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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Centro de Letras e Comunicação

Monografia de Conclusão de Curso

UM SÁBIO À MARGEM DO ESPETÁCULO DO MUNDO:


Ricardo Reis, Fernando Pessoa e a articulação entre literatura e história
em O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

Iarima Nunes Redü

Pelotas, 2013
IARIMA NUNES REDÜ

UM SÁBIO À MARGEM DO ESPETÁCULO DO MUNDO:

Ricardo Reis, Fernando Pessoa e a articulação entre literatura e história em O Ano


da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago

Trabalho acadêmico apresentado ao


Centro de Letras e Comunicação da
Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Letras, com habilitação em
Redação e Revisão de Textos.

Orientador: Prof. Dr. Aulus Mandagará Martins

Pelotas, 2013
Banca examinadora:

Prof. Dr. Alfeu Sparemberger

Prof. Dr. Aulus Mandagará Martins


Ao Heitor, que me ouve tagarelar
obsessivamente sobre livros desde 2004, sem,
entretanto, resignar-se, e que me apoia na
decisão de dedicar à vida acadêmica
(consequentemente, aos livros) quase tanto
amor quanto o que dedico a ele.
AGRADECIMENTOS

Acabando a graduação, fiquei pensando em tudo que aconteceu comigo


dentro do curso. Surpreendentemente, não fiquei triste nem excessivamente
nostálgica: fiquei agradecida por um monte de coisas que um monte de gente
representou ao longo desses quatro anos. Agradecerei, então, prolixamente.

Agradeço minha família pelas referências que me ofereceram durante a vida


toda e, particularmente, durante o curso: à minha mãe, por ter entendido que eu
precisava me dedicar inteiramente à faculdade, ter apoiado minhas decisões ao
longo desses anos e ter me ensinado a fazer tricô e a cozinhar feijão; à minha irmã,
Caroline, que me recebeu de braços abertos em Porto Alegre sempre que eu
precisei descansar de Pelotas e que vai me acolher durante o Mestrado em 2013 e
2014; e ao meu irmão, Filipe, por todas as cervejas que ele me ensinou a apreciar
ao longo dos anos. Finalmente (e postumamente), obrigado à minha avó materna,
Palmira, por ter nos amado tanto e ter admirado tanto o fato de sabermos ler e
escrever: ela era sábia em tudo o mais no mundo, menos nas letras.

Agradeço a todos os professores do CLC que me deram aulas, pois todos me


marcaram de alguma maneira, boa ou ruim. Especialmente, agradeço: a “absoluta”
Maria José, por ter sido a única professora que entendeu o Bacharelado em Letras,
além de ser gremista e fã do Pink Floyd; ao Alfeu, que foi o primeiro professor a
oferecer textos luso-africanos em aula, me orientou nas monitorias de literatura de
2010 e 2011, além de ter me aceitado em seu projeto de pesquisa sobre o Fernando
Pessoa; e à Giovana, que me forçou a fazer um projeto de pesquisa na marra e,
durante esse árduo processo, me fez aprender para sempre, na marra, aspectos
conceituais e constitutivos da pesquisa acadêmica na área de Letras.

Desdobrando os agradecimentos aos professores, agradeço ao Aulus, o


melhor professor que tive na faculdade e que foi, de quebra, meu orientador no
projeto em que pude estudar o Saramago e que resultou neste trabalho. Ele me
ofereceu uma bolsa de iniciação científica quando eu nem esperava e me deixou
trabalhar com meu autor preferido, além de ter ministrado a disciplina que mudou a
minha vida acadêmica e mostrou meu lugar no mundo: Literatura e História. A partir
dessa disciplina, eu pude me reencontrar com desejos acadêmicos antigos que
julgava mortos e enterrados na opção por um curso de Letras. Se não bastasse tudo
isso, o Aulus ainda é gremista, esquerdista, tem o senso de humor mais afiado e
sutil do CLC, contando professores e alunos, e a assinatura de e-mails mais
simpática também.

Continuo com os “muito-obrigadas” citando os companheiros de risadas,


estudos e desilusões ortográficas: os vachardes Érica, Felipe (aka Tinhoso), Taíse e
Gabriel, além do convertido em jornalista Vinícius. Vocês fizeram a minha vida
acadêmica muito mais divertida e me deram motivos para aguentar infinitas aulas
mal concebidas e/ou mal realizadas. Especialmente, agradeço a Érica (minha BFF
do Bacharelado) por ter tornado as revisões de textos bisonhos muito mais felizes,
com todos aqueles recadinhos irônicos nos comentários, e por ter me ajudado tantas
vezes ao longo do curso. Obrigada a todos vocês, seus lindos.

Os amiguinhos da Licenciatura também devem ser agradecidos, já que me


proporcionaram muitas noites agradáveis no Campus III da UCPel, sorvendo sucos
de cevada e vendo as pessoas passarem. Sem a chusma acadêmica Franciele,
Gabriel (Biscoito), Isadora, Khigler, Natiele, Richard e (PINTO, Ubiratan) minha vida
acadêmica não teria sido tão bacana, tão cheia de discussões sobre futebol,
cervejas e, eventualmente, livros e perspectivas de vida. Obrigada por tudo, chusma!

Depois de tamanha prolixidade nesses agradecimentos infinitos, acabo


dizendo muito obrigada à tríade da saudade: meus melhores amigos Dúnia e Moisés
e meu muito amado noivo Heitor, que passaram quase todo o tempo da minha
graduação geograficamente distantes, mas foram as presenças mais constantes na
minha mente e no meu coração. Não há palavras para agradecer por tudo que vocês
representam para mim, mas, ainda assim, obrigada.
Sobre a nudez forte da fantasia o manto
diáfano da verdade.

(José Saramago)
SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................... 8
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9
2. AQUI A HISTÓRIA ACABA E A LITERATURA PRINCIPIA: A ARTICULAÇÃO
ENTRE DISCURSO LITERÁRIO E DISCURSO HISTORIOGRÁFICO .................... 15
2.1 Fato e Ficção – fronteiras rígidas.................................................................... 15
2.2 Discurso literário e discurso histórico: fronteiras esgarçadas .......................... 19
2.3 Metaficção Historiográfica............................................................................... 26
3. VIVEM EM NÓS INÚMEROS: A INTERTEXTUALIDADE EM O ANO DA MORTE
DE RICARDO REIS ................................................................................................. 37
3.1 Intertextualidade: histórico do termo e conceitos norteadores da análise ....... 37
3.2 Dados intertextuais e hipertextuais levantados em O Ano da Morte de Ricardo
Reis ...................................................................................................................... 45
3.2.1 Práticas Intertextuais ................................................................................ 46
3.2.2 Práticas Hipertextuais .............................................................................. 57
3.3 A função ideológica do intertexto .................................................................... 62
4. UM ESPECTADOR DO ESPETÁCULO DO MUNDO: O ESCRITOR-
PERSONAGEM EM O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS ................................ 66
5. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 75
ABSTRACT ............................................................................................................. 79
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 80
RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo principal analisar a


articulação entre intertextos literários e intertextos históricos mediante a presença de
escritor-personagem na construção do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de
José Saramago. Especificamente, tencionou-se determinar quais são e de que
maneira apresentam-se os intertextos literários e os intertextos históricos no
romance, relacionar tais intertextos aos escritores-personagens presentes no
romance, analisar de que maneira os discursos literário e histórico articulam-se no
romance e verificar qual é a relevância da análise do romance sob a luz do termo
metaficção historiográfica e de sua conceituação. A fim de atingir tal objetivo, foram
estudadas obras de autores que tematizam a articulação entre literatura e história,
especialmente Hutcheon (1991) e White (1973 e 2001). A fim de levantar os dados
intertextuais e ser capaz de analisá-los, o conceito de intertextualidade foi
restringido. Os conceitos de intertextualidade utilizados foram os apresentados por
Genette (2010), Samoyault (2008) e Jenny (1979). O corpus submetido à análise
qualitativa foi o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, do qual foram levantados
dados intertextuais interpretados sob a ótica das teorias dos autores citados.
Concluiu-se que literatura e história se articulam profundamente na obra de
Saramago, considerada uma metaficção historiográfica, e que os intertextos são
parte estruturante da obra, utilizados de maneira questionadora e dessacralizadora
em relação à tradição literária e histórica de Portugal, caracterizando os escritores-
personagens Fernando Pessoa e Ricardo Reis, os quais não são estético-
ideologicamente alterados, mas não se limitando a eles.

Palavras-chave: Literatura portuguesa. Literatura e História. Metaficção


historiográfica. Intertextualidade.
1. INTRODUÇÃO

há um momento em que duvida se terão mais sentido as


odes completas aonde os foi buscar do que este juntar
avulso de pedaços ainda coerentes, porém já corroídos
pela ausência do que estava antes ou vem depois, e
contraditoriamente afirmando, na sua própria mutilação,
um outro sentido fechado, definitivo, como é o que
parecem ter as epígrafes postas à entrada dos
livros.(José Saramago)

A atual produção romanesca portuguesa é marcada por uma admirável


efervescência criadora, personificada tanto por escritores surgidos posteriormente à
Revolução dos Cravos, de abril de 1974, quanto por escritores já consolidados
quando da queda do regime salazarista. Justamente em função desse panorama,
pode-se dividir o escopo da produção romanesca lusitana do século XX em três
gerações sucessivas: a primeira, iniciada com o Neorrealismo na década de 30 e
consolidada entre os anos 40 e 50; a segunda, marcada pela escrita
experimentalista de cunho eminentemente existencialista; e a terceira, surgida na
década de 70 e assinalada por diversas tendências criativas, principalmente pelo
resgate ficcional da história portuguesa passada e presente.

Um dos principais escritores dessa última geração é o único nome das letras
portuguesas agraciado com o Prêmio Nobel, José Saramago, cuja produção
romanesca trata, recorrentemente, de momentos decisivos da construção de
Portugal como nação. O escritor alenjetano tratou tais momentos de forma crítica e
questionou a possibilidade de visões diferentes acerca de marcantes
acontecimentos históricos lusitanos – a produção ficcional de Saramago procura
recontar a história de Portugal (ABDALA JR, 2007, p. 70). Além dos grandes temas
históricos, abundam nos romances de Saramago referências intertextuais,
especialmente a Fernando Pessoa, Luís de Camões e Eça de Queirós, que
evidenciam, em sua produção escrita, um aspecto autorreflexivo.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, essas duas


características da obra de Saramago se inter-relacionam através da presença do
escritor Fernando Pessoa e de seu heterônimo Ricardo Reis, que estão situados em
10

um momento e em um local histórico delimitado: a Lisboa de 1936. Os escritores


tornados personagens no romance articulam literatura e história ainda mais
intimamente: recuperando-se como personagem um escritor que, de fato, existiu,
recuperam-se a literatura que produziu e o tempo histórico em que transitou – se
Reis não existiu corporeamente, existiu heteronimamente e deixou obra poética
como marca de sua passagem pelo mundo, assim como o Pessoa que viveu. Como
afirma Leyla Perrone-Moisés (2000, P. 173): “Morto, Pessoa é um texto: o seu, o dos
que dele falam. Um texto, como Reis: o das Odes e, agora, o do romance de
Saramago”.

A ação do romance é desencadeada quando Ricardo Reis – médico


português, monarquista, de educação jesuítica e formação cultural classicista,
escritor de odes horacianas e heterônimo de Fernando Pessoa, voluntariamente
exilado no Brasil por motivos políticos desde 1919 – recebe a notícia do falecimento
de Fernando Pessoa por meio de um telegrama enviado por Álvaro de Campos. A
notícia, recebida no fim de 1935 – momento politico conturbado no Brasil, com a
supressão da Coluna Prestes por parte do Estado Novo – abala Reis, que, sem
saber exatamente por que, compra uma passagem de navio para Lisboa. De volta
ao país natal a bordo do Highland Brigade, Reis hospeda-se no quarto 201 do Hotel
Bragança. Visita o túmulo de Fernando Pessoa no Cemitério dos Prazeres e passa
os dias a vagar, como um flâneur benjaminiano, pelas ruas da cidade, tentando
reconhecer os anos que vivera ali e justificar sua própria existência, no momento em
que Pessoa já estava morto. Poucos dias após sua chegada a Portugal, Reis
começa a receber as visitas noturnas, que se estenderão ao longo de todo o livro, do
espírito de Fernando Pessoa, ocasiões em que Pessoa e Reis conversam sobre sua
obra literária e discutem os últimos acontecimentos de Portugal e da Europa –
acontecimentos aos quais Reis tem acesso mediante a leitura de jornais e a
conversa com os empregados do hotel. Além das visitas de Pessoa, o doutor Reis
começa a ter um caso amoroso com Lídia, uma camareira do hotel, e um amor
platônico por Marcenda, moça de Coimbra que se hospeda com o pai no hotel uma
vez por mês para receber tratamento de saúde.

A intertextualidade, como parece evidente, é um dos alicerces do romance,


que retoma constantemente os poemas de Pessoa, de Reis e dos outros
heterônimos pessoanos mais ilustres, além de fazer inúmeras referências a Luís de
11

Camões, Eça de Queirós, Jorge Luis Borges e Miguel de Unamuno. Os versos


pessoanos, especialmente as odes de Reis, estão muito bem integrados na malha
romanesca, que os absorve e ressignifica, além de empreender algumas alterações
em certas odes.

É importante ressaltar que, além de utilizar intertextos literários na construção


de O Ano da Morte de Ricardo Reis, o autor permeia a diegese de textos publicados
nos jornais portugueses “O Século” e “Diário de Notícias” nos anos de 1935 e 1936,
textos que aparecem no romance lidos por Reis em jornais. As informações retiradas
dos jornais auxiliam na caracterização do que estava acontecendo em Lisboa
durante aqueles meses e assumem grande importância na relação estabelecida
entre Reis e as situações com as quais ele se defronta. Essas notícias são
importantes, também, pelo fato de serem comentadas ironicamente pelo narrador e
terem sua veracidade questionada pela personagem Lídia. Este uso da
intertextualidade torna ainda mais visível o entrecruzamento dos discursos literário e
histórico na obra.

No que diz respeito à história, a inserção do heterônimo pessoano mais


aristocrático e a-histórico em um momento histórico conturbado (em 1936 os
movimentos totalitários na Europa estavam em franca expansão e consolidação: o
salazarismo recrudescia em Portugal, o fascismo italiano começava a expandir-se
internacionalmente com a invasão à Abissínia – atual Etiópia –, o nazismo vicejava
na Alemanha sem ser observado pela comunidade internacional e, talvez o fato mais
importante do ano, explodia a Guerra Civil na Espanha) não é gratuita: ela marca o
confronto entre uma visão marcada pela máxima “Sábio é aquele que se contenta
com o espetáculo do mundo” (PESSOA, 2007, p. 259) com um tempo em tudo
alheio a essa perspectiva passiva, um tempo que exige envolvimento e não perdoa a
neutralidade e a omissão. O “espetáculo do mundo” em 1936 apontava para os
milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial, o genocídio dos judeus orquestrado
e realizado pelo Terceiro Reich, a destruição de cidades inteiras e tudo o que este
monumental confronto acarretaria ao mundo – a ameaça nuclear, a separação do
planeta entre dois polos, a Guerra Fria e a prática de governos ditatoriais,
respaldados ou pelos Estados Unidos, ou pela União Soviética, nas regiões mais
empobrecidas do planeta, como a América do Sul e a África. Um espetáculo,
portanto, impossível de ser contemplado passivamente – tanto que Reis, agora um
12

personagem saramaguiano, não consegue resistir aos acontecimentos e resolve


partir, junto com seu criador, para outro mundo.

O confronto entre Reis e sua formação estético-ideológica e o que de fato


estava acontecendo em Portugal e no mundo assinala uma característica importante
da revisitação histórica empreendida por Saramago: essa revisitação não é feita de
maneira a glorificar o passado, a iluminar os grandes feitos dos grandes homens da
nação lusitana para os olhos dos leitores de hoje, e nem o autor busca silenciar o
passado. Saramago confronta o passado de maneira irônica, questionando suas
lacunas, realçando personagens marginalizados pelo discurso historiográfico oficial.
A atitude do escritor português, portanto, o afasta dos laivos românticos do romance
histórico tradicional e não permite que se vejam traços modernistas de destruição do
passado. Saramago, antes, identifica-se com a resposta pós-moderna ao passado
apresentada por Umberto Eco (1984, p. 56-57): “A resposta pós-moderna ao
moderno consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído
porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira
não inocente”

Essa atitude pós-moderna com relação ao passado, aliada ao uso explícito e


constante de referências intertextuais ao longo do romance (começando,
evidentemente, no título e nas epígrafes e permeando toda a malha romanesca),
permite elencar O Ano da Morte de Ricardo Reis em um tipo particular de narrativas
de extração histórica, que se afasta do romance histórico tradicional e é típico do
pós-modernismo: a metaficção historiográfica, termo cunhado por Linda Hutcheon
(1991).

A metaficção historiográfica é um gênero marcado pelo hibridismo e pelas


fronteiras esgarçadas entre o discurso literário e o historiográfico. Nela coexistem a
autorreferencialidade da narrativa romanesca moderna e as preocupações com as
lacunas da história. Romances que questionam os processos de escrita da ficção e
da história, bem como contemplam criticamente a história oficial, podem ser
enquadrados nesse gênero híbrido – caso de O Ano da Morte de Ricardo Reis e de
outros romances de Saramago, como Memorial do Convento e História do Cerco de
Lisboa.
13

Na metaficção historiográfica, a história é removida do estatuto de pano de


fundo temático que o romance histórico tradicional lhe reservava e é alçada ao
status de elemento estruturante do romance, tão importante quanto a própria ficção.
Essa relação íntima entre as duas áreas dá-se, nos romances, através do uso da
intertextualidade, que, nas metaficções historiográficas, recupera tanto textos
literários, quanto históricos. A intertextualidade funciona como maneira de retomar
esses textos e, ao mesmo tempo em que enriquece o texto novo de novas
interpretações, modifica a maneira com que os textos antigos eram compreendidos,
questionando, assim, noções unitárias como a de “centro” e de “verdade absoluta”.
Essas narrativas de extração histórica são caracterizadas, também, por fazerem
releituras críticas do passado, problematizarem os processos de escrita tanto da
literatura quando da história, retratarem as grandes figuras como seres ex-cêntricos
e darem voz a personagens excluídos dos registros históricos mais tradicionais.

Considerando o exposto acerca do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis


e de suas características, o objetivo deste trabalho é analisar a articulação entre
intertextos literários e intertextos históricos mediante a presença de escritor-
personagem na construção do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José
Saramago. Especificamente, tenciona-se determinar quais são e de que maneira
apresentam-se os intertextos literários e os intertextos históricos no romance,
relacionar tais intertextos aos escritores-personagens presentes no romance,
analisar de que maneira os discursos literário e histórico articulam-se no romance e
verificar qual é a relevância da análise do romance sob a luz do termo metaficção
historiográfica e de sua conceituação.

Para que tais objetivos fossem atingidos, fez-se necessário um levantamento


dos dados intertextuais presentes no romance, bem como a definição de conceitos
norteadores, dentro do amplo campo dos estudos de intertextualidade, que
embasassem a pesquisa e auxiliassem no levantamento de tais dados. Além desse
levantamento, foi necessária a leitura de autores tanto do campo da teoria literária,
quanto da historiográfica, que se debruçassem sobre as fronteiras e os limites entre
ficção e historiografia. No que diz respeito ao escritor personagem, foram analisados
alguns estudos que tematizam tal categoria narrativa. O corpus da análise qualitativa
é constituído do romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, o qual foi estudado à luz
das teorias de intertextualidade apresentadas por Genette, Samoyault e Jenny, do
14

pós-modernismo na cultura e na historiografia e dos estudos acerca da categoria


escritor-personagem.

A fim de uma exposição clara, coerente e estruturada, a presente monografia


será dividida em três capítulos e encerrada por uma conclusão. O primeiro capítulo,
intitulado “Aqui a história acaba e a literatura principia: a articulação entre discurso
literário e discurso historiográfico”, traz o histórico das relações entre literatura e
história e apresenta o conceito “metaficção historiográfica”. Neste capítulo, são
apresentadas as características de O Ano da Morte de Ricardo Reis que autorizam
identificá-lo com a metaficção historiográfica. “Vivem em nós inúmeros: a
intertextualidade em O Ano da Morte de Ricardo Reis” é o título do segundo capítulo
desta monografia, o qual se ocupará da definição do termo intertextualidade e da
apresentação não exaustiva dos dados intertextuais encontrados no romance
estudado, bem como de uma análise quanto ao papel dessas referências
intertextuais na construção de tal obra saramaguiana. Em “Um espectador do
espetáculo do mundo: o escritor-personagem em O Ano da Morte de Ricardo Reis”,
terceiro capítulo deste trabalho, será discutido o estatuto da categoria narrativa
escritor-personagem e verificada a aplicabilidade desta a Ricardo Reis e Fernando
Pessoa, bem como problematizada a apropriação empreendida por Saramago do
heterônimo mais classicista de Fernando Pessoa. Na “Conclusão”, serão retomadas
as principais conclusões deste trabalho.
2. AQUI A HISTÓRIA ACABA E A LITERATURA PRINCIPIA: A
ARTICULAÇÃO ENTRE DISCURSO LITERÁRIO E DISCURSO
HISTORIOGRÁFICO

todo o romance é isso, desespero, intento frustrado de


que o passado não seja coisa definitivamente perdida.
Só não se acabou ainda de averiguar se é o romance
que impede o homem de esquecer-se, ou se é a
impossibilidade do esquecimento que o leva a escrever
romances. (José Saramago)

Uma característica marcante da produção ficcional de José Saramago é a


revisitação de momentos históricos decisivos na construção de Portugal como
nação, cuja influência ainda se faz notar na identidade deste país ibérico. A história
lusitana é recontada por Saramago em seus muitos romances de extração histórica,
de forma a dessacralizar versões sedimentadas do relato historiográfico, questionar
o passado glorioso do Império Português e dar voz a personagens comumente
silenciados pelo registro oficial – em suma, conforme disse o próprio Saramago,
“escrevo para desassossegar, não quero leitores conformados, passivos,
resignados” (José e Pilar, 2010). Além de O Ano da Morte de Ricardo Reis, os
romances de Saramago que mais explicitamente retomam acontecimentos
históricos, portugueses ou não, são Memorial do Convento (1986), História do Cerco
de Lisboa (2010), O Evangelho Segundo Jesus Cristo (2005), A Viagem do Elefante
(2010) e Caim (2010).

Antes de analisar de que forma o discurso literário e o discurso historiográfico


se entrecruzam em O Ano da Morte de Ricardo Reis, é necessário traçar um
histórico de como as fronteiras entre fato e ficção têm sido delimitadas, a fim de
evidenciar os conceitos norteadores deste trabalho.

2.1 Fato e Ficção – fronteiras rígidas

Aristóteles foi o primeiro teórico a abordar a articulação entre literatura e


história. Para o filósofo grego, o historiador conta o que de fato aconteceu, ao passo
16

que o poeta narra o que poderia ter acontecido; ele afirma que, enquanto o texto do
historiador seria regido pelas leis da verdade, o texto do poeta responderia à
verossimilhança (ARISTÓTELES, 1987, p. 209).

Considerando o fato de a verossimilhança dizer respeito às regras internas ao


texto literário e de a verdade relacionar-se à lógica do mundo externo ao texto
literário, é possível afirmar que, para Aristóteles, haveria uma cisão muito clara entre
literatura (poesia, no texto aristotélico) e história, uma vez que a literatura estaria
comprometida com a ficção, ao passo que a história estaria indissoluvelmente ligada
ao fato. Portanto, a primeira ligação entre literatura e história não foi propriamente
uma ligação, foi uma separação entre tais áreas de conhecimento.

No âmbito literário, a história tem sido utilizada pela literatura como tema
desde Homero, que combinou mito e história em a Ilíada e a Odisseia, obras
fundadoras da literatura ocidental que se acredita terem sido escritas no século VIII
a.C. A matéria histórica dos dois poemas épicos é a Guerra de Troia, que teria
acontecido por volta do século XII a.C. – distante temporalmente de Homero,
portanto, cerca de quatro séculos. Essa distância temporal teria, segundo Alcmeno
Bastos (2007, p. 15-16) favorecido a elaboração mítica da narrativa épica, a qual
recorria à constante intervenção dos deuses gregos para favorecer seus protegidos,
porque não havia registros escritos da guerra que se contrapusessem à visão do
poeta.

A relação unívoca entre mito e história encontrada em Homero não é


incompatível com a distinção entre literatura e história estabelecida por Aristóteles,
uma vez que tanto a Ilíada quanto a Odisseia são vistas como obras poéticas, as
quais, ainda que se utilizem de fatos tidos como verídicos a fim de inspirar confiança
por tratarem de eventos ou de personagens conhecidos, têm compromisso com a
verossimilhança e não com a verdade (1987, p. 209). Essa relação unívoca é
chamada por Erich Auerbach de realismo essencial:

A exprobração frequentemente levantada contra Homero de que ele seria


um mentiroso nada tira de sua eficiência; ele não tem necessidade de fazer
alarde da verdade histórica do seu relato, a sua realidade é bastante forte;
emaranha-nos, apanha-nos em sua rede, e isto lhe basta. Neste mundo
“real”, existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por encanto, não
há tampouco outro conteúdo a não ser ele próprio; os poemas homéricos
nada ocultam, neles não há nenhum ensinamento e nenhum sentido oculto.
17

É possível analisar Homero [...], mas não é possível interpretá-lo.


(AUERBACH, 1976, p. 10)

A demarcação nítida das fronteiras entre literatura e história pregada por


Aristóteles manteve-se relativamente inalterada até o século XIX – período de
florescimento e consolidação tanto do romance, quanto da historiografia. O romance
se consolidou como gênero literário da burguesia em uma sociedade marcada pela
afirmação do capitalismo como o modo econômico dominante, retratando a trajetória
de heróis individuais, cujos destinos casuais comovem os leitores. A historiografia se
concretizou enquanto área do conhecimento mediante a identificação com o
positivismo e passou a se ocupar dos grandes fatos políticos, que eram investigados
com rigor científico e escritos com a pretensão da absoluta objetividade e
neutralidade.

O teórico marxista Georg Lukács abordou a constituição e a consolidação do


romance moderno na obra A Teoria do Romance (2007), recorrendo, para isso, às
relações que o romance entretém com a epopeia. Lukács afirma que a epopeia e o
romance diferem, principalmente, pelas condições histórico-filosóficas de sua
produção. Enquanto a epopeia, característica do período helênico, é considerada um
todo homogêneo cujo sentido está manifesto, em que o herói é representativo de
uma coletividade e integra o mundo narrado de maneira harmoniosa (mundo este
completo em si mesmo), o romance moderno, característico do início do capitalismo,
embora almeje à totalidade, é considerado um mundo fragmentado cujo sentido
oculto é objeto da constante busca de um herói problemático e solitário, estando em
uma relação descontínua com o universo narrado (LUKÁCS, 2007, p. 60).

Outra característica discrepante entre epopeia e romance relaciona-se com a


estruturação interna de cada uma dessas formas: por um lado, a epopeia, sendo um
todo harmonioso, também era composta por partes que, somente se adicionadas
umas às outras, formavam um todo de sentido; o romance, por outro lado, deveria
ser composto por partes relativamente independentes entre si e que, unidas,
formariam um todo.

Replicando, em sua estrutura, o mundo fragmentado e individualista trazido


pelo capitalismo, retratando sujeitos problemáticos, solitários e em descompasso
com um mundo cujo sentido lhes é ocultado, o romance tornou-se a forma literária
18

preferida pela burguesia, classe essa que representa causa e consequência da


alienação e da desumanização. Ademais, a popularização dos romances tem liames
com o fato de a leitura ser uma atividade isolada e solitária – diferentemente, por
exemplo, dos concertos e das peças de teatro –, a qual reforça o isolamento e a
alienação dos leitores.

A consolidação do romance observada no século XIX veio acompanhada do


surgimento do romance histórico, gênero narrativo híbrido, nascido de um processo
de combinação entre história e ficção, em que a história é utilizada como tema pela
literatura. Esse gênero narrativo teve sua gênese no início do século XIX, no
Romantismo, mediante a obra do escritor britânico Walter Scott e também foi alvo de
extensos estudos de Lukács, na obra O Romance Histórico.

Walter Scott estabeleceu um esquema para o romance histórico que se


tornou uma espécie de arquétipo para o gênero. Esse modelo obedece a três
princípios: primeiro, a ação narrada no romance ocorre em um passado anterior ao
tempo da narração, tendo como pano de fundo um ambiente minuciosamente
reconstruído, com figuras históricas endossando o período recuperado; segundo, os
personagens principais da narrativa são geralmente fictícios e atuam como
representantes de uma classe; terceiro, estes personagens se envolvem em
episódios amorosos, os quais são geralmente problemáticos e têm desenlaces
trágicos (LUKÁCS, 2011, p. 46-84).

Vê-se, portanto, que tal subgênero narrativo produzido no século XIX


mantinha o tempo da narrativa e o tempo da narração rigidamente separados,
reconstituindo o tempo narrado com base em grandes eventos históricos. Nesse
subgênero, as personagens fictícias, envolvidas na trama romântica ficcional, eram
tratadas como o arquétipo da pessoa comum de seu tempo, ao passo que as figuras
históricas do romance, bem como a caracterização histórica com os detalhes da
época histórica retratada, apareciam como pano de fundo da ação.

A ficcionalização da história feita por romancistas como Walter Scott em certa


medida coincide com a historiografia do início do século XIX. Identificando-se com o
positivismo, historiadores novecentistas como Leopold Ranke identificavam o
conceito de verdade absoluta com os fatos históricos políticos por eles estudados.
19

O paradigma do historicismo tradicional, segundo Peter Burke (1992),


apoiava-se em seis pontos: a história diz respeito essencialmente aos
acontecimentos políticos; é construída a partir de uma narrativa ideologicamente
isenta; oferece uma visão “de cima” dos eventos narrados, no sentido de contar os
grandes feitos dos grandes homens; a história deve se basear em documentos dos
registros oficiais; a história deve responder a questionamentos individualizados, do
tipo “Por que Brutus apunhalou César?”; e a história deve ser objetiva, narrando os
fatos como eles realmente aconteceram (p. 9-15).

A história era, portanto, vista como algo intocável, uma relíquia perdida no
tempo cujo resgate cabia ao historiador. O historiador, por sua vez, era visto como
um ser neutro, sem qualquer influência ideológica, que trazia de volta o fato
histórico, exatamente como acontecera, através de uma narrativa inteiramente
isenta. Estes fatos históricos relacionavam-se aos grandes feitos da humanidade e
eram tratados de forma a ocultar a grande massa de pessoas comuns. Ora, nos
romances históricos novecentistas a história era mantida como relíquia, intocada,
relegada a pano de fundo da ação propriamente dita, executada por personagens
ficcionais. Da mesma maneira, as personalidades históricas presentes nos romances
permaneciam inalteradas, sem ter grandes feitos fictícios atribuídos a si, sendo
utilizadas apenas para conferir veracidade à ambientação do romance.

2.2 Discurso literário e discurso histórico: fronteiras esgarçadas

A partir do início do século XX, tanto os conceitos de romance, quando os de


historiografia passaram por modificações profundas. Enquanto, a partir das
Vanguardas Literárias da década de 20, o romance tornava-se progressivamente
autorreflexivo, sem necessariamente preocupar-se com as relações de
referencialidade que o marcaram durante o Romantismo e o Realismo-Naturalismo,
a historiografia se libertava do positivismo com a École des Annales, que exortava
uma maior ligação entre a historiografia e as demais áreas de conhecimento
humano, especialmente as ciências humanas e sociais e, mesmo, as artes. Com os
Annales, a identificação unívoca entre fatos históricos e verdade é enfraquecida.
20

Os movimentos vanguardistas europeus trabalharam em prol de inovações na


forma e no conteúdo da arte. Lúcia Helena define o termo vanguarda da seguinte
maneira:

vem do francês avant-garde e significa o movimento artístico que “marcha


na frente”, anunciando a criação de um novo tipo de arte. Esta denominação
tem também uma significação militar (a tropa que marcha na dianteira para
atacar primeiro), que bem demonstra o caráter combativo das “vanguardas”,
dispostas a lutar agressivamente em prol da abertura de novos caminhos
artísticos. (HELENA, 1993, p. 8)

Em nome dessa renovação da arte e a fim de outorgar ao discurso artístico


uma maior especificidade, as vanguardas de certa forma isolaram o sistema artístico
de suas ligações de referencialidade com o mundo exterior. Movimentos
vanguardistas como o Futurismo decidiram romper totalmente com o passado,
tentando construir a nova arte sobre uma tábula rasa. Como consequência disso,
foram produzidas obras literárias autorreflexivas e formalmente inovadoras. O fato
de a arte ter se voltado sobre si mesma, ainda que não tenha privilegiado suas
relações com a história, foi importante para a consolidação da literatura como uma
forma autônoma de arte, que exige métodos de estudo específicos e demanda
institucionalização.

A École des Annales foi um movimento da historiografia surgido em Paris, em


1929, com o objetivo de afastar a historiografia do primado positivista dominante no
século XIX e, consequentemente, ampliar as possibilidades de estudo da história. O
movimento, agrupado em torno da revista Annales: économies, societés,
civilisations, rejeitou a história dos acontecimentos (histoire événementielle) em prol
de uma análise das estruturas subjacentes a esses acontecimentos: para os
historiadores fundadores dos Annales Lucien Lefebve e Fernand Braudel, o
acontecimento é apenas a ponta do iceberg (BURKE, 1992, p. 328). A abordagem
da história, a partir dos Annales, passou a ser menos voltada aos acontecimentos
políticos e mais aberta à análise das razões estruturais subjacentes a
acontecimentos os mais diversos – relativos a fatores econômicos, sociais, culturais,
demográficos. Apesar disso, a característica narrativa da história foi deixada de lado
enquanto análises quantitativas foram privilegiadas. A abertura da história para
outras áreas do conhecimento foi extremamente importante, ainda que, naquele
momento, suas relações com a literatura não fossem muito exploradas.
21

Posteriormente às vanguardas modernas e ao estabelecimento dos Annales,


a articulação entre literatura e história atingiu um nível sem precedentes na cultura
pós-moderna. Teóricos da cultura como Linda Hutcheon e historiadores como
Hayden White passaram a rever o estatuto das duas áreas e, ao invés de separá-
las, enfatizam suas aproximações.

A partir da segunda metade do século XX, um processo sem precedentes de


mudanças na história do pensamento e da técnica desenvolveu-se. Ao lado da
aceleração avassaladora nas tecnologias de comunicação, de artes, de materiais e
de genética, ocorreram mudanças paradigmáticas no modo de se pensar a
sociedade e suas instituições. Ideais da Modernidade como a crença na verdade, na
razão e na linearidade histórica fadada ao progresso, na identidade unificada do
homem, na nação passaram a ser problematizados. Esse tempo de incertezas foi
batizado, por teóricos como Jean-François Lyotard, Fredric Jameson e Linda
Hutcheon de Pós-Modernidade ou Pós-Modernismo, e uma metáfora amplamente
utilizada na caracterização da ideologia desse novo tempo é a queda do Muro de
Berlim, acontecida em 1989, que marcou a crise e o declínio dos grandes sistemas
político-ideológicos que haviam polarizado o mundo desde o fim da Segunda Guerra
Mundial.

Lyotard identifica o pós-moderno ao estado da cultura após as


transformações que afetaram os jogos da ciência, da literatura e das artes (2011, p.
xv). O autor situa essas transformações nos campos científico, artístico e literário em
relação à crise dos metarrelatos, definidos como discursos de legitimação criados e
exercidos sobre a ciência (ou a arte, ou a literatura) com a finalidade de justificar sua
existência. As construções legitimadoras de todas as instituições são, como as da
ciência, discursos criados pelos próprios praticantes dessa ciência, questão que
lança dúvidas sobre a validade de tais instituições. Conforme Lyotard:

[...] legitimando o saber por um metarrelato, que implica uma filosofia da


história, somos conduzidos a questionar a validade das instituições que
regem o vínculo social: elas também devem ser legitimadas. A justiça
relaciona-se assim com o grande relato, no mesmo grau que a verdade.
(LYOTARD, 2011, p. xvi)

A incredulidade quanto aos metarrelatos é definida por Lyotard como pós-


moderna, sendo também considerada um efeito do progresso das ciências. O autor
considera essa incredulidade um passo importante para a mudança no estatuto da
22

narrativa das ciências, as quais ficarão progressivamente mais ligadas a elementos


narrativos, uma vez que as função da grande narrativa legitimadora perderá seus
atores, sua grande trama, seus grandes perigos e objetivos. (LYOTARD, 2011, p.
xvi)

Linda Hutcheon (1991) afirma que o pós-modernismo é um fenômeno


contraditório, “que usa e abusa, instala e depois subverte, os próprios conceitos que
desafia” (p. 19), sem, no entanto, rejeitá-los – o que diferencia, sensivelmente, o
pós-modernismo dos movimentos de vanguarda. O pós-modernismo problematiza
noções estabelecidas pelo humanismo liberal e pelo capitalismo recente (portanto, a
ideologia dominante e as tendências econômicas atuais) como as de centro, de
identidade, de originalidade e autoria e da separação entre o estético e o político:

Assim, deliberadamente contraditória, a cultura pós-moderna usa e abusa


das convenções do discurso. Ela sabe que não pode escapar ao
envolvimento com as tendências econômicas (capitalismo recente) e
ideológicas (humanismo liberal) de seu tempo. Não há saída. Tudo que ela
pode fazer é questionar a partir de dentro. Ela só pode problematizar aquilo
que Barthes (1973) chamou de “dado” ou de “óbvio” em nossa cultura. A
História, o eu individual, a relação da linguagem com seus referentes e dos
textos com outros textos – essas são algumas das noções que, em diversos
momentos, pareceram “naturais” ou pareceram, de maneira não
problemática, fazer parte do senso comum. É para elas que se volta o
questionamento. (HUTCHEON, 1991, p. 15-16)

Hutcheon afirma que a expressão do pós-modernismo na literatura seria o


gênero narrativo por ela chamado de metaficção historiográfica, em que as fronteiras
entre discurso literário e discurso histórico são intencionalmente fluidas e que é
composto por obras que são, ao mesmo tempo, intensamente autorreflexivas e se
apropriam de acontecimentos e personagens históricos, de maneira subversiva. O
pós-modernismo e a metaficção historiográfica, a qual será estudada mais
detalhadamente em outra parte deste trabalho, problematizam, do ponto de visto da
teoria, e tematizam, quando é observada a prática dos discursos pós-modernos,
alguns paradoxos estabelecidos quando acontece um enfrentamento entre a
autonomia estética e a autorreflexividade modernistas e uma força contrária na
forma de uma fundamentação no mundo histórico, social e político (HUTCHEON,
1991, p. 11). Os paradoxos, entretanto, não são colocados de maneira dialética na
23

produção discursiva: eles permanecem sem soluções, coexistindo dentro dos relatos
pós-modernos.

A fluidez das fronteiras entre discurso literário e discurso historiográfico na


cultura pós-moderna pode ser exemplificada da seguinte forma:

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a


ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de
significação pelos quais damos sentido ao passado (‘aplicações da
imaginação modeladora e organizadora’). Em outras palavras, o sentido e a
forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam
esses ‘acontecimentos’ passados em ‘fatos’ históricos presentes.
(HUTCHEON, 1991, p. 122)

O que interessa a esta pesquisa é a aproximação entre literatura e história


enquanto discursos que se interpenetram e condicionam. Ainda de acordo com
Hutcheon:

Considera-se que as duas [história e ficção] obtêm suas forças a partir da


verossimilhança, mais do que a partir de qualquer verdade objetiva; as duas
são identificadas como construtos linguísticos, altamente
convencionalizadas em suas formas narrativas, e nada transparentes em
termos de linguagem ou de estrutura; e parecem ser igualmente
intertextuais, desenvolvendo os textos do passado com sua própria
textualidade complexa. (HUTCHEON, 1991, p. 141)

Quando a estudiosa canadense conclui que o sentido e a forma não estão


nos acontecimentos, mas nos sistemas que os transformam em fatos históricos e
afirma que a história e a ficção são construtos linguísticos altamente
convencionalizados, é possível afirmar que sua reflexão vai ao encontro da maneira
com a qual Barthes conceitua o fato histórico. O estudioso francês, considerando os
avanços na análise do discurso, questiona a legitimidade de opor a narrativa
ficcional à narrativa histórica (BARTHES, 2004, p. 163). Ao discutir a natureza do
fato histórico, Barthes assevera:

Chega-se assim a esse paradoxo que pauta toda a pertinência do discurso


histórico (com relação a outros tipos de discurso): o fato nunca tem mais
que uma existência linguística (como termo de um discurso), e, no entanto,
tudo se passa como se essa existência não fosse senão a “cópia” pura e
simples de uma outra existência, situada num campo extra-estrutural: o real.
(BARTHES, 2004, p. 177)

As incertezas do pós-modernismo não deixaram incólume a historiografia.


Roger Chartier (2002) afirma que “tempo de incerteza”, “crise epistemológica” e
“reviravolta crítica” foram diagnósticos constantes dados à história na segunda
24

metade do século XX, especialmente a partir dos anos 60 (p. 81). Corroborando, em
certa medida, os prognósticos da falência dos metarrelatos legitimadores de Lyotard,
a historiografia estava questionando os primados da análise estruturalista iniciada
pelos membros da École des Annales, por um lado, e a submissão da história ao
paradigma galileano, de análise mais quantitativa, proposto por Carlo Ginzburg
(2009) em “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”.

Diversas correntes se estabeleceram dentro da historiografia, a partir dessas


certezas abaladas. Os estudos históricos acerca de indivíduos marginalizados pelo
registro oficial, como negros, mulheres, operários e camponeses, foram fortalecidos,
sendo difundida uma mudança na perspectiva da narrativa histórica: ao invés de
enfocar os acontecimentos “de cima”, ou seja, vendo os grandes homens e seus
grandes feitos, passou-se a enfocar as vidas “de baixo”, observando os
acontecimentos relativos às pessoas comuns de uma localidade comum.

O que mais abalou, entretanto, o discurso e o fazer da história foi a


conscientização dos historiadores de que seu discurso, independente de sua forma,
é sempre uma narrativa. (CHARTIER, 2002, p. 85) O historiador britânico ligado ao
pós-modernismo Hayden White tem enfatizado o status eminentemente narrativo da
escrita da história e os liames que a narrativa historiográfica entretém com a
narrativa ficcional, especialmente no que diz respeito ao papel do historiador nessa
escrita e das estruturas prototípicas de urdidura (ou emplotment) do enredo.

A ambição de White (1973) é de compreender a estrutura profunda da


imaginação histórica, traduzida na criação de uma estrutura verbal na forma de um
discurso narrativo em prosa. O autor afirma que narrativas historiográficas combinam
certa quantidade de “dados”, conceitos teóricos para explicar tais dados, e uma
estrutura narrativa para apresentar esses dados como um ícone de grupos de
acontecimentos presumivelmente ocorridos no passado, além de sustentar que a
estrutura profunda de tais narrativas tem um teor de modo geral poético e de modo
específico linguístico, o qual seria a característica principal da narrativa da
experiência humana (p. IX).

White, então, define que o enredo das narrativas históricas pode ser
estruturado em quatro diferentes modos de urdidura, – romanesco, satírico, trágico
25

ou cômico –, utilizando quatro paradigmas de explanação histórica dos dados


urdidos no enredo – formista, organicista, mecanicista ou contextualizado – de
acordo com quatro diferentes posicionamentos ideológicos para os dados históricos
explanados e urdidos na narrativa – anarquista, radical, conservador ou liberal
(WHITE, 1973, p. 7-29).

Tais modos de urdidura, paradigmas de explanação e posicionamentos


ideológicos podem ser combinados pelo historiador a fim de dar determinada
interpretação dos dados históricos com os quais trabalha e de criar um estilo próprio.
O historiador simultaneamente cria seu objeto de análise e predetermina a
modalidade das estratégias conceituais que utilizará para explicá-lo (WHITE, 1973,
p. 31), o que elimina o distanciamento entre dado histórico, buscado no passado, e
sua transformação em uma narrativa, acabando com qualquer intenção de
neutralidade e isenção ideológica do historiador. Portanto, para White:

[...] nenhum conjunto dado de acontecimentos históricos casualmente


registrados pode por si constituir uma estória; o máximo que pode oferecer
ao historiador são os elementos de estória. Os acontecimentos são
convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e
pelo realce de outros, por caracterização, repetição do motivo, variação do
tom e do ponto de vista, estratégias descritivas alternativas e assim por
diante - em suma, por todas as técnicas que normalmente se espera
encontrar na urdidura do enredo de um romance ou de uma peça. (WHITE,
2001, p. 100)

De maneira a relacionar esses diferentes estilos dos historiadores, compostos


pelos modos de urdidura, paradigmas de explanação e posicionamentos ideológicos
combinados entre si, como elementos de uma tradição do pensamento histórico,
White postula um tipo de nível profundo de consciência sob o qual o historiador
escolhe entre estratégias conceituais a fim de explicar ou representar os dados
históricos. Essas estratégias conceituais são identificadas por White com os quatro
tropos da linguagem poética: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia (WHITE,
1973, p. X).

Considerando tudo o que foi exposto acerca da aproximação entre o discurso


histórico e o discurso literário no pós-modernismo, é possível afirmar que as
fronteiras entre fato e ficção estão muito fluidas. O entrecruzamento é profundo
justamente porque literatura e história são vistas como formas discursivas
estruturalmente similares, diferentemente do que é observado nos romances
26

históricos tradicionais novecentistas, nos quais a literatura utilizava a história como


pano de fundo, e nas narrativas históricas que recorrem à literatura meramente
como fonte documental. A forma narrativa que traduz de maneira mais completa
essa inter-relação entre discursos é a metaficção historiográfica, termo cunhado por
Hutcheon para referir-se a um certo tipo de romances híbridos de história e ficção,
autorreferenciais e preocupados com a história.

2.3 Metaficção Historiográfica

Um dos objetivos deste trabalho foi determinar de que maneira o cunho de


metaficção historiográfica pode ser aplicado ao romance O Ano da Morte de Ricardo
Reis e se tal categorização é relevante para a análise dos discursos presentes nesta
obra saramaguiana. Acreditou-se que seria relevante pensar em O Ano da Morte de
Ricardo Reis como metaficção historiográfica devido ao fato de a ação do romance
analisado se passar em um tempo distante de sua escrita – o romance se passa em
1936 e a escrita aconteceu no início da década de 1980, quase meio século
distantes no tempo, portanto – e de a obra não poder ser enquadrada no arquétipo
de romances históricos tradicionais, conforme as observações lukacsianas. Some-se
a isso o fato de Ana Paula Arnaut inserir O Ano da Morte de Ricardo Reis em um
primeiro ciclo, ou primeira fase, da produção romanesca de Saramago, marcado por
revisitações do passado lusitano e composto por Levantado do Chão, Memorial do
Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, A Jangada de Pedra, História do Cerco
de Lisboa e O Evangelho segundo Jesus Cristo (ARNAUT, 2008, p. 25).

A fim de tornar mais evidentes as diferenças entre romance histórico


tradicional – ou clássico, segundo a nomenclatura de Lukács (2011) – e metaficção
historiográficas, é interessante relembrar brevemente o arquétipo lukacsiano,
contrastando-o com a prática da metaficção historiográfica, bem como apresentando
mais conceitos desta prática. Após esta breve revisão teórica, serão apresentadas
evidências que apontam para a inserção de O Ano da Morte de Ricardo Reis no
âmbito das metaficções historiográficas, bem como problematizadas a contribuição
dessa obra para a discussão das aproximações entre discurso literário e discurso
historiográfico.
27

Evidentemente, o romance histórico, gênero literário híbrido de ficção e


história, acompanhou as reformulações sofridas pelas duas áreas do conhecimento
e transformou-se também. A partir da segunda metade do século XX, as
características românticas do romance histórico tradicional foram alteradas em
determinados tipos de romances.

Lukács acreditava que o processo histórico poderia ser encenado, dentro do


romance histórico, mediante a apresentação de um microcosmo generalizador e
concentrado. Devido a essa generalização e concentração do processo histórico, os
heróis romanescos deveriam ser pessoas comuns, “heróis medianos” (LUKÁCS,
2011, p. 51), que serviam como tipos de sua classe. Os personagens históricos,
quando são introduzidos no romance, aparecem em papeis secundários, que
servem apenas para legitimar a narrativa, e são descritos como prontas e acabadas,
sem nunca ficar explícito “como surge essa personalidade historicamente
significativa” (LUKÁCS, 2011, p. 55). Por fim, os detalhes não são considerados
muito relevantes na construção do romance histórico, sendo considerados pelo autor
um simples meio de obter a veracidade histórica – mesma função desempenhada
pelos personagens históricos inseridos em tais romances.

A metaficção historiográfica põe em xeque todas essas características do


romance histórico tradicional. No lugar dos heróis medianos, Hutcheon (1991)
apresenta os personagens ex-cêntricos, marginalizados, as figuras periféricas como
personagens das metaficções historiográficas (p. 151). No que diz respeito aos
personagens históricos, a metaficção historiográfica os trata em detalhe, conferindo-
lhes uma caracterização diversa da canonizada pela história oficial a fim de
conscientizar os leitores da “necessidade de questionar as versões admitidas da
história” (p. 152). Ao invés de serem utilizados apenas para conferir um pano de
fundo historicamente verossímil, os detalhes assumem maior relevância nessas
novas narrativas de extração histórica, a qual “se aproveita das verdades e das
mentiras do discurso histórico”, deliberadamente falsificando detalhes históricos
conhecidos para enfatizar “as falhas mnemônicas da história registrada e o
constante potencial para o erro proposital ou inadvertido” (p. 152). Hutcheon
assevera: “Ao problematizar quase tudo o que o romance histórico antes tomava
como certo, a metaficção historiográfica desestabiliza as noções admitidas de
história e ficção.” (p. 159)
28

A metaficção historiográfica, então, busca revisitar o passado histórico de


determinado país, cultura, povo. Essa revisitação, entretanto, não tem nada de
nostalgia sentimental, de saudosismo ou de glorificação. Essa prática ficcional, como
o pós-modernismo de que é manifestação, não tem a intenção de encontrar “um
sentido atemporal transcendente, mas sim uma reavaliação e um diálogo com
relação ao passado à luz do presente” (HUTCHEON, 1991, p. 39). Para Hutcheon, o
pós-modernismo não silencia o passado, negando sua existência (como foi feito pelo
modernismo), mas questiona se jamais será possível conhecer o passado a não ser
mediante seus restos textualizados.

O questionamento apresentado pelo pós-modernismo, cuja natureza é


contraditória, atinge em cheio conceitos unitários tradicionais em relação ao
humanismo liberal, como o de identidade e de centro. O paradigma do homem,
branco, europeu, heterossexual, cristão, de classe média é problematizado e
retratado, ainda que com certa atração, de maneira dessacralizadora. O que não
está dentro desse paradigma liberal, qualquer característica alheia a ele,
marginalizada, é retratada: no pós-modernismo, dá-se a voz às mulheres, aos
negros, aos homossexuais, aos pobres, às populações de outros continentes, aos
praticantes de religiões diferentes das cristãs. Esse aparecimento dos personagens
ex-cêntricos nos romances e na arte pós-modernos não tenta, entretanto, dar a tais
categorias marginalizadas uma condição central, uma vez que a própria noção de
centro é vista de maneira dúbia:

O pós-modernismo não leva o marginal para o centro. Menos do que


inverter a valorização dos centros para a das periferias e das fronteiras, ele
utiliza esse posicionamento duplo paradoxal para criticar o interior a partir
do exterior e do próprio interior. (HUTCHEON, 1991, p. 98)

Segundo Hutcheon, a maneira através da qual a metaficção historiográfica


opera a subversão das formas discursivas a partir dessas próprias formas é a
paródia. A autora ressalta que, quando emprega o termo paródia, não está se
referindo às imitações ridicularizadoras que ordinariamente são atribuídas a tal
termo. De acordo com Hutcheon, a paródia é redefinida em termos de “uma
repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no
próprio âmago da semelhança” (HUTCHEON, 1991, p. 47), representando não só a
mudança, mas também a continuidade cultural. A autora ainda afirma que a paródia
29

é uma das maneiras de estabelecer o vínculo entre a arte e o mundo (p. 57) e
parece oferecer, em relação ao presente e ao passado:

[...] uma perspectiva que permite ao artista falar para um discurso e partir de
dentro desse discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele. Por
esse motivo, a paródia parece ter se tornado a categoria daquilo que
chamei de “ex-cêntrico”, daqueles que são marginalizados por uma
ideologia dominante. (HUTCHEON, 1991, p. 58)

Isso posto, é interessante analisar a constituição vocabular do próprio termo


metaficção historiográfica antes de cotejar as características desse subgênero
narrativo com o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. A palavra metaficção
significa uma ficção que fala sobre si mesma, interpretação autorizada pelo uso do
termo “meta” que em linguística e lógica significa um tipo de autorreflexão, de voltar-
se sobre si mesmo. Essas ficções que falam sobre si mesmas são acompanhadas
do termo historiográfica, o qual aponta explicitamente para o discurso da história.

A retomada dos temas históricos é marca do pós-modernismo, a qual realiza


dois movimentos simultâneos: ao mesmo tempo que essa retomada reinsere os
contextos históricos nas narrativas ficcionais, ela problematiza a noção de
conhecimento histórico (HUTCHEON, 1991, p. 122). Vendo, como já foi debatido
anteriormente, a história como um repositório de vestígios textualizados, tal qual a
literatura, uma maneira de revisitar ambos os discursos é referir-se a eles de
maneira intertextual, apropriando-se de trechos da literatura e de detalhes e
personagens da história de forma a problematizar a tradição, o cânone, as
instituições dominantes, de certo país. O passado é definido como algo naturalmente
intertextual (HUTCHEON, 1991, p. 156) e os intertextos assumem um papel
importantíssimo na relação do texto literário com o mundo. Conforme Hutcheon:

[...] a ficção pós-moderna certamente procurou abrir-se para a história, para


aquilo que Edward Said (1983) chama de “mundo”. Porém, parece ter
verificado que já não pode fazê-lo de forma sequer remotamente inocente e,
portanto aquelas paradoxais metaficções historiográficas antiinocentes se
situam dentro do discurso histórico, embora se recusem a ceder sua
autonomia como ficção. E é uma espécie de paródia seriamente irônica que
muitas vezes permite essa duplicidade contraditória: os intertextos da
história assumem um status paralelo na reelaboração paródica do passado
textual do “mundo” e da literatura. A incorporação textual desses passados
intertextuais como elemento estrutural constitutivo da ficção pós-modernista
funciona como uma marcação formal da historicidade – tanto literária como
“mundana”. (HUTCHEON, 1991, p. 163)
30

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, os personagens principais não podem


ser considerados tipos representantes de uma classe social. Fernando Pessoa,
embora seja considerado um dos maiores poetas da história da literatura
portuguesa, era um ex-cêntrico, uma pessoa marginalizada pela sociedade
portuguesa, tendo passado a vida entre repartições públicas, cafés e bares, vivendo
em pensões, escrevendo poemas sistematicamente e virado o Pessoa-mito apenas
depois de ter morrido. Ainda assim, o protagonista – se é que se pode chamar
“protagonista” a um ser abúlico como o Doutor Reis – escolhido por Saramago é
ainda menos típico: Ricardo Reis, heterônimo classicista que não tem o brilho
verborrágico de Campos nem a poesia essencialista de Caeiro. Médico, quarenta e
oito anos, monarquista, exilado no Brasil por dezesseis anos, o doutor Reis volta a
Lisboa para ocupar o lugar do Pessoa morto e perambula como um flâneur pelo
labirinto de ruas da Baixa e do Chiado, “um homem não vai menos perdido por
caminhar em linha recta” (SARAMAGO, 2010, p. 88).

Os demais personagens saramaguianos não são menos marginalizados:


Lídia, com quem Reis se envolve em um relacionamento amoroso, é uma criada do
Hotel Bragança que sintetiza, ironicamente, a musa das odes reisianas homóloga e
aponta para o verso “Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel” (PESSOA,
2007, p. 419) do “Poema em Linha Reta” de Álvaro de Campos. Entretanto, sua
posição no romance não é a que caberia a uma simples criada: a diferença começa
no nome, Lídia, “o que é incongruente, sendo criada, é chamar-se Lídia, e não
Maria” (SARAMAGO, 2010, p. 54), e se mantém nas opiniões proferidas pela moça
portuguesa e por seus questionamentos acerca da neutralidade das notícias que são
veiculadas nos jornais portugueses, notadamente quando são contrapostas duas
versões para a invasão de Badajoz pelas tropas franquistas, em um episódio famoso
da Guerra Civil Espanhola. Marcenda, jovem de boa família coimbrense que Reis
conhece no Hotel Bragança acompanhada pelo pai e por quem nutre uma paixão
platônica, é uma moça triste que carrega uma deficiência cujas causas não são
elucidadas: uma paralisia do braço esquerdo. Esses personagens ex-cêntricos,
marginalizados, oferecem um ponto de vista diferente com relação às versões
hegemônicas da história. Um poeta escritor de cartas comerciais, um médico
aristocrático poeta classicista, uma criada com mente crítica, uma jovem promissora
com uma deficiência física, embora não sejam tipos representativos de suas classes
31

sociais, oferecem um rico contraponto de vozes que é muito importante para a


articulação entre discurso literário e discurso histórico no romance.

Outra característica de O Ano da Morte de Ricardo Reis consistente com a


atribuição à tal obra do cunho metaficção historiográfica tem a ver com o uso do
fantástico na reconfiguração da realidade histórica. Pessoa, o poeta que teve
existência empírica, morre e Reis, o heterônimo, a ficção pessoana, retorna a
Portugal, fato que inverte os papeis dos dois poetas: quem, na diegese romanesca
de Saramago, tem o poder de intervir na realidade portuguesa de 1936 é Reis,
enquanto seu criador Fernando Pessoa, embora possa interagir com sua criatura
Ricardo Reis, só pode assistir passivamente à marcha dos acontecimentos,
progressivamente menos perceptível no mundo. Na obra analisada, a ficção Ricardo
Reis tem uma existência mais delimitada do que Fernando Pessoa, que, morto,
torna-se uma ficção com relação a sua própria ficção.

Os detalhes, considerados por Lukács apenas acessórios, ganham relevo


importante em O Ano da Morte de Ricardo Reis. A reconstituição minuciosa
empreendida por Saramago, com o auxílio de jornais da época, das ruas de Lisboa e
das notícias do ano de 1936, desempenha função essencial na criação do clima
claustrofóbico e labiríntico do romance. Os passeios errantes e constantes de Reis
pela cinzenta Lisboa são uma metáfora para a opressão e a falta de perspectivas
impingidas pelo salazarismo, por um lado, e para a cegueira ideológica e
incapacidade de reação de Reis, por outro:

Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante,
que este mundo e esta Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e
o norte, o leste e o oeste, onde o único caminho aberto é para baixo, se um
homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas nem cabeça.
(SARAMAGO, 2010, p. 87)

Ainda em relação aos detalhes na narrativa pós-moderna, Hutcheon chama a


atenção para anacronismos e subversões na ordem cronológica comumente aceita.
Quanto a esse aspecto, O Ano da Morte de Ricardo Reis pode ser considerado uma
obra pós-moderna devido ao fato de o narrador do romance apresentar algumas
progressões temporais em relação ao tempo da narrativa. No trecho que segue,
Saramago antevê o futuro dos bebês nascidos em Portugal na década de trinta,
crescidos serão para unirem-se às fileiras da Mocidade Portuguesa, adultos serão
nas linhas da Guerra Colonial:
32

Lembra-se de que Lídia está grávida, de um menino, segundo ela de cada


vez afirma, e esse menino crescerá e irá para as guerras que se preparam,
ainda E cedo para as de hoje, mas outras se preparam, repito, há sempre
um depois para a guerra seguinte, façamos a contas. virá ao mundo lá para
Março do ano que vem, só lhe pusermos a idade aproximada em que à
guerra se vai vinte e três, vinte e quatro anos, que guerra teremos nó: em
mil novecentos e sessenta e um, e onde, e porquê, em que abandonados
plainos, com os olhos da imaginação mas não sua, vê-o Ricardo Reis de
balas traspassado, moreno e pálido como é seu pai, menino só da sua mãe
porque o mesmo pai o não perfilhará. (SARAMAGO, 2010, p. 402)

A ideologia e a revisitação do passado histórico oficial, partes importantes da


problematização pós-moderna, são evidentes nesta e em todas as obras de
Saramago, escritor abertamente comunista que abraça uma arte engajada e
“acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes menos
favorecidas e instrumento de denúncia dos desmandos dos poderosos” (GOMES,
1993, p. 34). Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, o discurso historiográfico oficial
apresenta-se sob a égide dos jornais portugueses, comprometidos com o regime de
Salazar, enquanto o discurso histórico alternativo é proferido pela voz de Lídia.

No caso específico do romance analisado, percebem-se os constantes


comentários irônicos do narrador em relação aos discursos ideológicos mais
amplamente difundidos em 1936 – o discurso salazarista e a apropriação, por parte
deste, do discurso camoniano. O discurso salazarista satura o romance nas notícias
de jornais, lidas por Reis ao longo de toda a ação romanesca como maneira de
reconhecer o país natal tão mudado em dezesseis anos de ausência e de
reconhecer a sua própria face:

Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um


desenho, feições de rosto português, não para delinear um retrato do país,
mas para revestir o seu próprio rosto e retrato de uma nova substância,
poder levar as mãos à cara e reconhecer-se, pôr uma mão sobre a outra e
apertá-las, Sou eu e estou aqui. (SARAMAGO, 2010, p. 84)

Saramago contrapõe as notícias comprometidas com o salazarismo


publicadas nos jornais que Reis sistematicamente lê a acontecimentos nos bairros
pobres e nas cidades portuguesas afastadas de Lisboa. Aliás, são expostas notícias
pitorescas com certo realce nas páginas do romance, como o caso do assassinato
no bairro lisboeta da Mouraria e da cadela fox que devorava seus próprios filhotes a
quem o narrador dá o nome de Ugolina, numa referência intertextual à Divina
Comédia, bem como anúncios comerciais, como o labiríntico anúncio das Oficinas
Freire-Gravador e as crianças fortes do anúncio da farinha lacto-búlgara. A imprensa
33

portuguesa pode ser identificada com o discurso histórico oficial e suas parcialidades
em trechos como:

Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado
mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente
sugerir e insinuar, escrevem os jornais, em estilo de tetralogia, que, sobre a
derrocada dos grandes Estados, o português, o nosso, afirmará a sua
extraordinária força e a inteligência reflectida dos homens que o dirigem.
(SARAMAGO, 2010, p. 81)

A problematização da escrita também está presente em O Ano da Morte de


Ricardo Reis. Ao longo do romance, o narrador tece comentários irônicos acerca da
escrita de Reis, em particular, e da escrita da literatura e da história, em geral.

A propósito da formulação da história através das notícias dos jornais lidos


por Reis ao longo do romance, o narrador apresenta a maneira pela qual tais
notícias foram costuradas em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Tal apreciação vai
ao encontro do trabalho empreendido pelo autor na escrita do romance e na seleção
e inserção das notas jornalísticas, evidenciando o comentário metatextual desta
passagem:

Não se cuide que estas notícias apareceram assim reunidas na mesma


página de jornal, caso em que o olhar, ligando-as, lhes daria o sentido
mutuamente complementar e decorrente que parecem ter. São acontecidos
e informados de duas ou três semanas, aqui Justapostos como pedras de
dominó, cada qual com seu igual, por metade, excepto se é doble, e então é
posto atravessado, esses são os casos importantes, vêem-se de longe.
(SARAMAGO, 2010, p. 82)

A imparcialidade do conhecimento histórico é posta sob suspeita, em O Ano


da Morte de Ricardo Reis, pela instância narrativa, a qual comenta ironicamente as
notícias jornalísticas em que Ricardo Reis, como um cego, acredita, e pela
personagem Lídia, influenciada pelas ideias comunistas de seu irmão, o marinheiro
Daniel. A pluralidade de vozes é patente nesta citação, que está na voz de Lídia:

Está no jornal, eu li, Não é do senhor doutor que eu duvido, o que o meu
irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem,
Eu não posso ir a Espanha ver o que se passa, tenho de acreditar que é
verdade o que eles me dizem, um jornal não pode mentir, seria o maior
pecado do mundo, O senhor doutor é uma pessoa instruída, eu sou quase
uma analfabeta, mas uma coisa eu aprendi, é que as verdades são muitas e
estão umas contra as outras, enquanto não lutarem não se saberá onde
está a mentira (SARAMAGO, 2010, p. 400)

Uma passagem emblemática dos questionamentos acerca da produção da


escrita é a cena em que Reis vai ao Teatro Nacional, com esperanças de encontrar
34

Marcenda, para assistir à peça Tá Mar, de Alfredo Cortez, sobre pescadores de


Nazaré. O trecho a seguir lida com a tradição, os limites da representação da
realidade pela escrita, e traz elementos do mise-en-abyme:

Ricardo Reis reflecte sobre o que viu e ouviu, acha que o objecto da arte
não é a imitável, que foi fraqueza censurável do autor escrever a força no
linguajar nazareno, ou no que supôs ser esse linguajar, esquecido de que a
realidade não suporta o seu reflexo, rejeita-o, só uma outra realidade, qual
seja, pode ser colocada no lugar daquela que se quis expressar, e, sendo
diferentes entre si, mutuamente se mostram, explicam e enumeram, a
realidade como invenção que foi, a invenção como realidade que será [...]
são eles próprios personagens da sua acção dramática, actores que
representam nos intervalos, enquanto os actores verdadeiros, nos camarins,
descansam das personagens que foram e que daqui a pouco retomarão,
provisórios todos.. (SARAMAGO, 2010, p. 106)

A postura da narrativa saramaguiana é dessacralizadora do ponto de vista da


tradição literária portuguesa. Além de questionar os usos aos quais são submetidas
a obra dos grandes nomes das letras lusitanas, o narrador cita escritores como se
fossem joguetes da língua, a qual se utiliza deles ao seu bel prazer:

Ricardo Reis pára diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por


cabal respeito da ortografia que o dono do nome usou, ai como podem ser
diferentes as maneiras de escrever, e o nome ainda é o menos,
assombroso é falarem estes a mesma língua e serem, um Reis, o outro,
Eça, provavelmente a língua é que vai escolhendo os escritores de que
precisa, serve-se deles para que exprimam uma parte pequena do que é,
quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos
nós viver. Já as primeiras dificuldades começam a surgir, ou não serão
ainda dificuldades, antes diferentes e questionadoras camadas do sentido,
sedimentos removidos, novas cristalizações (SARAMAGO, 2010, p. 58)

A figura de Camões é, também, revisitada de maneira dessacralizadora. O


narrador toma a aura de Camões como ponto de partida para questionar a tradição
histórica e literária de Portugal, além de explicitar o uso que o salazarismo faz de
sua obra como propaganda para o regime:

Entra na Rua Garrett, sobe ao Chiado, estão quatro moços de fretes


encostados ao plinto da estátua, nem ligam à pouca chuva, é a ilha dos
galegos, e adiante deixou de chover mesmo, chovia, já não chove, há uma
claridade branca por trás de Luís de Camões, um nimbo, e veja-se o que as
palavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo
luminoso, e não sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram
só as nuvens que se adelgaçaram ao passar, não imaginasse-mos milagres
de Ourique ou de Fátima, nem sequer esse tão simples de mostrar-se azul
o céu. (SARAMAGO, 2010, p. 31)

O ”nimbo” ao redor da cabeça do Camões perde a conotação sacra, tendo


seu sentido ampliado para chuvas ou nuvens, o que implica no questionamento de
toda a aura construída em torno da figura de Camões, pejorativamente tratado como
35

“D’Artagnan” ao longo de todo o romance. A pesquisa vai ao encontro do que


Gerson Luiz Roani afirma:

A intencionalidade romanesca é óbvia ao propor a revisitação da figura de


Camões e da sua obra como os esteios basilares sobre os quais se formou
e consolidou a identidade histórica e literária da gente portuguesa. Como se
pode perceber, a revisitação, através da escrita romanesca, implica em
dessacralização. A monumentalidade de Camões, como autor emblemático
da literatura lusitana, não é negada pelo romance, mas trata-se, sobretudo,
de (re)considerá-la criticamente. (ROANI, 2006, p. 135)

A problematização do uso, por parte do salazarismo, do ideário camoniano é


exemplar no seguinte trecho do romance, que explicita as relações entre tradição
literária e ideologia política:

Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou
ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse
sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie
de D'Artagnan premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no
último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a
quem, aliás, variando os tempos e as políticas, ainda acabará por servir,
mas este aqui, se por estar morto não pode voltar a alistar-se, seria bom
que soubesse que dele se servem, à vez ou em confusão, os principais,
cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência. (SARAMAGO,
2010, p. 67)

Não passa despercebida, lembrando as citações anteriores, a caracterização


dos grandes cânones portugueses Luís de Camões e Eça de Queirós como
estátuas, as quais são retratadas pela história como monumentos fechados, de
ferro, utilizadas pelos regimes políticos dominantes conforme lhes aprouver.

Considerando as características da obra O Ano da Morte de Ricardo Reis e a


conceituação de metaficção historiográfica apresentadas, é possível concluir que tal
romance saramaguiano se encaixa nas características apresentadas por Hutcheon
para definir esse novo tipo de ficção de extração histórica. O Ano da Morte de
Ricardo Reis é uma obra autorreflexiva, na qual a história tem um papel
preponderante. A inserção de Ricardo Reis, um personagem ex-cêntrico marcado
pela passividade estético-ideológica em relação à vida, no tumultuado cotidiano
europeu de 1936, caracterizado pela consolidação do salazarismo, pelo avanço do
fascismo e do nazismo e pela eclosão da Guerra Civil Espanhola, demonstra a
atitude inquieta que este romance aponta em relação à história oficial portuguesa.

A presença constante de notícias de jornais, os quais são comprometidos


com o governo fascista de António Oliveira Salazar, torna a narrativa quase
36

sufocante – sensação que parece dominar, por vezes, o cotidiano monótono de


Reis. Essas notícias são sempre postas sob questão pela instância narrativa e por
Lídia, o que confirma a pluralidade de vozes e pontos de vista presentes no
romance.

Parte importante da metaficção historiográfica é o uso da intertextualidade


referindo-se tanto ao discurso da história, quanto ao discurso da literatura. Dessa
maneira, as obras pós-modernas dialogam com o passado e apresentam sua nova
visão. O caso do intertexto será discutido, de maneira mais ampla, em outro
capítulo.
3. VIVEM EM NÓS INÚMEROS: A INTERTEXTUALIDADE EM O ANO
DA MORTE DE RICARDO REIS

Estas coisas que escrevo, se alguma vez as li antes,


estarei agora imitando-as, mas não é de propósito que o
faço. Se nunca as li, estou-as inventando, e se pelo
contrário li, então é porque aprendera e tenho direito de
me servir delas como se minhas fossem e inventadas
agora mesmo. (José Saramago)

O uso de práticas intertextuais é considerado característica estruturante nos


romances de José Saramago de maneira geral, sendo constante em O Ano da Morte
de Ricardo Reis em particular. Conforme aponta Adriano Schwartz:

É uma característica fundamental da construção narrativa de José


Saramago a absorção da palavra do outro, o que implica a absorção
também do sentido dessa palavra que, em seu novo contexto, o qual
comanda a interpretação, é transfigurado (SCHWARTZ, 2004, p. 31)

O romance aponta a presença de outros textos desde seu título, que remete à
obra de Fernando Pessoa e ao fenômeno da heteronímia, passando pelas epígrafes
do livro, que mostram de maneira explícita os textos pessoanos, e culminando na
revisitação da obra poética de Reis, Campos e Caeiro (além da poética de Pessoa
ele mesmo) empreendida ao longo de todo o texto saramaguiano.

Tendo em vista esse diálogo entre discursos entrevisto, torna-se importante


conceituar intertextualidade e observar qual foi o tratamento dado a este termo
desde que foi cunhado antes de apresentar os conceitos específicos utilizados nas
etapas da análise empreendida neste trabalho. Depois dessa revisão teórica, serão
apresentados e analisados os resultados encontrados ao longo da pesquisa.

3.1 Intertextualidade: histórico do termo e conceitos norteadores da análise


38

A intertextualidade é a presença, em um texto de acolhimento, de outro(s)


texto(s) sob a forma de citações, alusões, referências, paródias, entre outras
práticas de retomada. A retomada dos textos de origem sempre acarreta um
deslocamento do sentido original da passagem, devido ao fato de tais textos terem
sido transpostos para outro universo textual. Essa revisitação a outros textos é
inerente à literatura, que desde sempre se voltou sobre si mesma, em uma espécie
de “lembrança circular” (BARTHES, 2010, p. 45), atualizando seu próprio discurso
enquanto o marcava com traços do passado literário. Quanto a essa inerência,
Samoyault afirma:

A literatura se escreve certamente em uma relação com o mundo, mas


também apresenta-se numa relação consigo mesma, com sua história, a
história de suas produções, a longa caminhada de suas origens. Se cada
texto constrói sua própria origem (sua originalidade), inscreve-se ao mesmo
tempo numa genealogia que ele pode mais ou menos explicitar. Esta
compõe uma árvore com galhos numerosos, com um rizoma mais do que
com uma raiz única, onde as filiações se dispersam e cujas evoluções são
tanto horizontais quanto verticais. É impossível assim pintar um quadro
analítico das relações que os textos estabelecem entre si: da mesma
natureza, nascem uns dos outros; influenciam uns aos outros, segundo o
princípio de uma geração não espontânea; ao mesmo tempo que não há
nunca reprodução pura e simples ou adoção plena. (SAMOYAULT, 2008, p.
9)

Embora os textos literários tenham, desde sempre, sido construídos a partir


de outros textos, o termo intertextualidade só foi criado na década de 1960, pela
semiótica búlgaro-francesa Julia Kristeva. Kristeva definiu a intertextualidade como
um cruzamento, em um texto, de palavras ou enunciados vindos de outros textos
(1974, p. 64). Adiante, a autora delimita mais a definição:

uma descoberta que Bakhtine é o primeiro a introduzir na teoria literária:


todo o texto se constrói como mosaico de citações , todo texto é absorção e
transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade,
instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo menos
como dupla. (KRISTEVA, 1974, p. 64) (Grifos da autora).

Essa primeira definição do termo intertextualidade é fortemente influenciada,


como é explicito na citação apresentada, pela obra do russo Mikhail Bakhtin, a qual
deve sua difusão europeia a Kristeva. Os conceitos bakhtinianos que influenciaram
mais diretamente na criação do termo intertextualidade foram o dialogismo e a
polifonia.

Para Bakhtin, o dialogismo, que é o princípio constituidor da linguagem, define


o texto como um tecido de muitas vozes, ou seja, “de muitos textos ou discursos,
39

que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre


si no interior do texto.” (BARROS, 2001, p. 34)

A polifonia, por sua vez, é definida por Diana de Barros, estudiosa brasileira
da obra de Bakhtin, como um certo tipo de texto em que o dialogismo se mostra de
maneira mais explícita, deixando entrever as diversas vozes (textos, discursos) que
o compõem, em contraposição a textos monofônicos, que escondem os diálogos
que os constituem. (2001, p. 36)

O crítico literário russo aplicou o conceito de polifonia ao estudo da obra


romanesca de Fiodor Dostoievski. Segundo Bakhtin:

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a


autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a
peculiaridade fundamental dos romances de Dostiévski. Não é a
multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à
luz da consciência uma do autor, se desenvolve nos seus romances; é
precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos
que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua
imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens
principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor mas
os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante. (BAKHTIN,
1997, p. 4)(Grifos do autor)

Todas essas vozes são os textos, discursos, que permeiam o romance e têm
tanta importância quanto a voz do autor, que, no romance polifônico, trabalha como
um regente do coro de vozes participante do processo dialógico, deixando que tais
vozes se manifestem com autonomia e revelem a alteridade dentro do próprio
homem (BEZERRA, 2008, p. 194).

É possível perceber que a concepção de intertextualidade apresentada por


Kristeva com base nas teorias bakhtinianas é ampla e seu escopo pode ser aplicado
a qualquer discurso, não somente ao literário. Além disso, se todo texto é formado
de um entrecruzamento de palavras, constituindo-se de um mosaico de citações,
parece impossível determinar quais palavras carregam mais explicitamente alusões
a outras palavras, que tipo de relação é essa, quais são seus efeitos sobre o texto
em que estão (re)inseridas ou como elas afetarão a leitura da obra de acolhimento.
Essa concepção do fenômeno intertextual é considerada por Samoyault (2008) uma
concepção extensiva, uma vez que “o texto faz ouvir várias vozes sem que nenhum
intertexto seja explicitamente localizável” (p. 43).
40

Uma vez cunhado o termo, o conceito de intertextualidade foi reinterpretado e


atualizado por uma série de estudiosos. Roland Barthes, Michael Riffaterre e Laurent
Jenny estreitaram o escopo da análise intertextual, ocupando-se de textos literários.
Estes autores representariam uma etapa intermediária entre as concepções
extensivas e as concepções restritivas da intertextualidade.

Barthes, embora tenha se mantido próximo à visão ampla de Kristeva quanto


ao termo intertextualidade – tendo afirmado que “todo texto é um tecido novo de
citações passadas [...] o intertexto é um campo geral de fórmulas anônimas, cuja
origem é raramente localizável” (BARTHES, 2004, p. 275-276) –, relacionou a
aplicação do termo à análise de textos literários, citando a obra de Marcel Proust
como sua maior referência:

Saboreio o reino das fórmulas, a inversão das origens, a desenvoltura que


faz com que o texto anterior provenha do texto ulterior. Compreendo que a
obra de Proust é, ao menos para mim, a obra de referência, a mathesis
geral, a mandala de toda a cosmogonia literária [...] Proust, é o que me
ocorre, não é o que eu chamo; não é uma ‘autoridade’; é simplesmente uma
lembrança circular. E é bem isto o intertexto: a impossibilidade de viver fora
do texto infinito quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de
televisão: o livro faz o sentido, o sentido faz a vida. (BARTHES, 2010, p. 45)

Um trecho da citação barthesiana citada acima pode ser utilizado para


introduzir a interpretação de Riffaterre sobre a intertextualidade: “a inversão das
origens”, a facilidade com que um texto anterior decorra de um posterior. Riffaterre
identificou a intertextualidade com a leitura e considerou quebras na cronologia entre
as obras possíveis, já que o intertexto seria, antes de qualquer coisa, um efeito de
leitura (SAMOYAULT, 2008, p. 25).

Condicionar a percepção de um texto dentro de outro à capacidade cultural do


leitor é um mérito de Riffaterre, que, além disso, foi o primeiro teórico a distinguir
intertexto de intertextualidade, considerando a intertextualidade a percepção pelo
leitor de intertextos entre obras e aplicando-a a um corpus composto por obras
literárias. Segundo o autor:

a intertextualidade é a percepção, por parte do leitor, de relações entre uma


obra e outras, que as tenham precedido ou sucedido. Essas outras obras
constituem o intertexto da primeira [...] Assim compreendido, o intertexto
varia de acordo com o leitor: as passagens que ele tem na memória, as
aproximações que ele faz, lhe são ditadas antes pelo acaso de ter uma
41

cultura mais ou menos profunda do que pelas palavras do texto 1.


(RIFFATERRE, 1980, p. 4-5 apud MARTEL, 2005, p. 94)

A identificação da intertextualidade com a capacidade dos leitores para


perceber as relações entre textos vai ao encontro, em certa medida, da
compreensão da intertextualidade e de algumas de suas características
apresentadas por Laurent Jenny em “A Estratégia da Forma” (1979), ensaio
publicado na revista Poétique nº 27.

Jenny (1979) aponta para a banalização em que o termo intertextualidade


tinha caído e assume a tarefa de torná-lo “tão pleno de sentido quanto possível” (p.
14). A seguir, o estudioso francês define intertextualidade como algo que “designa
não uma soma confusa e misteriosa de influência, mas o trabalho de transformação
e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o
comando do sentido” (JENNY, 1979, p. 14). A intertextualidade, então, é delimitada:
Jenny somente se propõe a falar de intertextualidade desde que seja possível
encontrar num texto “elementos anteriormente estruturados, para além do lexema,
naturalmente, mas seja qual for o seu nível de estruturação” (1979, p. 14), em
oposição a uma “intertextualidade fraca” que seria apenas uma alusão ou
reminiscência presentes na obra de destino.

Nesses termos, nota-se a importância do texto de acolhida como um centro


que ordena os novos significados dos textos de origem que recebe. Esse papel
centralizador é importante, segundo Jenny, para resolver um dos problemas da
intertextualidade, que é fazer caber múltiplos textos em um só, sem que tais textos
se destruam mutuamente, e sem que a totalidade estruturada do intertexto seja
estilhaçada (1979, p. 23).

O ponto em que Jenny se aproxima de Riffaterre diz respeito à quebra na


linearidade da leitura quando o fato intertextual – o qual, de acordo com Jenny,

1
Tradução própria do trecho “l’intertextualité est la perception, par le lecteur, de rapports entre une
œuvre et d’autres, qui l’ont précédée ou suivie. Ces autres œuvres constituent l’intertexte de la
première [...] Ainsi compris, l’intertexte varie selon le lecteur: les passages que celui-ci réunit dans sa
mémoire, les rapprochements qu’il fait, lui sont dictés par l’accident d’une culture plus ou moins
profonde plutôt que par la lettre du texte” (idem, ibidem)
42

condiciona tanto o uso do código, quanto está presente ao nível do conteúdo formal
da obra (1979, p. 6) – é percebido pelo leitor. De acordo com o autor:

O que caracteriza a intertextualidade é introduzir a um novo modo de leitura


que faz estalar a linearidade do texto. Cada referência intertextual é o lugar
duma alternativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um
fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmática do
texto – ou então voltar ao texto-origem, procedendo a uma espécie de
anamnese intelectual em que a referência intertextual aparece como um
elemento paradigmático “deslocado” e originário duma sintagmática
esquecida. (JENNY, 1979, p. 21)

Definida e restringida a intertextualidade e apresentada como modo de leitura,


Jenny passa a esmiuçar suas figuras: as maneiras pelas quais o texto de origem são
modificadas quando inseridas no texto de acolhida. A lista apresentada pelo autor,
que não se pretende exaustiva, consiste nas seis seguintes figuras:

a) paronomásia, que é a alteração do texto original que consiste em


conservar sonoridades alterando, entretanto, a grafia dos vocábulos
(JENNY, 1979, p. 38);
b) elipse, observada quando um texto é repetido de maneira truncada no
outro (JENNY, 1979, p. 39);
c) amplificação, que consiste na transformação de um texto de origem por
desenvolvimento de suas virtualidades semânticas (JENNY, 1979, p. 39);
d) hipérbole, vista quando a transformação de um texto acontece por
superlativação da sua qualificação (JENNY, 1979, p. 41);
e) interversão, observada quando há uma inversão nos valores do texto de
origem quando retomados no texto de acolhida. Jenny a desmembra em
quatro “subfiguras” de acordo com os elementos textuais mobilizados -
interversão da situação enunciativa, de qualificação, da situação dramática
e de valores simbólicos (JENNY, 1979, p. 41-43);
f) mudança de nível de sentido, que consiste na retomada, no contexto de
acolhida, de um novo nível de sentido do esquema semântico recuperado
(JENNY, 1979, p. 43).

A restrição do termo intertextualidade e a identificação de figuras intertextuais


apresentadas por Jenny, além da distinção entre intertextualidade e intertexto
elaborada por Riffaterre, anteciparam-se às concepções restritivas do fenômeno
intertextual. Tais concepções foram consolidadas por Gérard Genette em
43

Palimpsestos: a literatura de segunda mão, obra que marcou definitivamente o


deslocamento da análise intertextual da linguística para a literatura e inaugurou uma
tipologia geral dos vários tipos de ligações que entrelaçam os textos.

Para Genette, a intertextualidade e a hipertextualidade são práticas textuais


que se inserem na mais ampla transtextualidade, que ele define como “tudo que o
coloca [texto] em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE,
2010, p. 11). O teórico francês determina, então, cinco tipos de relações
transtextuais, que não são absolutamente estanques e se interpenetram:

a) intertextualidade: definida como uma relação de co-presença entre dois ou


mais textos; a presença efetiva de um texto dentro de outro (GENETTE,
2010, p. 12). Constituem práticas intertextuais a citação (marcada
tipograficamente ou não), a alusão, a referência (a qual foi apresentada
como prática intertextual por Samoyault, mas não foi arrolada no texto de
Genette consultado) e o plágio;
b) paratextualidade: definida como a relação que uma obra literária mantém
com o que pode ser nomeado paratexto – título, subtítulo, prefácio, orelha,
contracapa, etc. (GENETTE, 2010, p. 13);
c) metatextualidade: definida como a relação que une um texto a outro que
ele comenta sem necessariamente citá-lo ou, mesmo, sem nomeá-lo
(GENETTE, 2010, p. 13-14);
d) hipertextualidade: definida como toda relação que une um texto B
(chamado por Genette de hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto, para
Genette) do qual ele “brota” de outra maneira que não a do comentário
(GENETTE, 2010, p. 16). O hipertexto transforma o hipotexto sem uma
relação de co-presença necessária. São práticas hipertextuais a paródia e
o pastiche;
e) arquitextualidade: definida como a qualidade genérica e silenciosa que
une os diversos gêneros literários (GENETTE, 2010, p. 15).

Percebe-se, então, que Genette transforma o conceito de intertextualidade


amplo de Kristeva, identificando-o com o novo termo transtextualidade. A
intertextualidade, na tipologia de Genette, passa a designar uma relação de co-
presença entre dois textos, marcadamente heterogênea, enquanto que a relação
44

homogênea de derivação de um texto em outro é chamada hipertextualidade.


Pensando em termos saussureanos, a intertextualidade caracteriza-se como uma
relação in præsentia entre os textos, que mobiliza o eixo sintagmático da linguagem
poética, ao passo que a hipertextualidade identifica-se como uma relação in absentia
entre hipertexto e hipotexto, mobilizando o eixo paradigmático da linguagem. Em
Palimpsestos, Genette explica e analisa as práticas hipertextuais.

Cabe retomar uma passagem da definição dada por Genette à


hipertextualidade: a relação pela qual um hipertexto “brota” de um hipotexto de uma
maneira que não seja a de comentário. Isso significa que as obras estão
relacionadas por uma retomada transformativa: diferentemente do que ocorre entre
a Poética de Aristóteles e Édipo rei, situação na qual há um comentário crítico como
retomada da tragédia de Sófocles, Genette apresenta as relações entre o hipotexto
Odisseia, de Homero e os hipertextos Eneida, de Virgílio, e Ulisses, de James
Joyce.

O autor apresenta dois tipos de relação transformativa entre hipotexto e


hipertexto: transformação direta, ou simples, e a transformação indireta, ou imitação.
A primeira consistiria em na transformação de um hipotexto, caricaturando-o,
reutilizando-o, através de uma transposição para o hipertexto – a transformação que
conduz da Odisseia a Ulisses, que consiste em transportar a ação da Odisseia para
Dublin do século XX (GENETTE, 2010, p. 17). A segunda seria mais complexa e
menos direta e utilizaria traços relativos ao gênero do hipotexto, duplicando-o no
hipertexto – a transformação que conduz da Odisseia a Eneida, pois Virgílio conta
uma história completamente diferente da contada na Odisseia, mas, para fazê-lo,
inspira-se no tipo do hipotexto, em um dado genérico, que é ao mesmo tempo formal
e temático. (GENETTE, 2010, p. 17). A fim de uma maior precisão terminológica,
Genette (2010) propõe denominar a transformação direta de paródia, enquanto a
imitação passa a ser chamada de pastiche (p. 37).

A restrição que Genette impingiu ao alcance da intertextualidade foi


fundamental para uma maior aplicabilidade do conceito à análise efetiva de textos
literários, tornando-a, além de condição de legibilidade literária (JENNY, 1979, p. 5),
uma categoria de crítica e análise literárias. Embora possa ser considerada
demasiadamente restritiva, essa nova interpretação do fenômeno intertextual é
45

bastante útil para o exame das relações que as diversas “vozes” entretêm no bojo
das obras literárias, dadas as diversas possibilidades de interação entre intertextos,
hipotextos e hipertextos que Genette apresenta.

Apesar de essa restrição no conceito de intertextualidade ser considerada


salutar para uma análise mais detida dos fenômenos intertextuais, ela parece
demasiado superficial para um romance como O Ano da Morte de Ricardo Reis, uma
vez que esta obra parece ser inteiramente construída a partir de outros textos, sendo
o dado intertextual sua característica dominante. Para casos como esse, Samoyault
(2008, p. 45) afirma que o levantamento tipológico e descritivo de dados
intertextuais, aos moldes do proposto por Gérard Genette, embora sirva como etapa
inicial da análise, já não basta para compreender as complexas relações
estabelecidas no texto de acolhida entre os diversos intertextos, bem como o
significado de uma construção assim em relação à sua série literária.

Devido a isso, optou-se por utilizar a tipologia de práticas intertextuais e


hipertextuais como etapa inicial na análise de O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Posteriormente a essa etapa de levantamento de dados, a apreciação do papel
preponderante dos dados intertextuais na construção do romance foi questionada
em termos de seus liames e de seu posicionamento ideológico quanto à tradição
literária portuguesa. Vale ressaltar que a análise não pretende ser exaustiva, uma
vez que o romance analisado é quase inteiramente construído por referências a
outros textos e que os limites deste trabalho não se prestam a tal tipo de análise.

3.2 Dados intertextuais e hipertextuais levantados em O Ano da Morte de


Ricardo Reis

Considerando o exposto acerca da intertextualidade e da hipertextualidade


conforme Genette, sendo a intertextualidade uma prática de retomada co-presencial
de textos de origem em textos de acolhida, ao passo que a hipertextualidade
acarretaria em uma derivação dos textos de origem nos textos de acolhida, é
necessário apresentar as diferentes práticas de retomada de textos anteriores que
são englobadas pela intertextualidade (citação, referência, alusão) e pela
hipertextualidade (paródia e pastiche). Enquanto a conceituação acerca de tais
práticas é apresentada, serão citados dados encontrados em O Ano da Morte de
Ricardo Reis, os quais serão interpretados ao fim do capítulo.
46

3.2.1 Práticas Intertextuais

A intertextualidade é dividida por Genette (2010) em citação, alusão e plágio.


Samoyault (2008), quando retoma o exposto por Genette, adiciona a referência
como prática intertextual. A categoria plágio, por implicar uma série de questões
jurídicas que não são aplicáveis ao romance analisado nem são da alçada desse
tipo de trabalho, não será incluída na análise.

Todas essas práticas intertextuais inscrevem a presença de um texto anterior


no texto atual, dependendo, pois, da co-presença entre dois ou mais textos que
absorvem o texto anterior em benefício de uma instalação no repertório intertextual
do texto atual ou, por vezes, de uma dissimulação desse repertório (SAMOYAULT,
2008, p. 48).

3.2.1.1 Citação direta e indireta

A citação é observada quando o texto original está identicamente presente no


texto de acolhida, palavra por palavra. A heterogeneidade entre texto citado e texto
que cita é muito marcante e fica explícita quando da presença de citações diretas,
ou seja, citações tipograficamente marcadas (seja pelo uso de aspas, seja pelo uso
de itálicos, seja pelo uso de separação por espaçamento do texto de acolhida). De
acordo com Samoyault:

[...] a citação sempre faz aparecer a relação do autor que cita com a
biblioteca, assim como a dupla enunciação que resulta dessa inserção. Nela
reúnem-se as duas atividades da leitura e da escritura e ela deixa aparecer
tudo que está por trás do texto, o trabalho preparatório, as fichas, o saber
que foi preciso armazenar para chegar a esse texto. (SAMOYAULT, 2008,
p. 49)

Como exemplo de citações diretas em O Ano da Morte de Ricardo Reis,


podem ser citadas as três epígrafes do romance, citadas, a seguir, mantendo a
grafia e a formatação originais, as quais podem ser encontradas na página V (pré-
textual) da edição do romance que vem sendo citada:

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo.


Ricardo Reis
Escolher modos de não agir foi sempre a attenção e o escrupulo da minha
vida.
47

Bernardo Soares
Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu,
respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez
existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja.
Fernando Pessoa

A citação indireta é observada quando o texto original, embora textualmente


citado no texto de acolhida, não está marcado de forma explícita. Esse fato torna a
identificação do intertexto mais difícil, uma vez que a presença do intertexto é mais
dissimulada na citação indireta.

Esse tipo de citação é amplamente utilizado por Saramago no romance, seja


retomando a obra de Ricardo Reis, seja retomando a obra de Pessoa ortônimo e de
outros heterônimos, seja retomando trechos da obra de grandes escritores da
literatura ocidental.

Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las,


qual numa jarra, nós pomos flores, e seguindo concluía, Da vida iremos
tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido. Não é assim, de enfiada, que
estão escritos, cada linha leva seu verso obediente, mas desta maneira,
contínuos, eles e nós, sem outra pausa que a da respiração e do canto, é
que os lemos, e a folha mais recente de todas tem a data de treze de
Novembro de mil novecentos e trinta e cinco, passou mês e meio sobre tê-la
escrito, ainda folha de pouco tempo, e diz, Vivem em nós inúmeros, se
penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar
onde se pensa e sente, e, não acabando aqui, é como se acabasse, uma
vez que para além de pensar e sentir não há mais nada. (SARAMAGO,
2010, p. 20) [grifos meus]2

O trecho anterior cita duas odes de Ricardo Reis, a Ode 310 e a Ode 423,
respectivamente a primeira e a última que foram datadas pelo heterônimo: a
primeira, datada de 12 de junho de 1914; a última, conforme o texto saramaguiano
acertadamente afirma, datada de 13 de novembro de 1935.

Da Ode 310, Saramago cita a primeira estrofe e um trecho da última:

Mestre, são plácidas


Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.
[...]
Da vida iremos,
Tranquilos, tendo

2
Todos os grifos em excertos de José Saramago e em trechos de outros textos apresentados em
comparação com a obra de Saramago foram feitos pela autora deste trabalho.
48

Nem o remorso
De ter vivido (PESSOA, 2007, p. 253-254)

Da Ode 423, Saramago cita apenas a primeira estrofe:

Vivem em nós inúmeros;


Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa. (PESSOA, 2007, p. 291)

Outra passagem em que Saramago cita versos de odes de Ricardo Reis é a


seguinte, em que, pela nova configuração que versos citados assumem no romance,
é possível perceber em que medida a integração de intertextos ressignifica o texto
citado depois dessa operação de deslocamento de um texto para outro:

Ricardo Reis rebusca na memória fragmentos de versos que já levam vinte


anos de feitos, como o tempo passa, Deus triste, preciso talvez porque
nenhum havia como tu, Nem mais nem menos és, mas outro deus, Não a ti,
Cristo, odeio ou menosprezo, Mas cuida não procures usurpar o que aos
outros é devido, Nós homens nos façamos unidos pelos deuses, são estas
as palavras que vai murmurando enquanto segue pela Rua de D. Pedro V
(SARAMAGO, 2010, p. 62)

Na citação anterior, o autor remete a versos diferentes que aparecem em


duas odes de Ricardo Reis e o faz de forma quase a criar uma nova ode,
combinando os versos deslocados e dando-lhes sentido uno. Os versos citados
podem ser encontrados nas odes 342 e 343, as quais serão citadas parcialmente
para que se evidencie a nova construção empreendida por Saramago e evidenciada
pela formulação apresentada na narrativa saramaguiana:

Não a Ti, Cristo, odeio ou te não quero.


Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles, mas mais novo apenas.

Odeio-os sim, e a esses com calma aborreço,


Que te querem acima dos outros teus iguais deuses.
Quero-te onde tu stás, nem mais alto
Nem mais baixo que eles, tu apenas.

Deus triste, preciso talvez porque nenhum havia


Como tu, um a mais no Panteão e no culto,
Nada mais, nem mais alto nem mais puro
Porque para tudo havia deuses, menos tu.

Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida


É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
'Staremos com a verdade e sós. (PESSOA, 2007, p. 271)
49

Não a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo


Que aos outros deuses que te precederam
Na memória dos homens.
Nem mais nem menos és, mas outro deus.

No Panteão faltavas. Pois que vieste


No Panteão o teu lugar ocupa,
Mas cuida não procures
Usurpar o que aos outros é devido.

[...]

Basta os males que o Fado as Parcas fez


Por seu intuito natural fazerem.
Nós homens nos façamos
Unidos pelos deuses. (PESSOA, 2007, p. 271-273)

O poema re-escrito por Saramago, subvertendo as citações dos versos,


ganha um sentido mais restrito de conversa com Cristo e apresentação das razões
pelas quais o escritor do poema poderia rejeitá-lo mas não o faz, ao passo que as
duas odes de Reis, ainda que contenham esse sentido apresentado por Saramago
na nova configuração dos versos reisianos, a superam, dirigindo o ódio do eu-lírico
aos praticantes do cristianismo.

Há citações dos outros dois heterônimos pessoanos mais célebres: o mestre


Caeiro e o moderno Campos. Citar-se-ão duas ocorrências dessa ligação
intertextual à poesia pessoana, que faz ecoarem mais vozes nesse labirinto
intertextual que é O Ano da Morte de Ricardo Reis:

[...] este Tejo que não corre pela minha aldeia, o Tejo que corre pela minha
aldeia chama-se Douro, por isso, por não ter o mesmo nome, é que o Tejo
não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. (SARAMAGO, 2010,
p. 112)

O trecho grifado na citação anterior menciona o segundo verso do vigésimo


poema presente na coletânea O Guardador de Rebanhos, do heterônimo Alberto
Caeiro:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. (PESSOA, 2007, p.
215)
50

A obra de Álvaro de Campos é citada por Saramago a respeito da amante de


Reis, Lídia, uma criada de hotel:

Lídia, disse Ricardo Reis, ela pousou a bandeja, levantou os olhos cheios
de susto, quis dizer, Senhor doutor, mas a voz ficou-lhe presa na garganta,
e ele não teve coragem, repetiu, Lídia, depois, quase num murmúrio,
atrozmente banal, sedutor ridículo, Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para
ela por um segundo só, não aguentou mais do que um segundo; virou
costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, Eu, que tenho sido
cómico às criadas de hotel, também tu Álvaro de Campos, todos nós.
(SARAMAGO, 2010, p. 94)

O verso referido no romance retoma o célebre “Poema em Linha Reta” de


Campos:

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
[...]
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
[...]
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. (PESSOA, 2007, p.
419)

Para encerrar a apresentação dos dados, os quais, é preciso enfatizar, não se


pretendem exaustivos, é relevante apresentar um trecho do romance, nos qual a
obra de Camões e de Eça de Queirós é retomada. No seguinte excerto, são
retomados o subtítulo de A Relíquia, “sobre a nudez forte da verdade, o manto
diáfano da fantasia” (2004), de Eça de Queirós e o verso “Aqui, com grave dor, com
triste acento” (CAMÕES, 1994, p. 389) da écloga camoniana “A quem darei
queixumes namorados”:

Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia, parece clara a


sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e
ir ao exame repetir sem se enganar [...] É instrutivo o passeio, ainda agora
contemplámos o Eça e já podemos observar o Camões, a este não se
lembraram de pôr-lhe versos no pedestal, e se um pusessem qual poriam,
Aqui, com grave dor, com triste acento, o melhor é deixar o pobre
amargurado, subir o que falta da rua, da Misericórdia que já foi do Mundo,
infelizmente não se pode ter tudo nem ao mesmo tempo, ou mundo ou
misericórdia. (SARAMAGO, 2010, p. 58)
51

3.2.1.2 Referência

A referência não é uma retomada dos textos literários, e sim a inserção, em


um texto de acolhida, do nome de um autor, de um personagem, de um título
(SAMOYAULT, 2008, p. 50). A referência pode ser mais ou menos explícita,
dependendo do caso em que for utilizada. Quando o nome do autor, por exemplo,
aparece junto ao texto citado para especificar a autoria do texto citado, ele marca de
maneira inegável a heterogeneidade e o fragmentário da intertextualidade explícita.
Quando a referência é integrada ao texto sem essa relação de apresentação autoral,
entretanto, sua presença torna-se muito mais sutil e homogênea.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, há referências em todas as páginas:


aliás, a referência inicia no título, que tem o nome do heterônimo pessoano Ricardo
Reis. Ao longo de todo o romance, há referências a Fernando Pessoa, Alberto
Caeiro, Luís de Camões e Eça de Queirós – de fato, observando os excertos citados
na subseção 3.2.1.1, percebe-se que o nome dos escritores cujos textos são citados
é geralmente apresentado –, entre outros autores, livros, personagens ficcionais.

O exemplo considerado mais relevante para os propósitos deste trabalho é o


livro que Reis lê ao longo de todo o romance, sem conseguir terminar, e que leva
consigo em seu derradeiro passeio por Lisboa: The God of the Labyrinth, do escritor
irlandês Herbert Quain. Esse autor e esse livro, que, por si só, constituiriam
referências, são uma retomada de “Examen de la Obra de Herbert Quain”, conto
escrito pelo argentino Jorge Luis Borges e publicado na obra Ficciones (2012).
Borges caracteriza o escritor Herbert Quain como um escritor que nunca se
acreditou genial e cujos livros, embora fossem admiráveis pela novidade e pela
lacônica probidade, jamais seriam conhecidos pelas virtudes da paixão (BORGES,
2012, p. 79). Depois de afirmar que o livro foi um fracasso e admitir que não
consegue se lembrar dos pormenores da ação, Borges descreve a trama de The
God of the Labyrinth, primeiro romance de Quain, da seguinte maneira por Borges:

Hay un indescifrable asesinato en las páginas iniciales, una lenta discusión


en las intermedias, una solución en las últimas. Ya aclarado el enigma, hay
un párrafo largo y retrospectivo que contiene esta frase: Todos creyeron que
52

el encuentro de los dos jugadores de ajedrez había sido casual. Esa frase
deja entender que la solución es errónea. El lector, inquieto, revisa los
capítulos pertinentes y descubre otra solución, que es la verdadera. El lector
de ese libro singular es más perspicaz que el detective. (BORGES, 2012, p.
80)

A primeira referência de Saramago ao autor e à obra acontece na página 19,


no momento em que Reis está desfazendo as malas no quarto 201 do Hotel
Bragança, recém desembarcado do Brasil. Nessa primeira retomada, são
questionados os motivos que levaram o doutor Reis a escolher esse romance
policial para leitura e apresentados aspectos da trama desenrolada no romance
ficcional:

Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler,


apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain,
irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é
singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem,
repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque
alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único
exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da
viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus,
que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um
simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação,
o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso,
e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos
direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da
história que estiver lendo, se não é como sobrevivente único e real que todo
o leitor lê toda a história. (SARAMAGO, 2010, p. 19-20)

Ademais, The God of the Labyrinth é referenciado outras nove vezes, entre as
quais há três circunstâncias mais marcantes: Reis põe-se a ler o romance, que
nunca acaba e cujo enredo não consegue fixar na memória, logo depois do primeiro
contato amistoso com Lídia, quando os dois observaram a cheia do Cais do Sodré,
como forma de dissimular a perturbação causada pela relação recém iniciada com a
criada-musa: “Lídia entra discretamente e sem rumor se retira, mais aliviada de
carga, enquanto Ricardo Reis se finge de distraído, no quarto, a folhear, sem ler,
The God of the Labyrinth, obra já citada.” (SARAMAGO, 2010, p. 55)

A segunda referência marcante acontece em um momento decisivo para as


tomadas de decisão de Reis no romance: a notícia da queda de Badajoz, cidade
andaluza que foi tomada à Segunda República pelo exército sublevado, comandado
53

por Franco, e foi submetida a um massacre cujo número de mortos não é


oficialmente conhecido. Enquanto Reis acredita nas notícias veiculadas pelos jornais
lisboetas, Lídia acredita na versão de Daniel, seu irmão comunista. Mais uma vez,
Reis toma o livro nas mãos para alhear-se, dessa vez do mundo que ele não
consegue compreender, pois foram-se as divisões entre monarquistas e
republicanos. Entretanto, as imagens da guerra e dos mortos se impõem com força,
abalando a impavidez e a passividade com que o doutor se propõe a encarar a vida:

Lá dentro, no escritório, Ricardo Reis não suspeita o que se está passando


aqui. Para não pensar nos dois mil cadáveres, que realmente são muitos, se
Lídia disse a verdade, abriu uma vez mais The god of the labyrinth, ia ler a
partir da marca que deixara, mas não havia sentido para ligar com as
palavras, então percebeu que não se lembrava do que o livro contara até
ali, voltou ao princípio, recomeçou, O corpo, que foi encontrado pelo
primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços abertos, as casas dos
peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direcção do campo
adversário, e chegado a este ponto tornou a desligar-se da leitura, viu o
tabuleiro, plaino abandonado, de braços estendidos o jovem que jovem fora,
e logo um círculo inscrito no quadrado imenso, arena coberta de corpos que
pareciam crucificados na própria terra, de um para outro ia o Sagrado
Coração de Jesus certificando-se de que já não havia feridos.
(SARAMAGO, 2010, p. 404)

A derradeira referência ao romance acontece no desenlace de O Ano da


Morte de Ricardo Reis. Decidindo partir com Fernando Pessoa, Ricardo Reis leva
consigo The God of the Labyrinth para libertar o mundo de um enigma:

Foi à mesa-de-cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo


do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo,
Devia ficar aqui, à espera da Lídia, Eu sei que devia, Para a consolar do
desgosto de ter ficado sem o irmão, Não lhe posso valer,E esse livro, para
que é, Apesar do tempo que tive, não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter
tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se
perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais
incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler,
disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de
um enigma. (SARAMAGO, 2010, p. 427)

Está longe de ser uma simples revisitação de um conto de Borges, essa


persistente referência a The God of the Labyrinth e Herbert Quain. Levando em
consideração, em primeiro lugar, a caracterização de Quain feita por Borges em
comparação com a produção de Reis, percebe-se que ambos são escritores
preocupados com aspectos formais de sua obra e contidos no que diz respeito à
paixão, pela qual nem Quain, nem Reis, seriam lembrados. Em segundo lugar, o fato
de Reis se recolher em The God of the Labyrinth como forma de se alienar da
realidade imediata ao seu redor e dos acontecimentos do mundo sem, no entanto,
54

conseguir concentrar-se no livro, parece apontar para um desequilíbrio escamoteado


pelo horaciano poeta classicista, que, se não quer envolver-se com o mundo,
também não consegue esquecê-lo.

Não passa despercebido, finalmente, o fato de a trama de The God of the


Labyrinth, policialesca, jogar com a figura dos enxadristas. Esse fato remete
imediatamente a uma das mais extensas odes de Reis, a Ode 337, datada de
primeiro de junho de 1916, na qual, com o pano de fundo brutal de uma cena de
invasão, estupros e saques em alguma guerra na Pérsia, dois homens jogam o
xadrez, alheios a todo o sofrimento de que padecem suas mães, esposas e filhas. A
alusão a um livro com tal temática e os momentos em que este livro se apresentam
em O Ano da Morte de Ricardo Reis apontam para um espelhamento entre Herbert
Quain e The God of the Labyrinth e a figura de Reis e de sua impassibilidade ante o
mundo tumultuado em 1936.

3.2.1.3 Alusão

A alusão não marca tão fortemente o texto original no texto de acolhida,


podendo ser exclusivamente semântica ou remeter antes a uma constelação de
textos do que a um texto preciso. É a prática intertextual menos heterogênea, uma
vez que a integração entre o texto aludido e o texto que o alude é dificilmente
marcada textualmente. O desvendar ou não da alusão não interfere tão
profundamente na interpretação do texto derivado, mas a compreensão deste
fenômeno cria um liame profundo entre escritor e leitor. É preciso, também, ressaltar
que a percepção da alusão é extremamente subjetiva, sendo possível que um leitor
veja uma alusão em um texto em que, talvez, não haja. (SAMOYAULT, 2008, p. 50-
51)

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, percebe-se a alusão à obra poética de


Fernando Pessoa e dos heterônimos. Entretanto, a alusão mais frequente é feita à
obra em prosa do semi-heterônimo Bernardo Soares Livro do Desassossego e ao
mito poético lusitano Os Lusíadas, de Luís de Camões.
55

A alusão ao Livro do Desassossego é mais evidente nos passeios constantes


de Reis por Lisboa, em que encontra uma cidade sombria e chuvosa parecida ao
que descreve Soares em “Lisboa, meu Lar!”.

Comparem-se os seguintes excertos:

Ricardo Reis atravessa o jardim, vai olhar a cidade, o castelo com as suas
muralhas derrubadas, o casario a cair pelas encostas. O sol branqueado
bate nas telhas molhadas, desce sobre a cidade um silêncio, todos os sons
são abafados, em surdina, parece Lisboa que é feita de algodão, agora
pingando. (SARAMAGO, 2010, p. 60)

As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o luar, com manchas de


incerteza, estagna de madrepérola os solavancos mortos da profusão. Há
telhados e sombras, janelas e idade média. Não há de que haver arredores.
Pousa no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde vejo há
ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade inteira no meu
coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu cansaço de amanhã! (PESSOA,
1989, p. 136)

Percebe-se que a descrição que é oferecida, pelos dois narradores, da cidade


de Lisboa é similar, apresentando características de uma cidade antiga, iluminada
por uma luz baça e esbranquiçada – o sol pálido que surge após a chuva, em O Ano
da Morte de Ricardo Reis, e o luar, em Livro do Desassossego.

Há, entretanto, muitas diferenças entre o teor da descrição de Lisboa em O


Ano da Morte de Ricardo Reis e em Livro do Desassossego, como a pertença à
cidade e os sentimentos nutridos quanto a ela. Enquanto Soares afirma: “Amo, pelas
tardes demoradas de verão, o sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele sossego
que o contraste acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício” (PESSOA,
1989, p. 121); Reis sente-se encurralado:

Entra no Rossio e é como se estivesse numa encruzilhada, numa cruz de


quatro ou oito caminhos, que andados e continuados irão dar, já se sabe, ao
mesmo ponto, ou lugar, o infinito, por isso não nos vale a pena escolher um
deles, chegando a hora deixemos esse cuidado ao acaso, que não escolhe,
também o sabemos, limita-se a empurrar, por sua vez o empurram forças de
que nada sabemos, e se soubéssemos, que saberíamos. (SARAMAGO,
2010, p. 88)

A Lisboa narrada em O Ano da Morte de Ricardo Reis, embora guarde


semelhanças com a descrita por Pessoa em Livro do Desassossego, não é a
mesma: o narrador dá-lhe contornos de cidade fantasma, cinzenta, opressora,
chuvosa e labiríntica – como o regime que, a partir da “cabeça de império” que era
56

Lisboa, governava “com mão de ferro calçada em luva de veludo” (SARAMAGO,


2010, p. 134) o império colonial português decadente.

Outra alusão constante no romance é à figura mítica do gigante Adamastor,


cuja imagem passa a ser recorrentemente explorada quando Reis deixa o Hotel
Bragança e passa a ocupar um apartamento no Alto de Santa Catarina, perto da
escultura que retrata o monstro.

O gigante Adamastor é uma figura mítica baseada na mitologia greco-romana


que foi retratado no Canto V de Os Lusíadas e no poema “O Monstrengo”, integrante
do livro Mensagem de Fernando Pessoa.

Camões retrata Adamastor como uma figura gigantesca, com aspecto


maligno, que fazia premonições aos portugueses e tinha sido tornada pedra por
logro da ninfa Tétis, por quem era apaixonado:

(39)
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos. (CAMÕES, 2010, p. 203)
(55)
Já néscio, da guerra desistindo,
Uma noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tethis, única, despida.
Como doudo corri, de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.
(56)
Oh! Não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Que polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não, mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo! (CAMÕES, 2010, p. 209)

O enfoque que Saramago dá a Adamastor é o amoroso. Em quase todas as


alusões ao monstro, que surgem a propósito de sua escultura, erigida no Alto de
Santa Catarina, o narrador menciona o grito por se concretizar de Adamastor, que,
57

petrificado, não consegue libertar a raiva que o amor frustrado por Tétis que o
consome:

Se a manhã está agradável sai de casa, um pouco soturna apesar dos


cuidados e desvelos de Lídia, para ler os jornais à luz clara do dia, sentado
ao sol, sob o vulto protector de Adamastor, já se viu que Luís de Camões
exagerou muito, este rosto carregado, a barba esquálida, os olhos
encovados, a postura nem medida nem má, é puro sofrimento amoroso o
que atormenta o estupendo gigante, quer ele lá saber se passam ou não
passam o cabo as portuguesas naus. (SARAMAGO, 2010, p. 266)

O grito de Adamastor, para Saramago, sufocado ao longo do romance e


citado em seu último parágrafo, aponta para a alegoria de uma necessidade
sufocada de voz para os que a perderam durante o regime fascista de Salazar: é
necessário gritar, seja por amor, seja por liberdade, mas as pessoas estão
petrificadas e sufocadas e o grito jamais se materializa.

As alusões a aspectos centrais na cultura literária portuguesa, como à obra


em prosa de Fernando Pessoa e a épica Os Lusíadas de Luís de Camões são
observadas em O Ano da Morte de Ricardo Reis, conferindo a esta obra mais
dimensões de relação com outros textos. É preciso ressaltar, ainda, que a alusão a
tais obras empreendida no romance analisado não serve para glorificá-las: antes,
toma as obras como ponto de partida para a exposição de uma visão não
coincidente com a perspectiva dessas obras, especialmente no que diz respeito ao
Portugal repressor que está sendo narrado em O Ano da Morte de Ricardo Reis.

3.2.2 Práticas Hipertextuais

A hipertextualidade é dividida por Genette (2010) em paródia e pastiche. As


duas práticas hipertextuais inscrevem a derivação de um texto anterior no texto atual
e implicam uma transformação – paródia – ou uma imitação – pastiche – do
hipotexto que o hipertexto retoma sem citá-lo diretamente, mas mantendo um liame
com o texto original (SAMOYAULT, 2008, p. 52-53).

Conforme já foi informado, as duas práticas hipertextuais são a paródia e o


pastiche e essa relação de derivação é muito mais homogênea e sutil do que a
observada nas relações de co-presença, atribuídas, por Genette, à intertextualidade.
58

3.2.2.1 Paródia

A paródia transforma uma obra anterior, seja para caricaturá-la, seja para
reutilizá-la, transpondo-a. Entretanto, não importa qual seja essa transformação ou
deformação, há sempre uma ligação entre a obra de origem e a obra de acolhida.
(SAMOYAULT, 2008, p. 53)

Com relação à adaptação que o termo paródia sofreu na obra de Linda


Hutcheon, essa questão será referida em outro momento do trabalho. Nesta
subseção, serão apresentados dados paródicos encontrados em O Ano da Morte de
Ricardo Reis nos termos acima apresentados.

A presença da paródia em O Ano da Morte de Ricardo Reis é notável, em um


nível mais aprofundado do que o observado no que diz respeito às práticas
intertextuais. Para corroborar essa afirmação, podem ser apresentadas a frase de
abertura e a frase de fechamento do romance: “Aqui o mar acaba e a terra principia”
(SARAMAGO, 2010, p. 7) e “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.”
(SARAMAGO, 2010, p. 428). Essas duas frases, emblemáticas, são paródias do
verso camoniano “Onde a terra se acaba e o mar começa.” (CAMÕES, 2010, p.
103).

Percebe-se que o hipotexto camoniano foi transformado – em vez de a terra


acabar e o mar começar, o que acaba é o mar, cabendo à terra principiar e esperar
–, mas os hipertextos saramaguianos mantiveram um liame visível com o verso
original: a estrutura sintática permaneceu quase inalterada, o léxico utilizado foi afim.

A reinterpretação acarretada pela paródia relaciona-se com a reinterpretação


que Saramago realiza, em seus romances, da história portuguesa. O tempo das
grandes conquistas marítimas, cantado por Camões, acabou-se junto com o mar. O
que resta aos portugueses, na altura de 1936, é concentrar-se na terra. No
encerramento da narrativa, a terra espera, imóvel como Adamastor, por alguma
coisa. A perspectiva adotada pela pesquisa afina-se com o que é sugerido por
Susana Ramos Ventura quando ela afirma que, ao final da narrativa, Portugal
continua à espera de algo. Como o romance tematiza o ano de 1936, a ditadura de
Salazar, o comprometimento da imprensa com o regime e o sufocamento do levante
59

dos marinheiros que queria acabar com o regime salazarista, o que a terra
portuguesa esperaria seria a liberdade (SILVA e VENTURA, 2010, p. 155).

As odes de Ricardo Reis também são alvo constante de paródias em O Ano


da Morte de Ricardo Reis. Parodiar o texto pelo qual Reis é conhecido, com todas as
suas características, aponta para uma ampliação de seu sentido e uma apropriação
de tal sentido por parte da narrativa romanesca de José Saramago:

Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará
pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar
que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou
sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e
pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem,
Quain, que pensamentos e sensações serão o que não partilho por só me
pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou
venham a ser? (SARAMAGO, 2010, p. 20)

Este trecho parodia a última ode de Ricardo Reis efetivamente datada por
Pessoa, cuja primeira estrofe foi apresentada na subseção 3.2.1.1 e que será
novamente citada, para uma mais fácil visualização dos liames entre o texto
parodiado e o texto original:

Vivem em nós inúmeros;


Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa. (PESSOA, 2007, p. 291)

A apropriação que Saramago efetua da ode de Reis, jogando-a ao discurso


indireto livre com que o narrador onisciente intruso saramaguiano apresenta os
pensamentos dos personagens mesclados com seus próprios comentários irônicos,
não apaga as ligações que este excerto do romance tem com o poema original.
Tomando a ode e reconstruindo-a dessa maneira, Saramago efetua uma integração
homogênea e toma para si as palavras do outro, lembrando a epígrafe deste
capítulo.

Ainda um exemplo do uso da paródia por Saramago será apresentado, por


acreditar-se que este é relevante não só para a apreciação da retomada
transformadora do hipotexto pessoano pelo hipertexto saramaguiano, mas por ser
um indicativo claro do posicionamento do narrador quanto ao Ricardo Reis
personagem e por apresentar, sucintamente, parte a concepção de mundo na
poesia reisiana:
60

Ora, Ricardo Reis é um espectador do espectáculo do mundo, sábio se isso


for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo
porque uma simples nuvem passou, afinal é tão fácil compreender os
antigos gregos e romanos quando acreditavam que se moviam entre
deuses, que eles os assistiam em todos es momentos e lugares, à sombra
duma árvore, ao pé duma fonte, no interior denso e rumoroso duma floresta,
na beira do mar ou sobre as vagas, na cama com quem se queria, mulher
humana, ou deusa, se o queria ela. (SARAMAGO, 2010, p. 87)

A chave da poesia de Reis, “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do


mundo” (PESSOA, 2007, p. 259), tem sua forma reutilizada na paródia de Saramago
e questionada pelo narrador, que parece não aceitar que tão somente assistir ao
espetáculo do mundo seja sabedoria. Essa não aceitação é confirmada pelos
adjetivos “alheio” e “indiferente”, utilizados por Saramago para caracterizar a atitude
de Reis ante a vida e sua cultura livresca, que o torna um poeta classicista em pleno
modernismo português, apresentada na alusão à mitologia greco-romana.

A transformação paródica da obra de Reis em O Ano da Morte de Ricardo


Reis aponta para uma apropriação do discurso poético pessoano, bem como para
sua contraposição ao posicionamento ideológico do narrador. O narrador
saramaguiano, conhecido pelas suas intromissões e seus julgamentos, não se
exime de questionar até que ponto o lugar de espectador do espetáculo do mundo
assumido por Reis – e indicado por sua produção poética – ainda pode ser ocupado
em um mundo que vê a encubação dos movimentos totalitários na Europa e a
iminente eclosão da Segunda Guerra Mundial.

3.2.2.2 Pastiche

O pastiche é a prática hipertextual de imitar o estilo de um hipotexto em um


hipertexto. A deformação feita pelo pastiche não lida diretamente com o conteúdo do
hipotexto, e, sim, com sua forma, geralmente identificada ao estilo de um grande
autor ou de um gênero discursivo (SAMOYAULT, 2008, p. 55)

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, a ocorrência do pastiche foi menos


observada do que os usos intertextuais e paródicos, referindo-se antes às notícias
dos jornais lidos por Reis e comentados pelo narrador do que ao estilo literário de
escritores.
61

Será apresentado um trecho, relativamente extenso, do romance no qual


percebe-se o pastiche de uma notícia de jornal. Este excerto refere-se às notas
fúnebres publicadas nos jornais portugueses por ocasião da morte de Fernando
Pessoa. No mesmo excerto do romance, estará sublinhada a citação literal, tomada
ao jornal Diário de Notícias, e grafado em itálico o pastiche das notas de jornal:

Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de


Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que cultivava não só
a poesia em moldes originais mas também a crítica inteligente, morreu
anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as letras em
Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num
escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus
amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal, outro diz doutra
maneira o mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem,
poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi
ontem a enterrar, surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S.
Luís, no sábado à noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele era
também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, pronto, já cá
faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem
sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal
com os seus próprios olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito
anos de idade, mais um que a idade de Fernando Pessoa quando lhe
fecharam os olhos, esses sim, mortos, não deviam ser necessárias outras
provas ou certificados de que não se trata da mesma pessoa (SARAMAGO,
2010, p. 31-32)

É possível afirmar que o trecho grafado em itálico afasta-se do estilo habitual


de escrita de José Saramago, aproximando-se da maneira como o trecho sublinhado
é escrito: o uso de expressões como “espírito admirável”, “poesia em moldes
originais”, “crítica inteligente” encontram correspondência em construções como
“poeta extraordinário”, “poema dos mais belos que se têm escrito”; os apostos “o
poeta do Orfeu” e “o poeta extraordinário da Mensagem” também são
estilisticamente similares.

Essa retomada estilística do gênero jornalístico funciona de maneira


subversora, como um comentário irônico acerca da maneira como as notícias eram
publicadas à época. Os jornais, cabe ressaltar, são presença constante no romance
e há estudos que indicam uma aprofundada integração das notícias dos jornais O
Século e Diário de Notícias na malha romanesca de O Ano da Morte de Ricardo
Reis (ROANI, 2006).
62

3.3 A função ideológica do intertexto

Considerando os dados apresentados sob a luz da teoria pertinente, é


possível concluir que as referências a outros textos são essenciais na construção do
romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. O uso da
intertextualidade, seja ela co-presencial, seja ela derivacional, tem um papel que
ultrapassa o nível da simples citação, ou instalação da biblioteca, na obra em
questão.

Se, como afirma Jenny (1979), a intertextualidade faz estalar a linearidade do


texto, abrindo ao leitor a possibilidade de seguir vários caminhos que se bifurcam (p.
21), O Ano da Morte de Ricardo Reis é um romance pleno de dimensões de leitura e
de caminhos possíveis fora dos seus limites textuais. É um romance que inicia com a
paródia de versos camonianos, instaurando, desde sua abertura, a possibilidade de
prosseguir a leitura ou de buscar o texto de origem, e mantém, ao longo de suas
mais de 400 páginas, a constante presença dos outros textos, outras vozes, que
permeiam a narrativa e lhe conferem maior profundidade.

Esse uso e abuso de formas intertextuais na narrativa saramaguiana não


serve apenas para mostrar erudição ou ajudar a inserir o texto em uma tradição
romanesca. Ao contrário, o uso da intertextualidade em Saramago é
conscientemente ideológico: ao questionar a posição que um doutor-poeta
aristocrático e classicista assumiria em um mundo em franca ebulição a partir da
citação, da referência, da alusão, da paródia e do pastiche da obra deste poeta,
Saramago põe a produção poética de Reis a serviço de uma causa jamais
imaginada por Fernando Pessoa, ortônimo e heterônimos. Saramago subverte a
visão epicurista e impassível de Reis, utilizando-se dela para denunciar os
problemas que visões “neutras” como essas causaram ao mundo.

A apropriação do texto camoniano também subverte o papel mítico, tirânico,


da tradição de Camões na literatura, na história e na cultura portuguesas. Camões é
constantemente retratado como cego, esquecido, e seu papel é explicitamente
questionado por Ricardo Reis, em um diálogo com a jovem Marcenda:

Ricardo Reis saiu, eram três menos um quarto, tempo de ir andando,


atravessou a praça onde puseram o poeta, todos os caminhos portugueses
vão dar a Camões, de cada vez mudado consoante os olhos que o vêem,
em vida sua braço às armas feito e mente às musas dada, agora de espada
63

na bainha, cerrado o livro, os olhos cegos, ambos, tanto lhos picam os


pombos como os olhares indiferentes de quem passa. [...] É como todas as
coisas, as más e as boas, sempre precisam de gente que as faça, olhe o
caso dos Lusíadas, já pensou que não teríamos Lusíadas se não
tivéssemos tido Camões, é capaz de imaginar que Portugal seria o nosso
sem Camões e sem Lusíadas, Parece um jogo, uma adivinha, Nada seria
mais sério, se verdadeiramente pensássemos nisso (SARAMAGO, 2010, p.
179-182)

Essa relação subversora mantida por Saramago com relação a Camões


encontra eco no afirmado por Jenny a respeito do papel de desviadora cultural da
intertextualidade. Segundo Jenny:

Se o vanguardismo intertextual é frequentemente sábio, é porque está ao


mesmo tempo consciente do objeto sobre o qual trabalha, e das
recordações culturais que o dominam. O seu papel é re-enunciar de modo
decisivo certos discursos cujo peso se tornou tirânico. Discursos brilhantes,
discursos fósseis. [...] Abre-se então o campo duma palavra, nova, nascida
das brechas do velho discurso, e solidária daquele. Quer queiram quer não,
esses velhos discursos injectam toda a sua força de estereótipos na palavra
que os contradiz, dinamizam-na. A intertextualidade fá-los assim financiar a
sua própria subversão. (JENNY, 1979, p. 44-45)

Saramago, portanto, não nega o peso de Camões (ou de Pessoa, ou de Eça


de Queirós); antes, ele encontra brechas no seu discurso mítico e em sua posição
de subserviência ao regime salazarista para criar um discurso novo, fundado em
relações intertextuais com o discurso questionado e subvertido.

Essa maneira de encarar a intertextualidade, como um fator de


problematização ideológica, encontra paralelos na paródia pós-moderna, de Linda
Hutcheon. Segundo a canadense, a paródia pode ser definida como uma imitação
ironicamente recontextualizada feita das formas do passado (HUTCHEON, 1991, p.
57).

Uma referência dessacralizadora da obra de Fernando Pessoa é a aparição


de Lídia, a musa inspiradora de Ricardo Reis, na trama romanesca. Essa Lídia,
entretanto, difere fundamentalmente da Lídia musa por não ser aristocrática como a
interlocutora das odes: essa Lídia, “mulher feita e bem feita, morena portuguesa,
mais para o baixo que para o alto” (SARAMAGO, 2010, p. 83), é uma criada de
hotel, sem instrução. Uma amante com quem o aristocrático Reis jamais se casaria,
jamais assumiria fora do quarto. A ela, um sorriso irônico ao saber-lhe o nome:

Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, [...] mas ele não
respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussurro, [...]
64

deixemo-la sair então, se já tem nome, levar dali o balde e o esfregão,


vejamos como ficou Ricardo Reis a sorrir ironicamente, [...] Lídia, diz, e
sorri. Sorrindo vai buscar à gaveta os seus poemas, as suas odes sáficas, lê
alguns versos apanhados na passar das folhas, E assim, Lídia, à lareira,
como estando, Tal seja, Lídia, a quadro, Não desejemos, Lídia, nesta hora,
Quando, Lídia, vier o nosso outono, Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio,
Lídia, a vida mais vil antes que a morte, já não roto vestígio de ironia no
sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre os
dentes, quando por dentro da pele se alterou o jogo dos músculos, ricto
agora ou doloroso esgar se diria em estilo chumbado. (SARAMAGO, 2010,
p. 44-45)

Essa Lídia verdadeira, nesse mundo de Lisboa, senta-se com Ricardo para
ver o rio, com a diferença de que essa paisagem é bem menos bucólica do que a
observada nas odes sáficas reisianas. Os dois assistem juntos, da janela do hotel, à
cheia no Cais do Sodré. Riem, igualitariamente, mas apenas por alguns instantes,
pois a diferença social entre os dois não lhes permite maiores parecenças, salvo em
um caso revolucionário, e Lídia deixa o quarto, com a bandeja do café-da-manhã,
enquanto Reis finge ler:

não falta quem ria do espectáculo, até no Hotel Bragança, naquele segundo
andar, um hóspede de meia-idade sorri, bem-disposto, e atrás dele, se não
nos enganam os olhos, está uma mulher também a rir, mulher é ela, sem
dúvida, mas nem sempre os olhos vêem o que deveriam, pois esta parece
criada, e custa-nos acreditar que o seja mesmo e de condição, ou então
estão a subverter-se perigosamente as relações e posições sociais, caso
muito para temer, repete-se, porém há ocasiões, e se é verdade que na
ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução, como esta de
ter ousado Lídia assomar à janela por trás de Ricardo Reis e com ele rir
igualitariamente do espectáculo que a ambos divertia. São momentos
fugazes da idade de ouro, nascem súbito, morrem logo, por isso levou tão
pouco tempo a cansar-se a felicidade. (SARAMAGO, 2010, p. 55)

O papel revolucionário só poderia ser assumido por Lídia, que tem uma
posição muito menos conservadora do que a de Reis. Apesar de sua baixa
instrução, Lídia questiona as verdades veiculadas pela imprensa por ter contato com
outras versões, marginalizadas, dos acontecimentos: o relato indireto de Daniel, seu
irmão comunista. Essa revolução nos costumes, entretanto, é impossibilitada pelo
fato de ela ser mulher, pobre e serviçal.

A discrepância entre a Lídia-musa e a Lídia-criada é evidenciada em outros


momentos da trama. Embora não sirva para ir ao teatro, Lídia serve para passar o
terno que Reis vestirá; essa Lídia só é superior àqueloutra, de acordo com a
apreciação do narrador, porque tem um relacionamento carnal com Reis:

que Lídia será, agora, essa que acenderá o ferro, que estenderá as calças
sobre a tábua para as vincar, que introduzirá a mão esquerda na manga do
65

casaco, junto ao ombro, para com o ferro quente afeiçoar o contorno,


arredondá-lo decerto quando o fizer não deixará de lembrar-se do corpo que
se cobre com estas roupas, Se eu puder vou lá esta noite, e bate com o
ferro nervosamente está sozinha na rouparia, este é o fato que o senhor
doutor Ricardo Reis leva ao teatro, quem me dera a mim ir com ele, parva,
que julgas tu, enxuga duas lágrimas que hão-de aparecer, são lágrimas de
amanhã, agora ainda está Ricardo Reis descendo a escada para ir jantar,
ainda não lhe disse que precisa do fato passado a ferro, e Lídia ainda não
sabe que chorará. [...] Não jantou no hotel, foi lá apenas para mudar de fato,
tinha o casaco e as calças, também o colete, cuidadosamente pendurados
no cabide, sem uma ruga, é o que fazem amorosas mãos, perdoe-se-nos o
exagero, que não pode haver amor neste amplexos nocturnos entre
hóspede e criado, ele poeta, ela por acaso Lídia, mas outra, ainda assim
afortunada, porque a dos versos nunca soube que gemidos e suspiros estes
são, não fez mais que estar sentada à beira dos regatos, a ouvir dizer,
Sofro, Lídia, do medo do destino. (SARAMAGO, 2010, p. 100)

Essa Lídia, por fim, questiona as crenças de Reis em uma imprensa


manipulada contrapondo à versão oficial das crueldades cometidas depois do
bombardeamento e da rendição de Badajoz a versão contada por seu irmão Daniel:
“Sempre me respondes com as palavras do teu irmão, E o senhor doutor fala-me
sempre com as palavras dos jornais” (SARAMAGO, 2010, p. 400).

Essa subversão na musa de um poeta classicista e a-histórico evidencia o


caráter ideologicamente comprometido de Saramago, que questiona os papeis
sociais, as verdades veiculadas pela imprensa e, especialmente, o distanciamento
de Reis em relação ao mundo, tanto em sua poesia, quanto em sua “nova” vida.

Se Saramago escolhe confrontar Ricardo Reis com a PIDE, com a Guerra


Civil na Espanha, com o Salazarismo, o Fascismo e o Nazismo, é para por sob
suspeita toda a tradição literária portuguesa que se eximiu de contatos com a
realidade imediata de seu país, fechada em uma elite literata artificial.

A partir da utilização da obra pessoana como fator estruturante de sua


narrativa e elemento desestabilizador de velhas certezas quanto à monumentalidade
de Camões, Eça e Pessoa, Saramago realiza um trabalho questionador do passado
(literário e histórico) nos moldes do que Jenny (1979) afirma ser o trabalho
intertextual, inerentemente ideológico porque o funcionamento dos textos nunca está
livre da ideologia: “A análise do trabalho intertextual mostra bem que a pura
repetição não existe, ou, por outras palavras, que este trabalho exerce uma função
crítica sobre a forma.” (p. 44)
4. UM ESPECTADOR DO ESPETÁCULO DO MUNDO: O ESCRITOR-
PERSONAGEM EM O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

Nenhum de nós é verdadeiramente vivo nem


verdadeiramente morto, Bem dito, com essa faria você
uma daquelas odes. (José Saramago)

Um aspecto que chama a atenção em O Ano da Morte de Ricardo Reis é o


fato de dois escritores – Fernando Pessoa e seu heterônimo Ricardo Reis – terem
sido tornados personagens por Saramago. O fato de jogar na malha romanesca
personagens que tiveram existência empírica sugere mais um nível de hibridez entre
discurso literário e discurso historiográfico no já híbrido romance de extração
histórica saramaguiano.

Quanto à falta de existência empírica de Reis, uma vez que tal poeta é uma
das ficções pessoanas, e antecipando críticas que podem ser feitas a este trabalho
no sentido de tomar Reis como um escritor-personagem com vivência, portanto,
empírica e literária, é possível citar a passagem de Octavio Paz referente à biografia
de poetas como respaldo teórico:

Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia. Pessoa, que
duvidou sempre da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que se
fosse diretamente aos seus poemas, esquecendo os incidentes e acidentes
da sua existência. Nada na sua vida é surpreendente — nada, exceto os
seus poemas. (PAZ, 1976, p. 201)

O personagem, apresentado por Cândido como o ser fictício que vive o


enredo e as ideias de uma obra literária, e os torna vivos (1974, p. 85), é uma
categoria fundamental da narrativa que é, não raro, o eixo em torno do qual a ação
se movimenta e em função do qual a economia da narrativa se organiza (REIS e
LOPES, 2007, p. 314). São seres de papel, cuja existência é linguística e só pode
ser observada dentro dos limites da prosa romanesca, que representam pessoas de
carne e osso (BRAIT, 1999, p. 10-11).

Os personagens podem ter variados níveis de profundidade e elaboração e


são divididos em duas grandes categorias, criadas por E. M. Forster: planos e
redondos.
67

Os personagens planos, por um lado, são mais superficiais, sendo


construídos ao redor de uma única ideia ou qualidade e geralmente definidos em
poucas palavras, sem passarem por evoluções ao longo da narrativa, de forma que
as suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, cujas
ações não logram surpreender o leitor. (BRAIT, 1999, p. 40-41).

Os personagens redondos, por outro lado, são considerados mais complexos,


apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o
leitor. São dinâmicos, multifacetados, e constituem ao mesmo tempo imagens totais
e muito particulares do ser humano (BRAIT, 1999, p. 41).

Massaud Moisés define personagem nos seguintes termos:

Designa, no interior da prosa literária (conto, novela, e romance) e do teatro,


os seres fictícios construídos à imagem e semelhança dos seres humanos:
se estes são pessoas reais, aqueles são “pessoas” imaginárias; se os
primeiros habitam o mundo que nos cerca, os outros movem-se no espaço
arquitetado pela fantasia do prosador. (MOISÉS, 2004, p. 348)

Essa definição, que separa nitidamente os seres de papel dos seres reais,
parece contrapor-se, em certa medida, ao que pode ser observado em O Ano da
Morte de Ricardo Reis e em outros romances que tomam personagens emprestados
à história, de forma que a existência de tais personagens dentro da obra ficcional,
ainda que se tome o romance como um universo fechado em si mesmo, impede
essa nítida separação entre um ser fictício e um ser real.

No nível estrutural do romance, um personagem inventado como Marcenda


Sampaio e um personagem que de fato existiu no mundo empírico como Fernando
Pessoa não têm diferenças entre si no que diz respeito ao fato de um ser
inteiramente inventado e outro não. Se há, entre eles, discrepâncias, isso se deve à
maneira pela qual o autor os elaborou e desenvolveu. Entretanto, quando se
encontra em um romance uma personagem que teve vida empírica como Pessoa (e
Reis, que, nesta monografia, é tido como uma espécie de desdobramento da figura
do Pessoa ortônimo), parece impossível que tal personagem seja encarada
impassivelmente, sem levar em conta absolutamente nada dos dados biográficos
que dela são conhecidos. Personagens históricas têm um passado anterior à sua
vida no universo ficcional, têm uma biografia, e delas o leitor tinha uma ideia pré-
formada, superficial ou aprofundada, positiva ou negativa (BASTOS, 2007, p. 84).
68

Alcmeno Bastos chama de marca registrada o fator garantidor de procedência


histórica a elementos inseridos no universo ficcional. A marca registrada seria o
nome através do qual uma personalidade, um lugar, uma instituição, entre outros,
deu entrada nos registros oficiais. O nome dessa personalidade, lugar, instituição
inserido no universo ficcional manteria, de acordo com o autor, um liame com o real
de onde ele provém:

Tal privilégio concedido à marca registrada se justifica pela circunstância de


ser ela, do ponto de vista semiótico, o componente do signo elemento-
histórico que transita do universo da realidade objetiva – o mundo real –
para o universo da ficção sem perda da substância-significante, isto é, a
marca é trasladada com todos os seus componentes gráficos (e fônicos) –
Getúlio Vargas, Revolução de 30 – intactos, o mesmo não acontecendo
com a substância-significado, pois aqui é inevitável uma opção seletiva
quanto às muitas versões encontradas nos registros documentais: Getúlio
Vargas foi realmente “o pai dos pobres” ou um ditador implacável como
tantos outros? Em que versão confiar? (BASTOS, 2007, p. 87-88)

O personagem histórico, marca registrada no romance, ganharia, então, uma


dualidade: ao mesmo tempo que este personagem evoca uma personalidade
empírica e seus dados biográficos anteriores à sua inserção em um universo
ficcional, na transição do mundo objetivo para o mundo literário ele ganha camadas
de interpretação e é percebido de maneira diferente pelos leitores.

Observa-se tal dualidade no Ricardo Reis/Fernando Pessoa recriado por


Saramago. Ainda que Pessoa tenha tido uma existência empírica que se esgotou
em um período imediatamente anterior ao desenrolar das ações na diegese de O
Ano da Morte de Ricardo Reis, Reis, parte pessoana viva exilada no Brasil retorna a
Portugal em uma viagem de descobrimento ao contrário: ele parte da terra
descoberta para a terra das descobertas, sem bem saber quem é e o que faz nesse
país. Pessoa e Reis foram interpretados e reinventados por Saramago, constituindo
marcas registradas no romance estudado tão fortes quanto as ruas de Lisboa e as
estátuas da literatura portuguesa, Camões e Eça.

Outro fator importante é o fato de Fernando Pessoa e Ricardo Reis, além de


marcas registradas de uma realidade empírica determinável (vivo Pessoa entre 1888
e 1935, “vivo” Reis entre 1889 e 1936), serem marcas na literatura portuguesa.
Escritores, tornados personagens, carregam a obra em que são recriados com
referências inevitáveis à obra que produziram em vida. A interpretação desses
69

escritores-personagens, por parte dos leitores, será, então, duplamente referencial:


o Pessoa/Reis que viveu e a obra que o Pessoa/Reis produziu.

A presença de escritores-personagens na malha ficcional entrecruza literatura


e história uma vez que, quando o personagem é um escritor, ele carrega para dentro
da diegese todo o sistema literário em que estava inserido e sua produção ficcional,
bem como os dados de sua existência de homem empírico, inserido em uma
realidade histórica e socialmente demarcada. O escritor-personagem é mais um
traço híbrido dentro das metaficções historiográficas, ainda mais quando se lembra o
que afirmam os historiadores pós-modernos em relação às possibilidades de resgate
do passado. Cinthya Costa Santos trabalhou com a noção de escritor-personagem
aplicada à obra da escritora brasileira Ana Miranda e serão retomados aspectos
considerados relevantes de seu estudo, como:

[...] o sujeito que fala no romance além de ser essencialmente social,


historicamente concreto e definido, é também representante de um ‘dialeto’
individual: o estilo artístico que inaugura. Este dado configura objeto
especial, na medida em que o personagem é, ao mesmo tempo, sujeito
empírico e eu-lírico/narrador, inscrito em discurso social e literário particular,
assumindo toda a carga que isso representa. (SANTOS, 2009, p. 59)

Portanto, em relação à noção de escritor-personagem e à maneira como ele


articula, mais intimamente, sistema literário e existência empírica e historicamente
demarcada, foram utilizados aspectos trabalhados na tese de Doutorado “A imagem,
o rosto, a assinatura: escritores como personagens na obra de Ana Miranda”, de
Cinthya Costa Santos, que versa sobre os escritores-personagens na obra da
escritora brasileira Ana Miranda.

Santos aponta uma deliberada confusão entre eu-lírico e eu-empírico dos


escritores-personagens de Boca do Inferno, Dias & Dias, A Última Quimera e
Clarice, que instaura a indissolúvel ligação entre sistema literário e momento
histórico, entre real e discursivo, na diegese dos citados romances:

O verniz referencial concorre, paradoxalmente, para a relação assimétrica


entre o real e o discurso ao se observar que, em Boca do Inferno, recorre-
se, para impor lastro de legitimidade, à confusão entre eu-lírico e eu-
biográfico. O real não é ‘restituído’ a partir de dados empíricos, mas de
textos literários. A interpretação dada à leitura do mundo e dos textos
esconde-se nas brechas da narrativa, fundando o estranhamento, a
desfamiliarização do real. (SANTOS, 2009, p. 43)
70

Essa confusão entre mundo empírico e universo literário corrobora as


imbricações entre discurso histórico e discurso literário, e o elemento da narrativa
que mais explicitamente liga esses dois mundos é o escritor-personagem.
Considerando que a literatura dialoga explicitamente consigo e com sua memória
através das práticas intertextuais e que a historiografia só pode recorrer aos
vestígios textuais do passado para “reconstruí-lo”, essa intertextualidade dupla
marcada pela presença de ambíguos escritores-personagens torna o romance O
Ano da Morte de Ricardo Reis um labirinto de ecos do mundo literário e do mundo
histórico.

A retomada de intertextos literários e históricos, pertinentes à obra de Pessoa


e de Reis, foi apresentada nos últimos dois capítulos. Essa intertextualidade
constitutiva do romance e, ao mesmo tempo, subversora da literatura e da história
portuguesas, permite afirmar que escritores-personagens, conforme o exposto
acima, trazem mais um dado de hibridez aos romances de extração histórica. Essa
retomada é muito significativa, especialmente no que diz respeito ao fato de o
passado, de acordo com os teóricos pós-modernos Linda Hutcheon e Hayden White,
só poder ser retomado mediante vestígios textualizados. Isso posto, será
apresentada a análise de alguns trechos do romance para tentar comprovar o fato
de que o Ricardo Reis pessoano e o Ricardo Reis saramaguiano permanecem,
fundamentalmente, inalterados.

Considerando o escopo do trabalho, será analisada apenas a personalidade


heteronímica Ricardo Reis e serão abordados os seus dados “biográficos” e as
características de sua obra poética em contraste com o tratamento dado a tais fatos
por Saramago. Este heterônimo será tomado como escritor-personagem devido ao
fato de ser considerado um desdobramento do escritor Fernando Pessoa.

Reis nasce em 1887, na cidade do Porto. Estudou em colégio de jesuítas e


formou-se em Medicina Ricardo Reis. No âmbito político, Reis defende a Monarquia,
razão pela qual vive no Brasil desde 1919, em autoexílio. Nas palavras de Pessoa:
“É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria”.
(PESSOA, 1935) Embora esses dados – médico, latinista, monarquista – à primeira
vista não digam nada, a análise deles em conjunto com sua obra deixam ver
algumas características importantes da persona Reis.
71

Exilado no Brasil porque monarquista e cultor de odes epicuristas, pode-se


afirmar que Reis é politicamente (e artisticamente) conservador e tradicionalista. Sua
obra reflete uma grande preocupação formal com a estrutura dos versos, que
sempre escreve Odes, que deixa entrever um poeta que vê sua obra como
“resultado de um pensamento elevado que se traduz numa forma poética
disciplinada, rígida” (INFANTE e NICOLA, 1995, p. 42).

No que diz respeito ao conteúdo de suas odes, a filosofia epicurista é uma


constante em seus temas: deixar a vida passar, sem se envolver em paixões e
prazeres muito fortes que poderiam embotar a razão. A razão traz à tona outra
influência filosófica de Ricardo Reis: o estoicismo, doutrina segundo a qual a
Natureza, como é governada pela Razão, é justa e divina e deve ser seguida, ainda
que diante de dor e contrariedades. A outra matriz estético-filosófica de Reis é
Horácio, que fala sobre a brevidade da vida, a inevitabilidade da morte e a
necessidade de aproveitar os momentos da vida, sem excessos nas paixões. Dever-
se-ia almejar uma vida mediana, com horizontes bem delimitados. Ainda em
consonância com o ideário greco-romano, é notada a presença do paganismo em
suas odes através das figuras míticas greco-romanas, relacionadas com as forças
na natureza.

Apesar de toda essa inclinação helenista, Reis não esconde o fato de ser um
homem posterior a esses tempos, admitindo a existência de Cristo em alguns de
seus poemas. Esse fato é o reconhecimento da cultura livresca de Reis, através da
qual ele teve acesso a essa perspectiva anacrônica de mundo.

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, a ficção de pessoa tornada ficção de


Saramago mantém relativamente inalteradas essas características, apesar de o
narrador saramaguiano apresentar vigorosamente o mundo a Reis:

Ricardo Reis lê os jornais. Não chega a inquietar-se com as notícias que lhe
chegam do mundo, talvez por temperamento, talvez por acreditar no senso
comum que teima em afirmar que quanto mais as desgraças se temem
menos acontecem, Se isto assim é, então o homem está condenado, por
seu próprio interesse, ao pessimismo eterno, como caminho para a
felicidade, e talvez, perseverando, atinja a imortalidade pela via do simples
medo de morrer. (SARAMAGO, 2010, p. 380)

Por vezes, passa uma sombra na fronte de Reis, qual a sombra que passa
pela fronte dos jogadores de xadrez da Ode 337, mas essa sombra nunca se revela
72

permanente. Ao ler sobre a invasão da Etiópia pelas tropas de Mussolini, Reis é


confrontado com uma impressão, uma lembrança que lhe tolda a fronte. A princípio
não sabe de onde vem essa sensação, até que lembra da Ode 337, dos jogadores
de xadrez na Pérsia. Lendo o poema, confrontado, pelo narrador, com sua visão de
mundo e com o que mundo está vendo, Reis, ainda que perturbado, não abdica de
sua visão passiva. O trecho a seguir traz partes dessa cena memorável:

Addis-Abeba, ó linguístico donaire, ó poéticos povos, quer dizer Nova Flor.


Addis-Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores
arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças,
enquanto as tropas de Badoglio se aproximam. [...] Addis-Abeba está em
chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores arrombam as casas,
violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto as tropas de
Badoglio se aproximam, Addis-Abeba está em chamas, ardiam casas,
saqueadas eram as arcas e as paredes, violadas as mulheres eram postas
contra os muros caídos, trespassadas de lanças as crianças eram sangue
nas ruas. Uma sombra passa na fronte alheada e imprecisa de Ricardo
Reis, que é isto, donde veio a intromissão, o jornal apenas me informa que
Addis-Abeba está em chamas, que os salteadores estão pilhando, violando,
degolando, enquanto as tropas de Badoglio se aproximam, o Diário de
Notícias não fala de mulheres postas contra os muros caídos nem de
crianças trespassadas de lanças, em Addis-Abeba não consta que
estivessem jogadores de xadrez jogando o jogo do xadrez. [...] sabe enfim o
que procura, abre uma gaveta da secretária que foi do juiz da Relação,
onde em tempos dessa justiça eram guardados comentários manuscritos ao
Código Civil, e retira a pasta de atilhos que contém as suas odes, os versos
secretos de que nunca falou a Marcenda, as folhas manuscritas,
comentários também, porque tudo o é, que Lídia um dia encontrará, quando
o tempo já for outra, de insuprível ausência. Mestre, são plácidas, diz a
primeira folha, [...] aqui está, Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, esta
é a página, não outra, este o xadrez, e nós os jogadores, eu Ricardo Reis,
tu leitor meu, ardem casas, saqueadas são as arcas e as paredes, mas
quando o rei de marfim está em perigo, que importa a carne e o osso das
irmãs e das mães e das crianças, se carne e osso nosso em penedo
convertido, mudado em jogador, e de xadrez.
Addis-Abeba quer dizer Nova Flor, o resto já foi dito. Ricardo Reis guarda os
versos, fecha-os à chave, caiam cidades e povos sofram, cesse a liberdade
e a vida, por nossa parte imitemos os persas desta história, se assobiámos,
italianos, o Negus na Sociedade das Nações, cantarolemos, portugueses, à
suave brisa, quando sairmos a porta da nossa casa, O doutor vai bem-
disposto, dirá a vizinha do terceiro andar, Pudera, doentes é o que nunca
falta, acrescentará a do primeiro, fez cada qual seu juízo sobre o que lhe
tinha parecido e não sobre o que realmente sabia, que era nada, o doutor
do segundo andar apenas ia a falar sozinho (SARAMAGO, 2010, p. 305-
307).

Ao fim do romance, quando explode a Revolta dos Marinheiros e o irmão


comunista de Lídia acaba morto, acontece um dos únicos momentos em que Reis
verdadeiramente sofre. Confuso ante uma revolução que não lhe diz respeito, mas
acabou por tocar-lhe indiretamente, Reis, absurdamente, chora:
73

o que valeu foi ter dito uma mulher, compassiva, Coitadinhos, refere-se aos
marinheiros, mas Ricardo Reis sentiu esta doce palavra como um afago, a
mão sobre a testa ou suave correndo pelo cabelo, e entra em casa, atira-se
para cima da cama desfeita, escondeu os olhos com o antebraço para
poder chorar à vontade, lágrimas absurdas, que esta revolta não foi sua,
sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo, hei-de dizê-lo mil
vezes, que importa àquele a quem já nada importa que um perca e outro
vença. (SARAMAGO, 2010, p. 424)

Depois dessa fraqueza, Reis decide ir atrás de Lídia. Frustrado o encontro,


ainda que dessa saída tenha resultado o primeiro, embora tímido, reconhecimento
público de que Lídia era mais do que somente uma criada, parecem frustradas todas
as chances de Reis integrar-se no espetáculo do mundo. Ele retorna ao
apartamento, espera que Lídia apareça, compra os jornais vespertinos para
confirmar a morte de Daniel Martins, 23 anos, e continua à espera, ignorando de
quê.

Na noite de 8 de setembro de 1936, Reis deixa o apartamento e a vida com


seu criador, Fernando Pessoa, ante a impossibilidade de agir efetivamente em um
mundo que estava longe de ser um espetáculo para os olhos.

O Reis recriado por Saramago e colocado ante a caótica realidade da


antevéspera da Segunda Guerra Mundial não foge de sua origem e não nega sua
concepção de mundo: um poeta classicista, de raízes aristocráticas, adepto de
filosofias greco-romanas.

Conclui-se, portanto, que o escritor-personagem representa um caráter


híbrido no cerne da narrativa pós-moderna. A construção de uma personagem que
teve vivência empírica e literária preenche o romance de referências ao mundo em
que tal personagem viveu e à obra que tal personagem produziu. Saramago utilizou
esses escritores como personagens como forma de questionar a posição de um
deles, Reis, ante o mundo tumultuado de 1936.

Devido ao amplo uso de referências intertextuais e hipertextuais na


construção de O Ano da Morte de Ricardo Reis e seu explícito posicionamento
ideológico, Saramago foi capaz de oferecer uma reinterpretação de Pessoa e,
principalmente, de Ricardo Reis sem, entretanto, modificar sensivelmente as
características estético-filosóficas de Reis.
74
75

5. CONCLUSÃO

¿Que voy hacer el resto de mi vida cuando este libro se


haya acabado? (Pilar del Rio)

A obra de José Saramago é caracterizada pela revisitação da história e da


literatura. O autor português empreende essa revisitação por meio da retomada de
textos, literários ou históricos, e da presença de um narrador onisciente intruso
constantemente questionador dos rumos da história e da relevância da literatura.

Essa evidenciação das fronteiras entre literatura e história remete à discussão


dos limites entre fato e ficção, iniciados com a fundação da literatura ocidental.
Desde Aristóteles, o debate sobre a verdade e a verossimilhança tem sido
acalentado, passando, evidentemente, por mudanças tanto no que diz respeito ao
conhecimento da literatura, quanto ao que diz respeito ao conhecimento da história.

Se no século XIX literatura e história eram vistas como áreas totalmente


opostas, vistas a literatura como uma arte e a história como uma ciência de estudo
dos grandes eventos políticos, a partir do século XX esse panorama começou a ser
sensivelmente alterado.

As vanguardas literárias modernas requisitaram a autossuficiência da


literatura em relação a outras artes, enquanto a École des Annales libertou a história
do positivismo rankeano e ampliou o âmbito dos interesses da historiografia.

A partir da segunda metade do século XX, literatura e história passaram a


dialogar de maneira mais íntima devido aos teóricos do pós-modernismo: ao invés
de enfatizar as especificidades de cada discurso e suas diferenças, as semelhanças
entre o discurso literário e o discurso histórico passaram a ser ressaltadas.
76

O conceito mais importante para a pesquisa de O Ano da Morte de Ricardo


Reis relativo ao pós-modernismo é o de metaficção historiográfica, termo cunhado
por Linda Hutcheon e que designa as ficções pós-modernas, de narrativa histórica,
que revisitam criticamente o passado histórico, dando voz a seres ex-cêntricos,
marginalizados pelo discurso oficial, subvertendo os limites entre ficção e história e
problematizando os processos de escrita tanto da literatura, quanto da historiografia,
bem como recorrendo ao uso da intertextualidade de maneira não inocente.

Considerando as características da obra O Ano da Morte de Ricardo Reis e a


conceituação de metaficção historiográfica apresentadas, foi possível concluir que
tal romance saramaguiano se encaixa nos critérios de Hutcheon para definir esse
novo tipo de ficção de extração histórica. O Ano da Morte de Ricardo Reis é uma
obra autorreflexiva, na qual a história tem um papel decisivo. A inserção de Ricardo
Reis, um personagem ex-cêntrico marcado pela passividade estético-ideológica em
relação à vida, no tumultuado cotidiano europeu de 1936, caracterizado pela
consolidação do salazarismo, pelo avanço do fascismo e do nazismo e pela eclosão
da Guerra Civil Espanhola, demonstra a atitude dessacralizadora que este romance
aponta em relação à história oficial portuguesa e à tradição literária lusitana.

A presença de notícias de jornais, os quais são comprometidos com o


governo fascista de Salazar, e o questionamento de sua imparcialidade, tornam a
narrativa densa. Essas notícias são sempre postas sob questão pela instância
narrativa e por Lídia, o que confirma a pluralidade de vozes e pontos de vista
presentes no romance.

No que diz respeito à relação com outros textos, foi possível afirmar que a
intertextualidade tem caráter estruturador na narrativa saramaguiana estudada. Ao
longo de todo o romance, são persistentemente citados trechos de poemas,
referenciados nomes de livros e de autores, aludidas características marcantes da
cultura literária portuguesa, parodiados versos pessoanos e imitado o gênero
jornalístico vigente em 1936.

Os conceitos de intertextualidade utilizados na pesquisa foram os


apresentados por Genette, que diferencia entre relações de co-presença entre um
texto A e um texto B, em que seria observada a intertextualidade propriamente dita,
77

e de derivação de um texto A em um texto B, em que seria encontrada a


hipertextualidade. Essas práticas, subdivididas em citação, referência e alusão
(intertextualidade) e paródia e pastiche (hipertextualidade), foram amplamente
utilizadas por Saramago na construção de O Ano da Morte de Ricardo Reis.

A intertextualidade, fenômeno que faz estalar a linearidade do texto,


apontando para vários caminhos a serem trilhados fora dos limites da obra literária
na qual os intertextos podem ser localizados, é uma prática ideológica. Com isso em
mente, e o fato de Saramago ser um escritor politicamente engajado, foi possível
determinar que o uso de referências intertextuais em O Ano da Morte de Ricardo
Reis aponta para uma dessacralização da tradição literária portuguesa, bem como
para um desejo de subversão dos papeis sociais tradicionais. A neutralidade da
verdade histórica também é questionada nas referências intertextuais feitas a
notícias de jornal.

O papel da intertextualidade relaciona-se, também, com os escritores-


personagens presentes no romance. Tais personagens, por carregarem para dentro
da malha romanesca dados de sua vivência empírica e de sua produção literária,
instauram mais um nível de hibridez dentro do já híbrido gênero que é a metaficção
historiográfica. O passado empírico e o passado literário dos escritores personagens
foram retomados, na obra, pelas referências intertextuais apresentadas ao longo de
todo o trabalho.

Além disso, foi relevante a apresentação de aspectos relativos à “vida” e à


visão estético-ideológica de Ricardo Reis, a fim de determinar se a apropriação de
tal ficção pessoana por parte de José Saramago foi ou não fiel ao criado por Pessoa.
Concluiu-se, com base em dados levantados no romance, que o Reis saramaguiano
e o Reis pessoano têm a mesma visão de mundo e assumem atitudes semelhantes,
apesar das tentativas do narrador de O Ano da Morte de Ricardo Reis de confrontar
o abúlico Reis com a realidade europeia em ebulição do ano de 1936.

Ainda que as características principais de Reis não tenham sido alteradas


quanto à visão estético-ideológica no romance estudado, Saramago foi capaz de
oferecer uma reinterpretação ideologicamente engajada da obra pessoana por meio
do uso dessacralizador que fez das referências intertextuais à obra de Fernando
78

Pessoa e seus heterônimos. Além da reinterpretação da obra pessoana, Saramago


ofereceu, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, a problematização sobre o papel de
Camões na literatura e na história portuguesa e sobre o papel de outros escritores,
exilados em elites intelectuais, no estado da realidade histórica portuguesa da
década de 1930.
ABSTRACT

This work of completion’s main objective has been to analyse the articulation
between literary and historic intertexts through the presence of character-writers on
José Saramago’s The Year of the Death of Ricardo Reis novel building. Specifically,
it was intented to determine which are the literary and historic intertexts and how do
they presente themselves, to relate such intertexts to the novel’s character-writers, to
analyse in what way do the literary and historic discourses articulate themselves on
the novel and to verify what is the relevance of the novel analysis under the
historiographic metafiction concept. Towards reaching such objectives, works by
authors who thematize the articulation between Literature and History has been
studied, especially the works by Hutcheon (1991) and White (1973 and 2001).
Towards gathering intertextual data and being able to analyse them, intertextuality
concept has been restraint. The intertextuality concepts that has been used on this
research are Genette’s (2010), Samoyault’s (2008) and Jenny’s (1979). The corpus
that has been submitted to the qualitative analysis is constituted by José Saramago’s
novel The Year of the Death of Ricardo Reis, from which intertextual data has been
collected and interpreted under the view of the quoted authors’ theories. It has been
conclutes that both Literature and History are deeply articulated on José Saramago’s
novel, which has been labeled historiographic metafiction, and that the intertexts are
a structurant part of that novel, employed in a questioning and desacralizing way in
relation to Portugal’s literary and historic tradition, featuring the character-writers
Fernando Pessoa and Ricardo Reis, but not limited to them.

Key-words: Portuguese literatura. Literature and History. Historiographic metafiction.


Intertextuality
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