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Oficina da Criação

Professora: Dra. Cristina Fonseca Silva Rennó Higino


Oficina da Criação

Capítulo 1 - Introdução: a criação de um roteiro 3

Capítulo 2 – O cinema brasileiro e mundial 6

Capítulo 3 - As personagens no cinema e na literatura: personagens planas e esféricas 14

Capítulo 4 - O protagonista e seus arquétipos 19

Sumário Capítulo 5 - Uma ideia na cabeça e uma personagem nas mãos 21

Capítulo 6 - Personagem, imagem e função dramática 23

Capítulo 7 – O herói do cinema e sua jornada 28

Capítulo 8 - Roteiros com exercícios 43

Roteiros com exercícios – parte 2 44

Roteiros com exercícios – parte 3 52

Roteiros com exercícios – parte 4 57

Capítulo 9 - A adaptação de uma obra literária 60

Capítulo 10 – Conclusão 61

Referências bibliográficas 61

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Capítulo 1 - Introdução: a criação de • Escaleta.


um roteiro
• Cenas divididas em texto e imagens,
Para iniciarmos esta oficina de roteiro, isto é: descrição cênica e diálogos.
vamos recordar alguns passos importantes
para a concepção de um filme.

O primeiro passo é o argumento. Um fil-


me começa no argumento, que significa uma
história desenvolvida para audiovisual. Como
segundo passo, escolhido o tema e desenvol-
vido seu argumento, vamos ao que de fato
nos interessa: o roteiro.

Escrever um roteiro é basicamente desen-


volver uma história para cinema ou TV. Mas
essa narrativa, diferente de se fechar no li-
vro, será montada, editada, transformada
em filme e veiculada nos espaços audiovisu- A criação técnica de um roteiro não é fácil,
ais de comunicação. Portanto, ao invés de mas ainda assim é uma das fases mais sim-
se ocupar basicamente do texto, o roteirista ples do aprendizado. Difícil mesmo é o de-
deverá considerar as imagens, os sons, os senvolvimento do conteúdo, ou seja, realizar
cortes, os diálogos e a forma como as perso- um filme que tenha razão de ser, que possa
nagens ficarão na pele de um ator. Por isso contar uma história interessante, que acres-
mesmo, o roteirista, assim como o drama- cente algo à vida do público que vá assisti-
turgo, é um escritor de índole diferente, pois -lo. Um filme que, mesmo sendo apenas de
escreve pensando em imagens. Não dá para entretenimento, provoque alguma reação ou
conceber roteiros fora disso. emoção no público pagante.

Para conseguir escrever uma história que Quantos argumentos excelentes se tor-
será montada ou editada, não se pode es- nam nada quando desenvolvidos em roteiro?
quecer dos diferentes aspectos técnicos que
Quantas histórias desperdiçadas chegam ao
fazem parte desse tipo de dramaturgia. São
cinema? Isso é mais comum de acontecer
eles: do que se imagina. Portanto, não basta uma
ideia na cabeça para que a narrativa, em seu
• Cabeçalho (externa/interna - espaço desenvolvimento, saia pelo menos proficien-
físico - tempo). te, se não puder ser profissional. E, para que
isso ocorra, existem alguns aspectos da cria-
• Divisão em cenas da história. ção que devem de fato ser muito respeita-

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dos. Está basicamente neles o bom resultado Ou ainda o grupo de monstros famosos da
de um filme. literatura do século XIX que reinam até hoje
no cinema moderno, como Frankenstein e
A composição de personagens é talvez um Drácula. Ou mesmo as personagens trágicas
dos aspectos mais importantes para o desen- gregas, vindas lá da Antiguidade, como Édi-
volvimento de uma boa história de literatura po, Antígona, Hércules. Ou personagens de
ou de cinema. Essa é a razão por que, nesta quadrinhos que ganharam vida no cinema,
oficina de criação, a atenção ao desenvolvi- como Batman, criado por Bob Kane, Super-
mento e à criação deles será especialmente -Homem, da dupla de autores Joe Shuster e
importante. As personagens são o principal Jerry Siegel, ou ainda os que foram do cine-
tema quando se trata de desenvolvimento do ma para os quadrinhos, como Mickey Mouse,
roteiro. a mais famosa criação de Walt Disney. Trata-
-se de criações tão fortes que ultrapassaram
seu tempo histórico, mantendo o mesmo vi-
gor de quando foram criados; tornaram-se
mais importante, ou pelo menos mais conhe-
cidos e imediatamente reconhecidos por seu
público, do que seus criadores.

Coube a eles todos dar vida e tornar-se a


razão de ser de seus enredos. Sustentam-se
sozinhos, pois são o ponto alto da criação
de suas narrativas. Não é fácil criar perso-
nagens emblemáticas como esses exemplos.
Mas, mesmo que o roteirista não consiga
Vamos lembrar que, sem personagens, não criar seres tão especiais, o que houver de
se cria um filme, uma novela ou uma minis- personagens em uma história deverá ser
série. São eles, suas vidas, a forma como se um dos principais pontos de criação de uma
realizam no tempo e no espaço, seus atos e obra. Para o bem e para o mal, elas são os
a consequência deles que fazem a grandeza pontos luminosos de qualquer história, tanto
de um filme. Assim também é na literatura. faz se escrita para a literatura, para o teatro
ou para o cinema e a TV.
Imagine, por exemplo, dois personagens
exemplares criados pelo escritor Miguel de O grande dramaturgo Luigi Pirandello,
Cervantes no Renascimento, Dom Quixote de brincando com esse aspecto tão importan-
La Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pan- te da criação de uma história, fez uma peça
ça; ou ainda os românticos e emblemáticos que se chama Seis personagens à procura de
casais de Shakespeare, cuja história se pas- um autor, o que mostra a importância de-
sa na Idade Média, como Romeu e Julieta. les. A brincadeira está em que, se não exis-

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te história sem personagens, é possível, no


entanto, existir personagens sem enredo. E
isso já aconteceu: é o caso exemplar do po-
eta Fernando Pessoa, que criou um grupo de
personagens – heterônimos - sem enredo que
os sustente que, no entanto, existem comple-
tamente na vida literária universal: Ricardo
Reis, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ber-
nardo Soares. Quem conhece literatura sabe
bem quem são eles. Apesar disso, quando se trata de roteiros,
nossas produções de personagens têm sido
muito falhas. Tirando algumas poucas nove-
las de TV e as importantes peças de teatro
de Nelson Rodrigues e de Plínio Marcos, mui-
tas vezes adaptadas para o cinema, com suas
personagens sofridas e marcantes, esse é um
dos pontos negligenciados da filmografia na-
cional. Erramos muito. Nossas personagens
de cinema, em quase todos os argumentos
e enredos, têm sido mal construídas, soan-
do falsas, inexpressivas, incompletas, extra-
vagantes. E, como depende delas o sucesso
ou o fracasso de uma obra, muitas produções
E no Brasil, como estamos? Temos grandes brasileiras com bons argumentos, por causa
personagens literários, a começar por Diado- da má construção de personagens, acabam
rim e Riobaldo, de Grande sertão: veredas, de tendo comprometida a qualidade dos roteiros.
Guimarães Rosa.
Vamos, nesta apostila, tentar preencher
Temos as personagens emblemáticas de com informações essa falha de criação bra-
José de Alencar, como Iracema, a índia dos sileira. E, para que isso ocorra, além do ar-
lábios de mel, ou a portuguesa Ceci e o nobre gumento e da sinopse, serão dados todos os
índio Peri. Temos os adoráveis personagens detalhes que podem ajudar na concepção de
infantis de Monteiro Lobato: Pedrinho, Narizi- personagens.
nho, Emília, Visconde de Sabugosa; as perso-
nagens históricas de Érico Veríssimo, como o Lembre-se de que uma personagem come-
capitão Rodrigo e Ana Terra, da saga O tempo ça pela concepção física, que deve ser coe-
e o vento; as famosas personagens de Jor- rente com a sua concepção psicológica. Essas
ge Amado, como Gabriela, Tieta do Agreste, duas características juntas são determinantes
Dona Flor etc. para a construção de diálogos.

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cinéfilo. Em geral, os maiores roteiristas do


audiovisual, além de adorar cinema e teatro,
são vorazes consumidores de literatura.

Capítulo 2 – O cinema brasileiro e


mundial

Falar da importância das personagens não


quer dizer que os fatos ocorridos num roteiro
não sejam também fundamentais. A vida e as
ações mostradas numa história são realmente
muito importantes. Mas é praticamente im- Além de buscar suas inspirações na litera-
possível separar esses aspectos da criação de tura, é importante que o aspirante a roteiris-
um roteiro de suas personagens. Isso porque ta assista a quantos filmes puder, analisando
as ações, o tempo e o espaço que uma histó- seus procedimentos formais. Para isso, pre-
ria determina estão intrinsecamente ligados a cisa ter pelo menos algum conhecimento so-
elas. As ações existem em torno e por causa bre a história do cinema.
das personagens. Estes muitas vezes gravi-
tam em torno de suas ações, outras vezes as Deve saber quem são seus grandes dire-
impulsionam. tores e quais foram os filmes fundamentais
para o desenvolvimento da Sétima Arte.
Como diz o ensaísta Antônio Candido, no
seu excelente texto A personagem no roman- Por isso, deixo aqui uma lista, na verdade
ce (CANDIDO, 2003, p. 53): “O enredo existe muito pequena, daqueles filmes essenciais
através das personagens; as personagens vi- dos grandes diretores de todos os tempos.
vem no enredo”. Assisti-los ajudará. É o início de um caminho
que pode se aprofundar sempre.
Por isso, quem sabe criar bons persona-
gens saberá com certeza desenvolver bons Estão, neste capítulo, falaremos sobre
enredos, excelentes argumentos e notáveis alguns filmes fundamentais da história do
roteiros. Está aí toda a literatura brasileira cinema brasileiro e mundial, situados nos
e universal para ajudar, inspirar e tornar-se movimentos estéticos a que pertenceram.
recurso de criação. Lembre-se sempre, não Começo pelos pioneiros do cinema mundial,
existe escritor que não seja um bom leitor. pois, sem eles, a linguagem cinematográfica
E não existe roteirista que seja apenas um tal como a conhecemos hoje não existiria.

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Esses diretores são tão fundamentais que se Lista de filmes estrangeiros com seus
torna quase impossível querer trabalhar com respectivos diretores, movimentos e
cinema sem conhecê-los. país de origem
Seus filmes serviam de matriz para novos
• Cinema norte-americano - 1910 (fil-
filmes.
mes de entretenimento)

a) D. W. Griffith, pioneiro do cinema


clássico de entretenimento. “Eu
gostaria que meu filme fosse uma
onda pulsante de emoção” (apud
XAVIER, 1984).

Filmes mudos:

Se puder, depois de assistir aos filmes indi- • Intolerância.


cados, escolha os diretores com que melhor
• O nascimento de uma na-
se identificar e tente se aprofundar na vida e
ção.
obra de cada um deles. Preste atenção aos
roteiros, à criação de personagens, à trilha, • Cinema russo – 1917 (filmes de arte)
ao enredo. Veja se são filmes em que o rotei-
ro é do próprio diretor.
a) Serguei Eisenstein, pai da monta-
E, quando não for dele, de quem é. Obser- gem ideológica e pioneiro do cine-
ve ainda se os atores estão adequados den- ma de arte.
tro das personagens e se estas são planas
Filmes:
(tipos caricaturais) ou esféricas (complexas,
com características psicológicas conflitantes
• Encouraçado Potemkin
ou mesmo antagônicas.) e por quê.
(mudo).
Esse tema das personagens planas e esfé-
• A greve (mudo).
ricas será tratado nos próximos capítulos, e
nada impede que, depois de aprender o que • Ivan, o terrível (falado).
vem a ser isso, você volte para esta lista e
retome a análise com mais critério. b) Dziga Vertov

Tudo isso será útil para sua educação ci- Filme documentário:
nematográfica e poderá servir de inspiração
para alguns de seus roteiros. Espero que • Um homem com uma câme-
possa apreciar a lista e aprender com ela. ra.

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• Cinema alemão – 1920/1930 (Expres- • O garoto (mudo).


sionismo Alemão)
• Tempos modernos (falado).
Os cineastas desse período são mestres
• O grande ditador (falado).
do jogo de sombra e luz, o que empresta a
seus filmes um tom dramático e poético.
b) John Ford (faroeste).
a) F. W. Murnau.
Filme:
Filmes mudos:
• No tempo das diligências.
• Nosferatu.
c) John Huston (suspense, o cha-
• A última gargalhada. mado filme noir).

• Tabu. Filme:

• Relíquia macabra.
b) Fritz Lang

Filmes: d) Alfred Hitchcock (suspense/ação/


detetive).
• Metrópolis (mudo).
Filmes:
• M, o vampiro de Düssel-
dorf (início do cinema fa- • Psicose.
lado).
• Janela indiscreta.

• Cinema norte-americano dos anos • Vertigo – Um corpo que cai.


1930/40/50 (cinema falado)
e) Orson Welles: tido como um pro-
a) Charles Chaplin: fez filmes mudos e fa- dígio cinematográfico.
lados e foi praticamente o inventor das
personagens em cinema. Sua criação, o Filmes:
vagabundo Carlitos, é talvez o primeiro
grande personagem da Sétima Arte. • Cidadão Kane.

Filmes: • O terceiro homem.

• Luzes da cidade (mudo). • Cinema italiano (Neorrealismo)

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a) Vittorio de Sica f) Michelangelo Antonioni

Filme: Filmes:

• Ladrões de bicicleta. • Blow up.

• Passageiro: profissão repórter.


b) Roberto Rossellini

Filme: • Cinema francês - anos 1960 (Nou-


velle Vague)
• Roma, cidade aberta.
a) Jean Renoir
c) Federico Fellini
Filme:
Filmes:
• A regra do jogo.
• Oito e meio.
b) Alain Resnais
• A doce vida.
Filmes:
• Noites de Cabiria.
• O ano passado em Marienbad.
• Amarcord.
• Hiroshima, meu amor.
d) Pier Paolo Pasolini

Filmes: c) François Truffaut

• Teorema. Filmes:

• Pocilga. • De repente, num domingo.

• Salò ou os 120 dias de Sodoma. • O homem que amava as mulheres.

e) Luchino Visconti d) Jean Luc Godard

Filmes: Filmes:

• Os deuses malditos. • Acossado.

• Morte em Veneza. • A chinesa.


• O leopardo.
• Cinema espanhol (Surrealista)

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a) Luis Buñuel diretores de fotografia da história


do cinema. Mais tarde, trabalhou
Filmes: com Luis Buñuel).

• A idade do ouro (mudo).


Lista de filmes brasileiros com seus
• Um cão andaluz (mudo). respectivos diretores e movimentos/
importância
• A bela da tarde.
Apesar de muitas vezes menosprezado
• O anjo exterminador. pelos próprios brasileiros e das reais dificul-
dades de construção de bons argumentos e
• O discreto charme da burguesia. desenvolvimento coerente de personagens,
ao longo de sua história, o cinema do Brasil
• Cinema japonês
já produziu clássicos. Realizou movimentos
importantes como o chamado Cinema Novo
a) Akira Kurosawa e tem tido iniciativas diversas para se tor-
nar uma indústria. Os empreendimentos da
Filmes:
Companhia Vera Cruz e da Companhia Ma-
• Os sete samurais. ristela Filmes, nos anos 1940, são exemplos
consideráveis de tentativas de fomentação
• Trono manchado de sangue. do cinema nacional.

Ainda hoje, temos um cinema desigual.


• Dodeskaden.
Temos apenas três gêneros cinematográficos
bem definidos, graças aos seus diretores:
b) Yasujiro Ozu
terror, desenvolvido exemplarmente pelo ci-
Filme: neasta José Mojica Marins; os filmes caipi-
ras de Mazzaropi, que tanto sucesso fizeram
• Era uma vez em Tóquio. no país, e os chamados filmes de cangaço,
gênero inaugurado pelo diretor Lima Barre-
• Cinema mexicano to com O cangaceiro, de 1950. Ainda assim,
mesmo sendo poucos, existem importantes
a) Emilio “El Indio” Fernandez realizadores brasileiros em todas as áreas.

Filme: Na direção, temos grandes diretores,


como Lima Barreto, Anselmo Duarte, Hum-
• Rio Escondido. O fotógrafo desse berto Mauro, Mário Peixoto, Glauber Rocha,
filme chamava-se Gabriel Figueroa Nelson Pereira dos Santos, entre outros. Na
e foi considerado um dos maiores fotografia, tivemos o grande Edgar Brasil;

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na atuação, sempre tivemos grandes atores Filme:


cômicos e dramáticos, entre eles Oscarito,
Grande Otelo, José Lewgoy, Norma Benguel, • Limite.
Glauce Rocha, Anecy Rocha, Odete Lara,
ente outros. Existem filmes, mesmo sendo c) Umberto Cavalcanti
poucos, que valeram prêmios importantes
fora do país, por exemplo, O cangaceiro e Filme:
O pagador de promessas, verdadeiros acon-
tecimentos no Festival de Cannes dos anos • O trem (documentário).
1950. Hoje, o cinema brasileiro dá sinais de
que está renascendo e merece nosso respei- • Formação de uma indústria cine-
to. De lá para cá, muita coisa mudou. Ainda matográfica
não somos uma indústria, mas nomes de no-
vos autores já despontam no exterior. Companhia Atlântida: tinha como trunfo a
famosa e genial dupla das chanchadas, que
A seguir, você encontrará uma lista de fil-
eram os atores Oscarito e Grande Otelo.
mes e diretores brasileiros que todo aluno de
roteiro deve conhecer.
a) Carlos Manga
• O documentário e o cinema de
Filmes:
autor: os grandes pioneiros
• O homem do Sputnik.
O trio Humberto Mauro, Mário Peixoto e
Umberto Cavalcante foram verdadeiros gê- • Matar ou correr.
nios da cultura cinematográfica brasileira.
Peixoto, até, com seu filme surpreendente, • Indústria cinematográfica de São
chamado Limite, foi considerado um Eisens- Paulo
tein brasileiro. Umberto Cavalcanti fazia um
cinema de tanta excelência que, ao sair do Companhia Vera Cruz.
Brasil, foi trabalhar com a vanguarda inglesa
e francesa dos anos 1930. a) Lima Barreto

a) Humberto Mauro Filme:

Filme: • O cangaceiro.

• Ganga bruta.
• Filmes premiados

b) Mário Peixoto a) Anselmo Duarte

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Filme: • Cinema Novo – anos 1960

• O pagador de promessas. Filme de


1962 com roteiro baseado em peça de
Dias Gomes. Principais prêmios e indi-
cações:

i Oscar 1963 (EUA): indicado


na categoria de melhor fil-
me estrangeiro.

ii Festival de Cannes 1962


(França): vencedor (Palma
de Ouro) na categoria me-
lhor filme.

iii Festival de Cartagena 1962 Graciliano Ramos

(Colômbia): vencedor do Fonte da imagem: http://veja.abril.com.br/blog/


Prêmio Especial do Júri. todoprosa/files/2012/06/graciliano-ramos.jpg

iv San Francisco International Um dos principais movimentos de cinema


Film Festival 1962 (EUA): brasileiros. Teve como seu principal ideólogo
Vencedor (Prêmio Golden o cineasta, agitador cultural e diretor baia-
Gate) nas categorias melhor no Glauber Rocha. O movimento, no início
filme e melhor trilha sonora.
bastante influenciado pelos princípios cine-
matográficos do Neorrealismo italiano e da
• Autores influenciados pelo Neor-
Nouvelle Vague francesa, logo buscaria tri-
realismo italiano
lhar seus próprios caminhos de solução para
o cinema no Terceiro Mundo.
a) Nelson Pereira dos Santos: um dos
maiores diretores brasileiros, ao a) Rui Guerra
lado de Mário Peixoto e de Glauber
Rocha. Filmes:

Filmes: • Os fuzis.

• Rio, 40 graus. • Os cafajestes.

• Vidas secas.
b) Roberto Santos
• O amuleto de Ogum.
Filme:

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• A hora e a vez de Augusto Matraga. Filmes:

• O bandido da luz vermelha.


c) Glauber Rocha: um dos grandes gê-
nios do cinema brasileiro, foi o men-
tor do Cinema Novo, um dos mais ex- • A mulher de todos.
pressivos e fecundos movimentos de
arte cinematográfica que tivemos. Ao b) Júlio Bressane: apesar de carioca de
desenvolver suas ideias sobre cinema nascença, identificou-se com a estética
brasileiro, buscava criar roteiros e uma do cinema de vanguarda marginal pau-
estética fílmica próprios para o Tercei- lista. Chegou a fazer mesmo muitos cur-
ro Mundo. tas radicais a duas mãos com Rogério
Sganzerla.
Filmes:
c) José Mojica Marins: um dos mais impor-
• Terra em transe. tantes cineastas de filmes de terror bra-
sileiro. Apesar de ser um independente,
• Deus e o diabo na terra do sol. foi acolhido pelo movimento de cinema
de vanguarda marginal paulista.
• O dragão da maldade contra o san-
to guerreiro. Filmes:

• Cinema marginal paulista • Esta noite levarei sua alma.

• Esta noite encarnarei em teu ca-


Outro grande movimento cinematográfi- dáver.
co brasileiro, que se contrapunha ao Cinema
Novo e buscava desenvolver uma estética
que chamava de Cine-Lixo, em que as temá-
ticas do submundo urbano eram o foco de
atenção de seu grupo de cineastas.

a) Rogério Sganzerla: outro gênio ci-


nematográfico brasileiro dos anos
1960, ao lado de Glauber Rocha e
junto com Mário Peixoto, dos anos
1930. Foi um dos mais importantes
cineastas da vanguarda do cine-
ma marginal paulista ou Cine-Lixo,
como gostavam de denominar essa
Rogério Sganzerla
estética.

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Oficina da Criação

Capítulo 3 - As personagens no cinema Os filmes, que antes desses dois cineastas


e na literatura: personagens planas e eram apenas quadros de efeitos, captação
esféricas de exóticas paisagens urbanas ou rurais, fil-
mes de viagens e documentação fotográfica
Vamos recordar que o cinema, quando de costumes, passaram a criar narrativas de
surgiu em Paris, em 1895, ainda era um con- fôlego e personagens consequentes.
junto de imagens documentais.

Assim faziam em seus filmes os invento-


res do cinema, que são os fantásticos irmãos
Lumière. Mas o cinema também era utilizado
para espetáculos de mágica, como bem fazia
seu outro inventor, o genial francês Georges
Méliès, que foi um pioneiro das trucagens e
dos efeitos especiais tão utilizados nos filmes
de entretenimento de nossos dias.

Depois desse primeiro momento, rapida- http://3.bp.blogspot.com/_AWzlNfx2gtA/TRpzXu-OR7I/


mente o cinema foi sofisticando suas ima- AAAAAAAAAE0/WLr4FDubb4w/s1600/cinmatographelumire.jpg
gens e narrativas na busca de uma lingua-
Surgiram então as grandes histórias do
gem própria. Foi quando surgiu o grande
cinema, e essa arte transformou-se no que
diretor americano D. W. Griffith e logo depois
outro genial diretor russo, chamado Serguei seria o cinema clássico e de arte dos nossos
Eisenstein. dias. Isto é, um cinema predominantemente
de ficção com longas e sofisticadas narrativas,
A partir deles, o cinema nunca mais seria o histórias complexas, enredos intrincados, em
mesmo. Primeiro, Griffith começou a desco- que a imitação da vida é parte intrínseca de
brir planos e enquadramentos que, somados, sua estrutura. O cinema passou a se admi-
resultariam nos chamados filmes de ficção. tir numa busca incessante, mas nem sempre
Depois disso, os filmes tornaram-se cada vez consequente, de mostrar a vida como ela é.
mais ousados, com a construção de roteiros
cada vez mais complexos. Para isso, foi ne- Surgiram os filmes históricos, psicológicos,
cessário que começassem a utilizar todos os políticos, de crítica social, românticos, surre-
recursos disponíveis na literatura e no teatro. alistas. Apareceram os grandes diretores e
Estava criado o cinema clássico de entrete- roteiristas e, com eles, os gêneros todos:
nimento. O próximo passo seria dado por aventura, drama, melodrama, mistério, ação,
Eisenstein, que, a partir desses avanços gri- western, bíblico e outros. Não seria errado
ffitianos, descobriu o que chamou de cinema afirmar que todos os temas e recursos nar-
ideológico, baseado na montagem. Surgiu rativos do cinema, pelo menos no seu pri-
então o cinema de arte. mórdio, mas sem nunca deixar de influenciar

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Oficina da Criação

até hoje, vieram de uma única fonte literária: gem sem bons argumento, enredo e roteiro
os romances franceses e italianos do século que possam exprimi-lo em suas angústias,
XIX. Foi neles que Griffith buscou a série de alegrias e todo o tipo de emoções. Com a
fatos organizados em enredos e de persona- evolução do cinema clássico, as personagens
gens que vivem intensamente ou não esses tornaram-se o que há de mais vivo num fil-
fatos, num intrincado de problemas que ten- me. E, apesar de serem uma invenção total,
tam abarcar a vida e seus temas universais. assim como na literatura, eles têm uma ca-
Griffith influenciou todo o cinema americano, pacidade muito grande de exprimir todos os
inclusive os musicais. anseios, dúvidas, alegrias, lutas, aspirações
e tristezas do espectador.
Eisenstein sofisticou as buscas de planos
e enquadramentos griffitianos, criando seus A personagem é aquele elemento que, por
filmes de autor, quase documentais de tão mais fictício e fantástico que seja, paradoxal-
realistas, utilizando para isso até atores mente é capaz de comunicar a mais legitima,
sociais, ao invés de atores do teatro, como sólida e universal verdade existencial, mes-
era comum. São os métodos de Eisenstein mo quando essa verdade for tratada de for-
que influenciam o cinema experimental e de ma burlesca ou caricatural. Por isso mesmo,
arte até os dias de hoje. Seus recursos de tome-se como primeira lição que as persona-
montagem e métodos de ator influenciaram gens devem ter sempre e obrigatoriamente
o chamado cinema de autor dos anos 1950 a capacidade de conter os mistérios do ser a
e 1960 e também o movimento Neorrealista que representam. E isso não é tarefa fácil de
que surgiria por esse período, entre outros. realizar, na medida em que os roteiros devem
conter toda uma coerência entre a criação fí-
sica e psicológica desse novo ser vivente.

Os aspectos físicos das personagens de-


vem ser tão coerentes com os aspectos psi-
cológicos que muitas vezes o grande cinema
tem usado aqueles como apoio destes em
suas criações. Um bom exemplo desse tipo
de procedimento são os mocinhos e bandi-
dos de um clássico do Velho Oeste feito pelo
mestre do cinema de westerns Sergio Leone.
Neorrealismo italiano
http://macguffin007.files.wordpress.com/2011/04/rocco.jpg Em seu filme Era uma vez no oeste, dos anos
1960, o principal bandido da história é um
A partir de Griffith, a criação de persona- aleijado que, quanto mais perverso se mos-
gem passou a ser uma das características tra, mais se deforma em seu aleijão, até se
fundamentais dos filmes de ficção. Não exis- arrastar pelo chão como um verdadeiro ver-
te roteiro sem personagem, nem persona- me.

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Oficina da Criação

se utilizaram desses recursos de criação de


personagens como base de seus enredos
foi o chamado Neorrealismo italiano. É um
movimento que influencia o cinema univer-
sal até hoje, pelo menos nesse aspecto em
que o mínimo de ação está quase que dire-
tamente ligado ao máximo de complexidade
das personagens. Foi o movimento que deu
Velho Oeste origem ao chamado cinema de autor. Dire-
http://www.mises.org.br/images/articles/2011/
Junho/Faroeste/3922674_d3fb332cc0.jpg
tores como o grande autor de cinema sueco
Ingmar Bergman tornaram-se mestres nesse
A personagem no cinema, assim como na tipo de construção estilística.
literatura do século XVIII, em termos psico-
lógicos, foi do mais simples ao mais comple-
xo, até chegar à literatura moderna, na qual
isso é de praxe. Como na literatura, fonte em
que foi beber exemplarmente, o cinema con-
seguiu criar personagens que, num paroxis-
mo intenso, podem ser criaturas realmente
complicadas e multifacetadas e que povoam
todo tipo de ficção.

Diz o ensaísta Antônio Candido, ainda no


seu artigo A personagem no romance (1968,
p. 60), que “a revolução sofrida pelo roman-
ce no século XVIII consistiu numa passagem
do enredo complicado com personagens sim-
ples, para o enredo simples com personagens Antônio Candido

complicada”. O autor completa afirmando http://boitempoeditorial.files.wordpress.com/2013/05/13-05-


que essa é a base do romance moderno, do 17_antonio-candido_10-livros-para-conhecer-o-brasil.jpg

século XX, no qual “o senso da complexidade


Bergman, por exemplo, com seus filmes
da personagem, ligado ao da simplificação
sérios, introspectivos, como O casamento,
dos incidentes da narrativa e à unidade re-
lativa de ação, marca o romance moderno” Persona e outros, desenvolveu personagens
(CANDIDO, 1968, p. 61). cada vez mais abertos, que são baseados na
forma como cada um de nós de fato inter-
Nesse aspecto, o cinema tornou-se muito pretamos as pessoas ao redor e que por isso
próximo da literatura. Entre os muitos movi- passam a impressão de que em tudo se asse-
mentos cinematográficos, um dos que mais melham à vida em sua forma mais complexa.

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Oficina da Criação

Por outro lado, nos filmes de muita ação, nas quais é preciso saber mergulhar nos re-
a regra é outra. Quanto mais ações vemos cessos do coração humano”.
nos filmes de entretenimento, por exem-
plo, a série Indiana Jones, do diretor Steven Tanto para a literatura quanto para o cine-
Spielberg, mais caricaturais são seus perso- ma, as chamadas personagens de costumes
nagens. Por isso seus filmes são puro entre- são na verdade o que o ensaísta Antônio Can-
tenimento, que não pretendem em nada se dido define hoje como as personagens pla-
nas: apresentadas por meio de traços distin-
assemelhar a algo possível da vida real.
tivos, fortemente escolhidos e marcados. São
Mas, apesar das diferenças muitas vezes na verdade caricaturais. Adéquam-se mais,
abissais, se observarmos atentamente, vere- por isso mesmo, ou têm sua eficácia máxima
mos que a força motriz tanto de um estilo na caracterização de personagens cômicos,
como de outro de realização - quer seja do pitorescos, invariavelmente sentimentais.
cinema de autor, quer do de entretenimen-
Já as chamadas personagens de nature-
to - concentra-se igualmente na criação das
za, para o crítico, equivalem ao que hoje os
personagens, cada qual idealizada para o
escritores entendem por personagens esféri-
padrão que seus diretores desejam desen-
cas, que, ao contrário de traços superficiais,
volver.
são apresentadas pelo seu modo íntimo de
ser. Não são imediatamente identificáveis ou
Aproveitando esses exemplos dados, va-
acentuadamente trágicas, e isso impede que
mos à segunda lição deste capítulo. As per-
tenham a regularidade dos outros. Ocorre
sonagens de cinema, adequando-se a con-
que essas personagens complexas exigem
ceitos puramente literários, também surgidos
que seus roteiristas observem cada mudança
nos romances italianos e franceses dos sécu-
do seu modo de ser, criando para elas uma
los XVIII e XIX, podem ser divididas, em ter-
característica diferente, geralmente analítica,
mos de dramaturgias e idealizações, em dois
mas nunca pitoresca.
tipos básicos. As chamadas personagens de
costumes ou planas contrapõem-se às cha- Na atualidade do cinema, assim como da
madas personagens de natureza ou esféri- literatura, as personagens planas e as esfé-
cas. Mas o que vem a ser isso? ricas devem ser coerentes aos seus modelos
de criação inclusive na forma de vestir e de se
A literatura do século XVIII, segundo Can-
apresentar dentro dos enredos.
dido (1968, p. 61), buscou trabalhar com es-
ses dois tipos de personagens. Diz o ensaísta As personagens planas veem os homens
que os dois tipos são muito diferentes en- pelo seu comportamento em sociedade, pelo
tre si: “As personagens de costumes são tecido das suas relações e pela visão que te-
muito divertidas, mas podem ser mais bem mos do próximo. Para Candido (1968), que
compreendidas por um observador superfi- trouxe essa definição à literatura, elas são ti-
cial do que as personagens de natureza, pos, por vezes caricaturais. Por sua vez, as

17
Oficina da Criação

personagens esféricas mostram-se à luz de Exercício 1


sua existência profunda, que não se explica
pelo mecanismo das relações. Ao contrário Vamos agora à primeira prática de exercí-
das outras, estas têm mais de duas dimen- cios para seu desenvolvimento como rotei-
sões, são organizadas com mais complexida- rista.
de e são capazes de surpreender o especta-
dor. a) Assista a um filme de Alfred Hitchco-
ck, por exemplo, Um corpo que cai,
Não dá para definir qual dessas duas for- de 1958, e depois ao filme Branca-
mas de criação de personagens foi mais utili-
leone nas Cruzadas, de 1970, e veja
zada no cinema ao longo de sua história.
que tipo de personagens é utilizado
O que se pode considerar, no entanto, é em cada um. Examine atentamente
que a utilização de um tipo em detrimento de as personagens principais de cada
outro faz parte do estilo de cada grande ro- um deles. Veja em qual filme elas
teirista e diretor. Na atualidade, por exemplo, são planas, em qual são esféricas e
tanto Woody Allen quanto Quentin Taranti- por quê. Enumere suas caracterís-
no trabalham basicamente com personagens ticas físicas e psicológicas. Observe
planas, tipos, verdadeiras caricaturas huma- seus figurinos e diálogos e a maneira
nas, que utilizam exemplarmente em suas como os atores se adéquam a suas
sátiras de costumes. personagens.

Por outro lado, temos na atualidade um b) Escolha uma personagem de cada


diretor como Martin Scorsese, que, influen-
filme assistido e tente fazer sua des-
ciado pelo grande diretor hollywoodiano Elia
crição física e psicológica. Imagine
Kazan, mestre da criação das personagens
ainda, se você fosse o diretor des-
esféricas, trabalha com personagens com-
ses filmes e eles fossem realizados
plexas, cuja existência profunda é muito
no Brasil, que atores escolheria para
acentuada, como são as de Cabo do medo,
de 1991, com Robert de Niro. compô-los.

O fundamental, no entanto, é que, pelo c) Faça uma pequena narrativa com


menos num primeiro momento, o roteirista uma personagem plana. Depois de-
domine essas duas formas de construção senvolva essa narrativa com a mes-
de personagens, mas que vá aos poucos se ma personagem, mas agora sendo
definindo por uma delas, de preferência por esférica. Descreva como seriam es-
aquela que melhor se enquadre com seu ses personagens que você desenvol-
temperamento ou com o estilo que deseja veu; não se esqueça de colocar tanto
adotar para si e o gênero com que escolher as características físicas como as psi-
trabalhar em seus roteiros e argumentos. cológicas de cada uma delas.

18
Oficina da Criação

d) Refaça esses exercícios com outras a questão dos arquétipos e das jornadas em
personagens, com quantos filmes etapas de um protagonista é muito interes-
quiser e quantas vezes for neces- sante. Como podem realmente ser úteis, va-
sário para que possa compreender mos a ela para as próximas fases de criação
completamente de que forma fun- desta oficina. Mas, antes, vamos compreen-
cionam as personagens no cinema. der o que são arquétipos.

Capítulo 4 - O protagonista e seus Esse termo é utilizado na filosofia desde a


arquétipos Antiguidade. Para Platão, por exemplo, signi-
ficava que o modelo de todas as coisas exis-
Como já sabemos, escrever roteiros é uma
tentes já está no mundo das ideias. Portan-
função que se depura pela prática. Já sabe-
to, os arquétipos são de propriedade coletiva
mos também que a criação das personagens
e pairam no ar, podendo ser captados por
e suas funções dramáticas é um dos aspec-
qualquer um. Mas essa concepção não foi
tos mais importantes da criação de roteiros.
usada só pelos platônicos; no cristianismo,
Portanto, vamos aprender como realizá-la.
por exemplo, foi retomado por Santo Agosti-
nho, que considerava arquetipal tudo o que
vinha da mente de Deus. Trata-se, portanto,
de tudo o que faz parte da criação e que
o homem pode vir a conhecer em qualquer
parte do mundo.

Mas a forma como vamos utilizar a con-


cepção de arquétipos nos roteiros vem do
psicanalista Carl Jung. Para ele, arquétipos
O escritor Christopher Vogler, autor do livro são a forma imaterial à qual os fenômenos
A jornada do escritor (2006), lançou em sua psíquicos tendem a se moldar. Isto é, são
obra algumas considerações sobre o tema as estruturas matrizes de qualquer ser hu-
que podem ajudar. Como não existe fórmula mano que, sendo inatas, servem de mode-
fixa para processos de criação, nem todas as lo para a expressão e o desenvolvimento da
suas ideias sobre a construção de um roteiro psique. Arquétipos são as imagens sedimen-
podem interessar. Devemos ler seu livro ou tadas profundamente no que o psicanalista
qualquer outra obra que fale de criação de chamou de “inconsciente coletivo”. Portanto,
roteiro com senso crítico, aproveitando o que são imagens arcaicas que existem na mente
serve e descartando o que não se aplica a da humanidade desde sempre. Por isso, são
nossa produção. universais, como os sonhos ou mesmo algu-
mas imagens primordiais: uma mesma ex-
Vogler não tem a fórmula mágica da cria- periência humana que se repetiu por muitos
ção, no entanto, a abordagem que faz sobre anos e foi se tornando conhecida de todos

19
Oficina da Criação

os povos em gerações contínuas. Podem ser, Para o psicanalista, os arquétipos estão


por exemplo, os símbolos, visto que compre- tão profundamente ligados à psique que po-
ensíveis instintivamente por toda a humani- dem se expressar justamente pela narrativa
dade. oral, especialmente os ligados a mitos, ou
até mesmo pelos contos de fadas.

O cinema, que em larga medida recuperou


a narrativa oral, também vai trabalhar com
arquétipos.

Para compreendermos melhor a questão


dos arquétipos no cinema, vamos adotar a
visão dos intelectuais Joseph Campbell e
Christopher Vogler, que adotaram a defini-
Para Jung, os arquétipos constituem uma ção junguiana, que chamam a atenção para
unidade que, ao mesmo tempo em que não o fato de os arquétipos surgirem numa nar-
pode ser esvaziada, modifica-se de cultura rativa independentemente de seu caráter ser
para cultura ou de uma época para outra, fantasioso ou não. Para Campbell (1995), os
sem no entanto deixar de ser arquétipo. arquétipos fazem parte de todo ser humano
como órgãos de um corpo, fenômenos bioló-
Temos, segundo ele, os arquétipos da Mor- gicos.
te, do Herói, do Si Mesmo, da Grande Mãe e
do Espírito ou Velho Sábio; outros conheci-
dos e recorrentes, para o psicanalista, são a
anima, a persona, a sombra etc.

Diz ainda Jung que, se todos os arquétipos


são sistemas dinâmicos autônomos, alguns Vogler (2006), por sua vez, influenciado
deles evoluíram tão profundamente que se pela obra de Vladimir Propp, estudioso das
encontram separados da personalidade. narrativas a partir das funções desempe-
nhadas pelas personagens, acredita que os
Encontram-se nas fantasias do ser huma- arquétipos possam ser tomados como más-
no e aparecem por meio de imagens sim- caras das quais estas dispõem, utilizando-as
bólicas que se repetem em qualquer época temporariamente conforme a necessidade
ou lugar do mundo - mesmo quando não se do andamento do enredo.
sabe de que forma chegaram até lá. E não se
explicam nem por transmissão de gerações, O autor sugere que, em se tratando dos
nem como resultado de imigrações e mistura protagonistas, devemos considerá-los como
dos povos. facetas da personalidade do herói, com pos-

20
Oficina da Criação

sibilidades (boas ou más) em relação a este, criação de uma personagem. Portanto, vai
o que nos faz entendê-lo como personifica- depender exclusivamente do roteirista e de
ção das diversas qualidades humanas. Vogler sua capacidade criativa o quanto será desen-
(2006) vê o protagonista como um herói ou volvido e de que forma entrará em cena. Po-
anti-herói, que deve seguir uma longa jorna- demos usar para isso uma lista com algumas
da feita por etapas até o fim. dessas características básicas. São elas:

Capítulo 5 - Uma ideia na cabeça e uma 1) Parcimonioso – pródigo.


personagem nas mãos
2) Sujo – imaculado.

3) Gentil – violento.

4) Inteligente – estúpido.

5) Alegre – lânguido.

6) Gracioso – apático.

7) Delicado – bruto.
É bem verdade que toda história pode co-
meçar a ser imaginada a partir de uma situ- 8) Valente- covarde.
ação ou de uma imagem, mas vamos ten-
9) Claro – confuso.
tar aqui começá-la pela construção de seu
protagonista. Primeiro, vamos idealizar quem
10) Obstinado – dócil
será esse protagonista. Para isso, eu lanço
algumas questões. Começaríamos a cons- 11) Generoso – avaro.
trução de um personagem principal por sua
personalidade ou por suas características fí- 12) Fanfarrão – humilde.
sicas? É possível separar uma coisa da outra?
Podemos ter um protagonista conquistador, 13) Gregário – solitário.
do tipo convencido e senhor de si, sendo bai-
14) Justo – injusto.
xinho, barrigudo e careca? Não? Mas e se
ele fosse cheio de charme, bastante culto? E 15) Moral – imoral.
ainda se quiséssemos um protagonista fora
dos padrões de beleza adotados pela esté- 16) Otimista – pessimista.
tica ocidental? É possível separar a razão da
emoção? 17) Crédulo – incrédulo.

Só por essas questões, vocês podem per- 18) Tranquilo – nervoso.


ceber que existem infinitas possibilidades de

21
Oficina da Criação

19) Saudável – doente. São tantas as características encontra-


das na personalidade humana que fica difícil
20) Sensível – insensível. enumerar. Mas pensemos em algumas:

21) Ingênuo – malicioso. Sofrido, temível, amado, puro, sagaz, in-


teligente, modesto, raro, cordial, eficiente,
22) Arrogante – cortês.
puro, sagaz, criterioso, equilibrado, rude,
virtuoso, mesquinho, corajoso, vil, incapaz,
23) Cruel – benevolente.
trabalhador, irrecuperável, velho, altivo, po-
24) Extravagante – comedido. pular, eloquente, mascarado, gordo, hilário,
impopular, preguiçoso, romântico, malévolo,
25) Indeciso – impulsivo. infantil, sinistro, inocente, ridículo, atrasa-
do, deleitável, hostil, incrível, maravilhoso,
26) Simples – complexo. abominável, ressentido, tarado, amargura-
do, egocêntrico, capaz, mordaz, palerma,
27) Vulgar – nobre.
ingênuo, poderoso, volúvel, indecente, ata-
rantado, perseguido, paranoico, recorrente,
28) Pretensioso – modesto.
malcriado, biltre, birrento, fugitivo, sonhador,
29) Lúcido – alienado. sorridente, covarde, minucioso, atento, clan-
destino, maricas, oportunista, gentil, obscu-
30) Natural – afetado. ro, falacioso, mártir, cultíssimo, sábio, maso-
quista, agitador, atrapalhado, mirabolante,
31) Misterioso – evidente. bonito, feio, simpático, irresistível, pesado,
arrogante, demagogo, áspero, viril, prolixo,
32) Torpe – hábil.
afável, trepidante, rechonchudo, mavioso,
bronco, esfomeado, espantado, bruto, pala-
33) Impetuoso – sereno.
vroso, impoluto, magnânimo, incerto, inse-
34) Astuto – franco. guro, bondoso, pegajoso, impotente, confi-
dente, peludo, besta, gago, acintoso, errado,
35) Egoísta – altruísta. marginal, insinuante, melífluo, solerte, hipo-
condríaco, malandro, mole, correto, lépido,
36) Histérico – plácido. acanalhado, pérfido, contundente, santinho,
soturno, impecável, misericordioso, voluptu-
37) Leal – desleal.
oso, machão, hospitaleiro, cafajeste, impres-
tável, amoroso, beijoqueiro, surdo, valente,
38) Galante – rude.
faquir, pirata, desmiolado, presente, bigodu-
39) Loquaz – taciturno. do, feroz, cruel, expulso, mau, doente, feri-
do, idiota, moralista, alienado, gasto, racista,
40) Ativo – preguiçoso. amordaçado, medonho, colaborador, insen-

22
Oficina da Criação

sato, vulgar, ciumento, idoso, fingido, ide- Capítulo 6 - Personagem, imagem e


alista, falso, aldeão, lavrador, pobre-diabo, função dramática
enjoado, bajulador, voraz, alarmista, incom-
preendido, vítima, contente, adulador, coita-
dinho, farto, progressista, civilizatório, em-
perrado, acuado, farto, programado, imbecil,
acomodado, prejudicado etc.

Vejam quantas opções de caráter as per-


sonagens podem ter, principalmente se pen-
sarmos que uma delas pode ter mais de uma
característica, além de poder se deixar in-
fluenciar e virar outro ser até o final do filme,
mudar seu modo de vida e personalidade no
transcorrer da história. É bem verdade que, quando tratamos de
cinema, a primeira coisa que nos vem à men-
Essa dinâmica da diversidade leva à ideia te são as imagens, afinal, cinema é movimen-
de conflito e faz observar que as personalida- to imagético. Sempre houve um conceito por
des mais interessantes são as mais comple- detrás de cada imagem de um filme, nem
xas, já que o conflito num roteiro surge mui- sempre determinando uma dualidade, no en-
tas vezes em função das características das tanto, no mínimo, acrescentando um recheio
personagens ou, pelo menos, elas devem ter indissolúvel à forma.
características que as encaixem tanto na his-
tória quanto nos conflitos propriamente. No filme Um corpo que cai, de Hitchcock,
por exemplo, não interessam os motivos, mas
Vamos imaginar algumas outras persona- o fato de a personagem principal carregar
gens importantes, além do protagonista, que consigo uma terrível carga dramática, que é
participarão do enredo. Todos deverão ter o conceito de morte. O filme é um drama.
algumas dessas características latentes, ou Mas vale perguntar: o que seria da persona-
suas variantes. O que o determinará será a gem se fosse comédia, como ficaria esse as-
história desenvolvida. pecto do protagonista? A resposta será que,
mesmo assim, a personagem carregaria con-
Exercício 2 sigo o conceito de paródia da morte.

Escolha cinco características, dentro do le- Vemos com isso que o gênero não modi-
que de possibilidades psicológicas dadas, e fica a qualidade principal das personagens,
descreva, a partir delas, como seria o tipo físi- apenas da nova forma como elas serão de-
co de cada uma. Depois de criar essas perso- senvolvidas. Portanto, não dá para pensar
nagens, tente fazê-las pertencer ao seu argu- em imagem desvinculada de conceito, do
mento. Pense em como ficariam e descreva-as. mesmo modo que, ao imaginarmos uma per-

23
Oficina da Criação

sonagem, não importa por onde vamos co- de criação existem. Como são muitas, prova-
meçar, se pela parte física ou pela personali- velmente você iria pensar de que forma essa
dade, o que vale é o conjunto da obra. Afinal, moça entra na história e só então teria condi-
o que teremos é a unicidade. Mesmo porque ções de imaginar seu tipo físico e psicológico.
é comum dizer, como forma de definição ge-
ral, que determinada pessoa nos deixou uma A irmã de Gabriela, se a tivesse, poderia
boa “imagem”, ou fez uma boa “figura”, na ser alta, baixa, bonita, com óculos, maquia-
verdade terminologias que sintetizam a com- da, morena, branquela (por algum motivo)
plexidade que compõe a personalidade por ou mesmo um tipo intelectual que de pe-
meio da imagem.
quena foi para a cidade grande estudar com
Isso também ocorre com a personagem, parentes abonados e se tornou um ser ab-
então, em seu processo de criação, pode solutamente diferente da cabocla simples e
acontecer que você primeiramente a enxer- sensual que se manteve na cidade pequena
gue. Portanto, imagine-a em toda a sua ima- e provinciana de Ilhéus do início do século
gem, dando-lhe uma aparência antes até de XX.
pensá-la em conceito, mesmo que depois a
produção vá optar por um ator que nada te-
nha a ver com o que você visualizou. Não
importa, porque o momento de criação é seu
e exclusivo.

Devo acrescentar, no entanto, que esta-


mos tão acostumados a conceitos que o mais
normal em uma criação é que apareçam ao
roteirista primeiro as características intrínse-
cas e funcionais da personagem mesmo an-
tes de se enxergá-la.

Como exemplo, imagine que você tivesse http://3.bp.blogspot.com/-mNgDN1Q9U4I/T-uTAzjy6YI/


AAAAAAAABk0/h7HrPMqL1uM/s400/amado-e-gabriela.jpg
que compor uma personagem irmã da Ga-
briela do livro Gabriela, cravo e canela, de
Pode ser também que, no processo de cria-
Jorge Amado. Como faria? Quais seriam as
ção, a irmã de Gabriela venha quase pronta,
suas características físicas e psicológicas? Ela
seria semelhante à irmã, um belo tipo more- necessitando apenas de uma lapidação que
no, faceiro e sensual? Ou seria o oposto de será feita no desenrolar da história, de seus
Gabriela, isto é, uma mulher baixinha, sem fatos e ações. É aí que entra a fundamenta-
graça, de voz esganiçada e profundamente ção da personagem, o que ela é na sua his-
invejosa da beleza da irmã, que de fato ela tória. Você teria que saber, para criá-la, qual
não tem? Veja por aí quantas possibilidades a sua função dramática.

24
Oficina da Criação

A definição da função dramática de sua Temos que aceitar também o fato de que,
personagem pode parecer, à primeira vista, desde as narrativas em volta do fogo da pré-
uma coisa superficial, desnecessária e até -história até nossos dias, pouco mudou so-
mesmo arbitrária. bre a forma de contar uma história. Quando
eram narrados os atos de heroísmo de cada
De certa forma é, se formos encarar sob
clã ou tribo, estava-se criando uma maneira
o ponto de vista da escrita direta. O pro-
de contar histórias que atravessaria o tem-
blema é que, ao desenvolvermos o roteiro,
po e permaneceria semelhante ao que se faz
como nele se insere a proposta de contar
até hoje.
uma história, teremos alguns elementos que
exercerão uma função dramática. Lembre-se
de que toda trama conta uma história, visto
serem todas as coisas do universo que con-
templamos na narrativa presas ao tempo e
ao espaço que desenvolvemos. Dessa forma,
todas as ações que ocorrem nela desenro-
lam-se nessas dimensões.

Mesmo num filme avant-garde em que te-


mos uma linha amarela que traça sua traje-
tória sobre uma tela negra ao som de Debus-
sy, ainda assim essa linha tem a história de
seu trajeto.

A pergunta que fazemos durante a proje-


ção é: que caminhos ela traçará? É claro que
nem todas as personagens se prendem a
padrões preestabelecidos, mas de qualquer Vejam que estamos tratando aqui dos con-
forma encontraremos nelas determinadas teúdos e não das formas, pois estas variaram
características dessa ou daquela função. No por conta da estética e das diferentes lingua-
caso de nossa linha, se é ela que se movi- gens empregadas. Grosso modo, as narrati-
menta, se nos leva em sua trajetória, não vas orais ou escritas não são as mesmas do
será difícil entendê-la como a protagonista, cinema, muito embora a imagem e o movi-
sendo a música e a tela negra os panos de mento possam impregnar as primeiras pela
fundo da narrativa. Se por acaso a tela co- força da imaginação.
meçar a vibrar em diferentes tonalidades,
isso pode induzir a sensação de que a linha Há também que se considerar que os pa-
atravessa uma área de conflito. O mesmo se drões socioeconômicos e culturais que defi-
daria com a variação rítmica e melódica da nem as condições de herói e de inimigo de
música. uma determinada sociedade tendem a variar

25
Oficina da Criação

bastante. Em alguns casos, pode ocorrer até determinados planos apenas como mero ob-
uma inversão, sendo o herói de alguns o vi- servador curioso. Tirando isso, todas as ou-
lão de outros pelo sua ética, no entanto, ja- tras estarão auxiliando na narrativa para que
mais por sua maneira de agir. Ou seja, o que se conte a história, algumas ao lado do herói
define o herói não são seus motivos, mas sim e outras contra ele. Terão, portanto, todas
o seu modo de atuar. Mesmo que ele perma- elas uma função dramática.
neça durante toda a narrativa sentado numa
Porém, além das personagens, existem
poltrona, seus pensamentos poderão levá-lo
outras funções dramáticas que servem de
a um conflito interno a ser vivenciado e so-
pano de fundo de sua história e que estão
lucionado.
diretamente ligadas à trajetória do protago-
nista. São etapas pelas quais ele terá que
passar até atingir seu objetivo. Do mesmo
modo que não podemos ser cartesianos com
relação à criação de suas personagens e fun-
ções, não deveremos sê-lo com relação às
etapas. Veremos mais adiante que existe um
mapeamento destas, mas isso varia muito de
acordo com o contexto.

Nesse sentido, temos que aceitar o fato de


que a personagem protagonista será sempre
o herói do filme. Isso leva a uma conclusão
que fortalece a noção de que o conceito de
herói pode variar bastante. Então, como de-
fini-lo de forma conclusiva?

Podemos dizer que o herói será aquele que


nos conduzirá, por intermédio de suas ações,
pela história narrada. Será a personagem do
protagonista, e todas as outras poderão, por É consenso que, em toda narrativa, o pro-
esse balizamento, ser definidas como aliadas tagonista é aquele que, ao viver seu cotidia-
ou inimigas na trajetória a ser seguida por no, é levado à ação pelo surgimento de algum
ele. E a imparcialidade? Ela estará a cargo do conflito. Também é verdade que ir muito além
observador imparcial, uma personagem que desse conceito é abrir portas para o erro. De
estaria inserida na personalidade do autor, modo algum é certo que o herói tenha que
que frequentemente se faz representar pela cumprir determinadas etapas, excetuando-se
câmera, não que isso signifique que não se a primeira, para atingir seu status dentro de
possa ter uma personagem que circule por uma história, menos ainda que essas etapas

26
Oficina da Criação

tenham que estar todas inseridas dentro da sempre atentos com relação aos exageros e
narrativa. Lembre-se de que todo filme é um fechamentos em torno de uma ideia.
recorte da realidade e cabe nele exatamente
Minha abordagem aqui se dará mais pelo
o que o escritor estipular.
caráter ilustrativo do que propriamente pela
receita. Não é de maneira alguma certo que
tudo que se lê na obra de Vogler deva ser se-
guido ao pé da letra. Existem inúmeros filmes
que jamais cumpriram esses parâmetros,
pelo menos, não na integralidade. O estudo
de A jornada do escritor é interessante pela
pertinência de algumas abordagens, princi-
palmente pela análise lúcida de cada tópico,
sem que isso represente o único caminho.
No entanto, é fato que existem os arquéti-
pos e as etapas apontadas pelo autor, e é
também verdadeiro que podemos encontrá-
-los num grande número de filmes, acredito
que na maioria deles, sem a consciência do
roteirista e do diretor.
É simples assim: o roteirista deve buscar o
recorte de sua história, assumi-lo totalmente O que Vogler fez foi analisar, em seu es-
desde o argumento e não perder esse foco tudo, o que já estava impresso na tela ou
até o final. Se vamos contar, por exemplo, nas páginas de roteiros. Partiu dos estudos
de Joseph Campbell sobre o mito e chegou a
a história imaginária de uma possível irmã
algumas conclusões que são verdadeiramen-
de Gabriela que esta nunca conheceu e que
te úteis a qualquer um que queira escrever
foi separada dela quando ainda eram bebês
histórias. É bem claro que, de fato, podemos
numa espécie de brincadeira imperfeita de
encontrar um determinado padrão narrativo
Os irmãos corsos, obrigatoriamente teremos
desde as primeiras histórias contadas. Há os
que manter a espinha dorsal dessa narrativa
que acreditam que foi criado um número ex-
do começo ao fim. tremamente pequeno de narrativas, as quais
foram desdobradas em todas as outras que
Para nos ajudar a compreender melhor de
nos chegam. Não podemos comprovar tal
que forma se dá a criação da narrativa a par-
afirmação, mas podemos dizer que a grande
tir das personagens, vamos analisar algumas
maioria segue, mesmo que pelo instinto, um
colocações sobre isso do livro A jornada do determinado padrão.
escritor, de Christopher Vogler (2006), uma
obra bastante interessante ao se tratar des- Todos que lidam com a criação estão can-
sa construção. No entanto, devemos estar sados de saber que, se você não põe em prá-

27
Oficina da Criação

tica ideias que pensou, em breve estará se No entanto, devemos considerar que, por
deparando com elas na obra de outro autor essa definição, aqueles protagonistas que
e, aí, será muito tarde e só restará o arre- estão sempre enfrentando perigos e desafios
pendimento. Digo isso não apenas como um em sua vida comum não estariam sujeitos a
alerta, mas também para afirmar que a at- vivenciar essa etapa que os joga numa situ-
mosfera e as condições que lhe permitiram ação especial.
“enxergar” alguma coisa não estão somente
Isso ocorre principalmente nas séries, nas
à sua disposição, mas, ao contrário, estão quais as personagens principais estão sem-
no ar para todos. Talvez daí o fato de que a pre enfrentando desafios. Podemos até dizer
maioria das histórias é contada seguindo um que o desafio a enfrentar, nesse caso, seria
padrão. que ele voltasse a uma vida normal, ao mun-
do comum, à maioria dos mortais.
Vamos às conclusões de Vogler (2006),
pois suas reflexões irão ajudar no processo É inegável que, nesses casos, os roteiristas
de criação de um roteiro. têm que encontrar um caminho. O que eles
fazem é transferir a quebra da vida cotidiana
Capítulo 7 – O herói do cinema e sua para a personagem que deverá ser socorrida
jornada pelo protagonista.

Vamos imaginar que o herói está com a


sua vida atribulada por vários casos até sur-
gir uma ocorrência que atingiu determina-
da pessoa ou pessoas em sua vida comum.
Acontece que esse artifício é camuflado para
pegar sempre o protagonista cumprindo suas
tarefas diárias, mesmo que essas, em si, já
sejam um desafio, para dar a impressão de
que algo realmente novo surgiu na vida do
Vamos analisar o que Vogler (2006) cha- herói, o chamado para algo até então nunca
mou de “mundo comum”, que vem a ser o vencido.
cotidiano do qual o protagonista é retirado
Esse, na verdade, é um grande desafio
para ser lançado em sua “aventura”, sen-
para os roteiristas da série, maior ainda do
do este conceito, no nosso caso, entendido que para os heróis: estar sempre criando no-
como qualquer história que possa ser criada. vas situações que possam jogar seu prota-
De qualquer forma, é a ideia de que o herói gonista numa nova aventura. Saindo do caso
será lançado, pelo surgimento de um confli- específico das séries, não é muito difícil ima-
to, num mundo no qual ele não vive cotidia- ginar alguém sendo atingido em sua vidinha
namente. normal por algo que lhe desafie.

28
Oficina da Criação

Todo ser vivo sobre a Terra e talvez no uni- do algo diferente do que ela faria, portanto,
verso está sendo constantemente desafiado. essa seria uma história comum.
O que ocorre é que, na maioria das vezes,
esses desafios não são aceitos. Ou, ainda, Daí a importância de jogar o protagonista
são corriqueiros, comuns à sobrevivência, numa jornada que o coloque no hall das pes-
como a luta de uma planta para atingir a luz soas especiais, daquelas que, em determina-
do sol ou de um cervo para escapar das gar- do momento de suas vidas, são atingidas por
ras de um lobo. Essa luta cotidiana não se algo que as jogue numa “aventura”, seja ela
configura no que poderíamos considerar um de caráter externo ou interno.
chamado, mas está em todos nós.
Como já disse, vários de nós de vez em
quando deparamo-nos com alguns chama-
dos que estão além da rotina. A questão é
se você se lançará no rio para salvar alguém
que pede socorro ou se ficará na margem
olhando. No segundo caso, ainda assim,
você poderá ser o protagonista que se de-
parará com a dúvida sobre as implicações de
sua imobilidade diante dos apelos de uma
criança, o sentimento de culpa e a questão
Pode ser, por outro lado, que o seu roteiro sobre a coragem. O que queremos dizer é
seja exatamente trabalhar sobre esse aspec- que, ocorrido o fato, o conflito, a pessoa – a
to da luta de um homem em seu dia a dia personagem que está sendo criada - que o
enfrentando como qualquer um a luta pela vivencia estará inserida na jornada, não im-
sobrevivência. Acontece que, ao inseri-lo em portando o rumo que se dará à história.
sua narrativa, você já estará emprestando a
essa personagem um caráter exclusivo, por Uma vez ocorrido o conflito, o chamado
mais que se tente dissimulá-lo. A persona- faz-se presente, e haverá quebra do cotidia-
gem em foco estará carregando a narrativa no. Cabe ao autor criar conflitos e chamados
do roteirista, e não há como escapar disso. que sejam interessantes e que, na medida
do possível, tragam algo de novo. Também é
No entanto, é possível que as pessoas di- importante ter em mente que eles devem se-
gam que seu filme é chato e que não apre- guir a noção de verossimilhança. Não quero
senta coisa alguma de extraordinário. Afinal, dizer com isso que seu herói não possa en-
onde está o desafio, o conflito, o chamado? frentar a Hidra de Lerna – animal que jamais
Elas farão essa pergunta em seu íntimo, sem existiu –, mas que você possa convencer as
que necessariamente o façam por conheci- pessoas de que ela poderia de fato estar ali
mento técnico, mas sim pelo simples fato como um desafio real. Para tanto, é preciso
de que aquela personagem não está fazen- criar em sua narrativa elementos que possam

29
Oficina da Criação

corroborar o fato narrado, não importando o herói. De qualquer forma, ele se destaca dos
quão fantasioso ele seja: a hidra existe por demais em suas ações e tem que aceitar o
causa disto, disto e disto. Dê verossimilhança chamado e o enfrentamento do conflito, vi-
a seus personagens. É bem natural que Hér- venciando uma ruptura com seu cotidiano,
cules enfrente o animal mitológico. Se fosse daí a ideia da separação do materno.
Pedro saindo de seu trabalho no centro da ci-
dade, o roteirista teria que explicar o porquê Aquiles escolhe partir para Tróia apesar
de a hidra estar ali. dos avisos e apelos de sua mãe, a deusa Té-
tis.

Ela lhe diz que a guerra o transformaria


num herói, mas que o mataria, e ele jamais
voltaria a vê-la. Apesar disso, o semideus
parte para cumprir seu destino, apesar de
ter a chance de ficar e morrer velho: poderia
apenas cuidar de seus netos, mas ser esque-
cido com o passar do tempo. Nada o move
além do orgulho.

Sendo assim, já que estabelecer o confli-


to e gerar um chamado é a parte inicial de
sua história, dedique-se a ela com cuidado
e pense bem em que tipo de aventura esta-
rá jogando seu protagonista. Vogler (2006)
fala dos arquétipos e sua presença em toda
história. Ele faz uma analogia com o que é
apresentado nas teorias da psique. Assim,
compara o arquétipo do herói ao ego na vi-
são freudiana, que o apresenta como a figura
que se separa da mãe e transcende os limi-
tes da ilusão.

De um lado, no entanto, podemos argu-


mentar que o protagonista, na figura do he- No entanto, nem todo herói é movido pela
rói, também cria para si um estado ilusório ambição: muitos lutam apenas para sobrevi-
que o leva a acreditar estar imbuído de uma ver, outros apenas por se sentirem obrigados
missão e, dessa maneira, amplia seu ego. Por por sua própria consciência e há ainda aque-
outro lado, também podemos afirmar que les que o fazem em auxílio às pessoas ama-
nem todo protagonista tem vocação para ser das ou a causas com as quais se identificam.

30
Oficina da Criação

De qualquer forma, quando pensamos em um herói não é um super-herói, então pode


nossas personagens e as entendemos na ser que seu protagonista seja apenas uma
perspectiva do herói, temos que ter cuidado, pessoa comum, mas por que chamá-lo as-
porque a ideia de um personagem com es- sim?
sas características, nos dias de hoje – quan-
do impera o individualismo consumista - é Antes de tudo, ele é o protagonista, mas
um tema um tanto anacrônico, daí o grande este pode ser o vilão. E, se o vilão é o prota-
número de anti-heróis e de heróis com per- gonista, qual o status do inimigo do protago-
sonalidades cada vez mais complexas e hu- nista? Seria o herói? Claro que não: se o vilão
manizadas. é quem conduz a história, quem o combate
é simplesmente o antagonista. Então, nesse
caso, o vilão é o herói, o que vem contra a
ideia que se tem, pois, em sua jornada, deve
seguir as etapas que o herói cumpre.

Temos a figura do anti-herói, mas não é


disso que estamos falando. Este surge como
aquele esquisitão, preguiçoso, trapaceiro, vo-
lúvel e, por vezes, até mesmo medroso. Essa
personagem faz de tudo para negar seu des-
tino, mas no final acaba como um herói. Já
o protagonista vilão é mau, perverso, cruel,
covarde etc. Hannibal Lecter, do filme O si-
lêncio dos inocentes de Jonathan Demme,
baseado no livro de Thomas Harris e com
roteiro de Ted Tally, é um vilão terrível, mas
no final ajuda a detetive a vencer um serial
killer, o que lhe empresta algo de herói. Mas
aí vem a complicação: seguimos toda a his-
Prefiro então pensar a personagem prin- tória sob a perspectiva de Clarice Starling, a
cipal sob a perspectiva do protagonista. detetive, então, quem nos conduz é ela. Mas
Parece-me mais plausível que se possa dar a pergunta que se lança é se, sendo assim,
a ele algumas características heroicas, mas ela é a heroína ou a protagonista. É certo
impregná-lo de humanidade, com todas as que protagoniza, mas então que seria Hanni-
suas limitações e defeitos. bal? Pela visão defendida por Vogler (2006),
este seria o mentor.
Vogler (2006) também humaniza os he-
róis. A tal ponto defende características hu- Na verdade, transfere-se o arquétipo de
manas para eles que talvez fosse mais sim- vilão para Buffalo Bill Gumb, que é o assas-
ples chamá-los de outra coisa. No entanto, sino à solta. Podemos, no entanto, perceber

31
Oficina da Criação

a sutileza na divisão das funções dramáticas tiantes. A máquina nunca é vista, podemos
em determinados filmes. Por isso, repetindo, apenas percebê-la. Surge o rosto desespera-
prefiro chamar meus possíveis heróis de pro- do de Miguel, parado, procurando uma saída
tagonistas simplesmente. desse inferno. Ele entra mata adentro fugin-
do. Tem um facão em suas mãos, que ele
Dessa forma complexa, podemos perce-
usa abrindo caminho entre a densa vegeta-
ber que criar uma história tem tantas varian-
ção. De repente o vazio, o abismo, a perda
tes que fazer algo realmente profundo exige
muita coerência e compreensão do que são do equilíbrio e o pavor em seus olhos.
as personagens da trama a ser desenvolvida.
SEQ. 2 - EXT – Fim de tarde – Poesia
Em A jornada do escritor, o que Vogler de Rio
(2006) quer dizer é que todo protagonista
segue certas características arquetipais, quer Miguel acorda de seu pesadelo. Deitada
seja de herói ou de vilão, e que elas serão com a cabeça em seu ombro, está Xana.
criadas a partir de etapas/jornadas dentro Ambos são iluminados por uma fogueira.
da longa caminhada que toda personagem
principal deve seguir, se assim a história de- Xana
senvolvida exigir.
- Miguel!
Capítulo 8 - Roteiros com exercícios
Miguel
A partir de agora, você lerá trechos de
roteiros escritos pelo professor Luís Moreira - Sonho ruim, morena.
Filho e, a partir deles, terá uma série de
exercícios que, ao ser resolvidos, podem Xana
ajudá-lo na criação. Quando houver dúvidas,
- Outra vez?
pode fazer seus questionamentos nos chats
da disciplina. Esses exercícios não são para
Miguel
nota, nem para ser entregues, mas servirão
para a preparação dos exercícios pedidos na - … Vontade de voltar logo pro Rio, ver
avaliação final da disciplina.
o Fabinho... É meu único filho, Xana, único.
Fiquei longe tempo demais. Tenho medo de
Roteiro: Assunto encerrado (Luiz Mo-
ter perdido ele... A Marta tá cada vez mais
reira Filho)
fria... Quando telefono, é só assunto de di-
SEQ. 1 - EXT – Noite – Mata fechada nheiro, a educação do garoto...

Ouve-se um trator e vemos a luz de seus Xana aconchega-se mais ainda nos braços
faróis através de árvores imensas. Claustro- de Miguel, faz cafuné. O olhar perdido nas
fobia, tudo incomoda, som e luzes são angus- estrelas.

32
Oficina da Criação

Miguel luz é acesa. No banheiro, vemos uma mulher


sentada no bidê preparando um shot de
- Amanhã de manhã estou com eles... Já cocaína. Usa uma colher e um isqueiro. A luz
deveria ter pego este avião há tempos... Mas fria deixa seu rosto cadavérico.
fui ficando.
Denise
Xana olha pra Miguel e sorri.
- Porra, Carlos, Merda! Parece um fantasma
Miguel andando pela casa.

- Vou me embora desta Amazônia. Já fiz Carlos sai do banheiro batendo a porta.
um bom pé-de-meia. Abri tanta estrada que Ele respira fundo, entra novamente, indo até
dava para chegar na Lua… É... Mas quase o espelho, e começa a dar um nó em sua
vendi minha alma. Tive que expulsar índio, gravata-borboleta
tomar terra... Tô cansado disso tudo, tenho
mais nada para fazer aqui. Agora é tentar Carlos
rever minha família.
- Fantasma, eu? Você já se olhou no
Xana espelho, Denise?

- Vai deixar saudade... Meu dengo... Meu Carlos pega um espelho de maquiagem e
boto. aproxima-o do rosto de Denise.

Miguel Carlos

- Você é da vida, morena, vai ficar bem. O - Dá uma boa olhada... Me diz, cadê aquela
que te deixei vai dar pra você se arranjar por mulher linda que eu conheci?
um bom tempo. Depois aparece outro... Com
sorte até se casa. É tão bonita, tão novinha... Por instantes, Denise vê-se no espelho.
Fica comigo a lembrança de teus carinhos e Algumas rugas em volta dos olhos, um rosto
a saudade. cansado e marcado pelo vício.

Xana continua sorrindo, os olhos ainda Denise


perdidos nas estrelas.
Quer saber, ainda estou inteiraça... Aí, tá
SEQ. 3 – INT. – Noite - Apartamento vendo? Me queimei com a essa porra de is-
de Denise queiro... Também, chega ofendendo.

Uma luz fraca e intermitente sai de uma Carlos acaba de dar o nó na gravata e
porta entreaberta, ouve-se uma respiração aproxima-se de Denise. Ele argumenta, ca-
ofegante. A porta é aberta por completo, a rinhoso.

33
Oficina da Criação

Carlos Carlos

- Escuta, amor, vê se maneira hoje à noite.


- Hoje é a última vez... Se você, aprontar
O Rio de Janeiro inteiro está comentando
eu me mando... Você vai se matar e eu não
tuas loucuras.
vou estar aqui para ver.
Denise
Carlos sai batendo a porta. Denise larga
- É só nisso que você pensa... Aparência
… O que os outros vão dizer. Cadê aquele a seringa usada no chão e fica olhando seu
cara que eu conheci... Encarava todas... Tá próprio rosto no espelho do banheiro.
ficando velho, garotão.
Exercício proposto 1
Carlos
Vimos que o roteiro apresenta quatro
- Nós dois... Somos só nós dois. Era isso
personagens: Miguel e Xana, Denise e
que a gente queria, liberdade para enfrentar
Carlos. Há conflito entre eles. Miguel diz que
o mundo, conquistar os espaços, sem filhos
vai voltar para o Rio, deixando Xana, e Carlos
por opção, se lembra? Nada para atrapalhar…
E agora isso, um pouco ainda vai lá, mas fala em abandonar Denise se esta continuar
quase todo dia? Você está estragando tudo. O a se drogar.
que nós ganhamos? Vamos acabar perdendo
tudo, inclusive sua vida. Agora procure, se possível sem ler o
desdobramento dado pelo roteiro, escrever
Denise se atrapalha com o garrote de látex duas sequências que apresentem uma solução
que usa para fazer saltar suas veias. imediata para esses conflitos, mostrando os
quatro já em outra posição.
Denise
Considere:
- Hum... Já que você está tão pragmático
hoje, meu bem, me ajuda a apertar isso aqui.
1. Miguel realmente deixará Xana e
Carlos voltará para o Rio?

- Vai à merda! 2. O que acontecerá com Xana? Ela


aceitará a partida de Miguel?
Denise continua atrapalhada. Carlos pega
o garrote e aperta com raiva e começa a dar 3. O que Carlos fará para tirar Denise
o laço. de seu vício?

Denise 4. Denise continuará se drogando?

- Ai (sensual)... Vai, achei... Pode afrouxar.


5. Carlos a abandonará?

34
Oficina da Criação

Aproveite para criar também duas Débora


personagens que vivem um momento de
conflito em suas vidas. - Tua rainha?... Eu quero ser é tua sereia,
igual no filme que eu vi outro dia na televisão.
Faça isso por meio de uma sequência
apenas. Dê-lhes nome e tente passar um Charles
pouco de suas personalidades por intermédio
- Então... minha sereia, amanhã eu te levo
de suas ações. Seja breve, tentando sintetizar à praia, e você vai me levar pro fundo do
o máximo possível. mar.

Continuação do roteiro Débora

SEQ. 4 - INT – NOITE – Casa de Dantas - Leva mesmo?

Na penumbra de um quarto e sala na fa- Charles


vela, vemos a brasa de um cigarro que ilu-
mina o rosto tenso de Dantas, que dá uma - Vamos no carro do Tinhão, ele me em-
profunda tragada. Ele olha o relógio: quase presta, tá me devendo. Essa noite eu tô de
meia-noite. guarda, na boa... Então, quando eu acordar,
passo aqui e te pego
Um barulho lá fora provoca um sobressal-
to. Ele apanha a arma sobre a mesinha de Débora
cabeceira e dirige-se para a janela.
- Eu não gosto quando você fala do teu
O que vê é a sombra de um casal se bei- trabalho, Charles!
jando. Fica tenso e aproxima-se mais para
Charles
escutar, tomando o cuidado de não ser visto.
Lá fora, estão Charles e Débora. - Escuta, Débora, é o que eu sei fazer. Eu
sou soldado, sou guerreiro. São eles contra
Débora
nós... É matar ou morrer, não são eles que
falam bandido bom é bandido morto?
- Meu Deus! Nunca pensei que se apaixonar
fosse tão bom.
Débora
Charles - Para, tá me assustando!

- Tô gostando. Você é diferente, e teus Charles


olhos, minha rainha, como brilham no luar,
parecem dois faróis iluminando a noite aqui - Tá bom... Vai, diz outra vez o quanto
do morro. você me ama.

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Oficina da Criação

Débora você foi se meter logo com esse cara. Se ele


ficar sabendo que eu sou cabo da PM, eles
- O brilho da lua cheia não pode viver sem
me matam...
o mar... E é assim que eu te amo, Charles.
Dantas se levanta, vai até a janela e volta
Charles
para o sofá.
- Minha rainha... Minha sereia.
Débora
Os dois beijam-se, as sombras se separam.
- Eu sei, pai.
Débora
Dantas
- Até amanhã, amor.
- Vira notícia... O cabo da PM Josimar
Charles
Dantas foi encontrado morto esta manhã..
- Meio-dia eu tô passando.
Débora:
Dantas abre a porta, o rosto de Débora
revela sua idade, no máximo 15 anos. - Eu sei, pai.

Dantas Dantas:
- Minha filha, já passou da meia-noite. Esse
- É por isso que nós vamos embora pra o
cara que estava com você... Ele é bandido,
interior.
minha filha, trabalha para o Néco da boca,
vai morrer mais cedo ou mais tarde. Esse emprego de vigia que me arrumaram
é bom, e o salário não é ruim, o serviço é
Débora abre a geladeira e bebe água pelo
tranquilo, você estuda à noite, quem sabe
gargalo.
vira advogada e se casa com um sujeito de-
Dantas cente, sua mãe...

- Ah, se sua mãe visse o que está Débora se levanta e vai para o banheiro.
acontecendo.
Débora
Débora larga a garrafa em cima da mesa e
vai sentar no sofá. - Interior, nem morta!

Dantas Débora bate a porta.

- Minha filha, tem tanta gente boa moran- Dantas:


do aqui, uma garotada que estuda, trabalha,
meninas ótimas para serem suas amigas, e - Ia ficar orgulhosa...

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Oficina da Criação

Exercício proposto 2 Continuação do roteiro

Muito embora esse roteiro tenha sido es- SEQ. 5 - EXT- Noite – boca de fumo
crito em 2000 e dê um tratamento que po-
demos definir como inocente diante da pro- Charles brinca com o fuzil executando uma
blemática das comunidades assoladas pelo coreografia quase marcial. A seu lado está o
tráfico, podemos tirar de proveitoso o desen- Professor, cheirando fartas carreiras de co-
volvimento da história, que abre três núcleos caína.
dramáticos.
Professor
Os dois primeiros já foram apresentados
-... E vocês, o que são? São o braço ar-
– o primeiro tendo André e seu conflito com
mado da miséria urbana... É... É isso aí! De
relação a sua volta para o Rio para tentar re-
que adianta aquela plaquinha lá na minha
conquistar sua família e o segundo, o de De-
mesa... Professor Fernando, doutor em so-
nise e Carlos, que vivem uma profunda crise
ciologia, se eu não venho aqui meter as caras
diante do vício de Denise.
para entender?... De que adiantam teorias
Agora o terceiro grupo aparece, com o insípidas forjadas por intelectuais igualmen-
cabo Dantas, as dificuldades e os perigos te insípidos, se não se dignam a tirar seus
que enfrenta para criar sua filha adolescente catedráticos traseiros dos gabinetes, hem?
numa favela, ainda mais depois que ela se Se querem defender teses, pois que venham
apaixona por um dos traficantes. fazê-lo aqui! Aqui passamos a entender que
o matraquear das armas pesadas que rom-
O exercício consiste de: pe o silêncio das noites vazias nada mais é
do que o grito de uma parcela da sociedade
1. Criar três sequências que resolvam o tentando sobreviver ao esquecimento a que
conflito a favor do cabo Dantas e ou- foi legada. Ah, desconcertantes aldeias que
tras três que determinem sua derrota. vivem essa ética niilista! Operários, biscates,
2. Fazer também uma descrição detalha- peões, donas de casa, estudantes, emprega-
da das personagens Dantas, Charles e das domésticas, profissionais liberais, artis-
Débora. tas e músicos... Por que não marginais e tra-
ficantes? Somos a escória da escória, somos
3. Criar, num contexto completamente o comércio que movimenta os milhões que
diferente, uma sequência que deter- mantêm o poder.
mine, como essa do roteiro, um con-
flito que provoque um choque de inte- Charles
resses três personagens.
- Tô apaixonado, professor, quero ela só
4. Criar umas três sequências que resol- para mim, e se alguém desses filhos das puta
vam esse conflito. que sobem aqui para tecar olhar para ela, eu

37
Oficina da Criação

derrubo. Ela é meiga... Tem umas aí que é das favelas do Rio. Personagens interessan-
só vadiagem, ela não, eu quero para sempre. tes, o Professor, o traficante Charles, Débora,
Corpo quente, no coração de sereia. a filha do cabo PM, e o próprio cabo Dantas
apresentam potencial para o desenvolvimen-
Professor: to da trama. Mesmo que se trate de um cur-
- Agora me diz qual é o crime que se co- ta-metragem, podemos trabalhar algumas
mete aqui que não se comete em Brasília. questões.
São todos uns corruptos, já pensou a PM en-
1. Como ficará a situação do cabo na sua
trar no Congresso atirando... Hahahaha.
comunidade? Charles vai descobrir que
Charles ele é PM, selando sua morte?

- Tão dizendo que agora é o exército que 2. Dantas vai conseguir que Débora se
vai peitar agente. Não interessa se tiver far- afaste do traficante?
da, eu mando bala pode ser quem for... Até
o senhor (sorrindo). 3. Débora vai ser feliz ao lado de Charles?

Um traficante chega correndo. 4. Charles vai ser morto pela polícia?

Traficante 5. O professor pode ser mais que uma


personagem emblemática? Dá para,
- …Charles babo, arma a contenção, os
no pouco tempo de um curta, desdo-
homi tão subindo...
brar essa personagem?
Charles
6. Criar um texto mais atualizado para a
- Vamo nessa... Professor, o senhor vem longa fala do professor ao discorrer so-
com a gente? bre as relações numa favela.

Professor 7. Criar uma sequência em que apareça


- Vou não, meu filho... Me deixa aqui, eu um desfecho para o conflito de Dantas.
me entendo com eles. Hahahaha.
8. Criar a personagem de um protago-
O Professor dá uma longa cheirada. nista (“herói”) que resolva o conflito
estabelecido entre essas personagens.
Exercício proposto 3 Insira-o numa sequência ou mais re-
solvendo a trama.
Primeiro, temos que considerar o anacro-
nismo do presente roteiro. Embora tenha Você percebeu que até agora, nesse curta,
sido premiado no festival de São Gonçalo, é não há a presença de um herói. Na verdade,
uma leitura evidentemente naïf da realidade são três núcleos, cada um liderado por uma

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Oficina da Criação

personagem, que pode ser definida como uma outra mulher. As duas estão num sofá e
protagonista: rola um clima entre elas.

1. Miguel. Cláudia

2. Denise. - Nossa, que loucura...

3. Dantas. Nesse momento, Carlos aparece e vê as


imagens. Chocado, senta-se no sofá. Cláudia
Pense por que não são Carlos ou Débora.
se insinua.
Crie sequências que possam transformá-los
em protagonistas. Cláudia

SEQ. 6 – Int/noite/loja de aeroporto - Liga, não Carlos... Você sabe que não
precisa procurar muito para ter coisa melhor.
Miguel tem a sua frente um vendedor que
lhe mostra um facão. Carlos titubeia, mas se deixa levar por
instantes. No entanto, levanta e sai, passa
Vendedor pelo salão sem ser visto por Denise e vai
embora.
- É excelente, corta mato que nem
manteiga, aço sueco. Peça de coleção, gravo
SEQ.8 – Ext./quase amanhecendo/
o nome do menino antes da chamada para o
Morro
seu voo.
Vamos matar quem desce pelas ruas do
Miguel
morro. O clima é de guerra no Vietnam: sol-
- Tá bom, o nome é Fabio, pode colocar dados, alguns corpos, sinalizadores azuis
Fabinho. espalhados pelo chão iluminam o rosto as-
sustado de Dantas, ouvem-se tiros intermi-
SEQ. 7: int/noite/ casa festa tentes. Acompanhamos o cabo, que pega um
ônibus, salta num bar e troca de farda no ba-
Festa, todo mundo dançando. Denise está nheiro. Ele sai cumprimenta o dono. Durante
se esfregando com um cara bem mais novo. toda a sequência, vemos flashes de Charles
Um sujeito com uma câmera grava tudo. De- entrando em conflito com os soldados.
nise está completamente louca.
SEQ. 9 – INT/DIA/AEROPORTO
Numa sala, em outro canto da casa, al-
gumas pessoas acompanham tudo por um Fabinho e Marta esperam por Miguel na
televisor plugado à câmera por meio de um área de desembarque. A porta automática é
cabo. Entre elas, Cláudia, que é a anfitriã, e aberta, e o menino corre para abraçar o pai.

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Oficina da Criação

Fabinho trafego de veículos. O colega delicia-se com


um picolé.
- Pai... Pai...
Dantas
Um longo abraço, Miguel meio sem jeito.
- Não dá mais, minha filha tá apaixonada...
Miguel
Já imaginou? O pior é que, se eu fizer alguma
- Fabinho... coisa, já era.

Fabinho Colega

- Conta, pai... Você viu índio, onça... Viu, -... É foda.


pai? E jacaré?
Dantas
Miguel
- Muito tempo dando duro e fodido, tem
- Fabinho... Olha, eu trouxe isso aqui pra
gente lá com carro importado.
você.

Fabinho Colega

- Pra mim... Um facão. - É foda.

Miguel Dantas

- Para quando a gente for acampar. - Nesse tempo todo, nunca precisei de
ninguém e me orgulho disso, mas ninguém
Fabinho
é de ferro... O cerco tá aumentando, lá sou
- A gente vai acampar? eu sozinho num morro que virou uma guerra.

Miguel olha para sua mulher, que os Colega


observa a distância.
- É foda...
Miguel
SEQ. 11 - Ext. /dia /Restaurante
- Vamos, mas agora eu quero é ir para
casa. Miguel e Marta estão almoçando num
quiosque na praia.
SEQ. 10 – Ext./ Dia/Avenida
Miguel
Dantas e um colega estão conversando
encostados no carro patrulha, observando o - Fiz pra melhorar nossa vida.

40
Oficina da Criação

Marta Cláudia

- Fiquei muito sozinha. - Depois do que ele viu ontem, eu acho


que nunca mais.
Miguel
Denise
- A gente agora pode ficar junto, vou
montar uma loja de materiais de construção. - Viu o quê?
Vamos morar perto da praia.
Cláudia
Marta
- A tua cena de sexo quase explícito.
- Foi difícil, fui ficando fria, deprimida...
Denise
Miguel
- …?
- O garoto vai ser meu amigo... Vou levar
pra pescar, acampar, vai trabalhar comigo. Cláudia

Marta: - Se esqueceu?

- Eu tentei te esquecer. Cláudia pega a câmera que foi usada para


fazer as imagens na noite anterior sobre a
Miguel: mesa. Passamos a ver Denise pela câmera.

- Olha, eu trouxe para você. Cláudia

Miguel mostra um estojo com um anel e - Tá tudo aqui gravado aqui... Coitado do
toca o rosto de Marta. Carlos, ficou arrasado...

SEQ. 12 - Int/amanhecer/Casa da Denise


festa
- Sua piranha... Você fez de propósito!
Algumas pessoas ainda estão dançando,
outras estão na piscina, outras dormem nos Cláudia
sofás, entre elas está Denise. Cláudia, a dona
da festa, está dançando e observa Denise, - Olha a baixaria, minha filha... Eu até que
que está acordando abraçada a um homem. tentei manter ele aqui.

Denise Denise dá um tapa e derruba a câmera,


sai correndo, pegando a chave do carro e um
- Cara, e o Carlos? celular que estavam sobre a mesa. Começa

41
Oficina da Criação

uma perseguição que termina com Denise Marta aproxima sua mão ao rosto de Mi-
entrando no carro e partindo em velocidade. guel. Vemos o sinal ficar vermelho, Miguel
não percebe, ele está olhando para Marta.
SEQ. 13 – Ext./dia/Avenida O carro de Denise, em alta velocidade, bate
no de Miguel. O carro de Dantas, logo atrás,
Dantas e seu colega estão sentados em também perde o controle. O acidente é ine-
seu carro distraídos, de repente ouvem o vitável.
som de um carro que se aproxima. O car-
ro passa, quase bate, espanta umas pessoas SEQ. 16 – Ext./dia/Canto da estrada
que estão na calçada. Eles ligam a sirene e
Fabinho e Marta estão mortos e Miguel gri-
saem em perseguição.
ta desesperado. Denise já saiu de seu carro e
SEQ. 14 – Ext./dia/Avenida está completamente alucinada. Com o celu-
lar na mão, ela chora, chamando por Carlos
Denise está desesperada, em alta veloci- e dirige-se a Miguel.
dade e tentando usar o celular. Pouco presta
atenção na direção. Denise

- Seu desgraçado, você não olha para onde


Denise
anda, não! Porra, avançou o sinal, cara, des-
- Carlos... Alô, Carlos... Não desliga não… graçado.
Não faz isso, escuta, eu te amo... Não me
Miguel acorda sangrando muito e transtor-
lembro de nada... Olha, eu quero... Droga.
nado vê os corpos de Marta e Fabinho caí-
dos fora do carro. Ao lado do menino, está
A ligação cai, ela continua tentando.
o facão. Ele olha para Denise e sai do carro,
SEQ. 15 – Ext./dia/Avenida pegando o facão a atingindo várias vezes.
Dantas, que saía de seu carro, vê a cena e
Marta e Miguel estão no carro, o clima é descarrega sua arma, acertando Miguel. Os
de harmonia, Fabinho está no banco de trás corpos de Miguel e Denise agora estão ao
e brinca com a faca que ganhou. lado do carro, a voz de Carlos chama por De-
nise no celular.
Marta
SEQ. 17 – Int./dia/Carro de Charles
- Um apartamento perto da praia não seria
mau. Engarrafamento, Charles dirige, ao seu
lado está Débora. Os dois estão indo à praia.
Miguel O carro passa pelo local do acidente. Lá está
Dantas, fardado, de pé junto aos corpos.
- Nós dois juntos, para o que der e vier. Charles olha para Débora.

42
Oficina da Criação

Charles núcleos separados a partir de um acidente é


a mesma, o que não deixa de ser um ponto
- É seu pai ali? Não acredito, teu pai é da para a noção de inconsciente coletivo.
PM...

Entram os créditos, em off uma transmis-


são radiofônica.

RJ, sábado

Fim 11/03/2000

Luiz Moreira Filho – Luiz Ignácio M. Gama


– Todos os direitos reservados.

Assunto encerrado é um filme com três


protagonistas: Miguel, Denise e Dantas. No
entanto, não há muito espaço para o desen-
volvimento de outras personagens que pos-
sam interferir na trama. Podemos pensar em
Carlos como aliado de Denise? Acho que ele
estaria mais próximo de um algoz, uma es-
pécie de alter ego que acabou involuntaria-
Exercício proposto 4 mente disparando o processo de sua morte.
Já Miguel tinha como objetivo reconquistar
Como podemos notar, é um roteiro feito
sua família, e de certa maneira o fez, mas
e rodado no ano 2000. De fato, muita coisa
não teve tempo para desfrutar de sua vitória.
mudou, mas já havia uma expectativa quan-
to à intervenção do exército. Dantas, por sua vez, acabará nas mãos do
tráfico, e o destino de Débora, assim como
O interessante também é que, no mesmo o de Charles, é incerto. Vejam que muitos
ano, o mexicano Alejandro Iñárritu dirigiu elementos, funções e etapas apontadas por
Amores brutos, com roteiro de Guillermo Ar- Vogler (2006) não se encaixam nesse ro-
riaga, que abre o conflito com um acidente teiro. Isso se deve principalmente a tratar-
de carro que vitima as personagens da trama. -se de um roteiro de curta-metragem. O fil-
Mesmo que seja no caminho inverso de As- me, numa visão mais aprofundada, trata da
sunto encerrado, não deixa de ser algo para questão do acaso e do destino. Qual seria o
se pensar. É evidente que os dois roteiristas paradigma que levou ao acidente, uma cor-
não tiveram acesso às respectivas histórias, rente de causas e efeitos ou o simples e trá-
no entanto, a ideia de desenvolvimento em gico acaso? Os destinos das personagens já

43
Oficina da Criação

estariam traçados? Por esse ponto de vista, Cama de gato


podemos inferir que nem sempre a resposta
a todas as questões da história está inserida
num roteiro.

Agora voltando às personagens, será pos-


sível inserir pelo menos três que tenham as
características de arquétipos apontados por
Vogler (2006) no espaço de uma curta me-
tragem?

Faça uma tentativa:

1. Desenvolva uma sinopse que tenha


no mínimo três personagens com
as características dos arquétipos Sinopse – Carla leva uma vidinha mais ou
estudados. Idealize um protago- menos tranquila, num daqueles apartamen-
nista, um mentor e um inimigo e tos antigos da rua Alberto de Campos, em
insira-os numa história para curta Ipanema, no Rio de Janeiro. Mais ou menos
metragem. porque Doca, seu marido, embora sendo um
cara maneiro, sabedor das coisas, bem em-
2. Pense num final diferente para As- pregado, respeitado e querido pelos amigos,
sunto encerrado, talvez um que é totalmente desligado das coisas práticas e
não tenha um final trágico. simples do dia a dia, as quais ele considera
superficiais. Pagar contas é uma delas. Dessa
3. Crie uma escaleta que se desenvol-
forma é que, numa tarde de sexta-feira, em
ve sobre três núcleos dramáticos
pleno verão, num calor de 40 ºC, na ambiên-
diferentes.
cia do Aedes, a luz deles é cortada. Dali para
Capítulo 9- Roteiros com exercícios – a frente, começa um jogo de acusações, des-
parte 2 culpas, perdão, reconquista que a todo tem-
po é interrompido, seja pelo ataque de um
Agora passaremos a trabalhar sobre um mosquito ou o ciúme. O casamento dos dois
roteiro que tem características bem diferen- vai ser posto à prova, mas tudo acabará bem
tes do drama inserido em Assunto encerrado. nessa atmosfera de amor e paixão, afinal, os
dois conhecem o poder da sedução.
Trata-se de Cama de gato, uma comédia
romântica, no espaço de um curta, que en- Carla – É forçoso notá-la quando ela pas-
volve duas personagens num jogo de recon- sa, não que seja um mulherão, mas é aque-
ciliação, em que o poder de sedução terá um la graça que a gente ainda encontra em al-
papel fundamental no desfecho da trama. guns lugares. Esse é o jeito dela. O sorriso,

44
Oficina da Criação

a covinha, parece que está sempre de bem 2. Faça a descrição de suas persona-
com a vida, e quando olha pra teu lado, meu gens, nos moldes do que viu acima.
irmão, se segura, você vai jurar que tá te
dando mole, mas quer saber, não tá nem aí Cama de gato (Luiz M. Gama)
pra você. Quem tem a sorte de conhecê-la
SEQ.1- Int./dia/AP. Carla
melhor pode acompanhar suas ideias.
Imagens fotográficas de olhos exuberan-
Ela gosta de ler, cara, e sabe das coisas.
tes desfilam em várias cores e tonalidades
Pra não dizer que tudo é perfeito, quando
na tela. A vitrola toca Este seu olhar, de Tom
alguma coisa tira a paciência dela, o tem-
Jobim, na voz de Dick Farney. Carla, em rit-
po fecha. Não, nada de barraco, mas é bom
mo acelerado, trabalha em sua plataforma
deixar ela em paz. Na verdade, quem sabe
desktop montada num canto de seu loft bem
da vida dela é o Doca, marido dela. Sei não,
mobiliado. É fim de tarde em Ipanema, e as
mas eu não sinto firmeza nessa relação, uma
primeiras luzes começam a ser acesas nas ja-
mulher dessas na mão de um cara daquele...
nelas lá fora. Olhares sucedem-se, compon-
do um cativante jogo com os olhos da bela
Doca – Quer saber, o Doca é um cara legal.
montadora e os na tela de seu computador.
Ele malha lá na academia, mas nunca vai...
Quando aparece, fica lá com aquela barri- De repente, a música apaga e o bip do
guinha, mas tem um papo bom, é enturma- nobreak começa a apitar. O ar-condicionado
do, trabalha na empresa do pai do Paulo há faz o som característico de desarme. Carla
anos, tá bem. Sei não, a Carla que se cuide, olha em volta.
ele, com aquele jeitão dele meio desligado,
acho um gato! Carla

Rio, inverno de 2012, Luiz M. Gama, todos - Merda!


os direitos reservados.
Vai até a janela e percebe que luzes na rua
Exercício proposto 5 estão acesas. Dirige-se para o interruptor e
aciona-o várias vezes, a princípio com calma
Você acabou de ler uma sinopse e a e depois já com um tanto de histeria.
apresentação de duas personagens do filme
Cama de gato, de autoria de Luiz M. Gama. Exercício proposto 6
Nesses tópicos, você encontra informações
suficientes para começar a esboçar uma ideia No roteiro de Assunto encerrado, durante
sobre a trama. Faça o mesmo: a primeira sequência, foi apresentada a per-
sonagem de Miguel. Algumas informações
1. Crie uma sinopse sobre um filme de foram passadas. Ele trabalhava na Amazônia
curta-metragem que seja uma co- e estava lá para ganhar dinheiro. Havia ido
média romântica. para lá e deixara sua mulher e filho para trás.

45
Oficina da Criação

Agora queria voltar e reaver sua família. Ti- Sendo assim, tente:
nha conhecido uma mulher e agora teria que
deixá-la. O conflito era: será que Miguel con- 1. Revelar, por meio de suas persona-
seguirá, apesar de ter ficado longe por tanto gens, os conflitos de sua trama em no
tempo, ficar bem com sua esposa e seu filho? máximo duas sequências.

Veja que isso tudo foi passado logo na pri- 2. Sem ler o restante do roteiro, criar uma
meira sequência. sequência que desenvolva a situação
de Carla diante da falta de luz.
O mesmo ocorreu na apresentação de De-
nise. Ficamos sabendo que ela era viciada e Continuação do roteiro
casada com Carlos, ambos tinham um projeto
SEQ.2 – int./noite/AP. Carla
de vida juntos, mas o vício estava começando
a atrapalhar seus sonhos.
Doca está sentado no sofá da sala com
cara de babaca (seus olhos acompanham os
Carlos não aceitava essa situação, e Deni-
movimentos de Carla). A seu lado, estão ace-
se, aparentemente, preferia não ouvi-lo. Tudo
sas algumas velas.
foi informado logo na primeira sequência que
apresenta o casal.
Carla (fora)
Foi assim com Dantas, cabo da PM, mora-
- É a conta de janeiro, eles mandaram um
dor de favela, pai de Débora, que está apaixo-
aviso de corte, você não viu?
nada por um traficante.
Doca
Agora, neste roteiro Cama de gato, a per-
sonagem de Carla também é apresentada em - Mandaram nada, Carla, esses caras tão
poucas linhas. Sabemos que ela trabalha com sempre armando.
montagem de imagens e tem prazo para en-
tregar um trabalho. Essa situação começa a Carla está de pé segurando algumas con-
se complicar com uma repentina falta de luz. tas em suas mãos.

Field (1982) pondera, num dos seus livros Carla


sobre roteiro, que toda a trama e os conflitos
de um filme devem ser informados para o es- - Tá aqui o aviso, Doca, mas quer saber,
pectador até o fim dos dez primeiros minutos. podia ser qualquer coisa que fosse da esfera
mortal, né, cara? Contas não fazem parte de
Já num curta metragem, se é possível es- seu universo. Só que era para as contas fi-
tabelecer um paralelo básico, acredito que carem sob sua responsabilidade, res-pon-sa-
as duas primeiras sequências são suficientes -bi-li-da-de. Tenho que entregar o trabalho
para isso. daqui a dois dias.

46
Oficina da Criação

Carla mata um mosquito. quência na qual ele se apresente com


essas características.
- Deve estar fazendo uns cinquenta graus
e todos os Aedes da cidade estão aqui... E Continuação do roteiro
não, eu não vou terminar o trabalho na casa
da Patrícia, no meio daquela bagunça que é SEQ.3- Int./noite/Ap. Carla
a casa dela.
A voz de Carla ecoa em seu quarto vazio.
Carla mata outro mosquito. Doca mata um De outro canto do apartamento, chega a
mosquito. Os dois já estão com suas roupas voz abafada de Doca. Carla está sentada no
grudadas de suor. chão do box da suíte com a água gelada do
chuveiro molhando e refrescando seu corpo,
Exercício proposto 7 Doca faz o mesmo no outro banheiro do
apartamento. Suas vozes atravessam o duto
No trecho do roteiro acima, recebemos
de ar.
mais informações sobre Carla e a apresenta-
ção de seu marido Doca. Podemos notar que
Doca
há um conflito e um objetivo a ser atingido.
Carla é nossa protagonista, Doca é ambíguo - Abençoada água gelada...
porque tenta ser seu aliado, mas é rejeitado.
Evidente que não é um inimigo, mas também Carla
não é um mentor. Portanto podemos dizer
que ambos protagonizam. - Que cura todos os males e lava a alma
dos aflitos...
Mais uma vez, temos um afastamento das
postulações de Vogler (2006). Não temos Os dois vão curtindo, cada um, seus res-
propriamente um herói e outros arquétipos, pectivos banhos. A ducha vai deixando-os
mas tão somente protagonistas. No entanto, relaxados.
Carla é uma personagem bem interessante.
Doca
Vamos fazer uma tentativa:
- Aquele rio perto da casa do Mauro, com a
1. Tente acrescentar à personalidade e ducha natural e a lua cheia iluminando tudo,
aos atos de Carla atitudes que a apro- se lembra, amor?
ximariam mais de uma mulher chata e
possessiva. Carla

2. Transforme Doca num mentor que ten- - Você foi perfeito naquela noite, a copa
te acalmar Carla conduzindo-a para a das árvores, o céu, aquilo foi deliciosamente
solução de seu problema. Crie uma se- mágico.

47
Oficina da Criação

Carla e Doca estão de pé nus e molhados roteirista marcou essa passagem para acen-
no corredor. Saíram de seus banhos e ago- tuar a sensualidade da sequência. Agora:
ra se reaproximam. Começam a tocar-se aos
poucos, num clima de sedução. Os olhos de 1. Faça o mesmo numa sequência
Carla brilham na escuridão. qualquer criada por você. Estabe-
leça com seu texto um lapso têm-
Doca poro-espacial nos moldes da usada
acima. Lembre-se de que esse ar-
- Você estava linda, seus olhos, tudo em tifício deve ser sempre usado com
você, Carlinha, tua boca... inteligência e sensibilidade.

Os dois começam a se abraçar, a coisa vai Continuação do roteiro


ficando quente. Até que de repente alguma
coisa chama a atenção de Doca. Um mosqui- SEQ.4- Int./noite/Ap. Carla
to voando perto da cabeça de Carla chama
sua atenção. Ele então se distrai por alguns Carla está dormindo vestida e deitada em
segundos e passa a tentar matar o mosqui- sua cama sobre as cobertas. Ela acorda as-
to. Carla o olha sem acreditar e começa a se sustada, o som da rua chega a seu quarto.
afastar. Olha o relógio, vai à janela e abre-a, deixan-
do o ar abafado da noite entrar.
Carla
Ainda é cedo. Sai do quarto e passa pela
- Cara, você é completamente desvirtua- sala, onde Doca tenta ler um livro segurando
do... Sai de perto de mim, sai, seu louco. uma lanterna. Ele acendera uns dois lampi-
ões elétricos, reforçando as velas, para ilu-
Carla o empurra de vez e entra no quarto,
minar um pouco o ambiente. Há uma troca
batendo a porta. Doca fica do lado de fora e
silenciosa de olhares. Ela passa em direção à
bate timidamente para que ela o deixe en-
cozinha levando uma das luzes.
trar. Silêncio.
SEQ.5- Int./noite/Ap. Carla – Cozinha
Exercício proposto 8
Carla está derramando uma jarra d’água
Nessa sequência, podemos notar que os
com pedras de gelo sobre sua nuca na pia,
dois estão cada um num banheiro diferente,
Doca chega e passa a ajudá-la. Ele se insi-
e seu diálogo dá-se através do duto de ar
nua, e Carla delicadamente o afasta sorrindo.
que liga os dois ambientes, mas de repen-
te os dois estão no corredor se abraçando. Carla
Trata-se de um lapso de tempo e espaço que
fica explicitada no roteiro. Veja que se trata - Não vai dar pra passar a noite assim, vai
de um roteiro técnico, mas mesmo assim o piorar.

48
Oficina da Criação

Doca tira a jarra das mãos de Carla e co- Carla atravessa a sala e entra no quarto
meça a jogar a água devagar na sua própria batendo a porta.
nuca, também sobre a pia.
SEQ.6 – Int./noite/Ap. Carla
Doca
Doca está parado na porta do quarto de
- Amanhã a gente pega o carro e vai pra Carla. Está suando e mata um mosquito. Faz
uma pousada. muito calor. Ele escuta o som abafado de um
diálogo.
Carla pega a jarra das mãos de Doca e
começa a ajudá-lo, espalhando a água por Carla (off)
suas costas.
-... É, não aguento mais, é insuportável,
Carla me tira dessa, mas vem logo. Tá bom, Mar-
cel, daqui a meia hora. Te encontro lá.
- Não dá, tem o trabalho. Tenho que ficar
Do lado de fora, Doca escuta a tudo e, por
por aqui.
instantes, dá a impressão de querer entrar,
Ela enche a jarra com água da torneira mas desiste.
e vai derramando delicadamente sobre seu
Doca (baixo para si mesmo)
colo e depois sobre as costas de Doca.
- Marcel?...
Carla
SEQ.7- Int./noite/Ap. Carla
- Nós temos que fazer alguma coisa.
Doca está deitado no chão da sala. Carla
Doca vira-se para ela e abraça-a, dando-
sai do quarto e passa por ele em direção à
lhe um beijo.
porta da rua.

Doca
Doca
- Eu vou fazer, meu amor, amanhã...
- Vai sair?

Carla afasta-o, despeja todo o resto da


Carla
água com raiva sobre a cabeça do marido e
lhe entrega a jarra. - Não vou demorar.

Carla Doca

- Amanhã, Doca? Tudo, bem cara. - Te espero?

49
Oficina da Criação

Carla abrindo a porta. para a portaria de serviço do prédio. Ele os


segue a uma distância segura. Os dois param
Carla junto à caixa de luz do edifício.

- Pra quê? Você é que sabe, cara. SEQ.9- Ext./Noite/Ruas de Ipanema

SEQ.8- Ext./Noite/Ruas de Ipanema Marcel e Carla estão em frente aos relógios


de luz do prédio.
Ruas de Ipanema, é uma sexta- feira de
verão, os bares fervilham, mesas cheias de Carla
pessoas interessantes.
- Então, Marcel, você conhece a Débora há
muito tempo?

Marcel abre o armário dos relógios de luz


do prédio. Doca observa curioso.

Marcel

- A gente estudou junto. Qual é o


apartamento?

Carla vê pessoas conhecidas e acena, mas Procurando o número em meio aos relógios
ela procura por Marcel. Doca segue-a de lon- de luz.
ge, o clima é todo documental, distanciado.
Carla
Sons, buzinas, uma grande festa envolve as
personagens. Carla encontra Marcel - CARA -... É este aqui, o 604.
INTERESSANTE.
Marcel
Os dois conversam observados por Doca.
- Vou ter que tirar o lacre. E você?
Carla acompanha o homem até uma moto e
monta em sua garupa. Doca observa incré- Carla (arrumando o cabelo)
dulo.
- O que?
A moto parte e segue o fluxo pesado e bas-
tante lento do tráfego. Doca anda apressado, Marcel (mexendo no relógio)
pescoço esticado, tentando acompanhá-los.
- Conheceu a Débora?
A moto dobra a esquina alguns metros na
frente e entra na rua de Carla, Doca faz o Carla
mesmo. A moto para em frente ao prédio da
Carla. Doca para e olha os dois dirigirem-se - Daqui mesmo, da praia.

50
Oficina da Criação

Marcel (se insinuando) Tenta ligar do celular, mas não obtém


resposta. Ouve o som de chaves na porta, no
- Muito sol e mar, eh, vidinha. Eu e Débora entanto, permanece olhando para fora. Doca
curtimos bastante. Não é sempre, mas aproxima-se e a abraça, os dois ficam um
quando a gente se encontra... longo tempo em silêncio. Quem fala primeiro
é ele.
Doca observa impaciente.

Carla passa a mão no braço de Marcel, Doca


que se empolga.
- Eu te trouxe um sorvete.
Carla
Carla se vira, e Doca tira o papel da cas-
- Sabe, Marcel, tem outras pessoas nesse quinha, dando para a mulher. Ela prova um
jogo, tem a Débora, que, não esqueçamos, pouco, dá um pedaço para o marido.
me deu teu telefone pra quebrar essa, e tem
Carla
um cara muito legal, que é meu maridão.
Acabou? - Doca, a gente tem que cuidar mais um
do outro, cara. Dessa vez foi difícil. Tem uma
Marcel (meio sem graça)
vida acontecendo.
- Não... na verdade ainda vai demorar um
Doca
pouco, mas tudo bem, você pode ir pra casa
que eu termino aqui. Fala bem de mim pra
- O que rola entre nós é muito especial, a
tua amiga.
teu lado o mundo para e perde importância,
só o que vale é você.
Carla
Doca tira o sorvete das mãos de Carla e
- Pode deixar cara, obrigado.
começa a beijá-la. Os dois vão para o chão
Carla da um beijo no rosto de Marcel e sai. já sem suas roupas, a luz das velas ilumina
Doca já vai longe descendo sozinho a rua na seus corpos.
direção dos bares.
De repente, a luz volta, mas como, quan-
SEQ.10- Int./Noite/Ap. Carla do acabara, não havia lâmpadas acesas, os
únicos sinais de energia são o bip do compu-
Carla entra e encontra o apartamento tador, o ar-condicionado e, é claro, a música
vazio. Com o celular, vai até o lampião elétrico da vitrola.
e usa-o para encontrar algumas velas. Com
elas, ilumina a sala do apartamento. Chega Agora os corpos iluminados pelas velas
até a janela e observa a vida lá fora. são cadenciados ao som de Este seu olhar.

51
Oficina da Criação

Na tela, uma sucessão de olhos exuberantes. SEQ.2- Ext./Dia/Caminho de Terra


Entram os créditos.
O suor escorre pelo rosto de Alceu, que
Exercício proposto 9 vai subindo uma ladeira íngreme, cortando
a mata. Ele arrasta amarrado a uma corda
Você observou o clima criado pelo roteiro, o corpo de um homem. Um defunto com
que leva até o espectador a pensar que está sapatos de couro e gravata, relógio de ouro
rolando alguma coisa entre Carla e Marcel, e o rosto triste. Ele, por sua vez, vai com
mas, na verdade, não era isso. Esse jogo as roupas rasgadas, pés descalços e o rosto
acrescentou uma leve tensão e serviu para marcado por anos de trabalho pesado.
acrescentar aos sentimentos de Doca e Car-
la, fortalecendo o final. O roteiro poderia ter SEQ.3 - Ext./Dia/Velho cruzeiro na trilha.
entregado que se tratava de um eletricista
Um padre está sentado encostado a um
desde o início, mas o suspense teve um efei-
cruzeiro. Ele tem a seu lado uma mulher de
to melhor.
seios fartos e generoso decote. De repente,
1. Crie uma situação semelhante em ele vê Alceu, que passa ao longe carregando
quatro sequências, nas quais uma o defunto.
personagem estará vivendo uma situ-
Padre
ação em que só ela e você saberão
o que realmente está ocorrendo. Para -... Minha nossa senho... Valha... Ei... ô.
isso, a “verdadeira” situação só deve-
rá ser revelada na última sequência. O padre caminha apressado na direção de
Alceu, que olha contrariado e tenta apressar
Fim o passo.

Todos os direitos reservados Padre


a Luiz M. Gama
- Mas o que é isso, homem, isso lá é jeito...
Rio de Janeiro, 31-06-2012 Pra onde você tá levando essa pobre alma?

Capítulo 10 - Roteiros com exercícios Alceu


– parte 3
- Pobre alma é a minha, esse aí já foi.
Leve
Padre
SEQ.1- Ext./dia/sertão
-... Em nome de Deus, meu filho, para!...
Uma cova está sendo aberta. Um tanto de Para com esse desatino, em nome da santís-
terra é atirada, cobrindo a tela. sima virgem, para!

52
Oficina da Criação

Alceu para contrariado, de modo que o de- cheira. Em silêncio, ele segue seu caminho,
funto abre a boca. Alceu olha o padre e re- entrando numa estradinha de terra próxima
toma sua caminhada, sua atenção agora vai ao carro.
para a mulher de seios fartos que lava rou-
pas numa bacia próxima ao cruzeiro. Cabelos SEQ.5 - Ext./ Entardecer - Noite/Tri-
longos e encaracolados, ela retribui ao olhar lha acidentada
de Alceu, dirigindo-lhe um sorriso sedutor.
Seu decote exibe um crucifixo que balança O defunto é arrastado pela trilha acidenta-
entre os seios. Ele retoma a caminhada. da e, à medida que vai batendo nos galhos e
pedras do caminho, sua expressão facial vai
Alceu mudando. Ora alegre, ora triste, ora preocu-
pado, olhos abertos ou fechados, o caminho
- Tava caído na picada, é rico, num tem
vai lhe dando vida. Alceu, por sua vez, pena
furo no corpo, passou foi mal... Deve ter pa-
para carregar seu fardo. Pisando firme sobre
rente em Cardosinho. Lá eles pagam por ele.
as pedras do caminho, ele vai cantado baixo
Padre uma ladainha... Numa curva, ele chega a um
descampado. Uma brisa movimenta a vege-
-... Mas você não pode sair por aí arras- tação a sua volta e traz uma voz distante.
tando um defunto, meu filho... É contra a lei
dos homens... É contra a lei de Deus. Voz

Alceu vai passando e olhando para a mu- - Alceu... Ô, Alceu.


lher. Entre os dois, um jogo de sedução.
Ele anda em direção ao centro da clareira,
Alceu sempre arrastando o defunto e olhando em
volta. O mato se mexe e ele percebe alguma
- Mas é da lei da fome. De um jeito ou de coisa andando entre a vegetação.
outro, tem carne nesse defunto... Daqui uns
dias eu volto pra contar pro senhor. Voz

Alceu reforça o olhar na mulher. Ela sorri. - Ô, Alceu.

SEQ.4 - Ext./Dia/Estrada Asfaltada Alceu

Um carro importado abandonado na es- - Quem é?... Tô prá brincadeira não!


trada. Capô aberto, saindo vapor. Passando
por ele, vai um homem: rosto magro, óculos Alceu puxa uma peixeira e girando olha
escuros de lentes grossas e chapéu de palha. assustado para a margem da clareira, o de-
O cavalo carregado: alforje, cantil, facão, pá funto sorri sendo arrastado de um lado para
de campanha e uma Winchester na cartu- outro.

53
Oficina da Criação

Alceu Pedro (aparição)

- Quem é?... Se não falá quem é... - Miração é o cacete, caipira burro! Não tá
sentindo meu bafo no teu cangote...
Pedro (aparição - voz anterior)
Alceu
- É Pedro!
- O que tu quer de mim, desconjurado?
Pedro (aparição) está agarrado nas costas
de Alceu e fala com a boca grudada em seu Pedro (aparição)
ouvido.
- O que eu quero de você, babaca?... O
Alceu, desesperado, berra enquanto atin- que eu quero de você?... Adivinha? Uma ca-
ge Pedro (aparição) com sua peixeira. Este sinha no campo?... A tua bunda ralada?...
apenas sorri mostrando os dentes. Alceu sai Será?... Será?
correndo, arrastando Pedro (defunto).
Pedro se aproxima ainda mais e sussurra
Pedro (aparição) continua agarrado em no ouvido de Alceu.
seu cangote.
Pedro (aparição)
Alceu
- Pois então me escuta porque eu vou falar
baixinho só pra você ouvir... (aos berros) EU
- Me larga... Sai de cima, alma maldita, vai
QUERO QUE VOCÊ ME ENTERRE, PORRA!
queimar no inferno que é teu lugar.
Alceu olha para Pedro e apaga, exausto.
Alceu gira, pula e rola no chão, levanta-se
e corre mata adentro. Batendo em árvores, SEQ.6 – Ext./dia/Sertão
tropeçando em desespero, levando sua car-
ga, até cair de joelhos com Pedro (aparição) A cova continua sendo aberta.
falando em seu ouvido.
SEQ.7 – Ext./amanhecer/Mata
Pedro (aparição)
O sol da manhã desperta Alceu, que,
- Você tava achando o quê, criatura, que quando se percebe ainda segurando a corda
eu ia me deixar arrastar por aí que nem um que o prende a Pedro defunto, dá um pulo e,
saco de merda... assustado, recua alguns passos.

Alceu Titubeia por alguns segundos, respira fun-


do e aproxima-se, voltando a pegar a corda.
- Tu não existe... Tu não existe, é miração De repente, Pedro aparição reaparece em
do demônio... seu cangote, dessa vez choramingando. Al-

54
Oficina da Criação

ceu, assustado dá um giro tentando se livrar, Enquanto come, o velho não tira os olhos do
mas ele mantém-se agarrado. Alceu gira, defunto. A porção do menino acaba, e ele,
gira e gira inutilmente e acaba por desistir. fechando a mão, deita-se no chão batido fa-
zendo o braço de travesseiro.
Alceu
SEQ.12 – Int./noite/Casebre
- Já tava te esperando... Mudou da
brabeza pro choro... Vai ficar agarrado aí O rosto transtornado de Pedro aparição é
toda a vida?... Acho tô me acostumando com iluminado pela luz da lua.
tua cara feia... Mas feio mesmo é o vazio da
fome... Pedro (aparição)

Alceu começa a urinar sobre um arbusto -... Minha orelha...o velho tentou arrancar
com um sorriso debochado no rosto. Pedro minha orelha!
aparição continua seu lamento.
Alceu acorda assustado e sai do casebre
SEQ.8 - Ext./dia/Velho cruzeiro em disparada carregando o defunto noite
adentro, com Pedro aparição gritando.
O homem de rosto magro e óculos escuros
esporeia seu cavalo quando passa em frente SEQ.13 – Ext./dia/Casebre
ao velho cruzeiro. A mulher de seios fartos
O homem a cavalo vem se aproximando
observa à distância.
do casebre...
SEQ.11 – Int./noite/Casebre
SEQ.14 – Ext./dia/Casebre
O defunto, já em processo de decomposi-
O defunto é arrastado, sua cor já bem ar-
ção, está sobre o chão batido de um casebre
roxeada e o corte na orelha dão-lhe um as-
de sapé. Alceu, sentado num banco de ma-
pecto assustador.
deira, divide o barraco com um homem mui-
to velho e um menino cego. Não é dado ao Pedro aparição, que mantém o aspecto fí-
homem poder ver Pedro aparição agarrado sico intocado, continua agarrado às costas de
às costas de Alceu. Alceu, que tem dificuldade de levar o defunto
picada acima. A subida é muito íngreme, e
Este, indiferente, brinca com sua peixeira,
Pedro aparição puxa-o para baixo. Alceu cai
atirando-a repetidas vezes contra um tron-
de joelhos a todo instante.
co a seus pés. Devagar, o velho e o meni-
no levam à boca a pouca paçoca que têm Pedro
nas mãos em concha. O silêncio é mortal,
só cortado pelo som da peixeira atingindo o - País de merda mesmo... Como é que
tronco repetidas vezes num ritmo monótono. pode, querer comer minha orelha?

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Oficina da Criação

Alceu Alceu olha e vê o homem. Tenta subir mais


rápido, mas Pedro o puxa para baixo.
- É bom o dotô ficar quieto...
Pedro
Pedro
- Gente que nem você acaba assim mes-
- Alceu, você acha que alguém vai pagar mo... Achou o quê? Um cara de terno no
pelo meu defunto? Vai não, Alceu, eu tinha meio do mato ia tá fazendo o quê?... Catan-
muito poder, muita grana passando na minha do abobrinha? Já ouviu falar em queima de
mão... Gente quem nem eu não tem família arquivo? Se liga, ô capiau... Eu tava fugin-
nem amigos, não confia em ninguém, tá do. Presta atenção... Eu devia, agora você
sozinho no mundo... Só tem puxa-saco, vai deve... Vai morrer... Vou te levar comigo para
ter muita gente comemorando minha morte.
o inferno.

Alceu vai zombando.


A luta de Alceu é cada vez mais difícil, Pe-
dro agarra-o pelo pescoço, dando-lhe uma
Alceu
gravata. O cavaleiro vê a luta de Alceu para
- Se não parar, eu te dô prôs porcos... Eles vencer a montanha puxando tão somente o
nunca viram carne tão boa... Tá forçando defunto.
o peso né, tá querendo me derrubar... Vai
Alceu chega à exaustão e começa a escor-
tentando, já trabalhei pra pat pior que você...
regar, caindo montanha abaixo levado pelo
Vira essa cara feia pra lá, diacho!
peso de Pedro. Descendo... Descendo, cada
SEQ.15 – Ext./dia/Trilha na mata vez mais rápido. Alceu para aos pés do ma-
tador. O homem vai pegar sua Winchester,
No alto da trilha, o cavaleiro aperta o passo Alceu rapidamente põe a mão na peixeira.
ao avistar Alceu carregando o defunto mon-
tanha acima, do outro lado do vale estreito. Alceu

SEQ.16 – Ext./dia/Caminho íngreme - Diacho!

Quase no alto da subida, Alceu luta deses- Som de tiro.


peradamente para levar o defunto, que está
cada vez mais pesado. No pé da montanha, SEQ.17 - Ext./dia/Ravina
surge o cavaleiro. Pedro percebe sua chegada.
Alceu está sendo abraçado por Pedro, que
Pedro tem um sorriso mostrando todos os dentes.
O Pedro defunto e o aparição estão juntos
- Olha pra baixo, Alceu, tá vendo lá o seu novamente no mesmo corpo. Alceu tem um
fim... tiro na testa e o olhar apavorado.

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Oficina da Criação

Pedro pido pelo corpo caído de Pedro, a decisão de


carregá-lo para conseguir algum dinheiro, as
- Ah, Alceu não te falei que te levava etapas pelas quais Alceu passa, o inimigo,
comigo. que não é propriamente o matador, mas o
próprio defunto que ele carrega, e o desfe-
Alceu chora um choro sofrido quase mudo cho trágico caracterizam-no como herói.
e fica ali abraçado a Pedro, que sorri...
1. Crie uma sequência que determine
FIM a sobrevivência de Alceu.

Direitos reservados. Luiz Ig- 2. Crie uma sequência em que Alceu


nácio Gama Filho devolve o corpo de Pedro a sua fa-
mília.
Exercício proposto 10
3. Crie um herói e desenvolva algu-
Esse roteiro foi bem no edital do MINC de mas sequências que determinem
2008: ficou entre os 30 últimos da seleção, só as características desse arquétipo
saiu na última etapa. O interessante é que, em suas ações.
na versão enviada para o edital, Alceu sobre-
vivia e matava o jagunço. A ideia na época
Capítulo 11 - Roteiros com exercícios –
parte 4
foi criar um “herói” famélico andando pelo
agreste. O roteiro tem influência das obras O coletor
de Guimarães Rosa, e pareceu-me que não
haveria problema em mudar o final, transfor- SEQ. 1 - ext./noite/estrada
mando a personagem de Alceu numa espé-
cie de vingador, mas prefiro a versão original, Faróis iluminam os passos firmes de Ulis-
parece-me mais crua. Trata de questão do ses. No princípio, apenas uma silhueta a
inevitável da vida, que é a morte. É forte na contraluz, depois rosto e sorriso. Ele carrega
apresentação do apodrecimento do corpo de uma mochila.
Pedro diante da perseverança de Alceu em
SEQ. 2 - ext./noite/pracinha
ganhar dinheiro com seu defunto ao devol-
vê-lo a sua família. A questão da moral e da A cidade dorme enquanto Ulisses atraves-
ética pessoal de Alceu contrapõe-se ao terror sa suas ruas. As sombras das árvores criam
de Pedro. No entanto, é este que leva Alceu estranhos desenhos em seu rosto.
à morte, selando seu destino. “Você acha o
que, Alceu, que um homem como eu...?” SEQ. 23- ext./noite/rua e casa

Não podemos deixar de pensar em Alceu Ulisses repara numa casa que está com a
como um herói aos moldes do que Vogler porta aberta. Por alguns instantes, ele fica
(2006) defende. O cotidiano sendo interrom- parado olhando, até que se decide a entrar.

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Oficina da Criação

SEQ. 4 – int./noite/casa tas até que, na terceira, ele entra. Lá dentro,


sobre a cama, está deitada uma mulher ves-
Ulisses entra na casa. Está escuro, e ele tida com uma camisola longa e bordada. Ela
pega uma lanterna na mochila. O facho de não esboça reação.
luz percorre as paredes da sala até chegar a
várias telas de diferentes estilos. De repente, Ele aproxima-se e vê que era a mulher que
no meio delas, o rosto pálido de uma mulher. havia visto com a luz da lanterna. Ulisses re-
A luz passa e volta rápido, porém ela não para que ela está completamente imóvel e de
está mais lá. Ulisses leva o facho para vários olhos abertos. Coloca os dedos sobre sua ca-
pontos da sala, mas não é capaz de encon- rótida, depois vai para o pulso, nada. Ulisses
trá-la. Ele vai até um interruptor e acende as fecha os olhos da mulher. Senta-se a seu lado
luzes. na cama. Por um tempo, fica parado, pensan-
do. Olhar perdido. Até que resolve retirar suas
SEQ. 5 – int./noite/cozinha
botinas. Deita-se ao lado da mulher, cruza os
Ulisses abre a geladeira, pega uma bande- braços sob a cabeça e fica olhando para o
ja de sanduíches e abre uma lata de cerveja, teto, até que se vira de lado, em posição fetal,
para dar um gole longo e sedento. e pega no sono com a luz acesa.

SEQ. 6 – int./noite/sala - estante SEQ. 9 – ext./dia/casa - quintal

Ulisses está escolhendo um livro na estan- Ulisses acabou de fechar uma cova e joga
te. Em seu braço, uma pulseira de prata tem a pá no chão.
gravado o nome de ULISSES. Ele pega a Ilía-
da, de Homero. SEQ. 10 – ext./dia/casa – deck

Ulisses está pelado tomando sol, lendo


SEQ. 7 – int./noite/sala - sofá
a Ilíada, deitado numa espreguiçadeira. Ele
Várias latas de cerveja abertas sobre a ouve pessoas chegando. Helena chega ao
mesa. Restos de um sanduíche sobre a ban- jardim conversando com o jardineiro. Os dois
deja. Ulisses está lendo distraído, deitado conversam sobre as plantas. Helena e o jar-
num sofá. Fecha o livro e senta-se. Dá uma dineiro não veem a cova, mas ela repara em
olhada em direção a uma escada que leva ao Ulisses tomando sol. Ulisses observa os dois.
segundo andar. Helena troca um longo olhar com ele. Este,
por sua vez, levanta-se colocando a cueca e
SEQ. 8 – int./noite/corredor entra casa.

Ulisses está no corredor dos quartos da SEQ. 11 – int./dia/casa – cozinha


casa. Ele abre a porta do primeiro quarto,
acende a luz e olha por instantes, depois fe- Ulisses prepara um almoço sofisticado. Ele
cha a porta. Faz o mesmo com mais duas por- manipula os ingredientes com a maestria de

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Oficina da Criação

um chef. Abre uma garrafa de Chateauneuf SEQ. 13 – int./dia/casa – vários cô-


du Pape e vai degustando aos poucos. modos

Embora a sua estampa seja bem rude, Ulisses transa com Helena em vários
suas maneiras são bem aristocráticas. Hele- lugares da casa. Começa sobre a mesa,
na entra na cozinha. depois vai para o sofá, a cama do quarto, o
deck...
Helena
Os gritos de prazer de Helena são cada vez
- A Rô saiu? mais intensos, no entanto, Ulisses mantém
uma expressão impassível. Penetra Helena
Ulisses olha para ela de cima a baixo. Após
com um leve sorriso...
tomar um gole no vinho...
SEQ. 14 – int./dia/casa – sala
Ulisses
Helena está nua, deitada sobre a mesa,
- Há pouco.
ao lado de pratos e taças reviradas. Ulisses
toma mais um gole de vinho e, apanhando
Helena
sua mochila, sai por onde havia entrado na
- Você é? noite anterior.

Ulisses SEQ. 15 – ext./dia/r5ua

- Ulisses. Ao sair pela rua em frente à casa, Ulisses vê


um carro que passa por ele com um homem
SEQ. 12 – int./dia/casa – sala ao volante. O carro para em frente à casa, o
homem salta do carro e observa Ulisses, que
Ulisses está sentado a uma mesa muito se afasta com um sorriso em seu rosto.
bem posta. Há taças de cristal para água
e vinho. Vários talheres. Ulisses come com Exercício proposto 11
fidalguia. Helena entra na sala e, servindo-
-se de vinho, senta-se à mesa de frente para Estamos aí com outro herói, Ulisses (Odis-
Ulisses. seu) em sua jornada. Não é à toa que ele
pega a Ilíada na estante da casa que invade.
Ela observa suas maneiras, e ele observa Sua postura diante das normas do convívio
seus fartos seios que quase saltam para fora social é extremamente anárquica. É de fato
do decote, onde oscila provocativamente o um coletor de experiências. A porta da casa
nome Helena gravado em ouro e preso a aberta ao passar é que determina essa etapa
uma corrente. Segue-se um jogo de sedução de sua jornada. Pegamos carona com o nos-
e de olhares sugestivo. so herói nesse momento.

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Oficina da Criação

Crie um herói utilizando a ideia de um herói costas jorram jatos de sangue que mancham
conhecido e transporte-o para os dias atuais, o mar a sua volta de vermelho. Todos os ho-
adaptando sua postura diante da vida. mens nos botes em volta olham para Ahab,
aguardando sua ordem.
FIM
Ahab
Copyright by Luiz Ignacio Gama Filho
- AVANÇAR! HOMENS, AVANÇAR!
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Os homens gritam em seus botes e par-
Rio de Janeiro – 2011 tem para o ataque. O imenso cachalote rea-
Capítulo 12 - A adaptação de uma obra ge batendo a cauda contra a água e esbar-
literária rando em alguns botes, que são facilmente
destroçados. O do imediato é um dos que é
A adaptação de uma obra literária requer atingido.
prática. Como sempre, o que vai ajudar será
o treinamento. Ahab, firme em seu bote, olha desafiador
para a baleia.
A seguir, dou um exemplo a partir de um
trecho de Moby Dick, de Herman Melville. Vamos agora desenvolver uma decupa-
gem técnica:
Avançar, gritou Ahab aos remadores e os
botes laçaram-se ao ataque; mas, enfure- PLANO 1: Travelling percorre o corpo feri-
cido pelos ferros da véspera que lhe corta- do de Moby Dick, o sangue escorre pela sua
ram a carne, Moby Dick parecia possuído, ao
mesmo tempo, por todos os anjos caídos do
pele branca. O som do mar e a respiração da
céu. Os largos feixes de tendões ligados que baleia são ensurdecedores.
se espalhavam em sua imensa fronte branca
sob a pele transparente pareciam entrelaça- PLANO 2: Close de Ahab, que grita “Avan-
dos; quando apareciam de frente, sacudin- çar!” para os homens.
do a cauda em meio aos botes; e mais uma
vez, desferiu mangualadas que os afastaram PLANO 3: Plano Geral dos botes, mostran-
uns dos outros; fazendo tombar na água os
do os arpoeiros levantando seus arpões.
ferros e as lanças dos botes dos dois imedia-
tos, estraçalhando um lado da parte supe-
rior das suas proas, mas deixando o de Ahab PLANO 4: Plano Conjunto de um arpoeiro
quase sem um arranhão (MELVILLE, 2009). na proa do bote levantado seu arpão, a seu
lado, o esforço do remador de proa. O arpão
SEQ. 1 – Ext/Dia/Alto Mar é lançado.

Ahab está de pé na proa de um dos botes PLANO 5: Plano Médio acompanha o arpão
baleeiros, o mar é agitado pelos movimentos cortando o ar até atingir a pele branca da
de Moby Dick, que luta desesperado, de suas baleia.

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Oficina da Criação

PLANO 6: Plano Detalhe da cauda da ba- Referências bibliográficas


leia batendo na água.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil fa-
PLANO 7: Plano Conjunto de um arpoador ces. São Paulo: Cultrix, 1995.
caindo na água levado por uma onda.
________. O voo do pássaro selvagem:
PLANO 8: Plano Geral mostra alguns botes
ensaios sobre a universalidade dos mi-
virando, a baleia avança em sua direção e os
tos. São Paulo: Rosa dos Tempos, 1997.
destrói.
________. Para viver os mitos. São
PLANO 9: Close de Ahab revela sua ex-
pressão de ódio. Paulo: Cultrix, 2000.

Capítulo 13 – Conclusão CANDIDO, Antônio. A personagem no


romance. In: CANDIDO, Antônio et al. A
personagem na ficção. São Paulo: Pers-
pectiva, 1968. Coleção Debates.

COMPARATO, Doc. O roteiro para TV. 4ª


ed. São Paulo: Globo, 2009.

FIELD, Syd. Manual do roteiro. São Pau-


lo: Objetiva, 1982.

________. Os exercícios do roteirista.


Este módulo encerra-se, e espero que o São Paulo: Objetiva, 1995.
objetivo de aprofundar-se na parte que tan-
ge à criação tenha sido valioso para você. ________. 4 roteiros. São Paulo: Objeti-
va,1997.
Serão muitas as dificuldades que você en-
contrará para criar. Trata-se de treino, e acre- ________. Como resolver problemas
dito que, com os exercícios propostos, que de roteiro. São Paulo: Objetiva, 1998.
devem ser feitos, esta etapa poderá ajudá-
-lo. Você pode trocar ideias e exercícios com ________. Os fundamentos do rotei-
os colegas do curso ou falar das dificuldades rista. Curitiba: Arte & Letra, 2009.
nos nossos chats. Querendo um aprofunda-
mento do curso, as referências bibliográficas MARTINEZ, Monica. Jornada do herói
irão ajudá-los. Boa sorte a todos, com o de- -- estrutura narrativa mítica na constru-
sejo de que a imaginação floresça e ajude ção de histórias de vida em jornalismo.
vocês a se tornarem grandes roteiristas. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

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Oficina da Criação

MELVILLE, Herman. Moby Dick. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Trad. Irene Hirsh e Ale-
xandre Barbosa de Souza.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estrutura mítica para roteiristas. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

XAVIER, Ismail. D. W. Griffith: o nascimento do cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984.


Col. Encanto Radical.

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