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OS PEQUENOS SUJEITOS DA LUTA PELA

TERRA: EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR


NA CIRANDA INFANTIL DO MST

Fábio Accardo de Freitas1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a prática educativa com as crianças na
Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira do Movimento de Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) a partir da Sociologia da Infância e da Educação Popular. As
crianças são o ponto de partida da prática educativa, e da análise realizada, uma vez que são
reconhecidas como sujeitos da história, atores no mundo e protagonistas da luta pela terra.
A análise partiu da minha participação como educador-pesquisador na Ciranda Infantil
do pré-assentamento e dos relatos de atividades do coletivo de extensão Universidade
Popular, utilizados como fonte da pesquisa. Os relatos apresentam o protagonismo das
crianças como sujeitos no mundo e produtoras de culturas infantis (FERNANDES, 2004;
CORSARO, 2011). Como espaço de educação das crianças Sem Terrinhas, a Ciranda
Infantil insere-se na trajetória da Educação Popular, coloca o movimento social como
espaço e princípio educativo de formação dos sujeitos, garante espaço de encontro do
coletivo infantil e reconhece as crianças enquanto pequenos sujeitos da luta pela terra,
elementos que contribuem para caracterizá-la como uma experiência de Educação Infantil
Popular.
PALAVRAS-CHAVE: Criança; Infância; Culturas Infantis; Sociologia da Infância;
Educação Infantil Popular; Movimento Social; Ciranda Infantil.

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, na linha de Conhecimento e
Inclusão Social, na Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: fabioaccardo@gmail.com
88 Fábio Accardo de Freitas

THE SMALL SUBJECTS OF THE FIGHT


FOR THE EARTH: POPULAR CHILDREN
EDUCATION IN THE CHILDREN’S SURGERY
OF THE MST

ABSTRACT: This article aims to analyze the educational practice with children in the
Ciranda Infantil of the pre-settlement Elizabeth Teixeira of the Movement of Landless
Rural Workers (MST) from the Sociology of Childhood and Popular Education. The
children are the basis of educational practice, and in the analysis performed, once they
are recognized as subjects of history, actors in the world and protagonists in the struggle
for land. The analysis was based on my participation as an educator-researcher in the
Ciranda Infantil of the pre-settlement and in the reports of activities of the Popular
University extension group, that was used as the research source. The reports present
the protagonism of children as subjects in the world and producers of children’s cultures
(FERNANDES, 2004; CORSARO, 2011). As a educacional space of the children without
landmarkers, the Ciranda Infantil inserts itself into the Popular Education trajectory,
set the social movement as a space and educational principle for the formation of the
subjects, guarantees the space for the children’s collective meeting and recognizes children
as small subjects of the struggle for land, elements that contribute to characterize it as an
experience of Popular Children’s Education.
KEYWORDS: Children, Childhood, Peers Cultures, Sociology of Childhood, Popular
Early Childhood Education, Social Movement, Ciranda Infantil.

INTRODUÇÃO

As reflexões presentes neste artigo iniciam antes da própria escrita


deste texto. Tem início com o trabalho sistemático com as crianças Sem
Terrinha2, de onde surgiram as questões que permeiam o artigo, e no qual
o autor atuou como educador infantil. É assim, antes, uma reflexão a partir
da prática educativa com as crianças, como práxis, na qual prática e teoria
vão se modificando constantemente.
2
Sem Terrinha é a identidade coletiva das crianças que participam do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. Surgiu por iniciativa das crianças que participaram do Primeiro
Encontro Estadual das Crianças Sem Terra do Estado de São Paulo, em 1996 (RAMOS, 1999).

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Como educador infantil desde o ano de 2009 na Ciranda Infantil


do pré-assentamento Elizabeth Teixeira pertencente ao Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), me propus a um esforço de
reflexão sobre a prática coletiva de educação que o Coletivo Universidade
Popular (UP) realizava junto ao pré-assentamento, na tentativa de
responder alguns questionamentos suscitados pela experiência com os
pequenos sujeitos daquele espaço educativo.
Esse novo lugar de educador-pesquisador, construído a partir da
minha inserção no mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp3 e,
ao mesmo tempo, no curso de especialização em Educação do Campo e
Agroecologia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP) em parceria do MST, me recolocou questionamentos que surgiram
nesses quase oito anos de atuação ali no pré-assentamento: que tipo de
educação infantil se faz necessário na realidade da luta pela terra? Que
pedagogia o MST tem pensado e praticado nos espaços educativos para
as crianças Sem Terrinha? De que maneira faz sentido, hoje, a Educação
Popular como prática pedagógica da educação infantil?
E, do mesmo modo, ao olhar para a infância Sem Terra e o lugar
que ocupa a Ciranda Infantil dentro do MST, outros questionamentos
foram levantados sobre as crianças que participam desse espaço: que
infância vivem e compartilham? Como a estrutura da sociedade brasileira
configura a experiência de infância das crianças Sem Terrinhas? De que
maneira ela nos recoloca a necessidade de modificar nosso olhar para a
infância? Que culturas infantis produzem e compartilham? Este artigo não
tem pretensão de conseguir dar respostas a todas estas perguntas, mas elas
foram essenciais para estabelecer o foco e caminhos da pesquisa realizada.

3
Mestrado realizado junto ao grupo de pesquisa GEPEDISC – Culturas Infantis que vem
produzindo pesquisas sobre experiências de educação infantil com as classes populares,
evidenciando a produção das culturas infantis e as experiências de infância das crianças que são
atravessadas pelas questões de raça, etnia, gênero e classe social.

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PERCORRENDO OS CAMINHOS DA PESQUISA

As crianças sempre foram as minhas interlocutoras da vida no


pré-assentamento Elizabeth Teixeira. Antes de vestir-me do papel de
pesquisador, eu sempre fui educador infantil ali. E, como educador, me
fiz pesquisador. Porque assim somos. Não há modo de ser educador sem
ser pesquisador, sem conhecer a realidade, sem estar no mundo disposto
a refletir sobre ele e ao mesmo tempo modificá-lo. Educação é antes de
tudo práxis, ação e reflexão, como processo coletivo. Eu e as crianças
fomos assim descobrindo o mundo. Na relação com elas fui apreendendo a
realidade em que viviam. E é dessa posição de educador-pesquisador que
brotam as palavras deste trabalho.
A pesquisa teve como objeto de análise a prática educativa da Ciranda
Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira4 localizado no município
de Limeira, estado de São Paulo. Hoje vivem no pré-assentamento cerca de
60 crianças filhos e filhas das 100 famílias que compõem a comunidade.5
A Ciranda Infantil do pré-assentamento se constituiu como espaço
educativo e de encontro das crianças da comunidade. Ali as educadoras e
educadores do Coletivo Universidade Popular (UP)6 foram experienciando
com as crianças a construção dessa prática educativa coletiva. O UP, desde
que iniciara as atividades de educação junto ao MST, havia se dedicado à
leitura, formação e estudos coletivos sobre Educação Popular. Contudo, a
Educação Popular parecia não falar sobre as crianças e nos perguntávamos
o porquê desse silêncio.

4
O nome do pré-assentamento foi escolhido em homenagem a Elizabeth Teixeira (1925-),
mulher, militante e liderança da Liga Camponesa de Sapé, no estado da Paraíba.
5
Sobre o histórico da luta pela área e a constituição do pré-assentamento ver as dissertações de
Rodrigo Taufic (2014) e Gabriela Furlan Carcaioli (2014).
6
A Universidade Popular foi um coletivo de extensão da Unicamp que realizava trabalhados na
área da educação junto ao MST na região de Campinas, principalmente no pré-assentamento
Elizabeth Teixeira. Para o histórico do coletivo e das atividades realizadas, ver livro “Na
autonomia do povo, o poder popular: experiências com Educação Popular no acampamento
Elizabeth Teixeira”, de organização do Coletivo Universidade Popular e lançado em abril de
2015.

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Tem sido um esforço coletivo, teórico e prático, nesses últimos


dez anos, a tentativa de construir o espaço da Ciranda Infantil a partir
da proposta do MST, de maneira que se pudesse dialogar com as
concepções da Educação Popular. Como práxis, a prática e a teoria foram
se modificando, uma vez que a teoria não dava conta do trabalho com
as crianças, de entendê-las em sua complexidade. Da mesma maneira, a
prática evidenciava a necessidade de buscar outras teorias que pudessem
abarcar o silêncio que a Educação Popular deixava.
Durante a pesquisa, entre o mestrado e a especialização, pude me
dedicar a leituras que confirmaram o que a realidade me mostrava: as
crianças como sujeitos da sociedade. Diante disso, busquei dialogar as
teorias do campo da Sociologia da Infância, que colocam em evidência as
crianças como protagonistas no mundo, com as reflexões e experiências da
Educação Popular, que destacam o papel dos homens, mulheres e crianças
como sujeitos da práxis educativa e sujeitos da história.
O mestrado e a especialização possibilitaram adensar as reflexões
sobre a nossa prática de educação infantil. Analisei as condições materiais
concretas que possibilitaram a construção da experiência da Ciranda
Infantil no pré-assentamento, assim como refleti sobre o modo de
funcionamento da prática educativa ali realizada, evidenciando a maneira
como possibilitava às crianças serem sujeitos do seu processo de conhecer
e transformar o mundo.
A partir disso, pude situar a nossa prática de educação infantil
na história, como uma experiência de Educação Popular. Para isso foi
necessário dedicar-me a leituras que me ajudassem a visualizar a trajetória
histórica da Educação Popular brasileira, trazendo elementos para analisar
a experiência da Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira.
A trajetória traçada na dissertação partiu da escolha de olhar para a
experiência histórica da Educação Popular no Brasil considerando alguns
autores e autoras (BRANDÃO, 2002; FÁVERO, 1983; GHIRALDELLI,
1986; PALUDO, 2001) que demarcaram pelo menos três momentos
específicos dentro da história brasileira nos quais surgiram propostas

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de educação a partir dos interesses das classes populares7: as propostas


alternativas de educação dos socialistas, anarquistas e comunistas na
Primeira República; os movimentos de cultura popular na década de 1960
e a proposta pedagógica de Paulo Freire como expressão dessa época; e a
educação dos movimentos sociais populares a partir dos anos 1980.
A atualidade da Educação Popular pode ser compreendida a
partir de dois elementos: a sua trajetória histórica como concepção de
educação vinculada à luta de classes ao lado dos interesses e projetos da
classe trabalhadora; e como proposta dentro de como tem se expressado
o antagonismo de classes no contexto atual da educação da sociedade
brasileira. Nesse sentido, a experiência da Pedagogia do Movimento,
que tomo como exemplo das propostas educativas pelos movimentos
sociais populares a partir dos anos 1980 até hoje, retomam a trajetória da
Educação Popular para pensar o contexto atual das mobilizações da luta
pela terra no Brasil.
Esse olhar panorâmico me ajudou a constatar que a preocupação
com as especificidades da educação das crianças não tivera centralidade
nos debates da Educação Popular, assim como apareceram esporádica
e marginalmente nas experiências abordadas. Ao ressaltar esse silêncio
da Educação Popular perante à educação infantil, busquei olhar para a
experiência concreta da Ciranda Infantil do pré-assentamento buscando
elementos que me ajudasse a analisá-la diante desse diálogo entre a
educação infantil e a Educação Popular.
Assim, este artigo parte das discussões realizadas em minha
dissertação de mestrado (FREITAS, 2015a) e trabalho de especialização
(FREITAS, 2015b) e tem como objetivo analisar a prática educativa com
as crianças na Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira a
fim de evidenciar elementos que nos ajudam a caracterizá-la como uma
experiência de Educação Infantil Popular. Dessa maneira, apresentamos
a Ciranda Infantil como espaço de encontro do coletivo infantil e como
7
Não me atentarei neste texto a explicar cada um dos momentos da história da Educação
Popular brasileira. Os autores e autora citados se dedicaram a esse trabalho, assim como na
minha dissertação de mestrado dedico um capítulo para análise dessas propostas educativas
tentando vinculá-las com a proposta da Ciranda Infantil do MST.

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espaço de produção de culturas infantis, que tem reconhecido as crianças


como sujeitos da história, produtoras de culturas infantis e protagonistas
na luta pela terra.

MOVIMENTO SOCIAL COMO PRINCÍPIO PEDAGÓGICO

A Pedagogia do Movimento, sistematizada por Roseli Caldart


(2012), coloca os movimentos sociais como espaço e princípio educativo
de formação dos sujeitos sociais coletivos, ou seja, os sujeitos que fazem
parte do Movimento Sem Terra, ao participarem de uma ocupação de
terra, ao formarem os acampamentos, resistirem na terra para serem
assentados, conquistarem a área ocupada, conquistarem escolas para os
assentamentos, etc, participam de processos socioculturais intensos que
marcam a trajetória desses sujeitos, e que são vistos, ao mesmo tempo,
como processos educativos.

A formação dos sem-terra, pois, não se dá pela assimilação de


discursos mas, fundamentalmente, pela vivência pessoal em
ações de luta, cuja força educativa costuma ser proporcional
ao grau de ruptura que estabelece com padrões anteriores de
existência social desses trabalhadores e dessas trabalhadoras
da terra, exatamente porque isso exige a elaboração de novas
sínteses culturais (CALDART, 2012, p. 166).

A experiência da luta social marca profundamente os sujeitos,


modificando seu jeito de ser, de se relacionar com as pessoas e de pensar
o mundo. Possibilita às mulheres, crianças e homens a produção de
utopias, de projetar futuros ao construir e recontar a história de uma nova
maneira. Contudo, a luta não se luta sozinha, luta-se em coletividade e ao
organizarem-se os sujeitos se educam e se transformam na coletividade em
movimento. As práticas sociais coletivas vão criando e recriando relações
sociais de nova ordem distintas daquelas anteriores da entrada dos sujeitos
para a dinâmica da luta pela terra.

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Essa experiência de participação em um movimento social


como o MST produz aprendizados coletivos que, aos poucos,
se conformam em cultura, naquele sentido de jeito de ser, de
hábitos, de postura, de convicções, de valores, de expressões,
de vida social produzida em movimento e que já extrapolam os
limites desse grupo social específico. (CALDART, 2012, p.
166)

Cultura é entendida aqui como produção material de existência,


como conjunto de práticas sociais e de experiências humanas que vão se
constituindo como um modo de vida em que os sujeitos produzem o seu
mundo e, ao produzi-lo, produzem a si mesmos. Ao produzirem a sua
existência material, ou seja, as condições necessárias para a sua reprodução,
produzem o mundo pelo seu trabalho, constituindo-o tanto materialmente
como simbolicamente.
Essa relação coloca para os sujeitos que as coisas no mundo não
nascem prontas, elas são construídas, produzidas, cultivadas. E é pelo
trabalho, como princípio ontológico, que crianças, mulheres e homens
trabalham a terra, produzem o mundo, transformam, assim, a realidade,
transformando também a história. Dessa maneira, compreendem que
cada ação, situação, luta, etc se insere dentro de um movimento complexo
entre passado, presente e futuro, e que os sujeitos, o Movimento e as lutas
fazem parte de uma história mais ampla.
Contudo, não podemos pensar que os sujeitos da luta pela terra são
somente os adultos. A luta pela terra é a vivência de uma luta em família,
em que as crianças estão incluídas e participam conjuntamente com mães
e pais dos processos de ocupação, acampamento, resistência e conquista
da terra. A luta vira cotidiano dessas famílias e também das crianças.

Neste sentido, a luta social na vida destas crianças passa


a fazer parte do seu cotidiano. É a materialidade e a
historicidade da luta da qual as crianças participam que
educa, é o próprio movimento da luta concreta, em suas
contradições, enfrentamentos, idas e vindas, conquistas e
derrotas. (ROSSETTO, 2009, p. 79)

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Ao tomarmos as crianças como participantes desses processos de


luta, podemos pensar que infâncias as crianças Sem Terrinha experienciam
nos diversos acampamentos e assentamentos rurais por todo o Brasil,
analisando que características marcam a sua experiência de infância.
Para o sociólogo da infância Jens Qvortrup (2011) é necessário
observar a relação entre a infância e as forças estruturais da sociedade, uma
vez que a infância como categoria estrutural influencia e é influenciada por
diversos fatores e categorias sociais. A economia, a política, as categorias
como classe social, gênero, etnia, se relacionam com a categoria geracional
da infância e essa relação configura as experiências de infância vividas
pelas crianças em diversos lugares da sociedade.
Isso nos ajuda a pensar a infância Sem Terrinha em termos
estruturais sendo determinada, ademais de outros fatores, pela posição
periférica da economia brasileira no capitalismo mundial, que configura
a questão agrária brasileira e o modo pelo qual as populações do campo
vivem. Ao mesmo tempo que essa experiência de infância é configurada
pela vivência dos processos de luta que participam fazendo parte de um
movimento social como o MST.
As crianças do pré-assentamento Elizabeth Teixeira vivenciaram
todo o processo de ocupação e resistência da área que marcam a experiência
de infância que carregam. As crianças expressam sua experiência de
infância do campo e sua cultura nas atividades da Ciranda Infantil. Como
práticas culturais cotidianas, as crianças transformam a sua realidade em
brincadeiras.

(…) Chegou o Cabecinha8 com um helicóptero de brinquedo


preso em uma vara de pescar. Pronto, conversamos sobre o
helicóptero, se eles já tinham visto e todos começaram a falar
sobre o despejo, sobre o medo, que eles se machucaram,
as crianças no barracão e logo começaram a brincar com
8
Os nomes das educadoras e educadores, adultos e das crianças em todos os relatos são
fictícios. Os nomes das crianças são nomes escolhidos por elas de como gostariam de ser
reconhecidas na pesquisa. Inventei nomes para aquelas crianças que já não vivem mais na
comunidade. Educadoras, educadores, assentadas e assentados também escolheram os nomes
fictícios para os relatos.

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o helicóptero de brinquedo. Um segurava e o fazia voar,


enquanto todos os outros tentavam escapar. Não podíamos
encostar no brinquedo pois sairíamos da brincadeira.
Quando as outras crianças chegaram, a brincadeira
continuou e cresceu. Quem era atingido caía no chão e teria
que ser resgatados pelos outros. A pessoa era carregada
e levada para o “hospital”, onde fazíamos massagem
cardíaca e cocegas. (Relato de atividade da Ciranda Infantil,
30/07/2011)

O despejo é um fato marcante na história de qualquer acampamento


no processo de luta pela terra. As assentadas e assentados do pré-
assentamento Elizabeth Teixeira lembram-se e contam as cenas que
vivenciaram naquele que foi considerado como um dos despejos mais
violentos do estado de São Paulo.
As crianças também contam as lembranças que ficaram marcadas
na memória: para segurança delas, no dia marcado para a reintegração
de posse, as crianças foram colocadas em um barracão coletivo distante
da área de confronto com a polícia, contudo, policiais e o helicóptero da
polícia atacaram aquele barracão que começou a pegar fogo e as famílias
tiveram que socorrer as crianças.

Meu irmão estava dentro do carrinho. Aí, minha mãe me


chamou lá em cima, aí quase acertou uma bomba no carrinho
do meu irmão. Ainda bem que minha mãe tirou meu irmão
porque até jogou o carrinho do meu irmão. (Clara, 12 anos)

A bomba caiu debaixo do carrinho da mãe dela. O padrasto


dela foi lá, pegou o bebe e o carrinho voou pra cima.
(Manoel, 12 anos)9

9
As falas de Clara e Manoel foram retiradas do curta-metragem Entre Terras e Céus, que
acompanhou a história do pré-assentamento Elizabeth Teixeira a partir dos relatos das próprias
acampadas e acampados. Fizeram parte da produção do vídeo Raquel Minako e Andréa Bertelli,
que na época eram estudantes de pedagogia e ciências sociais da Unicamp e educadoras infantis
na Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira. Acessar ao vídeo em: https://
www.youtube.com/watch?v=rQ8uAXV7U3o

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Não gosto nem de ouvir falar desse assunto. Não consigo.


Só de pensar meu corpo já treme todo. (Pedro, 9 anos)10

Esses relatos, trazidos tanto nas brincadeiras na Ciranda Infantil


como nas falas da memória do despejo, mostram que as experiências pelas
quais passaram as crianças ficaram marcadas na sua história e na leitura do
mundo que elas fazem.
A Ciranda Infantil é esse espaço das crianças serem sujeitos do pré-
assentamento. Como espaço educativo para as crianças Sem Terrinhas,
cria-se um lugar de encontro do coletivo infantil dos acampamentos e
assentamentos para as crianças poderem se reconhecer entre elas nas
experiências que compartilham, de criarem identidade com a luta da qual
fazem parte e onde elas tem a liberdade para vivenciar essa etapa da vida
como crianças, brincando e expressando seu mundo através das culturas
infantis.
Nos momentos educativos da Ciranda Infantil, são as crianças
que nos revelam o cotidiano do que acontece no pré-assentamento.
As educadoras e educadores do coletivo Universidade Popular foram
aprendendo a usar esses elementos trazidos pelas crianças nas falas e
brincadeiras como temas para as atividades na Ciranda Infantil.
Entendemos que as crianças são as nossas interlocutoras com a
vida do assentamento e as informantes sobre os acontecimentos de lá.
Elas trazem essa leitura do mundo delas, da realidade imediata, vivenciada,
cheia de elementos que se pode utilizar nas atividades e brincadeiras. As
crianças foram se tornando, para nós, os sujeitos daquele pré-assentamento,
interpretando à sua maneira a realidade em que vivem.
Além disso, a Ciranda Infantil é um espaço de auto-organização
das crianças, em que podem ao seu modo vivenciar momentos coletivos
de decisão e organização das atividades, do espaço, do café da manhã,
etc. As Sem Terrinhas do pré-assentamento Elizabeth Teixeira por muitas
vezes utilizaram o momento da Ciranda para fazerem as suas assembleias

10
Esse depoimento de Pedro foi dado a mim em uma das atividades da Ciranda Infantil no
final do ano de 2014.

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infantis, debatendo as atividades que gostariam de fazer, como seria o


cronograma de atividades do dia, etc.
Numa dessas assembleias decidiram realizar uma marcha das crianças
em solidariedade à possibilidade de despejo de um assentamento vizinho.
Em uma das atividades da Ciranda Infantil sobre o tema das crianças
palestinas elas lembraram do despejo que vivenciaram e começaram a
comentar sobre a luta das famílias em resistência ao possível despejo do
assentamento Milton Santos, localizado no município de Americana - SP.
As crianças se sensibilizaram, demonstrando sentimento de
indignação e inconformidade com a situação das crianças palestinas e com
a possibilidade de despejo no assentamento Milton Santos.

(…) um dos primeiros valores que se cultiva na situação


de acampamento é o da solidariedade, exatamente o valor
que fundamenta a ética comunitária. Solidarizar-se com o
outro não é, nessa circunstância, uma intenção, mas uma
necessidade prática: (…) e o principal argumento da necessidade
talvez seja o de que a vitória virá para todos, ou não virá
para ninguém. Ou seja, a condição gera a necessidade de
aprender a ser solidário e a olhar para a realidade desde a
ótica do coletivo e não de cada indivíduo ou cada família
isoladamente. (CALDART, 2012, p.182)

Lembrando da manifestação das crianças palestinas11, as crianças


do pré-assentamento propuseram construir uma manifestação em
solidariedade às crianças e famílias do Assentamento Milton Santos. A
partir das discussões entre as crianças decidiu-se como ato caminhar pelas
ruas do pré-assentamento com cartazes, cantando uma música e tocando
tambores. Planejaram toda a marcha e compuseram sozinhas a música/
palavra de ordem que iam gritar durante a marcha.

11
Manifestações das crianças palestinas soltando pipas, pedindo paz e o fim do massacre ao povo
palestino na faixa de Gaza, ver em: https://pimentacomlimao.wordpress.com/2010/08/01/
a-esperanca-colore-o-ceu-de-gaza/

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A-a-a, Milton Santos vai ganhar!


E-e-e-, família Abdalla vai perder!
A-a-a, essa luta vai vingar!
I-i-i, Milton Santos vem aí!!! (Gravação do autor)

As crianças Sem Terrinha queriam divulgar o ato delas para mais


pessoas se solidarizarem com a luta do Milton Santos. Assim, durante esse
processo registramos em vídeo algumas conversas com as crianças e partes
da marcha que fizemos. Como elas haviam planejado, posteriormente o
vídeo12 foi editado e divulgado na internet.

- Bruna, o que você está fazendo?


- Escrevendo “Milton Santos vai ganhar e família Abdala
vai perder”.
- E porque você está escrevendo isso?
- Para ajudar lá...
- Para ajudar lá onde? No Milton Santos?
- Aham!
- E o que está acontecendo lá no Milton Santos?
- Despejo
- Porque é o despejo?
- Por causa da família Abdalla
- E o que a família Abdalla tem a ver com o Milton Santos?
- É porque a família Abdalla não pagava impostos e o
governou pegou um pouco mais da terra que tinha que
pegar, da terra deles. Agora eles querem a terra tudo de
volta.
- E você acha que isso é certo?
- É tudo errado, por causa de que uma pessoa tem que ficar
com um bocado de terra e as outras tem que ficar sem nada.
- E daí que vocês vão fazer aqui hoje?
- Tipo um mutirão para ajudar lá.
- E o que você está fazendo agora?
- Fazendo cartaz pra gente andar.

12
O vídeo “Manifestação de apoio ao assentamento Milton Santos, Sem
Terrinhas do Elizabeth Teixeira” está disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=ciAZzr0DQvk&feature=youtu.be.

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- E aquelas latas que o pessoal trouxe?


- Para batucar…fazer batuque
(ACAMPAMENTO ELIZABETH TEIXEIRA, 2015)

Terminado o processo de confecção dos cartazes e latas para a


batucada, saímos andando pelas ruas de terra do assentamento carregando
as faixas com os dizeres: “Milton Santos vai ganhar”. Queriam chamar a
atenção das famílias assentadas do pré-assentamento Elizabeth Teixeira.

(…) mas na verdade são episódios como este que nos


permitem pensar em detalhes decisivos na conformação
de um jeito de ser humano, o ser humano que sabe contestar.
O sentimento de indignação contra as injustiças é condição
para a postura de contestação social. E para indignar-se é
preciso percebê-las como tal. Parafraseando Thompson:
que as crianças sem-terra sintam essas injustiças – e as sintam
apaixonadamente – é, em si, um fato suficientemente importante para
merecer nossa atenção. (CALDART, 2012, p. 343, grifos no
original)

As crianças, ao utilizarem o espaço da Ciranda Infantil para se


solidarizarem com outras crianças e famílias do assentamento vizinho,
tiveram liberdade de criar coletivamente, à sua maneira, como queriam
manifestar a injustiça que sentiam em relação àquela situação que elas
próprias também já haviam vivenciado. Conversando, brincando, sendo
crianças, organizaram política e esteticamente a marcha das crianças do
pré-assentamento Elizabeth Teixeira.
A vivência de novas relações e novos modos de organizar a vida
proporcionadas pela experiência que as crianças compartilham com pais e
mães dentro do Movimento Sem Terra, são por elas captadas e utilizados
ao seu modo, para seus interesses e como elas próprias conseguem se
organizar e compreender o mundo.
Essa parece ser a potencialidade de uma prática educativa com
as crianças inserida em um movimento social organizado, uma vez que
as atividades, aprendizados, brincadeiras, partem da realidade imediata

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Os pequenos sujeitos da luta... 101

delas, onde as próprias crianças leem seu mundo e falam sobre ele,
reinventando-o e redescobrindo-o nas brincadeiras, numa tentativa de
reelaborar coletivamente as suas experiências de infância, criando uma
identidade coletiva com o processo de luta em que vivem e um respeito
pela história de resistência que constroem.
A Ciranda Infantil, ao estar vinculada ao cotidiano do pré-
assentamento, possibilita um espaço educativo como extensão da vida e,
por isso, preocupado com a liberdade das crianças de brincar, de produzir
culturas infantis no compartilhamento dessa cultura do cotidiano e
como experiência histórica que as constitui – como sujeitos da história,
protagonistas da luta pela terra e da transformação do mundo.

CIRANDA INFANTIL COMO ESPAÇO DE ENCONTRO DO


COLETIVO INFANTIL

Assim como ocorre no pré-assentamento Elizabeth Teixeira, na


trajetória histórica de constituição do Movimento, as crianças foram se
fazendo presentes, modificando o olhar do próprio MST em relação a elas
e ocupando seus lugares dentro do Movimento.
Nesse percurso passaram de testemunhas da luta, para crianças acampadas
ou crianças assentadas; e, por fim, ao mostrarem as suas necessidades e suas
demandas modificaram a percepção do Movimento e vêm conquistando
seu lugar como protagonistas e sujeitos da luta pela terra (CALDART, 2012).
Fora necessário muito choro, birra, gritos, brincadeiras e mobilizações
infantis, para que o MST as enxergassem como sujeitos e protagonistas
da luta pela terra.

Ao participar da luta pela terra junto com seus pais, as


crianças do MST passam a ser sujeitos construtores de um
processo transformador, a ter ideais, projetos de futuro,
perspectivas de vida, tendo como referência a coletividade.
A criança Sem Terra, no MST, passou a ser considerada
um ser social que integra a totalidade de um projeto em
construção. (ROSSETTO, 2009, p. 39)

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


102 Fábio Accardo de Freitas

Se as crianças conquistaram dentro do MST seu espaço, isso é fruto


do protagonismo das próprias crianças, junto a suas mães, pais e educadoras
e educadores. Nesses trinta e quatro anos de história do MST, pouco a pouco,
as crianças foram conquistando seu lugar a partir das suas necessidades,
reivindicações e sonhos. As escolas dos assentamentos, as escolas itinerantes e
as Cirandas Infantis são conquistas das próprias crianças, que fizeram suas vozes
valerem, fazendo o Movimento repensar quem eram essas crianças dentro da
própria organização.
As crianças sempre estiveram presentes na luta pela terra. A presença
delas nos acampamentos e assentamentos impõe ao Movimento que dê
respostas às necessidades dos sujeitos envolvidos. No caso das crianças,
o cuidado, alimentação e educação são necessidades básicas com as quais
tiveram que lidar desde o início do MST.

A luta pela terra é uma luta em família, e a presença das


crianças cria novas necessidades para a organização do
movimento. Assim, o espaço e a vivência no acampamento
passam, obrigatoriamente, a envolver não somente adultos,
mas, necessariamente, novos sujeitos: as crianças. Todo esse
processo vai materializando a preocupação do Movimento e
do Setor de Educação com esses novos sujeitos, que não são
passivos, muito pelo contrário, aprendem a mobilizar-se e a
indignar-se com o sofrimento e a luta de seus pais e passam,
também, a incorporá-la; certamente que não na mesma
dimensão que os adultos. (ALVES apud ROSSETTO, 2009,
p. 81)

Edna Rossetto (2009), em sua dissertação de mestrado, conta a


trajetória da preocupação do MST pelas crianças. A autora nos mostra
como, no processo de construção do próprio Movimento, vai se gestando
a proposta de educação do MST que inclui também uma proposta de
educação para as crianças.

A educação entrou na agenda do Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pela infância. Antes

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 103

mesmo da sua fundação, ocorrida em 1984, as famílias Sem


Terra, acampadas na Encruzilhada Natalino, Rio Grande do
Sul (1981), perceberam a educação da infância como uma
questão, um desafio. (KOLLING, VARGAS e CALDART,
2013, p. 500)

Isabela Camini (2013) destaca que as primeiras experiências de


espaço de educação infantil no MST foram as experiências de creche
organizadas no estado do Ceará no início da luta pela terra naquela região.
Somada a essas primeiras experiências, Rossetto trabalha com a hipótese
de que a criação do espaço educativo da Ciranda Infantil passa também
pela participação das mulheres nas instâncias do MST. Destaca que, a partir
da participação feminina nos processos produtivos nas Cooperativas de
Produção Agropecuárias (CPAs) evidencia-se a necessidade de um espaço
para que as crianças pudessem ficar enquanto as mulheres trabalhavam.

Esta experiência leva o Movimento a discutir a participação


da mulher no trabalho e na organização. Assim, as
mulheres Sem Terra começam a se organizar e discutir a
sua participação na luta pela terra no MST (...) podemos
ressaltar que ela possibilitou às mulheres e crianças saírem
do seu espaço privado, ou seja, sair de casa, e conquistar seu
espaço público no MST. (ROSSETTO, 2009, p. 88)

A condição da criança como sujeito vai se conformando junto com


conquistas das mulheres como sujeito do Movimento. A participação
das mulheres nos processos produtivos, nas outras instâncias e espaços
internos do Movimento e em todo o processo da luta pela terra, levou o
Movimento a pensar um espaço educativo para as crianças.

Em meio a todo esse processo, emergem as crianças sem-


terra, enquanto sujeitos que constroem sua participação
histórica na luta pela terra e que desenvolvem e assumem
o sentido de pertença a esta luta, enquanto crianças
do campo. Isto veio a revelar que as Cirandas Infantis,

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


104 Fábio Accardo de Freitas

enquanto experiências de educação não formal apresentam


elementos significativos, da realidade do campo, que podem
contribuir a se pensar questões como: a des-re-construção
da noção de criança do campo; a relação entre educação,
política e construção de sujeitos históricos; políticas
públicas de Educação Infantil do Campo numa perspectiva
emancipatória. (ROSSETTO, 2009, p. 181)

Se no início a Ciranda Infantil era vista como um espaço para cuidar


dos filhos e filhas das militantes, uma vez que o cuidado com as crianças é
um trabalho socialmente atribuído às mulheres, hoje é um espaço pensado
para o coletivo de crianças do MST e para a participação das crianças
na luta pela terra, a partir da realidade que vivenciam no cotidiano do
movimento social.
Diante disso, faz sentido pensar a inserção das crianças na dinâmica do
MST, importando “compreender como uma criança constrói sua identidade
participando de uma coletividade em movimento, e ajudando a produzir novas relações
sociais e novas formas de conceber a vida no campo, certamente trará novos
elementos para discutir a infância e seus espaços de educação” (CALDART,
2012, p. 312, grifo no original).
A Ciranda Infantil se conformou como esse espaço para as crianças,
onde elas possam se reunir, estar entre elas, correndo, pintando, chorando,
gritando, pulando, brincando. Lugar, espaço e tempo para que as crianças
possam se reconhecer como sujeitos e protagonistas da mesma luta que
partilham, reelaborando as suas experiências e entendimentos do mundo
coletivamente, e vivenciado novas relações sociais e formas de organizar a
vida em sociedade. Nesse sentido, o MST define a Ciranda Infantil como:

Um espaço educativo organizado, com objetivo de trabalhar


as várias dimensões de ser criança Sem Terrinha, como sujeito
de direitos, com valores, imaginação, fantasia, vinculando as
vivências do cotidiano, as relações de gênero, a cooperação,
a criticidade, e a autonomia (...). São momentos e espaços
educativos intencionalmente planejados, nos quais as
crianças receberão atenção especial, cuidado e aprenderão,

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Os pequenos sujeitos da luta... 105

em movimento, a ocupar o seu lugar na organização de que


fazem parte. É muito mais que espaços físicos, são espaços
de trocas, aprendizados e vivências de novas relações. (MST,
2004, p.25)

Assim, os movimentos de luta pela terra, e nesse caso o MST, ao


enfrentar um contexto mais amplo no qual se insere a questão agrária
brasileira, abrem a possibilidade para pensar um novo tipo de infância,
no qual há a modificação do olhar sobre as crianças e a criação de novos
espaços de esperança para a vivência da infância do campo.
Esse é o caso do pré-assentamento Elizabeth Teixeira, onde,
mesmo com as precárias condições materiais do pré-assentamento e das
famílias e a incerteza de continuarem na terra ocupada, a Ciranda Infantil
foi se tornando um dos poucos espaços de encontro do coletivo infantil
do assentamento, garantindo que as crianças possam vivenciar a infância
com mais plenitude.
Espaço e tempo pensado intencionalmente para o encontro das
crianças do pré-assentamento, como lugar em que a maioria das crianças
podem se encontrar, brincar, compartilhar as novidades, conversar, brigar,
discutir, aprender, criar e se divertir.
O espaço da vida do pré-assentamento se confunde com o espaço
educativo da Ciranda Infantil. Esta simbiose entre educação e vida faz
com que a existência da Ciranda Infantil no pré-assentamento possibilite
que as crianças possam reelaborar as suas experiências de ser crianças no
assentamento, dentro de uma história de luta compartilhada e das condições
concretas vividas ali. Espaço onde as experiências individuais vão se
tornando coletivas a medida em que as crianças vão compreendendo seu
lugar no mundo e sua condição de classe e de pertença a um movimento
social organizado que luta por transformações sociais.
Observei durante a pesquisa os momentos coletivos das atividades
da Ciranda Infantil em que as crianças constroem relação entre elas e
com os adultos educadoras e educadores. Momentos em que eu, como
educador e pesquisador, pude durante quase oito anos conviver com
as crianças, acompanhar seu crescimento e compartilhar com elas uma
vivência coletiva.
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106 Fábio Accardo de Freitas

Como espaço de encontro do coletivo infantil do pré-assentamento,


a Ciranda Infantil favorece que as crianças criem e partilhem suas infâncias
e as culturas infantis produzidas. Como espaço de educação, toma as
crianças como centro do processo educativo, partindo do mundo delas e
as considerando sujeitos, capazes de fazer a leitura do seu mundo, pensar
e falar sobre ele.
Na construção cotidiana da relação entre crianças e educadoras e
educadores na Ciranda Infantil, pude observar como as crianças colocam
em movimento a cultura que partilham com os adultos, interpretando-a a
partir dos seus interesses e necessidades. Entendi que o espaço da Ciranda
Infantil possibilita, assim, a produção de culturas infantis (FERNANDES,
2004) constituída por elementos culturais das próprias crianças produzidos
nas relações entre elas a partir dos jogos, brincadeiras e vivência coletiva,
onde “transformam as informações do mundo adulto a fim de responder
as preocupações de seu mundo” (CORSARO, 2011, p. 53).
Como exemplo de produção dessas culturas infantis entre as
crianças do pré-assentamento, trago o relato de um momento de uma
das atividades da Ciranda Infantil, em que as crianças recriaram no monte
de areia a kombi13 que era utilizada pelas educadoras e educadores como
transporte para buscá-las em suas casas para participarem das atividades
da Ciranda.

Quando chegamos perto da escolinha, o Pedro, o Guilherme


e o Eric notaram um monte de areia com um buraco no
meio e logo enxergaram um carro! Se meteram no buraco
e imaginaram dirigir. Os outros foram se interessando
e querendo participar, daí precisou fazer um banco de
passageiro. Mais gente chegava junto, fizeram mais bancos
com as tábuas que tinham por perto da escolinha. Pegaram
mais tecos de madeira para poder fazer o acelerador, o
freio e a embreagem do motorista. O Guilherme foi para
13
Em 2011 o coletivo do UP adquiriu uma kombi para realizar os transportes até o pré-
assentamento. Isso facilitava tanto o transporte dos estudantes até a área, como transporte de
alimentos produzidos pelas assentadas e assentados para a venda em pontos específicos (feiras
e ponto de venda na Unicamp), assim como das crianças para a Ciranda Infantil.

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Os pequenos sujeitos da luta... 107

um canto fazer bolinhos de areia, para matarmos a fome


no meio da viagem. O Brian fez uns bolinhos também. O
que era carro virou kombi. A kombi ficou linda, coube todo
mundo dentro dela e teve bolinho para todo mundo também!
(Relato de atividade da Ciranda Infantil, 09/03/2013)

As meninas e meninos do pré-assentamento vivenciaram os


processos de ocupação, despejo, reocupação e resistência na área. Foram
testemunhas e sujeitos desse processo. Suas leituras da realidade trazem
tanto essa trajetória vivida e ouvida, como as experiências cotidianas que
compõem a dinâmica do pré-assentamento.
As atividades educativas na Ciranda Infantil partem dessa leitura
do mundo das crianças sobre a realidade em que vivem, que se tornam
temáticas a serem trabalhadas pelas crianças, educadoras e educadores
na relação da educação com a vida, criando, assim, um espaço educativo
com ampla liberdade das crianças interpretarem e problematizarem suas
culturas infantis, dando sentido aos seus lugares no mundo.
Culturas infantis tratada no plural, pois a infância vivenciada pelas
crianças é marcada por suas identidades de gênero, etnia, classe, etc. Cada
grupo de criança vivencia de maneira específica a sua infância, configurada
por diversos fatores estruturais e conjunturais que, também, marcam as
culturas infantis por elas partilhadas.
A simples condição de existir um espaço autônomo em que as
regras, valores, métodos, formas, conteúdos, brincadeiras são decididas
pelos sujeitos que o constroem, mostra as possibilidades de construção de
novas relações educativas no interior da Ciranda Infantil. A partir disso, a
entendo como espaço de encontro do coletivo de crianças e como espaço
de produção de culturas infantis.

CRIANÇAS COMO PEQUENOS SUJEITOS

Na introdução deste artigo, pontuei a maneira pela qual a realidade


vivida nas práticas educativas com as crianças me suscitou algumas
perguntas que me levaram a buscar teorias que as pudessem responder. Esse
movimento de abstração da realidade imediata ajudou-me a complexificar
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
108 Fábio Accardo de Freitas

minha compreensão sobre as crianças e me auxiliou a repensar e modificar


o olhar e a prática educativa realizada com as crianças.
As crianças se mostraram muito mais complexas que as teorias do
desenvolvimento individual e psicológico as caracterizam. As crianças
concretas do pré-assentamento eram diferentes daquelas “abstratas”
dos livros. As próprias crianças modificaram o meu olhar de educador-
pesquisador e me fizeram repensá-las de outra maneira.
Busquei algumas leituras do campo da Sociologia da Infância para
compreender as crianças a partir de um ponto de vista modificado por elas
e que me deu suporte para afirmar aquilo que observava: as crianças como
sujeitos no mundo. As teorias desse campo de estudo abordam as crianças
nas suas relações sociais entre as crianças, em coletivo, com adultos e com
o mundo, ou seja, criticam o olhar para a criança individual e as focalizam
socialmente, como atores sociais produtores de culturas infantis.
É o substrato social, como afirma Marcel Mauss (2010), que
determina as crianças como elas vão ser, se organizar, se desenvolver. A
inversão dos binóculos, do individual para o social, uma das marcas do
campo da Sociologia da Infância, sugere que olhemos as crianças sem
individualizá-las, na tentativa de abarcar um campo maior para explicação
dos fenômenos da infância.
Enxergar as crianças como partícipes da sociedade e sujeitos no
mundo é o movimento que a Sociologia da Infância vem tratando de
configurar em suas análises no campo das ciências sociais, reconhecendo
a infância como grupo social:

formada por sujeitos ativos e competentes, com


características diferentes dos adultos. As crianças pertencem
a diferentes classes sociais, ao gênero masculino e feminino,
a um espaço geográfico onde residem, à cultura de origem
e a uma etnia, em outras palavras, são crianças concretas
e contextualizadas, são membros da sociedade; atuam nas
famílias, nas escolas, nas creches e em outros espaços,
fazem parte do mundo, o incorporam e, ao mesmo
tempo, o influenciam e criam significados a partir dele.
(NASCIMENTOS, 2011, p. 41)

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 109

Na história, o “sentimento de infância”, segundo Ariès (1981),


nasce juntamente com a constituição do capitalismo e tem como centro
de interesse e preocupação a criança burguesa. Entretanto, na literatura
a criança será reconhecida como ator social integrante e partícipe da
sociedade em estudos mais recentes, quando se inicia a conformação do
campo Sociologia da Infância (SIROTA, 2001; MONTANDON, 2001;
PROUT, 2010; QUINTEIRO, 2002).
Ainda que em sua origem, o sentimento de infância diferencie as
crianças das classes burguesas e trabalhadoras, os estudos sociológicos
tendem as igualar na opressão que sofrem na relação com o adulto ou
com o mundo adulto: o adultocentrismo (ROSEMBERG, 1976) constitui
essa opressão do mundo adulto sobre as crianças em geral, de ambas as
classes. A racionalidade adultocêntrica se materializa nas relações sociais
entre adultos e crianças e identifica-se como uma concepção de mundo
centrada no adulto, que se desdobra na negação às crianças da condição de
sujeito do e no seu tempo na sociedade, de protagonistas do seu processo
de conhecimento no mundo e produtoras de culturas infantis.
Tornar visível essas contradições que conformam a racionalidade de
nossa sociedade abrem possibilidades para pensarmos o mundo de outra
maneira, a partir de outro ponto de vista, de uma outra e nova relação com
as crianças. As teorias da infância mostram para nós, adultos, que não é
a teoria que faz das crianças protagonistas no seu tempo, produtoras de
cultura, sujeitos do Movimento, mas, antes, as crianças já são tudo isso. E nós,
como educadoras e educadores, pesquisadoras e pesquisadores devemos
garantir que as crianças se expressem nas suas diversas linguagens, nos
seus desejos, nas suas artes, nos seus modos de ser e conhecer o mundo
brincando.
Ainda que podemos destacar um silêncio contextual da Educação
Popular diante da prática educativa com as crianças, é ela que tem tentado
construir o entendimento e a prática dos indivíduos como sujeitos no
mundo. A Educação Popular retoma a ideia da cultura como práxis e
enfatiza a dinâmica na qual os sujeitos ao agirem no mundo o transformam,
ao mesmo tempo que transformam a si próprios. Na relação dos homens,
mulheres e crianças com o mundo, através da práxis, se formam como
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
110 Fábio Accardo de Freitas

sujeitos que ao transformarem o mundo também se transforma a si


mesmos. Dessa maneira, a Educação Popular nos ajuda também a pensar
nas crianças como sujeitos, que vivenciam experiências de fazer a história
e produzir as culturas infantis a partir da sua racionalidade e maneiras de
seu no mundo.
Fui ao longo do trabalho educativo e de pesquisa com as crianças
modificando o meu olhar adultocêntrico entendendo-as como sujeitos da
história e produtoras de culturas infantis. Tenho tentado trabalhar, dessa
forma, o meu olhar “criançocêntrico” como par oposto-dialético do
adultocentrismo, ou seja, o esforço de enxergar a criança no seu tempo de
vida, levar em consideração as suas lógicas e racionalidades no mundo, as
suas diferentes linguagens (MALAGUZZI, 1999, p.1), especificidades, etc.
A prática “criançocêntrica” seria uma prática educativa que leva em
conta a criança no presente, tentando garantir que possa viver a infância na
sua plenitude, nas suas descobertas do mundo a partir do seu modo de ser
criança, brincando. As educadoras e educadores do coletivo Universidade
Popular enfrentaram esse desafio de tentar criar uma prática educativa que
reconheças as crianças como sujeitos e produtoras de culturas infantis.
Nesse sentido, apresento uma situação que surgiu durante uma
das atividades da Ciranda Infantil em que as crianças Sem Terrinha se
interpuseram como pequenos sujeitos da história ocupando um barraco
abandonado do pré-assentamento. Tal fato explicita o modo como as
crianças colocam suas culturas infantis em movimento, mobilizando os
diversos elementos que apresentamos neste artigo até aqui.
As crianças do pré-assentamento ainda hoje não conseguiram
um espaço físico só delas, ou seja, a Ciranda Infantil acontece na área
social da comunidade, no barracão, embaixo de uma árvore ou no lote de
alguma assentada ou assentado. As crianças foram apresentando a vontade
de terem um espaço delas e em uma das atividades da Ciranda Infantil
elas próprias ocuparam um barraco abandonado do pré-assentamento e
organizaram coletivamente uma escola das crianças, a Escola Roba Cena.

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Os pequenos sujeitos da luta... 111

- A gente não queria fazer nada daquilo, de música e


apresentação. Só queria fazer o grupo do Roba Cena. - disse
Cirilo.
- O que vocês propuseram é só besteira. - completou Dora.
- Sim, sim! Vocês estão certos. Eu que propus tudo aquilo.
Vi que vocês estavam formando um grupo de vocês e achei
que seria legal as outras crianças também terem um grupo
delas.
- Não! Era só para ter o Roba Cena! E a gente queria se reunir
nessa casa aí embaixo.

Nessa hora sentei no chão e fiquei ouvindo.

- A gente queria só o nosso grupo e queria ficar ali na casa


do André [um assentado]. Ali na casa é pra ser o lugar do
Roba Cena!
- Porque a casa do André?
- O André não está mais morando aqui. E ele deixou eu e o
Mario brincar na casa dele. - disse Cirilo.
- Isso é verdade ou você estão me enganando só pra
poderem brincar ali.
- É verdade! A gente até já brincou aqui, não é Dora? -
completou Cirilo.

Logo chegou a Martina (educadora) com a cartolina e giz de


cera para fazer a bandeira. Falei para eles da ideia de fazerem
uma bandeira para o grupo. Não toparam. Percebi que eles
iam para a casa do André, eu querendo ou não. Então topei
a ideia e propus outra – falei para eles que já estava na
hora do café, que podíamos então combinar o café lá na
casa. Que o Roba Cena convidasse o pessoal do Grito para
tomar café lá (…) e faríamos a apresentação das bandeiras.
Muitos sorrisos apareceram. (Relato de atividade da Ciranda
Infantil, 20/11/2013)

Ao colocarem a vontade de ocupar a casa abandonada de um


assentado colocaram em movimento a cultura vivenciada como Sem
Terrinha pertencentes a um movimento social. Explicitaram o conflito

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de interesses que havia entre o que as crianças queriam fazer de forma


mais livre e o proposto/imposto pelos adultos, educadoras e educadores.
Resistiram. Além disso, a proposta de ocupação do barraco de madeira
abandonado era também a expressão da experiência de luta e resistência
daquelas crianças, junto com suas mães e pais, no pré-assentamento.

Chegamos lá e a casa estava toda abandonada. Tinham


alguns objetos largados, sofá e cama desarrumados, um latão
cheio de sapatos na frente. Entramos e eles logo começaram
a arrumar e a dividir tarefas.

- Quero conversar com os representantes do Roba Cena! - eu


disse. Vou chamar o grupo Grito para virem aqui para a casa.
O que acham de arrumar o espaço enquanto vou até lá em
cima?
- Pode ser...
- Vamos descer de kombi com todas as crianças e com as
coisas para o café.
- Tá bom, mas antes de entrarem a gente vai ter que explicar
as regras aqui da casa para o outro grupo, né?! - disse Dora.
- Aí vocês esperam a gente lá fora, explicam as regras antes
de todo mundo entrar.
Voltei ao barracão e fiz o convite ao grupo Grito. Todos
toparam e fomos para a Kombi. Descemos lá na frente da
casa ocupada. Já estavam nos esperando fora. Foram nos
receber na kombi.

- Você todos têm que ficar aqui fora da casa por enquanto
para que a gente arrume o café lá dentro. Podem ficar aqui
na varanda.

Pegaram as comidas do café. Alguns entraram e pediram


para esperar. Ali na varanda tinham pendurado a bandeira
do MST. Tinha escrito também na parede “Pedir Licença”
- era uma primeira regra! Ficamos esperando do lado de
fora. Logo deram a permissão para entrarmos. Estava tudo
organizado, limpo. Cama arrumada, as crianças arrumaram
os objetos espalhados em um canto, protegendo-os. As

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 113

louças estavam limpas. Pegaram os panos da ciranda e


colocaram no chão para servir o café. Pediram para que
sentássemos lá. Eles dividiram os sucos nos copos, lavaram
as uvas, cortaram as maçãs, colocaram nos potes. Na parede
da sala mais duas regras rabiscadas - “Não Bagunçar” e
“Não Brigar”. Dividiram o café para todo mundo. Haviam
pendurada a bandeira do Roba Cena, ali no espaço do café,
onde se podia ler “ESCOLA ROBA CENA”.
Após o café as crianças recolheram copos, sujeira, lixo e
limparam tudo. Ficamos o resto do tempo ali dentro da
casa, conversando, brincando. Algumas crianças foram
comer acerola do pé que tinha logo na entrada do barraco.
Foi passando o tempo e nós educadoras e educadores
tínhamos que ir embora. (…) Fomos embora e eles ficaram
(não sabemos o que mais se passou...). (Relato de atividade
da Ciranda Infantil, 20/11/2013)

As crianças resolveram ocupar um barraco abandonado e fizeram


daquele espaço um lugar vivo e útil para eles. Elas concretamente ocuparam
a escola. Roubaram a cena. Esse ato das crianças foi para mim a síntese de
sete anos de atividades da Ciranda Infantil, de tentativas de construção
de novas relações; de auto-organização das crianças com suas próprias as
regras; de espaço de convívio do coletivo infantil; e da vivência das crianças
dentro de um assentamento, com perspectiva de luta, de resistência,
de ocupação que, naquela brincadeira, se realizaram, colocando em
movimento os conhecimentos e a cultura delas.

Precisamos entender que as crianças têm iniciativas, têm


opiniões, e que, muitas vezes, ao questionarem os adultos
em suas atitudes, impulsionam mudanças. Se observarmos
atentamente e dermos espaço é possível vermos na auto-
organização das crianças em suas atividades e na relação
com os adultos a criação de coisas novas e autênticas. (MST,
2011, p. 25)

Esse ato de ocupação das crianças mostrou para nós, educadoras e


educadores da Ciranda, como as crianças são sujeitos da sua própria história.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
114 Fábio Accardo de Freitas

A partir da sua forma de ser crianças no mundo, a brincadeira, produzem


culturas infantis e explicitam o seu pertencimento a um movimento social,
a uma classe social. Como protagonistas do Movimento, apresentam as
suas demandas e colocam em movimento suas inconformidades, lutando
pelos seus direitos e suas demandas específicas.

As experiências das crianças Sem Terra, como sujeitos


sociais que elas também já são desse Movimento, não podem
ser vistas apenas como formação de futuros militantes da
organização. Isso seria redutor e mesmo pedagogicamente
ineficaz. A grande potencialidade educativa da participação
das crianças no Movimento está na densidade maior que
permite à sua vivência da infância, exatamente porque mais
parecida com a totalidade das dimensões que constituem a
vida humana. (CALDART, 2012, p. 389)

ELEMENTOS PARA UMA EDUCAÇÃO INFANTIL POPULAR

Este artigo é um esforço teórico de captar alguns elementos


da prática de educação com as crianças na Ciranda Infantil do pré-
assentamento Elizabeth Teixeira que nos ajudam a caracterizá-la como
uma Educação Infantil Popular. Para isso apresentei algumas situações e
relatos que surgiram nas atividades da Ciranda Infantil em que as crianças
Sem Terrinha se interpuseram como pequenos sujeitos da história.
Esses pequenos sujeitos, ao se organizarem para uma marcha em
solidariedade ao despejo de um assentamento vizinho ou ao resolverem
ocupar um barraco abandonado e criarem ali a sua escola, mobilizaram
toda a trajetória histórica do Movimento Sem Terra, assim como as suas
próprias trajetórias de experiência das lutas, ocupações e resistências que
já presenciaram e participaram.
Colocaram em movimento a história e cultura da qual fazem
parte e a qual também são produtoras, produzindo suas culturas infantis,
reproduzindo e reinterpretando livremente por meio das brincadeiras a
“forma marcha” e “forma ocupação”, formas de manifestação utilizadas

Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018


Os pequenos sujeitos da luta... 115

pelos adultos Sem Terra, a partir das possibilidades, necessidades e


interesses das crianças Sem Terrinha. A Ciranda Infantil como espaço
livre de encontro do coletivo infantil e espaço de produção das culturas infantis,
possibilitou às crianças se expressarem a sua maneira.
Pelas culturas infantis as crianças vinculam o passado ao presente,
como produtos e produtoras de cultura e, assim, pequenos sujeitos
da história. Inseridas num contexto específico, fazendo parte de um
movimento que visa um outro projeto de sociedade, produzem no presente
as possibilidades de construção de uma nova sociedade.
Nessa perspectiva, considero que a educação infantil proposta e
praticada na Ciranda Infantil se insere na trajetória histórica da Educação
Popular, como proposta educativa associada à luta de um movimento
social da classe trabalhadora do campo com vistas à mudança da sociedade.
Apontando os indivíduos como sujeitos da história, a Ciranda Infantil tem
na práxis a centralidade da prática educativa, como ação e reflexão dos
processos de superação da situação de exploração, dominação e opressão
em que as classes populares estão submetidas.
Ao mesmo tempo, a partir da minha experiência compreendo que
os novos elementos que as crianças. Sem Terrinha colocam, como sujeitos
e protagonistas do Movimento, ao construírem o seu lugar participando
dessa coletividade em movimento (CALDART, 2012), modificam as experiências
passadas de Educação Popular e criam a necessidade de reinventarmos
nosso olhar diante desses novos sujeitos.
A Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira se insere,
a partir da Pedagogia do Movimento, na trajetória histórica da Educação
Popular a transformando partir do seu contexto e dos seus sujeitos
específicos da prática educativa – as crianças Sem Terrinha, somando
também elementos da Sociologia da Infância.
A relação entre esses olhares conforma a particularidade da
experiência educativa com as crianças do pré-assentamento e propicia
um espaço educativo que enxerga as crianças no seu tempo, como
protagonistas e sujeitos no mundo, possibilitando um espaço de liberdade
para as crianças Sem Terrinha expressarem suas injustiças, suas resistências,
produzirem culturas infantis nas suas práticas culturais cotidianas.
Temáticas, Campinas, 26, (51): 87-118, fev./jun. 2018
116 Fábio Accardo de Freitas

A minha experiência como educador-pesquisador, então, atuando


e observando a Ciranda Infantil do pré-assentamento Elizabeth Teixeira
suscitou elementos que me ajudaram a caracterizar essa experiência como
uma experiência de Educação Infantil Popular. Além disso, entendo que
a preocupação com as crianças nesses trinta e quatro anos de história do
MST criou possibilidades para a vivência da infância no campo, apontando
um novo lugar para a infância Sem Terra dentro da construção de um
novo projeto de sociedade. As crianças têm lugar e voz, brincam e são
consideradas sujeitos da sociedade uma vez que o Movimento se propõe a
olhar para as crianças também como protagonistas da luta pela terra.

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Texto recebido em 04/01/2018 e aprovado em 25/03/2018.

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