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de Direito em Questão
Luiz Eduardo Motta
Mauricio Mota
organizadores
O Estado Democrático
de Direito em Questão
ISBN 978-85-352-4183-9
Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocorrer erros
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_____________________________________________________________________
E82
O estado democrático de direito em questão: teorias críticas
da judicialização da política / Mauricio Mota e Luiz Eduardo Motta
(organizadores). – Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
Inclui bibliograÀa
ISBN 978-85-352-4183-9
Mauricio Mota
Professor do Mestrado e Doutorado em Direito da Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Andrei Koerner
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do IFCH-UNICAMP.
Alexandre Veronese
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense – UFF e Pes-
quisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Cássio Casagrande
Procurador do Ministério Público do Trabalho e Professor da Faculdade de Direito da
Universidade Federal Fluminense – UFF.
Márcia Baratto
Mestre em Ciência Política do IFCH-UNICAMP e pesquisadora do GPD-Ceipoc-UNI-
CAMP.
APRESENTAÇÃO
1 Associação de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, Associação Brasileira de Ciência Política e Socie-
dade Brasileira de Sociologia, respectivamente.
1
Paradigma contemporâneo
do Estado Democrático de Direito:
pós-positivismo e judicialização da política
Mauricio Mota*1
Sumário:
1. Introdução.
2. O problemáƟco conceito de Estado de Direito.
3. O Estado DemocráƟco de Direito como condição prévia para a plena
consecução da judicialização da políƟca.
4. O espaço social da judicialização da políƟca.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende realizar dois objetivos. O primeiro é delimitar o que
seja o paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito. O segundo é
estabelecer as relações entre essa noção de Estado Democrático de Direito e a perspec-
tiva pós-positivista da compreensão das relações jurídicas neste limiar do século XXI,
com particular ênfase no chamado fenômeno da judicialização da política.
que o poder estatal e a atividade por ele desenvolvida se ajustem ao que é determinado
pelas prescrições legais. Além disso, uma vez obtida a vigência dessa fórmula, preten-
deu-se tornar o seu alcance mais preciso, afirmando-se que através dela o Direito seria
respeitoso com as liberdades individuais tuteladas pela Administração Pública (Verdu,
2007: 1). Como expõe Friedrich Von Hayek (1990: 96), ressaltando a previsibilidade
das condutas firmadas por uma normatividade estabelecida, de modo que os indiví-
duos possam pautar por elas sua liberdade de agir:
A característica que mais claramente distingue um país livre de um país submeti-
do a um governo arbitrário é a observância, no primeiro, dos grandes princípios
conhecidos como o Estado de Direito. Deixando de lado os termos técnicos, isso
significa que todas as ações do governo são regidas por normas previamente
estabelecidas e divulgadas – as quais tornam possível prever com razoável grau
de certeza de que modo a autoridade usará seus poderes coercitivos em dadas
circunstâncias, permitindo a cada um planejar suas atividades individuais com
base nesse conhecimento.
Assim, um governo submetido ao Estado de Direito seria o contrário de um gover-
no arbitrário. A elaboração pelo Estado de normas fixas, claras e estáveis seria o único
meio que teriam os indivíduos de não serem submetidos às incertezas do imprevisível.
Mas, claramente, tal formulação clássica é insuficiente para a conformação da ideia
de um Estado de Direito. Um Estado de Direito desse tipo seria compatível com um
regime autoritário zeloso da disposição livre dos assuntos individuais e assecuratório
de um grau de segurança e certeza para os cidadãos. No regime nacional-socialista,
por exemplo, o homem é garantido em seu “vínculo social”. O Direito se dirige ao ho-
mem não como pessoa individual, isolado como indivíduo, mas como pessoa concreta,
como empresário, como trabalhador, empregado ou representante de comércio etc. O
Direito registra o homem em suas relações sociais, em seu papel social. O indivíduo
se caracteriza pelo pertencimento a uma determinada comunidade de raça e sangue e
tem nela garantidas suas funções individuais e sociais como empresário, obreiro, arren-
dador, arrendatário, empregado etc. Seu papel social e sua função social (determinada
pelos deveres inerentes ao seu papel social) são ressaltados e assegurados pelo Direito.
Assim, um regime autoritário, não obstante, é capaz de assegurar um critério uniforme
de aplicação do direito consoante a lei, ainda que autoritariamente elaborada (tem um
critério legal do justo e do injusto), e é assecuratório da previsibilidade das condutas
(compreendida nos valores maiores da comunidade) (Torre, 2008: 342-351, passim).
Trata-se, então, de uma definição insuficiente do que se poderia conceber como
um Estado de Direito. Do mesmo modo é insuficiente a definição preconizada pelo
chamado Estado Liberal de Direito.
Parte I | Capítulo 1 | Paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito... 5
1 Em Política Social, escrito em 1965, Marshall procura dar conta da origem do Estado Social de
Direito na Inglaterra, bem como de sua evolução no pós-guerra, notadamente na década de
1950 e início da década de 1960. Para o autor, o Estado Social de Direito naquele país tem início
em meados da era Vitoriana, qual seja, no último quartel do século XIX. Era de prosperidade e
confiança, teria marcado o início da adoção de medidas de política social: leis de assistência aos
indigentes, leis de proteção aos trabalhadores da indústria, medidas contra a pobreza etc. Em
tais medidas, estaria o embrião daquilo que, mais tarde, após a Segunda Grande Guerra, seria
conhecido como welfare state.
A razão para o surgimento destas medidas, as quais legariam à sociedade inglesa do século XX um
aparelho estatal administraƟvamente preparado para garanƟr o bem-estar social a seus cidadãos,
está no impulso dado às sociedades pela industrialização. Uma vez (re)harmonizada e readaptada
ao novo “modo de vida”, após a paciĮcação dos conŇitos que haviam acompanhado a origem da
produção em escala industrial, a sociedade inglesa abraçou essa tarefa de desenvolver suas poten-
cialidades (e) colocou em movimento forças inerentes ao próprio sistema que levaram, por proces-
sos lógicos e naturais, à sua transformação em algo totalmente imprevisto e incomum. Este é um
conceito central nesta explicação: a origem e desenvolvimento do Estado Social de Direito fazem
parte de um processo que é deĮnido fundamentalmente pela evolução lógica e natural da ordem
social em si mesma (Marshall, 1967: 12-97).
8 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Portanto, o Estado Social de Direito também não pode ser considerado um verda-
deiro Estado de Direito. Só pode ser considerado um Estado de Direito aquele no qual
sejam assegurados com efetividade a participação política na formação da vontade do
Estado e os direitos e liberdades fundamentais. Se os indivíduos são alienados de tal
participação por um paternalismo da estrutura social, política e jurídica do próprio
Estado, que passa a tutelar tais interesses individuais, e se os direitos sociais considera-
dos fundamentais não podem ser assegurados pela inexequibilidade de sua excessiva
abrangência, não há que se falar também aqui em Estado de Direito efetivo.
Cabe então aqui o exame do terceiro paradigma de Estado de Direito que procura
dar conta desse paradoxo, que é o chamado Estado Democrático de Direito. A pers-
pectiva mais consentânea do Estado Democrático de Direito é aquela que o define
como uma nova análise dos institutos jurídicos constitucionais dos Estados anteriores,
implicando em uma redefinição de Estado perante a ordem constitucional. No Estado
Social de Direito as decisões judiciais ficavam ao arbítrio do julgador. Ao juiz – de
acordo com seus conceitos de justiça, bem-estar coletivo e paz social –, caberia pro-
ferir as decisões, ainda que não amparadas pelos princípios constitucionais. Os prin-
cípios constitucionais foram, não poucas vezes, desrespeitados/ inobservados, pois a
decisão resultava das convicções íntimas e subjetivas do julgador.
Diante disto, os indivíduos perceberam que não mais poderiam entregar toda a
sua busca pela felicidade a um Estado Soberano, o qual aparece como macrossujeito
abarcador de uma hipotética unidade cívica. Uma nova definição de Estado se impu-
nha, definição esta na qual a ótica democrática fosse a vertente primordial da constru-
ção e da realização do direito. Este novo paradigma de Estado, o democrático, requer
um modelo de sociedade aberta com uma teoria discursiva do direito. Neste sentido,
os partícipes da procedimentalidade instaurada são responsáveis pela construção da
decisão. No Estado Democrático de Direito, os cidadãos participam discursivamente
na elaboração da decisão; são, pois, ao mesmo tempo, autores e destinatários do pro-
vimento final.
Elias Díaz (1972: 13), no seu livro clássico Estado de Derecho y sociedad democrática,
apresenta essa nova visão de Estado Democrático de Direito:
No todo Estado es Estado de Derecho. Por supuesto, es cierto que todo Estado
crea y utiliza un Derecho, que todo Estado funciona con un sistema normativo
jurídico. Difícilmente cabría pensar hoy un Estado sin Derecho, un Estado sin
un sistema de legalidad. Y sin embargo, decimos, no todo Estado es Estado de
Derecho; la existencia de un orden jurídico, de un sistema de legalidad, no au-
toriza a hablar sin más de Estado de Derecho.
12 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Designar como tal a todo Estado, por el simple hecho de que se sirve de un
sistema normativo jurídico, constituye una imprecisión conceptual y real que
sólo lleva – a veces intencionadamente – al confusionismo. Cabe adoptar como
punto de partida la siguiente tesis: el Estado de Derecho es el Estado sometido al
Derecho, o mejor, el Estado cuyo poder y actividad vienen regulados y contro-
lados por la ley... El Estado de Derecho como Estado con poder regulado y limi-
tado por la ley se contrapone a cualquier forma de Estado absoluto y totalitario,
como Estados con poder ilimitado, en el sentido de no controlado jurídicamente
o, al menos, insuficientemente regulado y sometido al Derecho.
Segundo esse autor, o império da lei, o controle jurídico do poder estatal e a segu-
rança frente à arbitrariedade são os traços definitórios do Estado Democrático de Di-
reito. São, portanto, assim delimitadas as características mais básicas e indispensáveis
a todo Estado Democrático de Direito (Díaz, 1972: 29):
a) império da lei: lei como expressão da vontade geral;
b) divisão de Poderes: executivo, legislativo e judiciário;
c) legalidade da Administração: atuação segundo a lei e suficiente controle judicial;
d) direitos e liberdades fundamentais: garantia jurídica formal e efetiva realização
material.
como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata
com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade,
mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia polí-
tica. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e
política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios,
mas para reconhecer que essas três dimensões se influenciam mutuamente tam-
bém quando da aplicação do Direito, e não apenas quando de sua elaboração. No
conjunto de ideias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma
em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica,
com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença quali-
tativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurí-
dica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria
dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse
ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética.
Em que medida, porém, a quarta característica dos princípios do Estado Democrá-
tico de Direito na concepção de Elias Díaz – a efetiva realização material dos direitos
e liberdades fundamentais – compõe a realização concreta do Estado Democrático de
Direito? Todos os direitos prestacionais abarcados nas Declarações de Direitos devem
ser efetivados para que se possa falar na materialização do Estado Democrático de Di-
reito? Como garantir tal desiderato se, por vezes, os exercícios dos direitos prestacio-
nais são contraditórios entre si? Este é o problema do Estado Democrático de Direito e
nessa acepção é que seu conceito se conecta com a chamada judicialização da política.
crática dos cidadãos acerca de uma modalidade mais social ou mais liberal de Estado
de Direito: o campo, por excelência, da judicialização da política.
Os seres humanos diferem de modo significativo uns dos outros. Essas diferenças
podem ser tanto por características externas como pelas circunstâncias nas quais cada
um se encontra. Uns nascem com maior riqueza, outros não; alguns herdam certas
responsabilidades que fazem parte de seu encargo, outros não; alguns nascem em am-
bientes mais hostis podendo afetar sua saúde e bem-estar, outros também não. Diver-
gimos também, além das características externas (ou seja, de acordo com os ambientes
natural e social em que cada um se encontra), em nossas características pessoais como
sexo, idade, aptidão física e mental e características internas como propensão à doença
e assim por diante.
Isto significa que nossas características físicas e sociais nos fazem pessoas extrema-
mente diferentes; fazemos parte de uma sociedade diversificada e a sociedade a qual
pertencemos nos oferecerá oportunidades diferentes quanto ao que podemos ou não
fazer.
Compreender o campo da judicialização da política significa entender, com Amar-
tya Sen, que a maioria das discussões sobre a desigualdade se concentra em torno da
desigualdade de renda, o que acaba por não explicar toda a extensão da desigualdade
real de oportunidades. Aquilo que as pessoas podem ou não fazer ou realizar não de-
pende exclusivamente de suas rendas, mas também de inúmeras características físicas
e sociais que acabam por afetar suas vidas.
Para Amartya Sen, os homens apresentam necessidades diferentes e a simples
igualdade de renda ou de bens primários falha ao tratar a variação destas necessidades
como iguais. Ao tentar buscar uma explicação sobre as inúmeras variáveis que afetam
a nossa igualdade de bem-estar ou satisfação de necessidades, o autor vai além da ideia
de renda e busca mostrar como estas variáveis afetam a vida que podemos levar e a
liberdade que podemos desfrutar.
Embora níveis de salário e remuneração façam parte da análise da desigualdade,
eles não esgotam toda a questão. Um exemplo disso são as diferenças entre as liberda-
des desfrutadas por ambos os sexos em diferentes regiões, ou seja, na divisão de ativi-
dades desenvolvidas dentro das famílias, educação recebida, e liberdades permitidas
dentre os diferentes membros componentes da mesma família.
Amartya Sen nos mostra que é a incapacidade de adquirir bens e não os bens em
si mesmos que contribuem para a fome e a desigualdade. Neste sentido, a explicação
em torno da diferença de funcionamentos e da desigualdade de capacidades (por
exemplo, escapar de doenças, evitar mutilações no corpo, ser livre para buscar carrei-
Parte I | Capítulo 1 | Paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito... 17
ras independentes etc.), deve ser apreciada fugindo da questão da discussão em torno
de renda recebida, bens primários e recurso recebidos por integrantes de uma mesma
família (Sen, 2001: 194):
Quando deslocamos nossa atenção de mercadorias e rendas para funcionamen-
tos e capacidades, o quadro relativo pode mudar radicalmente. A diferença pa-
rece relacionar-se, em grande medida, com as diferenças nas condições sociais,
educacionais e epidemiológicas. (...) Portanto, esta distinção entre privação de
renda e de capacidade para realizar funcionamentos elementares tem relevância
também para a política pública – tanto para o desenvolvimento quanto para a
erradicação da pobreza e da desigualdade.
O autor não nega que uma renda diminuta acaba por dificultar o desenvolvimento
das capacidades de um indivíduo, mas essa variável, embora importante, se mostra
como um valor fundamentalmente instrumental, por facilitar o acesso a um conjunto
de funcionamentos e o desenvolvimento de capacidades:
O que a perspectiva da capacidade faz na análise da pobreza é melhorar o en-
tendimento da natureza e das causas da pobreza e privação desviando a atenção
principal dos meios (e de um meio específico que geralmente recebe atenção
exclusiva, ou seja, a renda) para os fins que as pessoas têm razão para buscar
e, correspondentemente, para as liberdades de poder alcançar esses fins (Idem,
ibidem: 112).
Desenvolver capacidades é, assim, fundamental para atingir o desiderato da felici-
dade dos indivíduos, mas não se confunde com a ideia de um Estado Democrático de
Direito. Um conceito mais delimitado de Estado de Direito no plano jurídico-político
é perfeitamente compatível e desejável com a realização de um Estado Social de Direi-
to, mas não se confunde com ele.
É no campo da judicialização da política, compreendida em senso amplo, que se
articula a realização das tarefas sociais que hoje se consideram imprescindíveis para
uma vida humana digna, compatível com o pleno desenvolvimento das capacidades
dos indivíduos: segurança social, educação básica, proteção frente ao desemprego,
cuidados sanitários e pensões mínimas.
deradas não em suas individualidades, mas, sim, como membros de um todo social
harmônico, voltado à cooperação mútua para a realização da felicidade geral. Aí está em-
butida a firme ideia de dignidade inerente a toda humanidade (em substituição à ideia
pré-moderna de honra), como único parâmetro de avaliação do homem condizente
com a igualdade liberal. Partindo da premissa de que todos os seres humanos detêm
uma valia idêntica perante a lei, todos os indivíduos guardam dignidade própria que
determina, necessariamente, que sejam dadas a eles todas as condições materiais e
imateriais indispensáveis para a existência plena.
Existe um relativo consenso de que não há vida digna, nem autorrespeito, nem
possibilidade de exercício de capacidades individuais e coletivas sem que determina-
das condições básicas estejam satisfeitas. A discussão gira em torno de quais condições
seriam essas. Trata-se apenas de comer, beber, dormir e se abrigar? Sem dúvida que
não, pois essas satisfações apenas garantem ao homem condições para a sua sobrevi-
vência biológica. Por isso, admiti-las como suficientes seria o mesmo que comparar os
homens aos animais, que certamente também necessitam dessas mesmas coisas para
se manterem vivos. As necessidades humanas, ao contrário, requerem atendimentos
para além da dimensão biológica ou natural. Para os homens, as necessidades de co-
mer, beber, dormir, abrigar-se, não constituem um fim em si mesmo. Envolvem, entre
outros aspectos, a produção de instrumentos em um processo que se dá permeado de
interações sociais, divisão de tarefas, organização do espaço. Com isso se quer dizer
que o atendimento às necessidades humanas engloba também aspectos psicológicos,
culturais e sociais.
Essas necessidades básicas, segundo Marx (1988: 191), são necessidades comuns
a todos os homens, e, por outro, essas necessidades são produto do meio e da cultura
em que vivem esses homens, variáveis, portanto:
A extensão das chamadas necessidades imprescindíveis e o modo de satisfazê-las
são produtos históricos e dependem, por isso, de diversos fatores, em grande
parte do grau de civilização de um país e, particularmente, das condições em
que se formou a classe dos trabalhadores livres, com seus hábitos e exigências
peculiares.
A distinção entre necessidades básicas e necessidades não básicas pode ser com-
preendida em Pereira (2000: 66) que identifica a chave dessa distinção como sendo
a ocorrência ou não de “sérios prejuízos à vida material dos homens e à atuação des-
tes” como sujeitos, caso essas necessidades não sejam satisfeitas. Em outros termos,
necessidades humanas básicas são aquelas que devem ser satisfeitas como condição
necessária para evitar sérios e prolongados prejuízos à saúde física e à cidadania, fato
Parte I | Capítulo 1 | Paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito... 19
que não ocorre com a não satisfação de preferências. Em vista da associação entre ne-
cessidades humanas básicas e sérios prejuízos, cabe definir estes últimos.
Sérios prejuízos são impactos negativos cruciais que impedem ou põem em sério
risco a possibilidade objetiva dos seres humanos de viver física e socialmente em
condições de poder expressar a sua capacidade de participação ativa e crítica.
São, portanto, danos cujos efeitos nocivos independem da vontade de quem os
padece e do lugar ou da cultura em que se verificam (Idem, ibidem: 67).
Dessa definição, um aspecto se revela como muito relevante: “sobrevivência”, não
apenas no sentido físico, mas também social. Assim, chega-se ao significado de neces-
sidades como o déficit de condição para a vida e para a ação humana livre e crítica.
Autonomia é a capacidade dos indivíduos de formular estratégias para a consecu-
ção de seus objetivos e interesses, conscientemente identificados e, ainda, de colocá-
las em prática sem opressões. Tal significado envolve o reconhecimento, pelo indiví-
duo e pelos outros, de ele ser capaz de realizar algo e responsabilizar-se por essa ação.
Nesse sentido, três atributos são fundamentais para o exercício pleno da autonomia:
habilidade cognitiva, saúde mental e oportunidade de participação.
A habilidade cognitiva refere-se exatamente à capacidade do indivíduo de entender
o mundo a sua volta e as regras sociais estabelecidas pela cultura a que pertence. A
saúde mental, por seu turno, significa a condição necessária para que a ação se dê em
condições racionais, pois um déficit de saúde mental criará inaptidão para lidar com
coisas particulares e coletivas de forma autônoma e discernida. A loucura seria o ex-
tremo desse déficit. Já a oportunidade de participação envolve o grau em que a autono-
mia pode ser incrementada a partir de novas opções de ação, socialmente relevantes.
Todos os seres humanos, em qualquer cultura, são instados a desempenhar papéis
sociais comuns, como o de pais, donos de casa, trabalhadores e cidadãos. Ampliar
esse leque de competências depende de oportunidades, ou seja, de disponibilidade de
meios objetivos para tanto.
A existência de necessidades comuns não significa estratégias iguais para a sua
satisfação. Habilidade cognitiva, saúde física e mental e autonomia podem ser obtidas
de diversas formas. Há uma série de bens, serviços e relações sociais, que em maior
ou menor extensão, são capazes de satisfazer as necessidades básicas. Em vista disso,
podemos identificar um conjunto de necessidades intermediárias que, se satisfeitas,
contribuem para o aumento da habilidade cognitiva, saúde física e mental e da auto-
nomia: 1) alimentação nutritiva e água potável; 2) habitação adequada; 3) ambiente
de trabalho seguro; 4) ambiente físico saudável; 5) cuidados apropriados de saúde;
6) proteção à infância; 7) relações primárias significativas; 8) segurança física; 9) se-
20 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
gurança econômica; 10) educação básica; 11) educação para o planejamento familiar,
pré e pós natal adequados.
Não há uma ordem de importância dentre essas necessidades intermediárias. To-
das são essenciais para a garantia da saúde física e mental e da autonomia. Em alguns,
como alimentação e moradia, as especificidades culturais e de respostas a eles endere-
çados são fatores importantes; mas o fato é que se eles não forem atendidos causarão
sérios danos à saúde física e mental das pessoas, prejudicando seu desenvolvimento e
participação sociais, de forma ativa e crítica.
Esse é o espaço social da judicialização da política. Possibilitar que no campo da
atuação do Poder Judiciário esses valores e necessidades sejam, de algum modo, sa-
tisfeitos. E, mais do que isso, reconhecidos como direitos, se incorporem ao exercício
da cidadania. O Estado Democrático de Direito na acepção delimitada acima descrita
possibilita isso, o espaço social, a arena, onde esses interesses e necessidades se mani-
festam. Mas, não se confunde, enquanto conceito, nem com esse espaço social, nem
com seu processo de realização, a judicialização da política.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito se caracteriza por
ser um Estado de Direito em um contexto pós-positivista, marcado por uma reentroni-
zação dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade
aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; pela reabilitação da
razão prática e da argumentação jurídica; pela formação de uma nova hermenêutica;
e pelo desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a
dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido se apresenta como parte da realização de tal Estado de Direito a
consecução dos direitos fundamentais dos indivíduos. Mas a questão primordial a
saber é: a quais direitos fundamentais estamos nos referindo, só aos direitos políticos
e às liberdades públicas ou ao conjunto de direitos materiais econômicos e sociais
reconhecidos, via de regra, nas Declarações de Direitos? Se também são reconhecidos
direitos materiais, de que natureza são esses direitos e como se definem as contradi-
ções entre os diversos exercícios de tais direitos pelos indivíduos?
A noção preconizada nesse texto é a de que, na contemporaneidade, deve ser de-
limitado aquilo que se compreende pelo conceito de Estado Democrático de Direito,
para que este possa subsistir como um conceito útil e operacional. O Estado Democrá-
tico de Direito deve ser aquele capaz de submeter o exercício das funções do Estado
Parte I | Capítulo 1 | Paradigma contemporâneo do Estado Democrático de Direito... 21
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. Vinte Anos da Constituição Brasileira de 1988: O Estado
a que Chegamos. In: Retrospectiva dos 20 Anos da Constituição Federal. AGRA,
Walber de Moura (coord.). São Paulo: Saraiva, 2009.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição.
6. ed., Coimbra: Almedina, 2002.
CASTILHO, Ricardo. Justiça social e distributiva: desafios para concretizar os direitos
sociais. São Paulo: Saraiva, 2009.
CONSTANT, Benjamin. De la libertad de los antiguos comparada con la de los mo-
dernos. In: CONSTANT, Benjamin. Escritos políticos. Madri: Centro de Estudios
Constitucionales, 1989.
DÍAZ, Elias. Estado de Derecho y sociedad democrática. 4. ed., Madri: Editorial Cuader-
nos para el Diálogo, 1972.
DRAIBE, Sônia Miriam. O “Welfare State” no Brasil: características e perspectivas. In:
ANPOCS. Ciências Sociais Hoje. São Paulo: Vértice e Anpocs, 1989.
22 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Sumário:
1. Introdução.
2. Judicialização da polí ca e das relações sociais: dis nção conceitual.
3. Soberania absoluta e representação popular: modos de compa bilização.
4. A República absoluta e o monismo polí co.
5. A judicialização, pluralismo representa vo e soberania complexa.
6. Considerações finais.
7. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Os estudos no âmbito das Ciências Sociais e do Direito nos últimos anos têm se
dedicado fortemente a dois fenômenos intitulados judicialização das relações sociais e
judicialização da política. Suas características principais incluem a chamada “explosão
legal”, isto é, o avançar dos institutos jurídicos na regulação da vida social, e o au-
mento exponencial do acesso às prestações do Poder Judiciário por agentes da socie-
dade e da cena política. A origem destas transformações é remetida com frequência
* Doutora e Mestre em Sociologia pelo IUPERJ. Bacharel em Ciências Sociais pela UFRJ e em Direito pela
UERJ. Professora de Sociologia e da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro – UNIRIO. Pesquisadora bolsista da Fundação Casa de Rui Barbosa. Agradeço a Luiz
Eduardo Mo a e Mauricio Mota a gen leza do convite para par cipar deste livro, e a Luiz Werneck
Vianna, que me apresentou ao tema e orientou meus estudos nesse campo. Agradeço especialmente
a Rogerio Dultra dos Santos pelas várias leituras e precisas correções crí cas que fez a esse texto.
24 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
1 Araújo, Gisele Silva, “Judicializaçao da Polí ca e das Relações Sociais: dis nção conceitual e demo-
cracia”, Revista Dados, IUPERJ/UCAM, no prelo. Nas próximas páginas desenvolve-se, em resumo,
os argumentos deste ar go.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 25
poderes. Conclui-se, finalmente, que, embora a teoria não possa afirmar os rumos
certos dos fenômenos sociais, a judicialização da política pode ser analisada como uma
reação ao défice de representação das democracias contemporâneas.
Jürgen Habermas segue outra tradição do pensamento ocidental, o que o faz re-
conhecer o caráter sistêmico da administração pública e da economia, sem se afastar
dos chamados ideais da modernidade – liberdade e igualdade – cujo local de produ-
ção e criação seria o “mundo da vida” – as relações sociais, a cultura e as instituições
da sociedade civil. Os temas da autonomia e da democracia, portanto, permanecerão
como horizonte e como viés de crítica aos diagnósticos sociológicos que produz.2
Neste autor, o Estado do Bem-estar Social teria “colonizado o mundo da vida”: o siste-
ma administrativo – o Executivo – teria instrumentalizado o Direito e hiper-regulado
aqueles espaços de livre produção do social, gerando a judicialização. O efeito genérico
é uma “crise de legitimação do capitalismo tardio”: os atores sociais não reconhecem
as normas welfaristas como de sua própria feitura e veem os movimentos autônomos
da sociedade engessados pela excessiva normatização (Habermas, 1980).
Como prognóstico, Habermas não se afasta, com boas razões (Araújo, 2009), do
modelo clássico de representação: a formação da opinião (comunicações informais na
sociedade) deve ser livre e igual, de modo a alcançar e vincular a formação da vontade,
cujo lócus não é o Executivo ou o Judiciário, mas, sim, o Legislativo. Para tanto, é
mister que o núcleo inviolável do Direito se atenha aos procedimentos que garantem
regras igualitárias de participação e deliberação, de modo a neutralizar as desigual-
dades provenientes do mundo privado (Habermas, 1986). Esta “democratização” da
esfera pública, portanto, depende da animação da cultura cívica3 e da equalização
do poder comunicativo dos membros da sociedade, ativando igualmente todas as
opiniões na tarefa da deliberação e filtragem para a produção das normas legislativas.
Sem aqueles dois requisitos, o paradigma jurídico procedimentalista sucumbiria, tal
como Habermas indica para o Estado do Bem-estar Social, às “grandes negociações com
2 Para uma visita rápida à teoria sociológica de Jürgen Habermas, enfocando as razões para seu vínculo
com a democracia e o procedimentalismo, cf. Araújo, Gisele Silva. “Habermas e a democracia como
an doto à irracionalidade”. Bole m CEDES/IUPERJ (CEDES/IESP-UERJ), Rio de Janeiro, out./nov.
2009. Disponível em: www.cedesiesp.com ou em h p://www.4shared.com/document/8qGbrlqV/
Gisele_Arajo_Habermas_e_a_Demo.html. Acesso em: 15/10/2010.
3 “Face às decisões polí cas importantes para toda a sociedade, o Estado tem que estar em condi-
ções de captar interesses públicos e eventualmente impô-los. Mesmo nos casos em que ele aparece
como um conselheiro inteligente ou como um supervisor que coloca à disposição um direito proce-
dimental, a norma zação do direito tem que con nuar referida, de modo transparente, controlável
e recons tuível, aos programas do legislador. Não existem receitas capazes de levar a isso. E, para
impedir, em úl ma instância, que um poder ilegí mo se torne independente e coloque em risco
a liberdade, não temos outra coisa a não ser uma esfera pública desconfiada, móvel, desperta e
informada, que exerce influência no complexo parlamentar e insiste nas condições da gênese do
direito legí mo.” Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre fac cidade e validade. v. I e II. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. II, p. 185.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 27
sistemas funcionais da sociedade” que se valem das assimetrias de poder para a progra-
mação privada da administração pública.4
Em Günther Teubner, finalmente, o Estado-Providência5 teria materializado o Di-
reito ao usá-lo como instrumento para implementar serviços públicos e prestações
sociais, fazendo proliferar a legislação casuística, especial e desformalizada. Menos
do que atentar para um rearranjo nos três poderes que põe desafios à democracia e à
participação popular, o efeito destacado por Teubner assume a configuração de um
“trilema regulatório”, ou seja, três hipóteses de fracasso do Direito na sua pretensão
de regulação: (a) a ineficiência da lei decorrente da mútua indiferença entre Direito e
sociedade; (b) a ameaça à autoprodução da sociedade, ficando esta aprisionada pela
lei onipresente; e (c) a desintegração do sistema jurídico pela hipersocialização do
Direito, quando este é capturado pela política e perde sua integridade interna.6 Os
itens (a) e (b) coincidem com os apontados por Habermas, o primeiro referindo-se à
perda de legitimidade do Direito diante de uma sociedade que não se reconhece como
partícipe em sua produção, e o segundo relacionado ao engessamento da sociedade
pela hiper-regulação.
4 “Ela enreda o Estado em negociações com sistemas funcionais da sociedade, com grandes organiza-
ções, associações, etc., que se subtraem, em larga escala, a uma regulação impera va (através de
sanções, taxas ou incen vos financeiros) (...) A soberania do Estado é solapada, na medida em que
corporações socialmente poderosas se associam ao exercício público do poder, sem serem legi ma-
das para isso, ficando subme das às responsabilidades picas de órgãos do Estado. (...) os atores
sociais, reves dos do poder de negociação paracons tucional, rompem o quadro da cons tuição.”
Habermas, Jürgen. Direito e Democracia. Op. cit., v. II, p. 177.
5 Estado-Providência é o termo francófono equivalente ao Welfare State, Estado do Bem-estar Social,
ou Estado Social.
6 No inglês, a descrição das três hipóteses de fracasso do “trilema regulatório” é: 1) “The regulatory
ac on is incompa ble with the self-producing interac ons of the regulated system (...) The law is
ineffec ve because it creates no change in behavour. However, the self-producing organiza on re-
mains intact, in law as well as in society.”; 2) “‘Over-Legaliza on’ of Society – the regulatory ac on
influences the internal interac on of elements in the regulated field so strongly that their self-pro-
duc on is endangered. This leads to disintegra ng effects in the regulated field, well-known under
the heading of ‘coloniza on’”; 3) “‘Over-Socializa on’ of Law – the self-producing organiza on of
the regulated area remains intact while the self-producing organiza on of the law is endangered.
The law is ‘captured’ by poli cs or by the regulated subsystem, the law is ‘poli cized’, ‘economized’,
‘pedagogized’ etc. with the result that the self-produc on of its norma ve elements become overs-
trained. Overstrain of the law in the welfare state may be the effect of its poli cal instrumentaliza-
on, but it may also be the law’s “surrender” to other sub-systems of society at the cost of its own
reproduc on.” Teubner, Gunther. A er Legal Instrumentalism? Strategic Models of Post-Regulatory
Law. In: Teubner, Gunther (ed.). Dilemmas of Law in the Welfare State. Berlim/New York: Walter de
Gruyter, 1986, p. 311. Cf. também, do mesmo autor, The Transforma on of Law in the Welfare State.
In: Teubner, Gunther (ed.). Op. cit.
28 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
7 “That means, among other things, that power-equaliza on is not suited to use as a criterion for
dis nguishing between conserva ve and progressive forms of ‘reflexive law’ (...) Moreover, being
bound to sta c equilibrium models, power-equaliza on appears itself as a conserva ve strategy. If
we are looking for a norma ve criteria to judge social ins tu ons, responsiveness to humann needs
(Hondrich, 1975) is what is required and not neutraliza on of power. Dynamic, flexible ins tu ons
with strong asymmetric power rela ons can, under certain condi ons, be more responsive to human
needs than self-closed, power-symmetrical, equilibrium ins tu ons.” Teubner, Gunther. A er Legal
Instrumentalism? Strategic Models of Post-Regulatory Law. In: Teubner, Gunther (ed.). Dilemmas of
Law in the Welfare State. Op. cit., p. 318.
8 “Poli cal and social power is needed to exert external pressure on established social systems to
externalize their self-reference. (…) Thus, reflexive law depends on poli cal power and, inthis res-
pect, does not differ from regulatory law.” Teubner, Gunther. A er Legal Instrumentalism? Strategic
Models of Post-Regulatory Law. In: Teubner, Gunther (ed.). Dilemmas of Law in the Welfare State.
Op. cit., p. 317. A reunião da reflexividade luhmanniana dos subsistemas sociais, da abordagem
procedimentalista de Habermas e da estrutura finalís ca do direito responsivo de Nonet e Selznick
enclausura Teubner numa circularidade. O sistema jurídico somente seria capaz de “impor” o pro-
cedimentalismo ao sistema polí co se este, reflexivamente, já se estruturasse a par r dos pressu-
postos igualitários que subjazem à democracia procedimental e fosse composto por ins tuições que
respondessem eve vamente às demandas da “sociedade de iguais”.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 29
9 No Brasil, embora a dis nção não se reflita no tulo, o trabalho que primeiro evidencia a diferença
entre os fenômenos é Werneck Vianna, Luiz; Carvalho, Maria Alice Rezende de; Melo, Manuel Palá-
cios Cunha e Burgos, Marcelo Baumann. A judicialização da polí ca e das relações sociais no Brasil.
Rio de Janeiro: Revan, 1999.
10 Tradução própria. No original, “judges making public policies that previously had been made or
that, in the opinion of most, ought to be made by legisla ve and execu ve officials...” Tate, C. Neal
and Vallinder, Torbjörn. The global expansion of judicial power. New York and London: New York
University Press, 1997, p. 6. Ainda segundo Vallinder, a judicialização da polí ca significa “either (1)
the expansion of the province of the courts or the judges at the expense of the poli cians and/or the
administrators, that is, the transfer of decision-making rights from the legislature, the cabinet, or
the civil service to the courts or, at least, (2) the spread of judicial decision-making methods outside
the judicial province proper.” Idem, p. 13.
30 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
ra-se uma outra recomposição funcional dos três poderes e uma outra relação entre so-
ciedade, Direito e política, na qual a primeira precisa se mobilizar cotidianamente em
algum grau, já que somente assim põe o Judiciário em movimento. A judicialização da
política, destarte, não é a continuidade da juridificação [das relações sociais] provocada
pelo Welfare; mas, ao evidenciar empiricamente a submissão da política a princípios e
procedimentos judiciais, ela acode ao núcleo das soluções normativas acima referidas,
notadamente as que pensavam ser necessária a composição entre a procedimentaliza-
ção e a responsividade das instituições (Teubner). Neste sentido, repõe-se a questão
de saber qual é o lastro possível da judicialização da política, para além do Estado do
Bem-estar Social, e qual a sua relação com a distribuição do poder.
Embora alguns outros autores vinculem também a judicialização da política às
transformações do Direito causadas pelo Estado do Bem-estar Social,11 parece mais
fecundo tomá-la como efeito a médio prazo das mudanças advindas do Constitu-
cionalismo democrático europeu do pós-Segunda Guerra, que se fará presente nas
Constituições de Portugal, Espanha e de alguns países latino-americanos nas décadas
de 1970 e 1980.12 Evidentemente, muitos dos direitos antiliberais típicos do Welfare
State foram transformados em dispositivos constitucionais. No entanto, até meados
do século XX, as Constituições eram cartas de princípios ou de intenções de redu-
zida eficácia. A exigibilidade dos direitos constitucionais – ainda hoje questionada13
– somente começa a se verificar quando se confere caráter prático à Supremacia da
Constituição – criação prematura e inédita da teoria de Hans Kelsen (1881-1973) –,
11 “É por esse mo vo que um ordenamento jurídico minado pela inflação, pela variabilidade e pela
vola lidade de seus disposi vos norma vos, amplia significa vamente o espaço da discricionarie-
dade judicial e o protagonismo dos juízes na vida polí ca, social e econômica. (...) ... pode-se então
compreender as origens e o alcance do fenômeno da judicialização da polí ca.” Faria, José Eduardo.
O Direito na Economia Globalizada. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 130-131. A reflexão de
José Eduardo Faria no campo da sociologia jurídica é de enorme importância e acuracidade. No
entanto, a associação exclusiva entre o fortalecimento do Poder Judiciário e a inflação legisla va
contém um paradoxo: se a inflação legisla va tem também por consequência a ineficácia da lei, ela
produz indiretamente o enfraquecimento dos “aplicadores do Direito”, quais sejam, os juízes. Por
isso, o fenômeno da judicialização da polí ca, que persiste para além do Estado do bem-estar social,
deve implicar, na sua explicação, outros fatores causais.
12 Neste sen do, as análises de Luiz Werneck Vianna e Marcelo Burgos, bem como a de Gisele Cita-
dino. Werneck Vianna, Luiz; Burgos, Marcelo. Revolução Processual do Direito e Democracia Pro-
gressiva, e Citadino, Gisele, Judicialização da Polí ca, Cons tucionalismo Democrá co e Separação
dos Poderes, ambos em Werneck Vianna, Luiz (org.). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo
Horizonte/Rio de Janeiro: Editora UFMG/Iuperj/Faperj, 2002.
13 Veja-se o caso, no Brasil, da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais que é prescrita pela
Cons tuição, mas que é negada por parte da doutrina jurídica.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 31
14 Na Cons tuição Federal do Brasil de 1988, os principais ins tutos processuais neste sen do são:
Ação declaratória de cons tucionalidade; Ação declaratória de incons tucionalidade (inclusive por
omissão); Ação civil pública. Note-se que a cons tucionalidade dos atos é aferida não apenas com
relação a normas cons tucionais posi vas, mas também com relação a princípios cons tucionais
explícitos ou implícitos.
15 Do ponto de vista teórico, o controle abstrato da cons tucionalidade dos atos do legisla vo e do
execu vo não representa novidade recente. Cf. Kelsen, Hans. Jurisdição Cons tucional. São Paulo:
Mar ns Fontes, 2003.
16 Está-se tratando neste texto fundamentalmente do Judiciário nos países de tradição jurídica romano-
germânica. Na tradição anglo-saxã, o funcionamento do sistema jurídico à base dos precedentes con-
fere ao Judiciário uma inserção diferente na seara da produção legisla va e da separação dos poderes.
As dis nções entre estas duas tradições, entretanto, não é objeto deste ar go e não estão, por isso,
sendo evidenciadas.
32 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
17 Nos países presidencialistas, a representação também recai sobre o Poder Execu vo. O Poder Judi-
ciário teve, em geral, excluídas das teorias per nentes qualquer função de representação.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 33
18 “Iguais” refere-se aqui à igualdade formal. Ou mesmo à “igualização” tal como compreendida por
Tocqueville. Cf. Tocqueville, Alexis. A Democracia na América: Leis e Costumes. São Paulo: Mar ns
Fontes, 1998.
19 Cuja manifestação é a vontade geral conver da em lei. Não é propósito deste texto discu r a to-
talidade da vontade geral, seu caráter comunitário e infalível. Basta, para o presente argumento,
a relação entre legi midade e soberania do povo formulada por Rousseau. Guardadas as atualiza-
ções, o mesmo argumento da democracia como única fonte da legi midade polí ca em sociedades
diferenciadas e que apresentam mul plicidade de valores e costumes encontra-se em Habermas.
Cf. Habermas, Jürgen. Teoría de la acción comunica va. Madrid: Taurus, 1999. Tomos I e II.
34 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
20 Hamilton, Alexander; Madison, James; Jay, John. “The Federalist”. In: Hutchins, Robert Maynard
(Ed.). American State papers; The Federalist; J. S. Mill. Chicago/London/Toronto: Encyclopaedia Bri-
tannica, INC., 1952. Para uma apreciação das dis nções entre os federalistas Alexander Hamilton,
James Madison e John Jay, cf. Losurdo, Domenico. Democracia ou Bonapar smo: Triunfo e Deca-
dência do Sufrágio Universal. Tradução de Luis Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: UFRJ; São Paulo:
UNESP, 2004.
21 Segundo Rosanvallon, Pierre. Op. cit., para manter à distância os limites ameaçadores da democra-
cia, Li ré, Grévy, Ferry, Gambe a, pais fundadores da IIIe. Republique Française, têm no governo
representa vo uma filosofia restri va da democracia, interpretação “à esquerda” da elaboração de
John Stuart Mill alguns anos antes na Inglaterra, obra lida e comentada na França no fim dos anos
1860.
22 Cf. Siéyès, Joseph. Qu’est-ce que le er état? Paris: Imprimerie de Guiraudet, 1789. Versão digital.
Disponível em: h p://ia341237.us.archive.org//load_djvu_applet.php?file=3/items/questcequele-
e00sieygoog/questcequele e00sieygoog.djvu. Acesso em 2/4/2010.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 35
23 A tese é de Alexis de Tocqueville e a referência do texto re ra-se do tulo de seu livro. Tocqueville,
Alexis de. O An go Regime e a Revolução. 4. ed., Brasília: Editora da UNB, 1997.
24 Em Bodin, o termo que remete a Estado ou comunidade polí ca é República.
25 Somente na monarquia a soberania apresenta a unidade indispensável à autoridade, já que ela se
exerce por uma pessoa só, o príncipe. Na aristocracia – onde dominam uns poucos – e na demo-
cracia – onde o povo ocupa tal lugar –, o pluralismo das vontades par culares dos membros do
soberano ameaça sua unicidade.
26 A prá ca de uma soberania una e indivisível estará presente desde o absolu smo, passando pela
contenção jurídica do poder absoluto do Estado, até as formulações mais recentes. “Espinha dorsal
da assim chamada Teoria Geral do Estado, essa elaboração teórica se desenvolve no começo do
século XIX com base na concepção de soberania como expressão do poder polí co ‘incontrastável’;
expande-se com o advento, décadas mais tarde, das doutrinas do direito público alemão sobre a
36 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
28 O Comitê Eleitoral, por exemplo, ao ins tuir programas associados aos representantes, substancia-
liza o voto do eleitor, muito embora a ideia de mandato impera vo seja contraditória com relação à
concepção dos representantes como “sábios do interesse geral”. Por outro lado, ao pré-selecionar
os candidatos, o comitê eleitoral contribui procedimentalmente para limitar a soberania do “povo”.
O comitê eleitoral é um elemento de democra zação pois que redige a “vontade geral” tal como
compreendida pelos candidatos permi ndo uma escolha não personalista, mas é também, por ou-
tro lado, um instrumento de oligarquização da polí ca. Comitês eleitorais não são par dos polí -
cos no sen do moderno porque não têm permanência, sendo organizados somente em períodos
eleitorais. Ambivalência analisada por Ostrogorski, Michels ou Daniel Halévy contra a República dos
comitês. Cf. Rosanvallon, Pierre. Op. Cit.
38 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
29 O general Boulanger em discurso em 4/7/1888: “Numa democracia, as ins tuições devem se apro-
ximar o máximo possível do governo direto... é por isso que acho indispensável introduzir dentro da
cons tuição o jus ad referendum.” Alfred Naquet, principal teórico do boulangismo, propõe uma
ra ficação popular das leis cons tucionais (1875). Rosanvallon, Pierre. Op. cit., p. 288.
30 “On constate de la sorte paradoxalement que la République du sufffrage universel concevait l’espace
poli que et les condi ons de son anima on de façon beaucoup plus limitée et moins diversifiée que
les régimes censitaires précédents. Comme si l’universalisa on du suffrage avait conduit à polariser
le poli que. Alors que les doctrinaires avaient célébré l’entrée dans un nouvel âge de la publicité
pour rela viser la restric on du droit de vote, les pères fondateurs sacralisaient le suffrage en même
temps qu’ils appelaient à en faire le seul canal légi me de l’expression poli que.” Rosanvallon, Pier-
re. Op. cit., p. 315.
31 A noção de opinião pública se torna instrumental no campo polí co. Situa-se entre a expressão das
urnas e os clamores incontroláveis da rua. Trata-se de uma forma de manifestação permanente
ins tuída.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 39
32 A esta polarização corresponde também a dis nção entre uma democracia procedimental e
uma democracia finalís ca. No primeiro caso, é democrá co o sistema cujos critérios proce-
dimentais sustentam a igualdade da par cipação polí ca dos cidadãos. No segundo, somente
pode ser democrá co o sistema que efe vamente sa sfaz os interesses da maioria. A formula-
ção tem parentesco evidente com a teoria de Carl Schmi , segundo a qual a democracia se de-
fine por um princípio de iden dade entre o governante que ocupa o Execu vo, e os governados.
Neste caso, a representação democrá ca estaria assentada no princípio da iden dade como
qualidade social e numa espécie de “encarnação” no representante, enquanto a representa-
ção liberal corresponderia ao princípio de delegação. A questão do corpora vismo e do neocor-
pora vismo situa-se precisamente neste intermediário entre as duas concepções concorrentes
de democracia. A análise desse importante tema, entretanto, não cabe nos limites deste texto.
Sobre esse tema, cf. ARAÚJO, Gisele Silva e SANTOS, Rogerio Dultra. “O Cons tucionalismo an libe-
ral de Carl Schmi : democracia substan va e exceção versus liberalismo kelseniano”. In: FERREIRA,
Lier Pires [et al]. Curso de Ciência Polí ca: grandes autores do pensamento polí co e contemporâ-
neo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
40 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
de que a universalização do voto tornava o direito de petição sem objeto. Ele então
deixará de constituir um direito político, uma espécie de “canal de representação”
alternativo ao Legislativo, permanecendo exclusivamente como direito pessoal afeito
a questões privadas.
A primeira metade do século XX, como se viu, será palco da contraposição entre o
Estado Liberal e o Estado do Bem-estar Social, bem como entre a democracia liberal e
a democracia substantiva. A partir dos anos 1960, as associações civis, os movimentos
sociais e os ideais de “autogestão democrática” recuperam e atualizam aqueles pri-
meiros movimentos em torno de uma democracia social baseada no controle operário
das indústrias. Não se cogita, então, a necessidade de uma homogeneidade social e
unidade política prévias, e a recusa do monismo representativo não se faz em favor
de um monismo identitário. Ao contrário, pensa-se numa participação ampliada da
população em múltiplos setores da vida social, como escolas, bairros, movimentos
étnicos e de gênero, entre outros.33 Desenha-se, paulatinamente, um meio termo en-
tre a absolutização da representação eleitoral e a análoga absolutização da identidade
plebiscitária. Aqui, não há unidade prévia que sustente uma ligação entre povo homo-
gêneo e o Estado por identificação – base da democracia substancial –, mas tampouco
há uma operação de unificação do pluralismo social pela via aritmética eleitoral – base
da democracia representativa.
A disputa entre as várias concepções de democracia pode ser simplificada, em ter-
mos esquemáticos, sob a relação entre a constituição sociológica e a forma política das
sociedades modernas. Enquanto na democracia representativa a sociedade se mantém
diferenciada e se pretende unificá-la na política – uma relação diferenciação-unidade
–, na democracia substancial exige-se a homogeneidade social prévia, para fundamen-
tar a unidade da decisão política – uma relação unidade-unidade. Um arranjo no qual
a sociedade diferenciada possui múltiplos canais de expressão política – o binômio
diferenciação-pluralismo – teria sido vetado pela afirmação da “República Absoluta”,
baseada na concepção, tributária do Antigo Regime, de uma soberania una e indivisí-
vel, gerando os dois tipos de monismo político em franca oposição – o representativo
e o identitário.
33 Na concepção do autor, o movimento do final dos anos 1960 representava a recusa e contestação
de todos os sistemas centralizados e hierárquicos, traduzindo desta maneira a aspiração a uma ex-
tensão generalizada dos procedimentos democrá cos à gestão de diferentes esferas da vida social.
Tratava-se da busca da autogestão nas empresas, na cidade, escola, família, tendo como resultado a
mul plicação dos comitês de bairro, associações de consumidores, grupos de intervenção pública –
os chamados Novos Movimentos Sociais.
42 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
também válidos os outros caminhos, que não o voto, através dos quais ordinariamente
se fazem valer as variadas vontades.
O monismo representativo se sustenta na legitimidade exclusiva da representação
política propriamente dita, chamada por Rosanvallon de “representação procedimen-
tal”, porque referida aos procedimentos que fazem das normas legislativas legítimas.
O monismo identitário rechaça a representação, mas insiste num único lócus para a
soberania, o Executivo. A democracia compreendida através da noção de soberania
complexa, entretanto, exige que a institucionalidade estatal esteja “aberta” à manifes-
tação da vontade, retomando a função política do direito de petição perdida com a
absolutização do voto ou da aclamação. Ao lado da “representação procedimental”,
podem ser admitidos o referendo e o plebiscito, excluído o requisito homogeneizante
da democracia substantiva baseada no monismo identitário, e pode-se admitir a “re-
presentação funcional”, institucionalizada e reconhecida pelos textos que organizam a
vida pública.37 A formulação não significa certamente que toda e qualquer organização
institucional pública seja democrática, mas também rechaça a ideia de que somente a
instituição do sufrágio universal tem a legitimidade de dar voz e dar suposta efetivida-
de à vontade do “povo”. Dentre as instituições derivadas da organização da esfera pú-
blica que se põem potencialmente como canais de representação, está o Poder Judiciá-
rio, a jurisdição constitucional ou ordinária, o “acesso à justiça” individual e coletivo.38
O fenômeno da judicialização da política, com o “protagonismo do Poder Judiciá-
rio” que supostamente lhe corresponde, foi visto com frequência como usurpação da
soberania popular. Outras interpretações, entretanto, veem a “crise da separação dos
poderes” exatamente como uma renovação – ainda incerta – das relações entre Poder
37 “Les représentants du peuple sont certes d’abord ceux qu’il a élus. Mais pas uniquement. Peuvent
également être considérés comme des représentants ceux qui parlent, qui agissent et qui décident
‘au nom du peuple’. C’est notamment le cas des juges, qu’ils soient judiciaires ou cons tu onnels;
mais c’est aussi, par extension, le caractère que revêtent de mul ples autorités de régula on. La
representa vité est en effet une qualité qui peut avoir deux origines: fonc onnelle ou procédurale.
La représenta vité fonc onelle est celle qui est organisée et reconnue par les textes organisant la
vie publique, qu’il s’agisse des lois ou surtout de la Cons tu on, alors que la représenta vité procé-
durale est directement constatée par le corps électoral. La vision moniste du poli que n’a longtemps
voulu reconnaître que la représenta vité procédurale, dérivant de l’onc on électorale. Avec toutes
les conséquences que l’on connaît. La perspec ve d’une souveraineté complexe rompt avec ce e
approche, en faisant de la reconnaissance du pluralisme représenta f la clef d’un type de gouverne-
ment plus fidèle et plus a en f à la volonté générale.” Rosanvallon, Pierre. Op. cit., p. 406.
38 Porque as ins tuições estatais não são automa camente democrá cas ou expressam canais de re-
presentação, não se trata aqui de considerar o Poder Judiciário como o “guardião das promessas”
não cumpridas pela ins tucionalidade polí ca da modernidade. Cf. Garapon, Antoine. Le Gardien de
Promesses. Paris: Ed. Odile Jacob, 1996.
44 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A judicialização da política é frequentemente analisada como derivada da juridifi-
cação [das relações sociais] produzida pelo Estado do Bem-estar Social, ponto comum
39 A rejeição de todo o direito cons tucional como limitador da soberania encarnada no legisla vo, no
extremo, faz com que somente o “capricho do instante” possa ser considerado democra camente
admissível. Cf. Rosanvallon, Pierre. Op. cit.
40 “On peut considérer dans ce e perspec ve le droit comme une sorte de mémoire de la volonté gé-
nérale, dont Victor Hugo a donné una belle formule: Le droit rayonne dans l’immuable; le suffrage
universel agit dans le momentané. Le droit règne; le suffrage universel gouverne. Rosanvallon, Pier-
re. Op. cit., p. 414.
Parte I | Capítulo 2 | Judicialização da política: as possibilidades da democracia... 45
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Boletim CEDES/IUPERJ. Rio de Janeiro, out./nov. 2009. Disponível em: www.
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BODIN, Jean. A República. In: CHEVALIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de
Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1996.
41 “Na medida em que programas legais dependem de uma concre zação que contribui para de-
senvolver o direito – a tal ponto que a jus ça, apesar de todas as cautelas, é obrigada a tomar
decisões nas zonas cinzentas que surgem entre a legislação e a aplicação do direito –, os discursos
acerca da aplicação do direito têm que ser complementados, de modo claro, por elementos dos
discursos de fundamentação. Esses elementos de uma formação quase-legisladora da opinião
e da vontade necessitam certamente de outro po de legi mação. O fardo desta legi mação
suplementar poderia ser assumido pela obrigação de apresentar jus ficações perante um fórum
judiciário crí co. Isso seria possível através da ins tucionalização de uma esfera pública jurídica
capaz de ultrapassar a atual cultura de especialistas e suficientemente sensível para transformar
as decisões problemá cas em foco de controvérsias públicas.” Habermas, Jürgen. Direito e Demo-
cracia. Op. cit., v. II, p. 183.
48 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
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3
Judicialização da Política e representação
funcional no Brasil contemporâneo:
uma ameaça à soberania popular?
Sumário:
1. Introdução.
2. Crise de representação políƟca e a emergência da judicialização.
3. A emergência da representação funcional: crise da representação políƟca?
4. Limites da judicialização e da representação funcional.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo visa analisar o fenômeno da judicialização da política e as suas conse-
quências como o fortalecimento das representações funcionais estatais do Direito (a
exemplo do Ministério Público, da Magistratura, da Defensoria Pública, além de ou-
tras agências estatais) mediante a crise das representações políticas tradicionais, como
os partidos políticos.1 O artigo propõe fazer um mapeamento das posições favoráveis
ou críticas ao tema que, ou percebem na judicialização a criação de novos canais de
* Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor de História do Direito da Faculdade de Direito da UERJ.
Professor de Direito da Cidade do Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Procurador
do Estado do Rio de Janeiro.
1 Este arƟgo é uma versão ampliada e modiĮcada do trabalho apresentado no XIV Congresso Brasi-
leiro de Sociologia (SBS) e no XXVII Congresso ALAS 2009. Agradeço os comentários sobre o texto,
especialmente de Marco Aurélio Nogueira e Carla Giani Martelli (SBS) e Martha Diaz Villegas e Mar-
celo Pereira de Mello (ALAS).
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 51
2 “[...] o poder de julgar, tão terrível entre os homens, não estando ligado nem a uma certa situação,
nem a uma certa proĮssão, torna-se, por assim dizer, invisível e nulo.” (Montesquieu, 1982: 188).
52 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
não pode mais se ocultar, tão facilmente, detrás da frágil defesa da concepção do
direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua
decisão de forma “neutra”. É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e
política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha
diversa.
Com efeito, o Poder Judiciário muda no decorrer do período de ascensão e de-
clínio do Estado de Bem-Estar, tornando-se o “Terceiro Gigante” diante dos demais
poderes. De um lado, percebemos um Legislativo marcado por uma intensa fragmen-
tação, sobretudo nas sociedades pluralísticas, nas quais a maior parte dos políticos,
eleitos localmente, é vinculada eleitoralmente a certos grupos e categorias. Os valores
e prioridades desses políticos são, por isso, muito amiúde, valores e prioridades locais,
corporativos ou de grupo. De outro, a emergência do gigantismo do Estado interven-
tor, administrativo e burocrático característico do Welfare State. Cappelletti chama
a atenção para o perigo dos abusos por parte da burocracia, a ameaça da situação
de “tutela” paternalística, quando não da opressão autoritária, sobre os cidadãos por
parte do onipresente aparelho administrativo e, por isso, ao mesmo tempo distante,
inacessível e não orientado para o seu serviço (Cappelletti, 1993: 44-45).
Cappelletti observa que pelo fato de o “terceiro poder” não poder desconhecer
as profundas transformações do mundo real, impôs-se aos juízes um novo desafio. A
Justiça constitucional, especialmente na forma do controle judiciário da legitimidade
constitucional das leis, constitui um aspecto dessa nova responsabilidade. Como de-
monstrou a evolução de número crescente de países no Estado moderno o legislador-
gigante não poderia mais, sem gravíssimas consequências, ser subtraído do controle.
E, destaca Cappelletti, um dos aspectos dessas novas responsabilidades foi o cresci-
mento sem precedentes da Justiça administrativa, i.e., do controle judiciário da ati-
vidade do executivo e de seus derivados. Assim sendo, o Judiciário, ao elevar-se ao
patamar dos outros poderes, torna-se, enfim, o terceiro gigante, capaz de controlar o
legislador “mastodonte” e o “leviatanesco” administrador (Cappelletti, op. cit.: 46-47).
Habermas, por seu turno, em sua obra Teoria da Ação Comunicativa, na qual an-
tecipava algumas das questões que voltaria a tratar em “Direito e Democracia: entre a
facticidade e validade”, enfoca a invasão do mundo vida pela integração sistêmica por
intermédio do conceito de juridificação. Por juridificação (Verrechtlichung) entende-se,
em termos gerais, a tendência que se observa nas sociedades modernas a um aumento
do Direito escrito. Nesta tendência podemos distinguir entre a extensão do Direito,
i.e., a regulação jurídica de novos assuntos sociais regulados até o momento de ma-
neira informal, e o adensamento do Direito, o que significa a decomposição de uma
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 55
lei global em várias matérias particulares, i.e., leis individualizadas de acordo com a
matéria jurídica (Habermas, 1999: 504).
O autor propõe uma sequência tipológica para a constituição da juridificação: a
primeira onda de juridificação conduziu ao Estado burguês que se desenvolveu na
Europa Ocidental durante o período do Absolutismo. A segunda levou ao Estado de
direito que adotou uma forma paradigmática na monarquia alemã do século XIX. A
terceira conduziu ao Estado democrático de direito, que se difundiu na Europa e nos
EUA como consequência da Revolução Francesa. Esta última diz respeito ao Estado
social e democrático de direito, cuja institucionalização, no curso do século XX, foi
fruto das lutas do movimento operário europeu (Habermas, 1999: 504-505). Nessa
última onda, Habermas observa que se acentuou a colonização da sociedade pelos
subsistemas Economia e Estado, já que se faziam mais complexos em consequência
do crescimento capitalista e penetravam cada vez mais profundamente na reprodução
simbólica do mundo vida. O resultado desse processo foi a juridificação das relações
informais da sociedade como no âmbito familiar e educacional:
La tendencia a la juridificación de esferas del mundo de la vida informalmente
reguladas se impone en un ancho frente, cuanto más reconociblemente quedan
sometidos el tiempo libre, la cultura, las vacaciones, el turismo, etc., a las leyes
de la economía de mercado y a las definiciones del consumo de masas; cuanto
más manifiestamente se acomodan las estructuras de la familia burguesa a los
imperativos del sistema ocupacional; cuanto más palpablemente asume la es-
cuela la función de distribuir oportunidades profesionales y existenciales, etc.
(Habermas, 1999: 520).
Como podemos perceber, com a crise de representação do Legislativo e o cresci-
mento da intervenção econômica e regulatória do Executivo, o Judiciário sofreu uma
“grande transformação”, tornando-se, efetivamente, o “Terceiro Gigante”. Logo, o Ju-
diciário veio a se afirmar como espaço de resolução de conflitos e travando relações
de força – nem sempre harmoniosas – não só com as demais instituições dos poderes
republicanos (Legislativo e Executivo), como também com a mídia e o mercado. Desse
modo, os atores do Judiciário começam a exercer um papel de destaque na democra-
cia contemporânea na representação dos interesses coletivos e difusos da sociedade.
Essa mudança de papel dos operadores e das instituições jurídicas ultrapassou os
terrenos europeu e norte-americano, e podemos perceber a repercussão desse fenô-
meno em solo latino-americano. Contudo, deve-se ressaltar a especificidade do cres-
cimento do Judiciário no contexto latino-americano em relação aos países de tradição
liberal, já que a história latino-americana foi marcada, ao longo de décadas, por regi-
mes militares que desrespeitavam os direitos humanos e controlavam a arena política
56 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
e jurídica desses países. Jorge Correa Sutil (2000) destaca que o estabelecimento de
sistemas políticos democráticos, ou o retorno à democracia, é o fator que tem provo-
cado a reforma judiciária na América Latina recente, e o modo como esse fenômeno
tem contribuído para aumentar a importância do papel do Judiciário sob as novas
condições políticas. Em muitos países latino-americanos, a história de suas transições
recentes para a democracia tem estado tão emaranhada com a história de como lida-
ram com as violações passadas dos direitos humanos, que é quase impossível falar de
uma sem discutir a outra.
A transição argentina pode exemplificar essa situação, pois a restauração de seu
sistema democrático quase coincide com o processo público contra os generais que
estiveram no poder e foram julgados por suas responsabilidades nas violações aos
direitos humanos, processos que foram televisionados integralmente. Os juízes e suas
habilidades de fazerem cumprir o estado de direito tornaram-se, assim, um dos prin-
cipais atores dos novos tempos políticos. De acordo com Sutil, daquele dia em diante,
o Judiciário argentino vem se transformando num fórum no qual os cidadãos falam,
discutem e legitimam muitas de suas reivindicações políticas (Sutil, 2000: 285).
A transformação do Judiciário latino-americano, enquanto espaço público que
visa a solucionar os conflitos e distribuir justiça às camadas mais pobres e desorgani-
zadas da população, deve-se, também, à crise, de um lado, do modelo do Estado de
Bem-Estar Social e do sistema Legislativo/partidário e, de outro, o fortalecimento da
economia de mercado. Como ressalta Jorge Correa Sutil (2000: 287 e 295):
Uma economia de mercado aberto descentraliza os fóruns de resolução de dis-
puta. Enquanto o governo era o grande investidor nas sociedades latino-ame-
ricanas, que controlava os preços, os sindicatos e a maioria dos empregos, os
partidos políticos e as instituições do Executivo e Legislativo eram os fóruns
mais importantes onde se colocavam as expectativas e as soluções dos conflitos
entre os grupos sociais. Os conflitos mais importantes que surgem hoje em dia
na América Latina normalmente não acabam mais em exigências para o governo
mudar o modo como os benefícios sociais são distribuídos. Ao contrário, os
agentes privados se confrontam no mercado ou nos tribunais. [...] Durante o
século XX na América Latina, os governos, os partidos políticos e várias institui-
ções públicas usaram a linguagem da justiça social e da dignidade humana. Os
não privilegiados aprenderam por mais de 50 anos como se integrar à sociedade
e conseguir os benefícios sociais por meio desses canais políticos. Mas hoje esses
canais políticos perderam muito de seu peso. O Judiciário, que com certeza não
tem sido na tradição latino-americana um fórum importante para os não privi-
legiados apresentarem as suas reivindicações, pode tornar-se, finalmente, sob as
novas condições, um lugar importante para integrar a justiça social.
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 57
3 Vide as mega operações: Anaconda, Hurricane, Abate Harina, Praga do Egito, Cavalo de Troia, Medusa,
Vampiro, Sanguessuga, Toque de Midas, Narciso, Turko, Gladiador, SaƟagraha e Pathos empreendidas
em conjunto pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal.
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 59
4 Embora sejam deĮnidos como “defensores” da sociedade, esses operadores se reconhecem como
agentes do Estado. Segundo um defensor público “É importante ressaltar que a presença do De-
fensor traz para o presídio a presença estatal. O Defensor lá dentro representa o Estado não só na
condição jurídica de atender, mas também uma função extra de Įscalização da unidade para ver os
direitos do preso, as condições de alojamento, trabalhando ao lado das direções das unidades e do
Desipe.” (MoƩa, 2009: 77).
5 Por accountability entende-se a responsabilidade (ou responsabilização) do agente estatal em re-
lação ao dinheiro público (ou gastos orçamentários). Em arƟgo publicado pela Revista de Adminis-
tração Pública (RAP) no 24, v. 2, 1990, “Accountability: quando poderemos traduzi-la para o por-
tuguês?”, Ana Maria Campos aponta as impossibilidades de se traduzir esse conceito à realidade
60 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
concorrendo diretamente com outras representações funcionais estatais que têm como
princípio normativo a avaliação e controle com base na lei de responsabilidade fiscal,
notadamente os Tribunais de Contas.
A forma de atuação desses agentes públicos estatais provoca uma nova leitura do
conceito de Estado, embora ainda não seja empregada pela maioria dos pesquisado-
res no campo do Direito, ou mesmo da Ciência Política (em especial pelo enfoque
das teorias sistêmicas, ou neoinstitucionalistas e mesmo no marxismo ortodoxo).6
No campo jurídico ainda prevalece a análise de Hans Kelsen (1990), que conceitua o
Estado como uma pirâmide normativa, fechado, impermeável à sociedade, opaco em
si, sem fissuras e contradições internas. Ao contrário, as ações do Ministério Público,
como as da Defensoria Pública e da Magistratura, incluindo também a Polícia Federal,
os Tribunais de Contas e as Agências Reguladoras conduzem a um outro olhar sobre
o Estado, mais próximo do de Nicos Poulantzas (1978), cuja definição do conceito
de Estado é baseada numa perspectiva relacional, i.e., o Estado é definido como uma
arena de conflitos entre as classes e os grupos sociais, e permeado de fissuras e contra-
brasileira ao aĮrmar que inexiste, de um lado, esse senƟdo que o conceito evoca na dogmáƟca do
direito administraƟvo e, de outro, ainda mais importante, a ausência de uma cultura republicana
e transparente por parte dos agentes públicos na esfera administraƟva burocráƟca. Essa posição
tem sido contestada em arƟgos mais recentes. Veja principalmente O’Donnell, Guillermo in “Ac-
countability Horizontal”, Revista de Estudios sobre el Estado y la Sociedad, no 4, p. 161-188, 1998,
e o trabalho de Pinho, José Antonio Gomes do; Sacramento, Ana Rita Silva e. In Accountability: Já
podemos traduzi-lo para o Português?, apresentado no EnAPG/Anpad, 2008.
6 Nas pesquisas sobre o fenômeno da judicialização, no campo da Sociologia e na Ciência PolíƟca,
tem predominado a perspecƟva neoinsƟtucionalista em suas disƟntas correntes como a histórica,
a sociológica e a escolha racional como se pode perceber em diversos trabalhados publicados em
revistas e anais de congressos como: Carvalho, Ernani; Oliveira, Vanessa Elias. Judicialização da po-
líƟca: um tema em aberto. XXVI Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, Caxambú, 2002; Oliveira, Vanessa Elias. Judiciário e privaƟzações: existe uma judicialização
da políƟca? Dados. v. 48, no 3, 2005; Taylor, MaƩhew M. et. alli. O judiciário e as políƟcas públicas
no Brasil. Dados. v. 50, no 2, 2007; Carvalho, Ernani. Revisão judicial e judicialização da políƟca no
direito ocidental: aspectos relevantes de sua gênese e desenvolvimento. Revista de Sociologia e
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Dados. v. 50, no 2, 2007; Ferraz Jr., Vitor; et al. Em busca da judicialização perdida: o TSE e o proble-
ma da accountability. XXXI Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais.
Veronese, Alexandre. A judicialização da políƟca na América LaƟna: panorama no debate teórico
contemporâneo. VI Encontro da ABCP, 2008; Paula, ChrisƟane Jalles de. Ministério Público e accoun-
tability: invesƟgação criminal e controle externo da polícia no Rio de Janeiro. VI Encontro da ABCP,
2008; Casagrande, Cássio. Ministério Público e a Judicialização da PolíƟca. Sergio Antonio Fabris
Editor, 2008. Numa posição disƟnta do neoinsƟtucionalismo, é a perspecƟva sistêmica empregada
no trabalho de Mello, Marcelo Pereira de; Meirelles, Delton Soares. A “Cultura Legal” do cidadão de
Niterói. Cadernos CEDES, Rio de Janeiro, no 3, 2006.
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 61
dições. O Estado, portanto, não pode ser entendido como algo homogêneo, redutível
à sua normatividade porque, distintamente, há nele uma heterogeneidade de elemen-
tos na medida em que é formado por um conjunto de instituições diferenciadas no
campo de suas ações. Deve-se ressaltar que o Estado sendo definido como uma arena
de conflitos, não significa que as lutas só se travam entre as diferentes instituições, mas
também internamente às mesmas. Isto significa afirmar que os conflitos não se redu-
zem apenas aos estabelecidos entre os distintos poderes (o Judiciário, o Legislativo e
o Executivo), ou entre os ministérios, secretarias, agências reguladoras, autarquias e
tribunais, de modo concorrente – mas se dão, sobretudo, nas estruturas internas a
cada instituição e entre seus respectivos agentes.
Outro aspecto relacionado ao Estado contemporâneo, destacado por Poulantzas,
é que este incorpora também em seu espaço interno as demandas dos setores subal-
ternos da sociedade. O Estado concentra não apenas a relação de forças entre frações
do bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas e o polo dominado
da sociedade (Poulantzas, 1978: 155). É impossível compreender as organizações e
funções do Estado sem incluir seu papel de mediador do conflito entre os grupos
dominantes e os dominados. O alargamento dos direitos em direção às classes e aos
grupos dominados dá-se também dentro das instituições estatais, devido à inserção
e à influência que podem exercer no interior delas. Se as lutas políticas ocorridas no
Estado atravessam suas instituições, é porque essas lutas estão desde já inscritas na
trama do Estado do qual elas esboçam a configuração estratégica:
(...) é o Estado que está imerso nas lutas que o submergem constantemente. Fica
entendido no entanto que até as lutas (e não apenas as de classe) que extrapolam
o Estado não estão no entanto fora do poder, mas sempre inscritas nos aparelhos
de poder que as materializam e que, também eles, condensam uma relação de
forças (Poulantzas, 1978: 154).
Poulantzas também ressalta que as contradições e os conflitos sociais se inscrevem
no âmago do Estado por meio também das divisões internas no seio do pessoal de Estado
em amplo sentido (administração, judiciário, militares, policiais etc.). Mesmo se esse
pessoal constitui uma categoria social detentora de uma unidade própria, efeito da or-
ganização do Estado e de sua autonomia relativa, ele não deixa de ter um lugar no con-
flito social e é, então, dividido. Se as contradições dos setores dominantes se refletem
nos agentes do Estado, as pressões dos setores populares e suas contradições também
os atingem já que se encontram presentes na ossatura do Estado moderno. Decerto
que o Estado reproduz e inculca uma ideologia de neutralidade, de representar uma
vontade e interesses gerais, de árbitro dos conflitos sociais. É a forma que reveste a ide-
ologia dominante no contexto das instituições estatais: mas esta ideologia não domina
62 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
7 No campo das Ciências Sociais há uma pluralidade de paradigmas, o que as diferenciam das Ciências
Naturais, já que estas possuem paradigmas mais coesos, embora isso não signiĮque que não haja
mudanças ou conŇitos relaƟvos a interpretações de determinados fenômenos. Nas Ciências Sociais,
vários conceitos, como o de ideologia, possuem diferentes senƟdos. Se veriĮcarmos de Destut de
Tracy a Althusser, passando por Marx, Lukács, Mannheim, Gramsci, entre outros, estaremos falando
da mesma palavra, mas sem a mesma acepção conceitual. O mesmo se dá com o conceito de Esta-
do. O que há de semelhante nesse conceito em Weber, Kelsen, ou Poulantzas? Na mesma situação
encontra-se o conceito de simbólico, já que Lévi-Srauss, Gertz e Bourdieu tratam de modo disƟnto
e divergente a mesma palavra.
64 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Essa vertente aponta para uma larga mudança estrutural em direção à despoliti-
zação e neutralização da legitimidade democrática e privação da soberania popular
de sua responsabilidade política. Segundo Kalyvas, não é surpreendente que a deli-
beração da Corte Suprema, na qual se decidiu o resultado das eleições presidenciais
dos EUA em 2000, tenha sido elevada ao status de um modelo ideal para a política
consensual das sociedades liberais. Ademais, a apropriação gradual, pelo Judiciário,
do poder de tomar decisões políticas, e a proliferação de Cortes constitucionais dota-
das de poder de revisão judicial sobre a legislação, tem criado uma grande confusão
a exemplo de não saber onde reside a autoridade política suprema. Contrariamente à
subordinação prévia dos demais poderes ao Executivo, atualmente eles têm tomado,
antes, uma forma ambígua e elusiva que os impossibilita de situá-los e determiná-los
numa instância institucional específica.
Já no final dos anos 1970, Poulantzas afirmava a emergência de um estatismo
autoritário, no qual o poder executivo preponderava sobre os demais poderes, e for-
talecia o aparato repressivo de Estado, não se restringindo às ditaduras militares da
América Latina ou da África, mas também presente nos Estados “democráticos libe-
rais” (Poulantzas, 1978), a exemplo dos governos Thatcher e Reagan. Para Kalyvas,
vivemos hoje uma nova forma de Estado a qual ele denomina de legalismo liberal
autoritário. O legalismo liberal autoritário caracteriza-se pela gradual transferência de
poder do Executivo e do Legislativo para o Judiciário e concentração de poder por este
último, particularmente as tomadas de decisão dos juízes em tribunais de instância
superior. Isso significa, para Kalyvas, a formação de uma tendência contramajoritária,8
que caminha em direção à despolitização e à neutralização da legitimidade democrá-
tica e a privação da soberania popular de sua responsabilidade.
Para Kalyvas, de um ponto de vista histórico, estamos testemunhando um sur-
preendente ressurgimento e uma revigoração do domínio da lei e da legalidade liberal
formal. Essa restauração inesperada da legalidade formal, na forma do modelo de de-
mocracia procedural, que tem sido adotado pelas principais correntes do pensamento
contemporâneo, claramente ameaça esvaziar, enfraquecer e neutralizar o princípio da
soberania popular ao reduzi-la a um mero “fato de pluralidade” e a uma competição
institucionalizada entre as elites dominantes. Segundo esse autor, neste contexto em
que há uma tendência em regular tudo por meio de regras, procedimentos e normas
8 Numa entrevista dada ao Consultor Jurídico (Conjur) em 08/03/2006, o ex-ministro do STF Sepúl-
veda Pertence aĮrma que “os governos reclamam (estão no papel deles), jogam obviamente com a
lógica de resultado. Todo governo tem que ter um programa e quer crer que vai salvar o país com
ele. Não é da lógica do governante preocupar-se com uma ‘regrinha’ aqui, com um princípio ali. A
nossa lógica é outra. O nosso papel é contramajoritário.”
66 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
observa Michels (1982: 223 e 238),10 “A organização deixa assim, de ser um meio, para
tornar-se um fim. (...) Quem diz organização diz oligarquia”. As organizações partidárias
democráticas são, para Michels, objeto de uma curiosa contradição: lutam em princí-
pio contra a oligarquia do poder, pela instauração de autêntica democracia. Mas a sua
própria organização interna não é democrática. Essa oligarquização das instituições
estatais do Direito difere-se das partidárias (que é a referência de Michels), pois a sua
relação de poder oligárquico não diz respeito à sua organização interna, haja vista o
baixo nivelamento hierárquico nessas instituições, mas sim ao poder que esse tipo de
organização estatal possa exercer sobre a sociedade civil e as representações políticas.
Essa burocratização das organizações e de seus agentes expressa o que Poulantzas de-
nomina de burocratismo, expressando a ideologia dominante do conjunto da formação
capitalista. Em outras palavras, o burocratismo representa uma organização hierárqui-
ca, por delegação de poderes, do aparelho de Estado que tem efeitos particulares sobre
o seu funcionamento, como o monopólio burocrático do saber em relação a ausência
de saber das massas (Poulantzas, 1977: 344-345).
Embora Sadek destaque o baixo nível hierárquico entre os procuradores do Mi-
nistério Público devido a ampla discricionaridade que possuem (2008: 117), não sig-
nifica haver uma rígida relação de poder assimétrica dos procuradores sobre o corpo
de funcionários do Ministério Público. O tratamento de “doutor” é comum entre os
procuradores, como também no tratamento que lhes confere os funcionários de outras
carreiras do Ministério Público. Mesmo aqueles que exercem funções de conheci-
mento específico, a exemplo dos antropólogos do Ministério Público Federal, não são
tratados de forma isonômica, pois não são reconhecidos como “doutores”.
O corporativismo também é um aspecto que separa as instituições estatais do
Direito dos princípios republicanos. Um exemplo recente dessa dissociação entre
os interesses corporativos das instituições estatais do Direito e da sociedade civil foi
quando o Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público
votaram em causa própria pelo aumento salarial dos magistrados e dos procuradores
de justiça.11 Outros problemas como a insistência do nepotismo nos Tribunais de Jus-
10 Michels, embora seja associado à escola eliƟsta italiana, em sua análise sobre o poder da burocracia
e da “lei de bronze da oligarquia”, tem se apropriado (ainda que criƟcamente) de autores de esquer-
da: no campo marxista veja os elogios à obra de Michels por Bukharin, Nikolai. Tratado do Mate-
rialismo Histórico. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, s/d; veja também o conceito de burocraƟsmo
por Poulantzas, Nicos. Poder PolíƟco e Classes Sociais. São Paulo: MarƟns Fontes, 1977; e o livro de
Weber, Henri. Marxismo e Consciência de Classe. Lisboa: Moraes Editores, 1977; não pertencendo à
corrente marxista, a principal referência é Lefort, Claude. Éléments d’une criƟque de la bureaucraƟe.
Paris: Droz, 1971.
11 Esses fatos foram noƟciados pela mídia em novembro de 2006.
68 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
12 Vide as denúncias do CNJ de práƟcas de nepoƟsmo nos Tribunais de JusƟça do Rio de Janeiro (2006),
Piauí (2009), Paraíba (2009), Rio Grande do Sul (2009). Mais recentemente nos dias 26/02/2010 e
01/03/2010, o jornal O Globo publicou as denúncias do CNMP e do CNJ sobre os casos de improbi-
dade administraƟva do MP do Piauí e do TJ da Bahia, respecƟvamente.
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 69
13 Em resenha sobre o trabalho de Arantes, Maciel e Koerner (2002: 121-122) apontam limitações
interpretaƟvas do autor derivadas de equívocos metodológicos aplicados à pesquisa. Como obser-
vam os arƟculistas: “Uma primeira interpretação controversa é relaƟva às aĮrmações dos membros
do MP quanto a hipossuĮciência da sociedade civil, tomadas por Arantes como sinal inequívoco da
concepção tutelar (logo, autoritária e paternalista) da insƟtuição. Os conceitos de hipossuĮciência,
assim como o de tutela, têm dimensão jurídica – é provável que os integrantes do MP os tenham
interpretado nesse senƟdo em suas respostas – e, por isso, parece-nos no mínimo apressado dar-
lhes um conteúdo políƟco-ideológico imediato. O mesmo ocorre com as concepções de promotores
e procuradores do seu papel pedagógico e aƟvo na promoção dos direitos coleƟvos. Tais aĮrmações
consƟtuem não matéria de opinião mas remetem ao próprio desenho insƟtucional do MP e à fun-
ção proĮssional dos seus membros. Trata-se de atribuições e objeƟvos da organização que, legiƟ-
mados pela ConsƟtuição e reaĮrmados em diversos diplomas legais, mais traduzem o signiĮcado
atribuído às insƟtuições judiciais nas democracias contemporâneas do que expressam ideologias
estritamente corporaƟvas dos seus membros. Dessa óƟca, caberia perguntar se as organizações
de jusƟça seriam, de fato, tão impermeáveis e autônomas em relação às expectaƟvas, interesses e
orientações morais, presentes no ambiente sociocultural mais amplo. Conforme Ɵvemos oportuni-
dade de mostrar em pesquisa sobre a atuação do Ministério Público em conŇitos ambientais (Ma-
ciel, 2001), o movimento ambientalista emergente no contexto da transição democráƟca encontrou
em lideranças insƟtucionais fortes aliadas para a inserção das suas demandas na agenda políƟca
brasileira. A permeabilidade e abertura da insƟtuição a valores do ambiente externo acabaram por
conferir-lhe crescente visibilidade pública e legiƟmação social à sua intervenção nas disputas de
natureza coleƟva e difusa.”
70 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
14 Outra posição conservadora como a de Fonteles foi a do jurista Ives Gandra. Veja a sua entrevista
na Terra Magazine, no dia 05/03/2008, hƩp://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI2657289-
EI6578,00.html
72 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A emergência dos atores do direito estatal no cenário político brasileiro, como vi-
mos, deveu-se a dois fatores: primeiramente, os dispositivos constitucionais de 1988
que fortaleceram as representações funcionais do direito e, em segundo, a crise de
legitimidade das instituições tradicionais da representação política, notadamente os
partidos políticos. Soma-se a esses dois fatores o desmantelamento do Estado de Bem-
Estar Social deixando desprotegida ampla parcela da população, que tem encontrado
nos juizados especiais e nas defensorias públicas espaços institucionais na defesa de
15 Vide o Título I da ConsƟtuição Brasileira de 1988 que trata dos Princípios Fundamentais. Para uma
críƟca da chamada “separação dos poderes”, veja os trabalhos de Althusser, Louis Montesquieu, A
políƟca e a história. São Paulo: MarƟns Fontes, 1977; e Aron, Raymond. As etapas do pensamento
sociológico. São Paulo: MarƟns Fontes, 2002, sobre a obra O Espírito da Leis, de Montesquieu. Veja
também os livros de Kelsen e Poulantzas citados neste arƟgo e nas Referências bibliográĮcas.
Parte I | Capítulo 3 | Judicialização da Política e representação funcional no Brasil... 73
seus direitos sociais. Em meio a esse novo quadro que vem se desenhando nessa dé-
cada, algumas instituições do direito estatal alcançaram grande projeção na atual con-
juntura política, especialmente o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal.
Embora a crescente inserção da judicialização e da representação funcional na
vida política nacional tenha provocado intensas críticas, sobretudo no que concerne
a seu aspecto elitista e contramajoritário, e na visão tutelar que esses agentes tenham
em relação à sociedade civil e ao cidadão “comum”, o fortalecimento político das ins-
tituições estatais do direito foi resultado mais da crise de legitimidade dos canais tra-
dicionais da política diante as demandas da sociedade civil. Diferentemente do que os
críticos da judicialização e da representação funcional afirmam, já há uma acentuada
interação entre a sociedade civil organizada e as instituições do direito estatal, sobre-
tudo nas questões relacionadas aos direitos humanos, consumidor e meio ambiente
(Maciel, 2001; Motta, 2008). Não há no Brasil, como no caso estadunidense apontado
por Kalyvas, uma identidade política e ideológica por parte dos operadores do direito
estatal com a perspectiva neoliberal, ou, em outras palavras, dos interesses privados.
Há, como observa Sousa Santos, nessas instituições estatais do direito, a formação
de um campo contra-hegemônico. De acordo com Sousa Santos (2008: 29-30),
é o campo dos cidadãos que tomaram consciência de que os processos de mu-
dança constitucional lhes deram direitos significativos – direitos sociais e eco-
nômicos – e que, por isso, veem no direito e nos tribunais um instrumento
importante para fazer reivindicar os seus direitos e as suas justas aspirações a
serem incluídos no contrato social. (...) hoje, esses cidadãos têm consciência de
que têm direitos e de que esses direitos devem ser respeitados pela sociedade.
Nos últimos trinta anos, muitos desses cidadãos organizaram-se em movimentos
sociais, em associações, criando um novo contexto para a reinvindicação dos
seus direitos.
De fato, as instituições político-partidárias perderam o seu oligopólio de repre-
sentação tendo de conviver com outras formas de representação, tanto as oriundas do
próprio Estado (como as do Direito), como também da sociedade civil, a exemplo das
ongs e das associações de interesses. A política se redefine e modifica o seu significado
ao ampliar o leque de seus atores. Ademais, as críticas à judicialização e à representa-
ção funcional, embora justas no que concerne as possibilidades de oligarquização das
instituições representativas diante à sociedade, perdem o seu foco quando definem
que o Estado (e as suas instituições) é autônomo, entendido enquanto um sujeito
dotado de vontade própria. A perspectiva relacional como a de Poulantzas (1978), ao
contrário, entende que qualquer instituição e organização é atravessada pelas contra-
dições e conflitos da sociedade. Assim, distintamente das visões totalizantes e imper-
74 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
meáveis sobre as instituições, o conflito de relações de forças faz parte da sua mate-
rialidade institucional. Desse modo, havendo poder sempre há resistência, e havendo
resistência sempre há inversões de forças nos espaços institucionais.
Isso significa dizer que as classes e grupos sociais dominados da sociedade não
estão excluídos dentro do aparato estatal, e não obstante não ocupem o papel de di-
rigentes, ou dominantes, no processo, têm encontrado ressonância em alguns canais
institucionais que internalizam as suas demandas dentro do viés legal. Desse modo,
realiza-se na democracia brasileira contemporânea uma nova configuração de institui-
ções e atores e que, de certo modo, acabam constituindo novas práticas políticas dire-
cionadas à ampliação dos direitos e de cidadania. Com a crise de algumas instituições
modernas como os partidos políticos, as instituições republicanas do direito estatal
tornaram-se um espaço para a criação (ou resistência) dos direitos, apesar da possi-
bilidade de sua tendência à oligarquização e ao burocratismo, ou de representação de
interesses de setores capitalistas hegemônicos dominantes da sociedade.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2008.
4
Entre politização e judicialização:
limites estruturais do direito e da política
Sumário:
1. Introdução.
2. A diferenciação do direito e da políƟca.
2.1. Sistema jurídico.
2.2. Sistema políƟco.
3. Judicialização da políƟca e poliƟzação do direito.
3.1. Direito, políƟca e Estado social.
4. Limites estruturais do direito e da políƟca.
5. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
Como os sistemas jurídico e político reagiram a mudanças estruturais como a crise
do Estado Social e o advento do modelo neoliberal? A diferença entre estas esferas foi
completamente anulada e a relação entre direito e democracia, diluída? O Judiciário
é um ator político? Qual o papel da magistratura: proteção de direito ou definição de
políticas? Há diferenças entre estes dois âmbitos? As modificações contemporâneas
redundaram na alteração da unidade, forma e consistência da política e do direito? Em
resumo: este artigo pretende, do ponto de vista macrossociológico, levantar algumas
hipóteses para compreender as transformações político-jurídicas processadas nas últi-
mas duas décadas do século passado.
* Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Lecce, Itália. Professor da Escola de Direito e
da Graduação em Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro).
Parte I | Capítulo 4 | Entre politização e judicialização: limites estruturais... 77
1 O conceito de diferenciação pressupõe a noção de forma: uma forma é a forma de uma disƟnção.
Esta ideia foi formulada por um matemáƟco, George Spencer-Brown, e transportada por Luhmann
para a sociologia. Segundo Luhmann, a idenƟdade só existe como resultado da diferença: para se
indicar qualquer coisa é preciso disƟnguir, vale dizer, “A” só é “A” à medida que é possível diferenciá-
la de “B” (cf. Spencer-Brown, 1979; Luhmann, 2002: 74; Luhmann e De Giorgi, 2000: 16-17; Schiltz
e Verschraegen, 2002: 55-78).
2 De acordo com Kelsen (1999: 353), “do ponto de vista de um posiƟvismo jurídico coerente, o direito,
precisamente como o Estado, não pode ser concebido senão como uma ordem coerciva de conduta
humana – com o que nada se aĮrma sobre o seu valor moral ou de JusƟça. E, então, o Estado pode
ser juridicamente apreendido como sendo o próprio direito – nada mais, nada menos”.
3 Ver, nesse senƟdo, Dworkin, 1989: 345-362.
4 Segundo Montesquieu, “Poderia acontecer que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega,
fosse, em certos casos, rigorosa demais. Mas os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a
boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados que não podem moderar nem sua
força, nem seu rigor. Assim, é a parte do corpo legislaƟvo que acabamos de dizer ter sido, em outra
oportunidade, um tribunal necessário que se mostra de novo necessária agora; sua autoridade su-
prema deve moderar a lei em favor da própria lei, sentenciando com menos rigor do que ela” (Livro
XII, Cap. VI, 50 parágrafo).
78 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
6 De acordo com Luhmann e De Giorgi, “a tentaƟva de descrever a sociedade pode ter lugar somente
na sociedade: tal descrição uƟliza comunicação, aƟva relações sociais e se expõe à observação”
(2000: 9).
7 Para a teoria da evolução, descrita da perspecƟva luhmanniana, é possível disƟnguir a sociedade
em quatro momentos evoluƟvos ou, para uƟlizar a terminologia sistêmica, em quatro formas disƟn-
tas de diferenciação dos sistemas: três pré-modernas e uma moderna. Aquelas pré-modernas são:
a sociedade segmentária (diferenciada por critérios naturais), a sociedade organizada com base
na disƟnção centro/periferia (diferenciado por critérios territoriais: cidadão/estrangeiro; romanos/
80 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
imposição de uma única alternativa não é poder, mas coação autoritária. Poder, ao con-
trário, é uma comunicação na qual ambos os lados (Alter/Ego; Poderoso/Subalterno)
interagem. Há poder quando o subalterno quer agir no mesmo sentido decidido pelo
poderoso. Para o subalterno, existe uma multiplicidade de alternativas: quando ele
escolher aquela que também fora objeto de escolha do poderoso, podemos afirmar
que houve uma situação de poder. Trata-se, portanto, de instrumento que condiciona
especificamente motivos para se aceitar ofertas de seleção: o subalterno poderia esco-
lher qualquer outra alternativa, mas selecionou a decidida pelo poderoso. Em outras
palavras: poder é um meio que torna a comunicação, que é um processo altamente
improvável, em um evento provável.
No sistema político, a forma de difusão do poder pode ser observada a partir da
passagem da diferenciação bidimensional para a tridimensional do poder (Luhmann,
1981: 45 et seq.; Campilongo, 2002: 90). O critério bidimensional, próprio da socie-
dade estratificada, é caracterizado pelo princípio hierárquico superior/inferior. Neste
caso, os destinatários do poder se organizam com base numa rígida hierarquia, na
qual o poder se restringe a uma recursividade permanente entre duas alternativas:
mandar ou obedecer.
A formação do modelo tridimensional implica um alargamento significativo da
complexidade, das alternativas no interior do sistema político. A diferenciação e de-
mocratização da política na sociedade moderna produziram uma expansão da comu-
nicação interna do sistema político, o que gerou, por sua vez, maior dependência in-
terna – unidade – e permitiu paradoxalmente a abertura do sistema ao seu ambiente:
somente sistemas consolidados podem interagir com demandas externas sem perder
a própria identidade. O sistema político moderno substituiu a fórmula hierárquica
superior/inferior pela tricotomia complexa público/política/administração. Esta pas-
sagem permitiu a constituição de uma circularidade política autorreferencial (Campi-
longo, 2002: 90). O público, formado pelo processo de democratização (eleições, por
exemplo), determina a política por meio dos partidos; a política controla a administra-
ção que, por sua vez, toma decisões que vinculam o público. Obviamente que, dada a
complexidade do sistema político, Luhmann vislumbrará a contracircularidade deste
poder: a administração controla a política pelo aparelhamento da burocracia estatal e
a política influencia o público por meio de ações e discursos destinados à satisfação de
interesse (Luhmann, 1981: 45).8
8 Ressalte-se que, em um texto mais recente, Luhmann acrescentou o conceito de “povo” como quar-
ta dimensão interna ao sistema políƟco (2002: 333).
84 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
9 Neste tópico, serão amplamente uƟlizadas as análises de Faria sobre o pensamento keynesiano e
sua leitura sobre a ascensão e a crise do Estado Social (1999: 113-128). Estas reŇexões serão rein-
terpretadas à luz da teoria dos sistemas de Luhmann.
Parte I | Capítulo 4 | Entre politização e judicialização: limites estruturais... 85
10 Note-se, portanto, que são falsas e implausíveis as críƟcas à teoria dos sistemas que lhe atribuem
um suposto aspecto liberal.
86 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
dos projetos sociais. Este fenômeno foi denominado por Luhmann de sobrecarga da
economia (Idem, ibidem).
A maior exigibilidade do meio dinheiro foi acompanhada pelos riscos de insta-
bilidade que aumentaram, particularmente, após os choques do petróleo nos anos
1970 (Faria, 1999: 116). A crise financeira que se instalou interrompeu o processo de
aceleração econômica. Quando a economia perdeu sua capacidade de produção de re-
cursos, as bases fiscais de financiamento dos gastos sociais começaram a se desmoro-
nar. As receitas tributárias não eram mais compatíveis com as despesas públicas. Este
fenômeno será conhecido como crise fiscal (Idem, ibidem: 119-120). Neste contexto,
o governo não consegue programar a economia, planejar em longo prazo ou reagir a
crises conjunturais. As despesas sociais, as insatisfações e as demandas por políticas
públicas “passam a crescer mais rapidamente que os meios de financiamento”. Esta
situação limite será chamada pela literatura política dos anos 1980 de ingovernabili-
dade (Idem, ibidem: 119).
Esta situação foi agravada à medida que a política repassou suas competências e
dificuldades decisórias ao meio direito. Durante a evolução do Estado social, as po-
líticas públicas e as metas governamentais foram normatizadas e transformadas em
direitos. E mais: foram constitucionalizadas como direitos fundamentais, isto é, não
apenas podem ser exigidas coercitivamente como também são reconhecidas como va-
lores vetores dos ordenamentos jurídicos nacionais. No período virtuoso do planeja-
mento estatal sobre a economia, havia compatibilidade entre a demanda por direitos e
a oferta do Estado para supri-los. Todavia, iniciada a crise fiscal, esta compatibilidade
é interrompida: a oferta torna-se inferior à demanda. Neste momento, surge o proble-
ma da crescente ineficácia das instituições jurídicas na efetivação dos direitos (Idem,
ibidem: 125). Esta fase pode ser identificada por jargões populares como o período
das “leis ilusórias” ou das “leis que não pegam”: não há recursos para a viabilização
dos direitos sociais.
A este problema o Estado reagiu de maneira informal e formal (Idem, ibidem:
126-127). Quanto à primeira, no interior da burocracia estatal, formou-se um Estado
informal que se utiliza de estratégias à margem da lei, como, por exemplo, a não regu-
lamentação de certos direitos ou sua aplicação de modo altamente seletivo. Pense-se,
por exemplo, no favoritismo ou no aumento da corrupção como mecanismo de não
submissão aos procedimentos. A reação formal, por sua vez, se dá por meio de uma
produção legislativa incontrolável e desconexa. Ao se deparar com o aumento da con-
flituosidade, fruto da ineficácia surgida, o Estado intervencionista reagiu por meio de
88 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
leis que buscavam responder aos problemas sociais específicos que se proliferavam.
Diante da ingovernabilidade, o Estado editava para cada conflito uma norma corres-
pondente. Sua incapacidade de resolver materialmente os problemas sociais era com-
pensada por uma aparente solução: a edição de novas leis. Isto levou a uma situação
de explosão ou hipertrofia legislativa (Idem, ibidem: 128 et. seq.).
Esta solução é compatível com as estruturas do sistema político: quando reivin-
dicações sociais não são atendidas, aumenta-se o nível da insatisfação. Uma estrutura
sistêmica dependente de eleições como é o caso da política não pode, no entanto, con-
viver com elevados patamares de insatisfação social. A edição de leis torna-se, assim,
uma estratégia política para se imunizar desta situação: ao legislar, o sistema político
passa à população o recado que está desempenhando sua função. E mais: desloca suas
competências decisórias para o judiciário e o responsabiliza perante a sociedade para
executar o modelo de bem-estar social. Este fenômeno foi denominado por Luhmann
(1981: 94-102) de sobrecarga do sistema jurídico. Com isso, o sistema político des-
loca o debate sobre as grandes questões políticas e a atenção da opinião pública para
os tribunais. Estes se tornam uma válvula de escape para, diante de escassez orça-
mentária, a política se desonerar da pressão por implementação de programas sociais.
O ponto-cego do ativismo judicial é a estratégia deliberada de politização do direito
desenvolvida pelo sistema político para se eximir de suas obrigações de consecução
do Estado Social em uma situação de crise econômica. Esta estratégia implica o deslo-
camento da insatisfação popular para o poder judiciário.11
A produção de normas voltadas para a resolução de conflitos e objetivos específi-
cos gerou inúmeros microssistemas e diversas cadeias normativas que não possuíam
qualquer nexo entre si (Faria, 1999: 127-128). A inflação legislativa produzia, assim,
uma confusão no interior do sistema jurídico, abalando sua unidade e coerência lógica
(Idem, ibidem: 128). E mais: como, apesar da ampliação da normatividade, os proble-
mas sociais se multiplicavam, a técnica legislativa passou a adotar conceitos jurídicos
abertos e indeterminados destinados à ampliação do alcance da lei sobre a proliferação
dos conflitos na sociedade (Idem, ibidem: 132). A inflação legislativa gerava, assim,
uma situação paradoxal: quanto mais leis eram produzidas para a solução dos confli-
tos, mais estes se agravavam. A multiplicidade de normas aumentava as antinomias e
a presença de conceitos jurídicos indeterminados elevava a possibilidade de decisões
diversas com base na mesma lei.
11 Lembre-se que o judiciário é um poder mais recepƟvo à insaƟsfação: se, de um lado, ele não se
submete a eleições, de outro, ao basear-se em processos adjudicatórios, sempre produzirá descon-
tentes.
Parte I | Capítulo 4 | Entre politização e judicialização: limites estruturais... 89
12 Este fenômeno foi denominado por Teubner (1984) de trilema regulatório: (a) progressiva “indi-
ferença” entre direito e sociedade; (b) a tentaƟva de colonização da sociedade por parte das leis;
(c) a crescente desintegração do direito por parte da sociedade.
90 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
13 Esta reconstrução das diferenças entre os Ɵpos de decisão do direito e da políƟca inspirou-se na
reŇexão de Campilongo (2002: 104 et seq.)
14 Segundo Luhmann, complexidade signiĮca o número de relações possíveis que se pode estabelecer
entre elementos (1975b: 204-220).
Parte I | Capítulo 4 | Entre politização e judicialização: limites estruturais... 91
mento mais conveniente ou simplesmente não decidir. A política trabalha com o valor
da conveniência e oportunidade. Quanto à reversibilidade da decisão, a sentença ju-
dicial faz coisa julgada e não pode ser controlada “a posteriori”. O direito se desvincula
por completo dos danos futuros produzidos por sua decisão. A política, por sua vez,
consegue rever suas posições, retroagir e buscar reverter os efeitos indesejados. A de-
cisão política pode ser revista: não faz coisa julgada. Por fim, quanto à temporalidade
da decisão, a decisão dos tribunais é definida por seu caráter retrospectivo: o ilícito
se configura no passado. O direito age no presente para corrigir um fato desviante.
De modo diverso, as decisões políticas são orientadas prospectivamente. Estabelecem
metas e se organizam com base em programas finalísticos (Idem, ibidem: 103).
Todas estas diferenças demonstram que o sistema político está mais apto a lidar
com políticas públicas do que o sistema jurídico. Como o direito não pode selecionar
suas demandas, rever e escusar-se de suas decisões, ao tentar controlar o futuro e
atingir finalidades políticas, produz danos imprevistos que não podem ser revistos.
A estrutura da decisão jurídica não está apta a controlar a temática política. Pense-se,
por exemplo, na judicialização da moradia. Os juízes estão limitados ao objeto do
processo: devem decidir sobre a questão da moradia. Não possuem, portanto, a ob-
servação abrangente dos demais problemas sociais nem a oportunidade de não decidir
em função da urgência de outra carência social. Além disso, permanece sempre aberto
o problema da legitimidade democrática do judiciário e sua natureza não majoritária.
O exemplo mais ilustrativo dos danos que esta subversão da política pelo direito pode
gerar é o caso “Operação Mãos Limpas”, na Itália. Ao ampliar politicamente os limites
operativos do sistema jurídico, a magistratura italiana desestruturou a organização
política e o sistema partidário italiano. Se, em um primeiro momento, pareceu que
as conquistas democráticas se alargaram com a destituição do governo Berlusconi, as
novas eleições que asseguraram a perpetuação de Berlusconi no poder implicaram a
consolidação de um cenário de destruição dos direitos constitucionais.
Se quando o direito toma uma decisão política gera enormes problemas, o contrá-
rio – quando a política submete o direito – não é menos catastrófico. Basta observar as
relações internacionais – principalmente, a segunda guerra do Iraque – para perceber
os riscos, os danos e a lógica perversa que se instaura quando o poder político igno-
ra – para não dizer, destrói – os procedimentos jurídicos e as regras do jogo.
Esta última é uma tendência que está se difundindo de forma crescente nos últi-
mos anos. Com a finalidade de eliminar a ameaça do terrorismo, o sistema político se
propôs a oferecer segurança para as relações sociais. Colocou-se na posição de guia ou
condutor de toda a sociedade e se atribuiu a função de produção de estabilidade. O
92 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
problema desta pretensão é que, de um lado, o sistema político extrapola seus limites
estruturais – lembre-se que sua função é tomar decisões que vinculem a coletividade;
de outro lado, esbarra na incerteza decisória que caracteriza as democracias. Quando
o sistema opera, não há como prever o resultado das decisões nem seus efeitos ou
consequências. A regra é simples: o futuro é incerto. Isto, obviamente, transforma
a questão da segurança em um mito, ou seja, em algo inalcançável. Como a políti-
ca é incapaz de realizar sua nova pretensão – produzir segurança –, instrumentaliza
o direito para legitimar suas escolhas e, com isso, passa a determinar as operações
judiciais. Tem-se, assim, uma situação de manipulação dos institutos jurídicos pelo
poder. O sistema jurídico perde sua autonomia: os direitos são destruídos em nome
da efetivação do princípio da segurança. Mas o direito também não controla o futuro:
o juiz não consegue controlar os efeitos de suas sentenças. Paradoxalmente gera-se
mais insegurança: quanto mais se busca segurança, mais se produz insegurança. Esta
circularidade mantém aberto o maior risco da desdiferenciação entre direito e política:
o risco do autoritarismo.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Parte I | Capítulo 4 | Entre politização e judicialização: limites estruturais... 93
Sumário:
1. O poder judiciário e seu papel na República.
2. O judiciário e o golpe militar de 1964: a trajetória para a acomodação.
3. Judicialização da políƟca e das relações sociais.
4. A judicialização da políƟca: apropriações, usos e conceitos.
5. A judicialização da políƟca e judicial review.
6. Judicialização das relações sociais.
6.1. Casos de judicialização de relações sociais.
6.2. Judicialização da morte II.
7. A expansão do poder judiciário e a urbanização da população brasileira.
8. Referências bibliográĮcas.
* Juiz de Direito do TJ/RJ, mestre em Ciência Polícia (IFCS/UFRJ) e doutorando em Ciência PolíƟca
(PPGCP/UFF).
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 95
que lhe estavam reservados. Em seus pareceres e petições, Ruy Barbosa (1928) mais
do que expor os argumentos em prol dos interesses que defendia, por vezes desenvol-
via maiores argumentos para convencer o Supremo Tribunal Federal de que ele tinha
poderes para apreciar certas questões, embora não os quisesse desempenhar.
Oliveira Vianna (1949: 230-231) afirmou que as liberdades civis somente não
naufragaram por completo, durante a Primeira República, em decorrência da descen-
tralização política operada, unicamente por causa da aplicação extensiva do habeas
corpus, inspirada em Ruy Barbosa, pois a descentralização republicana, estadualizan-
do a magistratura e fortalecendo os poderes das oligarquias representou indiscutivel-
mente um passo atrás, um verdadeiro regresso no sistema de garantia das liberdades
privadas.
Foi pela ação de Ruy Barbosa que o habeas corpus, concebido para a defesa da li-
berdade de locomoção, converteu-se em instrumento de proteção de qualquer direito
ou interesse individual, violados ou ameaçados por violência ou coação do indivíduo
contra qualquer ilegalidade. Mas, a reforma da Constituição em 1926 restringiu o
habeas corpus (art. 72, § 22) exclusivamente à garantia da indevida “prisão ou constran-
gimento illegal em as liberdade de locomoção”.
A ideia de que o Poder Judiciário brasileiro se fez poder político-institucional com
a República foi contestada tanto por Victor Nunes Leal (Leal, 1997: 231) quanto por
João Mangabeira (1943). Em contraposição, o Ministro Carlos Mário da Silva Velloso,
na apresentação do livro de Lenine Nequete, argumenta no sentido de que o Poder Ju-
diciário se transformara em efetivo poder do Estado com a República, o que encontra
apoio no pensamento de Lenine Nequete, de Aliomar Baleeiro1 e no de Lêda Boechat
Rodrigues.
Quanto à atuação específica do Supremo Tribunal Federal (STF) na Primeira Repú-
blica há afirmações contraditórias. João Mangabeira afirmou que o STF foi o poder que
“mais falhou” (Mangabeira, 1943: 186) na República, por haver deixado de cumprir o
papel político-constitucional que lhe competia. Para ele, o STF avançou muito timida-
mente no sentido de exercer o seu papel. E, ainda assim, a partir da ação de Ruy Barbosa
que fustigava seu funcionamento a exemplo dos julgados da Suprema Corte dos EUA.
Mangabeira atribuiu a Ruy Barbosa a concepção de que o STF mudaria a República se
houvesse nele uma maioria que exercesse as suas atribuições constitucionais.
1 Aliomar Baleeiro foi deputado udenista, parƟcipou da sessão do Congresso Nacional convocada em
01/04/1964, contra o disposto no regimento daquela insƟtuição, e que resultou na ilegal declaração
de vacância da presidência da república, quando se sabia, oĮcialmente, que o presidente da repú-
blica se encontrava no território nacional. Foi posteriormente nomeado ministro do STF.
96 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
eram nomeados pelo Presidente da República dentre candidatos indicados pelas oli-
garquias dominantes nos Estados e os Ministros do Supremo Tribunal Federal dentre
auxiliares seus ou membros do seu partido ou grupo político.
A indicação e controle sobre os juízes seccionais era de profunda relevância para
manutenção do poder da oligarquia estadual ou para afastamento dela. Enquanto rei-
nou a Política dos Governadores, o descumprimento de uma decisão do juiz seccional
era motivo para intervenção federal no Estado (art. 6o, § 4o da Constituição de 1891).
Além disso, o juiz seccional tinha atribuições constitucionais para julgar os conflitos
entre a União e os Estados e os crimes políticos.
Nos momentos de maior estabilização das instituições diminui a pressão política
sobre o judiciário e até se reforça seu papel de intérprete da lei e da Constituição. Já
no Império se encontra em carta dirigida pelo Conselheiro Saraiva a Nabuco de Araújo
defesa da “supervisão das eleições por um Poder Judicial constitucional e independente, para
punir a fraude e o abuso de autoridade” (Nabuco de Araújo apud Koerner, 1998: 91).
A intervenção dos magistrados para solução dos conflitos políticos era defendida
com o fim de que exercessem a função de árbitros da política, tal como exerciam a
função de árbitros dos conflitos civis. No entanto, a partidarização do judiciário na
Primeira República levou ao temor de sua politização e a Constituição de 1934 em seu
art. 68 dispunha que era “vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente
políticas”. Idêntica disposição era contida no art. 94 da Carta de 1937.
Pela Lei no 3.139, de 02/08/1916, conhecida como Lei Bueno de Paiva, foi reco-
nhecida a competência dos Estados para a qualificação dos eleitores e a regulamenta-
ção das eleições estaduais e municipais e foi confiada a qualificação para as eleições
federais exclusivamente às autoridades judiciárias. A lei satisfazia as potestades locais,
ao manter no âmbito local a qualificação dos eleitores para as eleições estaduais e mu-
nicipais e atribuía à autoridade judiciária a qualificação para as eleições federais, com
possibilidade de recurso para uma junta formada por uma junta estadual.
Se na Primeira República a nomeação do juiz seccional era cobiçada para fins de
controle da máquina estadual ou tomada das mãos da oligarquia oposicionista, com o
advento da criação da Justiça Eleitoral pelo Decreto no 21.076 de 24/02/1932 e edição
da Constituição de 1934 se pretendeu a despolitização de tais funções. “Na cúpula do
sistema estava o Superior Tribunal Eleitoral, que decidia as dúvidas e impugnações em estilo
judiciário, isto é, pelo alegado e provado e, segundo consta, sem interferência da atividade
partidária” (Leal, 1997: 268).
Assim, dispunha a Constituição de 1934 em seu art. 82, § 2o, “a” e “b” que o
Tribunal Superior e Tribunais Regionais da Justiça Eleitoral seriam compostos, pa-
98 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
No entanto, dizia que os juízes que fossem mantidos em atividade não poderiam
ser molestados em sua independência. Salienta que, se os funcionários administrati-
vos estão sujeitos à obediência ao chefe do Estado, os magistrados não podem estar,
sob pena de violação ao princípio da independência dos juízes, indispensável ao exer-
cício de suas funções, mesmo que não se esteja num regime de separação de poderes
(Vianna, 1991: 178). Disse ainda que nem nos regimes totalitários de então estavam
os juízes sujeitos à disciplina e hierarquia administrativa, bem como controlados no
exercício de suas funções, embora não tivessem a independência própria dos regimes
pluralistas, assecuratórios de direitos subjetivos individuais e garantidos pelo sistema
da separação de poderes.
A redação originária do art. 177 da Constituição de 1937, analisada por Oliveira
Vianna, atribuía ao Presidente da República poderes para durante seis meses decretar
tal aposentação. Mas a Lei Constitucional no 2, de 24/05/1938, transformou este prazo
em tempo indeterminado. Assim, os juízes estaduais, uma vez que a justiça federal de
primeira instância havia sido abolida, estavam sujeitos à permanência no cargo por ju-
ízo de conveniência e oportunidade dos governantes estaduais, que podiam igualmen-
te lhes afastar imotivadamente. No entanto, o Decreto Lei no 1.202, de 08/04/1939,
submeteu a aposentadoria dos juízes estaduais, antes de competência exclusiva dos
governantes estaduais, à prévia autorização do Presidente da República.
A necessidade de prévia autorização do Presidente da República para o afasta-
mento dos juízes não significou maior independência do judiciário em relação ao
mando local. Isto porque em sendo os governos estaduais, durante o Estado Novo,
submetidos à nomeação do Presidente da República, não tinham independência para
pronunciar julgamentos que pudessem ir de encontro aos interesses políticos reinan-
tes, fossem do Estado ou dos governantes.
Mas, a irregularidade do funcionamento institucional nem sempre decorreu da
falta de garantias à magistratura. Mesmo quando detentores de independência funcio-
nal, nem sempre os juízes se afastaram dos interesses menos escrupulosos das situa-
ções políticas locais.
As garantias legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas: transferência
para lugares mais confortáveis, acesso aos graus superiores, colocação de parentes,
gosto do prestígio, eis os principais fatores de predisposição política de muitos juízes.
(Leal, 1997: 243).
A formação dos juízes, associada ao papel desempenhado pela magistratura, na
República Velha, tornava-se cada vez mais incompatível com a nova ordem de 1930
que, impulsionada pelas transformações político-econômicas em curso, ia se estru-
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 101
turando. O resultado eram conflitos entre a situação anterior e a que ganhava nova
forma. Os conflitos eram quase sempre resolvidos com o afastamento de juízes de suas
funções por consideração de “imperiosas razões de ordem pública” ou de “outra natureza
relevante” (Nequete, 2000d: 67). Neste cenário, “Não instituiu, a Constituição de 1934,
ao contrário do que fora de esperar, a Justiça do Trabalho como órgão do Poder Judiciário”
(Idem, ibidem: 78).
Assim não se depreendeu relevante tensão entre o Poder Executivo e o Judiciá-
rio nos anos 1930-1945. Restabelecida a ordem constitucional pela Constituição de
1934, o judiciário já se encontrava domesticado. Durante o Estado Novo foi esta-
belecido que os crimes cometidos contra a segurança do Estado e a estrutura das
instituições ficariam sujeitos a uma justiça especial, conforme preceituava o art. 172
da Constituição de 1937, regulamentado pela Lei no 88 de 20/12/1937. Mas o Tri-
bunal de Segurança Nacional já se encontrava criado desde 1936 pela Lei no 244, de
11/09/1936, cuja constitucionalidade o Supremo Tribunal Federal reconhecera em
julgamento proferido em 11/01/1937 ao negar habeas corpus impetrado por João Man-
gabeira (Nequete: 2000d: 85).
Mas bastou que o Executivo começasse a fraquejar para que o judiciário, em ar-
roubo de independência, se expusesse. Assim, em 11/04/1945, “permitiu-se insurgir
– através da concessão de habeas corpus – contra alguma das condenações do Tribunal
de Segurança: sobretudo quando a ditadura já começava a dar mostras de estar próximo o
seu fim” (Nequete, 2000d: 85). O fato foi tratado em editorial do influente Jornal do
Comércio, de 12/04/1945.
A promulgação da Constituição de 1946 restabeleceu a feição do judiciário que
havia sido instituído pela Carta de 1934, sem grandes alterações, salvo quanto à inte-
gração da Justiça do Trabalho na estrutura do Poder Judiciário. Igualmente não restau-
rou a Justiça Federal de primeira instância, embora tenha instituído o Tribunal Federal
de Recursos para apreciação dos recursos nas causas de interesse da União Federal. Se
o desequilíbrio das forças políticas que atuaram no período de 1946 a 1964 era evi-
dente, com reiteradas tentativas de golpes, no âmbito do Poder Judiciário tais tensões
não se verificaram. O Poder Judiciário se manteve numa postura predominantemente
de autonomia e independência. Entretanto, a política não revelava acentuado grau de
judicialização, as relações sociais não se apresentavam judicializadas, nem havia direi-
tos e conflitos sociais a serem dirimidos por ele. Por outro lado, sua autonomia não se
revelava tão intensa a ponto de se apresentar como um “grupo inteiramente fechado”.
O árbitro das disputas políticas eram os militares. Estes se encontravam fortalecidos
com a campanha na Europa, que resultou no vencimento do nazismo e do fascismo.
102 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Tendo em vista a situação dada, o Poder Judiciário atravessou o período 1945 e 1964
sem maiores tensões. Estas somente voltariam a se manifestar, e com intensidade, após
os acontecimentos do 1o de abril de 1964.
ram estudo crítico de Victor Nunes Leal alusivo ao fim dos poderes do Presidente da
República para tal, ante a edição da Constituição promulgada que inovava a ordem
constitucional e não recepcionava aquele diploma da ditadura como legal.
Em 13/12/1968 é editado o AI-5, suspendendo todas as garantias ainda rema-
nescentes e possibilidade de pronunciamentos judiciais. Em 16/01/1969 são aposen-
tados compulsoriamente os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro
Lins e Silva. O AI-6, de 01/02/1969, retornou os números de ministros do STF para
onze e dispôs sobre a possibilidade de civis serem julgados pelos tribunais militares.
Em 17/10/1969 é outorgada, pelos três Ministros militares, a emenda Constitucional
no 1/1969 que deu nova e integral redação à Constituição. “Desde então, sobretudo com
a edição dos Atos nos 5 e 6, cessaram os conflitos, e o Poder Executivo-Revolucionário passou
a ter no Supremo um órgão administrativamente saudável, tecnicamente ágil (...), mas poli-
ticamente morto” (Vale, 1976: 166).
Domado ou cooptado,2 atravessou o judiciário os anos de chumbo, notadamente,
de 1969 a 1974, quando em 1974 o Ministro Eloy da Rocha, empossado em uma das
vagas decorrentes do AI-2, proferiu diante do Presidente da República Ernesto Geisel
discurso no qual dizia “da impossibilidade da vida judiciária pelo excesso de processos, e
de outras causas, acarretando a crise do judiciário” (Nequete, 1975: 103). O General-
Presidente encarregou-se de produzir estudo de tal crise e formulação de soluções.
Em abril de 1977, o Congresso Nacional foi fechado pelo General-Presidente da
República a pretexto de se decretar a Reforma do Judiciário, o que o fez através da
Emenda Constitucional no 7, de 13 de abril daquele ano. Hugo de Abreu, general
Chefe do Gabinete Militar, disse que “Na reunião do Conselho de Segurança Nacional,
então convocado para dar parecer sobre a decretação do recesso do Congresso, o Presidente
justificou a medida com a necessidade de aprovação da Reforma do Judiciário” (Abreu,
1979: 70).
A Emenda Constitucional no 7 estabeleceu a avocatória, possibilitando ao STF
dispor em seu regimento sobre a avocação de causas processadas perante quaisquer
juízos ou tribunais. A avocatória podia ser exercitada quando houvesse imediato perigo
de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, o que não tardou
em ser incluído no regimento interno daquela Corte e nele permaneceu3 até não mais
ser recepcionado pela Constituição de 1988. Igualmente impôs a edição de uma Lei
2 Salete Maccalóz aĮrma que a maior parte da magistratura, principalmente dos Tribunais Superiores
e Tribunais de JusƟça, logo se aliou ao regime, como estreitos colaboradores (Ver: Maccalóz, Salete,
2002: 13).
3 Ver art. 254, III do RISTF (Brasil, legislação, RISTF).
104 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), o que veio a ser feito pela edição da Lei
Complementar no 35/1979,4 que se mantém quase integralmente em vigor, com exce-
ção de poucas alterações, sobretudo pela LC no 37/1979. A Loman dispôs rigidamente
sobre a substituição nos Tribunais, o que jamais foi implementado, numa flagrante
ilegalidade pelos tribunais. Impôs a garantia de vitaliciedade dos juízes de primeira
instância somente após o segundo ano de exercício da judicatura e determinou a cria-
ção de órgãos especiais nos Tribunais de Justiça com mais de 25 desembargadores,
com atribuições administrativas e jurisdicionais da competência do tribunal pleno.
Se a justiça de primeira instância, ou magistratura de carreira, se revela indepen-
dente e profissional, nos tribunais locais se evidencia grande teor de politização ditada
pelas relações com os interesses locais. Os tribunais regionais, sobretudo os estaduais,
são expressão da concentração do poder local. Neste sentido o Órgão Especial, de
criação pela EC no 07/1977, outorgada pelo “Pacote de Abril”, é o extrato da concen-
tração do poder no tribunal local. É efetivamente o órgão dos tribunais estaduais e
regionais que detém o poder no âmbito da respectiva justiça. Ao Órgão Especial dos
tribunais compete decidir sobre promoções, remoções e julgamento dos juízes a eles
vinculados.
Estas foram as linhas mestras resultantes do “Pacote de Abril” (EC no 07/1977):
Avocatória, instituição de Órgão Especial nos Tribunais de Justiça e vitaliciamento dos
juízes de primeira instância somente após o exercício por dois anos.
A promulgação da Constituição de 1988 não alterou o formato deixado pelo “Pa-
cote de Abril”. Na Constituinte de 1987-1988, prevaleceu a visão da cúpula do Poder
Judiciário quanto ao seu modo de organização e funcionamento, tendo sido retirado
do STF tão somente a possibilidade de avocar causas ainda submetidas à apreciação
pelas instâncias inferiores. A cúpula de então era aquela constituída durante os go-
vernos militares, sendo o Presidente do STF, que presidira a instalação da Assembleia
Nacional Constituinte, Ministro José Carlos Moreira Alves, tendo sido Procurador-
Geral da República no período de 24/04/1972 a 24/04/1975 e nomeado para o STF
pelo General-Presidente Ernesto Geisel, em 18/06/1975.5
Conforme observamos inicialmente, o propósito das presentes considerações foi
estudar/investigar o grau de discricionariedade e arbítrio das decisões judiciais, bem
como as relações que possibilitam a reprodução dos grupos dominantes ou elite do
Poder Judiciário. Ante a ampliação da competência do Poder Judiciário, que nos re-
6 Dentre os muitos casos de natureza políƟca que levaram a sociedade à busca do Poder Judiciário
para liƟgar contra os poderes consƟtuídos encontram-se os planos econômicos sucessivamente edi-
tados a parƟr de meados dos anos 1980 e até o anos 1990, dentre os quais o “Plano Collor”, que
consisƟa de um pacote econômico que bloqueou por 18 meses os saldos em contas-correntes e
aplicações Įnanceiras, tabelou preços e pré-Įxou salários. InsƟtuído pela Medida Provisória no 168,
de 15/03/1990, com vigência a parƟr do dia seguinte, foi converƟda na Lei no 8.024, de 12/04/1990,
e teve sua duvidosa consƟtucionalidade manƟda pelos tribunais superiores.
106 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Na nova realidade posta em curso nos dois últimos decênios do século XX, a
judicialização da política passou a ser acontecimento notório e, por essa razão, cada
vez mais estudado pelas ciências sociais7 (Castro: 1997). Necessário ainda acrescer, no
que tange especificamente à Ciência Política, que entre os poderes do Estado, no Bra-
sil, o que tem sido menos visitado por profissionais desta área é o Poder Judiciário.8
Tal questão se torna evidente com base em consulta à literatura especializada. Inclu-
sive, julgamos correto considerar que muitos dos trabalhos sobre o Poder Judiciário
que foram realizados por cientistas políticos melhor se enquadram como trabalhos no
campo da sociologia,9 uma vez que mais voltados para o estudo das relações sociais
que para relações de poder, propriamente ditas.
No caso, importante levar em conta que o Judiciário, no Brasil, a exemplo de pou-
cos países no mundo, dentre os quais os Estados Unidos, conforme registra Lincoln
Magalhães da Rocha (Rocha, 1990), é um Poder e, como tal, deve ser objeto da análi-
se. Não basta estudar o Judiciário sob prisma sociológico ou jurídico, mas é necessário
que a Ciência Política o estude enquanto Poder, atenta às suas peculiaridades.
No exercício de funções governamentais, nos Estados ocidentais contemporâneos,
os sistemas de governo são modos de relação entre o Poder Legislativo e o Poder Exe-
cutivo. O modo como se estabelece este relacionamento, seja com a preponderância
de maior independência entre eles ou maior colaboração, ou a combinação de ambos
numa assembleia, propicia a formação dos sistemas básicos de governos legítimos,
quais sejam, presidencialismo, parlamentarismo ou convenção (Silva, 1991). E o pre-
sidencialismo com o sistema de separação de poderes, na forma como foi concebido
originalmente nos Estados Unidos, atribuiu dimensão política ao judiciário, quando
lhe incumbiu de aplicar as leis, com precedência das hierarquicamente superiores.
7 Castro diz que: “O funcionamento das cortes judiciais e seu papel na democracia têm sido pouco
estudados pela Ciência PolíƟca brasileira”.
8 Obra publicada em 1997 de autoria de José Ribas Vieira, Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca e
Eliane Botelho Junqueira, e que publicizou pesquisa orientada pelos dois primeiros, trouxe refe-
rência a esta busca de conhecimento do Poder Judiciário, sobretudo a parƟr dos anos 1990. “Os
anos 1990 vêm sendo marcados por esforço posiƟvo de desenvolvimento de invesƟgações cienơĮcas
sobre o Poder Judiciário no Brasil, principalmente através das pesquisas realizadas pelo InsƟtuto de
Estudos da Religião (ISER), pelo InsƟtuto Direito e Sociedade (IDES), pelo InsƟtuto de Estudos Econô-
micos e PolíƟcos de São Paulo (IDESP) e pelo InsƟtuto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
(IUPERJ) que contribuíram para um melhor conhecimento do Judiciário e de seus atores” (Junqueira
et alii, 1997: 15).
9 A doutora em Sociologia, Gisele Silva Araújo, em arƟgo apresentado no VIII Congresso Luso-Afro-
Brasileiro de Ciências Sociais, diz que “Os fenômenos da juridiĮcação das relações sociais e a judi-
cialização da políƟca têm sido objeto frequente das Ciências Sociais dos úlƟmos anos”.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 107
10 Montesquieu, Ɵdo como fundador da concepção da separação dos poderes em O Espírito das Leis,
reduzia o Poder Judiciário a um poder neutro ou “na boca da lei”, sem lhe reservar o poder de des-
consƟtuir atos do legislaƟvo.
11 Montesquieu, 1993: 179.
108 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
12 O Welfare state ou Estado do Bem-estar Social é o produto dos movimentos operários, de uma crise
do liberalismo e de um pacto social-democrata, ocorridos no inicio do século XX. As prestações es-
tatais do Estado do Bem-estar Social se reŇetem por um lado em leis que sustentam o capitalismo
organizado pelo Estado ante a crise econômica do Estado liberal e por outro lado a assunção de
papéis ante o reequilíbrio jurídico das desigualdades sociais.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 109
13 Carlos Maximiliano foi Ministro da JusƟça do Presidente Wenceslau Brás e no Governo Vargas
foi Consultor Jurídico do Ministério da JusƟça, Consultor-Geral da República; a parƟr de 1934, foi
Procurador-Geral da República e, em 1936, foi indicado Ministro do STF. Pela Carta de 1937, que
reduziu a idade limite para permanência no STF para 68 anos, foi aposentado; é autor do clássico
HermenêuƟca e Aplicação do Direito que, desde a primeira edição em 1924 até hoje, já mereceu 19
edições e cerca de 25 Ɵragens.
110 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
conceitos e noções estruturados pelas ciências sociais possibilitam tal repensar. Entre
outros, modernidade, racionalidade, clã e cordialidade. Tais categorias do pensamento
podem propiciar, por exemplo, melhor compreensão dos processos de recrutamento
dos membros do Poder Judiciário. No caso porque os mecanismos de recrutamento e
ascensão aos postos de direção dos Tribunais podem estar relacionados à expansão das
atribuições e uma cada vez maior independência do Poder Judiciário.
O contato do Direito com a Política é permanente, considerando que é a expressão
das forças capazes de ditá-lo e executá-lo. No Brasil, o judiciário não só é encarregado
de, com exclusividade, aplicar o Direito,14 mas é, também, um Poder que estabelece
a diferença entre os distintos papéis desempenhados pelo Judiciário em nossa organi-
zação estatal, pois “No exercício de suas funções, o Judiciário, segundo prescreve a Consti-
tuição brasileira, tem duas faces: uma, é poder do Estado; outra, de prestador de serviços”
(Sadek, 2002: 413).
A “judicialização da política”, no Brasil, é um principio que não afasta da aprecia-
ção do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.15 Tal princípio não estava
contido na Constituição de 1891, mas Ruy Barbosa (1928: 284; 2004: 105) dizia que
nenhum caso poderia ser excluído da apreciação do Poder Judiciário no que se rela-
cionasse com a sua legalidade ou quando praticado de acordo com a lei, mas em con-
trariedade à Constituição. A Constituição de 1937 trazia dispositivo expresso vedando
ao Judiciário analisar casos políticos.16 Igualmente verificamos fenômeno distinto que
é a “judicialização das relações sociais”, onde o judiciário tem sido cada vez mais colo-
cado como árbitro das relações que se travam no seio da sociedade. Em artigo sobre a
participação através do Direito e judicialização da política, Araújo (prelo) afirma que
a judicialização das relações sociais é fenômeno distinto da judicialização da política.
Mas, o pronunciamento judicial, em matérias políticas, se norteia pelos limites
impostos pela Constituição e pelas leis. Não cabe juízo político de conveniência ou
oportunidade no pronunciamento, mesmo que a “ideia de justo” do julgador não
corresponda à “ideia de justo” do legislador. Todavia, os conceitos principiológicos
contidos nos dispositivos constitucionais, por suas indeterminações, propiciam que
os julgadores se fundamentem na ética desejável ante os preceitos ou na equidade,
14 “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5o, XXXV da
ConsƟtuição da República).
15 ConsƟtuição de 1988: art. 5o, XXXV, EC/01 1969: art. 153, § 4o (exceção art. 181), ConsƟtuição de
1967: art. 150, § 4o (exceção art. 173), ConsƟtuição de 1946: art. 141, § 4o.
16 ConsƟtuição de 1937, art. 94: “É vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente
políƟcas”.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 111
embora não estejam autorizados a julgar por equidade.17 Apesar disto, o “senso de
justiça” e o “bom senso” têm levado a decisões fundadas em suposta equidade, o que
implica em usurpação da função legislativa.18
No sistema brasileiro, o direito é legislado, teoricamente, sob parâmetro racio-
nal, e a formação de “ideia de justo”, fora dos parâmetros fixados institucionalmente,
pode ser tida como expressão do arbítrio ou caprichos do julgador. Tal postura pode
implicar em “politização da justiça”, favorecimento, autoritarismo ou cordialidade,
procedimentos típicos das sociedades tradicionais.
Ferreira Filho (1995: 1) comenta que “a judicialização da política... tende a trazer a
politização da justiça” e “antevê a politização da justiça, como consequência próxima dessa
judicialização...”. Segundo ele, pela judicialização da política é “largamente responsável
a Constituição de 1988”, mas à retração do Welfare state no final do século XX não
correspondeu uma retração do Direito e do Poder Judiciário. Ao contrário, na crise do
Estado do Bem-estar Social, que atinge o seu clímax após a queda do Muro de Berlim
e a desintegração da União Soviética, o Direito e o Poder Judiciário passaram a ser
demandados como novas forças no jogo político na garantia de direitos individuais e
sociais exigíveis, bem como na conquista de novos direitos e ampliação do sentido e
alcance de políticas em vias de instituição ou implementação.
17 Dispõe o art. 127 do Código de Processo Civil que “O juiz só decidirá por equidade os casos previstos
em lei”.
18 O julgamento fora dos parâmetros determinados pelo legislador implica em usurpação da função
legislaƟva, cf. Locke, 1998: 560.
112 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
nas Constituições das novas democracias.19 Cada processo, à sua maneira, obedeceu
a uma lógica e parâmetros para a atuação do Poder Judiciário no cenário político. De
uma forma ou de outra, o que ficou patente foi a capacidade de veto, pelo Judiciário,
de intervir em políticas públicas e alterar, em alguns casos, o status quo vigente.
A capacidade do Judiciário de controlar as ações no mundo político tem sido in-
terpretada, por alguns,20 como tensão da política e, por outros (Sadeck, 2002), como
dado elementar das democracias contemporâneas.
Como responsáveis pela expansão do Poder Judiciário no Brasil podemos iden-
tificar diversos fatores, entre os quais: (a) a Lei no 7.347/1985, que instituiu a ação
civil pública; (b) a Lei no 7.244/1984, que instituiu os Juizados de Pequenas Cau-
sas, para questões de pequeno valor econômico e pequena complexidade; (c) a Lei
no 8.078/1990, posteriormente revogada pela Lei no 9.099/1995 e que instituiu os
Juizados Especiais Cíveis e Criminais; (d) a Lei no 8.078/1990, que instituiu o Códi-
go de Proteção do Consumidor, aumentando o tempo para reclamações dos defeitos
dos produtos ou serviços e instituiu a possibilidade de inversão do ônus da prova ao
fornecedor; (e) a Lei no 8.069/1990 que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente,
um conjunto de direitos para crianças e adolescentes; (f) a edição de leis de efeitos
concretos sobre direitos e garantias (sobretudo as resultantes de planos econômicos);
(g) a atribuição de maiores garantias aos magistrados (após os anos em que ocorreram
cassações e aposentadorias compulsórias durante a vigência do AI-5); (h) a transição
política realizada após os governos militares; (i) a urbanização ocorrida no Brasil nos
últimos 60 anos, quando a população rural, que era superior à urbana, reduziu e a
urbana multiplicou-se por mais de 10; (j) e a instituição da reparabilidade do dano
moral,21 a partir da Constituição de 1988.
Os fatores arrolados ajudam a compreender porque, nos dias atuais, se dá uma
presença frequente do Poder Judiciário na arbitragem de conflitos que têm na base
fenômenos de natureza política, lato senso. Além disto, não se pode desprezar o au-
mento da demanda pelo Poder Judiciário em razão do processo de urbanização pelo
19 Maria Tereza Sadek aĮrma que o desenvolvimento dos Estados DemocráƟcos e suas políƟcas de
bem-estar social forçaram mudanças na engenharia insƟtucional e a transformação do Judiciário em
um poder aƟvo (Sadek, 2002: 413).
20 Luiz Werneck Vianna aponta uma inevitável tendência ao estabelecimento de uma linha de tensão
nas relações entre o Judiciário, de um lado, e o ExecuƟvo e o LegislaƟvo, de outro (Vianna, 1999:
10).
21 Dano moral é dano de ordem imaterial, consistente num transtorno psíquico ou emocional indevi-
do; numa perturbação ao sossego, tranquilidade ou sensação de bem-estar. Com a ConsƟtuição de
1988 o dano moral passou a ser inquesƟonavelmente indenizável, o que gerou o que se chama de
“indústria do dano moral”.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 113
qual o país passou nos últimos 60 anos, a exemplo do que ocorre na busca por outros
serviços prestados pelo Estado, dentre os quais: o serviço de saúde pública e matrícula
na rede pública de ensino, demanda por educação em geral, os serviços de ilumina-
ção e telefonia, as relações de crédito e outros serviços considerados essenciais numa
sociedade urbana. Ao lado disto há também a explicação da expansão da atividade do
Poder Judiciário a processos de mudança social e institucional, resultante da interação
entre os diversos agentes judiciais, políticos e sociais, ou ainda pela possibilidade de
obtenção de vantagens em consequência das deficiências do aparelho judicial.
Decorrente do maior número de feitos ajuizados e processados nos órgãos do
Poder Judiciário no Brasil, o que tem caracterizado um acúmulo de processos em jul-
gamento ou pendentes dele, bem como da maior possibilidade do exercício do poder
jurisdicional (seja pela possibilidade jurídica dos pedidos, ante a criação de novos
direitos, seja pela maior garantia aos julgadores), as instituições judiciais brasileiras
ganharam maior visibilidade na mídia, o que tem ensejado um grande debate sobre
o seu papel.
Esta maior visibilidade social e exposição na mídia do Poder Judiciário tem pro-
porcionado discussão sobre o seu papel como poder do Estado. Despertou também o
interesse de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Para o cientista polí-
tico Luiz Werneck Vianna, a judicialização da política “está na descoberta, por parte da
sociedade civil, da obra do legislador constituinte de 1988, e não nos aparelhos institucionais
do Poder Judiciário” (Vianna, 1999: 43).
Neste sentido, é possível falar-se que a judicialização está na descoberta do judi-
ciário como capaz de mediar a solução de determinados conflitos e não nos aparelhos
legais de existência anterior ou posterior à edição da Carta de 1988.
No âmbito das ciências sociais, sobretudo a partir da última década do século
passado, diversos trabalhos22 têm sido realizados tendo como tema as relações entre
as instituições judiciais e as instituições políticas, o que propiciou que termos como
“judicialização da política”, “politização da justiça” e “judicialização das relações so-
ciais” passassem a fazer parte do universo vocabular dos juristas e cientistas sociais.
A expansão do Poder Judiciário não se caracteriza necessariamente pelo que se
denomina judicialização da política, traduzido na sua capacidade de arbitrar con-
22 Vale ressaltar o trabalho de Marcus Faro de Castro, 1997: 147, para quem “o funcionamento das
cortes judiciais e seu papel na democracia têm sido pouco estudado pela Ciência PolíƟca brasileira”,
ao contrário do que aĮrma Gisele Silva Araújo, (Op. cit.: 1), para quem a judicialização da políƟca
tem sido objeto frequente de estudos pelas Ciências Sociais.
114 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
flitos que tenham por fundamento relações políticas, assim como não possibilita a
compreensão de tais conflitos, pois expressa conceito distinto do termo em análise.
A análise da expansão do Poder Judiciário precisa ser tomada paralelamente aos
conceitos onde se possa atribuir a judicialização da política. Isto porque judicialização
da política acaba por ser “conceito pouco preciso, mas de rápida aceitação pública” (Maciel
e Koerner, 2002), o que pode ser inadequado para compreensão das relações entre o
judiciário e a política na democracia brasileira ou, ainda, entre o judiciário e os demais
atores sociais. De qualquer forma, é importante ressaltar a imprecisão do conceito de
judicialização da política, apropriado e usado em diferentes contextos.
A judicialização das relações sociais, é expressão da crise do poder tradicional e
dos seus mecanismos de composição dos conflitos de interesse e propicia a expansão
do Poder Judiciário, ante sua descoberta como agente intermediador na solução de
conflitos para os quais antes não era chamado. Tal fato se relaciona com a desregula-
mentação do Estado, no seu papel de formulador e implementador de políticas públi-
cas, aliado à urbanização verificada na sociedade brasileira nos últimos 60 anos. Esta
questão mais ainda se evidencia no momento presente, com as reformas neoliberais e
a internacionalização do capital e é neste sentido que observa um estudioso das mí-
dias globais: “No reinado neoliberal, ocorre um processo brutal de desregulamentação, de
depreciação do papel do Estado como âmbito de representação pública, de esvaziamento da
sociedade civil e enfraquecimento dos laços comunitários” (Moraes, 2004: 193).
Débora Alves Maciel e Andrei Koerner (Maciel e Koerner, 2002), em estudo sobre
o termo judicialização da política, salientam que:
a expressão passou a compor o repertório da ciência social e do direito a partir
do projeto de C.N. Tate e T. Vallinder (1996), em que foram formuladas linhas
de análise comuns para a pesquisa empírica comparada do Poder Judiciário em
diferentes países.
No sentido acima considerado, os termos judicialização da política ou politização
da justiça seriam análogos e expressariam na verdade a expansão do Poder Judiciário e
de sua capacidade de proferir julgamentos, envolvendo matérias de natureza política e
somente cabíveis nas democracias, onde os juízes gozam de algumas garantias capazes
de lhes propiciar o pronunciamento sobre causas políticas, acolhendo ou rejeitando a
pretensão das partes. Desta forma, somente onde mecanismos de proteção aos direi-
tos foram editados, possibilitando ações coletivas ou defesa das minorias, bem como
atribuição de garantias aos magistrados, teria sentido falar-se em expansão do poder
judicial.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 115
Assim, judicializar a política, segundo Tate e Vallinder (Tate e Vallinder, apud Ma-
ciel e Koerner: 2002), “é valer-se dos métodos típicos da decisão judicial na resolução de
disputas e demandas nas arenas políticas”, seja através da ampliação das áreas de atuação
dos tribunais mediante a revisão judicial, ou seja, controle de compatibilidade com a
constituição das leis, ou atos normativos editados no âmbito da atividade legislativa,
pela via de declaração de inconstitucionalidade direta ou incidental, ou ainda pela
verificação da legalidade dos atos do executivo. Outro sentido de judicialização da
política indicado seria a adoção no legislativo de mecanismo próprios da atividade
judicial, como os julgamentos por crimes de responsabilidade que se processam pe-
rante o Senado Federal (Brasil: 2004),23 cujo procedimento está delineado na Lei de
Responsabilidade (Brasil, 2004),24 ou ainda pela constituição de Comissões Parlamen-
tares de Inquérito, com poderes próprios das autoridades judiciais.
Diz a Constituição (Brasil: 2004) que compete privativamente ao Senado Federal
processar e julgar25 o presidente e vice-presidente da República, nos crimes de res-
ponsabilidade e os ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com
aqueles, bem como os ministros do Supremo Tribunal Federal, o procurador-geral
da República e o advogado-geral da União, também nos crimes de responsabilidade.
Por outro lado, diz a Constituição (Brasil: 2004) que as comissões parlamentares de
inquérito26 terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de
outros previstos nos regimentos das respectivas Casas do Congresso Nacional, cuja
conclusão deve ser encaminhada ao Ministério Público para que promova a responsa-
bilização civil ou penal das pessoas implicadas nos fatos apurados.
Ao dispor sobre poderes de investigação próprios das autoridades judiciais refe-
re-se a Constituição aos poderes próprios das instituições judiciais, dentre as quais a
possibilidade de expedir intimações, convocações, quebra de sigilos bancário e telefô-
nico etc. Enfim, praticar todos os atos que somente por determinação judicial pode-
riam ser praticados. Neste sentido, o que temos é o legislativo promovendo atividade
executiva, com poderes típicos do judiciário, porque as instituições judiciais no Brasil
não desenvolvem atividade investigatória. Estas são desempenhadas pelos órgãos da
polícia judiciária (que é órgão do executivo) e pelo Ministério Público (que apesar
da autonomia que lhe compete em nosso sistema é órgão que desempenha atividade
executiva).
28 Juízes e Desembargadores de diversos Estados do Brasil foram cassados desde o primeiro ato insƟ-
tucional após o golpe militar de 1964. Três Ministros do Supremo Tribunal Federal foram cassados
num só ato em 17/01/1969: Victor Nunes Leal, Hermes de Lima e Evandro Lins e Silva.
118 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Esta percepção do Poder Judiciário como estuário das insatisfações com os atos do
poder político não pode ser identificada como novo papel constitucional, pois desde a
instituição da separação dos poderes com a Constituição de 1891 ao Poder Judiciário
foi atribuída a tarefa de realizar o controle de constitucionalidade das leis. Além disto,
as questões de natureza política sempre estiveram sujeitas à revisão judicial, desde que
apresentadas sob o ponto de vista da legalidade.
Outro sentido apropriado e utilizado, sobretudo no campo jurídico, do termo ju-
dicialização da política o é para expressar a preferência do autor de uma ação pela via
judicial, quando poderia pelos mecanismos políticos buscar resolver os conflitos com
seus adversários. Neste sentido, as disputas eleitorais submetidas à Justiça Eleitoral,
sobretudo impugnação de transferência de domicílio eleitoral, de registro de candida-
to, de diplomação e de mandato, são tratadas como judicialização da política, embora
tais casos possam ser tratados com exclusiva fundamentação legal. A expressão é aí
empregada pela motivação do autor da ação ou do procedimento, visando atingir,
pela via judicial, o adversário político. Embora o vocábulo seja novo, a judicializa-
ção da política se faz presente no Brasil desde 1932, quando por força do Decreto no
21.076, de 24/02/1932 foi criada a Justiça Eleitoral e submetida ao Poder Judiciário
a apreciação de tais questões. Mas, ainda no campo jurídico, os tribunais denominam
de judicialização da política aquelas ações cujo fundamento tenha natureza política,
embora submetidas à apreciação judicial em forma de questão legal. Neste sentido
Ruy Barbosa, desde a Constituição de 1891, já submetia questões aos tribunais, de
interesse político, mas para controle de legalidade.
Ao lado da expressão qualitativa das submetidas e aceitas para processamento nos
tribunais, o termo ainda pode ser tratado como expressão do aumento quantitativo
de feitos cotidianamente ajuizados, das mais diversas naturezas, o que expressaria
uma “judicialização da vida”, a judicialização da política ou ainda a judicialização do
Estado para citar título de obra de André Luis Alves de Melo (Melo, 2001) que é “A
judicialização do Estado brasileiro, um caminho antidemocrático e monopolista”, implican-
do a partir da atuação do Ministério Público uma concepção autoritária e paternalista
em substituição aos poderes da sociedade pelos poderes do Estado, seus órgãos e
seus agentes. Neste sentido o termo mais apropriado seria judicialização das relações
sociais, e que será objeto de análise no próximo capítulo, para designar o fenômeno
onde
não se encontram mais cidadãos, e sim indivíduos fragilizados e temerosos, que
buscam no Judiciário uma saída para os mais banais conflitos cotidianos: são
clientes da justiça, reivindicando proteção diante da ameaça constante do outro
(Sierra, 2005).
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 119
29 Tutela não pressupõe a incapacidade da pessoa e não reŇete uma concepção de relação paternalis-
ta do Estado sobre o indivíduo. Mas da exclusividade que o Estado reclama em dizer o direito. Daí é
que Direito é aquele que o Estado confere tutela.
30 HipossuĮciência é termo que designa a incapacidade de custeio das despesas de um processo, sem
prejuízo do próprio sustento ou da família. Membros da classe média, proprietários de imóvel em
região nobre e de carro novo podem ser, ao menos momentaneamente, considerados pobres para
efeitos legais, por não disporem naquele dia ou período em que as custas devem ser pagas dinheiro
para o pagamento.
31 Diz-se que as relações jurídicas são relações sociais, relevantes para o Direito, o qual lhes atribui
proteção. O uso do termo proteção não remete a paternalismo. Mas garanƟa de exigibilidade atra-
vés do Estado, dada a impossibilidade de se fazer jusƟça com as próprias mãos.
120 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
conformes ou não à Constituição, e neste caso cabe-lhe declarar que elas são nulas e sem
efeito ...”. O controle de constitucionalidade das leis ou atos normativos inexistia no
Império, isto porque “a sanção imperial expurgia-as de qualquer vício” (Nequete, 2000d:
23). Ainda assim, somente se fazia o controle nos casos concretos, ou seja, na análise
de determinado processo se apreciava se o direito postulado deveria ser resolvido à
luz da lei ou se esta contrariava a Constituição; neste caso, aquela deveria ser afastada
e aplicada a Constituição. Inexistia a ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, o
reconhecimento de inconstitucionalidade por via direta ou controle in abstrato de lei
ou ato normativo.
33 Atribuímos o termo de “clássico juiz” ao magistrado com menos predisposição de explorar as po-
tencialidades de exercício do poder de julgar, enquadrando-se num Ɵpo tradicional de integração
da relação jurídico-processual, na qual Įgura propriamente como terceiro diante do conŇito de
interesses apresentado pelas partes.
34 É o que se viu no julgamento do processo 2005.002.003424-4 (TJ/RJ) em que um juiz reclamou na
jusƟça o direito de ser tratado com urbanidade pelos empregados do condomínio onde mora. A
imprensa relatou o caso, como se o juiz quisesse ser chamado de excelência e o juiz que julgou a
causa disse que aquilo era conŇito de natureza social e não comportava pronunciamento judicial.
Tal como na “objeção do caso políƟco” de que falava Ruy Barbosa, o juiz da causa deixou de assumir
o papel que lhe compeƟa; deixou de se pronunciar sobre o cerne do conŇito, traduzido no direito
ou não ao tratamento com urbanidade nas relações sociais, certamente por não crer na sua capaci-
dade legal de resolver, ao menos formalmente e no âmbito do processo, conŇitos de relação social.
Da sentença o juiz fez constar que “Ao judiciário não compete decidir sobre a relação de educação,
eƟqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado e o condomínio e o
condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade”. Do raciocínio do
juiz, certamente temeroso da reação da mídia, se depreende que o Estado não é o poder soberano
da nação e que não existe entre nós o princípio da inafastabilidade da jurisdição de aplicação pelo
Poder Judiciário e reconheceu, nas entrelinhas, a possibilidade de um direito resultante de regula-
ção privada.
35 Processo 2002.038.017689-4 – 7a Vara Cível de Nova Iguaçu/RJ.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 123
preceitos alusivos abstratamente ao caso, não se pode negar aos filhos o direito subje-
tivo de velarem e sepultarem os pais e que tal direito se revela necessidade de ordem
simbólica, com profundas repercussões na esfera psicológica dos agentes envolvidos.
O familiar que promove o sepultamento, mas omite deliberadamente, e sem justo
motivo, a comunicação de falecimento aos filhos viola tal direito. Igualmente há que
se concluir que o mal-estar propiciado pela omissão na comunicação do falecimento
e sepultamento do pai se traduz em dano ao filho que se ignorou propositadamente.
Este é um caso em que o princípio constitucional pode ser invocado para amparar
a causa proposta. É caso típico onde se pode invocar o princípio da dignidade huma-
na, disposto na Constituição como fundamento da República.
A filha, no caso analisado, buscava um ressarcimento do dano moral lhe imposto.
Mas, mais que uma indenização, reclamou o reconhecimento de que tinha o direito de
velar e sepultar seu pai. Mais que indenização, reclamou a condenação do comporta-
mento da madrasta. A parte autora era assistida pela Defensoria Pública.
36 Por meio de contrato de concessão celebrado entre o Município de Nova Iguaçu e parƟcular os ser-
viços funerários foram entregues ao monopólio privado, em 12/03/1975, por 20 anos. Tal contrato
foi renovado por mais 20 anos em 20/05/1996.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 125
Segundo contrato celebrado com empresa funerária de Nova Iguaçu somente esta
pode exercitar a atividade funerária naquele município, compreendendo a administra-
ção dos cemitérios públicos, a venda de materiais utilizados em sepultamentos, bem
como o traslado do corpo dentro ou para fora do município.
A grave questão da saúde pública nos municípios da baixada fluminense leva
moradores da região à busca de tratamento no Hospital Geral da Posse, sob admi-
nistração do Município de Nova Iguaçu, que tem a gestão plena do Sistema Único
de Saúde (SUS) no âmbito local. A morte de algumas dessas pessoas propiciava
o entrave da remoção do cadáver para o município de origem, o que é obstado
pela municipalidade e pela funerária local, ávida de receber pelo traslado. Mes-
mo quando disponibilizado serviço de remoção oriundo de funerária de outra
localidade, o corpo não era liberado, ante a exigência de pagamento das verbas
funerárias que seriam devidas, se o serviço fosse prestado nos cemitérios situados
no próprio município.
A judicialização da morte no município de Nova Iguaçu levou diariamente a pro-
positura de ações visando a liberação de corpos para remoção e sepultamento nos
municípios vizinhos, origem do defunto.37
A questão nos remete ao patrimonialismo, onde o poder público é o agente provo-
cador da busca da jurisdição e nos remete à crise de legitimidade do Estado. Segundo
Paul Ricoeur (apud Garapon, 2001: 14):
para explicar o que aparece, primeiramente, como uma inflação do judiciário
é preciso recorrer às causas da crise de legitimidade do Estado. E reportar-se à
esfera do próprio imaginário democrático, no íntimo da consciência do cidadão,
onde a autoridade da instituição política é reconhecida.
Na maioria dos casos julgados pela 7a Vara Cível de Nova Iguaçu nos anos de
2003 a 2005 (98,04%), os requerimentos foram feitos pela Defensoria Pública e so-
mente em 1,96% o requerente tinha advogado privado, ainda assim sob o patrocínio
da gratuidade de justiça, o que evidencia o quanto a Defensoria Pública é um instru-
mento fundamental no acesso ao Poder Judiciário.38
37 Em 07/04/2005 foi editado Decreto no 7.101/2005 pelo Prefeito Municipal, que veda à concessio-
nária monopolista dos serviços funerários a cobrança de taxa para permiƟr retorno do falecido à
origem e a retenção do corpo até o pagamento.
38 Sobre a essencialidade da Defensoria Pública no acesso ao judiciário, veja Moraes, 1996.
126 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
39 Tais critérios estão determinados no Código Tributário Nacional, que estabelece critérios para dife-
renciação de área rural e urbana sobretudo em decorrência da cobrança de impostos, quais sejam,
IPTU e ITR respecƟvamente, de competência dos municípios e da União.
Parte I | Capítulo 5 | A crença no poder jurisdicional do Estado: judicialização... 127
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1939.
6
A judicialização da política e o estado
punitivo no Brasil contemporâneo
Sumário:
1. Introdução.
2. A Judicialização da políƟca: algumas considerações.
3. O Estado puniƟvo no Brasil: permanências autoritárias na
contemporaneidade.
4. Considerações Įnais.
5. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
Pretendemos refletir a respeito de duas temáticas significativas que se potenciali-
zam em larga escala na conjuntura atual: a judicialização da Política e o Estado punitivo
no Brasil.
O nosso entendimento é que o cenário político contemporâneo, no Brasil, portan-
to, pós-regime militar, traz consigo ainda algumas permanências autoritárias, marcas
emblemáticas que sinalizam para impasses e contradições presentes na atualidade.
Neste sentido, o nosso propósito é refletir acerca do processo intenso de judiciali-
zação da Política e, também, interessa-nos analisar o Estado punitivo no Brasil.
Uma das hipóteses centrais do presente trabalho concerne precisamente ao fato de
que, na conjuntura atual, há uma íntima imbricação entre a judicialização da Política e
Pode-se, então, afirmar com bastante clareza que há uma gama complexa de abor-
dagens a respeito desta temática e, por conseguinte, as interpretações existentes no
campo das Ciências Sociais, a Antropologia, a Sociologia e a Ciência Política, e no
campo específico do Direito não possuem um veio homogêneo; ao contrário, tais in-
terpretações, em inúmeros sentidos, são bem distintas.
Esta heterogeneidade interpretativa a respeito da Judicialização da Política, na nossa
concepção, é algo muito relevante por dois motivos interessantes: há uma perspecti-
va interdisciplinar nos estudos sobre a temática; os distintos sentidos interpretativos
acerca do tema permitem uma fuga, um escape ao engessamento da Judicialização da
Política bem como sinalizam para uma pluralidade necessária de análises não dogmá-
ticas, tecnicistas sobre este tema.
Nos estudos que versam sobre a Judicialização da Política há consenso no que tan-
ge ao período no qual esta temática, no Brasil, passa a ser investigada de forma mais
intensa, por um lado; por outro, como o fenômeno da Judicialização da Política, em si,
começa a se expandir na sociedade brasileira.
Observamos, portanto, que o cenário político onde a referida temática desenvol-
ver-se-á enquanto fenômeno recorrente no mundo contemporâneo e, como objeto de
estudo, será precisamente o cenário atual, ou seja, aqui no Brasil, no quadro político
que se inicia pós-regime militar.
Cabe-nos ressaltar que a conjuntura atual, não obstante todas as suas singulari-
dades presentes, traz consigo inúmeros impasses, dilemas, paradoxos, além de per-
manências autoritárias inscritas de forma muito marcante nas estratégias de controle
social e da punição que ainda hoje são formuladas e aplicadas na sociedade brasileira.
Esta complexidade presente na contemporaneidade, na qual há paradoxos e per-
manências autoritárias, por exemplo, sinaliza igualmente para a peculiaridade signifi-
cativa com que este tema, Judicialização da Política, se assume na atualidade.
A nossa preocupação central neste estudo não é repetir à exaustão os trabalhos
existentes sobre a Judicialização da Política, mas tão somente interessa-nos analisar este
fenômeno enquanto um interessante sintoma da contemporaneidade, particularmente
no Brasil, e os múltiplos efeitos que são produzidos pelo fenômeno sociopolítico e
jurídico da Judicialização da Política.
O caminho que percorremos na análise sobre a Judicialização da Política é o da
problematização deste fenômeno no que concerne basicamente a uma instigante in-
dagação: a Judicialização da Política configura-se enquanto esmaecimento da Política –
portanto a superação e negação desta – ou aponta para uma consagração de Direitos?
136 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Trata-se de uma indagação difícil de responder, pois exigiria uma reflexão muito
pormenorizada, um exame minucioso além de uma pesquisa empírica acerca do fenô-
meno da Judicialização da Política.
Entretanto, como a nossa preocupação principal consiste em problematizar esta
temática e investigar os inúmeros efeitos produzidos por este fenômeno, então, pare-
ce-nos muito plausível adotarmos a premissa básica de que, no Brasil, em particular, e
em sua maioria, o fenômeno da Judicialização da Política implica sim e gravemente no
esmaecimento da Política.
No campo mais específico da Ciência Política é importante situar o debate exis-
tente acerca da temática Judicialização da Política. Assim sendo, encontramos em vários
autores expressões que procuram caracterizar este fenômeno na conjuntura atual.
Neste sentido, observamos que em Koerner (2002) há a concepção de que houve
uma “expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas”.
Identificamos que a expressão “expansão do poder Judiciário”, em certa medida, é
análoga à concepção de que houve uma “explosão legal” (Araújo, 2004). Na verdade,
há um quase consenso na bibliografia especializada sobre esta temática, posto que na
transição conservadora do regime militar para o Estado de Direito na sociedade brasi-
leira, a conjuntura política atual tem a marca desta “expansão” e “explosão” do Poder
Judiciário no País.
O fato mais concreto, conforme salientam vários autores, é que no Brasil, a partir
da década de 1990, destaca-se o “papel importante ocupado pelo Ministério Público como
também de outras instituições do direito estatal como a Defensoria e a Magistratura” (Mot-
ta, 2009).
No nosso entendimento todo este relativo consenso acerca da “expansão” do Po-
der Judiciário, tendo em vista o papel desempenhado pelo Ministério Público, assim
como a Defensoria e a Magistratura, encontra como referência teórico-conceitual pri-
mordial as reflexões desenvolvidas por Tate e Vallinder.
Assim sendo, em conformidade com as observações de Koerner (2002), Araújo
(2004), Motta (2009) e Ribas (2008), por exemplo, encontramos em Tate e Vallinder
que a Judicialização da Política “expressa uma nova tendência da democracia contemporâ-
nea” (Motta, 2009). Desta forma, vale ainda acrescentar que, conforme tal concepção,
o “fenômeno jurídico é próprio ao sistema democrático, já que seria mais difícil a presença
da mesma num sistema autoritário ou totalitário” (Motta, 2009).
O que esta linha de raciocínio, fundamentada numa bibliografia mais especiali-
zada, tenta destacar é que houve transformações na “estrutura e na operação da institu-
Parte I | Capítulo 6 | A judicialização da política e o estado punitivo no Brasil... 137
cionalidade política do Estado” (Araújo, 2004). Então, sob esta perspectiva, a origem de
“tais transformações é vinculada às mudanças do Estado e do Direito por ocasião do Estado
do Bem-estar Social” (Araújo, 2004).
Entretanto, também há a ressalva de que muitos autores estabelecem essas asso-
ciações mais “diretamente ao constitucionalismo democrático da Europa do pós Segunda
Guerra, que estará presente nas constituições de Portugal, Espanha e de alguns países latino-
americanos nas décadas de 70 e 80” (Araújo, 2004).
Retomando a argumentação central de Tate e Vallinder, que consideramos perti-
nente e adequada, numa determinada dimensão, aos países nos quais houve e ainda
há o Estado do Bem-estar Social, advogamos e sustentamos para o Brasil uma singu-
laridade do seu processo histórico-político e social e, portanto, não obstante a nossa
consideração de que na conjuntura política contemporânea tenham sido registrados
avanços significativos no que concerne a uma maturação institucional do Estado de
Direito, tais avanços não devem ser superdimensionados e mitificados.
A nossa posição é de que o fenômeno da Judicialização da Política na sociedade
brasileira, a partir dos anos 1990, não ocorreu de forma análoga ao processo existente
nos países inscritos na democracia ocidental. Isto posto, este fenômeno, no Brasil,
neste cenário político, assume identidade própria e peculiar às práticas jurídicas, po-
líticas e sociais.
Queremos também dizer que há algumas significativas peculiaridades na con-
juntura política contemporânea que apontam precisamente para dilemas, impasses,
paradoxos e permanências autoritárias ainda existentes nos dias atuais.
Um exemplo mais ilustrativo desta singularidade da formação histórico-social
brasileira é a ausência, lacuna grave, do Estado do Bem-estar Social. Vale sublinhar
que no Brasil não tivemos e ainda não temos sequer o welfare state.
Parece-nos pertinente o questionamento teórico-político à concepção de Estado
Democrático de Direito tão vigente e hegemônica que perpassa a bibliografia específi-
ca sobre a temática da Judicialização da Política.
Concebemos o Estado no Brasil, na contemporaneidade, enquanto Estado de Di-
reito no qual observamos avanços sim no campo jurídico-político no que tange à
consagração de Direitos, mas que, contudo, sublinhamos que ainda há entraves, con-
tradições e dilemas relevantes para caracterizá-lo como democrático.
O nosso propósito é mantermos o foco direcionado para o objeto de investigação
deste trabalho; ou seja: refletir sobre a Judicialização da Política e o Estado Punitivo no
Brasil.
138 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Contudo, cabe ainda uma ressalva no que concerne precisamente ao nosso ques-
tionamento à denominação hegemônica e vigente de Estado Democrático de Direito.
Esta ressalva sinaliza na direção do cerne das Políticas Públicas formuladas e adotadas
no Brasil, desde o começo dos anos 1990.
Na nossa interpretação, tais Políticas Públicas se caracterizam, em sua imensa
maioria, enquanto políticas assistencialistas, de caráter emergencial e que se coadunam
mais como políticas de amparo.
O cenário político propício para a proliferação dessas Políticas Públicas assisten-
cialistas foi concretamente o início da década de 1990, quando a sociedade brasileira
assiste ao crescente predomínio da hegemonia neoliberal como mola propulsora do
processo de globalização em voga naquele momento.
É importante destacar que na sociedade brasileira até o presente momento, por-
tanto sob uma perspectiva de longa duração, praticamente não há registros de Políticas
de Estado que intervenham decididamente na realidade social e acarretem, por conse-
guinte, transformações estruturais imprescindíveis ao Estado no Brasil.
Então, diante da ausência de Políticas de Estado que tenham contribuído ou que
possam vir a contribuir para a negação e superação das assimetrias presentes nas rela-
ções sociais que perpassam a sociedade brasileira e se inscrevem no processo de pro-
dução social vigente do Estado no Brasil, e, por outro lado, tendo em vista a presença
concreta de um aparato jurídico-político e policial ainda com intenso veio autoritário-
punitivo, que potencializa em larga escala os processos de produção da marginalização
social, da não inclusão, torna-se problemático o acolhimento à concepção de Estado
Democrático de Direito, posto que tal concepção configura-se, no mínimo, enquanto
um grave equívoco teórico-político.
Ao questionarmos o “democrático” como constitutivo do Estado de Direito no
Brasil na contemporaneidade, não queremos concluir e fechar questão de que na atual
conjuntura política não houve significativos avanços no que tange às classes domina-
das, segmentos sociais excluídos que, em determinados momentos, “têm encontrado
ressonância em alguns canais institucionais que internalizam as suas demandas dentro do
viés legal” (Motta, 2009). Não o bastante, todavia, para que o Estado de Direito possa
ser considerado no Brasil como plenamente democrático.
Por esta perspectiva também compreendemos que a “busca do Poder Judiciário
como lugar de fazer política é um remédio tanto à precariedade da democratização da esfera
pública, quanto ao monismo representativo insuficiente para canalizar a vontade de uma
sociedade diferenciada e desigual” (Araújo, 2004).
Parte I | Capítulo 6 | A judicialização da política e o estado punitivo no Brasil... 139
A hipótese central que Foucault elabora nos seus estudos sobre o poder é que se
a dominação capitalista fosse baseada exclusivamente na repressão, ela não se mante-
ria (Foucault, 1979). O autor sustenta, então, que o Direito exercido nas sociedades
pré-capitalistas tem caráter acentuadamente repressivo e que, na sociedade capitalista,
exerce um efeito mais disciplinar (Idem, 1979).
A questão da disciplina implica um ponto significativo no momento do nascimen-
to do capitalismo. Pensava-se numa nova estratégia para o exercício do poder de pu-
nir, cujo objetivo era “não punir menos, mas punir melhor” (Idem, 1984). Isto implica,
portanto, na premissa foucaultiana de que o poder não é mera repressão (não é algo
negativo); seu exercício mais importante é positivo, configurador.
Ao defender que o poder não é “mera repressão”, Foucault formula a sua concep-
ção não jurídica do poder. A sua argumentação é que se a lei “diz não”, o poder deve
ser considerado como uma “rede produtiva” que atravessa todo o “corpo social”, mais
do que uma “instância negativa que tem por função reprimir”.
Esta concepção não jurídica do poder deve ser compreendida em estreita ligação
com a hipótese do autor sobre a “dominação capitalista” exercendo um efeito discipli-
nar para manter-se enquanto dominação.
Foucault pensa a disciplina enquanto forma de dominação e, para este autor,
momento histórico das disciplinas é aquele em que nasce uma arte do corpo hu-
mano, que visa não somente o “aumento de suas habilidades”, nem, por outro lado,
“aprofundar sua sujeição”, mas, a formação de uma relação que “no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente. O poder disciplinar possui
como principal diretriz a ‘função de adestrar’” (Foucault, 1984).
A relevância dos estudos de Foucault acerca das instituições disciplinares, da me-
cânica do poder na sociedade capitalista, parece-nos indiscutível. Entretanto, o foco
central de seus estudos de que o Direito nas sociedades capitalistas exerce um poder
mais disciplinar deve suscitar, na nossa interpretação, algumas considerações. Assim,
a ideia central de Foucault deve adequar-se mais à realidade social do contexto euro-
peu e não, de forma alguma, mecanicamente, à sociedade brasileira.
Entendemos, também com Foucault, que a punição na passagem do Antigo Re-
gime ao capitalismo transforma-se desde a “modificação do corpo como restabelecimento
despótico do poder à privação e suspensão de direitos contraídos pelo cidadão” (Alonso,
1988). Os castigos corporais, o suplício dos corpos, a tortura, são marcas do período
absolutista. Já a privação da liberdade é a pena essencial da sociedade capitalista.
142 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Parece-nos que numa conjuntura onde há uma articulação entre Estado de Direito
e Estado de exceção, o “suposto desacato à autoridade é passível de pena de morte”
(Lessa, 2008).
Outro acontecimento igualmente deplorável, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro,
data de 16/04/2009. Neste episódio recente, “seguranças”, uniformizados e contratados
Parte I | Capítulo 6 | A judicialização da política e o estado punitivo no Brasil... 145
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na forma contemporânea do capitalismo tardio (Jameson, 1998), uma face bem
complexa configura-se precisamente no aspecto da pós-modernidade e, segundo Jame-
son, na pós-modernidade há inexoravelmente uma “fragmentação do sujeito” (Idem,
1998).
Assim, os “novos processos” que surgem ainda trazem consigo antigas e indeléveis
marcas de exploração, controle, expropriação perante os trabalhadores contemporâ-
neos, operários modernos e pós-modernos, ainda submetidos à dominação do capital.
Esta dominação, contudo, não cessa, não desaparece; torna-se, por vezes, apenas mais
sutil e sofisticada.
Então, podemos também conceber que encontramo-nos sob a “era da indetermi-
nação” (Oliveira, 2007) e que esta “era” personifica-se enquanto um dramático sinto-
ma da contemporaneidade que atinge de forma intensa o sistema mundial, em geral,
a América Latina, em particular, e o Brasil, muito especificamente.
146 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Brasil, que não obstante alguns avanços, no que tange aos aspectos jurídicos, por
exemplo, como fim da censura, liberdade de expressão, consagração de direitos
civis e políticos, assinala para a existência, por outro lado, de todo um aparato
repressivo-autoritário que combina e articula muito bem o disciplinamento, o
arbítrio, o Estado de Exceção e a presença, não tanto fantasmagórica, do Leviatã
de Hobbes.
Queremos dizer com isso que a sociedade brasileira, na conjuntura atual, em ple-
no Estado de Direito, traz consigo permanências autoritárias que colocam em xeque a
configuração do próprio Estado de Direito no Brasil.
Por fim, ao refletirmos sobre o fenômeno da Judicialização da Política e o Estado
punitivo no Brasil contemporâneo, tentamos sinalizar para uma íntima imbricação
existente entre ambos e procuramos fugir e superar toda uma perspectiva juridicista e
dogmática (Serra, 2008), posto que há uma dialética entre “Estado de exceção”/Estado
Punitivo e Estado de Direito e, neste, há um espaço por excelência da Política e se esta
desaparece, esmaece, então, como diria o velho Sardo Antônio Gramsci, o “momento
é propício para o surgimento de situações mórbidas”.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
ARANTES, Rogério. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: Tese de doutorado
em Ciência Política, FFLCH da USP, 2000.
ARAÚJO, Gisele Silva. Participação através do Direito: A judicialização da Política. VIII
Congresso Luso-afro-brasileiro de Ciências Sociais. Coimbra, 2004.
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal. Revista Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Re-
van, 2002.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC, 1984.
________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
________. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
________. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1999.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo:
Ática, 1997.
148 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Andrei Koerner*1
Celly Cook Inatomi**2
Márcia Baratto***3
Sumário:
1. Apresentação.
2. Análise críƟca da noção “judicialização da políƟca”.
2.1. A judicialização da PolíƟca.
2.2. A judicialização e o Direito.
2.2.1. Decisão judicial e decisão majoritária, ou democracia e Estado de
Direito.
2.2.2. Decisão judicial e produção normaƟva.
2.2.3. AƟvismo dos juízes.
2.3. A judicialização e a PolíƟca.
2.3.1. Sobre as condições subjecentes à judicialização.
2.3.2. PolíƟca(s).
3. Exemplos a parƟr do Judiciário brasileiro.
4. Um quadro para análise do Poder Judiciário.
4.1. Uma concepção ampliada de jurisdição.
4.2. Duas dimensões gerais.
4.2.1. PolíƟca judiciária.
4.2.2. Produção normaƟva.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bibliográĮcas.
1. APRESENTAÇÃO
O presente artigo apresenta uma análise crítica da noção “judicialização da po-
lítica”, apreciando a sua validade teórica para a pesquisa e a reflexão sobre o Poder
Judiciário. Não se questiona a sua validade do ponto de vista normativo, mas da sua
capacidade de dar conta do conjunto de fenômenos a que se refere e, assim, da sua
utilidade para a pesquisa empírica e a reflexão sobre os problemas políticos que ele
suscita. O artigo aborda os seguintes pontos: (1) a análise crítica da noção “judicializa-
ção da política”; (2) contra-exemplos a partir do Judiciário Brasileiro; (3) apresentação
de quadro analítico para a pesquisa empírica sobre instituições judiciais e a ordem
política. O artigo finaliza com a proposta de um quadro analítico para a pesquisa sobre
o Judiciário nas democracias constitucionais contemporâneas.
das funções por um juiz seja no de sua capacidade; por meio de – ou em relação
com – a administração da justiça, o processo legal (judicial), ou por sentença de uma
corte ou um juiz; ou, por outro lado, de acordo com a maneira (estilo, jeito) de um
juiz, com o conhecimento e perfil judicial.
Dessa definição lexicográfica, o autor (Vallinder 1995: 13) retira o significado de
“judicialização”:
a) a expansão do domínio das cortes ou dos juízes em detrimento dos políticos
e/ou da administração (the province of courts or the judges at the expense of the
politicians and/or the administration), isto é, a transferência de direitos de tomada
de decisão da legislatura, do gabinete ou do serviço público para as cortes; ou,
no mínimo;
b) a expansão de métodos judiciais de tomada de decisão para além do próprio
domínio do Judiciário.
Em resumo: judicialização envolve essencialmente desviar algo para a forma de
um processo judicial.
Ele diferencia as características das cortes e das legislaturas em função dos seguin-
tes critérios: atores, métodos de trabalho, regras básicas de decisão, a resposta e as im-
plicações da decisão. As cortes têm como atores as duas partes do litígio e um terceiro,
que atuam num processo de produção de evidências e argumentação em audiências
públicas; a decisão é tomada por um juiz imparcial e se fixa em casos individuais,
cujos fatos ela determina e estabelece a regra relevante. A decisão adquire o estatuto de
“a única solução correta”. Na legislatura há múltiplos atores, que estabelecem relações
de barganha, compromissos e alianças ocasionais; a decisão é tomada pelo princípio
majoritário e tem o caráter de fixar regras gerais sobre políticas, implicando a alocação
de valores na comunidade política. A decisão tem o caráter de “a solução politicamen-
te possível” (Idem, ibidem: 14).
Ele reconhece que a distinção não é nítida (como se vê no plea bargaining e no
princípio do stare decisis), mas considera que “é claro que os dois modelos conformam dois
diferentes princípios e dois papéis correspondentes, ambos indispensáveis numa democracia”.
Para fazer valer esses pontos, cita Herbert Wechsler (1959-1960) para quem “no [âmbito]
judicial a ênfase está no papel da razão e dos princípios, distinguindo-se do legislativo e do
executivo em que se apreciam valores em conflitos”. Assim, Vallinder (Idem, ibidem: 15)
sintetiza que
é a tarefa das cortes proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, o que, se-
guindo Isaiah Berlin, chama-se liberdade ‘negativa’. A legislatura, por outro lado,
tem que cuidar dos direitos e obrigações da maioria (legislativa). A judicialização
152 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
cional que se caracteriza por certas regras e modelos de decisão,1 dentre os quais
basta referir aqui à ausência de direito de iniciativa e a validade de seus atos a um
processo judicial constituído. O exercício de funções governamentais (sem se falar na
legislativa) implica iniciativa e antecipação a cenários, sobre os quais se atua de forma
preventiva e projetiva. Essas ações podem ser realizadas por indivíduos que exercem,
até mesmo simultaneamente, o papel de juízes. Mas quando realizassem esse tipo de
ação, eles não o fariam na condição de juízes.2
Porém, o ponto mais relevante é o da possibilidade de democracia puramente
majoritária. Um regime democrático pressupõe uma estrutura normativa que seja re-
lativamente independente das decisões da maioria imediata? Como O’Donnell (1999)
mostrou de forma metódica, o que se chama de estado de direito (direitos políticos, li-
berdades cívicas) representa pressupostos implícitos aos modelos da democracia com-
petitiva (Schumpeter) e da poliarquia (Dahl). Esses pressupostos não são condições
apenas para a consistência da democracia majoritária ao longo do tempo (limitações
dos direitos das minorias ao poder da maioria), mas para a própria possibilidade da
democracia majoritária. Isso porque (além de determinadas estruturas e formas de re-
lações sociais) é necessária uma estrutura normativa, relativamente independente das
decisões imediatas da maioria, que defina as regras de pertencimento à comunidade
política, às formas básicas de competição política, às liberdades de acesso à informa-
ção, de expressão, de associação etc. Note-se que essas regras devem ser estáveis e,
pois, efetivadas e garantidas por sujeitos investidos nos papéis de administradores e
juízes, que atuem com algum distanciamento em relação aos interesses imediatos de
seu partido e, com relativa independência com relação à maioria legislativa. O que é
indispensável não é propriamente a separação de centros de decisão, mas a investidura
em papéis com modelos de decisão distintos.3
Assim como as relações entre estado de direito e democracia não são de oposição
simples, também as relações entre os modelos de decisão judicial e majoritária não
são da ordem de polos que se contrapõem numa escala. Desse modo, os desenvol-
vimentos das democracias constitucionais contemporâneas podem significar não a
tendência à supremacia de um centro de decisão sobre outro, mas uma recomposição
de princípios, modelos e centros de decisão, o que representa uma ordem política
diferente do modelo da democracia majoritária e do Estado liberal de direito.
1 A invesƟdura caracteriza o invesƟmento políƟco nesse papel insƟtucional, e não se confunde com a
concepção idealizada das funções e da práƟca dos juízes com Įns normaƟvos.
2 Isso não signiĮca que as decisões dos juízes não tenham dimensões projeƟvas e prevenƟvas, mas
essas são conformadas pelos constrangimentos dos papéis para os quais eles foram insƟtuídos.
3 Para desenvolvimentos elaborados sobre esse tema, ver Beetham (1999) e Holmes (1993).
156 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
4 Isso pode ser visto de forma ơpica nos trabalhos, contrapostos sob aspectos fundamentais, de Kel-
sen (2003) e Carl SchmiƩ (1998). Para Kelsen (1979), a decisão judicial é criadora de norma indivi-
dual, na qual estão presentes, por um lado, o aspecto da aplicação da norma superior que habilita o
órgão inferior a emiƟr a norma individual (a sentença) e, por outro lado, o ato de vontade do sujeito
habilitado a emiƟr a norma individual. Como há um ato de vontade, a norma inferior não pode ser
completamente determinada pela norma superior. Em Carl SchmiƩ (1998), o gap entre a norma ge-
ral e a norma individual, o qual sempre é mediado pela decisão, não havendo, pois, determinação.
Contemporaneamente, vale citar trabalhos de teoria e sociologia do direito a respeito da produção
normaƟva, como os de André-Jean Arnaud (2003), de Jacques Commaille e Bruno Jobert (1998), de
Boaventura de Sousa Santos (1994), ou de François Ost & Michel van de Kerchove (2002). Eles mos-
tram como a estrutura conceitual da teoria do direito torna o direito estatal permeável a processos
sociais e políƟcos e, pois, como a produção normaƟva não se cinge aos espaços insƟtucionais do
Estado, nem às instâncias formalmente legiƟmadas para a sua produção (Koerher, 2004).
Parte I | Capítulo 7 | Sobre o Judiciário e a judicialização 157
pavam da produção normativa (especialmente por meio dos avis e dos arrêts de princi-
pe dos tribunais de cassação) e, desde o início do século XIX, os juízes administrativos
exerceram ativamente o controle da administração pública, o que, inicialmente era
mais para assegurar a regularidade administrativa pelo controle hierárquico sobre a
burocracia do que para proteger direitos individuais, o que se desenvolveu mais tarde.
Do mesmo modo, o Parlamento não atua em todos os seus momentos como institui-
ção puramente majoritária, como se vê em funções judiciais que lhe são atribuídas
(julgamento de crimes de responsabilidade de altas autoridades), na fixação das regras
do jogo parlamentar (regimentos, códigos de conduta, comissões de inquérito, sindi-
câncias). Criam-se regras que tornam possível o jogo parlamentar e instituem-se juízes
dentre os próprios parlamentares. Não se deve idealizar essas criações, afirmando que
se movem segundo puros princípios racionais, mas elas indicam que os princípios e
os modelos de decisão associam-se mais diretamente a certos tipos de investidura do
que uma divisão entre centros de decisão.
Assim, princípios, modelos e centros de decisão não devem ser confundidos, para
evitar a projeção de características de uns sobre outros. Ao mesmo tempo, não há
uma distinção de natureza entre a atividade dos juízes, ou os princípios e modelos
de decisão que eles adotam e as dos legisladores. Trata-se de investiduras com princí-
pios, constrangimentos e objetivos distintos. Em ambas as situações entram em jogo
princípios, argumentação racional e procedimentos regrados, assim como a barganha,
conflitos de valores, objetivos políticos etc. Também não há uma distinção substancial
entre normas jurídicas que estabelecem direitos fundamentais e as regras de progra-
mas de políticas públicas. Trata-se, em ambos os casos, de normas com princípios e
propósitos, que fixam condutas e proibições em função de programas mais ou menos
indeterminados, para cuja concretização será imprescindível o concurso dos agentes
investidos para isso, sejam juízes, administradores ou mesmo o corpo legislativo, e
outros agentes sociais implicados no processo.5
A contraposição simples não deixa espaço para levar em conta outras dimensões
relevantes, como o social, o cultural e o religioso. Mas vale ressaltar que o modelo
exclui uma fonte específica de conflitos nas decisões judiciais, que ocorrem entre juízes
(e os demais agentes especializados no direito), ou entre juízes e representantes eleitos:
são as divergências a respeito de questões de direito – fundamentos, interpretação,
direitos a proteger, direitos e objetivos a promover, procedimentos, o papel, as prer-
rogativas e as atribuições dos juízes e de outros sujeitos do processo judicial etc. O
modelo do juiz aplicador da lei a casos particulares só comporta duas alternativas; o
juiz é não ativista quando aplica metodicamente a regra geral aos casos particulares,
ou, se for juiz de common law, busca fielmente, de forma politicamente neutra, a regra,
ou o precedente, aplicável ao caso, ou o juiz é ativista, quando, para adotar decisões
substitutivas das intenções dos representantes eleitos postas na lei, ele faz as suas pre-
ferências políticas intervirem no seu ofício de julgar, e com isso distorce a aplicação da
lei ou a caracterização do caso sob julgamento.
Assim, conflitos e divergências entre os juízes e desses com os representantes elei-
tos não se dão em apenas uma dimensão esquerda-direita. A investidura e o papel dos
juízes envolvem questões e problemas específicos que podem resultar em conflitos
com os representantes eleitos, mas que não resultam diretamente de suas orientações
políticas.6
de direitos têm implicações sociais muito mais gerais, tanto para as relações sociais
como para as instituições e programas de ação estatais. Não se tem uma relação ne-
cessária entre as políticas de direitos e a maior relevância do Poder Judiciário, as dis-
cussões sobre o Judiciário no Welfare State nos anos setenta e oitenta indicavam antes
o contrário, uma expansão da capacidade de ação da administração pública, com suas
ações planificadas e de larga escala, perante as quais os objetos e métodos de decisão
judicial tornavam-se impotentes. Neste caso, a política de direitos aliada à capacidade
governamental da maioria não seria facilitadora da judicialização. Como a ilustração
indica, coloca-se a questão de quais seriam os efeitos provocados pela combinação das
condições facilitadoras e quais seriam os potenciais de judicialização provocados pelas
diversas combinações possíveis.
Se o termo judicialização da política é utilizado num sentido macrossociológico,
como um diagnóstico das transformações mais amplas das sociedades contemporâneas,
é vago, pois não se sabe a quais processos ele se refere. O termo é também parcial e
enviesado, porque enfatiza mudanças no Judiciário, as quais são apenas uma parte de
um conjunto mais amplo de mudanças na política contemporânea e porque sugere
que o Judiciário “escapou” do figurino que lhe seria adequado dentro de uma de-
mocracia representativa, apontando uma usurpação do poder democrático, que tem
como ponto de referência o modelo do Estado liberal e do positivismo legalista do
século XIX.
Vale a pena notar, incidentalmente, que o tema da judicialização da política foi
formulado como um modelo e uma hipótese para servir de quadro a pesquisas com-
paradas. No entanto, a sua recepção entre nós ocorreu sob a forma de um “estilo” de
teorização corrente no campo do direito nos últimos tempos. Grosso modo, esse estilo
adota os esquemas analíticos elaborados por teorias sociais para a interpretação ma-
crossociológica, mas não os toma como premissas teóricas, que deveriam servir como
suporte para formular hipóteses para a pesquisa empírica. Adotam-se esses esquemas
como quadros descritivos de transformações sociais, como explicações já pré-elabo-
radas dos processos sociais ou políticos. E os acontecimentos passam a ter o papel de
ilustrações, servem para confirmar aquele esquema empírico, e não se indaga nem as
questões metodológicas para a pesquisa daqueles processos, e nem as fissuras, descon-
tinuidades, inconsistências, surpresas que eles colocam para o pesquisador.
É preciso ainda examinar a posição da democracia como condição necessária para
a judicialização. C. Neal Tate (Idem, ibidem: 28-9) afirma que
é difícil imaginar um ditador, independentemente de seu ou sua uniforme ou
bandeira ideológica, 1) convidar ou permitir mesmo nominalmente que juízes
160 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
2.3.2. Política(s)
Em artigo anterior,7 elaborado com Débora Alves Maciel, examinou-se a ambigui-
dade com que é utilizado o termo “judicialização”, que se refere: a mudanças institu-
cionais, que podem se tratar de ampliação de competências, de novas formas de orga-
nização, de procedimentos etc.; a estratégias, orientações dos sujeitos, que podem ser
tanto o chamado ativismo dos juízes como o dos outros agentes jurídicos; a processos
sociais mais amplos nas democracias contemporâneas (juridicização das relações so-
ciais; colonização do mundo da vida etc.).
7 Maciel, D. A.; Koerner, A.; SenƟdos da Judicialização da PolíƟca: Duas análises. Lua Nova, 2002,
p. 113-134.
Parte I | Capítulo 7 | Sobre o Judiciário e a judicialização 161
próprio Estado, do território e dos sujeitos sobre os quais se exerce a jurisdição, das
fontes normativas e das organizações capazes de mobilizar instrumentos de violência.
Embora esse processo seja variável ao longo do tempo e nos diferentes países, o
que é evidente é que o Estado moderno formou-se a partir da sua capacidade de se
sobrepor às formas de organizações concorrentes, que tinham a pretensão de formar
espaços territoriais, ordens (nobres, religiosos e corporações do ofício, por exemplo)
ou domínios concorrentes da vida social (direito canônico) etc. A concentração da
jurisdição “judicial” no Estado implicava a criação de um corpo de juízes ativistas
no sentido de que seu papel era afirmar a soberania do Estado sobre as pretensões
de outras jurisdições e ordens normativas em seu território. Porém, este processo é
marcado por conflitos decorrentes de questões políticas de cada Estado (diversidade
étnica, religiosa, linguística), entre diversos princípios e fontes de direito (direito na-
tural, direitos tradicionais, direito romano, legislação, isenções e privilégios), entre
jurisdição e razão de Estado, entre governantes e juízes, com suas próprias origens
sociais e adesões.
O Judiciário foi investido de poderes centrais para a defesa do Estado, desde a ins-
tituição dos Estados constitucionais contemporâneos. Nos Estados Unidos, isso se vê
no poder reconhecido ao Judiciário federal para controlar a decretação, pelo chefe do
Executivo, da suspensão do habeas corpus em tempo de guerra. O significado da exclu-
são do conhecimento judicial de questões políticas é questão bastante controvertida.
Assim, falar em “judicialização” da ordem política, ou da polity, implica colocar
considerações sobre a conformação do Judiciário no processo de formação e vigência
da ordem estatal, mas o termo novo não acrescenta grande coisa para compreender a
questão.8
2. Política pode ser considerada como politics, ou as atividades que, no interior de
uma ordem política, dedicam-se de forma especializada às atividades governamentais
e suas relações com a sociedade. É a política, no sentido comum do termo.
Neste sentido parece haver alguma novidade. Vê-se no noticiário que decisões ju-
diciais intervêm cotidianamente nas atividades políticas, o que dá a impressão de uma
constante ação “externa” dos juízes sobre “os políticos”. Mas os autores afirmam que a
democracia e a separação de poderes são condições para a judicialização e, assim, esta
8 Aliás, poderíamos, num exercício paradoxal, falar que, nos úlƟmos tempos, teria havido uma desju-
dicialização da polity (ou pelo menos das suas precondições), se considerarmos que a globalização
teve como efeitos a expansão da produção normaƟva internacional, o reforço da lex mercatoria, o
fortalecimento de insƟtuições mulƟlaterais com poderes jurisdicionais ou quase-judiciais. Mas a
emergência dessas instâncias poderia signiĮcar a judicialização da ordem internacional... Evidente-
mente, essa é só uma observação e não valeria a pena seguir por essa via.
Parte I | Capítulo 7 | Sobre o Judiciário e a judicialização 163
seria um fenômeno recente, que se expandiu junto com a extensão das democracias
em muitos países do mundo ao longo da segunda metade do século XX.
A atuação dos tribunais na política já ocorria nas monarquias europeias, nos con-
frontos entre o monarca, a aristocracia e o clero. Emblemáticos são os impasses recor-
rentes enfrentados pela monarquia francesa ao longo do século XVIII, em episódios
que estão associados diretamente à eclosão da Revolução Francesa. Os magistrados
eram ativos participantes das intrigas palacianas, em sua condição de noblesse de robe,
em virtude de sua competência técnica, de suas origens ou alianças sociais. Mas a
sua intervenção “na política”, enquanto juízes, torna-se visível nos Estados contem-
porâneos, em que se separam Estado e sociedade civil, distribuem-se os poderes, es-
pecializa-se a política e forma-se, gradualmente, o Judiciário autônomo, com juízes
especializados.
A criação de um Poder Judiciário com poderes de intervenção na política não
tinha apenas a função de proteger as liberdades individuais. Os federalistas norte-
americanos atribuíam ao Judiciário federal um papel de manutenção do equilíbrio ge-
ral dos poderes fixados pela Constituição. Um sistema constitucional que estabelecia
a divisão e o exercício compartilhado da soberania implicava a adoção de uma forma
de controle dos diversos poderes que não resultasse na supremacia do poder que
exercesse o controle. Por essa razão o controle seria atribuído ao Judiciário federal,
cujos integrantes não tinham poder de iniciativa, eram vinculados a procedimentos e
não podiam agir segundo sua vontade, mas em nome da Constituição, não dispondo
de controle sobre a força militar, de comando sobre os agentes, nem dos recursos pú-
blicos.9 Ou seja, o equilíbrio da Constituição seria função do controle ativo dos juízes
sobre os outros poderes políticos, o qual, ao invés de expressar a adesão à política
majoritária, pressupõe o exame substantivo da compatibilidade entre as atividades e
produtos da política e a Constituição.10 Em outros termos, os juízes independentes são
instituídos para intervir na(s) política(s), e essa intervenção é efetiva mesmo quando
ocorre com pouca frequência.
E, como lá, aqui nós temos, desde a primeira Constituição republicana, adotado
o controle judicial da constitucionalidade de atos legislativos, e reconhecido outros
poderes do Judiciário no campo do direito público. O modelo do controle das leis foi
adaptado em países europeus a partir de meados do século XIX, reforçado na Cons-
9 Ver Madison, Hamilton, Jay, 1979, especialmente o cap. 78, e Baylin, 2003.
10 Esses poderes políƟcos dos juízes são mais signiĮcaƟvos porque lá os juízes federais são nomeados
pelo chefe do ExecuƟvo com aprovação do Senado e os juízes estaduais são em boa parte eleitos
diretamente pelos eleitores. O mesmo acontece em muitos outros países da América LaƟna, que se
inspiraram no modelo norte-americano.
164 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
dos juízes, mas porque os próprios dirigentes políticos imperiais consideravam cor-
reta essa participação dos juízes na política. Sua atuação situa-se no cerne da política
do Império, mas eles divergiam sobre a extensão dos poderes do centro político do
Império sobre o território. Uma questão de direitos fundamentais de cidadania cinde
os juízes tanto quanto os partidos políticos: os direitos dos escravos. O ativismo de
juízes do Império é vasto, como a sua atuação contra a direção política do Imperador
e a extensão da capacidade do centro político do Império, contra a extensão do poder
civil sobre o eclesiástico, intervindo em questões de política externa, ao resistirem à
repressão ao tráfico de escravos depois de 1850.
Algumas das políticas mais relevantes no período imperial foram atribuídas aos
magistrados e promotores, como a implementação da Lei de Terras e da Lei do Ventre
Livre. Essa atuação não é surpreendente quando se tem em mente que essas carreiras
eram tudo o que havia no país como esboço de burocracias públicas. O ativismo dos
juízes era aqui necessário nos dois sentidos, seja para superar as limitações e contradi-
ções que haviam sido postas nos textos das leis pelos representantes dos proprietários,
a fim de implementar a política do governo central contra as resistências dos proprie-
tários quanto, por motivos práticos ou de princípio, resistir àquela política em favor
desses interesses. Em outros termos, o ativismo dos juízes era um elemento relevante
para o sucesso ou o fracasso de duas políticas públicas fundamentais para a formação
da sociedade brasileira contemporânea.
A ativação do Judiciário por movimentos populares para fazer valer seus direitos e
a receptividade de uma parte dos juízes a essas demandas não começou ontem. Indiví-
duos pobres, livres, libertos ou mesmo escravos, não estavam presentes em processos
judiciais apenas como sujeitos passivos (réus) ou como objetos (escravo-coisa) dos
processos. Não era incomum que eles ativassem o Judiciário para defender ou promo-
ver seus direitos. Uma parte importante da história do direito e do Judiciário no Brasil
é a da atuação de movimentos pela abolição em conjunto com rábulas e advogados
para promover a libertação de escravos.
Foram utilizadas referências ao período imperial para ilustrar a “judicialização”
nos quatro sentidos da política tratados acima. O Judiciário centrado na resolução de
casos individuais, na proteção passiva das liberdades negativas reconhecidas aos já
cidadãos, é a parte da história do conservadorismo político, engajado na limitação do
alcance de medidas legislativas do poder central que visassem promover mudanças
sociais no país. A outra parte é a de um engajamento ativo na concretização de políti-
cas, em nome da proteção dos direitos fundamentais e liberdades de todos (incluídos
os reduzidos à escravidão e outras situações análogas), com o se qual buscava trans-
168 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
11 Em seu senƟdo anƟgo, iurisdicƟo, poder de dizer o direito, era contraposto a imperium, que se de-
Įnia como a capacidade de dar ordens, o conjunto de poderes que têm seu princípio na detenção
de uma fração de poder público, o poder de dispor da força pública. No exercício da jurisdição,
o pretor, embora autoridade pública apenas examinava se o pedido era admissível (jurisdicƟo),
aprovando que o cidadão iniciasse uma ação, que seria julgada por um árbitro ou um júri (judi-
caƟo). Daí resultou a oposição entre a jurisdição como simples declaração do direito, feita por
um magistrado (pretor) ou por um tribunal de cidadãos, e aos atos de execução desse direito
declarado, que eram inicialmente atribuídos aos próprios cidadãos e, mais tarde, passaram a ser
garanƟdos pela autoridade pública. Essa disƟnção entre declaração do direito e atos de execução
foi associada à separação dos poderes do Estado contemporâneo, em que ao Judiciário caberia
apenas a primeira, cabendo a segunda ser promovida pelo Estado (execuções penais) ou pelos
próprios credores (portadores de um ơtulo judicial válido que declare uma obrigação certa e
172 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
lado, à ordem estatal como um todo, como um atributo do Estado soberano, tanto do
ponto de vista externo, o seu reconhecimento como sujeito da sociedade internacio-
nal, como interno, a autoridade para fixar as regras das relações sociais ocorrentes no
seu território. Daí que o termo é sinônimo de competência, autoridade ou poderes de
órgãos ou agentes estatais (sua jurisdição compreende certo território, domínio etc.).
Por outro lado, jurisdição refere-se ao poder delegado para determinar o sentido da
lei, resolvendo litígios. Como decorrência estão associados os significados dos tribu-
nais em seu conjunto, os seus agentes (chefe de jurisdição), determinado âmbito ou
tipo de competência (jurisdição civil ou administrativa, jurisdição sobre uma deter-
minada comarca, jurisdição privilegiada, jurisdição de exceção), extensão dos poderes
dos juízes (jurisdição plena ou restrita), forma do processo (jurisdição graciosa ou
contenciosa). No estado de direito, para se garantir os direitos por meio de julgamen-
tos imparciais, essa forma de “jurisdição judiciária” tem extenso campo de aplicação e
características particulares, como a separação de poderes, as formalidades processuais,
as prerrogativas e vedações dos magistrados etc.
Nos Estados modernos, o tendencial monopólio da força física legítima sobre o
território significou a unificação, pelas instâncias de decisão do Estado, das fontes nor-
mativas e das organizações capazes de mobilizar instrumentos de violência. A jurisdi-
ção “judicial” é a investidura de uma parcela daquela capacidade para determinadas
autoridades para que exerçam os seus poderes sobre um conjunto determinado de
litígios (conflitos “civis”, persecuções penais), sob formas e condições estabelecidas.
Para isso, adotam-se determinados arranjos institucionais que impõem aos conflitos
a forma de oposição entre direitos, e que assumem assim a forma de litígios a serem
decididos, com as garantias do devido processo legal, por um juiz imparcial, segundo
o direito.
Nas democracias constitucionais contemporâneas, a delimitação entre jurisdição
“geral” e jurisdição “judicial” torna-se menos precisa. A ordem política adota a forma
de comunidade política instituída, regulada e voltada à realização do direito. A juris-
dição judicial continua como uma forma especial de investidura mas os seus papéis na
ordem política são muito mais amplos, incluindo a garantia da ordem constitucional,
das condições da democracia política, do pluralismo e a efetividade do princípio do
direito nas relações políticas e sociais. Eliminaram-se restrições à jurisdição judiciá-
ria, baseadas em prerrogativas, domínios reservados para o exercício da autoridade;
determinada contra um devedor), com a ajuda da força pública, quando necessária a execução
forçada da dívida (cf. Verbetes “jurisdição” e “imperium” em Cornu, 2007 e Babot e Boucaud-
Maître, 2002).
Parte I | Capítulo 7 | Sobre o Judiciário e a judicialização 173
12 Ver as comparações propostas por Guarnieri e Pederzolli (1996) e por Zaīaroni (1994).
174 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A judicialização da política é um nome atribuído a partir do início dos anos no-
venta ao protagonismo político de juízes, o qual não representava qualquer novida-
de e não tinha implicações fundamentais para as democracias contemporâneas. Uma
exploração dos sentidos desse termo nos diversos países revela que ele é utilizado
para se referir a questões muito distintas, como o poder de investigação criminal dos
juízes italianos no processo das mãos limpas, a expansão da jurisdição administrativa
na Inglaterra, as reformas do sistema judicial na Suécia, os conflitos sobre direitos na
América Latina, a adoção de modelos de democracia constitucional nos países pós-
comunistas da Europa oriental etc.
Entre nós, o início de pesquisas em ciência política e sociologia sobre o Poder
Judiciário brasileiro no começo dos anos noventa coincidiu com um contexto político
marcado pela tensão entre a ampliação de suas atribuições na Constituição de 1988,
continuidade organizacional e de quadros e uma agenda de reformas liberalizantes
que se voltou contra a Constituição e um possível protagonismo dos juízes.
A expressão foi incorporada pela linguagem acadêmica, pauta a agenda de pesqui-
sas e tornou-se de uso corrente. O presente artigo tentou questionar esse prêt-à-penser,
que se apresenta como um atalho aparentemente simples, que permite formular dire-
tamente questões polêmicas sobre a atuação dos juízes sobre as políticas públicas sob
a democracia constitucional pós-1988. Com base na análise apresentada, conclui-se
que a expressão judicialização da política é teoricamente inválida, porque apresenta
deslizes conceituais, ao simplificar as relações entre os tribunais e a política, revelan-
do uma concepção estreita da jurisdição e do direito; ela representa uma abordagem
Parte I | Capítulo 7 | Sobre o Judiciário e a judicialização 177
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8
A judicialização da política na América Latina:
algumas perspectivas para sua compreensão
Cássio Casagrande*1
Sumário:
1. Apresentação.
2. Judicialização da políƟca na América LaƟna.
3. Causas da judicialização da políƟca na América LaƟna.
4. Considerações Įnais.
5. Referências bibliográĮcas.
1. APRESENTAÇÃO
Duas décadas e meia após o colapso dos regimes autoritários na América Latina,
já se pode considerar, finalmente, que o longo período de transição para a democracia
no continente está definitivamente concluído – a despeito dos conhecidos sobressal-
tos que marcaram este período em alguns países, notadamente na Argentina, no Peru
e na Venezuela e, recentemente, em Honduras. De uma forma geral – e com a óbvia
exceção de Cuba – pode-se afirmar que a democracia representativa e os procedimen-
tos eleitorais vêm sendo razoavelmente respeitados na região.
Concluída a longa transição para a democracia, os países da região passaram (com
notáveis e importantes diferenças de timing) a uma nova etapa de seu desenvolvimento
institucional – a consolidação do regime democrático para além da mera representa-
ção eleitoral. Este novo período é marcado pela necessidade de aperfeiçoamento do
* Doutor em Ciência PolíƟca pelo IUPERJ. Professor de Direito ConsƟtucional da Universidade Federal
Fluminense. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro. É autor do livro “Mi-
nistério Público e a Judicialização da PolíƟca” (Sergio Fabris Editor, 2008).
182 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
1 O conceito de “rights-enhancing judicializaƟon” foi criado por Charles Epp, ao analisar como os tri-
bunais norte-americanos ampliaram signiĮcaƟvamente, através da jurisprudência, o rol de direitos
consƟtucionais, oportunizando assim a ação de associações e aƟvistas de direitos civis.
Parte I | Capítulo 8 | A judicialização da política na América Latina: algumas... 183
2 Conforme observado pelo jurista argenƟno Carlos María Cárcova: “EfeƟvamente, com a recondução
democráƟca do conƟnente, valorizou-se o papel de uma jusƟça independente e se pôs em suas mãos
a palavra Įnal acerca da legiƟmidade das estratégias mediante as quais os governos que protago-
nizaram os complexos processos de transição democráƟca resolveram saldar suas contas com o
passado e construir uma nova insƟtucionalidade”.
186 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
A partir deste roteiro, é possível percorrer algumas das questões que ainda care-
cem de melhor aprofundamento para que se possa concluir se o fenômeno é positivo
ou negativo para a consolidação democrática.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A judicialização da política pressupõe, por definição, a possibilidade de conflito
entre dois tipos de representação da esfera democrática: de um lado, a democracia
eleitoral e suas instituições representativas e de outro a democracia procedimental
e suas instituições de garantias constitucionais contra os abusos da maioria. Se as
tensões subjacentes a este modelo já são bem conhecidas nos Estados Unidos e na
Europa, a questão adquire um significado específico nas assim chamadas “novas de-
mocracias”, na medida em que nos países recentemente democratizados da América
Latina, as instituições do sistema de justiça ainda não estão devidamente consolidadas
e preparadas para estes novos papéis. Assim, uma propensão ao ativismo judicial em
um contexto histórico de longa duração em que o executivo sempre foi o poder domi-
nante poderia levar a uma forte instabilidade institucional. O constitucionalista chile-
no Javier Couso, analisando o comportamento de autocontenção das cortes chilenas
(Couso, 2004), considera que a recusa dos juízes em assumir um papel politicamente
mais ativo não deve necessariamente ser vista em termos negativos. Segundo sustenta,
esta atitude mais cautelosa pode ser vista como estrategicamente voltada a preservar
a autonomia e independência do judiciário perante os demais poderes. Além disto, se
os juízes se engajarem em uma agenda política mais ambiciosa, poderiam ser levados
por uma politização que minaria sua credibilidade e legitimidade enquanto poderes
independentes, status que só foi consolidado recentemente.
Ou seja, sob esta perspectiva, a questão crucial para o sistema judicial – no atual
estágio em que as democracias podem ser tidas por “não consolidadas” – seria a afir-
mação da independência da magistratura, que estaria em risco se o judiciário se expu-
ser demasiadamente em questões que deveriam ser deixadas ao sistema de represen-
tação política na medida em que impliquem um grande espaço de discricionariedade
para sua solução.
Para os que veem este aspecto crítico da judicialização da política nas novas de-
mocracias, esse perigo seria ainda maior se os tribunais latino-americanos intervierem
de forma acentuada em assuntos de natureza econômica e social que importem em
transferência na alocação de recursos escassos, na medida em que os competidores
políticos se veriam diante da prescindibilidade dos pactos políticos e alianças parti-
dárias, fragilizando, em consequência, os mecanismos de representação eleitoral e de
190 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
acompanhamento, pelos eleitores, dos compromissos eleitorais, uma vez que estes
poderiam ser facilmente subvertidos mediante ações em juízo.
Ainda nesta linha de pensamento, decisões judiciais refratárias a determinadas
políticas públicas podem vir a ser anunciadas e criticadas pelos chefes do executivo
como contrárias à soberania popular, com o intuito de justificar um maior controle
do judiciário. Isto pode assumir uma dimensão ainda maior se os dirigentes políticos
tentarem caracterizar as decisões judiciais como uma “reação conservadora” aos po-
deres eleitos democraticamente, o que tem sido visto, sobretudo, em países onde os
governos caminham no fio da navalha, em sociedades profundamente divididas po-
liticamente, cujos chefes de governo vêm agindo muitas vezes de forma plebiscitária,
como ocorre na Bolívia e na Venezuela.
A excessiva autonomização do poder judiciário também tem sido criticada porque
o judiciário, embora tenha sido situado na posição de árbitro político no período pós-
transição, acabou por ficar insulado no sistema de freios e contrapesos, muitas vezes
sem formas de controle adequadas e corretamente dimensionadas aos seus novos pa-
péis. O jurista argentino Roberto Gargarella, observando o atual estágio de desenvol-
vimento do judiciário na América Latina, conclui que os juízes receberam, nas novas
democracias, amplos poderes, o que, combinado com tradição predominante da civil
law – que não oferece uma teoria geral interpretativa para controle de constituciona-
lidade, haja vista que foi concebida para aplicação limitada do direito positivo a casos
concretos – permite que os magistrados exerçam uma boa dose de discricionariedade
em suas decisões. Além disto, como corporação, os juízes permanecem bastante iso-
lados da sociedade, dispondo de inúmeras garantias e prerrogativas, sem que estejam
sujeitos a mecanismos efetivos de controle do aparelho judicial. Para este autor, a
despeito das promissoras possibilidades que a judicialização oferece para a afirmação
da cidadania, a combinação de amplos poderes com poucas formas de controles não
se coaduna com o procedimento democrático e pode mesmo lhe oferecer riscos (Gar-
garella, 2004).
Outro efeito a ser considerado, quanto aos riscos apresentados pelo fenômeno da
judicialização, diz respeito ao seu eventual potencial de desmobilização política dos
grupos organizados da sociedade, que seriam estimulados a recorrer diretamente ao
judiciário para ver atendidas as suas demandas, sem que precisem participar do pro-
cesso eleitoral ou entrar em negociação com grupos que disputam os mesmos recursos
escassos.
Todos estes fatores devem ser levados em conta para recordar que, em alguns
países da América Latina que experimentam as democracias “não consolidadas”, hou-
Parte I | Capítulo 8 | A judicialização da política na América Latina: algumas... 191
ve, como lembra Javier Couso, diversos retrocessos institucionais que abalaram pro-
fundamente a independência do Poder Judiciário: na Argentina, o governo Menem
aumentou o número de juízes da Corte Suprema para assegurar uma maioria que
lhe fosse favorável; no Perú, Alberto Fujimori fechou a Corte Constitucional quando
esta proferiu uma decisão que lhe foi contrária; na Venezuela, Hugo Chavez obrigou
a presidenta da Corte Suprema a renunciar a seu cargo, de modo a obter em seguida
maioria naquele tribunal.
O constitucionalista chileno lembra, todavia, que há de outra parte os casos da
Colômbia e da Costa Rica – e, de nossa parte, acrescentamos o Brasil -, os quais po-
dem ser considerados casos de sucesso da judicialização, isto é, onde as cortes cons-
titucionais vêm agindo com razoável ativismo, muitas vezes confrontando abusos do
legislativo e o executivo, sem que tenha havido qualquer inflexão na independência
judicial.
Assim, se de um lado a judicialização oferece riscos para a continuidade da esta-
bilidade democrática na América Latina, não há como negar que um aprofundamento
ou a consolidação definitiva da democracia demanda uma participação mais ativa dos
juízes, em especial nos procedimentos de controle e accountability.
Se os retrocessos já referidos anteriormente tiveram como consequência imediata
um cerceamento às garantias da magistratura, também é preciso considerar que não
há qualquer perspectiva positiva para as democracias “não consolidadas” se estas não
dispuserem de um arranjo institucional que possa impor controles jurídicos ao po-
der político, seja no que diz respeito à proteção dos direitos humanos e dos grupos
minoritários, seja no que se refere à possibilidade de se garantir lisura nos processos
eleitorais e probidade no trato da administração pública.
Não se pode esquecer que a restauração da democracia no subcontinente foi em
geral o resultado de um processo ambicioso para o estabelecimento de um verdadeiro
Estado Democrático de Direito, no qual são indispensáveis as “instituições de respon-
sabilidade horizontal”, assim definidas por Guillermo O’Donnel (1998):
todas as poliarquias institucionalizadas incluem várias agências dotadas de au-
toridade legalmente definida para sancionar atos ilegais ou de alguma maneira
inapropriados cometidos por autoridades. Esta é uma expressão do Estado de
Direito em uma das áreas onde é mais difícil de implantar, vale dizer, sobre os
agentes dos Estado, especialmente os funcionários de alto escalão.
Outro aspecto relevante a ser considerado é que o constitucionalismo democráti-
co implantado nos países da região caracterizou-se por regulamentar de forma minu-
dente os direitos econômicos e sociais, cuja falta de implementação efetiva tem levado
192 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÁRCOVA, Carlos María. Direito, Política e Magistratura. São Paulo: LTr, 1996.
COUSO, Javier. The Judicialization of Chilean Politics: The Rights Revolution That
Never Was. In: SIEDER, Rachel; SCHJOLDEN, Line; ANGELL, Alan. The Ju-
dicialization of Politics in Latin America. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
EPP, Charles. The Rights Revolution: Lawyers, Activists and Supreme Courts in Compara-
tive Perspective. Chicago: Chicago University Press, 1988.
GARGARELLA, Roberto. “In Search of Democratic Justice – What Courts Should Not Do:
Argentina, 1983-2002”. In: Democratization and The Judiciary – The Accountability
Function of Courts in New Democracies. ed. by GLOPPEN, Siri; GARGARELLA,
Roberto and SKAAR, Elin. London: Frank Cass Publishers, 2004.
O’DONNEL, Guillermo O’Donnel. Counterpoints. Selected Essays on Authoritarism and
Democratization. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1998.
9
Politização e instituições judiciais no Brasil
após a Constituição de 1988
Fabiano Engelmann*1
Sumário:
1. Apresentação.
2. A emergência do associaƟvismo.
3. As disputas em torno da deĮnição da “reforma do judiciário”.
4. O caso representaƟvo da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
(Ajuris): lutas corporaƟvas, “democraƟzação do judiciário” e defesa do
“acesso à jusƟça”.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bibliográĮcas.
1. APRESENTAÇÃO
O engajamento político dos juristas de Estado no Brasil pode ser apreendido em
um conjunto de mobilizações de magistrados e promotores públicos, articuladas no
espaço das associações corporativas, que tem início ao longo do processo Consti-
tuinte de 1986 e culmina com as definições institucionais das prerrogativas para o
exercício das funções típicas das carreiras jurídicas de Estado após a promulgação da
nova Constituição. Para uma melhor compreensão desse processo político é impor-
tante considerar como dimensões de análise as definições institucionais das carreiras
de Estado – que representam incentivos à politização dos juristas – e os efeitos de
conjuntura do espaço político que se forma a partir da Constituinte de 1986. Pode-se
adicionar a essas dimensões as lutas corporativas da década de 1990, tanto para a con-
2. A EMERGÊNCIA DO ASSOCIATIVISMO
A ativação das associações de juristas de Estado a partir do final da década de 1980
pode ser confrontada com o maior ativismo da OAB durante a década de 1970, ao
longo do regime militar, atuando através das comissões de direitos humanos na defesa
de presos políticos e no ativismo em torno da redemocratização do país. A partir do
processo Constituinte de 1988, esse quadro sofre transformações, emergindo as asso-
ciações de juízes e promotores como porta-vozes do mundo jurídico.
É importante ressaltar a diferença do associativismo dos juristas, no caso brasilei-
ro, em relação a exemplos de grande ativação política da magistratura, como a Itália e
a Espanha. Esses dois países são recorrentemente citados pela bibliografia produzida
por juristas e mencionados em entrevistas, pelas lideranças dos magistrados brasilei-
ros, como paradigmáticos. Nesses casos, o associativismo está estreitamente vinculado
às correntes ideológicas e organizações políticas que se constituem fora do espaço jurí-
dico, existindo um conjunto de associações que, inclusive, se posicionam em oposição
às cúpulas dos tribunais, assumindo uma natureza sindical.
De certa maneira, a França também se aproxima dessa configuração com a sindi-
calização da magistratura a partir da década de 1970.2 No caso brasileiro, as associa-
ções de magistrados e promotores são criadas, num primeiro momento, para serem
clubes sociais servindo como espaço de consagração com festas, sede social e pro-
gramas de assistência aos associados. Nas décadas de 1980 e 1990, o associativismo
construído nos moldes gremiais se afirma como centralizador da articulação da defesa
de interesses corporativos e, mesmo nessa tarefa, não assume a postura sindical nos
termos de enfrentamento sistemático com as cúpulas dos tribunais, mantendo uma
posição ambivalente em relação a estes.
O engajamento político das associações profissionais de juízes e promotores se
expande em função das reivindicações corporativas em torno da luta por garantias
institucionais, que se articula em torno do debate constituinte de 1988. A ativação
2 Sobre a sindicalização da magistratura francesa e seus efeitos no campo jurídico na França, ver De-
villé (1992).
198 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
3 Ver a respeito das alterações entre as deĮnições dos papéis do Ministério Público estadual, os de-
poimentos das principais lideranças dos promotores de jusƟça que atuaram entre 1940 e 1980 no
Rio Grande do Sul conƟdos nos volumes 1 e 2 da coletânea organizada por Loiva O. Félix (2001a e
2001b).
Parte II | Capítulo 9 | Politização e instituições judiciais no Brasil após a Constituição... 199
5 A 4a Região, no caso da JusƟça Federal, abrange os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná.
Parte II | Capítulo 9 | Politização e instituições judiciais no Brasil após a Constituição... 205
final de carreira e advogados indicados pela OAB. Observou-se para os casos dos
“juízes alternativos”, os quais se posicionam de forma a enfrentar a cúpula do Tribu-
nal de Justiça (formada pelo Órgão Especial que se compõe dos 25 desembargadores
mais antigos), que sua promoção ao Tribunal ocorreu principalmente por antiguida-
de. Como não há critérios objetivos para a promoção por merecimento esta se torna
instrumento para hierarquizar simbolicamente perfis de juízes, mais (promovidos por
merecimento) ou menos (promovidos por antiguidade), aceitos pela instituição.
Os critérios de promoção da carreira e a eleição da cúpula do Tribunal são os
pontos de tensão mais fortes de oposição entre as lideranças dos juízes de primeiro
grau e a cúpula, presentes nas tomadas de posição da associação pela democratização
dos critérios. Na justiça estadual, os pedidos de promoção dos magistrados de carreira
são analisados em processos administrativos sigilosos, em sessões fechadas, pelos 25
desembargadores mais antigos. Da mesma forma, os juízes não têm acesso aos crité-
rios utilizados, apenas à decisão final. A promoção pode ser “por maioria” ou “por
unanimidade”.
Entre as propostas de “democratização” que emergem na década de 1990, uma das
reivindicações dos juízes que se posicionam criticamente é a eleição da presidência do
Tribunal e acesso a cargos de direção (primeira, segunda e terceira, vice-presidências
e Corregedoria-Geral) pelo conjunto dos juízes e não apenas pelos desembargadores
que compõem o Tribunal Pleno. A eleição e publicização nos processos de promoções
são defendidas pelos dirigentes da associação e pelos “juízes alternativos” como forma
de “espelhar melhor as tendências presentes no interior do poder Judiciário Estadual”.
O mecanismo que exclui os magistrados de primeiro grau é apontado pelos di-
rigentes da Ajuris como um dos fatores que favorece a formação de uma casta, pois
na medida em que galgam postos na hierarquia judiciária os juízes tenderiam a ser
cooptados pela cúpula do Tribunal, “se acomodando” às instituições.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O crescente predomínio do recrutamento por concurso público impessoal para as
carreiras de Estado, as lutas pela institucionalização dessas carreiras e sua autonomi-
zação relativa em relação ao espaço da política e da economia ampliam as condições
de apropriações de novos usos do direito por diversos grupos sociais. Por outro lado,
contribuem para a emergência de novas fundamentações para ideias morais universais
de Justiça, Estado, bem comum ou “interesses gerais da sociedade”, artefatos através
dos quais os juristas expressam sua expertise e seu monopólio de dizer o direito.
208 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Numa análise mais ampla e quando confrontado com estudos produzidos sobre
outros países, esse processo pode ser lido como indicativo das movimentações dos
juristas na reestruturação do espaço de poder. Nessa dimensão, os profissionais do
direito perdem posições, no âmbito político e de gestão do Estado, para segmentos da
elite burocrática que ascendem com expertises calcadas predominantemente na ma-
temática aplicada, como os economistas e contabilistas e operam um fechamento do
mundo jurídico. Tal processo acompanha o ritmo de redemocratização política do
país, que implica na ativação dos movimentos sociais e a emergência de demandas
destes movimentos para a arena jurídica, resultantes da tradução de causas sociais
e políticas para o direito. Tais demandas reforçam a legitimidade do mundo judicial
como mediador de conflitos sociais e propiciam, ao mesmo tempo, a (re)legitimação
dos juristas no espaço do poder – resguardados por garantias corporativas obtidas ao
longo da Constituinte de 1986 – como defensores dos “interesses gerais da sociedade”,
do “bem comum”, em contrapartida à “defesa dos interesses de mercado”.
Em síntese, resta investigar, ainda, a continuidade e extensão resultantes das mo-
bilizações dos juristas de Estado em torno das garantias corporativas. Há necessidade
de observar se restam apenas como mobilizações conjunturais ou se representam um
novo padrão de relação dos juristas com a política. Uma hipótese bastante forte para
países como a França, nas análises da presença dos magistrados nas investigações e
denúncias de escândalos político-financeiros na década de 1990, remete a uma mu-
dança estrutural do posicionamento dos juristas de Estado no espaço de poder. Nota-
damente pela mobilização de sua condição institucional e autonomia frente à econo-
mia e à política, como recurso para a disputa de poder político com outros segmentos
da elite burocrática e política.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRIQUET, J. L. La ‘guerre des justes’: La magistrature antimafia dans la crise italienne.
In: BRIQUET, J-L. l. et GARRAUD, P. Juger la politique. Rennes: Presses Univer-
sitaire de Rennes, 2001.
CAM, P. Juges rouges et droit du travail. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. no 19,
jan./1978.
COSTA, Flávio Dino de Castro e. Autogoverno e controle do Judiciário no Brasil: A proposta
de criação do Conselho Nacional de Justiça. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.
DEVILLÉ, A. L’entrée du syndicat de la magistrature dans le champ juridique en 1968.
Droit et Societé. no 22, 1992.
Parte II | Capítulo 9 | Politização e instituições judiciais no Brasil após a Constituição... 209
Sumário:
1. Apresentação.
2. Os direitos humanos como normas peremptórias de direito internacional
(jus cogens).
3. A possibilidade de hierarquização das normas de direitos humanos.
3.1. Jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos.
3.2. Jurisprudência do Tribunal Penal Internacional ad hoc para a ex-
Iugoslávia.
3.3. Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
3.4. Jurisprudência da Corte Internacional de JusƟça.
4. O reconhecimento judicial da nova exceção à imunidade de jurisdição: o
caso Pinochet.
4.1. Os argumentos dos Lordes majoritários da decisão de 25/11/1998.
4.2. Os argumentos dos Lordes minoritários.
4.3. A opinião dos Lordes majoritários da decisão de 24/03/1999.
4.3.1. Lorde Browne-Wilkinson.
4.3.2. Lorde Hope of Craighead.
4.3.3. Lorde HuƩon.
4.3.4. Lorde Saville of Newdigate.
4.3.5. Lorde Millet.
4.3.6. Lorde Philips.
4.4. A primazia da lei interna sobre o direito internacional.
4.5. A coerência dos acórdãos do caso Pinochet: o princípio da
responsabilidade criminal individual.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bibliográĮcas.
1. APRESENTAÇÃO
O presente artigo tratará do julgamento do ex-Chefe de Estado do Chile, Pinochet,
pela Câmara dos Lordes, no Reino Unido.
Para tanto, far-se-á, inicialmente, uma análise da internacionalização dos direitos
humanos e da sua natureza como normas de jus cogens.
Será constatado que um ato de um ex-Chefe de Estado, ainda que tenha sido rea-
lizado no exercício de uma função pública, poderá ser julgado pelo Poder Judiciário,
se este ato for um crime internacional como a tortura, não se aplicando a regra da
imunidade de jurisdição.
Ocorre, assim, a judicialização da política, ou seja, questões políticas passam a ser
julgadas por autoridades judiciárias por meio de argumentos jurídicos.
1 ONU, Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, (1969) 1155 UNTS 331.
212 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Há, ainda, o art. 64 da mesma Convenção, o qual diz que, se uma nova norma de
direito internacional peremptória surgir, qualquer tratado que estiver em contradição
com essa norma se torna nulo.
Com relação ao art. 53 mencionado, Robledo chama a atenção para a versão em es-
panhol que teria uma notável variação, qual seja, ao invés de definir a norma imperativa
como aquela da qual nenhuma derrogação seria permitida, ela diz que a norma impera-
tiva seria aquela que não admite acordo em contrário. Dessa maneira, a essência do jus
cogens não residiria na inderrogabilidade da norma, mas, sim, na impossibilidade para os
sujeitos da norma de se subtrair em qualquer caso de sua aplicação (Robledo, 1981: 91).
Para Brownlie, contudo, a principal característica dessas normas é a sua não der-
rogabilidade. São regras de direito consuetudinário que não podem ser afastadas por
tratado ou aquiescência, mas apenas pela formação de uma regra consuetudinária
subsequente de efeito contrário. Os exemplos menos controversos desse tipo de nor-
ma seriam a proibição do uso da força, as regras sobre o genocídio, a não discrimi-
nação racial, os crimes contra a humanidade e as regras que proíbem o comércio de
escravos e a pirataria (Brownlie, 1997: 537).
Assim, o direito internacional conhece um grupo de normas, as quais não são
derrogáveis, também chamadas de a ordem pública da comunidade internacional.
Nesse sentido, Orakhelashvili (2008: 27-28), o qual menciona uma ordem públi-
ca verdadeiramente internacional, a qual emana do jus cogens:
Teachings of private international law accept that there can be a proper interna-
tional public order common to all nations in the sense of public international
law. In this sense, a treaty authorizing slavery is contrary to international public
order. These teachings make a difference between public order as part of natio-
nal law, and universal public order or ordre public vraiment international of the
international community of States, which follows from jus cogens of supranatio-
nal law, and this latter category can only exist as a genuine norm of international
law and be applicable by international courts.
Ainda de acordo com o juiz Moreno-Quintana, no caso Guardianship of Infants,
mencionando uma ordem jurídica internacional:
International public order operates within the limits of system of public inter-
national law, when it lays down certain principles such as the general principles
of the law of nations and the fundamental rights of States, respect for which is
indispensable to the legal coexistence of political units which make up the in-
ternational community.2
3 No mesmo senƟdo, veja-se Dolinger, Jacob. Ordem pública mundial; ordem pública verdadeira-
mente internacional no direito internacional privado. Revista de Informação LegislaƟva do Senado
Federal. p. 90: 211: “Assim, idenƟĮcar-se-ia por primeiro grau de ordem pública aquele de âmbito
interno, que estabelece, v.g., a invalidade de cláusulas contratuais que Įram princípios basilares do
ordenamento jurídico; o segundo grau designaria a ordem pública de direito internacional privado,
que é aquela que impede a aceitação de leis, atos e decisões estrangeiras contrários à ordem públi-
ca interna e, consequentemente, produz efeitos no plano internacional. O terceiro grau de ordem
pública é o que estabelece os princípios universais, nos vários setores do direito internacional, bem
como nas relações internacionais, servindo aos mais altos interesses da comunidade mundial, às
aspirações comuns da humanidade. Trata-se de uma ordem de valores situada acima dos sistemas
jurídicos internos, que, eventualmente, poderá estar até mesmo em colisão com interesses circuns-
tanciais das nações individualmente consideradas”.
214 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Ora, não há um tratado que preveja que os direitos humanos são normas jus
cogens. Dessa maneira, resta o costume internacional como fonte do direito interna-
cional, fazendo com que uma norma passe a ser considerada imperativa do direito in-
ternacional. Assim, o responsável pela valoração do caráter fundamental da norma in-
ternacional e de seu caráter de jus cogens é a comunidade internacional como um todo.
E a comissão de direito internacional da Organização das Nações Unidas entende que
essa comunidade internacional dos Estados deve reunir os Estados representativos de
todas as tendências políticas e econômicas do mundo, evitando-se tanto a exigência
de unanimidade entre Estados quanto a regra da maioria numérica (Yearbook of the
international law commission, 1977: 119).
Outra questão é saber se todas ou apenas algumas normas de direitos humanos
são imperativas. Dessa forma, a inexistência de um tratado internacional listando as
espécies de normas de jus cogens dificulta a solução do problema. Logo, resta buscar
outras fontes de direito internacional e também a análise das decisões arbitrais e judi-
ciais internacionais, as quais esclarecem o sentido e o alcance das normas de direito
internacional (Ramos, 2005: 172-173).
Assim, por exemplo, a Comissão de Direito Internacional da ONU no projeto de
1996 sobre a responsabilidade internacional do Estado, no art.19, § 3o, previu que
seria lesão aos valores essenciais da comunidade internacional a violação maciça e
grave de direito fundamental do ser humano, tal como a obrigação de proibição de
escravidão, do genocídio e do apartheid.
Outrossim, o Estatuto de Roma, o qual criou o Tribunal Penal Internacional con-
firmou a proteção dos direitos humanos como parte do jus cogens internacional, uma
vez que a violação de certos direitos do indivíduo (direito à vida, integridade físi-
ca, liberdade, entre outros) leva à responsabilização penal individual do criminoso,
qualquer que seja seu posto ou função interna (atingindo inclusive chefes de Estado)
(Idem, ibidem: 174).
a) direitos que podem ser derrogados por cláusulas limitativas, tais como ordem
pública, segurança nacional, saúde pública, isto é, sob situações normais e em
tempo de paz;
b) direitos que podem ser derrogados sob circunstâncias excepcionais, em emer-
gências públicas;
c) direitos não derrogáveis, nem mesmo sob circunstâncias excepcionais.
4 American ConvenƟon on Human Rights, OAS Treaty Series No 36; 1144 UNTS 123; 9 ILM 99 (1969).
5 InternaƟonal Covenant on Civil and PoliƟcal Rights, GA res. 2200A (XXI), 21 UN GAOR Supp. (No 16)
at 52, UN Doc. A/6316 (1966); 999 UNTS 171; 6 ILM 368 (1967).
6 European ConvenƟon on Human Rights, ETS 5; 213 UNTS 221.
216 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
neira mais ampla do que os outros. Isso teria sido aplicado pelo Tribunal ad hoc para a
ex-Iugoslávia nos casos Delalic7 e Furundzija,8 nos quais foi entendido que a definição
de tortura sob a Convenção da ONU de 19849 seria mais abrangente do que aquela
contida na declaração da ONU contra a tortura de 1975 ou a Convenção Interameri-
cana contra a Tortura de 1985. Dessa forma, ele questiona por que um catálogo mais
amplo de direitos inderrogáveis em oposição ao núcleo comum de direitos inderro-
gáveis previstos em diferentes tratados não poderia representar normas peremptórias.
Ademais, alguns autores, como Antônio Celso Alves Pereira (Pereira, 2003: 107-
108), também identificam algumas normas de jus cogens a partir de certas convenções,
como o art. 27, (2) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,10 o qual prevê
a não suspensão de alguns direitos fundamentais, tais como o direito à vida, o direito
ao reconhecimento da personalidade jurídica, as normas contra a tortura, a escravidão
e a servidão, o direito à integridade pessoal, o princípio da legalidade, a liberdade
de consciência e de religião, a proteção da família, o direito ao nome, os direitos da
criança, o direito à nacionalidade, os direitos políticos bem como as garantias indis-
pensáveis à preteção de tais direitos.
Ele acrescenta, ainda, a disposição no Pacto de Direitos Civis e Políticos11 que proí-
be a suspensão do direito da pessoa não ser presa por não cumprir obrigação contra-
tual. No mesmo sentido, outrossim, a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos,12
art. 15 (2), o qual destaca os direitos inderrogáveis. Há, também, o art. 28 do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais,13 o qual estabelece que
suas disposições serão aplicadas sem qualquer limitação ou exceção. No mesmo dia-
pasão, a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas,14 a
qual em seu art. X dispõe que em nenhum caso poderão ser invocadas circunstâncias
excepcionais, tais como estado de guerra ou instabilidade política para justificar o
desaparecimento forçado de pessoas. Por fim, não existem cláusulas de suspensão
Haveria, ainda, outros critérios para saber quais dos direitos humanos pertence-
riam ao jus cogens (Robledo, 1981: 181-183).
O primeiro seria perguntar se seria concebível que dois Estados concluam um
acordo derrogando esse direito.
Como exemplo, cita-se o direito de autodeterminação dos povos, mormente
quando esse direito figura em primeiro lugar nos dois pactos internacionais de direi-
tos humanos. Esse direito constitui conditio sine qua non para o gozo e o exercício para
todos os outros direitos.
Se ele é a condição de outros que seriam jus cogens, ele também teria essa mesma
natureza.
Atualmente, portanto, seria impensável que possa existir uma convenção segundo
a qual dois ou mais Estados possam estipular a submissão de um povo.
O segundo critério consistiria em analisar os textos dos tratados e ver se eles auto-
rizam ou não derrogar algumas de suas cláusulas, o que já foi analisado anteriormente.
Por último, o terceiro critério seria o fato de a comunidade internacional considerar
a violação dessa norma como um crime internacional, o que também já foi visto antes.
Outrossim, deve-se mencionar as normas de caráter humanitário ou direito hu-
manitário da guerra, o qual nasceu a partir dos conflitos armados com o objetivo de
humanizar o tanto que possível a conduta das hostilidades.
15 Para analisar com mais detalhes ver Ribeiro, Marilda Rosado de Sá. Direito do petróleo: as joint
ventures na indústria do petróleo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 123.
218 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Universelles Volkerrecht 83-87 (1976). It has been suggested that norms that
create “international crimes” and obligate all states to proceed against violations
are also peremptory. Compare Report of the International Law Commission
on the work of its twenty-eighth session, draft Art. 19, [1976] 2 Y.B. Int’l L.
Comm’n 95, 121. Such norms might include rules prohibiting genocide, slave
trade and slavery, apartheid and other gross violations of human rights, and
perhaps attacks on diplomats. Compare § 702, Comment n.
Outrossim, na seção 702, comentário l, o restatement17 prevê que nem todos cri-
mes contra os direitos humanos seriam jus cogens, enumerando os que seriam:
1) genocídio;
2) escravidão ou comércio de escravos;
3) assassinato ou desaparecimento de indivíduos;
4) tortura ou outro tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante;
5) detenção arbitrária prolongada;
6) discriminação racial sistemática ou modos consistentes de violação maciça de
direitos humanos reconhecidos internacionalmente.
Por fim, quanto à tortura, Peter Kooijmans, relator especial sobre a tortura, desig-
nado pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, ressaltou a natureza de jus cogens
da proibição da tortura em seus relatórios:
Torture is now absolutely and without any reservation prohibited under inter-
national law whether in time of peace or of war. In all human rights instruments
the prohibition of torture belongs to the group of rights from which no deroga-
tion can be made. (…) the prohibition of torture can be considered to belong to
the rules of jus cogens.18
dano tenha ocorrido dentro do Reino Unido, não é inconsistente com as limitações
aceitas pela comunidade de nações como parte da doutrina da imunidade do Estado.
Por fim, a corte julgou, por maioria, que não houve violação ao art. 6o, § 1o, da
Convenção europeia.20
No voto vencido dos juízes Rozakis, Caflish, Wildhaber, Costa, Cabral Barreto e
Vajic, mostra-se, todavia, que a conclusão a que chegou a maioria da corte seria errada
com base em dois motivos.
Primeiro, as cortes britânicas nunca recorreram à distinção feita pela maioria da
corte europeia. Elas nunca alegaram qualquer diferença entre ações civis ou criminais
ou entre processo civil ou criminal no que se refere à aplicação da lei britânica de
1978.
Assim, a posição da corte de apelação, a última corte que lidou com a questão,
foi expressa pela opinião do Lorde Stuart Smith, o qual simplesmente negou que a
proibição de tortura fosse uma norma de jus cogens.
Segundo, a distinção feita pela maioria entre processo civil ou criminal, concer-
nente ao efeito da regra da proibição da tortura, não está de acordo com o funciona-
mento das regras de jus cogens. Não é a natureza do processo que determina os efeitos
que a regra de jus cogens tem sobre uma outra norma de jus cogens, mas, sim, a carac-
terística da norma como uma norma peremptória e sua interação com uma norma
hierarquicamente inferior.
Assim, a proibição da tortura, sendo uma norma de jus cogens, atua na área in-
ternacional e retira todos os efeitos da regra da imunidade de jurisdição nesta esfera,
sendo irrelevante a natureza civil ou criminal do processo.
Já no voto dissidente do juiz Loucaides, foi ressaltado que qualquer forma de
imunidade baseada no direito internacional ou na lei nacional, que é aplicada por
uma corte para bloquear a determinação judicial de um direito civil sem ponderar os
interesses conflitantes, é uma limitação desproporcional do art. 6o, § 1o, da Conven-
ção. Assim, ele entende que qualquer aplicação automática da regra da imunidade de
jurisdição violaria o artigo mencionado.
Os que apoiam a decisão do caso Al-Adsani possuem dois argumentos principais
para possibilitá-los a sustentar que a imunidade de jurisdição não é impedida nesses
casos (Bartsch, 2003: 4):
20 Para uma análise críƟca dessa decisão, sustentando que a corte fez uma interpretação restriƟva dos
tratados de direitos humanos, ver Orakhelashvili, Alexander. RestricƟve interpretaƟon of human
rights treaƟes in the recent jurisprudence of the European court of human rights. In the European
journal of internaƟonal law. v. 14, no 3, 2003.
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 221
Nenhum dos dois argumentos é convincente. Primeiro, mesmo que normas tra-
dicionais de jus cogens como a proibição de crimes de guerra não contenham um ele-
mento processual, uma regra de execução processual poderia também ter chegado ao
status de jus cogens. Isso implicaria um desenvolvimento em duas fases. Na primeira,
os Estados teriam chegado ao consenso de que, para assegurar os interesses funda-
mentais da comunidade internacional, a proibição em questão teria que ser considera-
da não derrogável. Já na segunda, para melhor executar esses interesses fundamentais,
eles poderiam ter chegado a outro consenso, segundo o qual a imunidade estatal não
poderia ser alegada nos casos de violação dessas regras proibitivas.
Segundo, alguns autores entendem que uma norma processual de jus cogens seria
oriunda do caráter peremptório de uma norma substancial, ou seja, toda norma de
jus cogens contém ou pressupõe uma regra processual a qual garante a sua execução
processual.
Quanto ao temor de caos judicial, considera-se a possibilidade de que as cortes de
certos países pudessem ser usadas sem justo motivo contra outros Estados. O conceito
de jus cogens, no entanto, pressupõe um amplo consenso de Estados. Assim, nenhum
Estado pode declarar unilateralmente que uma regra faz parte do jus cogens.
Por fim, o medo de que os Estados não deixarão nunca o passado descansar pode
ser superado por normas materiais sobre compensação por injustiças passadas. Dessa
forma, os Estados podem firmar tratados prevendo quantias como reparações devidas
por danos causados em troca de um acordo que outras reclamações só serão admitidas
se não forem cobertas pelos tratados (Bartsch, 2003: 4-6).
222 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
21 McElhinney vs. Ireland, ECHR, julgamento de 21/11/2001, § 38, acessível em: hƩp://hudoc.echr.coe.int.
22 Ibidem, p. 14-16.
23 Ibidem, p. 17.
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 223
24 Ibidem, p. 18.
25 Ibidem, p. 18.
26 Ibidem, p. 19.
27 Ibidem, p. 19.
224 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
 o autor do ato ou omissão tem que ter estado presente no território daquele
Estado para excluir-se danos transfronteiriços, os quais são melhor classifica-
dos como litígios de Estado para Estado;
 não há distinção feita entre atos ilícitos resultantes do exercício de jus imperii
ou jus gestionis.28
Essas considerações mostram que o art. 12 da Convenção reflete a lei como ela é
no presente, sugerindo que não há dever por parte dos Estados de conceder imuni-
dade a outros Estados no caso de atos ilícitos causados pelos agentes desses Estados.
Os juízes concluem, dessa forma, que não há conflito entre a regra da imunidade
dos Estados e o direito de acesso às cortes domésticas garantido pelo art. 6, § 1o, da
Convenção, tendo havido restrição desproporcional aos direitos do autor.
Outrossim, o juiz Loucaides, também em voto dissidente, no mesmo caso, con-
cordou que não houve conflito entre imunidade de jurisdição estatal e o direito de
acesso às cortes locais previsto no art. 6, § 1o, da Convenção, adicionando, ainda, que
a concessão geral de imunidade a um Estado sem se ponderar os interesses conflitantes
gera uma restrição desproporcional ao direito de acesso ao tribunal.29
Assim, a doutrina da imunidade estatal nos tempos modernos está sujeita a limita-
ções, com tendência a reduzir sua aplicação em vista dos desenvolvimentos no campo
dos direitos humanos que reforçam a posição do indivíduo.
Por fim, o juiz conclui que a lei especial é a Convenção Europeia de Direitos
Humanos e que os princípios gerais de direito internacional não estão previstos na
convenção com exceção a referências expressas feitas a eles pela convenção, como
os art. 15, 35, § 1o e 53 e o art. 1o do Protocolo no 1. Dessa forma, não se aceitariam
restrições aos direitos estabelecidos na Convenção oriundos de princípios de direito
internacional tais como os que estabelecem imunidades que não são nem mesmo par-
te de normas de jus cogens.30
28 Ibidem, p. 19.
29 Ibidem, p. 20.
30 Ibidem, p. 20.
31 Prosecutor vs. Furundzija, caso no IT-95-17/I-T (1999) 38 ILM 317, § 144/154. No mesmo senƟdo,
ver Prosecutor v. Delacic and Others, 16/11/1998, caso no IT-96-21-T, § 454 e Prosecutor vs. Kuna-
rac, 22/02/2001, caso no IT 96-23-T e IT 96-23/1, § 466.
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 225
que tratados e normas costumeiras comuns. Outrossim, entendeu-se que essa proibi-
ção é tão extensa que os Estados são até mesmo impedidos pelo direito internacional
de expulsar ou extraditar uma pessoa para outro Estado onde há fundados motivos
para acreditar que a pessoa estaria em perigo de ser sujeita à tortura.
Nos casos do Sudoeste Africano37 (Etiópia vs. África do Sul e Libéria vs. África do
Sul), entretanto, em 1966, a Corte entendeu que os argumentos da Etiópia e Libéria
consagravam uma espécie de actio popularis, permitindo o reconhecimento do interes-
se jurídico de qualquer Estado da comunidade internacional em combater violações
ao direito internacional. Para a Corte, a actio popularis não era ainda aceita pelo direito
internacional da época.
Já no caso Barcelona Traction,38 a Corte julgou que em razão da importância dos
direitos envolvidos, todos Estados podem ter interesse legal na sua proteção. São obri-
gações erga omnes. Essas obrigações derivam da proscrição de atos de agressão e de
genocídio e também proteção contra a escravidão e a discriminação racial.
Assim, as normas de jus cogens e obrigações erga omnes são lados da mesma moeda.
O jus cogens refere-se ao status legal que certos crimes internacionais alcançaram e
as obrigações erga omnes são as implicações legais oriundas da caracterização de certos
crimes como jus cogens.
Em 1986, no caso Nicarágua vs. Estados Unidos,39 a Nicarágua ajuizou ação em face
dos Estados Unidos, acusando-os de colocar minas nos portos e águas da Nicarágua;
realizar manobras militares na fronteira entre Nicarágua e Honduras, Voos no seu es-
paço aéreo e criar um exército para atuar contra o governo.
A Corte confirmou indiretamente a identificação da regra proibindo o uso da força
como jus cogens, citando a previsão na Carta da ONU relativa à interdição do emprego
da força como um exemplo de jus cogens. Ademais, em opiniões individuais, os juízes
Sette Câmara e Singh reforçaram esse entendimento.40
Ainda, em 1996, no parecer sobre licitude do emprego de armas nucleares,41 foi
afirmado que as regras de direito humanitário fazem parte do jus cogens.
Em 1997, no caso da Aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão
do Crime de Genocídio42 (Bósnia-Herzegovina vs. Iugoslávia), o juiz Lauterpacht, em
opinião individual, salientou que a proibição do genocídio faz parte do jus cogens. Em
1993, a Bósnia-Herzegovina havia ingressado com processo em face da Iugoslávia,
Para poder chegar a uma ratio decidendi das duas decisões é necessário que se faça
uma análise dos votos de cada uma.
48 Cosnard, Michel. Quelques observaƟons sur les décisions de la chambre des lords du 25/11/1998
et du 24 mars 1999 dans l’aīaire Pinochet. In: revue générale de droit internaƟonal public tome
103/1999/2: Pedone, Paris.
49 In my view, arƟcle 39.2 of the Vienna ConvenƟon, as modiĮed and applied to former heads of state
by secƟon 20 of the 1978 Act, is apt to confer immunity in respect of acts performed in the exercise
of funcƟons which internaƟonal law recognises as funcƟons of a head of state, irrespecƟve of the
terms of his domesƟc consƟtuƟon. This formulaƟon, and this test for determining what are the
funcƟons of a head of state for this purpose, are sound in principle and were not the subject of con-
troversy before your Lordships. InternaƟonal law does not require the grant of any wider immunity.
And it hardly needs saying that torture of his own subjects, or of aliens, would not be regarded by
internaƟonal law as a funcƟon of a head of state. All states disavow the use of torture as abhorrent,
although from Ɵme to Ɵme some sƟll resort to it. Similarly, the taking of hostages, as much as tortu-
re, has been outlawed by the internaƟonal community as an oīence. InternaƟonal law recognises,
of course, that the funcƟons of a head of state may include acƟviƟes which are wrongful, even ille-
gal, by the law of his own state or by the laws of other states. But internaƟonal law has made plain
that certain types of conduct, including torture and hostage-taking, are not acceptable conduct on
the part of anyone. This applies as much to heads of state, or even more so, as it does to everyone
else; the contrary conclusion would make a mockery of internaƟonal law. This was made clear long
before 1973 and the events which took place in Chile then and thereaŌer. A few references will suĸ-
ce. Under the charter of the Nurnberg InternaƟonal Military Tribunal (8 August 1945) crimes against
humanity, commiƩed before as well as during the second world war, were declared to be within the
jurisdicƟon of the tribunal, and the oĸcial posiƟon of defendants, “whether as heads of state or
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 229
Ainda, no mesmo diapasão, Lorde Steyn, o qual também entendeu que os crimes
de tortura, genocício e crimes contra a humanidade não podem ser atos cometidos no
exercício da função de chefe de Estado.50
A questão que necessitaria resolver seria, pois, a de uma eventual exceção fei-
ta pelo direito internacional à regra da imunidade dos ex-chefes de Estado. É nessa
que se concentraram os Lordes minoritários em novembro de 1998 e em 1999. Eles
recusaram-se a examinar a qualificação do ato, não vendo nenhum fundamento jurí-
dico em uma linha de divisão entre atos simplesmente ilegais e aqueles que seriam tão
horríveis que não seriam mais atos da função. Eles partiram, pois, do princípio de que
qualquer que seja a sua gravidade, os atos incriminados foram cometidos no exercício
responsible oĸcials in government”, was not to free them from responsibility (arƟcles 6 and 7). The
judgment of the tribunal included the following passage: “The principle of internaƟonal law which,
under certain circumstance, protects the representaƟves of a state cannot be applied to acts conde-
mned as criminal by internaƟonal law. The authors of these acts cannot shelter themselves behind
their oĸcial posiƟon to be freed from punishment.”
50 My Lords, the concept of an individual acƟng in his capacity as Head of State involves a rule of law
which must be applied to the facts of a parƟcular case. It invites classiĮcaƟon of the circumstances
of a case as falling on a parƟcular side of the line. It contemplates at the very least that some acts
of a Head of State may fall beyond even the most enlarged meaning of oĸcial acts performed in
the exercise of the funcƟons of a Head of State. If a Head of State kills his gardener in a Įt of rage
that could by no stretch of the imaginaƟon be described as an act performed in the exercise of his
funcƟons as Head of State. If a Head of State orders vicƟms to be tortured in his presence for the
sole purpose of enjoying the spectacle of the piƟful twitchings of vicƟms dying in agony (what Mon-
taigne described as the farthest point that cruelty can reach) that could not be described as acts
undertaken by him in the exercise of his funcƟons as a Head of State. Counsel for General Pinochet
expressly, and rightly, conceded that such crimes could not be classiĮed as oĸcial acts undertaken
in the exercise of the funcƟons of a Head of State. These examples demonstrate that there is indeed
a meaningful line to be drawn. How and where the line is to be drawn requires further examina-
Ɵon. Is this quesƟon to be considered from the vantage point of the municipal law of Chile, where
most of the acts were commiƩed, or in the light of the principles of customary internaƟonal law?
Municipal law cannot be decisive as to where the line is to be drawn. If it were the determining
factor, the most abhorrent municipal laws might be said to enlarge the funcƟons of a Head of State.
But I need not dwell on the point because it is conceded on behalf of General Pinochet that the
disƟncƟon between oĸcial acts performed in the exercise of funcƟons as a Head of State and acts
not saƟsfying these requirements must depend on the rules of internaƟonal law. It was at one stage
argued that internaƟonal law spells out no relevant criteria and is of no assistance. In my view that is
not right. NegaƟvely, the development of internaƟonal law since the Second World War jusƟĮes the
conclusion that by the Ɵme of the 1973 coup d’etat, and certainly ever since, internaƟonal law con-
demned genocide, torture, hostage taking and crimes against humanity (during an armed conŇict
or in peace Ɵme) as internaƟonal crimes deserving of punishment. Given this state of internaƟonal
law, it seems to me diĸcult to maintain that the commission of such high crimes may amount to
acts performed in the exercise of the funcƟons of a Head of State.
230 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
51 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
52 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
53 (…) Thus in the case of torture a state party is obliged to establish extra-territorial jurisdicƟon when
the alleged oīender is a naƟonal of that state, but not where the vicƟm is a naƟonal. In the laƩer
case the state has a discreƟon: see arƟcle 5.1(b) and (c). In addiƟon there is an obligaƟon on a state
to extradite or prosecute where a person accused of torture is found within its territory--aut dedere
aut judicare: see arƟcle 7. But there is nothing in the Torture ConvenƟon which touches on state
immunity. The contrast with the ConvenƟon on the PrevenƟon and Punishment of the Crime of
Genocide (1948) could not be more marked. ArƟcle 4 of the Genocide ConvenƟon provides:
“Persons commiƫng genocide or any of the other acts enumerated in arƟcle 3 shall be punished
whether they are consƟtuƟonally responsible rulers or public oĸcials or private individuals.”
There is no equivalent provision in either the Torture ConvenƟon or the Taking of Hostages Conven-
Ɵon.
Moreover when the Genocide ConvenƟon was incorporated into English law by the Genocide Act
1969, arƟcle 4 was omiƩed. So Parliament must clearly have intended, or at least contemplated,
that a head of state accused of genocide would be able to plead sovereign immunity. If the Torture
ConvenƟon and the Taking of Hostages ConvenƟon had contained a provision equivalent to arƟcle 4
of the Genocide ConvenƟon (which they did not) it is reasonable to suppose that, as with genocide,
the equivalent provisions would have been omiƩed when Parliament incorporated those conven-
Ɵons into English law. I cannot for my part see any inconsistency between the purposes underlying
these ConvenƟons and the rule of internaƟonal law which allows a head of state procedural immu-
nity in respect of crimes covered by the ConvenƟons.
(…) Stuart Smith L.J. observed that the draŌsman of the State Immunity Act must have been well
aware of the numerous internaƟonal convenƟons covering torture (although he could not, of cour-
se, have been aware of the convenƟon against torture in 1984). If civil claims based on acts of tor-
ture were intended to be excluded from the immunity aīorded by secƟon 1(1) of the Act of 1978,
because of the horrifying nature of such acts, or because they are condemned by internaƟonal law,
it is inconceivable that secƟon 1(1) would not have said so. (…)Professor Greenwood took us back
to the charter of the InternaƟonal Military Tribunal for the trial of war criminals at Nuremburg, and
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 231
drew aƩenƟon to arƟcle 7, which provides: “The oĸcial posiƟon of defendants, whether as heads
of state or responsible oĸcials in government departments, shall not be considered as freeing them
from responsibility or miƟgaƟng punishment.” One Įnds the same provision in almost idenƟcal
language in arƟcle 7(2) of the Statute of the InternaƟonal Tribunal for the Former Yugoslavia (1993),
arƟcle 6(2) of the Statue of the InternaƟonal Tribunal for Rwanda (1994) and most recently in arƟcle
27 of the Statute of the InternaƟonal Criminal Court (1998). Like the Divisional Court, I regard this
as an argument more against the appellants than in their favour. The seƫng up of these special
internaƟonal tribunals for the trial of those accused of genocide and other crimes against humanity,
including torture, shows that such crimes, when commiƩed by heads of state or other responsible
government oĸcials cannot be tried in the ordinary courts of other states. If they could, there
would be liƩle need for the internaƟonal tribunal.
54 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
55 (…) I conclude that the reference to public oĸcials in the Torture ConvenƟon does not include Heads
of State or former Heads of State, either because States did not wish to provide for the prosecuƟon
of Heads of State or former Heads of State or because they were not able to agree that a plea in bar
to the proceedings based on immunity should be removed. I appreciate that there may be consi-
derable poliƟcal and diplomaƟc diĸculƟes in reaching agreement, but if States wish to exclude the
long established immunity of former Heads of State in respect of allegaƟons of speciĮc crimes, or
generally, then they must do so in clear terms. They should not leave it to NaƟonal Courts to do so
because of the appalling nature of the crimes alleged.
The second provisional warrant does not menƟon genocide, though the internaƟonal warrant and
the request for extradiƟon do. The Genocide ConvenƟon in ArƟcle 6 limits jurisdicƟon to a tribunal
in the territory in which the act was commiƩed and is not limited to acts by public oĸcials. The
provisions in ArƟcle 4 making “consƟtuƟonally responsible rulers” liable to punishment is not incor-
porated into the English Genocide Act of 1948. Whether or not your Lordships are concerned with
the second internaƟonal warrant and the request for extradiƟon (and Mr. Nicholls, Q.C. submits that
you are not), the Genocide ConvenƟon does not therefore saƟsfy the test which I consider should
be applied.
The Taking of Hostages ConvenƟon which came into force in 1983 and the Taking of Hostages Act
1982 clearly make it a crime for “any person, whatever his naƟonality” who “in the United Kingdom
or elsewhere to take hostages for one of the purposes speciĮed.” This again indicates the scope
both of the substanƟve crime and of jurisdicƟon, but neither the ConvenƟon nor the Act contain
any provisions which can be said to take away the customary internaƟonal law immunity as Head of
State or former Head of State.
232 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
It has been submiƩed that a number of other factors indicate that the immunity should not be
refused by the United Kingdom--the United Kingdom’s relaƟons with Chile, the fact that an am-
nesty was granted, that great eīorts have been made in Chile to restore democracy and that to
extradite the respondent would risk unseƩling what has been achieved, the length of Ɵme since
the events took place, that prosecuƟons have already been launched against the respondent in
Chile, that the respondent has, it is said, with the United Kingdom Government’s approval or
acquiescence, been admiƩed into this country and been received in oĸcial quarters. These are
factors, like his age, which may be relevant on the quesƟon whether he should be extradited, but
it seems to me that they are for the Secretary of State (the execuƟve branch) and not for your
Lordships on this occasion.
56 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
57 I now come to the second of the two issues which were raised during the hearing of the appeal,
viz. whether the Torture ConvenƟon has the eīect that state parƟes to the ConvenƟon have agreed
to exclude reliance on state immunity raƟone materiae in relaƟon to proceedings brought against
their public oĸcials, or other persons acƟng in an oĸcial capacity, in respect of torture contrary to
the ConvenƟon. In broad terms I understand the argument to be that, since torture contrary to the
ConvenƟon can only be commiƩed by a public oĸcial or other person acƟng in an oĸcial capacity,
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 233
and since it is in respect of the acts of these very persons that states can assert state immunity ra-
Ɵone materiae, it would be inconsistent with the obligaƟons of state parƟes under the ConvenƟon
for them to be able to invoke state immunity raƟone materiae in cases of torture contrary to the
ConvenƟon. In the case of heads of state this objecƟve could be achieved on the basis that torture
contrary to the ConvenƟon would not be regarded as falling within the funcƟons of a head of state
while in oĸce, so that although he would be protected by immunity raƟone personae while in oĸce
as head of state, no immunity raƟone materiae would protect him in respect of allegaƟons of such
torture aŌer he ceased to hold oĸce. There can, however, be no doubt that, before the Torture
ConvenƟon, torture by public oĸcials could be the subject of state immunity. Since therefore exclu-
sion of immunity is said to result from the Torture ConvenƟon and there is no express term of the
ConvenƟon to this eīect, the argument has, in my opinion, to be formulated as dependent upon
an implied term in the ConvenƟon. It is a maƩer of comment that, for reasons which will appear
in a moment, the proposed implied term has not been precisely formulated; it has not therefore
been exposed to that valuable discipline which is always required in the case of terms alleged to be
implied in ordinary contracts.
(…) (d) An implicaƟon must in any event be rejected.
In any event, however, even if it were possible for such a result to be achieved by means of an im-
plied term, there are, in my opinion, strong reasons why any such implicaƟon should be rejected.
I recognise that a term may be implied into a treaty, if the circumstances are such that “the parƟes
must have intended to contract on the basis of the inclusion in the treaty of a provision whose eīect
can be stated with reasonable precision”; see Oppenheim’s InternaƟonal Law, 9th ed., p. 1.271, n. 4.
It would, however, be wrong to assume that a term may be implied into a treaty on the same basis
as a term may be implied into an ordinary commercial contract, for example to give the contract bu-
siness eĸcacy (as to which see Treitel on Contract, 9th ed., pp. 185 et seq.). This is because treaƟes
are diīerent in origin, and serve a diīerent purpose. TreaƟes are the fruit of long negoƟaƟon, the
purpose being to produce a draŌ which is acceptable to a number, oŌen a substanƟal number, of
state parƟes. The negoƟaƟon of a treaty may well take a long Ɵme, running into years. DraŌ aŌer
draŌ is produced of individual arƟcles, which are considered in depth by naƟonal representaƟves,
and are the subject of detailed comment and consideraƟon. The agreed terms may well be the fruit
of “horse-trading” in order to achieve general agreement, and proposed arƟcles may be amended,
or even omiƩed in whole or in part, to accommodate the wishes or anxieƟes of some of the nego-
ƟaƟng parƟes. In circumstances such as these, it is the text of the treaty itself which provides the
only safe guide to its terms, though reference may be made, where appropriate, to the travaux
preparatoires. But implied terms cannot, except in the most obvious cases, be relied on as binding
the state parƟes who ulƟmately sign the treaty, who will in all probability include those who were
not involved in the preliminary negoƟaƟons. (…)
The cumulaƟve eīect of all these consideraƟons is, in my opinion, to demonstrate the grave diĸculty
of recognising an implied term, whatever its form, on the basis that it must have been agreed by all the
state parƟes to the ConvenƟon that state immunity should be excluded. In this connecƟon it is parƟcu-
larly striking that, in the Handbook on the Torture ConvenƟon by Burgers and Danelius, it is recognised
that the obligaƟon of a state party, under ArƟcle 5(1) of the ConvenƟon, to establish jurisdicƟon over
oīences of torture commiƩed within its territory, is subject to an excepƟon in the case of those beneĮ-
Ɵng from special immuniƟes, including foreign diplomats. It is true that this statement could in theory
be read as limited to immunity raƟone personae; but in the absence of explanaƟon it should surely be
read in the ordinary way as applicable both to immunity raƟone personae and its concomitant immu-
234 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Haveria, dessa maneira, uma certa confusão entre renúncia e exceção à regra das
imunidades: as regras relativas à renúncia só valem quando se encontram em um caso
em que o réu pode valer sua imunidade (Cosnard, 1999: 317-318).
nity raƟone materiae, and in any event the total silence in this passage on the subject of waiver makes
it highly improbable that there was any intenƟon that immunity raƟone materiae should be regarded
as having been implicitly excluded by the ConvenƟon. Had there been such an intenƟon, the authors
would have been bound to refer to it. They do not do so.
58 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 235
59 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
60 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
236 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Ainda, segundo ele, não haveria exceção à imunidade para o crime internacional
da tortura antes da existência da Convenção da Tortura da ONU.61 Ele concluiu, en-
tretanto, que desde a ratificação da referida Convenção pela Inglaterra em 8/12/1988,
Pinochet não poderia basear-se na defesa de imunidade em respeito à alegação de
tortura, pois dessa data em diante Espanha, Chile e Inglaterra eram todos partes na
Convenção.
61 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
62 In my opinion, the systemaƟc use of torture on a large scale and as an instrument of state policy had
joined piracy, war crimes and crimes against peace as an internaƟonal crime of universal jurisdicƟon
well before 1984. I consider that it had done so by 1973. For my own part, therefore, I would hold
that the courts of this country already possessed extra-territorial jurisdicƟon in respect of torture
and conspiracy to torture on the scale of the charges in the present case and did not require the au-
thority of statute to exercise it. I understand, however, that your Lordships take a diīerent view, and
consider that statutory authority is require before our courts can exercise extra-territorial criminal
jurisdicƟon even in respect of crimes of universal jurisdicƟon. Such authority was conferred for the
Įrst Ɵme by secƟon 134 of the Criminal JusƟce Act 1988, but the secƟon was not retrospecƟve. I
shall accordingly proceed to consider the case on the fooƟng that Senator Pinochet cannot be ex-
tradited for any acts of torture commiƩed prior to the coming into force of the secƟon.
The ConvenƟon against Torture (1984) did not create a new internaƟonal crime. But it redeĮned
it. Whereas the internaƟonal community had condemned the widespread and systemaƟc use of
torture as an instrument of state policy, the ConvenƟon extended the oīence to cover isolated and
individual instances of torture provided that they were commiƩed by a public oĸcial. I do not con-
sider that oīences of this kind were previously regarded as internaƟonal crimes aƩracƟng universal
jurisdicƟon. The charges against Senator Pinochet, however, are plainly of the requisite character.
The ConvenƟon thus aĸrmed and extended an exisƟng internaƟonal crime and imposed obligaƟons
on the parƟes to the ConvenƟon to take measures to prevent it and to punish those guilty of it. As
Burgers and Danielus explained, its main purpose was to introduce an insƟtuƟonal mechanism to
enable this to be achieved. Whereas previously states were enƟtled to take jurisdicƟon in respect
of the oīence wherever it was commiƩed, they were now placed under an obligaƟon to do so. Any
state party in whose territory a person alleged to have commiƩed the oīence was found was bound
to oīer to extradite him or to iniƟate proceedings to prosecute him. The obligaƟon imposed by the
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 237
ConvenƟon resulted in the passing of secƟon 134 of the Criminal JusƟce Act 1988. I agree, therefore,
that our courts have statutory extra-territorial jurisdicƟon in respect of the charges of torture and
conspiracy to torture commiƩed aŌer the secƟon had come into force and (for the reasons explai-
ned by my noble and learned friend, Lord Hope of Craighead) the charges of conspiracty to murder
where the conspiracy took place in Spain. I turn Įnally to the plea of immunity raƟone materiae in
relaƟon to the remaining allegaƟons of torture, conspiracy to torture and conspiracy to murder. I
can deal with the charges of conspiracy to murder quite shortly. The oīences are alleged to have
taken place in the requesƟng state. The plea of immunity raƟone materiae is not available in respect
of an oīence commiƩed in the forum state, whether this be England or Spain. The deĮniƟon of
torture, both in the ConvenƟon and secƟon 134, is in my opinion enƟrely inconsistent with the exis-
tence of a plea of immunity raƟone materiae. The oīence can be commiƩed only by or at the insƟ-
gaƟon of or with the consent or acquiescence of a public oĸcial or other person acƟng in an oĸcial
capacity. The oĸcial or governmental nature of the act, which forms the basis of the immunity, is
an essenƟal ingredient of the oīence. No raƟonal system of criminal jusƟce can allow an immunity
which is co-extensive with the oīence. In my view a serving head of state or diplomat could sƟll
claim immunity raƟone personae if charged with an oīence under secƟon 134. He does not have to
rely on the character of the conduct of which he is accused. The nature of the charge is irrelevant;
his immunity is personal and absolute. But the former head of state and the former diplomat are in
no diīerent posiƟon from anyone else claiming to have acted in the exercise of state authority. If the
respondent’s arguments were accepted, secƟon 134 would be a dead leƩer. Either the accused was
acƟng in a private capacity, in which case he cannot be charged with an oīence under the secƟon;
or he was acƟng in an oĸcial capacity, in which case he would enjoy immunity from prosecuƟon.
Perceiving this weakness in her argument, counsel for Senator Pinochet submiƩed that the United
Kingdom took jurisdicƟon so that it would be available if, but only if, the oīending state waived its
immunity. I reject this explanaƟon out of hand. It is not merely far-fetched; it is enƟrely inconsistent
with the aims and object of the ConvenƟon. The evidence shows that other states were to be placed
under an obligaƟon to take acƟon precisely because the oīending state could not be relied upon to
do so.
238 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
À primeira vista, parece que Lorde Philips denegou imunidade ratione materiae a
todos os crimes contra o direito internacional. O argumento gira em torno da exis-
tência de jurisdição extraterritorial em combinação com a afirmação se o direito cos-
tumeiro internacional reconheceria jurisdição internacional com respeito a crimes
internacionais, o que fez com que a Convenção contra a Tortura da ONU63 fosse
indispensável para a sua conclusão sobre imunidade (Alebeek, op. cit.: 232).
O obiter dictum que não haveria imunidade ratione materiae para atos de genocídio
também geraria incerteza, pois a Convenção sobre o Genocídio64 não prevê jurisdição
universal (Alebeek, op. cit.: 233).
Um outro obiter dictum torna o voto de Lorde Philips internamente incoerente.
Ele salienta que se o SIA de 1978 obriga a conceder imunidade a Pinochet com res-
peito a todos os atos cometidos na função de chefe de Estado, ele não acredita que
tal função possa estender-se a ações que são proibidas como criminais sob o direito
internacional. Isso não seria, todavia, compatível com as suas constatações anteriores
de que atos de tortura seriam atos oficiais para a finalidade de processo civil (Alebeek,
op. cit.: 234).
Outrossim, a consideração de que a única conduta coberta pela Convenção da
Tortura da ONU65 seria aquela sujeita à imunidade ratione materiae, se tal imunidade
fosse aplicável, não seria coerente se a tortura não fosse considerada um ato oficial
(Alebeek, op.cit.: 234).66
63 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
64 Nova Iorque, 9/12/1948, ONU, 78 UNTS 277.
65 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
66 There would seem to be two explanaƟons for immunity raƟone materiae. The Įrst is that to sue an
individual in respect of the conduct of the state’s business is, indirectly, to sue the state. The state
would be obliged to meet any award of damage made against the individual. This reasoning has no
applicaƟon to criminal proceedings. The second explanaƟon for the immunity is the principle that
it is contrary to internaƟonal law for one state to adjudicate upon the internal aīairs of another
state. Where a state or a state oĸcial is impleaded, this principle applies as part of the explanaƟon
for immunity. Where a state is not directly or indirectly impleaded in the liƟgaƟon, so that no issue
of state immunity as such arises, the English and American courts have nonetheless, as a maƩer of
judicial restraint, held themselves not competent to entertain liƟgaƟon that turns on the validity of
the public acts of a foreign state, applying what has become known as the act of state doctrine. (...)
I believe that it is sƟll an open quesƟon whether internaƟonal law recognises universal jurisdicƟon
in respect of internaƟonal crimes--that is the right, under internaƟonal law, of the courts of any
state to prosecute for such crimes wherever they occur. In relaƟon to war crimes, such a jurisdic-
Ɵon has been asserted by the State of Israel, notably in the prosecuƟon of Adolf Eichmann, but
this asserƟon of jurisdicƟon does not reŇect any general state pracƟce in relaƟon to internaƟonal
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 239
crimes. Rather, states have tended to agree, or to aƩempt to agree, on the creaƟon of internaƟonal
tribunals to try internaƟonal crimes. They have however, on occasion, agreed by convenƟons, that
their naƟonal courts should enjoy jurisdicƟon to prosecute for a parƟcular category of internaƟonal
crime wherever occurring. (…) Where states, by convenƟon, agree that their naƟonal courts shall
have jurisdicƟon on a universal basis in respect of an internaƟonal crime, such agreement cannot
implicitly remove immuniƟes raƟone personae that exist under internaƟonal law. Such immuniƟes
can only be removed by express agreement or waiver. Such an agreement was incorporated in the
ConvenƟon on the PrevenƟon and Suppression of the Crime of Genocide 1984, which provides:
“Persons commiƫng genocide or any of the other acts enumerated in ArƟcle III shall be punished,
whether they are consƟtuƟonally responsible rulers, public oĸcials, or private individuals.” Had the
Genocide ConvenƟon not contained this provision, an issue could have been raised as to whether
the jurisdicƟon conferred by the ConvenƟon was subject to state immunity raƟone materiae. Would
internaƟonal law have required a court to grant immunity to a defendant upon his demonstraƟng
that he was acƟng in an oĸcial capacity? In my view it plainly would not. I do not reach that conclu-
sion on the ground that assisƟng in genocide can never be a funcƟon of a state oĸcial. I reach that
conclusion on the simple basis that no established rule of internaƟonal law requires state immunity
raƟone materiae to be accorded in respect of prosecuƟon for an internaƟonal crime. InternaƟonal
crimes and extra-territorial jurisdicƟon in relaƟon to them are both new arrivals in the Įeld of public
internaƟonal law. I do not believe that state immunity raƟone materiae can co-exist with them. The
exercise of extra-territorial jurisdicƟon overrides the principle that one state will not intervene in
the internal aīairs of another. It does so because, where internaƟonal crime is concerned, that prin-
ciple cannot prevail. An internaƟonal crime is as oīensive, if not more oīensive, to the internaƟonal
community when commiƩed under colour of oĸce. Once extra-territorial jurisdicƟon is established,
it makes no sense to exclude from it acts done in an oĸcial capacity. (…) It is only recently that the
criminal courts of this country acquired jurisdicƟon, pursuant to SecƟon 134 of the Criminal JusƟce
Act 1984, to prosecute Senator Pinochet for torture commiƩed outside the territorial jurisdicƟon,
provided that it was commiƩed in the performance, or purported performance, of his oĸcial duƟes.
SecƟon 134 was passed to give eīect to the rights and obligaƟons of this country under the Conven-
Ɵon against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment of 1984, to
which the United Kingdom, Spain and Chile are all signatories. That ConvenƟon outlaws the inŇic-
Ɵon of torture “by or at the insƟgaƟon of or with the consent or acquiescence of a public oĸcial or
other person acƟng in an oĸcial capacity”. Each state party is required to make such conduct crimi-
nal under its law, wherever commiƩed. More perƟnently, each state party is required to prosecute
any person found within its jurisdicƟon who has commiƩed such an oīence, unless it extradites
that person for trial for the oīence in another state. The only conduct covered by this ConvenƟon
is conduct which would be subject to immunity raƟone materiae, if such immunity were applicable.
The ConvenƟon is thus incompaƟble with the applicability of immunity raƟone materiae. There are
only two possibiliƟes. One is that the States ParƟes to the ConvenƟon proceeded on the premise
that no immunity could exist raƟone materiae in respect of torture, a crime contrary to internaƟonal
law. The other is that the States ParƟes to the ConvenƟon expressly agreed that immunity raƟone
materiae should not apply in the case of torture. I believe that the Įrst of these alternaƟves is the
correct one, but either must be fatal to the asserƟon by Chile and Senator Pinochet of immunity in
respect of extradiƟon proceedings based on torture. (…) Insofar as Part III of the Act of 1978 enƟtles
a former head of state to immunity in respect of the performance of his oĸcial funcƟons I do not
believe that those funcƟons can, as a maƩer of statutory interpretaƟon, extend to acƟons that are
240 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
prohibited as criminal under internaƟonal law. In this way one can reconcile, as one must seek to do,
the provisions of the Act of 1978 with the requirements of public internaƟonal law.
67 Torture ConvenƟon, GA res. 39/46, annex, 39 UN GAOR Supp. (No 51) at 197, UN Doc. A/39/51
(1984); 1465 UNTS 85.
68 InternaƟonal covenant on civil and poliƟcal rights, GA res. 2200A (XXI), 21 UN GAOR Supp. (No 16) at
52, UN Doc. A/6316 (1966); 999 UNTS 171; 6 ILM 368 (1967).
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 241
Seria difícil combinar essa regra com o caráter de jus cogens reconhecido à interdi-
ção à tortura, pois este dependeria da data da ratificação por cada Estado.
O princípio da dupla incriminação deveria ter sido, portanto, interpretado e apli-
cado de acordo com os princípios costumeiros de direito internacional penal, os quais
foram ignorados em favor da aplicação da lei inglesa, consagrando a primazia do di-
reito interno sobre o direito internacional (Cosnard, op. cit.: 327-328).
69 Esse princípio oriundo dos Tribunais de Nuremberg e Tóquio vem previsto no art. 7o da Resolução
no 827, art. 8o da Resolução 955 do Conselho de Segurança, as quais criaram os tribunais penais
internacionais para a ex-Iugoslávia e Ruanda e no art. 25 da Convenção de Roma do Tribunal Penal
Internacional.
242 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No caso Pinochet 2, a Câmara dos Lordes afastou a imunidade de jurisdição de um
ex-Chefe de Estado por cometimento de tortura quando era Chefe de Estado, prin-
cipalmente com base na Convenção contra a Tortura da ONU. Foi ressalvado, ainda,
o princípio da responsabilização criminal individual, tal como previsto no art. 25 do
Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Ficou demonstrado, portanto, que o cometimento da tortura, por ter se tornado
um crime internacional e a proibição da tortura uma norma de jus cogens, há o afasta-
mento da regra da imunidade de jurisdição criminal em relação a um ato cometido na
função de ex-Chefe de Estado.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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nal law and international human rights. Oxford: Oxford University Press, 2008.
BARTSCH, Kerstin; ELBERLING, Björn. Jus cogens vs. state immunity, round two: the
decision of the European court of human rights in the Kalogeropoulou et a. v.
Greece and Germany decision. German Law journal, no 5, maio/2003.
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(Trad.). Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
CASSESE, Antonio. International criminal law. Nova Iorque: Oxford University Press, 2003.
COSNARD, Michel. Quelques observations sur les décisions de la chambre des lords
du 25 novembre 1998 et du 24 mars 1999 dans l’affaire Pinochet. In: revue
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DOLINGER, Jacob. Ordem pública mundial; ordem pública verdadeiramente inter-
nacional no direito internacional privado. Revista de Informação Legislativa do
Senado Federal. 90:211.
FRIEDRICH, Tatyana Scheila. Direito internacional humanitário e normas imperativas
(jus cogens): uma identificação possível? In: Direito internacional humanitário e
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KOLB, Robert. Théorie du jus cogens international. Paris: Presses universitaires de Fran-
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MERON, Theodor. A hierarchy of international human rights? The American journal of
international law. 80, 1986.
Parte II | Capítulo 10 | A Judicialização da Política e o caso Pinochet: o reconhecimento... 243
Sumário:
1. Apresentação.
2. A expansão do Poder Judiciário e dos direitos.
3. Os signiĮcados da judicialização da políƟca e poliƟzacão da jusƟça no
Brasil.
4. A “desjudicialização” dos conŇitos coleƟvos do trabalho no Brasil.
5. Referências bibliográĮcas.
1. APRESENTAÇÃO
Do amplo leque de significado das expressões judicialização da política e politiza-
ção da Justiça apresentado pelos estudos que fazem parte da literatura brasileira sobre
a relação da Política e do Direito, que vai desde o ativismo judicial, passando pela
utilização da sociedade civil dos procedimentos judiciais em suas relações sociais, à
utilização de outros Poderes de procedimentos judiciais, entendemos que se trata de
conceito pouco definido e que traz menos benefícios em sua utilização, se comparado
com outros conceitos e formulações de problemas empíricos de pesquisa.
Neste sentido, as pesquisas sobre judicialização da política/politização da justiça
no Brasil se ativeram aos estudos sobre a revisão judicial, através das Ações Diretas de
* Doutoranda em Ciência PolíƟca pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, com estágio de
doutorado (bolsa sanduíche Įnanciada pela CAPES) no Centre de Recherches PoliƟques de Sciences
Po em Paris, França, no período de 09/2009 a 07/2010. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo – FAPESP, insƟtuição responsável pelo Įnanciamento da presente pesquisa.
Parte II | Capítulo 11 | “Desjudicialização” da política ou a insuficiência dos conceitos... 245
1 Nesse quadro, o juiz transcende sua função tradicional de adequar o fato à lei, agora também in-
quire a realidade à luz de valores e princípios consƟtucionais, o que segundo Vianna et al. (1999)
desneutraliza o Judiciário, isso tanto nos sistemas commow law como no civil law. Os autores evi-
denciam que a judicialização da políƟca exprime duas profundas alterações nas relações entre o
campo jurídico e o políƟco, a saber: 1) convergência entre os sistemas commow law e civil law;
2) esvaziamento do cânon doutrinário da separação entre os Poderes.
2 Sorj (2001) ainda aventa a possibilidade de uma quinta onda de direitos, que se relaciona com
questões de tecnologia aplicadas aos seres humanos enquanto espécie, em especial engenharia
genéƟca, novas formas de reprodução e mecanismos de integração entre sistemas informáƟcos e
mente humana.
Parte II | Capítulo 11 | “Desjudicialização” da política ou a insuficiência dos conceitos... 247
3 Tate (1995), através de estudo sobre os diferentes países em que ocorriam o processo de judiciali-
zação, desenvolveu um quadro de caracterísƟcas deste processo, são elas: democracia, separação
de poderes, direitos políƟcos, uso dos tribunais pelos grupos de interesses, uso dos tribunais pela
oposição e inefeƟvidade das insƟtuições majoritárias.
248 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
1995 – ano em que as respostas aos questionários enviados aos juízes foram dadas –,
por um vigoroso processo de mudança em sua identidade, o que vinha alterando a
composição social dos seus quadros e a forma de inscrição da corporação na sociedade
brasileira. Neste sentido, constata-se crescente juvenilização e feminização da magis-
tratura, bem como uma apropriação de seus cargos pelos estratos superiores da classe
média,4 tendendo a interromper a heterogeneidade de origens sociais até então pre-
dominante. Quanto ao sistema de orientação jurídico-político, os autores perceberam
um novo padrão entre os Poderes republicanos após a Constituição de 1988, onde o
Poder Judiciário abandona seu tradicional papel de instituição “passiva”, para assumir
uma posição de guardião dos direitos fundamentais e sociais, momento que passa a se
envolver com a realização da Justiça.
Em continuação a essa pesquisa, Vianna et alii (1999) utilizam o termo judicia-
lização da política para descrever a descoberta e utilização por parte dos partidos
políticos, das associações, das minorias parlamentares e dos governos estaduais dos
instrumentos de proteção judicial dispostos na Carta de 1988.
Segundo Vianna et alii, os parlamentares constituintes de 1987/1988 não pude-
ram partir de valores e princípios que organizavam a sociedade civil, que historica-
mente era carente de mentalidade cívica e de cultura política democrática, para guiá-
los na formulação da Nova Carta Magna. Entretanto, a sociedade brasileira, naquele
momento de transição, tinha propósitos de garantir os direitos fundamentais e foi
isso que motivou os parlamentares a constituírem os instrumentos que garantiriam,
no futuro, a proteção destes direitos fundamentais. Caberia à geração futura garantir
a efetividade da vontade geral expressa na Constituição através do uso dos mecanis-
mos dispostos dentro do próprio texto constitucional. “A política se judicializa a fim
de viabilizar o encontro da comunidade com os seus propósitos, declarados formalmente na
Constituição” (Vianna et alii, 1999: 40).
Neste aspecto, o Supremo Tribunal Federal, que foi confiado pelo legislador consti-
tuinte para controlar abstratamente a constitucionalidade das leis, estaria saindo de uma
função passiva e silenciosa no processo legislativo para uma função ativa de guardião da
Constituição Federal e dos direitos fundamentais da pessoa humana, quando provocado
pela comunidade de intérpretes através das Ações Diretas de Inconstitucionalidade.5
4 Os dados apresentados apontam uma tendência a uma elevação dos percentuais de juízes recrutados
em famílias com escolaridade superior, exemplo, em 1975-1976, a percentagem da escolaridade do pai
do magistrado com grau superior era 19%, enquanto essa mesma taxa em 1993-1994 era de 34,9%.
5 Ação Direta de InconsƟtucionalidade (ADIn) é o meio para provocar o guardião da ConsƟtuição, o
STF, a se manifestar sobre a validade de lei ou ato normaƟvo federal ou estadual frente ao texto
fundamental da ConsƟtuição.
250 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Em uma detalhada análise de 1.935 ADIns ajuizadas até o final do ano de 1998,
Vianna et alii constaram que governadores e Ministério Público foram responsáveis
por 49,9% das ADIns propostas entre 1988 e 1998, e as associações nacionais pa-
tronais e de trabalhadores foram responsáveis por 42,1%, o que revela a progressiva
importância que vem assumindo a sociedade civil como comunidade de intérpretes.
Além disso, perceberam o movimento ascendente do número de ADIns propostas
por partidos e associações, o que foi interpretado como uma indicação de que esses
autores têm procurado instituir no Judiciário uma arena alternativa à democracia re-
presentativa, além de ser um meio de racionalização da administração pública.
Após a análise da invasão da política pelo direito, os autores focam atenção no
avanço do direito na regulação da sociabilidade e das práticas sociais, convencionando
em chamar esse fenômeno de judicialização das relações sociais. Isso ocorre com um
conjunto de práticas e de novos direitos pertencentes a indivíduos e referentes a obje-
tos até então com pouca visibilidade no sistema jurídico, como mulheres vitimizadas,
pobres, meio ambiente, crianças e adolescentes em situação de risco, consumidores
inadvertidos e dependentes de drogas.
A judicialização das relações sociais tem se efetivado através da agenda igualitária e
de sua interpretação por grupos e indivíduos em suas demandas por direitos, por regu-
lamentação de comportamentos e reconhecimento de identidades. Segundo Vianna et
alii, no Brasil, onde a sociedade foi marcada por décadas de autoritarismo, que desorga-
nizaram a vida social, desestimulando a participação, a intervenção normativa, a cons-
tituição de uma esfera pública vinculada direta ou indiretamente ao Judiciário, através
das ações públicas e dos Juizados, podem servir para o aprendizado das virtudes cívicas.
Em um terceiro trabalho, em um contínuo às pesquisas anteriores, Vianna e Bur-
gos (2002) pesquisaram as ações civis públicas e as ações populares para demonstrar
como as relações entre os três Poderes têm se modificado em um sentido democrático.
Neste sentido, entendem que na Constituição de 1988 a ação popular e a ação civil
pública6 ganham novos contornos, passando a fazer parte de mecanismos que asse-
guram que determinados intérpretes informais da Constituição passem a deflagrar
processos de controle, especialmente judiciais.
Ao contrário de outros estudos, como de Arantes, os autores mostraram que o le-
gislador brasileiro criou um sistema abrangente de proteção dos interesses coletivos e
6 A Ação Civil Pública foi insƟtuída na Lei no 6.938/1981 sobre a PolíƟca Nacional do Meio Ambiente,
sendo que a Lei no 7.347/1985 disciplinou a ação civil pública. Entre 1985 e 1988, a ação civil pública
teve aplicação restrita às questões de meio ambiente, consumidor e patrimônio histórico e cultural,
foi a ConsƟtuição que ampliou a lista de direitos que podem receber proteção pela ACP.
252 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
difusos, favorecendo uma plural e crescente utilização desses mecanismos, o que tem
feito desses institutos uma nova arena na democracia brasileira, da qual tomam parte
não somente o Ministério Público, mas também homens comuns, como entidades da
sociedade civil, a mídia, o Poder Legislativo e Executivo.
Percebem que o Ministério Público, apesar de ser a instituição mais relevante no
ingresso dessas ações, não está expropriando papéis da sociedade civil, vez que se
verificou uma consistente e emergente presença da sociedade nessas ações, seja como
autora seja na provocação do próprio Ministério Público. O Ministério Público é visto
aqui como um importante interlocutor da sociedade civil com o Estado. Ademais,
o Ministério Público, através da Promotoria da Cidadania, tem recebido denúncias,
para as Ações Civis Públicas, dos três Poderes. Essas denúncias foram interpretadas
por Vianna e Burgos (2002), principalmente quando partem do Legislativo, de uma
formação de rede ampliada, onde o Legislativo tem participado ativamente no sistema
dos interesses coletivos e difusos, entretanto, na mobilização de outros mecanismos
de operacionalidade da política.7
A pesquisa ainda mapeia as decisões (liminares) que foram dadas nessas ações,
explicando que as mesmas estavam em andamento e por esse motivo eram resultados
provisórios, que não necessariamente seriam confirmados na decisão final. O resulta-
do foi a verificação de que houve maior aceitação das demandas relativas aos novos di-
reitos difusos e coletivos, que envolvem políticas públicas, e maior resistência nas que
deveria atuar com Poder que fiscaliza a moralidade administrativa dos outros Poderes.
Destarte, são as ações mais inovadoras que têm encontrado maior acolhimento, por
outro lado, demonstrando que o Poder Judiciário não está inclinado em desempenhar
o papel de fiscal da lisura dos outros dois poderes no trato com a coisa pública.
A expressão judicialização da política ganhou o debate público, com isso surgem
variados usos e sentidos. Cittadino (2000) a entende como o espaço aberto ao ativis-
mo político de agentes sociais e judiciais na produção da cidadania. Para a autora, o
constitucionalismo democrático abre o Judiciário para o espaço público, possibilitan-
do que novos atores sociais, a comunidade de intérpretes, participem, segundo pro-
cedimentos determinados, interpretando de forma aberta os valores compartilhados
pela comunidade com o fim de sua efetivação.
7 Os objetos das ações são variados, a saber: defesa da moralidade pública, proteção do cidadão
contra a violação de seus direitos causados por omissão do Estado: provocar a adoção de políƟcas
públicas pelas autoridades governamentais. Os acionados pela via judicial são tanto os órgãos públi-
cos como empresas e associações civis e cidadãos.
Parte II | Capítulo 11 | “Desjudicialização” da política ou a insuficiência dos conceitos... 253
No âmbito da justiça constitucional, seja nos Estados Unidos onde vigora a com-
mow law, seja nos países europeus e latino-americanos onde vigora a civil law, é possível
observar como uma forte pressão e mobilização política da sociedade estão na origem
da expansão dos tribunais ou do “ativismo judicial”. Enquanto nos países da commow
law esse ativismo é estimulado pela criação jurisprudencial do direito, nos países da
civil law, as novas Constituições ao incorporaram princípios do Estado Democrático
de Direito, asseguram espaço para o construtivismo dos juízes em jurisdição constitu-
cional, o que daria origem a um “direito judicial” em contraposição ao “direito legal”.
No Brasil, para a autora, a Constituição de 1988 converteu os direitos fundamen-
tais no núcleo básico do ordenamento constitucional brasileiro, sendo a dignidade
da pessoa humana privilegiada e constituindo um fundamento ético para a ordem
jurídica. Nessa seara, a Carta Magna de 1988 expressa a recusa ao constitucionalismo
liberal, marcado pela defesa do individualismo racional, passando para um constitu-
cionalismo societário e comunitário, que confere prioridade aos valores de igualdade
e dignidade humana. Aqui o objetivo fundamental da Constituição é a realização dos
valores, que necessita a existência da comunidade.
Os direitos fundamentais expressos na norma constitucional revelam programas
de ação ou afirmações de princípios, sendo que para concretizá-los são necessárias as
atividades interpretativas, tanto mais intensa, efetiva e democrática quanto maior for
o nível da abertura constitucional existente. É justamente pelo fato de as normas de
direito fundamental não terem aplicabilidade imediata é que se espera a decisão polí-
tica da comunidade de participar da comunidade de intérpretes, através dos próprios
instrumentos processual-procedimentais garantidos por esse mesmo ordenamento ju-
rídico. A responsabilidade por cidadania juridicamente participativa depende mais do
nível de pressão e mobilização política do que da atuação dos tribunais.
Outro significado da expressão judicialização da política é dado por Arantes
(2002), que utiliza o termo para se referir a atividade das lideranças do Ministério
Público que, na época da transição política, iniciaram um movimento para colocar a
instituição a serviço da construção da cidadania, colocando-se na posição de guardiões
dos direitos coletivos da sociedade civil, e para se referir às implicações negativas
que este processo gerou, com a politização de um órgão de justiça independente que
acabou se tornando um “agente político da lei”. Este ativismo judicial do Ministério
Público, segundo o autor, expressaria a face politizada da justiça, que é a contrapartida
da judicialização da política.
Focando sua atenção nas alterações sofridas pelo Ministério Público após a Cons-
tituição de 1988, Arantes (1999) explica que acresceu às suas funções tradicionais a
254 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
8 Como Įscal da lei (custos legis) o Ministério Público não é parte no processo, mas sim terceiro que
acompanhará a aplicação da lei pelo juiz em casos onde envolve direitos individuais indisponíveis
e direitos de incapazes. Já como Ɵtular da ação pública representa o Estado no seu interesse de
penalizar os indivíduos que infringem a legislação penal.
9 A Ɵtularidade da ação civil pública embora não seja exclusiva do Ministério Público é ele quem mais
tem se destacado no seu uso.
10 Arantes concluiu em sua pesquisa que os agentes políƟcos eram os alvos preferenciais do Ministério
Público nas ações coleƟvas.
Parte II | Capítulo 11 | “Desjudicialização” da política ou a insuficiência dos conceitos... 255
ativo na promoção dos direitos coletivos, pois tais matérias não constituem matéria
de opinião e sim atribuições e objetivos da organização disposta nas normas constitu-
cionais e outros ordenamentos, além de ser o significado dado às instituições judiciais
nas democracias modernas.
Maciel (2006), ainda, critica a abordagem do estudo de Arantes pelo fato de a le-
gitimidade do novo papel institucional aparecer como fenômeno derivado exclusiva-
mente das preferências individuais dos membros do Ministério Público desvinculado
de processos sociopolíticos e culturais mais amplos.
A outra objeção que levantam é que a hipótese de substitucionismo desconside-
ra o papel legitimador das denúncias e representações, em quantidade significativa,
que têm sido oferecidas por agentes políticos e estatais ao Ministério Público. Neste
mesmo sentido é a crítica ao trabalho de Arantes, que desconsidera que muitas das
ACP interpostas pelo Ministério Público originaram da participação ativa da sociedade
civil, que através de suas denúncias e representações, consegue inserir através dessa
instituição suas demandas na agenda política brasileira.
Maciel (2006) também estuda o processo de reconstrução institucional do Mi-
nistério Público, entretanto, tem por objetivo focalizar o surgimento e dinâmica da
mobilização coletiva no processo político da redemocratização combinando teorias
da ação coletiva, em particular a Teoria do Processo Político, com abordagens neoins-
titucionalista e construtivista das organizações judiciais. Neste sentido, o argumento
de seu trabalho é que a reconstrução institucional do Ministério Público foi orientada
por um duplo movimento:
1) a estrutura de oportunidades políticas da redemocratização forneceu recurso so-
ciopolítico e cultural para a renovação de procedimentos jurídico-normativos,
repertórios e estratégias de mobilização;
2) no contexto acelerado das mobilizações sociais na transição política, o movimen-
to do Ministério Público transformou-se, ele próprio, em oportunidade política
favorável aos grupos e movimentos sociais mobilizados em torno da renovação
da agenda política brasileira.
uma alternativa viável para canalizar novos problemas e interesses sociais. Ademais, ele
atraiu para si uma grande visibilidade pública, que se converteu em apoio político de
grupos e movimentos sociais, da comunidade científica e dos meios de comunicação.
A hipótese do trabalho de Maciel (2006: 17), portanto,
é que o capital social, político e simbólico acumulado pelo MP, ao longo da rede-
mocratização, permitiu promotores e procuradores de justiça enfrentar com suces-
so oponentes dentre setores da comunidade jurídica e política, na Constituinte, e
assim, angariar decisões políticas favoráveis à realização da pauta da instituição.
Kerche, analisando o Ministério Público brasileiro e sua autonomia em relação aos
poderes político-partidários dos Estados, conceitua a judicialização da política como
“a transferência de tarefas tradicionalmente pertencentes às esferas político-partidárias do
Estado (Executivo e Legislativo) para o Poder Judiciário” (Kerche, 2002: 02).12
O autor demonstra que Ministério Público brasileiro teve aumentada a sua auto-
nomia política e suas tarefas na Constituição de 1988, porém, sem a contrapartida,
que é a possibilidade de seus membros serem responsabilizados, por agentes externos,
pelos seus atos indevidos, o chamado accountability. Aponta que a existência de meca-
nismos internos de responsabilização não é suficiente numa democracia.
O estudo mostra que seria exagerado alegar que houve uma abdicação absoluta de
tarefas, por parte dos políticos em relação ao Ministério Público, na Constituição de
1988, pelo fato desta atribuir aos promotores e procuradores de justiça, além de seu
papel tradicional – ação penal –, a função de exigir o correto cumprimento da lei e fis-
calizar se os agentes públicos agem com probidade na administração dos bens públicos.
Isto porque na abdicação absoluta é necessário que ocorra total ausência de mecanismos
por parte dos políticos para alterarem propostas e iniciativas dos membros do Ministério
Público, sendo que, no caso, a Lei de Responsabilidade Fiscal (ato do Governo Federal)
limitou a relativa independência orçamentária do Ministério Público.
Por outro lado, segundo o autor, também não há como ser aceita a hipótese de
delegação das novas tarefas aos integrantes do Ministério Público, pois houve a criação
de instrumentos que dificultam a intervenção do governo ou do Legislativo nos rumos
da organização como, por exemplo, de não haver, na Constituição ou na Lei Orgânica
do Ministério Público, previsão de controle externo.
Nesse sentido, Kerche resolve a questão propondo que esta situação trata de “qua-
se-abdicação”, que seria um fenômeno intermediário, com “alto grau de autonomia,
embora com alguns poucos instrumentos de controle e accountability”(Idem, ibidem: 64).
12 Já a negação da políƟca: “é a transferência de uma série de questões para que a burocracia tome
decisões (aumentando sua discricionariedade)” (p. 2).
Parte II | Capítulo 11 | “Desjudicialização” da política ou a insuficiência dos conceitos... 257
Menciona que o Ministério Público é uma instituição única que desempenha di-
versos papéis. Assim, na sua função clássica, qual seja, a de propor ação penal pública
para crimes comuns, o grau de discricionariedade é baixo, dado que, segundo o prin-
cípio da legalidade, o promotor é obrigado a levar os casos ao Poder Judiciário. Porém,
o mesmo não ocorre com a atividade de fiscalização dos políticos e burocratas, através
das ações civis e inquéritos civis, e na fiscalização do cumprimento da lei, através da
ação civil pública, nestes casos, as investigações de homens públicos podem ser con-
duzidas de maneira a prejudicar os desafetos ou a favorecer os aliados.
Kerche chama a atenção para a equação que se forma, onde de um lado os pro-
motores e procuradores contam com alto grau de discricionariedade e de outro com
poucos mecanismos de accountability,13 mostrando o quão estranha é para o processo
democrático. Isto porque, segundo a teoria democrática, é necessário controle externo
tanto para os políticos eleitos como para atores estatais, que não são eleitos, mas pos-
suem algum grau de discricionariedade.
Essa estrutura do Ministério Público, com atribuição de sua função tradicional
e de suas novas tarefas, respectivamente, legitimidade para ação penal pública e a
responsabilidade de fiscalizar os agentes públicos e do cumprimento da lei, segundo
Kerche, é fruto de uma escolha dos próprios parlamentares constituintes. Desta forma,
demonstra que houve lobbies de promotores e procuradores na tentativa de convencer
os parlamentares constituintes a garantir e ampliar o papel da organização; entretanto,
essa não foi a causa principal que garantiu maior independência da organização em re-
lação aos políticos. A aprovação destas medidas apenas ocorreu porque ia ao encontro
do desejo dos parlamentares, ademais, o lobby não era unificado nem mesmo o único
no processo; ilustrando, cita como exemplo o lobby dos delegados, que em alguns
aspectos eram claramente contrários aos anseios dos promotores.14
A melhor explicação está no fato de que os parlamentares queriam este modelo,
isto por conta de uma visão da sociedade e do papel do Estado que permitia a existên-
cia de uma instituição independente e com poderes para defender a sociedade. Neste
sentido, de um lado havia uma concepção geral que a sociedade não sabia exigir os di-
13 Ainda quanto à sua estrutura interna, Kerche demonstra que o Ministério Público brasileiro
possui divisões estaduais e federais e que os seus membros possuem ampla liberdade e são
protegidos contra as injunções da cúpula da organização. Só imperfeitamente a cúpula que, no
caso, seria o Procurador-Geral da República e os de Justiça dos Estados, consegue criar políticas
institucionais.
14 Neste senƟdo, não era claro o processo de convencimento dos parlamentares e, como um lobby era
mais eĮciente que outro, sendo que no caso em tela, o autor não encontrou qualquer indício que os
interesses dos parlamentares fossem marcados pelo corporaƟvismo do Ministério Público.
258 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
reitos que foram dados (individuais e coletivos), sendo necessária uma instituição que
exigisse a aplicação destes direitos, e por outro lado, os próprios políticos pareciam
não confiar neles mesmos, assim era necessária uma instituição guardiã do Estado.
De um modo geral, a judicialização da política e a politização da justiça indicam
os efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias
contemporâneas. Segundo Maciel e Koerner (2002), referindo-se ao balanço que fi-
zeram sobre o tema, judicializar a política é valer-se de métodos típicos da decisão
judicial na produção de disputas e demandas nas arenas políticas, em dois contextos:
1) com a ampliação da área dos tribunais através da revisão judicial de ações legislativas
e executivas, baseado na constitucionalização dos direitos e do check and balances;
2) introdução ou expansão de staff judicial ou procedimentos judiciais no Execu-
tivo e no Legislativo, como, por exemplo, como ocorre em tribunais e juízes
administrativos e Comissões Parlamentares de Inquérito.15
1990, quando percebemos uma postura do TST em dificultar a aceitação dos dissídios
coletivos, ao mesmo tempo que ocorria uma redução do número de processos na área
coletiva do trabalho.
Para isso, analisamos, por um lado, os dados fornecidos pelo SACC-DIEESE (Siste-
ma de Acompanhamento de Contratações Coletivas, desenvolvido pelo Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), que reúne informações sobre
os instrumentos normativos que regulam as relações de trabalho (negociações coleti-
vas ou sentença normativa), por setor econômico, ramos de atividades e região geo-
gráfica. E por outro lado, a postura da Justiça do Trabalho com relação aos dissídios
coletivos do trabalho, principalmente com a análise dos precedentes normativos.17
Os dados do SACC-DIEESE abaixo, (Gráfico 1 – Taxa de judicialização na solução
dos conflitos coletivos de trabalho – Brasil 1993-2005 e Tabela 1 – Taxa de judicializa-
ção na solução dos conflitos coletivos de trabalho por setores econômicos), demons-
tram que durante o período analisado a grande maioria dos instrumentos normativos
resultou das negociações diretas entre trabalhadores e empregados, sem a interferên-
cia da Justiça do Trabalho. Em média, 90% tratam de negociações coletivas.
25
20
15
10
0
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Fonte: SAAC-DIEESE
17 Precedentes normaƟvos são proposições normaƟvas formais expedidas pelo TST depois de reiteradas
decisões desse órgão nos dissídios coleƟvos, para serem uƟlizadas nas decisões desse Ɵpo de dissídio
por toda a JusƟça do Trabalho. A parƟr da expedição dos precedentes espera-se que os ministros do
TST irão julgar de acordo com os mesmos, apesar de não ter caráter vinculaƟvo, onde necessariamen-
te os Tribunais Regionais do Trabalho e os próprios Ministros do TST tenham que julgar nesse senƟdo.
Entretanto, na práƟca, o TST julga com base nos precedentes e os TRT acabam assim fazendo, pois
sabem que decisões diferentes, se recorridas para TST, acabarão por ser reformadas.
260 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
(%)
O mais importante, e o que nos interessa aqui, é a evolução dessa taxa de nego-
ciação coletiva18 e sentença normativa. A evolução do número de dissídios coletivos
demonstra uma trajetória de queda continuada até o ano de 2000, quando chegou a
um patamar ínfimo e volta a ter um pequeno crescimento em 2001, para depois voltar
a declinar.
O comportamento da taxa de judicialização na segunda metade dos anos 1990
evidencia uma mudança estrutural na solução dos conflitos coletivos de trabalho no
Brasil. Salvo por diferenças anuais, a tendência à queda na taxa de judicialização foi
registrada em todos os setores de atividade econômica. No setor do comércio, a via
judicial foi praticamente abandonada a partir de 1998 (exceto 2000/2001). No setor
industrial, houve uma forte redução das taxas anuais a partir de 1997. No setor de
serviços, há um aumento em 1997/1998, com queda subsequente em 2003.
O relatório do DIEESE não explica as causas dessa trajetória declinante na taxa de
judicialização, apenas menciona que por parte da Justiça do Trabalho houve uma mu-
dança de postura, que passou a extinguir os processos sem análise do mérito. Neste
18 A Dieese desenvolveu um indicador de síntese dos modos de soluções dos conŇitos coleƟvos de
trabalho no Brasil, que é a taxa de judicialização, que corresponde à proporção de instrumentos
normaƟvos provenientes do âmbito da JusƟça do Trabalho.
Parte II | Capítulo 11 | “Desjudicialização” da política ou a insuficiência dos conceitos... 261
19 Todos os dados relaƟvos aos Precedentes NormaƟvos foram extraídos de Horn (2006).
262 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
cem ter sido reforçadas pela Constituição de 1988, que conferiu certa proeminência
às negociações coletivas como forma de ajustes entre as partes.
Frente a essa redução do número de dissídios coletivos é que nos perguntamos
se é possível falar em uma “desjudicialização” na Justiça do Trabalho ou então numa
insuficiência do conceito de judicialização da política/politização da Justiça e de sua
forma empírica de pesquisa.
“Desjudicialização” da Justiça do Trabalho, dentro dessa ideia de judicialização
da política, nos parece que se trata de uma hipótese que deve ser descartada logo de
início, pois embora a Justiça do Trabalho venha se retirando do julgamento dos di-
reitos coletivos, isso não significa que essa instituição se retirou da normatização dos
conflitos individuais do trabalho, pelo contrário, os processos envolvendo dissídios
individuais cresceram de forma assustadora no mesmo período.
Nesse sentido, a Tabela 2 a seguir demonstra que em 1993, 1.882.388 ações in-
gressaram na Justiça do Trabalho, sendo que em 2004 eram 2.917.287. Se, como
provado com as outras tabelas, o número de processo referente a dissídios coletivos
declinou, esse crescimento de 315.287 processos no período deve ser atribuído prin-
cipalmente ao crescimento dos dissídios individuais do trabalho.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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tos coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 14, no 39, 1999.
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VALLINDER, T. When the Courts Go Marching. In: VALLINDER, T. & TATE, C. Neal.
The Global Expansion of Judicial Power: The Judicialization of Politics. New York:
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VIANNA, Luiz Werneck et al. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro:
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_________. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
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VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo. Revolução Processual do Direito e De-
mocracia Progressiva. In: VIANNA, Luiz Werneck (org.). A Democracia e os Três
Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FA-
PERJ, 2002.
12
A justiça estatal: a reconstituição da
Defensoria Pública do estado
do Rio de Janeiro pós-1988
Sumário:
1. Introdução.
2. O acesso à JusƟça.
3. A problemáƟca do acesso à JusƟça.
4. A formação da DP-RJ.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade capitalista tem sido marcada por profundas transformações políticas,
econômicas e sociais. A emergência de uma sociedade cada vez mais integrada (e
controlada) pelas tecnologias da informação e pela hegemonia da lógica individual do
mercado tem, por outro lado, o surgimento de novos conflitos sociais adicionados aos
antigos. Nesse contexto, em que o Estado tem sido ameaçado na sua capacidade de
intervenção devido às pressões políticas e ideológicas fundamentadas num discurso
que tem como marca central a questão, é, ao mesmo tempo, marcado pela presença
cada vez maior do Direito como um instrumento para a solução dos conflitos sociais.
* Doutor em Direito Civil pela UERJ. Professor de História do Direito da Faculdade de Direito da UERJ.
Professor de Direito da Cidade do Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Procurador
do Estado do Rio de Janeiro.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 267
A questão do acesso à Justiça, que envolve os mais amplos setores sociais, tem se
tornado nas últimas décadas um dos elementos centrais do processo de democratiza-
ção nas sociedades contemporâneas. Tal marca pode ser observada, em sua origem,
nos países capitalistas centrais, e na busca pelo provimento de serviços judiciais às
classes sociais trabalhadoras. Este movimento, por sua vez, não se restringiu aos países
hegemônicos, e pode ser observado em sociedades como a brasileira. Dentre os que
apontam a gênese da tentativa de ampliar o acesso à justiça, pode-se apontar a criação
legal do cargo de Defensor Público no Brasil, nos anos 1950.
Por esta razão, o presente artigo1 visa discutir a construção de canais de acesso
à justiça no mundo contemporâneo, tendo como objeto de análise uma instituição
jurídica que tem se notabilizado por ser um dos principais veículos de acesso à justiça;
trata-se da DP-RJ que, a despeito de sua criação enquanto Assistência Judiciária desde
os anos 1950, tem obtido grande destaque desde a última década no cenário jurídico
brasileiro devido à sua ampla atuação em diversas áreas, não se restringindo mais aos
direitos ditos tradicionais, como família ou cível, mas também no campo dos direitos
humanos e na incorporação dos “novos” direitos, de características coletivas e difusas.
Adicionalmente, afirma-se que tal instrumento é marcado pela inovação institucional,
na qual a Defensoria Pública apresenta autonomia em relação ao Executivo e, em al-
guns casos, poderes e garantias típicos do Ministério Público e do Judiciário.
Assim, o artigo em questão pretende abordar o problema em se considerando: (a)
origem do acesso à justiça; (b) as análises precedentes sobre o acesso à justiça; (c) a
constituição da defensoria; (d) conclusão. Nesta divisão busca-se esclarecer o surgi-
mento da Defensoria e seu perfil singular dentre as instituições de acesso à justiça exis-
tentes. Tal modelagem será abordada levando-se em conta o processo de ampliação da
esfera de direitos nas sociedades contemporâneas, em especial os de natureza difusa e
coletiva, que contribuem na sua formatação. Ao final, o artigo aponta a relação entre o
modelo da organização e as peculiaridades do processo de consolidação do regime de
direitos na sociedade brasileira contemporânea.
2. O ACESSO À JUSTIÇA
A questão do acesso à Justiça tem sido um dos temas mais recorrentes no debate
acerca da efetividade dos sistemas de justiça, e tem como ponto de partida a obra
de Cappelleti e Garth (1988) a respeito dessa problemática. De acordo com Eliane
Junqueira (1996), o tema sobre o acesso à Justiça começou a despertar interesse aos
1 Este texto é uma versão resumida da minha tese de doutorado defendida no IUPERJ em 2005 sob a
orientação de Luiz Werneck Vianna. Portanto, os dados citados aqui são restritos até esse período.
268 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
pesquisadores brasileiros nos anos 1980, mas as motivações não eram as mesmas dos
cientistas sociais europeus ou estadunidenses, já que estes vinculavam a questão do
acesso à Justiça à expansão dos serviços do welfare state (em meio à crise desse modelo
estatal que se iniciou nos anos 1970); nem tampouco no que se refere a afirmação de
novos direitos de cunho coletivo e difuso, como os do consumidor, meio ambiente,
étnico ou sexual. O que prevalecia nos anos 1980 no Brasil eram os canais alternati-
vos de justiça, paralelos ao Estado, sendo este identificado como uma representação
política autoritária, e tendo o enfoque do acesso à justiça aos canais institucionais
oriundos do aparato estatal. A ênfase era, sobretudo, no papel das comunidades na
resolução dos seus conflitos, a exemplo do trabalho de Boaventura de Sousa Santos
(1977) sobre a favela do Jacarezinho nos anos 1970.
Ademais, o tema do acesso à Justiça pelo Estado estava diluído e sobredeterminado
pelo debate daquele contexto que enfatizava a ampliação da cidadania participativa, da
afirmação e garantia das “liberdades negativas”, e do papel desempenhado pela emer-
gência dos movimentos sociais ora estabelecidos. Com efeito, na virada dos anos 1970
para os 1980, houve o surgimento de novos atores políticos e sociais que exerceram
forte pressão para a criação do Estado democrático de direito e de uma cidadania ativa.
O movimento de acesso à Justiça, definido classicamente por Cappelletti e Garth
(1988), é composto por três ondas de acesso à Justiça: a primeira onda tem como
principal característica a expansão da oferta de serviços jurídicos aos setores pobres da
população; a segunda trata da incorporação dos interesses coletivos e difusos, o que
resultou na revisão de noções tradicionais do processo civil; a terceira onda, conhecida
como “abordagem de acesso à Justiça”, inclui a justiça informal, o desvio de casos de
competência do sistema formal legal e a simplificação da lei. Essa “terceira onda” de
reforma inclui a advocacia, judicial e extrajudicial, seja por meio de advogados par-
ticulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de ins-
tituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo
prevenir disputas nas sociedades modernas.
Embora as primeiras experiências a respeito da assistência judiciária remontem
a Alemanha nos anos 1920 e na Inglaterra nos anos 1940, foi nos anos 1960 que a
assistência judiciária ocupou o topo da agenda das reformas judiciárias (Cappelletti
e Garth, 1988). A reforma começou em 1965 nos EUA, com o Office of Economic Op-
portunity e se espalhou mundialmente a partir da década de 1970 em diversos países
como a França, Suécia, Holanda, Áustria, Itália e Austrália. Essa primeira grande onda
de reforma é dividida basicamente em dois grandes modelos: o Sistema Judicare e o
Advogado Remunerado pelos Cofres Públicos.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 269
O sistema judicare foi adotado em boa parte dos países da Europa Ocidental como
a Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha. Trata-se de um sistema através do
qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que
se enquadrem nos termos da lei. Os advogados particulares, então, são pagos pelo
Estado. A finalidade do sistema judicare é proporcionar aos litigantes de baixa renda
a mesma representação que teriam se pudessem pagar um advogado (Cappelletti e
Garth, 1988: 35).
Cappelletti e Garth apontam limitações a esse modelo, pois o judicare desfaz a
barreira de custo, mas faz pouco para atacar barreiras causadas por outros problemas
encontrados pelos pobres. Além disso, as pessoas pobres podem sentir-se intimidadas
em reivindicá-la pela perspectiva de comparecerem a um escritório de advocacia e
discuti-la com um advogado particular. Mais importante: o judicare trata os pobres
como indivíduos, desprezando sua situação como classe. Dado que os pobres encon-
tram muitos problemas jurídicos como grupo ou classe, e que os interesses de cada
indivíduo podem ser muito pequenos para justificar uma ação, remédios meramente
individuais são inadequados. Os sistemas judicare, entretanto, não estão aparelhados
para transcender os remédios individuais (Cappelletti e Garth, 1988).
O modelo de assistência judiciária com advogados remunerados pelos cofres pú-
blicos tem um objetivo diferente do sistema judicare. Esse modelo, mais conhecido
pela sua versão estadunidense, considera que os serviços jurídicos deveriam ser pres-
tados por “escritórios de vizinhança”, atendidos por advogados pagos pelo governo e
encarregados em promover os interesses dos pobres, enquanto classe. Distintamente
dos sistemas judicare existentes, esse sistema tende a ser caracterizado por grandes
esforços no sentido de fazer as pessoas pobres conscientes de seus novos direitos e
desejosas de utilizar advogados para ajudar a obtê-los. Ademais, os escritórios eram
pequenos e localizados nas comunidades pobres, de modo a facilitar o contato e mini-
mizar as barreiras de classe. Em suma, além de apenas encaminhar as demandas indi-
viduais dos pobres que são trazidas aos advogados, tal como no sistema judicare, esse
modelo norte-americano: 1) vai em direção aos pobres para auxiliá-los a reivindicar
seus direitos e 2) cria uma categoria de advogados eficientes para atuar pelos pobres
enquanto classe (Cappelletti e Garth, 1988).2
2 Atualmente nos EUA há 73 organizações de defensores federais que atuam na área criminal, empre-
gando mais de 2400 pessoas e servindo em 83 das 94 regiões de jurisdição federal. Segundo Theo-
dore Lidz há dois Ɵpos de organização de defensoria federal: Federal Public Defender OrganizaƟons
and Community Defender OrganizaƟons: “Federal public defender organizaƟons are federal enƟƟes,
and their staīs are federal employees. The chief federal public defender is appointed by the court
of appeals of the circuit in which the organizaƟon is located in order to insulate the federal public
270 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Ainda sobre a assistência jurídica europeia, Peña Moraes cita a experiência dos
países do Mediterrâneo como Portugal, Espanha e Itália e, tal como os citados acima,
não existe uma Defensoria Pública estruturada nos moldes burocráticos, i.e., enquanto
uma carreira de agente público estatal. Embora a Constituição portuguesa de 1976
assegure, em seu art. 20,3 o direito de acesso à Justiça, a assistência jurídica é exercida
“por advogados e/ou solicitadores do foro, nomeados pelo juiz, atendidas, em princípio, as es-
calas que tenham sido organizadas pela Ordem dos Advogados e Câmara dos Solicitadores”
(Moraes, 1999: 108).
Na Espanha, embora o art. 1194 da Constituição espanhola de 1978 firme o livre
acesso às instituições judicantes para obter a tutela jurisdicional dos direitos reconhe-
cidos em lei, não há um organismo estatal que se caracterize por esse tipo de prática
jurídica. Há duas formas de prestação de Justiça: a primeira é prestada pelo advogado
particular, indicado pelo carente e que se disponha a defendê-lo. A segunda, orientada
pelo Estatuto General de los Colegios de Abogados de España, de 1947, é prestada pelos
profissionais inscritos diante da correspondente entidade corporativa ou associativa
em defesa dos que a solicitem e obtenham o reconhecimento judicial do estado de
carência.
A Constituição italiana de 1948 (com as emendas constitucionais de 1963 e 1967)
em seu art. 24, 3a alínea, assegura “a quem não tenha recursos, mediante adequados ins-
titutos, os meios para defender-se perante qualquer jurisdição”. Contudo, inexiste uma
instituição jurídica de caráter público-estatal para a prestação desse tipo de serviço.
Mauro Cappelletti critica o modelo italiano de acesso à Justiça devido aos seguintes
fatores: a falta de uma consultoria extrajudicial, a exigência de uma série de requisitos
formais e substanciais para a obtenção do préstimo, a outorga da patronagem a advo-
gados menos hábeis e preparados e sujeição ao critério de mérito de causa.5
defender from the involvement of the district court before which the defender principally pracƟces.
Community defender organizaƟons are non-proĮt defense counsel organizaƟons incorporated un-
der state laws. When designated in the Criminal JusƟce Act (CJA) plan for the district in which they
operate, community defender organizaƟons receive sustaining grants from the federal judiciary to
fund their operaƟons. Community defender organizaƟons operate under the supervision of a board
of directors and may be a branch or division of a parent state agency that provides similar represen-
taƟon in local courts”(Lidz,2003: p. 140).
3 ConsƟtuição portuguesa, art. 20: “1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legíƟmos, não podendo a jusƟça ser denegada por insuĮciência
de meios econômicos. 2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídica e ao
patrocínio judiciário”.
4 ConsƟtuição espanhola, art. 119: “A jusƟça será gratuita quando assim disponha a lei e, em todo o
caso, àqueles que acreditem insuĮciência de recursos para liƟgar”.
5 Mauro Cappelleƫ, Pobreza y JusƟcia citado por Moraes (1999: 118).
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 271
advocacia são mantidos diretamente pelo governo, sem que se leve em conta quão
bem-sucedidos eles sejam na competição com sociedades de advogados particulares.
Em Quebec, consequentemente, os escritórios públicos podem ter menos tendência
a privilegiar apenas disputas individuais e, mais provavelmente, poderão mobilizar os
pobres e advogar por eles, como grupo (Cappelletti e Garth, 2004: 131).
Nos demais países da América do Sul, Central, Caribe e México, identificados na
tradição da civil law, existem Defensorias Públicas, a despeito da diversificação entre
elas no que concerne ao modelo organizacional e de suas funções, além do que nem
todas foram institucionalmente criadas pelas Constituições de seus países. Contudo,
apesar de suas diferenças, há entre elas um elo em comum: a ênfase que dão às ques-
tões relacionadas aos direitos humanos. Nesse aspecto, encontram-se semelhanças
entre as Cartas constitucionais dos países europeus que viveram a experiência do fas-
cismo (Alemanha e Itália) e de governos autoritários (Grécia, Portugal e Espanha) com
as formações sociais latino-americanas que, durante décadas, estiveram sob domínio
de regimes militares (Argentina, Bolívia, Chile, El Salvador, Guatemala, Honduras,
Peru, Paraguai, Uruguai etc.).
Uma das Defensorias Públicas latino-americanas de maior projeção, de acordo
com os dados do IBCCRIM [como também pude observar no II Congresso Interame-
ricano de Defensorias Públicas, em outubro de 2003, no Rio de Janeiro], é a da Argen-
tina. O Poder Judiciário na Argentina é composto de 25 órgãos autônomos e indepen-
dentes (poder judiciário federal, poder judiciário da cidade autônoma de Buenos Aires
e 23 poderes judiciários provinciais). Também compete a cada província a organização
do serviço de assistência judiciária gratuita, inexistindo previsão constitucional da
Defensoria Pública, até mesmo em nível federal. Embora sem expressa previsão na
Constitución de la Nación Argentina, promulgada em novembro de 1994, a obrigação do
Estado em prestar assistência judiciária gratuita decorre da garantia prevista no art. 18
do texto constitucional, que estabelece a inviolabilidade do direito à defesa.
Na esfera federal, o desempenho da atividade inerente à Defensoria Pública en-
contra-se entre as atribuições da Defensoría General de la Nación, também chamado de
Ministério Público de la Defensa, cuja lei de organização (Lei no 24.946) prevê, em seu
art. 25, a função de exercer a defesa judicial das pessoas carentes de recursos financeiros
e dos ausentes. Nas províncias, como regra, a Defensoria Pública é desempenhada por
advogados contratados pelo sistema judiciário local. Em um país com uma população
de 36,2 milhões de habitantes, dos quais 53,8% são pobres – cerca de 19 milhões de
pessoas, entre as quais 8,4 milhões de indigentes –, havia, no ano de 2000, apenas 171
Defensores Públicos na esfera federal e 406 Defensores Públicos provinciais.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 273
A Defensoria Pública argentina atua (pelo menos até o ano de 2005) somente no
campo dos direitos individuais, não abrangendo os direitos coletivos e difusos, como
afirma a Defensora Pública de Buenos Aires, Silvina Manes (2003: 147):
La defensa pública no actúa en modo alguno en defensa de los intereses de la
sociedad, sino en defensa de un interés individual. La base conceptual que debe
regir al Ministerio Público de la Defensa es la tutela de un interés exclusivamente
individual vinculado a un derecho humano fundamental cual es el de la defensa
en juicio. La Defensa no es un oficio judicial subordinado al interés superior de
la Justicia, motivo por el cual su pertenencia (por no decir subordinación?) al
Poder Judicial resulta contraria a este primer estándar constitucional que es la
independencia.
Alejandro M. Garro (2000) observa que a maioria das Defensorias Públicas ainda
se encontra em estado “larvar”; muitas existem em termos constitucionais, embora
pouco aparelhadas, enquanto outras, apesar de estarem institucionalmente organiza-
das, não estão incluídas – até o presente momento – como norma constitucional. Mui-
tos dos serviços jurídicos prestados são realizados por Escolas de Direito por meio de
programas de clínicas legais. Em algumas jurisdições na América Latina, as Faculdades
de Direito oferecem diferentes programas clínicos que funcionam na base do volunta-
riado; outras jurisdições estabelecem tais programas como um requisito compulsório
para a graduação na universidade (Trinidad Tobago); e outras jurisdições, ainda, im-
põem esse requisito depois da graduação como um pré-requisito para ser admitido na
prática (Chile). Embora esses programas de clínica jurídica tenham vantagens óbvias
em termos de independência organizacional, muitos deles enfrentam sérias limitações
financeiras. Evidentemente, os planos de assistência legal administrados por clínicas
de Faculdades de Direito têm um objetivo duplo: oferecer treinamento prático aos
estudantes, assim como assistência jurídica e representação aos pobres. Além disso, o
sucesso desses programas mede-se, principalmente, em termos de experiência educa-
cional adquirida pelos estudantes, mais do que em termos do sucesso real em cumprir
as necessidades legais que afetam os pobres.
Em alguns países latino-americanos, os projetos de assistência legal têm sido fi-
nanciados pelas organizações não governamentais, que tentam organizar e promover
a assistência legal para vários grupos pobres. Algumas dessas organizações privadas
fornecem assistência jurídica para os acusados de crimes, operários, inquilinos, mu-
lheres, camponeses e povos indígenas, assim como para os pobres moradores das
grandes áreas metropolitanas que invadem terras do governo ou privadas. Há, tam-
bém, em algumas jurisdições, planos de assistência legal do governo que se valem da
colaboração das associações de advogados dativos para oferecer aos pobres a assistên-
274 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
cia legal, seja na base da representação pro-bono, assumida pelos membros da Ordem
dos Advogados, seja com apoio do governo.
Pode-se observar, pelos exemplos citados, que não falta nessas Defensorias Públi-
cas uma identidade institucional corporativa atrelada ao poder público estatal, e que
esteja regulada em nível constitucional e incluída nos gastos do orçamento público,
além de um amplo escopo de suas ações voltadas aos direitos humanos (individuais
e coletivos) garantidas pelo poder de Estado, possibilitando, desse modo, uma maior
eficácia ao acesso à Justiça.
No entanto, como bem ressalta Alejandro M. Garro, a maioria das Defensorias
Públicas já organizadas do continente americano está aquém de seus objetivos consti-
tucionais por um conjunto de fatores como baixos salários, limitações constitucionais,
sobrecarga de trabalho, além de estarem desaparelhadas para o atendimento de sua
demanda. Como afirma Garro (2000: 312),
os serviços legais fornecidos pelos advogados públicos assalariados são os mais
populares da América Latina. Os acusados de crime (pobres ou não) têm direito
à representação legal gratuita por um Defensor Público a fim de implementar a
garantia constitucional do direito de defesa. Algumas jurisdições incluem advoga-
dos fornecidos pelo governo não apenas para os acusados de crimes, mas também
para os outros grupos vulneráveis como mineiros, operários e populações rurais
ou indígenas. Quase invariavelmente, a qualidade da representação legal fornecida
por esses advogados do governo é muito pequena – a Defensoria Pública padece
de uma falta crônica de pessoal, está sempre sobrecarregada e a natureza da função
ou do serviço dos Defensores Públicos é com frequência vista negativamente tanto
pelo Defensor Público quanto pela pessoa que ele ou ela representa. O modelo de
Defensoria Pública assalariada está também em crise nos Estados Unidos, em espe-
cial depois que o Congresso cortou a maior parte dos fundos e colocou restrições
sobre a Corporação de Serviços Legais [Legal Services Corporation], que desde
1974 tem representado os pobres nos assuntos civis.
214). Percebe-se, então, que devido ao alcance social dos Juizados Especiais, há uma
nova articulação entre o Estado e a sociedade e entre os próprios membros da socieda-
de, a partir do reconhecimento de que tais Juizados podem se constituir em um novo
espaço republicano de deliberação.
Já o interesse acadêmico pela Defensoria Pública tem como ponto de partida a
dissertação de tese de Brenno Mascarenhas, defendida no Mestrado em Direito da
PUC-RJ, intitulada A dinâmica do individualismo na DP-RJ, em 1992. Esse trabalho,
pioneiro no campo acadêmico, foi feito poucos anos depois da inserção da Defensoria
Pública como instituição fundamental de Justiça na Constituição de 1988, e da Cons-
tituição estadual de 1989. Apesar da pouca distância temporal entre a reformulação
legal do papel da Defensoria Pública e a realização da pesquisa empreendida por Bren-
no Mascarenhas, sua dissertação tem sido uma referência constante para os trabalhos
acadêmicos que se seguiram sobre essa instituição e o acesso à Justiça, a exemplo das
análises recentes sobre outros espaços institucionais voltados para a assistência jurí-
dica, como a Defensoria Pública do Maranhão e a Assistência Jurídica de São Paulo.
O trabalho de Brenno Mascarenhas aponta que a DP-RJ (DP-RJ), a despeito de
ser uma instituição jurídica caracterizada pelo tratamento de questões e conflitos de
cunho individual, uma herança do liberalismo clássico no campo do direito, começa
a tratar, no final dos anos 1980, de conflitos coletivos, o que aponta uma mudança
no perfil dessa instituição, que foi constituída nos anos 1950. De acordo com Brenno
Mascarenhas, ao lado das Defensorias denominadas de “tradicionais” que atuam no
polo individual – como os núcleos de primeiro atendimento que versam sobre ques-
tões de família e da área penal, e que mantêm as mesmas características da atuação
dos Defensores Públicos desde a formação da instituição –, formaram-se Defensorias
classificadas como “não tradicionais”, a exemplo dos núcleos especializados em temas
como terra e habitação, loteamentos irregulares e consumidores que, além de se aterem
em causas coletivas, também trabalham de modo conjunto com os movimentos so-
ciais, como as associações de moradores de comunidades carentes.
A hipótese do autor (Mascarenhas, 1995: 74) é de que as Defensorias Públicas “tra-
dicionais” incorporam o individualismo do Estado liberal, enquanto as “não tradicio-
nais” de Terras e Habitação, de Defesa do Consumidor e as atividades dos Defensores
Públicos no Núcleo de Regularização de Loteamentos do Município do Rio de Janeiro
se assimilam ao Estado contemporâneo, na medida em que são reconhecidos
direitos imputados a grupos que, em caso de serem desrespeitados, impõem
uma ação conjunta por parte de todos os seus integrantes, bem como das orga-
nizações legitimadas sobre a representação coletiva desses grupos.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 279
7 A dissertação de Brenno Mascarenhas foi publicada, em versão resumida, em duas revistas: Revista
de Direito da Defensoria Pública (no 7, 1995) e na Revista de Processo da DP-RJ (1998). A presente
citação foi extraída da primeira.
280 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
versavam sobre as razões para se candidatarem aos concursos para Defensor Público e
as expectativas em face à nova carreira.
Em suas considerações finais sobre o resultado do relatório, Verona Alberti afir-
ma que no tocante ao perfil do Defensor Público, e mesmo do candidato a Defensor
Público, parece haver um engajamento comum em torno de um ideal, ou melhor, da
consciência da difícil combinação entre a letra da lei e aquilo que ocorre na prática.
Tanto no discurso dos Defensores Públicos mais engajados, corroborado por muitas
das notícias de jornal, quanto nas respostas a ambos os questionários, transparece a
ideia de uma utilidade social da carreira, uma espécie de missão a que estariam volta-
dos todos os Defensores Públicos, para diminuir a desigualdade em nossa sociedade.
Pode-se dizer que o discurso dos Defensores mais experientes e antigos é reproduzido
pelas novas gerações, fornecendo as bases de uma identidade profissional.
A identidade do Defensor Público se formaria, então, a partir de quatro elemen-
tos. Em primeiro lugar, em torno do ideal de uma prática eminentemente social. À
semelhança do médico de hospitais públicos ou do interior, o Defensor Público teria
a missão de prover de Justiça, o mínimo que fosse, a população carente. Em segundo
lugar, a identidade profissional se constituiria em torno da luta pela institucionaliza-
ção da Defensoria Pública como única forma de garantir, em uma sociedade desigual
como a nossa, a Justiça para todos. Como consequência dos dois elementos anteriores,
o Defensor Público passa a distinguir-se — e, portanto, a constituir mais um elemento
de sua identidade — das outras carreiras da área jurídica, como as da Magistratura
e do Ministério Público, pelo fato de elas não serem exclusivamente voltadas para o
atendimento da população carente, apesar de igualmente indispensáveis para o fun-
cionamento da ordem jurídica, e pelo fato de elas já serem institucionalizadas. E mais:
além dos juízes e promotores, o Defensor Público diferencia-se dos advogados, já que
estes não teriam aquele compromisso social e dependeriam de uma clientela suficien-
temente abastada para poder pagar seus honorários. Desse ponto de vista, pode-se
falar de mais um elemento diferenciador entre a carreira de Defensor Público e as
outras carreiras da área jurídica: a remuneração. Além de distinguir-se por sua missão
em atender a população carente, o Defensor Público recebe menos dinheiro por seu
trabalho do que seus pares, os juízes, os promotores e os advogados. Pode-se dizer
que essa combinação entre a missão social e a menor remuneração resulta em um
componente de sacrifício, que poderia sintetizar a especificidade da profissão de De-
fensor Público em relação às demais. Finalmente, o quarto elemento constitutivo da
identidade dos Defensores Públicos seria sua união em torno da luta contra o Estado
não provedor de assistência jurídica gratuita, isto é, contra um Estado (tanto a União
quanto as unidades federativas) que não cumpre o disposto na lei.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 281
Outro trabalho sobre a DP-RJ feito pelo CPDOC-FGV, agora em parceria com o
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política (PPGACP) da UFF,
é o de Sandra Regina Soares da Costa, Os Limites da Proteção: a DP-RJ, realizado em
2000. Trata-se de um relatório no qual a autora observou as práticas desempenhadas
pelos Defensores Públicos em dois núcleos de primeiro atendimento: o de Niterói e
o de São Gonçalo. De acordo com Sandra Costa, a escolha se deu porque são duas
cidades limítrofes, mas com características muito diferentes em termos de formação
histórica e política, de infraestrutura e de qualidade de vida. Foi feita uma pesquisa
de campo nos dois núcleos durante o segundo semestre de 1999, na qual a autora fez
observação participante, entrevistas de profundidade com os Defensores e a aplicação
de um questionário ao público assistido, buscando apreender suas características de-
mográfica e social.
Em sua passagem por ambos os núcleos, a autora observou uma disparidade no
que concerne ao atendimento, conforto, instalações. Segundo o relatório, apesar da
precariedade de infraestrutura e de organização nesses núcleos, em Niterói foi per-
cebida uma boa vontade no tratamento dos Defensores, estagiários e funcionários ao
trabalho de sua pesquisa, como também a cordialidade no atendimento ao público
que demandava pelos serviços do núcleo, especializado em questões de família e cí-
vel. Na parte criminal, os atendimentos são realizados no Fórum regional. Chamou
a atenção da pesquisadora a flexibilidade dos Defensores e estagiários em relação ao
rendimento dos que procuravam pelos serviços, cabendo aos Defensores estipular a
renda máxima que configure esse quadro de “insuficiência”. Por falta de uma regra
que especificasse valores, usavam do seu “bom-senso”: o Defensor decidia quem era
pobre ou não (Costa, 2000: 23).
Já em São Gonçalo, o quadro descrito por Sandra Costa é bem distinto do de Nite-
rói. Tal qual o núcleo de Niterói, também possuía dois Defensores, um para o cível e o
outro para a área de família. Mas, diferentemente do de Niterói, no local, além de não
ser asseado, não havia boa vontade com a pesquisadora por parte dos Defensores, dos
estagiários e do funcionário. Não havia quadro de avisos, nem funcionário para pres-
tar qualquer tipo de informação. Tampouco os Defensores mostravam-se dispostos
em dar informações aos assistidos, mostrando-se impacientes quando abordados por
estes, o que levava a um constrangimento às pessoas ali presentes. Não foi realizada
nenhuma entrevista com os Defensores do núcleo, pois alegavam “falta de tempo” em
dá-las. A pesquisa também se estendeu aos Defensores que atuavam no Fórum, e, ao
contrário dos do núcleo de primeiro atendimento, cederam entrevistas e apontaram os
problemas de ordem infraestrutural na qualidade do atendimento.
282 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Em sua pesquisa, Luciana Cunha detectou uma resistência, por parte das De-
fensoras que foram entrevistadas, no que concerne à mudança do perfil da institui-
ção, enquanto os Defensores Públicos mostravam-se mais entusiasmados em relação
à transformação da PAJ numa Defensoria Pública (Cunha, 2001: 173-174). Outro as-
pecto ressaltado pela autora é o fato de a PAJ ainda se limitar aos direitos individuais,
pois não atende a pessoas jurídicas, comunidades de bairro, ou organizações não go-
vernamentais. Mesmo no caso da defesa dos direitos do consumidor, as demandas são
individualizadas, assim como o atendimento.
Em suas considerações finais, Luciana Cunha aponta que, embora para alguns dos
procuradores do estado “tudo não passa de uma questão de nome”, a PAJ, enquanto
órgão integrante da PGE, encontra limitações no desenvolvimento de suas atividades,
e, consequentemente, na prestação dos serviços para a população carente. O fato de a
assistência jurídica ser prestada por advogados que, originariamente, são contratados
com a finalidade de defender os interesses do Estado já seria um motivo para levantar
suspeitas acerca da pressão política que esses operadores do direito sofrem no exer-
cício de suas funções. Como ela observa, “existe o problema de o advogado atuar como
Defensor de um particular numa ação contra o Estado e, devido à lentidão do Judiciário, de-
pois de alguns anos, poder atuar na mesma ação, só que na defesa do Estado” (Cunha: 198).
Para Luciana Cunha, a forma pela qual a assistência jurídica é prestada pela PAJ
aproxima-se do modelo tradicional de serviços legais – individualista, paternalista e
assistencialista.
Como observa a autora,
A relação entre o ator responsável pela prestação da assistência judiciária e não
da assistência jurídica e o cliente é hierarquizada e formal, prevalecendo os ter-
mos técnicos, no qual o assistencialismo ainda é a temática dominante na defini-
ção dos serviços. Mais do que isso, as atividades e os serviços jurídicos ofereci-
dos pela PAJ aproximam-se da ótica da assistência judiciária, e não da assistência
jurídica, como prescreve a Constituição Federal de 1988 (Cunha, 2001: 199).
De acordo com a autora, não existe, por parte da PAJ, uma preocupação explícita
em atender aos anseios da população carente quanto ao efetivo acesso à Justiça, que
não se restringe ao “direito de ação”, ou à gratuidade das custas judiciais.
Mais recentemente, a dissertação de Antonio Rafael da Silva Junior, A democratiza-
ção do acesso à justiça: um estudo sobre a Defensoria Pública do Maranhão (2004), analisa
as dificuldades da trajetória dessa Defensoria Pública, desde o período em que ainda
atuava como assistência jurídica, até a sua implantação, em 1997. A pesquisa verificou
a dificuldade organizacional da DP-MA no tocante à quantidade pequena de Defenso-
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 285
res para o atendimento das demandas e, com isso, há ainda a permanência dos advo-
gados do Estado que atuam desde o tempo da Assistência Jurídica, e não possuem as
mesmas regalias (jurídicas e salariais) dos Defensores recém-chegados, criando, desse
modo, atritos dentro da instituição. Devido à precária estrutura em que se encontra a
DP-MA, praticamente é inexistente esse tipo de serviço no interior do estado.
Segundo o autor, os resultados demonstram que a instituição realiza um modelo
de atendimento tradicional, característico da primeira onda do acesso à Justiça (Ca-
ppelletti), privilegiando o atendimento individualizante com atuação concentrada na
área de direito de família. Devido a essas grandes dificuldades estruturais, a instituição
enfrenta, ainda, uma evasão de Defensores para outras carreiras jurídicas e é desva-
lorizada no cenário jurídico maranhense. Ademais, há uma forte vinculação política
da instituição com o Executivo estadual e pouco contato com entidades da sociedade
civil organizada.
O Estudo Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, de Maria Tereza Sadek, patroci-
nado pela Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, é, até o presente
momento, a pesquisa mais ampla sobre as Defensorias Públicas do país. Foram enviados
questionários para todas as Defensorias Públicas (24), dos quais 23 foram respondidos
(a exceção foi o Paraná).12 Dois tipos de questionários foram aplicados: o primeiro ver-
sava sobre os traços institucionais da Defensoria Pública, enquanto o segundo objetivava
verificar as características demográfica e sociológica dos integrantes da instituição e o
seu posicionamento em relação a temas atinentes à Defensoria Pública e ao sistema de
Justiça. Esse segundo questionário foi enviado a 3.440 Defensores e houve o retorno
de 1.443 respostas. Desse total, havia 154 aposentados que não foram computados na
análise. A amostra representa 36% do universo total dos Defensores Públicos.
Segundo Sadek, o conjunto de dados obtidos nos dois tipos de questionário e
sua análise permite construir um primeiro retrato das Defensorias Públicas, estaduais
e da União. Trata-se de informações que propiciam a elaboração de um diagnóstico
da instituição e fundamentam a utilização de instrumentos legais, de natureza orga-
nizacional e estrutural, que poderão contribuir para o aperfeiçoamento da Defensoria
Pública. Melhorias na instituição revertem-se em ganhos democráticos.
Dentre as principais conclusões do estudo destacam-se, em relação à primeira
fase, os seguintes aspectos: trata-se de uma instituição “jovem”, cuja média nacional é
de treze anos; a maioria das DPs está vinculada ao Poder Executivo, sem desfrutar de
uma autonomia institucional; a maioria dos Defensores Públicos é do sexo feminino,
12 InexisƟa a insƟtuição da Defensoria Pública nos estados de Goiás, Santa Catarina e São Paulo. A do
Rio Grande do Norte estava sendo implantada no contexto da pesquisa.
286 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
com média de idade de 43 anos e de cor branca; 66,5% dos pais e 77,4% das mães
não têm grau universitário; 28,1% dos pais não têm nenhuma escolaridade; 85% dos
Defensores exerceram atividade profissional antes de ingressar na carreira; o recru-
tamento é mais exógeno; só 11,5% tiveram ou têm parentes na Defensoria; 18,9%,
na Magistratura; influenciou na escolha da carreira a possibilidade de advogar para
pessoas carentes, a possibilidade de exercer um trabalho social e a estabilidade no
emprego; 29,8% dos Defensores estaduais e 47,1% dos Defensores da União gosta-
riam de exercer outra carreira jurídica; as carreiras jurídicas mais prestigiadas para o
Defensor são a magistratura federal e o Ministério Público Federal; a atuação da De-
fensoria é mais eficiente nas áreas de família, varas criminais e tribunal do júri, e mais
deficiente em 2o e 3o graus de jurisdição; para melhorar a Defensoria são necessárias:
a concessão de autonomias à instituição, a legitimação da instituição para ajuizamento
de ações coletivas, a utilização de meios alternativos de solução de conflitos e apoio
multidisciplinar; a crise do sistema de Justiça deve-se, principalmente, à falta de re-
cursos materiais, à estrutura do Judiciário e ao excesso de formalismo; percebem a si
próprios como menos responsáveis pela crise da Justiça.
O fortalecimento das instituições de justiça a exemplo dos Juizados Especiais e
da Defensoria Pública deve-se pelas mudanças provocadas pela crise das instituições
políticas modernas, que resultaram no fenômeno político e social da judicialização,
condicionaram uma “reconfiguração” do papel da DP-RJ, transformando seu perfil
ideológico de caráter inicialmente caritativo para uma instituição de perfil ideológico
renovado pela ênfase nos direitos humanos e também aos novos direitos, oferecendo à
DP-RJ um maior escopo de ação em face de seus demandantes. Desse modo, em meio
à crise política e de seus atores tradicionais, a DP-RJ fortaleceu a sua representação
funcional e sua identidade institucional, somando-se à Magistratura e ao Ministério
Público como um dos principais atores do campo jurídico brasileiro (especialmente
no cenário carioca).
Deve-se, também, ressaltar que a estratégia de afirmação institucional da DP-RJ vai
de encontro à perspectiva de autonomia do mercado e de valorização da esfera privada
sobre a pública. Os Defensores demarcam e enfatizam o papel das instituições públicas
como espaços de absorção de demandas a aqueles que se encontram alijados da lógica
de mercado, na medida em que distribuem justiça e consciência cidadã a esses setores
que não encontram (ou não contam) com outros canais de representação. Desse modo,
uma instituição pública estatal como a DP-RJ, ao representar os interesses da “plebe”, do
homem “comum”, pode indicar que o sistema democrático, não obstante tenha sofri-
do uma crise nos seus canais clássicos de representação, oferece, enquanto alternativa,
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 287
outras formas de representação, a exemplo das instituições do Direito que atuam como
intermediárias entre os desejos da sociedade e concretização destes pelo Estado. Assim,
embora as representações funcionais do Direito pertençam a uma tradição republicana
que se iniciou nos anos 1930, é neste contexto democrático recente, e em meio à crise
de representação política, que a inserção dessas instituições, a exemplo da DP-RJ, vem
se ampliando e se afirmando no cenário político e social brasileiro.
4. A FORMAÇÃO DA DP-RJ
No período republicano, o auxílio jurídico aos extratos mais necessitados da so-
ciedade vem disciplinado por decreto presidencial (Decreto no 1.030, de 14/11/1890),
ao tratar da organização da Justiça no Distrito Federal. A assistência judiciária é indi-
cada também no Código Civil de 1916, sendo deixado aos Estados a sua efetivação.
Com a Revolução de 1930 e a inauguração do período varguista, a criação da Ordem
dos Advogados do Brasil é efetivada, e nos seus estatutos de fundação (1931) existe
a obrigação de prestação de assistência jurídica por parte de seus advogados inscritos
(arts. 91 a 93). A Constituição de 1934 também estabelece a assistência judiciária
(art. 113, XXXII), diferentemente da Constituição de 1937 que não a abriga em seu
texto, mas a disciplina por meio do Código de Processo Civil de 1939 (art. 68).
O retorno da assistência judiciária ao texto constitucional se dá por meio da Carta
de 1946, que a insere no capítulo dos direitos e garantias individuais (art. 141 § 35):
“o poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos neces-
sitados”. Dentro deste espírito a Lei no 1.060, de 05/02/1950, reformula a disposição
legal acerca da assistência judiciária, modificando os artigos do Código de Processo
Civil e ampliando a assistência para os necessitados (art. 2o, parágrafo único).
O conceito de necessitado estabelecido pela lei não era muito rígido, pois não o
vinculava a um teto salarial previamente definido. Além disso, a assistência judiciária
abrangia todos os atos do processo até a sua decisão final em última instância. Apesar
da Lei no 1.060/1950 ter dado um salto qualitativo em relação aos seus precedentes,
ela não a definia ainda como um dever do Estado, mas como uma concessão em pres-
tar assistência judiciária.
A Defensoria Pública do antigo Estado do Rio de Janeiro foi criada durante o go-
verno Amaral Peixoto (1951/1955) pela Lei no 2.188 de 21/07/1954, e estabelecia os
primeiros cargos de Defensor Público, que constituíram a semente da atual Defensoria
Pública. Foram seis apenas e eram cargos isolados, de provimento efetivo. Maria Boga-
do Oliveira ressalta que essa lei foi a primeira a utilizar a expressão “defensor público”
para designar os agentes estatais incumbidos do patrocínio gratuito aos necessitados
288 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
(2000: 331). A formação da Defensoria Pública não foi redutível ao plano da raciona-
lidade legal, motivada pela Lei no 1.060/1950, mas pautada por outros condicionan-
tes como voluntarismo caritativo e relações políticas e pessoais de âmbito local, que,
embora sejam elementos exógenos, foram fundamentais na criação dessa instituição.
Com o advento do Regime Militar de 1964 e em sua consolidação legal pela Cons-
tituição de 1967/1969, a assistência judiciária não foi abortada a despeito do autori-
tarismo estatal vigente, e permaneceu no âmbito legal por meio dos art. 150, § 32,
e art. 153, § 32, ao disporem que “será concedida assistência judiciária aos necessitados
na forma da lei”. Contudo, tal qual as Constituições de 1934 e 1946, não havia uma
definição institucional de quem seria responsável pelo exercício dessa função.
Apesar do contexto autoritário, é nessa conjuntura que surgem as primeiras ma-
nifestações em defesa da criação de uma Defensoria Pública. No final da década de
1960, o Ministério Público do antigo Estado do Rio de Janeiro, tendo à frente a As-
sociação do Ministério Público Fluminense, que congregava, à época, os promotores
públicos e os Defensores Públicos do antigo Estado do Rio de Janeiro, deu início à re-
alização de congressos nacionais que consolidaram diversos movimentos em favor do
Ministério Público e da Defensoria Pública, então denominada Assistência Judiciária.
Se, por um lado, essas primeiras mobilizações em defesa da organização da As-
sistência Judiciária não conseguiram concretizar seu objetivo em nível nacional, por
outro, a década de 1970 foi um período fundamental na estruturação da Assistência
Judiciária no Rio de Janeiro, sobretudo depois da fusão desse estado com a Guanaba-
ra. O primeiro sinal de mudança foi o Decreto-lei no 286/1970 no qual a Assistência
Judiciária passou a ter denominação de órgão de Estado. Em seguida, com o advento
da nova Constituição em 23/07/1975, a partir da fusão dos dois estados, implemen-
tada pelo governo militar, e tendo à frente na condução desse processo de transição o
Almirante Faria Lima, o qual incluiu a Assistência Judiciária como essencial à estrutu-
ra política do Estado em seu art. 82.
O grande salto institucional-legal da Defensoria Pública ocorreu a partir da Cons-
tituição da República de 1988. Os princípios assegurados pela Carta Magna no seu
art. 5o, que estruturam as garantias fundamentais dos cidadãos abordam a Defensoria
Pública e o papel do defensor público no processo de constituição do acesso à justiça.
Dentre os princípios diretamente relacionados com este papel estão os seguintes:
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
A disposição legal abriu um novo caminho para o acesso à Justiça no País, fazen-
do a Defensoria Pública, pela primeira vez, a instituição estatal central na prestação
jurisdicional. Houve portanto uma mudança, já não se trata mais de uma concessão
de prestação de assistência judiciária, mas a definição de que o Estado tem como prin-
cípio normativo o dever de oferecer os meios adequados para a defesa do cidadão. A
alteração do termo assistência judiciária para assistência jurídica configurou um novo
tipo de ação para os operadores do direito situados no campo do acesso à justiça, pois,
como foi dito acima, a assistência jurídica não compreenderia o patrocínio gratuito da
causa, mas abrangeria também os custos e as despesas, sejam judiciais ou não, ligados
ao processo, além do direito à informação, consultoria jurídica e conciliação entre as
partes.
Além disso, o art. 134 da Constituição Federal a equiparou ao Ministério Público,
à Advocacia Geral da União e à Advocacia nas funções essenciais da justiça. Tal dis-
positivo permitiu, por sua vez, a inclusão da Defensoria Pública no capítulo relativo à
prestação jurisdicional nas Constituições Estaduais.
Nesse aspecto, a Constituição do Rio de Janeiro, de 5/10/1989, tomou a dianteira
em relação às outras unidades federativas. Nessa carta constitucional, o campo de
atuação da Defensoria Pública ultrapassou as normas estabelecidas pela CF/1988. Em
primeiro lugar, o Procurador-Geral da Defensoria Pública teve legitimidade em propor
ação direta de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais
em face da Constituição Estadual (CERJ/1989, art. 162); e, em segundo, estabeleceu
uma novidade no campo de ação dessa instituição: além dos direitos individuais, que
tradicionalmente são representados pelos defensores públicos, incluiu também os di-
reitos coletivos e difusos.
Portanto, a DP-RJ acabou sendo definida pela Constituição Estadual o principal
espaço estatal de acesso à justiça e de defesa dos direitos humanos aos setores e clas-
ses sociais mais baixos da sociedade. A Defensoria Pública incorporou não somente a
290 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
primeira onda cappelletianna (ampliação de serviços jurídicos aos pobres), mas tam-
bém os da segunda onda (novos direitos, como o ambiental). Além disso, destacou-se
como seu público-alvo os movimentos sociais portadores de novas demandas, como
os ambientalistas, os consumidores, ou segmentos que não tinham respaldo suficien-
temente legal e institucional na defesa de seus direitos como mulheres vítimas de
violência, menores e idosos.13
O art. 179 expõe também os princípios institucionais que regem formalmente a
Defensoria Pública, como a unicidade, a impessoalidade e a independência funcional.
Esses princípios são característicos do direito administrativo que, por ser um sistema
de normas gerais, abstratas, formais e axiomatizadas, têm a função de organizar e re-
gular as relações entre os escalões e aparelhos impessoais de exercício de poder. Nicos
Poulantzas (1978) define que o discurso jurídico internalizado nas instituições estatais
é um dos elementos que dão a materialidade institucional do Estado moderno.14 Por
unicidade, entende-se que a Defensoria Pública corresponderia a um todo orgânico,
sob uma mesma direção, mesmos fundamentos e mesmas finalidades. Cada um deles
seria parte de um todo, sob a mesma direção, atuando pelos mesmos fundamentos e
com as mesmas finalidades. O princípio de impessoalidade é corolário da primeira,
pois significa a possibilidade de os Defensores serem substituídos uns pelos outros
no decorrer do processo, sem qualquer alteração processual. Já o de independência
funcional, representaria a autonomia dessa instituição perante os demais órgãos esta-
tais, estando (pelo menos em tese) imune de qualquer interferência política que afete
a sua atuação. Em tese, esse princípio expressaria a autonomia do defensor público,
em seguir suas próprias convicções fundamentadas em seu conhecimento jurídico,
desvinculadas da opinião de sua chefia, a quem se subordina apenas do ponto de vista
administrativo.15
13 CERJ/1989, art. 179: “A Defensoria Publica é insƟtuição essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbido-lhe, como expressão e instrumento do regime democráƟco, fundamentalmente, a orien-
tação jurídica integral e gratuita, a postulação e a defesa, em todos os graus e instâncias, judicial e
extrajudicialmente, dos direitos e interesses individuais e coleƟvos dos necessitados, na forma da lei”.
§ 2o “São funções insƟtucionais da Defensoria Pública, dentre outras que lhe são inerentes, as se-
guintes: … V -patrocinar: a) ação penal privada; b) ação cível; c) defesa em ação penal; d) defesa em
ação civil; ação civil pública em favor das associações que incluam entre suas Įnalidades estatutá-
rias a proteção do meio ambiente e a de outros interesses difusos e coleƟvos; f) direitos e interesses
do consumidor lesado, na forma da lei; g) a defesa do interesse do menor e do idoso, na forma da
lei; i) a assistência jurídica integral às mulheres víƟmas de violência especíĮca e seus familiares”.
14 Os outros são o monopólio do saber, a individualização e a Nação (tempo e espaço). Vide o capítulo
2 do livro citado.
15 Os princípios de unicidade e impessoalidade são denominados pela Lei Complementar no 80/1994
de unidade e indivisibilidade, respecƟvamente, mas contém a mesma acepção conceitual.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 291
para aplicar, sei lá como eles dizem, que é uma coisa que eu, pelo menos como
Defensor, tenho vontade de pular no pescoço, é ouvir que o Defensor, antes de
tudo, é assistente social; Defensor é Defensor Público, formado em Direito, en-
quanto o assistente social tem outra formação, da qual não entendo nada. Então,
tem essa visão ainda, infelizmente arraigada, de que você só trabalha para aquela
população miserável. E isso não é verdade, porque a lei não diz isso. A Consti-
tuição diz que será prestada assistência judiciária aos juridicamente necessitados
e engloba uma série de nuanças, de aspectos que têm de ser analisados, e não
só aquele pobre coitado, miserável que ainda é assistido pela DP. Só que o di-
reito evoluiu também! Você tem outros tipos de demanda hoje, além daquele
que não tinha certidão de nascimento! Nem todos os membros do Judiciário se
atualizaram com o Código de Defesa do Consumidor, pois não renovaram seu
conhecimento jurídico (Coordenador do Nudecon, 17/12/2002).
Nesse discurso, fica delimitado pelo Defensor o novo tipo de representação a que
esse núcleo se propõe: os Defensores não podem ser associados aos assistentes sociais,
haja vista que o seu público-alvo transcende a categoria “pobre”, pois abrange uma
parcela considerável da classe média em seus serviços jurídicos. Ademais, a proposta
desse Núcleo é a transformação, cada vez mais intensa, das demandas individuais em
coletivas ou difusas contra as prestadoras de serviços e o mercado financeiro, estabe-
lecendo uma forma de representação cada vez mais ampla, não se limitando às classes
sociais mais baixas, nem ao perfil tradicional/individual que caracterizou a DP-RJ ao
longo de sua existência. Numa passagem de seu discurso, o Defensor demarca que o
direito do consumidor tem uma peculiaridade: “une as forças do bem contra o mal”. As
forças do “bem” seriam identificadas pelos órgãos públicos estatais como a DP, o MP,
o Procon, as agências reguladoras; enquanto as forças do “mal” seriam representadas
pela esfera privada do mercado, dos fornecedores de serviços, a Fenabran [Federação
Brasileira dos Bancos], que se articulam e se mobilizam no campo jurídico enquanto
grupo de pressão em defesa de seus interesses.
Portanto, a inovação institucional da Defensoria Pública está na ação de seus nú-
cleos especializados junto às demandas de natureza coletiva e na defesa dos direitos
humanos contra as possíveis ações de abuso ou negligência do poder público. Tal
característica é distinta da perspectiva liberal que estruturou boa parte das políticas
de assistência judiciária no século passado, que é marcado pela prestação de serviços
jurídicos por advogados particulares contratados pelo Estado. O modelo adotado pela
DP-RJ é baseado em uma burocracia estatal, com baixo grau de hierarquia e de cons-
tante deslocamento espacial e temático, i.e., boa parte dos defensores, especialmente
os recém-ingressos, passa por diversos núcleos de atendimento, especializados ou
não, até se fixar em determinada área, não obstante possa se transferir para outras
funções.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 295
22 Recentemente, em 2009, quase cinco anos depois dessa pesquisa, foi realizado um concurso públi-
co de funcionários de nível médio para o quadro de servidores da DP-RJ.
296 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como foi observado no decorrer do trabalho, o processo de construção de uma
organização destinada a assegurar o acesso à justiça no Estado do Rio de Janeiro derivou
um processo social marcado pela busca da ampliação cada vez maior da esfera de pro-
teção dos direitos individuais, coletivos e difusos. Tal processo, por sua vez, está ligado
à dinâmica democrática da sociedade brasileira contemporânea, marcada por distintas
demandas oriundas dos diversos conflitos individuais e sociais travados na sociedade.
As garantias institucionais conferidas à Defensoria Pública explicitam seu papel de
agente não apenas de interesses individuais, mas também de defensora de interesses
coletivos e difusos. Ao se constituir como uma instituição distinta dos modelos pré-
vios de acesso à justiça, e de escopo maior, sua origem está marcada pelo processo em
curso na sociedade brasileira, e em particular na carioca.
A ampliação de direitos em um quadro de desigualdade não significa que tal
processo seja destinado ao sucesso, ou por oposição ao fracasso. Em realidade, suas
contradições indicam que experiências exitosas podem ser construídas em contex-
tos conflituosos e marcados pela desigualdade social. Nesse sentido, a reconfiguração
institucional da DP-RJ é o resultado deste movimento, e indica o desafio posto a tais
estruturas institucionais, reforçando, ainda mais, a relação dialética entre o Estado e
a sociedade, sobretudo quando se trata de uma democracia recente, mas complexa e
conflitiva, como a brasileira.
Parte II | Capítulo 12 | A justiça estatal: a reconstituição da Defensoria Pública... 297
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
13
A reação judicial às mudanças:
direito militante dos consumidores
nas telecomunicações do Brasil
Alexandre Veronese*
Sumário:
1. Introdução.
2. Reforma do Estado: privaƟzação e criação das agências reguladoras.
2.1. Um modelo geral de regulação econômica e social.
2.2. A lógica da privaƟzação e a compeƟção.
3. Problemas na relação entre as agências e a sociedade.
4. A democracia na formação das regras dos regulamentos.
5. As disputas judiciais sobre os serviços de telecomunicações.
5.1. O triplo papel do vocábulo cidadão.
5.2. As diĮculdades empíricas de proteção e a sobrecarga na jurisdição.
6. A judicialização das relações de consumo e as políƟcas públicas.
7. Considerações Įnais.
8. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
A nova Constituição da República Federativa brasileira, aprovada em 31/10/1988,
marcou mais do que uma transição sobre o regime político. Ela se tornou um docu-
mento que outorgou novas competências para que os mais variados órgãos possam
atuar de forma diferenciada na esfera política. Desta maneira, a força da Constituição
pode ser entendida pela legitimidade de ação que ela atribui para determinados atores
políticos nas disputas acerca do significado dos dispositivos legais e regulamentares. O
exemplo mais flagrante deste acréscimo de competências tem sido o destacado papel
do Ministério Público, quer na esfera federal quer nas esferas estaduais.
Não foi por outro motivo que o texto constitucional foi objeto de tantas modifica-
ções ao longo dos seus quinze anos de vigência. A luta pela definição dos conteúdos
semânticos tem uma importância muito grande do ponto de vista prático, na vida
política. Os significados contidos em um texto jurídico servem como obstáculos, e
também como “armas de combate” em defesa de interesses sociais. Desta forma, fica
claro que as normas jurídicas – e sua regulamentação – possuem um papel estratégico
para a atuação dos atores sociais.
De acordo com Nancy Reichman (1998), existem duas possibilidades teóricas
para entender a relação entre o poder e o direito na análise sociológica do fenômeno
da regulação. A primeira perspectiva consiste em compreender o direito como um
produto das relações de poder externas ao âmbito regulatório. Deste modo, a regu-
lamentação administrativa, tanto das punições (multas, por exemplo), quanto dos
benefícios (subsídios e políticas tarifárias, por exemplo), seria derivada dos embates
entre forças políticas externas ao mundo jurídico. O direito seria mero elemento de
consolidação das disputas políticas. A segunda perspectiva seria compreender o papel
duplo do direito como elemento de transformação social ou de manutenção do status
quo. Assim, nos termos de Robert Kagan (1990), as normas jurídicas seriam “escudo e
espada”. Esta delimitação é interessante porque atribui papel ativo aos atores do mun-
do do direito, e, ao mesmo tempo, porque se relaciona com um objetivo tradicional
dos estudos sociológicos sobre o direito, que é a disjunção entre os textos e as práticas.
Ela é compatível com uma análise que busca entender a relação entre a regulação esta-
tal de um setor privatizado (telecomunicações) e a pressão judicial pela mudança nas
suas regras. Esta pressão decorre de ações civis públicas e pelo contencioso de massa,
oriundo das ações nos Juizados Especiais Cíveis. O centro empírico da pesquisa reside
em dois pontos: a produção das regras (o marco regulatório) e as objeções realizadas
por meio de ações judiciais.
Parte II | Capítulo 13 | A reação judicial às mudanças: direito militante... 301
As agências não existiam ou eram recém-criadas. Ainda, a maioria delas foi criada
com um quadro de servidores temporários. Este é apenas um dos fatos que trazem
dificuldades para estabilizar uma cultura interna ou qualificação técnica. A esta-
bilidade dos dirigentes, que é uma garantia legal, mostrou-se relativa, na prática.
Por fim, os mecanismos de retaliação do governo, dentre os quais se destaca o
contingenciamento de recursos, ainda são muito fortes por decorrência de nossa
tradição política centrada no Poder Executivo. Em síntese, como é possível visua-
lizar a efetividade das normas de proteção aos consumidores a partir de um órgão
tão frágil como a Anatel?
Contudo, mesmo nos Estados Unidos, tal solução não encontrou uma acolhida
simples. Isto ocorre porque a ação dos grupos sociais em prol da defesa de interesses
coletivos, normalmente, se impõe como uma forma de intervenção na produção de
políticas públicas pela vontade dos mais fortes (Melo, 2001). Em verdade, o fenôme-
no acentuou-se em períodos recentes, ou pelo enfraquecimento de organizações de
advocacia de interesse público, ou por dificuldade nas lides em defesa de interesses in-
dividuais. Mas não pode ser negado que o contexto de reivindicações judiciais envol-
veu diretamente a produção das políticas públicas para vários setores regulados nos
Estados Unidos. No caso do Brasil, o quadro de fortalecimento de demandas cíveis é
crescente. Seja na faceta de demandas individuais agregadas, seja na faceta de ações
civis públicas. Tal dimensão permite que os autores brasileiros entendam que há uma
novidade neste processo de produção das políticas públicas por meio da intervenção
judicial (Taylor, 2007; 2008).
dade dos debates. Entretanto, é relevante mencionar que a conclusão do estudo não
é ingênua. Ela induz que os consumidores continuam pouco amparados em relação
aos interesses empresariais, no debate para produção dos regulamentos. Isto ocorreria
porque os últimos estavam melhor organizados para defender suas propostas nos es-
paços sociais de intervenção na esfera pública.
Partindo do pressuposto que existe uma autonomia relativa, pode-se localizar que
o conceito definido como jurídico – em uma perspectiva histórica – está relacionado
com um significado corporativo (ou de campo jurídico, numa formulação como a
de Pierre Bourdieu) e com uma tradição social. Portanto, é importante entender que
determinar institutos jurídicos (que, no jargão do direito, têm o sentido de uma área
de incidência delimitada como, por exemplo, a concessão de serviços públicos) têm
sentido em relação ao país do qual emergiram. Se houver transposição deste instituto
para outro país, com outro contexto jurídico e cultural, haverá uma clara tradução
para o contexto social do local receptor. Um exemplo deste debate, no contexto dos
tribunais constitucionais, pode ser visto em Choudhry (2007). Seria impossível mu-
dar toda uma comunidade jurídica em relação ao entedimento de um instituto, com
muita celeridade. Este processo é lento e gradual. Mesmo assim, ainda haveria a ques-
tão de sentido geral, ou seja, o modo como aquele instituto se relacionaria com o resto
do direito local. Tal tradução, usualmente, traz significados distintos.
Em especial para os engenheiros (mas com sentido para alguns economistas, que
dialogam na vida institucional com juristas), tal transposição filosófica é assustadora
em primeiro plano. A sua formação acadêmica e prática contempla o sentido de que
duas redes de transmissão de dados comunicacionais comportar-se-ão da mesma for-
ma em dois países distintos. Logo, ressalvadas pequenas adaptações, as regras que de-
veriam balizar a sua operação técnica deveriam ser semelhantes, no seu entendimento.
Todavia, o significado jurídico de seu uso poderá ser bastante diverso em dois países
analisados. O uso social daquela propriedade pode variar, também, dependendo do
conceito jurídico de propriedade e dos seus limites de fruição, dentre outros casos. A
lista de distinções poderia seguir longamente... Basta mencionar que, se o uso social
da tecnologia pode variar bastante, o que dizer das práticas comerciais acerca de tal
uso? O potencial de variabilidade neste quesito, então, seria enorme.
O cerne desta pesquisa foi compreender como as manifestações de defesa de di-
reitos, em relação às práticas sociais (comerciais, de consumo etc.) foram ignoradas
ao longo da produção do marco institucional e regulatório das telecomunicações no
Brasil. A pista que seguimos é que tal marco foi formado prioritariamente sem ater-se
à necessidade de aclimatação da dimensão técnica ao mundo do Direito brasileiro e da
América do Sul. A partir do incremento das demandas, diversas soluções de empode-
ramento dos interesses dos consumidores começaram a aparecer no cenário nacional.
Uma perspectiva interessante é apresentada pelo Projeto de Lei no 5.274/2005, da
Câmara dos Deputados. De autoria do Deputado Mauricio Rands (PT-PE), nele havia
a proposta de inclusão de representantes de associações de proteção dos interesses de
310 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Pode ser concluído que a sua permeabilidade nos processos regulatórios não é
visualizável, em termos deliberativos. Todavia, ele possui o potencial de oxigenar o
processo regulatório. Fatalmente, existe uma evidente decalagem entre as expectativas
dos consumidores e as regras que regulam o setor de telecomunicações. Talvez, a so-
lução pudesse se dar pelo fim de tal déficit na participação. Na prática, a consequência
mais visível ainda é o aparecimento de um significativo contencioso judicial em rela-
ção à prestação dos vários serviços da área de telecomunicações. Na próxima seção,
será arrazoado o porquê de tal explosão.
Nota: (A) sistemas administraƟvos de resolução (estatais), (C) sistemas corporaƟvos ou empresariais
(comerciais) e (J) sistemas judiciais de resolução (estatais e jurisdicionais).
Dentre estas opções, deve ser notado que os canais onde há a maior possibi-
lidade de obtenção de um resultado positivo são marcados como sistemas resolu-
tivos judiciais, ou seja, os três últimos. Nestas três últimas opções, as operadoras
são legalmente obrigadas a responder diretamente a demanda do consumidor, o
que notadamente não é o caso nos sistemas anteriores. Nos sistemas de defesa do
consumidor, mantidos pelas agências, é usual que as reclamações, uma vez feitas
pelos consumidores, sejam manejadas pelos servidores sem que haja obrigação de
indicar o resultado obtido ao reclamante original. Desta maneira, a demanda do
consumidor perde o seu caráter de pretensão individual. Ela é transformada em
uma denúncia ou em uma representação, trafegada em meio a um processo admi-
nistrativo dentro da máquina burocrática. Nos casos em que os Procons são mais
eficientes, notoriamente, há maior busca dos consumidores por eles. Mas, estes
órgãos são estruturados localmente e variam de estado para estado. Ou mesmo de
município para município. O fato evidente foi o aparecimento da judicialização
314 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
ações similares ocorridas no rito comum. O segundo eixo seriam as ações civis
públicas impetradas nos tribunais estaduais e que envolvem a temática da relação
entre consumidores e provimento de serviços de telecomunicações. Um levan-
tamento preliminar indica pistas dos temas, que podem ser vistas no Quadro 5,
adiante.
Nota: (I) Ações individuais em contencioso de massa (mass liƟgaƟon), no rito comum estadual ou no
sistema de juizados especiais dos sistemas judiciários estaduais; (C) Demandas coleƟvas, sendo princi-
palmente ações civis públicas (class acƟon lawsuits).
Esta listagem serve como um guia para o detalhamento da enorme gama de dis-
putas havidas ao longo de um período de dez anos, ou seja, de 1998 até 2008. Este
marco temporal está relacionado com a privatização do sistema Telebrás e a institucio-
nalização das novas operadoras para prestação dos serviços. É óbvio que as disputas
afloram por causa dos interesses divergentes entre consumidores e empresas. Entre-
tanto, existem duas questões teóricas que colocam evidência ao problema. A primeira
está relacionada com os significados jurídicos e corresponde ao papel atribuído ao
cidadão, como titular de direitos subjetivos. Qual o alcance potencial de tal interpre-
tação? O que é um “cidadão”, nestes conflitos, na perspectiva doutrinária? A segunda
questão teórica tem cunho institucional e está diretamente vinculada com a dificulda-
de de oferecer proteção num espaço resolutivo de conflitos célere, eficaz e adequado.
Ela se coaduna com a expansão e congestionamento do judiciário para lidar com a
contemporânea avalanche de demandas. Para que estes dilemas ganhem uma maior
visibilidade, serão examinados nas duas próximas seções.
Pode ser indicada a evolução do conceito mais tradicional, recebido pela doutrina
do direito administrativo francês, de administrado para a atual denominação de con-
sumidor ou usuário. Este mudança de papéis é esclarecida pelo debate jurídico sobre
a abrangência e conteúdo dos vocábulos, ou seja, pelos três significados teóricos,
construídos pelos juristas. Os debates sobre os serviços de telecomunicações – e para
os demais serviços públicos privatizados e, também, regulados – usualmente relegam
o cidadão comum a um papel subalterno no contexto do marco regulatório. Este
fenômeno não é somente passível de atribuição aos países periféricos, pois também
ocorreu nos países centrais. Existe pouca discussão acadêmica sobre esta questão nos
debates jurídicos sobre regulação. O motivo da passividade, neste tipo de debate, é
decorrente em parte de sua complexidade. Os debates sobre regulação envolvem com-
plicados aspectos jurídicos, econômicos e tecnológicos, que afastam até mesmo espe-
cialistas. Assim, poucos cientistas sociais se interessam em travar uma discussão nesta
área, para debater a função do cidadão comum na regulação dos serviços públicos. O
centro do problema está relacionado com a mediação que se impõe como necessária
para que o cidadão tenha acesso real às soluções dos problemas de seu interesse.
Feitas estas considerações preliminares, pode-se aduzir ao vocábulo “administra-
do”. Para analisar o caso brasileiro, é importante localizar o papel subalterno vivido
pela relação do cidadão com a administração pública, na nossa tradição jurídica. No
contexto do direito administrativo, o vocábulo que designa o cidadão nas línguas
latinas é a forma passiva do verbo administrar. Portanto, a relação entre a máquina
administrativa e os cidadãos é entendida como uma relação entre “administração” e
“administrado”. Tal locução já evidencia sua subalternidade. Afinal, conjugada com a
formação de uma doutrina da supremacia do interesse público, identificado este com
o interesse unilateral do Estado, que subsume a sociedade em si, compreende-se a
dificuldade de produzir um conceito denso de democracia. A administração é a mera
320 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Federal de 1988, apesar das críticas que existiam no âmbito da categoria profissional dos
advogados de que tal mudança esvaziaria a sua função. Com a edição da Lei no 9.099, de
26/09/1995, o sistema dos juizados foi reorientado e expandido em suas competências.
Os investimentos para acrescer sua capacidade logo se seguiram. Além da possibilidade
normativa, cabe ressaltar que os diversos tribunais estaduais se envolveram em políticas
específicas para expansão do seus sistemas de juizados especiais. Com isso, comprovou-se
algo que, embrionariamente, existia no projeto pioneiro da Ajuris: foram trazidas questões,
para decisão pelos magistrados, que antes eram pouco demandadas. Destas áreas, uma das
de maior expressão foi a defesa dos direitos dos consumidores.
As ações nos juizados especiais possuem um fluxo simplificado, com poucos re-
cursos processuais para as partes. O regime de provas também é simplificado, visando
atender a perspectiva de celeridade que deveria marcar a resolução destes conflitos.
Ainda, os pedidos são limitados em razão dos valores estipulados para as causas, não
devendo ultrapassar a ordem de 20 (vinte) salários mínimos. O fluxo processual obe-
dece ao seguinte rito:
AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO
REALIZAÇÃO DE ACORDO
(REALIZADA POR CONCILIADOR OU JUIZ
(DERIVADO DA CONCILIAÇÃO)
LEIGO), COM OU SEM ACORDO
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A resolução de conflitos judiciais é cara para o país. Além das questões atinentes
ao fato de serem derivadas de uma fragilidade democrática e do fraco desempenho
dos Poderes Executivo e Legislativo, há o problema de que a prestação jurisdicional
de algumas querelas poderia ser realizada de outro modo. Pode-se inferir por dados
da pesquisa nacional, fomentada pelo Conselho Nacional de Justiça (2004), sobre o
funcionamento do Poder Judiciário no Brasil que o custo da Justiça no Rio de Janeiro
se apresenta em proporção equivalente à média do país. O custo do sistema judiciário
estadual por habitante médio do país é de R$ 68,57 anuais, ou 1,13% do Produto
Interno Bruto do país:
Parte II | Capítulo 13 | A reação judicial às mudanças: direito militante... 327
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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14
A judicialização da Política
segundo a atuação do
Ministério Público na área ambiental
Sumário:
1. Introdução.
2. Aferindo a permeabilidade às demandas externas.
3. Cooperação e conŇito com entes externos.
4. Aferindo a autonomia nas práƟcas insƟtucionais.
5. Considerações Įnais.
6. Referências bilbiográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
A noção de judicialização (ou judiciarização) da política vem assumindo tanto a
forma de uma categoria analítica quanto servindo para descrever um fenômeno histó-
rico. Quanto à categoria analítica, existem diferentes interpretações (Maciel & Koer-
ner, 2002; Tate & Vallinder, 1995). Esquematicamente falando, um primeiro sentido
sobre a judicialização considera-a como um artifício autoritário e contentor dos con-
flitos sociais, protagonizado por instituições jurídicas que substituem em sua atuação
o protagonismo das instituições político-representativas no ordenamento social, bem
como o da sociedade civil na luta por seus interesses. Em um segundo sentido, por
judicialização compreende-se um conjunto de procedimentos favoráveis à democracia,
“indutores” de conflitos e desenvolvidos de forma harmônica por instituições jurídicas
1 O presente arƟgo consiste em uma síntese de temas abordados em dissertação de Mestrado de-
fendida pelo autor no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ) em novembro de 2007 sob o ơtulo “Ministério Público,
Meio Ambiente e Sociedade”.
Parte II | Capítulo 14 | A judicialização da Política segundo a atuação... 333
2 Emprego ao longo do texto o termo “denunciação” em disƟnção a “denúncia”, que, segundo termi-
nologia jurídica, trata-se de uma comunicação ao Poder Judiciário de uma queixa de desrespeito à
lei. Isto é, a peça inaugural de uma ação judicial. A categoria “naƟva” para as demandas por inves-
Ɵgação recebidas pelo Ministério Público seria “representação”. Todavia, evito o termo para fugir
a confusões com a noção de “representação social”, expressão amplamente uƟlizada no campo da
ĮlosoĮa e das ciências humanas para designar o conjunto de ideias e crenças resultantes da intera-
ção social que permite aos indivíduos evocar objetos, sujeitos ou fenômenos.
3 Em termos gerais, a atuação do Ministério Público Federal difere da atuação do Ministério Público
Estadual pelo fato de o primeiro concentrar-se na defesa dos patrimônios, serviços e interesses da
União e dos interesses metaindividuais e individuais indisponíveis em face da atuação da mesma,
enquanto que o úlƟmo tem competências correlatas na esfera estadual e municipal.
334 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
político” segundo o qual caberia ao Ministério Público desenvolver ações efetivas para a
proteção dessa sociedade incapaz. Graças ao ativismo voluntarista de seus integrantes, a
atuação ministerial seria tutorial, paternalista, impositiva de demandas e pouco permeá-
vel aos interesses e valores externos, constituindo uma ameaça à democracia. O Minis-
tério Público seria, nesses termos, um agente da “judicialização da política”, fenômeno
que Arantes entende como um intervencionismo por parte de instituições judiciais (não
representativas da “vontade geral”) sobre a atuação de instituições da esfera política (re-
presentativas e legitimadas pelo voto), substituindo o associativismo na sociedade civil e
desestimulando as práticas de representação política.
Em contrapartida, para Vianna e Burgos (2002) a atuação do Ministério Público
deve ser pensada em meio ao processo de crescente institucionalização do direito na
vida social, que ampliou as possibilidades de representação e de cidadania. Se a cida-
dania política permitiria a participação nos procedimentos democráticos vinculados
ao sistema político-representativo, com a cidadania social teria lugar a participação na
vida pública via sistema de justiça, através da procedimentalização do Direito para a
aplicação da lei e para a regulação dos poderes delegados. Isso ocorreria seja por meio
do ajuizamento de ações judiciais diretamente pelos indivíduos e associações civis le-
gitimados, seja pelo encaminhamento de requerimentos para as instituições jurídicas
– como o Ministério Público – com o intuito de que estas façam cumprir a Constitui-
ção. Nesse cenário, ao se harmonizarem os dois tipos de representação (a política e a
funcional) e de cidadania (política e social), teriam se expandido as possibilidades de
participação e influência da sociedade civil sobre a agenda pública. A concepção de
“judicialização da política” ganha aqui “novos” contornos: ao invés de um processo
de expansão do sistema de justiça em detrimento do sistema político, ela é pensada
nos termos de uma revolução procedimental do direito capaz de ampliar os espaços
para a democracia (Vianna et al, 1999; Vianna & Burgos, 2002). De acordo com essa
perspectiva, as ações, valores e interesses dos sujeitos de direitos encontram eco nas
instituições não eleitas. Não há, porém, muita problematização quanto à autonomia
das instituições jurídicas em seus processos decisórios e também quanto à existência
de dissonâncias de expectativas – seja entre entes do Estado, seja entre estes e os “ci-
dadãos comuns” – em relação à interpretação do direito e ao papel das ações judiciais.
Não obstante o valor contido nessas interpretações, buscamos considerar, para
fins de análise, tanto os fatores endógenos quanto os exógenos relativos à atuação do
Ministério Público, bem como a existência de vínculos entre as dinâmicas institucio-
nais “internas” e “externas”.4
4 Acreditamos ser essa perspecƟva de análise semelhante à desenvolvida por Maciel (2002) em seu
trabalho sobre a atuação do Ministério Público Estadual de São Paulo na área ambiental.
336 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Fonte: Ministério Público Federal, Procuradoria do Rio de Janeiro: Procedimentos AdministraƟvos, In-
quéritos Civis, Ações Civis Públicas e Oİcios Expedidos/Promoção de Arquivamento
5 Resultados semelhantes foram encontrados por Maciel (2002), segundo a qual a proporção de casos
insƟtucionalizados no Ministério Público Estadual de São Paulo na área ambiental foi de 77,5% para
22,5%, e por Vianna e Burgos (2002), cujo resultado no Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro
foi de 71,6% para 28,4%. Some-se a isso o fato de que a regra interna que obriga os procuradores
a invesƟgar todas as demandas que lhes são encaminhadas, a despeito dos problemas que ela traz
consigo (Maciel, idem), contribui para a permeabilidade da insƟtuição.
Parte II | Capítulo 14 | A judicialização da Política segundo a atuação... 337
Fonte: Ministério Público Federal, Procuradoria do Rio de Janeiro: Procedimentos AdministraƟvos, In-
quéritos Civis, Ações Civis Públicas e Oİcios Expedidos/Promoção de Arquivamento
6 Esse fato se explicaria tanto pela imagem pública posiƟva de que desfruta o Ministério Público,
quanto pela baixa conĮança da sociedade em relação aos órgãos do Poder ExecuƟvo. Pesquisa re-
cente do IBOPE (2004) revela que 43% da população do Sudeste possui uma imagem negaƟva em
relação ao Poder ExecuƟvo, contra 34% de imagem posiƟva. Já o Ministério Público possui imagem
posiƟva para 51% da mesma população, contra 22% de imagem negaƟva. Sobre o assunto, ver tam-
bém os estudos de caso realizados por Viégas (2007).
338 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
obterem bons resultados, denotam também que as ações dos procuradores podem as-
sumir um sentido distinto de um mero “substitucionismo”. O sentido dado pelos pro-
curadores para o papel a ser desempenhado pelo Ministério Público parece-nos mais
próximos ao de um componente de checks and balances (freios e contrapesos) para
prevenção ou reparação de abusos das autoridades ou ao de um órgão especializado
para a defesa de interesses socialmente relevantes, cujos titulares tenham dificuldade
de fazê-lo por si mesmos. Essa “construção imagética” idealizada se distancia da tese
de que o Ministério Público interfere na relação entre Estado e sociedade em “substi-
tuição” à atuação da sociedade civil e dos poderes político-representativos (Arantes,
2002). Menos do que pretenderem para si a função de uma espécie de “instância de
substituição” da sociedade civil e dos poderes político-representativos, os procura-
dores reclamam uma atuação “mais ativa” desses entes e consideram, como veremos
adiante, que o desempenho da atuação ministerial na área ambiental é comprometido
por problemas na interação com os mesmos.
7 O Inquérito Civil Público (ou o seu correlato Procedimento AdministraƟvo) disƟngue-se do Inquérito
Policial e por vezes os dois desenvolvem-se concomitantemente. O instrumento consiste em um
procedimento de natureza invesƟgaƟva de Ɵtularidade do Ministério Público, podendo ser sigiloso
(caso o Parquet jusƟĮque por que o acesso do invesƟgado ao mesmo poderia causar prejuízos às
invesƟgações), ocasião em que é facultada a consulta pública aos autos.
340 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
8 O TAC conĮgura-se como um ơtulo execuƟvo extrajudicial, o que signiĮca que caso as metas do
compromisso não sejam cumpridas, o acordo está sujeito a rescisão e o compromissário ao paga-
mento de multa previamente esƟpulada no termo de compromisso.
Parte II | Capítulo 14 | A judicialização da Política segundo a atuação... 341
12 A ConsƟtuição favorece uma concepção ampla sobre o meio ambiente, abarcando o ambiente na-
tural, o arƟĮcial (espaço urbano), o cultural (patrimônio histórico, cultural, paisagísƟco, arơsƟco e
arqueológico) e o do trabalho (vinculando à questão da saúde).
344 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
se reverter as situações em que o dano ao meio ambiente já está consumado. Isso jus-
tificaria a prioridade de casos em que é possível evitar que o problema se consume.
Ademais, as peculiaridades geográficas, políticas e sociais presentes no local onde
se desenvolvem os conflitos ambientais também podem influenciar na valoração dada
pelos procuradores.
Meio ambiente no Rio de Janeiro tem uma visão totalmente diferente de meio
ambiente em São Paulo. Quando eu faço tutela de meio ambiente no Rio de
Janeiro, eu estou tutelando o patrimônio cultural e ambiental do Rio; e quando
eu faço tutela ambiental em São Paulo, eu estou tutelando o meio ambiente e
saúde de São Paulo. Porque em São Paulo não tem apelo visual, mas tem apelo
de saúde. Então meio ambiente de São Paulo significa poluição atmosférica e
meio ambiente no Rio significa patrimônio cultural do carioca. O Rio de Janeiro
entende o ambiente como valor agregado a seu turismo; São Paulo entende o
meio ambiente como valor agregado a sua saúde. (...) Em determinados lugares
a fauna é mais importante, em outros lugares a flora é mais importante e em
outros lugares o ambiente cultural é mais importante.
Cumpre dizer ainda que a avaliação de alguns tipos de demandas como mais ou
menos relevantes é fonte de conflitos entre os procuradores da República e os órgãos
superiores do Ministério Público. Parte dos entrevistados defendeu a ideia de que, ao
invés de lhes obrigarem a atuar em todas as demandas enviadas ao Ministério Público,
as instâncias superiores da instituição deveriam definir critérios para estabelecer em
quais casos a atuação é mais relevante e se concentrar apenas neles.
Eu acho que interessante seria uma priorização em relação aos bens tutelados.
(...) O problema é que, pra efeitos de controle, a minha seriedade com a sardinha
vai ser a mesma com a Petrobrás e a mesma com a termoelétrica, porque eu vou
ser cobrado da mesma maneira.
A autonomia do Ministério Público também se manifesta no desenvolvimento de
estratégias e formas de ação.
Como dissemos acima, os procuradores pensam a sociedade civil no Brasil como
pouco organizada, pouco participativa na sua relação com o poder público e hipos-
suficiente na persecução de seus direitos, o que concorre tanto para uma baixa efeti-
vidade do Ministério Público na tutela do meio ambiente quanto para a proliferação
dos problemas ambientais. Quanto aos órgãos executivos ambientais, os consideram
ineficientes no desempenho de suas competências. Enfatizam que tal ineficiência é
fruto de interesses políticos e econômicos particularistas que relegam a segundo plano
a preservação do meio ambiente e outros interesses sociais. Essas considerações são
apresentadas como justificativas para a frágil adesão psicológica que os próprios pro-
346 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
13 Uma vez que a análise de Silva sobre a atuação dos promotores na defesa de direitos metaindivi-
duais consiste na formulação Ɵpos-ideais, acreditamos não haver necessariamente uma oposição
entre suas propostas e o que entendo ser uma tendência à homogeneidade dos métodos de tra-
balho entre os procuradores. A diferença de perspecƟva talvez se jusƟĮque pelo fato da autora ter
desenvolvido sua pesquisa com membros do Ministério Público atuantes em diversas áreas e tanto
em Promotorias do interior quanto da capital de São Paulo, ao contrário da presente pesquisa que
se concentrou na área ambiental e no município do Rio de Janeiro.
Parte II | Capítulo 14 | A judicialização da Política segundo a atuação... 347
Muitas vezes, realmente, a empresa, ela sabe muito bem o que ela quer e acaba
em um impasse tal que a gente é obrigado a ajuizar a ação. Mas a gente sempre tenta
a conciliação.
Porque o sujeito que está assinando TAC tá calculando. Ele é um negociador
e vai calcular: vai me custar ‘x’ assinar um TAC porque eu vou ter que me en-
quadrar, mas pode me custar ‘10 x’ ir para uma sentença. Ele joga esse jogo e eu
também. Se eu assinar um TAC com esse cara e abrir mão de determinadas peculia-
ridades, eu não levo ele para a sentença, eu resolvo aqui com ele. Não é o ideal, mas é
muito bom porque eu posso perder tudo na sentença. (...) Se eu enquadrar direito o su-
jeito que está fazendo o TAC, mesmo que eu não consiga morder tudo o que eu queria,
já é muito mais jogo do que esperar a sentença. Porque uma sentença vai demorar de
quatro a cinco anos para sair no primeiro grau. Há casos em que o sujeito nem quer
TAC. Ele fala: “me leva para a justiça, me executa, quero ver você ganhar”. Não há
opção. Mas quando as partes querem negociar, na minha opinião, é muito mais jogo
você levar para um TAC e resolver sem a interferência do Judiciário (grifos meus).
Nesse ponto, para nós ficou claro que, ao contrário do que alguns autores sus-
tentaram (ver, por exemplo, Vianna & Burgos, 2002: 443-444), a estrutura social
não impõe resistências suficientes caso os representantes do Ministério Público resol-
vam atuar substitutivamente ao Poder Judiciário privilegiando a resolução dos conflitos
pela via extrajudicial em situações nas quais a sua legitimidade para firmar acordos
é discutível. Há uma forte tendência dos procuradores e promotores lançarem mão
de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) como forma de evitar os problemas
estruturais que enxergam na atuação do Judiciário, a saber: a demora na produção de
sentenças e a resistência aos direitos metaindividuais.14 Se em alguns casos o uso do
TAC se configura como um “compartilhamento de responsabilidades” (para utilizar os
termos empregados por Vianna e Burgos) entre diferentes atores sociais como forma
de superar conflitos ambientais nos quais o dano ao meio ambiente ainda não teria
se efetivado, em outros é a atuação substitutiva que se faz presente. Verificamos pro-
cessos em que o uso do TAC pelo Ministério Público na área ambiental assume uma
forma distinta de um simples “compartilhamento de responsabilidades” entre atores
sociais na medida em que o acordo estabelece compensações em situações nas quais a
contratação seria legalmente vedada. Nessas ocasiões, os procuradores podem ir além
de suas atribuições constitucionais e promover, de certa forma, uma flexibilização da
legislação.
A transgressão dos limites das atribuições do Ministério Público pode ser verifi-
cada, por exemplo, quando a assinatura do TAC não inclui o ressarcimento da popu-
14 Arantes (2002) também chama a atenção para as “limitações” impostas pelo Judiciário e para a
prevalência das ações do Ministério Público pela via pré-processual como forma de enfrentá-las.
348 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
15 Silva (2001) encontrou “novas” formas de atuação entre os promotores de São Paulo, ƟpiĮcadas
sob a noção de “promotor de fatos”. Segundo a autora, alguns promotores vêm atuando à maneira
de um “arƟculador políƟco” fazendo uso, principalmente, de instrumentos extrajudiciais. Por meio
destes instrumentos, os mesmos mobilizam corriqueiramente recursos da sociedade civil e pro-
põem ações conjuntas com insƟtuições públicas e com Ongs, ocasiões em que organizam vistorias
e “blitz”, desenvolvem “projetos”, requisitam a presença de autoridades locais, promovem reuniões
com as partes envolvidas nos processos, parƟcipam da elaboração de propostas etc.
350 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
como universidades e autarquias, com o intuito de que estes forneçam elementos para
instruir os procedimentos investigatórios. Essa seria uma estratégia para escapar da
demora dos órgãos executivos ambientais em cumprir suas requisições.
Nesse [caso] aqui eu não vou conseguir uma fiscalização do Ibama porque não
tem fiscalização. Eu vi que quem assina todos os termos técnicos da empresa é
um engenheiro químico. O que eu fiz? Liguei pro Crea. O Crea já me disponi-
bilizou isso: “Ah, toda vez que você quiser algo do meio ambiente pode vir falar
com a gente e tal”. Engenheiro químico está ligado ao Crea. Eu vou pedir ao Crea
que fiscalize a atuação desse engenheiro químico dentro da empresa. Vai fisca-
lizar só a atuação profissional dele, de forma colateral. Sendo que vai conseguir
provas, pra saber se realmente a empresa está funcionando daquela maneira ali.
Os procuradores podem lançar mão de soluções criativas em ocasiões nas quais,
graças à demora dos órgãos ambientais em realizar vistoria, há dificuldades de com-
provar se o agente responsabilizado cumpriu ou não as cláusulas de uma ação judicial
ou de um acordo extrajudicial.
Eu tive um caso aqui de TAC: “Ó, o seu TAC é tirar a tua construção da Pedra
Redonda. Como é que o sr. vai comprovar? Por foto”. Não precisa ter vistoria no
local. Até teve, mas não precisava. O cara vem com a foto aqui e mostra a pedra
limpa. Comprovou? Tchau!
Por fim, como dissemos acima, para evitar os problemas que identificam no Ju-
diciário, é comum que os procuradores tratem o uso do TAC como uma relação es-
tratégica entre “conveniência” e “oportunidade”. De um lado, procuram adequar as
atividades de agentes responsabilizados por degradação ambiental, evitando com isso
os custos de uma Ação Civil Pública; e, de outro, o agente responsabilizado calcula se
lhe é ou não conveniente assinar o acordo extrajudicial. A “conveniência” do ponto
de vista do procurador, seu anseio, diz respeito à possibilidade de obter resultados
efetivos, uma vez que a tendência na esfera judicial é o litígio se estender por anos;
enquanto que a “oportunidade” refere-se à viabilidade legal de resolver o problema
extrajudicialmente e a que custo. Por vezes, desde que considerados “convenientes”,
os acordos são firmados mesmo à revelia da viabilidade legal.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A atuação do Ministério Público tem suscitado diversos debates quanto a riscos
e/ou benefícios que possivelmente proporcionaria à democracia e à cidadania. Suas
atividades caracterizar-se-iam como impositivas de demandas, desestimuladoras do
associativismo e lesivas à discricionariedade dos poderes políticos, pondo em risco a
vida associativa e todo um arcabouço institucional favorável à democracia represen-
352 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
tativa? Ou seria o Ministério Público uma via para a ampliação da democracia, posto
que amplia as possibilidades de exercício da cidadania e desperta nos cidadãos a vo-
cação de soberanos? Afinal, estaria a instituição servindo como instância de “substitui-
ção” das ações da sociedade civil, do Poder Executivo e do Poder Judiciário ou estaria
simplesmente contribuindo para a implementação da Constituição?
Ao longo do presente trabalho procuramos alimentar esse debate. Constatou-se,
reiterando tendência encontrada em outros trabalhos, que, longe de ser impositivo de
demandas, o Ministério Público tem um perfil de atuação mais reativo do que ativo.
Ademais, o sentido dado pelos procuradores às suas ações pareceu-nos próximo ao
de um componente de checks and balances (freios e contrapesos), tendo a defesa da
Constituição como princípio. A instituição distancia-se, assim, do perfil substitutivo
ao Poder Público e à sociedade civil. É comum que os conflitos institucionalizados
no sistema judicial também cheguem ao sistema político. E, a despeito do temor de
que as atividades ministeriais resultem em desmobilização política, há indícios de que
vem crescendo o número de Ações Populares e Ações Civis Públicas propostas por
associações civis (Vianna & Burgos, 2002), bem como de que a população vem prefe-
rindo dirigir as denunciações (como forma de garantir seus direitos) para o Ministério
Público ao invés de fazê-las para os órgãos executivos (Viégas, 2007), o que denota a
legitimidade que possui a instituição.
Por outro lado, o uso que é dos Termos de Ajustamento de Conduta na solução de
conflitos ambientais é indicativo de uma atuação substitutiva do Judiciário. Essa seria
uma forma de contornar a morosidade na produção de sentenças e a resistência dos
magistrados aos direitos metaindividuais, ainda que por vezes sejam ultrapassados os
limites das atribuições constitucionais do Ministério Público. Some-se a isso a existência
de dissonâncias entre as concepções e expectativas dos diversos atores sociais em relação
ao papel a ser desempenhado pelas instituições jurídicas (Maciel & Koerner, 2002).
Todavia, se as iniciativas do Ministério Público podem contribuir para uma flexi-
bilização da legislação ou estar em desacordo com expectativas de direitos, a extensão
desse “ativismo judicial deletério” e das dissonâncias na cultura de direitos não chega
a anular a importância da cidadania social e da representação funcional que tem lugar
com a atuação ministerial. A importância de uma atuação “mais ativa” das instituições
do sistema de justiça já está consagrada em diversos sistemas democráticos, embora
traga consigo novos (e nada renunciáveis) dilemas e seja ainda foco de disputas quan-
to ao alcance desejável de seu ativismo. Recorrendo a Habermas, Cittadino (2002:
38) sintetiza as diretrizes de como os operadores do direito constitucionalista vêm
enfrentando esses “novos dilemas” no plano teórico:
Parte II | Capítulo 14 | A judicialização da Política segundo a atuação... 353
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15
Juizados Especiais: entre a legalidade e
a legitimidade. Análise prospectiva dos Juizados
Especiais da comarca de Niterói 1997-2005
Sumário:
1. Introdução.
2. A tensão entre “culturas legais”: legiƟmidade racional legal e legiƟmidade
responsiva.
3. Juizados especiais: centros de triagem e balcões de reclamação ou
alternaƟva ao judiciário formal?
4. Juizados especiais: o problema na práƟca.
5. Desvirtuamento dos juizados especiais: o caso de Niterói.
6. Os conŇitos de vizinhança: sem lugar para reclamar.
7. Considerações Įnais.
8. Referências bibliográĮcas.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho procura investigar a atuação dos Juizados Especiais da comarca de
Niterói (RJ), particularmente nas causas envolvendo conflito de vizinhança e constatar
até que ponto a sua estrutura e o seu funcionamento têm atendido ou não aos ideais
de uma justiça informal e célere, desatrelada do formalismo legalista e burocrático da
chamada justiça comum; e se a legitimidade de suas decisões tem sido lastreada ou
não pelos ideais comunitários de justiça, conforme o espírito prevalente nas discus-
sões parlamentares que ensejaram a Constituição de 1988.
* Professor Associado de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Subcoordenador do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD).
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 357
Foram utilizados para esta avaliação dados quantitativos com o total dos feitos e
dos tipos de demanda que recobrem um período de dez anos dos Juizados Especiais
de Niterói e que foram recolhidos nos próprios Juizados. Por eles, temos uma visão
das tendências tomadas por seu funcionamento prático a partir da natureza das de-
mandas e de sua alteração no tempo. Estes dados foram complementados com outros
recolhidos em entrevistas realizadas com os diversos agentes do sistema: concilia-
dores, advogados, promotores, juízes e, naturalmente, as partes em litígios, réus e
vítimas. O cotejamento dos dados estatísticos com os relatos dos agentes diretamente
envolvidos nas atividades dos juizados nos forneceu um rico material de análise onde
se observa claramente, conforme esperamos demonstrar, os principais entraves e pers-
pectivas dos Juizados Especiais.
Entre as elites jurídicas brasileiras as referências históricas mais recentes à criação
de um Juizado Especial de Pequenas Causas são encontradas na década de 1980, do
século XX, e seu marco mais importante é a Lei no 7.244, de 07/11/1984, que repre-
sentou o desdobramento e corolário das discussões sobre a reforma do judiciário,
no âmbito do Programa Nacional de Desburocratização. O espírito destas discussões
repercutiria, posteriormente, no contexto dos trabalhos constituintes de 1987, na pró-
pria Constituição de 1988, e ganhariam contornos institucionais, por fim, em 1995,
com a Lei no 90.099. Na esteira dessa trajetória acumulavam-se as experiências dos
então chamados Tribunais de Pequenas Causas, primeiramente no Rio Grande do Sul,
e as conquistas acumuladas ao longo do tempo pelas organizações de consumidores
em todo o país1.
A análise deste material orientou a hipótese geral do trabalho segundo a qual
desde a sua concepção original, gestada nos trabalhos constituintes de 1987-88, pas-
sando por sua regulamentação com a Lei no 90.099/1995 e posteriores leis de âmbito
estadual, os Juizados Especiais, experimentaram um progressivo desvirtuamento dos
ideais de sua criação como um tipo de justiça não estatal, mais informal e próxima
dos princípios comunitaristas de justiça, transformando-se, ao invés disso, num braço
estendido do poder judiciário. A configuração institucional dos Juizados Especiais
como instituições progressivamente atreladas ao poder judiciário e às respectivas cor-
porações jurídicas se deu, assim, como resultado de inúmeras tensões e conflitos com
as quais sempre conviveram, desde a sua concepção até implementação.
1 Vamos desconsiderar aqui a experiência dos Juizados de Paz no Brasil imperial, entre 1829 e 1841,
por razões exclusivas de foco na experiência recente dos Juizados Especiais, embora esta experiên-
cia dos Juizados de Paz seja ilustraƟva das primeiras ações do processo histórico brasileiro de cen-
tralização do poder judiciário pelas corporações de magistrados vinculados ao Estado.
358 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Para a realização deste trabalho, além dos dados quantitativos dos processos ins-
taurados ao longo de quase dez anos de existência, fizemos um trabalho de avaliação
qualitativa do funcionamento dos Juizados Especiais com a realização de trinta e duas
(32) entrevistas, realizadas entre os anos de 2005 e 2008, mais o acompanhamento
particularizado de cinco (5) casos.
As audiências nos Juizados Especiais são públicas. Isto tornou relativamente fácil o
acesso às mesmas, possibilitando a apuração qualitativa do ambiente estudado a partir
da observação das audiências que, colocando-as numa escala hierárquica, de acordo
com a Lei no 9.099/1995, se dividiam respectivamente em Conciliações e Instrução,
e Julgamento. Após um número satisfatório de depoimentos das pessoas que solicita-
vam ou eram intimados pelos Juizados Especiais a comparecerem em tais audiências,
esforçamo-nos em coletar as opiniões daqueles que operavam este dispositivo legal.
O trabalho de natureza qualitativa prosseguiu com o acompanhamento pós-jul-
gamento de um desses casos: o de D. contra o condomínio Y. Nosso objetivo, neste
momento, foi o de identificar como a experiência de leigos (partes em litígio) e dos
profissionais nos juizados alterou ou cristalizou as noções de justiça e do justo, e a
maneira como isso influenciou ou não nas suas vidas cotidianas. A análise deste caso,
segundo a nossa perspectiva, ilustra os atuais impasses e desafios vividos pelos Juiza-
dos Especiais.
Em todas as entrevistas procuramos avaliar os impactos da experiência nos Juiza-
dos Especiais na vida cotidiana das pessoas.
Entretanto, se quisermos uma análise mais qualitativa sobre a natureza desta legiti-
midade, – se ela deriva, por hipótese, da assunção por conciliadores, advogados e juízes
de padrões de justiça comunitários e civilistas, ou se, ao contrário, sua legitimidade está
ancorada exclusivamente no amparo e reprodução das regras e procedimentos da cultu-
ra legal da justiça estatal –, é necessário irmos além dos dados agregados e examinarmos
alguns aspectos desta cultura jurídica que se tem desenvolvido sob essa tensão.
O conceito de “cultura legal” utilizado neste estudo para a compreensão deste
fenômeno é inspirado na teoria de Lawrence Friedman (1975; 1998), e subentende,
tal como neste autor, que a “cultura legal” é um conjunto variado de expressões, com-
preensões e usos da lei e do direito no sentido mais amplo, e que são particularizadas
pelas sociedades e dentro delas pelos diversos grupos sociais. O conceito de cultura
legal, segundo o autor, descreve um dispositivo sociocultural de interação das relações
sociais no direito qualificando a tese mais geral desta disciplina acerca da influência e
da existência de determinações recíprocas entre as relações sociais e o direito. Como
explica o autor, o conceito de cultura legal demonstra esta etapa específica do pro-
cesso de configuração institucional do sistema jurídico resultante da fricção entre as
relações sociais cotidianas e as leis que são criadas em seu contexto. A suposição é da
362 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
2 A inŇuência do modelo americano das small claim courts na ĮlosoĮa e nos procedimentos dos juiza-
dos especiais brasileiros está destacada em diversos autores reunidos em Watanabe, Kazuo [et alii].
Juizado Especial de Pequenas Causas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985.
364 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
3 De acordo com a interpretação que Chasin (2007) faz do trabalho de Harrigton: “o Įnal do século
XIX e início do século XX, foi um período marcado por críƟcas dirigidas ao modelo de prestação de
jusƟça da época, a JusƟça de Paz. A ineĮciência do sistema, sobretudo a lenƟdão, era, segundo os
reformadores, resultado da falta de administração. A solução seria a exƟnção das JusƟças de Paz e
a montagem de cortes municipais, organizadas de acordo com o modelo gerencial. Essas propostas,
formuladas no mesmo período em que ocorria a insƟtucionalização da proĮssão jurídica no país,
foram defendidas pelo ‘movimento das cortes municipais’, que pregava a reorganização e estraƟ-
Įcação do trabalho judicial. Na década de 1970, a discussão envolvendo as Small Claim Courts foi
marcada por propostas de reformas, que redeĮniram seus objeƟvos. Considerava-se que embora
o objeƟvo de criação de uma jusƟça eĮciente (rápida e barata) já houvesse sido alcançado, esse
sistema não era igualitário e acessível a todos. Os pobres parƟcipavam apenas na condição de réus,
e normalmente perdiam. Era esse o ponto que as reformas aĮrmavam querer atacar”.
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 365
4 Várias são as alternaƟvas ao juiz formalmente invesƟdo por concurso público. A ConsƟtuição Fede-
ral de 1988 prevê, em seu art. 98, o uso de juízes leigos em juizados especiais (inciso I) e juízes de
paz, eleitos para o exercício de aƟvidades conciliatórias e administraƟvas (inciso II).
5 Tal conceito é duramente criƟcado por Miguel Baldez, que entende inconsƟtucional tal previsão,
por frustrar o ideal de acesso à JusƟça objeƟvado pela nova ordem democráƟca: “A ConsƟtuição
brasileira (...) apontou o caminho insƟtucional quando previu em seu art. 98 os Juizados Especiais,
neles consenƟndo a inclusão de juízes leigos e, com isso, abrindo caminho para o rompimento do
monopólio do Poder Judiciário pela magistratura. Sem essa abertura não há como pensar, com con-
sequências concretas, na democraƟzação da jusƟça, aqui compreendida, além dos limites restritos
e condicionantes do jurisdicismo, como fato existencial e, por isso, imbricada nas contradições eco-
nômicas, sociais, políƟcas e culturais. (...) Com o rompimento do monopólio (art. 98 da ConsƟtuição
Federal), criavam-se as condições de abertura necessárias ao arejamento da ideologia jurídica bur-
guesa, outras realidades enĮm estariam representadas no campo jurídico-judiciário, outras culturas
parƟlhariam com os juízes togados a compreensão dos fatos, iniciando-se um processo comparƟ-
lhado de produção da JusƟça. A utopia democráƟca, porém, teve pouco tempo de vida, pois veio a
Lei nº 9.009, de 26/06/1995, de implantação e regulação dos Juizados Especiais, e os juízes leigos da
norma consƟtucional foram apropriados pela ideologia jurídica. E como se fez isso? Com aparente
desconsideração pela classe dos advogados, leigos passaram a ser, em matéria cível, pelo menos, os
advogados com mais de cinco anos de formados. Há na lei uma clara inconsƟtucionalidade, por não
ter como conformar o conceito de leigo com o disposiƟvo legal”.
366 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
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368 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
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Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 369
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Fonte: hƩp://www.tj.rj.gov.br/
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ANO 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
TOTAL 3217 3923 4000 3552 5105 4937 5926 6609 5522 7470 6843
Fonte: hƩp://www.tj.rj.gov.br/
Nos Juizados Especiais Cíveis predominam por sua vez as matérias consumerís-
ticas relacionadas a reclamações contra empresas prestadoras de serviços públicos,
especialmente concessionárias, mas também bancos, financeiras, grandes lojas. De tal
sorte que a grande maioria das ações se concentra em meia dúzia de empresas.
Neste tipo de configuração da demanda, a clivagem de Galanter adotada por Ca-
ppelletti & Garth (1988: 25), a predominância do conflito entre litigantes “eventuais”
e litigantes “habituais” nos parece bastante adequada para entender a situação:
O professor Galanter desenvolveu uma distinção entre o que ele chama de liti-
gantes “eventuais” e “habituais”, baseado na frequência de encontros com o siste-
ma judicial. Ele sugeriu que esta distinção corresponde, em larga escala, à que se
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 371
verifica entre indivíduos que costumam ter contatos isolados e pouco frequentes
com o sistema judicial e entidades desenvolvidas, com experiência judicial mais
extensa. As vantagens dos “habituais”, de acordo com Galanter, são numerosas:
1) maior experiência com o Direito possibilita-lhes melhor planejamento do
litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala, porque tem mais casos; 3)
o litigante habitual tem oportunidades de desenvolver relações informais com
os membros da instância decisora; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por
maior número de casos; e 5) pode testar estratégias com determinados casos, de
modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros”. Parece
que, em função dessas vantagens, os litigantes organizacionais são, sem dúvida,
mais eficientes que os indivíduos.
No caso dos Juizados Especiais esta observação é inescapável quando se observa
que a quase totalidade dos litígios, para vários períodos de tempo considerados, se
resumem entre milhares de reclamantes de um lado do balcão e uma dezena de em-
presas do outro lado, responsabilizadas pela ofensa de direitos.
O analista judiciário J., com ampla experiência nos Juizados Especiais, conta que
este tipo de demanda por ressarcimento de danos e prejuízos provocados por servi-
ços ineficientes e muitas vezes não prestados, bem como por indenizações por danos
morais associados ao prejuízo material, demanda concentrada, repita-se, na atuação
de poucas empresas, ensejou a criação do chamado “expressinho”, que adotava um
procedimento padrão para o julgamento dos litígios contra determinadas empresas,
notadamente as prestadoras de serviços de telefonia e bancos.
Dessa forma, nas relações de consumo, os Juizados Especiais passaram a absorver
vários litígios que antes não eram devidamente apreciados pelo Judiciário, em ra-
zão da desproporcionalidade entre custas judiciais e possíveis benefícios. Além disso,
como há limitação legal para apreciação de causas trabalhistas, familiares e fazendá-
rias pelos Juizados Especiais, há uma predominância das matérias relacionadas ao
consumo. Surge, assim, no meio jurídico, uma associação entre cidadania, Juizados
Especiais e proteção ao consumidor, construída a partir de marcos legais dos anos
1990: Código de Defesa do Consumidor (Lei no 8.078/1990) e Juizados Especiais (Lei
no 9.099/1995).
Na prática, entretanto, os Juizados Especiais acabaram absorvendo uma tarefa
que deveria ser atribuída às agências reguladoras: a fiscalização das concessionárias de
serviços públicos. Segundo dados estatísticos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
relativos ao mês de novembro de 2007, os dez maiores réus nos juizados são empresas
372 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
de telefonia (1o: Telemar/Oi; 5o: Vivo; 7o: Tim); energia elétrica (2o: Ampla; 3o: Light);
e instituições bancárias (4o: Itaú; 6o: Banco do Brasil; 8o: Unibanco; 9o: Bradesco; 10o:
Itaucard).6 Se, num primeiro momento, o número alto destes tipos de ações pode
parecer como uma ampliação do acesso à Justiça, como estando garantindo uma tu-
tela jurisdicional antes inimaginável, a depuração do fenômeno nos indica, porém,
que a costumeira presença das mesmas empresas, prestadoras dos mesmos serviços,
significa na realidade que as lesões aos direitos dos consumidores são rotineiras e que
as decisões tomadas no âmbito dos Juizados Especiais não têm provocado os neces-
sários efeitos dissuasórios da atuação lesiva destas empresas. Ainda como efeito desta
distorção, a presença constante de tais empresas acaba congestionando os cartórios,
acarretando maiores custos operacionais (funcionários técnico-administrativos e adia-
mento de audiências).7
6 Em 2008, na lista das dez empresas mais reclamadas nos Juizados Especiais Civis de todo o estado
do Rio de Janeiro persisƟam, com algumas alterações nas posições, as mesmas empresas e serviços
líderes de reclamações nos Juizados Especiais Cíveis de Niterói: 1º. Lugar – Unicard-Unibanco, com
53.949 ações, correspondentes a 15,26% do total de ações; 2º. Lugar – Oi telefonia Įxa, com 31.476
ações, ou 8,9% do total; 3º. Lugar – Light, 23.879 ações, ou 6,76% do total; 4º. Lugar – Vivo, com
17.846, ou 5,06% do total; 5º. Lugar – Ampla, com 16.778 ações, ou 4,75% do total; 6º. Lugar – Uni-
banco, com 15.851 ações, ou 4,48% do total; 7º. Lugar – Banco Itaú, com 13.051 ações, ou 3,69%
das ações; 8º. Lugar – Claro, com 11.688 ações, ou 3,31% das ações; 9º. Lugar – Oi Celular, com
10.162 ações, ou 2,87% do total; 10º. Lugar – Tim Celular, com 9.127 ações, ou 2,58% do total. Total
de ações para o período considerado: 448.546. Fonte: Tribunal de JusƟça do Rio de Janeiro – hƩp://
www.tj.rj.gov.br/.
7 Por outro lado, tal judicialização dos conŇitos envolvendo as concessionárias de serviços públicos
reŇete mais a inoperância do atual modelo regulatório e administraƟvo que a ampliação de acesso
à JusƟça. Na verdade, estas empresas presentes na lista dos juizados especiais Ňuminenses também
são frequentes nas estaơsƟcas das agências reguladoras.
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 373
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38 56 44 51 75 57 53 71 39
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Fonte: hƩp://www.tj.rj.gov.br/
GráĮco 2 – TOTAL DE FEITOS POR ANO – JUIZADO ESPECIAL CÍVEL NITERÓI (1997-2005)
Fonte: hƩp://www.tj.rj.gov.br/
374 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
Fonte: hƩp://www.tj.rj.gov.br/
*O número de feitos dos Juizados Especiais Cíveis de Niterói, nos anos de 2006 e 2007, reŇete uma di-
minuição provocada pela inauguração dos Juizados Especiais da Região Oceânica, área que se tornou
densamente povoada nos úlƟmos quinze anos.
Fonte: hƩp://www.tj.rj.gov.br/
*O número de feitos dos Juizados Especiais Cíveis de Niterói, nos anos de 2006 e 2007, reŇete uma di-
minuição provocada pela inauguração dos Juizados Especiais da Região Oceânica, área que se tornou
densamente povoada nos úlƟmos quinze anos.
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 375
Outro aspecto que ressalta no conjunto destes dados é que, embora seja diver-
sificado o escopo das ações impetradas nos juizados, comprovando o largo espectro
de problemas que podem ser legalmente apreciados por estas instâncias, elas estão
concentradas em poucos tipos de ações.
Um juiz do Juizado Especial Cível de Niterói, entrevistado em nossa pesquisa,
traduz de forma quase impaciente sua impressão sobre este viés consumerístico apon-
tado pelo conjunto de dados relativos às ações impetradas:
É sempre a lei de defesa do consumidor. É a mais recorrente... Mas o problema é que
as pessoas vêm pedindo sempre o dano moral e elas sempre entram com o patamar
máximo do dano moral. Está meio banalizado isso... As pessoas querem mais dinheiro,
estão vindo no judiciário por isso. Qualquer coisa: pisa no pé, quebra o pé, querem mil
reais. Telefone também. Telefone eles pedem coisas absurdas. Claro que há falhas no
serviço, mas eles não aceitam, por exemplo, uma indenização de dois salários, sempre
querem dez, quarenta salários.
Este dado, por si só, revela um dos aspectos da legitimidade dos Juizados Espe-
ciais que merece reflexão. As ações de consumo contra as empresas de telefonia, e
contra outras concessões de serviços públicos como energia elétrica e ainda serviços
bancários, estão entre os mais demandados pelos litigantes. Estas ações, segundo a
informação de juízes e conciliadores atingem pessoas de diversos níveis de renda e
social. Como afirma um dos conciliadores entrevistado:
Aqui é muito variado. A gente vê gente tipo ex-juízes recorrendo ao juizado especial e
você vê gente analfabeta, varia muito.
Ou, ainda, segundo a avaliação de outro conciliador:
No juizado só pode acima de 18 anos. Mas é variado também, tem de tudo. Principal-
mente, essas empresas de telefonia, essas concessionárias de serviço público, elas prestam
serviço para toda a sociedade. Então vai de 18 a 70 anos. É um leque muito grande.
Subtende-se dessa relação vivida às turras entre, de um lado, os conciliadores e
juízes, e de outro, as ações consumerísticas que capturam a quase totalidade dos esfor-
ços dos Juizados Especiais, que ela é mútua serventia para os agentes envolvidos. Para
as pessoas de maneira geral é conveniente e eficaz demandar a justiça para resolver
seus problemas de má prestação de serviços e ainda arriscar o recebimento de uma
indenização; este tipo de demanda vem tanto do rico quanto do pobre. Pelo viés do
juiz e do staff da Justiça especial (conciliadores, advogados, promotores) este tipo de
demanda social de Justiça legitima as ações e as decisões do Juizado Especial.
Este sentimento contraditório entre a crítica ao excesso de litígios ralacionados ao
consumo e a aceitação comportada desta tarefa como contrapartida da indispensável
legitimação da atuação dos Juizados Especiais pode ser percebida claramente na fala
376 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
do juiz. Como afirma o juiz do Juizado Especial Cível de Niterói, o mesmo que recla-
mava do excesso de litígios relacionados às prestadoras de serviços públicos:
a lei do consumidor advém até de uma determinação constitucional. É para facilitar, é para
reduzir a diferença hipossuficiente do consumidor em face das grandes empresas. Ela dá
vantagens ao consumidor. Tem que ter mesmo vantagens até mesmo em função da respon-
sabilidade, que é a responsabilidade objetiva em termos das práticas abusivas que essas
empresas às vezes fazem. A propaganda enganosa. E se a propaganda também tem alguma
cláusula restritiva de direito do consumidor tem que vir expressa e clara para o consumidor
poder entender. São esses contratos de adesão: se chegam com um atraso enorme, o consu-
midor vai lá e assina. Então tem que fazer a interpretação dessas cláusulas.
Para logo em seguida, moto contínuo, desqualificar a mesma demanda da seguinte
forma:
As pessoas geralmente têm uma noção de que foram lesadas – “ah, eu não estou gos-
tando disso, eu não quero, eu não estou aceitando isso”. Às vezes as pessoas chegam
aqui sem condições; elas fazem o pedido, chega no juiz para fazer instrução sem ad-
vogado, sem defensor público, sem condições de pagar. Mas você tem que ver também
a postura do juiz. O juiz não pode ser também, ao mesmo tempo, julgador e advogado
da parte. Porque aí você também não pode quebrar um outro princípio do direito que
o contraditório e a imparcialidade, entendeu? O juiz tem sempre que trabalhar com
princípios, com parâmetros.
É possível imaginar que sem ações contra as operadoras de telefonia e eletricidade,
por exemplo, caso as agências reguladoras assumissem a integridade das suas funções
fiscalizadoras e não apenas reguladoras, o montante dos serviços apresentados à socie-
dade pelos Juizados Especiais se reduziriam em cerca de 80% anuais. O impacto desta
redução expressiva da quantidade de feitos destes Juizados, frequentemente utilizada
pelos juízes para invocar a extensão e a legitimidade dos seus serviços junto aos seus
jurisdicionados, repercutiria seguramente nas pretensões e demandas destes institutos
jurídicos frente aos demais órgãos do judiciário, afetando-os desfavoravelmente na
distribuição interna de poder, especialmente dos magistrados diretamente envolvidos
em seu funcionamento e expansão.
Em nosso ponto de vista, a redução desta demanda possibilitaria aos Juizados
Especiais experimentarem com mais intensidade todas as possibilidades de resolução
de conflitos que foram originalmente oferecidas pela lei que os criou.
Caso 1: Uma moradora ingressa com ação em face de condomínio cuja síndica auto-
rizara a utilização do espaço comum de moradores como garagem, incomodando o
sossego da autora. Questionada sobre o conflito, assim expõe a autora:
O fato de a síndica ter resolvido por conta própria criar um estacionamento ao lado
do meu apartamento... É um absurdo fazer uma coisa dessas arbitrariamente, sem
convocar uma reunião ou coisa do tipo. A partir daí fica um barulho insuportável que
atrapalha completamente a minha vida. Não conseguia mais fazer as coisas que fazia
normalmente com tranquilidade. Como ela não quis resolver de forma amigável fui
na justiça.
Percebe-se que a questão demanda muito mais um mediador do que um julgador.
A ausência do diálogo prévio levou a moradora a provocar o Judiciário, o que pode-
ria ter sido facilmente evitado. Como jamais havia participado de um processo, foi
orientada por uma amiga a propor a ação no Juizado Especial. Após aguardar por sete
horas o início da audiência, a autora diz:
Demorou bastante. Mas, pelo que ouço da justiça nesse país, sinceramente eu até es-
tava preparada para esperar mais do que isso. [O Juizado Especial] não é rápido,
mas dizem que é melhor do que a justiça comum. Sinceramente não sei, porque nunca
precisei da justiça comum, mas não achei rápida não. A espera é cansativa. Espero não
ter que precisar em outros casos.
Caso 2: Morador aciona o condomínio por ter sido a mala de seu veículo arrombada
dentro da garagem do prédio, sendo o estepe e um carrinho de bebê furtados. Neste
caso, também, o Juizado Especial foi visto como uma instância necessária após a au-
sência de diálogo. Segundo o morador:
Houve uma tentativa de conversar com o condomínio, mas não deu em nada porque
eles se recusaram a reconhecer qualquer responsabilidade pelo que aconteceu, aí tive
que buscar a justiça.
Assim como no processo anterior, a imagem negativa ficou por conta da demora
no atendimento (seis horas):
É demorado. Pensei que ia ser uma coisa mais rápida, que ia resolver direto. Não
achei que fosse na hora porque conheço o serviço público do país, mas realmente não
esperava aguardar tanto.
Caso 3: Inquilina indica seus tios como fiadores do contrato de locação. Como os
aluguéis não foram pagos, o proprietário do imóvel cobrou dos parentes, e estes acio-
naram a sobrinha para reaver o que fora pago. Entrevistada, assim a ré relata o caso:
Meus tios foram fiadores do meu apartamento. Ocorreu um grave imprevisto profissio-
nal na minha vida e não tive condição de arcar com o pagamento. Eles como fiadores
pagaram pra mim e logo após começaram a me cobrar, mas se eu não tinha condição
378 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
a poucos dias não tenho condição agora. Acho que eles pensaram que eu iria dar calote
e entraram com essa ação contra mim.
Assim como ocorreram nos outros casos, a parte reclama da morosidade, afirman-
do que o atendimento:
Não foi nada bom, além do desgaste emocional de estar sendo acionada por membros
da minha família, o atendimento é demorado, esperei bastante. Depois que fui acionada
fui pesquisar sobre os Juizados Especiais e disseram que eram pra serem rápidos, mas
não foi o que vi lá.
Ao contrário dos outros dois casos, neste se percebe nitidamente o respeito pela
instituição judiciária, sob a ótica do réu:
[...] percebi que não é bom ficar devendo a ninguém. Que a sensação de estar sendo
acionada na justiça é horrorosa, agora só vou pegar dívidas que eu possa pagar num
tempo muito curto, porque encarar tribunal não é uma coisa boa. Dá muito trabalho,
perde muito tempo e suga muito de você. [...] o que me pressionou foi a ideia de estar
sendo acionada na justiça, não sei se funciona assim pra todo mundo. Mas a sensação
é horrível.
Caso 4: Compradora de apartamento localizado na praia de Icaraí, bairro da classe
média alta de Niterói, Rio de Janeiro, ao reformar o imóvel para morar e retirar os
toldos para lavagem e concerto, constatou que a parede externa e frontal ao apar-
tamento, onde eles estavam fixados, tinha problemas de fixação porque, segundo o
pedreiro contratado para a execução dos serviços, a parede estava “ôca”. Poucos dias
depois de executado o serviço, um dos toldos se desprendeu, atingindo a janela de
um apartamento vizinho. Ao comunicar a síndica do prédio o ocorrido e dizer que
os toldos não estavam bem fixados por problemas na parede externa do prédio foi,
segundo disse, instruída pela síndica a comprar parafusos especiais para a execução
do serviço. Como os novos parafusos de nada resolveram, procurou novamente a sín-
dica e desta vez recebeu como resposta a recomendação de que resolvesse por conta
própria o problema. Como, no seu entendimento, segundo a interpretação que havia
feito do estatuto do condomínio, as áreas externas do prédio eram de responsabilida-
de do condomínio e não dos proprietários individualmente, D. entrou nos Juizados
Especiais orientada por estagiários do escritório de assessoria jurídica da Faculdade de
Direito Cândido Mendes:
Vi um anúncio de assessoria jurídica gratuita em jornalzinho da Faculdade Cândido
Mendes. Lá me informaram que o caminho seria o Juizado Especial.
No Juizado Especial:
[…] marcaram a audiência para três meses depois. Estive lá no dia 14 de novembro
de 2007 e a audiência foi marcada para o dia 10 de janeiro de 2008.
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 379
Tudo o que segue, neste caso, é bastante ilustrativo daquilo que os Juizados Espe-
ciais têm se transformado. Após esperar três meses pela primeira audiência, D. pode
finalmente expor seu caso diante do conciliador, neste caso, uma bacharel em direito,
aluna da escola de magistratura do Rio de Janeiro. Compareceu a audiência sem a
presença de advogado, conforme havia sido aconselhada pelo escritório da faculdade
e, sem acordo nesta primeira audiência de conciliação, foi orientada a solicitar advo-
gado na defensoria pública, o que fez prontamente no cartório do próprio juizado. A
funcionária do cartório que a atendeu ao se inteirar sobre o seu problema lhe disse
que havia a possibilidade de que aquela causa não prosperasse no Juizado Especial
Cível (JEC) em face de a ação demandar perícia técnica. Na audiência de julgamento,
segundo D., monopolizada pela defesa e pelo advogado do condomínio, uma grande
surpresa. O advogado do condomínio apresentava-se como um profissional expe-
riente na atuação nos Juizados Especiais, o que é no mínimo uma anomalia para uma
justiça que foi pensada para evitar a necessidade destes profissionais. Sua expertise,
no entanto, foi logo demonstrada em seguida ao seu breve discurso no juizado sobre
o descuido de D. por ter comprado um imóvel “ferrado” (expressão relatada por D.).
Segundo o relato de D., ele disse que aquele JEC não poderia julgar aquela causa por
ela demandar perícia técnica e isso a caracterizaria como uma causa “complexa”.
A defensora [pública] argumentou que já existia registro em ata de reclamação de
outros moradores com respeito aos toldos. Alegou, também, que havia uma firma res-
ponsável pela instalação dos toldos e aqueles estavam ainda na garantia.
Para a indignação de D., a despeito, ainda, dela ter apresentado laudos da pre-
feitura e da defesa civil condenando a fachada do edifício, a “juíza” (conciliadora)
endossando a apreciação da técnica jurídica do advogado do condomínio e quase que
repetindo as suas palavras disse que o caso deveria ir para a justiça comum, por de-
mandar perícia técnica, o que a caracterizaria como uma causa complexa.
A avaliação de D. desta sua experiência nos Juizados Especiais mistura a natural frus-
tração por não ter tido seu caso apreciado por aquele juizado, após uma espera de oito
meses entre a audiência de conciliação e a de julgamento, com um sentimento de que
havia faltado apenas bom senso e experiência para resolver a questão. Em suas palavras:
Tem que dividir por etapas. O tempo foi absurdo, muito sacrificante, o atendimento
dos universitários foi excelente. O juiz [conciliadora] apesar de eu me sentir mais à
vontade que num tribunal, mas eu tinha certeza que a juíza nunca tinha lido uma ata
de reunião de condomínio. Acredito que sim, porque a juíza [conciliadora] demons-
trou que não sabia que [morador] não pode fazer obra externa. A juíza não tinha
experiência. Conta muito a experiência...meu irmão, por exemplo, tem experiência
como membro de associação, como engenheiro da Caixa [Caixa Econômica Federal]
entende mais direito e convenção [de condomínio] que um advogado.
380 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, o conjunto dos dados estatísticos e a análise das entrevistas confir-
mam, primeiramente, que a população passou a confiar e a conferir legitimidade às
decisões pactuadas no âmbito dos Juizados Especiais. Em termos práticos, podemos
afirmar que o aumento do número de litígios levados aos Juizados Especiais guarda
relação direta com o progressivo aumento da confiança das partes envolvidas nas so-
luções judiciais obtidas nessa instância da justiça especial.
No entanto, nas mesmas entrevistas, registramos algumas reclamações que eviden-
ciam um progressivo esgotamento do sistema dos Juizados Especiais dado o mesmo
fenômeno experimentado pela justiça comum do aumento exponencial dos litígios
para apreciação e eventual julgamento. Reclamações sobre a morosidade dos Juizados
Especiais, por exemplo, começam a surgir nas opiniões emitidas pelos usuários desta
justiça com uma frequência acentuada, o que é preocupante para uma justiça que se
propõe a ser descomplicada e desburocratizada, numa palavra: rápida.
O que é mais grave é a ausência de um debate maior sobre as causas do acúmulo
de processos, pois a política judiciária vem se pautando pela eficiência na eliminação
dos feitos judiciais. Estatisticamente, como vimos, muitas das demandas provêm de
litigantes habituais, os quais deveriam ser fiscalizados e sancionados extrajudicial-
mente por órgãos estatais administrativos (agências reguladoras, Banco Central etc.),
ou outros meios alternativos de resolução de conflitos.
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 381
Se esta omissão não é estimulada diretamente pelo próprio Judiciário ela lhe é,
no mínimo, funcional tendo em vista o seu receio de perder poder de ingerência em
tantos litígios. Afinal de contas, a alegação de sobrecarga de trabalho dos tribunais e
a consequente morosidade da prestação dos serviços jurisdicionais, ao mesmo tempo
em que serve de justificativa para a ineficiência e iniquidade da justiça, sempre teve
destaque no discurso dos defensores de mais recursos econômicos para o judiciário
estatal.
Não restam dúvidas, portanto, que os Juizados Especiais vieram atender a uma
demanda represada de litígios de menor impacto ofensivo que não tinham soluções
jurídicas perfeitas nas instituições tradicionais do judiciário, ou que se solucionavam
pelas vias tradicionais alheias ao judiciário. A gratuidade e a descomplicação burocrá-
tica dos rituais e procedimentos jurídicos dos Juizados Especiais são apontados pela
imensa maioria dos seus usuários como fatores motivadores do recurso a este expe-
diente judiciário. Num país de imensas carências, como o nosso, a falta de infraes-
trutura e recursos materiais e de pessoal qualificado não demorariam mesmo a virem
cobrar seu preço. Na verdade, o enorme afluxo de litigantes aos Juizados Especiais
e as consequentes perturbações no sistema daí decorrentes, tais como a demora das
audiências e o congestionamento dos julgamentos podem ser considerados externa-
lidades positivas de todo o processo, pois que derivadas do aumento da legitimidade
e da credibilidade dos serviços prestados pelos Juizados Especiais, somadas às boas
qualidades da desburocratização e gratuidade do processo.
A expressão negativa desses problemas estaria principalmente na ameaça ao pa-
trimônio de confiança e agilidade da justiça especial. Tal judicialização de demandas
rotineiras acaba por descaracterizar o Juizado Especial, que deixa de atuar como um
tribunal de vizinhança para servir como balcão de atendimento a litígios de massa,
em crescimento exponencial. Com isto, para se atender à exigência de produtividade
deste serviço público estatal, os juizados acabam burocratizando sua função.
Assim, nossa perspectiva para a análise dos problemas de morosidade e congestio-
namento dos Juizados Especiais aponta para a hipótese de que a pressão conservadora
e corporativista dos operadores do direito, advogados, promotores e, especialmente,
dos magistrados tem atuado no sentido de promover a “reformalização” e “reestatiza-
ção” dos Juizados Especiais.
Não se trata, aqui, apenas de ressalvar o dado óbvio de que a restrição legal à sele-
ção de conciliadores que devem ser, forçosamente, segundo a atual legislação estadual,
juizes aprendizes da escola de magistratura, diminuiu consideravelmente o escopo
de profissionais e cidadãos de maneira geral habilitados a oferecer seus préstimos
382 O Estado Democrático de Direito em Questão | Mauricio Mota | Luiz Eduardo Motta ELSEVIER
como árbitros legítimos de conflitos de baixo poder ofensivo social e aos indivíduos.
Também nisso a alteração legal passou a atuar no sentido inverso ao espírito da Lei
no 9.099/1995. Talvez, o prejuízo maior neste tipo de legislação formalista e restritiva
seja, na realidade, o de impossibilitar que aflorem nestes fóruns dos Juizados Espe-
ciais decisões novas, baseadas em valores e num senso de justiça mais próxima dos
cidadãos comuns, bem como de arranjos institucionais alternativos à justiça estatal.
A busca por conciliadores juristas e juízes leigos estudantes da Escola de Magis-
tratura revela-se, assim, uma opção pela eficiência da técnica jurídica em detrimento
da representatividade social. De fato, soluções conciliatórias demandam um trabalho
artesanal de articulação e composição que exige tempo e capricho, valores que se
chocam com as expectativas de eficiência e justiça rápida. A crescente busca por pro-
dutividade e pelos certificados ISO (padrões de “qualidade” impostos pelo mercado)
demanda uma padronização de processos, como se as causas levadas ao Judiciário
fossem facilmente massificadas e convertidas em estatísticas funcionais.8
Com isso, os conflitos de vizinhança, que deveriam ser um dos problemas fulcrais
dos Juizados Especiais, ficam totalmente à margem deste atual modelo. Por demanda-
rem uma abordagem quase artesanal, já que o conflito jurídico muitas vezes é a ponta
de um iceberg de vários outros problemas, a burocratização e a extrema impessoalida-
de no tratamento das partes acabam produzindo uma justiça de pior qualidade.
Em suma, a experiência acumulada pelos Juizados Especiais revela aspectos signi-
ficativos da cultura jurídica brasileira e da sua forma peculiar de assimilar as deman-
das contemporâneas por acesso à justiça.
Se, por um lado, a bem-sucedida experiência destes Juizados Especiais pode ser
avaliada pelo aumento expressivo da demanda por seus serviços jurisdicionais, atin-
gindo, dessa maneira, um dos seus objetivos fundamentais que é o de promover e
ampliar o acesso à justiça pelos cidadãos, por outro, parte deste patrimônio de legiti-
midade tem sido solapado pelas tentativas de desvirtuamento de sua natureza civil e
de sua representatividade político-social.
8 Merece destaque o fato de que, apesar da Lei nº 9.099/1995 admiƟr conciliadores não juristas, e
antes da lei estadual que restringiu o desempenho do cargo de conciliador aos estudantes da escola
de magistratura, em Niterói todos eram bacharéis de direito ou estavam concluindo a faculdade
de Direito. Segundo o depoimento de uma conciliadora que trabalha no Juizado Especial Cível há
aproximadamente oito meses, os casos mais bem-sucedidos no senƟdo de chegar a um acordo
entre as partes “são de pessoas İsicas contra pessoas İsicas. Contra empresas é mais diİcil porque
a empresa já vem com um posicionamento e às vezes não oferece acordo. Às vezes só na audiência
com o juiz que oferecem uma proposta de acordo”.
Parte II | Capítulo 15 | Juizados Especiais: entre a legalidade e a legitimidade... 383
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