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COLETÂNEA

DE
CRÔNICAS

A bola

Luis Fernando Verissimo

O pai deu uma bola de presente ao filho.


— Uma bola, bola. Uma bola mesmo.
Lembrando o prazer que sentira ao ganhar
a sua primeira bola do pai. Uma número 5
sem tento oficial de couro. Agora não era — Você pensou que fosse o quê?
mais de couro, era de plástico. Mas era
uma bola. — Nada, não.

O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e O garoto agradeceu, disse “Legal” de novo,


disse “Legal!”. Ou o que os garotos dizem e dali a pouco o pai o encontrou na frente
hoje em dia quando gostam do presente ou da tevê, com a bola nova do lado,
não querem magoar o velho. Depois manejando os controles de um videogame.
começou a girar a bola, à procura de Algo chamado Monster Baú, em que times
alguma coisa. de monstrinhos disputavam a posse de uma
bola em forma de bip eletrônico na tela ao
— Como e que liga? — perguntou. mesmo tempo que tentavam se destruir
mutuamente.
— Como, como é que liga? Não se liga.
O garoto era bom no jogo. Tinha
coordenação e raciocínio rápido. Estava
O garoto procurou dentro do papel de
ganhando da máquina.
embrulho.

O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas


— Não tem manual de instrução?
embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no
peito do pé, como antigamente, e chamou o
O pai começou a desanimar e a pensar que garoto.
os tempos são outros. Que os tempos são
decididamente outros.
— Filho, olha.
— Não precisa manual de instrução.
O garoto disse “Legal”, mas não desviou os
olhos da tela. O pai segurou a bola com as
— O que é que ela faz? mãos e a cheirou, tentando recapturar
mentalmente o cheiro de couro. A bola
— Ela não faz nada. Você é que faz coisas cheirava a nada. Talvez um manual de
com ela. instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas
em inglês, para a garotada se interessar.
— O quê?
Comédias para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
— Controla, chuta...

— Ah, então é uma bola.

— Claro que é uma bola.

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sabe disso. Quem recolhe impostos sobre ela
Considerações em torno sabe muito bem. Porque ela não serve para
das aves-balas mais nada, para isso foi feita.
Ivan Ângelo
Seria próprio chamar de desaparecidas essas
inúteis? No país das balas perdidas, perdem-
Balas perdidas transformam-se em notícia por
todo o país. se também crianças, chamadas
desaparecidas. Mas esta já é outra história.
Desde que isso começou — não faz muito
tempo, nem pouco — mais de uma centena Não, a essas balas não se poderia chamar de
de pessoas foram atingidas só na cidade do desaparecidas porque ninguém sabia delas
Rio de Janeiro. Em São Paulo não se conta, ou antes de se libertarem de sua casca, ainda
perde-se a conta. Em Belo Horizonte, elas pacíficas, guardando para si sua capacidade
sinistramente trabalham em silêncio. Em voadora e mortal. Só depois que explodem é
que voam, e então se perdem ou não.
Salvador são abafadas pelo baticum dos
tambores. Sem nenhum bairrismo elas voam
geral, irrompem num circo, num ônibus, O poeta João Cabral de Melo Neto deu um
numa janela de sala de estar, numa padaria, lindo nome a essas balas sem dono: ave-bala.
em muitas escolas, numa praça, num banco, No poema “Morte e vida Severina”, o retirante
numa rua e se alojam num corpo. Aí se livram pergunta aos que levam um defunto: “Quem
da sua característica principal — a de perdidas contra ele soltou / essa ave-bala”. E a
— e se acham, são achadas. resposta: “Ali é difícil dizer / Irmão das almas,
/ Sempre há uma bala voando / desocupada”.
Por que se diz perdida? Perdida é a bala que
não se encontra nunca, são as que voam até Éramos um povo acostumado à arma branca,
perder a força e tombam, exaustas e sem à peixeira, ao punhal, ao facão; herdamos a
glórias de Jornal Nacional, num mato tradição ibérica de sangrar, cortar o pescoço,
qualquer. capar. Meninos já tinham seu canivete de
ponta. Malandros riscavam o ar com
navalhas. Mulheres da vida brandiam giletes.
A bala perdida: quem a perdeu? A linguagem
Numa arruaça, quem metia a mão numa cara,
tem sempre uma lógica. Quem perdeu a bala
perdida? O atirador? Pior para quem a achou. dava rasteiras. Em algum momento o “te
meto a faca” virou “te meto a bala”, aquele
“te meto a mão na cara” virou “te meto uma
Uma pessoa quando perdida, não tem rumo. bala na cara”. Começaram a voar as aves-
Se diz: desorientada. Uma bala não. A bala balas.
perdida segue reta e veloz como quem sabe
aonde vai. Igualzinho às outras, suas irmãs,
O que aconteceu no meio? Talvez o cinema, o
que levam endereço certo.
faroeste, os gangsters, a TV, guerras sujas,
guerrilhas, terrorismo, drogas proibidas.
Perdida, então quer dizer o quê? Nasceu o culto da pontaria certeira. Billy the
Desperdiçada? A linguagem nem sempre tem Kid, John Wayne, Randolph Scott, Frank e
lógica. Quem perdeu a bala perdida? O Jesse James, Schwarzenegger, Stalone,
atirador? Pior para quem achou. Matrix. “No século do progresso / o revólver
teve ingresso / pra acabar com a valentia” —
Quando acha um corpo a bala pode ainda se cantou Noel Rosa nos anos 1930. Surgiu outro
chamar perdida? A que acha, mesmo não tipo de valente, o que fica atrás do revólver.
sendo aquele corpo que buscava, será menos Não é preciso arriscar-se, chegar perto para
desperdiçada do que as outras, que esbarram ferir. “Mais garantido é de bala / Mais longe
em uma simples parede? fere”, diz o poeta João Cabral. Ninguém pense
que a influência estrangeira é justificativa.
Ninguém procura balas perdidas. Nem quem Não, não importamos a violência, ela é mais
as perdeu, nem quem as encontrou, sem nossa que o petróleo. Importamos foi a
querer. São indesejadas, e quanto mais o cultura da arma de fogo.
sejam, mais ansiosas parecem por alojar-se.
Essas balas voadoras, libertas da sua casca, No país das balas perdidas, perdem-se
só são realmente perdidas se ninguém nunca também crianças, nem sempre desaparecidas.
mais as viu. Então são também inúteis, pois Muitas delas, talvez a maioria, vão mais tarde
isso é a negação da sua essência mortal. brincar por aí de soltar aves-balas, nem
sempre perdidas.
Uma bala, quando útil, fere, mata. É criadora:
cria órfãos, viúvas, pais inconsoláveis. Quem O comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2000.
Coleção Para Gostar de Ler, v. 28.
a dispara sabe disso. Quem fabrica e vende

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saudades, símbolo ou penhor da mocidade
A arte de ser avó perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um
Rachel de Queiroz
estranho, é um menino seu que lhe é “devolvido”.
Netos são como heranças: você os ganha sem E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu
merecer. Sem ter feito nada para isso, de repente direito de o amar com extravagância; ao contrário,
lhe caem do céu. É, como dizem os ingleses, um causaria escândalo e decepção se você não o
ato de Deus. Sem se passarem as penas do acolhesse imediatamente com todo aquele amor
amor, sem os compromissos do matrimônio, sem recalcado que há anos se acumulava,
as dores da maternidade. E não se trata de um desdenhado, no seu coração.
filho apenas suposto, como o filho adotado: o
neto é realmente o sangue do seu sangue, filho Sim, tenho certeza de que a vida nos dá os netos

de filho, mais filho que o filho mesmo... para nos compensar de todas as mutilações
trazidas pela velhice. São amores novos,
Quarenta anos, quarenta e cinco... Você sente, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar
obscuramente, nos seus ossos, que o tempo vazio, nostálgico, deixados pelos arroubos
passou mais depressa do que esperava. Não lhe juvenis.
incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas
alegrias, as suas compensações - todos dizem [...]

isso, embora você, pessoalmente, ainda não as


E quando você vai embalar o menino e ele, tonto
tenha descoberto - mas acredita.
de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz:

Todavia, também obscuramente, também sentida “Vó!”, seu coração estala de felicidade, como pão

nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia ao forno. [...]

da mocidade. Não de amores nem de paixões: a


Até as coisas negativas se viram em alegrias
doçura da meia-idade não lhe exige essas
quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô
efervescências. A saudade é de alguma coisa
de estimação que se quebrou porque o menininho
que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a
- involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está
mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço.
quebrado e remendado, mas enriquecido com
Choro de criança. O tumulto da presença infantil
preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os
ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as
olhos arregalados, o beiço pronto para o choro; e
suas crianças? Naqueles adultos cheios de
depois o sorriso malandro e aliviado porque
problemas que hoje são os filhos, que têm sogro
“ninguém” se zangou, o culpado foi a bola
e sogra, cônjuge, emprego, apartamento a
mesmo, não foi, Vó? Era um simples boneco que
prestações, você não encontra de modo nenhum
custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que
as suas crianças perdidas. São homens e
pague...
mulheres - não são mais aqueles que você
recorda. Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2005.

E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta


nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o
doutor lhe põe nos braços um menino.
Completamente grátis - nisso é que está a
maravilha. Sem dores, sem choros, aquela
criancinha da sua raça, da qual você morria de
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Um caso de burro do pensamento, não há dúvidas que é o
exame da consciência. Agora, qual foi o
Machado de Assis exame da consciência daquele burro, é o que
presumo ter lido no escasso tempo que ali
gastei. Sou outro Champollion, porventura
Quinta-feira à tarde, pouco mais de três
maior; não decifrei palavras escritas, mas
horas, vi uma coisa tão interessante, que
ideias íntimas de criatura que não podia
determinei logo de começar por ela esta
exprimi-las verbalmente.
crônica. Agora, porém, no momento de pegar
na pena, receio achar no leitor menor gosto
que eu para um espetáculo, que lhe parecerá E diria o burro consigo:
vulgar, e porventura torpe. Releve a
importância; os gostos não são iguais. “Por mais que vasculhe a consciência, não
acho pecado que mereça remorso. Não furtei,
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de não menti, não matei, não caluniei, não
Novembro e o lugar onde era o antigo ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha
passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, vida, se dei três coices, foi o mais, isso
estava um burro deitado. O lugar não era mesmo antes haver aprendido maneiras de
próprio para remanso de burros, donde cidade e de saber o destino do verdadeiro
concluí que não estaria deitado, mas caído. burro, que é apanhar e calar. Quando ao
Instantes depois, vimos (eu ia com um zurro, usei dele como linguagem.
amigo), vimos o burro levantar a cabeça e Ultimamente é que percebi que me não
meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os entendiam, e continuei a zurrar por ser
olhos meio mortos fechavam-se de quando costume velho, não com ideia de agravar
em quando. O infeliz cabeceava, mais tão ninguém. Nunca dei com homem no chão.
frouxamente, que parecia estar próximo do Quando passei do tílburi ao bonde, houve
fim. algumas vezes homem morto ou pisado na
rua, mas a prova de que a culpa não era
minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga;
Diante do animal havia algum capim
deixava-me estar aguardando autoridade.”
espalhado e uma lata com água. Logo, não foi
abandonado inteiramente; alguma piedade
houve no dono ou quem quer que seja que o “Passando à ordem mais elevada de ações,
deixou na praça, com essa última refeição à não acho em mim a menor lembrança de
vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é haver pensado sequer na perturbação da paz
homem que leia crônicas, e acaso ler esta, pública. Além de ser a minha índole contrária
receba daqui um aperto de mão. O burro não a arruaças, a própria reflexão me diz que, não
comeu do capim, nem bebeu da água; estava havendo nenhuma revolução declarado os
já para outros capins e outras águas, em direitos do burro, tais direitos não existem.
campos mais largos e eternos. Nenhum golpe de estado foi dado em favor
dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia,
democracia, oligarquia, nenhuma forma de
Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do governo, teve em conta os interesses da
animal. Um deles, menino de dez anos, minha espécie. Qualquer que seja o regime,
empunhava uma vara, e se não sentia o ronca o pau. O pau é a minha instituição um
desejo de dar com ela na anca do burro para
pouco temperada pela teima que é, em
espertá-lo, então eu não sei conhecer
resumo, o meu único defeito. Quando não
meninos, porque ele não estava do lado do
teimava, mordia o freio dando assim um
pescoço, mas justamente do lado da anca.
bonito exemplo de submissão e conformidade.
Diga-se a verdade; não o fez — ao menos
Nunca perguntei por sóis nem chuvas;
enquanto ali estive, que foram poucos bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito
minutos. Esses poucos minutos, porém, do bonde, para sair logo. Até aqui os males
valeram por uma hora ou duas. Se há justiça que não fiz; vejamos os bens que pratiquei.”
na Terra valerão por um século, tal foi a
descoberta que me pareceu fazer, e aqui
deixo recomendada aos estudiosos. “A mais de uma aventura amorosa terei
servido, levando depressa o tílburi e o
namorado à casa da namorada — ou
O que me pareceu, é que o burro fazia exame simplesmente empacando em lugar onde o
de consciência. Indiferente aos curiosos, como moço que ia ao bonde podia mirar a moça que
ao capim e à água, tinha no olhar a expressão
estava na janela. Não poucos devedores terei
dos meditativos. Era um trabalho interior e
conduzido para longe de um credor
profundo. Este remoque popular: por pensar
importuno. Ensinei filosofia a muita gente,
morreu um burro mostra que o fenômeno foi
esta filosofia que consiste na gravidade do
mal entendido dos que a princípio o viram; o
porte e na quietação dos sentidos. Quando
pensamento não é a causa da morte, a morte
algum homem, desses que chamam patuscos,
é que o torna necessário. Quanto à matéria
queria fazer rir os amigos, fui sempre em
132
auxílio deles, deixando que me dessem tapas fornecia centenas de bolas pretas para o jogo
e punhadas na cara. Em fim...”
de gude. Lembro-me da tamareira, e de

Não percebi o resto, e fui andando, não tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-
menos alvoroçado que pesaroso. Contente da me da parreira que cobria o caramanchão, e
descoberta, não podia furtar-me à tristeza de
ver que um burro tão bom pensador ia dos canteiros de flores humildes, “beijos”,
morrer. A consideração, porém, de que todos violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de
os burros devem ter os mesmos dotes
principais, fez-me ver que os que ficavam não fruta-pão ao lado da casa e o imenso cajueiro
seriam menos exemplares do que esse. Por lá no alto eram como árvores sagradas
que se não investigará mais profundamente o
moral do burro? Da abelha já se escreveu que protegendo a família. Cada menino que ia
é superior ao homem, e da formiga também, crescendo ia aprendendo o jeito de seu
coletivamente falando, isto é, que as suas
instituições políticas são superiores às nossas, tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor
mais racionais. Por que não sucederá o para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima,
mesmo ao burro, que é maior?
ver de lá o telhado das casas do outro lado e
Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de os morros além, sentir o leve balanceio na
Novembro, achei o animal já morto.
brisa da tarde.
Dois meninos, parados, contemplavam o
cadáver, espetáculo repugnante; mas a No último verão ainda o vi; estava como
infância, como a ciência, é curiosa sem asco.
sempre carregado de frutos amarelos,
De tarde já não havia cadáver nem nada.
Assim passam os trabalhos deste mundo. trêmulo de sanhaços. Chovera: mas assim
Sem exagerar o mérito do finado, força é
dizer que, se ele não inventou a pólvora, mesmo fiz questão de que Carybé subisse o
também não inventou a dinamite. Já é morro para vê-lo de perto, como quem
alguma coisa neste final de século. Requiescat
apresenta a um amigo de outras terras um
in pace.
parente muito querido.
Disponível em
<www.eeagorajose.kit.net/estilos/croassisburro.htm>.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele
caiu numa tarde de ventania, num fragor
tremendo pela ribanceira; e caiu meio de
lado, como se não quisesse quebrar o telhado
de nossa velha casa.
O cajueiro
Rubem Braga
Diz que passou o dia abatida, pensando em
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos
Ele vive nas mais antigas recordações de que já morreram. Diz que seus filhos
minha infância: belo, imenso, no alto do pequenos se assustaram; mas foram brincar
morro atrás da casa. Agora vem uma carta nos galhos tombados.
dizendo que ele caiu.
Foi agora, em fins de setembro. Estava
Eu me lembro do outro cajueiro que era carregado de flores.
menor e morreu há muito tempo. Eu me
lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da Setembro, 1954.

grande touceira de espadas-de-são-jorge (que


Cem crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: José Olímpio,
nós chamávamos simplesmente “tala”) e da 1956.

alta saboneteira que era nossa alegria e a


cobiça de toda a meninada do bairro porque

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Pavão — Mas você podia fazer isso de uma forma
mais discreta...
Rubem Braga
— Negativo. Já usei todas as formas discretas
Eu considerei a glória de um pavão
ostentando o esplendor de suas cores; é um que podia. Falei com você, expliquei, avisei.
luxo imperial. Mas andei lendo livros, e
Nada. Você fazia de conta que nada tinha a
descobri que aquelas cores todas não existem
na pena do pavão. Não há pigmentos. O que ver com o assunto. Minha paciência foi se
há são minúsculas bolhas d’água em que a luz
esgotando, até que não me restou outro
se fragmenta, como em um prisma. O pavão
é um arco-íris de plumas. Eu considerei que recurso: vou ficar aqui, carregando este
este é o luxo do grande artista, atingir o
cartaz, até você saldar sua dívida.
máximo de matizes com o mínimo de
elementos. De água e luz ele faz seu
esplendor; seu grande mistério é a Neste momento começou a chuviscar.
simplicidade.
— Você vai se molhar — advertiu ela. — Vai
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! acabar ficando doente.
minha amada; de tudo que ele suscita e
esplende e estremece e delira em mim Ele riu, amargo:
existem apenas meus olhos recebendo a luz
de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz
magnífico. — E daí? Se você está preocupada com minha
saúde, pague o que deve.
Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Editora do Autor,
1960. — Posso lhe dar um guarda-chuva...

Cobrança — Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não


um guarda-chuva.
Moacyr Scliar
Ela agora estava irritada:
Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da
casa, caminhando de um lado para outro. — Acabe com isso, Aristides, e venha para
dentro. Afinal, você é meu marido, você mora
Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a
aqui.
atenção dos passantes: “Aqui mora uma
devedora inadimplente.” — Sou seu marido — retrucou ele — e você é
minha mulher, mas eu sou cobrador
— Você não pode fazer isso comigo — profissional e você é devedora. Eu a avisei:
protestou ela.
não compre essa geladeira, eu não ganho o
— Claro que posso — replicou ele. — Você suficiente para pagar as prestações. Mas não,
comprou, não pagou. Você é uma devedora você não me ouviu. E agora o pessoal lá da
inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas empresa de cobrança quer o dinheiro. O que
vezes tentei lhe cobrar, você não pagou. quer você que eu faça? Que perca meu
emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até
— Não paguei porque não tenho dinheiro. você cumprir sua obrigação.
Esta crise...

— Já sei — ironizou ele. — Você vai me dizer Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição

que por causa daquele ataque lá em Nova tornara-se ilegível. A ele, isso pouco

York seus negócios ficaram prejudicados. importava: continuava andando de um lado

Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu para outro, diante da casa, carregando o seu

problema é lhe cobrar. E é o que estou cartaz.

fazendo.
O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001.

134
Rivaldo, Ronaldinho e Kaká. Todos os cinco
Conformados e realistas ganharam o título de melhor do mundo.
Tostão
Fernando Calazans e poucos outros jornalistas Os fenômenos, em todos os esportes, dependem

esportivos têm sido críticos e realistas sobre a muito menos das condições em que são

qualidade e o futuro do futebol brasileiro, da treinados. Eles não têm explicação. Mas não se

Seleção e dos clubes. Penso da mesma forma. pode depender tanto deles. É preciso criar boas

Estamos preocupados. Já a numerosa turma do estruturas e estratégias para formar um número

oba-oba, também chamada de otimista, acha que maior de excelentes atletas. Esses têm diminuído

somos muito pessimistas. no futebol brasileiro.

Os conformados, os que têm pouco senso crítico e Muitos treinadores brasileiros conhecem tudo de
também os modernistas, que são muito bem esquema tático, de estatísticas, dos adversários,
preparados cientificamente, dizem que o futebol porém conhecem pouco as sutilezas e
moderno é esse aí. Temos de engoli-lo. Tocar a bola subjetividades. Não são bons observadores.
e esperar o momento certo para tentar fazer o gol Quem não sabe ver não sabe nada. Eles se
virou sinônimo de lentidão. Confundem modernidade preocupam mais com seus esquemas táticos que
com mediocridade. com a qualidade do jogo e se os melhores
jogadores estão nos lugares certos.
Ninguém é tão ingênuo para achar que se deve
jogar hoje no estilo dos anos 60. O que queremos Há exceções. Enfim, apareceu um técnico
é ver mais qualidade. Não podemos nos brasileiro que colocou Carlos Alberto na posição
contentar com um futebol medíocre, quase só de certa, se movimentando na frente, por todos os
jogadas aéreas e de muita falta e correria. O lados, e mais perto do gol, onde pode e deve
encanto do futebol é outro. driblar. Assim ele jogou no Porto com José
Mourinho. Carlos Alberto não é armador,
Os jogadores são produzidos em série, para
organizador, como atuava.
exportação, como uma fábrica de parafusos. Os
atletas de talento são colocados na mesma linha de
Felipão estava louco para ver Robinho no
produção dos medíocres. Há mercado para todos.
Chelsea porque precisa de um atacante rápido,
Aumentou a quantidade e diminuiu a qualidade.
habilidoso, que joga melhor pelos lados e que é
capaz de marcar no próprio campo e aparecer
Nos últimos 14 anos, a Argentina ganhou cinco
com facilidade no ataque. Robinho é um desses
mundiais sub-20 (acontecem de dois em dois anos),
raros jogadores. Se Felipão fosse treinador da
além de duas medalhas de ouro nas Olimpíadas. O
time que derrotou o Brasil tem sete jogadores da Seleção, certamente faria o mesmo.

equipe campeã mundial sub-20 em 2005.


O Povo Online, 30/8/2008. Disponível em
<www.opovo.uol.com.br/opovo/colunas/tostao/816045.html>.

Muitos vão dizer, com um ótimo argumento, que


nesse período, o Brasil ganhou duas copas do
mundo e mais um vice, enquanto a Argentina não
venceu nada. A razão disso é óbvia. A Argentina
não teve um único fenômeno nesses 14 anos, até
chegar Messi. Já o Brasil teve Romário, Ronaldo,

135
Falemos das flores Há enfim uma espécie de flor que é tão rara como
a tulipa negra de Alexandre Dumas, como o cravo
(25 de novembro de 1855) azul de Jean-Jacques, como o crisântemo azul de
José de Alencar George Sand.

Falemos das flores. É a flor da vida, este sonho dourado, este puro
ideal a que todos aspiram e de que tão poucos
O que é uma flor? gozam.

Será esta criação vegetal que na primavera se Porque a flor da vida apenas vive um dia, como
abre do botão de uma planta? as rosas da manhã que a brisa da tarde desfolha.

Não: a flor é o tipo da perfeição, é a mais sublime E quando murcha, deixa dentro d'alma os seus
expressão da beleza, é um sorriso cristalizado, é perfumes, que são essas recordações queridas
um raio de luz perfumado. que nos sorriem ainda nos últimos tempos da
existência.
Por isso há muitas espécies de flor.
Para uns a flor da vida nasce nos lábios de uma
Há as flores do vale - mimosas criaturas que mulher; para outros no seio de um amigo.
vivem o espaço de um dia, que se alimentam de
orvalho, de luz e de sombras. Feliz do caminhante que à beira do bosque por
onde passa colhe esta florzinha azul, espécie de
Há as flores do céu - as estrelas, - que brilham à urze cingida de uma coroa de espinhos.
noite no seu manto azul, como os olhos de uma
linda pensativa. Muitas vezes, depois de muitas fadigas, quando
já tem as mãos feridas dos espinhos, e que vai
Há as flores do ar - as borboletas, - que têm nas colher a flor, ela se desfolha.
suas asas ligeiras as mais belas cores do prisma.
O vento soprou sobre ela, ou um verme roeu-lhe
Há as flores da terra - as mulheres, - rosas os estames.
perfumadas que ocultam entre as folhas os seus
espinhos. Até aqui os meus leitores têm visto o mundo pelo
prisma de uma flor; mas não se devem iludir com
Há as flores dos lábios - os sorrisos, lindas isso.
boninas que o menor sopro desfolha.
Algum velho político de cabelos brancos lhes dirá
Há as flores do mar - as pérolas, - filhas do que isto são simples devaneios de uma
oceano que saem do seio das ondas para se imaginação exaltada.
aninharem no seio de uma mulher morena.
A flor é a poesia, mas o fruto é a realidade, é a
Há as flores da poesia - os versos, - às vezes tão única verdade da vida.
cheios de perfumes e de sentimentos como a
mais bela flor da primavera. Enquanto pois os poetas vivem à busca de flores,
os homens sérios e graves, os homens práticos
Há as flores d'alma - os sentimentos, - flores a só tratam de colher os frutos.
que o coração serve de vaso, e as lágrimas de
orvalho. Eles veem desabrochar as flores, exalar os seus
perfumes, e esperam como o hortelão que
Há as flores da religião - as preces, - modestas chegue o outono e com ele o tempo da colheita.
violetas que perfumam a sombra e o retiro.
E na verdade, a flor encerra sempre o germe de
Há as flores da harmonia - os gorjeios - que um fruto, de um pomo dourado, que outrora
brincam nos lábios mimosos de uma boquinha perdeu o homem, mas que é hoje a sua salvação.
sedutora.
A explicação disto me levaria muito longe, se eu
Há as flores do espírito - os ziguezagues, - que não me lembrasse que até agora ainda não
nascem sobre o papel como rosas silvestres e escrevi uma linha de revista, e ainda não dei aos
sem cultura. meus leitores uma notícia curiosa.

(Não falo dos nossos ziguezagues, que, quando Mas, a falar a verdade, não me agrada este papel
muito, são flores murchas). de noticiador de coisas velhas, que o meu leitor

136
todos os dias vê reproduzidas nos quatro jornais No intervalo conversai um pouco com os vossos
da corte, em primeira, segunda, e terceira edição. vizinhos.

Poderia dizer-lhe que depois da epidemia vai-se — É preciso ser completamente ignorante, diz o
revelando uma outra epidemia de divertimentos, gruísta com o aplomb de um maestro, para não
realmente assustadora. se apreciar a sublimidade do talento desta
mulher!
Fala-se em clube artístico, em baile mascarado
no teatro lírico, em passeios de máscaras pelas Vós, meu leitor, que não quereis assinar um
ruas, numa companhia francesa de vaudevilles, e termo de ignorante, não tendes remédio senão
em mil outras coisas que tornarão esta bela confessar-vos gruísta, e em lugar de dois pontos
cidade do Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso. de admiração dais três.

Neste tempo é que os folhetinistas baterão as — Com efeito, é uma artista exímia!!!
asas de contentes, e não terão trabalho de
escrever tiras de papel; preferirão ir ao baile, ao Apenas acabais a palavra, quando o chartonista
passeio, ao teatro, colher as flores de que hão de vos interroga do outro lado.
formar o seu bouquet de domingo.
— É possível que um homem de gosto e de
Enquanto porém não chega esta bela quadra, sentimento admita semelhantes exagerações?
essa primavera dos nossos salões, esse abril
florido da nossa sociedade, não há remédio Ficais embatucado; mas, se não quereis passar
senão contentarmo-nos com o que temos, e em
por homem de mau gosto, deveis imediatamente
vez de rosas, apresentar ao leitor as folhas secas
responder:
do ano.
— Com efeito, não é natural.
A respeito de teatro, não falemos; é uma casa em
cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a
prudência parece ter gravado a inscrição de Daí a um momento o vosso vizinho da direita
Dante: — Guarda e passa. retruca:

Se desprezais o aviso e entrais, daí a pouco — Veja, todos os camarotes da 4a ordem estão
tereis razão de arrepender-vos. vazios.

Sentai-vos em uma cadeira qualquer: a vossa — É verdade!


direita está um gruísta; a vossa esquerda um
chartonista. Torna o vizinho esquerdo:

Levanta-se o pano: representa-se a Norma ou a — Com esta chuva, que casa, hem!
Fidanzata Corsa; canta uma das duas prima-
donas, uma das duas prediletas do público. — Boa!

— Bravo! grita o gruísta entusiasmado. Agora acrescentai a isto as desafinações do


Dufrene, a rouquidão do Gentile, os cochilos do
— Que exageração! diz o chartonista estirando o contra-regra, e fazei ideia do divertimento de uma
beiço. noite de teatro.

— Divino! Ao correr da pena. 2ª ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d.

— Oh! é demais!

— Sublime!

— Insuportável!

E assim neste crescendo continuam os dois


dilettanti, de maneira que o vosso ouvido direito
está sempre em completa oposição com o vosso
ouvido esquerdo.

Cai o pano.

137
Quem tem medo de mortadela? Neste Natal e no Reveillon frequentei várias mesas,
Mário Prata e em nenhuma havia mortadela. Queijos de primeiro
mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes de
Modismo é conosco mesmo. O brasileiro adora primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas
inventar moda. E todo mundo vai atrás dela. A última mortadela que é bom, nada. Nem uma fatiazinha.
do brasileiro é “primeiro mundo”. Os publicitários
nativos inventaram a expressão e agora tudo que Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a
nós queremos tem que ser coisa do “primeiro melhor entrada do mundo? Quando você for para a
mundo”. Europa, não adianta pedir dead her que não vai
encontrar. Nem muerta dela.
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro
mundo, a mulher é do primeiro mundo. Cineastas Mas nem tudo está perdido. No dia 1° do ano
querem fazer filme de primeiro mundo, diretores de almocei com o casal Annette e Tenório de Oliveira
teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços, Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no prato
evidentemente, também são de primeiro mundo. rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de
pão e viva o terceiro mundo, visto lá de cima do
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, apartamento do Morumbi.
Espanha, Irlanda e Grécia, que se debruçaram na
mamata da CEE e agora enfrentam uma séria No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar
recessão e desemprego? Nabuco, debaixo de frondosas sibipirunas da Praça
Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda sem-
Por que essa mania, de repente, de querer virar vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava
primeiro mundo? De terceiro para primeiro? Não começando bem o ano. Vai ser um Ano Bom, como
seria o caso de fazer um estágio, antes, no segundo se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB
mundo? estão comendo mortadela, nem tudo está perdido.
No Gargalhada Bar mais para PT, há um excelente
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do sanduíche de mortadela.
terceiro. Por exemplo, a caipirinha. Alemães,
ingleses, americanos, suecos caem trôpegos pelas E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a
calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais verdadeira mortadela, aquela que chega no balcão,
brasileira, mais terceiromundista, mais caipira e mais feita na chapa, sem queimar muito, servida em
barata? Mas já estão avacalhando com ela. Agora já pãezinhos saídos do forno.
tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum.
Caipirinha sempre foi e sempre será de cachaça. Vamos deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este
Coisa de caipira mesmo. E é esta bebida que os ano, tomar cachaça e comer mortadela. É muito
europeus vêm procurar aqui. Mas já meteram a mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro
vodca e o rum nela para ficar com cara de primeiro mundo exploda entre eles, mesmo tomando uísque
mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, escocês e comendo queijo fedido.
brasileiros!
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas,
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou vamos deixar de frescura. Mortadela é o que há. É
mortandela, como preferem garçons e padeiros. um barato.
Quer coisa mais brasileira que a mortadela? Claro
que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita
baixo preço, o petisco do brasileiro. O nome vem de mortadela. Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste
murta, uma plantinha italiana que lhe valeu o nome. e melancólico. Continuemos felizes e alegres com a
Infelizmente o brasileiro acha que mortadela é coisa nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
de pobre, de faminto. E o que somos nós, cara-
pálidas? E que os candidatos à presidência deste nosso país
do terceiro mundo não se esqueçam que o Jânio
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do sempre se elegeu comendo “mortandela” e não
nosso querido terceiro mundo. Mas acontece que há caviar do primeiro mundo.
um preconceito dos patrícios contra a cachaça e a
mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Publicada no jornal O Estado de S. Paulo, 5/1/1994.

Se você oferecer mortadela numa festa, vão te olhar


feio. Você deve estar perto da falência.
138
A Rua do Ouvidor Entre parêntese.
Joaquim Manuel de Macedo
Em 1839 ainda era de uso ordinário e comum
a casaca; o reinado de paletó começou
A Rua do Ouvidor contou diversas lojas de
depois; muitos estudantes iam às aulas de
perfumarias, e, por consequência, devia ser a
casacas, e não havia senador nem deputado
rua mais cheirosa, mais perfumada entre
que se apresentasse desacasacado nas
todas as da cidade do Rio de Janeiro.
respectivas Câmaras: o paletó tornou-se
eminentemente parlamentar de 1845 em
E todavia não o era!... diante.

Com efeito não havia nem há rua mais Fechou-se o parênteses.


opulenta de aromas, de perfumes, de
pastilhas odoríferas, de banhas e de pomadas
O inglês de chapéu de patente, casaca preta e
de ótimo cheiro; mas tudo isso encerrado em
gravata branca subia pela Rua do Ouvidor,
vidrinhos, em frascos e em pequenas caixas
quando encontrou um negro que descia,
bonitas que mantinham e mantêm a Rua do
levando à cabeça um tigre para despejá-lo no
Ouvidor tão inodora como as outras de dia.
mar.

Atualmente de noite observa-se o mesmo


O pobre africano ainda a tempo recuou um
fato.
passo, mas o inglês que não sabia recuar
avançou outro; o condutor do tigre encostou-
Naquele tempo, porém, isto é, nos tempos do se à parede que lhe ficava à mão direita, e o
Demarais, e ainda depois, a Rua do Ouvidor, inglês supondo-se desconsiderado por um
de fácil e reta comunicação com a praia, era negro que lhe dava passo à esquerda
uma das mais frequentadas pelos condutores pronunciou a ameaçadora palavra goodemi, e
dos repugnantes barris, das oito horas da sem mais tir-te nem guar-te honrou com um
noite até às dez. soco britânico a face do africano, que
perdendo o equilíbrio pelo ataque e pela dor,
A esses barris asquerosos o povo deu a deixou cair o tigre para diante e naturalmente
denominação geralmente adotada de - tigres - de boca para baixo.
pelo medo explicável que todos fugiam deles.
Esse ruim costume do passado me traz à Ah! Que não sei de nojo como o conte!
memória informação falsa e ridícula que li, e
caso infeliz e igualmente ridículo, de que fui
O Tigre ou o barril abismou em seu bojo o
testemunha ocular e nasal em 1839, no meu
chapéu e a cabeça e inundou com o seu
saudoso tempo de estudante.
conteúdo a casaca preta, o colete e as calças
do inglês.
A informação é a seguinte:
O negro fugiu acelerado, e a vítima de sua
Um francês (viajante charlatão) passou pela própria imprudência, conseguindo livrar-se do
cidade do Rio de Janeiro, e demorando-se barril, que o encapelara, lançou-se a correr
nela alguns dias, ouviu dos patrícios da Rua atrás do africano, sacudindo o chapéu em
do Ouvidor queixas dos incômodos tigres que estado indizível, e bradando furioso:
frequentes passavam ali de noite. Sábio e
consciencioso observador que era, o viajante
— Pegue ladron! Pegue ladron!...
tomou nota do ato, e poucos anos depois
publicou, no seu livro de viagens, esta famosa
notícia: Mas qual - pega ladron! -: todos se
arredavam de inocente e malcheiroso negro
que fugia, e ainda mais o inglês, tornado tigre
“Na cidade do Rio de Janeiro, capital do
pela inundação que recebera.
Império do Brasil, feras terríveis, os trigraves,
vagam, durante a noite, pelas ruas, etc.,
etc.!!!” Era geral o coro de risadas na Rua do
Ouvidor.
E é assim que escreve a história!
O inglês, perdendo enfim de vista o africano,
completou o caso com um remate pelo menos
O caso que observei foi desastroso, mas de
tão ridículo como o seu desastre. Voltando rua
natureza que fez rir a todos.
acima, parou em frente de numeroso grupo
de gente que testemunhara a cena, e ria-se
Pouco depois das oito horas da noite, um inglês, dela.
trajando casaca preta e gravata branca...

139
Ainda hoje o estou vendo; o inglês parou, e O Cronista é um Escritor Crônico
sempre a sacudir o chapéu olhou iroso para o Affonso Romano de Sant'Anna
grupo e disse mas disse com orgulhosa
gravidade britânica:
O primeiro texto que publiquei em jornal foi
uma crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos.
— Amanhã faz queixa a ministro da E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de
Inglaterra, e há de ter indenização de chapéu
Fora, passei para os jornais e revistas de Belo
e de casaca perdidas.
Horizonte e depois para a imprensa do Rio e
São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em
Ah! Eu creio que então a melhor das risadas jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas
que romperam foi a minha gostosa, longa e foi somente quando me chamaram para
repetida risada de estudante feliz e alegrão. É
substituir Drummond no Jornal do Brasil, em
inútil dizer que não houve questão
1984, que passei a fazer crônica
diplomática. A Inglaterra ainda não se tinha
feito representar no Brasil por Mr. Christie, o
sistematicamente. Virei um escritor crônico.
único capaz (depois do jantar) de exigir
indenização do chapéu e da casaca que o O que é um cronista?
patrício perdera.
Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é
Não foi este único desastre que os tigres como uma galinha, bota seu ovo regularmente.
ocasionaram, foram muitos e todos mais ou Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são
menos grotescos, e sei de um outro (além da como laranjas, podem ser doces ou azedas e
encapelação do inglês) ocorrido na Rua do ser consumidas em gomos ou pedaços, na
Carmo hoje Sete de Setembro, que de súbito poltrona de casa ou espremidas na sala de
desfez as mais doces esperanças do casamento
aula.
inspirado e desejado por mútuo amor.

Já andei dizendo que o cronista é um estilista.


O namorado era estudante, meu colega e
amigo; estava perdidamente apaixonado por
Não confundam, por enquanto, com estilista.
uma viúva, viuvinha de dezoito anos, e linda Estilita era o santo que ficava anos e anos em
como os amores. cima de uma coluna, no deserto, meditando e
pregando. São Simeão passou trinta anos
assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de
Uma noite, a bela senhora estava à janela, e
à luz de fronteiro lampião viu o namorado tanto purificar seu estilo diariamente o cronista
que, aproveitando o ponto do mais vivo clarão estilista acaba virando um estilista.
iluminador, lhe mostrava, levando-o ao nariz,
um raminho de lindas flores, que ia enviar- O cronista é isso: fica pregando lá em cima de
lhe, quando nesse momento o cego sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa
apaixonado esbarrou com um condutor de confusão entre colunista e cronista, assim
tigre, e, embora não encapelado, foi quase como há outra confusão entre articulista e
tão infeliz como o inglês. cronista. O articulista escreve textos
expositivos e defende temas e idéias. O
O pior do caso foi que a jovem adorada cronista é o mais livre dos redatores de um
incorreu no erro quase inevitável de desatar a jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve)
rir, e logo depois de fugir da janela por causa falar na primeira pessoa sem envergonhar-se.
do mau cheiro de que se encheu a rua. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de
utilidade pública.
O namorado ressentiu-se do rir impiedoso da
sua esperançosa e querida noiva; amoroso, Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos.
porém, como estava, dois dias depois tornou Conto casos, faço descrições, anoto momentos
a passar diante das queridas janelas. líricos, faço críticas sociais. Uma das funções
da crônica é interferir no cotidiano. Claro que
No erro; a formosa viúva, ao ver o estudante, essas que interferem mais cruamente em
saudou-o doce, ternamente, mas levou o assuntos momentosos tendem a perder sua
lenço a boca para dissimular o riso lembrador atualidade quando publicadas em livro. Não
de ridículo infortúnio. tem importância. O cronista é crônico, ligado ao
tempo, deve estar encharcado, doente de seu
O estudante deu então solene cavaco, e não tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.
apareceu mais à bela viuvinha.
12/6/88
Um tigre matou aquele amor. Texto extraído do jornal "O Globo" - Rio de Janeiro.

Memórias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Perseverança, 1878.

140
(gomos hexagonais!), jamais seria barrada em
Peladas recepção do Itamaraty.
Armando Nogueira
No entanto, aí está ela, correndo para cima e para
Esta pracinha sem aquela pelada virou uma
baixo, na maior farra do mundo, disputada,
chatice completa: agora, é uma babá que passa,
maltratada até, pois, de quando em quando,
empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é
acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo
um par de velhos que troca silêncios num banco
estrelas, coitadinha.
sem encosto.

Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também


E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de
sem-pulo de craque como aquele do Tona, que
menino, de sol, de bola, de sonho: “Eu jogo na
empatou a pelada e que lava a alma de qualquer
linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com
bola. Uma pintura.
o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás:
entrou aqui, já sabe”. Uma gritaria, todo mundo se
Nova saída.
escalando, todo mundo querendo tirar o selo da
bola, bendito fruto de uma suada vaquinha. Entra na praça batendo palmas como quem enxota
galinha no quintal. É um velho com cara de
Oito de cada lado e, para não confundir, um time
guarda-livros que, sem pedir licença, invade o
fica como está; o outro joga sem camisa.
universo infantil de uma pelada e vai expulsando
todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o
Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova,
mundo está vazio. Não deu tempo nem de
seja velha, é um ser muito compreensivo que
desfazer as traves feitas de camisas.
dança conforme a música: se está no Maracanã,
numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar
O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira
dramático, mantendo sempre a mesma pose
do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada.
adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de
No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em
um gandula.
cada gomo o coração de uma criança.

Em compensação, num racha de menino ninguém


Os melhores da crônica brasileira. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1977.
é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá,
quica no meio-fio, para de estalo no canteiro,
lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil
canelas, depois escapa, rolando, doida, pela
calçada. Parece um bichinho.

Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a


pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola
profissional, uma número cinco, cheia de
carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA —
Especial”. Uma bola assim, toda de branco,
coberta de condecorações por todos os gomos
141
Do rock talvez tivesse ganas de me esganar. Mas
Carlos Heitor Cony me aturava e aturava o meu Brasil
brasileiro.
Tocam a campainha e há um estrondo em
meus ouvidos. A empregada estava de Hoje, aturo o rock. Vou ao banheiro, lavo
folga, o remédio era atender o mau- o rosto, visto um short e vou para a sala
caráter que me batia à porta àquela hora disposto a causar boa impressão à
da manhã. Vejo o camarada do bigodinho senhorita Regina Celi, que de babydoll,
com o embrulho largo e enfeitado. esbaforida, se degringola ao som de U2.

— É aqui que mora a senhorita Regina O tapete já fora arrastado e amarfanhado


Celi? a um canto. Meu castiçal de prata foi
profanado com a cara de um tipo até
Digo que não e fulmino o importuno com simpático que naquela manhã ganhará
um olhar cheio de ódio e sono, mas antes alguma coisa à custa do meu labor e
de fechar a porta sinto alguma coisa de cheque.
íntimo naquele “senhorita Regina Celi”,
sim, há uma Regina Celi em minha casa, A senhorita Regina Celi tem a cara
minha própria filha, mas apenas de 12 afogueada, os pés e as pernas avançam e
anos, uma guria bochechuda ainda, não ficam no mesmo lugar, o corpo todo
merecia o título e a função de senhorita. treme e sua, até que ela me estende o
braço.
Chamo o homem que já estava no
elevador. Eram CDs, a garota — Vem, papai!
encomendara um mundão de CDs numa
loja próxima, e pedira que mandassem as O peso dos meus invernos e minhas
novidades, pois as novidades estavam ali, banhas causa breve hesitação. Mas ali
embrulhadinhas e com a nota fiscal bem estamos, eu e a senhorita Regina Celi,
às claras. uma menina que ainda pego no colo e
aqueço com meu amor e o meu carinho,
Gemo surdamente na hora de assinar o quando ela tem medo do mundo ou de
cheque e recebo o embrulho. A garota não saber os afluentes da margem
dormia impune, o mundo podia desabar, esquerda do rio Amazonas na hora do
e ninguém a despertaria do sono 12 exame. Ela me chama e me perdoa.
anos. Deixo o embrulho em cima do som
e volto para a cama, forçar o sono e a Então, aumento o volume do som, espero
tranquilidade interior, abalada pelo o tal do U2 dar um grito histérico e
cheque tão matutino e fora de propósito. medonho - e esqueço o cheque, a vida e
Quando ordeno os pensamentos e a faina humana rebolando este cansado
ambições no estreito espaço do meu corpo-pasto de espantos - até que o
pensamento e retomo um sono e um fôlego e o U2 acabem na manhã e no
sonho sem cor nem gosto, começa o som.
rock.
Crônicas para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva,
2009.
Anos atrás, seria começa o beguine. Mas
o beguine passou de moda, e o swing, o
mambo, o baião e outras pragas vindas
de alheias e próprias pragas. Pois aí
estava o rock, matinal, cor de sangue e
metal inundando o dia e o quarto com
sua voz rouca, seu compasso monótono e
histérico.

Purgo honestamente meus pecados e


lembro o pai, que me aturava a mania
pelos sambas de Ary Barroso. O velho
não dizia nada, mas me olhava fundo e

142
São Paulo: as pessoas de tantos oposto disso são edifícios dotados de clube e
lugares shopping centers, que separam seus moradores do
Milton Hatoum
resto da cidade, gerando uma nova forma de
À primeira vista, São Paulo assusta. Aos poucos, segregação do espaço, ainda mais radical que os
o susto cede ao fascínio, à surpresa da descoberta condomínios.
de muitos lugares escondidos ou ocultados numa
metrópole da qual a natureza parece ter sido Há pouco tempo, uma amiga carioca me disse que

banida. Isto só em parte é verdade. Há vários gostava cada vez mais de São Paulo. Quis saber

parques e jardins — Aclimação, Villa-Lobos, por que. Porque fiz boas amizades na metrópole

Burle Marx, Água Branca e tantos outros —, sem vizinha, ela disse.

contar o Ibirapuera, que simboliza uma promessa


Senti isso quando me mudei para cá em 1970.
de urbanismo mais civilizado, ou de um processo
Morei num quarto de pensão na Liberdade. Um
urbano mais humanizado, interrompido pela
dos colegas dessa pensão era outro migrante, um
ganância das construtoras e da especulação
rapaz de Londrina que passava o dia estudando
imobiliária em conluio com o poder público
música e que se tornou, além de um grande
municipal.
músico, um grande amigo: Arrigo Barnabé.

Esse urbanismo desastroso e desumano é uma das


Entendi que São Paulo era uma meca para onde
características das cidades brasileiras, em que os
confluíam pessoas de todos os quadrantes, as
bons arquitetos não participam da intervenção na
latitudes e as origens; talvez seja este o maior
paisagem urbana. Apesar das adversidades, um
encanto desta metrópole que une o culto ao
morador de São Paulo aprende a gostar da
trabalho com promessas de amizade. A
metrópole. Já quase não se vê o céu de Sampa,
diversidade étnica de São Paulo reitera a
mas há bairros que são pequenas cidades, há ruas
mestiçagem brasileira, uma das nossas maiores
com um casario de uma outra época, com um
riquezas.
ritmo de vida próprio, como se outro tempo
resistisse ao cerco dos arranha-céus horrorosos e
Não há um único paulistano que não reclame do
ao mundo das finanças e do consumo desenfreado.
trânsito, da poluição, da violência e das filas
intermináveis, mas as relações de trabalho e afeto,
Gosto de passear pelo Cambuci, Belenzinho,
que são formas poderosas de inserção social,
Penha; Brás, Mooca, Tatuapé e Santana ainda
servem de contrapeso ao caos e aos males da
revelam muitos encantos, assim como a Estação
metrópole.
da Luz e o Mercado Municipal. No mundo
grandioso da metrópole, pode-se descobrir uma Milton Hatoum, 55, escritor, autor de Órfãos do Eldorado e
Dois irmãos (ambos pela Companhia das Letras), entre
série de recantos: pequenas praças, um recorte de outros títulos. Texto publicado na Revista da Folha,
25/05/2008.
paisagem, um beco, um conjunto de casas
neoclássicas, uma antiga vila operária, um boteco
ou restaurante. Recantos que encerram um outro
modo de vida, como se a metrópole fosse um
palimpsesto a ser descoberto em cada andança. O

143
reassegurar-se da naturalidade de sua
A última crônica presença ali. A meu lado o garçom
Fernando Sabino encaminha a ordem do freguês. O
homem atrás do balcão apanha a porção
do bolo com a mão, larga-o no pratinho -
A caminho de casa, entro num botequim
um bolo simples, amarelo-escuro, apenas
da Gávea para tomar um café junto ao
uma pequena fatia triangular.
balcão. Na realidade estou adiando o
momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de estar inspirado, de A negrinha, contida na sua expectativa,
coroar com êxito mais um ano nesta olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho
busca do pitoresco ou do irrisório no que o garçom deixou à sua frente. Por
cotidiano de cada um. Eu pretendia que não começa a comer? Vejo que os
apenas recolher da vida diária algo de três, pai, mãe e filha, obedecem em torno
seu disperso conteúdo humano, fruto da à mesa um discreto ritual. A mãe remexe
convivência, que a faz mais digna de ser na bolsa de plástico preto e brilhante,
vivida. Visava ao circunstancial, ao retira qualquer coisa. O pai se mune de
episódico. Nesta perseguição do uma caixa de fósforos, e espera. A filha
acidental, quer num flagrante de esquina, aguarda também, atenta como um
quer nas palavras de uma criança ou num animalzinho. Ninguém mais os observa
acidente doméstico, torno-me simples além de mim.
espectador e perco a noção do essencial.
Sem mais nada para contar, curvo a São três velinhas brancas, minúsculas,
cabeça e tomo meu café, enquanto o que a mãe espeta caprichosamente na
verso do poeta se repete na lembrança: fatia do bolo. E enquanto ela serve a
“assim eu quereria o meu último poema”. Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende
Não sou poeta e estou sem assunto. as velas. Como a um gesto ensaiado, a
Lanço então um último olhar fora de menininha repousa o queixo no mármore
mim, onde vivem os assuntos que e sopra com força, apagando as chamas.
merecem uma crônica. Imediatamente põe-se a bater palmas,
muito compenetrada, cantando num
Ao fundo do botequim um casal de pretos balbucio, a que os pais se juntam,
acaba de sentar-se, numa das últimas discretos: “Parabéns pra você, parabéns
mesas de mármore ao longo da parede pra você...”. Depois a mãe recolhe as
de espelhos. A compostura da humildade, velas, torna a guardá-las na bolsa. A
na contenção de gestos e palavras, negrinha agarra finalmente o bolo com as
deixa-se acrescentar pela presença de duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo.
uma negrinha de seus três anos, laço na A mulher está olhando para ela com
cabeça, toda arrumadinha no vestido ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo
pobre, que se instalou também à mesa: crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai
mal ousa balançar as perninhas curtas ou ao colo. O pai corre os olhos pelo
correr os olhos grandes de curiosidade ao botequim, satisfeito, como a se
redor. Três seres esquivos que compõem convencer intimamente do sucesso da
em torno à mesa a instituição tradicional celebração. Dá comigo de súbito, a
da família, célula da sociedade. Vejo, observá-lo, nossos olhos se encontram,
porém, que se preparam para algo mais ele se perturba, constrangido — vacila,
que matar a fome. ameaça abaixar a cabeça, mas acaba
sustentando o olhar e enfim se abre num
sorriso.
Passo a observá-los. O pai, depois de
contar o dinheiro que discretamente
retirou do bolso, aborda o garçom, Assim eu quereria minha última crônica:
inclinando-se para trás na cadeira, e que fosse pura como esse sorriso.
aponta no balcão um pedaço de bolo sob
Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro:
a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando José Olympio, 2005.
imóvel, vagamente ansiosa, como se
aguardasse a aprovação do garçom. Este
ouve, concentrado, o pedido do homem e
depois se afasta para atendê-lo. A mulher
suspira, olhando para os lados, a
144
Ser brotinho eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês
sem saber verbos irregulares. É ter comprado na
Paulo Mendes Campos
feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

Ser brotinho não é viver em um píncaro


É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada
azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir
de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe
bastante dos homens e rir interminavelmente
que veio andando devagar para molhar-se mais.
das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou
É ter saído um dia com uma rosa vermelha na
invisível, provocasse uma tosse de riso
mão, e todo mundo pensou com piedade que ela
irresistível.
era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema,
mas com um jeito de quem não espera mais
Ser brotinho é não usar pintura alguma, às nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins,
vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos quatro uísques, cinco taças de champanha e
desarrumados como se ventasse forte, o corpo uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra
todo apagado dentro de um vestido tão de vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter
propósito sem graça, mas lançando fogo pelos dado um vexame modelo grande. É o dom de
olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos. falar sobre futebol e política como se o presente
fosse passado, e vice-versa.
É viver a tarde inteira, em uma atitude
esquemática, a contemplar o teto, só para poder Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o
contar depois que ficou a tarde inteira olhando salão da festa com uma indiferença mortal pelas
para cima, sem pensar em nada. É passar um mulheres presentes e ausentes. Ter estudado
dia todo descalça no apartamento da amiga ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas
comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa
brotinho é ainda possuir vitrola própria e um gatinho magro que miava de fome e ter
perambular pelas ruas do bairro com um ar aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o
sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar
elepês coloridos. É dizer a palavra feia pasmada no escuro da varanda sem contar para
precisamente no instante em que essa palavra ninguém a miserável traição. Amanhecer
se faz imprescindível e tão inteligente e chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo
superior. É também falar legal e bárbaro com na melodia dissonante. Usar o mais caro
um timbre tão por cima das vãs agitações perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter
humanas, uma inflexão tão certa de que tudo horror de gente morta, ladrão dentro de casa,
neste mundo passa depressa e não tem a menor fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só
importância. mendigo entre todos os outros mendigos da
Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de
Ser brotinho é poder usar óculos enormes como um mês por um violinista estrangeiro de quinta
se fosse uma decoração, um adjetivo para o ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se
rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de
coisas que os coroas levam a sério, mas é tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer
também dar sentido de repente ao vácuo marcação cerrada sobre a presunção
absoluto. Aguardar na paciente geladeira o incomensurável dos homens. Tomar uma pose,
momento exato de ir à forra da falsa amiga. É ora de soneto moderno, ora de minueto, sem
ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, que se dissipe a unidade essencial. É policiar
recados que os anacolutos tornam misteriosos, parentes, amigos, mestres e mestras com um ar
anotações criptográficas sobre o tributo da songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada
natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros fala.
com uma sentença hermética escrita a batom,
toda uma biografia esparsa que pode ser atirada Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser
de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a brotinho é detestar. Detestar o possível. É
inclinação do momento. acordar ao meio-dia com uma cara horrível,
comer somente e lentamente uma fruta meio
É telefonar muito, demais, revirando-se no chão verde, e ficar de pijama telefonando até a hora
como dançarina no deserto estendida no chão. É do jantar, e não jantar, e ir devorar um
querer ser rapaz de vez em quando só para sanduíche americano na esquina, tão estranha é
vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da a vida sobre a Terra.
cidade. Achar muito bonito um homem muito
feio; achar tão simpática uma senhora tão O cego de Ipanema. Rio de Janeiro: Editora do Autor,
antipática. É fumar quase um maço de cigarros 1960.
na sacada do apartamento, pensando coisas
brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um


pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o
amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir
uma vontade doida de tomar banho de mar de
noite e sem roupa, completamente. É ficar
145
O amor acaba – Paulo Mendes Campos esmaltadas com sangue, suor e desespero;
nos roteiros do tédio para o tédio, na barca,
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo,
no trem, no ônibus, ida e volta de nada para
num domingo de lua nova, depois de teatro e
nada; em cavernas de sala e quarto
silêncio; acaba em cafés engordurados,
conjugados o amor se eriça e acaba; no
diferentes dos parques de ouro onde começou
inferno o amor não começa; na usura o amor
a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que
se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó;
ele atira de raiva contra um automóvel ou que
no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte,
ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de
remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta
cinzas o escarlate das unhas; na acidez da
que chegou depois, o amor acaba; uma carta
aurora tropical, depois duma noite votada à
que chegou antes, e o amor acaba; na
alegria póstuma, que não veio; e acaba o
descontrolada fantasia da libido; às vezes
amor no desenlace das mãos no cinema,
acaba na mesma música que começou, com o
como tentáculos saciados, e elas se
mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e
movimentam no escuro como dois polvos de
muitas vezes acaba em ouro e diamante,
solidão; como se as mãos soubessem antes
dispersado entre astros; e acaba nas
que o amor tinha acabado; na insônia dos
encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque;
braços luminosos do relógio; e acaba o amor
no coração que se dilata e quebra, e o médico
nas sorveterias diante do colorido iceberg,
sentencia imprestável para o amor; e acaba
entre frisos de alumínio e espelhos
no longo périplo, tocando em todos os portos,
monótonos; e no olhar do cavaleiro errante
até se desfazer em mares gelados; e acaba
que passou pela pensão; às vezes acaba o
depois que se viu a bruma que veste o
amor nos braços torturados de Jesus, filho
mundo; na janela que se abre, na janela que
crucificado de todas as mulheres;
se fecha; às vezes não acaba e é
mecanicamente, no elevador, como se lhe
simplesmente esquecido como um espelho de
faltasse energia; no andar diferente da irmã
bolsa, que continua reverberando sem razão
dentro de casa o amor pode acabar; na
até que alguém, humilde, o carregue consigo;
epifania¹ da pretensão ridícula dos bigodes;
às vezes o amor acaba como se fora melhor
nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas
nunca ter existido; mas pode acabar com
silabadas femininas; quando a alma se
doçura e esperança; uma palavra, muda ou
habitua às províncias empoeiradas da Ásia,
articulada, e acaba o amor; na verdade; o
onde o amor pode ser outra coisa, o amor
álcool; de manhã, de tarde, de noite; na
pode acabar; na compulsão da simplicidade
floração excessiva da primavera; no abuso do
simplesmente; no sábado, depois de três
verão; na dissonância do outono; no conforto
goles mornos de gim à beira da piscina; no
do inverno; em todos os lugares o amor
filho tantas vezes semeado, às vezes vingado
acaba; a qualquer hora o amor acaba; por
por alguns dias, mas que não floresceu,
qualquer motivo o amor acaba; para
abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre
recomeçar em todos os lugares e a qualquer
o pólen e o gineceu de duas flores; em
minuto o amor acaba.
apartamentos refrigerados, atapetados,
aturdidos de delicadezas, onde há mais 1. No sentido literário, epifania é um momento
privilegiado de revelação quando ocorre um evento
encanto que desejo; e o amor acaba na que “ilumina” a vida da personagem.
poeira que vertem os crepúsculos, caindo
O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais. 2ª- ed. Rio:
imperceptível no beijo de ir e vir; em salas Civilização Brasileira, 2000.
146
Sobre o amor maledicentes. Por maior que tenha sido a paixão
Ferreira Gullar inicial, o impulso que os levou à pretoria ou ao altar
(ou a ambos), a simples assinatura do contrato já
Houve uma época em que eu pensava que as
muda tudo. Com o casamento o amor sai do
pessoas deviam ter um gatilho na garganta:
marginalismo, da atmosfera romântica que o
quando pronunciasse — eu te amo —, mentindo,
envolvia, para entrar nos trilhos da
o gatilho disparava e elas explodiam. Era uma institucionalidade. Torna-se grave. Agora é construir
defesa intolerante contra os levianos e que um lar, gerar filhos, criá-los, educá-los até que,
refletia sem dúvida uma enorme insegurança de adultos, abandonem a casa para fazer sua própria
seu inventor. Insegurança e inexperiência. Com o vida. Ou seja: se corre tudo bem, corre tudo mal.
passar dos anos a idéia foi abandonada, a vida Mas, não radicalizemos: há exceções — e dessas
revelou-me sua complexidade, suas nuanças. exceções vive a nossa irrenunciável esperança.
Aprendi que não é tão fácil dizer eu te amo sem
pelo menos achar que ama e, quando a pessoa Conheci uma mulher que costumava dizer: não

mente, a outra percebe, e se não percebe é há amor que resista ao tanque de lavar (ou à

porque não quer perceber, isto é: quer acreditar máquina, mesmo), ao espanador e ao bife com

na mentira. Claro, tem gente que quer ouvir essa fritas. Ela possivelmente exagerava, mas com

expressão mesmo sabendo que é mentira. O razão, porque tinha uns olhos ávidos e brilhantes

mentiroso, nesses casos, não merece punição e um coração ansioso. Ouvia o vento rumorejar

alguma. nas árvores do parque, à tarde incendiando as


nuvens e imaginava quanta vida, quanta aventura
Por aí já se vê como esse negócio de amor é estaria se desenrolando naquele momento nos
complicado e de contornos imprecisos. Pode-se bares, nos cafés, nos bairros distantes. À sua
dizer, no entanto, que o amor é um sentimento volta certamente não acontecia nada: as pessoas
radical — falo do amor-paixão — e é isso que em suas respectivas casas estavam apenas
aumenta a complicação. Como pode uma coisa morando, sofrendo uma vida igual à sua. Essa
ambígua e duvidosa ganhar a fúria das inquietação bovariana prepara o caminho da
tempestades? Mas essa é a natureza do amor, aventura, que nem sempre acontece. Mas
comparável à do vento: fluido e arrasador. É dificilmente deixa de acontecer. Pode não
como o vento, também às vezes doce, brando, acontecer a aventUra sonhada, o amor louco, o
claro, bailando alegre em torno de seu oculto sonho que arrebata e funda o paraíso na terra.
núcleo de fogo. Acontece o vulgar adultério - o assim chamado -,
que é quase sempre decepcionante, condenado,
O amor é, portanto, na sua origem, liberação e amargo e que se transforma numa espécie de
aventura. Por definição, anti-burguês. O próprio da vingança contra a mediocridade da vida. É como
vida burguesa não é o amor, é o casamento, que é o
uma droga que se toma para curar a ansiedade e
amor institucionalizado, disciplinado, integrado na
reajustar-se ao status quo. Estou curada, ela
sociedade. O casamento é um contrato: duas
então se diz — e volta ao bife com fritas.
pessoas se conhecem, se gostam, se sentem a
traídas uma pela outra e decidem viver juntas. Isso
Mas às vezes não é assim. Às vezes o sonho
poderia ser uma COisa simples, mas não é, pois há
vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus
que se inserir na ordem social, definir direitos e
pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde?
deveres perante os homens e até perante Deus.
Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois
Carimbado e abençoado, o novo casal inicia sua
até, desde que as dificuldades sejam de
vida entre beijos e sorrisos. E risos e risinhos dos

147
proporção suficiente para manter vivo o desafio e inesperadamente, quando abres a gaveta, o livro.
não tão duras que acovardem os amantes. Para E te fere não porque ali esteja o sonho ainda,
isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. mas exatamente porque já não está: esteve. Sais
O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir para o trabalho, que é preciso esquecer, afundar
a ignição máxima, a entrega total, deve estar no dia-a-dia, na rotina do dia, tolerar o passar das
condenado: a consciência da precariedade da horas, a conversa burra, o cafezinho, as notícias
relação possibilita mergulhar nela de corpo e do jornal. Edifícios, ruas, avenidas, lojas, cinema,
alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto aeroportos, ônibus, carrocinhas de sorvete: o
vive, como numa desvairada montanha-russa, até mundo é um incomensurável amontoado de
que, de repente, acaba. E é necessário que inutilidades. E de repente o táxi que te leva por
acabe como começou, de golpe, cortado rente na uma rua onde a memória do sonho paira como
carne, entre soluços, querendo e não querendo um perfume. Que fazer? Desviar-se dessas ruas,
que acabe, pois o espírito humano não comporta ocultar os objetos ou, pelo contrário, expor-se a
tanta realidade, como falou um poeta maior. E tudo, sofrer tudo de uma vez e habituarse? Mais
enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as dia menos dia toda a lembrança se apaga e te
mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho surpreendes gargalhando, a vida vibrando outra
pelo céu deserto de anjos. O alívio se confunde vez, nova, na garganta, sem culpa nem desculpa.
com o vazio, e você agora prefere morrer. E chegas a pensar: quantas manhãs como esta
perdi burramente! O amor é uma doença como
A barra é pesada. Quem conheceu o delírio outra qualquer.
dificilmente se habitua à antiga banalidade. Foi
Gogol, no Inspetor Geral quem captou a E é verdade. Uma doença ou pelo menos uma
decepção desse despertar. O falso inspetor anormalidade. Como pode acontecer que,
mergulhara na fascinante impostura que lhe subitamente, num mundo cheio de pessoas,
possibilitou uma vida de sonho: homenagens, alguém meta na cabeça que só existe fulano ou
bajulações, dinheiro e até o amor da mulher e da fulana, que é impossível viver sem essa pessoa?
filha do prefeito. Eis senão quando chega o E reparando bem, tirando o rosto que era lindo, o
criado, trazendo-lhe o chapéu e o capote corpo não era lá essas coisas... Na cama era
ordinário, signos da sua vida real, e lhe diz que regular, mas no papo um saco, e mentia, dizia
está na hora de ir-se pois o verdadeiro inspetor tolices, e pensar que quase morro!...
está para chegar. Ele se assusta: mas então está
tUdo acabado? Não era verdade o sonho? E Isso dizes agora, comendo um bife com fritas

assim é: a mais delirante paixão, terminada, deixa diante do espetáculo vesperal dos cúmulos e

esse sabor de impostura na boca, como se a nimbos. Em paz com a vida. Ou não.
felicidade não pudesse ser verdade. E no entanto
o foi, e tanto que é impossível continuar vivendo
agora, sem ela, normalmente. Ou, como diz Chico O texto acima foi extraído do livro "A estranha vida banal",
editora José Olympio - 1989, e consta da antologia "As 100
Buarque: sofrendo normalmente. melhores crônicas brasileiras", Editora Objetiva, pág. 279 - Rio
de Janeiro - 2005, organização e introdução de Joaquim
Ferreira dos Santos.
Evaporado o fantasma, reaparece em sua banal
realidade o guardaroupa, a cômoda, a camisa
usada na cadeira, os chinelos. E tUdo
impregnado da ausência do sonho, que é agora
uma agulha escondida em cada objeto, e te fere,
148
VARIAÇÕES EM TORNO DA PAIXÃO Outras viram cinzas por causa dela.
Affonso Romano de Sant’anna E há pessoas que são como aquela
ave mítica — a Fênix, vivem renascendo
Paixão é a alucinação amorosa. E os das cinzas da paixão.
apaixonados são de duas espécies: os Marx, portanto, errou completamente.
generosos, que se dão inteiramente, se Não é a luta de classes que move a história,
jogando estabanadamente nas mãos do é a paixão. Paixão é a revolução a dois. Ela
outro, e os possessivos, que querem que o desafia o sistema. Diante dela a
outro se incorpore a eles convertidos em comunidade fica abalada. A paixão é anti-
sombra viva. social e egoísta, no que é diferente do amor
Mas talvez haja um terceiro tipo: o maduro, longo e duradouro, que fecunda a
dos que não se apaixonam, mas despertam vida dos amantes e reforça os laços da
paixões. Na impossibilidade ou no medo de comunidade. Com Romeu e Julieta, por
se apaixonar, posto que paixão é abismo, exemplo, fez-se a revolução a dois. Foi
alimentam-se da paixão alheia, ou melhor, assim com Tristão e Isolda, com Genevieve
incentivam a paixão em torno para e Lancelot. Não é de hoje que os reinos se
preencher algo em si. fazem e se refazem por causa da paixão.
Paixão, por isto é arma de dois ou três Existe diferença entre amor e paixão?
gumes. E corta. E sangra. Se não sangrou, No amor, claro que há luminosa
se não teve insônia, se não desesperou, se coabitação. Mas o amor é também paciente
não ficou com a alma dependurada num fio construção.
de telefone, se não ficou exposto na úmida Já a paixão é arrebatamento puro e aí
espera, paixão não era. a voragem é tão grande que pode tudo se
Talvez fosse desejo, que o desejo é esgotar de repente.
diferente. Quantas vezes se apaixona numa
No desejo a gente quer o outro para vida?
possuí-lo apenas passageiramente. É como Há gente que vive se inventando
se fosse um apetite despertado por um paixões para viver, que vive morrendo de
fruto ou alguma comida saborosa que saliva amor. E há gente que organiza toda sua
nossos sentidos. É como se fosse possuir vida em torno de uma única e consumidora
um objeto na vitrina. É um desejo de posse paixão.
natural, estético, erótico, mas sendo mais Paixão é transgressão. Quanto mais
desejo que qualquer outra coisa, isto vai obstáculos inventarem, mais o apaixonado
passar. os saltará.
E passa. E o apaixonado não tem medo do
Na paixão, não. ridículo. O que lhe importa o mundo, se o
Na paixão, a gente quer se fundir com seu mundo é apenas o mundo da pessoa
o outro. Para sempre. De corpo e alma. amada?
Perde totalmente o centro de gravidade. A paixão tem cor. Mais que vermelha
Transfere a moradia de seu ser para a casa e rubra, é roxa. Pressupõe morte e
do ser alheio. É como se vestisse a pele do ressurreição.
outro. E se o outro disser assim: “Vai ali De paixão vivemos muito.
buscar aquela estrela ou mesmo a Lua” De paixão morremos sempre.
(como naquele lindo conto de Murilo Rubião
chamado Bárbara), se o outro disser isto, a
gente vai airosamente buscar o que ele
quer.
E se o outro disser: “Não estou
gostando de seu nariz”, a gente opera,
corta, joga fora, não só o nariz, mas
qualquer outra coisa, porque, nesse caso,
qualquer palavra ou sugestão é ordem.
A paixão é boa?
A paixão é ruim?
Ninguém sabe. Ela acontece. Como
certas tempestades, ela acontece. Assim
como depois dos vendavais os elementos
da natureza já não são os mesmos,
ninguém será o que era depois do desvario
da paixão.
Vidas renascem com paixões.

149
Amor - O Interminável Aprendizado O amor se procurava. E se encontrando,
Affonso Romano de Sant'Anna desesperava, se afastava, desencontrava.
Então, pensou: há o amor, há o desejo e
Criança, ele pensava: amor, coisa que os há a paixão.
adultos sabem. Via-os aos pares namorando nos O desejo é assim: quer imediata e pronta
portões enluarados se entrebuscando numa realização. É indistinto. Por alguém que, de
aflição feliz de mãos na folhagem das anáguas. repente, se ilumina nas taças de uma festa, por
Via-os noivos se comprometendo à luz da sala alguém que de repente dobra a perna de uma
ante a família, ante as mobílias; via-os casados, maneira irresistivelmente feminina.
um ancorado no corpo do outro, e pensava: Já a paixão é outra coisa. O desejo não é
amor, coisa-para-depois, um depois-adulto- nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde
aprendizado. um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
Se enganava. O amor soma desejo e paixão, é a arte das
Se enganava porque o aprendizado de artes, é arte final.
amor não tem começo nem é privilégio aos Mas reparou: amor às vezes coincide com
adultos reservado. Sim, o amor é um a paixão, às vezes não.
interminável aprendizado. Amor às vezes coincide com o desejo, às
Por isto se enganava enquanto olhava com vezes não.
os colegas, de dentro dos arbustos do jardim, os Amor às vezes coincide com o casamento,
casais que nos portões se amavam. Sim, se às vezes não.
pesquisavam numa prospecção de veios e E mais complicado ainda: amor às vezes
grutas, num desdobramento de noturnos mapas coincide com o amor, às vezes não.
seguindo o astrolábio dos luares, mas nem por Absurdo.
isto se encontravam. E quando algum amante Como pode o amor não coincidir consigo
desaparecia ou se afastava, não era porque mesmo?
estava saciado. Isto aprenderia depois. É que Adolescente amava de um jeito. Adulto
fora buscar outro amor, a busca recomeçara, amava melhormente de outro. Quando viesse a
pois a fome de amor não sabia nunca, como ali velhice, como amaria finalmente? Há um amor
já não se saciara. dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos
De fato, reparando nos vizinhos, podia oitenta? Coisa de demente.
observar. Mesmo os casados, atrás da aparente Não era só a estória e as estórias do seu
tranqüilidade, continuavam inquietos. Alguns amor. Na história universal do amor, amou-se
eram mais indiscretos. A vizinha casada deu sempre diferentemente, embora parecesse ser
para namorar. Aquele que era um crente fiel, sempre o mesmo amor de antigamente.
sempre na igreja, um dia jogou tudo para cima e Estava sempre perplexo. Olhava para os
amigou-se com uma jovem. E a mulher que outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
morava em frente da farmácia, tão doméstica e Não havia jeito. O amor era o mesmo e
feliz, de repente fugiu com um boêmio, sempre diferenciado.
largando marido e filhos. O amor se aprendia sempre, mas do amor
Então, constatou, de novo se enganara. Os não terminava nunca o aprendizado.
adultos, mesmo os casados, embora pareçam Optou por aceitar a sua ignorância.
um porto onde as naus já atracaram, os adultos, Em matéria de amor, escolar, era um
mesmo os casados, que parecem arbustos cujas repetente conformado.
raízes já se entrançaram, eles também não E na escola do amor declarou-se
sabem, estão no meio da viagem, e só eles eternamente matriculado.
sabem quantas tempestades enfrentaram e
quantas vezes naufragaram.
Texto extraído do livro "21 Histórias de amor", Francisco Alves
Depois de folhear um, dez, centenas de Editora – Rio de Janeiro, 2002, pág.11.
corpos avulsos tentando o amor verbalizar,
entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes
paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber
das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas
sobre o corpo morto dos Romeus, Tristãos e
Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam
condenados à traição daqueles que mais
amavam e sem poderem realizar o amor.
150
Crônica do Amor uma boa comédia romântica também tem seu
Arnaldo Jabor valor.

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido
ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e num comercial de xampu e seu corpo tem todas
não fumantes teriam uma fila de pretendentes as curvas no lugar. Independente, emprego fixo,
batendo a porta. bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música,
tem loucura por computador e seu fettucine ao
O amor não é chegado a fazer contas, não pesto é imbatível.
obedece à razão. O verdadeiro amor acontece
por empatia, por magnetismo, por conjunção Você tem bom humor, não pega no pé de
estelar. ninguém e adora sexo. Com um currículo desse,
criatura, por que está sem um amor?
Ninguém ama outra pessoa porque ela é
educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não
são só referenciais. fosse um sentimento, mas uma equação
matemática: eu linda + você inteligente = dois
Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que apaixonados.
o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.
Não funciona assim.
Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os
olhos piscam, pela fragilidade que se revela Amar não requer conhecimento prévio nem
quando menos se espera. consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o
Amor tem de indefinível.
Você ama aquela petulante. Você escreveu
dúzias de cartas que ela não respondeu, você Honestos existem aos milhares, generosos têm
deu flores que ela deixou a seco. às pencas, bons motoristas e bons pais de
família, tá assim, ó!
Você gosta de rock e ela de chorinho, você
gosta de praia e ela tem alergia a sol, você Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor
abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira
no mais eficaz de merecer. É a contingência maior
ódio vocês combinam. Então? de quem precisa.

Então, que ela tem um jeito de sorrir que o


deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante
do que LSD, você adora brigar com ela e ela
adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e


não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra
no armário. Ele não emplaca uma semana nos
empregos, está sempre duro, e é meio galinha.
Ele não tem a menor vocação para príncipe
encantado e ainda assim você não consegue
despachá-lo.

Quando a mão dele toca na sua nuca, você


derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca,
adora animais e escreve poemas. Por que você
ama
este cara?

Não pergunte pra mim; você é inteligente. Lê


livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos
irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que

151
A estante todos os lados. No dia da entrega, voltei do
trabalho apressado para ver minha estante.
Ferreira Gullar

Naquele novo apartamento da rua Visconde de — Como é, veio? — perguntei ao entrar.

Pirajá pela primeira vez teria um escritório para — Veio o quê?


trabalhar. Não era um cômodo muito grande mas
dava para armar ali a minha tenda de reflexões e — Como o quê? A estante!

leitura: uma escrivaninha, um sofá e os livros. Na Não viera. Seu Joaquim não cumprira com a
parede da esquerda ficaria a grande e sonhada palavra empenhada, ah português filho de...
Telefonei para ele sem dissimular, no tom da voz,
estante que caberia todos os meus livros. Tratei minha irritação. E ele:
de encomendá-la a seu Joaquim, um marceneiro
— Como não cumpri? Andei com dois homens de
que tinha oficina na rua Garcia D'Avila com Barão
cima para baixo da rua e não encontrei o tal
da Torre. número que o senhor me indicou. Não existe na
rua Visconde de Pirajá o número 127, senhor
Ferreira.
O apartamento não ficava tão perto da oficina.
Era quase em frente ao prédio onde morava Fiquei sem ação. Dera a ele o número errado.
Mário Pedrosa, entre a Farme de Amoedo e a
— Diga-me o número certo e sua estante estará
antiga Montenegro, hoje Vinicius de Moraes. em sua casa amanhã mesmo.
Estava ali há uma semana e nem decorara ainda
Fiquei sem palavra. Se não era 127, qual número
o número do prédio. Tanto que, quando seu
seria? Não era 227, disso tinha certeza... E o
Joaquim, ao preencher a nota da encomenda, Joaquim ao telefone:
perguntou-me onde seria entregue a estante, tive
— Qual o número, seu Ferreira?
um momento de hesitação. Mas foi só um
momento. Pensei rápido: "Se o prédio do Mário é — É 217, seu Joaquim... É isso, 217.
228, o meu, que fica quase em frente, deve ser
— Muito bem, 217. Já anotei. Amanhã terá sua
227. "Mas lembrei-me de que, ao ir ali pela estante.
primeira vez, observara que, apesar de ficar em
Não tive. Ao chegar em casa e verificar que a
frente ao do Mário, havia uma diferença na estante não estava lá, conclui que havia dado de
numeração. novo o número errado ao marceneiro. E corri para
o telefone a fim de me desculpar.

— Visconde de Pirajá 127 — respondi, e seu — Seu Joaquim, é o senhor Ferreira... da estante.
Joaquim desenhou o endereço na nota.
— O senhor está querendo brincar comigo?
— Tudo bem, seu Ferreira. Dentro de um mês
estará lá sua estante.
Fui tomado por um frouxo de riso, enquanto seu
— Um mês, seu Joaquim! Tudo isso? Veja se Joaquim, indignado, dizia que não ia mais
reduz esse prazo. entregar estante nenhuma, que eu fosse buscá-

— A estante é grande, dá muito trabalho... la, pois já era a segunda vez que subira e
Digamos, três semanas. descera a Visconde de Pirajá, carregando aquela
estante enorme, etc. etc...
Contei as semanas. Não via chegar o momento
de ter no escritório a estante sonhada, onde enfim
poderia arrumar os livros por assunto e autores.
E,mais que isso, sentir-me um escritor de O texto acima foi extraído do livro "A estranha vida
banal", José Olympio Editora - Rio de Janeiro (RJ),
verdade, um profissional, cercado de livros por 1989.

152
A de sempre competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a
de sempre.
Carlos Drummond de Andrade
— Não quis dizer o nome?
— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.
— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa",
— O preço? digamos assim, pois a individualidade começa pela
garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não
— Não. A variedade. O embaras du choix. gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem
me interessa dançar de provador de cerveja,
— Mas se você já estava acostumado com uma... entende?

— E as novas que aparecem? Em cada Estado — Mas que custa experimentar, homem de Deus?
surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual
— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços,
oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar
sim, não encontraram ainda sua definição, em
de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras
matéria de cerveja e de entendimento do mundo.
conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e
Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques
de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não
de ideologias coloridas, do vermelho ao negro,
precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom
passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-
lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há
cor. Mas depois de certa idade, e de certa
anos você optou por uma das duas marcas
experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou
tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a
antes, o que não quer. Principalmente o que não
cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica
quer. E é isso que os outros querem que você
olhando pra sua cara, à espera de definição. Você
queira. Tá compreendendo?
olha para cara dele, como quem diz: Quê que há,
rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa — Mais ou menos.
que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de
captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos — Na verdade, não há muitas espécies de cerveja,

essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns

outras mais. . Desfia o rosário, e você de boca aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto

aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de

elas todas? Acha que sou principiante em busca de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas

aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que

explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 é produto industrial, por que não estaria nos

marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sistemas de organização social, como bonificação?

sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes


— Você está divagando.
pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem,
o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas — Estou. Divagar é uma forma de transformar
pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro,
fazendo com que eles circulem por aí.
promovidas. Não mandou abrir exceção pra
ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei — Ou se percam.
calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra,
— E se percam. Exatamente. 0 importante não é
desculpe. beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é
a única que presta.
— E aí?
Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?
— Aí eu disse que não havia o que desculpar,
ordens são ordens e eu não sou de infringir
regulamentos. Os regulamentos é que infringem a
minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o Texto extraído do livro “De notícias & não notícias faz-se a crônica”,
braço a torcer, nem me declarar vencido pela Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1974, pág. 137.
153
Se é tão antiga e íntima, por que muitos leitores não
Sobre a crônica aprenderam a chamá-la pelo nome? É que ela tem
Ivan Ângelo muitas máscaras. Recorro a Eça de Queirós, mestre do
estilo antigo. Ela “não tem a voz grossa da política,
Uma leitora se refere aos textos aqui publicados como nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do
“reportagens”. Um leitor os chama de “artigos”. Um crítico; tem uma pequena voz serena, leve e clara, com
estudante fala deles como “contos”. Há os que dizem: que conta aos seus amigos tudo o que andou ouvindo,
“seus comentários”. Outros os chamam de “críticas”. perguntando, esmiuçando”.
Para alguns, é “sua coluna”.
A crônica mudou, tudo muda. Como a própria
Estão errados? Tecnicamente, sim — são crônicas —, sociedade que ela observa com olhos atentos. Não é
mas... Fernando Sabino, vacilando diante do campo preciso comparar grandezas, botar Rubem Braga
aberto, escreveu que “crônica é tudo o que o autor diante de Machado de Assis. É mais exato apreciá-la
chama de crônica”. desdobrando-se no tempo, como fez Antonio Candido
em “A vida ao rés do chão”: “Creio que a fórmula
A dificuldade é que a crônica não é um formato, como moderna, na qual entram um fato miúdo e um toque
o soneto, e muitos duvidam que seja um gênero humorístico, com o seu quantum satis³ de poesia,
literário, como o conto, a poesia lírica ou as meditações representa o amadurecimento e o encontro mais puro
à maneira de Pascal¹. Leitores, indiferentes ao nome da crônica consigo mesma”. Ainda ele: “Em lugar de
da rosa, dão à crônica prestígio, permanência e força. oferecer um cenário excelso, numa revoada de
Mas vem cá: é literatura ou é jornalismo? Se o objetivo adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra
do autor é fazer literatura e ele sabe fazer... nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade
insuspeitadas”.
Há crônicas que são dissertações, como em Machado
de Assis; outras são poemas em prosa, como em Elementos que não funcionam na crônica:
Paulo Mendes Campos; outras são pequenos contos, grandiloquência, sectarismo, enrolação, arrogância,
como em Nelson Rodrigues; ou casos, como os de prolixidade. Elementos que funcionam: humor, intimidade,
Fernando Sabino; outras são evocações, como em lirismo, surpresa, estilo, elegância, solidariedade.
Drummond e Rubem Braga; ou memórias e reflexões,
como em tantos. A crônica tem a mobilidade de Cronista mesmo não “se acha”. As crônicas de Rubem
aparências e de discursos que a poesia tem — e Braga foram vistas pelo sagaz professor Davi Arrigucci
facilidades que a melhor poesia não se permite. como “forma complexa e única de uma relação do Eu
com o mundo”. Muito bem. Mas Rubem Braga não se
Está em toda a imprensa brasileira, de 150 anos para achava o tal. Respondeu assim a um jornalista que lhe
cá. O professor Antonio Candido observa: “Até se havia perguntado o que é crônica:
poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero
brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui — Se não é aguda, é crônica.
e pela originalidade com que aqui se desenvolveu”.

Alexandre Eulálio, um sábio, explicou essa origem


estrangeira: “É nosso familiar essay², possui tradição 1. Blaise Pascal (1623-1662), matemático, filósofo e teólogo
de primeira ordem, cultivada desde o amanhecer do francês, autor de Pensamentos.
periodismo nacional pelos maiores poetas e prosistas
da época”. Veio, pois, de um tipo de texto comum na 2. “Ensaio familiar”. Ensaio é um gênero inaugurado por
imprensa inglesa do século XIX, afável, pessoal, sem- Michel de Montaigne (1533-1592); vem da palavra
francesa essayer (“tentar”). Um ensaio é um texto onde se
cerimônia e, no entanto, pertinente. encadeiam argumentos, por meio dos quais o autor
defende uma ideia.
Por que deu certo no Brasil? Mistérios do leitor. Talvez
por ser a obra curta e o clima, quente. 3. Em latim, “a quantidade necessária”.

A crônica é frágil e íntima, uma relação pessoal. Como se


fosse escrita para um leitor, como se só com ele o
narrador pudesse se expor tanto. Conversam sobre o Veja São Paulo, 25/4/2007.
momento, cúmplices: nós vimos isto, não é, leitor?,
vivemos isto, não é?, sentimos isto, não é? O narrador da
crônica procura sensibilidades irmãs.

154
A crônica: um gênero tão livre e tão perigoso muita coisa sobre a crônica. Outros olimpos.
Antonio Gil Neto
Penso e acredito que os professores que
25-Mai-2010
mergulharem nesse projeto irão usufruir também
“Já escrevi mais de cinco mil crônicas. E a de suas ideias próprias sobre a crônica. Por conta
uns estudantes que me pediram uma síntese de suas íntimas e intensas provocações. Já adiantei
sobre o gênero, respondi o seguinte: no título e volto a ressaltar: a crônica para mim
É o samba da literatura. É ao mesmo tempo, a
tem um toque de liberdade e uma brisa de perigo.
poesia, o ensaio, a crítica, o registro
Será?
histórico, o factual, o apontamento, a
filosofia, o flagrante, o miniconto, o retrato, o
testemunho, a opinião, o depoimento, a Imagino que boa parte de vocês já perambulou pelo
análise, a interpretação, o humor. Tudo isso caderno “A ocasião faz o escritor” e já organizou sua
ela contém, a polivalente. Direta a simples leitura inicial no percurso da sua sequência didática.
como um samba. Profunda como a sinfonia”. E em meio a tudo isto deve estar ainda se dizendo:
(Artur da Távola, Jornal O Dia, 27 de junho afinal, o que é mesmo uma crônica?
de 2001.)
Fico pensando se é tão importante assim, ter uma
Talvez iniciasse este texto dizendo que ele poderia definição certa e apurada deste gênero que nos
ser uma das tantas crônicas sobre a crônica. Mas aponta a tantos caminhos e nos leva a tantas
direções. Penso eu que tudo aquilo que é
vou deixando para depois. O que me leva a
aparentemente livre tem sua dose exata e
escrever aqui e agora, neste nosso espaço
correspondente de perigoso. Falo isso porque
educador, é o fato de estarmos em tempo de
podemos formar um conceito sobre este gênero tão
oficinas na Olimpíada de Língua Portuguesa delicioso e delicado de ler e tão bem inserido na
Escrevendo o Futuro. O gênero se inaugura nesta cultura brasileira.
edição.
No começo pode ser que a gente faça algumas
Este texto – crônica ou não – quer mexer um pequenas confusões nas hipóteses de apropriação
pouco com nossas ideias sobre o gênero e com os pedagógica, e assim achemos que a crônica tem
afazeres pedagógicos que por certo andarão algo próximo e parecido com o conto, por
acontecendo em muitas escolas que desenham, exemplo. E tem mesmo. Parece, é próxima,
num silencioso trabalho, o sonho e a esperança de similar, tudo bem. Mas, é bem diferente.
uma educação melhor.
Talvez valha a pena relembrar – “Cronos”, o deus
O que temos como alicerce comum é o caderno do grego do tempo - que a crônica narra fatos
professor - real ou virtual - com a orientação históricos em ordem cronológica e trata de temas
minuciosa do trabalho, compartilhada por tantas da atualidade. Verdade relativa e parcial. Há
cabeças e corações numa mesma sintonia de outras características da crônica a serem
intenções. Ele mapeia nossa primeira investida, consideradas num projeto que deseja a sua
nosso pensar e repensar, e nos encoraja a produção. Assim como a fábula e o enigma,
rascunhar e tecer outros projetos para outros
por exemplo, a crônica é um gênero narrativo.
futuros e próximos alunos que virão. Nessa hora a gente se lembra de uma das mais
famosas crônicas da História da literatura luso-
Também oferece ao nosso dispor leitor uma brasileira que corresponde à definição de crônica
pequena coletânea de crônicas e cronistas, de como "narração histórica": É a "Carta de
Machado de Assis a Carlos Heitor Cony, numa Achamento do Brasil", de Pero Vaz de Caminha",
linha do tempo situada entre 1877 a 2007. na qual são narrados a D. Manuel, o
descobrimento do Brasil e os primeiros dias que
Fico pensando, engolindo seco, que ainda se fala os marinheiros portugueses passaram aqui.
que o professor, de um certo modo, não tem um
projeto leitor. O que pode ser uma reflexão para O que sabemos hoje, depois de tantos
uma outra crônica, mas não a de agora, deste redescobrimentos, é que a crônica assume vários
pedaço encorajador e laborioso. Considerando-se, tons ao retratar os acontecimentos da vida
no entanto, a polêmica mal tocada, nada melhor brasileira. Como se vê, há no modus operandi
do que cada professor se organizar e realizar a sua genuinamente brasileiro um certo ar camalêonico
leitura como um mote para os alunos realizarem na crônica. Pode ser? Podemos considerar que a
as suas. É como se o seu patrimônio de leituras crônica tal qual se configura, nasce com Machado
circulasse em meio às oficinas de preparação para de Assis. Veja uma pitada quando, no final do
a Olimpíada, arejando-a. Assim se descobrirá
155
século XIX, escreve uma crônica sobre a crônica: já editados. O que comprova o seu valor literário,
histórico e cultural, no sentido de garantir
“Há um meio certo de começar a crônica por durabilidade no tempo. O que acontece nesse caso
uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que é que o escritor autor não prioriza no seu dizer o
desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as acontecimento em si. Revela a sua própria leitura,
pontas do lenço, bufando como um touro, ou outorgando a ele uma espécie de análise ou retrato
simplesmente sacudindo a sobrecasaca. agudo em especial. O que configura a
Resvala-se do calor aos fenômenos temporalidade à crônica por trazer sutilmente
atmosféricos, fazem-se conjecturas acerca do temas ligados a questões éticas, sociais,
sol e da lua, outras sobre a febre amarela, econômicas, culturais, educacionais, políticas. Em
manda-se um suspiro a Petrópolis, e la glace suma, posso mesmo dizer que a crônica situada
est rompue está começada a crônica.(...)”. entre o Jornalismo e a Literatura, permite
(Machado de Assis. O nascimento da crônica. considerar o cronista como poeta dos
"Crônicas Escolhidas", São Paulo: Editora
acontecimentos cotidianos.
Ática, 1994)
Por nisso falar, veja uma pitada da crônica de
Numa outra síntese podemos dizer que a crônica,
Rubem Braga ao trazer para este gênero um
publicada em jornais ou revistas, virtuais ou reais,
assunto tão comum da vida cotidiana: uma
destina-se à leitura dos e sobre os acontecimentos
reclamação de vizinhos:
sociais e cotidianos. Destaca-se: não busca a
exatidão da informação. É pois, diferente da
Recado ao senhor 903
notícia, da reportagem, que trata de relatar os fatos
Vizinho, Quem fala aqui é o homem do 1003.
que acontecem. A crônica os analisa num outro
Recebi outro dia, consternado, a visita do
enfoque. Livre e perigoso. Por assim se constituir, zelador que me mostrou a carta que o senhor
inaugura no real um colorido emocional, sutil, reclamava contra o barulho em meu
intenso. Oferece aos olhos do leitor uma situação apartamento. Recebi depois a sua própria
comum e ao mesmo tempo inusitada, vista por visita pessoal – devia ser meia-noite - e a sua
outro ângulo, singular, íntimo, revelador. veemente reclamação verbal. Devo dizer que
(Imagino quantos outros adjetivos você poderá à estou desolado com tudo isso, e lhe dou
crônica atribuir). inteira razão. O regulamento do prédio é
explicito e, se não o fosse, o senhor ainda
Quem é o leitor da crônica? Boa pergunta. O leitor teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem
pressuposto da crônica é urbano e, em princípio, trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso
um leitor de jornal ou de revista. Talvez uma noturno e é impossível repousar no 903
espécie de preocupação que acompanha a vida quando há vozes, passos e músicas no
cotidiana faça com que esse leitor, dentre os 1.003.(...)
assuntos tratados, dê ao cronista maior atenção (Rubem Braga, Recado ao senhor 903, Para
aos problemas do modo de vida urbano, do mundo gostar de ler: crônicas, S.P. Ática, 1977).
contemporâneo, dos pequenos acontecimentos do
dia a dia comuns nas grandes cidades. É como se Um trunfo da crônica é que nela os eventos
esses acontecimentos pudessem contemplar os aparentemente banais, corriqueiros ganham outra
problemas humanos vividos em todos os lugares e "dimensão" graças ao olhar subjetivo e cuidadoso
em todas as ordens sociais. Mas, cá entre nós, do autor. E o leitor acompanha o acontecimento,
penso que a crônica já circula pelos cotidianos das como uma testemunha guiada por esse olhar
tantas comunidades, guetos e espaços alternativos cronista que lhe configura uma versão única e
e vai cronicando onde houver a ocasião para se singular.
cronicar.
As personagens, quando passeiam nas crônicas,
Podemos também dizer que a crônica tem realçam o assunto. Elas acabam não tendo
jornalismo na literatura. Ou literatura no descrição psicológica profunda como no conto ou
jornalismo. De um, recebe a observação atenta da romance. Geralmente apresentam características
realidade que pulsa e do outro, a construção da suficientes para compor traços genéricos com os
linguagem, o jogo verbal. Há uma dita ideia de quais o leitor se identifica. Um aspecto a conferir
que a crônica seria um gênero menor, que iria nas oficinas, não é?
embora esquecida como as noticias de jornal que,
desatualizadas, embrulham peixes. Pelo fato de Há uma característica da crônica fácil de conferir:
ser acolhida pela literatura, a crônica literária se é um texto narrativo que, em geral, é curto,
descobre na sua engenhosa grandeza. Assim, narrado em primeira pessoa. É o próprio escrito
temos hoje a crônica eternizada nos muitos livros do escritor que está “dialogando” com o leitor.
156
Apresenta-lhe assim a sua visão de mundo, transformá-lo em palavras estampadas em
através de sua forma pessoal de compreender os crônica: este texto contemporâneo que nos traz
acontecimentos que o cercam. É, em geral, menor humor, intimidade, lirismo, reflexão, surpresa,
que o conto. Em toque de palavras. O que lhe estilo, seriedade, leveza, elegância,
configura o ar moderno e dinâmico do solidariedade...
contemporâneo, quando tudo acontece
rapidamente. Urge tocar o leitor.Sinal dos tempos. Para terminar essa conversa, vou fazer (com seu
aval, é claro) o seguinte: na próxima edição
Outro detalhe importante. Geralmente, as crônicas mergulharei num fato incomum acontecido no
apresentam linguagem simples, espontânea, meu trivial viver e que lateja na minha cabeça por
situada entre a linguagem oral e a literária. Isso esses dias banais e comuns e dele escreverei, uma
contribui também para que o leitor se identifique crônica, quem sabe uma breve crônica. Mais:
com o cronista, que acaba se tornando o porta-voz Depois, numa edição posterior, tendo como base o
daquele que lê. mesmo fato vivido, escreverei um pequeno conto.
Aí teremos mais coisas para alimentar a nossa
É muito comum a ironia se materializar em conversa nessa nossa praça virtual. Você topa?
humor. E vice versa. O que no leitor tem um
efeito de empatia e crítica social. Fica evidente na Vamos ver o que acontece. Aqui voltarei para
produção da crônica que o autor não que dar uma saber...
resposta a alguma problemática social eleita como Antonio Gil Neto
tema ou assunto. Mas sim promover uma reflexão
inteligente, viva e criativa, de maneira a provocar Alguns links úteis sobre cronistas e crônicas. Visite,
o surgimento de possíveis respostas frente à saboreie e... bom apetite!
situação enfocada. E são as escolhas linguísticas http://www.releituras.com/
que vão constituindo a ligação do texto com o http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/croni
cas/index.htm
contexto que lhe configura como base, suporte ou http://scliar.org/moacyr/
ponto de partida. É importante saber suas http://www.marioprataonline.com.br/
articulações na construção dos sentidos de um http://www.estadao.com.br/busca/cronicas
texto. É a linguagem que fisga o leitor: parceiro, http://www.scribd.com/doc/10940016/Cronicas-
coadjuvante, o adepto. Selecionadas-Do-Jornal-Estadao-Luis-Fernando-
Verissimo
http://almanaque.folha.uol.com.br/rubem_braga.htm
É importante dizer, como nos convida o “Caderno
do Professor” em sua intenção de colaborar com
cada fazer pedagógico que é preciso mergulhar
nessa ocasião de fazer o escritor. É hora de iniciar
o contato direto e inteligente com a crônica. Com
a leitura apurada de alguns exemplos delas
poderemos vislumbrar a sua diversidade, saber de
sua arquitetura e de sua natureza tão diversa.
Talvez os primeiros escritos de seus alunos-
cronistas não contenham todos os elementos ou
recursos inerentes ao gênero. Com um pouco de
tempo revelado em oficinas e experiências
mediadas virão os cronistas-alunos, levando-os à
consistência de uma autoria com estilo,
propriedade e algum tom e olhar característicos
sobre a vida de cada lugar. O importante é que
eles se conduzam por um olhar investigativo e
poético sobre o cotidiano da sua comunidade e
desvele em palavras uma situação que mereça ser
retratada em crônica. Seja ela no tom que o autor
escolher.

O que nos resta agora? Mergulhar no trabalho do


ser professor. Compartilhar os primeiros segredos
e os pequenos mistérios desse gênero textual. Este
é um bom começo para favorecer a instalação
desse olhar especial sobre um lugar onde se vive e

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