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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo Ano 11 Nº 11 Arquivo Nacional Novembro de 2014

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Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo

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Arquivo Nacional Novembro de 2014

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PRAÇA DA REPÚBLICA, 173 – CENTRO – RIO DE JANEIRO


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FILMES / PALESTRAS / REVISTA RECINE

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Cartaz do filme Sargento


Getúlio (1983), de Hermano
Penna, baseado na obra de
João Ubaldo Ribeiro. Serviço
de Censura de Diversões
Públicas - RJ

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© 2014 by Arquivo Nacional do Brasil
Praça da República, 173
CEP 20211-350 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Tel. 55 21 2179 1286 • 55 21 2179 1253
e-mail: recine@arquivonacional.gov.br

Presidente da República
Dilma Rousseff

Ministro da Justiça
José Eduardo Cardozo

Diretor-Geral do Arquivo Nacional


Jaime Antunes da Silva

Coordenação-Geral de Acesso e Difusão Documental


Maria Aparecida Silveira Torres

Coordenadora de Pesquisa e Difusão do Acervo


Maria Elizabeth Brêa Monteiro

Editora
Renata dos Santos Ferreira

Edição, Redação e Revisão de Textos


Renata dos Santos Ferreira

Pesquisa de Imagens
Mariana Lambert

Projeto Gráfico
Alzira Reis

Diagramação
Alzira Reis • Tânia Bittencourt

Capa
Marina Lutfi / Cacumbu

Coordenação-Geral de Processamento
e Preservação do Acervo
Mauro Domingues

Coordenador de Documentos Audiovisuais e Cartográficos


Marcelo Nogueira de Siqueira

Equipe de Documentos Iconográficos


Bruno Duarte dos Santos • Luiz Claudio de Abreu Santos
• Rodrigo Cavaliere Mourelle • Sérgio Miranda de Lima
(supervisão)

Equipe de Documentos Filmográficos


Antonio Laurindo dos Santos Neto (supervisão)
• Christiane de Oliveira Pereira • Leandro Hunstock
Maria Goretti Aires Moreira

Coordenadora de Preservação do Acervo


Lúcia Saramago Peralta

Digitalização de Imagens
Adolfo Celso Galdino • Agnaldo Neves • Cícero Bispo
• Fábio Martins • Flávio Lopes (supervisão) • Janair
Magalhães • José Humberto • Rodrigo Rangel

Tratamento de Imagens
ActionItec Informação e Tecnologia

Agradecimentos
Bill Morrison • Cinemateca Brasileira/SAv/MinC •
Daniel Santos • Elfi Fenske • Eugenio Puppo e Matheus
Sundfeld (Heco Produções) • Fernando Fortes • Henrique
Dantas (Hamaca Filmes) • Ilya São Paulo • Lara Souto
Santana • Liana Farias • Lorena Garrido (Drama Filmes)
• Márcia de Abreu Jacintho • Meila Renata Quinhões
de Carvalho • Olney São Paulo Jr. • Patrick Werneck •
Samuel Alarcón • Tempo Glauber
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cine
Apresentação 4
Renata dos Santos Ferreira

Mercado editorial e novos circuitos da literatura 8


Vera Lúcia Follain de Figueiredo

Cinema e literatura 18
Gerson Noronha Filho

Os cinematographos de João do Rio 30


Aline da Silva Novaes

Borges e Santiago: uma “invasão” no cinema argentino 40


Keilla Conceição Petrin Grande

Jorge Amado, articulador das manifestações


culturais − um recorte nas artes plásticas e no cinema da Bahia 50
Benedito Veiga

Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias:


literatura, cinema, cultura popular 58
Rodrigo Cazes Costa

Literatura, cinema e história nas representações de


Nelson Pereira dos Santos e Graciliano Ramos 68
Tania Nunes David

Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo 80


Claudio Novaes

O latino-americanismo transgressivo de Glauber Rocha 92


Maria Gutierrez

Na intranquilidade do universo de Nelson Rodrigues 100


Joel Cardoso

O cinema que olha o cinema: uma breve história da


apropriação no audiovisual 110
Adriana Cursino

Gestão arquivística na era do cinema digital:


novas possibilidades, velhos desafios 118
Alessandro Ferreira Costa

Minha casa é a literatura 126


Entrevista com Marçal Aquino

Diálogos entre literatura, vídeo e cinema: a transcriação


da obra de Guimarães Rosa para o sistema audiovisual 132
Enio Luiz de Carvalho Biaggi

A perenidade de Caio Fernando Abreu:


um flanar entre cinema e literatura 142
Fabiano Grendene de Souza

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Literatura e cinema. Duas linguagens que se mis- mais leitores quando absorvem características da
turam e se completam para felicidade do leitor/ linguagem e da dinâmica cinematográfica. E estes
espectador. Nos filmes de Nelson Pereira dos são os extremos nesta discussão, no meio dela há
Santos, nos textos de Clarice Lispector e Caio diversas análises, com as mais variadas nuances,
Fernando Abreu, nas reflexões de Jorge Luis como provam os artigos publicados neste número
Borges e nos roteiros de Gabriel García Márquez da Revista REcine.
existe um casamento próximo da perfeição entre
as letras e as imagens, em que não faltam paixões, O debate torna-se ainda mais polêmico quando
suspense, drama, ironia... Como num bom livro observamos o mercado editorial. Talvez não
ou filme. Neste 11º número da Revista REcine, a vejamos no Brasil um movimento tão forte
intenção é provocar a reflexão, tentar compre- quanto nos Estados Unidos de convergências
ender como se desenvolve essa aliança entre o midiáticas envolvendo cinema e literatura. O
cinema e a literatura. best-seller com tantos milhões de leitores é capaz
de transcender fronteiras e barreiras linguísticas
Adaptar uma obra literária para o cinema signi- com maior facilidade ao se transformar em con-
fica traduzir de uma linguagem para outra, o que teúdo audiovisual, e o cânone literário supera os
pode ser um ato de libertação, pois mais do que limites da palavra escrita e se eterniza como um
mostrar-se fiel ao produto original, o cineasta pre- desfile de imagens, de astros e estrelas a serviço
cisa libertar-se da expressividade da palavra escrita da narrativa. Desde clássicos até a literatura de
no intento de contar uma história e transmitir sua autoajuda dos últimos anos, nada escapa ao gos-
mensagem em sequências de imagens. O leitor que to popular e às veias grossas do mercado, que
já elaborou em sua imaginação os cenários e os jorram milhões de dólares em lucro na venda
personagens que leu no livro talvez se incomode desses filmes, livros e outros subprodutos. Em
com a interpretação do filme à mesma trama. É suma, uma indústria auxilia a outra na meta de
natural e esperado que tal conflito aconteça, po- vender cada vez mais.
rém, deve-se analisar a questão sempre se levando
em conta que são sistemas de signos diferentes, E, enquanto sobram questões semióticas, ideoló-
meios de comunicação com características pró- gicas e filosóficas nesta discussão, a criatividade e
prias, caso contrário incorre-se no erro de avaliar o talento dão as cartas do jogo. Que sensação tem
uma obra tendo como referência formas e pe- o leitor quando assiste a uma adaptação dirigida
culiaridades que não são compartilhadas entre a por um Pasolini, um Nelson Pereira dos Santos? E
palavra escrita (o texto literário) e a imagem em o que leva um escritor como Gabriel García Mar-
movimento (o cinema). quez ou Jorge Amado a se envolver com roteiro
e produção de cinema? Talvez a resposta a estas
A discussão sobre as adaptações cinematográficas perguntas reflita um pouco sobre esse encontro
de obras literárias é um exercício estimulante, tão produtivo e bem-sucedido entre a literatura
pois abrange uma relação que, apesar das muitas e o cinema. Trata-se de uma imensa transferên-
ressalvas − a mais comum delas diz respeito à cia de ideias, interpretações, visões de mundo.
suposta perda de qualidade que um texto sofre O cineasta que se apaixona pela obra literária e
ao ser traduzido em imagens, induzindo a crer quer transformá-la num filme colocando nele sua
que o cinema estaria num patamar inferior à arte impressão particular; o escritor que absorve em
das letras −, costuma ser bastante proveitosa para seu estilo o entusiasmo pelo cinema, na forma de
ambos os lados. O que esperar do encontro entre uma narrativa dinâmica, cheia de detalhes, com
uma arte erudita e um meio de entretenimento que descrições semelhantes às que se faz em um ro-
logo no começo de sua história foi considerado teiro cinematográfico. João do Rio, já na primeira
fugaz e fadado ao esquecimento na poeira dos década do século XX, fez do livro um cinema
anos? Se o cinema ganhou respeito e credibilidade de letras, com seu Cinematographo: crônicas cariocas.
ao transpor clássicos da literatura para as telas, Não é uma operação matemática ou uma ciência
os enredos literários, por sua vez, conquistam exata, e sim fórmulas múltiplas de trabalhar uma

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Com a
cine palavra,
o cinema

narrativa, com discursos textuais e fílmicos, que cinema de Ozualdo Candeias são examinados 5
se entrelaçam, interpenetram. no artigo de Rodrigo Cazes, e Cláudio Novaes
descreve a ligação entre cinema e literatura na
A literatura nos envolve, ativa a imaginação, nos faz carreira do cineasta baiano Olney São Paulo.
construir mundos a serem explorados; o cinema, Maria Gutierrez aborda o diálogo entre o cinema
por sua vez, hipnotiza, como afirmou certa vez de Glauber Rocha e a literatura latino-americana.
Gabriel García Márquez, e o mundo ficcional do O entrevistado da vez é Marçal Aquino, um dos
filme nos engolfa, nos faz viver outra existência. escritores mais importantes da atualidade, rotei-
Na sala escura, na frente do livro aberto, as ideias rista de cinema e TV, com livros adaptados para
soam como pequenas maravilhas esperando nossa a tela grande.
descoberta: imagens, sons, letras, páginas à espera
de leitura; tudo é uma poesia que acomete os senti- Neste número também, dois artigos voltados
dos, precisa chegar às pessoas, não importa de que para a preservação audiovisual: Adriana Cursino
forma, pois todas as artes são nobres e necessárias. se dedica ao tema da apropriação no audiovisual
usando como objetos de estudo as produções
O objetivo do REcine 2014, o festival, é apresentar dos cineastas Bill Morrison e Samuel Alarcón; já
a afinidade tão vigorosa que existe entre alguns o trabalho de Alessandro Ferreira versa sobre a
literatos e o cinema, especialmente no Brasil e na gestão arquivística na era do cinema digital, assun-
América Latina. A escolha dessa abordagem temá- to premente que cada vez mais deve ser discutido
tica é inspirada no envolvimento de escritores do por pesquisadores e profissionais do da área.
nível de García Márquez, Jorge Luiz Borges, Dalton Do romance de
Trevisan, Caio Fernando Abreu e tantos outros E antes de começar esta jornada literário-cinema- Jorge Amado,
com a atividade cinematográfica, permitindo que tográfica, por que não se perguntar: quem nunca Dona Flor
e seus dois
esta linguagem influísse em seus escritos e também experimentou a sensação de assistir a um filme maridos (1976),
escrevendo roteiros e participando das adaptações baseado em uma obra literária e teve vontade de direção de
Bruno Barreto.
de seus próprios textos. Eles venceram a resistência ler o livro inspirador? Ou desejou que um livro Recordista
dos mais críticos à associação cinema-literatura, se tornasse filme? As boas histórias e os bons de bilheteria
do cinema
deram brilho e consistência à arte que ainda lutava personagens precisam se manifestar em diversos brasileiro por
para se afirmar como tal. meios, especialmente se isto implica em atingir um mais de trinta
anos. Acervo LC
público mais amplo. O mais encantador é vê-los Barreto. Arquivo
Este dossiê procura compreender alguns dos representados ou reproduzidos com arte. Nacional

diversos aspectos que envolvem a relação cinema-


literatura: Vera Follain analisa a influência do Renata dos Santos Ferreira
mercado editorial na adaptação literária para o Editora
cinema; Gerson Noronha compara as
duas artes; no artigo de Aline Novaes
nos deparamos com um cinema do
Rio de Janeiro nas crônicas de João
do Rio. A tradução para o cinema
dos escritos de Jorge Amado, Caio
Fernando Abreu, Jorge Luis Borges,
Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues
e Graciliano Ramos – este último na
interpretação de Nelson Pereira dos
Santos – recebem a atenção de Bene-
dito Veiga, Fabiano Grendene, Keilla
Petrin, Enio Biaggi, Joel Cardoso e
Tania Nunes David, respectivamente.
A literatura de Carolina de Jesus e o

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Em visita ao Brasil, o poeta


chileno Pablo Neruda (ao
centro) encontra Vinicius de
Moraes, Jorge Amado e a filha
deste, a pequena Paloma.
Novembro de 1956. Correio da
Manhã

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Vera Lúcia Follain de Figueiredo Doutora e mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professora
adjunta (associada) da PUC-Rio.

Mercado editorial
e novos circuitos da literatura

Cartaz do
filme A
primeira
noite de
um homem
(EUA, 1967),
de Mike
Nichols,
bem-sucedida
adaptação
do best-seller
de Charles
Webb.
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Serviço de
Censura de
Diversões
Públicas - RJ

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COM A
cine PALAVRA,
O CINEMA

Se o grande descentramento – aquele que seria Roger Chartier, os suportes materiais que permitem
gerado pela democratização dos meios de produção a leitura, a audição ou a visão dos textos participam
dos bens simbólicos e pela diluição das compar- profundamente da construção de seus significados:
timentalizações que definem competências – so-
nhado por intelectuais como Walter Benjamin, na Se os textos se emancipam das formas que os acompa-
primeira metade do século passado, não se realizou, nham desde os primeiros séculos da era cristã – desde
não se pode, entretanto, deixar de reconhecer que o códex, o livro composto por cadernos, do qual deri-
o mercado global e as novas mídias têm operado, vam todos os objetos impressos que nos são familiares
sobretudo a partir das três últimas décadas, deslo- – são, de fato, todas as tecnologias intelectuais, todas
camentos significativos. Nesse quadro, cinema e as operações em curso na produção de significações
literatura vêm atravessando um momento de gran- que se encontrarão modificadas.2
des mutações, em função não só das tecnologias
digitais, que, favorecendo a convergência de mídias, Na era da tecnologia digital, filmes, fotografias,
põem em xeque a especificidade de cada linguagem, textos, músicas, traduzidos em dados numéricos,
mas também da vasta expansão de uma cultura inserem-se numa rede não hierárquica de circula-
midiática de mercado, que cria zonas de indistinção, ção. Em meio a essa contínua torrente de trans-
abalando a dicotomia arte elevada/cultura de mas- formação intertextual, de textos gerando outros
sa tal como concebida pela modernidade. Como textos em um processo incessante de reciclagem, as
observou Andreas Huyssen, o consumo é cada obras literárias vêm cada vez mais desempenhando
vez mais o denominador comum de toda cultura, o papel de prototextos dos textos cinematográficos
tornando ilusões sobre a autonomia do “erudito” e televisivos. Como destacava, na década de 1980,
tão difíceis de sustentar como o sonho transgressor Umberto Eco, no lugar do choque e da frustração
das culturas das minorias.1 de expectativas, ganha terreno, na era eletrônica,
uma estética da repetição que vem minando o crité-
A convergência entre o mercado de livros e o de rio da originalidade característico da arte moderna.
produtos audiovisuais insere-se, assim, no movi- Identificada com os produtos veiculados pelos
mento mais amplo de expansão de uma estética meios de comunicação de massa, essa estética da
multimídia, que, tensionando os limites de cada serialidade implica a ideia de infinitude do texto,
arte, amplia as zonas de interseção entre os diver- cuja variabilidade se converteria em prazer estético.3
sos campos artísticos. Classificações e paradigmas
de valor consagrados na esfera literária são, então, A literatura entra nesse circuito e o alimenta, mas
postos em xeque diante do fenômeno de uma “li- sem a proeminência de outrora, pois sua distância
teratura hipermídia”, já que, conforme assinalou em relação a outros tipos de textos, anteriormente

1 HUYSSEN, Andreas. Literatura e cultura no contexto global. In: VILELA, Lúcia Helena; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Valores:
arte, mercado, política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p. 37.
2 CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na Época Moderna – séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2002. p. 91.
3 ECO, Umberto. Sobre espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 110.

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

rotulados como não literários, torna-se menor, ou, livros. Pequenos filmes, de cerca de dois minutos,
dizendo de outra forma, as fronteiras do campo exibidos na internet, em sites, blogs de editoras e
literário se distendem para abarcar textos que se si- até no cinema, são usados como trailers de livros:
tuam na interseção entre artes diversas, difundidos no cinema, procura-se exibi-los antes de filmes
por diferentes meios, suscitando novas práticas de que tenham alguma afinidade com a obra. O book
leitura. Assim, o lugar tradicionalmente ocupado trailer serve de chamariz para o texto, substituindo
por ela na cultura ocidental moderna vem sendo resenha e publicidade escritas nos moldes tradi-
alterado não só pelos imperativos da razão mer- cionais, como se as palavras impressas fossem
cantil, mas também pela interação da velha tecno- insuficientes para atrair leitores, que necessitariam
logia da escrita com as mais recentes tecnologias de estímulos audiovisuais. Em diferentes formatos,
disponíveis. de acordo com o tipo de livro que apresentam, os
book trailers podem mostrar, por exemplo, cenas
Já nos anos 60 do século passado, McLuhan chamava do autor lendo trechos selecionados, intercaladas
a atenção para o fenômeno de interpenetração entre com imagens de arquivo, como costuma acontecer
diferentes mídias, destacando que, para a indústria com livros de historiografia. Outras vezes, ouve-
cinematográfica hollywoodiana, um best-seller era se a poesia de um escritor consagrado na voz de
como um “jorro de petróleo ou indício de ouro”,4 um poeta com maior visibilidade midiática, de um
isto é, os banqueiros de Hollywood farejavam, neste ator ou cantor, enquanto imagens alusivas à obra
tipo de livro, grandes lucros para o cinema, uma ou à vida do autor do texto recitado são exibidas.
garantia de sucesso de bilheteria. Além de já ter sido Quando se trata de livros de ficção, o trailer busca
aprovado pelo gosto popular, o best-seller ainda em- sintetizar visualmente o enredo dessas narrativas:6
prestaria ao meio cinematográfico a “superioridade quase sempre conta com trilha sonora e é estrelado
do meio livresco”. Ao longo da segunda metade do por atores, aproximando-se dos trailers de filmes.
século XX, entretanto, como assinalamos em obra Há, no entanto, exceções, como o caso do romance
anterior,5 acentua-se o movimento inverso a este, isto Leite derramado, de Chico Buarque: neste book trailer,
é, o mercado editorial esforça-se para criar best-sellers por cinco minutos, o autor, em primeiro plano, lê
a partir das telas. A visibilidade da obra literária vai se algumas páginas do livro – a câmera só se desloca
tornando tributária do fato de ter sido tomada como da imagem do escritor para aproximar-se das pá-
texto-base para um filme. A ideia é que se chegue à ginas que estão sendo lidas, voltando em seguida
literatura por intermédio de sua versão audiovisual para o autor.
– esta ganha o status de obra final, enquanto o texto
literário, visto por esse ângulo, tende a ocupar o lugar O propósito de atrair o leitor/espectador eviden-
do argumento, do texto realizado para dar origem temente não se esgota nos book trailers. O mercado
a um filme e que será lido a partir da mediação do editorial tem investido também na publicação de
espetáculo fílmico. Esse movimento não se restringe roteiros e de histórias de realização de filmes, isto
somente ao caso de reedição de obras que foram é, de relatos das etapas de elaboração de uma obra
filmadas, colocando-se, na capa, fotos do filme, cinematográfica concluída, assim como de obras
como tática de sedução para a compra do livro, mas híbridas nas quais se reúne material variado como
dá lugar a uma série de outras estratégias que visam fotos, entrevistas, depoimentos, críticas e, às vezes,
diluir as fronteiras entre as duas esferas de produção. o próprio roteiro. Essas edições, que, pelo próprio
apelo visual do projeto gráfico, não parecem ter um
Dentre estas estratégias, está a recente utilização, objetivo apenas didático, tiram partido da popula-
pelas editoras, dos meios audiovisuais para divulgar ridade do audiovisual e do prestígio remanescente

4 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 74.
5 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: PUC-Rio; 7 Letras, 2010. p. 44.
6 A título de exemplo, pode-se citar o trailer realizado para ser exibido nos cinemas como peça promocional do livro A guerra dos bastardos,
de Ana Paula Maia, lançado pela Língua Geral, em 2007.

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Com a
cine palavra,
o cinema

11
11

Laranja
mecânica
(EUA/Inglaterra,
1971), dirigido
por Stanley
Kubrick: o
filme garantiu
o sucesso nas
vendas do livro
de Anthony
Burgess,
lançado pela
primeira vez em
1962. Serviço
de Censura
de Diversões
Públicas - RJ
BR_RJANRIO_TN_0_CAZ_019

da cultura livresca, movimentando o mercado Se o espectador adora virar “leitor de filmes”, como
editorial. O livro serve de suporte para narrativas afirmou Sylvio Back, pode-se dizer também que o
relacionadas à fase pré-filme, cumprindo, em certa leitor cada vez mais vai se tornando “espectador
medida, função semelhante a do extra do DVD que de livros”. Isto porque, buscando fazer uma lite-
apresenta o making off da obra cinematográfica: com ratura para ser lida como um filme, mais até do
a diferença de que sua associação com a cultura ele- que para ser filmada, escritores utilizam tópicos da
vada agrega valor ao conteúdo. Na mesma direção, cultura audiovisual como mediação entre o texto e
a ampliação da publicação dos roteiros tem fortale- o leitor, evocando o mundo das imagens técnicas
cido a ideia, defendida por alguns profissionais do como forma de estabelecer uma base comum que
cinema, de que estes constituem um novo gênero favoreça o deslizamento do universo literário para
narrativo, capaz de despertar o interesse do leitor o mundo das narrativas audiovisuais. Assim, a fic-
comum, não especializado. Para o cineasta brasilei- ção literária contemporânea, ao mesmo tempo em
ro Sylvio Back, por exemplo, “o espectador adora que questiona o regime de visibilidade instaurado
virar ‘leitor de um filme’, da linguagem e carpintaria pelas imagens tecnológicas, sua insuficiência para
do roteiro, como se ali encontrasse algum mistério representar a realidade, seu caráter de mercadoria,
revelado no que viu ou no que verá na tela, o que procura aproximar o texto desse mesmo regime de
transforma, sim, o roteiro de cinema num gênero”.7 visibilidade. Acrescente-se que, além do fato de, por

7 Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 24 jan. 2009.

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_03556_021
Correio da vezes, o escritor já escrever de olho na tela, ou seja, atores. O filme Os famosos e os duendes da morte,
Manhã
procurando formatar o texto para facilitar futuras por exemplo, resultou do trabalho conjunto
adaptações, aproximando-o do roteiro, o espaço realizado pelo diretor Esmir Filho e o escritor
de tempo entre a publicação do livro e sua adap- Ismael Canappele. O primeiro, ao ler o esboço
tação para o cinema reduziu-se significativamente. do romance de Ismael Canappele, identificou-se
Essa aproximação entre os dois campos, que deixa com a história e decidiu filmá-la. Não se trata,
marcas na escritura, é estimulada pelo mercado de portanto, de uma adaptação no sentido que co-
bens culturais que, cada vez mais, trabalha com o mumente se atribui a esse termo, uma vez que o
reaproveitamento das matérias ficcionais disponí- roteiro e a forma final do livro nasceram juntos.
veis, distribuindo-as por plataformas diversas, o que Trata-se de uma criação compartilhada: o livro,
fica evidente no caso das narrativas transmidiáticas, ainda em fase de finalização, foi influenciado pelo
cujo processo de criação prevê, desde seu ponto de próprio desenvolvimento do filme. Surgiram,
partida, a circulação das obras em suportes diferen- simultaneamente, o filme de um livro e o livro de
tes, como o livro e a tela do cinema ou da televisão. um filme (publicado pela Iluminuras). Canappele
assinou o argumento junto com o diretor e fez
Nesse contexto, a parceria entre escritores e cine- uma participação no filme, que conquistou o
astas brasileiros, numa espécie de colaboração Troféu Redentor, como melhor longa de ficção
que transcende as fronteiras de cada campo, tem do Festival do Rio de 2009.
sido frequente, daí a presença de escritores no
set de filmagem de suas obras, colaborando es- Também Lourenço Mutarelli atuou como ator
treitamente com diretores e roteiristas, podendo na adaptação de seu romance O cheiro do ralo, re-
ocorrer, inclusive, que os escritores atuem como alizada por Heitor Dhalia (2007), e na adaptação

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Com a
cine palavra,
o cinema

de Natimorto por Paulo Machline (2011). Aliás, locais determinados pelos editores. O personagem 13
após o filme, o livro O cheiro do ralo ganhou uma do diretor no universo ficcional exige que o filme
sobrecapa com foto e texto de Selton Melo, ator de Eugênio seja sobre um escritor, em crise cria-
que encarna o personagem principal. Ressalte-se, tiva, que se lança em um projeto de escrever um
ainda, a seguinte declaração de Lourenço Mutarelli, roteiro para um filme. Por outro lado, o diretor
em entrevista: “Não sei se vou reler O cheiro do ralo também exige que o enredo tenha muita ação e
algum dia, mas se reler, imaginarei o Selton Mello inclua mulheres. Como se vê na passagem abaixo,
na história.”8 Em outra entrevista, afirma: cita como exemplo do que deseja o filme Adapta-
tion (EUA, 2002), de Spike Jonze, com roteiro de
Eu quero que quem me adapte tenha liberdade, pois Charles Kaufman:
uma outra mídia não me compromete. É diferente de
uma peça de teatro. Na peça tem o seu nome como - E toda história deve se passar no interior do hotel?
autor. Se alguém muda o final da peça, como fizeram, - Isso, desse hotel. Porque nós conhecemos o dono e
você se queima como autor. Mas, no filme, o pessoal ele vai deixar a gente rodar o filme aqui, na faixa. Isso
faz o que quiser.9 nos economiza um montão de dinheiro.
- Eugênio, você viu Adaptation?
O caso de Lourenço Mutarelli, cuja carreira como - Não, não vi.
escritor foi impulsionada a partir do momento - Porra Eugênio, que tipo de roteirista você quer ser
em que O cheiro do ralo chegou às telas de cinema, se você não vai ao cinema?
torna-se, desse modo, exemplar para a reflexão - Eu não sei se quero ser roteirista.
que aqui se desenvolve. Depois de O cheiro do ralo, - [...] E ele precisa inserir um pouco de favela, diga
publicado em 2002, dois de seus romances – Jesus isso a ele.
Kid (2004) e Miguel e os demônios ou Nas delícias da - Favela?
desgraça (2009) – foram escritos sob encomenda - É favela. Isso ajuda na captação.
para virar filmes. - Mas como eu vou inserir favela em uma história que
se passa, toda, dentro de um hotel?
Talvez por isso o romance Jesus Kid constitua-se - Porra nós vamos ter que arrumar um DVD do
numa crítica tão ácida à submissão dos escritores Adaptation.
aos interesses da indústria cinematográfica e do - Adaptation?
mercado editorial. O livro nasceu de uma solici- - Cara, nesse filme, o cara bota todos os ingredientes
tação do diretor Heitor Dhalia, que necessitava hollywoodianos numa história que fala de orquídeas.
de um roteiro para um filme de baixo orçamento. É mole?!10
Mutarelli aceitou a encomenda, mas escreveu um
romance para ser adaptado e não um roteiro. Neste Criando um enredo em abismo, que espelha de
romance, o personagem principal, chamado Eugê- maneira caricatural a sua própria situação, Lourenço
nio, é um escritor de livros de entretenimento, que, Mutarelli, em Jesus Kid, chama a atenção para uma
necessitado de dinheiro para pagar contas, aceita a série de questões que tensionam a escrita literária
proposta de um produtor e de um diretor de cinema quando esta já nasce comprometida com a produção
para escrever o roteiro de um filme. O contrato audiovisual. Destaca o fato de problemas financei-
obriga Eugênio a escrever o roteiro num hotel, ros característicos do cinema acabarem por impor
onde deverá ficar por três meses, sem poder sair, restrições temáticas aos romances ou determinarem
fazendo lembrar tanto a situação dos participantes a escolha de temas que facilitam a captação de recur-
de reality shows quanto de alguns projetos editoriais sos, como os de cunho social, que, na versão “filme
que implicam o deslocamento dos escritores para de favela”, constituíram um gênero bastante explo-

8 Disponível no site G1: <http//g1.globo.com>. Consulta em: 14 out. 2009.


9 Disponível no site Empirical Empire: <http//stulzer.net>. Consulta em: 14 out. 2009.
10 MUTARELLI, Lourenço. Jesus Kid. São Paulo: Devir, 2004. p. 64.

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

rado pelo que se convencionou chamar de Cinema além da intriga – “uma dimensão metalinguística
de Retomada. Assinala, ainda, a preocupação com e reflexiva, reforçada por inúmeras citações, que
o sucesso de bilheteria, que induz à utilização de permite a um outro tipo de leitor contemplar, de
fórmulas garantidas de sucesso, como a mistura de maneira distanciada as estratégias narrativas que
ingredientes das narrativas de entretenimento com criam o fascínio na primeira dimensão”.11 Por esse
uma dose certa de metalinguagem. Como Heitor caminho, já trilhado, na literatura, por escritores
Dhalia observou no prefácio do livro, nada esca- como Manuel Puig, e, no cinema, dentre outros, por
pou à ironia de Mutarelli, voltada sobretudo para o Pedro Almodóvar e QuentinTarantino, coloca-se
cinema: o romance aponta de maneira cortante “as em primeiro plano as convenções e os esquematis-
fraquezas, mesquinharias e ambições mal disfarça- mos que evidenciam a opacidade do jogo narrativo:
das da atividade cinematográfica, que mescla arte e combate-se, assim, a própria ilusão de transparência
dinheiro, como nenhuma outra”. engendrada pelas imagens técnicas ao ocultarem o
trabalho da sua produção.
Em Jesus Kid, os clichês das narrativas de entrete-
nimento tornam-se o próprio objeto da represen- Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça, livro
tação, isto é, o livro encena um tipo de encenação, do mesmo autor, posterior a Jesus Kid, escrito por
dobra-se sobre o discurso da cultura de massa e encomenda do cineasta Tadeu Jungle, assume-se,
o estiliza, exibindo seus artifícios com o objetivo sem críticas explícitas, como um texto pré-filme,
de exauri-los. Representando representações, o sendo pontuado por indicações que remetem
romance constitui-se numa narrativa em segundo para a esfera cinematográfica, como a que inicia
grau, já que procura evidenciar os mecanismos o texto – “tela branca” –, além de referências a
de fabricação das histórias estereotipadas que se posicionamentos de câmera que enquadrariam
alimentam da repetição dos esquemas genéricos. a cena narrada, como ocorre, por exemplo, na
Absorve de maneira explícita e excessiva vários passagem: “A câmera se afasta, revelando a mosca
clichês, chamando a atenção para a retórica repe- que se debate contra o para-brisa.” Tais indicações
titiva e vazia que preside os produtos submetidos constituiriam um recurso tanto para orientar os
a interesses puramente mercadológicos. Ao utilizar integrantes de uma equipe de filmagem, quanto
de maneira crítica esses mesmos recursos, não para seduzir o leitor comum, familiarizado com a
abdica, entretanto, do propósito de seduzir um linguagem do audiovisual. Acrescente-se que, além
público mais amplo proporcionando-lhe o prazer da mixagem de ingredientes formais e temáticos
do reconhecimento do que lhe é familiar. Assim, o de gêneros narrativos populares, como o romance
romance/roteiro não deixa também de se alinhar policial e o filme de ação, predominam, em Miguel
com o modelo proposto – o mencionado filme e os demônios, formas verbais no presente e frases
Adaptation, no qual reflexões sobre a relação entre nominais – recursos que tendem a presentificar as
literatura, cinema e mercado cruzam-se com peri- cenas narradas, como ocorre no cinema. Leia-se,
pécias típicas dos filmes de ação. a título de exemplo, o seguinte trecho:

O artifício utilizado por Mutarelli – a mistura de Calor infernal. Dezembro. Interior de um Fiat Uno
ingredientes das narrativas de entretenimento com branco modelo 94. Rua Domingos de Morais, Vila
uma certa dose de metalinguagem – constitui-se Mariana. Fachadas se alternam. Pequenas lojas,
numa convenção narrativa dominante em nossa pequenas portas, prédios comerciais e residenciais.
época pouco afeita às radicalidades e às rupturas. Blocos de três ou quatro andares. Papai Noel por toda
Como observado anteriormente, preserva-se o parte. Múltiplo. Ubíquo. Papai de plástico, papai de
enredo, satisfazendo aquele leitor que busca se gesso, papai de papelão. Postes e molduras cobertos
divertir com a intriga, mas também se oferece algo de lampadinhas. Pisca-pisca.12

11 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de, op. cit., p. 43.


12 MUTARELLI, Lourenço. Miguel e os demônios ou Nas delícias da desgraça. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 6.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Como se pode perceber, a estreita relação entre a reais, é representado pela voz de um narrador, que
15
obra literária e o campo do audiovisual, na atuali- analisa a relação dos atores Gustavo Machado e
dade, se manifesta em diferentes níveis. Um caso Marina Previato. Segundo Beto Brant, não havia
bastante significativo é o diálogo constante travado uma dramaturgia previamente escrita. Diz o diretor:
entre o cineasta Beto Brant e a literatura de Marçal
Aquino. Para citar apenas um exemplo mais recen- A gente criou uma regra: contaminar o menos
te, o diretor, que adaptou o livro Eu receberia as piores possível. Saíssem quando quisessem, limpassem o
notícias dos seus lindos lábios, de autoria de Aquino, apartamento. E eu me comunicava com e-mails,
para o cinema, produziu uma série de televisão em torpedos, que era uma forma de manter contato sem
quatro episódios – que depois também virou um contaminar. E de brincar mesmo! Eu estava em outro
filme – partindo de um personagem secundário do apartamento, com joysticks, com oito câmeras, como
romance: o psicanalista Benjamim Schianberg. A se fosse um game mesmo, buscando enquadramento
série, realizada a convite da TV Cultura e do Sesc e olhares, flagrando detalhes que acrescentassem
TV, acompanhou a construção do relacionamento significados no filme. Eu era o próprio Schianberg!13
amoroso entre um ator e uma artista plástica, no
interior de um apartamento, onde, durante três Desse modo, o personagem do livro de Marçal Aqui-
semanas, aconteceram os encontros do casal. A no deu origem a uma outra narrativa que se realizou
proposta envolvia a instalação de câmeras no de forma aberta, incorporando os elementos do
apartamento, como num reality show, com o dife- dia a dia dos atores às tramas propostas no roteiro.
rencial de que os atores não estariam confinados. A ficção de Aquino serviu, assim, de inspiração
Na narrativa audiovisual, Schianberg, personagem para uma obra que dilui os contornos entre a peça
cujo principal interesse é refletir sobre o compor- ficcional e o documentário. Beto Brant estabeleceu
tamento amoroso tendo como base observações um diálogo com o modelo televisivo dos reality shows,

Gustavo Machado
e Camila Pitanga no
filme de Beto Brant
e Renato Ciasca,
Eu receberia as
piores notícias de
seus lindos lábios
(2012), baseado no
romance de Marçal
Aquino. Divulgação
Drama Filmes

13 Disponível no site Terra Magazine: <http//terramagazine.terra.com.br>. Consulta em: 23 fev. 2010.

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Mercado editorial e novos circuitos da literatura

tendo como mediação o personagem de Eu receberia a partir de um molde que lhe foi proposto pelo
as piores notícias dos seus lindos lábios. Encontra-se aí editor, ou seja, concordam em partir da repetição
mais uma vez um exemplo do esforço empreendido de um esquema básico para engendrar o novo. O
pelos artistas no sentido de extrair potência inventiva editor assume, então, de forma explícita, o seu
de lugares-comuns temáticos e formais oriundos da papel como instância de mediação institucional
cultura massiva, dobrando-se sobre ela e, por vezes, entre o escritor e o mercado – mediação externa
tomando para si a tarefa de comentá-la. à obra, mas que vai afetar a maneira como o autor
se relaciona com a sua escritura.
Como o triunfo dos meios eletrônicos coincide com
a penetração capilar do mercado em cada esfera da Além disso, a sinergia entre mercado editorial e
produção cultural, a literatura contemporânea tenta diferentes meios de comunicação de massa tem
se equilibrar não só entre o texto e a imagem, mas se acentuado, como demonstra a pesquisa sobre
também entre o campo da arte tal como instituído a produção editorial brasileira na década de 1990,
pela modernidade, com sua pressuposta autonomia, realizada por Sandra Reimão (2001).15 De acordo
e o do mercado de bens simbólicos, com suas exigên- com o levantamento feito pela autora, é relevante,
cias de ordem econômica. Se a autonomia da arte, na listagem dos livros mais vendidos nesse período,
como afirmou Andreas Huyssen, foi sempre mais o aumento do número de obras cujos autores man-
um ideal a alcançar do que uma situação conquistada, têm atividades regulares nos meios de comunicação
havendo sempre o perigo de desestabilização das de massa ou tiveram seus livros adaptados pela
fronteiras entre alta e baixa cultura, a diferença do televisão. Nesse sentido, é digno de nota que os dois
quadro atual para o do passado está no deslizamento primeiros volumes publicados da coleção Devorando
da narrativa de ficção de gosto popular, do suporte Shakespeare, lançada em 2005 pela Editora Objetiva,
impresso do jornal, na forma de folhetim, para as são de autoria de Jorge Furtado, mais conhecido
telas. Por isso, para o escritor argentino Ricardo Pi- pela sua atuação como diretor de cinema, e de Luís
glia, a novela do século XIX está hoje no cinema, e Fernando Veríssimo, consagrado em função das
o roteirista seria uma espécie de versão moderna do crônicas veiculadas no jornal. O projeto da coleção,
escritor de folhetins, porque escreve por encomenda que previa a publicação de uma série de romances
e por dinheiro e a toda velocidade uma história para escritos por autores de renome, tendo como ins-
um público bem preciso que está encarnado no piração comédias de Shakespeare, foi inaugurado
produtor ou no diretor ou nos dois.14 com livros escritos por profissionais do cinema e do
jornalismo. Dessa forma, o mais popular – jornal
A favor da afirmação de Piglia está o fato de muitos e cinema – serviu de mediação entre o público e a
escritores serem, hoje, profissionais multimídia, narrativa literária, que, por sua vez, deveria fazer a
escrevendo roteiros para cinema e televisão, para- ponte entre o leitor e o clássico teatral.
lelamente à sua atividade como autores de obras
literárias publicadas em livros. Estas últimas, al- As motivações econômicas da aproximação da lite-
gumas vezes, resultam da encomenda de editores, ratura com o campo das mídias audiovisuais são por
integrando coleções. Ao aceitarem escrever por en- demais conhecidas. Para o mercado de bens cultu-
comenda, esses escritores estão afirmando o caráter rais, o reaproveitamento das matérias ficcionais e sua
profissional de sua atividade no campo da literatura distribuição por múltiplas plataformas constituem
e, portanto, contrapondo-se à premissa de que a uma estratégia para maximizar os lucros. A indústria
verdadeira arte seria uma atividade desinteressada, do entretenimento, sem dúvida, vem estimulando
incompatível com a ideia de remuneração. Reagem a produção de narrativas transmidiáticas: nestas, a
positivamente ao fato de terem de criar seus textos intriga deve estar estruturada de forma a estimular

14 PIGLIA, Ricardo. Crítica y ficción. Buenos Aires: Planeta Argentina; Seix Barral, 2000. p. 30.
15 REIMÃO, Sandra. Os best-sellers de ficção no Brasil, 1990-2000. In: JORGE, Carlos J.F.; ZURBACH, Christine (Org.). Estudos lite-
rários/Estudos culturais. Évora: Universidade de Évora, 2001.

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Com a
cine palavra,
o cinema

a visita do espectador às diferentes mídias, sendo que o produto se destina. Nesse contexto, o papel
17
que, cada meio, com sua especificidade, contribui da crítica talvez não seja o de culpabilizar os escrito-
para o desdobramento da história, isto é, não se trata res, mas de pensar as consequências, para o campo
de uma simples transposição de suporte.16 Projetos literário, dos deslizamentos promovidos pelos no-
editoriais, como a coleção Amores expressos, cuja ideia vos circuitos, à luz do papel exercido pelo mercado
foi lançada em 2007 pela RT Features acompanhada como grande mediador da cultura. Caberia indagar
pela Editora Companhia das Letras, pressupõem, se os parâmetros de valoração criados a partir da
logo de início, a transposição dos romances para arte modernista ainda são adequados quando se
as telas, além da realização de um documentário trata de avaliar a literatura produzida nesse cenário,
sobre a estada dos escritores nas cidades para onde se devemos julgá-la a partir dos critérios oriundos
foram enviados para escrever os romances, e dos da estética do choque, da ruptura, da originalidade.
blogs, nos quais estes escritores registrariam, dia a dia, Cânones modernistas, formulados há um século,
verbalmente e através de fotografias, as experiências são adequados para pensar a arte contemporânea?
vividas a partir da participação no projeto. Dezesseis Os paradigmas estéticos modernistas não seriam
autores brasileiros viajaram cada um para uma cidade datados historicamente, sendo frutos de uma época
diferente do mundo, de Nova York a Xangai, em marcada pelo surgimento das metrópoles e pelos
busca de inspiração para uma história de amor. Os avanços dos meios de produção cultural ocorridos
documentários com os autores foram veiculados a partir do final do século XIX – fotografia, cinema,
pela TV Cultura, em 2011, em formato de vinte técnicas de reprodução e gravação? Por outro lado,
minutos, tendo sido realizados também book trailers não seria o caso de considerar também as perma-
para cada lançamento, além das entrevistas de que nências, isto é, de pensar como a criação artística da
participaram os autores envolvidos. A expectativa atualidade absorveu aspectos da poética modernista?
do produtor Rodrigo Teixeira era de que os livros
se prestassem a adaptações cinematográficas – em Assim, se as vanguardas morreram como utopia,
caso positivo, cada autor receberia dez mil reais pelos muitos de seus princípios estéticos regem a pro-
direitos audiovisuais de seu romance.17 Em 2013, dução ampliada do mercado, ainda que perdendo
segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo, a iconoclastia, a negatividade. Como observou Lev
estava sendo preparada a adaptação para o cinema Manovich, as técnicas, como a montagem disjuntiva
de Cordilheira, de Daniel Galera, e de O filho da mãe, ou a colagem de materiais de procedência diversa,
de Bernardo Carvalho. inventadas pelas vanguardas dos anos 1920, com
o propósito de promover uma inovação estética
Como se pode perceber, trata-se, no caso da lite- radical, se converteram em operações básicas e roti-
ratura, de um esforço para adaptar-se aos novos neiras na era do computador.18 É, então, importante
tempos, em que os textos literários circulam no lembrar que uma das bandeiras das vanguardas
interior de uma ampla rede de bens simbólicos, históricas era a confluência, a integração do que
desfazendo-se antigas hierarquias, ao mesmo tempo se havia considerado artes diferentes – o que, em
em que o mercado, seguindo a lógica comercial, cria certa medida, vem sendo viabilizado pelo avanço
segmentações de acordo com o tipo de público a das tecnologias da comunicação.19

16 JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.


17 A Companhia das Letras editou até agora dez livros: Cordilheira, de Daniel Galera; O filho da mãe, de Bernardo Carvalho; O único final
feliz para uma história de amor é um acidente, de João Paulo Cuenca; Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato; Do fundo do poço se vê a
lua, de Joca Reineirs Terron; Nunca vai embora, de Chico Mattoso; O livro de Praga – narrativas de amor e arte, de Sérgio Sant’Anna; Barreira,
de Amilcar Bettega; Ithaca Road, de Paulo Scott; Digam a Satã que o recado foi entendido, de Daniel Pellizzari.
18 MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e ideia: dez definições. In: LEÃO, Lúcia (Org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões
sobre as novas mídias. São Paulo: Senac, 2005.
19 Outras referências bibliográficas: Aquino, Marçal. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. São Paulo: Companhia das Letras,
2005; FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2003; MUTARELLI, Lourenço. O cheiro do ralo. São Paulo: Devir, 2002.

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Gerson Noronha Filho Doutor pela Johns Hopkins University. Psicanalista, escritor, professor da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e servidor do Arquivo Nacional.

Cinema e literatura

“ É sempre assim: os gregos e troianos se degolam.


Gerson Noronha Filho ”
“ Just when we are safest, there is a sunset-touch, someone’s death.

Robert Browning

“ A plumagem colorida das aves brilha também quando ninguém a olha.


G.W.F. Hegel”
“ A certeza de que não se chega nunca lá é a presença desta agitação perpétua.
Gerson Noronha Filho ”
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Morte em Veneza (Death in Venice, 1971), filme de Luchino


Visconti baseado na novela de Thomas Mann. Correio da Manhã

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Com a
O clássico E o vento cine palavra,

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levou (Gone with the o cinema
wind, 1939), de Victor
Fleming, em cartaz no
Cine Ópera, no Rio de
Janeiro, em 1972. O
roteiro, originado do
best-seller de Margaret 19
Mitchell, contou com
a colaboração dos
escritores F. Scott
Fitzgerald e William
Faulkner. Correio da
Manhã

Introibo ad altare Carregamos uma tradição já milenar de escrita, mas


é consenso, hoje (século XXI), que vivemos mais
A necessidade de narrativas remonta aos primórdios numa civilização de imagens, a maioria coloridas e
da civilização, quando os homens se reuniam em sonorizadas. As narrativas e os filmes são artefatos
torno de fogueiras para que alguém (um artista) lhes (Adorno)5 estratégicos da indústria cultural ocu-
contasse um relato de viagem, uma história, uma pando a mesma importância da TV, do rádio, da
aventura, um fato real ou imaginário (uma mentira), música (popular e erudita), dos jogos eletrônicos
ou uma tradição, um costume, uma moral, uma (mais voltados para crianças e adolescentes) e do
lei do grupo ou dos inimigos. Já o cinema é uma teatro. Business mais interessados em oferecer esca-
necessidade recente (início de século XX), invenção pismo, anestesia, diversão e beleza do que verdades
(teatro elétrico) construída com imagens em movi- e reflexões. Soft power concebido e condenado a
mento, num trabalho de equipe, onde um cineasta vigiar, amedrontar, racionar e punir os excessos de
comanda o work, mas depende de um número de produção de artefatos críticos.
pessoas que intermediam e vigiam sua criatividade
e liberdade. As narrativas são o produto de um esforço indivi-
dual e de uma cadeia de agentes de leitura, revisão,
O escritor de narrativas trabalha só, o que lhe tradução, propaganda, impressão, distribuição e
confere espaço para voos altos e pouco risco de venda. O filme é o produto de um esforço cole-
represálias de seu entorno. Muito raramente uma tivo com uma divisão de trabalho complexa. O
narrativa (um romance, por exemplo) tem as quatro operation, o proceder, a práxis eficaz de ambas as artes
coisas básicas de uma estrutura de roteiro (Seger)1 (cinema e literatura) é alcançar o maior número
que são: (1) um final, (2) um início (3) um Ponto de consumidores, certeza de remuneração justa
de Virada I e (4) um Ponto de Virada II. Mas é para proprietários de direitos e investidores. As
evidente que, já há um tempo, as narrativas estão suas incoerências (Diegues)6 e as suas estranhezas
contaminadas pelos conteúdos e pelas formas dificultam sua cognoscibilidade (Bourdieu)7 para a
cinematográficas (Cortázar, Padura, Pynchon)2 e alegria da academia e dos críticos. Perturbação (Esto-
a relação entre as duas artes é de tensão criativa e rung) hermenêutica representada por aquelas frases
de mútuas ansiedades (Bloom)3 e influências (Field).4 de Alan, “ninguém pensa o que quer” (Sartre),8 e

1 SEGER, Linda. A arte da adaptação: como transformar fatos e ficção em filme. São Paulo: Bossa Nova, 2007.
2 CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970; PADURA, Leonardo. O homem que amava os cachorros.
São Paulo: Boitempo, 2013; PYNCHON, Thomas. Mason & Dixon. New York: Henry Holt and Company, 1997.
3 BLOOM, Harold. The anxiety of influence: a theory of poetry. London: Oxford University Press, 1975; ______. The Western Canon.
New York: Harcourt Brace & Company, 1994.
4 FIELD, Syd. Os exercícios do roteirista. Rio de Janeiro: Objetiva, 1984.
5 ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2006.
6 DIEGUES, Cacá. A coerência não é uma virtude artística. Folha de São Paulo, 28 jul. 2014. Ilustrada, p. E1.
7 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
8 SARTRE, Jean Paul. La nausea. Paris: Gallimard, 1938; ______. Qu’est-ce que la littérature. Paris: Gallimard, 1948; ______. A imaginação.
Porto Alegre: L&PM, 2009.

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Cinema e literatura

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_03916_1079

Helena Ignez e
Paulo José em
O padre e a
moça (1965), de
Joaquim Pedro
de Andrade,
inspirado
em poema
homônimo
de Carlos
Drummond
de Andrade.
Correio da
Manhã

aquela de Flaubert, “ninguém escreve o que quer” um contexto econômico-cultural de domínio do


(sejam livros ou roteiros). Frases que também se show (Debord),9 do consumismo (Baudrillard)10
aplicam ao cinema: ninguém filma o que quer. e da medianidade (Marx). Nesta adolescência,
o cinema, como Narciso, apaixona-se por seus
O cinema, desde os seus primórdios, buscou sem- lucros, seu impacto na cultura e a iconização dos
pre ora uma reprodução da realidade, ora a revelação seus heróis (filmes, diretores, atores e atrizes). A
da violência, do amor, da incomunicabilidade, competição planetária crescente em um mundo
do suspense, da magia, do sonho, da fantasia, do menos bipolar (USA x URSS) diluirá estes apai-
absurdo e do fantástico presente na vida cotidia- xonamentos sem alterar o desequilíbrio de forças
na. A dialética, entre o real e a imaginação. Esta entre o cinema central e o cinema periférico.
polaridade mítica e estrutural já está lá nos filmes Nestes anos iniciais (até a década de 1950), o
de Lumière (documental) e Méliès (fantasia), e cinema ainda não é considerado como uma arte,
na relação dialética entre o cinema e a literatura. muito menos uma linguagem (Betton).11 Só com
A explosão da construção de salas de espetáculo os ensaios de Cocteau, Bazin, Deleuze ele alcança
pelo mundo, a partir dos anos 1920-50, período esta posição. Uma arte e uma linguagem que diz
de maior expansão do soft power norte-americano, sem discorrer, mostra sem demonstrar e conta
desencadeia uma feroz busca de caminhos lucra- histórias sem mergulhar nelas. Uma arte aberta e
tivos e de público, já que esta expansão se dá em devedora às influências das outras artes.

9 DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Lisboa: Afrodite, 1972.


10 BAUDRILLARD, Jean. La société de consommation. Paris: Denoël, 1970.
11 BETTON, Gerard. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Nestes cento e poucos anos de vida, diretores, ro- fatos. Os romances suscitam um mundo, enquan-
21
teiristas e produtores se esforçaram em apresentar to os filmes nos colocam diante de um mundo
ao público uma gama variada de caminhos para a que eles (os diretores/montadores) organizam de
produção de filmes com efe maiúsculo e, sempre acordo com certa continuidade. O romance é uma
que possível, recorreram à literatura para ajudar narrativa que se organiza em mundo, enquanto o
na concepção de suas criações. Sem que se possa filme é um mundo que se organiza em narrativa. A
afirmar que todos os caminhos possíveis estejam fidelidade de uma adaptação geralmente não coloca
aqui nomeados, os principais focos dos filmes são: maiores problemas quando se trata de descrever
expressionismo-político (Eisenstein), lírico (Fellini), “do exterior”, como testemunhas objetivas que
imagem-fato (Rossellini), história (Griffith), docu- não emitem qualquer ponto de vista subjetivo a
mentário (Flaherty, Coutinho), musical (Minelli), respeito das personagens e dos eventos.
imagem-ação (Ford), humor (Chaplin), revolução
(Glauber), vanguarda (Godard, Antonioni), teatro A narração cinematográfica se coloca sob a for-
(Bergman), terror (Lang), efeitos especiais (Spiel- ma de um espetáculo, de uma representação, mas
berg, Lucas), suspense (Hitchcock), montagem/ quando ela é uma introdução a tudo que é abstrato,
decupagem (Welles, Bergman, Resnais, Tarantino). “interior”, “conteúdo latente” ou subjetivo, ela co-
Filmes incapazes, entretanto, de ‘arranhar’ o poder, loca, imediatamente, graves problemas: o filme não
a força e a penetração daquele àquele Outro, hege- pode sugerir ou revelar temperamentos e provocar
mônico e majoritário, focado no show, na diversão, imagens mentais senão por uma relação de imagens
no entretenimento, no tamponamento do ‘mal-estar’ e pela palavra. É possível (então) perceber toda
(Freud) e na anestesia do aprisionamento (Benja- a dificuldade, talvez impossibilidade, de transpor
min).12 O cinema tem “costelas” com o teatro, a para a tela uma literária eminentemente psicológica.
fotografia, a música, a iluminação, a maquiagem, Podemos explicar assim os fracassos das tentativas
os figurinos, a mise en scène, a ópera, a cenografia, a de transposição cinematográficas de inúmeras obras-
mágica, os efeitos especiais, a dança, o som. Mas a primas. Além disso, há o problema da temporalida-
sua costela mais especial é com a literatura, através de. É importante reunir o máximo de coisas num
dos roteiros adaptados, sejam a partir de narrativas mínimo de tempo, exprimir tudo pela ação com
ou de peças de teatro, ópera ou musicais. tempo limitado, donde a necessidade de estilizar,
de suprimir uma grande parte dos elementos do
O cineasta pode se contentar em inspirar-se na romance. Na maioria dos casos, a transposição para
história literária e segui-la passo a passo; sendo o cinema de uma narrativa é uma recriação. Uma
assim, o filme é apenas representação, ilustração criação, eminentemente, pessoal (Betton).
de uma narrativa, transcrição de linguagem para
linguagem. Mas a fidelidade à obra original é rara, Há muitos e muitos filmes cujos roteiros se ins-
senão impossível. Em primeiro lugar, porque não piraram em narrativas, filmes que se esforçaram
se representa visualmente significados verbais, em segui-las capítulo a capítulo, numa tentativa
da mesma forma que é praticamente impossível (invariavelmente infrutífera) de mimetizar um texto
exprimir com palavras o que está expresso em em imagens. O esforço visa transformar o filme
linhas, formas e cores. Em segundo lugar, porque numa representação, transcrição de uma linguagem
a imagem conceitual que a leitura faz nascer no para outra linguagem. Neste sentido, a transcrição
espírito é fundamentalmente diferente da imagem seria uma reprodução da equação platônica entre o
fílmica, baseada em um dado real que nos é ofere- mundo real e o mundo das ideias (Benjamin). Mas
cido imediatamente para ver-se e não para imaginar essa busca de servidão é um sonho, uma miragem
gradualmente. O tempo do romance é construído porque não se representa visualmente significados
com palavras. No cinema, ele é construído com verbais e, também, porque as imagens que a leitura

12 BENJAMIN, Walter. The origin of German tragic drama. London: Verso, 1998.

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Cinema e literatura

faz nascer na mente dos leitores são diferentes das Francis Ford Coppola adaptou um dos textos canô-
imagens fílmicas, baseadas em fotografias (o real) nicos da literatura americana, O grande Gatsby, para as
que aparecem na tela para serem vistas (por um telas e fracassou, o que não aconteceu com Apocalipse
olho sem corpo), e não para serem imaginadas. now (Seger). De qualquer forma, é sempre, comercial-
mente, mais viável trabalhar com um material que já
Muitos filmes são adaptações − 85% deles, por tem certo público (Bíblia, Agatha Christie, Simenon,
exemplo, premiados pelo Oscar na categoria de Jane Austen, Conan Doyle, por exemplo).
melhor filme, são adaptações (Seger). Mas muito
raramente estas ‘conversões’, estas recriações, A adaptação de narrativas para o cinema tem tam-
passagens do mundo das palavras e das frases para bém seus custos. Custos altos porque uma adaptação
o mundo das imagens alcançam a categoria de implica vários pagamentos. Em primeiro lugar, é
obras-primas, agradando tanto aos críticos como preciso comprar os direitos do autor da narrativa e
ao público. O fato é que muitos fracassos fílmicos depois pagar o autor do roteiro (ou autores). Além
são adaptações. Pode-se afirmar sem erro que não disso, o material original é avaliado duas vezes:
existe adaptação fácil nem adaptação impossível. primeiro, avalia-se o potencial de adaptabilidade da
Uma das razões destes ‘fracassos’ é que o entendi- narrativa (em geral por um leitor de estúdio) e, de-
mento na literatura vem da leitura que alimenta a pois, se o roteiro produzido fez uma adaptação ‘ver-
imaginação. E no cinema a imaginação (menos livre) dadeira’. Escrever um ‘roteiro adaptado’ não é uma
é controlada pela montagem. Há também um hiato ‘sopa’, é uma guerra. As dificuldades são infinitas.
entre a letra, as ideias (pensamentos) e as imagens Para visualização dessas dificuldades, vejamos esta
(mecanismo). Na letra há uma maior presença do simples comparação. ‘Para ser um best-seller, um livro
inconsciente (Zizek).13 Já no cinema, o que não precisa ser lido nos EUA por um milhão de leitores.
pode ser dito pode ser mostrado. A literatura não Para ser um sucesso, uma peça da Broadway precisa
é história ou sociologia, é ideia, é imaginação, um de um público de oito milhões. Contudo, se apenas
mergulho (solitário) no avesso das coisas e dos sen- cinco milhões de pessoas forem assistir a um filme,
timentos dos homens. No cinema o entendimento ele é considerado um fracasso retumbante (Seger).
por imagens é diferente do entendimento da leitura
porque há uma diferença entre a apreensão de uma Muitas vezes, o esforço de atrair a curiosidade
existência como coisa inerte (uma narrativa à espera de um número grande de pessoas condiciona o
de um sentido dado pelo leitor) e a apreensão de roteirista a aparar ou eliminar pontos polêmicos,
uma existência como imagem em movimento. uma estratégia que pode afetar a qualidade es-
tética. Encontrar um equilíbrio entre agradar a
Uma passagem, no entanto, é possível entre a ima- todos e desagradar a muitos é o nó górdio do
ginação e o entendimento pela via das imagens, mas work de um roteirista. Existe (anotem aí) um tipo
esta passagem é sempre problemática e confusa de adaptação impossível (ou proibida): aquela
(Sartre). Não há nem livros bons nem livros ruins na qual o roteirista não tem licença criativa, nem
para serem adaptados, mas apenas maneiras ruins de liberdade para cortar e adicionar, pois mudanças
adaptá-los (Seger). Nunca há uma só possibilidade de são absolutamente essenciais (Seger). A adaptação
adaptação, há sempre várias possibilidades e nenhu- é uma estrada em campo minado. Vejamos: um
ma alcança a perfeição. E se muitos escritores buscam romance de James Cain, O carteiro sempre toca duas
o cinema como uma segunda chance para que suas vezes, por exemplo, já deu lugar a quatro obras
narrativas alcancem um número maior de leitores, cinematográficas: uma de Chenel (1939), uma de
este propósito prático e lucrativo nem sempre vinga Visconti (1942), uma de Garnett (1946) e outra de
ou perpetua-se no tempo. Em 1974, por exemplo, Rafelson (1981) (Deleuze).14 Nenhuma das quatro

13 ZIZEK, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.


14 DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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Com a
cine palavra,
o cinema

conseguiu chegar lá. E, por isso, quando não ‘se nos lucros. O roteirista entra, então, de “cabeça” e
23
tem nenhum roteiro novo’, tira-se do bolso a su- “coração” no trabalho. A primeira providência é o
gestão de ‘refilmar’ um roteiro/filme de sucesso controle daquela ansiedade da influência da obra
no passado. Uma estratégia de maquiagem, de original e dos roteiros anteriores (Seger, Field):
reembalagem de um mesmo produto. “Weaker talents idealize, figure of capable imagination
appropriate for themselves. But nothing is got for nothing
Gênesis e gozo and self-appropriation involves the immense anxieties of
indebtedness” (Bloom). Uma segunda providência
Um produtor ou um diretor de cinema apresenta é o roteirista colocar-se na situação de litígio
a um roteirista uma narrativa (biografia, romance, com a narrativa a fim de colher um máximo de
conto, memórias, peça de teatro, musical, poema), ideias e fantasias para o trabalho de conversão da
já selecionada e aprovada para ‘adaptação’ por narrativa em imagens. Uma postura de procura,
um leitor-analista de estúdio. Esta é a tradição do de enfrentamento simbólico com os minotauros do
business. O pedido de análise ao roteirista pode in- texto original. Todos estes combates (com vitórias-
cluir a escrita de um parecer e, até, de um argumento derrotas) levarão o roteirista ao gozo do sucesso.
(máximo de quatro páginas) de um roteiro. Aceita É todo um trabalho sísifico porque as narrativas
a encomenda, o roteirista assinará um contrato onde têm em si muitas histórias, e muitas histórias não
se estabelecem os direitos e os deveres das partes cabem num só filme. Mais: raramente, a estrutura,
e a remuneração devida, seja em percentagem da o enredo, a velocidade, o final e o tempo de um
venda de bilhetes, uma soma fixa ou participação filme batem com a de um livro.

David Lean
dirigiu a versão
para as telas
de Doutor
Jivago (Doctor
Zhivago,
1965), de Boris

BR_RJANRIO_TN_0_CAZ_0023
Pasternak.
Serviço de
Censura de
Diversões
Públicas - RJ

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Cinema e literatura

de filmes já permite uma montagem domés-


tica, mas esta é rara de ocorrer na prática.
Resumindo: um filme é uma linguagem
visual apoiada por diálogos, ação, músi-
ca, sonoplastia, efeitos especiais, cená-
rios e locações externas. Uma narrativa
é feita de palavras e frases. Antes do
contrato com o roteirista, há um con-
trato contingente de cessão de direitos
do autor da narrativa para o produtor. E
durante o work in progress, é comum que
uma série de encontros se faça entre o
roteirista e o produtor/diretor para a
negociação das opções do work.

Muitas vezes, o roteiro inclui para cada


personagem uma biografia completa e
detalhada das suas ações e caráter para
auxiliar o diretor na seleção dos atores
e atrizes e facilitar o trabalho de mise en
scène e montagem. Em todo este proces-
so de ‘troca de saberes’ entre o produtor/
diretor e o roteirista, é fundamental
BR_RJANRIO_TN_0_CAR_0011_m0001

que as partes corram riscos dentro do


razoável para que o roteiro tenha aquela
estranheza que caracteriza as obras de
qualidade (Bloom). Roteiros como os
de: Cidadão Kane, A regra do jogo, Ivan, o
terrível, O encouraçado Potemkin, E o vento
levou, Morangos silvestres, Ligações perigosas,
Chinatown, Vidas secas, Deus e o diabo na
terra do Sol, Casablanca, Tubarão, Luzes da
ribalta etc. Os roteiros têm em média
120 páginas (minutos) divididas em: Ato
1 – Início, pg. 1-30, também chamado
O Decameron de Apresentação, contendo um Ponto
(1971) de
Pier Paolo
As personagens de um romance, por exemplo, tem de Virada 1 (pg. 25-27); Ato 2 – Meio
Pasolini é uma profundidade maior, menos segredos, maior trans- ou Confrontação, pg. 30-90, com um Ponto de
adaptação de
nove histórias
parência. Nas narrativas há uma maior demanda Virada II nas pg. 85-90; e Ato 3, chamado de Fim
da obra de colaborativa da imaginação e da atenção do leitor, ou Resolução, pg. 90-120. Este esquema clássico é
Giovanni
Boccaccio.
que retira da escrita um ou até múltiplos sentidos, apenas uma indicação, no entanto, útil. O objetivo
Serviço de enquanto um filme está preso ao tempo fixo da é chegar a um filme próximo e respeitoso da obra
Censura de
Diversões
sessão, aos poucos temas desenvolvidos e a uma re- adaptada, que emocione e atraia a curiosidade do
Públicas - RJ solução que o público pede seja sem ambiguidades. público. Infelizmente, poucos filmes/roteiros
A leitura de uma narrativa pode ser interrompida, alcançam a profundidade e a dimensão do intentio
avançada ou lida de muitas maneiras, como já mos- operis e o intentio autoris das narrativas. Escrever um
trou Cortázar em O jogo da amarelinha, já os filmes roteiro é um trabalho artístico e artesanal, cujo
vistos em salas de cinema estão amarrados a um sucesso depende da experiência, da competência,
tempo e uma montagem. A gravação em CD-Rom da tenacidade e, sobretudo, da sorte e do talento

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Com a
cine palavra,
o cinema

do roteirista. Ofício que exige inventiva para se Ansiedade 25


chegar a uma qualidade mínima.
As influências, as ‘contaminações’ e as dívidas
Durante todo o processo, o roteirista terá que respon- entre as artes e os artistas provam que o savoir y
der a muitas perguntas. O roteiro tem personagens faire se constrói em torno da imaginação (Sartre),
fortes e atrativos? Para cada ação há uma reação do vazio (Lacan),16 dos sintomas, medo da morte
em sentido contrário? As ações, os flashbacks estão e do confronto com as criações do passado e do
claros? Os diálogos soam reais, verossímeis? Os presente (Bloom). As obras de arte são um modo
pontos de vista das personagens e do narrador (caso de enfrentar e tratar o excesso, de tamponar tanto
haja um) estão visíveis? Os diálogos e as cenas a náusea (Sartre) como a angústia (Freud). Toda
movem a história para a frente? A apresentação, o criação traz uma imensa ansiedade aos criadores
confronto e a resolução estão bem definidos? Está que não temem serem qualificados como falsi-
claro no filme que as personagens não são o que ficadores, aperfeiçoadores, ‘falso moedores’ (Gide).17
dizem, mas o que fazem (suas ações)? Em menor ou maior grau, todo o filho(a), todo o
novo (o hoje) têm partes, pedaços do progenitor (dos
O roteiro há de especificar, também, os subtextos, progenitores), têm pedaços vindos do antes, do velho
o que acontece sob a superfície das cenas − o que (do passado), porque o puro, o único, o singular,
não é dito (Field). O roteiro pode seguir a regra dos o nada vindo do nada não existe no mundo real.
três passos ou pode alterar esta sequência, como Tudo que é, é movimento, é mudança, é tese, antí-
fez Resnais em O ano passado em Mariembad. A prova tese e síntese, superação, descontinuidade. Todas
dos nove é se o filme toca (ring the bell) o coração essas dívidas intra-artes e intra-artistas não fazem
do público e dos críticos. No geral, aqui e ali, nos os criadores menos originais, ao contrário, os fazem
países ricos e nos pobres, nos países livres e nos mais originais (Bloom), é o que dizia Picasso: “Eu
autoritários, nos países soberanos e nos subalter- não procuro, eu acho.” As artes e os artistas vivem
nos, o que se vê e o que se faz mais é o ajoelhar às num estado de contaminação permanente, o que faz
regras e às tradições. O cinema é muita coisa, mas com que cada criação seja semelhante a um romance
é, sobretudo, uma indústria de altos riscos (poucos familiar (Freud), isto é, uma arena de amores e ódios,
blockbusters, poucas obras-primas, uma imensa medianidade invejas e reconhecimento, afirmação e negação, de
e uma parcela ponderável de lixo). Da produção mundial guerra entre iguais, de luta entre ‘filhos’ e ‘pais’, um
anual na casa dos milhares de filmes, só uma dezena rosário de Laius e Oedipus ad infinitum.
deles trará algo que parece feito para mim, para os
críticos e a posteridade. Filmes que caminham por Literatura e cinema
seus próprios pés e nos quais a narrativa original
parece estar na situação de “sapato” para o roteiro. Literatura não é real, não é vida (Bakhtin).18 Lite-
Nenhum filme tem as mesmas ideias, os mesmos ratura é palavra, frase, ficção e signo (Sartre). Uma
efeitos ou dá o mesmo prazer de uma narrativa, mas forma de acesso ao Mundo (Weltzuwendung) e de
são essas estranhezas que trazem para a tela aquela trabalho no Mundo. Um work de seleção do real.
graça, aquela jouissance, promessa de bonneur que é uma Uma seleção que é um ato de fingir. Um fingir que
das definições da beleza (Hegel).15 Filmes que não permite ao leitor apreender a intencionalidade de um
cessam de nos dizer coisas e que voltamos a rever texto. A literatura pede tempo, solidão, leitura, in-
sempre que possível. Filmes banquetes em que o car- terpretação (Iser).19 Todo texto é ficcional, inspira-
dápio é nada menos que um roteiro de qualidade. se, representa e mimetiza o real, mas não é o real.

15 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
16 LACAN, Jacques. O seminário, livro 7, a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
17 GIDE, André. Les faux monnayeurs. Paris: Gallimard, 1925; ______. Journal des faux monnayeurs. Paris: Gallimard, 1927.
18 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
19 ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996; ______. O ato da leitura. São Paulo: Ed. 34, 1994.

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Cinema e literatura

Nele há sempre um excedente que cumpre desvelar dificuldades recriativas são descritas com humor
e que só é possível acontecer se houver empatia por Syd Field. Segundo este, dos dois mil roteiros
(Einfuhlung) entre o texto e o leitor. A atividade es- lidos em dois anos por ele para um estúdio, ele só
tética de uma leitura só ganha forma quando damos recomendou quarenta para adaptação, e desses
acabamento ao material da nossa compenetração. apenas uma fração se transformou em filme. É
Cinema é outra coisa, é língua. A esperada língua natural então haver toda esta ansiedade.
universal da humanidade, não é uma linguagem,
é um sistema imagem-movimento (Deleuze). As A mesma ansiedade acontece com os escritores
imagens, espécie de sintomas, revelam o que se quando se propõem a escrever um livro. À partida
passa por trás do movimento, e, ao fazerem isso, eles precisam saber se têm algo a dizer. E se esse
colonizam os expectadores. Ver um filme é uma dizer irá interessar aos leitores. Uma arte, enfim,
experiência e uma vivência estética diferente de em que muitos são chamados, mas poucos são
ler um livro. Nos livros, os efeitos só aparecem os escolhidos. A cada ano, milhões de livros são
com a leitura (Iser). Os textos são uma espécie publicados. Uma parcela menor é lida e apreciada.
de piquenique em que o autor leva as palavras e Uma parcela maior é esquecida. E uma parcela
o leitor o sentido, os sentidos (Eco).20 Num livro mínima permanecerá como uma referência para as
as palavras alimentam a imaginação apresentando próximas gerações. Um último aspecto: a literatura
uma história com personagens, narrador, ideias e não vive tanto sob o teto da maldição do dinheiro
ambiente. As narrativas prendem – em geral − a e do marketing, porque é uma arte de baixíssimos
atenção do leitor a partir de duas perguntas prin- custos de confecção, preservação e guarda. Qual-
cipais: a da causalidade (quem foi?) e da tempo- quer indivíduo com umas ideias, um lápis e papel
ralidade (o que vai acontecer agora?). É a clássica escreve um livro, e, com um pouco mais de sorte
divisão entre histórias de detetive (quem matou encontrará um editor e uns leitores. Os nós górdios
Laio?) e as histórias de aventura (quem chegou da literatura são outros. Primeiro, é necessário al-
lá?). Quem encontrou sua Penélope? Sua Íthaca? cançar uma qualidade mínima para a atração de um
E o suspense só acontece se as respostas a estas número significativo de leitores que, expostos a um
perguntas demoram a ser reveladas. excessivo número de ofertas (uma das características
das sociedades de consumo), tem dificuldades de
No cinema, um olhar acompanha as imagens num separar o joio do trigo, o lixo do luxo, o descartável
espaço de tempo finito (Xavier)21 e, diferente dos do canônico. O segundo desafio é atrair um número
livros, o cinema é dependente de muitas outras de formadores de opinião (críticos da academia e
artes e linguagens. E as interpretações dos sentidos da mídia) capazes de ampliar o número de leitores.
são mais controladas (um dos efeitos do roteiro). O terceiro desafio é a narrativa ter sintonia com o
São essas diferenças estruturais entre as duas ar- mundo imaginativo e retórico dos leitores (Lodge).23
tes que causam os erros da criação de um roteiro Três desafios difíceis de serem alcançados.
adaptado de um livro (Field). Nenhuma imitação é
perfeita (Aristóteles).22 As imitações são aproxima- O escritor com sua narrativa convida o leitor a
ções e, tal como o paradoxo de Zeno, chegar lá é dividir uma determinada visão de mundo e com
um ideal, uma miragem, daí que um mesmo livro essa ‘manobra’ prende a sua atenção e o seu tempo.
na mão de diferentes roteiristas-diretores produz Assim sendo, toda narrativa tem um intentio operis
filmes diferentes. Neste sentido, as adaptações são, que só é revelado pela leitura como explicam tanto
simultaneamente, “caveiras de burro” e uma das a teoria do efeito quanto a teoria da recepção (Iser).
forças vitais do cinema (Seger). O tamanho dessas As estruturas das narrativas são construídas: ou (1)

20 ECO, Humberto. Interpretación y sobreinterpretación. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.


21 XAVIER, Ismail. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
22 ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
23 LODGE, David. A arte da ficção. Porto Alegre: L&PM, 2009.

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Com a
cine palavra,
o cinema

colaboradores. Na sua infância, os filmes foram vis-


27
tos como um lugar de ilusão, engano e alienação,
uma arena para a ingenuidade e a sublimação, um
“novo circo”, um teatro elétrico.
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A abertura para a produção de filmes de arte e van- Audrey Hepburn


guarda, de documentários, de filmes de revelação de estrela a
superprodução
verdades e mentiras das sociedades, dos indivíduos épica Guerra
e paz (War
e da história e de filmes ideológicos ou revolucio- and peace,
nários esteve sempre presente ao lado do cinema 1956, direção
de massa, mas numa condição de marginalidade King Vidor),
transposição
e minoria (Betton). É natural que esta diversidade para o cinema
fílmica tanto em qualidade quanto em quantidade da obra-prima
de Leon Tolstói.
se distribua de forma diferente nos diversos países. Correio da
‘minuciosamente’ como mostram os registros do work Saber qual é a mistura ideal é uma questão em aberto Manhã

in progress de uns poucos (Flaubert, Gide, Henry Ja- e de difícil resposta. De qualquer forma, é unânime
mes, Joyce, Proust); ou (2) de forma intuitiva como o entendimento em todos os centros de poder de
faz a maioria. Na literatura escolhas são feitas pelos que o cinema é um dos mais poderosos soft power.
autores. Estes escolhem o título, os temas, o número Mesmo não cumprindo todas as suas ambições cons-
e os tipos das personagens, o enredo, a psicologia, a titutivas e todos os seus sonhos de criação, o cinema
linguagem, o estilo, o tamanho da obra, a ordem, a ainda significará muito para muita gente pelo mundo.
velocidade e os tempos da narrativa e o (provável)
público-alvo. E são essas escolhas – intentio auctoris Fecho
− que determinam o número e os tipos de leitores.
A partir do século XVIII, a literatura caminhou Apesar dos riscos de queda, de culpa e de reprovação, as
tanto para uma hegemonia da simplificação e da adaptações das narrativas para o cinema vieram para
massificação quanto para uma aposta na compli- ficar e proliferar. E a explicação dessa teimosia é que
cação (Foster).24 Já os filmes, a partir do fim da as adaptações são o elixir do business. Os resultados
Segunda Grande Guerra, parecem (desejar) apostar infelizes do passado – meus senhores e minhas se-
na direção da simplificação, do divertimento e do nhoras − são o melhor tônico para acender a criativi-
ilusionismo. Um embate desigual. dade dos roteiristas. Parafraseando Montesquieu, os
roteiristas por cautela, custos e cálculo aprenderam
Filme a seguir as regras (Field, Seger, Aristóteles), mas é
quando as desobedecem, assumindo a liberdade de
Os filmes mostram uma série de imagens em errar e acertar, que surgem os roteiros chamados de
movimento, imagens lembranças e imagens sonho exceção. E assim como na cena ‘reveladora’, ‘não
(Deleuze), a partir de um trabalho de direção, mise programada’ do À la recherche du temps perdu, em que
en scène, câmara, diálogos, sonorização, iluminação, o narrador, Marcel, ao passar de madrugada pela
arte, efeitos especiais, maquiagem, organização de vitrine de uma livraria, após a morte do escritor
cenários e montagem. Trabalho de criação coletiva Bergotte, vê seus livros ‘iluminados’ e conclui que o
que apresenta uma visão de mundo, visão que, no artista está mais vivo do que nunca. Assim, também,
geral, se atribui primeiro ao diretor, em seguida os filmes ‘iluminados’ pelo amor e a fidelidade do
ao roteirista, depois ao produtor, aos atores (vou público, são a melhor prova de que conquistaram
ver um filme de Carlitos) e, por último, aos outros um lugar na história do cinema.25

24 FOSTER, Edward Morgan. Aspect of the novel. London: Edward Arnold, 1949.
25 Outras referências bibliográficas: BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2004; BECKETT, Samuel. Fim de
partida. São Paulo: Cosac Naify, 2002; PARIS, Jean. Joyce par lui-même. Paris: Editions du Seuil, 1963.

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Capitu (1968), de Paulo César


Saraceni, inspirado no Dom
Casmurro de Machado de
Assis. Correio da Manhã

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Aline da Silva Novaes
Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade e mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista de pós-doutorado do CNPq e professora licenciada das universidades Cândido Mendes e Estácio de Sá.

Os cinematographos de
João do Rio1

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Avenida Central e o lampadário da Lapa, no Rio de Janeiro do


final da década de 1910. João do Rio, em seus textos, mostrava o
cotidiano de uma cidade que se modernizava: um cinema das letras.
Fotografias avulsas

BR_RJANRIO_O2_0_FOT_00520_030

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Com a
cine palavra,

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o cinema

31

O jornalista e
escritor João do
Rio, pseudônimo
de João Paulo
Emílio Cristóvão
dos Santos Coelho
Barreto. Correio da
Manhã

João e o Rio Paulo Barreto, um escritor que incorporou a cidade


na sua denominação mais usada, João do Rio.
O início do século XX foi uma época marcada por
grandes mudanças urbanas. As cidades passavam João Paulo Alberto Coelho Barreto, nome de ba-
a contar com um novo modelo que considerava tismo do escritor, nasceu no Rio de Janeiro, em 5
também avanços técnico-científicos e, por conse- de agosto de 1881, e estreou na imprensa antes de
quência, novos hábitos e formas de sociabilidade completar 18 anos. Durante a carreira profissional,
foram criados e até mesmo impostos. A população colaborou em diversos jornais e revistas da época,
é apresentada a novidades como o bonde elétrico, como A Tribuna, Gazeta de Notícias, A Ilustração
os cafés, o automóvel, o saneamento e, além de Brasileira, entre outros. Em seus textos, abordava
outras coisas, o cinema. No Brasil, essas transfor- diversos assuntos. A peculiaridade do escritor, no
mações foram mais evidentes na cidade do Rio de entanto, deu-se em virtude dos relatos que fazia do
Janeiro: a metrópole-modelo. Rio de Janeiro. O pseudônimo João do Rio revela
sua forte ligação com o espaço urbano, que foi
O Rio de Janeiro é apenas uma de tantas cidades narrado em toda sua multiplicidade.
do mundo que passaram pelo processo de moder-
nização. Diferentes espaços urbanos foram levados Cinematographo: uma coluna, um livro,
a transformações, reordenamentos, embelezamen- um filme...
to, tornando-os, em alguns casos, vulneráveis a
atrocidades, justificadas pela racionalidade técnica Após o século XIX, século áureo no que se refere
e o desejo de um futuro a alcançar. Sendo assim, às narrativas literárias, aparece um novo olhar sobre
a fundação da cidade se dá em busca da concre- a arte em questão. Nos jornais, a literatura dividia
tização de um sonho. O nível simbólico constrói espaço com as notícias e, neste contexto, o jorna-
um padrão e, na tentativa de alcançá-lo, a urbe se lismo se alimentava da ficção enquanto a notícia
rende e condiciona sua formação a esse modelo. A influenciava a literatura, haja vista a repercussão
cidade, então, se apresenta como uma busca pela dos folhetins. Além disso, era sob o signo da lite-
representação desse sonho, abrindo caminho para ratura que o cinema dava os primeiros passos.2 Por
construções e destruições, sejam físicas ou, no que outro sentido, a literatura também era estimulada a
se refere aos citadinos, no campo psíquico. É na experimentar a linguagem cinematográfica, como
direção dessa aspiração, atrelada ao interesse eco- ressalta Figueiredo:
nômico, que o Rio de Janeiro se urbaniza.
[...] no início do século XX, quando o cinema come-
Escritores que viveram essa época buscavam, em çou a se legitimar culturalmente, despertou grande
seus textos, dar conta das mudanças urbanas e interesse nos escritores e nos artistas em geral, sendo
novas formas de viver. Nesse sentido, destaca-se visto como o meio mais adequado para expressar a

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
2 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil 1900. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Academia Brasileira de Letras, 2004.

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Os cinematographos de João do Rio

meira publicação na edição ano XXXIII/número


223, em 11 de agosto de 1907, e permaneceu até 19
de dezembro de 1910, quando foi substituída por
outra coluna intitulada Os dias passam.... Publicadas,
em sua maioria, nas edições dominicais da Gazeta
de Notícias, as crônicas que compunham a coluna
Cinematographo eram divididas em pequenos blocos
pelos dias da semana.

Assinada por Joe, um dos pseudônimos de Paulo


Barreto, a coluna ganhou como título o cinema.
Não à toa, já que era o frisson da época. As crônicas,
ligadas aos acontecimentos do dia a dia, apresen-
tam-se como uma espécie de crônica-reportagem
que passa em revista os principais fatos da semana.
Diversas eram as questões abordadas em Cinema-
tographo. Em cada crônica, um tema distinto. Em
cada coluna, várias crônicas e, por consequência,
diferentes temas. Joe fazia da coluna uma revisão
da semana ou uma revista da semana.
BR_RJANRIO_PH_0_FOT_04147_177

Com base na leitura do resgate das fontes primárias,


são temáticas frequentadoras de Cinematographo: a
modernização da cidade, a política e os costumes.
Somam-se a essas, as críticas teatrais, literárias e so-
ciais; todavia, outros assuntos eram abordados. Em
Cinema Paris na
vida urbana moderna, pois estaria em perfeita con- grande parte, uma miscelânea de temas era tratada
Praça Tiradentes, nº sonância com seu ritmo acelerado, com o avanço das em uma única edição. Na coluna do dia 1º de março
42. Junho de 1924.
Correio da Manhã.
técnicas de reprodução e com o modo de produção de 1908, por exemplo, o cronista apresentou uma
Nas crônicas de industrial. Naquele momento, de intensa interpe- crítica da peça Cordão, de Arthur Azevedo, além
João do Rio, a
conjuntura de uma
netração entre as artes, os recursos da linguagem de escrever sobre carnaval, jornalismo (fazendo
época marcada cinematográfica servem de estímulo ao propósito menção à revista Fon-Fon) e assuntos femininos
pela narrativa que
dilui as fronteiras
de renovação do texto literário que tenta escapar (por meio do perfil da personagem espanhola
entre jornalismo, da tirania da sequência linear, buscando o efeito de Carmen Ruiz).
literatura e cinema simultaneidade próprio da imagem.3
Em A capital irradiante: técnica, ritmo e ritos do Rio,
A proliferação de narrativas literárias, jornalísticas Nicolau Sevcenko aponta as mudanças ocorridas
e cinematográficas, sobretudo, a interseção das com o aparecimento do cinema. A nova técnica
referidas linguagens possibilitou a origem do “cine- desencadeou um choque em toda sociedade por
matographo de letras”, a expressão é de João do Rio. oferecer uma experiência da cidade “não apenas
O escritor é o mais puro exemplo do estreitamento como cultura visual, mas acima de tudo como um
entre a nova técnica e a literatura. espaço psíquico”.4

A coluna Cinematographo surgiu assim que a Gazeta de No Brasil, a primeira exibição se deu em 1896,
Notícias adotou a impressão colorida. Teve sua pri- após um ano do surgimento do cinema na Eu-

3 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Roteiro, literatura e mercado editorial: o escritor multimídia. Cibercultura, n. 17, p. 4, mai. 2007.
4 DONALD apud SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmo e ritos do Rio. In: ______ (Org.). História da vida privada
no Brasil − República: da Belle Époque à era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 522.

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Com a
cine palavra,
o cinema

ropa. Documentos da época e testemunhos É interessante notar que João do Rio busca a cap-
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dos primeiros espectadores revelam euforia e tação desse instante, sobre o qual discorre Charney.
estabelecem uma relação imediata entre as novas A bem da verdade, a irreverência do escritor neste
técnicas, o cinema e as grandes cidades. A série momento se encontra especificamente na media-
de novidades no espaço urbano deste período ção do olhar sobre a cidade a partir da tentativa
provocou mudanças de percepção e na própria de fixação do instante. É justamente aqui que João
maneira de viver do homem comum, “nenhuma do Rio se afasta dos objetivos do flâneur-repórter,
impressão marcou mais fortemente as gerações observado em A alma encantadora das ruas (1908),
que viveram entre o final do século XIX e o início pois as novas técnicas, sobretudo o cinema, mudam
XX do que a mudança vertiginosa dos cenários e a percepção da cidade. O escritor não se detém em
dos comportamentos, sobretudo, no âmbito das um determinado assunto. Diante de uma profusão
grandes cidades”.5 de acontecimentos – traço da modernidade –, é ne-
cessário que o cronista pince o proeminente e siga
É fato que o desenvolvimento tecnológico causou em busca de outro fato a ser relatado. A proposta
uma mudança profunda na sociedade. Os novos é diferente, o momento é diferente. É a Era do
recursos técnicos “desorientam, intimidam, per- Automóvel, da velocidade. Sobre esse novo olhar
turbam, confundem, distorcem, alucinam”,6 a nova do escritor, escreve Gomes:
experiência da vida urbana moderna afeta a própria
subjetividade do homem. Não se demora em cada tema para aprofundá-lo: há
outro assunto que merece uma crônica. A cidade é
As transformações da modernidade geraram uma aquela que passa, tudo flui no tempo acelerado da
proliferação de estímulos e sensações. Em meio velocidade e da pressa, “a pressa de acabar” (título da
ao clima perceptivo de superestimulação, Charney crônica que encerra esse volume de 1909): ser breve
aponta para a captação do instante como uma na captação dos instantâneos do cotidiano, porque há
tentativa de experienciar essa modernidade fugaz outros mais adiante.10
e discute a experiência do instante como uma
“sensação imediata e tangível”.7 Segundo o autor, Pode-se dizer que, nesta fase, observa-se a produ-
a captação do instante possibilita a “experiência ção de João do Rio influenciada por essa possibi-
sensorial em face do caráter efêmero da moder- lidade de captação de instantes e por esse novo
nidade”.8 É o conceito de instante que oferece momento do qual são marcas e características: a
uma maneira de fixar um momento de sensação, pressa, a velocidade, o automóvel, os novos apara-
de experimentar um presente sensório dentro da tos modernos etc. Em meio a esse contexto, João
alienação e do vazio da modernidade que o autor do Rio escreve Cinematographo: crônicas cariocas. O
associa à experiência no cinema. volume lançado em 1909 parece incorporar toda
a conjuntura da época e, sobretudo, revela ser pos-
[...] o esvaziamento da presença estável pelo movi- sível fazer de um livro um cinema de letras, marca
mento e a resultante separação entre a sensação, que principal da narrativa.
sente o instante no instante, e a cognição, que reco-
nhece o instante somente depois de ele ter ocorrido. Assinado por João do Rio, pseudônimo usado em
Juntos, esses dois aspectos do instante moderno todos os livros, o livro de 390 páginas é formado
criaram uma nova forma de experiência no cinema.9 por 44 crônicas, além de uma introdução – na qual

5 Ibidem, p. 514.
6 Ibidem, p. 516.
7 CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. Trad. Regina Thompson. São Paulo: Cosac
Naify, 2001. p. 317.
8 Idem.
9 Ibidem, p. 318.
10 GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio por Renato Cordeiro Gomes. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 97.

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Os cinematographos de João do Rio

BR_RJANRIO_O2_0_FOT_00444_016
o autor explica todo o significado que abarca a re- textos publicados na coluna da Gazeta de Notícias.
lação existente entre crônica e “cinematographia” Raimundo Magalhães Jr. consegue ser ainda mais
O Real Gabinete
Português de
– e uma nota para o leitor, que finaliza a narrativa radical ao considerar que João do Rio utilizava esse
Leitura, para reiterando a ideia do livro como um cinema. artifício – de colher textos de jornais para publicá-
onde foi doada
a biblioteca de
los em livros – para produzir grande parte de suas
João do Rio, João do Rio, em Cinematographo: crônicas cariocas, obras. Como revela Gomes: “Há uma curiosa
após sua morte.
Fotografias
produz uma narrativa que dilui as fronteiras entre observação de Raimundo Magalhães Jr. afirmando
avulsas jornalismo, literatura e cinema. O deslizamento de que, depois do sucesso do livro As religiões no Rio,
algumas crônicas das páginas dos jornais para o livro João do Rio descobriu a forma de se fazer autor de
e a maneira pela qual a literatura do escritor lida uma grande bibliografia, transferindo seus escritos
com o cinema para mudar sua própria linguagem das páginas dos jornais para as do livro”.11
apontam para um transbordamento no que se refere
à interseção desses diferentes suportes. O autor, no Partindo de um estudo sobre a obra de Paulo
decorrer do seu livro, faz nascer um cinema sobre o Barreto realizado com base em João do Rio: catálogo
Rio de Janeiro e todas as questões que permeavam bibliográfico (1994), de João Carlos Rodrigues, e,
e caracterizavam a cidade naquele momento. As posteriormente, em fontes primárias na Biblio-
crônicas que compõem Cinematographo abordam teca Nacional, foi verificado que apenas trechos
assuntos corriqueiros e, de certa forma, refletem as de seis colunas Cinematographo estão presentes no
peculiaridades do modo de vida da população ca- livro. Isto significa que quase toda a produção da
rioca no ano de 1908. Sobretudo, funcionam como coluna se encontra unicamente nas páginas da
um cinema das letras do referido ano. Gazeta de Notícias. Ao contrário da afirmação de
Raimundo Magalhães, as observações compro-
Ao se deparar com o livro intitulado Cinematographo: vam que o escritor, para compor todos os seus
crônicas cariocas, sabendo da existência da coluna ho- livros – inclusive Cinematographo: crônicas cariocas
mônima da Gazeta de Notícias, é no mínimo natural –, não se limitou a transferir seus escritos de um
pensar que existe uma grande relação entre essas suporte para outro.
produções ou mesmo que o livro é uma transcrição
no todo ou em grande parte da coluna. A analogia Para compor o livro de 1909, João do Rio selecio-
acaba, de certa forma, colaborando para o pen- nou textos publicados em A Notícia e na Gazeta de
samento de que o livro de 1909 é a coletânea de Notícias, além de pedaços autônomos da coluna.

11 GOMES, Renato Cordeiro. João do Rio: vielas do vício, ruas da graça. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. p. 79.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Ao mudarem de suporte, os escritos deixam de cinematográfica de João do Rio. Nesse sentido, a


35
ter relação com o jornal e passam a ter relação crônica e o cronista, como operador dessa máquina,
com o livro, sobretudo, com as outras crônicas serão mediadores entre a vida carioca e os leitores,
da coletânea, instituindo outro tipo de sequência ou melhor, entre a vida carioca e o público. “O
narrativa. Os textos escolhidos, ao fazerem parte cronista, um operador; as crônicas, fitas; o livro
do novo suporte, ganham autonomia. Agora, de crônicas, um cinematógrafo de letras: essas
não estabelecem ligação direta com as matérias analogias que orientam o volume Cinematographo e
jornalísticas, não estão vulneráveis ao consumo a percepção por parte de Paulo Barreto do próprio
imediato e tampouco apresentam a efemeridade trabalho como cronista”.14
dos textos jornalísticos. Oferecem-se de uma
forma diferente, não como os antigos fragmen- É também no prefácio que o escritor mostra o
tos possuidores de significados distintos, mas seu encantamento pelo cinematógrafo. Segundo
como fragmentos que vão ajudar a construir o João do Rio, o cinematógrafo “é extramoderno,
significado de um todo, no caso, do livro – um sendo como é resultado de uma resultante de um
“cinematographo de letras”. resultado científico moderno”.15 Essa arte que
possibilita a percepção da cidade de outra maneira
Um cinema sobre a vida carioca de 1908 foi incorporada pelo autor para produzir sua obra
e, dessa forma, fez com que o livro deslizasse para
Ao demais, se a vida é um cinematographo colossal, o cinema.
cada homem tem no crânio um cinematographo
de que o operador é a imaginação. Basta fechar A preocupação presente em João do Rio, ao pro-
os olhos e as fitas correm no cortical com uma duzir a sua narrativa, já era comum no século XVII
velocidade inacreditável. europeu, época em que o mercado livreiro publica-
João do Rio va sucessos de alguns dramaturgos. Tomando como
base as ideias de Chartier, comenta Figueiredo:
Cinematographo: crônicas cariocas retrata a vida carioca
no início do século XX, ao abordar, nas crônicas Como consequência desta preocupação dos escritores
que o compõem, as múltiplas questões existentes de teatro, as publicações passam a trazer gravuras,
no cotidiano do Rio de Janeiro da época. Em um mostrando o cenário e indicações cênicas, que
momento de profundas transformações, João do ajudavam o leitor a imaginar alguns elementos da
Rio desvenda todos os segredos de uma sociedade encenação, ou seja, são utilizados vários procedimen-
que buscava, a todo custo, se colocar à altura da tos visando alinhar ao máximo possível o discurso
sociedade parisiense. impresso à performance oratória.16

Logo no prefácio, o escritor revela a proposta do Essa preocupação torna-se evidente ao se observar
livro de ser um cinema sobre o Rio de Janeiro e a narrativa de João do Rio, que parece informar
mostra que é possível, pois a “crônica evoluiu para ao leitor, a todo instante, que este se encontra em
a cinematografia”.12 As crônicas que, ao seguirem o um cinematógrafo. Esse fato fica evidente ao se
fio condutor de uma determinada obra, atribuiriam observar quatro pontos distintos. O primeiro é o
a organicidade interna desta, serão agora fitas – prefácio, espaço escolhido pelo autor para explicar
“uma fita, outra fita, mais outra...”13 – que, de forma a concepção do livro e servir “também como decla-
sucessiva, construirão o significado da narrativa ração de princípio”.17 É na introdução que João do

12 RIO, João do. Cinematographo: crônicas cariocas. Porto: Chardron de Lello & Irmão, 1909. p. X.
13 Ibidem, p. V.
14 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 47.
15 RIO, João do, op. cit., p. VIII.
16 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de, op. cit., p. 2.
17 GOMES, Renato Cordeiro, 2005, op. cit., p. 79.

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Os cinematographos de João do Rio

Rio explica como pode ser possível a existência de ou outra qualquer afirmação ainda mais escandalosa,
um cinematógrafo de letras e revela que a proposta para ganhar cinco mil réis.19
da obra é exatamente essa. Tal artifício foi usado,
pelo escritor, para explicar também a proposta de A linguagem usada por João do Rio é também um
outros volumes. fator que transporta o leitor para uma sessão de
cinema. A partir disso, é importante observar que
O segundo ponto se refere à forma pela qual o Mikhail Bakhtin (1895-1975), em oposição ao pen-
autor organiza suas crônicas. A sucessão dos textos samento saussuriano – privilegia a língua – concen-
de Cinematographo: crônicas cariocas parece obedecer a tra suas atenções na fala, ou seja, no discurso. Para
uma linha condutora e, como consequência, cor- ele, o discurso, que se relaciona com as estruturas
robora para a formação do sentido total da obra, sociais, consciência individual e com o contexto
uma crônica parece dar continuidade à outra, como histórico-social do emissor, envolve um cruzamen-
se fosse uma sucessão de fotogramas que se com- to, um diálogo de vários textos. Esse diálogo pode
pletam. Um exemplo disso é notado na sequência ser em nível horizontal e em nível vertical. Bakhtin
de duas crônicas: “A solução dos transatlânticos” e chama esses dois níveis de diálogo e ambivalência,
“A reforma das coristas”. Na primeira, o narrador respectivamente, e Julia Kristeva, em Introdução à
fala sobre a decadência do teatro e critica as pes- semanálise,20 denomina intertextualidade.
soas ligadas a essa arte, como pode ser observado
no seguinte trecho: “Há quarenta anos o nosso Ao tomar como base o referido conceito, pode-se
repertório é leve. Os artistas antigos e feitos não destacar a relação intertextual no que se refere à
se querem dar ao trabalho de estudar peças novas, linguagem literária e cinematográfica. O léxico
e os artistas novos, sem escola, sem ensaiador, sem escolhido pelo escritor colabora para a imaginação
disciplina, têm por ideal fazer os papéis das peças fazer parte desse cinematógrafo e ser a grande
velhas como confronto”.18 responsável pela exibição do filme na mente de
cada um. João do Rio atinge a mente humana, ao
A crônica que a sucede, intitulada “A reforma adotar um texto repleto de descrições, mas, ao
das coristas”, propositalmente, tem como foco as mesmo tempo, de rápida leitura, dando ao leitor a
coristas. O escritor inicia uma nova cena – uma impressão de estar assistindo a uma cena de cinema.
nova crônica – que reforça a ideia da decadência do Na crônica “Ludus Divinus”, esse fator pode ser
teatro, exposta no texto/fita anterior. A intenção observado com clareza:
é notada quando o narrador deprecia a profissão,
estratégia escolhida por ele: Pons e Le Bouche, afinal encolerizados, atiraram-se
furiosamente um contra o outro, Pons com a tática
Neste país em que as mulheres não têm grandes dos cachações para entontecer o inimigo, colando a
necessidades, o posto de corista era positivamente cabeça à cabeça de Le Boucher. Era despedaçante.
dado às infelizes. Os autores nada lhes faziam nas As mãos agarravam os músculos com ímpetos de
peças alegres, nem as punham em relevo. Eram damas rasgá-los, os braços enlaçavam os troncos como se
ou muito gordas ou muito magras, lamentavelmente fossem separar, uma vermelhidão tingia a atmosfera,
sem graça. Quando aparecia uma criatura mais moça, e os dois lutadores com cada flexão de braço pare-
ou não demorava, ou morria ou era logo artista em- ciam alucinar mais a galeria. Mas um urro rebentou,
purrada pelos cômicos, jungida as ligações violentas. atroou, ecoou longe. Pons atirara ao chão o adversário.
E era uma tristeza ver mulheres velhas com famílias Enquanto o campeão do mundo fazia esforços para
numerosas, o ventre enorme, o corpo numa elefantía- dominar, o tronco de Le Boucher foi-se erguendo
se de linhas, cambando os sapatos e sujando as gazes, devagar; firmando-se nos joelhos, nas pontas dos pés.
clamarem nos revistões cariocas: nós somos as ninfas, A tentativa falhou. Caiu de novo, cruzou os braços

18 RIO, João do, op. cit., p. 158.


19 Ibidem, p. 164.
20 KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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Com a
cine palavra,
o cinema
A Gazeta de Notícias de 1º de março
de 1908 com a coluna de João do
Rio, o Cinematographo. Fundação
Biblioteca Nacional

37

Folha de
rosto do livro
Portugal
d’agora, de
autoria de
João do Rio,
publicado
em 1911 por
LIV_ACG_07336
H. Garnier.
Biblioteca
do Arquivo
Gazeta1demarço

Nacional

em torno do pescoço, e como um titã erguendo um as ideias de um ano, os comentários de um ano – o de


mundo, a cara vermelha escorrendo suor, o povo viu 1908, apanhados por um aparelho de fantasia e que
esse corpo vir surgindo até levantar-se de todo num nem sempre apanhou o bom para poder sorrir à von-
supremo arranco.21 tade e que nunca chegou ao muito mal para não fazer
chorar. A sabedoria está no meio termo da emoção.22
João do Rio ensaia as técnicas que serão desenvol-
vidas no modernismo ao adotar alguns artifícios É interessante observar a colocação do narrador
para o processo da escrita, como mostra o exemplo. em determinados trechos. Ao nomear as crônicas
O escritor incorpora e faz uso de elementos para de fitas, ele reafirma a ideia do livro como cinema,
criar uma aproximação entre o leitor e o texto, que, o que o leitor leu ou viu foram fitas que são textos.
por sua vez, se tornará uma cena após a ativação Essa analogia colabora para edificar a ficcionaliza-
mente/imaginação. A pontuação, a sintaxe, as ção, constituída pelas crônicas de 1908, e também
palavras escolhidas, o tempo verbal transportam pelas publicadas em outros anos distintos. Além
o leitor para esta cena com direito a montagens, disso, é possível notar a aproximação estabelecida
corte e outras técnicas cinematográficas. entre crônica e cinema, quando o escritor revela
que os fatos foram “apanhados por um aparelho
O livro/filme é encerrado com uma espécie de fantasista”, isto é, pelo cinematógrafo. A crônica,
carta de despedida ao leitor, como indica o próprio assim como o “aparelho fantasista”, registra a
título – “Ao leitor” –, último artifício usado por realidade observável no Rio de Janeiro de 1908, Assinatura do
João do Rio para fazer de sua obra um cinema sobre relatando o corriqueiro, os fatos do dia a dia. O escritor no
álbum sobre
a vida carioca. Nesse espaço, o escritor reitera, pela trecho “a sabedoria está no meio da emoção” o Theatro
última vez, a proposta do livro: resume o sentido dessa última parte e do livro Municipal do
Rio de Janeiro,
em si. O meio da emoção seria o natural, ou seja, publicado
E tu leste, e tu viste tantas fitas... Se gostaste de a realidade observada, e foi desta maneira que as em 1913 pela
Photo Musso.
alguma, fica sabendo que foram todas apanhadas ao crônicas/fitas surgiram, posto que estas foram Biblioteca
natural e que mais não são senão os fatos de um ano, mediadoras dos fatos, também naturais, do ano do Arquivo
Nacional

21 RIO, João do, op. cit., p. 152-153.


22 Ibidem, p. 390.

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Os cinematographos de João do Rio

de 1908. Nesse sentido, cabe ainda destacar que uma cidade durante o processo de modernização.
o apelo referente ao artifício próprio da arte fez O encantamento por parte de uma grande maioria
do natural não apenas o documentado, mas a sua de pessoas no que se refere a esse processo e, por
contaminação pelo ficcional – intenção clara a João consequência, às mudanças pode ser observado
do Rio no prefácio e na nota “Ao leitor”. em personagens como o barão Belfort e o conde
Sabiani, que deliravam com a dança da princesa
Assim como João do Rio mostra, no decorrer jamaicana Verônica, em “Gente de music-hall”.
da narrativa, a proposta de fazer de seu livro um
cinema, revela também o fio condutor da obra no João do Rio cria um conjunto de oito crônicas para
próprio subtítulo: “crônicas cariocas”. Na verdade, falar da Exposição de 1908. Vitrine da modernida-
o próprio título como um todo, Cinematographo: de e do progresso, a exposição era uma forma de
crônicas cariocas, serve como base para uma análise, mostrar o Brasil para o mundo e, com isso, atrair
pois une o cinema e o Rio de Janeiro, os pontos capital estrangeiro: “[...] a sensação do Brasil num
principais do livro. Ao se fazer uma ligação entre mostruário colossal para o mundo e para o próprio
esses pontos, é possível perceber facilmente o ob- Brasil; e os resultados do conhecimento exato do
jetivo do escritor de produzir um filme que traga estrangeiro, com a entrada de capitais para a explo-
como temática a vida no Rio de Janeiro, como é ração das riquezas nacionais e o desenvolvimento
exposto no próprio prefácio: “Com pouco tens a das indústrias”.25
agregação de vários fatos a história do ano, a vida
da cidade numa sessão de cinematógrafo”.23 Para retratar o mundo da arte do início do século
XX, além de enaltecer pintores como Henrique
São esses fatos de um ano que vão servir de re- Bernardelli, Rodolfo Amoedo e Antônio Parreiras,
gistro da cidade, fatos que servem de metonímia João do Rio revela os tipos que frequentavam a
para representar toda a sociedade carioca, formada exposição:
pelos “encantadores” dos salões, pela “canalha”
de rua e pela classe média. João do Rio comenta A raça estava toda. Havia a dama animadora que
a vida no Rio de Janeiro e desvenda os segredos pinta nas horas vagas entre os trabalhos de agulha e
dessa sociedade em cada crônica/fita que compõe os exercícios ao piano, tomando posições científicas
o seu livro/filme. para observar as pinturas face-à-main no nariz, havia
os rapins esperançados do Montmartre carioca que
Cinematographo: crônicas cariocas é um filme feito de fica ali pelos lados da travessa Leopoldina; havia a
cenas que, em conjunto, retratam o dia a dia ca- coleção de mestres oficiais tratados com as conside-
rioca, no processo de modernização. As crônicas rações de Budhas ambulantes, havia os críticos desde
são estruturadas para documentar tudo que diz os velhos até os pequenos de fralda que nunca viram
respeito à vida no Rio de Janeiro de 1908, seja a um quadro e chamam de idiotas grandes artistas,
“cena” ou a “obscena”,24 pois nada pode deixar de havia a onda polimorfa do burguês achando sempre
ser relatado, tampouco esquecido. Trata-se do filme melhor o pior [...].26
de um ano, de uma revista de um ano, dos fatos do
ano de 1908; embora textos também publicados Ao descrever essas diferentes “raças” frequentado-
em outros anos sejam elementos participativos da ras das exposições, João do Rio faz uma crítica ao
narrativa que se deseja cinematográfica. modismo da época e, principalmente, registra hábi-
tos e peculiaridades de uma parcela da sociedade do
O Rio de Janeiro é o cenário do filme, no qual será Rio de Janeiro, denominada pelo escritor de “snobs
narrada toda a multiplicidade que pode existir em cariocas”. Segundo o escritor, os “snobs cariocas”,

23 Ibidem, p. V.
24 GOMES, Renato Cordeiro, 1996, op. cit., p. 31.
25 RIO, João do, op. cit., p. 286.
26 Ibidem, p. 186.

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Com a
cine palavra,
o cinema

além de mesquinhos e pretensiosos – como são tortura vaga que é a saudade. Aquela mudança era,
39
os de outros lugares –, acham feio ser brasileiro. entretanto, maior do que todas, era uma operação da
cirurgia urbana, era para modificar inteiramente o Rio
A desnacionalização dos estratos economicamente de outrora, a mobilização do próprio estômago da
mais elevados do Brasil é abordada em outras crô- cidade para outro local. Que nos resta mais do velho
nicas. Em “Um problema”, o cronista conta alguns Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma
casos de “rapazes ricos que eram mais estrangeiros cidade moderna é como todas as cidades modernas.30
na sua terra que os próprios estrangeiros, mais
deslocados e frios no próprio lar do que numa rua O cronista valorizava o Rio antigo. A preservação
de Londres” e atribui esse problema aos “produtos dos signos da cidade marcaria a tradição, a história
glaciais do snobismo ou da tolice dos pais, que do lugar e da população que ali vivia. A reorgani-
acabam odiando a própria pátria e renegando a zação da cidade causaria a perda da identidade e
família”.27 da tradição, fato que ocasiona em João do Rio e
em outros que viveram naquele momento certo
Ao mesmo tempo em que João do Rio fala sobre desconforto, como pode ser notado nas crônicas
os costumes da “gente de cima”28 – como o que “O velho mercado” e “Horas da biblioteca”.
alguns “estetas, imitando Montmartre” tinham
de “discutir literatura e falar mal do próximo” Um traço relevante da vida carioca naquele mo-
enquanto “enchiam o ventre de cerveja”29 na rua mento, também destacado na obra, era a pressa. O
da Assembleia ou na rua da Carioca –, também do- tempo mudou. A era da velocidade, do automóvel,
cumenta os hábitos da “canalha”. Em “O barracão da aceleração do ritmo de vida das pessoas já se
das rinhas”, por exemplo, o escritor apresenta o fazia presente nas ruas da cidade. As renovações
esporte feroz das brigas de galo, que aconteciam técnicas implicaram mudanças de hábitos e costu-
em um barracão a cerca de cem metros da estação mes, e João do Rio escolhe esse tema para tecer
do Sampaio. Além dos costumes, alguns traços os momentos finais do filme de 1908, com a fita/
linguísticos que marcam essa classe podem ser crônica “A pressa de acabar”. Dessa forma, ele
observados. Em “Dito da rua”, o escritor ressalta justifica o término da sua narrativa, pois ele tem
expressões típicas, a linguagem do malandro e da pressa, o leitor tem pressa. O momento é outro,
capoeira, e destaca a gíria da época “E eu, nada?” “já nada se faz com o tempo. Agora faz-se tudo
que, mesmo não exprimindo nada, servia para por falta de tempo”.31
inúmeras situações.
João do Rio seguiu em direção a um só rumo: a
Apesar de se mostrar, por inúmeras vezes, eufórico leitura da cidade do Rio de Janeiro. Para percor-
no que diz respeito à modernização, João do Rio rer e desvendar a cidade, escolheu as crônicas
também manifesta certa nostalgia ao imaginar que que “quase sempre, são respostas a certas per-
os signos do Rio antigo seriam apagados para que plexidades pessoais e sociais”.32 Nas páginas do
fosse erguida a cidade moderna: livro, as crônicas submeteram-se apenas à linha
condutora da obra e ganharam autonomia para
A mudança! Nada mais inquietante do que a mudança ser o que autor desejou. Tornaram-se fitas. E a
– porque leva a gente amarrada essa esperança, essa obra, cinematographo.33

27 Ibidem, p. 93.
28 Apud GOMES, Renato Cordeiro, 1996, op. cit., p. 63.
29 RIO, João do, op. cit., p. 129.
30 Ibidem, p. 214.
31 Ibidem, p. 385.
32 GOMES, Renato Cordeiro, 2005, op. cit., p. 30.
33 Outras referências bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981;
RODRIGUES, João Carlos. João do Rio: catálogo bibliográfico. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e
Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1994.

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Keilla Conceição Petrin Grande Mestre em Estudos de Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais
(CEFET/MG). Docente na área de Letras, com ênfase no ensino de Literatura.

Borges e Santiago:
uma “invasão” no cinema argentino
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O escritor argentino
Jorge Luis Borges.
Correio da Manhã

Cena do filme Invasión


(Argentina, 1969), de Hugo
Santiago. Proartel

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Com a
cine palavra,
o cinema

41

Lautaro Murúa
(ao centro)
em Invasión.
Proartel

Não são recentes os estudos que aproximam a “biógrafo”, pois para ele, mais que técnica e ma-
arte literária da cinematográfica. Na verdade, é quinaria, o cinema é “el que nos descubre destinos,
considerado que, em seus primórdios, o cinema el presentador de almas al alma”. Essa definição
tomou da literatura a forma de elaboração narra- demonstra o estatuto que Borges conferia ao cine-
tiva. Por outro lado, a partir do desenvolvimento ma, considerando-o muito além de simples imagens
e consolidação da linguagem cinematográfica, que em movimento.
ganhou seus próprios contornos e especificidades,
foi também a sétima arte uma fonte de técnicas e Também nas resenhas que produziu ao longo de
modos de elaboração artística para a literatura. E mais de dez anos, manifesta-se um crítico arguto,
o tempo só fez consolidar o diálogo entre essas atento às nuances e aos aspectos que uma produção
artes, ampliando a relação entre elas, seja através fílmica deve apresentar. Assim, suas análises per-
das várias adaptações que o cinema faz de obras correm desde o engendramento das tramas até os
literárias, seja pelo interesse que a sétima arte des- aspectos técnicos como a fotografia, a montagem, a
perta entre autores de todos os tempos. dublagem, entre outros. Não que Borges fosse um
crítico especializado ou se posicionava como tal –
Na gama de escritores que estabeleceram uma re- vale lembrar que, quando o autor portenho escreve
lação estreita entre literatura e cinema, encontra-se suas resenhas, a própria crítica cinematográfica
o argentino Jorge Luis Borges. O autor de Ficções ainda não era uma disciplina especializada como
sempre demonstrou interesse pela sétima arte, não temos hoje –, mas não deixa de chamar atenção os
apenas como cinéfilo, mas como alguém que ex- comentários atentos e engenhosos que o escritor
cursionou pela crítica cinematográfica em resenhas lançava sobre os filmes a que assistia.
acerca de produções as mais variadas, que iam do
cinema hollywoodiano ao soviético, além de reco- Um outro acercamento de Borges com o cinema
nhecer e admitir a interpenetração das duas artes. dá-se na elaboração de roteiros cinematográficos.
Embora não houvesse logrado êxito nessas pro-
A proximidade de Borges com o cinema revela-se duções, o intento de criar também para o cinema
em todo o percurso de sua produção. Já no primei- demonstra ainda mais o apreço que o autor nutria
ro texto que escreve sobre o tema, El cinematógrafo, por esse tipo de arte. Nesse aspecto, ele fez algumas
el biógrafo, em 1929, o escritor propõe a diferença inserções pela sétima arte. O primeiro dos roteiros,
entre os dois vocábulos para associar cinema a que se intitularia Suburbio, deu-se em 1940 e seria

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Borges e Santiago: uma “invasão” no cinema argentino

um trabalho para a Pampa Films, porém o filme Hugo Santiago a desistência e entregaram a ele
nunca chegou a ser produzido e não há nenhuma um texto de dez páginas. Para surpresa de Borges
indicação de que o texto do roteiro tenha sido pre- e Bioy, o cineasta aceitou de bom grado e viu-se
servado ou publicado, ficando apenas algumas notas satisfeito com o “resumo” que recebeu.
da imprensa da época em que os roteiristas (além de
Borges, Petit de Murat também assinava o trabalho) Mas a história não pararia por aí. Uma semana de-
comentavam a respeito do argumento da película. pois, Borges e Bioy entregam a Santiago um novo
texto com uma pequena modificação no anterior
Depois, por volta de 1942-43, viria a adaptação e esse trabalho continuaria, dias depois, com os
do romance Pago Chico, em um roteiro escrito a amigos escrevendo novos episódios, criando per-
oito mãos: Borges, Bioy Casares, Manuel Peyrou sonagens e dando corpo a um trabalho de pouco
e Enrique Mallea. Projeto que foi abandonado mais de vinte páginas, que nunca foi publicado por
quando o governo militar argentino sugeriu al- determinação expressa dos autores. Por instância de
gumas modificações no texto, algo não aceito Hugo Santiago, o roteiro receberia a colaboração
pelos escritores. Nos anos de 1946 a 1948, a Alfar de Borges e dele só não participou Bioy, porque
Producciones teria contratado Borges e Bioy para o autor de A invenção de Morel faria uma viagem à
adaptarem os textos Hombre de la esquina rosada e Europa. A produção do filme iniciou-se em maio
Evaristo Carriego. No entanto, uma vez mais, o in- de 1968 e, em maio de 1969, o filme estreou em
tento não se consolida.1 Em 1951, Borges e Bioy Cannes com exibição especial, já que não houve
escrevem mais dois roteiros Los orilleros e El paraíso tempo hábil para que ele concorresse no festival, e
de los creyentes. O primeiro chegou a ser produzido lá obteve uma recepção favorável da crítica.
em 1975 por Ricardo Luna, sem grande êxito
de crítica e de público. Esses dois textos foram Assim surge Invasión, uma produção que, pode-
publicados em 1955 pela Editorial Losada, mas, a se dizer, proporcionou a Borges a consolidação
despeito do prestígio que os escritores já haviam de uma experiência com o cinema, visto que sua
logrado tanto pelas obras individuais quanto em participação nessa obra deu-se desde a concepção
parceria, ficaram relegados, senão ao esquecimento, do filme através da elaboração de seu argumento,
ao menos ao desinteresse da crítica. Talvez porque até a oportunidade de vê-lo exibido em uma sala
esses roteiros não alcançaram êxito junto ao meio de cinema portenho.
cinematográfico, a que se destinavam.
Aquilea ou Buenos Aires?
Alguns anos depois, em junho de 1967, Borges
e Bioy recebem do diretor Hugo Santiago uma “Aquilea 1957” são as palavras iniciais do filme
proposta para escreverem um argumento para Invasión, que aparecem sobre um plano de con-
um filme. Até então, o cineasta argentino era junto de uma cidade. A princípio, esses dois ter-
pouco conhecido em território portenho, mas mos serviriam para, como é comum ocorrer em
desde 1959 trabalhava com cinema em Paris e diversos filmes, situar-nos em um tempo e espaço
havia sido assistente de Robert Bresson no filme determinados. No entanto, no decorrer da película
O processo de Joana d’Arc. A princípio, os escritores até seu final, descobrimos que esses termos fazem
aceitaram o projeto, mas, segundo o diário de Bioy, parte de um jogo de sentidos que foge a qualquer
eles pensaram em desistir, pois sentiam o encargo referencialidade. Pode-se afirmar que todo o filme
de entregar um trabalho com tempo fixado como está assentado sob o signo do ambíguo: no papel
um “jugo”. Para resolver esse problema, abriram das personagens, na relação entre elas, nas situações
mão dos trezentos mil pesos que receberam de em que estão inseridas. Quando se pensa que se
adiantamento e, em um jantar, comunicaram a está próximo a uma resposta ou a um desfecho ou

1 Em 1962, Hombre de la esquina rosada foi levado às telas pelo diretor René Mugica, com roteiro de Carlos Aden, Isaac Aisenberg e
Joaquin Gómez.

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Com a
cine palavra,
o cinema

solução, logo o espectador descobre que não passa história, ou seja, um tempo meramente contingente.
43
de uma falsa impressão, pois o desenlace sempre Mas se a intenção é elidir toda e qualquer referencia-
escapa, oscila, num constante exercício de nunca lidade, por que a necessidade de um tempo demarca-
revelar o todo da situação. do? Uma vez mais, há o artifício de jogar com aquilo
que apresenta concretude, mas, ao mesmo tempo,
O filme coloca em ação dois grupos cuja separação desliza para um campo do hipotético. Nessa questão
e identificação são possíveis pelas roupas que usam: do tempo e espaço vê-se a sobreposição e colisão de
os de branco e os de preto. Dos de branco nada dois elementos, um espaço aparentemente concreto,
sabemos a não ser que são os “invasores”. Seus mas ao mesmo tempo mítico, em que nenhum deles
nomes, origem, identidades nunca são revelados, é mais apreensível ou prepondera sobre o outro;
tampouco o motivo da sua ação. Os “homens de um tempo cronológico, delimitado, mas aberto a
preto”, por sua vez, são comandados por Dom qualquer preenchimento simbólico.
Porfírio, um ancião que orienta toda a ação dos
demais homens do grupo, composto por Herrera, As personagens também estão inseridas nesse
quem lidera os outros quando uma ordem deve ser universo dúbio. Dom Porfirio direciona os passos
executada; Vildrac, um farmacêutico, cuja principal que seu grupo deve dar e ele sempre sabe onde
preocupação é não deixar a esposa perceber em que estarão os adversários. Mas quando a missão
está envolvido; Irala, o mais atemorizado do grupo; a ser cumprida não logra êxito, antes que seus
Lebendiger, uma espécie de Don Juan portenho; cúmplices deem-lhe as informações, ele conhece,
Silva, médico e alcoólatra; Moon, engenheiro; e por antecedência, o que ocorreu. Também tem
Cachorro, um tipo rústico e bronco, que lembra os ciência das transações dos homens de branco e
heróis de Sternberg. Há, ainda, um terceiro con- até das mudanças que eles fazem em seus planos.
junto de pessoas formado por homens mais jovens Como essas informações chegam até ele? É uma
do que os de negro e, aparentemente, comandados resposta que não temos. Até mesmo parece que
por Irene, namorada de Herrera. Dom Porfirio induz seus homens a buscar a mor-
te, que já está iminente. Talvez porque o antigo
Um mapa de Aquilea, fixado na parede da casa de grupo – representado pelos homens de preto –
Dom Porfírio, serve para traçar estratégias de ata- tenha que desaparecer para que os jovens tomem
que ao grupo inimigo. Mas essas localizações, uma seus lugares, como fica sugerido na cena final.
vez mais, reforçam a ambiguidade já mencionada.
Ao mesmo tempo em que remetem a pontos de Do mesmo modo, Irene é uma personagem que qua-
Buenos Aires, o mapa não reproduz fielmente a se não se revela. Ela desconfia de que algo estranho
cidade portenha, seria mais uma Buenos Aires frag- se passa com Herrera, mas todas as vezes que ele se
mentada, reduzida, ou apenas sugerida. Não pode ausenta em razão de alguma ordem de Dom Porfirio,
deixar de ser levado em conta o nome “Aquilea”, ela vai ao encontro do grupo de homens jovens. E
derivado de Aquiles, um dos heróis da invasão a a trajetória dela é marcada por mistérios: andando
Troia e que alude a uma cidade romana assediada pelas ruas, um jovem parece simplesmente distribuir
e destruída por Átila, não sem antes ter sido co- panfletos, mas o que entrega a ela tem uma mensa-
rajosamente defendida. Na luta entre invasores e gem anexada; também quando ela se dirige a uma
defensores, é feito um percurso pelos vários pontos comum banca de jornal, a revista que pega contém
da cidade, assinalados ao longo do filme: fronteiras outra mensagem, porém o conteúdo desses textos
sul, norte, sudoeste, noroeste. nunca nos é revelado. Ela busca uma encomenda e
não sabemos o que há naquela caixa, tampouco os
Quanto à data, 1957, Hugo Santiago afirma2 que eles motivos que a levam a explodir um carro. Somente
a escolheram justamente por se tratar de um ano em no fim da história, tomamos conhecimento de que
que nenhum acontecimento ficou marcado para a Irene trabalha para Dom Porfirio e, ao passo que

2 BORGES. Variaciones sobre un guión. Dirección: Alejo Moguillansky, 2008. Vídeo (76 min.). Colección Malba.cine − Edición especial. DVD 2.

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Borges e Santiago: uma “invasão” no cinema argentino

ela sabia da ligação do namorado com ele, Herrera E assim, no amálgama de enredo e imagem,
é completamente ignorante da ocupação dela. Invasión vai-se construindo, unindo o estilo de
Santiago que, segundo o crítico David Oubiña,
A primeira “missão” dos homens de preto será “é um cineasta do secreto e do oculto”,3 o que
destruir um caminhão que contém uma certa carga nos faz pensar, também, na sua formação junto a
e, mais uma vez, não se explica o que trazem os Bresson. Soma-se a essas características, o estilo
intrusos. A perseguição a esse carregamento de- de Borges que tem como um dos traços de sua
sencadeará uma luta armada entre os dois grupos escrita a marca desse universo “fantástico” que
e resultará na morte, um a um, dos sete homens do o filme evoca.
bando de Dom Porfirio. A ideia de uma trama que
mais se oculta do que se revela, não está apenas no Com essa pequena análise, não se pretende deixar
enredo, mas mostra-se na construção das próprias uma ideia de que Invasión é um filme fora de qual-
sequências fílmicas. Não assistimos a nenhuma quer contextualização ou interpretação, beirando a
morte dos homens de preto, a não ser o irônico fim inépcia. A nosso ver, seu próprio caráter lacunar já é
de Moon, que caminha até aquele que lhe aponta uma proposta de (re)leitura do que se convenciona
uma arma e, ao ser interrogado se não havia visto chamar de “realidade”, ou pelo menos tal como
o revólver, ele responde que era cego. De Irala, o a julgava Borges: “A realidade não é vaga; é vaga
primeiro a morrer, é mostrado apenas seu corpo nossa percepção geral da realidade.”
em uma das salas de “la quinta de los Laureles”; um
telefonema anuncia o velório de Vildrac; quando No artigo La salvación por la violencia, Gonzalo
Lebendiger é atraído para uma armadilha, vemos Aguilar, analisando o filme de Santiago e a produ-
uma porta que se fecha e ouvimos o estampido ção contemporânea a ele, La hora de los hornos, de
de um tiro; pelo grito dilacerante de Silva, que é Fernando Solanas, pontua a discussão que as duas
capturado junto com Herrera na fuga da quinta, obras oferecem em relação à política argentina.
vem-nos a sugestão da tortura pela qual ele passa; Ambas foram produzidas e estreadas dentro do
e é pela velha faxineira que ajuda Herrera a fugir, conjunto da conturbada circunstância do governo
que temos a confirmação da morte do médico; o militar de Onganía e podem sugerir uma crítica aos
corpo de Cachorro aparece pendido numa poltro- acontecimentos de então. Entretanto, enquanto no
na da sala de cinema, onde ele havia entrado para filme de Solanas é patente a militância, na produção
assistir a um western; por fim, o último a morrer é de Santiago essa seria só mais uma das vertentes
Herrera, cujo corpo é encontrado por Dom Por- possíveis de interpretação.
firio no estádio de futebol, onde supostamente os
invasores haviam montado uma estação de rádio. Mas Invasión tampouco é somente essa remissão
ao coetâneo. Como interpretação política, ele
Quando a personagem Herrera, protagonista da tanto pode remeter à opressão de um passado
história, faz sua primeira aparição na tela, ele está mais distante, colonial, já que não deixa de ser
caminhando rente a um muro por uma rua escura uma “invasão” o sistema do colonizador que, por
e vazia. Embora seus passos pareçam seguros, de vezes, subtrai e extingue a cultura do dominado,
repente, ouvem-se ruídos, os quais não sabemos de como ao futuro, pois, embora não saibamos o que
onde vêm nem de quê são. E no momento em que trazem os homens de branco, eles estão cercados
ele para e mira algo distante com um binóculo, em por aparatos tecnológicos: vários televisores, má-
vez de ele girar o corpo como quem perscruta tudo quinas de escrever e aparelhos telefônicos na sala
em derredor, é a câmera que girará sobre ele, como a onde prendem Herrera, sem contar o pátio lotado
demonstrar que ele também é observado, deixando- de carros, o que pode aludir ao sistema de controle
nos a impressão de que há algo fora de campo, tanto proporcionado pelos aparatos tecnológicos tão
do alcance da personagem como do nosso. em voga na atualidade. E tantas outras formas de

3 OUBIÑA, Davi (Org.). Invasión. Edición especial. Buenos Aires: Fundación Eduardo F. Constantini, 2008. p. 19.

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Com a
cine palavra,
o cinema

manipulação que estão dispersas pela sociedade – o que motiva a resistência – e não se chega a uma 45
cultural, política, econômica, ideológica – e que se solução, temos várias perguntas e nenhuma resposta.
exercem independentemente do consentimento
ou consciência do corpo social caberiam nessa E para coroar a ideia de uma trama que remete ao
simbólica trama. Nesse sentido, são emblemáticas para “além de”, a um sempre possível “a mais”, o
as palavras da personagem Herrera: “Dom Porfírio, modo no mínimo intrigante como o filme se en-
eu cumpri sempre o que o senhor me mandou, mas cerra, ou melhor, deixa-se em aberto. Dom Porfirio
esta cidade não tem remédio. Para quê morrer por recebe um telefonema (não sabemos de quem), mas
gente que não quer se defender?” fica subentendido que se trata de uma má notícia.
Ele segue para “La Cancha”, onde Herrera tinha
É corrente nos filmes que tratam de uma “invasão” sido cercado por um imenso batalhão de homens
ameaçadora que deve ser evitada a todo custo o de branco, e lá encontra o corpo do companheiro
apelo a seres extraordinários: extraterrestres, zum- no centro do campo de futebol. Na tela, aparece a
bis, monstros e, não raro, as personagens, quando palavra “Fim”. No entanto, o filme abre mais um
humanas, são dotadas de força especial, seja por plano sequência e temos Dom Porfirio, junto a Ire-
poderes próprios ou pelas armas que usam. A ne, falando àquele grupo dos homens mais jovens:
obra de Santiago e Borges dissipa qualquer apelo “Tantos anos estive preparando-os. Eles já estão
a esse tipo de estratégia e coloca em cena homens adentro. Agora começa a resistência. Agora cabe
comuns, em situação incomum ou “situação fan- a vocês, os do Sul”, e Irene passa a entregar armas
tástica”, como dito pelo próprio Borges. de fogo a cada um desses jovens. Dessa forma, o
filme não se deixa terminar. Pode ser que esteja
A partir dessa perspectiva, é possível apreender encerrada a geração de Herrera, mas o campo do
o que o crítico Gonzalo Aguilar aponta sobre a conflito continua a existir. Como afirma o crítico
questão da alegoria no filme. Para ele, o cinema Oubiña, “O filme presta-se a muitos sentidos e, por
argentino, até então, apoiava-se em duas estratégias sua vez, não se entrega a nenhum”.4 Uma afirmação
para tratar do tema político: o eufemismo e a ale- que também caberia a muitos textos borgeanos.
goria. Com os filmes La hora de los hornos e Invasión,
esse tipo de ancoragem se encerra, pois o filme de Nesse aspecto, pode-se afirmar que Invasión traz em
Solanas, pelo caráter claramente partidário e docu- seu bojo a marca da literatura de Borges. A epopeia
mental com que trata o assunto, lança fora qualquer do homem comum, o culto à coragem, o indivíduo
atenuante que poderia dar-se ao tema. Já Invasión de que caminha ao encontro de sua morte, o Acaso como
tal forma trabalha a estética das imagens, que não regente da vida humana tanto são também reconhe-
se transforma em alegoria, pois não se permite a cíveis na trama do filme como em vários contos do
um código de tradução evidente. autor portenho. As sete personagens que formam
o grupo de Dom Porfírio são tipos extremamente
Se o filme dissipa o alegórico é justamente porque, ordinários, até mesmo medíocres: de um homem
sendo de tal maneira fluido e oscilante, acaba por não casado a um alcoólatra, de um engenheiro cego a um
se enquadrar em um discurso que alude a outro ou conquistador de charme duvidoso, eles estão longe
que fala de uma coisa referindo-se a outra. Podendo de corresponder ao que comumente se espera de um
aludir a uma situação, ao mesmo tempo, ele remete a herói: seres nobres, de conduta e caráter irrepreensí-
nenhuma específica. É uma obra em que os sentidos veis. O próprio Borges dá testemunho acerca disso:
oscilam, escapam e, quando parecem direcionar-se “São homens como todos os homens; não são espe-
para um campo de interpretação, eles se esvaem em cialmente valentes, nem, salvo um, excepcionalmente
vários outros sem nunca deixar-se reter. Isso porque fortes. São gente que trata simplesmente de salvar a
o filme fica no entremeio: não há um ponto de ori- pátria desse perigo e que vão morrendo ou deixando-
gem – não se sabe o motivo da invasão, tampouco se morrer sem maior ênfase épica.”

4 Ibidem, p. 26.

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Borges e Santiago: uma “invasão” no cinema argentino

Não obstante, sob a aparente banalidade, cada não são personagens que agem, no geral, contrários
um deles irá enfrentar sua própria morte, pondo à à conduta de indivíduos comuns, mas estão inseridas
prova seus limites e coragem − tal como vimos em em uma situação fantástica. Essa forma de elaboração
outras personagens de Borges. Se, para o escritor que funde o factual com o hipotético, que usa de
portenho, tal como dizem Aguilar e Jelicié, não é elementos concretos para as mais altas abstrações,
possível haver nobreza na multidão, Invasión leva é uma das bases sobre as quais se afigura Invasión e
ao limite o destino individual: cada um encontrará provoca o jogo de hesitação que marca todo o filme.
na morte a insígnia de sua própria vida. Irala, que
nunca conseguiu dissimular sua covardia, oferece- Não é difícil reconhecer essa estratégia em outros
se para entrar na chácara de “Los Laureles”, a fim textos borgeanos. Tlön é um mundo fantástico,
de distrair os inimigos para que seus companheiros imaginário, mas a composição desse universo
pudessem roubar o caminhão. Sua fala, sintética, é transita entre a correspondência com esse nosso
emblemática: “Se alguém tem que morrer, o mais mundo − há língua, há filosofia, há literatura –
indicado sou eu. Vocês podem oferecer sua valentia; porém, ao mesmo tempo, não há equivalência,
eu só posso oferecer minha morte.” Vildrac, que se pois em Tlön não importam os conceitos ou os
vê ferido por ter-se posto em linha de frente contra sistemas lógicos. A própria categoria do tempo
os invasores na quinta, só pede aos amigos que dis- está fora de qualquer determinação e o adjetivo,
simulem para a esposa o real motivo de sua morte. em detrimento dos substantivos, demonstra que
Cachorro, uma personagem aficionada por filmes não há conceitos, pois as coisas são permutáveis
de faroeste, não por acaso, é assassinado durante a ao invés de estáveis. Nada mais intrigante do que
exibição do filme La pantera de México, justamente objetos de culto em Tlön aparecerem no mundo
em um momento em que se deleitava assistindo à real. Sem contar os protagonistas, reconhecíveis
cena de um tiroteio. Lebendiger é atraído a uma como Borges e Bioy, os escritores e amigos que
armadilha por uma jovem e bela mulher, o que o estão em uma discussão sobre a elaboração de
surpreende, mas ao mesmo tempo coloca-o frente um romance, o que parece muito provável, o im-
a si mesmo, já que lhe era próprio conquistar para provável é a busca por uma enciclopédia de Tlön.
enganar. Moon não consegue enxergar a arma que
lhe é apontada e Silva recita fragmentos da milonga Um outro texto que trava um diálogo bastante
que havia cantado para os amigos no café: “Essa próximo ao filme é A loteria na Babilônia. De início,
coisa tão de sempre, tão doce e tão conhecida; e tal como o filme, evoca-se uma cidade de referência
com a bala, o esquecimento; disse o sábio Merlim: histórica, mas não sem estar cercada de simbologia.
morrer é ter nascido.” Herrera, o qual dissera a Dom O que é a loteria na Babilônia senão um sistema que
Porfirio que havia desistido da luta, por fim, acaba rege a vida dos homens à deriva deles? Nesse conto,
por, uma vez mais, tentar impedir alguma investida tudo está pautado em um jogo que, a princípio, era
dos invasores e será este seu último intento, como praticado por alguns poucos. Porém, depois de al-
que encerrando a etapa da luta daquele grupo. gumas reconsiderações, a loteria passa a ser “secreta,
gratuita e geral” e “é parte principal da realidade”. O
Borges, em um breve relato que faz sobre o filme, narrador nos diz que o povo da Babilônia é devoto
defende que essa obra trabalha um novo tipo de da lógica e da simetria, o que parece contradizer
“fantástico”, já que não se trata de uma ficção cien- uma sociedade de homens cujas vidas e destinos são
tífica, nem é povoada por seres de outro mundo; definidos através de um sorteio ou de uma combi-

5 Referências bibliográficas: AGUILAR, Gonzalo. La salvación por la violencia: Invasión y La hora de los hornos. In: ______. Episodios
cosmopolitas en la cultura argentina. Buenos Aires: Santiago Arcos, 2009. p. 85-120; ______; JELICIÉ, Emiliano. Borges va al cine. Buenos
Aires: Libraria, 2010; AQUILEA: Nueve pequeños films sobre Invasión. Direción: Alejo Moguillansky, 2008. Vídeo (47 min.). Colección
malba.cine − Edición especial. DVD 2; BORGES, Jorge Luis. Obras completas. vol. I. São Paulo: Globo, 1998; ______. Obras completas
II: edición crítica. Anotada por Rolando Costa Picazo. Buenos Aires: Emecé, 2010; ______. El cinematógrafo, el biógrafo. In: ______.
Textos recobrados (1919-1929). Buenos Aires: Emecé, 2007. p. 468-472; CASARES, Adolfo Bioy. Borges. Edición al cuidado de Daniel
Martino. Barcelona: Backlist, 2011; JOSEF, Bella. A crítica cinematográfica de Jorge Luis Borges. In: SCHWARTZ, Jorge. Borges no
Brasil. São Paulo: Ed. Unesp; Imprensa Oficial, 2001. p. 135-145; SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. Trad. Samuel
Titan Jr. São Paulo: Iluminuras, 2008.

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Com a
cine palavra,
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nação de sorteios. É justamente nessa contradição Aquilea e tantas outras criações que permeiam o
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– entre outras sugeridas no decorrer do conto – que universo borgeano.
reside uma das tônicas do texto. A racionalidade é
um dos pilares mais fortes sob o qual se constitui a É bastante peculiar, em Borges, esse posiciona-
cultura ocidental, que se apoia na crença na ciência, mento, às vezes até irônico, de colocar em dúvida a
na tecnologia, no conhecimento humano como possibilidade de o “universo” corresponder a uma
forma de gerir o corpo social, de modo que todas concatenação regida pela lógica, em que os fatos
as coisas são explicáveis e cabíveis em uma perfeita correspondam a uma ordem de causa e efeito. Em
relação de causa e efeito. A loteria na Babilônia coloca muitos de seus textos fica a ideia de que há um para
em xeque essa ideia do domínio humano absoluto além – da razão, do inteligível, do explicável, do
sobre a própria vida. Os agentes da “companhia” visível, do palpável. E o autor logra essa dimensão
são secretos assim como suas decisões. Decisões em sua obra sem apelar a uma fantasia ou artifi-
essas que provocam “toda sorte de conjeturas”. cialidade extremadas. Trata-se, como já afirmou a
Tal como os invasores de Aquilea, a Companhia crítica Beatriz Sarlo, de um “pesadelo racional”,
nunca se identifica, nunca expõe seus motivos, não que também se evidencia em Invasión. A cidade de
se justifica; ela somente age. Buenos Aires,
que no roteiro
Uma lenda histórica ou uma história lendária? Aqui- de Borges e
É nessa tensão entre os elementos concretos – lea ou Buenos Aires? A luta existe, mas por que se Bioy Casares
parece ter
homens comuns, nomes próprios, objetos de uso luta? São questões que o filme propõe, sem nunca inspirado a
trivial, lugares reconhecíveis – e, ao mesmo tempo, respondê-las. Um filme em que, depois do “fim”, Aquilea de
Invasión.
uma situação que escapa a uma explicação lógica há continuidade. Nada que se estranhar quando se Correio da
e racional, que reside Tlön, a biblioteca de Babel, sabe que a assinatura de Borges faz parte do texto.5 Manhã
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O clássico de Joaquim Manuel


de Macedo, A moreninha,
chegou às telas de cinema em
1970, pelas mãos do diretor
Glauco Mirko Laurelli. Na foto,
os atores Sônia Oiticica, Nilson
Condé, Carlos Alberto Riccelli,
Tony Penteado, David Cardoso,
Tereza Teller e Sônia Braga.
Correio da Manhã

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Benedito Veiga Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia e pós-doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São
Paulo. Professor do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana. Autor dos livros Dona Flor e seus dois maridos: uma
história de cinema (Via Litterarum, 2009), Dona Flor da Cidade da Bahia (7 Letras, 2006), entre outros.

Jorge Amado,
articulador das manifestações culturais
Um recorte nas artes plásticas e no cinema da Bahia

Vista de Salvador, Bahia, maio de 1964. Referência cultural


na vida e obra de Jorge Amado. Correio da Manhã

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Jorge Amado
toma posse
na Academia
Brasileira de
Letras em
1961. Correio
da Manhã

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Com a
cine palavra,
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O pintor Carybé em foto de


1965. Correio da Manhã

Uma introdução amadiana A primeira obrigação a se fazer quando nesse solo se


põem os pés, quando aqui se desembarca, é dar de
Este é um tema costumeiro na biografia de Jorge beber a Exu para assim lhe conquistar as boas graças,
Amado. Teríamos de fazer um recorte ao lon- impedindo que se venha perturbar a festa com suas
go de sua vida para tentarmos dar vencimento diabruras e arrelias. Para não se escorregar numa
em apenas uma etapa, sobretudo, quando nos ladeira calçada de pedras negras e antigas, para não
fixamos, tão só, em sua terra natal, o que requer se correr susto num beco de fantasmas, para evitar
também outra delimitação, ou seja, sua fixação os ebós, os feitiços, as coisas-feitas.1
em sua urbe preferida, mas não a de nascimento,
Salvador, chamada pelo artista e pelos mais anti- Amado, como um dos pioneiros nos tratos literá-
gos moradores de Cidade da Bahia, tomada com rios com os marginalizados − principalmente, os
todas as idiossincrasias democráticas amadianas: negros e os relegados ao abandono ou ao desprezo
sua preocupação de mostrar a todos um modo de social −, oportuniza constantemente a criação de
viver culturalmente misturado, numa localidade um universo de denúncias de injustiças, vigentes
que apresenta em sua estrutura os traços negros ainda na sociedade brasileira.
dominantes, mas não portadores das marcas do
mando, ao lado dos da ancestralidade nativa e a Uma articulação com as artes plásticas
dos conquistadores portugueses europeus, como,
por exemplo, constatamos em seu livro Bahia de Excetuando seus dois livros iniciais de ficção,
Todos os Santos: guia de ruas e mistérios: País do carnaval, de 1931, e Cacau, de 1933, o
escritor sempre procurou associar sua criação
Quem guarda os caminhos da cidade do Salvador da artística com as artes plásticas, colocando um
Bahia é Exu, orixá dos mais importantes na liturgia ilustrador, com certa evidência, para um diálogo
dos candomblés, orixá do movimento, por muitos com seu tema, como são exemplos: Santa Rosa,
confundido com o diabo no sincretismo com a re- Mário Cravo Júnior, Carybé, Oswaldo Goeldi,
ligião católica, pois ele é malicioso e arreliento, não Poty, Clóvis Graciano, Frank Schaeffer, Carlos
sabe estar quieto, gosta de confusão e de aperreio. Scliar, Renina Katz, Di Cavalcanti, Glauco Rodri-
Postado nas encruzilhadas de todos os caminhos, gues, Floriano Teixeira, Aldemir Martins, Jenner
escondido na meia luz da aurora ou do crepúsculo, Augusto, Calasans Neto, Otávio Araújo, Carlos
na barra da manhã, no cair da tarde, no escuro da Bastos etc., o que atualmente − após sua morte
noite, Exu guarda sua cidade bem-amada. Ai de − tem sido cortado pela Editora Companhia das
quem aqui desembarcar com malévolas intenções, Letras em suas mais recentes edições, publicadas
com o coração de ódio ou de inveja, ou para aqui sem as ilustrações originais.
se dirigir tangido pela violência ou pelo azedume:
o povo dessa cidade é doce e cordial e Exu tranca Esse convívio proveitoso − e provocador! −
seus caminhos ao falso e ao perverso. entre o literato e o artista plástico tem sido de

1 AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. 40. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 16.

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Jorge Amado, articulador das manifestações culturais

enorme utilidade para os receptores das obras Para mostrar uma espécie de caminho entre o
de Amado. Myriam Fraga, artista e amiga pessoal ficcionista e o ilustrador, talvez seja pertinente
dos Amado, em Bahia, a cidade de Jorge Amado, apresentarmos Teixeira, via Cravo Júnior, indi-
livro de depoimentos sobre a vida e a obra do ciando este as rotas da amizade, da opção do
escritor, argumenta: ficcionista e da competência do escolhido, como
nos permite observar Fraga:
Foi a partir de Suor, em1933, que as ilustrações pas-
saram a fazer parte integrante de sua obra − mas não Mário Cravo − Sim, mas aí é que está a história. É
por imposição do editor, ou por um capricho editorial, preciso explicar às pessoas que não se escolhe um
mas porque a relação com os ilustradores é visceral e ilustrador, nem se torna amigo, sem uma relação
profunda. Da mesma forma que é profunda e visceral do escritor com o ilustrador, com o desenhista, sem
a necessidade de cercar-se de obras de arte, que fazem que o desenhista dê o ar de sua graça. Esse homem
de sua casa − quer esteja na Bahia, no Rio de Janeiro [Floriano] é um dos mais meticulosos e expressivos
ou em Paris − uma referência cultural, consignada desenhistas que apareceram nessa cidade nos últimos
através de quadros, cerâmicas, esculturas, azulejos, 50 anos. Então, um material bom para Jorge Amado,
fragmentos de uma visão de mundo que não prescinde lógico, está certo? Vamos fazer um parêntese aqui para
da beleza como uma marca de humanismo.2 notarmos que, antes de um grande escritor escolher
seu ilustrador, o cara tem que mostrar que é bamba
A Fundação Cultural Casa de Jorge Amado, sob o no uso do desenho e dessa exposição eu me lembro
comando executivo de Fraga, promoveu, em 2000, muito bem. Foi uma exposição fantástica! Estou
no Pelourinho, um encontro com ilustradores da falando isso, só para ajudar um pouco, para vocês
produção amadiana, reunindo alguns de seus cria- verem como a ilustração é ligada ao desenhista, ao
dores fixados em Salvador: artista e, eventualmente, ao escritor.4

Se alguns, como Carybé e Floriano Teixeira, escolhe- A escolha do ilustrador não é aleatória, mas, na
ram viver na Bahia, após a leitura de Jorge Amado, verdade, um reconhecimento de seus méritos,
outros, como Mário Cravo e Carlos Bastos, foram uma aprovação de suas realizações num cami-
seus companheiros na efervescência do final dos nho percorrido.
anos 50, início de 60, quando o romancista decidiu
fixar residência em Salvador. Calasans Neto, embora Outra prova das ligações de Amado com os artis-
de uma geração posterior, logo teve seu talento de tas plásticos: conforme o relatado em Navegação
então jovem artista reconhecido e estimulado por de cabotagem, quando o governador do estado da
Jorge Amado, de quem se tornou, além de parceiro, Bahia, o arenista convicto Antônio Carlos Ma-
um dos mais queridos amigos.3 galhães, convidou o ficcionista para, por meio de
suas relações e influências, ajudá-lo na decoração
Essa mesa-redonda, composta de Calasans Neto, do Centro Administrativo da Bahia, na época em
Carybé, Carlos Bastos, Floriano Teixeira e Mário fase de construção. Escreve o autor:
Cravo Júnior, todos eles ilustradores de produções
de Amado, serviu para testemunhar o relaciona- Toninho pretende colocar painel de artista baiano
mento efetivo, acompanhado do respeito recíproco em cada um dos edifícios, decorar salas e gabine-
às relações no trato entre as partes interessadas, tes com óleos e aquarelas, desenhos, deseja que
mostrando “o clima de informalidade e irreverência sua administração decorra sob o signo da arte,
que costuma presidir as reuniões destes artistas”. pede-nos, a Jenner e a mim, que o ajudemos no

2 FRAGA, Myriam (Org. e apres.). Bahia, a cidade de Jorge Amado. Salvador: FCJA; Museu Carlos Costa Pinto, 2000. p. 190.
3 Ibidem, p. 189.
4 CRAVO, Mário apud FRAGA, Myriam, op. cit., p. 194.

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projeto. Aceitamos a prebenda, parece-nos válida dois maridos (Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno 53
por todos os motivos: inclusive por bem-vinda às Barreto, em 1976); Otália da Bahia (Os pastores da
finanças sempre parcas dos artistas. 5 noite, em 1976, de Marcel Camus); Tenda dos milagres
(Tenda dos milagres, em 1977, de Nelson Pereira dos
Posteriormente a esse fato, constatamos no citado Santos); Gabriela (Gabriela, cravo e canela, em 1983, de
centro da administração alguns painéis de criadores Bruno Barreto); Jubiabá (Jubiabá, em 1987, de Nel-
locais, inaugurados ou adquiridos num dos três son Pereira dos Santos); Tieta (Tieta do Agreste, em
governos de Magalhães. 1996, de Cacá Diegues); Capitães da areia (Capitães
da areia, de Cecília Amado, em 2011).
Uma história com
o cinema

No mais amplo, as ligações da


literatura com o cinema são costu-
meiras e remotas. A ficção escrita
tem fornecido oportunidades, em
todas as épocas, de elaboração de
roteiros cinematográficos adapta-
dos, com premiação considerável,
como as atribuições do Oscar, pela
Academia de Artes de Hollywood,
na categoria melhor filme: E o vento
levou... (de 1939), Casablanca (de
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1943), A malvada (de 1950), A volta


ao mundo em 80 dias (de 1956), O po-
deroso chefão (de 1972) etc., sem citar
os clássicos do teatro, a exemplo de
Hamlet (de 1948), My fair lady (de
1964) e muitos outros.

Em termos nacionais, dois dos


nossos literatos mais consagrados
− Jorge Amado e Nelson Rodrigues −
têm vários de seus trabalhos adaptados cinema- Um dos primeiros a indicar as tendências cinema- Sônia Braga
tograficamente − com cerca de dez de cada um tográficas da obra de Amado foi Glauber Rocha, e Marcello
Mastroianni
deles usados −, ocupando os primeiros lugares na ao publicar no Suplemento Dominical do Diário em Gabriela
preferência dos cineastas. de Notícias, de Salvador, Bahia, seu segundo artigo (1983), filme de
Bruno Barreto
sobre Gabriela, cravo e canela, em 8-9 de maio de baseado no
A partir da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, 1960, provocativamente intitulado “Cravo e canela romance de
Jorge Amado.
aparecem adaptações, nacionais ou internacionais (ou Jorge diretor de cena)”: Serviço de
amadianas, enumeradas não exaustivamente: Terra Censura de
Diversões
é sempre terra (Terras do sem fim, em 1951, de Tom O metteur-em-scène que existe em Jorge Amado assegura Públicas - RJ
Payne); Seara vermelha (Seara vermelha, em 1962, de futuro eterno para Gabriela. Um romancista não se
Alberto D’Aversa); Os capitães da areia (Capitães da basta como apenas criador de personagens. Há quem
areia, em 1971, de Hall Barlett); Dona Flor e seus crie os tipos, há quem cave o espírito do homem até

5 AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 3. ed. Rio de Janeiro: Record,
1994. p. 454.

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Jorge Amado, articulador das manifestações culturais

os últimos motivos de seu conflito. O romance des- característica marcante da personagem, como no
critivo psicologista é mestre nisto: debruçado numa exemplo: Gabriela é esguia!
cadeira, mesa, janela, cama, margem de lago, banco
de jardim, o camarada começa a pensar. Rompe É conveniente acrescentar que Amado nunca foi
noites e auroras naquela crise perpétua, à espera de contrário às adaptações de seus trabalhos: E, sem
uma Verdade. Ora, o romance intimista que se faz no preocupações com a fidelidade a modelos, entende
Brasil, salvo o falecido Cornélio Pena, é todo ele um que uma adaptação de um romance para outro meio
exercício intelectual e não vivencial de homens que, de comunicação só é válida se ela for uma recriação
adquirindo uma problemática através da cultura, lutam da obra literária, assume-se, pois, − sem dogmatismos
por fazer realidade suas existências, superproblemas − como trabalhador, no desempenho de seu oficio,
jamais possíveis de acometer a espécie humana em como se expressa sobre as arrumações de Dona Flor,
nosso meio social.6 em suas diversas mudanças, pelos variados cantos:

Rocha recusa a ficção descritiva psicologista, que Foi francesa, russa, norte-americana, checa, argentina,
foge de retratar a realidade interna e dominante turca, húngara ou búlgara, adquiriu acento português
no país, numa situação muito mais próxima da nas ruas de Lisboa, andou Europa e Ásia, sua face
obra amadiana, e aponta que o escritor se vale do múltipla repetida, seu jeito igual, a reserva, a ânsia, o
descritivo para fixar as marcas do tratamento social ímpeto e o amor queimando coração e corpo.8
das personagens, como exemplifica o crítico:
O escritor reconhece que Bruno Barreto deu-lhe
Chegamos, do outro lado (opostamente a Jorge Ama- uma identidade estrita: a beleza e o talento de
do) para encontrar outro metteur-en-scène no romance Sônia Braga, rodeada da atmosfera da Bahia; a
brasileiro. Explico isto, a fim de deixar bem claro que interpretação dos atores, a escolha e a marca dos
o importante não é ser ágil, violento, lidar com cem instrumentais técnicos do filme. E acrescenta:
personagens ao mesmo tempo. Isto é muito impor- “Feliz Dona Flor, com tantos pais, tantas faces,
tante como ser calmo, lento, escorregadio, reticente, seus maridos e a vitória final do amor, repetindo-se
lidar com dois a três tipos humanos. O fundamental no livro, no desenho, no quadro, no cinema, nas
é o sujeito saber alguma coisa na arte do romance. traduções pelo mundo afora”.9
Não saber é que não vale e esta incapacidade gera
os subprodutos. Jorge Amado sabe, trabalhando um A conclusão convida à quebra de fronteiras entre
romance − com destaque Gabriela e Quincas − criar as artes, entre os diversos níveis culturais, para a
toda uma sequência na qual os personagens se agitam inserção da obra no mercado cultural e global, para
visualmente, tão bem desenhados são. O método a aceitação das diversas traduções, para a publici-
descritivo de Jorge Amado é rápido: dade continuada, como em Dona Flor.
“Ainda agora, através da sujeira a envolvê-la, ele
a enxerga como a vira no primeiro dia, encostada Um encaminhamento conclusivo
numa árvore, o corpo esguio, o rosto sorridente,
mordendo uma goiaba...”7 Amado, principalmente no âmbito da Bahia, exer-
ceu um papel importante no incentivo literário,
A prosa contida, bem observado o ambiente, prefaciando jovens autores, comparecendo a lan-
rápida, aproxima o literato do cineasta, tornando- çamentos de livros, indicando editores. Por vezes,
o − no dizer de Rocha − um romancista cine- quando estava em terra, comparecia a seminários
matográfico, que cria, em poucas palavras, uma ou a atividades intelectuais, dando entrevistas nos

6 ROCHA, Glauber. Cravo e canela (ou Jorge diretor de cena). Diário de Notícias, Salvador, 8-9 mai. 1966. Suplemento Dominical, p. 1.
7 Ibidem, p. 112.
8 AMADO, Jorge. A dona Flor de Bruno Barreto. A Tarde, Salvador, 26 nov. 1976. Caderno 1, p. 2.
9 Idem.

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jornais, ou participando de outras atividades afins, nas − gravadores (como Calasans Neto), pintores
55
como registra Benedito Veiga, em Dona Flor da (como Carlos Bastos), escultores (como Mirabeau
cidade da Bahia: Sampaio), desenhistas (como Floriano Teixeira),
tapeceiros (como Genaro de Carvalho), alguns já
Jorge Amado desponta como catalisador dessas metas distinguidos nacional ou internacionalmente.
artísticas variadas; é chamado a atuar e também, por
iniciativa própria, atua. Parte de sua obra literária não Com o acontecimento da I Bienal Nacional de
contesta isso. Antes mesmo de concluir Dona Flor, Artes Plásticas da Bahia, realizada com sucesso em
ele já se envolvera com a proposta do livro Bahia, boa 1966, no espaço do Convento do Carmo, o escritor
terra, Bahia, desde o início de 1966. Diz Flávio Damn, dela também toma parte, divulgando-a e participan-
fotógrafo da empreitada, que, para “[...] ilustrar o livro do de sua Comissão Executiva, sob a presidência
de 128 páginas que fará sobre a Bahia”, [...] “vai utilizar da sra. Hildete Lomanto, tendo como conselheiros
120 fotografias, que escolherá entre 9 mil que serão do certame, além de Amado, Odorico Tavares,
tiradas em todo o Estado”.10 José Rescala, Carlos Eduardo da Rocha, Antônio
Celestino, D. Clemente Nigra e Godofredo Filho.11
Outra comprovação: na lista dos produtos nacionais
de exportações, não poderíamos excluir o trabalho Estas são apenas algumas anotações ligeiras sobre
de artistas plásticos baianos ou com residência Jorge Amado, como articulador de algumas mani-
local, todos, de certa forma, com ligações amadia- festações culturais na Bahia.

Floriano Teixeira,
pintor maranhense que
ilustrou livros de Jorge
Amado. Correio da
Manhã
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10 VEIGA, Benedito. Dona Flor da cidade da Bahia: ensaios sobre a memória da vida cultural baiana. Rio de Janeiro; Salvador: 7 Letras;
Casa de Palavras/FCJA-FAPESB, 2006. p. 106.
11 NOTA DE REDAÇÃO. Hildete na presidência da Bienal. Diário de Notícias, Salvador, 21 dez. 1966. Caderno 1, p. 1.

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Vladimir Carvalho (à esquerda)
dirige as filmagens de O
país de São Saruê (1971),
documentário inspirado
na literatura de cordel do
paraibano Manoel Camilo dos
Santos. Correio da Manhã

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Rodrigo Cazes Costa Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor adjunto no curso de Produção
Cultural da Universidade Federal Fluminense, em Rio das Ostras.

Carolina de Jesus
e Ozualdo Candeias:
literatura, cinema, cultura popular

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BR_RJANRIO_PH_0_FOT_26878_006

Carolina de Jesus
no lançamento de
seu livro Quarto de
despejo, em agosto
de 1960.
Correio da Manhã

A escritora à beira
do rio Tietê, ao
lado da Favela do
Canindé, onde
morava, em São
Paulo, 1960. Correio
da Manhã

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Brasil nos anos 1950-1960: cultura Uma aliança importante havida naquele período era
popular e arte revolucionária entre essa arte produzida no Brasil, que Ridenti ob-
serva como nutrida por um espírito revolucionário,
O Brasil, nos anos 1950 e 1960, vivia um período e a cultura popular. Se havia algo de bom no país,
rico em sua história cultural e política. De um lado, em contraposição ao comportamento excludente
aqueles que buscavam, em meio ao processo de in- de boa parte das elites brasileiras, era essa cultura
dustrialização e urbanização vivido pelo país, garantir produzida “espontaneamente” pelo nosso povo.
melhores condições de vida para a população em O samba, o carnaval, as religiões afro-brasileiras,
geral. Por essa população podemos entender tanto o falar do sertão. Havia um sentido de relevância
aqueles que ainda viviam no campo quanto as mas- estética, dignidade e pureza nessas manifestações
sas que se deslocavam para os centros urbanos em que as faziam servir de matéria-prima para as
busca de melhores condições de vida. De outro lado, criações de uma elite intelectual ainda herdeira das
estavam aqueles que pretendiam que a modernização propostas modernistas. Bossa Nova, Grande sertão:
tivesse um caráter conservador, privilegiando, em veredas, Deus e o diabo na terra do Sol, os afro-sambas,
sua estrutura e métodos, as elites econômicas do Orfeu no carnaval, todas elas manifestações artísticas
país, ou seja, uma ínfima parcela da população. Os que apresentavam essa crença na arte popular bra-
conservadores foram, como sabemos, os vencedores sileira como elemento fundante de um novo país,
desse embate após o Golpe Civil-Militar de 1964. mais justo e próspero para toda a sua população.

Como bem observa Marcelo Ridenti,1 a cultura Se havia uma enorme estima por essa contribuição
servia como metáfora do embate em torno de um popular como matéria-prima a ser transformada
projeto de nação mais à esquerda ou mais à direita, pelo filtro estético do modernismo, da vanguarda,
havendo no ar um espírito revolucionário por parte havia, em paralelo, uma grande idealização do que
da maioria das manifestações culturais brasileiras à era essa entidade sem forma denominada povo. A
época, mesmo que muitos dos artistas envolvidos instituição que melhor simbolizou a visão, muitas
nessas manifestações não fossem propriamente vezes equivocada e ingênua, do falar pelo povo, de
marxistas em busca de uma revolução que visava se fazer procuradora do povo, era o Centro Popu-
a tomada de poder. De qualquer maneira, como lar de Cultura da União Nacional dos Estudantes
assinala Roberto Schwarz,2 a cultura imbuída por (CPC da UNE). Apesar de seu importante papel de
esse espírito revolucionário de esquerda continuou fomentador da produção artística, servindo como
predominante no processo cultural brasileiro até a uma instituição que viabilizou a produção cultural
decretação do AI-5, no final de 1968, mesmo com de artistas como Ferreira Gullar, Eduardo Couti-
a política sendo dominada pela aliança de setores nho, Leon Hirszman e outros. O CPC também não
empresariais, civis e militares, com seu projeto de era adepto da arte de vanguarda, ou seja, para os
modernização conservadora. princípios de conscientização política proclama-

1 RIDENTI, Marcelo. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. Tempo Social, revista de Sociologia da USP, v. 17, n. 1, 2005.
2 SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias

dos pelo CPC em seu manifesto (ver os dados do Personagem das migrações do campo para a cidade,
manifesto) era preciso que a arte fosse didática, a em busca de melhores condições de vida para uma
fim de ser compreendida pelo público a quem se descendente de escravos, Carolina de Jesus narra a
destinava. Subestimava a capacidade do povo em sua vida, do nascimento até a chegada em São Pau-
falar por si e em entender o que lhes era dito. lo, no livro de memórias Diário de Bitita,3 publicado
primeiro na França e depois no Brasil. Quando da
É nesse período, cujas linhas de força que anima- publicação do diário na França, no início dos anos
vam a política e a cultura hoje parecem distantes, 1980, Carolina já havia sido esquecida no Brasil. É
que surgem dois artistas cujas trajetórias singulares o retrato, ao mesmo tempo, das agruras pelas quais
seguirão, resumidamente, neste artigo: Carolina de passava (e ainda passa) a população miserável e
Jesus e Ozualdo Candeias. pobre do Brasil e a personalidade de uma mulher
que não se conformava em exercer as profissões
Carolina de Jesus, favelada, negra, pobre, com que eram destinadas aos que, como ela, vinham das
pouquíssima escolaridade, mesmo assim escritora camadas mais baixas da população. Por não querer
de um diário que pode ser colocado entre o que ser empregada doméstica, vivendo em regime de
de mais potente se produziu na literatura brasileira, semiescravidão, Carolina migra para São Paulo,
logo a literatura, a mais elitista das artes. onde acaba por viver na Favela do Canindé, local
próximo de onde hoje fica a Marginal Tietê. É neste
Ozualdo Candeias, caminhoneiro, fiscal de obras, local que ela irá escrever seu livro mais importante,
entre outras profissões sem nenhum glamour. Re- Quarto de despejo.4
alizou seu primeiro longa-metragem, A margem
(1967), com quase 45 anos, idade que Glauber A primeira edição de Quarto de despejo, publicada
Rocha (1939-1981), mestre de nosso cinema em 1960, ocorreu por um acaso. Audálio Dantas,
moderno, nem chegou a completar. Carolina de jornalista, trabalhava na Folha da Noite e fazia uma
Jesus e Ozualdo Candeias foram artistas popu- reportagem na Favela do Canindé. Um morador
lares que falaram por si numa época em que não da favela lhe disse que uma mulher, que lá morava,
havia as tecnologias digitais que, nos dias de hoje, escrevia uns cadernos, coisa incomum entre uma
democratizaram a produção e a distribuição de população de analfabetos e pessoas com baixíssima
manifestações artísticas. escolaridade. Audálio Dantas, então, encontrou
Carolina de Jesus e seus cadernos, tornando-se uma
Carolina de Jesus e seu espécie de tutor intelectual e até mesmo econômi-
Quarto de despejo co da escritora, relação cujos conflitos podemos
conhecer melhor no diário que Carolina de Jesus
A literatura é uma manifestação artística em opo- escreveu após Quarto de despejo, Casa de alvenaria.5
sição ao que geralmente se estuda como cultura
popular. Esta é formada por tradições que passam O livro fez um imenso sucesso na época, vendendo
de geração em geração pela via da linguagem oral, mais de cem mil exemplares, quando as edições
sem que haja um registro escrito formal, a não raramente passavam de dois ou três mil. Carolina
ser quando estudiosos coletam as tradições cujos conseguiu dinheiro para sair da favela e comprar
desaparecimentos parecem eminentes. A literatura, uma casa de alvenaria. Transformou-se em uma
portanto, é o que pode passar mais distante de celebridade, mas seu sucesso foi fugaz. Após o
uma produção artística realizada por alguém que Quarto de despejo, Carolina publicou mais alguns
mal teve a oportunidade de frequentar uma escola. livros, gravou um disco, desejava ser artista, ser
famosa, estar na televisão, o que ia de encontro ao

3 JESUS, Carolina de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
4 ______. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2012.
5 ______. Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1961.

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Com a
cine palavra,
o cinema

que dela pensava Audálio Dantas, que acreditava é que Carolina de Jesus era uma mulher solteira
61
estar esgotada a missão de Carolina de Jesus após a no final dos anos 1950, início dos anos 1960, que
publicação de seu diário-denúncia. O sucesso dese- sustentava uma família sem ter um homem a seu
jado por ela não veio e, com a mudança progressiva lado, situação absolutamente impensável para a
do clima cultural no país, ocorrida após o Golpe época. Carolina de Jesus encara a figura de uma
Civil-Militar de 1964, o ideal nacional-popular mulher libertária, que não se submete à estrutura
que Carolina encarnava foi ficando para trás. Ela social de sua época. Ela mantém relacionamentos
acaba por comprar um sítio em Parelheiros, bairro com alguns homens de maneira ocasional, mas
afastado na cidade de São Paulo, espécie de zona afirma a sua condição de mulher independente
rural, onde vem a falecer em 1977, aos 62 anos. da estrutura patriarcal da sociedade, postura que
ficará evidente nos confrontos existentes entre ela
A partir dos vários cadernos de Carolina de Jesus, e Audálio Dantas, por ocasião dos fatos narrados
Audálio Dantas editou a versão publicada em Quar- em Casa de alvenaria.
to de despejo. Militante de esquerda, Audálio tentou
transformar Carolina de Jesus e sua vida sofrida em O estilo de escrita de Carolina de Jesus em Quarto
bandeira da luta popular nos anos 1950-1960. No de despejo é uma mistura de metáforas herdadas do
entanto, o discurso de Carolina era tão poderoso romantismo mais pueril: “O céu está azul e bran-
que dava margem a contradições que nem a edição co. Parece que até a Natureza quer homenagear
do diário conseguia esconder: “...estou residindo na as mães que atualmente se sentem infeliz por não
favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. poder realisar os desejos dos seus filhos.”9 Certa-
Espero que os políticos estingue as favelas”.6 Ao mente, marca do que foi ensinado em termos de
contrário do discurso existente nos dias de hoje, literatura brasileira a Carolina de Jesus nos tempos São Paulo no
em que há uma afirmação da favela como espaço em que ela era estudante e de um realismo brutal: começo da
década de 1960:
produtor de afetos e de cultura, como proclama a “Não tinha gordura. Puis a carne no fogo com a metrópole
famosa música de Claudinho e Buchecha, Carolina uns tomates que eu catei lá na Fabrica Peixe. Puis moderna e
conservadora,
tinha horror ao ambiente em que vivia e sonhava o cará e a batata. E agua. Assim que ferveu eu puis cenário para os
se mudar do quarto de despejo para outro espaço o macarrão que os meninos cataram no lixo”.10 O excluídos sociais
retratados
onde pudesse ser mais feliz: “Sonhei que residia realismo da fome de Carolina de Jesus e seus filhos na literatura
numa casa residível, tinha banheiro, cozinha, copa é um dado que traz um incômodo, que chega a ser de Carolina
de Jesus e
e até quarto de criada.”7 físico, ao ato de leitura de Quarto de despejo, tamanha no cinema
é a força de seu relato. Eu, e imagino a totalidade de Ozualdo
Candeias.
Carolina trabalhava como catadora de papel para ou a imensa maioria dos que me leem, nunca pas- Correio da
tentar ganhar míseros trocados que permitissem sei fome. Mas o relato de Carolina de Jesus sobre Manhã
a ela e aos filhos comprar a comida do dia a dia.
“Cheguei em casa, fiz o almoço para os dois me-
ninos. Arroz, feijão e carne. E vou sair para catar
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papel.”8 A sua vida, assim como um diário, cuja


narrativa tem como característica a fragmentação,
consistia nessa luta diária para obter alimento
para si e sua família, direito básico que era negado
aos que, como ela, viviam na favela, o quarto de
despejo da sociedade. O singular nessa trajetória

6 JESUS, Carolina de, Quarto de despejo, p. 20.


7 Ibidem, p. 40.
8 Ibidem, p. 12.
9 Ibidem, p. 31.
10 Ibidem, p. 43.

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Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias

Ozualdo
Candeias.
Acervo Heco
Produções

suas imensas dificuldades para obter comida é tão cenário de privações materiais, em que a literatura
poderoso que podemos experimentar a mesma aparece como algo fútil ou inútil, na verdade, é o
concretude que a escritora experimentou quando que permite a Carolina continuar a viver.
redigia seu diário. Outro elemento que faz parte
do estilo de Carolina de Jesus é a forma como Ozualdo Candeias e A margem
ela escreve desafiando a norma culta da língua.
Evidente que sua desobediência à gramática não é No conjunto dos cineastas pertencentes ao que
uma forma de rebeldia proposital, mas empresta à Ismail Xavier11 chama de cinema brasileiro moder-
sua escrita mais um elemento material que faz dela no, Ozualdo Candeias foi, muito provavelmente,
uma experiência singular no Brasil de 1960. a figura mais singular. Caminhoneiro, funcionário
público e, segundo certas lendas, até mesmo cafetão,
Transferindo o diário da esfera burguesa para o Candeias frequenta um curso de cinema no MASP
de uma favelada que não completou o primário, nos anos 1950, interessado em conhecer técnicas de
Carolina de Jesus se empodera de um discurso que, fotografia e narrativa cinematográficas para melhor
anteriormente, pertencia apenas à outra parcela da utilizar uma câmera de cinema 16 mm que havia
população. Ela se apropria da escrita não para se comprado. Trabalhou, então, em documentários e
tornar uma revolucionária, apesar de a sua escrita reportagens cinematográficas, muitas vezes a serviço
ser inovadora, mas para poder escapar de um local de Primo Carbonari, o grande produtor de cinejor-
onde sentia estar presa, sentia um mal-estar. A nais da época. No final dos anos 1950 e início dos
literatura, para Carolina, é um instrumento para 1960, dirige dois curtas-metragens documentários
a libertação de condições materiais de vida que que marcam o início de sua produção como dire-
ela sentia insuportáveis, de uma rotina que não se tor: Polícia feminina (1959) e Ensino industrial (1962),
modifica, conforme é narrado na última passagem filmes institucionais. No entanto, só iria conseguir
de Quarto de despejo: “1 de janeiro de 1960: Levantei iniciar sua carreira como cineasta de ficção com o
as 5 horas e fui carregar agua”. Em meio a esse icônico longa-metragem A margem (1967), quando

11 XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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Com a
cine palavra,
o cinema

já tinha 45 anos, sendo uma espécie de Glauber terno, uma loura e um louco maltrapilho. Os qua- 63
Rocha ao contrário no que diz respeito à idade em tro ficam a perambular pelas margens do rio Tietê,
que iniciaram suas carreiras de diretores em longas- no mesmo local onde ficava a favela de Quarto de
metragens de ficção, já que Glauber filma Barravento despejo. Quando das filmagens de A margem, a favela
(1962) aos 23 anos. Candeias também não era fã do já havia sido removida, mas o local conservava
Cinema Novo capitaneado pelo baiano, mas isso uma aparência de sítio perdido em meio à enorme
não é assunto para este artigo. metrópole na qual São Paulo havia se transformado
com a industrialização pesada das últimas décadas.
A margem é um desses filmes sobre os quais muito se Os personagens de Candeias eram os excluídos do
escreve e se lê, cuja importância histórica é inegável, processo de modernização conservadora que estava
mas que foram pouco assistidos pelo público em em curso no país. Impedidos ou sem o desejo de se
geral. Na época de sua estreia chegou a ser lançado juntarem ao ideal de trabalho, família e consumo que
em circuito comercial, principalmente em São Paulo, vigorava na época, eles ficam a vagar por onde seus
mas não obteve sucesso de público. Em relação à corpos ainda podem transitar, ou seja, a margem do
crítica, foi louvado como uma espécie de maravilha rio. Local típico dos excluídos: “Nós somos pobres,
do primitivismo no cinema, mesmo que de primitivo, viemos para as margens do rio. As margens do rio
em termos do manejo da linguagem cinematográ- são os lugares do lixo e dos marginais.”12
fica, Ozualdo Candeias nada tivesse. Moniz Viana,
crítico conservador da época, adversário do Cinema Para narrar a história desses corpos que cami-
Novo, adorou A margem. Mesmo Ozualdo Candeias nham pela periferia, Ozualdo Candeias utilizou,
estando longe de ser um ingênuo que sua figura e seu na primeira parte do filme, uma técnica que é
filme poderiam sugerir, A margem, cujos recursos fi- bastante rara no cinema (Lady in the lake [1947], de
nanceiros para a produção eram praticamente nulos, Robert Montgomery, utiliza a técnica em toda a
exalava uma espécie de pureza (vista como oriunda sua duração), que é a narração somente por meio
do primitivo de que falei) que o colocava distante de planos subjetivos. O plano subjetivo é aquele
dos filmes do Cinema Novo. Aqueles pareciam mais em que a ação é enxergada pelo espectador por
sintonizados com o cinema moderno que se fazia à intermédio do ponto de vista de um personagem,
época no mundo, influenciado pelo Neorrealismo e não do narrador do filme. É um plano, portanto,
italiano e a Nouvelle Vague francesa. A margem no qual o personagem se torna o centro da ação
parecia saído de outra época, quase como um filme e nós, espectadores, ficamos como que colados a
mudo de vanguarda por acaso filmado em São Paulo, ele. Espécie de discurso direto no cinema. Can-
no final dos anos 1960, e não nos anos 1920, em deias faz, então, com que fiquemos colados a seus
Paris. O filme acabou por batizar o conjunto de marginais durante toda a primeira parte do filme,
produções audiovisuais denominado de Cinema que se encerra com a morte do personagem inter-
Marginal, apesar de se afastar das características pretado por Mário Benvenutti, o qual se distingue
que mais marcaram os filmes feitos na época por dos demais marginais por utilizar um bem cortado
Bressane, Sganzerla e outros. Há um lirismo, quase terno o tempo inteiro, o que faz com que sua figura
que uma religiosidade mística, no filme de Candeias, se torne ainda mais estranha numa paisagem quase
que não se encontra nesses filmes, como O bandido rural, certamente alguém que pertencia ao mundo
da luz vermelha (1968) e O anjo nasceu (1969). do capital e do trabalho, mas que se viu impelido,
por algum motivo que não é revelado no filme, a
A margem narra a história de quatro deserdados da partir de lá. A margem, ao contrário de determina-
sorte: uma prostituta negra (personagem que explora da tradição literária realista, passa longe de traçar
a sensualidade da mulher negra de uma maneira quaisquer perfis psicológicos de seus personagens.
talvez inédita em nosso cinema), um homem de Eles são o que nos é dado a ver deles em cena.

12 JESUS, Carolina de, Quarto de despejo, p. 55.

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Carolina de Jesus e Ozualdo Candeias

O filme se utiliza de pouquíssimos diálogos, tanto uma ponte segurando a flor com a qual o louco, em
por uma questão de estilo como por uma questão vão, tentava presenteá-la durante toda a narrativa e
de economia de recursos financeiros. Esse proce- entra no barco. Em vez de ser guiado por Caronte,
dimento faz com que seja necessário prestar toda o barqueiro de Hades, deus grego dos mortos, o
atenção às imagens do filme, já que mesmo as mú- barco é guiado por uma bela mulher. A música do
sicas da trilha sonora, do grupo Zimbo Trio, não filme ganha uma nova dimensão, um coral que traz
chegam a guiar a dramaticidade das cenas, servindo uma atmosfera sacra, enquanto o barco navega pelo
mais como paisagens sonoras complementares às rio com seus cinco passageiros e o último plano
imagens. Principalmente na primeira parte do filme, faz uma fusão do barco no rio com o céu e o sol a
a combinação de som e imagens pode remeter a brilhar, ampliando o efeito místico geral da cena.
um romance modernista, onde o leitor é levado
pelo fluxo de consciência do narrador ou, no caso, Ozualdo Candeias encerrava assim seu primeiro
narradores, que deambulam pelos grandes espaços e marcante longa-metragem. Até os anos 1990
vazios ainda virgens do processo modernizador. seria ativo como cineasta e diretor de fotografia
em vários filmes produzidos, principalmente, na
Na segunda parte do filme, que se instaura com a Boca do Lixo paulistana. Filmou até uma versão
morte do homem de terno, o espaço urbano, do de Hamlet, A herança (1970), com David Cardoso
qual vários planos mostram as pessoas indo e vindo como Hamlet! A versão é ambientada no interior
apressadamente pelo Vale do Anhangabaú e outras do Brasil, procurando atualizar o medieval reino
localidades do Centro de São Paulo, se transforma da Dinamarca para o latifúndio brasileiro e a luta
em espécie de oposição à aparente calma existente por terras dos mais pobres. Mas é assunto para
nas margens do Tietê. O filme parece, então, ter outro texto.
uma postura romântica, no sentido da valorização
de um espaço que ainda não foi maculado pela Últimas palavras, por enquanto...
modernidade capitalista, onde mesmo as relações
amorosas já são regidas pela lógica da mercadoria. No ano em que se comemora o centenário do nas-
Apenas no espaço da margem do Tietê é possível cimento de Carolina de Jesus, este texto procurou
a esses personagens exercitarem sua resistência, dar conta, de maneira sintética, dela e de um artista
simbolizada no filme de maneira mais concreta contemporâneo a ela, Ozualdo Candeias. Vive-se
pelo marginal louco que passa toda a história a numa época em que a arte popular se apropria
carregar uma flor. Não que esses marginais sejam, da tecnologia para produzir novas manifestações
necessariamente, heróis. Podem mesmo cometer artísticas que não mais estão no diálogo com o
atos como derrubar um aleijado de sua cadeira modernismo elitista dos anos 1950-1960. Mani-
de rodas. Mas serão, mesmo sem um programa festações como o funk do Rio de Janeiro e o rap
político, figuras de oposição a uma ordem vigente, paulistano se dão numa outra chave, onde o brutal
atualizando, em outra chave, menos cômica e mais e o grotesco se cruzam em linguagens nem sempre
desesperada, os malandros da chanchada, princi- de fácil aceitação para o público “educado”. Se de-
palmente o personagem do louco. sejássemos traçar uma genealogia dessas manifesta-
ções artísticas, nas quais o popular busca escapar de
Ao final do filme, no entanto, mesmo o espaço dos certa mediação feita pela figura do intelectual que
marginais se torna insuportável para eles. A mulher produz e distribui diretamente a sua arte, Carolina
loura, pela qual o louco era apaixonado, acaba de Jesus e Ozualdo Candeias são figuras a se pensar.
morta por uma rival numa zona de prostituição. E, no âmbito de um festival de cinema de arquivo,
Enlouquecido com a morte da amada platônica, que seja mais fácil encontrar os livros de Carolina
ele acaba por juntar-se aos outros três marginais de Jesus no Brasil do que nos EUA (no momento
no mesmo barco que aparece no primeiro plano do a situação é contrária) e que os filmes de Ozualdo
filme, numa cena que evoca o delírio, já que dois Candeias sejam restaurados e possam ser vistos
deles estavam mortos. Num dos planos mais líricos pelo público nas melhores condições possíveis,
do filme, a amada do louco surge correndo por aquelas que foram idealizadas pelo artista.

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Com a
cine palavra,
o cinema

65

Valéria Vidal em cena do


filme A margem (1967), de
Ozualdo Candeias. Acervo
Heco Produções

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Cena de Memórias do cárcere
(1984), de Nelson Pereira dos
Santos, transposição para
as telas do livro póstumo de
Graciliano Ramos. Folheto
Riofilme. Biblioteca do Arquivo
Nacional.

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Tania Nunes Davi Doutora em História pela Universidade Federal de Uberlândia e professora da Fundação Carmelitana Mário Palmério
(Fucamp/Facihus), Monte Carmelo (MG). Autora de Subterrâneos do autoritarismo em “Memórias do cárcere” de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos
(Edufu, 2007).

Literatura, cinema e história


nas representações de Nelson Pereira
dos Santos e Graciliano Ramos

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Nelson Pereira dos Santos é carregado


pela equipe em comemoração ao término
das filmagens de Memórias do cárcere
(lançado em 1984). Folheto Riofilme.
Biblioteca do Arquivo Nacional

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Com a
cine palavra,
o cinema

BR_RJANRIO_PH_0_FOT_14961_001
69
Graciliano Ramos.
Correio da Manhã

Introdução que o fazer histórico nem sempre consegue alcan-


çar por meio dos documentos disponíveis sobre
Literatura, cinema e história dialogam desde o um determinado período ou situação. A liberdade
surgimento do cinema como forma de expressão criativa da literatura pode reconstruir o vivido e in-
artística. Adaptar a linguagem literária para o ci- dicar pistas ao historiador para que ele se aproxime
nema faz parte da complexa relação entre esses do passado captando as motivações e o imaginário
gêneros, produzindo representações tanto da nar- de homens de outras épocas.
rativa literária como da sociedade e do tempo no
qual o filme foi produzido e recepcionado. Nosso O cinema também se utiliza dessa imaginação
intuito, com este artigo, é apresentar o diálogo criadora, faz parte do imaginário coletivo e como
entre a literatura de Graciliano Ramos e o cinema tal deve ser tratado pela história, como uma fonte
de Nelson Pereira dos Santos por meio das obras privilegiada para captar as representações constru-
Vidas secas e Memórias do cárcere, percebendo como ídas pelos sujeitos históricos sobre a sociedade em
ambos fazem representações do momento histó- que vivem. Um filme é uma das instâncias utilizadas
rico e cultural em que foram produzidas, levando pelos poderes para criar, divulgar e legitimar deter-
ao público reflexões sobre o Brasil do século XX. minados imaginários sociais e memórias coletivas
Os livros foram publicados pela primeira vez, res- por meio de representações que, ao serem ou não
pectivamente, em 1938 e 1954; já os filmes foram decodificadas pelos espectadores, permitem-lhes
lançados originalmente em 1963 e 1984. Os dois tecer suas leituras das ideias veiculadas. O uso do
filmes, juntamente com São Bernardo (dirigido por cinema como forma de divulgar determinados
Leon Hirszman, em 1971), foram, em 2013, re- ideais hegemônicos não impede que ele seja uti-
masterizados e relançados em um box, no formato lizado como uma forma de contestação, de levar
DVD, o que facilita o acesso do público. ao público propostas novas, visões dissonantes
da sociedade ou projetos de categorias ou grupos
Nelson Pereira dos Santos (1928-) é um dos direto- sociais não hegemônicos. Mas também devemos ter
res mais consagrados no Brasil e no exterior, sendo em mente que o cinema é uma indústria e, como tal,
o primeiro cineasta membro da Academia Brasileira desde o seu nascimento esteve atrelado aos grupos
de Letras. Sua filmografia é premiada e admirada detentores dos bens simbólicos e/ou econômicos,
internacionalmente. Reconhecimento que também veiculando assim os seus interesses.
tem a literatura de Graciliano Ramos (1892-1953),
um dos escritores brasileiros mais traduzidos. O Um ponto de confluência entre a narração literária
que diretor e escritor têm em comum é seu respeito e a historiografia é que ambas procuram desen-
pelo público, alguns posicionamentos políticos e volver discursos sobre o passado, construindo
a forma realista de representar a sociedade sem pontes entre o hoje e o ontem por meio de ques-
esconder ou dourar suas mazelas. tionamentos e organização de uma realidade que
seja coerente a partir dos fatos remanescentes do
A literatura desenvolve formas de construir ou passado. A literatura lida com esses fatos por meio
reconstruir acontecimentos históricos, formas de da subjetividade, do imaginário, das possibilidades;
pensar, sensibilidades, projetos, visões de mundo a história precisa controlar esses fatores para pro-

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Literatura, cinema e história

duzir saberes e conhecimentos Vidas secas não escamoteia a


sobre o passado. A presença da dor, nem a realidade, e acabou
subjetividade na literatura não sendo a última obra de Gra-
a inviabiliza como fonte docu- ciliano Ramos que podemos
mental pela história, visto que classificar de romance, pois
a própria história já admite que depois dela o escritor voltou-se
os documentos são permeados para os relatos memorialistas.
por subjetividade, pois foram Nele, temos uma família de re-
produzidos por homens com tirantes, Sinhá Vitória (a mãe),
interesses próprios. Fabiano (o pai), o filho menor,
o filho maior e seus animais (a
Outro ponto em comum entre cachorra Baleia, o papagaio),
história, literatura e cinema é a tangidos pela seca nordestina,
captação, seleção, simplificação sem perspectivas de uma vida
e organização do fator tempo. melhor para seus membros,
Eles o reinventam, ao fazer vivendo conforme o ciclo da
com que grandes períodos natureza e seguindo os passos
sejam explicados em uma pá- de seus antepassados. Foi a
gina (história e literatura) ou se partir desses personagens,
desenvolvam em poucas ima- inseridos em uma geografia e
gens (cinema), ou ao elevar um sociedade que os silenciava, os
acontecimento insignificante (res)secava e os transformava
ao patamar de grande marco em apenas mais um compo-
histórico. nente da paisagem, que Nelson
Pereira dos Santos construiu
Vidas secas e o Brasil seu roteiro e filmou Vidas secas.
esquecido do sertão Filme que não foi seu primeiro,
mas mostrou ao mundo um
O livro Vidas secas, publicado cineasta cuja forma estética e
em 1938, não surgiu como um política estava amadurecendo.
romance, mas na forma de con-
tos vendidos a jornais nacionais O roteiro de Vidas secas é muito
e estrangeiros, permitindo que Graciliano Ramos fiel ao livro, mas existem diferenças entre o filme
sobrevivesse após os meses que passou preso em e o livro, alterações necessárias à adaptação de
1936-1937. Para o autor, o livro era honesto com a uma linguagem para outra, pois um signo visual
realidade do nordestino, não a enfeitava com cores apresenta algumas diferenças de um signo escrito.
que não existiam. Em carta a Portinari, ele assim se Apesar de afirmar que respeitou o texto, Nelson
expressou sobre a necessidade de mostrar a reali- Pereira dos Santos não abriu mão da sua liberdade
dade da dor sem disfarces: “Numa vida tranquila criativa para produzir Vidas secas, tanto que não
e feliz que espécie de arte surgiria? Chego a pensar seguiu a ordem de alguns dos capítulos na transpo-
que teríamos cromos, anjinhos cor de rosa, e isto sição, nem escolheu os atores principais de acordo
me horroriza”. E logo acrescentou: “Felizmente com a descrição do escritor. O cineasta começou o
a dor existirá sempre, a nossa velha amiga, nada a processo de roteirização em 1958, e partiu para o
suprimirá. E seríamos ingratos se desejássemos a Nordeste para produzi-lo em 1959, mas o tempo
supressão dela, não lhe parece?”1 não colaborou com a filmagem – choveu muito, a

1 MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 83.

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Com a
cine palavra,
o cinema

paisagem ficou toda florida e A narrativa é expressa por uma 71


verde, nada condizente com o câmera intimista, utilizando pou-
sertão descrito por Graciliano cos travellings, plongés ou angu-
Ramos – então, para aprovei- lações incomuns. A imagem
tar verbas e pessoal, filmou captada é direta, seca, caminha
Mandacaru vermelho (lançado com a família de Fabiano como
em 1961, no qual até o diretor se fizesse parte dela. Os planos
fez um papel como ator). En- do filme tendem a ser médios
tre 1960 e 1961, formou uma ou americanos, sendo os planos
equipe, procurou locações em gerais importantes para mostrar
Alagoas e começou a rodar o homem em sua relação com a
Vidas secas em 1962. natureza, a sua pequenez frente
a uma paisagem não acolhedora.
Vidas secas foi filmado em pre- Já os fechados são utilizados em
to e branco, assim como todos momentos de intensidade, como
os filmes de Nelson Pereira até a morte da Baleia. A câmera é
a década de 1970. Filmar em o narrador da história e, assim
preto e branco na época estava como o narrador do livro, ela não Fotogramas
ligado aos poucos recursos nos adianta nada, apenas segue de Vidas secas.
Acervo Regina
financeiros e ao difícil acesso os personagens, ora como seus Filmes. Arquivo
a uma matriz colorida, mas olhos, ora por trás deles, como se Nacional
hoje, ao vermos o filme, fica- apenas mirasse os acontecimen-
mos com a impressão de que tos, sem julgá-los, explorando a
ele é um documentário. Isso paisagem nordestina.
porque a utilização da película
preto e branco está vinculada Ao roteirizar, produzir e lançar
a uma estética cinematográfica Vidas secas no início da década
que remete ao documentário de 1960, Nelson Pereira estava
e a uma suposta apresenta- dialogando não apenas com
ção da realidade tal qual ela Graciliano Ramos, mas com a
aparece. Vidas secas não é um sociedade brasileira de então.
documentário, mas expõe uma Ele assim se expressou sobre
situação social ainda presente esse tema: “Na época em que
no interior do Brasil. fiz Vidas secas, não havia nenhu-
ma produção acadêmica que
A trilha sonora do filme resume-se ao lamento colocasse tão claramente a questão da população
de um carro de boi que inicia e finaliza a história, nordestina, nada tão forte e direto”.2 Helena Salem
seguindo os retirantes que caminham para a câmera ainda acrescenta a esse depoimento sua impressão
nas tomadas iniciais de sua jornada e se afastam pessoal sobre o assunto: “E no cinema, talvez nem
dela no final/início de mais uma caminhada forçada mesmo até hoje tenha se conseguido abordar, com
pela seca. Nesse sentido, o diretor respeitou uma tamanha radicalidade, o problema da seca no Nor-
das características mais marcantes em Graciliano deste, da concentração da terra e das relações de
Ramos – a secura no escrever e a sua pouca fami- poder no campo brasileiro”.3 Estes assuntos esta-
liaridade com a música. vam na pauta de discussões da sociedade brasileira

2 SALEM, Helena. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema nacional. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 189.
3 Ibidem, p. 183.

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Literatura, cinema e história

e foram silenciados pelo golpe militar de 1964, mas No final de Vidas secas, assim como no início,
aparecem no filme e se mantêm como temas atuais. fugindo de mais um período de seca, a família de
Fabiano sonhava em ir para o sul. Tal qual Fabiano,
Fabiano (interpretado por Átila Iório) vive a situa- milhares de trabalhadores rurais no Brasil viveram
ção de milhares de nordestinos que são obrigados sob o jugo dos latifundiários sem se dar conta de
a se mudar periodicamente, não têm estudo, nem seus direitos. E quando, nas décadas de 1950-60,
perspectivas de melhorias para si ou seus filhos. começaram a lutar pelos seus direitos, foram in-
Seres esquecidos pelas autoridades de um país que terrompidos em seus projetos pelo golpe de 1964.
só se recorda da região para criar planos emergen-
ciais mirabolantes que privilegiam os políticos, os O círculo vicioso no qual vivia Fabiano não foi que-
proprietários e os corruptos. brado no livro, nem no filme. Ao contrário, foi refor-
çado pela figura dos meninos que queriam ser como o
Além de ser tangido pela natureza, Fabiano era coagi- pai. Para se parecer com Fabiano, agiam como ele (os
do pelo patrão, que roubava nas contas, pelo governo, meninos conduziam os cabritos, aboiando, andavam
que cobrava impostos sem dar retorno, e pela polícia, como o pai, falavam pouco, não tinham perspectivas
que batia e prendia sem motivo. O patrão dava-lhe de um futuro que não fosse ser vaqueiro). O menino
descomposturas aos berros. E Fabiano pensava mais novo olhava para Fabiano com admiração, anda
que “descompunha porque podia descompor [...]. atrás dele imitando-o e, apesar de não falar nada,
Sempre fora assim”.4 As contas do amo diferiam das deixava perceber seus desejos. O menino mais velho
de Sinhá Vitória (interpretada por Maria Ribeiro) e também já seguia os caminhos do pai.
Fabiano sabia-se roubado, mas “baixava” a pancada
e emudecia, e se questionava: “Estava aquilo direi- Quem tinha planos para o futuro dos filhos era Sinhá
to? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de Vitória: ela pensava que era preciso mudar, ser gente,
alforria!”5 Um questionamento que não o levava à não continuar fugindo, mas encontrar um lugar no
ação, mas apenas à certeza de ser explorado. qual os meninos pudessem estudar, crescer e melho-
rar sua condição financeira. Sinhá Vitória assim se
Por sua vez, o episódio da sua prisão pelo soldado expressou: “Mas quem é que vai andá sempre escundido
amarelo é muito similar à de Graciliano Ramos, que no mato que nem bicho? Um dia temo que virá gente,
não chegou a apanhar de tacão, porém passou meses pudemo continuá vivendo que nem bicho, escundido no
preso sem justificativa oficial. O mais interessante é mato, pudemo?” E Fabiano retrucou: “Pudemo não.”
que Fabiano achava que “apanhar do governo não Ela e Fabiano não sabiam como seria esse lugar nem
é desfeita”6 e, apesar de não se convencer de que o onde, mas o vislumbravam como “uma cidade gran-
soldado amarelo era governo, não se rebelou, não de, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas,
entrou para o cangaço, não matou o soldado ama- aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois
relo quando teve chance, apenas apanhou, remoeu velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis,
a desfeita e continuou a vida. Um personagem nada acabando-se como Baleia”.7 Uma tênue esperança
condizente com o herói proletário pregado pelos de mudar seu destino e o dos meninos, mas na cena
partidos comunistas do mundo todo. Fabiano não final (na qual eles caminham para longe da câmera)
era revolucionário, não tinha consciência plena da o que vemos é a frase desconcertante e fatal: “E o
exploração vivida e não chegou a esboçar reação aos sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão
desmandos do patrão ou do governo, era apenas mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como
mais um bicho sem estudo, sem fala, sem ação. Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos”.8 Poderia

4 RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 23.


5 Ibidem, p. 94.
6 Ibidem, p. 33.
7 Ibidem, p. 127-128.
8 Ibidem, p. 128.

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Com a
cine palavra,
o Cinema

ser uma cena de afirmação de um futuro melhor, dos Santos começou a roteirizar o livro Memórias 73
contudo ela nos remete a uma nova subserviência, do cárcere. Esta obra autobiográfica de Graciliano
uma vida que não tem nada de novo, num horizonte Ramos narra o período em que ele ficou preso após
sem fim a engolir os personagens em vez de dar-lhes a Intentona Comunista de 1935, contra o governo
perspectivas melhores. Se fizermos a ponte entre a Vargas. O escritor foi preso em sua casa em Ala-
narrativa do filme e a sociedade brasileira da década goas, em março de 1936, passou por várias prisões
de 1960 e além, só podemos visualizar um destino até chegar ao Rio de Janeiro e ser libertado em
para os personagens (reais ou fictícios): migrarem janeiro de 1937. O livro foi publicado após a morte
para uma cidade, deixarem tudo que conheciam de Graciliano Ramos e não passou pelo crivo de
para trás, sua cultura, suas crenças, seus saberes, e se uma leitura e modificação final por parte do autor.
tornarem retirantes da seca, trabalhando em subem-
pregos, ganhando pouco e sem terra para poderem Durante o tempo em que ficou preso, Graciliano
plantar ou criar para a sua subsistência. Personagens Ramos não foi indiciado, interrogado ou recebeu
que engrossariam a massa de trabalhadores alijados qualquer explicação que indicasse o motivo exato
de seus direitos, vivendo precariamente nas periferias de sua prisão. A situação do escritor não foi dife-
das cidades e ainda sem seus direitos mais básicos rente da de centenas de outros presos políticos,
respeitados e atendidos pela sociedade. encarcerados nas prisões do governo Vargas, no
período anterior ao Estado Novo. Após a Inten-
Memórias do cárcere e os porões tona Comunista de 1935, o governo promoveu
do autoritarismo uma feroz repressão aos comunistas, identificados
como um dos maiores problemas do Brasil. A po-
O Brasil do início da década de 1980 era um país lícia política de Getúlio podia prender e interrogar
sob o governo dos militares. Estes haviam perse- suspeitos de comunismo sem que estes tivessem
guido e debelado a esquerda subversiva na década sido formalmente indiciados ou mantê-los na pri-
anterior, censurando, prendendo, deportando e de- são, mesmo quando já tinham cumprido as penas Maria Ribeiro
saparecendo com inúmeros brasileiros que ousaram determinadas pela justiça. Graciliano Ramos não e Átila Iório
levantar-se contra a violência, a repressão e a sua era membro do Partido Comunista (só entrou para em Vidas
secas (1963).
política de modernização conservadora. Militantes o Partido em 1945), mas era abertamente simpa- Regina Filmes
da esquerda, professores universitários, estudantes, tizante dos ideais comunistas e isso já era motivo
artistas e políticos só puderam retornar ao Brasil mais que suficiente para ser preso.
depois da Anistia de 1979, e encontraram o país
descobrindo que o preço social e político do mila- Nelson Pereira, ao levar às telas a con-
gre econômico era muito alto: a inflação enorme, os dição humana dos presos políticos
trabalhadores desempregados, os principais centros brasileiros durante o Estado Novo,
econômicos do sudeste sofrendo as consequências estava contando para o mundo a
do êxodo rural, os salários baixos, o custo de vida
astronômico, as desigualdades econômicas alar-
mantes, a emergência de uma indústria cultural
voltada, principalmente, para a comunicação
de massa via televisão e um regime militar
que não conseguia controlar inteiramente
as ações da linha dura e começava a per-
ceber já ter chegado a hora de retirar-se
do cenário político.

Foi neste contexto sociopolítico e


cultural de abertura, incertezas
e desejos de redemocrati-
zação que Nelson Pereira

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Literatura, cinema e história

Carlos Vereza
(ao centro)
interpretou
Graciliano
Ramos no filme
Memórias
do cárcere
(1964). Folheto
Riofilme.
Biblioteca
do Arquivo
Nacional

BR_ANRIO_FAG_2373_15
história dos governos autoritários do Brasil, posi- optou por utilizar apenas a Marcha solemne brasileira,
cionando-se contra o arbítrio, a violência, a censura uma fantasia retumbante para piano, orquestra e
e a desumanização promovidas pelo governo de canhão composta a partir do Hino Nacional por
Getúlio e dos militares do pós-64. Louis Moreau Gottschalk, em 1869. A composição
ressalta os momentos marcantes do filme − as
Partindo do texto de Graciliano Ramos, o cineasta transferências de prisão. Essa estratégia ajuda a di-
levou dois anos para fazer a adaptação da lingua- vidir o filme em quatro momentos básicos: Maceió,
gem literária para a fílmica. Neste período, fundiu o porão do Manaus, o Pavilhão dos Primários e a
os 237 personagens originais em 120, alterou no- Colônia Correcional. As outras músicas do filme
mes e a ordem cronológica dos acontecimentos, foram cantadas pelos personagens, sendo trechos
produzindo três roteiros diferentes. Durante as de canções populares satirizadas ou parodiadas,
filmagens, apenas um, com cerca de trezentas pá- o Hino Nacional e o Hino da Proclamação da
ginas datilografadas, foi passado aos atores. República.

Memórias do cárcere – o filme – não possui grandes Nelson Pereira fez uma leitura muito própria a
efeitos de iluminação e de câmera. A câmera de partir do testemunho de Graciliano Ramos, mos-
Nelson é intimista, segue Graciliano Ramos (inter- trando o Brasil das prisões, uma sociedade polifô-
pretado por Carlos Vereza), às vezes posicionando- nica, com categorias sociais (intelectuais, militares,
se atrás do escritor e em outras atuando como seus operários, nordestinos, negros, ladrões, assassinos,
olhos, observando, captando a realidade caótica à homossexuais, mulheres etc.) batendo-se a favor
sua volta. Essa estratégia de posicionamento da dos seus projetos e visões de mundo, mesmo
câmera pode ser captada em diversas sequências. quando estão encarceradas, silenciadas, reprimidas
Uma das mais explícitas é formada pelos planos e tolhidas pela desumanidade das instituições car-
da chegada de Graciliano na Colônia Correcional cerárias, seja em 1930 ou no pós-1964.
de Dois Rios, na Ilha Grande, Rio de Janeiro, em
que a câmera porta-se como o olho do escritor, a Outro tema do filme é o ato de escrever. Em inú-
tudo observando. meras cenas, Graciliano Ramos é mostrado fuman-
do e escrevendo, este gesto solitário é ressaltado ao
Outro componente da produção do filme é a longo do filme. Na colônia todos querem participar
trilha sonora. Memórias não possui temas musicais do futuro livro, figurando nas eternas anotações do
para cada personagem ou situação, pois o diretor escritor, contando-lhe suas histórias. O interesse

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Com a
cine palavra,
o cinema

dos companheiros pelo seu relato atinge o clímax imaginária da escritura e da gramática em um filme
75
na cena em que os presos escondem em seus cor- cujo subtítulo é “uma história de amor à liberdade”.
pos o manuscrito de Ramos, a fim de que este não
seja confiscado pela repressão. Tendo em mente o desejo geral dos brasileiros
de alcançarem a liberdade após vinte anos de
A cena da defesa conjunta do manuscrito é das mais governos militares, o cineasta optou por construir
significativas e líricas do filme. Nela, as diferenças um final no qual Graciliano deixaria a Colônia
de ideologia, de condições sociais e econômicas Correcional de Dois Rios rumo à liberdade. Uma
perdem sua importância frente à necessidade de cena que emociona o espectador pela sua beleza,
manter viva a memória dos encarcerados. Uma simplicidade e significados. Nela, um homem al-
memória que de outra maneira seria silenciada pelas quebrado, doente, cabeça raspada, após despedir-se
representações oficiais promovidas e difundidas dos companheiros, cruza o portão da Colônia e,
por ambos os governos autoritários. Deixar um tes- num gesto expansivo, alegre e pouco comum à
temunho por meio do futuro livro era uma forma sua personalidade, joga para o alto o chapéu de
de fazer falar os acontecimentos, os sofrimentos e palha (seu companheiro desde Alagoas) e este se
os momentos de solidariedade pelos quais os pre- transforma em uma gaivota (símbolo de liberdade e
sos políticos e comuns passaram dentro das prisões. luz) voando em direção ao barco que o levará para
Era mostrar aos regimes que, apesar do alto preço a alforria. Ao fundo ressoa os acordes da Marcha
pago por professar ideias diferentes da governa- solemne brasileira e o barco se afasta da ilha até o
mental, eles não poderiam silenciar para sempre os congelamento da cena.
ideais de liberdade e o desejo de um país social e
economicamente mais justo. De certa forma, essa Essa imagem congelada expressa uma atitude tem-
cena une os dois níveis de leitura propostos pelo porária de Graciliano Ramos e do Brasil, ambos
cineasta na medida em que tanto as representações ficaram em repouso, quietos, paralisados por um
sobre os significados políticos dos cárceres quanto longo período, frente aos empecilhos e espectros
o significado do ato de escrever estão presentes, que os atordoaram, mas ao fim desse repouso eles
emaranhados e interligados nas imagens tecidas vão ressuscitando. Enquanto Graciliano entrou a
por Nelson Pereira dos Santos. Imagens que não escrever sobre as asperezas da qual a vida é feita,
correspondem à narrativa de Graciliano, mas têm denunciando o arbítrio, a despersonalização e a
uma força muito grande dentro do enredo do filme. degradação vivida nos porões do governo Vargas,
o Brasil se pôs a trabalhar para que os governos
O cineasta, possivelmente, construiu sua leitura em militares chegassem ao término, para não vivermos
dois níveis a partir de uma observação de Gracilia- mais a censura, a tortura, a arbitrariedade, a fim de
no Ramos presente no livro: “Liberdade completa podermos expressar nossas posições, nossas ideias
ninguém desfruta: começamos oprimidos pela diferentes em um país onde os direitos políticos,
sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de individuais e coletivos fossem respeitados.
Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites
a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos O procedimento de libertar Graciliano Ramos
podemos mexer.”9 Dualidade expressa também no no final do filme levou à alteração de algumas
cartaz original de divulgação do filme, no qual o passagens que foram alocadas antes da saída da Co-
ator Carlos Vereza aparece, ao fundo, caracterizado lônia. Episódios que no livro são posteriores, como
de Graciliano em sua estada na Colônia: barbado, a estadia do escritor na enfermaria, a extradição de
cabeça raspada, olhar melancólico e tendo, no Olga Benário e Elisa Berger para a Alemanha, a
primeiro plano, três lápis expostos de modo a re- festa de lançamento do livro Angústia e o encontro
presentarem às barras de uma prisão. Uma prisão com o advogado Sobral Pinto, foram remanejados
que pode ser a real pela qual o escritor passou ou a para antes da Colônia de modo que, ao término do

9 RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. v. II, p. 160.

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Literatura, cinema e história

filme, o espectador tivesse a certeza da libertação das mulheres da Sala 4, Nelson as representou de
do escritor. Como ele não chegou a escrever sobre uma maneira mais solta, alegre e descontraída do
sua libertação, essas modificações não alteraram o que no livro, ressaltando a liberação feminina da
sentido geral do livro. década de 1980 com sua gênese na década de 1930.
Talvez a maior mudança tenha sido a suavização
Outra alteração de monta foi a mudança do nome de algumas questões relativas aos militares. Em
de vários indivíduos e a fusão de personalidades 1983 (ano da produção do filme), os militares ainda
e ações em um único personagem. A mudança estavam no poder e poderiam censurar o filme,
nos nomes talvez se devesse ao fato de que alguns impedindo-o de ser exibido ao público. O cineasta
ainda estavam vivos no momento do lançamento não se utilizou das construções mais virulentas de
do filme (Sobral Pinto, capitão Lobo, Nise da Sil- Graciliano Ramos acerca da categoria militar, como
veira, Beatriz Bandeira, Prestes, Rodolfo Ghioldi) chamá-los de “energúmenos microcéfalos vestidos
e poderiam ser contrários à representação de suas de verde”10 ou mostrar diretamente as torturas nas
personalidades no filme. Daí Nelson manter apenas prisões. Apesar disso, Nelson Pereira dos Santos
os nomes de alguns personagens históricos mais mostrou a realidade violenta das prisões, construin-
conhecidos, como Olga Benário Prestes, Luís Car- do cenas em que os desmandos dos militares e a sua
los Prestes (somente citado, como no livro), Sobral pouca aceitação dos civis estão bem exemplificadas.
Pinto, Heloísa Ramos (esposa do escritor, inter- Edificou as cenas que apontavam para a violência
pretada por Glória Pires) e o próprio Graciliano. das prisões sem banalizar o sofrimento dos en-
Aos outros renomeou e fundiu, como no caso do carcerados. Algumas dessas cenas são sutis, como
capitão Mata, companheiro de Ramos na primeira mostrar os pés machucados de Sérgio; numa rápida
parte de sua prisão, chamado no filme de capitão passagem, o rosto enfaixado de um dos envolvidos
Mota. Já o personagem Mário Pinto, do filme, fun- com a Intentona ou os presos doentes e magros
de ações de Paulo Paiva e de outros personagens da Colônia Correcional. Outras são mais diretas,
do livro e, ainda, o personagem anspeçada Aguiar, como o espancamento de um preso pelo anspeçada
na qual se fundiram as ações do tenente Bicicleta, Aguiar ou o seu discurso fascista comunicando aos
do guarda Alfeu e do anspeçada Aguiar, todos da presos que todos iam para a Colônia para morrer.
Colônia Correcional. Segundo o cineasta, era im-
possível encaixar todos os personagens de Ramos Não mencionamos essas modificações para clas-
no filme, por isso escolheu alguns e promoveu a sificar o filme como mais ou menos fiel ao livro,
sua fusão com outros. numa atitude purista que não é do interesse de
nenhum pesquisador, e sim para captarmos algu-
Para citar mais uma mudança significativa, pode- mas diferenças entre livro e filme. As modificações
ríamos partir do posicionamento das mulheres da são decorrentes do processo de adaptação, do
Sala 4, ala feminina da Casa de Correção no Rio contexto sociocultural da produção de Memórias
de Janeiro. O cineasta (res)significou a narrativa do cárcere – o filme –, e estão inseridas na parcela
de Ramos, procurando construir pontes entre o de liberdade criativa que todo cineasta tem ao
livro de 1953 e a realidade do Brasil da década de transpor uma obra literária para as telas. Todas
1980. Para isso, era necessário apresentar algumas essas e outras liberdades tomadas por Nelson
posturas, falas e ações que levassem o público a Pereira dos Santos não são um desrespeito ao
encontrar pontos de identificação com a história texto de Graciliano Ramos, mas expressam a
do filme, para além do tema básico da repressão leitura feita pelo cineasta das representações do
e da prisão. Isso foi alcançado por meio de várias escritor. Uma leitura que, em determinados mo-
analogias, metáforas claras ou sutis a serem deci- mentos, procura até camuflar suas interferências
fradas pelo espectador ao longo do filme. No caso e adições como no episódio da transferência do

10 Ibidem, p. 51.

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Com a
cine palavra,
o cinema

capitão Mota do Pavilhão dos Primários para uma informado sobre os motivos da sua prisão – ou
77
possível libertação. Quando estava se preparando seja, um cidadão sem direitos, que não existia para
para sair, ele declamou um poema subversivo o sistema e que, assim como tantos outros nesses
de sua autoria. Graciliano não registrou todo o dois períodos, poderia ter desaparecido nas prisões
poema, por ter se esquecido de algumas partes.11 do governo. Fato que só não aconteceu porque
Nelson, respeitando o esquecimento do escritor, vários intelectuais fizeram um movimento pela
utilizou um áudio extremamente baixo nas partes libertação de Graciliano Ramos.
adicionadas, como se assim pudesse suprimir seus
acréscimos ao testemunho de Ramos. Por sua vez, Vidas secas recorda-nos de um Brasil
rural, ligado à geografia da seca e que, mesmo no
Considerações finais século XXI, não tem políticas públicas efetivas que
mantenham o sertanejo em suas terras, que promo-
O diálogo entre literatura, cinema e história a partir vam uma ocupação responsável e sustentável do
das obras de Graciliano Ramos e Nelson Pereira sertão e que permitam que as famílias do semiárido
dos Santos é rico em possibilidades interpretativas possam ter perspectivas melhores de futuro para
e apontam para a coragem dos seus criadores em si e para seus filhos.
levantar temas polêmicos e levá-los aos leitores e
espectadores. Mesmo hoje, trinta anos depois do Logo, literatura, cinema e história devem manter
lançamento de Memórias do cárcere, o filme ainda é um diálogo profundo, contínuo e profícuo entre
um relato comovente e lírico sobre os desmandos si, permitindo que o leitor/espectador acesse
e a violência dos regimes autoritários de Getúlio representações outras que não as oficiais sobre
Vargas e do pós-64. Ainda nos comove e inco- temas e épocas diferentes da atual e reflita sobre
moda com as cenas e as situações vividas por um outras possibilidades e projetos que poderiam ter
escritor que percorre as prisões de Alagoas até o sido concretizados, mas que foram silenciados pela
Rio de Janeiro, sem ser interrogado, indiciado ou sociedade ou pela conjuntura histórica.
BR_RJANRIO_PH_FOT_02814_009

Vista da Colônia
Correcional de Dois Rios,
na Ilha Grande, RJ, onde
Graciliano ficou preso
entre 1936-37, durante a
ditadura Vargas. Correio
da Manhã

11 Ibidem, p. 226.

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Isabel Ribeiro e Nildo Parente
contracenam em Asyllo muito
louco (1970), dirigidos por
Nelson Pereira dos Santos.
Filme baseado em O alienista,
de Machado de Assis. Correio
da Manhã

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Claudio Novaes Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana e pesquisador dos programas de pós-graduação em
Estudos Literários e Desenho, Cultura e Interatividade. Coordenador do Núcleo de Estudos em Literatura e Cinema da UEFS. Autor de Aspectos
críticos da literatura e do cinema na obra de Olney São Paulo (Quarteto, 2011) e organizador de Cinco vezes sertão: literatura, cinema e outras escrituras (Quarteto,
2012), entre outros livros.

Grito da terra:
ética e estética da adaptação
em Olney São Paulo

Olney São Paulo e Helena Ignez


nas filmagens de Grito da terra
(1964). Hamaca Filmes

Olney e Helena Inês GritoDaTerra_03

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Com a
cine palavra,
o cinema

81

Fotograma de O profeta
de Feira de Santana
(1970). Acervo Olney São
Paulo – Fundo Cinemateca
do MAM-RJ. Arquivo
Nacional
25.525-13

No início da década de 1960, Olney Alberto São recursos. Alguns deles se deslocaram para seus
Paulo associou-se ao escritor Ciro de Carvalho textos literários e cinematográficos, após a mu-
Leite para fundar a Santana Filmes S/A, empresa dança para o Rio de Janeiro, em meados dos anos
responsável pelo filme adaptado do romance 1960. Em terras cariocas, o sertanejo peleja pela
Grito da terra (1964).1 continuidade da carreira intelectual, seja como
cineasta, seja como literato. Publica o livro A ante-
A relação entre cinema e literatura é constante na véspera e o canto do sol, em 1969, mesmo ano em que
vida desse cineasta do interior baiano, transitando adaptou para o cinema a novela Manhã cinzenta,
com sua obra pelas tensões éticas e estéticas da escrita em 1966, e presente na primeira parte dessa
política e da cultura brasileiras, num período histó- coletânea, chamada de A antevéspera. Desse texto
rico de intensas ações ideológicas dos intelectuais, literário nasceu o filme homônimo, obra mais
que desvelam os conflitos da formação nacional e conhecida de Olney por causa das implicações
redefinem o imaginário cinematográfico moderno com censura, que resultou no processo movido
brasileiro em confluência com o que Andre Bazin pela ditadura e o levou à prisão, acelerando a sua
chama de “cinema total”, ao analisar o impacto morte precoce. A estrutura dramática do texto e
cinematográfico neorrealista no mundo. O cinema as claras marcações cinematográficas das imagens
torna-se uma linguagem que espelha os aparatos do conto o remetem a roteiro fílmico implícito, o
tecnológicos e os modelos narrativos de outras que permite a leitura da obra de Olney São Paulo,
artes, como a literatura. Para o crítico francês, essa seja a literária ou a cinematográfica, como um hi-
arte resultante das invenções técnicas era essen- bridismo entre a forma objetiva da câmera narrar
cialmente o produto de um olhar ideológico, pois, o real sem retoques e a subjetividade do discurso
segundo ele, “o cinema é um fenômeno idealista”.2 subliminar ao texto que desvela o cineasta-escritor
Essa afirmativa de Bazin serve para desvelar a vida experimentalista em diálogo com tendências euro-
e a obra de Olney São Paulo, que viveu e morreu peias de vanguarda, como intelectual munido de
do/para e pelo cinema, como ele mesmo afirma sua câmera-caneta que revela modos alternativos
várias vezes em seus relatos pessoais. de produção de sentidos verbais e visuais. Essa
sensação plástica do espelhamento de sentidos no
Antes de filmar Grito da terra, Olney já havia texto literário-cinematográfico pode ser compre-
dedicado momentos iniciais de sua vida cinema- endida na análise de André Soares Vieira sobre a
tográfica em Feira de Santana, na Bahia, a outros “escritura visual”. Segundo ele:
projetos de filmes com orientação histórica e lite-
rária pautados em temas do realismo sertanejo e No que diz respeito especificamente ao ato de
urbano em diálogo com os escritores modernistas, contar um filme, seja em um roteiro, cine-roman
mas todos esses projetos fracassaram por falta de ou romance-roteiro, não se trata apenas de uma

1 LEITE, Ciro de Carvalho. Grito da terra – caatinga. Rio de Janeiro: Lux, 1964.
2 BAZIN, André. O que é o cinema? Trad. Ana Moura. Lisboa: Horizonte, 1992. Col. Horizonte do Cinema. p. 22.

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

Cenas do filme Grito da


Terra. Hamaca filmes

pesquisa sobre a escritura fundada na imitação, mas pregar o fim da escravidão. Lucas já era presença
da capacidade do texto em fazer com que incumba forte no imaginário da literatura popular consu-
ao leitor o trabalho de produção de sentido e de mida por Olney, por isto os preparativos para a
apropriação de uma obra.3 produção do filme aparecem com frequência na
imprensa baiana, o que criou muitas expectativas
A especificidade ética e estética da obra de Ol- em relação ao resultado da obra. Mas o projeto
ney São Paulo, atribuindo sentidos literários e foi abortado devido à falta recursos.
cinematográficos ao texto, está presente desde
o seu primeiro longa-metragem, Grito da terra, Outro caso de insucesso precoce de Olney foi a
que é reescritura fílmica do romance de Ciro de tentativa de filmar o roteiro de O nordestino: longa-
Carvalho Leite, publicado simultaneamente à metragem, com três episódios inspirados na lite-
adaptação no cinema. ratura regionalista. A primeira parte, denominada
Cangaço, seria dirigida por José Teles; a segunda,
Antes deste primeiro filme, Olney já havia prota- Santa Brígida, seria realizada por Olney; e a última
gonizado importantes episódios cinematográficos seria a finalização das filmagens já realizadas pelo
não realizados. Um deles foi o projeto de filmar o cineasta Oscar Santana. O enredo completo desse
mito popular regional do salteador Lucas de Feira, filme contaria o cotidiano de um vaqueiro, a ser
que o cineasta desejava levar ao cinema contando filmado no formato de curta-metragem, em 35 mm,
a história do negro Lucas Evangelista dos Santos, porém, os problemas nas filmagens impediram a
“um misto de herói e bandido”.4 Esse personagem concretização do projeto. No entanto, estruturas
histórico e da literatura lendária viveu na região narrativas e personagens do roteiro reaparecem
de Feira de Santana no século XIX e tornou-se na forma dos contos da segunda parte do livro
famoso por cometer crimes e assaltos, além de publicado por Olney, denominada de Canto do Sol.

3 VIEIRA, André Soares. Escritura do visual: o cinema no romance. Santa Maria: Ed. UFSM, 2007. p. 99.
4 JOSÉ, Ângela. Olney São Paulo e a peleja do cinema sertanejo. Rio de Janeiro: Quartet, 1999. p. 60.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Grito da terra será efetivamente a primeira reali- flertar com a linguagem moderna da sétima arte. 83
zação em longa metragem do cineasta baiano de A economia do cinema ainda girava em torno da
Riachão do Jacuípe. Filme orçado inicialmente em importação de filmes de grande público e buscava a
15 milhões de cruzeiros, mas que custou ao final 30 maioridade intelectual no diálogo com a literatura,
milhões. O financiamento foi responsabilidade do pois a aceitação do cinema como arte pelo público
escritor Ciro de Carvalho, que assumia a condição intelectualmente mais sofisticado dependia muito
de produtor, arrecadando parte do dinheiro junto da relação que o espectador fazia entre o caráter
ao Banco Econômico, para iniciar as filmagens em formador do literário e o filme adaptado direta-
outubro de 1963. O filme tem locações na comu- mente da literatura ou não.
nidade rural de Bonfim de Feira, hoje distrito da
cidade de Feira de Santana, exatamente em terras Fernando Ramos e Efigênio Matos fizeram a
de uma antiga fazenda denominada de Bonsucesso, assistência de direção de Grito da terra, além de
cujo proprietário era primo do autor do romance Valneide São Paulo, irmão do cineasta. O diretor
adaptado e produtor. de fotografia previsto era Waldemar Lima, afastado
por causa de outros compromissos que atrasariam
A Santana Filmes S.A. se associou à produtora a produção, que deveria ocorrer em três meses de
Saci Empreendimentos e Planejamentos S.A. para filmagens, pois Olney era funcionário do Banco
a realização de Grito da terra, contratando o elenco do Brasil e obtivera licença com tempo definido.
de atores e atrizes conhecidos do público cinema- Leonardo Bartucci assume a fotografia. Ele havia
tográfico à época, principalmente por atuação em trabalhado com Olney em Mandacaru vermelho
obras do Cinema Novo: Lucy Carvalho, que atuou (1961), filme de Nelson Pereira dos Santos improvi-
em Barravento (1963), de Glauber Rocha; Os cafajestes sado para substituir a primeira tentativa do cineasta
(1963), de Ruy Guerra; Tocaia no asfalto (1962) e A paulista de filmar o romance de Graciliano Ramos,
grande feira (1961), de Roberto Pires; e em Sol sobre Vidas secas, no sertão da Bahia, o que só ocorrerá
a lama (1962), de Alex Viany; Lídio Silva, que já de fato dois anos depois, quando Nelson Pereira
atuara em dois longas-metragens de Glauber Ro- encontra o sertão em condições climáticas para o
cha, Barravento (1963) e Deus e o diabo na terra do Sol cenário da seca.
(1964). João de Sordi trabalhou com Olney em O
caipora (1964), de Oscar Santana, e em O pagador de Olney se revela nesse período como leitor dos
promessas (1962), de Anselmo Duarte. Também atua escritores regionalistas, assim como é costumeiro
em Grito da terra Helena Ignez, atriz de destaque em frequentador dos grupos cinemanovistas que se
filmes como Pátio (1959), estreia de Glauber Rocha deslocam no sertão da Bahia para filmarem as
no cinema; Assalto ao trem pagador (1963) e A grande obras emblemáticas do período áureo de rupturas
feira (1961), ambos sob a direção de Roberto Pires. formais e políticas que ecoam o cinema brasileiro
O elenco do filme de Olney São Paulo conta ainda no mundo.
com Raimundo Figueiredo, estreante no cinema
e estudante de teatro na Universidade da Bahia, Grito da terra partilha de um sentido específico da
além de Branca Drugolensky, esposa de Ciro de adaptação, que caracteriza a obra de Olney desde
Carvalho, e Marionel Martins. Há ainda Eládio o contraponto da narrativa do filme com a música
Theotonio de Freitas, ator e também o diretor de estruturante. Os responsáveis pela trilha sonora
produção de Grito da terra; e, por fim, entre os atores foram Orlando Senna e Fernando Lona, o primeiro
principais, o próprio escritor Ciro de Carvalho, que escreveu a letra da música tema do filme, Lamento
interpreta o delegado. de Justino, gravada por Lona nos estúdios da CBS
no Rio de Janeiro, com arranjo e orquestração do
Aparecem outros atores e atrizes menos conhe- maestro Remo Usai, no mesmo período da mon-
cidos, além de muitos figurantes, nessa que será tagem do filme, em agosto de 1964. Há também as
uma grande produção para os padrões da época, músicas Terra seca, Saudade sem nome, Depois do amor
considerando que o cinema nacional apenas es- e Tema do enterro, todas interpretadas por Fernan-
boçava uma autonomia econômica e começava a do Lona, cantor baiano morto precocemente 13

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

anos após esse trabalho na trilha sonora de Grito mas as adversidades climáticas e políticas os tornam
da terra. Como diz Fernando Morais da Costa, o cada vez mais reféns do fazendeiro Sebastião, que
papel da música no enredo dos filmes das décadas representa o típico vilão das condições agrárias
de 1960/70 é um elemento dos mais analisados adversas oriundas do sistema fundiário brasileiro.
pelos críticos de cinema. Segundo ele: “O uso da
música popular, ou, em alguns casos, mesmo da O filme de Olney assume a condição de denúncia
música erudita feita no Brasil, é entendido como social no viés ideológico do enredo, diferindo do
uma ferramenta importante para o funcionamen- olhar apenas telúrico do escritor Ciro de Carvalho
to do projeto de levar a cultura popular e o povo na sua narrativa romanesca sobre a precariedade
brasileiro para o centro da tela”.5 Olney tratava este do clima e das políticas sociais no campo. Na obra
aspecto musical com muita reverência, incluindo cinematográfica, os subalternos se tornam cada
músicos populares em alguns enredos dos seus vez mais ameaçados pelo fazendeiro Sebastião,
filmes, até mesmo atuando como personagens, personagem que representa o sistema coronelista,
como ocorre em outra adaptação literária sua, aproveitando-se da crise dos camponeses e espo-
O forte (1975), baseada no romance homônimo liando as produções, para adquirir as terras de forma
de Adonias Filho, que traz no elenco o sambista injusta. A síntese desta dialética é o próprio cinema
Monsueto Menezes. de Olney, que assume uma enunciação neorrealista
moderna, deslocando-se entre a necessidade ética
Grito da terra é sofisticado para os padrões técnicos de desvelar a crítica política, mas também aciona
e de produção na época, considerando o filme de o viés estético que desvincula o seu cinema dos
cineasta desconhecido do interior da Bahia e na dogmas estruturais do Realismo Socialista, filiando-
primeira experiência com esta complexidade. O o também ao movimento poético da linguagem
elenco artístico e técnico coaduna com a sofis- cinematográfica, realizando um filme que se projeta
ticação do tipo de cinema de adaptação literária na política cultural do sistema cinematográfico bra-
realizado por Olney, demonstrando o nível de sileiro e marcado pela ruptura dos cinemanovistas.
tensão que o seu cinema busca no diálogo com Desse ponto de vista, a obra de Olney passa a ser
demais artes – principalmente com a literatura – um signo cultural – conscientemente ou não –,
para a aceitação pelo público. pois dialoga com as demais expressões da cultura
nacional da época, o que implica a necessidade
Um aspecto importante na adaptação de Grito da de leitura semiológica que suplementa a visão do
terra é que o enredo do filme sofre consideráveis próprio diretor, como nos explica Christian Metz:
alterações em relação ao romance fonte. Um exem-
plo emblemático para o tipo da dialética dramática Com relação ao cineasta, o semiólogo segue um
do filme é a personagem antítese representada caminho inverso. Aquele parte de diversos sistemas
pela ambiciosa Loly, moça rural que deseja sair do (na maioria das vezes implícitos, às vezes, até incons-
campo em direção à cidade. Ela se projeta em con- cientes) para constituir um manifesto; este apoia-se no
traponto com a tese central do drama, que é repre- texto para reconstituir (e de maneira sempre explícita)
sentada por Mariá, amiga e cunhada de Loly, que, ao os sistemas que aí se acham implícitos, invisíveis, mas
contrário da primeira, acredita numa revolução que só nele localizáveis. O que o cineasta constrói é texto,
transforme a vida rural em esperanças de condições o que o analista constrói é sistema.6
melhores. Loly e Mariá são filhas dos agricultores
Silvério e Apolinário, respectivamente, homens As impressões semiológicas sobre o sistema
que procuram superar as dificuldades rurais, para cinematográfico implícitas na linguagem de um
sustentarem as famílias com os recursos da terra, filme podem ser acionadas de maneira particular

5 COSTA, Fernando Morais da. O som no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. Col. Trinca Ferro. p. 180/1.
6 METZ, Christian. Linguagem e cinema. Trad. Marilda Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1980. Col. Debates. p. 88.

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Com a
cine palavra,
o cinema

nesta obra de Olney, a partir de alguns aspectos na problematizar temas centrais da política econômica 85
adaptação cinematográfica da personagem literária dominante no país, aproximando-se do modelo
Mariá, que é interpretada por Helena Ignez e surge neorrealista literário e cinematográfico, travando
como autêntica invenção adaptativa do romance no um diálogo com as experiências cinemanovistas,
filme do cineasta baiano. Essa personagem não apa- principalmente com a trilogia do sertão cinema-
rece com a mesma intensidade no romance de Ciro tografado em Vidas secas (1963), Os fuzis (1963) e
de Carvalho e alguns críticos afirmam que ela teria Deus e o diabo na terra do Sol (1964).
sido criada no roteiro especialmente para a atuação
da atriz cinemanovista, convidada pessoalmente
por Olney. Na biografia do cineasta, a pesquisa-
dora Ângela José7 afirma que a personagem Mariá
foi criada especialmente para Helena Ignez e que
ela não existe no romance de Ciro de Carvalho. A O profeta
única edição do romance Grito da terra, lançada em de Feira de
novembro de 1964, tem a personagem Mariá, mas Santana. Acervo
Olney São
realmente no texto literário a personalidade dela é Paulo – Fundo
diferente da adaptada no enredo do filme. Esse fato Cinemateca
do MAM-RJ.
não somente rompe com o paradigma da fidelidade Arquivo Nacional
da tradução, mas cria uma imagem inusitada nessa
adaptação do livro, pois a filmagem é simultânea
à escrita do romance, numa espécie de adaptação
de mão-dupla em que alguns personagens do
filme deslocam o texto literário da perenidade do
significado, pois novos sentidos cinematográficos
retornam para a releitura do romance, que foi
lançado depois da realização do filme, assumindo
assim um modelo de literatura que cria personagens
simultâneos com a sua versão fílmica.

No que diz respeito à temática, o filme de Olney


São Paulo aborda os problemas políticos e econô-
micos nacionais oriundos da formação colonial
no modo de vida do campesinato no Brasil, ainda
presentes nos discursos literários ideológicos das
décadas de 1950 e 1960, e que deram repercussão
às políticas sociais das Ligas Camponesas e à luta
geral da sociedade contra o latifúndio, pela reforma
agrária e no combate ao analfabetismo. Diferente-
mente da concepção impressa no romance, esses
temas no filme de Olney assumem um viés mais
visivelmente ideologizado sobre as latentes dispu-
tas de classes que estavam em curso no período
que culmina com o golpe de 1964. É importante
compreender que a proposta do cineasta baiano
no filme sobre estas tensões sociais é apresentar e
25.525-02

7 JOSÉ, Ângela, op. cit.

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

Olney ao lado de sua


mulher, Maria Augusta,
e a filha Pilar. Acervo da
família

O filme de Olney não é propriamente obra do alizem a história social e a política cultural. Olney
Cinema Novo, enquanto manifesto do grupo: não assume em seus filmes a condição do intelectual
tem a adaptação diretamente radical realizada por urbano, mas sem abdicar das condições agrárias
Nelson Pereira, nem a recriação também radical da sua formação tradicional. Como afirma Célia
da literatura no filme de Glauber Rocha, que re- Tolentino, as décadas de 1950 e 1960 marcam o
cria o universo literário brasileiro nacionalista em período em que “a transição do Brasil rural para
seus transes cinematográficos internacionalistas. o Brasil urbano e a do exclusivismo agrário para a
A forma de adaptação assumida por Olney São primazia econômica industrial estavam em causa”8.
Paulo fica no “entre lugar” e no meio do caminho Por isso, os temas relacionados à ruralidade do
entre a dicção clássica da fotografia e o discurso país se faziam tão presentes na pauta intelectual
político moderno, contracenando na sua narrativa a brasileira, embora o país estivesse passando por
poesia das imagens e a narratividade dos discursos, processo de urbanização acelerada nas grandes
que também são recursos emblemáticos do cine- metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, mas
manovismo. Olney se aproxima do Cinema Novo que também conviviam com problemas típicos do
pelo viés de personagens emblemas que replicam o campo e continuavam semelhantes no complexo
discurso ideológico, como o professor de Grito da identitário da origem colonial.
terra, duplicação da imagem da “estética da fome”
cinemanovista representada na figura do beato O combate ideológico pela reforma agrária mostra-
interpretado pelo ator Lídio Silva no filme Deus e do no filme de Olney está em diálogo com as litera-
o diabo na terra do Sol, de Glauber Rocha. turas das lutas internacionais pela descolonização,
principalmente ecoando narrativas da literatura e do
As ambivalências do filme de Olney São Paulo entre cinema comunista da Revolução Russa de 1917, tra-
um neorrealismo mais radical e as montagens de zendo como lemas ideológicos “pão, paz e terra”. A
tom mais clássico sobre o tema agrário tornam a intensidade da literatura soviética na leitura de Olney
sua obra ainda mais contemporânea das trágicas pode ser exemplificada na forma familiar com que
contradições brasileiras, pois ela espelha a nação o cineasta homenageia o escritor e jornalista russo-
em busca de alternativas éticas e estéticas que atu- ucraniano Ilya Ehrenburg, sendo incorporado ao

8 TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001. p. 12.

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Com a
cine palavra,
o cinema

primeiro nome do seu filho Ilya Flaherty Santana estéticos para explicar à sociedade o necessário fim
87
São Paulo, nascido nos tempos de gestação de Grito do latifúndio no país, bem como a importância das
da terra, em 1963, que ainda traz no segundo nome reformas socioeconômicas de base, especialmente a
uma homenagem ao cinema clássico, destacando fundiária. O filme de Olney reflete essas circunstân-
a importância para Olney do cineasta americano cias, ao apresentar e discutir questões que estavam no
Robert Joseph Flaherty, que é considerado um dos centro dos problemas rurais do Brasil, ampliando a
criadores do documentário direto. produção de narrativas para os interiores da nação,
como é o caso do surgimento desta cinematografia
Grito da terra ajusta as imagens representativas da telúrica sertaneja no interior da Bahia, como um eco
literatura, do cinema, dos movimentos ideológicos e da política dos cineastas, que, à época, tornavam o
das expressões estéticas emergentes no contexto his- tema agrário o motivo principal das experimentações
tórico local para intensificar os discursos reformistas estéticas neorrealistas e de éticas mais realistas na
e revolucionários que, no Brasil, ecoam na recepção política e na cultura brasileiras.
dos acontecimentos mundiais. Na época ocorriam
as variadas reflexões sobre os desdobramentos A alfabetização dos camponeses em Grito da terra é
políticos do fim da ditadura de Getúlio Vargas e do promovida pelo professor negro, que transita por
sucesso do projeto modernizador de Juscelino Ku- imagens messiânicas e revolucionárias, como um
bitschek, bem como a ascensão de João Goulart ao beato conselheiro reproduzindo a filosofia educa-
poder central do país com os discursos de reforma cional de Paulo Freire no sertão. Embora seja um
social. Mas esse período que parecia apontar defini- discurso religioso, o beato absorve a persuasão
tivamente para a democracia plena teve seu auge e da ideologia marxista sobre a luta de classes, ao
também a maior decepção com o golpe de 1964. Os mesmo tempo em que é citação direta da história
intelectuais acionavam todos os dispositivos éticos e de militância do camponês João Pedro Teixeira,

Olney em
entrevista com
Sílvio Tendler,
Walter Carvalho
e José Carlos
Avellar. Acervo
da família

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Grito da terra: ética e estética da adaptação em Olney São Paulo

líder das primeiras Ligas Camponesas do Estado revolucionário e o misticismo religioso focados na
do Pernambuco, de quem a literatura popular fizera educação como o viés da consciência de classe. Mariá
um herói do imaginário regional, sendo o filme de segue ideologicamente o professor, incluindo em sua
Olney uma forma de registro ético da história social imagem elementos telúricos e sensuais da natureza
e das novas engrenagens estéticas do documental, sertaneja reprimida; Loly encena o viés extremo da
forjando na ficção a imagem do militante e do dialética rural, ungindo a modernidade urbana como
mobilizador da consciência popular pela educação, modelo e saída do capitalismo burguês para suplan-
o que, segundo o personagem do filme, é “a arma tar o mundo agrário conservador com suas mazelas.
do sertanejo”. O personagem aponta a educação
formal como única saída possível para o camponês Para Ângela José, as duas personagens femininas
se conhecer e de reconhecer os lados opostos da são as engrenagens principais do filme, pois são
luta pelos direitos sociais, compreendendo que os elas as imagens protagonizadas das famílias nu-
fatores igualitários são difundidos através de uma cleares do drama na narrativa. Silvério é o pai de
leitura direcionada do texto bíblico, ao afirmar que Loly, o que mais sofre os efeitos da estiagem e é
“Deus não deixou terra pra ninguém”. forçado a vender parte da sua terra a preço baixo
para Sebastião, que por sua vez é o vilão que tenta
Para compreendermos a importância ética e a di- dificultar a vida dos pequenos proprietários, a fim
mensão estética desse tema no filme de Olney, ao de adquirir os bens dos desgraçados, criando di-
representar o instrumental popular da alfabetização ficuldades financeiras aos pequenos proprietários
manipulado pelo beato negro, vejamos a análise de que não conseguem escoar suas colheitas. O grande
Roberto Schwarz sobre o método de Paulo Freire proprietário impede inclusive o casamento entre
naquele contexto social e histórico do país. Para ele: o seu filho, Geraldo, e Mariá, filha do pequeno
agricultor Apolinário, repercutindo no filme o ar-
Este método muito bem-sucedido na prática, não con- quétipo clássico do amor proibido pelas desavenças
cebe a leitura como uma técnica indiferente, mas como familiares. A situação se agrava mais quando as
força no jogo da dominação social. Em consequência plantações são perdidas na seca, o que obriga o
procura acoplar o acesso do camponês à palavra escrita pai de Mariá à dependência econômica completa
com a consciência de sua situação política. Os profes- de Sebastião, pois é obrigado a dar como garantia
sores, que eram estudantes, iam às comunidades rurais, de empréstimos a propriedade da família.
e a partir da experiência viva dos moradores alinhavam
assuntos e palavras-chave – ‘palavras-geradoras’, na O filme de Olney enfoca as questões fundiárias do
terminologia de Paulo Freire – que serviriam simulta- país através do embate entre o latifundiário Sebas-
neamente para discussão e alfabetização.9 tião e os pequenos proprietários e trabalhadores
locais. Esse tema atravessa a narrativa regionalista
A educação e o domínio da “cartilha”, para o sertaneja do sujeito nacional espoliado, como um
professor, é a única maneira dos camponeses emblema da arte nacional-popular, sendo este
compreenderem que são capazes de reivindicar enfoque central presente nos sutis diálogos entre
a terra e de contrariar os interesses dos grandes a literatura e o cinema nacionais do período. Em
proprietários rurais. entrevista cedida à Revista da Bahia, de 1965, Olney
São Paulo afirma que ao ter contato com o texto
Em Grito da terra o núcleo dramático é esse tema, literário de Ciro de Carvalho pela primeira vez
dando o seu tom sobre os personagens já emble- disse que “faria o filme somente para dizer àquele
máticos do sistema cinematográfico brasileiro da personagem [Loly] que o Nordeste precisa de seu
época. O professor negro e as figuras femininas povo para salvar o seu futuro”.10 O cineasta realizou
de Mariá e Loly representam a dialética do projeto o filme acionando a questão da seca no Nordeste,

9 SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Paz e Terra, 1978. p. 68.
10 Entrevista com Olney São Paulo. Revista da Bahia, Salvador, ano IV, n. 4, 1965. p. 56.

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Com a
cine palavra,
o cinema

89

Ciganos no Nordeste
(1976), documentário
dirigido por Olney São
Paulo. Acervo Olney
São Paulo – Fundo
25.525-02

Cinemateca do MAM-RJ.
Arquivo Nacional

não apenas como um problema climático, mas tratamentos poéticos da fotografia, que adapta o
principalmente político e humanista, pois o período romance numa leitura ao mesmo tempo objetiva
de chuvas intensas não muda a situação dos cam- sobre os conflitos agrários do Brasil e subjetiva do
poneses. Segundo ele, estava interessado em um olhar humanista no cinema literário, construindo
“filme-poema em que o Homem e a Terra fossem uma obra híbrida de experimentalismos e recursos
os únicos personagens. Um quase documentário, cinematográficos tradicionais, para, como diz ele,
uma crônica rural. Um depoimento sobre a vida “fazer de um filme simples”.12
do sertanejo desamparado e explorado”.11
Grito da terra é um jogo de percepção sobre a
Neste depoimento, Olney São Paulo aciona tanto a complexidade do simples, seja quanto ao caráter
literatura de Euclides da Cunha, em Os sertões, quan- da adaptação fílmica brasileira protagonizada no
to documentários cinematográficos, como Maioria modo particular de Olney, seja no âmbito político
absoluta (1964), de Leon Hirszman, ou ainda a poesia do cinema nacional de cunho ideológico. Os figu-
de poetas como Décio Pignatari, que publicara o rinos e utensílios usados, bem como os cenários,
famoso poema concreto Terra. O filme amplifica o refletem a imagem dos moradores locais que
tom de manifesto e os debates éticos e poéticos em haviam cedido muitas peças para as gravações,
torno do analfabetismo e do latifúndio nas imagens coadunando com os ideais éticos e estéticos desse
das famílias de Silvério, Apolinário e Sebastião, que cineasta nordestino, conhecido pelos parceiros de
perfazem a dialética do filme Grito da terra. cinema pela simplicidade, mas, ao mesmo tempo,
pelo rigor da sua obra, ao representar os dramas e
O delineamento ético da estética na narrativa a poesia do homem rural enraizados na memória
do filme de Olney São Paulo é atravessado por através da literatura nacional popular.

11 Idem.
12 Idem.

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Sílvio Back (com a câmera)
ensaia a cena do transe da
virgem Ana, interpretada por
Dorothée-Marie Bouvier, no
épico A guerra dos pelados
(1970). O roteiro foi inspirado
no romance Geração do
deserto, de Guido Wilmar Sassi,
sobre a Guerra do Contestado.
Correio da Manhã

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Maria Gutierrez Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais e mestre em Letras pela Universidade de São Paulo. Organizou cursos
no Memorial da América Latina e publicou artigos em revistas no Brasil e no exterior.

O latino-americanismo
transgressivo
de Glauber Rocha1

Em Cabezas cortadas (Glauber Rocha, Brasil/Espa-


nha, 1970), há um ditador foragido que espera e
prepara sua morte enquanto um profeta infunde
esperanças no povo. Não há um relato linear de
fatos, mas uma atmosfera onírica em que se super-
põem períodos históricos. A história é condensada
e se exibe uma série de tropos ibero-americanos
num espaço imaginário que poderia situar-se em
qualquer lugar ou em lugar nenhum. Com este
filme, Glauber Rocha estabelece todo um diálogo
intertextual com a literatura da América Latina.

Chama atenção a proximidade da produção do filme


com a data de publicação de três dos mais célebres
“romances de ditadores” − El recurso del método (Alejo
Carpentier, 1974), Yo el supremo (Roa Bastos, 1974) e
El otoño del patriarca (García Márquez, 1975) − e sua
afinidade com eles no compartilhamento de temas
e propostas formais. Alguns autores procuraram
diferenciar os romances centrados no tema da dita-
dura, os “romances de ditadura”, dos “romances de
ditadores” propriamente ditos, publicados nos anos
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1970. Nos romances de ditadura, que remontam ao


século XIX, o ditador não aparece como protago-
nista, mas se denunciam as consequências de sua
tirania; o escritor tem um propósito extraliterário,
mais do que estético. O romance panfletário, no
entanto, teria contribuído para fixar o tipo do dita-
Glauber definiu
dor de ficção, que permaneceu muito tempo como
Cabezas cortadas como uma caricatura, personagem sombra.2 Destes livros para
viagem borgeana pela obra
de Shakespeare.
os romances de ditadores dos anos 1970 rompe-se,
Correio da Manhã segundo Ángel Rama, a distância entre poderoso e
homens governados, que o contemplam de longe.

1 Este texto foi elaborado a partir de pesquisa realizada com o


apoio da Fapesp.
2 CASTELLANOS, Jorge; MARTÍNEZ, Miguel A. El dictador
hispanoamericano como personaje literario. Latin American Rese-
arch Review, v. 16, n. 2, p. 79-105, 1981.

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Com a
cine palavra,
o cinema

93

Tempo Glauber
Agora os narradores se instalam na consciência da ocupa dos problemas, conflitos e temas da tragédia.
personagem3 – como no filme de Glauber. Segundo Kott, “a tragédia é um julgamento sobre
a condição humana, uma medida do absoluto; o
O cineasta afirmou que o filme era uma “viagem bor- grotesco é a crítica do absoluto em nome da ex-
geana pela obra de Shakespeare”.4 No bardo, Glauber periência humana frágil”. Por isso, conclui o autor,
encontra um “método” capaz de “teatralizar a histó- “a tragédia conduz à catarse, enquanto o grotesco
ria”.5 Segundo Jan Kott, a história em Shakespeare não oferece nenhum consolo”.7
não se modifica, descreve círculos, girando sempre
em torno da luta pela coroa, imagem do poder. Em Quanto a Borges, vemos que Glauber toma dele
Shakespeare, afirma Kott, “a disputa pelo poder é sobretudo a ideia de uma “poética da leitura”,8 ao
despojada de toda mitologia e mostrada em estado realizar seu filme sobre elementos estruturais das
puro”.6 Trata-se da imagem mesma da história, ou a peças de Shakespeare. Neste filme, Glauber con-
imagem do Grande Mecanismo. Segundo o autor, cebe a criação artística como leitura, a arte como
Shakespeare dramatiza a história pela condensação, “discurso composto de discursos”,9 construindo,
desembaraça-a da descrição, da anedota, quase mes- como Borges, sua originalidade na “afirmação da
mo do relato. A história, grande protagonista da tra- citação, da cópia, da reescritura de textos alheios”.10
gédia, é concebida como vazia de sentido, ciclo atroz. Glauber compartilha com o escritor argentino a
liberdade na atitude relativa à tradição a que está
Já antes, em outros filmes de Glauber, havia sido destinado o artista das “orillas”.11 Afinal, em um
detectada a presença de Shakespeare. Mas é em Ca- de seus textos bastante discutidos, Borges havia
bezas cortadas que esta mais se evidencia. No filme, defendido nosso direito à cultura ocidental − e
todo detalhe foi suprimido, ficamos somente com a ao mesmo tempo nossa possibilidade de sermos
queda do déspota, como no Rei Lear − uma queda irreverentes em relação a esta.12
física, espiritual, corporal, social. Além disso, há a
forma grotesca com que a personagem do ditador A ideia de uma “viagem borgeana pela obra de
se apresenta. Jan Kott afirma que, na contempo- Shakespeare” leva a pensar no debate que se fazia
raneidade − seu livro é de 1961 −, o grotesco se contemporaneamente na América Latina sobre

3 RAMA, Ángel. Los dictadores latinoamericanos en la novela. In: ______. La novela en América Latina: panoramas 1920-1980. Bogotá:
Procultura; Instituto Colombiano de Cultura, 1982. p. 361-379.
4 ROCHA, Glauber apud PIERRE, Sylvie. Glauber Rocha. Campinas: Papirus, 1996. p. 259.
5 ROCHA, Glauber apud CARDOSO, Maurício. O cinema tricontinental de Glauber Rocha: política, estética e revolução (1969-1974). Tese
(Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, 2007. p. 123.
6 KOTT, Jan. Shakespeare, nosso contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 29.
7 Ibidem, p. 129.
8 MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges por él mismo. Caracas: Monte Ávila, 1980.
9 SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Seix Barral, 2007. p. 101-102.
10 Ibidem, p. 17.
11 Idem.
12 BORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In: ______. Discusión − Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1957. p. 151-162.

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O latino-americanismo transgressivo de Glauber Rocha

uma personagem do bardo, Caliban, de A tempestade termo mambí – palavra imposta pejorativamente
(Shakespeare, 1611). Em 1971, Fernández Retamar pelos inimigos, mas reivindicada pelos indepen-
publicava o ensaio Caliban. De acordo com ele, em dentistas cubanos, que tomaram com honra o que
1969 alguns escritores antilhanos haviam reivin- era injúria. Para o poeta e ensaísta cubano, esta é
dicado a figura de Caliban, entre os quais Aimé precisamente a dialética de Caliban.
Césaire, com sua Une tempête – d’après la Tempête
de Shakespeare, adaptation pour um théâtre nègre (Aimé Do traçado histórico das diversas retomadas da
Césaire, 1969), em que Caliban se torna guerrilheiro personagem, Retamar passa a um elogio do anti-
negro e Ariel, a representação do intelectual, é um imperialismo de Martí e então ao ataque contra al-
escravo mulato de Próspero. guns escritores latino-americanos contemporâne-
os, em quem ele parece enxergar Ariéis, servidores
Para o poeta e ensaísta cubano, não há metáfora de Próspero. Em texto de 1986, Caliban revisitado,
mais acertada para nossa situação cultural, nossa Retamar situa o ensaio original no contexto que o
realidade, que esta de Caliban, que aprendeu a produziu. Era o momento da polêmica em torno
língua de Próspero para maldizê-lo. Fernández da revista Mundo Nuevo e do “caso Padilla”, quan-
Retamar se pergunta o que são nossa história e do, indignados com o mea culpa do poeta após um
cultura senão a história e a cultura de Caliban. No mês de detenção, uma série de intelectuais envia-
Francisco entanto, ao propor Caliban como nosso símbolo, ram, de Paris, ao governo cubano, uma carta em
Rabal é
o ditador
Retamar se dá conta de que “tampouco é inteira- que questionavam o fato. De acordo com Retamar,
Díaz II em mente nosso”, também se trata de uma “elaboração estas foram as “chispas” para a redação de Caliban,
Cabezas
cortadas.
estranha”, ainda que desenvolvida a partir de nossas mas não só, também o teria gerado a reinterpre-
Acervo realidades concretas. Mas, ele se questiona, como tação do mundo motivada pela revolução. Neste
Cinemateca
Brasileira/
eludir completamente esta estranheza? Fernández texto de 1986, Retamar parece querer fazer justiça
SAv/MinC Retamar argumenta através de outro exemplo: o a Borges, resgatando sua importância a despeito
dos ataques feitos no ensaio original, em que havia
afirmado que Borges, por fazer da escritura um
ato de leitura, por afirmar que nossa tradição está
na Europa, seria um “típico escritor colonial”,13
e seus escritos, “testamento atormentado de uma
classe sem saída”.14

No texto de 1971 de Borges, Fernández Retamar


passava a atacar o trabalho de Carlos Fuentes, La
nueva novela hispanoamericana, de 1969, por impor o
esquema estruturalista ao estudo de nossa litera-
tura. Para Retamar, o auge da linguística, quando a
vertente estruturalista parecia ter “napoleonizado”
as outras ciências sociais, tinha razões ideológicas;
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e a a-historicização implicada no estruturalismo


seria “própria de uma classe que se extingue”.15
Retamar rejeitava a perspectiva de Fuentes, segun-
do a qual “somente a partir da universalidade das
estruturas linguísticas se pode admitir, a posteriori,

13 RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban. In: _____. Todo Caliban. San Juan: Callejón, 2003. p. 63.
14 Ibidem, p. 71.
15 Ibidem, p. 78.

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Com a
cine palavra,
o cinema

afirmações que Vargas Llosa e Cortázar haviam feito


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sobre tal autonomia, pois, para ele, a literatura da
América Latina deveria estar atrelada à realidade. Ele
mencionava as discussões em torno de Borges e se
posicionava contrariamente à ideia de, na avaliação do
trabalho de um escritor, separar-se política e literatura.
Para Collazos, atitude intelectual e obra literária de-
viam coincidir. Ele escrevia contra certa literatura em
que enxergava um menosprezo à realidade. E citava
o exemplo do livro de Carlos Fuentes, Cambio de piel
(1967), questionando se deveríamos “nos confinar
na artificialidade de um cosmopolitismo radical”.18
Cartaz
Ao ser citado por Collazos, Cortázar se vê na do filme
Cabezas
obrigação de responder. E o faz em artigo tam- cortadas
bém publicado na revista Marcha, em dezembro de (1970),
filme que
1969. De acordo com Cortázar, já não havia nada dialoga com
que fosse estrangeiro, todo escritor tinha direito a literatura
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latino-
ao patrimônio cultural universal. Ele afirmava a americana.
necessidade de deixar de lado a confusão entre Acervo
Cinemateca
literatura e política. E se burlava daquelas pessoas Brasileira/
que, em seu complexo de inferioridade em relação SAv/MinC

a Borges, diziam-se comprometidos, “realistas”,


os dados excêntricos de nacionalidade e classe”;16 tentando negar o mestre da literatura argentina
contra esta ideia, Retamar oferecia o exemplo da por razões políticas. Cortázar argumentava que
cultura cubana: “filha da revolução”, do “rechaço a realidade do escritor ultrapassa o contexto
multissecular a todos os colonialismos”,17 portanto sociocultural, sem por isto “dar-lhe as costas”.
inseparável da história que a engendra. O escritor argentino defendia a distinção entre a
função intelectual e crítica e a criação narrativa,
Paradigmático do que eram os debates no momento que podem dar-se simultaneamente ou não. Cor-
em que Fernández Retamar escreveu Caliban é o tázar afirmava que um “contista ou romancista
livro Literatura en la revolución y revolución en la literatura. não o é por crítico, mas por criador”.19
Trata-se da compilação de artigos publicados em
1969 na revista Marcha, por Óscar Collazos, Cortázar Ao artista cabe a busca por formas experimentais,
e Vargas Llosa. Um texto de Collazos, La encrucijada “abertas”, asseverava Cortázar, acrescentando,
del lenguaje, motivou réplicas dos outros dois autores, de maneira irônica, que é natural que o avanço
que haviam sido mencionados no ensaio. da literatura seja mais retardado entre leitores e
críticos. Contra o “conteudismo” da cobrança da
O texto de Collazos atacava escritores latino-ame- representação do “contexto sociocultural e polí-
ricanos que abraçaram o estruturalismo e a noção tico”, Cortázar sugeria “enriquecedores desloca-
da autonomia da linguagem. Ele se colocava contra mentos” da realidade, capazes de revelar suas várias

16 Ibidem, p. 79.
17 Ibidem, p. 85.
18 COLLAZOS, Óscar. Encrucijada del lenguaje. In: ______; CORTÁZAR, Julio; LLOSA, Mario Vargas. Literatura en la revolución y
revolución en la literatura. México: Siglo XXI, 1976. p. 29.
19 CORTÁZAR, Julio. Literatura en la revolución y revolución en la literatura: algunos malentendidos a liquidar. In: COLLAZOS,
Óscar; CORTÁZAR, Julio; LLOSA, Mario Vargas, op. cit., p. 54.

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O latino-americanismo transgressivo de Glauber Rocha

de Campos serviriam a uma


defesa do filme de Glauber.

Para Haroldo, a questão do


nacional e do universal −
notadamente europeu − na
cultura latino-americana en-
volve a relação entre um pa-
trimônio cultural universal e
as peculiaridades locais; bem
como a questão da possibili-
dade de uma literatura expe-
rimental, de vanguarda, num
país “subdesenvolvido”.
Campos recorre a Engels
para afirmar a existência de
uma lei complexificadora da
transmissão do legado cultu-
ral na produção poética, e daí
a possibilidade de surgimen-
to do novo em condições
subdesenvolvidas. Segundo
Glauber Rocha camadas. De acordo com Cortázar, uma realidade Engels, as obras intelectuais de uma nação são
dirige o ator
espanhol imaginária e multiforme estava sendo questionada propriedade comum de todos; portanto, a estrei-
Francisco em nome de um “‘dever’ que ninguém nega”, mas teza e o exclusivismo nacionais são impossíveis
Rabal. Acervo
Cinemateca que não esgota o campo da literatura.20 Cortázar e, da multiplicidade de literaturas nacionais,
Brasileira/SAv/ terminava afirmando que romance revolucionário configura-se a literatura universal.
MinC
não é só o de conteúdo revolucionário, mas aquele
que procura revolucionar o próprio romance, sua Para exemplificar seus pontos de vista, Haroldo
forma; e que, para ele, os escritores devem ser remete à antropofagia de Oswald de Andrade,
“revolucionários da literatura mais do que literatos entendida como expressão de uma necessidade de
da revolução”.21 pensar o nacional em “relacionamento dialógico
e dialético com o universal”.22 Para Haroldo de
Já afastado do contexto polêmico do final dos anos Campos, a antropofagia oswaldiana…
1960 e início dos 1970, um texto de 1980, de Ha-
roldo de Campos, oferece implicitamente algumas é o pensamento da devoração crítica do legado cul-
respostas às questões levantadas pelo ensaio de Fer- tural universal, elaborado não a partir da perspectiva
nández Retamar, e parece corresponder à busca de submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ [...] mas
uma compreensão mais matizada do “dialogismo” segundo o ponto de vista desabusado do ‘mau selva-
que caracteriza nossa cultura. Pois, se tivesse sido gem’, devorador de brancos, antropófago.23
tema dos debates, Cabezas cortadas poderia ter sido
atacado pelos defensores de uma arte mais atrelada Vemos, portanto, que, entre o final dos anos 1960
à nossa realidade; neste sentido, alguns argumentos e o início dos 1970, na América Latina, tanto o

20 Ibidem, p. 68.
21 Ibidem, p. 76.
22 CAMPOS, Haroldo de. Da razão antropofágica: a Europa sob o signo da devoração. Colóquio/Letras, n. 62, p. 10-25, jul. 1981. p. 11.
23 Idem.

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Com a
cine palavra,
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estruturalismo como a ideia de uma reapropriação Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de
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“anticolonial” de Shakespeare, além de Borges, enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais
estavam no centro das discussões. Glauber, então, suporte viver nesta realidade absurda.
com sua “viagem borgeana pela obra de Shakes-
peare”, intervinha no debate de maneira prática. Borges, superando esta realidade, escreveu as mais
O cineasta havia dito que seu filme era estrutura- liberadoras irrealidades de nosso tempo. Sua estética
lista. O filme toma de Shakespeare a estrutura do é a do sonho.27
“grande mecanismo”: um poderoso em decadên-
cia, a chegada de um Messias – e se resume a isto. E acrescentou, sobre o escritor geralmente as-
Não há precisão de que ditador é este, de onde sociado ao cosmopolitismo: “Para mim é uma
vem exatamente, e sobre o pastor muito menos, iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a
eles não têm história, um antes e um depois, são minha sensibilidade afro-índia na direção dos mi-
mera encarnação de uma estrutura que se repete. tos originais de minha raça”.28 Ou seja: é um autor
E exatamente esta forma é que expressa o seu cosmopolita que lhe permite entender melhor sua
conteúdo, porque o filme é sobre esta repetição região de origem.29 Com relação à reivindicação
como algo que nos caracteriza. Por isso, Díaz é de Borges por Glauber: de acordo com Nicolás
sempre o mesmo, que voltou e voltará. Glauber Fernández Muriano, no manifesto da estética do
usa o estruturalismo, a intertextualidade − pro- sonho, o cineasta propõe uma reflexão sobre as
cedimentos que costumam confinar a leitura no condições do cinema político latino-americano a
âmbito do texto − para tratar da história, de uma partir de uma oposição entre Borges e Solanas.
história cuja tendência é repetir-se. Para ele, Glauber toma de Borges “uma matriz
temporal complexa que permite superar a matriz
Em texto de 1968 endereçado a Paulo Francis,24 historicista que atribui a Solanas”.30 De fato, a
Glauber comentava estar lendo Borges, e, em apropriação de Borges por Glauber soa como
Eztetyka do sonho,25 de 1971, mencionava o escritor uma provocação, não somente à intelligentsia latino-
em dois momentos. Destaquemos estes trechos americana de esquerda que na época rejeitava
do manifesto. Glauber afirmava ser preciso fazer Borges, mas especificamente a certa esquerda
a distinção entre o que é “arte revolucionária útil argentina, representada por Solanas, devido à
ao ativismo político, do que é arte revolucionária condenação que o filme lança a qualquer tipo de
lançada na abertura de novas discussões, do que populismo.
é arte revolucionária rejeitada pela esquerda e ins-
trumentalizada pela direita”.26 No primeiro grupo Assim, o que Glauber põe em prática com Cabezas
ele citava La hora de los hornos (1968), de Solanas, no cortadas é um “latino-americanismo transgres-
segundo, filmes do Cinema Novo brasileiro como sivo”31 que reivindica Borges, estruturalismo,
os seus próprios, e, no último, a obra de Borges. Shakespeare, tudo sempre numa devoração an-
Mais adiante, Glauber afirmava: tropofágica e livre.32

24 ROCHA, Glauber. From New York to Paulo Francis. In: ______. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
25 ROCHA, Glauber. Eztetyka do sonho. In: ______. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 248-251.
26 ROCHA, Glauber, 2006, op. cit., p. 249.
27 Ibidem, p. 251.
28 Idem.
29 Antonio Candido tratou do desenvolvimento de nossa literatura entre cosmopolitismo e regionalismo no texto Literatura e subdesen-
volvimento. In: MORENO, César Fernández (Org.). América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 343-362.
30 MURIANO, Nicolás Fernández. Glauber Rocha, lector de Borges. Imagofagia, revista de la Asociación Argentina de Estudios de
Cine y Audiovisual, n. 7, 2012.
31 Devo à professora da Faculdade de Letras da USP Ana Cecília Olmos a sugestão do termo “transgressivo” para caracterizar o
latino-americanismo de Glauber neste filme.
32 Ver também: RETAMAR, Roberto Fernández. Caliban revisitado. In: ______. Todo Caliban. San Juan: Callejón, 2003. p. 113-130.

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Nelson Rodrigues conversa
com Guimarães Rosa durante
almoço no Palácio do Itamaraty
carioca, em 1967. Correio da
Manhã

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Joel Cardoso Pós-doutor em Artes (Cinema & Literatura) pela Universidade Federal Fluminense e doutor em Letras pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor do curso de Cinema e da pós-graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. Autor de,
entre outros títulos, Nelson Rodrigues: da palavra à imagem (Intercom, 2010) e organizador, com Bene Martins, de Desdobramentos das linguagens artísticas:
diálogos interartes na contemporaneidade (PPGArtes, 2012).

Na intranquilidade do universo
de Nelson Rodrigues

“ É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face


linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao
passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez.
Nelson Rodrigues ”

“O subúrbio tem fome de livros”,


diz Nelson Rodrigues, em sessão de
autógrafos que inaugura a Livraria
do Correio da Manhã no bairro
do Méier, Rio de Janeiro. Julho de
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1967. Correio da Manhã

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Com a
cine palavra,
o cinema

101

Considerações preliminares: apresentar época. Escreveu, ao todo, 17 peças. Sobrepondo-se


Nelson ainda é preciso? ao social, indubitavelmente importante, ressalta,
nelas, o ambiente familiar, onde pululam as ob-
Temos dificuldades em aceitar o novo. Por detrás sessões, as taras, as perversões, as transgressões
de máscaras que aparentam modernidade, somos, tácitas. Por eleger a família – entidade intocada –,
na verdade, demasiadamente conservadores. É as tramas, que seriam aceitas com mais naturalidade
tendência do ser humano ficar no conforto do se ambientadas socialmente, ganham complexida-
conhecido. Se, por um lado, o desconhecido nos de, intensidade quando ambientadas no seio da
fascina, por outro lado, ele nos amedronta. família. Alinham-se, em seus textos, traições (as
mais diversas, nos mais diversos níveis), desejos
Poderíamos nos perguntar: por que, ainda hoje, (molas propulsoras da vida e calados socialmente),
voltar a Nelson Rodrigues? Nelson Rodrigues con- obsessões, taras, máscaras sociais (hipocrisias que,
tinua, depois de mais de trinta anos de sua morte uma vez assumidas, já não podemos mais delas nos
e mais de cem anos após o seu nascimento, sendo desvencilhar), religiosidade e pecado.
polêmico; sendo, ainda, para muitos, intragável; sua
obra continua atual, provocativa, instigadora... Ele Nelson Rodrigues e o cinema
abriu, no estagnado panorama do nosso marasmo
cultural, fendas que continuam vivas, continuam Nelson surge no universo do cinema em 1950, e, a
latentes, fendas que ainda incomodam. Homem partir daí, o cinema, atento à qualidade artística do
das letras, cultivou os mais variados gêneros. O texto, mas também de olho no mercado, fez e con-
conto, o romance, o texto jornalístico, a novela, o tinua a fazer releituras das obras do autor. Os mais
folhetim (ainda em voga), a crônica, a crítica social diversos textos foram transpostos para a tela gran-
e de arte foram algumas modalidades de gênero de. Entre 1952 e 2002, portanto, num período que
que expressaram o pensamento irrequieto do autor. abarca cinquenta anos, época em que me debrucei
Na crônica, fez escola. Se não criou, praticamente sobre o universo do autor na minha pesquisa de
remodelou a crônica esportiva (leia-se futebolísti- doutoramento, 22 textos do autor foram lidos pelo
ca). Com seu estilo direto, elegante, contundente, cinema. Nesse mesmo período, Nelson participou
moldou o gênero, marcado por sua irreverência, de diversas maneiras do fazer cinematográfico, ora
pela sua maneira particular de encarar o futebol. acompanhando as filmagens (e interferindo ativa-
mente nelas), ora criando diálogos, ora adaptando
Transitou, sobretudo, com sua habitual maestria, textos. O primeiro filme baseado diretamente em
pelo teatro e, aí, fez escola. Depois do sucesso de texto do autor é de 1952, Meu destino é pecar, com
Vestido de noiva, que ganhou unanimidade nacional, direção do argentino Manoel Pelufo. Mas, em 1950,
ele poderia ter se acomodado, ou se aproveitado ocorreu o primeiro envolvimento de Nelson Rodri-
do modelo que o notabilizara para criar outros si- gues com o cenário cinematográfico. Nessa data,
milares. No entanto, a peça que viria na sequência ele assina os diálogos da comédia Somos dois, dirigida
de sua trajetória como dramaturgo desmente esse por Milton Rodrigues. Em 1961, escreve, também,
acomodamento. Álbum de família, peça transgres- os diálogos de Mulheres e milhões, comédia dirigida
sora, ficou proibida por 21 anos pela censura da por Jorge Iléli. Em 1962, quando já em vigor as

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Na intranquilidade do universo de Nelson Rodrigues

Fischer, esta, no auge de sua beleza, personificando


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um objeto desejável sexualmente pelos brasileiros. A


última leitura desta peça foi viabilizada por Moacyr
Góes, produzida em 2008-9 e, por conta de diversos
problemas, foi lançada oficialmente apenas em 2013.

Voltando ainda para a década de 60, ainda em


1963, Nelson se responsabiliza pelos diálogos de
Meu nome é Pelé. No ano seguinte, 1964, mais dois
filmes dos textos rodrigueanos: Asfalto selvagem e
A falecida. Em A falecida, hoje um cult, com um ro-
teiro que teve a participação de Nelson, e direção
de Leon Hirszman, temos a estreia de Fernanda
Montenegro no cinema, vivendo a atormentada
Zulmira, uma mulher obcecada pela ideia de
morte. A personagem sonha com um enterro de
luxo, um enterro esplendoroso, para compensar a
vida medíocre que teve. O beijo (1965) é a primeira
leitura cinematográfica da peça O beijo no asfalto.
O filme, dirigido por Flávio Tambellini, carregou
nos tons realistas e expressionistas do texto. Hoje,
é, também, um cult. Merece ser revisto. Ainda de
65 é Engraçadinha depois dos 30, uma continuação
de Asfalto selvagem. Vindo de um texto em prosa,
Nelson Rodrigues dá sua contribuição nos di-
álogos do filme. Dada a concisão de seu estilo
jornalístico, seco, enxuto, transmitindo apenas o
essencial, indo direto ao ponto, é chamado para
elaborar os diálogos de O mundo alegre de Helô,
filme de 1966, e da comédia de 1970 Como ganhar
na loteria sem perder a esportiva.

Em 1972, Arnaldo Jabor dirige Toda nudez será casti-


gada, um filme referencial na carreira desse diretor e,
indubitavelmente, uma das melhores transposições
de um texto de Nelson para a tela grande. A atriz
Cartaz de inovações estéticas do Cinema Novo, aparece Boca Darlene Glória, vivendo a personagem Geni, está no
Bonitinha,
mas ordinária de Ouro, sob a batuta de Nelson Pereira dos Santos. melhor desempenho de sua carreira. O filme mere-
(1981) exibido cidamente conquistou diversos prêmios nacionais e
em cinemas.
Serviço de Surge, a partir de então, uma sequência quase inin- internacionais. Jabor voltaria, em 1975, ao repertório
Censura de terrupta de textos rodrigueanos que migram para o dos textos de Nelson em O casamento, mas não con-
Diversões
Públicas - RJ universo do cinema. Isso, certamente, não é obra do segue, desta feita, o mesmo impacto do primeiro.
acaso. A primeira versão de Bonitinha, mas ordinária
é de 1963, com Jece Valadão, cuja personagem, O universo da crônica rodriguiana migra para o
simbolizando o machão cafajeste, faria sucesso à cinema em 1978 com A dama do lotação. O filme,
época. Bonitinha, mas ordinária é o texto de Nelson dirigido por Neville D’Almeida e estrelado con-
que mais foi revisitado pelo cinema. Alcançou três vincentemente por Sônia Braga (outra musa do
versões. A segunda, de 1980-1, com direção de Braz nosso cinema), se converteu, à época, em um dos
Chediak, versão em que atuam Lucélia Santos e Vera maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Produção de 1980, Os sete gatinhos foi dirigida por em contato com oitocentas mil pessoas de uma vez 103
Neville d’Almeida. Em 1981, chega às telas a mais é sério, é um fato muito transcendente”, afirmou
polêmica das peças de Nelson, Álbum de família. A Nelson em entrevista concedida para o Museu da
direção é de Braz Chediak, com um elenco estelar: Imagem e do Som em 1967. Escreveu, para a TV,
Dina Sfat, Vanda Lacerda, Lucélia Santos, Rubens três novelas e uma minissérie.
Correia e outros. O roteiro deste filme contou com
a participação de Nelson. Em 1983, chega às telas Foi, em 1966, apresentador de um quadro, A cabra
Perdoa-me por me traíres, um filme de J. B. Tanko. vadia, no programa Noite de gala. Duas de suas peças
foram teledramatizadas: Vestido de noiva (de 1974,
A vida como ela é..., nome de uma coluna diária de com direção de Antunes Filho, em preto e branco,
crônicas que Nelson Rodrigues assinou por mais sem dúvida, um espetáculo referencial até hoje e
de dez anos nas décadas de 50 e 60 do século inexplicavelmente relegado ao esquecimento) e,
passado para o jornal Última Hora, tinha como ce- em 1985, Senhora dos afogados (numa adaptação de
nário o Rio de Janeiro da época. Os textos curtos, Carlos Queiroz Telles, dirigida por Antônio Abu-
irreverentes, com finais inusitados, alcançaram um jamra), além dos já citados quarenta episódios de
enorme sucesso. Foram o ponto de partida para A vida como ela é...
Correio da Manhã
uma série de quarenta episódios que, aproveitados
pela Rede Globo de Televisão, eram apresentados
nos intervalos do programa Fantástico.

As crônicas de Nelson funcionavam como exer-

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cício dramatúrgico para o autor. As tramas, as
situações, os diálogos de muitas delas aparece-
riam, depois, em suas peças. Também por conta
dessas crônicas, muitos filmes experimentais
foram produzidos. Um deles, de 1987, tem por
título, exatamente, A vida como ela é... Com apenas
cinco minutos de duração, foi dirigido por Nilson
Queiróz Couto. Baseado no universo rodrigue-
ano, surge, no ano 2000, Os filhos de Nelson, um
interessante curta-metragem de Marcelo Santiago.

Boca de Ouro, em 1990, volta às telas, agora sob a


direção de Walter Avancini. Seguem-se outras pro-
duções: A serpente (1992, direção de Alberto Magno),
Traição (1998, um longa em três episódios, cada um
deles dirigido por jovens diretores, “O primeiro
pecado”, de Arthur Fontes; “Diabólica”, de Cláudio
Torres; e “Cachorro”, de José Henrique Fonseca),
Gêmeas (1999, direção de Andrucha Waddington,
que, inicialmente, faria parte do longa Traição). A
mais famosa peça de Nelson, Vestido de noiva, ganha,
finalmente, uma leitura cinematográfica em 2006.
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Na direção, Jofre Rodrigues, filho do dramaturgo.

Homem do seu tempo, atento à disponibilidade


midiática da época, Nelson Rodrigues flerta, ousada
e despreconceituosamente, com a televisão. “Acho
a televisão uma coisa afrodisíaca. O fato de se estar

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Na intranquilidade do universo de Nelson Rodrigues

Este percurso, que se sabe parcial e sucintamente tônica dominante. Segundo ele, “toda família tem
apresentado, mostra a versatilidade de um autor, um momento em que começa a apodrecer. Pode
sempre inquieto, sempre buscando novas formas ser a família mais decente, mais digna do mundo.
de representação. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã
lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo
Nelson Rodrigues: polêmica, ao mesmo tempo”.
ousadia e irreverência
O cinema era importante, mas o veículo de
A família é o inferno de todos nós. expressão em que mais se sentia à vontade era
Nelson Rodrigues o teatro. Ele sabia da permanência do teatro
enquanto arte. Afirmou: “O teatro vive de mor-
Sem medo de se expor, afrontando abertamente tes e de ressurreições. De vez em quando, vem
o convencionalismo vigente, completamente alguém passar-lhe o atestado de óbito. Mas ele
descrente dos valores tradicionais, cônscio da continua. Não importa que a tela cinematográfica
fragilidade das evidências sociais, nem sempre seja miguelangesca. […] Mas o teatro está vivo,
verdadeiras, Nelson Rodrigues questionava tudo. o teatro é um cadáver salubérrimo.”1 Aí, talvez,
É autor de frases primorosas, que entraram para a resida a dificuldade maior de se transpor para o
história e, em torno delas, se criou um anedotário, cinema, um outro suporte, com outros recursos,
se tornaram antológicas. com outras dinâmicas narrativas, uma obra tão
decididamente teatral. As estratégias que tão bem
Nelson gostava de polemizar. Irreverente por natu- funcionam no palco carecem de adequações que,
reza, suas frases, seus ditos impactavam. Caindo no por vezes, descaracterizam o texto de origem.
gosto popular, hoje, as citações do autor são sempre
lembradas e mencionadas, e, por vezes, como não Homem do seu tempo, arguto observador do
poderia deixar de ser, até desvirtuadas. Mas isso, comportamento humano, o autor reflete com
para o público ainda ávido de Nelson, realmente profundidade sobre as mazelas humanas, sobre
não importa. Não é esse mesmo o destino de toda o comportamento hipócrita e contraditório
obra de arte? O público decide o teor e as formas do homem, de como esse homem lida com os
de recepção de toda produção artística. próprios desejos, reprime ou extravasa suas ten-
sões. Como esse mundo interior vem à tona e se
No teatro, área que conferiria maior credibilidade reflete na sociedade, opondo-se ou entrando em
e notabilidade ao autor, criou peças referenciais, consonância com aquilo que a sociedade espera
revisitadas nacional e internacionalmente pelos desse sujeito. A partir de suas próprias vivências,
amantes e produtores teatrais. Sem medo de cho- conferiu uma dimensão universal ao homem
car, ele queria mesmo é “um teatro desagradável!... simples que transita pelas ruas de sua cidade,
obras pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de do seu bairro. Nesse mundo, as interdições são
produzir o tifo e a malária na plateia”. muitas. Era um mundo hipócrita, centrado nas
aparências, feito de contradições, de interditos.
Os temas apresentados em sua obra punham Descobrir o mundo, mostrando especificidades
em cena a classe média. Sobretudo, as famílias do ser humano, na íntegra, sem subterfúgios, era
da classe média. A família era a célula mater da tarefa hercúlea. Por isso, o universo familiar, onde
sociedade, a panela de pressão onde se coziam tudo tem o seu início, o fascinava. Procurava, sor-
todas as transgressões, todos os desejos, todas as rateiramente, desvendar mistérios olhando “pelo
taras. Em sociedade, a hipocrisia era (e ainda é) a buraco da fechadura”.

1 Nelson Rodrigues em crônica publicada no Jornal da Tarde, São Paulo, em 25 jun. 1968.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Nelson Rodrigues: contrapontos tor ocorre, via de regra, através das apresentações
105
criativos e filosóficos televisivas ou através do cinema. Os textos criam
expectativas de que neles se encontrem traições, ce-
Cada leitura de um texto – literário, teatral, cinemato- nas tórridas de sexo, imoralidades. Em se tratando
gráfico – dialoga necessariamente com todas as nossas de adaptações literárias de textos famosos para o
leituras anteriores, tanto as que têm a ver diretamente cinema, é comum, mesmo nos nossos dias, que as
com o texto lido, como com outras, mais distantes, pessoas esperem uma transposição (uma tradução)
menos relevantes. Um texto – qualquer que seja ele – fiel do texto de origem para as telas. Bem sabemos
sempre vai fazer parte dessa ciranda intertextual que que as fronteiras entre as diversas artes se tornam
se instaura de imediato. Que se instaurem critérios cada vez mais tênues. As linguagens artísticas se
comparativos é inevitável, mas que, no processo com- entrecruzam, se interseccionam. Cinema e teatro,
parativo, se processem, como comumente acontece, artes narrativas, compartilham técnicas e proce-
critérios apenas valorativos, deveria ser repensado. dimentos ora distintos, ora similares. Vejamos, a
Joel Cardoso & Luiz Guilherme dos Santos Jr.2 respeito, as considerações de Sábato Magaldi:

Ainda hoje, o nome de Nelson Rodrigues está O realismo cinematográfico, sobretudo depois que
associado a um quê de imoralidade, de escândalo, passou a falar na tela, absorveu o diálogo espontâ-
de sexualidade. O contato das pessoas com o au- neo, natural, cotidiano sem prejuízo dos avanços

Vera Fischer e
Nuno Leal Maia
em Perdoa-me
por me traíres
(1980), de Braz
Chediak. Serviço
de Censura
de Diversões
Públicas - RJ
BR_RJANRIO_TN_0_CAZ_0024

2 CARDOSO, Joel; SANTOS JR., Luiz Guilherme dos. Teatro, imagem e vanguarda: o filme “Vestido de Noiva”. In: CARDOSO, Joel;
MARTIN, Bene (Orgs.). Desdobramentos das linguagens artísticas: diálogos interartes na contemporaneidade. Belém: PPGArtes, 2012. p. 143-173.

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Na intranquilidade do universo de Nelson Rodrigues

dos cortes, das elipses dos flashbacks. O cinema nhecida, como é o caso da obra de Nelson, uma
tornou-se admirável escola de uma linguagem fic- obra lida e toda ela já encenada, as cobranças
cional. Por que não incorporá-la ao palco? Acredito são infinitamente maiores. Não queremos, com
que a grande liberdade da técnica dramatúrgica de isso, validar toda leitura cinematográfica feita
Nelson tenha nascido na observação de espectador do repertorio do autor. Os apelos comerciais, os
cinematográfico. Se a Sétima Arte não teve pudor de oportunismos e tendências de época também se
assenhorar-se de procedimentos teatrais, a recíproca fizeram presentes. Porém, não convém investir
não mereceria condenação. 3 nesse conceito de valores já que se trata de uma
discussão inócua.
Antonin Artaud, outro ícone do mundo dos
palcos, afirmava que “o teatro é o lugar onde se Os filmes sobre a obra de Nelson Rodrigues aí
refaz a vida”. Nelson, como ninguém, provou a estão. Há quem os respeite, quem os cultue; há,
veracidade disso. No seu teatro, a vida se refez por outro lado, sempre de plantão, os detratores,
extrapolando os limites de suas probabilidades. a crítica negativa. Se a obra do dramaturgo merece
O cinema, com raríssimas exceções, se mostrou respeito (e quanto a isso não há contestações), as
muito tímido na leitura das peças rodrigueanas. Se, leituras (principalmente as fílmicas) feitas a partir
no passado, o que se esperava era que os diretores dela não encontram o mesmo respaldo, a mesma
se comportassem respeitosamente em relação à respeitabilidade. Há filmes, no entanto, que se
obra literária, hoje, preconiza-se que, procurando a tornaram referenciais e, sem dúvida, já entraram
originalidade, aproveitando a seu favor os recursos para a história da nossa cinematografia. É o caso,
de que o cinema dispõe, o que almejamos é que, entre outros que poderiam ser arrolados, de Álbum
nesse entrelaçar de signos e tramas proposto pela de família, A falecida, Toda nudez será castigada, Os sete
transposição cinematográfica, alcancemos um gatinhos, Bonitinha, mas ordinária, A dama do lotação. É
ponto de equilíbrio em que o texto anterior, em- inegável, nos filmes, a atualidade do autor. Hoje,
bora presente, não se torne o ponto fundamental mais do que nunca, precisamos, numa revisão de
da transposição fílmica. Em outras palavras, ao valores, voltar aos textos rodrigueanos. Lê-los,
se ler, cinematograficamente, um texto literário, estudá-los, revisitá-los à luz da modernidade.
e, no caso, teatral, respeito e fidelidade ao texto
de origem devem ficar subordinados à estética do Não só importante como dramaturgo, Nelson se
novo suporte, no caso, o cinema. firma, paralelamente, para além da criação teatral,
como escritor de peso, situando-se entre os nomes
Essa discussão já vem ganhando espaço há um mais respeitáveis do nosso panorama literário.
bom tempo. Toda tradução é problemática. Tra- Ocupando um lugar não galgado por nenhum
duzir poesia de uma língua para outra, mesmo outro dramaturgo, Nelson Rodrigues − quer
quando se trata de línguas próximas, como, por gostemos, quer não; quer aceitemos, quer não − é
exemplo, do espanhol para o português, é apos- o maior tragicômico do teatro latino-americano.
tar nas adequações, é investir na criatividade, A realidade, para ele, era assimilada no cotidia-
é dominar técnicas. Perdem-se, no processo, no, transformada, surrealística e ousadamente, à
as cadências que dão beleza e sustentação aos exaustão, pela sua subjetividade, até se converter
versos, volatizam-se as nuances semânticas e em algo particular, absolutamente pessoal e, talvez,
metafóricas, modificam-se as especificidades por isso mesmo, universal. Referimo-nos, aqui, ao
sonoras, criam-se outras relações sintáticas etc. seu decantado lado expressionista. Expressionis-
Quando essa tradução se efetiva entre artes mo que se traduz na tradução e incorporação da
distintas, as dificuldades a serem superadas são miserabilidade humana, na assunção deliberada
muito maiores. E se se trata de uma obra co- das mazelas, polêmico ponto de questionamentos

3 MAGALDI, Sábato. Dramaturgia e encenações. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 43.

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Com a
cine palavra,
o cinema

e de repulsas do ser. Ao contrário: o texto se nutre Com esta proposta estética realista inovadora,
107
desse lado refutável, recusável, negado. O lado perpassada por uma ousadia filosófica que põe
feio, esquisito, indizível e negado do ser humano em cena o questionamento individual e coletivo
vem à tona, torna-se visível. Nada, nesse sentido, do ser, não é de se estranhar que tenha surgi-
pode causar mais desconforto ao espectador. Mas, do essa obra polêmica, obra que incomodou
por outro lado, nada também tão verdadeiro, tão e continua incomodando também nos nossos
presente, quanto esse lado humanamente assusta- dias. Seres carentes, buscamos, consciente e in-
dor que negamos, rechaçamos, escondemos. Daí conscientemente, a aceitação social. Buscamos,
o sentido absolutamente teatral de suas obras: a narcisicamente, nos demais, a nossa própria
ostentação de máscaras sociais, representando imagem. Espetacularmente, ansiamos pelo aval
dissimuladamente para o mundo que nos cerca do outro. Fingimos. Em suma, representamos. A
o que sentimos, o que somos interiormente, obra de Nelson é o desvendar desses escaninhos
privilegiando o indizível que há em cada um de internos, escaninhos que nos devolvem a uma
nós, aquilo que é inconfessável. Se cada qual se realidade que, a todo custo, queremos negar. Daí
mostrasse tal qual é, sem dúvida, não seríamos a sua grandeza, a sua originalidade, a sua eficácia
sequer minimamente aceitos socialmente. (artística, filosófica, estética).4

Lucélia Santos (1ª à esq.) em cena de Engraçadinha (1981), de Haroldo Marinho Barbosa. Serviço de Censura de Diversões Públicas - RJ
BR_RJANRIO_TN_0_CAZ_0022_01

4 Referências bibliográficas: CARDOSO, Joel. Nelson Rodrigues: da palavra à imagem. São Paulo: Intercom, 2010; RODRIGUES, Nelson.
Flor de obsessão. São Paulo: Cia. das Letras. 1987.

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Rossana Ghessa é Bebel,
garota propaganda (1968),
de Maurice Capovilla. Roteiro
baseado no romance Bebel
que a cidade comeu, de
Ignácio de Loyola Brandão.
Correio da Manhã

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Adriana Cursino Doutora e pós-doutora em Comunicação e Audiovisual pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade
Carlos III de Madrid. Autora dos livros Crítica e análise do audiovisual (CCAA, 2010), História do audiovisual (CCAA, 2008) e Introdução ao audiovisual (CCAA,
2007). Como documentarista, dirigiu Estado de seca (2007) e Viaje a Yebisah (2014).

O cinema que olha o cinema:


uma breve história da apropriação
no audiovisual

“ Las imágenes están vivas, mas, hechas como están de tiempo y de memoria,
su vida es ya y siempre Nachleben, supervivencia, amenazada sin cesar y en
trance de asumir una forma espectral.1
” Giorgio Agamben

Decasia (2002). Bill Morrison Film

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Com a
cine palavra,
o cinema

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Decasia (2002).
Bill Morrison
Film

Nos últimos anos, nota-se certa inquietude nas recriação da importância do arquivo, que ganha
questões relacionadas ao conceito de arquivo e à novas condições e tem de enfrentar desafios com
importância atribuída à recuperação de imagens a proliferação de imagens do mundo. A duplicação
cinematográficas para finalidades estéticas variadas. e o armazenamento da visualidade do mundo e a
É notório o fato de que os paradigmas do arquivo conversão deste em memória visual, distinta da
estão em mutação. Hoje, a preocupação com ‘arqui- memória linguística que havia predominado desde
vo’ coincide com a quebra da disposição tradicional princípios do século XIX, produzem uma reconsi-
do saber. Para o filósofo espanhol Miguel Morey, deração do real cujos resultados só se fizeram notar
estamos diante da decomposição de um modo em sua profundidade no final do século XX. O
universal do saber, que se converte na quebra da repertório foi redimensionado, e seus usos, como
noção de biblioteca e em sua substituição por nova já dito, tendem cada vez mais a ser dialéticos, en-
forma paradigmática de arquivo, por uma espécie saísticos e experimentais, e não apenas ilustrativos,
de ‘arquivo interminável’, sem princípio de seleção. como podemos ver na produção contemporânea
Segundo Morey,2 esse fato coincide diretamente que trabalha essa questão na materialidade do pró-
com a proliferação de imagens, de bases de dados prio cinema. Como nos mostram alguns filmes que
digitais, da gestão desses dados e da revisão dos se articulam em torno do que podemos chamar de
sentidos da memória histórica, geral e individual. ‘ruínas do cinema’. Obras contemporâneas que se
Esse paroxismo consiste em praticamente tudo que aproximam, pela forma como são montadas, de
ocorreu no mundo, relevante ou não, durante o úl- certas configurações do mundo atual, de uma ideia
timo meio século ter sido transformado em arquivo de história fragmentada,3 obras de feitura experi-
audiovisual. Somos cada vez mais estimulados a mental que usam o próprio cinema como arquivo,
trabalhar diretamente com um tipo de memória opondo uma ideia de movimento e abstração à
visual que abandona o padrão de acesso às informa- ‘força de presença’ de uma imagem histórica, de
ções de arquivos e bibliotecas tradicionais. Há hoje uma imagem documental. Trata-se de produção
crescente sensibilidade e consciência para a perda que reflete e tenta entender o estado que a arte
iminente da memória cinematográfica e, por isso, cinematográfica atingiu e o que representa esse
valem os esforços institucionais para a preservação imenso banco de imagens que a cada dia ameaça
do material em processo de decadência. desaparecer. “O cinema parece ser história, no
sentido de que está sendo absorvido por outros
As imagens ‘salvas de seu fim’, a alteração na meios”, observa Kerry Brougher.4 Tais obras con-
percepção do tempo e da memória resultam na tribuem para a reformulação das diversas noções

1 AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Valencia: Pre-texto, 2010. p. 23.


2 Citado em CATALÀ, Josep Maria. Las cenizas de Pasolini y el archivo que piensa. In: WEINRICHTER, Antonio (Org.). La forma que
piensa: tentativas en torno al cine ensayo. Pamplona: Fondo de Publicaciones del Gobierno de Navarra, 2007. p. 92.
3 Os trabalhos do historiador Hayden White, que tendem a apagar as fronteiras entre o relato histórico e o relato de ficção, mostraram
a necessidade de estudar as retóricas e as dimensões emotivas do discurso histórico a partir da teoria literária. A linha de renovadas
visões sobre a legitimidade de outros discursos a respeito da história, além do acadêmico, e sobre o lugar do cinema nesse contexto
abriu debates com os trabalhos do também historiador Robert Rosenstone.
4 WEINRICHTER, Antonio. El cine en el espacio del arte. Secuencias – Revista de Historia del Cine, Madrid, n. 32, p. 11-33, 2010. p. 18.

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O cinema que olha o cinema

de ‘material alheio’, denominado de modo geral do ao cinema. A principal oposição com que nos
como material de arquivo. Em obras como Decasia deparamos é a de vida e morte e, em seguida, do
ou La ciudad de los signos, por exemplo, reflexões presente que estamos construindo diante de um
sobre história ou política estão presentes de modo passado imenso e intenso. Em Decasia, Morrison
subjetivo; onde em geral, o gesto de apropriação, trabalha com os vestígios que o tempo deixa, in-
desprovido da urgência do sentido narrativo ime- controlavelmente, na película e as condições meta-
diato, torna as formas experimentais mais leves e fóricas que esses vestígios podem assumir quando
as reflexões críticas mais criativas. pensados como a experiência do cinema. Já em La
ciudad de los signos (Espanha, 2009, 62 minutos), de
Decasia, a decadência do tempo Samuel Alarcón, vemos outra reflexão em torno
na matéria da apropriação de imagens.

O filme Decasia (EUA, 2002, 67 minutos), de Bill La ciudad de los signos, um recorte
Morrison5 é composto inteiramente de material de no arquivo
arquivo, de pedaços de filmes à beira do desapa-
recimento, todos feitos de nitrato de celulose, ma- Nesse filme, os personagens do neorrealismo são
terial altamente inflamável que tende a apodrecer como espectros da memória e assumem a condição
facilmente. E é justamente a podridão que fascinou de fantasmas quando são ‘recortados’ de filmes
o diretor. Dramas, documentários, testes de proje- neorrealistas como collage e sobrepostos às locações,
ção, cerca de mil filmes rodados entre 1914 e 1954 fielmente reproduzidas, de seus filmes de origem,
serviram de material de arquivo para Morrison. tais como, por exemplo, Roma, cidade aberta (1945),
Seu objetivo era encontrar filmes em alto grau de Stromboli (1950), Paisá (1946), Viagem à Itália (1954),
deterioração que lhe permitissem associar a degra- Europa 51 (1951), todos de Roberto Rosselini. La
dação do filme com a morte dos seres humanos ciudad de los signos6 é um filme biográfico. César
representados. Decasia tem algo de sinfonia de me- Alarcón, personagem que abre o filme praticando
mória. Girar é movimento constante nesse filme; psicofonia,7 representa o pai do diretor espanhol
um dervixe que sempre volta, como ponto sutil de Samuel Alarcón, que, desde criança, escutava
um estado de meditação. A imagem de um filme gravações que seu pai fazia, sentia medo e ficava
passando no rolo, uma bailarina rodopiando, mu- impressionado. César é personagem de um falso
lheres tecendo fios, uma roda-gigante para crianças, documentário que compõe a narrativa do filme.
a vida em constante movimento. Pouco a pouco Samuel Alarcón selecionou filmes – a maioria de
estamos imersos nesse ‘jogo’, no qual percebemos Roberto Rossellini –, locações e uma cidade –
que todas as pessoas que aparecem no filme não Pompeia, na Itália – para estabelecer relações entre
só estão mortas, como também a decadência do vestígios (físicos) e espectrais de personagens de
nitrato espelha o processo de decadência corporal ficção do cinema neorrealista italiano.
que afeta todos nós e o próprio cinema.
Começou gravando nas locações os espaços va-
Vida e morte do cinema zios, reproduzindo enquadramentos para depois
fundir os personagens nesses espaços, para tentar
Decasia representa a morte física do cinema, uma descobrir o que pode haver de memória nos es-
espécie de ruminação meditativa e hipnótica sobre paços físicos, as histórias que podem caber num
o estado de fim de ciclo hoje comumente atribuí- mesmo lugar e como as imagens apropriadas

5 Morrison (1965-), cineasta norte-americano que ficou conhecido no meio audiovisual por essa obra, costuma ter seus filmes exibidos
em festivais, museus e salas de concertos em todo o mundo, incluindo o Festival de Cinema de Sundance (EUA), o The Orphan Film
Symposium (EUA), a Tate Modern (Inglaterra), entre outros.
6 La ciudad de los signos tem circulação em espaços culturais − casas de cultura, embaixadas, festivais. O filme nem sequer é registrado, e
para uso dos arquivos possui autorização (apenas verbal) de Renzo Rossellini, filho de Roberto, responsável pela administração do acervo.
7 Prática mediúnica que permite a comunicação oral com um espírito por intermédio de um médium. Fenômeno paranormal cujos
sons e vozes, que não se produzem em espaço real, foram registrados com magnetófano (emulsão de metal que se move com o ar).

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Com a
cine palavra,
o cinema

favorecem esses pontos de vista. As imagens de sucedem desde 1895. Uma experiência que talvez
113
arquivo efetivamente são os personagens dos fil- logo tenha que se explicar às próximas gerações, a
mes (recortados), trechos dos filmes, fotografias de ver um filme sem que o projetor esteja à vista;
e noticiários sobre as filmagens. Em La ciudad de em uma tela de tamanho imponente, em uma sala
los signos é o método collage que está em evidência, escura, coletivamente, sem poder acelerar a ima-
quando os personagens são ‘recortados’ de seus gem, frisá-la ou voltar a vê-la pouco depois. A era
espaços de origem e colocados nas mesmas lo- digital trouxe, primeiro, a cultura do DVD e depois
cações no presente. O efeito de ver soldados da um horizonte de descargas (de acesso livre ou não).
Segunda Guerra Mundial do filme Roma, cidade Tudo isso contribuiu com a desmaterialização
aberta circulando pelas ruas e dividindo o espaço progressiva da noção de filme associada a um de-
com transeuntes, seus carros e celulares etc. coloca terminado suporte, à sua condição de objeto físico.
em perspectiva a história dentro do cinema e o A própria decadência tanto das películas como de
cinema como uma parte da história. um certo modo de acesso aos filmes, do brilho de
outra forma de experimentar o cinema, coloca a
Os sons que o personagem César Alarcón recom- “situação cinema” como ruína. O cinema passa a Cartaz de La
pila nas fendas do Vesúvio são como uma espécie ganhar o estatuto de documento, como vestígio ciudad de los
signos (2009).
de prova física do passado, para além das imagens. que deve ser preservado, ou mesmo como obra Samuel Alarcón
Como coloca o historiador de arte alemão Aby
Warburg,8 com os documentos de arquivo deci-
frados, restituímos “timbres de vozes inaudíveis,
vozes de desaparecidos, vozes ocultas retiradas da
simples escrita”. Há, de fato, um desejo que move
o ‘curioso’ em direção a ver, ver mais, ouvir, tocar
o que só existe em vestígios ou possibilidades. Um
desejo de memória que o filme materializa, dando
cara, feições e gestos a estes fantasmas cinema-
tografados, problematizando na articulação que
propõe formas de lidar com o passado e com a
ausência do que queremos ver e já não podemos.
Quando convoca as ruínas de Pompeia, Alarcón
nos faz refletir sobre as ruínas do cinema, que
seriam representadas pelo neorrealismo italiano.

As ‘ruínas do cinema’ vão dos destroços dos filmes


ao modo de ver cinema, “a morte de uma forma
de cinefilia”, como sugere Susan Sontag.9 Os no-
vos hábitos de consumo do cinema pós-moderno
centram-se em outras telas, hoje em dia se vê mais
cinema em outros formatos audiovisuais do que
nunca. O que está cada vez mais ameaçado de
extinção é a moving image experience, segundo o autor
Antonio Weinrichter,10 “a experiência da imagem
em movimento em que foram criadas muitas gera-
ções (não tanto as últimas) de espectadores que se

8 DIDI-HUBERMAN, Georges. La imagen superviviente: historia


del arte y tiempo de los fantasmas según Aby Warburg. Madrid:
Abada, 2009. p. 36.
9 Citada em WEINRICHTER, Antonio, op. cit., p. 12.
10 Ibidem, p. 16-17.

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O cinema que olha o cinema

de museu, cuja sobrevivência deve ser garantida. três momentos envolvem a prática de compila-
Neste contexto, a prática da apropriação ganha ção: o ato em si da apropriação, o trabalho da
novos contornos. De certo modo, alguns artistas montagem ou remontagem dos fragmentos e o
que se apropriam de filmes, de ruínas do cinema efeito da recontextualização ou atribuição de novo
visando salvar tais imagens do silêncio eterno são sentido. Além do livro de Leyda, os principais
como os primeiros colecionadores que queriam estudos sobre práticas com materiais alheios são
iluminar a vida daquelas imagens. Se já havia um o do norte-americano Willian Wees (Recycled images:
elemento memória naquele início do cinema, uma the art and politics of found footage films, 1993), o do
ideia de documento já vinculada às imagens oficiais sueco Patrik Sjöberg (The world in pieces: a study of
e de guerra, hoje a memória parece estar mais li- compilation film, 2001) e o do espanhol Antonio
gada a uma ideia crítica, à percepção do lugar que Weinrichter (Metraje encontrado: la apropriación en el
atribuímos às coisas do passado, à seleção do que cine documental y experimental, 2009).
pode ser eficaz como argumento artístico para
uma posição crítica diante do fluxo acelerado de Até os anos 1950, o uso do arquivo tinha fins ma-
produção de informação. joritariamente clássicos, as imagens serviam como
ilustração de determinados discursos. A partir de
Genealogia da apropriação então, foram os cineastas Agnès Varda e Chris
Marker, os primeiros a “contribuir para retirar o
É na trajetória do documentário que o gesto de documentário da paralisia em que ele se encontra-
apropriação efetivamente surge, com os trabalhos va”, criando “experiências subjetivas nos próprios
da cineasta Esther Schub (1894-1959) desde os filmes, articuladas a uma interrogação sobre o mun-
anos 20. As práticas experimentais e poéticas do e a uma reflexão sobre as imagens, por meio de
seguiam as artes de vanguarda, enquanto as uma narração em off ensaística e subjetiva”, como
práticas documentais de compilação seguiam o coloca a autora Consuelo Lins.12
cinema construtivista e as teorias de montagem
que vinham sendo desenvolvidas, principalmente Para os filmes experimentais e ensaísticos, por sua
pelos soviéticos Serguei Eisenstein (1898-1948) vez, o arquivo já não é tanto ‘material de arquivo’
e Dziga Vertov (1896-1954). Naquele contexto no sentido de documento com suas origens ras-
surge o trabalho da soviética Esther Schub, auxi- treadas, mas ‘material encontrado’ ou found footage,
liar de Eisenstein, cuja prática só foi devidamente uma espécie de segundo escalão na hierarquia das
reconhecida e analisada pelo historiador e cineasta imagens de arquivo. Nas formas experimentais,
norte-americano Jay Leyda,11 com seu livro Films como já mencionado, as imagens têm seus sentidos
beget films – a study of the compilation film. Leyda originais completamente alterados, ou, em alguns
foi quem criou a expressão ‘cinema de compi- casos, nem sequer reconhecemos o que há nas
lação’ para abarcar as práticas documentais com imagens; nestas obras, as imagens praticamente
arquivo, sem estender suas análises às práticas ganham tempo para ‘dizer’ onde devem estar, onde
experimentais com arquivo. Leyda analisa ainda, devem sobreviver em nova disposição audiovisual.
dentro dessa perspectiva, as séries e os documen- As obras experimentais exploram potencialmente
tários televisivos, os documentários de guerra e o caráter de invenção das imagens, seus ‘valores de
as primeiras experiências ensaísticas do alemão origem’, expandindo as possibilidades de monta-
Hans Richter (1888-1976). Podemos dizer que gem e interpretação.

11 Não saberia precisar aqui as razões que levaram Leyda a escrever sobre filmes que usam arquivo, mas suponho que, tendo sido aluno
de Eisenstein nos anos 30 e dedicado boa parte de seus livros ao cinema soviético − como Eisenstein at work (Pantheon Books, 1980),
Eisenstein on Disney (Methuen Paperback, 1986) e o já citado Kino: a history of the russian and soviet film (George Allen & Unwin, 1960), além
de ter editado e traduzido Film form: essays in film theory (Hartcourt, 1949) e The film sense (Hartcourt, 1942), ambos de Serguei Eisenstein
−, ele tenha tomado conhecimento do trabalho de Esther Schub e até mesmo possivelmente a tenha conhecido.
12 LINS, Consuelo. O ensaio no documentário e a questão da narração. Disponível em: <https://www.academia.edu/4786641/O_ensaio_
no_documentario_e_a_questao_da_narracao>. Acesso em: 23 jul. 2014.

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Com a
cine palavra,
o cinema

Ready made Ainda que o found footage utilize pedaços de material,


115
só o collage é capaz de descontextualizar plenamen-
O gesto de apropriação é oriundo dos experi- te, rompendo a aparência de totalidade presente nas
mentos vanguardistas do artista francês Marcel obras convencionais. Para o autor William Wees,14
Duchamp (1887-1968), que efetivamente gerou o o collage mudou as regras básicas da representação
método do collage nas artes e do found footage nas prá- artística em que
ticas audiovisuais. Duchamp foi quem introduziu a
denominação ready-made para designar “os objetos a questão da referencialidade, inerente ao collage,
de consumo pré-fabricados ou produzidos indus- conduz a substituição dos significados − os objetos
trialmente, que o artista declara obras de arte sem a imitar − por um novo conjunto de significantes que
alterar em nada seu aspecto externo”.13 Quer dizer, chamam a atenção sobre si mesmos enquanto objetos
Duchamp nos mostra como o objeto/mercadoria reais em um mundo real.
se estetiza e como a obra de arte se mercantiliza,
em operação dialética única, cujas características Collage é procedimento físico que deriva das artes
não são opostas, mas complementares. Quando e, quando aplicado ao cinema, diz respeito não à
usa objetos ‘feitos’ produzindo um novo ‘objeto’, presença física de imagens alheias na obra, mas
uma obra de arte; quando elimina a finalidade à ‘presença’ como citação e referência a objetos
original da peça, retirando-a de seu contexto habi- procedentes do mundo ‘real’ na obra de arte ci-
tual, Duchamp está dizendo que em toda atuação nematográfica.
artística há uma dimensão de acoplamento, de uso
de materiais já existentes. É essa a noção presente Found footage
nos métodos de collage e found footage.
Um trabalho com found footage normalmente parte de
Collage um material adquirido ‘por acaso’, que pode ter sido
encontrado em um sótão, na rua, em uma lata de
Collage designa o ato de pegar, cortar, colar e montar lixo, em um mercado de pulgas ou até mesmo num
objetos ou materiais com tesoura e cola. No universo arquivo. Na prática do found footage, esses materiais
do audiovisual, collage significa montagem, que é tam- encontrados muitas vezes servirão como citação e
bém pegar materiais diversos e os unir. De um ponto como matéria-prima para novas estruturas. Se para
de vista técnico, todos os filmes podem ser conside- Benjamin15 “citar um texto significa interromper seu
rados formas de collage; há, contudo, que diferenciar contexto”, para os cineastas de found footage, equivale
categorias opostas que são o cinema de vanguarda e a interromper o fluxo narrativo de organização mais
o cinema clássico e, dentro delas, os documentários e clássica, efetivamente interromper “o contexto no
os filmes de ficção. Dito de outro modo, as relações qual os materiais existem normalmente e no qual
entre collage e cinema estão efetivamente no cinema de aparecem como ‘naturais’.16
vanguarda em que, digamos, o collage estaria para os
filmes de vanguarda, assim como a compilação para O termo ‘encontrado’ é noção relativa, conceito
os filmes documentários. Justamente porque o collage cujo significado está muito mais perto de ‘existen-
subverte o sentido original dos materiais dos quais te’, ou da consciência de que o material já foi ‘fil-
dispõe. Por isso, a técnica vem acompanhada da ideia mado’ por outra pessoa. É “[…] uma consequência
de rompimento do fluxo da “ilusão de continuidade”. política da revolução estética chamada collage”,17

13 THOMAS, Karin. Diccionario del arte actual. Barcelona: Labor, 1978. p. 171.
14 WEES, William. Recycled images: the art and politics of found footage film. New York: Anthology Film Archives, 1993. p. 49.
15 BENJAMIN, Walter. Textos escolhidos – Walter Benjamin et al. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Col. Os
Pensadores. p. 19.
16 WEES, William, op. cit. p. 39-40.
17 Ibidem, p. 41.

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O cinema que olha o cinema

portanto, uma atitude artística, ‘filiada’ ao mundo vista, que se difunde a partir da produção crítica
das artes e herdeira de outras vanguardas como no final dos anos 1950. Segundo Lins,
fotomontagem, ready-made e da estética dadaísta de
‘objet trouvé ’, de onde vem a expressão found footage. o que verificamos em muitos filmes dos anos 90 e
2000 é o privilégio à entrevista em detrimento de
Os pioneiros do found footage foram os diretores outros recursos estéticos e narrativos, a ponto de
norte-americanos Joseph Cornell (1903-1972), com configurar uma espécie de senso comum documental
o filme Rose Hobart (1936), e Bruce Conner (1933- brasileiro, como diagnosticou Jean-Claude Bernardet,
2008), com A movie (1958). O found footage remete em 2003, ao advertir que o crescimento da produção
quase sempre ao mundo do cinema e não ao refe- não correspondia a um “enriquecimento da drama-
rente, prática que traz em si a ideia de ‘dupla vida’ turgia e das estratégias narrativas”.19
(ou múltiplas vidas), que toda imagem apropriada
adquire: a vida do aqui e agora do filme experimen- Ao contrário, evidenciava a repetição de um único
tal que estamos contemplando e a vida da imagem “sistema”, banalizado pelo jornalismo televisivo:
original, que depois de tudo aparece de forma tão “Não se pensa mais em documentário sem entre-
viva diante de nossos olhos. Diferente da prática de vista, e o mais das vezes dirigir uma pergunta ao
compilação, com o found footage os sentidos originais entrevistado é como ligar o piloto automático.”20
das imagens são radicalmente modificados.
Os usos mais críticos de arquivo nas obras do-
Em geral, nas práticas cinematográficas que utilizam cumentais só se deram a partir dos anos 70 nos
materiais alheios, a imagem apropriada não perde ‘antidocumentários’ de Arthur Omar, como Congo
seu valor semântico (representacional ou referen- (1972) e O som, ou tratado de harmonia (1974); em
cial), o que a converte em imagem historicamente Mato eles? (1982), de Sérgio Bianchi; no antológico
concreta; o cinema de apropriação, como dito, em Cabra marcado para morrer (1964-1984), de Eduardo
geral produz uma volta ao ‘mundo histórico’, porque Coutinho; em Ilha das Flores (1989), de Jorge Fur-
mantém o significado original das imagens. O que tado; Rocha que voa (2002), de Erick Rocha; Serras
os filmes de found footage fazem é buscar a tradução da desordem (2007), de Andrea Tonacci; Santiago
de uma nova percepção do que as imagens repre- (2007), de João Moreira Salles; 500 almas (2007), de
sentam através de diferentes arranjos e suportes ou, Joel Pizzini; e nos mais recentes Pacific (2009), de
segundo Walter Benjamin,18 através da “montaje de Marcelo Pedroso; e Um dia na vida (2010), de Edu-
colisión del material”, tirar o máximo proveito de suas ardo Coutinho. Pacific e Um dia na vida trazem nova
funções e dos lugares “cômodos” que as imagens problemática, que é a questão dos novos arquivos.
ocupam nos meios de comunicação. Imagens en-
contradas − sejam elas documentais ou de filmes Pacific e Um dia na vida, um
de ficção – trazem em si o ‘carimbo’ do tempo. E é desafio ao arquivo
o tempo o grande tema dessa prática, em que o que
mais importa é recuperar o material antigo, reciclar, Em Pacific a história é imediata, praticamente
interferir, liberar as imagens das funções políticas, não há sequer o tempo de produzir memória, ou
ideológicas e estéticas que tinham em seu contexto melhor, a memória parece ‘obrigada’ a trabalhar
original para lhes atribuir novo sentido. sob o ritmo acelerado do presente. As imagens
são produzidas para recordar mais tarde, talvez
Já na produção documental nacional majoritaria- selecionar lembranças “sob a pressão do esque-
mente se impôs a forma clássica ou interventiva, cimento”,21 numa ação alucinada, possivelmente
mais próxima do cinéma verité, do método de entre- inconsciente, em que muitas vezes o mais impor-

18 Idem.
19 LINS, Consuelo, op. cit.
20 BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 286.
21 Berger citado em CRUZ, Manuel. Recordamos mal. In: BOURRIAUD, Nicolas (Coord.). Heterocronías − tiempo, arte y arqueologías del
presente. Murcia: Cendeac, 2008. p. 231.

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Com a
cine palavra,
o cinema

tante é registrar, sem que faça falta ver com os found footage – e expõem as contingências dos
117
próprios olhos a situação que está sendo vivida. tempos atuais, “não por falta de uma elucida-
ção suficiente em alguns âmbitos circunscritos
A dimensão de ‘sagrado’ ou documento, nor- da arqueologia, documentação, bibliografia,
malmente atribuída aos materiais de arquivo nas historiografia”, mas pela complexidade que
formas documentais clássicas é totalmente des- assume esse conceito [arquivo] no mundo
locada nestes filmes. Em Pacific, o que há para ser contemporâneo, 23 como já colocava Jacques
guardado, o que corresponderia ao documento, é de Derrida. 24
ordem pessoal, afetiva e passa pelo ‘congelamento
da situação’, pelo registro de algo que não voltará
a acontecer. Já em Um dia na vida, o material alheio
pode ser considerado ‘ruínas dos tempos atuais’,
o filme faz crítica não só ao conteúdo ‘vazio’ da
produção das emissoras de TV em questão, mas
ao excesso de imagens produzidas diariamente.
Em Um dia na vida o que está em jogo é o gesto
‘duchampiano’, a desmontagem e remontagem do
material apropriado. Ao mesmo tempo não se trata
de um filme de found footage como costumamos ver,
mas sim do método em si, pois, no cinema de found
footage, o interesse principal é o próprio “cinema”
como matéria. Aqui a matéria são as imagens banais
de emissoras de TV.

Não é simples pensar sob o ponto de vista


de uma perspectiva histórica imagens tão re- O artista
plástico francês
centes e banais. O que ocorre, como lembra Marcel
Weinrichter, 22 é que com os materiais fílmicos Duchamp,
introdutor da
“a distância temporal que nos separa dos frag- estética ready-
mentos apropriados apaga sua função semânti- made, uma das
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modalidades de
ca pretendida originalmente e os converte em found footage
objeto historicamente concreto, suscetível de nas práticas
audiovisuais.
exercício dialético”; já com fragmentos tele- Correio da
visivos recentes essa distância praticamente Manhã

inexiste, o que não quer dizer que não seja


possível estabelecer uma relação dialética
com os materiais; será, porém, sob novos pa-
radigmas. Porque os novos arquivos, digitais,
recentes, desestabilizam os diversos termos
que manejamos aqui – arquivo, apropriação,

22 WEINRICHTER, Antonio. Copy is right – tres momentos fundantes de la poética de la apropriación audiovisual. In: GONZÁLEZ,
Fernando E.; SANTA ANA, Mariano de (Orgs.). Memorias y olvidos del archivo. Tenerife: Lampreave, 2010. p. 75.
23 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Disponível em: <http://www.jacquesderrida.com.ar/textos/mal+de+archivo.htm>. Acesso
em: 30 jul. 2014.
24 Outras referências bibliográficas: BLOEMHEUVEL, Marente; FOSSATI, Giovanna; GULDEMOND, Jaap (Eds.). Found footage
cinema exposed. Amsterdam: Amsterdam University Press; Eye Film Institute Netherlands, 2012; COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder,
a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008; RICOEUR, Paul. Imagem, memória,
esquecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2007; ROSSET, Clément. Fantasmagorias seguido de lo real, lo imaginário y lo ilusório. Madrid: Abada
Editores S.L., 2008.

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Costa Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor adjunto da Escola
Alessandro Ferreira
de Ciência da Informação da UFMG.

Gestão arquivística
na era do cinema digital:
novas possibilidades, velhos desafios

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Com a
cine palavra,
o cinema

119

Contrapondo o otimismo inicial expresso por sido criados, [...] a fim de que não haja perda nem
Carlos Augusto Machado Calil de que até o raiar adulteração dos registros”, favorecendo, assim, a
do século XXI os problemas inerentes à guarda recuperação e a compreensão das informações ali
e conservação de documentos cinematográficos registradas pelo máximo possível de tempo, bem
seriam minimizados, e que o advento de uma tec- como “[...] a produção e manutenção de documen-
nologia que “[...] foi desenvolvida no sentido de tos fidedignos, autênticos, acessíveis, compreensí-
gravar as imagens e sons em microssulcos de um veis e preserváveis”.5
disco de metal ou vidro, os quais são lidos por um
raio laser”1 poderia ser determinante na solução da- Em termos gerais, a guarda digital envolve a captura,
queles, o universo digital abre uma série de debates o armazenamento, a preservação e o acesso digital
e reflexões sobre a importância e sobre a escolha sistemáticos, com o propósito de preservar por um
de procedimentos metodológicos adequados à di- longo período “objetos” digitais que contêm arquivos
gitalização de filmes2 − e documentos correlatos3 de dados estruturados em um formato que pode ser
− enquanto recurso estratégico para a preservação indexado e recuperado de alguma forma. No contexto
e disseminação daqueles aos mais diversos perfis do cinema, os objetos digitais geralmente incluem
de usuários (o que em muitas das vezes acaba por sequências de quadros de imagem digital que formam
criar a falsa impressão de uma desnecessária ação de matrizes digitais, múltiplas bandas sonoras digitais,
manutenção dos originais analógicos), assim como bandas de diálogos da versão estrangeira e arquivos
a guarda dos equivalentes natodigitais, suscetíveis à de texto contendo legendas em diversos idiomas.
constante ameaça de perda pela obsolescência de Esses objetos também podem incluir os originais de
hardwares e softwares. câmera digital, os arquivos digitais de áudio stem, os
arquivos de áudio pré-mixados ou pré-sonorizados e
Segundo o Conselho Nacional de Arquivos (Co- outros ativos digitais.6
narq),4 “a preservação dos documentos digitais
requer ações arquivísticas, a serem incorporadas Lembremo-nos, pois, que uma das principais di-
em todo o seu ciclo de vida, antes mesmo de terem ferenças entre a guarda de documentos digitais e a

1 CALIL, Carlos Augusto Machado. 30 anos depois. In: ______ et al. Cinemateca imaginária: cinema & memória. Rio de Janeiro: Em-
brafilme, 1981. p. 19.
2 Ressaltamos, pois, que “a migração indiscriminada de grandes depósitos de película para o armazenamento digital é um empreen-
dimento tão vasto e tão caro que nenhum estúdio parece estar contando com essa possibilidade no momento, pelo menos não para
preservação arquivística stricto sensu”. (CINEMATECA BRASILEIRA. O dilema digital: questões estratégicas na guarda e no acesso a
materiais cinematográficos digitais. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2009. p. 18).
3 A guarda desse material deve ser entendida com a mesma relevância que é tratada a obra finalizada. Sua capacidade de informação é
potencialmente ilimitada, oferecendo aos pesquisadores, artistas, técnicos e afins a oportunidade de se compreender o filme por meio
de tudo aquilo que serviu de “matéria-prima” para a sua produção.
4 CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Carta para a preservação do patrimônio arquivístico digital: preservar para garantir acesso.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. p. 2. Disponível em: <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/media/carta.pdf>. Acesso
em: 4 ago. 2014.
5 Ibidem, p. 4.
6 CINEMATECA BRASILEIRA, op. cit., p. 13.

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Gestão arquivística na era do cinema digital

dos formatos tradicionais de registro consiste no Ao inserir esta premissa no contexto nacional,
fato de que os primeiros não sobrevivem ao acaso. o 4° Encontro Nacional de Arquivos e Acervos
Ao contrário. Caso não se estabeleça um conjunto Audiovisuais Brasileiros considera, em sua Carta
de ações, consubstanciadas por um pensamento de ouro preto (Associação Brasileira de Preservação
lógico e pragmático, as possibilidades de perdas Audiovisual − ABPA, 2009),8 três pontos (dentre
gradativas são consideráveis. Em um momento outros) os quais entendemos como essenciais ao
histórico onde a produção cinematográfica mostra- tema abordado por este artigo:
se cada vez mais atrelada ou mesmo dependente
dos recursos digitais, é fundamental a tomada de A urgência do reconhecimento da relevância desse
consciência por parte dos realizadores sobre a im- Patrimônio Cultural pelos poderes públicos, pela
portância de tudo o quanto fora produzido e/ou sociedade, inclusive pelos profissionais das atividades
reunido − em termos documentais − em virtude cinematográficas e audiovisuais; a constatação do
de um filme. É bem verdade que essa afirmativa risco iminente de desaparecimento desse Patrimô-
é inerente a qualquer realidade de produção de nio Cultural, que representa igualmente um ativo
cinema, analógico ou digital, contudo, a falta de econômico e se encontra em condições desiguais de
materialidade deste último torna-o ainda mais preservação nas diferentes unidades da Federação;
suscetível à perda em virtude da facilidade com que a insuficiência de uma política pública específica e
pode ser excluído (delete) em uma base de dados sistemática que contemple o campo da preservação
qualquer. Segundo a Unesco:7 audiovisual no Brasil [...].

As imagens em movimento são uma expressão da Ironicamente, há mais de três décadas, Calil9 já
identidade cultural dos povos e que, devido a seu va- expunha com muita propriedade toda a sua preocu-
lor educativo, cultural, científico e histórico, formam pação acerca das ações vocacionadas à salvaguarda
parte integrante do patrimônio cultural de uma nação de acervos cinematográficos em nosso país:
[...]; constituem também uma forma fundamental de
registrar a sucessão dos acontecimentos e, como tal, O compromisso das cinematecas no Brasil deve-se
são testemunhos importantes e muitas vezes únicos voltar para o filme contemporâneo. Se dedicarmos dez
de uma nova dimensão da história, do modo de vida anos à restauração do nosso passado sem atentar para
e da cultura dos povos e da evolução do universo o presente, esse presente seguramente desaparecerá
(Tradução nossa). muito antes do que o próprio passado.10

7 UNESCO. Recommendation for the safeguarding and preservation of moving images. Conferência Geral da Unesco, Belgrado, set.-out. 1980. p.
156. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0011/001140/114029e.pdf#page=153>. Acesso em: 4 ago. 2014.
8 Disponível em: <http://abpablog.wordpress.com/>. Acesso em: 4 ago. 2014.
9 CALIL, Carlos Augusto Machado, op. cit.
10 Ibidem, p. 18.

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Com a
cine palavra,
o cinema

121

Três pontos nos são aqui oportunos: primeiro, a opinião de que aquilo era um assunto de fácil
qualquer tentativa de se sistematizar métodos e solução: digitalizar as películas e depois efetuar o
processos referentes à guarda e ao acesso a qual- seu descarte, pois, tendo uma versão digital não é
quer acervo documental de cinema estará fadada necessária a cópia física. Isso é realmente verdade?
ao simples discurso teórico caso não se tenha, na Bem o sabemos que não. A conversão digital de
prática, uma mudança do comportamento opera- documentos analógicos favorece a disseminação
cional dos agentes envolvidos tanto na produção e o acesso a acervos representativos e, por isso,
como no recolhimento/manutenção daquele acaba por intervir indiretamente na preservação
acervo. Isso é fato. Segundo, as dúvidas referen- dos originais (que passam a ser menos utilizados).
tes à gestão de documentos em formato digital Lembremo-nos da orientação proposta pela FIAF
procedentes da prática cinematográfica pouco se (Fédération Internationale des Archives du Film)
diferem daquelas que já “habitam” as mentes dos em seu Código de Ética,12 onde se lê:
profissionais devotados à causa da memória do
cinema. O que temos aqui, na realidade, é a busca 1.4. Ao copiar o material para fins de preservação,
por respostas práticas que possibilitem a guarda os arquivos não irão editar ou distorcer a nature-
responsável de um novo tipo de material. Por za do trabalho que está sendo copiado. Dentro
mais que enfrentemos problemas operacionais das possibilidades técnicas disponíveis, as novas
com a manutenção dos suportes tradicionais, cópias de preservação devem ser uma réplica
sabemos como fazê-lo. Contudo, a fragilidade da exata do material de origem [...] (Tradução nossa,
informação digital emerge uma nova dimensão grifo nosso).
de questionamentos ainda pouco esclarecidos,
mesmo considerando aqui os esforços empre- Nos últimos dez anos, as consequências da in-
endidos na busca por soluções objetivas.11 Um teração cinema-digital vêm sendo matéria dos
terceiro ponto é a necessária conscientização tradicionais Congressos da FIAF, em especial na
por parte dos profissionais de cinema de que o sua 62º edição, realizada na cidade de São Paulo,
digital não representa “eternidade”. Durante o I com o tema The future of film archives in a digital
Congresso Forcine − Fórum Brasileiro de Ensi- cinema world: film archives in transition (2006), e na
no de Cinema e Audiovisual, realizado na cidade 66º edição, na cidade de Oslo/Noruega (Digital
de Belo Horizonte no ano de 2003, debatia-se a challenges and digital opportunities in audiovisual archi-
difícil questão da conservação dos filmes e docu- ving, 2010); uma clara tentativa de se consolidar
mentos afins. Da plateia, um realizador expressou a importância estratégica, histórica e cultural

11 É importante considerar que “não existe hoje nenhuma mídia, hardware ou software que possa garantir razoavelmente a acessibilidade
de longo prazo a bens digitais. Uma abordagem dinâmica, que antecipasse falhas e obsolescência, seria essencial”. (CINEMATECA
BRASILEIRA, op. cit., p. 13).
12 Disponível em: <http://www.fiafnet.org/~fiafnet/uk/members/ethics.html>. Acesso em: 4 ago. 2014.

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Gestão arquivística na era do cinema digital

da manutenção de documentos cinematográfi- de um obrigatório e constante diálogo com o


cos digitais na sociedade contemporânea e os futuro. Na prática, isso significa um investimento
mecanismos de guarda a serem adotados por contínuo na qualificação de pessoal, como tam-
produtores e por arquivos. bém, no próprio aparato tecnológico onde toda
essa informação será devidamente guardada.
Gerenciar todo um conjunto de documentos13 Àqueles que acreditam que o digital é o “Santo
resultantes para/da produção de um filme não Graal” na gestão e preservação de documentos,
é tarefa simples de se realizar. Para tanto, faz-se uma sugestão: revejam os seus conceitos...
oportuno a elaboração de um plano arquivísti-
co que não só contemple as especificidades e Lidar com o gerenciamento de massas documen-
tipologias do material reunido, como também, tais associadas ao cinema demanda, daquele que
o atendimento às demandas dos setores especí- se propõe fazê-lo, não só o comprometimento
ficos de produção, garantindo assim o efetivo aos procedimentos técnicos e metodológicos
controle sobre a massa documental guardada e pertinentes àquela atividade, mas também, o co-
favorecendo, como o citam Rousseau e Coutu- nhecimento sobre o próprio universo dos filmes.
re:14 1. uma organização mais eficaz do acervo
e, por conseguinte, a proteção da informação O tratamento das imagens em movimento requer
ali disponibilizada; 2. o acesso mais eficiente que se esteja familiarizado com o vocabulário espe-
aos documentos demandados; e 3. a otimização cífico e com o processo de produção cinematográfi-
dos recursos humanos e tecnológicos designados ca, e se tenha um bom conhecimento da história do
para a função. Os esforços dispensados para cinema e da sua evolução. Os instrumentos técnicos
a organização de uma massa documental não utilizados, a forma e o gênero cinematográfico, a
devem se manifestar somente após a conclusão originalidade dos temas, e até o modo como são
dos trabalhos de produção de um filme: esse é abordados são outros tantos elementos que podem
um erro a ser evitado. Como já expresso neste influenciar a avaliação e a seleção.15
texto, tal esforço inicia-se no momento da con-
cepção do documento, acompanhando todos os Para a Academia de Artes e Ciências Cinema-
seus trâmites, até a sua destinação final. A isso tográficas dos Estados Unidos,16 “a guarda de
chamamos de ciclo de vida. dados digitais exige uma abordagem mais ativa
de gerenciamento e uma parceria mais colabora-
No contexto digital, a execução desse trabalho tiva entre produtores, arquivistas e usuários para
metódico se faz ainda mais importante dada explorar plenamente os seus benefícios”. Neste
a própria vulnerabilidade do documento. De contexto, complementa ainda aquela instituição:
acordo com os especialistas da área, a garantia
de acesso às informações registradas neste tipo Duas questões são cruciais para entender por que os
de material depende, dentre outras variáveis, do arquivos digitais não podem ser preservados a longo
estabelecimento de rotinas que proporcionem prazo usando a filosofia de gerenciamento “armaze-
a sua migração aos novos padrões tecnológicos nar e ignorar”: “há alguma maneira de armazenar um
que porventura surgirem. Trata-se, na verdade, objeto digital por 100 anos sem nenhuma manuten-

13 A título de registro, evidenciamos que utilizamos aqui o conceito de documento descrito por Heloísa Liberalli Bellotto (Arquivos
permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004. p. 35): “[...] é qualquer elemento gráfico, iconográfico, plástico ou
fônico pelo qual o homem se expressa. É o livro, o artigo de revista ou jornal, o relatório, o processo, o dossiê, a carta, a legislação, a
estampa, a tela, a escultura, a fotografia, o filme, o disco, a fita magnética, o objeto utilitário etc., enfim, tudo o que seja produzido, por
motivos funcionais, jurídicos, científicos, técnicos, culturais ou artísticos, pela atividade humana.”
14 ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Lisboa: Dom Quixote, 1998.
15 Ibidem, p. 238.
16 CINEMATECA BRASILEIRA, op. cit., p. 31.

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Com a
cine palavra,
o cinema

ção?”; e em segundo lugar, “existe profundidade de passados sejam legados ao nosso presente. Como
123
bit suficiente para guardar aquilo que se quer preservar o expressam Rousseau e Couture:18
por um preço com o qual se possa arcar?”.17

Pelo então exposto, podemos presumir os níveis [...] Nem sempre se apercebem [aqueles que lidam
de complexidade e de responsabilidade que se diariamente com determinadas fontes documentais]
debruçam sobre os ombros de indivíduos e ins- de que a informação constitui um recurso funda-
tituições responsáveis pela gestão e guarda de mental para qualquer organismo, e isso ao mesmo
conjuntos documentais cinematográficos, princi- nível que os recursos humanos, materiais e finan-
palmente, com o advento das novas tecnologias. ceiros. Nem sempre percebem que a informação
Ações desta natureza devem ser compreendidas deve ser cada vez mais considerada como um todo
não apenas como um futuro a ser perseguido, gerido sistematicamente, coordenado, harmoniza-
mas também, como um esforço contínuo − por do, objeto de uma política clara tal como de um
vezes hercúleo − em não se permitir que erros programa alargado de organização e tratamento.

Acervo de filmes
do Arquivo
Nacional.
Foto de Daniel
Santos
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17 Ibidem, p. 35.
18 ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol, op. cit., p. 62.

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BR_RJANRIO_TN_0_CAZ_0025

Cartaz de O homem do
pau-brasil (1981), de Joaquim
Pedro de Andrade, adaptação
da obra de Oswald de
Andrade. Serviço de Censura de
Diversões Públicas - RJ

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Entrevista com Marçal Aquino Por Renata Ferreira.

Minha casa é a literatura

Escritor, jornalista e roteirista,


Marçal Aquino é um dos nomes
mais destacados da literatura
brasileira contemporânea. Nas-
cido no interior de São Paulo,
no município de Amparo, a 120
quilômetros da capital, teve uma
infância humilde, sem grandes
perspectivas. Desenvolveu, no
entanto, uma fome de leitura que
transformou sua vida e o levou
ao topo da literatura nacional nos
últimos vinte anos.

A trajetória do escritor se confun-


de com a do jornalista – as histó-
rias vêm do cotidiano, da vivência
do profissional da informação es-
crita. De novelas infanto-juvenis
a poesia, contos e romances, sua
obra já soma quase duas dezenas
livros publicados.

Meio que por acaso, vieram o


cinema e a TV, consequências
naturais do texto ágil e dos per-
sonagens tão identificados com
o conturbado dia a dia urbano.
A fluência verbal e o talento para
Arcervo Pessoal

a construção narrativa acabaram


por levar Marçal ao ofício de ro-
teirista, adaptando para o cinema
seus próprios livros e de autores
como Lourenço Mutarelli (O
cheiro do ralo, 2006, direção Heitor
Dhalia) e Daniel Galera (Cão sem
dono, 2007, direção Beto Brant).

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Com a
cine palavra,
o cinema

127
O invasor (2002),
com Paulo Miklos.
Direção de Beto
Brant, baseado na
novela de Marçal
Aquino. Drama
Filmes

A parceria de Marçal Aquino com o cineasta RECINE: Quais são as suas maiores referências
Beto Brant já rendeu cinco longas-metragens: Os literárias? Que escritores foram importantes na
matadores (1997), Ação entre amigos (1998), O invasor sua formação?
(2001), Crime delicado (2005, baseado no premiado
romance de Sérgio Sant’Anna) e Eu receberia as pio- MARÇAL AQUINO: São tantos que não tem nem
res notícias dos seus lindos lábios (2011). Com Heitor como mensurar ou mencionar. O processo é
Dhalia, escreveu os roteiros de Nina (2004), uma contínuo, nunca termina, pois acredito que um
versão do clássico Crime e castigo, de Dostoievski; escritor nunca “está pronto”. Há sempre algo por
e O cheiro do ralo (2006). No momento, Marçal aprender. Se tivesse de citar um só, ficaria com o
trabalha na adaptação de seu livro Cabeça a prêmio, Monteiro Lobato, que foi minha porta de entrada
para o diretor Karim Aïnouz. para o mundo dos livros.

Na TV Globo seu trabalho pôde ser visto nas sé- RECINE:A sua trajetória no jornalismo abriu ca-
ries O caçador (2014) e Força-tarefa (exibida em três minho para o escritor ou esse talento viria à tona
temporadas, entre 2009 e 2011), em que dividiu qualquer que fosse a sua atividade profissional?
com Fernando Bonassi a autoria dos roteiros. Já
o argumento da série O amor segundo B. Schianberg, MARÇAL: Me lembro de querer ser escritor muito
de Beto Brant, exibida na TV Cultura, é baseado antes de sonhar com o jornalismo, ali pelos 15
em um personagem de seu livro Eu receberia as anos. Na verdade, escolhi o jornalismo como
piores notícias dos seus lindos lábios. ganha-pão porque me permitiu escrever, que é a
coisa que me dá mais prazer.
Seja qual for o veículo em que se desenvolvem
seus enredos, o impacto é fulminante: um Brasil RECINE: O jornalismo inspira sua obra literária?
de desejos e instintos profundos, onde afloram as
paixões e a culpa. Ficção inspirada na realidade, MARÇAL: Tudo contamina a literatura. O jornalis-
sem adornos. Seco e mordaz. Como a realidade re- mo, no geral, e o ofício da reportagem, em par-
tratada nos jornais, seus personagens circulam no ticular, sobretudo reportagem policial, deixaram
submundo, quase uma literatura policial clássica marcas naquilo que escrevo.
se não fosse o conteúdo psicológico e social que
transborda pelas margens das páginas. Histórias RECINE: Vários escritores, como Mário de Andra-
humanas, afinal. de, García Marquez, Jorge Luis Borges e Ernesto
Sábato, tinham uma profunda relação com o cine-
O fascínio pela leitura o levou a diversos cami- ma, e além de escrever críticas de filmes, escreviam
nhos − jornalismo, cinema e TV... mas o destino também roteiros e acompanhavam as adaptações
final é sempre a literatura. Nesta entrevista à de seus livros para a tela. Escrever para cinema
Revista REcine, Marçal resume esse casamento seria uma forma ou mesmo uma necessidade do
entre a sua obra literária e a produção audiovisual escritor se comunicar com um público maior, que
nela inspirada. talvez não tenha a possibilidade de ler seus livros?

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Minha casa é a literatura

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Livraria
Monteiro
Lobato,
fundada pelo
jornalista
brasileiro Paulo
Tardimann em
Montevidéu,
no Uruguai, em
homenagem
ao escritor que
influenciou
gerações de
brasileiros.
Junho de 1958.
Correio da
Manhã

MARÇAL: Na verdade, sempre gostei de cinema, que ainda não foram escritos. Existe atualmente uma
mas nunca pensei em trabalhar com isso. Sempre demanda muito grande de matrizes por parte do
achei que, em matéria de atividade economica- cinema, que está sendo produzido em larga escala no
mente inviável, já me bastava a literatura. Mas foi país. Então a relação com os autores e com os livros
tudo acidental e maravilhoso: meu caminho no também está passando por modificações.
mundo cruzou com o Beto Brant e seu interesse
naquilo que escrevo. Então faço cinema por puro RECINE:A sua grande paixão é o livro. Por que
prazer, paixão e amizade. enveredar pelo cinema? É um complemento ou
uma forma de reafirmar a paixão pela literatura?
RECINE: Em sua opinião, o cinema contribui na
popularização ou difusão de obras literárias? Os MARÇAL: Contei acima: sempre tive grande inte-
livros vendem mais quando chegam às telas? resse pelo cinema como espectador. Por obra e
graça do Beto Brant, me envolvi com o cinema
MARÇAL: Os filmes acabam, mal ou bem, divulgan- e acabei virando roteirista. É uma atividade que
do os livros, nunca na proporção que acontece, por desenvolvo com grande prazer, mas minha casa,
exemplo, nos Estados Unidos, onde um filme pode não tenho dúvida, é a literatura.
determinar o sucesso de um livro. Aqui, nesse senti-
do, a televisão ainda tem mais poder que o cinema. RECINE: Qual é a grande diferença entre escrever
um livro e um roteiro de filme? Existe diferença
RECINE: Nos Estados Unidos é muito comum entre escrever para o leitor ou para o espectador?
um livro antes mesmo de ser lançado já ter uma
proposta de adaptação para o cinema. No Brasil é MARÇAL: São duas linguagens completamente dis-
mais difícil isso acontecer. Seria por uma questão tintas. Um roteiro tem uma linguagem técnica espe-
de mercado ou o cinema brasileiro ainda precisa cífica, enquanto o enunciado de um texto literário,
descobrir ou investir no potencial cinematográfico ao contrário, é completamente livre e individual.
da literatura nacional?
RECINE:Que filmes adaptados de obras literárias
MARÇAL: As coisas estão mudando no Brasil. Já ouço você considera os mais importantes, seja no Brasil
falar de gente querendo comprar os direitos de livros ou no mundo?

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Com a
cine palavra,
o cinema

MARÇAL: Gosto de muita coisa. Pra citar duas têm como base o folhetim. Há diferenças, é claro. 129
adaptações muito bem-sucedidas: São Bernardo, E graças à demanda cada vez maior por conteúdos
que o Leon Hirszman adaptou do romance do dessa natureza, a linguagem tem sido testada cons-
Graciliano Ramos, e Lavoura arcaica, que o Luiz tantemente e avançado em novas direções.
Fernando Carvalho extraiu da obra do Raduan
Nassar. São dois trabalhos magníficos. RECINE: Com que diretor de cinema gostaria de
trabalhar como roteirista? Pode ser de qualquer
RECINE: Na TV americana há seriados de grande nacionalidade, de qualquer época.
sucesso, com excelentes roteiros e muitos fãs
pelo mundo. A televisão brasileira vem investindo MARÇAL: Estou feliz com as oportunidades que
nos últimos anos em seriados de gênero policial, tive até agora de trabalhar com gente que admiro,
dramas e comédias. Com a sua experiência como como o Beto Brant e o Heitor Dhalia.
roteirista de TV, você acredita que o Brasil está
encontrando um caminho próprio e novo para a RECINE:Que conselho daria a um jovem que está
dramaturgia televisiva, sem ser no velho esquema começando uma carreira de escritor, o que você
das telenovelas? recomendaria: literatura, roteiros para cinema e
TV ou o jornalismo?
MARÇAL: O roteiro de um seriado guarda sempre
muito parentesco com as telenovelas, pois ambos MARÇAL: Leia. Leia. Leia.

Crime delicado (2005), de Beto Brant, adaptação do livro homônimo de Sérgio Sant’Anna, com
roteiro de Marçal Aquino, Marco Ricca, Beto Brant, Maurício Paroni de Castro e Luís F. Carvalho
Filho. No elenco, Lilian Taublib e Marco Ricca. Foto de Priscila Prade. Drama Filmes

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Primeira adaptação do
romance juvenil de José Mauro
Vasconcelos, Meu pé de
laranja lima (1970) foi dirigido
por Aurélio Teixeira, com o ator
mirim Júlio César Cruz. Correio
da Manhã

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Enio Luiz de Carvalho Biaggi Doutor em Literatura Comparada e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Advogado e professor na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix.

Diálogos entre literatura, vídeo


e cinema: a transcriação da obra de
Guimarães Rosa para o sistema audiovisual

“ Viver é muito perigoso!


João Guimarães Rosa ”

A criação literária
de João Guimarães
Rosa (1969), curta-
metragem de Paulo
Thiago. Correio da
Manhã
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Com a
cine palavra,
o cinema

133

O dragão da
maldade contra
o santo guerreiro
(1969), de Glauber
Rocha: diálogo com
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a obra de Guimarães
Rocha. Correio da
Manhã

A narrativa linear e descritiva adotada pela tentações presentes no encontro de Matraga com
imensa maioria dos escritores no século XIX, outros personagens que, de certa forma, remetiam
extremamente influenciados pela pintura e pela ao (ou faziam parte de) seu passado.
fotografia, torna-se obsoleta com as novas téc-
nicas narrativas que aparecem com o surgimento Guimarães Rosa, escritor mineiro de Cordisburgo,
da sétima arte, no final desse mesmo século. No chegou a afirmar que, se não tivesse sido escritor,
entanto, a visualidade sempre esteve fortemente teria sido cineasta. Essa afirmação revela não ape-
presente na literatura. Essas diferentes formas nas a influência do sistema audiovisual, emergente
de linguagem, literatura e cinema, sempre man- na época, na sociedade, mas também o impacto
tiveram uma intensa relação dialógica, desde o que teve no autor, que será refletido em sua obra.
século XIX e, sobretudo, no decorrer do século Esse diálogo transemiótico entre literatura e ci-
XX, com o desenvolvimento de novas técnicas nema se apresenta, em especial, na novela Cara
de filmagem. Dessa forma, a literatura passa a de Bronze, presente na coletânea No Urubuquaquá,
sofrer influência das novas técnicas imagéticas no Pinhém, ex-Corpo de Baile. Nesse texto, Guima-
de narrativa, aprimoradas com os avanços dos rães Rosa cria um hibridismo narrativo entre as
recursos cinematográficos. Dentre elas podemos diversas linguagens e suportes midiáticos, como
destacar a perspectiva ou foco narrativo, os en- o cinema, a música, a literatura e o teatro.
quadramentos, os enredos fragmentados, a mon-
tagem e a justaposição de imagens que compõem Um dos aspectos mais intrigantes do universo
os planos-sequência das metáforas audiovisuais. rosiano, além da inovação linguística – o que levou
os críticos a compará-lo com autores como James
A obra de Guimarães Rosa foi bastante adaptada Joyce –, consiste na construção imagética de sua
para outro sistema de signos, principalmente para narrativa. A visualidade se apresenta na narrativa
o vídeo e para o cinema. A primeira adaptação de literária de maneira peculiar, principalmente no que
um texto rosiano para as telas de cinema ocorreu diz respeito ao cenário e aos caracteres dos persona-
em 1965, com o filme A hora e a vez de Augusto gens. O sertão, as veredas e os campos constituem
Matraga, digirido por Roberto Santos. Esse conto um espaço místico, compondo um cenário mágico,
rosiano é o último de Sagarana e seu tema princi- vislumbrante: “o sertão é do tamanho do mundo.”
pal é o trajeto de vida de Augusto Estêves, o Nhô
Augusto, ou Augusto Matraga, narrativa que parece É estreita a relação que se estabelece entre a obra do
aludir à Paixão de Cristo. O texto retrata tensões autor de Sagarana e o sistema audiovisual. Sua vasta e
vivenciadas pelo protagonista em busca de reden- rica narrativa deu ensejo a várias traduções e transcria-
ção para seus pecados através da religiosidade, e ções semióticas (adaptações para outros sistemas de
é marcado por momentos de provação diante de signos, como o cinema, o vídeo, a televisão e o teatro).

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Diálogos entre literatura, vídeo e cinema

A tradução e a transcriação alusão à imagem de Lúcifer, como podemos perce-


intersemióticas: definições teóricas ber em passagem de um ensaio de Célia Magalhães
sobre a teoria de Haroldo de Campos, intitulado
A palavra tradução possui, etimologicamente, ori- “Tradução e transculturação: a teoria monstruosa
gem no vocábulo latino traductìo, ónis1, do qual se de Haroldo de Campos”.4
originaram, ainda, os termos italianos traduttore e
traditore, em português, tradutor e traidor, respec- A tradução intersemiótica é definida da seguinte
tivamente. Nesse processo tradutório, o hipertexto maneira por Roman Jakobson:
suplementa o texto “original”, tentando superá-lo,
e não imitá-lo, podendo atribuir-lhe novos signifi- A tradução intersemiótica ou transmutação consiste
cados, o que impulsiona os cineastas e videomakers a na interpretação dos signos verbais por meio de sis-
transpor obras literárias para as telas. Os conceitos temas de signos não verbais.
de hipertexto e hipotexto que utilizo neste estudo
dizem respeito à teoria da transtextualidade, que [...] transposição intersemiótica – de um sistema de
foram extraídos do livro Palimpsestos, de Gérard signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a
Genette. Seguem-se suas definições: música, a dança, o cinema ou a pintura.5

Entendo por hipertextualidade toda relação que O papel do tradutor tem sido discutido e repensado
une um texto B (que chamarei hipertexto) a um pelas teorias contemporâneas da tradução, que o
texto anterior A (que, naturalmente, chamarei hi- concebem não mais apenas como um mediador, mas
potexto) do qual ele brota, de uma forma que não como um “coautor”. Segundo Rosemary Arrojo,
é a do comentário. [...] Esta derivação pode ser de
ordem descritiva e intelectual, em que um metatexto aprender a traduzir, tornar-se tradutor, implica [...], em
[...] “fala” de um texto. Ela pode ser de uma outra primeiro lugar, reconhecer seu papel essencialmente
ordem, em que B não fale nada de A, no entanto ativo de produtor de significados e de representante
não poderia existir daquela forma sem A, do qual e intérprete do autor e dos textos que traduz.
ele resulta, ao fim de uma operação que qualificarei,
provisoriamente ainda, de transformação [...].2 [...] cabe ao tradutor assumir a responsabilidade pela
produção de significados que realiza e pela represen-
Nesse caso, o processo tradutório abandonaria um tação do autor a que se dedica. Ou seja, terá que estar
caráter metafórico (quando o hipertexto é análogo sintonizado com o ideário de seu tempo e lugar e, con-
ao seu hipotexto), assumindo um caráter metoními- sequentemente, com a visão que esse tempo e lugar
co (quando a tradução substitui o texto que o ori- lhe permitem ter do texto e do autor que interpreta.6
ginou, assumindo o seu lugar). Dessa forma, como
afirma Haroldo de Campos,3 a tradução abandona Quando o tradutor vai além da tradução literal
a antiga noção de tradução literal, subalterna, em do significado linguístico, ele realiza o que Ha-
que, ao confrontar os textos, tradução e traduzido, roldo de Campos chama de “tradução criativa ou
percebemos um apagamento da figura do tradutor. transcriação”. Isso ocorre a partir de um texto
Para definir o conceito de transcriação, Campos faz de difícil tradução (como a maioria dos textos

1 HOUAISS, Antonio. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD Rom, v. 1.0.
2 GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Trad. Luciene Guimarães; Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Ho-
rizonte: FALE; UFMG, 2005. Caderno Viva-Voz. p. 19.
3 CAMPOS, Haroldo de. Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de; SANTAELLA,
Lúcia (Org.). Semiótica da literatura. São Paulo: Educ, 1987. p. 53-74.
4 MAGALHÃES, Célia. Tradução e transculturação: a teoria monstruosa de Haroldo de Campos. Cadernos de Tradução, UFSC, Floria-
nópolis, Centro de Comunicação e Expressão, n. 3, p. 139-156, 1998. p. 149.
5 JACKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: ______. Linguística e comunicação. Trad. Isidoro Blikstein; José Paulo
Paes. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 65 e 72.

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Com a
cine palavra,
o cinema

poéticos) de uma língua para a outra – tradução


135
interlingual; ou de um sistema de signos para
outro – tradução intersemiótica.

Júlio Plaza define a tradução intersemiótica como


“prática críticocriativa” e como “leitura”: meta-
criação.7 Ao comentar a articulação da historici-
dade entre as obras envolvidas no processo de
tradução, o texto alvo e o de origem, Plaza encara
a tradução intersemiótica como uma forma de
“descoberta de novas realidades”, tendo em vista
que “na criação de uma nova linguagem não se
visa simplesmente uma outra representação de
realidades ou conteúdos pré-existentes em outras
linguagens, mas a criação de novas realidades, de
novas formas-conteúdo”.8 Sendo assim, segundo
Júlio Plaza, o tradutor tem o “desejo secreto de
superação do original que se manifesta em termos
de complementação com ele”:

É assim que, embora a tradução seja transparente,


pois que não oculta o original nem lhe rouba luz,
não obstante todo tradutor tem o desejo secreto de
superação do original que se manifesta em termos
de complementação com ele, alargando seus senti-
dos e/ou tocando o original num ponto tangencial
do seu significado [...].9
25.505_13

O percurso das adaptações:


as principais traduções e transcriações
intersemióticas que tiveram a obra
rosiana como texto de partida

Dentre as principais adaptações da obra de Guima-


rães Rosa para outros sistemas semióticos, estão os
textos fílmicos Outras estórias, Sagarana: o duelo, Noites
do sertão e Mutum, a minissérie Grande sertão: veredas,
para a Rede Globo de Televisão (1985), o curta
Rio de-Janeiro, Minas, de Marily da Cunha Bezerra
(baseado em um episódio de Grande sertão: veredas).

Fotogramas de A terceira margem do rio


6 ARROJO, Rosemary. O signo desconstruído: implicações para a tradu- (1994), dirigido por Nelson Pereira dos Santos,
ção, a leitura e o ensino. 2. ed. Campinas: Pontes, 2003. p. 103-104. baseado na obra de Guimarães Rosa. Acervo
7 PLAZA, Júlio. A tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, Regina Filmes. Arquivo Nacional
1987. p. 14.
8 Ibidem, p. 30.
9 Idem.

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Diálogos entre literatura, vídeo e cinema

Este último, datado de 1993, é, sem dúvida, ao adaptação fílmica produzida de um texto rosiano:
lado dos filmes A hora e a vez de Augusto Matraga o longa Noites do sertão, filmado a partir do conto
e Noites do sertão, uma das melhores transposições Buriti, presente em Noites do sertão, ex-Corpo de
feitas a partir do texto de Guimarães Rosa para as baile. O filme conta, em seu elenco, com os atores
telas. Filmado na cidade de Três Marias, interior de Débora Bloch, Tony Ramos, Cristina Aché, Maria
Minas Gerais, este vídeo foi produzido a partir de Alves e a participação do cantor e compositor
um trecho de Grande sertão, passagem em que Rio- Milton Nascimento. Além da trilha sonora, com
baldo narra seu primeiro encontro com Diadorim, canções que têm Tavinho Moura na viola, Noites do
ainda menino, num ambiente místico repleto de sertão é consagrado por exibir belíssimas imagens
surpresas, encanto e magia. Marily conseguiu, em do sertão, exaltando a natureza local, enfocando a
seu vídeo, expressar a narrativa lírica de Riobaldo, flora (principalmente o buriti), a fauna e as águas
que relata os seus sentimentos mais profundos locais, apresentando um lugar completamente
neste encontro com Diadorim, além das belíssimas encantador e exótico. Para isto, o cineasta abusa
cenas enfocadas, cuja gravação foi feita no local das panorâmicas verticais e horizontais, utilizadas
exato que Guimarães Rosa escolheu para o en- em planos abertos, como os planos geral, meio
contro de seus personagens. Marily Bezerra filma conjunto ou de conjunto, de caráter descritivo.
esse belo curta nas margens e nas águas do rio São
Francisco e das veredas “de-Janeiro” e “Quartel”. Lançado em 1991, o curta Famigerado, de Aluízio
O curta, que tem em seu elenco os atores Nanna Salles Jr., conforme consta em sinopse extra-
de Castro, Cristina Ferrantini, Evandro dos Passos ída do site da Rede Minas, “é uma adaptação
Xavier e Paulo de Souza, conta com a participação quase literal do conto de mesmo nome de João
especial de Manuelzão e sua esposa, D. Didi, voz Guimarães Rosa”. Nesse texto, há uma cena
em off de José Mayer, trilha musical de Badi Assad, curiosa, em que a câmera focaliza livros na
fotografia de Kátia Coelho e montagem de Sarah estante do personagem doutor, dentre eles o
Yakhni, recebeu prêmios como o Tatu de Ouro clássico Humilhados e ofendidos, de Dostoiévski,
de melhor fotografia no concurso ibero-americano relacionando a obra do personagem do texto
de filme e vídeo da XXI Jornada Internacional de videográfico ao escritor (médico, leitor assíduo,
Cinema da Bahia, em 1994, e o prêmio Cineclube erudito etc.). Assim, o videomaker dialoga com a
Banco do Brasil de melhor fotografia no mesmo narrativa literária, ressignificando-a, permitindo
ano. Riobaldo conta, de maneira poética, como foi nova leitura do texto literário, enquanto uma
o encontro que teve, ainda na infância, no porto do espécie de autobiografia ficcional de Guimarães
rio “de-Janeiro”, com um belo e estranho menino Rosa. Sua proposta, portanto, não é meramente
chamado Diadorim, e a posterior travessia pelo adaptar o texto literário para outro suporte, mas
rio São Francisco, que os levará à descoberta do estabelecer uma relação dialógica com ele.
amor, do medo e da coragem.
Nos textos fílmicos Sagarana: o duelo, de Paulo
Esse vídeo se apresenta como exemplo de que Thiago; A terceira margem do rio, de Nelson Pereira
o transcriador intersemiótico, além de dialogar dos Santos; e Outras estórias, de Pedro Bial, os di-
com seu hipotexto, busca inovar na linguagem retores preferiram se enveredar por um caminho
semiótica de destino: enquanto que, na obra mais “perigoso”, construindo uma narrativa hí-
literária, Diadorim é apresentado por Riobaldo brida, entrelaçando vários contos da obra rosiana.
ao longo de quase toda narrativa como homem,
no curta-metragem, duas atrizes atuam, desem- Em 1970, é lançado Sagarana – o duelo, longa-
penhando o papel de Riobaldo e de Diadorim. metragem colorido de Paulo Thiago, tendo no
O segredo é revelado apenas no making of, que elenco Rodolfo Arena, Joel Barcellos, Zózimo
relata os bastidores das gravações. Bulbul, Jofre Soares, Paulo Villaça, Milton
Moraes, entre outros. O filme, que conta com
Em 1984, Carlos Alberto Prates Correia dirige canções de Tom Jobim e de Dorival Caymmi em
o filme que é considerado pela crítica a melhor sua trilha sonora, dialoga com outras produções

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Com a
cine palavra,
o cinema

importantes como Vidas secas (1963), de Nelson numa adaptação dos contos Famigerado, Nada e a
137
Pereira dos Santos; Deus e o diabo na terra do Sol nossa condição, Os irmãos Dagobé, Substância e Sorôco,
(1964), de Glauber Rocha; e A hora e a vez de sua mãe, sua filha, todos publicados em Primeiras
Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos. estórias, entrelaçados e constituindo um enredo
único. No longa, Bial mescla as linguagens do
O longa A terceira margem do rio, de Nelson Pereira vídeo, da televisão e do cinema. Seu elenco
dos Santos, lançado em 1994, foi produzido a conta com atores consagrados como Paulo José,
partir dos contos A menina de lá, Os irmãos Dagobé, Giulia Gam, Antonio Calloni e Marieta Severo.
Sequência e Fatalidade, além do conto homônimo. Assim como Nelson Pereira dos Santos, Pedro
Neste filme – que tem no elenco atores como Bial não se limita a uma adaptação fílmica dos
Ilya São Paulo, Sonjia, Jofre Soares e Maria Ri- contos rosianos, mas os transcria, com o intuito
beiro –, o diretor Nelson Pereira dos Santos vai de inter-relacionar o texto Famigerado aos outros
além da tradução, realizando uma transcriação contos utilizados no filme, cujo título Outras
intersemiótica do conto homônimo e de outros estórias já é uma reescritura de Primeiras estórias,
contos de Primeiras estórias. o que sugere o seu caráter transcriador. Neste
mesmo sentido, os roteiristas Pedro Bial e Al-
O longa-metragem Outras estórias, escrito, dirigi- cione Araújo mudam o nome do antagonista, de
do e produzido por Pedro Bial, com roteiro dele Damázio para Damastor Dagobé, personagem
e de Alcione Araújo, lançado em 1999, consiste do conto Os irmãos Dagobé.

Guimarães Rosa.
Correio da Manhã
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Diálogos entre literatura, vídeo e cinema

A minissérie Grande sertão: veredas (1985), da Rede cruzado, nessa travessia, em nenhuma dessas mar-
Globo de Televisão, dirigida por Walter Avancini, gens antagônicas, estamos nós: o homem.
privilegia alguns elementos do clássico rosiano,
como o enredo (em detrimento de sua linguagem e Considerações finais
significações). Algumas diferenças estruturais entre o
romance e a série consistem em que, no romance, o A ousadia dos diretores que transcriaram a literatu-
interlocutor de Riobaldo é o leitor; a narrativa se dá ra de Guimarães Rosa para o sistema audiovisual,
após os acontecimentos (Riobaldo desenvolve sua no entanto, apesar de possibilitar novas leituras
narrativa sob a forma de um relato); é fragmenta- do texto rosiano, não buscaram inovar no suporte
da, não linear; os temas predominantes são a (não) linguístico do texto de chegada. Conforme afirmou
existência de Deus e do diabo, a magia e misticismo o poeta e tradutor Haroldo de Campos, ao defi-
do sertão e, principalmente, o amor de Riobaldo nir a atividade da “transcriação” como processo
por Reinaldo-Diadorim. A preocupação maior do tradutório criativo, apropriando-se da teoria ben-
autor Guimarães Rosa são os artifícios da linguagem jaminiana da tradução, o tradutor deve priorizar o
como paradoxos, afirmações, negações, metáforas, “tom” (tonus do original), a informação estética do
neologismos, devido ao signo específico da literatura: próprio signo, sua materialidade, sua fisicalidade,
a palavra. Na minissérie, o interlocutor de Riobaldo é em detrimento do que é comunicativo num texto
o compadre Quelemém; o início da narrativa ocorre (informações semânticas e documentárias).10
com a chegada de Riobaldo ao sertão; a narrativa
é linear, característica da linguagem da televisão; há Quando os cineastas hibridizam as narrativas
divisão em capítulos, numa sequência estabelecida formando um enredo único, entrelaçando-os,
cronologicamente; o tema predominante é a guerra; conforme demonstrado acima, o resultado pode
a preocupação maior do diretor Walter Avancini e ficar comprometido, uma vez que as narrativas se
do roteirista Walter George Durst é com o enredo, e tornam bastante fragmentadas. Isso se deve ao fato
não com a beleza das imagens, signo por excelência de alguns contos, em princípio, não apresentarem
do texto televisivo. Para análises mais aprofundadas qualquer relação entre si, exceto no estilo linguístico
sobre a adaptação do romance Grande sertão: veredas do autor que os criou.
para a televisão, duas leituras são indispensáveis: o
artigo “Literatura, cinema e televisão”, de Flávio No que diz respeito aos aspectos temáticos,
Aguiar, e o livro Grande sertão: veredas – o romance caracteres dos personagens, formas de enredos
transformado, de Osvando José de Morais. e de composição e relação espaço-temporal, as
narrativas se constituem em textos díspares, sem
Além da transposição da literatura rosiana para qualquer tipo de relação aparente entre si. Como
outros sistemas semióticos, podemos citar, como exemplo, podemos citar as narrativas A menina de
referência indireta, os filmes de Glauber Rocha Deus e lá e Os irmãos Dagobé, ou A terceira margem do rio e
o diabo na terra do sol (1964) e O dragão da maldade contra Famigerado, que, apesar de pertencerem ao mesmo
o santo guerreiro (1969), que dialogam com o clássico gênero textual, conto literário, e pertencerem à
rosiano Grande sertão: veredas, publicado em 1956. mesma obra, Primeiras estórias, os enredos não se
Consideradas pela crítica como obras expressivas do comunicam. Inseri-las num mesmo texto fílmico,
chamado Cinema Novo brasileiro, estes dois filmes hibridizando-as numa narrativa única, portanto,
trazem a presença marcante do sertão como um só se torna possível sob a forma de transcriação,
lugar mágico, cheio de surpresas e encantos, palco devendo o tradutor inovar no sistema linguístico,
mítico de forças antagônicas que se enfrentam. Entre traindo-o, na expectativa de superá-lo. Do contrá-
as forças do bem e do mal, podemos ver acontecer rio, a comparação do hipertexto ao hipotexto, ainda
coisas antes inimagináveis; e, em meio a esse fogo que diferentes os suportes, será sempre inevitável.

10 CAMPOS, Haroldo de. Da tradução como criação e como crítica. In: ______. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva,
1992. p. 37.

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Com a
cine palavra,
o cinema

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Guimarães Rosa na
cerimônia de sua posse
na Academia Brasileira
de Letras, em 1967, três
dias antes de morrer.
Correio da Manhã

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Um certo capitão Rodrigo
(1971), baseado na obra
imortal de Érico Veríssimo, O
tempo e o vento. Direção de
Anselmo Duarte. Correio da
Manhã

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Fabiano Grendene de Souza Doutor em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Cineasta, autor
do livro Caio Fernando Abreu e o cinema: o eterno inquilino da sala escura (Sulina, 2011).

A perenidade de Caio Fernando Abreu:


um flanar entre cinema e literatura

Foto de Adriana Franciosi

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Com a
cine palavra,
o cinema

Foto de Adriana Franciosi


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O escritor no quarto
de casa, em Porto
Alegre, década
de 1990. Foto de
Adriana Franciosi

Caio Fernando Abreu (1948-1996) viu poucos tex- filmadas adaptações de Os sobreviventes, O inimigo
tos seus serem transpostos para a tela. Enquanto secreto e Linda, uma história horrível. Mesmo que os
Nelson Rodrigues pôde se defrontar com interpre- resultados possam ser discutíveis, a quantidade
tações múltiplas de suas obras, enquanto Raduan de obras produzidas em ambientes de escola de
Nassar e Chico Buarque viram verdadeiros filmes cinema é uma afirmação de que a literatura de
autorais brotarem de suas prosódias, o escritor gaú- Caio Fernando Abreu se alimenta do tempo.
cho assistiu apenas a um longa-metragem baseado Imersos na tecnologia digital, nas redes nem
em seus textos. Ele mesmo trabalhou no roteiro sempre sociais, tímidos, ansiosos, nervosos e
daquela que foi a única experiência de adaptação solitários, os jovens encontram nas linhas de
para longa-metragem que ele pôde ver em vida: Caio Fernando Abreu a perfeita tradução de suas
Aqueles dois (1985), de Sérgio Amon. Considerado angústias. Ele escreveu para o amanhã.
ainda hoje como um filme marcante pelo retrato
sensível da homoafetividade, a transposição do Dentre os curtas realizados em esquema mais pro-
conto homônimo foi a exceção que confirmou a fissional, podem-se destacar Dama da noite (1999),
regra. Seus textos precisariam (e ainda precisam) de Mario Diamante; Sargento Garcia (2000), de Tutti
de tempo para chegar aos cinemas. Gregianin; A mulher biônica (2008, a partir de Creme
de alface), de Armando Praça; e Linda, uma história
Se posteriormente o único longa-metragem fic- horrível (2013), de Bruno Gularte Barreto.
cional baseado no escritor foi Onde andará Dulce
Veiga (2007), de Guilherme de Almeida Prado, é Antes de analisarmos alguns destes filmes, é inte-
preciso abrir os olhos para ver como a presença ressante perceber que Caio Fernando Abreu desen-
do escritor anda solta pelas telas. O próprio filme volveu em sua literatura um domínio extremo do
de Guilherme parece ter sido descartado pelos fãs conto – algo que se explica um pouco pela neces-
do escritor de maneira apressada. A reclamação da sidade permanente de “costurar para fora”, como
ausência de certos personagens, a implicância com ele dizia (ou seja, trabalhar enfurnado em uma
um ator e a desconfiança com o desfecho eclipsa- redação, ser mercador de palavras, para garantir o
ram uma realização prenhe de experimentações de vil metal). Mas tal prática exímia acabou, de certa
linguagem − algo tão caro ao próprio Caio. maneira, influenciando suas adaptações. Embora
muitas vezes um texto literário curto inspire um
Nisso, podemos lembrar que a obra de Caio longa-metragem, como no caso já citado de Aque-
Fernando Abreu nas telas vem aparecendo com les dois, existe entre o conto e o curta-metragem
muita constância nos curtas-metragens. Mesmo certa similaridade de tempo disponível para que a
que alguns filmes desse formato tenham sido “história” seja contada. Ambos são propícios, por
feitos quando o escritor ainda não havia feito exemplo, para retratar encontros de dois perso-
Foto de Adriana Franciosi

sua passagem, é impressionante a quantidade de nagens − e é o que fazem Sargento Garcia e Linda,
adaptações que surgem ano a ano. Por exemplo, uma história horrível.
existe uma quantidade enorme de curtas pro-
duzidos no ambiente universitário. Só no curso Em Sargento Garcia, um garoto, no dia do alista-
de Produção Audiovisual da PUCRS já foram mento militar, acaba conhecendo o sargento que

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A perenidade de Caio Fernando Abreu

dá título à obra. Depois de ser dispensado de de Marcel Proust,Virginia Woolf e James Joyce, to-
“servir à pátria”, o jovem Hermes acaba reencon- dos eles inspiradores de Caio. Por outro, podem ser
trando Garcia e − com ele − perdendo a virgin- relevantes na construção de uma atmosfera de desejo
dade. Esse encontro, desde a sua matriz literária, calcada na mistura de elementos puros e impuros −
traz uma série de leituras. Primeiramente, existe o cheiro acre do corpo de Garcia e o odor das fezes
a afirmação de uma postura a favor da liberdade de um cavalo compõem um universo em que nojo e
sexual, em que o caráter heteronormativo, tão de- atração parecem territórios com fronteiras abertas e
fendido pelos militares, é questionado não só pela grandes zonas de intersecção.
união furtiva dos personagens, mas também pelo
fato de que é justamente um sargento que seduz o Em outra esfera, o conto também traz uma di-
rapaz e leva-o a uma pensão. Nesse sentido, a cena mensão alegórica. Se a união de Hermes e Garcia
do alistamento − cheia de jovens nus − carrega a é política por si no que tange à defesa de uma
interpretação de que o próprio espaço do quartel sexualidade ampla, há também um discurso do
é um lugar velado de experiências homossexuais. conto que mostra que o regime militar, de certa
maneira, “estuprou” o povo brasileiro. Dessa
Aliado a isso, o curta mostra como a indumen- forma, Sargento Garcia é o conto que mais revela
tária militar também pode despertar um olhar (e uma faceta muitas vezes esquecida da literatura de
um uso) fetichista, inspirando desejos secretos. Caio Fernando Abreu. Embora taxado de lírico,
Como produção realizada no Rio Grande do Sul, juvenil, introspectivo, alienado, Clarice Lispector
Sargento Garcia ganha até mais força, porque desafia lisérgica, o escritor deixou na margem de muitos
o caráter conservador arraigado a determinados dos seus relatos uma compreensão profunda
costumes tradicionalistas gaúchos. das alterações sociais vividas pelo Brasil, princi-
palmente na época da ditadura e dos primeiros
Ao mesmo tempo, o texto original de Caio Fernan- anos de democracia. Personagens perdidos em
do Abreu traz dois aspectos que não são explorados apartamentos vazios a um passo da loucura e do
pelo curta. É evidente que não se trata aqui de fazer suicídio, vivendo histórias prenhes de reflexão on-
uma cobrança de algo que deveria ser realizado tológica, que disseminam ainda um olhar sobre o
pelo filme, mas sim de mostrar a amplitude de pro- crescimento urbano desordenado e a moderniza-
postas do escritor. Um dos detalhes interessantes ção conservadora. Recheando o bolo, um retrato
do conto de Caio é a quantidade de ferramentas da dissociação entre a população e os políticos e
utilizadas para povoar o conto de uma dimensão uma polaróide da marginalização do artista num
erótica. Entre elas, duas merecem destaque. Pri- país de terceiro mundo.
meiramente, pode-se perceber na prosa de Caio
toda uma musicalidade que embaralha significados Voltando aos curtas, outro filme calcado em um
e sentidos. No início do conto, a expressão “meu encontro é Linda, uma história horrível. O filme
sargento” aparece porque Garcia quer respeito de mostra a noite em que um rapaz que mora em
Hermes. Porém, a intenção original do personagem São Paulo visita sua mãe em Porto Alegre. O diá-
é subvertida, porque, em pensamentos, o jovem logo dos dois, o silêncio, o descaminho da vida, a
começa a usar o pronome possessivo mais como perenidade da relação entre mãe e filho. No filme
um chamado, que envolve carinho, cumplicidade, de Bruno Gularte Barreto, todos esses elementos
chegando ao tesão. Isso chega a aparecer no curta, estão articulados na criação da atmosfera da casa,
mas no conto essa forma (“meu sargento”) aparece através de objetos e olhares que navegam entre
26 vezes, criando um ritmo alucinado, aludindo dois seres unidos pelo sangue, mas apartados por
inclusive ao ato sexual. experiências de vida tão distintas.

Nessa construção do erotismo, Caio Fernando Abreu A mãe traz a ingenuidade provinciana, dividida en-
também usa com grande precisão a poética dos chei- tre um certo racismo inconsciente, a ignorância em
ros. Por um lado, os odores podem ser evocativos do relação a determinados comportamentos sexuais e
passado, como na literatura de fluxo de consciência sonhos tão ingênuos quanto delirantes. Além disso,

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a idade da personagem traz o tema da proximidade arranham corações, colocando uma lente de au-
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da morte, reiterado por certas falas. mento na ânsia, no medo, no abandono. Cansaço
e solidão, dificuldade de reacreditar na vida, ligar
O filho (pródigo?) é daqueles personagens caros uma música alta e dançar − sozinho que seja.
ao escritor, um tipo sensível que traz o peso do
mundo nas costas. No caso, alguém pertencente Unidos pelo cigarro, encalacrados, emparedados
à tradição de gaúchos que, ainda jovens, partem em uma cozinha, os dois personagens falam muito
para o centro do país e encontram a dor e a de- dos outros e alguma coisa de si. A mãe fica impres-
lícia da maior cidade da América do Sul. De um sionada com o isqueiro do filho, lembra de uma vez
lado, vivem em um lugar sem olhares próximos que um grande “amigo dele” a levou para jantar
que cuidam, fofocam, acusam comportamentos em São Paulo, mas em nenhum instante entende as
menos padronizados. Livres de lugares pacatos opções dos rapazes. Ele procura forças para contar
Caio na
onde todos se conhecem, podem finalmente que está doente, mas acaba preferindo o silêncio. temporada
viver a liberdade de suas escolhas. Por outro A necessidade de desabafo explode − mas ele já em Londres
nos anos 1970.
lado, a couraça da metrópole traz o mundo-cão, está sozinho, no quarto, com a cachorra Linda. Ao Foto de Marcos
a competição desenfreada, os arranha-céus que mostrar o personagem abrindo a camisa e exibindo Santilli
Foto de Marcos Santilli

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A perenidade de Caio Fernando Abreu

o dorso, o filme cria uma imagem potente. Mais ao tocar a questão do estrangeiro, misturando
do que revelar a força da doença na pele do perso- questionamentos externos e internos. Em termos
nagem, a cena demonstra a dor da dificuldade do externos, há o deslocamento de um personagem
desnudamento sentimental, o pranto da impossibi- para outro país, sua dificuldade de adaptação em
lidade de revelar verdades íntimas para familiares. relação a costumes, clima e cotidiano. Mas, ao
mesmo tempo, o personagem se debate consigo
O conto, publicado em 1988, na antologia Os dragões mesmo – torna-se estrangeiro para si, perde-se
não conhecem o paraíso, era antes de tudo um retrato entre razão e sensibilidade, estranha-se como ser
explosivo das consequências da Aids − vista não só humano, sente-se um habitante deslocado do mun-
como um vírus, uma doença, mas também como do. Essas questões aparecem em toda a literatura
um carimbo, uma tatuagem feita para exposição de Caio, de contos escritos nos anos 1970, como
(inclusive pela mídia). Contada em 2013, a histó- Lixo e purpurina, calcado em uma situação de exílio
ria não deixa de trazer isso, mas parece se filiar a no frio londrino, sem dinheiro e sem calor; até
uma série de outras películas que têm trabalhado pequenas histórias dos 90, como Bem longe de Ma-
com uma abordagem mais direta da dificuldade de rienbad, flagrante do período de internacionalização
aceitação familiar e social de manifestações sexuais do escritor, quando sua obra passa a ser publicada
diversas do padrão heterossexual. De pronto, lem- em vários países da Europa.
bramos da repressão militar em Tatuagem (2013),
de Hilton Lacerda; do comportamento do perso- Essa permanência de Caio Fernando Abreu, vista
nagem Jesuíta Barbosa em Praia do Futuro (2014), em curtas-metragens baseados em sua obra e em
de Karim Aïnouz; do bullying de As melhores coisas longas não necessariamente feitos a partir da matriz
do mundo (2010), de Laís Bodanski, e Hoje eu quero literária do escritor, ganha uma nova perspectiva
voltar sozinho (2014), de Daniel Ribeiro. quando lembramos que o escritor é tema de dois
documentários realizados praticamente ao mesmo
Por esse raciocínio, chegamos a uma ideia impor- tempo. Mesmo ainda sem vermos o resultado de
tante: muitos filmes brasileiros contemporâneos Para sempre teu, Caio F., com direção de Candé Salles
dialogam intensamente com o universo de Caio e roteiro de Paula Dip, sabe-se que tal obra conta
Fernando Abreu. É como se a literatura do escri- em sua elaboração com pessoas que conheceram o
tor, mesmo quando não adaptada, soprasse em escritor e, de certa maneira, prestam seu tributo a
certos filmes, ocupando um lugar de destaque nas ele. Ao mesmo tempo, no ano passado, veio à tona
discussões audiovisuais de hoje. Até porque a sen- o ensaio Sobre sete ondas verdes espumantes (2013), de
sibilidade de Caio, uma sensibilidade avant la lettre, Cacá Nazário e Bruno Polidoro. Dividido em sete
dialoga com a maioria dos filmes citados. partes, o filme, mais do que traçar uma biografia do
escritor, busca vestígios, lampejos, energias através
Sem fazer uma abordagem extensa, vale a pena da literatura de Caio. Essa literatura é lida por seus
pensar como os filmes de Karim Aïnouz trazem amigos, foi escrita em muitos lugares do mundo.
um diálogo com o universo de Caio Fernando Por isso, há algo de road movie em Sete ondas.
Abreu: das personagens femininas de O céu de Suely
(2006) e O abismo prateado (2011), passando pelo Mais do que histórias de intimidade, bebedeiras e
protagonista complexo de Madame Satã (2002), e proximidade ao jet set televisivo e musical − muito
pelo motivo da errância em Viajo porque preciso, volto bem retratadas na biografia Caio Fernando Abreu:
porque te amo (2010, com Marcelo Gomes). inventário de um escritor irremediável (2008), de Jeanne
Callegari −, Sete ondas apresenta algumas imagens
Já Praia do Futuro apresenta vários pontos de toque paradigmáticas.
com o universo do escritor, a começar pelo plot:
um personagem masculino vivendo uma história Caio Fernando Abreu caminhando de sobretudo
de amor desencontrado na Europa, mais precisa- num frio gélido, com as ondas flamejantes de uma
mente na Alemanha. Como em alguns trabalhos de praia europeia, é a imagem de alguém deslocado,
Caio Fernando Abreu, o filme de Karim é preciso em conflito não só com aquela paisagem, mas com

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o próprio Brasil tropical que ecoa na memória. A um ausente, ela parece berrar – em sua delicadeza
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potência do plano, cheio de ranhuras por causa – a ideia de que os escritos de Caio permanecerão
da textura de vídeo analógico, é o emblema de na memória do mundo, vivos – enquanto o imóvel
um escritor que permaneceu inquieto, buscando pode ser demolido para virar mais um arranha-céu.
seu lugar, pipocando de uma paisagem a outra. A questão se amplifica se pensarmos que este plano
Aliás, a quantidade de locais que o filme atravessa parece enaltecer a trajetória de um escritor que convi-
evoca essa ideia da errância tão presente em sua veu sempre com reveses financeiros, dificuldades de
obra – e aqui além do trabalho ficcional, devem-se enfrentar a burocracia, e sofreu perseguições diversas
lembrar das cartas e das crônicas, testemunhas de (era criticado por correntes de direita e esquerda).
uma vida em movimento.
Nunca pensei em acabar esse texto com um dos
Mas é através de outra imagem potente que en- poemas mais famosos de Mário Quintana (home-
cerramos este nosso flanar pela relação entre Caio nageado por Caio em Pedras de Calcutá), mas é im-
Fernando Abreu e o cinema: já quase no fim do possível não lembrar: “Todos esses aí que estão/
filme, aparecem imagens do interior da casa em Atravancando meu caminho/Eles passarão.../Eu
que o escritor passou seus últimos dias, no bairro passarinho!” É isso: Caio se transformou não só
do Menino Deus, em Porto Alegre. A câmera que num ídolo de redes sociais, num autor evocado
se mexe por dentro da casa está distante de um em citações rápidas (e nem sempre verdadeiras),
registro que busca documentar o local em que o mas também em um criador de uma estética que
escritor gerou seus textos derradeiros; ela parece, tende a permanecer perene nos corações, mentes
antes de mais nada, trazer à luz uma presença de e telas do Brasil.
Foto de Adriana Franciosi

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Aníbal Machado, autor de


Viagem aos seios de Duília.
Na parede, um cartaz da
versão cinematográfica de
seu conto, dirigida por Carlos
Hugo Christensen em 1964,
com Rodolfo Mayer no papel
principal. Correio da Manhã

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PRAÇA DA REPÚBLICA, 173 – CENTRO – RIO DE JANEIRO


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