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Pelotas, 2013
IARIMA NUNES REDÜ
Pelotas, 2013
Banca examinadora:
(José Saramago)
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................... 8
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9
2. AQUI A HISTÓRIA ACABA E A LITERATURA PRINCIPIA: A ARTICULAÇÃO
ENTRE DISCURSO LITERÁRIO E DISCURSO HISTORIOGRÁFICO .................... 15
2.1 Fato e Ficção – fronteiras rígidas.................................................................... 15
2.2 Discurso literário e discurso histórico: fronteiras esgarçadas .......................... 19
2.3 Metaficção Historiográfica............................................................................... 26
3. VIVEM EM NÓS INÚMEROS: A INTERTEXTUALIDADE EM O ANO DA MORTE
DE RICARDO REIS ................................................................................................. 37
3.1 Intertextualidade: histórico do termo e conceitos norteadores da análise ....... 37
3.2 Dados intertextuais e hipertextuais levantados em O Ano da Morte de Ricardo
Reis ...................................................................................................................... 45
3.2.1 Práticas Intertextuais ................................................................................ 46
3.2.2 Práticas Hipertextuais .............................................................................. 57
3.3 A função ideológica do intertexto .................................................................... 62
4. UM ESPECTADOR DO ESPETÁCULO DO MUNDO: O ESCRITOR-
PERSONAGEM EM O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS ................................ 66
5. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 75
ABSTRACT ............................................................................................................. 79
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 80
RESUMO
Um dos principais escritores dessa última geração é o único nome das letras
portuguesas agraciado com o Prêmio Nobel, José Saramago, cuja produção
romanesca trata, recorrentemente, de momentos decisivos da construção de
Portugal como nação. O escritor alenjetano tratou tais momentos de forma crítica e
questionou a possibilidade de visões diferentes acerca de marcantes
acontecimentos históricos lusitanos – a produção ficcional de Saramago procura
recontar a história de Portugal (ABDALA JR, 2007, p. 70). Além dos grandes temas
históricos, abundam nos romances de Saramago referências intertextuais,
especialmente a Fernando Pessoa, Luís de Camões e Eça de Queirós, que
evidenciam, em sua produção escrita, um aspecto autorreflexivo.
que o poeta narra o que poderia ter acontecido; ele afirma que, enquanto o texto do
historiador seria regido pelas leis da verdade, o texto do poeta responderia à
verossimilhança (ARISTÓTELES, 1987, p. 209).
No âmbito literário, a história tem sido utilizada pela literatura como tema
desde Homero, que combinou mito e história em a Ilíada e a Odisseia, obras
fundadoras da literatura ocidental que se acredita terem sido escritas no século VIII
a.C. A matéria histórica dos dois poemas épicos é a Guerra de Troia, que teria
acontecido por volta do século XII a.C. – distante temporalmente de Homero,
portanto, cerca de quatro séculos. Essa distância temporal teria, segundo Alcmeno
Bastos (2007, p. 15-16) favorecido a elaboração mítica da narrativa épica, a qual
recorria à constante intervenção dos deuses gregos para favorecer seus protegidos,
porque não havia registros escritos da guerra que se contrapusessem à visão do
poeta.
A história era, portanto, vista como algo intocável, uma relíquia perdida no
tempo cujo resgate cabia ao historiador. O historiador, por sua vez, era visto como
um ser neutro, sem qualquer influência ideológica, que trazia de volta o fato
histórico, exatamente como acontecera, através de uma narrativa inteiramente
isenta. Estes fatos históricos relacionavam-se aos grandes feitos da humanidade e
eram tratados de forma a ocultar a grande massa de pessoas comuns. Ora, nos
romances históricos novecentistas a história era mantida como relíquia, intocada,
relegada a pano de fundo da ação propriamente dita, executada por personagens
ficcionais. Da mesma maneira, as personalidades históricas presentes nos romances
permaneciam inalteradas, sem ter grandes feitos fictícios atribuídos a si, sendo
utilizadas apenas para conferir veracidade à ambientação do romance.
produção discursiva: eles permanecem sem soluções, coexistindo dentro dos relatos
pós-modernos.
metade do século XX, especialmente a partir dos anos 60 (p. 81). Corroborando, em
certa medida, os prognósticos da falência dos metarrelatos legitimadores de Lyotard,
a historiografia estava questionando os primados da análise estruturalista iniciada
pelos membros da École des Annales, por um lado, e a submissão da história ao
paradigma galileano, de análise mais quantitativa, proposto por Carlo Ginzburg
(2009) em “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”.
White, então, define que o enredo das narrativas históricas pode ser
estruturado em quatro diferentes modos de urdidura, – romanesco, satírico, trágico
25
é uma das maneiras de estabelecer o vínculo entre a arte e o mundo (p. 57) e
parece oferecer, em relação ao presente e ao passado:
[...] uma perspectiva que permite ao artista falar para um discurso e partir de
dentro desse discurso, mas sem ser totalmente recuperado por ele. Por
esse motivo, a paródia parece ter se tornado a categoria daquilo que
chamei de “ex-cêntrico”, daqueles que são marginalizados por uma
ideologia dominante. (HUTCHEON, 1991, p. 58)
Falta a Ricardo Reis um cãozito de cego, uma bengalita, uma luz adiante,
que este mundo e esta Lisboa são uma névoa escura onde se perde o sul e
o norte, o leste e o oeste, onde o único caminho aberto é para baixo, se um
homem se abandona cai a fundo, manequim sem pernas nem cabeça.
(SARAMAGO, 2010, p. 87)
portuguesa pode ser identificada com o discurso histórico oficial e suas parcialidades
em trechos como:
Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado
mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente
sugerir e insinuar, escrevem os jornais, em estilo de tetralogia, que, sobre a
derrocada dos grandes Estados, o português, o nosso, afirmará a sua
extraordinária força e a inteligência reflectida dos homens que o dirigem.
(SARAMAGO, 2010, p. 81)
Está no jornal, eu li, Não é do senhor doutor que eu duvido, o que o meu
irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem,
Eu não posso ir a Espanha ver o que se passa, tenho de acreditar que é
verdade o que eles me dizem, um jornal não pode mentir, seria o maior
pecado do mundo, O senhor doutor é uma pessoa instruída, eu sou quase
uma analfabeta, mas uma coisa eu aprendi, é que as verdades são muitas e
estão umas contra as outras, enquanto não lutarem não se saberá onde
está a mentira (SARAMAGO, 2010, p. 400)
Ricardo Reis reflecte sobre o que viu e ouviu, acha que o objecto da arte
não é a imitável, que foi fraqueza censurável do autor escrever a força no
linguajar nazareno, ou no que supôs ser esse linguajar, esquecido de que a
realidade não suporta o seu reflexo, rejeita-o, só uma outra realidade, qual
seja, pode ser colocada no lugar daquela que se quis expressar, e, sendo
diferentes entre si, mutuamente se mostram, explicam e enumeram, a
realidade como invenção que foi, a invenção como realidade que será [...]
são eles próprios personagens da sua acção dramática, actores que
representam nos intervalos, enquanto os actores verdadeiros, nos camarins,
descansam das personagens que foram e que daqui a pouco retomarão,
provisórios todos.. (SARAMAGO, 2010, p. 106)
Ricardo Reis atravessou o Bairro Alto, descendo pela Rua do Norte chegou
ao Camões, era como se estivesse dentro de um labirinto que o conduzisse
sempre ao mesmo lugar, a este bronze afidalgado e espadachim, espécie
de D'Artagnan premiado com uma coroa de louros por ter subtraído, no
último momento, os diamantes da rainha às maquinações do cardeal, a
quem, aliás, variando os tempos e as políticas, ainda acabará por servir,
mas este aqui, se por estar morto não pode voltar a alistar-se, seria bom
que soubesse que dele se servem, à vez ou em confusão, os principais,
cardeais incluídos, assim lhes aproveite a conveniência. (SARAMAGO,
2010, p. 67)
O romance aponta a presença de outros textos desde seu título, que remete à
obra de Fernando Pessoa e ao fenômeno da heteronímia, passando pelas epígrafes
do livro, que mostram de maneira explícita os textos pessoanos, e culminando na
revisitação da obra poética de Reis, Campos e Caeiro (além da poética de Pessoa
ele mesmo) empreendida ao longo de todo o texto saramaguiano.
A polifonia, por sua vez, é definida por Diana de Barros, estudiosa brasileira
da obra de Bakhtin, como um certo tipo de texto em que o dialogismo se mostra de
maneira mais explícita, deixando entrever as diversas vozes (textos, discursos) que
o compõem, em contraposição a textos monofônicos, que escondem os diálogos
que os constituem. (2001, p. 36)
Todas essas vozes são os textos, discursos, que permeiam o romance e têm
tanta importância quanto a voz do autor, que, no romance polifônico, trabalha como
um regente do coro de vozes participante do processo dialógico, deixando que tais
vozes se manifestem com autonomia e revelem a alteridade dentro do próprio
homem (BEZERRA, 2008, p. 194).
1
Tradução própria do trecho “l’intertextualité est la perception, par le lecteur, de rapports entre une
œuvre et d’autres, qui l’ont précédée ou suivie. Ces autres œuvres constituent l’intertexte de la
première [...] Ainsi compris, l’intertexte varie selon le lecteur: les passages que celui-ci réunit dans sa
mémoire, les rapprochements qu’il fait, lui sont dictés par l’accident d’une culture plus ou moins
profonde plutôt que par la lettre du texte” (idem, ibidem)
42
condiciona tanto o uso do código, quanto está presente ao nível do conteúdo formal
da obra (1979, p. 6) – é percebido pelo leitor. De acordo com o autor:
bastante útil para o exame das relações que as diversas “vozes” entretêm no bojo
das obras literárias, dadas as diversas possibilidades de interação entre intertextos,
hipotextos e hipertextos que Genette apresenta.
[...] a citação sempre faz aparecer a relação do autor que cita com a
biblioteca, assim como a dupla enunciação que resulta dessa inserção. Nela
reúnem-se as duas atividades da leitura e da escritura e ela deixa aparecer
tudo que está por trás do texto, o trabalho preparatório, as fichas, o saber
que foi preciso armazenar para chegar a esse texto. (SAMOYAULT, 2008,
p. 49)
Bernardo Soares
Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu,
respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez
existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja.
Fernando Pessoa
O trecho anterior cita duas odes de Ricardo Reis, a Ode 310 e a Ode 423,
respectivamente a primeira e a última que foram datadas pelo heterônimo: a
primeira, datada de 12 de junho de 1914; a última, conforme o texto saramaguiano
acertadamente afirma, datada de 13 de novembro de 1935.
2
Todos os grifos em excertos de José Saramago e em trechos de outros textos apresentados em
comparação com a obra de Saramago foram feitos pela autora deste trabalho.
48
Nem o remorso
De ter vivido (PESSOA, 2007, p. 253-254)
[...]
[...] este Tejo que não corre pela minha aldeia, o Tejo que corre pela minha
aldeia chama-se Douro, por isso, por não ter o mesmo nome, é que o Tejo
não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. (SARAMAGO, 2010,
p. 112)
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. (PESSOA, 2007, p.
215)
50
Lídia, disse Ricardo Reis, ela pousou a bandeja, levantou os olhos cheios
de susto, quis dizer, Senhor doutor, mas a voz ficou-lhe presa na garganta,
e ele não teve coragem, repetiu, Lídia, depois, quase num murmúrio,
atrozmente banal, sedutor ridículo, Acho-a muito bonita, e ficou a olhar para
ela por um segundo só, não aguentou mais do que um segundo; virou
costas, há momentos em que seria bem melhor morrer, Eu, que tenho sido
cómico às criadas de hotel, também tu Álvaro de Campos, todos nós.
(SARAMAGO, 2010, p. 94)
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
[...]
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
[...]
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. (PESSOA, 2007, p.
419)
3.2.1.2 Referência
el encuentro de los dos jugadores de ajedrez había sido casual. Esa frase
deja entender que la solución es errónea. El lector, inquieto, revisa los
capítulos pertinentes y descubre otra solución, que es la verdadera. El lector
de ese libro singular es más perspicaz que el detective. (BORGES, 2012, p.
80)
Ademais, The God of the Labyrinth é referenciado outras nove vezes, entre as
quais há três circunstâncias mais marcantes: Reis põe-se a ler o romance, que
nunca acaba e cujo enredo não consegue fixar na memória, logo depois do primeiro
contato amistoso com Lídia, quando os dois observaram a cheia do Cais do Sodré,
como forma de dissimular a perturbação causada pela relação recém iniciada com a
criada-musa: “Lídia entra discretamente e sem rumor se retira, mais aliviada de
carga, enquanto Ricardo Reis se finge de distraído, no quarto, a folhear, sem ler,
The God of the Labyrinth, obra já citada.” (SARAMAGO, 2010, p. 55)
3.2.1.3 Alusão
Ricardo Reis atravessa o jardim, vai olhar a cidade, o castelo com as suas
muralhas derrubadas, o casario a cair pelas encostas. O sol branqueado
bate nas telhas molhadas, desce sobre a cidade um silêncio, todos os sons
são abafados, em surdina, parece Lisboa que é feita de algodão, agora
pingando. (SARAMAGO, 2010, p. 60)
(39)
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos. (CAMÕES, 2010, p. 203)
(55)
Já néscio, da guerra desistindo,
Uma noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tethis, única, despida.
Como doudo corri, de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.
(56)
Oh! Não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Que polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não, mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo! (CAMÕES, 2010, p. 209)
petrificado, não consegue libertar a raiva que o amor frustrado por Tétis que o
consome:
3.2.2.1 Paródia
A paródia transforma uma obra anterior, seja para caricaturá-la, seja para
reutilizá-la, transpondo-a. Entretanto, não importa qual seja essa transformação ou
deformação, há sempre uma ligação entre a obra de origem e a obra de acolhida.
(SAMOYAULT, 2008, p. 53)
dos marinheiros que queria acabar com o regime salazarista, o que a terra
portuguesa esperaria seria a liberdade (SILVA e VENTURA, 2010, p. 155).
Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, quem estará
pensando agora o que eu penso, ou penso que estou pensando no lugar
que sou de pensar, quem estará sentindo o que sinto, ou sinto que estou
sentindo no lugar que sou de sentir, quem se serve de mim para sentir e
pensar, e, de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem,
Quain, que pensamentos e sensações serão o que não partilho por só me
pertencerem, quem sou eu que outros não sejam ou tenham sido ou
venham a ser? (SARAMAGO, 2010, p. 20)
Este trecho parodia a última ode de Ricardo Reis efetivamente datada por
Pessoa, cuja primeira estrofe foi apresentada na subseção 3.2.1.1 e que será
novamente citada, para uma mais fácil visualização dos liames entre o texto
parodiado e o texto original:
3.2.2.2 Pastiche
Como se chama, e ela respondeu, Lídia, senhor doutor, [...] mas ele não
respondeu, apenas pareceu que repetira o nome, Lídia, num sussurro, [...]
64
Essa Lídia verdadeira, nesse mundo de Lisboa, senta-se com Ricardo para
ver o rio, com a diferença de que essa paisagem é bem menos bucólica do que a
observada nas odes sáficas reisianas. Os dois assistem juntos, da janela do hotel, à
cheia no Cais do Sodré. Riem, igualitariamente, mas apenas por alguns instantes,
pois a diferença social entre os dois não lhes permite maiores parecenças, salvo em
um caso revolucionário, e Lídia deixa o quarto, com a bandeja do café-da-manhã,
enquanto Reis finge ler:
não falta quem ria do espectáculo, até no Hotel Bragança, naquele segundo
andar, um hóspede de meia-idade sorri, bem-disposto, e atrás dele, se não
nos enganam os olhos, está uma mulher também a rir, mulher é ela, sem
dúvida, mas nem sempre os olhos vêem o que deveriam, pois esta parece
criada, e custa-nos acreditar que o seja mesmo e de condição, ou então
estão a subverter-se perigosamente as relações e posições sociais, caso
muito para temer, repete-se, porém há ocasiões, e se é verdade que na
ocasião se faz o ladrão, também se pode fazer a revolução, como esta de
ter ousado Lídia assomar à janela por trás de Ricardo Reis e com ele rir
igualitariamente do espectáculo que a ambos divertia. São momentos
fugazes da idade de ouro, nascem súbito, morrem logo, por isso levou tão
pouco tempo a cansar-se a felicidade. (SARAMAGO, 2010, p. 55)
O papel revolucionário só poderia ser assumido por Lídia, que tem uma
posição muito menos conservadora do que a de Reis. Apesar de sua baixa
instrução, Lídia questiona as verdades veiculadas pela imprensa por ter contato com
outras versões, marginalizadas, dos acontecimentos: o relato indireto de Daniel, seu
irmão comunista. Essa revolução nos costumes, entretanto, é impossibilitada pelo
fato de ela ser mulher, pobre e serviçal.
que Lídia será, agora, essa que acenderá o ferro, que estenderá as calças
sobre a tábua para as vincar, que introduzirá a mão esquerda na manga do
65
Quanto à falta de existência empírica de Reis, uma vez que tal poeta é uma
das ficções pessoanas, e antecipando críticas que podem ser feitas a este trabalho
no sentido de tomar Reis como um escritor-personagem com vivência, portanto,
empírica e literária, é possível citar a passagem de Octavio Paz referente à biografia
de poetas como respaldo teórico:
Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia. Pessoa, que
duvidou sempre da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que se
fosse diretamente aos seus poemas, esquecendo os incidentes e acidentes
da sua existência. Nada na sua vida é surpreendente — nada, exceto os
seus poemas. (PAZ, 1976, p. 201)
Essa definição, que separa nitidamente os seres de papel dos seres reais,
parece contrapor-se, em certa medida, ao que pode ser observado em O Ano da
Morte de Ricardo Reis e em outros romances que tomam personagens emprestados
à história, de forma que a existência de tais personagens dentro da obra ficcional,
ainda que se tome o romance como um universo fechado em si mesmo, impede
essa nítida separação entre um ser fictício e um ser real.
Apesar de toda essa inclinação helenista, Reis não esconde o fato de ser um
homem posterior a esses tempos, admitindo a existência de Cristo em alguns de
seus poemas. Esse fato é o reconhecimento da cultura livresca de Reis, através da
qual ele teve acesso a essa perspectiva anacrônica de mundo.
Ricardo Reis lê os jornais. Não chega a inquietar-se com as notícias que lhe
chegam do mundo, talvez por temperamento, talvez por acreditar no senso
comum que teima em afirmar que quanto mais as desgraças se temem
menos acontecem, Se isto assim é, então o homem está condenado, por
seu próprio interesse, ao pessimismo eterno, como caminho para a
felicidade, e talvez, perseverando, atinja a imortalidade pela via do simples
medo de morrer. (SARAMAGO, 2010, p. 380)
Por vezes, passa uma sombra na fronte de Reis, qual a sombra que passa
pela fronte dos jogadores de xadrez da Ode 337, mas essa sombra nunca se revela
72
o que valeu foi ter dito uma mulher, compassiva, Coitadinhos, refere-se aos
marinheiros, mas Ricardo Reis sentiu esta doce palavra como um afago, a
mão sobre a testa ou suave correndo pelo cabelo, e entra em casa, atira-se
para cima da cama desfeita, escondeu os olhos com o antebraço para
poder chorar à vontade, lágrimas absurdas, que esta revolta não foi sua,
sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo, hei-de dizê-lo mil
vezes, que importa àquele a quem já nada importa que um perca e outro
vença. (SARAMAGO, 2010, p. 424)
5. CONCLUSÃO
No que diz respeito à relação com outros textos, foi possível afirmar que a
intertextualidade tem caráter estruturador na narrativa saramaguiana estudada. Ao
longo de todo o romance, são persistentemente citados trechos de poemas,
referenciados nomes de livros e de autores, aludidas características marcantes da
cultura literária portuguesa, parodiados versos pessoanos e imitado o gênero
jornalístico vigente em 1936.
This work of completion’s main objective has been to analyse the articulation
between literary and historic intertexts through the presence of character-writers on
José Saramago’s The Year of the Death of Ricardo Reis novel building. Specifically,
it was intented to determine which are the literary and historic intertexts and how do
they presente themselves, to relate such intertexts to the novel’s character-writers, to
analyse in what way do the literary and historic discourses articulate themselves on
the novel and to verify what is the relevance of the novel analysis under the
historiographic metafiction concept. Towards reaching such objectives, works by
authors who thematize the articulation between Literature and History has been
studied, especially the works by Hutcheon (1991) and White (1973 and 2001).
Towards gathering intertextual data and being able to analyse them, intertextuality
concept has been restraint. The intertextuality concepts that has been used on this
research are Genette’s (2010), Samoyault’s (2008) and Jenny’s (1979). The corpus
that has been submitted to the qualitative analysis is constituted by José Saramago’s
novel The Year of the Death of Ricardo Reis, from which intertextual data has been
collected and interpreted under the view of the quoted authors’ theories. It has been
conclutes that both Literature and History are deeply articulated on José Saramago’s
novel, which has been labeled historiographic metafiction, and that the intertexts are
a structurant part of that novel, employed in a questioning and desacralizing way in
relation to Portugal’s literary and historic tradition, featuring the character-writers
Fernando Pessoa and Ricardo Reis, but not limited to them.