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Correspondência:
Tizuko Morchida Kishimoto
FEUSP - Avenida da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo / SP
E-mail: tmkishim@usp.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 191-210, jan./abr. 2011 191
Play and literacy: six-year-old children in fundamental education
Abstract
Keywords
Contact:
Tizuko Morchida Kishimoto
FEUSP - Avenida da Universidade, 308
05508-040 – São Paulo / SP
E-mail: tmkishim@usp.br
192 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 191-210, jan./abr. 2011
Este artigo traz o relato de um trabalho O Parecer CNE/CEB nº. 24/2004 estabe-
colaborativo entre docentes da Escola de Aplicação lece as normas nacionais para a ampliação do
da Faculdade de Educação da Universidade de São ensino fundamental para nove anos. A Lei nº
Paulo (Eafeusp) e pesquisadores da Faculdade de 11.114, de 16 de maio de 2005, altera o texto
Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). da LDBEN nº 9.394/96, tornando obrigatória a
O estudo discute a proposta de uma experiência matrícula das crianças de 6 anos de idade no
educativa em que se alia o jogo ao processo de ensino fundamental. Em sequência, o Parecer
letramento no primeiro ano do ensino fundamental CNE/CEB, nº 6/2005, de 8 de junho de 2005,
de nove anos (1º EF9). O pressuposto é que um reexamina o de 2004 e o Parecer CNE/CEB nº
plano de ensino assentado no lúdico e nas media- 18/2005, de 15 de setembro de 2005, e traz
ções como eixos do letramento pode representar a orientações para a matrícula das crianças de
possibilidade de integração de crianças de 6 anos 6 anos de idade no ensino fundamental obri-
ao ensino fundamental e a superação de alguns gatório. A Lei nº. 11.274, de 6 de fevereiro de
desalinhos da política pública de ampliação desse 2006, modifica o texto da LDBEN nº. 9.394/96,
nível de ensino. ampliando o ensino fundamental para nove
A investigação, de caráter qualitativo anos de duração (inciso I do parágrafo 3º, artigo
(Lankshear, Knobel, 2008), pautou-se em dados 30), estabelecendo o prazo de implantação pelos
colhidos na turma do 1º EF9, do período de sistemas de ensino até 2010 (artigo 5º).
2006 a 2010, focalizando o plano de ensino, os Os argumentos para a ampliação do ensi-
registros de desempenho dos alunos, registros no fundamental para nove anos baseiam-se na
da professora da 1ª série, depoimentos de pro- urgência da construção de uma escola inclusiva,
fessoras de 2ª a 5ª séries (2010), entrevistas com cidadã, solidária e de qualidade para todos e de
pais e depoimentos das crianças em 2006, 2007 maior tempo de permanência na escola (Brasil,
e 2010 e 99 relatórios do Laboratório de Brin- 2004, 2007, 2009).
quedos e Materiais Pedagógicos (Labrimp) que A pretensão do Ministério da Educação é a
retratam as vivências com jogos e brincadeiras. implementação de políticas indutoras de transfor-
mações na estrutura da escola, na reorganização
Ampliação do ensino fundamental dos tempos e espaços escolares e nas formas de
de nove anos e a questão curricular ensinar, aprender, avaliar, organizar e desenvol-
ver o currículo e trabalhar com o conhecimento,
A LDBEN nº. 9.394/96 dispõe, no artigo respeitadas as singularidades do desenvolvimento
32: “o ensino fundamental com duração mínima humano (Brasil, 2004, 2007, 2009).
de oito anos, obrigatório e gratuito na escola Definem-se como objetivos da ampliação do
pública (...)” e, no artigo 87, parágrafo 3º, inciso ensino fundamental para nove anos: melhorar as con-
I: (...) “matricular todos os educandos a partir de dições de equidade e qualidade da educação básica;
sete anos de idade e, facultativamente, a partir estruturar um novo ensino fundamental para que as
de seis anos, no ensino fundamental” (grifos crianças prossigam nos estudos, alcançando maior
das autoras). O Plano Nacional de Educação, nível de escolaridade e tenham mais tempo para a
Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001, aponta alfabetização e o letramento (Brasil, 2009).
como meta da educação nacional “ampliar para No plano curricular, o novo ensino fun-
nove anos a duração do Ensino Fundamental damental requer um projeto pedagógico próprio,
obrigatório, com início aos seis anos de idade, como afirma o Parecer CEB nº. 24/2004:
à medida que for sendo universalizado o aten-
dimento na faixa etária de 7 a 14 anos”. Tal po- [...] os sistemas de ensino e as escolas deverão
lítica pública entrou em curso no ano de 2004. compatibilizar a nova situação de oferta e du-
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ração do Ensino Fundamental a uma proposta Outras publicações do Ministério da Edu-
pedagógica apropriada à faixa etária dos seis cação procuram subsidiar as reflexões sobre
anos, especialmente em termos de organiza- a organização curricular no plano das esferas
ção do tempo e do espaço escolar, conside- federal, estadual e municipal, a partir das uni-
rando igualmente mobiliário, equipamentos e dades educacionais. Os documentos têm como
recursos humanos adequados. alvo as equipes escolares, os professores e ges-
tores, destacando-se: Indagações sobre currícu-
Conforme o Parecer CNE/CEB nº. 4/2008: lo – currículo e avaliação, de 2007, e Acervos
complementares: as áreas do conhecimento nos
O Ensino Fundamental ampliado para nove primeiros anos do ensino fundamental, de 2009.
anos de duração é um novo Ensino Fundamen- Na esfera estadual, o documento Orienta-
tal, que exige um projeto político próprio para ções curriculares do Estado de São Paulo: Língua
ser desenvolvido em cada escola. Essas reco- Portuguesa e Matemática – Ciclo I, publicado
mendações estão explicitadas no documento pela Secretaria da Educação em 2008, reitera
Ensino Fundamental de Nove Anos: passo a a necessidade de discussão de currículo pelas
passo do processo de implantação (2009). escolas, propondo, dentre as ações orientadoras,
o Programa Ler e Escrever.
Com o intuito de subsidiar o processo Contudo, existe uma considerável dis-
de implantação, o Ministério da Educação, por tância entre as recomendações e propostas pe-
intermédio da Secretaria de Educação Bási- dagógicas nos sistemas estaduais e municipais.
ca, publicou, em 2006, o documento Ensino Conhece-se pouco da organização curricular
Fundamental de nove anos: orientações para a adotada nessas esferas administrativas e são
inclusão da criança de seis anos, uma coletânea escassos os estudos que focalizam e discutem os
de nove textos produzidos por especialistas da impactos da adoção de determinada orientação
área de educação que aborda temas como a curricular na qualidade do ensino a partir da
singularidade da infância, expressões e desen- análise das práticas escolares.
volvimento da criança, áreas do conhecimento, O caso que será relatado representa o
brincar, letramento e alfabetização, organização exemplo de esforço da própria equipe em im-
do trabalho pedagógico na escola e avaliação. plementar uma proposta, ou seja, uma iniciativa
O documento chama a atenção para a apro- particular descolada do contexto da política
ximação de temas como alfabetização/letramento/ pública das demais escolas da rede estadual.
brincadeira, que, historicamente, estiveram distan-
ciados do currículo da escola. O brincar é tratado Escola de Aplicação da Universidade
como “um modo de estar no mundo (...) uma de São Paulo: contexto da pesquisa
expressão legítima e única da infância (...) um dos
princípios para a prática pedagógica”. A brincadei- Criada em 1959 pelo Instituto Nacional de
ra é entendida como “possibilidade para conhecer Estudos Pedagógicos (Inep) do Ministério da Edu-
mais as crianças e as infâncias que constituem cação e Cultura (MEC), a Escola de Aplicação da
os anos/séries iniciais do ensino fundamental de Faculdade de Educação da Universidade de São
nove anos”, e sugere-se que seja contemplada “nos Paulo, incorporada à Universidade de São Paulo
tempos e espaços da escola e das salas de aula”. em 1972, oferece ensino fundamental de nove
Ele aponta, ainda, como “incoerência pedagógica anos (desde 2006) e ensino médio (desde 1985).
a exclusividade da alfabetização no primeiro ano A Eafeusp, ao delinear, em 2005, um
do ensino fundamental em detrimento das demais plano de ensino apropriado para essa nova
áreas do conhecimento” (Brasil, 2006, p. 10). realidade, antecipou-se aos documentos oficiais:
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tempo e espaço das artes, do movimento, nos matemática, nas rodas de história e de novidades,
momentos para cantar, escrever e ler músicas. acrescidas de suportes culturais expressos nas
O parque e a horta criam oportunidades para artes, educação física, horta e cantoria. As crian-
socialização, explorações imaginárias e cien- ças têm direito aos brinquedos e brincadeiras na
tíficas, e os jogos podem ocorrer em qualquer brinquedoteca e no parque, espaços importantes
momento do tempo semanal, tendo espaços para observação de seus interesses e necessidades
específicos para seu uso. para ampliação de experiências.
Mediações entre crianças, adultos e ob- Quebra-se a cultura do confinamento das
jetos são previstas nos jogos de alfabetização e crianças (Perrotti, 1990) “apenas no interior da
BIBLIOTECA CADERNO DE
-Roda de PALAVRAS & RODA DE
14h00 – 14h30 CANTORIA
história HISTÓRIAS HISTÓRIA
-Leitura (Leitura)
ARTE
individual ou em
pequenos grupos
RODA DE PASTA DE
14h30 – 15h00 -Biblioteca HORTA
HISTÓRIA LEITURA
circulante
HISTÓRIA JOGO DE
MALUCA PROJETO
17h00 – 17h30 ALFABETIZAÇÃO
(Texto coletivo) JOGO
PROJETO MATEMÁTICO
RODA DE
17h30 – 18h00 ESPAÇOS LIEA
HISTÓRIA
OBS.: Quinzenalmente, as crianças visitam o Labrimp, nas quartas-feiras, das 14h às 15h ou das 16h às 17h.
Fonte: Registros da professora, 2010, p. 2.
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conhecimento do mundo, garantem momentos de se impõe como regra para o brincar imaginário.
pesquisa, vivência, conversas, registros e estudos A regra torna-se interna pela autodeterminação
que mobilizam a investigação e a aprendizagem. de ser mãe/pai, e a criança, menino ou menina,
aprende a controlar seus desejos imediatos, ge-
Atividade, jogo e mediação rando “o grande salto nesse desenvolvimento,
que é a separação entre ação e significado”
As concepções de atividade, jogo e media- (Vygotsky, 1978, p. 100). Nesse salto, o signi-
ção, na perspectiva sociocultural, podem esclarecer ficado passa a comandar a ação da criança,
os fundamentos do plano de ensino do 1º EF9 e transformando o cabo de vassoura em cavalo,
subsidiar a análise de suas práticas curriculares. a/o boneca/o em filha/o. Essa mudança é “o
O conceito de atividade deriva do ma- fator principal no desenvolvimento” (Vygotsky,
terialismo dialético e foi introduzido na teoria 1978, p. 101), que leva a construir novas funções
psicológica por Vygotsky, sendo posteriormente mentais, típicas da zona de desenvolvimento
analisado por Sergei L. Rubinshtein e Aleksei N. proximal. O desejo impossível de se tornar rea-
Leontiev. O termo atividade pode ser mais bem lidade, “o de ser mãe/pai”, é satisfeito no brincar,
compreendido na monografia de V. V. Davydov, quando se respeitam as regras sociais que defi-
Problems of developmental teaching, por ser con- nem esse papel. Utilizar regras no brincar é uma
siderada, pela editora Szekely, “o melhor trabalho constante em toda a infância e acompanha as
sobre a questão” (1988, p. 3). modalidades de brincar propostas por Vygotsky
Segundo Davydov (1988), o conceito de (1978). O papel das regras é fundamental no
atividade surgiu historicamente, com a atividade processo de aprendizagem, ao exigir percepção,
do trabalho produzido pelo homem, de reflexões memória, atenção e ações mentais integradas
sobre “transformações orientadas para metas e para buscar as representações simbólicas esco-
modificações (…) sobre a prática humana” (p. 9). lhidas pela própria criança para expressar na
A atividade relaciona-se com a representação, brincadeira. Neste processo, aprende-se a sim-
a consciência das necessidades e motivos inter- bolizar, a dar significado às coisas e situações.
nos do ser humano. O brincar, ao depender das No final da creche ou início do pré-escolar,
necessidades e motivações internas da criança, uma menina faz o bebê dormir, como vê a mãe
torna-se uma forma específica de atividade, mas fazer, como a situação observada em uma creche
que se diferencia do trabalho produtivo por ser japonesa, onde a menina gêmea nina duas bonecas
uma representação. ao mesmo tempo, com uma mão em cada “bebê”,
A relação entre o brincar e a atividade deitados nos acolchoados, lado a lado, utilizando
infantil é clara na teoria de Vygotsky (1978): “o “mais memória em ação do que nova situação
brincar como situação imaginária difere subs- imaginária” (Vygotsky, 1978, p. 103). Conforme a
tancialmente do trabalho e de outras formas de criança avança em seu desenvolvimento, os propó-
atividade” (p. 93), sendo uma das “subcategorias sitos aperfeiçoam-se e ela ganha em flexibilidade
do brincar” (p. 94), que implica ação mental de e criatividade, inserindo inúmeras situações na sua
tomada de consciência, “baseada em regras” (p. imaginação, e não apenas as próximas. Cada vez
98), que possibilita “a realização de tendências que mais a imaginação ganha poder: uma cadeira não
não podem ser imediatamente gratificadas” (p. 94). é apenas para sentar, mas também para dar a ma-
A brincadeira livre, ao exigir ações coe- madeira ao bebê e, depois, vira um trem. No final
rentes com o papel assumido, traz o constran- do período pré-escolar e início do fundamental, a
gimento, que se impõe como regra. O contexto imaginação é enriquecida com detalhes da vida
oferece um padrão da cultura que indica o papel cotidiana, exigindo que as ações sejam compatíveis
de ser mãe/pai, o modelo de representação que com os dados da realidade.
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da fantasia, onde lhe faz um penteado, coloca lenda e as crianças continuam, demonstrando
uma coroa e passa batom para que fique boni- que já faz parte do repertório da maioria delas.
ta. Pergunta quando ela volta e combina para “Dona Galinha” diz às crianças que está muito
sexta-feira, porque assim estará pronta para o triste porque perdeu seus dez ovinhos e suge-
fim de semana. Pouco depois, procura nova- re que os façam com massa de modelar para
mente a bolsista, alerta que ela está atrasada, ela chocar. As crianças aceitam a proposta e
pega-a pela mão e leva-a ao espelho, fazendo iniciam o trabalho. “Dona Galinha” confere a
novo penteado, com apliques coloridos, que diz produção, inicia a contagem: “1, 2...” e deixa
ter comprado porque, da outra vez, ela havia a criança finalizar. Às crianças que já tinham
comentado que gostaria de usá-los, mas esta- feito os dez ovinhos, Dona Galinha sugere a
vam em falta no salão. Tal sequência de atos construção de um ninho para acomodar os ovos,
aproxima-se de situações reais do cotidiano do enquanto circula pela sala para atender novas
salão de beleza (Relatório Labrimp, 27/03/2007). demandas (Registros da professora, 2010, p. 11).
Crianças do 1º EF9 criam situações imagi- O personagem “Dona Galinha”, no for-
nárias com riqueza de detalhes. Meninas brincam mato de um bicho de pelúcia que conversa com
na área do médico distribuindo papéis de médica, as crianças, dá suporte para a situação imagi-
assistente e paciente, com parto “cesária-normal”, nária, cria um clima de envolvimento, atenção
complicações do parto, com a boneca demorando e concentração, com várias linguagens: visual,
a chegar. Enquanto duas meninas brincam de tridimensional, matemática, verbal, acrescidas
organizar a vendinha e fazer compras, dois me- dos signos (cantar a parlenda, contagem e cons-
ninos fazem um assalto, criando tumulto, similar trução de ovos), que funcionam como apoios
aos da vida real (Relatório Labrimp 10/03/2010). externos para a compreensão da correspondência
Tais situações de brincadeiras mistas entre meni- numérica. A professora observa que a maioria
nos e meninas (Kishimoto, Ono, 2007) mostram a das crianças cantou a parlenda (a sonoridade
diversidade de papéis e temas que se aproximam e o ritmo usados na pronúncia dos números
do contexto real. auxiliam a representação dos ovos), modelou
A imaginação integra-se nas atividades os ovos e conferiu a quantidade pela contagem
planejadas. Não se trata de separar o lúdico até dez; outras perceberam o erro e fizeram
do não lúdico. A aproximação potencializa a os ajustes, conferindo com “Dona Galinha”; e
aprendizagem, como demonstra a atividade de poucas ficaram cantarolando sem usar a repre-
correspondência biunívoca na contagem até 10, sentação (Registros da professora, 2010, p. 12).
com a parlenda “A galinha do vizinho” e o jogo A consciência do significado dos números, que
“Caixa surpresa”, com uma galinha de pelúcia. se adquire no contexto da ação, é o que carac-
Diante das perguntas das crianças: “É um lá- teriza a atividade, na abordagem sociocultural
pis?”, “É um livro?”, as respostas da professora discutida por Vygotsky, Leontiev e Davydov, di-
restringiam o universo das possibilidades: “É ferindo de ações mecânicas e repetitivas, típicas
um animal”, “Não vive no mar”, “Tem duas de pedagogias transmissivas.
patas”, “Tem asas”, “Bota ovo”. Quando desco- Na brinquedoteca e nos “espaços”, as
brem que é uma galinha, a professora dá vida crianças realizam várias brincadeiras e ativi-
à galinha de pelúcia, que, no jogo simbólico, dades, como reler um livro da roda de leitura,
dialoga com as crianças: modelagem, desenho, recorte/colagem e jogos,
– “Nossa! Eu já não aguentava mais ficar como o quebra-cabeça, Lego educativo (conjunto
dentro dessa caixa!” de materiais exclusivos para educação), expres-
– “Tudo bem com vocês?” sando suas motivações internas e conduzindo
No diálogo, “Dona Galinha” inicia a par- suas próprias ações (Vygotsky, 1999, 1978).
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foco é a criatividade, a produção de histórias, acordo com o número sorteado pela professora.
que são sempre atos de significação (Bruner, Algumas não davam conta de separar os palitos
1997), em mundos imaginários (Bruner, 2002), dentro e fora do saco. Outras deixavam os palitos
que dão a base para a ampliação das experiên- amontoados, enfileirados ou agrupados de acordo
cias de letramento. com os valores sorteados no jogo. A maioria das
Um exemplo de uso de artefato da cul- crianças não conseguiu a mesma quantidade de
tura é o calendário, como comenta Gustavo: palitos, mesmo com a demonstração feita pela
“Prô, nós ficamos dois dias em casa” (Registros professora. Uma criança explica a razão desse
da professora, 2010, p. 2), antecipando a fala da fracasso: “Eles devem ter se distraído e pegado
professora para orientar a marcação do sábado mais palitos” (Registros da professora, 2010, p. 20).
e do domingo no calendário. Outra criança Nesta observação, a criança ressalta o papel da
comemora: “Falta só um dia para o Labrimp!” atenção e percepção para o sucesso na atividade.
(Registros da Professora, 2010, p. 4). A criança bem-sucedida nessa ação utiliza os
A marcação do calendário funciona como palitos como signos externos e mobiliza funções
signo (imagem visual), um suporte externo, que mentais superiores, de forma integrada, utilizando
auxilia a reflexão. A localização de datas (visita atenção, memória, percepção e ação motora para
ao Labrimp, aniversários das crianças) ajuda a pegar a quantidade correta de palitos (Vygotsky,
compreender a noção de tempo e a pontuação 1999). A demonstração da professora de separar
nos jogos, a contagem. os palitos não é suficiente para a aprendizagem,
Para o letramento matemático a profes- que requer a agência da criança, a consciência dos
sora aproveita o jogo das galinhas, organizando motivos internos que mobiliza a busca de metas
uma ficha com o desenho de duas galinhas e e objetivos para conduzir suas ações (Vygotsky,
seus respectivos ovos. Em duplas, cada aluno 1999; Clay, 1991; Bruner, 1976).
marca a quantidade de ovos que “sua” galinha Durante um jogo que exige o registro
botou, a partir de sorteios aleatórios. Ao término de pontos de três jogadores em uma mesma
do jogo, registram, com números, a quantidade tabela, perguntou-se como eles descobriram o
de ovos botados pela “sua” galinha. Para muitas vencedor. Algumas crianças tiveram dificuldade,
crianças o registro era um obstáculo, porém, na outras produziram sentenças matemáticas para
relação com seus parceiros ou com outras duplas, explicar os processos mentais utilizados para
superaram suas dificuldades, o que evidencia o definir o vencedor. Entre os signos criados pelas
importante papel da mediação entre crianças, os crianças, encontram-se sinais convencionais (3
sujeitos da ação (Vygotsky, 1999). Uma dupla + 5 + 2 = 10), marcas pessoais (3 – 5 – 2 dá 10)
recorreu ao cartaz da sala, com números de 0 e frases (3 mais 5 dá 8, mais 2 dá 10) (Registros
a 100, para descobrir como escrever o número da professora, 2010, p. 6).
17. Recitaram os números (auxílio mnemônico) Não é possível utilizar jogos sem a orga-
e descobriram a escrita do algarismo visuali- nização dos acervos, materiais e mobiliário, em
zando o cartaz. Outras duplas que observavam quantidade e qualidade para atender as turmas.
utilizaram a mesma estratégia. Notam-se, neste Mesas no formato de trapézio possibilitam a
caso, as mediações do objeto (cartela do jogo de reorganização do trabalho em pequeno ou gran-
duplas), dos signos (tabela de números da sala de grupo, e as cadeiras, na altura da criança
e a marcação mnemônica) e das crianças, as pequena, evitam que ela fique cansada, com as
três modalidades de mediações que se integram: perninhas balançando, ou seja obrigada a ficar
sujeito, objeto e signo (Vygotsky, 1999). de joelhos para ter melhor visibilidade do que
Em outro exemplo, as crianças separam ocorre na sala. O ambiente adequado (Montesso-
a quantidade de palitos dentro de um saco, de ri, 1936) para uma educação de qualidade inclui
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coisa mais científica, alguma informação”, ao Eu esperava que ele tivesse dificuldade, pois
mesmo tempo que conta “o quanto é divertido, o início na creche foi difícil; pelo contrário,
o quanto ela compartilhou com os amigos (...) ele me cobra todos os dias pra não chegar
nas atividades da sala ela menciona: ‘Ah, eu atrasado. Eu acho que eles ainda são muito
aprendi uma coisa... me ensinaram uma música’” novos e esse tempo pra brincar que ele já ti-
(Mãe 1, 2010). Outra mãe menciona a relevância nha na creche e que a EA agora proporciona
do parque para seu filho, como “a parte que ele é extremamente rico. (Mãe 2, 2008)
mais gosta”, argumentando que “ali ele está (...)
mais livre (...) ele está aprendendo (...) quando ele A valorização do lúdico como direito
fala sobre a amora do parque ‘que não dá o ano da criança é fundamental para uma profes-
inteiro’ e como ele discute ‘vários conteúdos, de sora da EA que acompanhava as crianças nas
uma simples pergunta’” (Mãe 2, 2010). visitas à brinquedoteca. Ela menciona que o
Mesmo para a criança que já chega “alfa- espaço lúdico garante “o direito da criança de
betizada”, há diferença de qualidade, menciona a ser criança, criando vínculos de amizade; com
mãe: “Antes de dormir, agora ela lê sozinha (...), liberdade para brincar (...), ela gosta do espaço
ela entrou com uma cabecinha ainda de creche, e arruma a sala, com prazer” (Labrimp, 2009,
de criancinha, e agora ela já tem autonomia, já p. 2). Uma mãe assegura: “Se todas as escolas
faz tudo sozinha” (Mãe 3, 2010). Menciona tam- pudessem ter este espaço, com certeza facilitaria
bém o sucesso do letramento: “no meio do ano o respeito pelo outro, pelo espaço utilizado (...)
ela já começou a ter iniciativa para fazer lições e deixar organizado, depois de brincar bastante
de casa, pra fazer o projeto, as pesquisas (...) ligar e desenvolver cada vez mais seu potencial” (La-
o computador. (...) ela já tem fluência na leitura, brimp, 2006, p. 1). A brinquedoteca na escola
antes eu lia para ela antes de dormir, agora ela lê pública deveria ser um espaço de empréstimo
sozinha. (Mãe 3, 2010) de brinquedos, de expressão da cultura lúdica
A transição tranquila dessas crianças para e de convivência entre crianças e famílias, en-
o ensino fundamental pode ser evidenciada pelo volvendo as famílias na educação das crianças.
depoimento de uma mãe que tem dois filhos na Um problema que já havia sido identifica-
Escola de Aplicação. O mais velho entrou com 7 do pela professora é apontado pelos pais e crian-
anos, antes da implantação do ensino fundamen- ças: o grande número de crianças e a dificuldade
tal de nove anos, e a filha cursou o primeiro ano para a professora atender as necessidades de cada
com 6 anos: uma, especialmente as mais tímidas. Segundo
um pai: “A única coisa que ela reclamava é que
[...] o meu outro filho ele já chegou alfabetiza- (...) quando ela levantava a mão, às vezes não
do e quando entrou aqui teve um choque, pois dava pra você ir atendê-la (...). Na escola onde
lá eles tinham um método e aqui era outro, ela estava, que era pequenininha, a professora ia
então foi difícil. Com ela já não aconteceu lá, atender quatro a cinco alunos” (Pai 6, 2010).
isso, ela não teve o trauma que ele teve, [...] Outra mãe é mais incisiva ao mencionar que,
ela aprendeu nesse primeiro ano mais do que para ampliar o letramento, é necessário “mais
ele no pré. Ele fazia cópia, usou a Caminho profissionais pois o número de crianças é muito
suave, com as famílias silábicas, ela não teve grande e precisaria de uma auxiliar dia a dia para
isso, mas o que ela aprendeu eu achei mais ser mais proveitoso” (Mãe 2, 2008).
consistente do que ele. (Mãe 4, 2008) Apesar da dificuldade de atender todas as
crianças, a avaliação do processo de escrita indica
Arguida sobre a adaptação da criança vinda da que elas conseguiram, por meio do jogo, ingres-
creche, uma mãe diz: sar no mundo letrado. O Quadro 2 classifica em
No. de crianças
Ano 2006 Ano 2007 Ano 2009 Ano 2010
por ano **
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motivos internos que levam à postulação de Uma escola em tempo integral, com agru-
objetivos e metas para solucionar problemas. pamentos menores ou mais profissionais, pode-
A restrição material também gera práticas diri- ria acrescentar qualidade ao trabalho, como é
gidas e expositivas, com pouco espaço para a prática usual em países com melhores índices
ação livre e investigativa da criança. de desenvolvimento humano.
No caso do 1º EF9, a produção de ma- Não se trata apenas de assegurar o di-
teriais, cartelas de jogos para cada criança, reito ao brincar às crianças de 6 anos, mas de
com o auxílio de funcionários e professoras, atender os pressupostos do Parecer do CNE/CEB
e a aquisição/doação de jogos pela escola e nº. 04/2008: “o desenvolvimento das diversas
pais garantiram a variedade e qualidade dos expressões e o aprendizado das áreas de conheci-
mesmos. Tais condições possibilitaram ativi- mento estabelecidas pelas Diretrizes Curriculares
dades individuais e coletivas, de tempos livres Nacionais para o Ensino Fundamental”. Essa
e dirigidos, configurando uma situação pouco tarefa requer clareza de propósito, trabalho co-
comum na rede pública, que sofre os efeitos laborativo, professores preparados, materiais para
da precariedade das condições de trabalho dos cada aluno, jogos diversos em todos os campos
profissionais e da falta de envolvimento dos do conhecimento e um plano curricular que os
pais, decorrente da cultura do individualismo integre, um desafio que resta a ser enfrentado na
fruto de inexistência de práticas colaborativas maioria das escolas da rede pública.
para a conexão com o ambiente mais amplo
(Hargreaves, Fullan, 2000). Reflexões finais
Outro fator essencial para um projeto
pedagógico que inclui o brincar (Brasil, 2006) é A experiência desenvolvida na Eafeusp
o conhecimento sobre o jogo e a aprendizagem, revela-se como uma possibilidade de enfrenta-
o que implica a contínua formação profissional mento dos imensos desafios para a superação
para garantir a práxis, entendida como os “fa- dos desalinhos entre o que propõe a lei e o que
zeres” que incluem a reflexão, a investigação e se realiza na prática curricular.
as ações morais e justas (Kemmis, Smith, 2008). É preciso ter clareza de que, para além de
As professoras da rede pública mencionam a promover importantes ajustes no plano de ensino
dificuldade de formação no campo lúdico. Os para as classes de 1ºEF9 destinadas às crianças de
poucos conhecimentos partilhados pelas pro- 6 anos, é fundamental a construção e implemen-
fessoras, que “vão se virando”, inviabilizam tação de um projeto pedagógico próprio da insti-
uma prática de qualidade (Morgado, 2006), tuição, que abranja a educação básica como um
mostrando que a formação continuada está em todo, no sentido de garantir integração ao processo
completo desalinho na rede pública. escolar, tal como pretendido nas Diretrizes Curri-
A pesquisa traz indícios sobre a exigên- culares Nacionais Gerais para a Educação Básica
cia de uma mediação mais individualizada nas de 2010. Trata-se de um investimento desafiador,
situações de jogo. Salas com 30 crianças e um posto que implica mobilização de toda a equipe
adulto não representam um contexto favorável escolar na revisão das concepções que devem nor-
ao cumprimento da demanda de atenção indi- tear as práticas educativas, tais como: educação,
vidualizada e mediação, como mencionam seus escola, conhecimento e aprendizagem.
usuários. Opondo-se à tradição verbalista, o uso No plano das políticas públicas, o estudo
dos jogos requer a agência da criança, disponi- ressalta dois tipos de desalinhos estreitamente
bilidade de tempo, espaço, materiais e parceiros relacionados. O primeiro diz respeito às questões
para que funções mentais sejam mobilizadas para estruturais das escolas para receber crianças de
solucionar problemas. 6 anos. A falta de atenção às condições dos
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RELATÓRIO LABRIMP. FEUSP: 2006, 2007, 2008, 2009, 2010.
Tizuko Morchida Kishimoto é professora titular da FEUSP. Presidente da Comissão de Cooperação Internacional. Coordenadora
do Labrimp, do Museu da Educação e do Brinquedo e do Grupo de Pesquisa Contextos Integrados de Educação Infantil. Membro
do International Toy Research Association.
Mônica Appezzato Pinazza é professora doutora da FEUSP. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Contextos Integrados de
Educação Infantil. Representante brasileira na European Early Childhood Education Research Association. E-mail: mapin@usp.br
Rosana de Fátima Cardoso Morgado é graduada em pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
Atualmente é educadora da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: rfcmorga@usp.br
Kamila Rumi Toyofuki é graduada em pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente é
educadora da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: kamilarumi@gmail.com