadas todas as mentes humanas, se aí tentassem penetrar.39

CONCLUSÃO
Calvino pode ser lido e interpretado de diferentes maneiras. Normalmente
ele é tido como um supralapsariano quando seus escritos são comparados com
as proposições e ênfases que são apresentadas pelos defensores dessa linha de
pensamento. Poucos veem traços do infralapsarianismo em suas obras, pro-
vavelmente porque, de fato, a ênfase na soberania de Deus e na incapacidade
do homem para conhecê-lo através do seu próprio raciocínio lógico é a que se
ressalta na sua volumosa obra. Também essa ênfase é a que encontramos na
própria Bíblia, pois seu propósito principal é apresentar quem Deus é e revelá-lo
através dos seus atributos e obra.
A coerência com essa ênfase é que leva Calvino a afirmar que “a Palavra
de Deus é uma espécie de sabedoria oculta, a cuja profundidade a frágil mente
humana não pode alcançar. Assim, a luz brilha nas trevas, até que o Espírito
abra os olhos ao cego”.40
Para que o leitor pudesse ter uma visão mais clara dessa ênfase e da
abordagem que Calvino faz sobre temas que hoje são discutidos na questão
lapsariana, optamos por fazer citações mais longas do que seria recomendável
para um trabalho meramente acadêmico. Assim, o leitor pode ter um quadro
maior do contexto em que Calvino faz suas observações e análises das Escri-
turas, sem ficar dependendo apenas da interpretação do autor desse ensaio.
À luz do que foi visto neste trabalho, não é possível classificar Calvino
em qualquer dessas duas linhas de pensamento (infra ou supralapsarianismo),
pois ele tanto defende que a causa da reprovação está na secreta vontade de
Deus (seu beneplácito) como no pecado do homem. Em razão dessa dupla

38 Ibid. III.23.4.
39 Ibid.
40 Exposição de 1 Coríntios, p. 89.

137
JOÃO ALVES DOS SANTOS, CALVINO E O LAPSARIANISMO

abordagem é que Fred H. Klooster, analisando o seu ensino, conclui que para
Calvino Deus é a “causa última que opera soberanamente, segundo seu bom
prazer”, e a mancha e a culpa do pecado que residem no homem são a “causa
próxima”, “pois o homem peca voluntariamente e é responsável por rejeitar
a bondade de Deus”.41
Como já foi dito anteriormente, no desenvolver dessa discussão, o com-
promisso de Calvino é com as Escrituras, independentemente de ser tido
como contraditório ou não. É a autoridade das Escrituras que tem valor e deve
ser aceita, e não a sabedoria humana, conforme deixa bem claro aquele que é
conhecido como o “príncipe dos exegetas bíblicos”.

ABSTRACT
The purpose of this article is to analyze some of Calvin’s writings on
the sovereignty of God and the responsibility of man in light of the present
discussion of the order to be given to the decrees of election and reprobation
of men in relation to the fall in God’s fulfillment of his purposes. It tries to
ascertain whether it is possible to classify the reformer in any of the two main
lines of thought, generally known as supralapsarianism and infralapsarianism.
The author chooses the negative answer in light of Calvin’s approach to the
biblical texts studied and his assumption that is not given to man the ability
to understand the divine decrees, and how they are performed by his Creator,
through the creature’s finite and limited reasoning.

KEYWORDS
Calvin; Supralapsarianism; Infralapsarianism; Predestination; Reproba-
tion; Fall.

41 KLOOSTER, Fred H. A doutrina da predestinação em Calvino. Trad. Sabatini Lalli. Santa


Bárbara D̕ Oeste, SP: SOCEP, 1992, p. 85.

138
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

The Reformers and Missions:


Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter,
and Tucker’s Arguments – Part 2
Elias Medeiros*

ABSTRACT
Since the nineteenth and the early twentieth century, mission historians
such as Gustav Warneck and Kenneth Scott Latourette have tended to portray
the Protestant reformers as indifferent to foreign missions or world missions. The
author describes the reasoning of such historians and argues that they and several
of their more recent disciples do not deal adequately with the primary sources.
All too often, many of them simply rely on secondary sources and do not make
the effort to evaluate the original documentation that might provide a different
perspective on the subject. In so doing, they help to perpetuate an unjustified bias
against the reformers and missions. It is imperative to assert the importance the
reformers attributed to the universal spread of the gospel and the reasons they were
not so emphatic about missions as compared to later generations of Protestants.

KEYWORDS
Protestant reformers; Foreign missions; Martin Luther; John Calvin;
Gustav Warneck; Kenneth S. Latourette.

INTRODUCTION
The purpose of the previous article and this article is to investigate the
statements and the reasoning of Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and

* Elias dos Santos Medeiros earned his master (M.A., Th.M.) and doctoral (D.Min., D.Miss.,
Ph.D.) degrees from Reformed Theological Seminary, in Jackson, Mississippi. He is a lecturer of
Missions at this seminary and a visiting professor at Andrew Jumper Graduate Center. He authored the
book Evangelization and Pastoral Ministry. The first part of the article was published in Fides Reformata
XVIII-1 (2013).

139
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

Tucker regarding the reformers and “missions.” This present article continues
the study of the subject in the previous article (Part 1), highlighting Warneck’s
arguments against the apparent “silence” of the reformers, and adding final
comments on the main arguments of the other mission historians and on their
own silence regarding the necessary documentation to support their claims
against the reformers.

1. WARNECK’S ARGUMENTS AGAINST THE SILENCE OF


THE REFORMERS
Most of Warneck’s critiques are directed toward the sixteenth-century
Lutheran theologians, especially Martin Luther.1 Ten out of sixteen and a half
small print pages on the subject are critiques of Martin Luther (1483-1546) and
Philip Melanchthon (1497-1560). Warneck dedicates one page to Martin Bucer
(1491-1551) and Ulrich Zwingli (1484-1531), one and a half pages to John
Calvin (1509-1564), one and a half pages to Adrianus Saravia (ca. 1532-1613),
and a half page to Theodore Beza (1519-1605).
Throughout his chapter dealing with the Reformation, Warneck supports
several verdicts. He clearly states that the reformers in general, with the ex-
ception of Adrianus Saravia, were devoid of any “missionary action,” lacked
“missionary zeal,” were strangely silent on “the recognition of the missionary
obligation,” darkened “the permanent missionary task of the church,” did not
speak of “foreign mission work,” had “no proper missionary ideas” due to their
eschatological position and their concept of history, understood “the missionary
commandment [of Matthew 28:20]” as being “valid only for the Apostles,”
knew nothing about “the duty of instituting missions,” did not recognize “such
a duty,” and assumed that “a special institution for the extension of Christianity
among non-Christian nations, i.e. for missions, is needless.”2
Warneck’s arguments can be classified under biblical, theological, and histo-
rical categories. In the biblical category is the interpretation and the implications
of the so-called missionary texts, Matthew 28:18-20; Mark 16:15; Luke 24:46-48;
John 20:21; Acts 1:8; 12:21; 26:16-18 (including the views on the apostolate).
The theological category includes the doctrines of predestination, eschatology,
and the sovereignty of God: “The kingdom of Christ is neither to be advanced

1 Numerous Lutheran scholars have already addressed the issue of Martin Luther and missions.
See, for instance, Klaus Detlve Schulz, “Lutheran Missiology of the 16th and 17th Centuries,” in Lutheran
Synod Quarterly 43:1 (March 2003), 4-53; Ingemar Öberg, Luther and World Mission: A Historical and
Systematic Study with Special Reference to Luther’s Bible Exposition, translated by Dean Apel (Saint
Louis: Concordia Publishing House, 2007); James A. Scherer, “Luther and Mission: A Rich but Untested
Potential,” in Missio Apostolica: Journal of the Lutheran Society of Missiology 2 (May 1997): 17-24,
reprinted in Luther Digest: An Annual Abridgement of Luther Studies 5 (1997): 62-68; Rhonda J. Hoehn,
“Martin Luther and Mission....”
2 Gustav Warneck, Outline of a History of Protestant Missions from the Reformation to the Present
Time. 3rd ed. New York: Fleming H. Revell, 1906, 8-23.

140
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

nor maintained by the industry of men, but this is the work of God alone.”3 Under
the historical instances Warneck includes the attempt of “the planting of a French
colony in Brazil” in 1555. He does not, however, consider this undertaking to
be a church initiative, explaining it instead as part of “the ecclesiastical duty of
the civil authority; in particular, of the colonial civil authority.”4
Warneck concluded that the reformers were silent concerning the work of
missions (the sending of “missionaries” to non-Christians) and that the primary
causes were their theological beliefs and their interpretation of the “missionary”
texts. Under the biblical arguments, Warneck asserts that the reformers, with
the exception of Adrianus Saravia,5 held the following views regarding the
“Great Commission” texts: they always thought of “ in the sense of
the Christian nations who have sprung from the heathen;” even when they
6

(especially Luther) maintained the emphasis on “the universality of Christia-


nity”, it is “never set in connection with a summons to send messengers of the
Gospel where its message has not yet come;”7 such “world-wide preaching of
the Gospel... is regarded by him [Luther] as accomplished;”8 and “the missio-
nary commandment [was] valid only for the Apostles.”9

3 Ibid., 20. The doctrines of predestination and the sovereignty of God were one of the key
doctrinal issues behind Warneck’s arguments against the reformers and their “silent” regarding “the
Christianization of the world,” as Warneck defines it.
4 Ibid., 23. Unfortunately Warneck does not use a primary source that reports the “missionary”
journey of Reformed ministers sent from Geneva. He instead uses William Brown’s The History of the
Christian Missions of the Sixteenth, Seventeenth, Eighteenth, and Nineteenth Centuries, 3 Volumes (Lon-
don: Ober Against Charterhouse, 1864). His quotation from page 7 of Brown’s first volume appears to
be a mistake, since that page does not deal with the mission enterprise in Brazil. The first chapter, pages
1-6, of Brown’s work discourses on the “Propagation of Christianity by the Swiss: Brazil.” Warneck’s
statement that “four clergymen ... actually made the journey” (Warneck, Outline of a History, 23) is
also a mistake based on an apparent superficial reading of Brown on Jean de Léry’s document. This
shows that Warneck’s critique of the “French colony in Brazil,” besides being very superficial, does not
represent the reality of that “missionary” endeavor.
5 Warneck comments on Adrianus Saravia’s treatise of 1590, De diversis ministrorum evangelii
gradibus, sic ut a Domino fuerunt instituti [Concerning the different orders of the ministry of the Gospel,
as they were instituted by the Lord], by saying that “it is not indeed a directly missionary treatise, but it
deals with missions in a special chapter, in which he adduces proof that the Apostles themselves could
only have carried out the missionary command in a very limited measure, and therefore this command
applied not merely to them personally, but to the whole Church in all subsequent times” (Warneck,
Outline of a History, 20). Warneck recognizes that Saravia was defending “the episcopal constitution
over against the Calvinistic” and that Saravia speaks of “missions” when he argues for the planting of
new churches beyond “the maintenance and strengthening of existing” ones (Warneck, Outline of a
History, 21).
6 Warneck, Outline of a History, 12.
7 Ibid., 12.
8 Ibid., 14.
9 Ibid., 17.

141
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

It seems that no comment of Luther would convince Warneck of the


reformer’s vision for preaching the gospel to all nations. Warneck always finds
a way to dismiss his “mission” ideas. An example is his quoting the following
from one of Luther’s Ascension sermons:

“Go into all the world” raises a question ... as to how it is to be understood and
held fast, since verily the Apostles have not come into all the world, for no
Apostle has come to us, and also many islands have been discovered in our day
where the people are heathen and no one has preached to them: yet the scripture
saith their voice has sounded forth into all lands. Answer; their preaching has
gone out into all the world, though it has not yet come into all the world. That
outgoing has been begun and gone on, though it has not yet been fulfilled and
accomplished; but there will be further and wider preaching until the last day.
When the Gospel has been preached, heard, published through the whole world,
then the commission shall have been fulfilled, and then the last day shall come.10

Warneck even declares that “these and similar sayings... are repeatedly
found” throughout Luther’s writings. After quoting Luther, however, and
making such statements regarding his writings, Warneck immediately dismis-
ses the Reformer’s commitment to the preaching of the gospel to the nations
by claiming “here again there is no reference to any systematic enterprise.”11
Another clear example of his preconceived attitude toward the reformers
is observed in Warneck’s comments on Zwingli’s position. Warneck quotes
the reformer: “[There are apostles still, and] their office is ever to go among the
unbelieving, and to turn them to the faith, while the bishop remains stationary
by those committed to his care.”12 He also highlights Zwingli’s express assertion
that the New Testament apostles “did not go everywhere; and he [Zwingli]
infers from this that the work of world-missions which was begun by them
must be continued.”13 Saying that Zwingli “does not draw the conclusions”
(perhaps, to send missionaries?), the German missiologist then offers the
following theoretical conclusion:

At best his view can be thus explained: if in the present time messengers are
willing to go at their own risk beyond the bounds of Christendom, they ought to
be certain that they have the call of God to their mission, but in what he says there
is not a word as to the duty on the part of the church to send out missionaries.14

Warneck falls prey to one of his own criticisms toward scholars who
defend the missionary ideas of the reformers. He earlier dismisses scholars

10 Ibid., 14
11 Ibid., 14.
12 Ibid., 19.
13 Ibid., 19.
14 Ibid., 19.

142
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

who try “by isolated quotations, principally from the writings of Luther ... to
disprove” the theory that the reformers were not interested in missions. Warneck
continues his reasoning by saying,

On closer examination these quotations do not bear out what they are meant
to prove; and less and less has the fact come to be called in question that the
insight into the permanent missionary task of the church was really darkened
in the case of the Reformers.15

Does not Warneck do that as well? Does not he use some isolated quotations
without serious exegetical consideration of the contexts and doctrinal presuppo-
sitions, to make startling claims against the reformers? The same occurs when
he considers the case of the Huguenots in Brazil, failing to explore the original
work of Jean de Léry and others, but merely assuming the report and conclu-
sions of the nineteenth century mission historian and pastor William Brown.
One of Warneck’s main criticisms of Calvin is for the reformer’s view
that the apostolate is a munus extraordinarium (extraordinary office) “which
as such has not been perpetuated in the Christian church”16 and that “the King-
dom of Christ is neither to be advanced nor maintained by the industry of men,
but this is the work of God alone.”17 Warneck then turns back to the argument
of silence, contending that such silence is one factor that led the reformers
to view any “special institution for the extension of Christianity among non-
-Christians” as “needless.”18
Warneck, however, does not take into account the controversies of Calvin’s
time. Part of George Robson’s editorial comments on Warneck’s criticism of
Calvin reveals some nuances within the context of the reformer. Robson writes:

The sound exegesis, historic insight, largeness of view, and fine regard to the
general scope of the passage, which distinguished Calvin as a commentator,
have not failed him in his exposition of these words of the Risen Lord; but they
are polarised by the controversies of his time. And so the words of our Lord are
shown to be in clear and broad antagonism to certain Romish and Anabaptist
teachings.19

A careful reading of Calvin’s comments on Matthew 28:16-20; Mark


16:15-20; and Luke 24:50-53 would have given the German missiologist a
more precise picture of the biblically grounded “missionary” enthusiasm of the
reformer of Geneva. Calvin’s statements on Matthew 28:20 offer an example.

15 Ibid., 9.
16 Warneck, Outline of a History, 19.
17 Ibid., 20.
18 Ibid., 20.
19 Robson’s editorial comment in a footnote. Warneck, Outline of a History, 20.

143
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

“Teach all nations.” Here Christ, by removing the distinction, makes the Gentiles
equal to the Jews, and admits both, indiscriminately to a participation in the
covenant. Such is also the import of the term: go “out;” for the prophets under
the law had limits assigned to them, but now, “the wall of partition having been
broken down” (Ephesians 2:14), the Lord commands the ministers of the gospel
to go to a distance, in order to spread the doctrine of salvation in every part of
the world. For though, as we have lately suggested, the right of the first-born
at the very commencement of the gospel, remained among the Jews, still the
inheritance of life was common to the Gentiles. Thus was fulfilled that prediction
of Isaiah (49:6) and others of a similar nature, that Christ. was “given for a light of
the Gentiles, that he might be the salvation of God to the end of the earth.”20

Consider also Calvin’s application based on the same passage:

“Even to the end of the world.” It ought likewise to be remarked, that this was
not spoken to the apostles alone; for the Lord promises his assistance not for a
single age only, but “even to the end of the world.” It is as if he had said, that
though the ministers of the gospel be weak and suffer the want of all things: he
will be their guardian, so that they will rise victorious over all the opposition
of the world. In like manner, experience clearly shows in the present day, that
the operations of Christ are carried on wonderfully in a secret manner, so that the
gospel surmounts innumerable obstacles.21

Even though the reformers were not explicit in the application of Matthew
28:18-20 due to their anti-Catholic and anti-Anabaptist postures, it would not
necessarily and logically follow that they were silent or anti-mission at all. A
person’s opposition to the creation or establishment of missionary organizations
or mission agencies for the recruiting, supporting, and sending of “missiona-
ries,” does not imply that he or she opposes the preaching of the gospel to all
nations nor the planting of churches among all peoples. It may simply mean
that the person believes the church is the only means instituted by God for that
endeavor and that ordained ministers of the gospel are the ones to preach the
gospel everywhere according to God’s sovereign choosing and leading. After
all, that was the case in the church of Antioch of Syria:

Now in the church that was at Antioch there were certain prophets and teachers:
Barnabas, Simeon who was called Niger, Lucius of Cyrene, Manaen who had
been brought up with Herod the tetrarch, and Saul. As they ministered to the
Lord and fasted, the Holy Spirit said, “Now separate to Me Barnabas and Saul
for the work to which I have called them.”22

20 Calvin on Matthew 28:20. Italics added.


21 Ibid. Italics added.
22 Acts 13:1-2. Italics added.

144
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

Very closely related to the “apostolate” subject is the case of Adrianus


Saravia, which has been used out of proportion as an argument against the
reformers in general. George Robson, the editor of Warneck’s history, made a
relevant observation regarding this matter.

What ought to be noticed is that neither Erasmus nor Saravia, to whom Dr. War-
neck afterwards refers, saw the missionary duty of the church in such a light as
to make it matter of a special treatise or of a distinct call to action. Their views
on missions were expressed incidentally, by the one in a treatise dealing with
homiletics, by the other in a treatise dealing with Church polity.23

Most of those critiques referred not to the reformers’ interpretation of the


biblical passages, but the application of such passages to “missions.” But to
conclude that someone does not apply a passage in a particular way does not
mean that the scholar is purposely opposing other applications of the passage.
When Calvin, for instance, deals with the so-called Great Commission texts,
his concerns have to do with the controversies of his time and “so the words of
our Lord are shown to be in clear and broad antagonism to certain Romish and
Anabaptist teachings.”24 This does not mean that Calvin was purposely silent
and opposed to the evangelization of the world. Without exegeting Calvin more
carefully in his context, Warneck simply concluded that his apparent silence
meant opposition to the spread of the gospel to the whole world. Unfortunately,
Warneck did not explore all of Calvin’s theology of the sovereignty of God, nor
any other numerous texts in which he explicitly teaches about the preaching
of the gospel to the whole world.
A superficial look at John Knox and his ministry in Scotland during the
sixteenth century may suggest that Knox did not care for the spreading of
the gospel in other lands. Besides his declaration to Queen Mary against the
Roman Catholic Church, the other most quoted and publicized words of John
Knox are “Give me Scotland or I die.” What is overlooked is that Knox and his
colleagues were very concerned with the evangelization of the world, in spite

23 See footnote 1, page 9, of Warneck’s Outline of a History. Adrianus Saravia was not criticizing
the reformers. The title of Chapter XVII of Saravia’s book is this: “The command to preach the gospel
to all nations is still binding on the church, although the apostles are removed to heaven: and apostolic
authority is necessary thereto” (1840, 161). When carefully read, we immediately realize that he follows
the same exegetical principle of John Calvin when dealing with Matthew 28:20. Saravia writes: “The
command to preach the Gospel and the mission to all nations were so given to the Apostles, that they
must be understood to be binding on the Church also. The injunction to preach the Gospel to all nations
of unbelievers had respect not only to the age of the Apostles, but to all ages to come till the end of
the world” (161). Saravia’s 276-page tract appeared in 1590 and was first printed in England in 1591.
On July 9, 1590, Saravia was “incorporated at Oxford being before D.D. of the University of Leyden”
(Preface of the translator, v). This treatise was about ecclesiastical polity or church government. Saravia
was not criticizing the reformers regarding the subject of missions.
24 See George Robson, footnote 1, page 20, in Warneck’s Outline of a History.

145
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

of the conditions of the Reformation in Scotland and the “practically excluded


opportunity or room for the consideration of the duty of the church to the
heathen world.”25 The Scottish Confession of 1560 ends with this prayer: “Arise
(O Lord) and let thy enemies be confounded; let them flee from thy presence
that hate thy godlie Name. Give thy servands strenth to speake thy word in
bauldnesse, and let all Natiouns cleave to thy trew knawlege. Amen.”26
Under the theological arguments, Warneck asserts that the reformers’
doctrines of predestination (sovereign grace) and eschatology “paralyze every
thought of missionary work among them [the heathen and the Jews].”27 Warneck
goes on to quote the reformers and make inferences without considering the
context in which they were addressing such affirmations. He claims that
the doctrine of election led the reformers to the following conclusions: “God
Himself cares for the extension of the Gospel through the world;”28 “a human
missionary agency does not lie in the plan of His decree;”29 “a regular mis-
sionary institution lay entirely outwith the circle of [their] ideas;”30 “special
missionary institutions on the part of the church after the times of the Apostles
are therefore not necessary;”31 and, “Christians are required to do nothing else
than what they have done hitherto; let every one occupy his station for the
Gospel, and the Kingdom of Christ will grow.”32
Warneck was simply assuming and implying that the reformers were not
active in the preaching of the Gospel. On the contrary, the reformers unders-
tood that they were servants of a sovereign God and that this sovereign God
would be using them for the spreading of the gospel in their place and in due
time throughout the world. Such attitude, however, did not stop Calvin, for
instance, from training preachers and sending them throughout Europe and
even South America.33

25 See George Robson, footnote 1, page 20, in Warneck’s Outline of a History.


26 In Philip Schaff, The Creeds of Christendom, Volume 3 (Grand Rapids: Baker Books, 1996),
479. The English words are quoted according to the Old Scottish English format.
27 Warneck, Outline of a History, 15.
28 Ibid., 18. Warneck implies that the reformers assumed that since, it is God responsibility, we
should stay out of His way and let Him do His Work without our participation.
29 Ibid., 16.
30 Ibid.
31 Ibid., 18.
32 Ibid., 19. Warneck does not offer any explanation on the context of Martin Bucer’s statement.
Bucer is not teaching that Christians should be passive, but that they should be found faithful in the place
where the Lord had put them. Of course the reformers, due to their biblical ecclesiology, understood that
the work of the preaching the gospel to all nations was given to the church “through special Apostles
[preachers]” not to an institution such as the Roman Catholic orders. Unfortunately, Warneck does not
explain the theological and biblical background on which the reformers grounded the preaching of the
gospel. And once again he appeals to the “argument of silence” by criticizing Bucer for knowing nothing
“of the duty of instituting missions” (Warneck, Outline of a History, 18).
33 See chapter 5 of my Ph.D. dissertation.

146
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

The reformers’ understanding of eschatology and its implications for the


preaching of the gospel worldwide was correct. Since the time of the apostles
the work of expansion of the true Christian faith had been related to the work
of the Holy Spirit. The reformers did not idly wait for a might work of the Spirit
but actively engaged in preaching and spreading the true gospel throughout
Europe and, when the doors were opened, beyond Europe.
Warneck and Latourette clearly believe that the work ought first to be
doctrinally established before attempting work among the heathen. Their defi-
nition of heathen, however, does not correspond to the biblical definition and
description of such groups. Besides, Warneck (and Latourette) later report in
their works that the rapid spread of the gospel among all the nations did not
take place until the first Evangelical Awakening, which took place among those
of Calvinist tradition. Unfortunately neither historian went back to correct his
critique of the sixteenth-century reformers. At the end, the reformers were
correct in their interpretation of the Scriptures, and in their perseverant waiting
for the day when doors would be opened wide for the preaching of the gospel.
Consider the following findings issued by both Warneck and Latourette.
Warneck wrote that “there must first come a religious revival to make
the dead bones live, and this revival came – one of the greatest and most
permanent known in Christian church history.”34 This awakening took place
during the eighteenth century, and especially through Calvinist preachers like
George Whitefield and Jonathan Edwards. When writing on “the present age
of missions,” Warneck understood that “the new spiritual revival quickened
evangelical Christendom to the understanding of the missionary signal, which
God gave in a series of historic events by which He opened the doors of the
world.”35 Warneck missed the reformers’ eschatological prediction. The refor-
mers understood that such revival would come and that until then they would
continue to preach the gospel wherever they were and whenever doors were
opened. Revival would not quicken the “understanding of the missionary
signal,” but would boost the evangelization of the world – a desire already
expressed and taught by the reformers.
The reformers rightly taught that God is the One who works through
his servants, but in His time. He rules over every event. Warneck says, “In-
dependently of the religious revival, events happened which drew attention
to the non-Christian world,” but he overlooks the fact that at the time of the
Reformation the reformers were already alerted toward such events as well.
Warneck continues his thesis by declaring that “Through the conjunction
of these events with the spiritual awakening, which was a clear evidence of
the Divine leading, the Holy Ghost recalled the almost forgotten missionary

34 Warneck, Outline of a History, 70.


35 Ibid., 74.

147
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

commandment, and, by thus giving to the newly awakened life of faith a missio-
nary direction, brought about the present age of missions.”36 That was precisely
what the reformers were praying and waiting for. Such commandments had
never been forgotten by the reformers, especially John Calvin and the Puritans
in general. This subject has been extensively dealt with by scholars such as De
Jong, Rooy, and Murray.37
Latourette comes to the same conclusion, but there is a nuance in his report
that distinguishes it from the underlined critiques of Warneck. Latourette un-
derstands that the Great Century of Mission was preceded by a constant attempt
of the Protestants to evangelize the world. He does not say, as Warneck does,
that only now the “missionary commandment” was taken seriously by the Pro-
testants. He instead uses terms like “more vigorous” or “increased” to describe
the development of the expansion of the Protestants. He, therefore, assumes that
such initiatives had been present since the beginning, even at the time of the Re-
formation. Latourette had always been very condescending toward the reformers
and their involvement and commitment to the spread of the gospel worldwide
during the Reformation.3389 Latourette believes that, with the eighteenth century
Protestant revival (awakening), “interest of Protestants in extending their faith to
non-Christian peoples increased with each century and did not, like that of the
Roman Catholics, have a brilliant rise followed by a discouraging and prolonged
decline.”39 Latourette seems to assume that the desire and attempts to evangelize
the world were already present during the Reformation.
Latourette also states that “as the eighteenth century wore on religious
awakenings brought new life to British Protestantism, both in the British Isles
and in North America.”40 He becomes more explicit, however, regarding the
role and the place of the awakenings in world evangelization when he conclu-
des in his fourth volume that “the new Protestant missionary movement was
largely the outgrowth of the awakenings of the seventeenth and especially of
the eighteenth century and was to be reinforced by the many revivals of the
nineteenth century.” Also significant is his statement that “it was chiefly an

36 Ibid.
37 See James A. De Jong’s doctoral dissertation, As the Waters Cover the Sea: Millennial Expec-
tations in the Rise of Anglo-American Missions 1640-1810 (Laurel: Audubon Press, 2006), original
publication by J. H. Kok N. V. Kampen, Netherlands, 1970; Sidney H. Rooy’s doctoral dissertation,
The Theology of Missions in the Puritan Tradition: A Study of Representative Puritans: Richard Sibbes,
Richard Baxter, John Eliot, Cotton Mather & Jonathan Edwards (Laurel: Audubon Press, 2006), original
publication by Eerdmans, 1965; and Ian H. Murray, The Puritan Hope: Revival and the Interpretation
of Prophecy (Edinburgh: The Banner of Truth, 1991), first published in 1971.
38 See chapter 5 of my Ph.D. dissertation.
39 Kenneth Latourette, A History of the Expansion of Christianity: Three Centuries of Advance
A.D. 1500-1800, Vol. 3 (New York and London: Harper & Brothers Publishers, 1939), 50. Bold added.
40 Ibid., Vol. 3, 49.

148
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

expression of the strain within Protestantism which is sometimes known as


Evangelicalism.”41 Personal and communal revivals are the work of God. As
the Psalmist prayed: Will You not revive us again, that Your people may rejoice
in You?”42 Or as Habakkuk the prophet prayed: “O Lord, I have heard your
speech and was afraid; O Lord, revive Your work in the midst of the years!
In the midst of the years make it known; In wrath remember mercy (3:2).”
In the category of historical arguments, Warneck uses only one case stu-
dy: the French attempt to establish a colony in South Brazil in 1555. A priori,
Warneck cautions his readers “against magnifying [this undertaking] into a
great missionary effort on the part of the Reformed church”43 and he stresses
Durand de Villegagnon’s initiative, personal interest, and treason, rather than the
work of the Reformed group from Geneva sent by Calvin and by the Genevan
“Venerable Company of Pastors.” It appears that Warneck did not carefully
consult any primary historical information regarding this South American case.
Warneck comments more on Villegagnon than on the Calvinist group from
Geneva and their work while on the Brazilian coast. Villegagnon turned against
the Reformed group from Geneva and went back to the teachings and practices
of the Catholic Church. He persecuted and even murdered some of those Genevan
believers, and was finally forced to leave Brazil by the Portuguese who had
occupied the region since 1500. Without looking into the primary sources,44 and
without reading and exegeting them carefully, Warneck simply concludes that
despite the hope raised by one of the Genevan pastors “that ‘these Edomites
[referring to the natives in Brazil] might still become Christ’s possession’[45]
if new settlers [more Huguenots] should come, the enterprise [of 1556-1558]
certainly never got the length of an earnest missionary endeavour.”46 This

41 Kenneth Latourette, A History of the Expansion of Christianity: The Great Century A.D. 1800-A.D.
1914: Europe and the United States of America, Volume 4 (New York and London: Harper & Brothers
Publishers, 1941), 65.
42 Psalm 85:6. See also Psalm 71:20; 80:18; 119:25, 37, 40, 88, 107, 149, 154, 156, 159; 138:7;
143:11.
43 Warneck, Outline of a History, 23.
44 Primary sources include Calvin’s correspondence, Calvin’s commentaries, Jean de Léry’s ethno-
graphic report to the Genevan’s Reformed group to Brazil, Jean de Léry’s account of the deaths of three
of his Huguenot’s friends under Villegaignon, the register of the Company of Pastors of Geneva in the
time of Calvin, just to mention some. Warneck could not access the sources which are now available and
relatively easy to obtain through inter-library loans, online resources, and microfilms. Numerous other
research in English, German, French, Portuguese, Dutch, and Spanish has been done and published on
this topic in the past hundred years (since Warneck’s death). Most are available in libraries and bookstores
throughout the world.
45 Statement attributed to Richier according to William Brown and quoted by Warneck (Outline
of a History, 23).
46 Warneck, Outline of a History, 23.

149
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

was the final evaluation and judgement of Warneck regarding the Calvinist
undertaking to reach the non-Christians in South America.
Warneck then comes to his final comments and explanation for the lack
of any “real missionary activity” after the Reformation, especially in Ger-
many.47 “The reason of this,” states Warneck, “did not lie only in the fact that
the world beyond the sea had never as yet come within the purview of Ger-
man Protestantism,” nor in the fact “that the political conditions, chiefly the
unhappy Thirty Years’ War, did not allow missionary enterprise to be thought
of.”48 The main reason for such silence towards any “real missionary activity”
among the reformers and especially after the Reformation, according to War-
neck was this: “The reason still lay in the theology which either did not permit
missionary ideas to arise at all, or, if these began to find desultory expression,
most keenly combated them.”49 In other words, after everything is said and
done, Warneck’s main bias toward the reformers comes to one single point:
he disliked and misrepresented their theology, especially the doctrine of the
sovereignty of God and election.
I discussed Warneck’s doctrinal argument in Chapter 5 of my Ph.D. dis-
sertation. It is sufficient to keep in mind that the doctrines of the sovereignty of
God and predestination are the ultimate theological card sustained by Warneck.
The other has to do with his historical reasoning in order to dismiss the Genevan
and Dutch missions to South America where Reformed pastors and other mem-
bers of the Reformed community were sent to plant churches and to establish
Protestant colonies in the New World. Let us now turn to how Latourette, Neill,
Kane, Winter, and Tucker have ostensibly assumed and appropriated Warneck’s
arguments and propagated them through their works.

2. LATOURETTE, NEILL, KANE, WINTER, AND TUCKER:


WARNECK’S FOLLOWERS
The purpose of this section is to highlight two things. The first is the fact
that Warneck was, as Bosch and others have already stated, “one of the first
Protestant scholars who promoted” the view that the reformers were silent re-
garding even the “idea of missions.”50 The second is to evaluate how directly
or indirectly Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker follow the theses of
the contemporary “father of missiology,” which have been discussed.

47 Ibid. Warneck had already generalized this final thesis in Chapter I of his book when he dealt
with selective writings of both Lutheran and Calvinist theologians.
48 Ibid., 25.
49 Warneck does not see any other explanation but that “it was still essentially the views of the
Reformers which determined the attitude of orthodoxy to missions, only these views assumed a much
more systematic and polemical cast” (Ibid., 25).
50 David J. Bosch, Transforming Mission, 244. For more information regarding the literature on
this thesis, see Chapter 2.

150
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

2.1 Kenneth Latourette, the contemporary broadcaster –


the main arguments
Warneck never ministered outside Germany, although his influence went
beyond his geographical borders. Latourette, on the other hand, had a very limi-
ted cross-cultural experience, spending less than two years (July 1910-March
1, 1912) in China, teaching American History through the Yale-China program.
He returned to the United States on March 1, 1912 due to ill health and the
oncoming Chinese revolution.51 Latourette’s identifiable causes can be traced
back to Warneck’s main arguments. Let us consider such arguments in light
of the reformers’ perspectives, logical reasoning, and historical evidence. La-
tourette summarizes his arguments under six main subheadings.52
First, due to “the initial stages of the movement [theology, controversies,
organization] its members had little leisure for concern for non-Christians outside
of Western Europe.” Latourette’s apparent caustic remark – “little leisure” – im-
plies that “missions” (the preaching of the gospel beyond the borders of Western
Europe) was not in the reformers’ radar. Second, “several of the early leaders
disavowed any obligation to carry the Christian message to non-Christians.”
Who were those “early leaders” to whom Latourette refers? What did they
really say and write that explicitly “disavowed any obligation” to reach out to
the non-Christian world? What does Latourette mean by “non-Christians” and
what historical data (evidence) does he use to support his claim that the early
leaders of the Reformation “disavowed any obligation?” These are questions
that Warneck tries to answer, but on which Latourette is simply silent.
Third, “preoccupation with the wars which arose out of the separation of
the Protestants from the Roman Catholic Church,” and who were so preoccu-
pied with those wars that they dismissed any initiatives to preach the gospel
beyond Western Europe. Was Western Europe really Christian? What kind of
people groups were present in that part of the world at that time? Fourth, “the
comparative indifference of Protestant governments to spreading the Christian
message among non-Christians.” The argument here favors the Roman Catho-
lic governments and assumes that Catholic monarchs were “mission-minded”
Christian leaders. Were the Roman Catholic governments really concerned with
spreading the true gospel of the Lord Jesus Christ among the non-Christians?
Fifth, “Protestants lacked the monks who for more than a thousand
years had been the chief agents for propagating the faith.” This seems to be a

51 Latourette was commissioned at the annual meeting of Yale-in-China at the “Yale Commence-
ment” in 1910. He calls those years in China, “The Missionary Years” in his autobiographical work
Beyond the Ranges: An Autobiography (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), pages 37-46. He hoped to
return to China “In March, I left for the United States, hoping that a long summer in my old home in
Oregon would bring complete restoration. So confident was I of resuming my work in Changsha that I
purchased a round-trip ticket on a Yangtze steamer” (page 45). He was never able to return to Changsha.
52 Ibid., 25-27.

151
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

fallacious theory intended to please Roman Catholics. First, it is mentioned


by Warneck. Now, it is broadcast by Latourette. It assumes that the monks
were really spreading the biblical faith and that the Protestants should have
established Protestant orders. Calvin was not opposed to the Roman Catholic
orders just because he was anti-everything that was Catholic. It was due to his
ecclesiology.53 The reformers believed that it was the role and the responsibility
of the church through its leadership, especially its ordained ministers, to train,
support, and send those preachers with the ecclesiastical authority to preach
the gospel. Calvin was ecclesiocentric, not para-church oriented.54 Para-church
organizations have become the clutches of the local body of believers. Most
local churches and denominations are not willing or are limited in their ability
to take over the responsibility of reaching out to the world with the gospel.
Every mission agency and mission organization should be accountable theo-
logically, strategically, and financially to the local body of believers. After all
they recruit their workers and support from the local churches.
Sixth, “the chief reason why in general Protestants were not active in
propagating the faith among non-Christians was that until the seventeenth
and eighteenth centuries they had relatively little touch with non-Christian
peoples.” The question is: was such “little touch” due to their indifference
and unwillingness to reach out to the Moslems and to pagans? Was not John
Calvin interested in reaching out to the pagan Roman Catholics as well as the
natives in the Americas?

2.2 Stephen Neill: main arguments


The late Stephen Neill (1900-1984) is the historian who does not borrow
his position from Gustav Warneck (1834-1910), as most of the other Protestant
historians do. His arguments are deduced from oversimplified and generalized
observations: “In the Protestant world, during the period of the Reformation
there was little time for thought of missions. Protestants everywhere wasted
their strength, with honourable but blind and reckless zeal in endless divisions
and controversies.”55 It is understandable that Neill would look at doctrinal
controversies in such light terms. His inclusivist ecumenical concerns as an
active historian of the World Council of Churches would lead him to foster such

53 Calvin’s “ecclesiocentric” concerns will be considered in chapter 5. At least two dissertations


on this subject are already available. See Carl David Stevens, Calvin’s Corporate Idea of Mission. Ph.D.
diss., Westminster Theological Seminary, 1992; and Peter Jonathan Wilcox, “Restoration, Reformation
and the Progress of the Kingdom of Christ: Evangelisation in the Thought and Practice of John Calvin,
1555-1564” Ph.D. diss., University of Oxford, 1993.
54 See Peter Jonathan Wilcox, “Restoration, Reformation and the Progress of the Kingdom of
Christ....”
55 Stephen Neill, A History of Christian Missions. Revised for the Second Edition by Owen
Chadwick (London: Penguin Books, 1990), 187-188.

152
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

reactions against doctrinal matters. As the ecumenical slogan goes, “doctrine


divides but work unites.”56
But Neill went beyond those comments. Believing that there were other
reasons for such indifference to “missions” during the Reformation, he said,
“In the sixteen century the Protestant powers were not in touch with the wider
world outside Europe.”57 Also, “the geographical limitations were strongly
reinforced by the psychological limitations of the concept of the regional
Church, the Landeskirche [58]. Cuius regio, eius religio[59] – in each area the
ruler is responsible for the spiritual welfare of his people. He has no responsibi-
lity for anything outside.”60 In other words, the reformers enclosed themselves
in their own limited cities, states, or countries and understood their mission to
be inside their assigned areas.
Neill uses a critic of the sixteenth century, “Roman Catholic controver-
sialist Robert Bellarmine,” as a source against the Protestants. Paraphrasing
Bellarmine, Neill states that the reformers “had no comparable missionary
activity.” “In Poland and Hungary [the Lutherans] have the Turks as their near
neighbours, [but] they have hardly converted even so much as a handful.”61 Neill
interprets such a comment as “a damaging charge, and it cannot be said that the
Protestants were happy in their attempts to answer it.”62 Neill continues: “The
Protestants tended to say ‘Missions are neither obligatory nor desirable, and
our lack of them cannot be held against us as blindness or unfaithfulness.’”63

56 John H. Leith, “Reformed Theology,” in Donald K. McKim, ed. Encyclopedia of the Reformed
Faith (Louisville: Westminster/John Knox Press; Edinburgh: Saint Andrew Press, 1992), 367. Other
statements have appeared with similar connotation: “theology divides but love unites,” “Jesus unites,
theology divides,” or “theology divides but love unites.”
57 Neill admits that “the whole situation underwent radical alteration in the seventeenth century,
when Holland and England became great maritime powers” (Neill, History of Christian Missions, 188).
But he insists that such geographical alteration did not affect the theological climate.
58 The church of an independent state (land or region); a “national church.” According to John Miller,
“During the Reformation era the churches were organized on the territorial principle (Landeskirche),
whereby the prince or ruler of a state in the then-existing Holy Roman Empire determined the confes-
sion of his subjects” in Missionary Zeal and Institutional Control: Organizational Contradictions in the
Basel Mission on the Gold Coast, 1828-1917. Foreword by Richard V. Pierard. Grand Rapids: Eerdmans,
2003, xii.
59 “Whose the region, his the religion” was a principle adopted by the Religious Peace of Augsburg
(1555) by which the rulers decided the religion of their realms See Thomas M. Lindsay, A History of
the Reformation: The Reformation in Germany from Its Beginning to the Religious Peace of Augsburg
(New York: Charles Scribner’s Sons, 1906), 397.
60 Neill, History of Christian Missions, 188.
61 Ibid., 189. The source used by Neill is a quote from Robert Bellarmine’s book Controversiae,
Book IV. This quote was mentioned by Carl Mirbt in his book: Quellen zur Geschichte des Papsttums
und des Römischen Katholizismus (3rd ed., 1911).
62 Ibid., 189.
63 Ibid.

153
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

He concludes: “Yet, when everything favourable has been said that can be said,
and when all possible evidences from the writings of the Reformers have been
collected, it all amounts to exceedingly little.”64 Some phrases in this previous
quote would surprise any researcher. Consider, for instance: “when everything
favourable has been said,” or “when all possible evidences have been collected,”
and “all amounts to exceedingly little.”65 These statements ignore or at least
diminish the relevance of the historical data (facts and texts).
1. “During the period of the Reformation, there was little time for thought
of missions [because] until 1648 the Protestants were fighting for their lives.”
2. “Protestants everywhere wasted their strength, with honourable but
blind and reckless zeal, in endless divisions and controversies.” Neill called
it an “inner weakness.”
3. “The Protestant powers [Holland, England, Germany] were not in touch
with the wider world outside Europe.”
4. “The Germans mostly stayed at home. And the geographical limitations
were strongly reinforced by the psychological limitations of the concept of the
regional church.”
5. “The Protestants tended to say: “Missions are neither obligatory nor
desirable, and our lack of them cannot be held against us as blindness or unfai-
thfulness.” The interesting words are simply the fruit of Neill’s interpretation
of Lutheran theology, most of which is based on some of Johan Gerhard’s
writings and a few passages of Luther’s commentaries.66

2.3 Kane, Winter, and Tucker: main arguments


This section considers aspects of the life and work of historians Kane,
Winter, and Tucker that are relevant to the subject. It includes analysis of
their statements and reasoning about the reformers and mission, the sources
they have used, how they use them, how they access and assess them, why
they use those sources, and how their presupposed definition of terms affects
their choice of sources and their interpretation of them in their writings on the
reformers and missions.
This section concludes by organizing what these historians have in com-
mon, how they relate to each other, and the strengths and weaknesses of their
work. Consideration is given to who started the anti-Reformed movement
concerning the reformers and missions and their immediate successors and to
whether the historians reviewed in this research are correct in their interpre-
tation (hermeneutics and exegesis) of even their selective sources and facts.

64 Ibid.
65 Neill comments, “Everything that can be said is carefully set out by H. W. Gensichen in his
Missionsgeschichte der neueren Zeit (1961), pages 5-7.” (Neill, footnote 4, 189).
66 Cf. Neill op. cit., 189; Warneck, op. cit., 28-32; and Verkuyl op. cit., 20.

154
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

2.3.1 Herbert Kane’s Arguments


The late J. Herbert Kane wrote: “One would naturally expect that the
spiritual forces released by the Reformation would have prompted the Protes-
tant churches of Europe to take the gospel to the ends of the earth. But such
was not the case.”67 Other theses stated or supported by Kane throughout his
writings, including his revised and enlarged edition of Glover’s The Progress
of World-Wide Missions, confirm his criticisms of the reformers. Glover’s
work states, “Mighty as were the changes wrought, and far-reaching as were
the influences exerted by the Reformation, it is to be borne in mind that that
movement was not missionary in its character,”68 and “Indeed, there is all too
abundant evidence that most of the leaders of the Reformation, including Luther,
Melanchthon, Calvin, Zwingli, and Knox, seem to have had no serious sense of
responsibility for direct missionary efforts in behalf of heathen or Muslim.”69
Glover summarizes his position at the end of a short, five-page70 chapter, “Pe-
riod of the Reformation from Luther to the Halle Missionaries (1517-1650)”
with these words: “Of missionary efforts on the part of the Reformation Church
there is sadly little to record.”71
These are serious accusations that deserve some documentation by the
mission historian who boldly and categorically comes to such conclusions.
Although he does not mention Warneck’s name in his book, Glover seems to
be parroting Warneck when he refers to the leaders of the Reformation. By
mentioning the names of those leaders of the Reformation. Glover does not
quote any of the reformers nor documents such bold statements. All five pages
of his chapter on the Reformation period from 1517-1650 are supported only
by four secondary sources: two works published in 1880 and 1894 and two
published in 1901 and 1912.
Kane seems to be in total agreement with Glover. The main arguments
used by Kane to support such “findings” are the following. First, Kane attests
that the reformers did not prompt “the Protestant churches in Europe to take
the gospel to the ends of the earth”72 because of their theology. He presents

67 J. Herbert Kane, A Global View of Christian Missions: From Pentecost to the Present (Grand
Rapids: Baker Book House, 1971 [1972]), 73. And A Concise History of the Christian Mission: A
Panoramic View of Missions from Pentecost to the Present. Rev. ed. (Grand Rapids: Baker Book House,
1978 [1982]), 73.
68 Robert Hall Glover, The Progress of World-Wide Missions, revised and enlarged by J. Herbert
Kane (New York: Harper & Row, Publishers, 1960) 40.
69 Ibid., 40.
70 Glover dedicates two pages of the five to “missionary” work of the Roman Catholic church
through Francis Xavier (1506-1552), one page of which is a four-paragraph quote from Arthur T. Pierson’s
appreciation for Xavier’s career as the “Romish Apostle to the Indies.”
71 Ibid., 44.
72 Kane, A Concise History, 73.

155
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

three theological factors: their interpretation of Matthew 28:20, the doctrine of


predestination, and the apocalypticism,73 especially of Martin Luther. For each
of these theological arguments, Kane offers no substantial documentation. Nor
does he consider different positions, interpretations, and applications among
Luther and Calvin and other reformers. He also takes two quotes he uses – one
from Calvin and the other from Luther – out of context without giving neces-
sary explanations about the sense in which both Calvin and Luther use them.
Kane quotes Calvin without documenting the source and without exe-
geting Calvin’s sentence.74 Without making any distinction between Luther’s
and Calvin’s eschatology, Kane tries to justify such apocalypticism during
the Reformation by writing, “In his Table Talks he [Luther] wrote: ‘Another
hundred years and all will be over. God’s Word will disappear for want of any
to preach it.”75 With no reference to Luther’s specific document and no expla-
nation of what Luther meant by “another hundred years and all will be over,”
Kane assumes that Luther’s statement represented the view of all the reformers
and the Protestant churches during the Reformation period.
The second factor presented by Kane has to do with the context in which
the Protestant churches found themselves between 1517 and 1650. A minority
in Europe, they were confronting the Counter Reformation launched by the
Roman Catholic Church, suffering the consequences of the Thirty Years’ War,
and fighting among themselves – Lutherans versus Calvinists – over doctrines.
According to Kane, their survival mood may excuse them “for having neither
the vision nor the vigor necessary for world evangelization”76 and the “interne-
cine warfare” among themselves impeded them from doing “a better job with
evangelism at home and missions overseas.”77 Kane’s critique seems to assume
that fighting for purity of doctrine is not important. Kane also assumes that their
concern for the evangelization of Roman Catholics throughout Europe was not
part of world evangelization, and that “evangelism” and “missions” are two
different categories of work. The assumed distinction between “evangelism”
and mission is not biblical, but is imposed based on “mission strategy.”
Kane’s third reason why the reformers had “neither the vision nor the vigor
necessary for world evangelization” has to do with Protestant Europe being
isolated “from the mission lands of Asia, Africa, and the New World.”78 Asia,

73 Kane takes apocalypticism in its basic meaning as the belief that the end of the world is eminent.
For a more detailed historical explanation on the origin and meaning of the term, see David E. Aune,
The New Testament in Its Literary Environment (Cambridge: James Clarke and Co, 1988), 226-252.
74 As already stated, most of these mission historians exegetical precision regarding the texts and
the contexts in which the quotes were issued by the Reformers.
75 Kane, A Concise History, 74.
76 Ibid.
77 Ibid.
78 Ibid.

156
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

Africa, and the New World were under the power of Spain and Portugal – both
Roman Catholic countries. Pointing to the Dutch East India Company, founded
in 1602, which “stated that one of its objectives was to plant the Reformed
Faith in its territories overseas,” Kane asserts, “seldom did they work at it.”79 This
again is a bold conclusion for which Kane offers no documentation, nor gives
any indication of having researched even the secondary literature dealing with
the primary sources about the work of the Dutch companies (East and West).80
Kane’s fourth factor is “the absence in the Protestant churches of the re-
ligious orders which played such prominent role in the spread of the Catholic
faith throughout the world.”81 Just as Neill accepted Bellarmine’s critique, so
Kane simply quotes a critique from Joseph Schmidlin, a Roman Catholic mis-
sion historian.82 To put Kane’s argument in contemporary terms, a key reason
for the supposed indifference of the reformers towards the evangelization of
the world was the lack of para-church organizations. Do the Scriptures ever
teach or encourage any other group outside or parallel to the church to carry
out the evangelization of the world. Kane, along with some other mission
historians, downplays the fundamental place of “pure doctrine” and especially
ecclesiology – the doctrine of the church – presented, defended, and lived by
reformers like John Calvin.

2.3.2 Ralph Winter’s Arguments


Ralph Winter, in his “Perspectives” course states:

Here we go again – despite the fact that the Protestants [during the Reformation
period] won on the political front, and to a great extent gained the power to
formulate anew their own Christian tradition and certainly thought they took
the Bible seriously, they did not even talk of mission outreach.83

He goes even further, making a non-historical statement, when he asks


and answers a question.

79 Ibid., 75.
80 Part of the work of the Dutch West India Company has been well researched by Frans L.
Schalkwijk. The work of the Dutch India companies will be considered in the reply to the mission his-
torians presented in chapter 5.
81 Kane, A Concise History, 75.
82 Schmidlin’s critique of the leaders of the Reformation has already been addressed by Samuel
Zwemer when he commented on the literature already available in the German language in Theology Today
7 (July 1950) 2:206. For an extended commentary on Zwemer, see the chapter of my Ph.D. dissertation
dealing with the “Contemporary Mission Historians and the Reformation Period: A Literature Review.”
83 Ralph D. Winter, ed., “The Kingdom Strikes Back: Ten Epochs of Redemptive History” in
Perspectives of the World Christian Movement: A Reader (Pasadena: William Carey Library, 1999),
chapter 33; 211. This document is available online at: http://www.uscwm.org/mobilization_division/
resources/perspectives_reader_pdf’s/B01_Winter_ TheKingdom.pdf.

157
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

But why did the Protestants not even try to reach out? Some scholars point to
the fact that the Protestants did not have a global network of colonial outreach.
Well, the Dutch Protestants did. And, their ships, unlike those from Catholic
countries, carried no missionaries.84

These bold declarations, represented as historical fact, lack any supporting


documentation. Winter, like Kane, is accepting at face value secondary sources
that have not been well exegeted or considered in the light of original sources.
Winter also assumes that the reformers’ lack of “religious orders,” and
even their opposition to them, contributed to their mission inactivity. In his
overused article, “The Two Structures of Redemptive Mission,”85 Winter
laments the fact that the “Lutheran movement did not in a comparable sense
readopt the sodalities, the Catholic orders, that had been so prominent in the
Roman tradition.”86 Such “omission,” according to Winter’s evaluation, “re-
presents the greatest error of the Reformation and the greatest weakness of
the resulting Protestant tradition.”87 Winter goes further in his evaluation
by concluding that “Once this method of operation was clearly understood by
the Protestants, 300 years of latent energies burst forth in what became, in
Latourette’s phrase, ‘The Great Century.’”88 Winter, therefore, sees the lack
of Protestant “orders” as the main cause of the reformers’ indifference toward
even the “talk of mission outreach.”
Winter’s theory of modality/sodality is too simplistic and lacks any
consideration of the reformers’ biblical exegesis and theology of the church.
Winter, like Kane, assumes too much regarding the Roman Catholic orders.
He does not deal with the doctrinal and theological merits of such orders and
assumes that any opposition to the so called missionary religious orders implies
opposition and indifference to the preaching of the gospel to the whole world.
Winter imposes his “two structures” model (modality and sodality) upon the
biblical text and uses this model borrowed from the Roman Catholic Church
to criticize the reformers’ opposition to the use of any “missionary society”
(Jesuits, Dominicans, Franciscans, etc.) apart from the church. The debate

84 Ibid.
85 Winter’s article is easily accessed and can be downloaded from several webpages. Check,
for instance, the following webpages: http://www.undertheiceberg.com/wpcontent/uploads/2006/04/
SodalityWinter%20on%20Two %20Structures1.pdf; http://resources.campusforchrist.org/images/4/48/
The_Parachruch.pdf; http://pcmsusa.org/ articles/The%20Two%20Structures%20of%20God%27s%20
Redemptive%20Mission.pdf.
86 Ralph D. Winter, “The Two Structures of Redemptive Mission” in Perspectives of the World
Christian Movement: A Reader, Ralph Winter ed. (Pasadena: William Carey Library, 1999), chapter
35; 226.
87 Winter, “The Two Structures,” 226. Italics added.
88 Ibid., 227.

158
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

regarding the use of para-church organizations as a substitute for the work of


the local churches is an old one.
Faith and ecclesiology are doctrinal issues that have to be considered in
the light of biblical teaching and exegesis. Warneck, Latourette, Neill, Kane,
Winter, and other mission historians seem to care more for the expansion of
any kind of “Christianity” than for doctrinal truth. The Old Testament prophets,
the Lord Jesus Christ, and his apostles were concerned with the content of the
gospel being spread. Doctrine divides and unites, but the work per se does
not unite. The work must be done according to the teaching of the Scriptures.
Theology matters. Bad theology results in bad strategy and in heretical Chris-
tianity. Strategy is not an independent endeavor that can be designed without
any scriptural and theological judgment.
Winter’s desire and passion to reach out to every “unreached people groups”
and finish the “great commission” by the year 2000 A.D.89 has never left him.
Winter truly believes that if the contemporary evangelical church lives as it has
been in the United States of America, we will never be able to finish the “great
commission.” There is nothing wrong with such passion in working toward such
goals. The problem is when we began to downplay the work of other brothers in
the past in order to promote a strategic agenda that we have embraced.

2.3.3 Ruth Tucker’s Arguments


In her most read text, From Jerusalem to Irian Jaya: A Biographical
History of Christian Missions, Ruth A. Tucker introduces the Reformation
period and missions with these words: “World-wide missions was not a major
concern of most of the Reformers.”90 Following this thesis she presents four
main arguments, all of which had already been made, but not documented, by
Herbert Kane.91 Mission historians’ use of the arguments of previous historians
without even mentioning their names indicates that such arguments are assumed
to be exegeted, documented truths.
The four main arguments used by Tucker are these: Catholic Counter-
-Reformation, lack of overseas opportunities, lack of religious orders, and
the reformers’ theological beliefs – “the imminent return of Christ” (Luther’s
Apocalypticism), the claim that “the Great Commission was binding only on

89 See Ralph Winter’s articles, books, and essays published since Lausanne I, 1974. Winter is a
prolific writer and a hard working brother. He has started, inspired, and supported numerous projects and
movements. See for example the “Perspectives on the World Christian Movement” course; the magazine,
Mission Frontiers (the magazine can be directly accessed through its webpage: http://www.missionfrontiers.
org/); Caleb Project webpage: http://www.calebproject.org/main.php/about_us (Caleb Project produces
the Perspectives courses as well); and the US Center for World Missions--http://www.uscwm.org/.
90 Ruth A. Tucker, From Jerusalem to Irian Jaya: A Biographical History of Christian Missions
(Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1983), 67.
91 See the subheading on Kane in this chapter.

159
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

the New Testament apostles,” and “the doctrine of election that made missions
appear extraneous if God had already chosen those he would save.”92 All of
these arguments take less than one page of Tucker’s work.
The Roman Catholic Counter-Reformation forced the Reformed churches
to just hold “their own in the face of Roman Catholic opposition and breaking
new ground in Europe.”93 Therefore, the Reformers had “little time or per-
sonnel for overseas ventures.”94 The Protestants lacked opportunities because
the Roman Catholics had “dominated the religious scene in most of the sea-
faring nations.”95 As for the para-church groups, “the Protestants did not have
a ready-made missionary force like the Roman Catholic monastic orders.”96
According to Tucker, the reformers’ theological beliefs by practical
implication cut any meaningful initiative of the Protestants toward missions.
Without further explanation or comment regarding the available literature that
has dealt with these theological arguments, Tucker reasons as follows:

Martin Luther was so certain of the imminent return of Christ that he overlooked
the necessity of foreign missions. He further justified his position by claiming
that the apostles...had fulfilled their obligation [the Great Commission] by
spreading the gospel throughout the known world, thus exempting succeeding
generations from responsibility. [And] Calvinists generally used the same line of
reasoning, adding the doctrine of election that made missions appear extraneous
if God had already chosen those he would save.97

She makes all these statements without a single comment or reference to


any primary, secondary, or even tertiary literature on the subject. At the end of
chapter 3, “The Moravian Advance: Dawn of Protestant Missions”, in which
less than one page is dedicated to the Reformation period, Tucker has a selected
bibliography of six sources related to that chapter. Five of them are about the
history of the Moravian church and mission and one is about the missionary
work of Hans Egede in Greenland.
Tucker does recognize that “Calvin himself was at least outwardly the
most missionary–minded of all the Reformers.” She takes into consideration
that Calvin “not only sent dozens of evangelists back into his homeland of
France, but also commissioned four missionaries to establish a colony and
evangelize the Indians in Brazil.”98 It seems that Tucker had not read Jean

92 Tucker, From Jerusalem to Irian Jaya, 67.


93 Ibid.
94 Ibid.
95 Ibid.
96 Ibid.
97 Ibid.
98 Ibid.

160
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 139-162

de Léry’s report about the voyage to South America in 1556. The church in
Geneva sent two ministers of the gospel, not four, and they were never called
“missionaries” but “ministers of the Word of God.” By using the biblical
term “minister of the Word,” when referring to those sent with the responsibility
of preaching the gospel, Calvin preserved the Scriptural terms and did not fall
into the temptation to reason from alien terminologies.
Tucker concludes with this sad note: “None of these ventures had real
staying power.”99 Does that mean then that martyrdom does not count as
“missionary” success? Does it mean then that we only call it “missions” if it
succeeds in terms of church planting and church growth?

SUMMARY OF THE TWO ARTICLES


The previous article (Part 1) and the present one (Part 2) have considered
some aspects of the life and research of mission historians Warneck, Neill,
Kane, Winter, and Tucker, with particular attention given to their writings rela-
ted the reformers and missions. An examination of the sources they used calls
into question whether their use and interpretation of the sources corresponds
to the historical reality of the sixteenth-century mission enterprise. Their use
of contemporary missiological terminology has undoubtedly affected their
assessment of the reformers. The prevailing thesis that the reformers were
silent and even indifferent to the idea of missions began long ago based upon
inadequate research.
Warneck and Latourette were doubtless the main proponents of the theory
that dismisses the reformers’ concern for or even thought of “missions,” as
the two historians define, categorize, and applied it. The overall spread and
popularization of such beliefs, however, should be credited to Warneck and
Latourette’s followers and friends, including Neill, Kane, Winter, and Tucker.
Their writings and arguments have been translated into several languages and
their influence throughout the world cannot be denied.100 Unfortunately nu-
merous mission professors, most theological students, missionary candidates,
and mission-minded members of the church in general never question such
statements, nor research the documented literature that deals more seriously
with the subject commented on here. Even less take the time to find and read
the sixteenth-century documents and the writings of the reformers.
Why have reputable mission historians made such declarations so lightly?
Are they consciously manipulating the data to demise the theological beliefs and

99 Ibid., 68.
100 The prolific missiological writings of Warneck and Latourette have a limited audience, but the
mission histories of Neill, Kane, Winter, and Tucker have reached a broader and more popular audience,
even Sunday School classes.

161
ELIAS MEDEIROS, THE REFORMERS AND MISSIONS

practices of a group of Protestant leaders during a period of Protestant history


in order to foster a more ecumenical and universal approach to world evan-
gelization? Are they simply trying to motivate the evangelical and Reformed
Protestant groups to continue the enthusiasm which began in the eighteenth
century for spreading the gospel and planting churches among all people groups
of this world and finishing the Great Commission of the Lord Jesus Christ? Of
these two options, the latter is more likely. Some of their arguments do, ho-
wever, foster a kind of Christian ecumenical endeavor that compromises the
doctrines of the Reformed faith and of evangelicalism in general.
Unfortunately, one thing these mission historians have in common is their
uncritical approach to the historical data. With the exception of Warneck, they
merely paraphrase one another, or even worse, simply make bold statements
without any supporting documentation. Although the general missiological
contributions of Neill, Kane, Winter, and Tucker are to be acknowledged,
their statements concerning the reformers and “missions” must be regarded as
not authoritative. We should pursue those studies whose authors explored the
original sources and writings of those who lived throughout the sixteenth and
seventeenth centuries.

RESUMO
Desde o século 19, historiadores de missões como Gustav Warneck e
Kenneth Scott Latourette, têm revelado a tendência de retratar os reformadores
protestantes como indiferentes às missões estrangeiras ou missões mundiais.
O autor descreve o raciocínio desses historiadores e argumenta que eles e
diversos de seus discípulos mais recentes não tratam as fontes primárias de
modo adequado. Com frequência, muitos deles simplesmente se apoiam em
fontes secundárias e não se esforçam por avaliar a documentação original que
poderia fornecer uma perspectiva diferente sobre o assunto. Ao fazê-lo, eles
ajudam a perpetuar um preconceito injustificado contra os reformadores e mis-
sões. É imperativo afirmar a importância atribuída pelos reformadores à difusão
universal do evangelho e as razões pelas quais eles não foram tão enfáticos
acerca de missões em comparação com gerações posteriors de protestantes.

PALAVRAS-CHAVE
Reformadores protestantes; Missões estrangeiras; Martinho Lutero; João
Calvino; Gustav Warneck; Kenneth S. Latourette.

162
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168

Resenha
Dario de Araujo Cardoso*

HORTON, Michael. Calvino e a vida cristã. Trad. Jader Santos. São


Paulo: Cultura Cristã, 2017. 304p.

Calvino e a Vida Cristã é uma preciosa exposição do conceito de piedade


reformada descrita a partir do pensamento de João Calvino. A obra permite ver
a riqueza espiritual que dá sustentação a essa tão influente tradição teológica.
Sua tese principal é a afirmação de que havia uma íntima relação entre a teo-
logia e a prática na piedade de Calvino. Não obstante, em vários momentos
não há uma demonstração de como o pensamento teológico exposto produziu
reflexos concretos na prática cristã reformada. Na maior parte das vezes essa
relação ficou apenas em tese. Caberá ao leitor depreender ou, até mesmo, de-
senvolver as muitíssimas aplicações insinuadas pelo texto. A exposição é rica
e de leitura agradável e busca percorrer de modo abrangente o pensamento
teológico do reformador.
O autor, Michael Horton, reside na Califórnia, onde é professor de Teolo-
gia Sistemática e Apologética no Westminster Theological Seminary e pastor
auxiliar da Christ United Reformed Church. Tem o seu PhD pela Universidade
de Coventry e pelo Wycliffe Hall, em Oxford. É autor de mais de vinte livros,
grande parte deles publicados no Brasil pela Editora Cultura Cristã.
Horton divide sua exposição em 14 capítulos divididos em uma introdu-
ção e quatro partes intituladas Vivendo para Deus, Vivendo em Deus, Vivendo
no corpo e Vivendo no mundo. Apresentamos a seguir um breve resumo des-
sas seções e de seus capítulos. A Introdução tem dois capítulos e descreve o

* Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências
da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no
CPAJ.

163
CALVINO E A VIDA CRISTÃ

contexto da piedade de João Calvino expondo o seu histórico ministerial e as


fontes do seu pensamento.
No capítulo 1 – Calvino sobre a vida cristã: uma introdução – Horton
mostra que o mundo em que Calvino vivia era moldado por uma cristandade
abrangente, mas em ruínas. A despeito disso, os reformadores não buscaram
criar uma nova igreja, mas renovar e aprofundar a piedade cristã. Isso foi feito
por meio da ampliação do sentido da piedade e pelo ensino do evangelho a
todos. Segundo Horton, Calvino compreendia a piedade como um termo que
abrangeria tanto a fé como a prática cristãs, pois toda a sua vida era vivida
na presença de Deus. Passa-se então a mostrar como foi o temor de Deus, e
não um projeto pessoal, que transformou Calvino no reformador de Genebra.
Também é interessante a descrição do desenvolvimento dos valores pastorais
de Calvino, o reconhecimento de suas próprias falhas e sua disposição para
auxiliar aqueles que precisavam de orientação e para buscar o consenso e a
unidade da igreja. Por fim, o capítulo discorre sobre as lendas e caricaturas
acerca da vida e das práticas de Calvino.
O capítulo 2 – Calvino sobre a vida cristã: em contexto – dedica-se a
expor as referências teológicas de Calvino. Em “O Calvino católico”, Horton
descreve o compromisso de Calvino com a tradição cristã, sua formação e seu
empenho em demonstrar a vinculação de sua teologia com os pais da Igreja
e os teólogos medievais. Em seguida, mostra que, a despeito das diferenças
de contexto e de temperamento em relação a Lutero, Calvino demonstrava o
mesmo anseio e compromisso com a pregação evangélica da justificação pela fé
em Cristo. Por fim, são apresentados três elementos determinantes da piedade
de Calvino: a exclusividade das Escrituras para o estabelecimento da fé e da
prática cristãs; o modelo de distinção sem separação do Credo de Calcedônia
(451 d.C.) e a teologia pactual.
Os três capítulos seguintes formam a parte 1 do livro, intitulada “Viven-
do diante de Deus”. Eles tratam do conhecimento de Deus, da mensagem das
Escrituras e da obra de Cristo, sempre mostrando a correspondência entre o
divino e o humano.
O capítulo 3 – Conhecendo a Deus e a nós mesmos – mostra a profunda
relação entre o pensamento teocêntrico de Calvino e sua antropologia. O que
pensamos de Deus afeta diretamente o que pensamos de nós mesmos, de forma
que conhecer a Deus e experimentar a Deus são coisas inseparáveis. Verifi-
camos que, para Calvino, “conhecer a Deus [...] requer conteúdo intelectual,
certamente, mas é, acima de tudo, um relacionamento de amor e confiança
com base em uma comunicação confiável” (p. 50). Nesse aspecto, Calvino
mostra que o conhecimento de Deus como criador é universal e universalmente
suprimido pelos homens. Daí a necessidade de uma revelação especial, que
nos conduza no correto e redentor conhecimento de Deus em Jesus Cristo.

164
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168

As Escrituras e o seu conteúdo são o tema do capítulo 4 – Atores e enredo.


Nas Escrituras o Senhor revela e aplica o plano da salvação. Nelas conhecemos
a Deus em sua plenitude trinitária, a condição humana como imagem e seme-
lhança de Deus e o significado da história humana na tríade criação, queda e
redenção. Dessa forma, Calvino fundamenta uma visão realista, mas altamente
valorizadora, acerca da natureza e do potencial humanos restaurados pela obra
de Cristo. Temas como pecado original, graça comum, graça especial e pro-
vidência são apresentados para mostrar o modo como Deus atua restaurando
a ordem no mundo criado e a piedade no coração dos homens, mesmo nos
momentos de aflição e de dor.
A parte 2 é denominada “Vivendo em Deus” e trata da mediação de Cristo
e de nossa união com ele. O capítulo 5 – Cristo, o mediador – propõe-se a de-
monstrar como Calvino apontava Jesus Cristo como o único modo de superar
a diferença existente entre o Deus santo e as criaturas pecaminosas. Quando
estamos em Cristo não apenas vivemos perante Deus, mas vivemos em Deus.
Horton mostra como Calvino descreveu a pessoa e o triplo ofício de Cristo,
bem como os resultados de sua obra. Neste capítulo, vemos como a cristologia
que propunha distinção sem separação, tomada do Credo de Calcedônia, foi
decisiva para a visão de Calvino acerca da vida cristã e para o enfrentamento
dos problemas de sua época. Calvino também enfatizou a suficiência de Cristo
para a nossa salvação. Uma vez que Cristo uniu-se a nós em sua encarnação,
nós fomos unidos a ele em sua morte, ressurreição e ascensão, e experimen-
tamos todos os seus efeitos e benefícios.
Os efeitos e os benefícios de nossa união com Cristo são o tema do ca-
pítulo 6 – Dádivas da união com Cristo. Para Calvino, a vida cristã consiste
em alimentar-se das ricas verdades do evangelho e em crescer nesse solo que
produz o fruto do amor e das boas obras. Horton descreve o pensamento de
Calvino sobre o chamado eficaz, a justificação, a santificação e a adoção,
privilégios que podem ser descritos como um banquete preparado por um pai
generoso. É muito interessante o ponto em que Horton afirma que, em Calvino,
a doutrina da predestinação, conhecida desde Agostinho, deixou de ser uma
questão especulativa e passou a ser tratada como “um artigo da alegria do
evangelho” (p. 118), um benefício que recebemos em decorrência de nossa
união com Cristo.
A parte 3 recebe o nome “Vivendo no corpo” e busca superar a visão
medieval na qual a vida cristã era vista como dependente do compromisso e do
esforço do crente, como se a piedade fosse um atributo humano. Na piedade
reformada o esforço e as boas obras não são o conteúdo, mas o resultado da
piedade que a obra de Cristo gera em nós.
No capítulo 7 – Como Deus entrega sua graça –, a piedade é apresenta-
da como o fruto da pregação da palavra e da participação nos sacramentos.
Horton afirma que Calvino considerava a pregação como palavra sacramental

165
CALVINO E A VIDA CRISTÃ

de Deus. Por meio dela, Deus não apenas anuncia, mas realmente produz a
vida da igreja. Destaca, no entanto, que a pregação da palavra não se resumia
ao sermão, mas estava presente em todo o culto por meio das leituras, orações
e cânticos. No pensamento de Calvino, as bênçãos comunicadas pela palavra
eram distribuídas pelos sacramentos. Eles são, portanto, um ato primariamente
de Deus e não dos homens. Através do batismo, Deus confirma que nos fez
participantes da morte e da ressurreição de Cristo. Na Ceia do Senhor, Cristo
se faz presente dando-se a si mesmo com todos os seus benefícios. Por fim,
Horton demonstra que os benefícios espirituais da piedade cristã são experi-
mentados na vida comunitária.
Diante disso, o culto público é o tema do capítulo 8 – O culto público como
um “teatro celestial” da graça. Para Calvino, no culto público a igreja militante
e a igreja triunfante se reúnem para apreciar as obras de Deus e compartilhar
as dádivas que recebemos dele. Em seguida, Horton faz uma descrição do
pensamento do Calvino acerca do uso das artes visuais e da música no culto.
Em ambos, a principal preocupação de Calvino era que o foco do crente não
fosse desviado da verdadeira adoração a Deus.
O capítulo 9 – Aceso com ousadia: oração como “o exercício principal
da fé” – tem a oração como foco. Aqui é mostrado que a oração é tanto um
exercício público quanto particular e que essas esferas não devem ser separa-
das. A oração é descrita como o primeira e principal parta de piedade. Todas
as demais ações piedosas derivam de invocar o nome do Senhor. Para Calvi-
no, a oração precisa ser cheia de emoção e de confiança no Senhor e deve ser
reconhecida como o meio pelo qual Deus realiza os seus propósitos e mostra
sua generosidade para conosco.
Lei e liberdade na vida cristã é o título do capítulo 10. Aqui o problema
da relação entre lei e evangelho é tratado sob a perspectiva dos três usos da lei
propostos por Melanchton e adotados por Calvino. Dessa forma, a salvação
somente pela graça e por meio da fé não entra em conflito com uma vida de
santidade movida pela gratidão e orientada pelos mandamentos da Palavra
de Deus.
No capítulo 11 – A nova sociedade de Deus – o tema é a igreja. Para os
reformadores, o que caracteriza a igreja não é o seu vínculo institucional, nem
a santidade dos seus membros (afirmação que à primeira vista nos surpreende),
mas o evangelho que, como foi visto no capítulo 7, é a manifestação visível
de Deus na palavra pregada e nos sacramentos. Horton mostra que na visão de
Calvino a verdadeira igreja é aquela que está transformando e não afastando
pecadores. Para Calvino, a disciplina não era uma marca da igreja, mas uma
aplicação da palavra e dos sacramentos promovida por pastores e presbíteros.
Discussão polêmica que vale a pena ler. Nela encontra-se também uma palavra
aos contemporâneos desigrejados. O capítulo traz uma boa apresentação do
pensamento do Calvino sobre generosidade e hospitalidade dos crentes, unidade

166
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 163-168

e catolicidade da igreja, aspectos essenciais da propagação da mensagem do


evangelho do Reino no mundo.
A vida no mundo é o tema da quarta e última seção. No capítulo 12 – Cristo
e Cesar –, Horton trata da visão de Calvino sobre a relação entre a igreja e o
estado. Para Calvino, o reino de Cristo e os reinos deste mundo são distintos,
mas não antagônicos. Para ele a igreja não deve buscar o poder temporal para
si, mas deve cooperar para o bem da sociedade. Tão pouco o estado deve gover-
nar sobre a igreja, antes deve contribuir para que ela livremente cumpra a sua
missão. De acordo com Horton, Calvino também rejeitou a ideia de uma cultura
redentora ou de um estado fundado sobre as leis mosaicas, mas apoiou-se na
graça comum como o modo como Deus conduz a sociedade humana, fazendo
com que esta reflita sua sabedoria, bondade, verdade, justiça, beleza e amor.
O capítulo 13 – Vocação: onde se encaixam as boas obras – mostra que
as boas devem ser entendidas no contexto da vocação e não da justificação.
Elas não são dirigidas a Deus para alcançar mérito, mas ao próximo como um
serviço de Deus em nós. “A piedade bíblica, de acordo com Calvino, orienta
nossa fé em direção a Deus e nosso amor em direção ao próximo” (p. 251).
Dessa forma, Horton mostra como Calvino, de modo particular, incentivou o
trabalho como uma resposta ao chamado de Deus. Outra importante observação
é que a preocupação do reformador era com o serviço ao próximo e não com
uma transformação na sociedade. Ainda assim, sua visão teve um impacto
inegável sobre a cultura, tanto na ciência, quanto nas artes.
O último capítulo – Vivendo o hoje a partir do futuro: a esperança da
glória – apresenta o olhar de Calvino sobre a vida futura e o seu impacto sobre
a vida cristã. A perspectiva da restauração deste mundo faz com que a autone-
gação assuma posição de destaque não como um meio de salvação, mas como
o anseio de algo maior que Cristo conquistou para nós. A piedade de Calvino
faz ver que a nossa salvação não está desvinculada da restauração de toda a
realidade. Este capítulo termina com um tocante registro das ações e palavras
de Calvino nos meses que antecederam sua morte.
Recomendamos fortemente a leitura do livro. Ele será muito útil para
aqueles que estão iniciando seus passos na teologia reformada e os ajudará a ter
uma visão mais abrangente da teologia e do sistema de pensamento propostos
por Calvino. Será de grande valor também para aqueles que possuem maior
experiência com a tradição reformada e lhes dará a oportunidade de vislum-
brar a teologia de Calvino numa abordagem mais direta, revisando conceitos
e reforçando posicionamentos.
A publicação feita pela Editora Cultura Cristã é apresentada sob o selo
“Série Teólogos e a Vida Cristã”, dando início ao que parece ser uma promissora
linha editorial. A tradução de Jader Santos é muito competente e apenas uma ou
duas vezes suscitou dúvida sobre o sentido das frases ou o desejo de verifica-
ção do texto original. A diagramação é muito bem feita e propicia uma leitura

167
CALVINO E A VIDA CRISTÃ

confortável. A nota negativa fica para a capa escura que dá um tom soturno
(fruto de um estereótipo) que destoa da perspectiva ampla e luminosa que a
obra apresenta sobre a piedade de Calvino. Expressamos nossos cumprimentos
à Editora Cultura Cristã pela iniciativa e nossa expectativa pela publicação de
outras obras na série Teólogos e a Vida Cristã.

168
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173

resenha
Filipe Costa Fontes*

HAYKIN, M. A. G.; ROBINSON, C. J. O legado missional de Calvino.


São Paulo: Cultura Cristã, 2017. 141p.

Uma das maiores críticas sofridas pelo calvinismo é a de que ele seria
uma postura teológica que desestimula a evangelização e as missões. O argu-
mento é que a doutrina da soberania de Deus, com suas implicações soterioló-
gicas – as doutrinas da eleição incondicional e da expiação limitada –, seria
um impedimento ao engajamento da igreja com sua tarefa missionária. O
Legado Missional de Calvino lida com essa crítica. Seu objetivo é “enterrar
finalmente a acusação de que ser calvinista significa deixar de ser missional”
(p. 15), mostrando que Calvino foi um defensor das missões, tanto em seus
escritos quanto em sua prática ministerial.
A introdução apresenta a crítica que mencionamos no parágrafo anterior,
mostrando alguns exemplos da mesma na literatura teológica. Embora a divisão
não esteja marcada, o livro pode ser dividido em duas partes, ambas compos-
tas por três capítulos. A primeira trabalha com Calvino e seu pensamento, e a
segunda, com o pensamento de calvinistas posteriores.
Na primeira parte, o capítulo 1 (Deus amou ao mundo) examina o trabalho
de Calvino como exegeta, teólogo e pregador. Ele traz citações das Institutas e,
principalmente, de alguns de seus comentários e sermões. É dada certa ênfase
à interpretação que Calvino faz dos “textos universais” da Escritura – aqueles
que falam da salvação em referência a “todos” – e à maneira como o refor-
mador genebrino trata o chamado universal do evangelho à luz da doutrina
da predestinação.

* Mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie; licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção;
graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição; professor assistente
de Teologia Filosófica no CPAJ.

169
O LEGADO MISSIONAL DE CALVINO

Dentre os “textos universais” escolhidos e trabalhados está João 3.6,


talvez “o versículo predominantemente usado contra Calvino e o calvinismo”
(p. 37), além de Ezequiel 18.23; Mateus 11.28-30; 1 Timóteo 2.4; 2 Pedro 3.9
e outros mais. Ao tratar da relação entre o chamado universal do evangelho e
a doutrina da predestinação, os autores apresentam uma longa apreciação da
natureza bidimensional da vontade de Deus, que, segundo eles, “nos ajuda a
compreender a interdependência bíblica entre a chamada geral do evangelho e
a predestinação, como Calvino expôs” (p. 45). Implicitamente, somos expos-
tos, nesta apreciação, à epistemologia de Calvino, que insistia na insuficiência
da razão humana como critério definitivo de verdade e assumia com alguma
naturalidade a dimensão do mistério.
O segundo capítulo trata de um tema recorrente nos sermões e escritos de
Calvino: o do progresso vitorioso do reino de Cristo. Argumenta que, embora
Calvino defendesse que a expansão do reino de Cristo é uma obra de Deus,
ele ensinou que os crentes não devem ser indiferentes em seus esforços para
alcançar os perdidos. Em uma das citações utilizadas por Haykin e Robinson
para comprovar esse ponto, afirma o reformador de Genebra em seu comen-
tário de Isaías:

[Isaias] demonstra que é nosso dever proclamar a bondade de Deus a todas as


nações. Enquanto exortamos e encorajamos a outros, não podemos, nós mesmos,
acomodar-nos na indolência; antes, cabe-nos ser exemplares perante os homens,
pois nada pode ser mais absurdo do que ver homens preguiçosos e indolentes
instigando outros homens a glorificar a Deus (p. 59).

Depois de estabelecer esse ponto, o capítulo expõe o pensamento


de Calvino a respeito dos meios através dos quais a igreja deve alcançar os
perdidos. Eles são, basicamente dois: a oração e a pregação. Essa ordem de
apresentação – a oração primeiro e a pregação depois – mostra a natureza te-
ocêntrica da teologia calvinista. Até mesmo quando descreve a ação humana
na tarefa missionária, é aquela que mais revela a dependência de Deus que
recebe primazia.
Por fim, o segundo capítulo apresenta o pensamento de Calvino sobre
as motivações da igreja na tarefa de expansão do reino de Cristo. Também
são duas as motivações e sua apresentação também evidencia como Calvino
procurou ser teocêntrico em sua elaboração teológica. Elas são: o anseio pela
glória de Deus, que deve preceder a compaixão pela condição dos perdidos.
Uma bela oração litúrgica preparada por Calvino encerra o capítulo, eviden-
ciando que o reformador nutria a compaixão que ele exigia da igreja como
motivação missionária.

Rogamos-te agora, ó gracioso Deus e Pai misericordioso, por todas as pessoas,


em todo lugar. Como é tua vontade ser reconhecido como Salvador de todo o

170
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173

mundo, mediante a redenção lavrada por teu Filho Jesus Cristo, permita que
aqueles que ainda se encontram alheios ao conhecimento de Cristo, na escuridão,
e cativos ao erro e à ignorância, possam ser conduzidos, pela iluminação de teu
Santo Espírito e da pregação do evangelho, para o justo caminho da salvação,
que é conhecer a ti, o único Deus verdadeiro, e Jesus Cristo, a quem enviaste.1

O terceiro capítulo é mais histórico. Ele procura mostrar que o enga-


jamento missionário não foi apenas adereço discursivo do reformador de
Genebra, mas uma de suas atividades ministeriais. Apresenta duas iniciativas
missionárias da Genebra calvinista. A primeira delas foi dirigida à terra natal
de Calvino – a França –, para onde missionários foram enviados por Genebra
a partir de 1555. Dados levantados pelos autores mostram o sucesso dessa
iniciativa missionária. Segundo eles, “entre 1555 e 1562, estima-se que uma
centena de pastores, aproximadamente, deixou seu porto seguro, Genebra, para
viajar clandestinamente para toda sorte de destinos dentro do reino francês”
(p. 73). Quando os missionários começaram a ser enviados, havia não mais
do que 5 igrejas reformadas na França. Por volta de 1559, quatro anos depois
desse envio, havia 59 igrejas. A segunda iniciativa missionária foi à nossa terra
natal – o Brasil –, para onde Genebra enviou dois pastores, na companhia de
outros calvinistas, no ano de 1557. Segundo Haykin e Robinson, a missão
ao Brasil deve “deitar por terra a crítica de que os reformadores, em geral, e
Calvino, em particular, não possuíam interesse em ver o evangelho semeado
por todo o globo” (p. 76-77).
Como dissemos de início, a segunda parte discute a relação de calvinistas
posteriores com a atividade missionária. No capítulo quarto, os personagens
principais são os puritanos. O capítulo começa mostrando que, assim como
Calvino, frequentemente os puritanos também são vistos como antimissioná-
rios. Haykin e Robinson localizam a origem dessa visão nas pesquisas e textos
de David Bebbington, um historiador da religião que sugeriu a ausência de
missões transculturais entre os puritanos, relacionando-a a um “entendimento
particular da doutrina da segurança do crente” (p. 83). Para ele “a piedade
introspectiva nutrida por essa visão de segurança e a energia que despendiam
buscando saber se um ou outro pertencia ao conjunto de eleitos dificultaram
seriamente as campanhas missionarias dos puritanos” (p. 83). Em seguida, o
capítulo procura contrariar essa visão, embora o faça com menor ênfase do
que faz nos capítulos anteriores quando trata de Calvino. Por parte dos autores
parece haver certo reconhecimento de que, embora o puritanismo não tenha sido
contrário às missões, ele foi, de fato, menos missionário do que o evangelica-
lismo. Nas palavras do próprio livro: “Na era puritana, certamente, não houve

1 MCKEE, Elsie. Calvin and Praying for “All People Who Dwell on Earth”. Apud HAYKIN e
ROBINSON, O legado missional de Calvino, p. 69.

171
O LEGADO MISSIONAL DE CALVINO

ninguém com um ministério itinerante comparado ao de George Whitefield,


mas isso não significa que aos puritanos faltasse um senso de missão” (p. 87).
O personagem do capítulo 5 é Jonathan Edwards (1703-1758). Em resu-
mo, o esforço desse capítulo é mostrar como o fervor missionário de Edwards
pode ser percebido em sua concepção do progresso do reino de Cristo. Os
escritos de Edwards trabalhados neste capítulo são as cartas enviadas a George
Whitefield; a biografia de David Brainerd, um missionário que trabalhou entre
os índios nativos em Nova York e morreu ainda jovem na casa de Edwards, e
um tratado de 1748, escrito para estimular a busca pelo avivamento, cujo título
é: Uma humilde tentativa de promover a explícita e visível união do povo de
Deus em oração extraordinária pelo reavivamento da religião, e o avanço
do reino de Cristo na terra, segundo as promessas e profecias das Escrituras
referentes aos últimos tempos. Haykin e Robinson afirmam que esse tratado
teria contribuído “enormemente para acender a chama do profundo reaviva-
mento entre os batistas calvinistas da Grã-Bretanha, e dar início ao movimento
missionário atual, bem como ao segundo grande avivamento” (p. 107). Dentre
os homens impactados por esse tratado estão William Carey e Samuel Pearce,
este último, personagem do capítulo seguinte.
A nota de lamento desse capítulo fica por conta do fato de que ele faz
apenas uma breve menção ao pós-milenismo de Jonathan Edwards (p. 103,
104), mas não oferece uma avaliação mais aprofundada sobre como essa visão
escatológica pode ter influenciado a sua visão missionária.
O último capítulo tem Samuel Pearce (1766-1799) como personagem prin-
cipal. O destaque a esse personagem é justificado por seu ímpeto missionário
e sua relação com William Carey (1761-1834), geralmente considerado o pai
das missões modernas. O capítulo se inicia mostrando que Pearce demons-
trou desde o começo de seu ministério o amor pelos perdidos e o desejo de
comunicar-lhes o evangelho. Um curioso acontecimento mencionado no livro
como evidência teve lugar em Northampton, quando ele foi pregar na inaugu-
ração de um templo batista. Depois do culto, quando Pearce já estava à mesa
para comer com um grupo de amigos, um deles – Andrew Fuller – elogiou o
sermão pregado por ele, mas o criticou por ter promovido, ao final, uma espécie
de repetição do sermão. A isso, Pearce teria respondido da seguinte maneira:

Bem, meu irmão, revelarei o meu segredo, se assim devo fazê-lo. No preciso
momento em que eu estava prestes a voltar ao meu assento, pensando ter fina-
lizado o sermão, abriu-se a porta, e vi entrar um pobre homem, um operário. A
julgar pelo suor na sua testa e pela aparência de cansaço, presumi que ele havia
andado algumas milhas para comparecer a esse sermão matinal, mas fora incapaz
de chegar a tempo. Um pensamento momentâneo cruzou minha mente – esse
pode ser um homem que nunca ouviu o evangelho, ou pode até ser alguém que,
no evangelho, se deleite enormemente. Em todo caso, o esforço de sua parte me

172
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 169-173

constrange a um esforço de minha parte. Portanto, na esperança de fazer-lhe o


bem, resolvi esquecer-me de tudo e, a despeito de críticas ou do receio de ser
visto como tedioso, decidi dar ao pobre homem um quarto de hora.2

Em seguida, o capítulo mostra que Pearce seria impulsionado ainda mais


em seu ímpeto missionário pelo trabalho de William Carey. Em 1794 ele teria
chegado a colocar à disposição o seu posto junto à Igreja da Inglaterra para
dirigir-se à Índia. Começou a estudar o idioma por conta própria e reservou
dias semanais específicos de oração e jejum para rogar a direção de Deus a
respeito dessa questão. No entanto, a Associação Missionária decidiu não o
enviar, sob o argumento de que ele serviria melhor às missões a partir da In-
glaterra. A resposta de Pearce foi a melhor possível. Ele se dedicou ao serviço
missionário em sua nação e tornou-se um dos maiores levantadores de recursos
para a causa das missões estrangeiras.
Sentimos falta de uma conclusão ao livro, separada desse último capítulo.
Com a apresentação de Pearce, o livro termina de modo um tanto abrupto, com
a afirmação de ter cumprido o seu objetivo:

...demonstrar que existe uma tradição calvinista de fervor missionário que


remonta aos pioneiros do movimento atual de missões, como Carey e Pearce,
passando pelos puritanos, chegando até a nascente reformada dos escritos e das
obras de João Calvino, deitando por terra o mito de que alguém não pode ser
calvinista e missional ao mesmo tempo (p. 132).

Nossa percepção é que isso acontece em parte. Os três capítulos iniciais


são, de fato, bastante consistentes e mostram que Calvino não pode ser acu-
sado de antimissionário. Os três capítulos finais contêm boas apresentações
do fervor missionário de seus personagens principais, contudo não realizam
claramente o apontamento da relação entre esses personagens, seu pensamento
e o pensamento de João Calvino. Possivelmente, os autores tenham pressuposto
que o leitor tenha conhecimento prévio da natureza calvinista da teologia dos
personagens tratados. Isso, no entanto, parece-nos um problema estratégico se
o livro visa atingir o grande público, principalmente porque, embora alguns
personagens sejam bastante conhecidos, como Jonathan Edward por exemplo,
outros, como Samuel Pearce, são quase desconhecidos. Mesmo assim, reco-
mendamos a obra, sobretudo por causa da primeira parte, que demonstra de
forma consistente o fervor missionário do reformador de Genebra.

2 COX, F. A. History of the Baptist Missionary Society, from 1792 to 1842. Apud HAYKIN e
ROBINSON, O legado missional de Calvino, p. 119.

173
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 175-177

resenha
Filipe Costa Fontes*

MCGRATH, Alister. O Pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura


Cristã, 2014, 352p.

O Dr. Alister E. McGrath já é bastante conhecido no cenário teológico


brasileiro. Historiador, teólogo e professor na Universidade de Oxford, possui
vários livros já traduzidos para o português. Ele se destaca, dentre outras coi-
sas, pela abrangência de suas pesquisas, que além de versarem sobre história
e teologia, tratam da relação entre a fé cristã e o campo científico, no qual ele
também tem formação do período anterior à sua conversão.
Como o próprio título revela, O Pensamento da Reforma é um livro que
se propõe a um grande desafio: resumir as principais ideias desse movimento
cujo principal marco histórico completa agora 500 anos e que transformou não
apenas o modo de se fazer teologia e ser igreja, mas a vida do mundo ociden-
tal de uma forma geral. A obra cumpre esse desafio com excelência, embora
ressalvas sempre possam ser feitas em tentativas desta magnitude.
O pressuposto central com o qual McGrath trabalha é o de que a Reforma
foi, fundamentalmente, um movimento impulsionado por ideias religiosas, e
não por interesses de natureza econômica, política ou social, como as análises
feitas a partir de categorias contemporâneas parecem querer mostrar.
Sua estrutura é bastante fluida. Alguns capítulos são mais históricos. É o
caso do segundo, cujo título é “O cristianismo no final da Idade Média” e tem
como objetivo central contextualizar a origem da Reforma, ou do capítulo 5,
intitulado “Os reformadores: uma introdução biográfica”, que apresenta uma
breve biografia de alguns dos principais personagens da Reforma Protestante:

* Mestre em Teologia Filosófica pelo CPAJ e em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie; licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção;
graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição; professor assistente
de Teologia Filosófica no CPAJ.

175
O PENSAMENTO DA REFORMA

Martinho Lutero (1483-1546), Ulrico Zuínglio (1484-1531), Filipe Melanchton


(1497-1560), Martin Bucer (1491-1551) e João Calvino (1509-1564). Outros
são mais descritivos. Eles procuram descrever o pensamento da Reforma a
respeito de vários assuntos. É o caso dos capítulos 7, 8, 9, 10 e 11, que tra-
tam, respectivamente, sobre o pensamento da reforma a respeito da doutrina da
justificação pela fé, da igreja, dos sacramentos, da predestinação e da política.
E outros capítulos são mais analíticos. Eles procuram perceber as relações que
a Reforma guarda com outros movimentos do período, como o humanismo
(capítulo 3) e o escolasticismo (capítulo 4). Essa fluidez estrutural do livro,
ao oferecer ao leitor a possibilidade do contato com diferentes tipos textuais,
pode tornar a sua leitura mais leve e mais agradável.
O Pensamento da Reforma se destaca por duas qualidades. A primeira é
a sua natureza didática. McGrath possui uma preocupação com a definição de
termos e a distinção entre eles, bem como com a relação entre os conhecimen-
tos, o que torna o livro um mapa bastante seguro para o leitor que começa a
andar pelas trilhas do pensamento da Reforma. Um exemplo do que afirmamos
nesse parágrafo é o capítulo 1, cujo título é “A Reforma: uma introdução”,
no qual, ao encontrarmos explicações sobre as razões pelas quais o termo
“reforma” pode ser usado para designar o movimento a que se refere, somos
apresentados aos diferentes movimentos aos quais o termo pode se referir e a
distinções entre termos como “reformados”, “protestantes” e “calvinistas”, por
exemplo. Outros exemplos dessa natureza didática da obra são a inclusão de
um glossário ao final, incluindo até mesmo a definição de termos teológicos
como “cristologia”, e a de um índice onomástico, que é fundamental numa
obra dessa dimensão.
Além de se destacar pela natureza didática, O Pensamento da Reforma se
destaca pelo seu rigor histórico e conceitual. A natureza didática do livro não
o torna simplista, como poderia acontecer. Embora seja um texto introdutório,
ele também contribui para o aprofundamento de nossa visão sobre a Reforma
e suas ideias. Um exemplo desse rigor pode ser verificado no fato de que, ao
mesmo tempo em que busca encontrar uma espécie de unidade que perpassa
o pensamento reformado a respeito de um determinado assunto, McGrath faz
questão de apontar as divergências que os diversos reformadores ou correntes
da Reforma tinham entre si. É ilustrativo desse ponto o capítulo sobre política
(capítulo 11), no qual a distinção entre os reformadores magistrais (aqueles
que se valeram dos magistrados para efetivar a Reforma em uma cidade ou
região) e os reformadores radicais (aqueles que se afastaram completamente
do poder político) é trabalhada com profundidade.
Por essas razões, o livro pode ser útil a dois grupos de pessoas. Primeiro,
a todos aqueles que desejam conhecer a Reforma e seu pensamento. Em virtude
de sua natureza didática, o livro pode funcionar como uma boa introdução e
os professores de seminários, inclusive, poderiam valer-se dele com muito

176
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 175-177

benefício para os primeiros passos de seus alunos pelas estradas do conhe-


cimento sobre a Reforma. Depois, a teólogos, pastores ou cristãos em geral,
interessados em teologia, e que já foram introduzidos ao assunto, mas buscam
aprofundamento. Esses também podem valer-se dele.
Os pesquisadores poderão lamentar a ausência de demonstração de um
uso maior de fontes primárias, visto que o livro, de fato, não é um livro repleto
de citações bibliográficas. Porém, eles poderão ser enriquecidos por uma ex-
tensa lista para leituras adicionais por capítulo, apresentada ao final do livro,
ressalvado o fato de que boa parte dessa bibliografia não está traduzida para
a língua portuguesa. Recomendamos a leitura de O Pensamento da Reforma a
todos os que desejam conhecer e se aprofundar no conhecimento dessas ideias
que influenciaram o mundo e moldaram a sociedade.

177
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 179-181

Resenha
Tarcizio Carvalho*

CAVACO, Tiago. Cuidado com o alemão – Três dentadas que Martinho


Lutero dá à nossa época. São Paulo: Vida Nova, 2017.

Qualquer pessoa que tenha tentado aprender a língua alemã concordaria


com o título, embora, de fato, ele não se refira à aprendizagem do idioma! Ao
ler o subtítulo associado ao desenho da capa, porém, talvez ocorra um choque.
Como assim?? Nosso reformador querido não é um vampiro descontrolado!
Por que deveríamos ter cuidado com o alemão Martinho Lutero?
Bem, essa é exatamente a ideia do autor. Do seu ponto de vista, se o leitor
de Lutero não se sentir incomodado em seus afetos, desafiado em sua tarefa edu-
cativa e movido em seus sentidos, então não terá lido Lutero apropriadamente.
Em um ano pródigo de obras sobre a Reforma Protestante, Tiago Cavaco
se insere no cenário. A obra de Cavaco é duplamente prefaciada. Primeiramen-
te por Franklin Ferreira, cujo prefácio funciona mais como uma resenha. Já o
prefácio de João Miguel Tavares é ambíguo. Inicialmente parece ser um antago-
nista do autor, mas na continuidade da leitura percebe-se nele um contraponto
a Tiago Cavaco. Ao final ficará claro que ele é as duas coisas. Ambos, o autor
e João Miguel escrevem muito bem, e a ideia de um amigo pessoal inimigo da
forma como se entende a fé é algo para ser degustado com reflexão apropriada.
Seria bom termos mais disso.
Cavaco apropriadamente prepara o leitor para que não se decepcione com
o que vai encontrar. Ele cedo declara que seu livro é uma apologia de Lutero,
que as duas obras principais de Lutero nas quais se baseia são Do cativeiro
babilônico da igreja e Do servo arbítrio, e que não é um especialista, mas

* Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição e em


Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Teologia Exegética (Antigo Testamento)
pelo CPAJ. Professor assistente de Antigo Testamento no CPAJ.

179
CUIDADO COM O ALEMÃO – TRÊS DENTADAS QUE MARTINHO LUTERO DÁ À NOSSA ÉPOCA

um apaixonado (p. 24). Se o leitor estiver em busca de uma leitura descritiva,


com muitas citações primárias e com poucas intervenções na história, Cavaco
adverte, não percam tempo com este livro (p. 25).
O livro de Cavaco é dividido em quatro partes. A primeira e mais extensa,
com 57 páginas, é a parte histórica, uma visão biográfica resumida que segue
o formato da obra Brand Luther, de Andrew Pettegree.
A segunda parte é a primeira dentada, com 10 páginas. O título é Maldade.
A questão central é uma percepção antropológica aprendida nas Escrituras, a
qual ensina que o ser humano é pior do que pensa ser. Uma vida exuberante
depende exatamente da compreensão da justificação pela fé: o que inclui
perceber o seu pecado e o que Cristo fez em nosso favor. Sem percepção de
nosso pecado há somente escravidão, mas uma percepção de que “estamos
totalmente marcados pelo pecado oferece uma história com sentido para a
nossa existência” (p. 103).
A terceira parte é a segunda dentada, com 36 páginas. O título é Menina-
da. O ponto crucial é a questão pedagógica. Os cristãos deveriam acreditar na
educação não porque auferirão algo como prestígio ou conhecimento, ainda que
sejam coisas boas. Os cristãos deveriam acreditar na educação porque o mais
importante é aquele que se dá para que os outros possam ser educados nele.
Aprendemos de Deus e de seu mundo. Por Deus ser a pessoa mais importante
de quem aprendemos, vale a pena ensinar (p. 133-134).
A quarta parte é a terceira dentada, com 27 páginas. O título é Música. O
aspecto fundamental aqui é a questão estética. A musica tornou-se fundamental
para o cristianismo, mas de uma forma diferente. A música nos anos iniciais
da Reforma estava mais preocupada com a mensagem, com a compreensão
do texto bíblico. Assim, a música naquele momento histórico estava menos
preocupada com o contemplar e mais com o cantar (p. 159). O protestantismo
libertou os sentidos a fim de que pudessem ser criativos em todas as esferas.
Ao final de cada dentada o autor propõe uma metralhada de perguntas.
Nem tente achar que é um tipo de estudo dirigido confortável para que você
relembre o que leu. Longe disso. O objetivo de Cavaco é propiciar reflexão para
o caso de você não ter se sentido desconfortável ainda com Lutero!
Pessoalmente, já sabia que a obra de Lutero era vasta. Escritos teológicos,
doutrinários, polêmicos e políticos, além de muitos sermões. Dentre tantas
realizações, creio – mesmo também não sendo um especialista –, que a de maior
importância foi a tradução da Bíblia para o alemão. Esta tarefa foi realizada
durante o seu confinamento pelo eleitor da Saxônia, o príncipe Frederick, no
castelo de Wartburg. Ali Lutero traduziu o Novo Testamento para o alemão.
Ilustrado por Lucas Cranach, foi publicado em 1522. A tradução do restante da
Bíblia foi terminada em 1534. A difusão foi rápida e ampla, graças à imprensa,
e contribuiu para o estabelecimento da língua alemã. Muitos eruditos desta-
cam esse aspecto linguístico, mas lembremos sempre que a Palavra de Deus

180
FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 179-181

não volta vazia, o que torna a Escritura no idioma do povo uma ferramenta de
transformação sem precedentes.
Creio que a segunda obra mais importante foi o seu Breve Catecismo.
Lutero percebeu que o povo da Alemanha vivia uma religião baseada em mérito,
e com muitos ensinos extrabíblicos que obscureciam o ensinamento geral da
Palavra de Deus. Havia fervor religioso, mas pouco ou nenhum conhecimento
da Bíblia. Em resposta a essa necessidade, Lutero escreveu o catecismo, apre-
sentado em formato de perguntas e respostas. Era um resumo da verdade cristã
que até mesmo as crianças poderiam absorver. Concluído em 1529, cobria os
Dez Mandamentos, o Credo dos Apóstolos, a Oração do Senhor, o batismo,
a confissão, a Ceia do Senhor e as maneiras pelas quais um chefe de família
cristã deveria liderar sua casa.
E a terceira obra que considero mais importante, e que me impactou no
tempo de Seminário, foi o Servo Arbitrio. Lutero continuamente confrontava o
uso que a Igreja fazia da abordagem aristotélica à teologia. Para ele, isso fazia
com que a razão humana fosse exaltada acima das Escrituras. Para combater
esse erro Lutero escreveu o De servo arbitrio, concentrando-se especialmente na
Diatribe, um livro de um sacerdote católico holandês chamado Erasmo. Erasmo
acreditava que a hierarquia da Igreja tinha autoridade sobre a verdade, enquanto
Lutero afirmava que a verdade tem autoridade sobre a Igreja. Erasmo argu-
mentava que se deveria buscar a paz na Igreja mais do que a verdade, enquanto
Lutero ensinou que a verdade está acima da paz, e que muitas vezes a verdade
pode trazer divisão. Erasmo ensinava que a tradição tinha autoridade sobre as
Escrituras, enquanto Lutero ensinava que a tradição deve se submeter à Escritura.
Foram muitas disputas de Lutero com a Igreja, e as questões de poder
político sempre fizeram parte do processo, mas a verdadeira batalha era sempre
sobre a suficiência e autoridade da Palavra de Deus.
O que eu não sabia ainda era que Tiago Cavaco existia. Por razão diferente
da de João Miguel Tavares, diria: “Cuidado com o Tiago”. João corretamente
olha para o efeito de alguma coisa sobre a vida de Tiago e de sua família, mas
deixa de ver para onde Tiago está apontando: para a suficiência e autoridade
da Palavra de Deus manifesta em Jesus Cristo.
A editora Vida Nova acertou “na mosca” ao entregar esse título ao povo
de Deus. Creio que todo tipo de leitor se beneficiará da obra. Entretanto, alguns
se beneficiarão mais. Por quê? Porque Cavaco consegue “ler” o mundo depois
de ter sido lido pela Escritura. Ele certamente sabe de cor que cada centímetro
quadrado da existência pertence a Cristo, mas para ele não é somente um shi-
bolete teológico. Ele estabelece relações com as produções culturais antigas,
com as de sua época, além daquelas com o seu cotidiano.
Tiago Cavaco sempre fala de si mesmo como um pregador, e acho que
também testemunhei isso em sua obra. Por isso, diria que ela é de grande valor
para duas áreas específicas: homilética e educação. Salvo melhor juízo, foram
suas melhores reflexões junto com o tal alemão.

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Excelência e Piedade a Serviço do Reino de Deus

CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO


ANDREW JUMPER

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Cursos modulares, corpo docente pós-graduado, convênio com instituições inter-
nacionais, biblioteca teológica com mais de 40.000 volumes, acervo bibliográfico
atualizado e informatizado.

Especialização à Distância (EAD)


São três cursos totalmente online: Especialização em Estudos Teológicos (EET), Es-
pecialização em Teologia Bíblica (ETB) e Especialização em Teologia Prática (ETP).

Revitalização e Multiplicação de Igrejas (RMI)


O RMI objetiva capacitar pastores e líderes na condução do processo de restauração
do ministério pastoral, da oração e da expansão da igreja por meio de missões, usando
ferramentas bíblico-teológicas e de outras áreas das ciências.

Mestrado em Divindade (Magister Divinitatis – MDiv)


Trata-se do mestrado eclesiástico do CPAJ. É análogo aos já tradicionais mestrados
profissionalizantes, diferindo, entretanto, do Master of Divinity norte-americano
apenas no fato de que não constitui e nem pretende oferecer a formação básica para
o ministério pastoral. O MDiv do CPAJ não é submetido à avaliação e não possui
credenciamento da CAPES.

Mestrado em Teologia (Sacrae Theologiae Magister – STM)


Esse mestrado acadêmico difere do Magister Divinitatis por sua ênfase na pesquisa
e sua harmonização com os mestrados acadêmicos em teologia oferecidos em uni-
versidades e escolas de teologia internacionais. O STM do CPAJ não é submetido à
avaliação e não possui credenciamento da CAPES.

Doutorado em Ministério (DMin)


O Doutorado em Ministério (DMin) é um curso oferecido em parceria com o Reformed
Theological Seminary (RTS), de Jackson, Mississippi. O programa possui o reconheci-
mento da JET/IPB e da Association of Theological Schools (ATS), nos Estados Unidos.
O corpo docente inclui acadêmicos brasileiros, americanos e de outras nacionalidades,
com sólida formação em suas respectivas áreas.

Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper


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