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© Editora Os Puritanos/Clire
Traduzido do original em inglês: Reformation: Yesterday Today and Tomorrow — Primeira edição em 2000 pela Bryntirion Press.
Reimpresso em 2011 pela Christian Focus Publications, Geanies House, Fearn, Ross-shire, IV20 1TW,
Scotland.www.christianfocus.com. Edição em português autorizada pela Christian Focus Publications. Todos os direitos são
reservados.Copyright © 2011 por Christian Focus Publications
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, por quaisquer meios, sem a autorização por escrito dos editores, excetuando-
se breves citações em resenhas.
Autor:
Carl Trueman
Edição em Português:
1.ª Edição impressa — Janeiro de 2013
1.ª Edição ebook — Setembro de 2013
Editor:
Manoel Canuto
Tradutor:
Valter Graciano Martins
Revisores:
Márcio Santana Sobrinho e Helio Kirchheim
Designer:
Heraldo Almeida
ISBN:
978-85-62828-21-8
SUMÁRIO
Capa
Créditos
Depoimentos Sobre o Livro
Sobre o Dr. Trueman
Agradecimentos
Prefácio
• A Pérola de Grande Valor
• Encontrando o Varão de Dores
• Os Oráculos de Deus
• Bendita Segurança
Mídias
Livros
DEPOIMENTOS SOBRE O LIVRO
O PRESENTE TEM elos indissolúveis com o passado. Isso é óbvio, ainda que,
possivelmente, não para algumas pessoas modernas que se julgam mais sábias
do que realmente são. Felizmente, Trueman não é assim. Extraindo um rico
lastro de conhecimento da Reforma, aqui ele mostra que esse grandioso
evento da história ainda não acabou de forma alguma, mas possui
aplicabilidade progressiva. Este livro é uma grande introdução ao significado
atual desse evento transformador de alcance mundial.
—Michael Haykin,
Professor de História da Igreja e Espiritualidade Bíblica,
The Southern Baptist Theological Seminary,
Louisville, Kentucky
A LEITURA DESTE livro magnífico é obrigatória a todos os cristãos — e
especialmente àqueles que duvidam que a Reforma Protestante tenha algo a
dizer para nós hoje. Declarando que “a Reforma é a tentativa de colocar Deus,
como ele se revelou em Cristo, no centro da vida e do pensamento da igreja”,
Trueman recupera a teologia da cruz de Lutero, argumentando que, visto que a
Reforma “foi, acima de tudo, um movimento da Palavra – encarnada em Cristo
e escrita nas Escrituras”, e porque o Espírito opera através da Palavra, “a
Palavra escrita e a Palavra pregada são ambas centrais para o cristianismo, e
não são simples formas culturais que podem ser alteradas quando os
movimentos culturais mudam para algo novo” e então termina com um
capítulo sobre a certeza cristã, reconhecendo nossa certeza como o
fundamento para nossa atividade cristã. Ao longo do caminho, ele espalha
pepitas e mais pepitas de percepção vívida sobre qual é a essência do legado
da Reforma, levando seus leitores a abraçar outra vez essa essência.
— Mark R. Talbot,
Professor Adjunto de Filosofia, Wheaton College,
Wheaton, Illinois
Resgatando a Reforma
Espero que neste livro eu consiga persuadir ao menos alguns que considerem
com simpatia a atitude de que o passado talvez não seja tão irrelevante como
poderíamos ser tentados a pensar. Pretendo defender que as percepções-
chaves dos reformadores são tão relevantes hoje — e tão aplicáveis a situações
hodiernas — como o foram no século dezesseis.
Amigos inúteis
Minha intenção, porém, não é simplesmente salvar a Reforma de seus
difamadores; ela necessita também de ser salva de alguns de seus amigos. Há
certos cristãos para os quais o fato de que, se uma coisa — seja uma questão
de prática, uma forma de falar, ou uma doutrina específica — foi defendida
pelos reformadores, essa é uma prova irrefutável de que tal coisa é correta
para os dias de hoje. Todos nós conhecemos tais pessoas. Com frequência são
aqueles que têm reagido (e corretamente) contra a marginalização dos
reformadores na vida da igreja, fato que já perdura por décadas. O papel
dominante assumido pelo movimento ecumênico, por longo tempo do século
vinte, sem dúvida teve grande influência nesse resultado. A Reforma foi,
afinal, o momento em que a igreja ocidental dividiu-se ao meio —
protestantes e católicos —, e então fragmentou-se ainda mais, quando o
protestantismo se dividiu em luteranos e reformados. Um período tão trágico
na história da igreja era, do ponto de vista ecumênico, algo que precisava ser
tratado a fim de restabelecer a unidade; e assim foi tratado em diferentes
épocas, considerando, desde o início, como impróprias as disputas teológicas,
ou sem nenhuma relevância para os dias de hoje.
Em contraste com esse panorama, era certo e próprio que muitos
escolhessem assumir uma posição firme. De fato, é ainda correto asseverar a
significação central de uma questão como a justificação pela graça mediante a
fé, e retratar as tentativas de minar tal doutrina de um modo que
necessariamente envolva mudanças de significação teológica fundamentais na
maneira como o cristianismo e sua história devem ser entendidos. Não
obstante, suspeito que, para muitos deste grupo, à medida que reagiam aos
rituais ecumênicos, conferiram aos reformadores e à Reforma o status de
supremos ídolos ou autoridades, segundo o qual toda e qualquer dúvida ou
crítica é vista como heresia.
Além disso, o programa da reação foi sempre condenado, em última
análise, como sendo o programa estabelecido pelos ecumênicos: se a
justificação se tornou um foco central do ataque ecumênico, então ela passou
a ser a parte central da defesa conservadora; e o resultado foi que as ênfases e
preocupações dos próprios reformadores e da Reforma, como um todo, vieram
a ser lidas através das lentes dos debates que continuaram avançando na
igreja do século vinte. Isso não foi necessariamente uma coisa ruim; mas era
algo por demais restritivo. Se os reformadores tinham algo a ensinar além dos
debates imediatos gerados pelo ecumenismo, como poderíamos saber disso se
as perguntas com que nos temos dirigido aos grandes textos da teologia
reformada dizem tanto sobre as políticas eclesiásticas de nosso tempo como
sobre algo que ocorria no século dezesseis? Outras questões de importância
central, como por exemplo, a certeza da salvação, os sacramentos e a pessoa e
obra de Cristo, foram discutidas apenas nos estreitos termos estipulados pelo
movimento ecumênico, e com isso se perdeu muito do seu valor.
Crise de identidade
Portanto, aqui minha tarefa não é menosprezar os que têm defendido a
herança da Reforma tão bravamente nos últimos cinquenta anos. Devemos ser
gratos a eles, particularmente no presente momento em que o
evangelicalismo parece menos seguro de sua identidade do que em qualquer
ponto de sua história. Nunca deixo de surpreender-me com o quão pouco
tenho em comum com muitos outros do Reino Unido que hoje se dizem
evangélicos. É possível a pessoa negar que Deus conhece o futuro, negar que a
Bíblia seja inspirada, negar que a justificação é pela graça mediante a fé, negar
que Cristo é o único caminho para a salvação — e ainda continuar sendo
membro bem reputado de certas corporações evangélicas famosas.
A confusão que uma situação tal simboliza indica o vazio doutrinário e,
talvez ainda mais importante, o vazio moral em que se encontra o coração de
muito do evangelicalismo britânico em nossos dias, quando poucos, se houver
alguém, se dispõem a tomar a difícil decisão de permanecer firmes no tocante
aos aspectos inegociáveis da fé. Necessitamos desesperadamente de um
entendimento mais profundo da importância desses assuntos, caso não
queiramos vender nossa herança por um prato de guisado.
Agenda bíblica
Apesar disso, não devemos deixar que as posições heterodoxas, heréticas e
inequivocamente blasfemas de gente do miolo mole em nossa rede evangélica
estabeleçam a ordem do dia. Em vez disso, eu creio que devemos reconhecer
que nossa ordem do dia deve ser estabelecida pelas prioridades bíblicas. Por
essa razão, quero nestes capítulos expandir a discussão, para olharmos a
Reforma com novos olhos, não apenas procurando evidências de que, por
exemplo, a justificação pela graça mediante a fé foi uma doutrina importante,
de fato negada pela Igreja Católica, mas também procurar outras lições que
possamos aprender desse importantíssimo período da história da igreja.
Definindo a Reforma
Portanto, nossa primeira tarefa é produzir uma definição funcional da
Reforma que sirva como guia que dê forma ao que vem a seguir. Ora,
naturalmente isso é impossível num sentido absoluto, final e definitivo, visto
que a Reforma incorpora tantos elementos — teológicos, políticos, sociais,
culturais e econômicos —, e nenhum desses elementos é inteiramente
separável dos demais, pela simples razão que a vida real não se decompõe em
categorias nítidas e separadas. O que desejo fazer é um tanto mais modesto,
isto é, oferecer uma definição da Reforma em termos de sua ampla
contribuição teológica ao pensamento da igreja. Espero com isso desobstruir
as avenidas da reflexão teológica que as várias formas populares
estereotipadas de pensar a respeito da Reforma deixaram escapar. Ao fazer
isso, espero incentivar o leitor a pensar em como os princípios da Reforma
podem ser aplicados hoje de maneira que não se perca a sua perene
importância teológica, nem simplesmente se favoreça uma descuidada
simplificação doutrinária.
A definição geral que proponho é a seguinte: a Reforma é a tentativa de
colocar Deus, como ele se revelou em Cristo, no centro da vida e do pensamento
da igreja. Nos próximos capítulos, pretendo desenvolver três aspectos
específicos: a ênfase da igreja em Jesus Cristo, e este crucificado; a ênfase nas
Escrituras como a base e norma para a proclamação de Cristo; e a ênfase da
igreja na certeza da salvação como a experiência padrão dos crentes.
Parâmetros
Ao comentar o tema da Reforma em geral, e esses três temas em particular,
desejo tornar bem claro desde o princípio que não estou tentando fazer duas
coisas específicas que algumas pessoas talvez estejam esperando que eu faça.
Primeiro, de modo algum estou produzindo um texto que poupe a necessidade
de ler os reformadores em primeira mão. O pensamento deles é tão vasto, rico
e complexo, que nem mesmo pode ser resumido, e muito menos ser
comentado com alguma profundidade em quatro breves capítulos. Você deve
lê-los pessoalmente, caso queira extrair deles as pepitas de ouro teológicas
que seus vastos escritos contêm. Esses textos não são desconhecidos, e hoje é
fácil adquiri-los. Eu sugeriria que, da mesma forma que os reformadores
leram as obras dos Pais medievais e da igreja primitiva, a fim de aguçar seu
próprio entendimento bíblico e da tradição cristã, os ministros e os leigos
interessados de hoje devem ler os reformadores. Desde a prosa estimulante e
ardente de Lutero até os escritos mais moderados e graves de Calvino, há
muito na vasta produção literária desses homens que é teologicamente útil e,
devocionalmente, conduz à humildade. De várias maneiras, eles são bons
modelos de erudição e comprometimento, e são dignos de serem estudados
por essa razão, particularmente em nossos dias quando é tão forte a tentação
de considerar os ministros como sendo o equivalente piedoso de assistentes
sociais.
Segundo, não estou defendendo a ideia de que devemos simplesmente
voltar aos séculos dezesseis e dezessete, ver o que eles faziam, e trazer
aquelas práticas para os nossos dias como se tal prática fosse justificável.
Toda prática cristã é moldada pela época em que ocorre, e seria ingênuo não
reconhecer esse fato logo de início. Estou interessado nos princípios
teológicos subjacentes à obra dos reformadores, e em compreender como
esses princípios podem ser aplicados na prática de hoje, uma vez que Deus
não mudou, nossa teologia não mudou, mas certos aspectos de nossa cultura e
sociedade mudaram. Nesse ponto, confesso minha dívida para com os homens
da Sydney Diocese e do Moore College, os quais têm buscado durante muitos
anos trazer as percepções da Reforma em apoio à igreja moderna no mundo
moderno. Estes capítulos são minha própria diminuta contribuição a um
projeto que, na minha opinião, é de premente importância na presente
atmosfera cultural de consumismo e ecletismo. Enfatizar o valor do
pensamento da Reforma hoje, sem dar o devido valor à diferença entre a
sociedade do século dezesseis e a nossa fará com que, inadvertidamente,
condenemos os reformadores à irrelevância, induzindo nossos gurus pós-
evangélicos a pensarem que o ponto de vista deles (dos gurus) é o correto.
Precisamos certificar-nos que o fato de defendermos os reformadores não se
torne apenas uma demonstração do quão fora de moda e imprestáveis eles
são.
A centralidade de Cristo
O terceiro ponto que desejo extrair dessa definição é que os reformadores
tinham a ver com Deus em Cristo. De todas as percepções da Reforma,
certamente esta é a mais vital: que em Cristo vemos a graça de Deus para com
a humanidade pecadora. O Filho não julgou que o ser igual a Deus fosse coisa
de que não devesse abrir mão, mas voluntariamente se humilhou para assumir
forma humana, para viver no meio de toda a imundície física e moral deste
mundo, a fim de levar para o céu pecadores, tanto homens como mulheres,
moços e moças, àquela comunhão eterna e profunda em glória com o Deus
Trino, salvando-os assim da perdição eterna.
Quando Lutero entendeu o que Deus fizera em Cristo é que realmente
passou a ver a seriedade do pecado e a natureza radical da graça de Deus na
salvação. O mesmo aconteceu com Calvino e com os demais reformadores:
toda sua teologia se apoia totalmente na pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo,
e é evidente que a sua elevada consideração para com Cristo, a sua profunda
percepção do pecado e a sua admiração para com o milagre da graça de Deus
estão intimamente relacionados. Ninguém pode desprezar um desses pontos
sem renunciar aos demais.
Essa é uma questão que amiúde desperta a fúria da autojustiça no seio das
fileiras evangélicas reformadas, especialmente quando reparamos nos
movimentos carismáticos de hoje. “Olhem para eles”, gritamos. A única coisa
que eles fazem é contar as suas experiências e falar a respeito do Espírito
Santo. Será que eles não compreendem que o Espírito Santo testifica de
Cristo, e que o verdadeiro sinal de sua presença não é que as pessoas falem
sobre o Espírito, e sim que falem sobre Cristo? Naturalmente, ao agirmos
assim, fazemos eco aos sentimentos de Lutero acerca dos anabatistas, como
eu já falei.
Ora, de uma perspectiva teológica, sinto profunda simpatia por esse
argumento e considero as várias correntes do movimento carismático no
Reino Unido atual como defeituosas em vários pontos, alguns mais sérios do
que outros. Não obstante, sinto que o ato de nos compararmos
constantemente com os carismáticos nos tem cegado para nossa própria
carência da centralidade de Cristo e tem gerado uma autojustiça doentia que
não só nos impede de implementar a verdadeira reforma de que necessitamos,
mas até mesmo nos impede de ver o fato que necessitamos é de uma
verdadeira reforma. Criticar os carismáticos não é de forma alguma o mesmo
que ter um cristianismo centrado em Cristo, e as duas coisas nunca devem ser
confundidas.
Para sermos realmente centrados em Cristo, todos os aspectos de nossa
vida cristã, desde o culto corporativo até as devoções privadas, no andar
cristão dia a dia, devem ter Cristo como objetivo. Hoje é muito comum que
igrejas com uma elevada visão da Escritura e do ministério da pregação na
prática tolerem sermões que, conquanto mui fiéis ao sentido do texto, nunca
mencionam Cristo. Todavia, se a reivindicação dos reformadores, de que
Cristo é o centro da Bíblia, e que toda ela conta uma só história — a da graça
de Deus em Cristo —, então nenhum sermão digno do nome cristão pode
deixar de falar de Cristo, não importa de onde se extraia o texto escolhido, do
Antigo ou do Novo Testamento. Os sermões centrados em Deus, por
definição, se contêm mesmo que seja uma só gota de graça, forçosamente
devem ser cristocêntricos. As orações e os cânticos litúrgicos devem ser assim
também, pondo em evidência não a nós mesmos ou às nossas necessidades,
por mais importantes que sejam, e sim a Cristo.
Isto não quer dizer que nossas necessidades não tenham lugar em nossas
orações ou cânticos litúrgicos. Há muito na Bíblia que retrata Cristo como a
resposta às necessidades humanas: “Vinde a mim todos os que estais
cansados e achareis descanso para vossas almas”; “Vinde a mim todos os que
estais com sede e eu vos darei de beber”. Certamente, estas são necessidades
— para usar o jargão moderno, são “necessidades palpáveis” — e certamente
Cristo se apresenta como a resposta a elas. Mas este é o ponto decisivo: Cristo
mesmo se identifica com a necessidade e se oferece como a solução. A questão
toda é centrada em Cristo; e isso é algo que deve caracterizar as nossas
ênfases litúrgicas.
Em suma, o que está em jogo aqui é uma questão de fundamental
importância sobre o que realmente está no centro. Se é Cristo, então está tudo
bem; se é alguma outra coisa, então precisamos de reforma. Lembre-se de que
uma igreja centrada na Bíblia não é necessariamente o mesmo que uma igreja
centrada em Cristo. Não há no mundo uma seita “cristã” ou igreja liberal que
não reivindique, de alguma forma, estar centrada na Bíblia. É somente quando
a Bíblia é compreendida e aplicada em termos de seu centro, Cristo, é que as
duas coisas — a centralidade da Bíblia e a centralidade de Cristo — se tornam
uma coisa só. Tenhamos todo cuidado para que nosso desejo de enfatizar a
centralidade da Bíblia se una também ao desejo de ressaltar a centralidade de
Cristo na Bíblia.
A Reforma Contínua
A Reforma, então, procurou pôr Deus em Cristo no centro de sua vida e
pensamento. Entretanto, é preciso que percebamos muito bem uma coisa mais
sobre esse movimento de reforma, e essa coisa é que a reforma é um processo
essencialmente dinâmico, e não uma situação estática. Isso foi perfeitamente
assimilado por um antigo lema latino das Igrejas Reformadas do mundo
inteiro: ecclesia reformata semper reformanda est. Em nossa língua, significa o
seguinte: “A igreja reformada precisa sempre de reforma”. Ora, o que
significa isso? Será que, uma vez que pusemos a Palavra, tanto Cristo como as
Escrituras, no centro de nossa vida e pensamento, somos realmente
reformados, e então não há necessidade de mais nenhuma reforma? Quem
dera fosse assim tão simples! Os seres humanos têm uma capacidade quase
infinita para a idolatria, e isto se evidencia não simplesmente no comum
desejo por novidade, mas também na reação descuidada de recusar-se a
mudar.
A Pecaminosidade Humana
Aqui vale a pena lembrar outro aspecto do legado da Reforma: a clara
compreensão da pecaminosidade humana que ela colocou em destaque na
discussão teológica. Para Lutero, assim como para Calvino, o coração não
regenerado era corrupto a tal ponto de ser incapaz, tanto moral como
intelectualmente, de executar a tarefa teológica, e era idólatra por natureza. O
que eles queriam dizer com isso era que a humanidade sempre faria Deus à
sua própria imagem, sempre buscaria cultuá-lo à sua própria maneira, sempre
buscaria cultuar a si mesma ou às suas próprias formas, em vez de dispor-se
corajosamente a colocar-se diante da santidade de Deus e achegar-se a ele
mediante os termos estabelecidos por ele. Creio que isso tem duas aplicações
quando pensamos na reforma contemporânea de nosso culto.
( 1 ) Sir Geoffrey Chaucer (1340-1400), poeta inglês medieval [Dicionário Babylon]. Seria o equivalente, em português, a usarmos
hoje a linguagem de Camões (cerca de 1525-1580) — N. do Revisor.
ENCONTRANDO O VARÃO DE DORES
19. Não se pode chamar de teólogo aquele que enxerga as coisas invisíveis de Deus como se elas
fossem claramente perceptíveis nas coisas que já aconteceram (Rm 1.20).
20. Mas pode-se chamar de teólogo quem compreende as coisas visíveis e manifestas de Deus
enxergando-as por meio dos sofrimentos e por meio da cruz.
21. O teólogo da glória chama de bom aquilo que é mau, e chama de mau aquilo que é bom; o teólogo
da cruz chama as coisas pelo que elas são.
O teólogo da glória
Lutero está se rebelando aqui contra a tendência que ele percebia entre os
teólogos de seu próprio tempo de criar uma imagem de Deus que refletia
apenas as próprias expectativas da humanidade sobre como Deus deveria ser.
Era isso o que ele tinha em mente quando se referiu ao teólogo da glória.
Usando um exemplo bem óbvio, a maioria das pessoas espera que Deus
recompense aos que fazem coisas boas. Aqueles que se comportam bem e
obedecem a Deus merecem entrar no céu. Isso acontece porque a maioria das
pessoas supõe que a justiça de Deus é muito semelhante à sua própria justiça.
Entretanto, de acordo com a teologia da Reforma de Lutero, mesmo as
melhores obras humanas são como trapos imundos diante de Deus; somente a
justiça de Cristo é válida para produzir a salvação. Assim, meus atos de
caridade, os quais o teólogo diz serem bons, baseando-se naquilo que Deus
quer, e diz que esses atos me levarão para o céu, na verdade são atos maus. Na
melhor das hipóteses, são moralmente imundos diante de Deus; na pior,
tornam-se atos de autojustiça pelos quais me promovo a mim mesmo e a meus
esforços pessoais como o fundamento de minha salvação, e não a justiça de
Cristo. Em outras palavras, o teólogo da glória, começando com aquilo que ele
ou ela supõe que Deus seja, termina chamando de bom (isto é, as minhas
próprias obras) aquilo que na verdade é mau.
O teólogo da cruz
Não obstante, o teólogo da cruz é aquele que vê as coisas como realmente
são, aquele que sabe como Deus realmente é, porque seu modo de pensar
sobre Deus começa com a revelação que Deus fez de si mesmo, e não com
suposições humanas. Para Lutero, onde ocorre essa revelação? Antes de mais
nada, na pessoa de Cristo na cruz do Calvário. É aí que a teologia deve
começar e terminar; essa é a fonte e o princípio pelos quais todas as
afirmações teológicas devem ser julgadas e entendidas. Provavelmente, essa é
a percepção mais surpreendente e profunda de Lutero na natureza da teologia,
com implicações perturbadoras.
A cruz
A cruz mesma fornece um exemplo perfeito, — aliás, um supremo exemplo
— de uma situação onde o teólogo da glória e o teólogo da cruz não
encontrariam um denominador comum. O que vê ali o teólogo da glória? Bem,
com base numa investigação racional e empírica, alguém diria que o homem
pendurado na cruz é algum tipo de criminoso desprezível. Por que outra razão
teria ele sido condenado a padecer uma morte tão horrível como essa? A cruz
é uma vergonha, tanto para os padrões da lei romana como para o costume
judaico, por isso é certo que o homem a quem tal punição é imposta é o mais
vil tipo de criminoso imaginável. Além disso, alguém diria que ele é um
fracassado, um oprimido, um derrotado. À medida que morre na cruz, não
vemos nenhum rei, nem enxergamos vitória sobre o pecado, nem temos
motivo de regozijo ou para dar glória àquele que está pendurado ali. Os olhos
da razão, julgando com base naquilo que esperamos como seres humanos,
veriam aquela cena como cheia de trevas, dor e profunda tragédia pessoal.
Todas essas descrições sombrias e pessimistas pareceriam as únicas formas
apropriadas de descrever o que está acontecendo se alguém se aproximasse da
cruz com expectativas e critérios humanos.
O teólogo da cruz, contudo, aproximando-se desse acontecimento com os
olhos da fé e com o critério fornecido pela revelação de Deus a respeito de si
mesmo, vê um quadro muito diferente: não a figura de um pecador, e sim a
imagem do único homem sem pecado; não a figura da derrota, e sim a do
triunfo; não a figura da ira, e sim a da misericórdia. O que temos na cruz não é
a derrota de um criminoso, e sim o triunfo do rei da glória; não a vitória dos
poderes do mal, e sim a vitória do bem sobre o mal; não a maldição de Deus, a
qual nos deixa sem esperança, e sim a bênção de Deus pela qual todos podem
ser salvos.
Os resultados, então, de vir até a cruz com os olhos da fé são
teologicamente surpreendentes; na verdade, são revolucionários no mais
literal sentido da palavra: põem de cabeça para baixo os nossos pensamentos
sobre Deus, e exigem que todas as expectativas humanas sejam subjugadas à
sombra da cruz, onde, como expressões humanas da verdade divina, possam
ser julgadas por aquilo que Deus realmente é, e como ele de fato age conosco.
Quando alguém deseja pensar no poder e na soberania de Deus, para onde
deve olhar? A resposta de Lutero seria: para a cruz. Ali, no quebrantamento
do Cristo sofredor, o crente divisa o triunfo e a glória do Deus da graça sobre o
mundo, a carne e o diabo. Ali, nessa singular e poderosa contradição de toda a
nossa expectativa humana, é que vemos Deus como ele realmente é quando
trata conosco, em todo o seu poder e glória. Onde é que alguém pode ver o
amor de Deus revelado de maneira mais radical? Na submissão voluntária de
Cristo ao pleno peso da ira de Deus na cruz. Onde é que alguém pode ver a
santidade de Deus com mais clareza? Nas terríveis agonias do Filho na cruz
quando ele revela a plena imundícia do pecado, e demonstra com quanta
seriedade o próprio Deus considera o pecado.
Sofrimento
A teologia liberal do século vinte redescobriu a cruz como uma parte
central do empreendimento teológico. Isso foi algo que aconteceu, em grande
parte, devido à realidade do sofrimento, seja por causa dos terríveis atos de
genocídio que mancharam esse século, seja por causa da catastrófica pobreza
enfrentada por muitos países. À medida que o sofrimento veio a ser, de forma
mais óbvia, parte integral da experiência humana, os teólogos liberais
tentaram enfatizar esse aspecto do ensino bíblico, em grande medida, na
minha opinião, para demonstrar a inocência da teologia cristã diante dessa
perversidade toda. O evangelho do sofrimento apreendeu alguma coisa da
verdade do cristianismo, assim como havia feito, antes dele, o evangelho
social; acabou, porém, enfatizando essa verdade às custas de outras verdades
cristãs fundamentais, como por exemplo a culpa pessoal de todos os homens
sem exceção. Não obstante, como evangélicos, nossa tarefa não é rejeitar as
coisas pela simples razão de terem sido ensinadas pelos não evangélicos, mas
reivindicar uma base moral elevada, apresentando ao mundo uma teologia
equilibrada e que reflete as ênfases da palavra de Deus. O sofrimento faz parte
disso, e não devemos permitir que o uso que os liberais fazem dele nos
atrapalhe a chamar a atenção para esse assunto.
Não obstante, a teologia da cruz é mais do que apenas uma forma de
enxergar a Deus. Para Lutero, ela põe em evidência o profundo amor de Deus
pela humanidade pecaminosa, estando o próprio Deus disposto a submeter-se
a esse sofrimento, fraqueza e humilhação em favor dos pecadores impotentes;
e também realça que o sofrimento e a fraqueza são uma parte central da
experiência de perseverança do cristão aqui na terra. Deus de tal maneira se
identificou com a humanidade que, em Cristo, se tornou ele mesmo um ser
humano. Ele suportou não só as inconveniências de nossa existência neste
mundo, mas também sofreu num sentido supremo em nosso lugar, aquele
sofrimento que se percebe de uma maneira profunda e inexplicável no grito de
abandono na cruz.
Essas são, naturalmente, águas teológicas profundas, mas para Lutero a
dimensão crucial do poder salvífico de Deus foi precisamente essa profunda
humilhação de si mesmo na fraqueza humana. Ele costumava dizer: Não
quero Deus sem a sua humanidade. O ponto era simples: é na encarnação,
pessoalmente em Cristo, que Deus tanto é como se mostra gracioso para
conosco. Lutero regozijava-se no fato de não cultuar um Deus distante, um
déspota, um princípio filosófico abstrato e sem nome. Não! — ele cultuava um
Deus que veio para perto, tão perto que até mesmo se vestiu de carne humana;
um Deus tão misericordioso que estava pronto a receber pecadores em sua
presença como se eles nunca antes tivessem pecado; um Deus que era tão
amoroso que alegremente livrou homens e mulheres de toda forma de
servidão física e espiritual, de modo que pudessem conhecer a verdadeira
vida; e um Deus que era tão forte que estava pronto a nulificar-se e morrer
aquela terrível morte na cruz a fim de que os seres humanos jamais tivessem
que morrer.
Consequências Práticas
As implicações desse aspecto do ensino da Reforma são simplesmente
explosivas. Em primeiro lugar, ele nos dá a capacidade de avaliar a
importância da questão do sofrimento e dos sentimentos pessoais de fraqueza
e inadequação, colocando isso tudo em perspectiva adequada. Depois, quanto
mais alguém se assemelha a Cristo, tudo indica que mais propensa essa
pessoa estará a sofrer e a sentir-se fraca e inadequada, pois é nessas coisas
que se encontra um aspecto fundamental do assemelhar-se a Cristo.
Naturalmente, isso não quer dizer que somos salvos por meio do nosso
sofrimento — de maneira nenhuma! O que está implícito é que, uma vez
salvos, podemos esperar sofrimento e fraqueza como parte integrante da vida
centrada em Cristo. Portanto, não devemos ficar surpresos quando as
dificuldades surgem em nossa vida, pois elas são parte essencial da obra
estranha de Deus, por meio da qual ele completa em nós a sua obra peculiar.
As expectativas cristãs
Para pôr isso num nível prático, a teologia da cruz articulada por Lutero
tem profundas implicações para o horizonte de expectativas da vida do crente
individual e da comunidade cristã como um todo. O que deve o cristão esperar
da vida? Saúde, riqueza e felicidade? É assim que Deus mostra a sua graça e
favor? Certamente isso é o que um teólogo da glória tomaria por certo: se
Deus é bom para comigo, então ele me dará todas as coisas que tanto desejo.
Os valores e as expectativas de um teólogo da glória são as mesmas do mundo
ao redor. Assim, o sucesso espiritual deve ser julgado de maneira análoga ao
sucesso terreno, em termos de receita, status e credibilidade social. Mas essa
não é a genuína teologia cristã, como Lutero a vê, pois ela não dá lugar para a
cruz. As verdadeiras expectativas cristãs centralizam-se na cruz e envolvem
aceitar, e até mesmo abraçar espontaneamente o sofrimento, a fraqueza e a
marginalização que inevitavelmente acontecem àqueles que seguem os passos
do Senhor Jesus. Esse é que deve ser o horizonte de expectativas do crente
como indivíduo e da igreja como um todo.
As expectativas da sociedade
Na minha opinião, essa percepção da Reforma é de importância crítica
hoje, pois vivemos numa época em que todo o horizonte das expectativas da
sociedade mudou de tal forma que esse tipo de teologia, a teologia da cruz, se
encontra totalmente excluído. Ora, eu sou um bom calvinista, e considero toda
e qualquer atividade que não é produzida pela graça como sendo uma
atividade fundamentalmente não cristã, e considero todo pensamento que não
é cristão como uma forma de rebelião contra Deus. Apesar disso, eu acho que
as expectativas da vida mudaram radicalmente nos últimos quarenta e poucos
anos, numa direção que nos tem trazido ao ponto onde a teologia da cruz se
opõe mais explicitamente àquilo que acontece na sociedade do que em
qualquer outra época da história recente.
A mudança tem sido mapeada por sociólogos que argumentam que, no
passado, os indivíduos concebiam seu propósito de vida em termos mais
sociáveis. Por exemplo, trabalhava-se para o bem da sociedade como um todo,
ou trabalhava-se para prover um lar e ambiente estáveis para os filhos. O alvo
da existência era considerado como algo externo ao indivíduo, a criação de um
padrão de interesses que beneficiaria aos outros. Por inúmeras razões, essa
situação se alterou tremendamente com respeito às gerações que chegaram à
fase adulta na década de 1960 e nas seguintes. A partir daí, a ênfase se moveu
daquilo que se pode classificar de forma geral como responsabilidade social
em todas as suas formas, e passou a ser a autorrealização. Agora, o jogo da
vida não é tanto trabalhar para o bem maior da sociedade (a respeito do qual
uma senhora, certa vez, comentou que “não existe tal coisa”) ou mesmo da
família, mas para a felicidade do próprio indivíduo. Colocamos nossa carreira
antes do bem-estar dos nossos filhos; não gostamos de pagar impostos
porque tiram de nosso bolso em favor da sociedade maior em que vivemos;
não nos doamos aos outros se isso atrapalhar o desenvolvimento de nossa
própria carreira ou o nosso tempo de lazer. Temos de satisfazer a nós mesmos
antes de dar-nos aos outros de alguma forma.
Valores opostos
É possível ver de pronto como isso está em completa divergência com
qualquer concepção que porventura tenhamos da teologia da cruz. Em sua
própria essência, a compreensão que Lutero tinha de Cristo e do cristianismo
encontra-se em direta oposição ao evangelho da satisfação própria. Na
verdade, seria difícil encontrar dois evangelhos mais desiguais, e creio que se
pode fazer juízo, sem muito exagero, afirmando que aquilo que se vê na
sociedade hoje é a mais completa produção social e aplicação do pecado da
história da humanidade. Isso não quer dizer que os nossos tempos sejam mais
depravados do que os tempos passados; isso é simplesmente afirmar que, no
que diz respeito ao pecado, a frase “você pode conseguir para si tudo aquilo
que vê” talvez seja mais verdadeira do que nunca.
É clara a maneira como isso se tornou possível na sociedade em geral. O
vasto número de programas de saúde, aquisição rápida de riqueza e a
autoimagem da TV dão uma boa ideia do que preocupa o público: saúde,
riqueza e felicidade. Essas três coisas se tornaram os três bezerros de ouro do
mundo ocidental contemporâneo, porque falam predominantemente de
satisfação pessoal, reforçando a ideia de um propósito humano que se
centraliza no próprio ego, e não naquilo que está além dele.
Naturalmente, além de tudo isso, o Ocidente criou a religião do capitalismo
de livre mercado, a qual declara que os antigos valores sociais da família, da
vizinhança e da responsabilidade são mais bem servidos pelo surgimento do
capitalismo irrestrito. Esta visão nos é empurrada de todos os lados como “a
verdade”, como se as hipotecas gigantescas, os recibos de cartão de crédito, as
dívidas do Terceiro Mundo etc., gerados por esse tipo de ênfase, fossem todos
benefícios pelos quais o mundo deveria ser grato. Não é preciso nem provar
que esse é, na melhor das hipóteses, um mito equivocado, e, na pior das
hipóteses, uma justificativa para o exercício da ganância. Quanto mais temos,
mais queremos. Quanto mais ganhamos, menos queremos dar. Quanto mais
bem sucedidos somos dentro da estrutura capitalista, mais desprezamos os
fracos que são esmagados pelas rodas do comércio. Quanto aos valores da
família, basta ver como a lei tributária tem mudado na Grã-Bretanha; basta
ver que a atitude “cada um por si, seja homem seja mulher” com respeito à
produção e ao consumo tem destruído pouco a pouco a unidade da família por
quase uma geração. Todos os políticos fazem discursos sobre os valores da
família e sobre as suas preocupações sociais, mas nenhum deles porá em
ordem as políticas que deveriam restaurar esses valores, porque seu custo
seria alto demais; e esse, é claro, é o ponto em que nós outros entramos — nós
não votamos em tais programas de ação porque isso significaria impostos
mais elevados, e, pelo fato de as necessidades dos outros serem maiores, isso
significaria renunciar a uma parte da nossa própria possibilidade de
autorrealização.
A razão por que digo isso tudo não é para entrar em política, mas para
destacar aquilo que está acontecendo no mundo à nossa volta. É importante
que nós, como cristãos, não tenhamos uma compreensão supersimples do
pecado que o restrinja a não comprarmos jornais no domingo, ou a deixar de
ver certo tipo de filme. O ataque do pecado se dirige aos próprios
fundamentos da humanidade, no nível daquilo que nos motiva e dos fins a que
aspiramos; o pecado molda as próprias estruturas da sociedade e das filosofias
que justificam essas estruturas; ele se esforça continuamente para refazer-nos
segundo a sua própria imagem; e, a menos que sejamos capazes de ver a
diferença entre o tipo de valor instilado em nós pelo mundo, e os valores que a
Bíblia quer que desenvolvamos, estamos condenados para sempre a nos
envolvermos numa rede de mundanismo que desonra a Deus.
A Palavra e a Reforma
Lutero perguntou: Onde posso encontrar um Deus gracioso? E a resposta foi:
em Cristo, na Palavra escrita e pregada — e, considerando os elevados níveis
de analfabetismo daquela época, não devemos permitir que a importância da
literatura impressa obscureça o fato de que a maioria daqueles que se
converteram ao cristianismo reformado no século dezesseis conheceram o
evangelho por meio da palavra falada, e não da página impressa, o que é um
ponto crucial para refrear a tendência pós-moderna de ver a Reforma como
um movimento formal demais e dependente dos livros.
Essa percepção vívida de Lutero concernente à Palavra e às palavras era um
sentimento comum a todos os grandes reformadores. Na verdade, a própria
tradição reformada até mesmo na arquitetura da igreja, que coloca como
centro o púlpito, e não o altar, refletia essa ênfase na Bíblia e no sermão. A
mudança de local do altar representava mais graficamente do que qualquer
outra coisa a mudança de um culto baseado nos sacramentos para um culto
baseado na palavra; e isso foi realçado pela insistência dos reformadores no
fato de que não podia haver sacramento sem a palavra, pois os sacramentos
eram um sinal da promessa, e por essa razão precisavam ser ministrados
dentro do contexto da promessa sendo proclamada oralmente.
Quando o evangelho é pregado, o Espírito de Deus entra naqueles a quem Deus ordenou e
designou para a vida eterna, abre-lhes os olhos interiores e opera neles a fé. Quando a consciência
aflita prova a doçura da morte amarga de Cristo, quando prova como Deus é compassivo e amoroso
por causa da aquisição e dos méritos de Cristo, ela passa a amar outra vez a lei de Deus e concorda
com ela, passa a reconhecer como ela é boa, como é necessária, e como é justo o Deus que a fez
(Extraído do prefácio do Novo Testamento publicado em 1525).
Confusão
Todavia, num nível popular, mesmo no seio das igrejas evangélicas
reformadas, têm-se cometido os mesmos equívocos. O só ensinar a doutrina
de maneira correta parece não produzir o efeito desejado. Deveras, ouvimos
dos púlpitos que a Bíblia é verdadeira, e de fato hoje pode parecer que no seio
de muitas igrejas evangélicas, pelo menos no nível popular, não são muitas as
pessoas que duvidam que a Bíblia seja verdadeira e fidedigna. Pergunte ao
crente sentado perto de você na igreja se as Escrituras são verdadeiras, e
invariavelmente obterá uma resposta afirmativa. Mas pergunte a essa mesma
pessoa qual é a diferença entre a Bíblia e a verdade contida no manual do seu
carro, ou que diferença faria à maneira como a Bíblia é usada e lida se ela
fosse usada e lida como se lê e usa o manual de um carro, e é bem provável
que você receba respostas bem menos confiantes e seguras.
O fato que a Bíblia é verdadeira é algo plenamente aceito; o que não se
entende muito claramente é o significado dessa verdade e dessa
confiabilidade. Afinal de contas, seja qual for o compromisso intelectual que
se tenha com a inspiração, se a Bíblia na prática é tratada como especial só
porque é inspirativa, não fica clara a razão por que ela não divide o seu lugar
especial na igreja com outras peças “inspirativas” da literatura, quer sejam as
Leituras Matinais de Spurgeon, as obras de Shakespeare ou quaisquer outras.
Se eu posso achar conforto nos solilóquios de Hamlet, por que isso não
funcionaria também nas reuniões da minha igreja?
O Púlpito
Portanto, o primeiro lugar em que a reforma da igreja começa é no púlpito. A
esta altura, precisamos entender que a ênfase da Reforma tanto sobre a
Palavra escrita como sobre a Palavra pregada não era apenas um movimento
teologicamente neutro. Sim, a Reforma ocorre num ponto da história em que a
cultura ocidental no geral estava-se movendo do estético e visual para o
literário e verbal; mas esta circunstância favorável não deve levar-nos a
relativizar esse aspecto do plano dos reformadores. A Palavra escrita e a
Palavra pregada são ambas centrais para o cristianismo, e não são simples
formas culturais que podem ser alteradas quando os movimentos culturais
mudam para algo novo.
A responsabilidade do pregador
Portanto, a primeira coisa que um pregador precisa perceber é a seriedade
da tarefa com a qual está-se comprometendo: sobre os seus ombros repousa a
responsabilidade de dar ao seu povo uma sólida rocha sobre a qual possam
edificar a vida; e, ao pregar, ele leva a divina Palavra de Deus do texto
divinamente inspirado, por meio das palavras do seu sermão, ao coração e à
mente do seu povo. Dessa forma, por assim dizer, ele manuseia a Palavra de
Deus, algo que tanto é um privilégio imenso como uma terrível
responsabilidade. Portanto, ele deve tomar o cuidado de entendê-la
corretamente e que a sua atitude seja apropriada à seriedade da tarefa. Como
Richard Baxter disse: “Eu pregava como um moribundo falando com
moribundos”. Ou seja, o púlpito não era lugar para ele fazer graça, ou falar de
frivolidades, ou para entreter a sua congregação; a cada domingo, era o lugar
onde, quem sabe pela última vez, ele tinha a oportunidade de falar a homens e
mulheres acerca das grandes coisas de Deus. Naturalmente, hoje vivemos
numa época em que o entretenimento é o supremo alvo e a motivação da vida;
mas o cristianismo é, sempre, até certo ponto, uma contracultura, e esse é um
aspecto em que não podemos nos dar o luxo de sermos qualquer coisa
diferente disso.
Assim, o ministério da pregação é algo que não pode ser desempenhado
levianamente; e também o ministro e a congregação não devem encarar o
sermão de maneira displicente ou trivial. O pregador tem a responsabilidade
tanto de explanar a verdade de Deus como de fazer isso de maneira que
confronte sua congregação com a solenidade da grandeza e da santidade de
Deus e a vastidão de sua graça e amor. Por essa razão, essa tarefa demanda
um tipo específico de homem com uma vocação específica para realizá-la.
O Preparo do Pregador
A ênfase da Reforma na Palavra leva não apenas a uma ênfase na seriedade da
vocação do ministro e da tarefa que ele tem de cumprir; ela também deve
moldar a visão para o tipo de educação e treinamento que esse homem deve
receber antes de subir ao púlpito. O ministro deve ser um homem que possua
várias habilidades além de seu amor pelo evangelho e seu amor por seus
semelhantes, homens e mulheres, cristãos e não cristãos. Uma igreja que está
continuamente se reformando de acordo com a Palavra de Deus será uma
igreja cujos líderes são homens que entendem a Palavra de Deus. Ora, a
preparação ministerial é um tema muito vasto, e eu não conseguiria tratar de
todos os assuntos envolvidos, mesmo que tivesse a competência para fazê-lo;
mas há uma série de fatores que a teologia da Reforma trouxe a lume. Vou
apresentá-las sem nenhuma ordem especial de prioridade.
Estudo de línguas
Primeiro, o ministro deve ter algum entendimento das línguas bíblicas.
Isso não é algo essencial — tem havido alguns ministérios famosos em que o
pregador tinha pouca ou nenhuma habilidade linguística. Não obstante,
inspirados foram os textos do hebraico, do aramaico e do grego, e não a King
James ou qualquer outra versão. Quando os reformadores colocaram a Palavra
inspirada no centro de seu programa de reforma, eles também estabeleceram
a dinâmica para o desenvolvimento dos estudos linguísticos precisamente
porque os textos originais eram de extrema importância para o axioma
protestante da Escritura somente. Ora, estudar os idiomas bíblicos é quase
direito exclusivo das faculdades teológicas conservadoras pela mesma razão
básica: um elevado conceito de inspiração exige que os líderes da igreja
compreendam o texto bíblico original. Não quer dizer que no púlpito se deva
exibir erudição. A educação nunca deve ser usada como base para separar o
ministro do povo e dessa forma criar um novo tipo de sacerdócio. Aliás,
Calvino mesmo nunca fez referência ao hebraico ou ao grego em seus
sermões. A única razão para adquirir essas habilidades é que dessa forma o
ministro possa chegar mais próximo do texto original, e assim aproximar-se
com mais intimidade da mente do próprio Deus, do que poderia fazê-lo
usando qualquer outra tradução, por mais excelente que seja.
História da salvação
Segundo, o ministro deve ter uma profunda compreensão de todo o caráter
teológico e histórico da Bíblia. A Bíblia narra uma só história, se bem que
através de relatos que apresentam diferentes perspectivas; ela contém uma só
teologia, se bem que através de livros com diferentes perspectivas teológicas;
e por isso ela tem de ser lida, entendida e proclamada como um todo. Uma
exegese fragmentada de textos isolados, uma pregação temática sobre o
assunto favorito do ministro naquele mês, e qualquer sermão que deixe de pôr
o ensino de alguma determinada passagem na esfera da história redentora
como um todo são simplesmente inadequados. Portanto, há uma necessidade
não apenas do ensino dos idiomas bíblicos, mas também da própria teologia
bíblica, uma teologia que respeita a estrutura histórica da Bíblia como sendo
parte de sua própria estrutura teológica, e assim capacite o pregador a mover-
se do texto para o sermão de uma maneira apropriada.
Neste ponto, é importante ver que aquilo que eu digo aqui sobre o ministro
se aplica quase da mesma forma ao professor de Escola Dominical. O
professor de Escola Dominical tem a responsabilidade não só de contar às
crianças as histórias básicas da Bíblia, mas também de instilar nelas as
ferramentas básicas de que precisam para relacionar todas as diferentes partes
da Bíblia. Graham Goldsworthy, do Moore Theological College, chegou ao
ponto de dizer que ninguém deveria poder ensinar na Escola Dominical sem
possuir um embasamento sólido na teologia bíblica. Talvez isso seja um pouco
exagerado, mas certamente todos os professores devem ter como objetivo
fazer com que a grande narrativa da Bíblia faça sentido na mente dos seus
alunos. E por quê nos restringir aos professores de Escola Dominical? Por
acaso não é dos pais a responsabilidade de fornecer aos filhos a maior parte
das informações bíblicas quando leem a Bíblia e oram com eles todos os dias?
Cabe a nós refletir sobre como fazermos isso, como estabelecermos na mente
de nossa própria prole o grande padrão da constante ação salvífica de Deus
através da história.
Teologia Sistemática
Terceiro, o ministro deve ter um sólido embasamento na teologia
sistemática, porque o contexto de qualquer texto ou narrativa bíblica é tanto
teológico quanto redentor e histórico. As doutrinas da Trindade, da
depravação total, da predestinação, para mencionar apenas três, precisam
estar constantemente diante dos olhos do ministro à medida que lê o texto
bíblico e quando passa desses textos para o sermão. Alguns membros de igreja
evangélica, e até mesmo alguns ministros depreciam a “teologia sistemática”
como se ela fosse alguma ideia estranha imposta ao texto só para distorcer o
ensino da própria Bíblia; mas esse tipo de conversa é completamente absurdo.
Os reformadores eram exegetas bíblicos por excelência, e, no entanto,
faziam constante uso de 1.500 anos de exposição sistemática doutrinária para
fazerem a sua exegese. Se a teologia sistemática tem sido mal usada para
produzir distorção exegética, essa culpa é dos que a distorcem, e não da
teologia sistemática. Eu desconfio que aqueles que criticam a teologia
sistemática no púlpito na maioria das vezes estão querendo dizer que o
problema teológico que estão enfrentando no texto está além das suas
capacidades mentais, e que tentam desculpar a sua falta de esforço para
pensar de forma teológica de uma maneira que isso os faça parecer mais
bíblicos, e não menos bíblicos. Aparentemente, é preferível oferecer à
congregação incoerência e confusão do que fazer uso da herança teológica da
igreja. Não há lugar para tal superficialidade num púlpito evangélico.
Aqui, uma vez mais, há razão para dizer que aquilo que é bom para o
ministro tolo é bom também para os tolos da congregação. Não são os cristãos
todos teólogos? Não falam todos de Deus de alguma forma? Há necessidade,
pois, de que todos sejam educados nos rudimentos da teologia sistemática.
Precisamos lembrar como a catequese funcionou na história da igreja.
Podemos sorrir disso hoje como se fosse algo antiquado e esquisito, mas isso
ajudou a dar às crianças e aos membros mais velhos da igreja uma sólida e
ampla compreensão do pleno alcance do ensino bíblico. De fato, com respeito
ao seu próprio ministério, Richard Baxter considerava a catequese como a
segunda coisa mais importante, estando à sua frente apenas a pregação. Não
estou dizendo que precisamos voltar à catequese nos moldes antigos — é bem
possível que isso não seja a decisão apropriada. O que estou dizendo é o
seguinte: se ainda não estamos fazendo isso, devemos buscar maneiras de
alcançar os objetivos que nossos antepassados tentavam alcançar por meio da
catequese, de forma que alfabetizemos bíblica e teologicamente os membros
da igreja. Quanto mais teologia nosso povo conhecer, mais apreciará o valor
da Bíblia, e mais teologia conseguirá encontrar nela.
Preparação apropriada
Portanto, o preparo ministerial que é fiel aos princípios da Reforma dá a
devida importância ao texto inspirado da Bíblia por meio de sua ênfase nos
idiomas bíblicos, sua atenção à unidade dos propósitos de Deus na história
bíblica, e seu comprometimento com a descrição unificada a respeito de Deus
que é feita na Bíblia e através dela. Somente depois que essas coisas forem
colocadas no centro, é que se podem considerar outras coisas como parte do
currículo do aprendizado. Na verdade, os outros aspectos essenciais do
aprendizado ministerial, como por exemplo a homilética, devem ser
profundamente moldados pelo que acontece com esses três, pois acima de
tudo devemos estar interessados em como o conhecimento adquirido aí pode
mais bem aproveitado na forma de sermão. Outros aspectos do currículo que
não têm relação com esse foco central da Palavra — como a atual coqueluche
da psicologia pastoral — podem e talvez devam ser dispensados. A tarefa do
ministro é principalmente pregar a Palavra, e não oferecer terapia; há
profissionais que podem fazer isso, e o fazem muito melhor; que o pregador
se concentre naquilo para o que foi chamado.
Habilidade
É possível que neste ponto alguém diga que a maneira como estou
descrevendo o ministro restringe a vocação aos que têm habilidade
intelectual. Até certo ponto, isso é verdade. Embora eu não faça dos dons
intelectuais um pré-requisito absoluto para o ministério, parece-me que o
ministro, em geral, deve possuir certas habilidades, tais como as que
descrevemos acima, a fim de realizar sua tarefa de forma competente. Quando
por um momento consideramos que a saúde intelectual da igreja em grande
medida depende do vigor intelectual de seus sermões, vemos que
evidentemente são de grande importância as habilidades do ministro em
termos de idiomas, exegese e teologia. Certamente, não teria nunca passado
pela cabeça dos reformadores que o ministro não devesse receber a melhor
educação possível; e qualquer que tenha sido a noção que eles tinham a
respeito da perspicuidade da Escritura isso com certeza não significava que
eles consideravam a mensagem da Escritura tão superficial ao ponto de poder
ser compreendida em toda a sua extensão, profundidade e amplitude por
alguém que simplesmente pegasse uma tradução da Bíblia e começasse a ler.
Ao contrário, a educação dos ministros era crucial, como o demonstra a
fundação da Universidade de Genebra em 1559; e como, por exemplo, a
tradição presbiteriana na Escócia sempre procurou manter.
Vivemos numa cultura profundamente anti-intelectual e numa época em
que o pragmatismo, em suas várias formas, reina quase absoluto. Devemos
cuidar para que, quando tentados a desacreditar o conceito tradicional de
preparação ministerial, não o façamos por uma imitação inconsciente da
cultura que nos rodeia. A teologia é um assunto difícil; e assegurar que as
complexidades da Bíblia sejam acessíveis à pessoa leiga torna a tarefa do
ministro ainda mais difícil. Portanto, há uma necessidade de ministros que
tenham tanto a capacidade quanto a preparação para realizar a tarefa de
maneira saudável e que glorifica a Deus. Essas são as qualificações de uma boa
preparação ministerial e — talvez devamos acrescentar — as prioridades
quando uma igreja está procurando chamar um ministro.
A Tarefa do Ministro
Contudo, um bom ministro ou um bom ministério fundamentados na Palavra
não são formados apenas pelo sentimento de estar sendo chamado para o
ministério e por um bom treinamento teológico. A esta altura, preciso
confessar que pertenço à velha tendência retrógrada que considera o homem
que não consegue pregar de maneira interessante e instrutiva simplesmente
como alguém que não foi vocacionado ao ministério da pregação. Se um
homem sobe ao púlpito e não consegue incendiar o coração do seu povo com a
Bíblia, então faria melhor se de modo algum subisse ao púlpito, pois impedir
os cristãos de ouvirem e lerem a Palavra de Deus é uma das coisas mais sérias
que alguém pode fazer.
Entusiasmo contagiante
Meus conceitos sobre essa questão procedem da minha convicção de que a
tarefa do ministro não é simplesmente apresentar uma exposição acurada de
uma série de passagens ou versículos bíblicos; é também encorajar e capacitar
seu povo a prosseguir e ler a Bíblia por si mesmos, de maneira responsável e
inteligente. À medida que prega a Bíblia semana após semana, o ministro não
está simplesmente apresentando a mensagem de salvação no domingo, mas
está equipando seu povo para a leitura, o estudo e a apropriação daquela
mensagem de salvação durante toda a semana. Afinal, no cerne da Reforma
estava a ênfase sobre a possibilidade de o leigo possuir as Escrituras e de
poder ele mesmo lê-las. Essa não era, como é popularmente mal interpretada,
uma maneira de dizer que cada um tinha o direito de alegar que qualquer
interpretação que quisesse dar à passagem era correta ou igualmente válida
como qualquer outra (a forma em que isso acontece muitas vezes na prática);
pelo contrário, era o reconhecimento de que cada um tinha a responsabilidade
de ler a Bíblia por si mesmo a fim de compreender a realidade da graça de
Deus em Jesus Cristo. O ministério da pregação era, portanto, de certa forma,
uma maneira de facilitar precisamente esse manuseio responsável da Bíblia.
Isso deveria ser uma preocupação fundamental para o ministério hoje.
Vivemos dias em que predomina a ignorância das histórias mais básicas da
Bíblia, sem falar da sua estrutura mais abrangente, até mesmo entre os
cristãos evangélicos. Portanto, uma parte da missão do ministro é demonstrar
a seu povo como ler, interpretar e aplicar a Bíblia de maneira responsável.
Tudo isso pode ser aprendido numa Faculdade bíblica; mas o que não se pode
aprender ali é aquele inigualável amor pelo Senhor Jesus Cristo que se
derrama no entusiasmo pela Bíblia e seu ensino, amor que, quando emana do
púlpito e é acionado pelo Espírito Santo, torna-se contagiante. Se o próprio
ministro não consegue demonstrar que ler a Bíblia é algo vital e inspirador,
então não pode se queixar se o seu povo segue o seu exemplo achando-a
enfadonha e irrelevante. Somente quando Cristo é glorificado através da
pregação da Bíblia, semana após semana, é que o povo passa a ver que o
cristianismo da Bíblia é o cristianismo de Cristo; somente então
compreenderão que a Bíblia é a única coisa através da qual encontrarão acesso
a esse Salvador.
A questão central
Para concluir, preciso dizer que considero que a centralidade da Palavra
como a Palavra de Deus é provavelmente o terreno central da luta na vida da
igreja evangélica atual. Todos estamos acostumados com aqueles que negam a
inspiração plenária e a autoridade da Escritura; mas os debates têm-se
tornado ainda muito mais abrangentes e prejudiciais do que isso. Será que a
salvação é somente por meio de Cristo? Será que a redenção em Cristo é
revelada somente nas Escrituras? Pode o evangelho ser comunicado de
maneira não verbal que seja plenamente compreensível? Todos esses são
desafios que os gurus tendenciosos do pós-evangelicalismo estão lançando à
igreja evangélica tradicional e que derivam de uma falha em ver a Bíblia como
a Palavra de Deus, uma Palavra falada, no dizer de Francis Schaeffer, pelo
Deus que existe e que não está em silêncio. O colapso no consenso doutrinário
evangélico está intimamente relacionado com o colapso da compreensão e do
papel destinado à Escritura como a Palavra de Deus falada no seio da igreja.
Entretanto, apesar de todas as afirmações de que a sociedade é agora
“visual demais” para a religião de estilo antigo e centrada na palavra, e que
um evangelicalismo calcado num livro corre o risco de tornar-se um gueto de
classe média cheio de traças intelectuais que nada têm a dizer às novas
gerações, há um fato embaraçoso que os novos gurus precisam encarar: Deus
nos deu um livro, cheio de palavras, como o meio básico de dar-nos acesso à
sua revelação. Portanto, o evangelho é inextricavelmente verbal e a Bíblia
deve permanecer inegociavelmente no centro do programa de ação
eclesiástico, da educação ministerial e da vida familiar. Deixar de fazer isso é
tornar-se vulnerável a toda baforada de vento herético que os gurus sopram
em nossa direção. É igualmente pôr-se acima daquilo que o próprio Deus
estabeleceu para nós.
Mandamento, promessa, Messias — os termos básicos da mensagem bíblica
são inextricavelmente verbais, e não podem ser comunicados sem as palavras.
Remova as palavras e tudo mais é esboroado; não é mais cristianismo bíblico,
histórico ou algo que o valha. Temos de pensar em como uma religião baseada
na palavra pode ser comunicada nestes dias, a esta geração; temos de evitar a
todo custo nos tornarmos um gueto de classe média para teóricos frustrados.
Mas também precisamos ser fiéis à própria forma e essência da Bíblia, as quais
ambas envolvem palavras em seu próprio centro. Não nos desesperemos; a
Palavra não é apenas a Palavra; ela é a Palavra do Espírito, no Espírito e
através do Espírito. Ela é poderosa em sua própria essência. Em última
análise, nossa tarefa é comunicá-la; o poder da comunicação reside
unicamente em Deus. Recordemos as palavras de Isaías e nos concentremos
não tanto na técnica quanto na atitude moral que devemos adotar: “...o
homem para quem olharei é este: o aflito e abatido de espírito e que treme da
minha palavra” (Is 66.2).
BENDITA SEGURANÇA
O Alicerce da Reforma
Os comentários de Bradford refletem muito bem as inquietações que se faziam
evidentes na teologia reformada já desde o seu início. É bem conhecida a
história das lutas de Martinho Lutero com a sua própria pecaminosidade, e
como a teologia medieval foi incapaz de socorrê-lo nessa luta.
A experiência de Lutero
Como monge, Lutero tinha travado uma longa e árdua luta com o fato de
não ser suficientemente bom para estar na presença de Deus: ele tinha
chegado ao limite da resistência humana em suas tentativas de subjugar sua
pecaminosidade e de tornar-se justo. Na tentativa de limpar-se de todo
pecado, ele quase levou à loucura o seu padre confessor por causa da sua
diligência patológica com os detalhes da sua vida; e ele descobriu que a ideia
medieval de que Deus seria gracioso para com os que faziam seu melhor, veio
a ser uma fonte não de conforto e sim de maior agonia — pois como poderia
ele estar certo de que realmente tinha feito o melhor que poderia fazer? Se
isso era o evangelho, então estava longe de serem boas notícias — ao
contrário, para Lutero eram notícias mais do que ruins, significando que não
apenas a lei, mas até mesmo o evangelho serviam para acusar e condenar
aqueles que levavam a sério a condição de sua alma.
O final dessa história também é muito bem conhecido. Enquanto se
digladiava com Romanos 1.17, Lutero entendeu que a justiça de Deus não é
um padrão externo por meio do qual os seres humanos são pesados na balança
e achados em falta; em vez disso, ela é uma dádiva de Deus pela qual o
indivíduo é considerado justo diante de Deus. Em outras palavras, é ser
incluído no grande propósito salvífico de Deus conforme foi mostrado em
Cristo na cruz do Calvário. É ali que o evangelho é visto em toda a sua glória,
na humilhação e no sofrimento do Deus que se fez homem na pessoa de Jesus
de Nazaré. A verdadeira percepção de Lutero foi compreender que o
evangelho não era uma questão de olhar para dentro de si mesmo a fim de
achar ali alguma base para ser aprovado por Deus, mas era uma questão de
olhar para fora, para o grande feito salvífico de Deus em Cristo como a única
maneira pela qual o pecador pode chegar até o Pai.
Sua importância
Essa ênfase sobre a segurança é importante porque essa segurança da fé
funciona no protestantismo da Reforma como muito mais do que um simples
sedativo para consciências perturbadas. Por exemplo, na sua ênfase sobre a
ação soberana e graciosa de Deus, ela chama a atenção para o Deus
incondicionalmente amoroso e compassivo que a Reforma procurou colocar
em primeiro plano. Além disso, na conexão que os reformadores
estabeleceram entre a livre graça de Deus e a resposta do amor no coração
humano, a segurança tornou-se o fundamento da atividade cristã: é porque
sabemos que Deus nos ama que nós lhe respondemos em amor, e é porque ele
nos ama e se dá a nós de forma incondicional que nós amamos aos nossos
semelhantes e nos damos a eles de forma incondicional. Assim, toda a vida
cristã é profundamente moldada por esta brilhante compreensão: que o amor
de Deus é incondicional e integral; que ele nos traz a salvação como uma
dádiva; e que, mais espantoso que qualquer outra coisa, nós mesmos podemos
conhecer esta salvação com certeza absoluta.
A revelação bíblica
Dos reformadores, que tentavam colocar a graça de Deus no centro da vida
da igreja, não poderíamos esperar menos do que isso, que considerassem a
segurança do cristão como um elemento importante. Era assim que precisava
ser. O Deus da Reforma é o Deus bíblico da graça, o Deus da graça soberana,
que se revelou ao longo da história bíblica como aquele que prometeu ser
gracioso para com o seu povo e que sempre de novo honrou essa promessa.
Desde a aliança feita com Abraão, passando pela história de Isaque, Jacó, José,
Moisés, Davi, Salomão, Ezequias, até Maria, Isabel e Simeão, Deus não foi fiel
apenas à sua promessa de graça, mas demonstrou de modo claro e inequívoco
que essa é a sua maneira de ser. Então, em Cristo temos a suprema
demonstração da fidelidade e da promessa de Deus — Deus mesmo,
voluntariamente, vindo morar como homem entre os demais homens, e
morrendo numa cruz para que tivéssemos vida, e a tivéssemos em abundância.
A Bíblia é um livro que fala mais do que de qualquer outra coisa sobre a
clara e notória fidelidade de Deus na questão do seu trato gracioso e
misericordioso com a humanidade. Assim, era inevitável que um movimento
que levou a graça de Deus tão a sério colocasse Cristo e a Bíblia no centro de
seu programa de reforma, e ressaltasse o fato que Deus não apenas salva, mas
nos dá sólidas e seguras bases para sabermos que ele o fez: a história sagrada,
a vida e obra de Jesus Cristo, e a Bíblia inspirada, que é o meio pelo qual,
humanamente falando, chegamos a conhecer e a entender essas coisas.
Assim sendo, surge a pergunta: como podemos ser fiéis, na vida
eclesiástica contemporânea, a essa percepção básica concernente à
importância da segurança da salvação? Afinal, é óbvio que qualquer tipo de
teologia que desenvolvermos em nossas igrejas, não importa quão protestante
ela pareça em termos de suas palavras e conteúdo geral, deixará de ser
realmente protestante, realmente alinhada com o pensamento representado
por John Bradford, por exemplo, se não colocar a segurança em algum lugar
perto do centro de seus interesses. Entretanto, antes de podermos responder a
essa pergunta, temos de refletir sobre a situação da igreja ao nosso redor hoje,
para entender, em primeiro lugar, se os problemas associados à segurança
estão mesmo afligindo a igreja de hoje, e de que tipo são eles; e, em segundo
lugar, o que significa exatamente a segurança bíblica da salvação.
Os legalistas
O primeiro grupo, o dos legalistas, talvez seja mais comum em certos
ramos do presbiterianismo escocês e em certas linhas dentro da tradição
estritamente batista, embora não se confine a eles. Para esse grupo, a
afirmação da Confissão de Westminster de que algumas vezes o verdadeiro
crente pode deixar de sentir a segurança da salvação por um tempo
considerável não é tanto uma concessão para as realidades pastorais
excepcionais, e, sim, uma declaração normativa a respeito da vida normal
cristã. O ponto principal nesses círculos é uma ênfase sobre a necessidade
tanto de experiências cristãs profundas, como de um certo período de “andar
piedoso diante do Senhor” como pré-requisitos necessários para a plena
aceitação no seio da comunidade eclesiástica, seja com respeito ao batismo,
seja para participar da Ceia do Senhor.
Tenho muitos amigos e parentes na tradição presbiteriana escocesa, e eu
mesmo sou membro da Igreja Livre da Escócia, denominação que, ao menos
no oeste da Escócia e nas Ilhas Hébridas, está associada em muitas mentes
precisamente ao tipo de piedade a que estou me referindo agora. No passado,
muitos não participariam da comunhão (a maneira, nesta tradição, de
professar publicamente a fé) enquanto não se passassem alguns anos depois
da sua conversão a Cristo em arrependimento e fé. Alguns deles simplesmente
não tinham segurança quanto à sua salvação durante um longo período de
tempo; a outros faltava a coragem que uma profissão de fé requer numa
comunidade muito familiar onde a vida de cada um é examinada pelos
vizinhos nos mínimos detalhes em busca de sinais de fé genuína; ainda outros
deturpadamente faziam da falta de segurança da salvação um meio de justiça
própria, desprezando aqueles que eram mais jovens mas que participavam da
comunhão como se estes fossem arrogantes e não tivessem um profundo
conhecimento da sua própria pecaminosidade — deturpadamente, então, a
falta de segurança da salvação tornou-se um sinal da eleição! Acho que essas
pessoas nunca nem imaginaram que uma atitude dessas demonstrava de sua
parte não um profundo conhecimento de seu próprio pecado, e sim um
conhecimento muito superficial de Cristo.
Seja qual for a razão para algum crente deixar de fazer a profissão pública
de fé em tal contexto, podem-se fazer duas observações gerais a esse respeito.
Primeira, a demora entre a conversão e a profissão pública da fé que ocorre
em tais situações só é possível dentro de uma cultura eclesiástica que aceita
esse padrão como legítimo, para não dizer normativo. Portanto, o problema
não é simplesmente que há vários indivíduos debatendo-se com a profissão
pública da fé; é o problema de uma comunidade que criou um contexto social e
teológico, uma estrutura de valores e expectativas que permitem que subsista
um fenômeno desse tipo.
Segunda, por mais protestante que esse grupo se julgue, por mais uso que
faça da linguagem e da retórica da Reforma, por mais que louve e defenda da
boca para fora os nomes e os feitos dos reformadores, ele com certeza está
muito longe do protestantismo imaginado por John Bradford e seus
contemporâneos; e, de fato, esse grupo parece estar mais próximo, nesse
assunto, do próprio catolicismo que Bradford e seus companheiros
repudiavam com tanta veemência. Afinal, se alguém deseja participar do
legado dos reformadores, não basta comprometer-se de forma intelectual com
a veracidade da doutrina reformada; é preciso também usar ou aplicar a
doutrina dos reformadores de um modo coerente com o modo com que eles
mesmos costumavam usá-la. Afinal de contas, é possível crer no poder de cura
da penicilina, mas se alguém a usa, seja acidentalmente ou por ignorância,
para matar ou causar dano, então essa pessoa deixa de agir conforme a
tradição da prática médica aceitável.
Os reformadores
Para os reformadores, a segurança da salvação provinha da percepção de
que Deus era fidedigno, e de que sua promessa de salvar era, num sentido
essencial, incondicional. Quando Deus fez a Abraão sua promessa pactual, a
tônica não estava na relação mútua entre Deus e a humanidade, como se Deus
só fosse operar a salvação se a humanidade, por sua vez, cumprisse a sua
parte. De maneira nenhuma! Pelo contrário, a ênfase estava na promessa: que
Deus era gracioso e pretendia salvar graciosamente; que a eleição para a
salvação não estava no poder dos homens e mulheres, mas se encontrava
unicamente nas mãos de Deus. Ao longo da história bíblica, Deus demonstrou
repetidamente que ele, o Deus que prometeu, era fidedigno, de modo que,
repetidas vezes preservou o seu povo e a linhagem messiânica, muitas vezes a
despeito de grande e repetida apostasia, até aquele momento em Belém
quando nasceu o Cristo. Naquela ocasião, naturalmente, na pessoa de Jesus
Cristo, Deus concretizou o cumprimento final da sua promessa de graça — não
com o auxílio dos homens, mas, como o próprio nascimento virginal nos
lembra, unicamente por um ato incondicional de sua própria graça. Este
ponto, que Deus é fidedigno, e que nós sabemos que ele é fidedigno por causa
do modo como agiu ao longo da história, especialmente com a sua
culminância em Cristo, é o fundamento da segurança da salvação, e não a
experiência pessoal ou a intensa emoção — nem sua, nem minha.
Lutero
O que descobrimos, quando examinamos as obras de Lutero é uma
impressionante ênfase sobre as obras objetivas de Deus, especificamente,
neste caso, a encarnação. Lutero sabe que está diante de um Deus gracioso
porque Deus assumiu forma humana em Belém, num determinado momento
da história. Quando se manifesta pessoalmente em Cristo, Deus se mostra
gracioso para com os pecadores. Essa é a razão por que Lutero pode sentir-se
seguro e pode regozijar-se no favor de Deus, como um prisioneiro livre da
prisão. Sua segurança está radicada nos feitos históricos de Deus como a
Bíblia os descreve, como são anunciados na pregação, e como são mostrados
no Batismo e na Ceia do Senhor. É claro, Lutero fala dos altos e baixos
emocionais do cristão, mas a sua segurança não está radicada neles. Se
estivesse, a sua alegria no Senhor poderia facilmente aumentar e diminuir de
acordo com o tanto de horas que ele tivesse dormido à noite, ou aquilo e o
tanto que tivesse comido, ou as oscilações políticas de Wittenberg.
Essa verdade é ressaltada pelo comentário de Lutero sobre Jesus Cristo, em
seu Catecismo Menor:
Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, gerado do Pai desde a eternidade, e também verdadeiro
homem, nascido da Virgem Maria, é meu Senhor; que redimiu a mim, um homem perdido e
condenado, deu-me segurança e livrou-me de todos os pecados, da morte e do poder do diabo, não
com ouro ou prata, mas com seu santo e precioso sangue, e com seu inocente sofrimento e morte;
a fim de que eu fosse dele, vivesse sujeito a ele em eterna justiça, inocência e bem-aventurança,
porquanto ele ressuscitou dentre os mortos e vive e reina para sempre. Certamente, isto é mui
verdadeiro. (Extraído de Creeds of Christendom de Schaff.)
Calvino
A mesma coisa é verdade também com referência a Calvino. Naturalmente,
sabemos muito menos a respeito de Calvino quanto à sua experiência pessoal
na vida cristã do que sabemos a respeito de Lutero. Calvino, conforme as
descrições que temos dele, é sério, retraído e reticente a respeito dos detalhes
pessoais de sua vida religiosa. Apesar disso, ele é um homem para quem a
certeza do favor divino faz parte da essência da fé cristã. Embora alguns de
nós sintam que ele exagerava a relação existente entre fé e certeza como uma
reação aos excessos medievais na direção oposta (e eu mesmo confesso que
prefiro a ênfase da Confissão de Westminster sobre esta questão), é evidente
que ele arraigou a sua confiante segurança em Deus nos grandes feitos
salvíficos de Deus na história, de forma suprema a de Jesus Cristo. Ouça, por
exemplo, como ele descreve o evangelho bem no início da sua obra A
Harmonia dos Evangelistas:
O Evangelho é uma demonstração pública do Filho de Deus manifestado em carne para libertar um
mundo arruinado, e para restaurar os homens da morte para a vida. O evangelho é chamado com
razão de a mensagem boa e jubilosa, pois contém a perfeita felicidade.
A Bíblia
Assim sendo, o que os reformadores viram aqui não é nada mais que o
padrão da própria Bíblia. Se procurarmos na Bíblia as ocasiões em que a
segurança do favor divino foi buscada, o que descobriremos? Sempre de novo
vemos os crentes recorrendo aos grandes feitos de Deus na história como a
base da segurança, aos feitos por meio dos quais Deus não apenas se revelou
como aquele que salva, mas também como aquele que é fundamentalmente
fiel à sua promessa de graça feita aos patriarcas. Não são nem as suas
experiências pessoais, nem as suas condições emocionais que lhes fornecem a
segurança da salvação: a rocha sobre a qual a confiança e o júbilo são
edificados é a constante lembrança de como Deus foi fiel ao seu povo ao longo
da história.
Centrada em Deus
Primeiro, essa pregação deve ter Deus como centro. Como eu já disse, tanto
os legalistas introspectivos como também aqueles que se deixam levar pelas
emoções cometem o equívoco básico de colocar sua ênfase, em última análise,
em sua experiência pessoal. A religião deles, não importa qual seja a retórica
de santa piedade com que a envolvam, é essencialmente centrada no homem,
é uma religião em que eles se preocupam mais consigo mesmos e com as suas
próprias experiências. A maneira de opor-se a isso com certeza é fazer com
que as pessoas parem de olhar para si mesmas e passem a olhar para o Deus
da Bíblia, e isso é feito certificando-se de que, quando a Bíblia é pregada, ela é
pregada como a história de Deus.
Veja o exemplo dos sermões neotestamentários, ou das cartas escritas por
Paulo e pelos outros: invariavelmente, o foco está constantemente em Deus e
nos feitos de Deus, com o apelo prático ao homem — quando e se ocorre —
vindo precisamente dos argumentos prévios a respeito de Deus. Em
Filipenses, é porque Deus o Filho, ainda que igual a Deus o Pai, humilhou-se a
si mesmo e assumiu a condição de servo, que os crentes devem buscar os
interesses dos outros e devem dispor-se a servi-los de modo incondicional.
Em Efésios, é porque Deus escolheu e predestinou os crentes em amor, antes
da fundação do mundo, que eles devem esforçar-se em prol da unidade do
corpo. Em lugar nenhum o foco está nos indivíduos ou na experiência
individual como a base para falar de Deus ou pensar nele. É justamente o
contrário: os feitos de Deus é que fornecem a estrutura pela qual a vida dos
crentes deve ser entendida e ajustada.
Equilibrada
No capítulo sobre Cristo, falei da necessidade de a igreja levar a sério a
condição da humanidade como tendo já sido redimida mas sem ter chegado
ainda à perfeição final. Afirmei que isso significa que devemos evitar um
cardápio de sermões e hinos constantemente triunfalistas, uma vez que estes
só ajudam a criar um tipo de cultura evangélica assertiva de alegria e de
profusão emocional, associadas a uma absoluta ausência de dúvidas quanto ao
que quer que seja. Esse tipo de cultura é pastoralmente desastrosa;
evangelisticamente atrofiada; e, em última análise, simplesmente representa,
no presente, uma falsa compreensão do que vem a ser a essência do
cristianismo. Sugeri, como alternativa, que uma forma equilibrada de culto se
encontra mais provavelmente na ênfase nos salmos, onde encontramos não só
alegria, mas também lamento e ambos os elementos são, portanto, aspectos
legítimos e importantes do culto cristão.
Alguém pode comentar, neste ponto, que aquilo que estou dizendo a esta
altura em minha preleção não se encaixa tão bem com o que eu acabei de
dizer. Acaso a lamentação não envolve alguma falta de segurança? Se o culto
cristão significa dar plenas rédeas à grande e gloriosa ênfase da Reforma
sobre a segurança da salvação, então que lugar tem a lamentação no culto
cristão?
Centrados em Deus
E assim, o culto coletivo, os hinos que entoamos, as palavras que
proferimos juntos, não só devem ser realistas com respeito à condição
humana, mas devem também levar plenamente em conta os poderosos feitos
salvíficos de Deus. A liturgia da Reforma capta isso de modo excelente. Basta
pensar no papel exercido pelos salmos entoados na Reforma genebrina e no
Saltério metrificado no Livro de Oração Comum, e se verá quão centrais no
culto da Reforma eram essas grandes expressões da emoção humana no
contexto dos propósitos redentores de Deus. Além disso, pode-se ver, à luz da
importância do Magnificat e do Nunc Dimittis no Livro de Oração Comum que,
para os reformadores, o culto estava inextricavelmente vinculado aos feitos
redentores de Deus na história que culminaram em Cristo.
Agora, eu não me envolvo nas discussões entre o “novo” contra o “velho”,
discussões que se alastram tanto dentro do evangelicalismo reformado
britânico de hoje, as quais frequentemente rompem a comunhão entre as
pessoas e dividem as igrejas. A impressão que tenho a respeito desses debates
é que, às vezes, por detrás da retórica teológica, o ponto em questão tem mais
a ver com estilo do que com conteúdo. O meu interesse aqui não tem
absolutamente nada a ver com estilo; e estou bem aberto à possibilidade de
que minhas sugestões para o culto sejam acatadas tanto por um estilo
moderno de música ou linguagem como pelos tradicionais com os quais estou
mais acostumado. O que eu quero dizer é que é basicamente antibíblica essa
obsessão de muita gente por hinos e coros que nunca vão além da primeira
pessoa, e que nunca saem da esfera da descrição de experiências pessoais
(sejam verdadeiras ou meramente ideais) e que, por mais confiante que seja a
letra dessas músicas, não produzirá nunca o tipo de segurança que os
reformadores viam a Bíblia ensinar. Isso não quer dizer que nenhum hino ou
coro deva falar da experiência pessoal, ou ser composto na primeira pessoa,
mas quer dizer que, quando esse tipo de experiência fizer parte de um hino ou
coro, não deve nunca terminar em si mesma ou ser ela o seu foco principal. Se
o hino fala de desespero, então que leve à reflexão sobre a bondade de Deus
em seus feitos redentores e sobre a sua promessa de glorificação vindoura; se
o hino fala de alegria, então que não seja alguma alegria sem conteúdo, que
não oferece nenhuma base para sua própria existência; antes, seja a alegria
por algum feito de Deus; só então a alegria terá verdadeira estabilidade e não
estará construída sobre a base da extravagância emocional do momento.
Não sou fã da liturgia anglicana — nem de qualquer liturgia formal nesse
assunto — mas direi duas coisas em seu favor: num ambiente litúrgico, é
difícil que as pessoas falem tolices durante a adoração; e na maioria das
liturgias que eu conheço, o foco, em última análise, é sempre Deus e os seus
feitos, e não os seres humanos e as suas necessidades. E essa ênfase é boa,
sólida e bíblica.
A segurança bíblica requer, acima de tudo, que saibamos quem Deus é; e
isso requer, em segundo lugar, que saibamos o que ele tem feito ao longo da
história. É isso que nossa pregação e nosso culto devem tornar evidente, se
quisermos valer-nos uma vez mais da genuína ênfase da Reforma sobre a
segurança, aquela ênfase que deve marcar a linha divisória entre o
evangelicalismo bíblico alegre e a conversa fiada ou o miserável desespero
produzido por outras versões do cristianismo que talvez reivindiquem o nome
de evangélicos ou protestantes, e que, no entanto, carecem da própria coisa
que os reformadores como Bradford viam como essencial ao seu projeto.
Nós temos um Deus gracioso e fidedigno; os reformadores lembraram ao
mundo esse fato; coloquemo-lo uma vez mais no centro da nossa vida e culto.
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