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Resumo: O presente artigo tem como proposta, em um primeiro momento, discutir sobre as noções de
transmidialidade, narrativa transmídia e transmidiático, terminologias correntes na contemporaneidade, mas que
para a maioria dos autores da área ainda carece de maior aprofundamento teórico. Em um segundo momento, o
objetivo é refletir sobre essas conceituações a partir da narrativa Os famosos e os duendes da morte, de Ismael
Caneppele, uma história contada em livro, vídeos do Youtube e filme (por Esmir Filho), de maneira simultânea.
Com base em autores como Henry Jenkins, Carlos Alberto Scolari, Crhisty Dena e Ana Domingos, é possível
refletir sobre características transmidáticas apresentadas na narrativa, como seus personagens que se
complementam em diferentes mídias e possibilitam, assim, uma tentativa de experiência transmidiática.
Palavras-chave: Literatura. Cinema. Plataformas digitais. Transmídia.
critérios estéticos muito bons para avaliar obras que se desenvolvem através de
múltiplas mídias. Houve muito poucas histórias transmídia para os produtores de
mídia agirem com alguma certeza sobre quais seriam os melhores usos desse novo
modo de narrativa, ou para críticos e consumidores saberem como falar, com
conhecimento de causa, sobre o que funciona ou não nessas franquias (JENKINS,
2009, p. 139).
Christy Dena amplia um pouco mais as noções de Jenkins, separando aquilo que se
relaciona especificamente à construção de narrativas – ou mundos ficcionais – da
experiência de um produto transmidiático por usuários de plurimídias. A
transfiction, termo de Dena, é aquela história distribuída por múltiplas mídias, mas
que, ao contrário da narrativa transmídia, não se constitui por segmentos autônomos,
1
Não se propõe um universo rico, mas uma adaptação de uma mesma história em diversas mídias (BOURDAA,
2012, tradução própria).
e sim é uma única história que só faz sentido quando somadas as suas partes.
Simplificando, transfiction é uma ficção que se espalha por várias mídias, que
podem ser recebidas sequencial ou simultaneamente. Já a cross-media não qualifica
especificamente uma forma narrativa, mas uma produção “across media”, cuja
principal característica é a atividade de navegação, como um jogo plataforma em
que o percurso de leitura da narrativa se faz através de vários canais, conforme
Dena. O termo crossmedia já é utilizado na área de marketing desde os anos 1990
para designar aquelas produções que transmitem informações em múltiplas mídias,
desde um jogo de futebol até um espetáculo, em que, apesar das diferenças entre as
linguagens, a mensagem é a mesma (DOMINGOS, 2013, p. 162).
Dena (2009) ainda irá avançar na busca por uma tipologia sobre as narrativas
transmídias classificando-as em franquias ou múltiplas extensões de uma mesma mídia,
permitindo prolongar a narrativa original; os projetos puros, nos quais a narrativa transmídia é
pensada desde a produção; e os projetos múltiplos, que se constituem no uso de várias mídias.
Porém a autora também ressalta a dificuldade em se conceituar processos e produtos
transmídia e/ou transmidiáticos, arrolando a opinião de diferentes autores sobre o fenômeno
na atualidade, além da teoria basilar de Jenkins:
Narrative theorist Jill Walker Rettberg explores what she describes as “the emerging
form of distributed narratives” (Walker 2004, 100). “Distributed narratives,” she
explains, “can’t be experienced in a single session or in a single space” (Walker
2004, 91). Marc Ruppel observes “new structures that shatter the fixity of narrative
as a single-medium endeavor and establish instead a multiply-mediated storyworld,”
new structures that he describes as “cross-sited narratives” (Ruppel 2006). Glorianna
Davenport recognises that “narratives of the future are capable of expanding the
social engagement of audiences while offering intensive narrative immersion in a
story experience that plays out in multiple public and private venues,” and describes
them as “very distributed stories” (Davenport et al. 2000). Game theorist Jane
McGonigal focuses on “ubiquitous games,” games which (among other
characteristics) are “distributed experiences: distributed across multiple media,
platforms, locations, and times” (McGonigal 2006, 43), and which represent the
most “perceptually powerful and socially important vision for future networked
play” (McGonigal 2006, 45). Markus Montola explores “pervasive games”, games
that have “one or more salient features that expand the contractual magic circle of
play, spatially, temporally, or socially” (Montola 2009, 12) (DENA, 2009, p. 02)2.
O que se pode observar é que cada autor tenta delimitar o que pensa sobre as
narrativas transmídia de acordo com sua análise específica, dificultando – aparentemente - a
2
A teórica da narrativa Jill Walker Rettberg explora o que ela descreve como "a forma emergente de narrativas
distribuídas" (Walker 2004, 100). "Narrativas distribuídas", explica, "não podem ser experimentadas numa única
sessão ou num único espaço" (Walker 2004, 91). Marc Ruppel observa "novas estruturas que fragmentam a
fixidez da narrativa como um esforço de uma única mídia para em seu lugar estabelecer uma narrativa
multimediada" novas estruturas que ele descreve como "narrativas cruzadas" (Ruppel 2006). Glorianna
Davenport reconhece que "narrativas do futuro são capazes de expandir o engajamento social de audiências,
enquanto que oferecem narrativa de imersão intensa em uma experiência de história que se desenrola em vários
locais públicos e privados", e descreve-os como "histórias muito distribuídas" (Davenport et al., 2000). A teórica
do jogo Jane McGonigal foca seu trabalho em "jogos ubíquos", jogos que (entre outras características) são
"experiências distribuídas: distribuídas através de múltiplas mídias, plataformas, locais e tempos" (McGonigal
2006, 43), e que representam a mais "perceptível e importante visão social sobre o futuro do jogo em rede
"(McGonigal 2006, 45). Markus Montola explora "jogos imersivos", jogos que têm "um ou mais recursos que
ampliam o círculo contratual de jogo, espacial, temporal, ou socialmente" (Montola 2009, 12) (DENA, 2009,
p.02, tradução nossa).
possibilidade de se construir um postulado geral sobre o que é a transmidialidade. Fala-se em
“aparentemente”, porque para Dena essa variedade de casos transmídia não ocorre de maneira
tão caótica e indissociável assim. A autora inclusive se propõe a questionar exatamente isso:
One could easily argue that these theories are observing different phenomena. A
franchise engineered by a conglomerate has nothing to do with a collaborative
sticker novel initiated by two blokes tinkering with Word. A work manufactured for
massive profit is different to a work revealing some highly personal vision, or
altruistically endeavouring to change the world. A fiction expressed through the
cinema and console games is markedly different to a work expressed across a few
websites hosted by mates and a print-on-demand chapbook (DENA, 2009, p. 03)3.
3
Pode-se facilmente argumentar que essas teorias estão observando diferentes fenômenos. A franquia planejada
por um conglomerado não tem nada a ver com uma nova etiqueta do romance colaborativo iniciado por dois
caras mexendo no Word. Uma obra fabricada com vista a um lucro enorme é diferente de uma obra que revela
uma visão muito pessoal, ou um esforço altruístico para mudar o mundo. Uma ficção expressa por meio do
cinema e do console de jogos é marcadamente diferente a uma obra expressa através de alguns sites hospedados
por parceiros e um livro impresso sob demanda. (DENA, 2009, p.03, tradução nossa).
Na opinião de Scolari existe ainda um “caos” de teorias sobre as NTs e defende que é
preciso formular um discurso teórico mais consistente. Assim, ao realizar um apanhado
teórico sobre o tema constata-se um consenso: quase todos os autores ratificam a dificuldade
de definição do terreno da transmidialidade. Nenhuma das acepções levantadas na
contemporaneidade, bem como suas delimitações, parecem consolidar de modo definitivo o
assunto. Assim, torna-se interessante, como em algum momento refletiu Crhisty Dena, pensar
se é realmente possível e mesmo necessário ter fronteiras tão estanques no campo da
transmidialidade. Com objetos de pesquisa cada vez mais convergentes, parece aceitável que
a linha teórica a ser buscada tenha como base uma análise também plural.
Vivemos naquele lugar onde todos dormiam a mesma hora para acordar o mesmo
dia. Lá, se lá ainda existisse, seria assim. É. As estações, por mais definidas, pouco
influenciavam na intensidade real dos acontecimentos e nada contribuíam para que
alguma mudança real operasse sobre as pessoas e seus destinos. As vidas
precisando se parecer para nenhuma chamar a atenção. Alguns partiam e, quando
voltavam, se surpreendiam com a incapacidade de mudança que a cidade
conservava. Prédios antigos davam lugar a construções utilitárias, árvores eram
arrancadas para não sujar os carros e as gramas que cresciam entre os
paralelepípedos sufocavam sob grossas camadas de asfalto, mas, por dentro, todos
continuavam exatamente iguais. [...] O mundo acontecia longe demais de onde
estávamos. As pessoas repetiam que “quando você acorda, a vida já passou”. Um
mantra de negativismo que eles suportavam e repetiam até se tornar banal. Um
carma insuportável (CANEPPELE, 2010, p.09).
Nesse contexto, O personagem principal4, Bernardo, narra os sentimentos e
dificuldades de comunicação com sua mãe, seus avós, seu melhor amigo. O menino não
consegue dialogar com aqueles com os quais deveria ter intimidade, revelando o
distanciamento solitário existente entre eles e a sensação de não pertencimento ao seu lugar de
origem. Além disso, seu pai acaba de falecer, o que faz com que o clima em sua casa se torne
ainda mais difícil:
Quando ela saiu da sala e entrou na cozinha, a casa quase voltou a ser o que era
antes. O barulho da louça sob a água gelada, a cachorra correndo em volta de suas
pernas, os diálogos que ninguém respondia. Que ninguém responderia. Ele não
estava mais lá (CANEPPELE, 2010, p.07).
4
Não nomeado no livro, o adolescente ganha o nome Bernardo somente no roteiro do filme para fins de
organização. Aqui neste artigo optamos por chamá-lo de Bernardo também, para que fique mais claro descrevê-
lo.
5
Windows Live Messenger, serviço de mensagens instantâneas pela internet, extinto pela Microsoft em 15 de
março de 2013.
A falta que Bernardo sente dos dois é narrada em uma mistura de opiniões,
sentimentos e lembranças. Nesse contexto, a narrativa passa a utilizar links da internet que
levam o leitor a parar a leitura, ir até o computador e se deparar com vídeos no canal do
Youtube denominado JingleJangle (irmã de Diego), como mostram a passagem retirada do
livro e as imagens do canal:
Imagem 1:
Fonte: www.youtube.com/user/JJingleJangle
Imagem 2:
Fonte: www.youtube.com/user/JJingleJangle
Os vídeos mostram a irmã de Diego e Julian em locais no interior da cidade, todos sem
diálogo, mas com som ambiente, com uma fotografia e uma luz bastante poética. A
suavidade dos vídeos ao mesmo tempo contrasta com algumas cenas mais perturbadoras, em
que é possível perceber que os jovens brincam com questões de vida e morte, como ocorre no
vídeo abaixo, em que JingleJangle tem o rosto coberto por um plástico:
Imagem 3:
Fonte: www.youtube.com/user/JJingleJangle
Com isso, o leitor torna-se também um espectador da narrativa, tem contato com uma
linguagem híbrida e com uma proposta quase sinestésica da história. Porém, “Os famosos e os
duendes da morte” ainda explora mais uma alternativa midiática: o cinema. Mais uma vez,
entretanto, o que ocorre não é uma experiência comum, pois livro e filme foram “escritos” ao
mesmo tempo. Caneppele e Esmir Filho constroem a narrativa em conjunto, o que faz com
que a história não se encaixe em um processo de adaptação cinematográfica como se está
acostumado a ver nas relações entre literatura e cinema. Além disso, o mesmo hibridismo que
ocorre entre o texto do livro e os vídeos da internet, também é utilizado no filme.
Os vídeos linkados no livro são inseridos na narrativa cinematográfica,
complementando um processo mais amplo de significação. Em uma das cenas do filme,
Bernardo está em frente ao computador. A câmera então mostra sua navegação na internet, no
canal de JingleJangle. A tela do computador é captada em primeiro plano, enquanto o
adolescente vai abrindo fotos, fazendo com que o espectador tenha a sensação de que está
participando da navegação. Ao escolher um vídeo, Bernardo clica em iniciar e coloca em
modo tela cheia do computador. Como a câmera está com essa tela do computador em
primeiro plano e o vídeo começa a rodar, é como se esse vídeo fosse inserido dentro do filme,
gerando mais uma vez a impressão de simultâneidade das narrativas. As imagens a seguir
mostram a sequência de cenas do filme em que Bernardo navega pelo canal (Imagem 4),
escolhe um vídeo (Imagem 5) e coloca em tela cheia (Imagem 6), fazendo com que o
espectador passae a assistir ao vídeo dentro do filme:
Imagem 4:
Fonte: www.youtube.com/user/JJingleJangle
Imagem 5:
Fonte: www.youtube.com/user/JJingleJangle
Imagem 6:
Fonte: www.youtube.com
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Um processo no qual elementos essenciais de uma ficção se dispersam sistematicamente, através de múltiplos
canais de distribuição, com o objetivo de criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada
(JENKINS, 2017, tradução própria).
a pena de a história não ser compreendida. Essas características da narrativa podem ser
pensadas a partir da noção defendida por Domingos sobre narrativa transmídia, experiência
transmídia e qualidade transmidiática:
Abstract: The present article proposes, at first, to discuss the notions of transmidiality, transmedia narrative and
transmedial, current terminologies in contemporary, but which for most authors of the area it still needs
additional theoretical depth. In a second phase, the objective is to reflect on these conceptualizations in the Os
famosos e os duendes da morte, Ismael Caneppele's narrative, a story told in a book, videos on Youtube and film
(by Esmir Filho), simultaneously. Based on authors such as Henry Jenkins, Carlos Alberto Scolari, Crhisty Dena
and Ana Domingos, it is possible to reflect on the transmedia characteristics presented in the narrative, as their
characters which complement each other in different media and enable, thus a try in a transmedial experience.
Keywords: Literature. Cinema. Digital platforms. Transmedia.
Referências bibliográficas
RYAN, Marie-Laure. Transmedial storytelling and transfictionality. In: Poetics Today, v. 34,
n. 3, 2013. Disponível em: http://poeticstoday.dukejournals.org/content/34/3/361.abstract
Acesso em: 11 out. 2017.