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TEXTOS
COMPLEMENTARES
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 39

I LÓGICA FORMAL

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p. 11
Lógica
(…) A Lógica dedutiva, na qual a conclusão se segue de um conjunto de premissas, distingue-se da
lógica indutiva, que estuda a maneira como as premissas podem sustentar uma conclusão sem no
entanto a implicar. Na lógica dedutiva, a conclusão não pode ser falsa se as premissas são verdadeiras.
O objetivo da lógica é tornar explícitas as regras através das quais as inferências podem realizar-se, e
não estudar os processos de raciocínio que as pessoas usam de facto, e que podem conformar-se ou
não com essas regras. No caso da lógica dedutiva, se perguntarmos por que razão temos de obedecer
às regras, a maneira mais geral de responder é dizer que, se não o fizermos, nos contradizemos (…).
Não existe uma resposta igualmente simples no caso da lógica indutiva, que é em geral um assunto
menos robusto (…). Aristóteles é geralmente reconhecido como o primeiro grande lógico e a lógica
aristotélica ou tradicional (…) estendeu o seu domínio até ao século XIX. No século XX foi-se tor-
nando cada vez mais evidente que se tinha feito um excelente trabalho nessa tradição; mas o raciocí-
nio silogístico é agora geralmente encarado como um caso limitado e especial das formas de raciocí-
nio que podem ser representadas no cálculo proposicional e no cálculo de predicados, que são o
coração da lógica moderna.
S. Blackburn, «Lógica», in Dicionário de Filosofia, Gradiva, 2007, pp. 257-258.

p. 36
Silogismos válidos/inválidos
Ao contrário de Platão, Aristóteles não toma como elementos básicos da estrutura lógica as frases
simples compostas por substantivo e verbo, como «Teeteto está sentado». Está muito mais interessado
em classificar frases que começam por «todos», «nenhum» e «alguns», e em avaliar as inferências
entre elas. Consideremos as duas inferências seguintes:

1) Todos os gregos são europeus.


Alguns gregos são do sexo masculino.
Logo, alguns europeus são do sexo masculino.

2) Todas as vacas são mamíferos.


Alguns mamíferos são quadrúpedes.
Logo, todas as vacas são quadrúpedes.

As duas inferências têm muitas coisas em comum. São ambas inferências que retiram uma conclu-
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são a partir de duas premissas. Em cada inferência há uma palavra-chave que surge no sujeito
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gramatical da conclusão e numa das premissas, e uma outra palavra-chave que surge no predicado

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gramatical da conclusão e na outra premissa. Aristóteles dedicou muita atenção às inferências que
apresentam esta característica, hoje chamadas «silogismos», a partir da palavra grega que ele usou
para as designar. Ao ramo da lógica que estuda a validade de inferências deste tipo, iniciado por
Aristóteles, chamamos «silogística».
Uma inferência válida é uma inferência que nunca conduz de premissas verdadeiras a uma conclu-
são falsa. Das duas inferências apresentadas acima, a primeira é válida e a segunda inválida. É verdade
que, em ambos os casos, tanto as premissas como a conclusão são verdadeiras. Não podemos rejeitar a
segunda inferência com base na falsidade das frases que a constituem. Mas podemos rejeitá-la com
base no «portanto»: a conclusão pode ser verdadeira, mas não se segue das premissas.
A. Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Temas e Debates, 2003, pp. 88-89.
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II LÓGICA INFORMAL

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P. 87
Eu tenho um sonho
Sinto-me feliz por me juntar hoje a vocês na manifestação que ficará registada como a maior a favor
da liberdade na história do nosso país.
Há cem anos, um grande americano, à simbólica sombra do qual nos encontramos, assinou a
Proclamação da Emancipação. Esse momento decerto surgiu como um grande farol de esperança para
milhões de escravos negros causticados pelas chamas de uma abrasadora injustiça. Surgiu como um
alegre amanhecer para pôr fim à longa noite de cativeiro.
Cem anos mais tarde, porém, somos forçados a encarar o trágico facto de que o negro ainda não é
livre. Cem anos mais tarde, a vida do negro é ainda tristemente manietada pelas algemas da segregação
e pelos grilhões da discriminação. Cem anos mais tarde, o negro vive numa ilha solitária de pobreza,
no meio de um vasto oceano de prosperidade material. Cem anos mais tarde, o negro ainda definha nas
margens da sociedade americana e vê-se exilado na sua própria terra. Por isso, viemos hoje aqui, para
falar desta horrível situação.
Em certo sentido, viemos à capital do nosso país para levantar um cheque. Quando os arquitetos da
nossa república redigiram as admiráveis palavras da Constituição e da Declaração de Independência,
assinaram uma nota que seria herdada por todos os americanos. Esta nota promissória era um com-
promisso de que a todos os homens seriam garantidos os direitos inalienáveis à vida, liberdade e busca
da felicidade.
É hoje óbvio que a América, no que diz respeito aos seus cidadãos de cor, não pagou esta nota pro-
missória. Em vez de honrar esta sagrada obrigação, a América passou aos negros um cheque sem
cobertura, um cheque que foi devolvido por «saldo insuficiente». Mas nós recusamo-nos a acreditar
que o banco da justiça tenha ido à falência. Recusamo-nos a acreditar que não existam fundos suficien-
tes na grande casa-forte da oportunidade deste país. Por isso viemos levantar este cheque, um cheque
que nos pagará a riqueza da liberdade e a segurança da justiça. Também viemos até este lugar consa-
grado para relembrar à América a extrema urgência do agora. Não é tempo de nos darmos ao luxo de
acalmar ou de tomar o tranquilizante do «gradual». Agora é o tempo de realizar as promessas da
democracia. Agora é o momento de abandonarmos o escuro e desolado vale da segregação e tomarmos
o solarengo caminho da justiça racial. Agora é o momento de abrir as portas da oportunidade para
todos os filhos de Deus. Agora é o momento de erguer o nosso país das areias movediças da injustiça
racial para a sólida rocha da fraternidade.
Seria fatal para a nação ignorar a urgência do momento e subestimar a determinação do negro.
Este sufocante verão do legítimo descontentamento do negro não terminará enquanto não chegar um
refrescante outono de liberdade e igualdade. O ano de 1963 não é um fim, mas um princípio. Os que
pensam que o negro apenas precisava de uma válvula de escape e que agora vai ficar tranquilo terão
um rude despertar se a nação regressar à sua vida de sempre. Não haverá descanso nem tranquilidade
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na América enquanto o negro não vir garantidos os seus direitos de cidadania. Os turbilhões da revolta
continuarão a abalar os alicerces da nação até nascer o luminoso dia da justiça.
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Mas há uma coisa que tenho de dizer ao meu povo, que se encontra no quente umbral do palácio da

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justiça. No processo de conquista do lugar que é nosso por direito, não podemos ser culpados de atos
condenáveis. Não procuraremos satisfazer a nossa sede de liberdade bebendo da taça da amargura e do
ódio. Devemos travar sempre a nossa luta no plano elevado da dignidade e disciplina. Não devemos
permitir que o nosso protesto criativo degenere em violência física. Temos de nos elevar continua-
mente ao grandioso nível de responder à força física com a força da alma. A maravilhosa e nova mili-
tância que tomou conta da comunidade negra não nos deve levar a desconfiar de todos os brancos, pois
muitos dos nossos irmãos brancos, como demonstra a sua presença hoje aqui, já chegaram à conclu-
são de que o seu destino está ligado ao nosso e que sua liberdade está indissociavelmente ligada à nossa
liberdade. Não podemos caminhar sozinhos.
E enquanto falamos, devemos comprometer-nos a continuar a caminhar em frente. Não podemos
voltar para trás. Há quem pergunte aos defensores dos direitos civis: «Quando é que vocês se darão por
satisfeitos?». Nunca nos poderemos dar por satisfeitos enquanto o negro for vítima dos horrores indis-
critíveis da brutalidade policial. Nunca nos poderemos dar por satisfeitos enquanto os nossos corpos,
exaustos pela fadiga das viagens, não tiverem direito a alojamento nos motéis das autoestradas e nos
hotéis das cidades. Nunca nos poderemos dar por satisfeitos enquanto a mobilidade básica do negro for
descolar-se de um gueto pequeno para um maior. Nunca nos poderemos dar por satisfeitos enquanto
um negro no Mississípi não puder votar e um negro em Nova Iorque acreditar que não tem nada por o
qual votar. Não, não, não nos damos por satisfeitos e não nos daremos por satisfeitos enquanto a jus-
tiça não jorrar como a água e a retidão como um rio torrencial.
Tenho a perfeita consciência de que alguns de vós deixaram para trás grandes sofrimentos e atribu-
lações. Alguns de vós acabaram de sair de minúsculas celas prisionais. Alguns de vós vieram de zonas
onde a vossa busca pela liberdade vos deixou esmagados pelas tempestades da perseguição e desequili-
brados pelos ventos da brutalidade policial. Haveis sido os veteranos do sofrimento criativo. Continuai
a trabalhar acreditando que o sofrimento injusto é redentor.
Regressai ao Mississípi, ao Alabama, à Carolina do Sul, à Geórgia, à Luisiana, regressai aos bairros
de lata e aos guetos das nossas cidades modernas, com a certeza de que, de algum modo, esta situação
pode e vai ser alterada. Não fiquemos atolados no vale do desespero.
Hoje digo-vos, meus amigos, que apesar das dificuldades e frustrações do momento, ainda tenho
um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano.
Tenho um sonho que um dia esta nação se vai erguer e viver o verdadeiro significado do seu
credo: «Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são cria-
dos iguais».
Tenho um sonho que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia os filhos de antigos escravos e os
filhos de antigos proprietários de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da fraternidade.
Tenho um sonho que um dia até o estado do Mississípi, um estado desértico que arde sob o calor
tórrido da injustiça e da opressão, será transformado num oásis de liberdade e justiça.
Tenho um sonho que meus quatro filhinhos vão viver num país onde não serão julgados pela cor da
sua pele, mas pela qualidade do seu caráter.
Tenho um sonho, hoje.
Tenho um sonho que um dia o estado de Alabama, dos lábios de cujo governador escorrem presente-
mente palavras de interposição e nulificação, será transformado de modo a ser possível ver meninos e meni-
nas negros de mãos dadas com meninos e meninas brancos, caminhando juntos, como irmãos e irmãs.
Tenho um sonho, hoje.
Tenho um sonho que um dia todo os vales serão elevados, todas as colinas e montanhas serão rebai-
xadas, os lugares ásperos serão alisados e os lugares sinuosos serão endireitados, e a glória do Senhor
será revelada, e todos juntos a verão.
Esta é nossa esperança. É esta a fé com que regresso ao Sul. Com esta fé conseguiremos extrair da
montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé conseguiremos transformar as dissonâncias
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do nosso país numa bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé conseguiremos trabalhar juntos, orar jun-
tos, lutar juntos, ir parar à cadeia juntos e defender a liberdade juntos, sabendo que um dia seremos livres.
Nesse dia, todos os filhos de Deus poderão cantar com um novo significado «Meu país, és tu, doce
terra da liberdade, és tu que eu canto. Terra onde morreram os meus pais, terra do orgulho do pere-
grino, que ecoe a liberdade nas encostas de todas as montanhas».
Para a América ser uma grande nação, isto tem de se tornar uma realidade. Pois que ecoe a liber-
dade nos prodigiosos cumes do Novo Hampshire. Que ecoe a liberdade nas imponentes montanhas de
Nova Iorque. Que ecoe a liberdade nas alturas dos Alleghenies da Pensilvânia!
Que ecoe a liberdade nas Rochosas do Colorado, cobertas de neve!
Que ecoe a liberdade nos elegantes picos da Califórnia!
Mas não só! Que ecoe a liberdade na Montanha de Pedra da Geórgia!
Que ecoe a liberdade na Montanha Lookout do Tennessee!
Que ecoe a liberdade em cada colina e em cada montículo de toupeira do Mississípi. Que ecoe a
liberdade nas encostas de todas as montanhas!
Se deixarmos ecoar a liberdade, se a deixarmos ecoar em todas as aldeias e aldeolas, em todos os estados
e em todas as cidades, conseguiremos apressar o dia em que todos os filhos de Deus, negros e brancos,
judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão dar as mãos e cantar os versos do velho espiritual negro:
«Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo-Poderoso, somos finalmente livres!».
M. L. King, «Tenho um sonho» (Washington, 23 de agosto de 1963),
in 50 Grandes Discursos da História, Sílabo, 2005, pp. 177-181.

P. 87
É um ideal pelo qual estou disposto a morrer
(…) Combatemos dois elementos que são as marcas características da vida africana na África do Sul
e são institucionalizados pela legislação que queremos ver revogada. Esses elementos são a pobreza e a
ausência de dignidade humana. (…)
A África do Sul é o país mais rico da África e poderia ser um dos mais ricos do mundo. Mas é uma
terra de extremos e de contrastes espantosos. Os brancos desfrutam o que muito possivelmente é o
padrão de vida mais elevado do mundo, enquanto os africanos vivem na pobreza e miséria. (…)
Mas a queixa dos africanos não é o facto de serem pobres e os brancos serem ricos, mas que as leis
feitas pelos brancos visem preservar essa situação. (…)
A falta de dignidade humana vivida pelos africanos é resultado direto da política de supremacia
branca. A supremacia branca supõe a inferioridade negra. A legislação que visa preservar a supremacia
branca institucionaliza essa noção. As tarefas subalternas na África do Sul são invariavelmente realiza-
das por africanos. (…) Não nos olham como pessoas que têm as suas próprias famílias; não percebem
que nós temos emoções; que nos apaixonamos, como se apaixonam os brancos; que queremos estar
com as nossas mulheres e os nossos filhos, como os brancos querem estar com os deles; que queremos
ganhar dinheiro, dinheiro suficiente para sustentar as nossas famílias adequadamente, alimentá-las,
vesti-las e fazê-las frequentar a escola. (…)
A pobreza e a desintegração da vida familiar têm efeitos secundários. Crianças perambulam pelas
ruas das «townships» porque não têm escolas para frequentar, ou não têm dinheiro que lhes possibi-
lite frequentar a escola, ou não têm pais em casa para verificar se vão à escola, porque pai e mãe,
quando os dois estão presentes, precisam trabalhar para manter a família viva. (…)
Os africanos querem receber salários que possibilitem a sobrevivência. Os africanos querem fazer o
trabalho do qual são capazes, e não o trabalho do qual o governo os declara capazes. Queremos poder
viver onde obtemos trabalho, e não ser impedidos de viver numa área porque não nascemos ali.
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Queremos ser autorizados e não obrigados a viver em casas alugadas que jamais poderão ser nossas.
Queremos fazer parte da população geral, e não ser confinados aos nossos guetos. Os homens africanos
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querem ter as suas mulheres e os seus filhos a viver com eles onde eles trabalham, não querem ser

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forçados a viver de modo antinatural em albergues de homens. As nossas mulheres querem estar com
os seus companheiros, e não viver nas reservas como viúvas permanentes. Queremos o direito de estar
fora de casa às 23h, e não sermos confinados aos nossos quartos como criancinhas. Queremos o direito
a viajar no nosso próprio país e de procurar trabalho onde quisermos, e não onde o Bureau do Trabalho
nos manda. Queremos uma participação justa na África do Sul como um todo; queremos segurança e
participação na sociedade.
Sobretudo, Meritíssimo, queremos direitos políticos iguais, porque sem esses direitos as nossas
deficiências serão permanentes. Sei que isso soa revolucionário aos brancos deste país, porque a maio-
ria dos eleitores será formada por africanos. Esse facto faz o homem branco temer a democracia.
Mas não se pode permitir que esse temor seja um obstáculo à única solução que vai garantir har-
monia racial e liberdade para todos. Não é verdade que a extensão do direito de voto a todos resultará
em dominação racial. A divisão política baseada na cor é inteiramente artificial e, quando desaparecer,
desaparecerá também o domínio de um grupo de cor por outro. O ANC passou já meio século a lutar
contra o racismo. Quando triunfar, como certamente o fará, não mudará essa política.
É isso, portanto, que o ANC combate. A nossa luta é uma luta verdadeiramente nacional. É uma
luta do povo africano, inspirada pelo nosso próprio sofrimento e pela nossa própria experiência. É uma
luta pelo direito de viver.
Dediquei toda minha vida a esta luta do povo africano. Lutei contra o domínio branco e lutei contra
o domínio negro. Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pes-
soas convivam em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual eu espero viver e que
espero ver realizado. Mas, Meritíssimo, se preciso for, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer.
N. Mandela, «Discurso no Julgamento de Rivónia» (adaptado), 1964, in Folha de São Paulo em linha,
5-12-2013 [consultado a 14-01-14].

p. 89
E não sou mulher?
Bem, crianças, onde há muita confusão deve haver algo de errado. Penso que entre os negros do Sul
e as mulheres do Norte, todos falando a propósito de direitos, os homens brancos vão muito em breve
ficar em apuros. Mas do que é todos falam aqui? Aquele homem ali diz que as mulheres precisam de ser
ajudadas a entrar nas carruagens e alçadas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em qual-
quer parte. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou
me deu qualquer bom lugar! E não sou mulher? Olhem para mim! Olhem para o meu braço! Tenho
arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia vencer-me! E não sou uma mulher?
Posso trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando consigo arranjar o que comer – e aguentar
o chicote também! E não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a
escravatura, e quando eu chorei com a minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não
sou mulher? Então eles falam sobre essa coisa na cabeça; como é que se chama mesmo? [um membro
do auditório sussurra «intelecto»] É isso, meu bem. O que é que isso tem que ver com os direitos das
mulheres ou com os direitos dos negros? Se a minha chávena não comporta mais que uma medida e a
sua comporta o dobro, você não vai deixar que a minha meia medidazinha fique completamente cheia?
Depois aquele homenzinho de preto ali disse que as mulheres não podem ter tantos direitos quanto os
homens porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e
de uma mulher! O homem não teve nada que ver com Ele. Se a primeira mulher feita por Deus teve
força bastante para virar o mundo de cabeça para baixo sozinha, estas mulheres juntas serão capazes de
colocá-lo na posição certa novamente! E agora que elas querem fazê-lo, é melhor que os homens o per-
mitam. Obrigado aos que me ouviram, e agora a velha Sojourner não tem mais nada a dizer.
S. Truth, «E não sou mulher?» (Women’s Convention, Akron, Ohio, 1851),
in http://www.fordham.edu/halsall/mod/sojtruth-woman.asp [consultado a 5-11-2013].
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p. 107

Elogio da Constituição ateniense


Em primeiro lugar começarei pelos nossos maiores. É justo, de facto, e conveniente conferir-lhes,
em ocasião como esta, a honra de os recordar. Esta terra, foram sempre os mesmos habitantes que,
através das gerações, a foram entregando uns aos outros, mantendo-a livre, graças ao seu valor. Dignos
de elogio são esses, mas ainda mais a geração que nos precedeu. Foi ela que, ampliando a herança rece-
bida, adquiriu o império de que dispomos, e o transmitiu à geração atual, não sem grande esforço.
Porém, a maior parte do seu poder, fomos nós, que agora estamos na força da idade, que lhe acrescentá-
mos, e que preparámos a cidade para tudo, tornando-a autossuficiente para a guerra e para a paz.
Quanto aos seus feitos bélicos, pelos quais se adquiriu cada uma das nossas possessões, ou ao modo
como nós ou os nossos pais repelimos energicamente a invasão bárbara ou grega, como não quero
alongar-me sobre tema já conhecido, passarei adiante. Indicarei, porém, primeiro que tudo, qual a prá-
tica que nos levou a esta situação de poderio, e com que regime político e que normas se produziram
tamanhos resultados, e depois procederei ao seu elogio; entendo que, nas presentes circunstâncias, não
será descabido fazê-lo, e que será útil que o escute toda a assistência de cidadãos e de estrangeiros.
O regime político que nós seguimos não inveja as leis dos nossos vizinhos, pois temos mais de para-
digmas para os outros do que de seus imitadores. O seu nome é democracia, pelo facto de a direção do
Estado não se limitar a poucos, mas se estender à maioria; em relação às questões particulares, há
igualdade perante a lei; quanto à consideração social, à medida em que cada um é conceituado, não se
lhe dá preferência nas honras públicas pela sua classe, mas pelo seu mérito; nem tão-pouco o afastam
pela sua pobreza, devido à obscuridade da sua categoria, se for capaz de fazer algum bem à cidade.
Administramos livremente os assuntos da comunidade, bem como o que toca à mesquinha e recí-
proca observação da vida quotidiana, sem estarmos encolerizados com o próximo, se faz alguma coisa
a seu bel-prazer, e sem lhe lançar censuras que não são um castigo, mas que importunam. Mas, ao
passo que vamos vivendo a nossa vida particular sem causarmos incómodos, na nossa vida pública,
temos receio de fazer transgressões, pois damos ouvidos aos que se conservam no poder e às leis, espe-
cialmente àquelas que foram estabelecidas para socorro dos oprimidos e às que, mesmo sem serem
escritas, causam em quem as transgredir uma vergonha que todos reconhecem.
Além disso, pusemos à disposição do espírito muitas possibilidades de nos repousarmos das fadigas.
Temos competições e sacrifícios tradicionais pelo ano fora, belas casas particulares, cujo encanto pró-
prio expulsa dia a dia os aborrecimentos. Devido à grandeza da cidade, afluem aqui todos os produtos
da terra inteira, e acontece que desfrutamos dos bens locais com não menos familiaridade que dos dos
outros países.
Distinguimo-nos dos nossos adversários no que respeita a assuntos bélicos no seguinte: franquea-
mos a toda a nossa cidade, e não há ocasião alguma em que, numa proscrição de estrangeiros, cercee-
mos seja a quem for qualquer oportunidade de aprender ou de ver um espetáculo, cuja observação
pudesse ser útil a algum inimigo, se não lho ocultássemos. Não confiamos mais nos preparativos e nas
ciladas do que na coragem que brota de nós mesmos para a ação.
E, na educação, os outros, logo desde a juventude, praticam exercícios penosos, procurando alcan-
çar a força viril; nós, porém, que levamos uma vida sem constrangimento, não corremos com menos
ardor ao encontro de perigos à altura das nossas forças. (…) Por isto é a cidade digna de admiração, e
por outras razões ainda.
Amamos o belo com simplicidade e prezamos a cultura sem moleza. Servimo-nos da riqueza mais
como meio de trabalho do que como objeto de presunção oratória, e a pobreza não é tida por vergonha,
mas mais vergonhoso é não a evitar, trabalhando.
Os mesmos indivíduos cuidam das questões familiares e das políticas e a outros, aos que se dedicam
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aos seus ofícios, não falta um conhecimento suficiente dos assuntos públicos. Somos os únicos que
entendemos que quem não compartilha de nenhuma destas preocupações não é indiferente, mas sim
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inútil, e por nós julgamos as questões públicas, ou, pelo menos, estudamo-las convenientemente, não por

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pensarmos que as palavras prejudicam a ação, mas sim que é mais nocivo não ensinar primeiro pela discus-
são, antes de chegar o tempo de atuar. Diferentemente dos outros, temos ainda a norma de ousar o máximo,
mas refletir profundamente sobre a empresa a que nos votamos. Enquanto aos outros a ignorância traz a
coragem, e o cálculo acarreta a hesitação. Com razão se podem julgar mais corajosos os que conhecem com
toda a clareza os riscos e prazeres e, por causa deles, não se alheiam do perigo. Também na generosidade de
conduta somos o oposto da maioria. Não é por recebermos benefícios dos amigos, mas por lhes fazermos
bem, que os conservamos. (…) E somos os únicos que ajudamos alguém, não tanto com a mira nas vanta-
gens, como com a confiança própria de homens livres.
Em resumo, direi que esta cidade, no seu conjunto, é a escola da Grécia, e cada um de nós em particular,
ao que me parece, se mostra mais apto, para as mais variadas formas de atividade e para, com a maior agili-
dade, unida à graça, dar provas da sua perfeita capacidade física. É a própria força da cidade que, em virtude
destas qualidades que possuímos, bem demonstra como o que acabo de dizer não é um discurso forjado para
estas circunstâncias, mas a verdade dos factos. Sozinha dentre as que existem, é posta à prova e mostra-se
superior à fama que possui, e é a única que, quando invadida, não causa irritação ao inimigo pelo caráter dos
que o derrotam, nem censura os que ficam submetidos, por serem governados por homens indignos.
Grandes são as provas do nosso poderio, e nenhuma por documentar; seremos pois admirados pelos presen-
tes e pelas gerações futuras (…).
Foi por uma cidade assim que pereceram nobremente em combate os que julgaram não dever consentir
que os privassem dela. E os que ficaram é natural que queiram também sofrer por sua causa.
Eis a razão por que me alonguei ao falar da nossa cidade, explicando que o nosso combate não é por moti-
vos iguais para nós e para aqueles que não possuem idênticos privilégios, e fazendo publicamente, com
provas, o elogio daqueles em cuja honra falo agora.
Péricles, “Elogio da Constituição Ateniense”,
in M.H.R. Pereira, Hélade, Antologia da Cultura Grega, Instituto de Estudos Clássicos, 1995, pp. 294-298.

p. 108
Dia a dia da vida política do cidadão ateniense
A vida pública ou política era de certo modo um luxo que estava, portanto, reservado aos que podiam
gozar de uma subsistência garantida. Mulheres, metecos e escravos não tinham uma vida política. E aqui
coloca-se a questão sobre a abrangência da democracia ateniense. Com efeito, a partir dos números prová-
veis da população de Atenas em 430 a.C., 30 000 cidadãos, 120 000 familiares, 50 000 metecos e 100 000
escravos, verificamos que apenas 10% da população eram politai, cidadãos. A democracia ateniense era de
algum modo uma aristocracia alargada.
Fustel de Coulanges dá-nos um retrato muito pormenorizado do dia a dia de um cidadão ateniense no
gozo e cumprimento dos seus direitos e deveres políticos e vemos que é uma vida muito trabalhosa.
«Espanta verificar todo o trabalho que esta democracia exigia dos homens. Era governo muito traba-
lhoso. Vejamos em que se passa a vida de qualquer ateniense. Determinado dia, o ateniense é chamado à
assembleia do seu demo e tem de deliberar sobre os interesses religiosos ou financeiros dessa pequena asso-
ciação. Um outro dia, este mesmo ateniense está convocado para a assembleia da sua tribo; trata-se de regu-
lar uma festa religiosa, ou de examinar as despesas, ou de fazer decretos, ou ainda de nomear chefes e juízes.
Exatamente três vezes por mês torna-se preciso que assista à assembleia-geral do povo, e não tem o direito
de faltar. Mas a sessão é longa, porque o ateniense não vai à assembleia somente para votar. Chegado pela
manhã, exige-se que o ateniense ali permaneça até hora avançada do dia a ouvir os oradores. Não pode votar
senão tendo estado presente desde a abertura da assembleia, e tendo ouvido todos os discursos. (…) O dever
do cidadão não se limitava a votar. Quando chegava a sua vez, também devia ser magistrado no seu demo ou
na sua tribo. Em média, ano sim, ano não, era heliasta, isto é, juiz, passava todo esse ano nos tribunais,
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ocupado a ouvir os litigantes e a aplicar as leis. Quase não havia em Atenas cidadão que não fosse cha-
mado duas vezes na sua vida a fazer parte do senado dos Quinhentos; então, durante um ano, todos os
dias se sentava desde manhã até à noite, recebendo os depoimentos dos magistrados, fazendo-os pres-
tar as suas contas, respondendo aos embaixadores estrangeiros, redigindo as instruções dos embaixa-
dores atenienses, examinando todos os negócios que deviam ser submetidos ao povo, e preparando
todos os decretos. Enfim, o ateniense podia ser magistrado da cidade, arconte, estratego, astínomo,
quando a sorte ou o sufrágio o indicava. Vê-se quão pesado encargo era o de ser cidadão de qualquer
Estado democrático, porque correspondia a ocupar em serviço da cidade quase toda a sua existência,
pouco tempo lhe restando para os trabalhos pessoais e para a sua vida doméstica. Por isso, muito jus-
tamente, dizia Aristóteles não poder ser cidadão aquele homem que necessitasse de trabalhar para
viver. Tantas eram as exigências da democracia. O cidadão, como o funcionário público de nossos dias,
devia pertencer inteiramente ao Estado. Na guerra, dava-lhe o seu sangue; durante a paz, o seu tempo.
Não era livre para descurar dos negócios públicos por se ocupar com mais cuidado dos seus próprios.
Pelo contrário, devia descurar dos seus, para trabalhar em proveito da cidade. Os homens passavam a
sua vida uns a governarem os outros. A democracia não podia existir senão sob a condição de trabalho
incessante para todos os seus cidadãos. Por pouco que afrouxasse, ela acabaria pouco a pouco por pere-
cer ou por se corromper» (Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, Lisboa: Clássica Editora, 1988.
Veja-se especialmente o Capítulo XI do Livro Quarto, pp. 402-410).
É neste dia a dia da vida política que o cidadão vive num mundo marcado pela eloquência (lexis). As
assembleias são palco de intensos debates. Todo o homem podia falar sem distinção de fortuna, nem de
profissão, mas precisava de provar estar no gozo dos seus direitos políticos, não ser devedor ao Estado,
ser de costumes puros, estar legitimamente casado, possuir bens de raiz na Ática, haver cumprido
todos os seus deveres para com seus pais, ter feito todas as expedições militares para as quais fora esco-
lhido, e provar não ter deixado no campo, em nenhum combate, o seu escudo.
A. Fidalgo, Definição de Retórica e Cultura Grega,
in http://www.bocc.ubi.pt/pag/fidalgo-antonio-retorica-cultura-grega.html [consultado a 2013-09-04].

p. 117
Górgias
Sócrates – Pois bem, que dizíamos nós há pouco acerca da injustiça cometida ou suportada? Não
dizias tu que sofrer a injustiça era pior e que cometê-la era mais feio?
Polo – Disse isso, de facto. (…)
Sócrates – Examinemos, em primeiro lugar, se é maior o sofrimento ao cometer uma injustiça do
que ao suportá-la e se o culpado sofre mais do que a sua vítima.
Polo – Isso nunca poderá acontecer, Sócrates!
Sócrates – Não é então o sofrimento que é maior ao cometer uma injustiça?
Polo – Não, de certeza.
Sócrates – Se o sofrimento não é maior, também não são as duas coisas, sofrimento e prejuízo ao
mesmo tempo, que serão maiores.
Polo – Claro que não.
Sócrates – Então só poderá ser a outra hipótese?
Polo – Acho que sim.
Sócrates – Quer dizer, o prejudicial?
Polo – Assim parece.
Sócrates – Mas se é o prejuízo que é superior no ato de cometer a injustiça, daí resulta que cometê-
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-la é mais prejudicial do que sofrê-la?


Polo – Evidentemente.
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Sócrates – Não reconhecias tu próprio há pouco, como é opinião geral, que cometer a injustiça é

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mais feio do que sofrê-la?
Polo – Reconheci.
Sócrates – E agora parece-te que é mais prejudicial.
Polo – Não o nego.
Sócrates – Preferirias tu a coisa mais prejudicial e mais feia àquela que o é menos? (…)
Polo – Pois bem, eu não preferiria essa coisa.
Sócrates – Haverá alguém que pudesse preferi-la?
Polo – Raciocinando dessa maneira, não o creio.
Sócrates – Tinha razão, pois, em dizer que nem eu, nem tu, nem ninguém poderia preferir come-
ter a injustiça a sofrê-la, porque se trataria de uma má escolha.
Polo – É provável.
Sócrates – Vês agora, Polo, que as nossas duas argumentações, colocadas ao lado uma da outra,
não se assemelham em nada. (…) Mas deixemos esta questão e passemos ao segundo ponto do nosso
debate: pagar as faltas quando se pecou será o maior dos males como tu sustentavas, ou antes, como
eu defendia, não será um maior mal não as expiar? Eis como vamos proceder: pagar as faltas e ser
punido justamente quando se pecou são a mesma coisa na tua opinião?
Polo – São.
Sócrates – Poderás agora afirmar que aquilo que é justo nem sempre é belo enquanto justo?
Reflete antes de responderes.
Polo – Creio que é sempre. (…)
Sócrates – Ora, aquele que tem razão para castigar castiga justamente?
Polo – Acho que sim.
Sócrates – A sua ação é justa ou injusta?
Polo – É justa.
Sócrates – Por consequência, aquele que é castigado em expiação de uma falta sofre um trata-
mento justo?
Polo – Parece que sim.
Sócrates – Não reconhecemos nós que o que é justo é belo?
Polo – Certamente.
Sócrates – Assim é belo o ato de um, mas também o sofrimento do outro, daquele que é castigado?
Polo – Assim é.
Sócrates – E, se é belo, não é bom? Porque daí resulta que ou é agradável ou é útil.
Polo – Necessariamente.
Sócrates – Deste modo, o tratamento sofrido pelo homem que paga a sua falta é bom?
Polo – Parece que sim.
Sócrates – Esse homem encontra nisso vantagem?
Polo – Encontra.
Sócrates – Será a vantagem que eu imagino? A sua alma não melhora graças a uma justa punição?
Polo – É provável.
Sócrates – Assim, pois, aquele que paga a sua falta fica desse modo livre da maldade da sua alma?
Polo – Exato. (…)
Sócrates – E no que se refere ao corpo? O mal, a este respeito, não é para ti a fraqueza, a doença, a
fealdade e outros inconvenientes da mesma espécie?
Polo – Acho que sim.
Sócrates – E admites que a alma também pode ter os seus defeitos?
Polo – Como e possível duvidar disso?
Sócrates – A esses defeitos chamas injustiça, ignorância, cobardia e por aí fora?
Polo – Certamente. (…)
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Sócrates – Não acabámos nós de reconhecer a suprema fealdade da injustiça e, em geral, da imper-
feição relativa à alma?
Polo – Sim, de facto. (…)
Sócrates – E não é em virtude de uma certa justiça que se castiga, quando se castiga com razão?
Polo – Evidentemente. (…)
Sócrates – Pagar as faltas, dissemos nós, liberta do maior dos males, a maldade?
Polo – Sim.
Sócrates – A justiça assim aplicada, de facto, obriga o homem a tornar-se mais sábio e mais justo
pois ela é como que a medicina da maldade.
Polo – É, de facto.
Sócrates – Assim, portanto, o mais feliz é aquele cuja alma está isenta do mal, uma vez que este mal
da alma, dissemo-lo nós, é o maior dos males.
Polo – Certamente.
Sócrates – Em segundo lugar, vem aquele que é libertado do seu mal.
Polo – Sim.
Sócrates – Ora, esse homem é aquele que recebe conselhos, censuras, que paga as suas faltas.
Polo – É.
Sócrates – Deste modo, aquele que conserva a injustiça, em lugar de ser dela libertado, é o mais
infeliz de todos.
Polo – Assim parece. (…)
Platão, Górgias, Lisboa Editora, 2000.

p. 121
Alegoria da Caverna
– Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta,
de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em
forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa
gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é
dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos
grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles;
entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um
pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos «robertos» colocam diante do público, para
mostrarem as suas habilidades por cima deles.
– Estou a ver – disse ele.
– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objetos, que o
ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor;
como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.
– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.
– Semelhantes a nós – continuei –. Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham
visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da
caverna?
– Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?
– E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?
– Sem dúvida.
– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam
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estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam?


– É forçoso.

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– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse,

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não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?
– Por Zeus, que sim!
– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão
a sombra dos objetos.
– É absolutamente forçoso – disse ele.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua
ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém
soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a
luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras
via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao
passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se
ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que
era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos outrora eram mais
reais do que os que agora lhe mostravam?
– Muito mais – afirmou.
– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para
buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade
mais nítidos do que os que lhe mostravam?
– Seria assim – disse ele.
– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem
fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser
assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada
daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos?
– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.
– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia
mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refle-
tidas na água, e, por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de contemplar o
que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facil-
mente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.
– Pois não!
– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na
água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.
– Necessariamente.
– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo
dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.
– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.
– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus
companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os
outros?
– Com certeza.
– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com
mais agudeza os objetos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em
primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil
em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que
havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso
desejo «servir junto de um homem pobre, como servo da gleba», e antes sofrer tudo do que regressar
àquelas ilusões e viver daquele modo?
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– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela
maneira.
– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu –. Se um homem nessas condições descesse de novo para
o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
– Com certeza.
– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sem-
pre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se
habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo
superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e
conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos
anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira
que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a
tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu
desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é
que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa
de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no
mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato
na vida particular e pública.
Platão, República, Livro VII, 514a-517c, FCG, 1989, pp. 317-323.
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III EPISTEMOLOGIA

T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S

p. 141
Conhecimento e verdade
A verdade é o que é (veritas essendi: verdade do ser) ou o que corresponde exatamente ao que é
(veritas cognoscendi: verdade do conhecimento). É por isso que nenhum conhecimento é a verdade:
porque jamais conhecemos absolutamente o que é, nem tudo o que é. Só podemos conhecer o que
quer que seja através dos nossos sentidos, da nossa razão, das nossas teorias. Como poderia haver um
conhecimento imediato se todo o conhecimento é, por natureza, uma mediação? O menor dos nossos
pensamentos traz a marca do nosso corpo, do nosso espírito, da nossa cultura. Qualquer ideia em nós
é humana, subjetiva, limitada, não podendo, portanto, corresponder absolutamente à inextinguível
complexidade da realidade.
(…) Conhecimento e verdade são portanto conceitos diferentes. Mas também são solidários.
Nenhum conhecimento é verdade; mas um conhecimento que não fosse verdadeiro de todo nem sequer
o seria (seria um delírio, um erro, uma ilusão…). Nenhum conhecimento é absoluto; mas só é conheci-
mento – e não simplesmente crença ou opinião – pela parte de absoluto que comporta ou autoriza.
Pensemos, por exemplo, no movimento da Terra em torno do Sol. Ninguém pode conhecê-lo abso-
lutamente, totalmente, perfeitamente. Mas sabemos que esse movimento existe, e que se trata de um
movimento de rotação. As teorias de Copérnico e de Newton, embora relativas (visto que se trata de
teorias), são mais verdadeiras e mais seguras – e, portanto, mais absolutas – que as de Hiparco ou
Ptolomeu. E, da mesma maneira, a teoria da relatividade é mais absoluta (e não, como por vezes se crê
por causa do seu nome, mais relativa!) que a mecânica celeste do século XVIII, a qual não explica aquela
mas é explicada por ela. O facto de todos os conhecimentos serem relativos não significa que se equiva-
lham todos. Há um progresso tido incontestável de Newton a Einstein como de Ptolomeu a Newton.
A. Comte-Sponville, Apresentações da Filosofia, Instituto Piaget, 2001, pp. 52-53.

p. 141
O ato do conhecimento
Em todo o conhecimento, um cognoscente e um conhecido, um sujeito e um objeto encontram-se
face a face. A relação que existe entre os dois é o próprio conhecimento. A oposição dos dois termos não
pode ser suprimida; esta oposição significa que os dois termos são originariamente separados um do
outro, transcendentes um ao outro. (…)
O sujeito só é sujeito em relação a um objeto e o objeto só é objeto em relação a um sujeito. Cada
um deles apenas é o que é em relação ao outro. Estão ligados um ao outro por uma estreita relação;
condicionam-se reciprocamente. A sua relação é uma correlação.
A relação constitutiva do conhecimento é dupla, mas não é reversível. (…) No interior da correla-
ção, sujeito e objeto não são, portanto, permutáveis, a sua função é essencialmente diferente.
A função do sujeito consiste em apreender o objeto; a do objeto em poder ser apreendido pelo
sujeito e em sê-lo efetivamente.
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Considerada do lado do sujeito, esta apreensão pode ser descrita como uma saída do sujeito para
fora da sua própria esfera e como uma incursão na esfera do objeto, a qual é, para o sujeito, transcen-
dente e heterogénea. O sujeito apreende as determinações do objeto e, ao apreendê-las, introdu-las,
fá-las entrar na sua própria esfera.
O sujeito não pode captar as propriedades do objeto senão fora de si mesmo, pois a oposição do
sujeito e do objeto não desaparece na união que o ato de conhecimento estabelece entre eles; perma-
nece indestrutível. (…) O sujeito não pode captar o objeto sem sair de si (sem se transcender); mas não
pode ter consciência do que é apreendido sem entrar em si, sem se reencontrar na sua própria esfera.
O conhecimento realiza-se, por assim dizer, em três tempos: o sujeito sai de si, está fora de si, e
regressa finalmente a si.
O facto de que o sujeito sai de si para apreender o objeto não muda nada neste. O objeto não se
torna por isso imanente. As características do objeto, se bem que sejam apreendidas e como que intro-
duzidas na esfera do sujeito, não são, contudo, deslocadas. Apreender o objeto não significa fazê-lo
entrar no sujeito, mas sim reproduzir neste as determinações do objeto, numa construção que terá um
conteúdo idêntico ao do objeto. Esta construção operada no conhecimento é a imagem do objeto. O
objeto não é modificado pelo sujeito, mas sim o sujeito pelo objeto. Apenas no sujeito alguma coisa se
transformou pelo ato de conhecimento. No objeto nada de novo foi criado; mas, no sujeito, nasce a
consciência do objeto com o seu conteúdo, a imagem do objeto.
N. Hartmann, Les Principes d’une Métaphysique de la Connaissance,
Tomo I, Aubier-Montaigne, 1945, pp. 87-88 (adaptado).

p. 143
Definição de conhecimento
Sócrates – Ora bem, meu rapaz, será que este nosso argumento faz bem em castigar-nos, mos-
trando-nos que estamos a investigar incorretamente a opinião falsa antes do saber, tendo-o deixado de
lado? É impossível conhecê-la antes de termos aprendido adequadamente o que é o saber.
Teeteto – Sócrates, neste momento há que pensar como dizes. (…)
Sócrates – Por certo que a questão requer um breve exame, pois há toda uma arte que te indica que
o saber não é o que estás a dizer que é.
Teeteto – Qual? Que arte é?
Sócrates – A maior, no que concerne à sabedoria. E aos que a praticam chamam-lhes, não duvides,
«oradores» e «litigantes». Pois estes, embora não ensinem, com a sua própria arte persuadem e levam
a gente a opinar o que querem. Ou crês tu que há alguns mestres tão hábeis que, no breve tempo que
lhes permite a clepsidra, são capazes de ensinar adequadamente a verdade do sucedido a pessoas cujo
dinheiro foi roubado, ou que de alguma maneira foram violentadas, sem haver testemunhas?
Teeteto – Não, creio que apenas persuadem.
Sócrates – Estás então a dizer que persuadir é fazer com que alguém opine?
Teeteto – Sem dúvida.
Sócrates – Então, quando os juízes foram justamente persuadidos acerca de assuntos dos quais
apenas pode saber aquele que viu e não outro, nesse momento, ao decidir sobre esses assuntos por
ouvir dizer e ao adquirir uma opinião verdadeira, ainda que tenham sido corretamente persuadidos,
tomaram a sua decisão, sem saber se na realidade julgaram bem, não?
Teeteto – Certamente.
Sócrates – Amigo, se a opinião verdadeira e o saber fossem o mesmo, nem sequer o juiz mais com-
petente poderia emitir uma opinião correta sem saber. E, contudo, neste momento cada uma delas
parece ser diferente.
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Teeteto – Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e que ouvi alguém dizer:
que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião carente de explicação se
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encontra à margem do saber. E aquilo de que não há explicação não é suscetível de se saber – é assim

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que se referia a isto –, sendo, pelo contrário, cognoscível aquilo de que há explicação.
Platão, Teeteto, FCG, 2005, pp. 300-302.

p. 143
Teoria tradicional do conhecimento
Temos muitas crenças acerca do mundo e partimos do princípio de que boa parte delas é verda-
deira. É importante notar, no entanto, que ter uma crença verdadeira não equivale necessariamente a
ter conhecimento. Posso ter crenças verdadeiras acidentalmente. Posso acreditar que o Xavier é espa-
nhol por pensar incorretamente que os espanhóis são as únicas pessoas que têm nomes começados por
«X». Posso estar certo – o Xavier é espanhol – mas tive sorte do ponto de vista epistémico; a minha
crença revelou ser verdadeira apesar de o meu raciocínio ser incorreto. Uma análise do conhecimento
deve excluir acasos deste tipo e mostrar porque é que eles não constituem conhecimento. Para isso,
considera-se que o conhecimento consiste numa crença verdadeira justificada. Para que eu saiba que
o Xavier é espanhol é preciso que se verifiquem as seguintes condições:
1. É verdade que o Xavier é espanhol.
2. Tenho de acreditar que ele é espanhol.
3. A minha crença tem de ser justificada.
E, mais geralmente: um sujeito S sabe que p, se se verificar que:
1. p é verdade.
2. S acredita que p.
3. S tem uma justificação para a sua crença de que p.
Esta é a análise ou definição tripartida do conhecimento. As três condições são individualmente
necessárias para o conhecimento – o conhecimento consiste sempre numa crença, verdadeira, justifi-
cada – e são conjuntamente suficientes para que haja conhecimento, isto é, o conhecimento existe
sempre que sejam satisfeitas estas três condições.
D. O’Brien, Introdução à Teoria do Conhecimento, Gradiva, 2013, pp. 34-35.

p. 153
Linha dividida
– Supõe uma linha cortada em duas secções desiguais; corta de novo cada secção segundo a mesma
proporção, a da espécie visível e a da inteligível; e segundo o grau de clareza ou de obscuridade relati-
vas das coisas, obterás no mundo visível uma primeira secção, a das imagens. Chamo imagens, em
primeiro lugar, às sombras; de seguida, aos reflexos nas águas e aos que se formam na superfície dos
corpos compactos, lisos e brilhantes, e tudo o mais do mesmo género, se me estás a entender.
– Sim, entendo.
– Supõe agora a outra secção, de que esta era imagem, a que nos compreende a nós, seres vivos, e a
todas as plantas e espécie de objetos feitos pelo homem.
– Suponho.
– Acaso consentirias em admitir que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e que
a opinião está para o saber, como a imagem está para o modelo?
– Admito perfeitamente.
– Considera agora de que modo se deve cortar a secção do inteligível.
– Como?
– Assim: na primeira parte desta secção, a alma, servindo-se como se fossem imagens, dos objetos
que então eram imitados, é forçada a investigar partindo de hipóteses, sem poder caminhar para o
princípio, mas para a conclusão; ao passo que na outra secção, a alma parte da hipótese para o
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princípio absoluto e, sem fazer uso das imagens, como no caso precedente, faz o seu caminho só com
o auxílio das ideias.
– Não compreendi bem o que acabaste de dizer.
– Tentemos de novo – disse – compreenderás melhor após o que vou dizer. Não ignoras, suponho,
que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e de outras ciências do mesmo género, admi-
tem primeiro o par e o ímpar, as várias figuras, três espécies de ângulos e outras doutrinas aparentadas
destas em cada ramo da ciência. Estas coisas tomam-nas por sabidas e, quando as usam como hipóte-
ses, não acham que ainda tenham de prestar conta alguma disso, nem a si mesmos nem aos outros,
tomando como garantido que são evidentes para todos. E, partindo daí, passando por todas as fases e
tirando as consequências, concluem a investigação que tinham começado.
– Sim, eu sei isso.
– Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e raciocinam sobre elas, sem contudo pen-
sarem nelas, mas naquilo com que elas se assemelham. Por exemplo, é por causa do quadrado em si ou
da diagonal em si que fazem os seus raciocínios, mas não daquela cuja imagem traçaram e, de igual
modo, quanto às outras figuras. Todas estas figuras que eles modelam ou desenham, de que existem as
sombras e os reflexos na água, servem-se delas como se fossem imagens, procurando ver aquelas reali-
dades que não podem ser vistas senão pelo pensamento.
– O que afirmas é verdade.
– Eis o que eu entendia pela classe do inteligível, em que a alma ao procurar investigá-la, é compe-
lida a servir-se de hipóteses, sem ir ao princípio, por ser incapaz de se elevar acima das hipóteses, utili-
zando como imagens os próprios objetos que produziam as sombras da secção inferior, objetos que
consideravam mais claros que as sombras e que apreciavam como tais.
– Compreendo – disse – que te referes ao que se passa na geometria e ciências afins.
– Apreende agora o que entendo pela outra secção dos inteligíveis, aquela que o próprio raciocínio
atinge pelo poder da dialética, fazendo das suas hipóteses não princípios, mas simples hipóteses, que
são como que degraus e pontos de apoio para se elevar ao princípio de tudo, que não admite hipóteses.
Atingido este princípio, desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem até chegar à
conclusão, sem fazer uso algum de qualquer dado sensível, mas passando de uma ideia a outra, para
terminar em ideia.
– Compreendo, mas não o suficiente, pois não é tarefa leve essa de que falas. Parece-me que queres
determinar que o conhecimento do Ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialética é mais claro
que o que adquirimos pelas chamadas ciências, cujas hipóteses são assumidas como princípios. Sem
dúvida que os que as estudam são forçados a fazê-lo pelo pensamento e não pelos senados; porque as
examinam sem remontar ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência
desses objetos, se bem que eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas
ao modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas do mesmo género entendimento e não inteli-
-gência, porque a dianóia é algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.
– Apreendeste bem a questão – observei –. E agora, aplica às nossas quatro secções, as quatro ope-
rações da alma: à mais elevada, a inteligência, à segunda, o entendimento; atribui a crença à terceira e
à última a imaginação, e coloca-as por ordem, partindo da ideia de que, quanto mais os seus objetos
participam da verdade, tanto mais participam da claridade.
– Compreendo – disse ele –; concordo e vou ordená-las como propões.
Platão, A República, Guimarães, 2005, pp. 228-230.

p. 154
Ceticismo
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A primeira resposta ao ceticismo é óbvia: será que o cético tem como certa e fiável pelo menos a
sua crença no ceticismo? Quem diz «só sei que nada sei», não aceitará pelo menos que conhece uma
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verda-de, a do seu não saber? Se nada é verdade, não é verdade pelo menos que nada é verdade? Numa

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palavra, ao ceticismo é censurado ser contraditório consigo próprio: se é verdade que não conhece-
mos a verdade, pelo menos já conhecemos uma verdade… logo não é verdade que não conheçamos a
verdade. (A esta objeção o cético poderia responder que não duvida da verdade mas duvida que possa-
mos distingui-la sempre fiavelmente do falso…) Outra contradição: o cético pode dar bons argumen-
tos contra a possibilidade de conhecimento racional mas para isso precisa de utilizar a razão argu-
mentativa: tem que raciocinar para nos convencermos (e convencer-se a si próprio!) de que raciocinar
não serve para nada. Pelos vistos, nem sequer se pode rejeitar a razão sem a utilizar. Terceira dúvida
face à dúvida: podemos sustentar que cada uma das nossas crenças concretas é falível (ontem acredi-
távamos que a Terra era plana, hoje que é redonda e amanhã… quem sabe!) mas se nos enganamos
deve entender-se que poderíamos acertar, porque se não há possibilidade de acerto – quer dizer, de
conhecimento verdadeiro, mesmo que ainda não se tenha dado –, também não há possibilidade de
erro. O pior do ceticismo não é impedir-nos de afirmar algo de verdadeiro mas impedir-nos até de
dizer algo de falso. Quarta refutação, mais grosseira: quem não acredita na verdade de nenhuma das
nossas crenças não deveria ter muita dificuldade em sentar-se na linha do comboio à espera do pró-
ximo expresso ou saltar de um sétimo andar, pois pode ser que o medo inspirado por essas condutas
se baseie em simples mal-entendidos. Bem sei que estou a utilizar um golpe baixo.
F. Savater, As Perguntas da Vida, D. Quixote, 1999, p. 57.

p. 158
Ser pensante
Mas que dizer agora, desde que suponho um certo enganador poderosíssimo e, se me é permitido
dizer, maligno, que se empenhou em me enganar em tudo quanto pôde? Posso ainda afirmar que pos-
suo o mínimo, mesmo, daquilo tudo que atrás já disse que pertencia à natureza do corpo? Presto toda
a atenção, penso, passo e repasso tudo isso no espírito, e não encontro nada; e fico fatigado de repetir
inutilmente o mesmo. Que se passa com aquilo que atribuía à alma, o alimentar-se ou o andar? Uma
vez que já não tenho corpo, estes atributos não são mais do que ficções. Sentir? Todavia, isto também
não se verifica sem corpo, e em sonhos eu julgava sentir muitas coisas que depois verifiquei que não
sentira. Pensar? Aqui descubro: o pensamento é; apenas este atributo não pode ser separado de mim.
Eu sou, eu existo, isto é certo. Mas por quanto tempo? Certamente enquanto penso, porque pode por-
ventura acontecer que se eu cessasse totalmente de pensar deixaria, desde logo, inteiramente de ser.
Agora não admito nada que não seja necessariamente verdadeiro: portanto, eu sou, por precisão, ape-
nas uma coisa pensante, isto é, um espírito, ou uma alma, ou um intelecto, ou uma razão, termos
cujas significações ignorava antes. Porém, sou uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente. Mas
que espécie de coisa? Já o disse, uma coisa pensante.
E que mais, além disso? Exercitarei a minha imaginação: não sou aquele agregado de membros a
que se chama corpo humano; também não sou um certo ar ténue infuso naqueles membros, nem
vento, nem fogo, nem vapor, nem sopro, nem qualquer outra coisa que me imagine, porque foi meu
pressuposto que tudo isto é nada. O pressuposto permanece, mas não obstante sou qualquer coisa. Mas
dar-se-á que as próprias coisas que suponho serem nada não existem, porque as desconheço, e, no
entanto, na verdade, não difiram daquele eu que conheço? Não sei, sobre isto já não discuto: só posso
fazer um juízo sobre as coisas que conheço. Conheço que existo. (…)
Mas que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que
duvida, que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina, e
que sente.
R. Descartes, Meditações Sobre a Filosofia Primeira (Segunda Meditação), Almedina, 1985, pp. 122-124.
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 57

p. 158
Deus é o garante da verdade
Depois disto, tendo refletido sobre o que duvidava e que, por consequência, o meu ser não era intei-
ramente perfeito, pois via claramente que conhecer é uma maior perfeição do que duvidar, lembrei-me
de procurar de onde me teria vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do que eu; e conheci,
com evidência, que se devia a alguma natureza que fosse, efetivamente, mais perfeita. Quanto aos pen-
samentos que tinha de muitas outras coisas a mim exteriores, como do céu, da terra, da luz, do calor e
de muitíssimas outras, não me preocupava tanto em saber de onde me vinham, porque, não notando
nelas algo que me parecesse torná-las superiores a mim, podia crer que, caso fossem verdadeiras, depen-
diam da minha natureza, na medida em que tinha alguma perfeição; e se não fossem, que as extraía do
nada, isto é, existiam em mim, porque eu tinha defeito. Mas isso já não podia acontecer com a ideia de
um ser mais perfeito do que o meu, pois tê-la formado do nada era uma coisa manifestamente impossí-
vel; e porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependên-
cia do menos perfeito do que admitir que do nada procede alguma coisa, não a podia também receber de
mim próprio. De maneira que restava apenas que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que
fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições de que eu
podia ter alguma ideia, isto é, para me explicar com uma só palavra, que fosse Deus.
R. Descartes, Discurso do Método, Edições 70, 1988, pp. 76-77.

p. 164
Empirismo de David Hume
Hume sustenta que Descartes estava errado ao defender que nós possuímos ideias inatas de pen-
samento, Deus, corpo e mundo. Segundo Hume as impressões sensoriais são a única fonte do
conhecimento das questões de facto. Assim, ele retomou o dito de Aristóteles de que não há nada no
intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos. A versão de Hume foi de que «todas as nossas
ideias não são mais do que cópias das nossas impressões ou, por outras palavras, é-nos impossível
pensar numa coisa que não tenhamos anteriormente sentido, ou pelos sentidos externos ou pelos
internos».
A tese de Hume é uma hipótese psicológica sobre a génese do conhecimento empírico mas também
é uma estipulação lógica do encadeamento dos conceitos empiricamente significativos. Hume restrin-
giu os conceitos empiricamente significativos, aqueles que se podem «derivar a partir» das impressões.
Estabelecido desta forma, o critério de Hume é bastante vago. (…) Ele sugere que o papel que a mente
tem na geração do conhecimento está limitado a compor, transpor, aumentar e diminuir as ideias
«copiadas das» impressões. Presumivelmente, qualquer conceito que não seja uma «cópia» de uma
impressão, nem o resultado do processo de compor, transpor, aumentar e diminuir, é excluído. Entre
os conceitos excluídos pelo próprio Hume incluem-se o «vácuo», a «substância» (…) e «ligação neces-
sária de eventos».
A análise de Hume foi interpretada como um reforço ao indutivismo. (…) Interpretado deste modo,
Hume foi tido como defensor de que a ciência começa com as impressões sensoriais e pode incluir
apenas os conceitos que são «construídos» de certa forma fora dos dados sensoriais. (…)
Embora esta leitura de Hume tenha tido grande influência, não é justa para com a complexidade da
postura de Hume pois ele reconheceu que a formulação de teorias compreensíveis, tais como a mecâ-
nica de Newton, é atingida por uma visão criativa não redutível a «compor, transpor, aumentar dimi-
nuir» ideias «copiadas» das impressões. O que ele negou, contudo, é que qualquer destas teorias
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pudesse atingir o status da verdade necessária.


J. Losee, Introdução Histórica à Filosofia da Ciência, Terramar, 1998, pp. 137-138.
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p. 168

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Princípios de conexão entre ideias
Embora seja demasiado evidente para se furtar à observação de que ideias diferentes se conectam,
não descubro que algum filósofo tenha tentado enumerar ou classificar todos os princípios de associa-
ção. E, no entanto, é um assunto que parece digno de curiosidade. Para mim, parece-me haver apenas
três princípios de conexão entre as ideias, a saber, Semelhança, Contiguidade no tempo e no espaço e
Causa ou Efeito.
Creio que não surgirão muitas dúvidas acerca do facto de estes princípios servirem para conectar
ideias. Uma pintura leva naturalmente os nossos pensamentos para o original; a menção de um apo-
sento num edifício introduz uma inquirição ou discurso a respeito dos outros; e se pensarmos numa
ferida, dificilmente nos abstemos de refletir sobre a dor que se lhe segue. Mas pode ser difícil provar,
para a satisfação do leitor ou mesmo para o próprio prazer de um homem, que esta enumeração é
completa e que não há outros princípios de associação exceto estes. Tudo o que podemos fazer, em tais
casos, é passar os olhos por vários casos, e examinar cuidadosamente o princípio que liga os diferentes
pensamentos uns aos outros, nunca parando até tornarmos o princípio tão geral quanto possível.
Quanto mais casos indagarmos e maior cuidado empregarmos, tanto maior segurança adquiriremos
de que a enumeração, que formamos desde o todo, é completa e íntegra.
D. Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Edições 70, 1985, p. 30.

p. 171
Relação causal
A discussão da causação [relação causal] por Hume é uma das mais substanciais contribuições do
empirismo para a filosofia. Que podemos observar dos poderes e estruturas causais existentes no
mundo? Falamos rotineiramente de forças, ações, influências – objetos a afetar outros objetos, um
evento a produzir um outro. (Podemos imaginar um mundo sem causalidade? Procuremos imaginá-lo
agora. A leitura da frase anterior levou-nos a fazer essa tentativa de imaginar que não há causalidade?)
Mas podemos conhecer empiricamente esses aspetos causais do mundo?
Depende do que é a causação [relação causal]. Muitos diriam que é uma forte conexão entre dois
eventos, com um a necessitar do outro. Contudo, já observámos de facto esse tipo de ligação? Hume
negou que alguém o tenha conseguido. A sua posição era que estamos restringidos a observar, no má-
-ximo, padrões de associações e não qualquer outro elo de conexões. (…)
Observemos um fósforo e a chama subsequente depois de o friccionarmos. Observemos um outro
fósforo friccionado com outro, daí resultando também uma chama. Poderíamos prolongar este padrão
à vontade; de facto, chamamos-lhe um padrão causal. Mas a posição de Hume foi que ninguém – e isso
inclui os cientistas entre nós – pode observar uma necessitação subjacente. A observação, por muito
sofisticada que possa ser, revelará apenas um evento seguido de um outro. Por mais fósforos que fric-
cionemos e independentemente da proximidade com que sejam observados, nada se observa para além
de uma regularidade. (…)
Primeiro, temos um; depois – mesmo que rapidamente – temos o outro, metafisicamente distinto
do primeiro. Embora possamos inferir que há um elo oculto, esta inferência ultrapassa qualquer apoio
observacional direto que possamos ter em seu favor. Não podemos observar a ligação como tal; pode-
mos observar apenas o «antes» e o «depois». Inferir que a ligação extra está presente é ir aonde a obser-
vação como tal não nos pode levar. Assim, qualquer afirmação de que uma ligação causal subjaz ao que
é observado ou é conhecimento que não é puramente observacional – ou não é conhecimento sequer.
S. Hetherington, Realidade, Conhecimento, Filosofia. Uma introdução à metafísica
e à epistemologia, Instituto Piaget, 2007, pp. 162-163.
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p. 171
Relação causal e indução
Hume empreendeu o exame da nossa ideia de «relação causal». Notou que se o que queremos sig-
nificar por «relação causal» é simultaneamente «conjunção constante» e «ligação necessária», então
não atingimos nenhum conhecimento causal. Isto porque não temos a impressão de uma força ou
poder a partir dos quais um A é constrangido a produzir B. O mais que podemos estabelecer é que
acontecimentos de um certo tipo invariavelmente foram seguidos por eventos de um segundo tipo.
Hume concluiu que o único conhecimento «causal» que podíamos esperar atingir é o conhecimento
de associações de facto de duas classes de acontecimentos.
Hume admitiu que nós realmente sentimos que há algo de necessário em muitas sequências.
Segundo Hume, este sentir é uma impressão dos «sentidos internos», uma impressão derivada do uso
repetitivo. Ele declarou que «depois da repetição de casos semelhantes, a mente levada pelo hábito,
logo que surge um evento, espera pelo costume e acredita que ele vai existir». É claro que o facto de a
mente ser levada a antecipar B logo que surge A não é prova de que existe uma associação necessária
entre A e B. (…)
Ele defendeu que, embora a crença em que uma sucessão de eventos seja uma relação causal possa
surgir mesmo depois de uma única observação da sequência, a crença contudo é um produto do cos-
tume. Isto é assim porque o julgamento de uma associação causal em tais casos depende implicita-
mente da generalização que objetos semelhantes em circunstâncias semelhantes produzem efeitos
semelhantes. Mas esta generalização expressa as nossas expectativas baseadas em vasta experiência de
eventos em conjunção constante. Assim, a nossa crença numa associação causal é invariavelmente
uma questão de expectativas habituais.
Tendo tido isto em conta para a origem da nossa crença na associação causal, Hume imediatamente
salientou que não há qualquer recurso à referência passada que possa garantir a realização das nossas
expectativas quanto ao futuro. Ele estabeleceu que «é impossível, todavia, que quaisquer argumentos
vindos da experiência possam provar esta semelhança entre o passado e o futuro, uma vez que todos
estes argumentos se baseiam já na suposição desta semelhança». Assim, não é possível atingir um
conhecimento demonstrativo das causas a partir de premissas que estabelecem questões de facto.
Deste modo, Hume completou um arrebatador ataque à possibilidade de um conhecimento neces-
sário da natureza. Tal conhecimento deveria ser ou imediato ou demonstrativo. Hume havia demons-
trado que não era possível alcançar um conhecimento imediato das causas, pois não temos impressão
da ligação necessária. (…) Nenhuma interpretação científica pode alcançar a exatidão de uma afirma-
ção do género: «O todo é maior que cada uma das partes». A probabilidade é a única exigência defensá-
vel que se pode impor às leis e teorias científicas.
Embora o ceticismo de Hume tenha sido tomado como uma ameaça à ciência pelos que não esta-
vam satisfeitos com um conhecimento «meramente provável», o próprio Hume estava pronto a con-
fiar no testemunho da experiência passada.
J. Losee, Introdução Histórica à Filosofia da Ciência, Terramar, 1998, pp. 138-140.

p. 181
Conhecimento a priori e conhecimento a posteriori
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência. (…)
Há pois, pelo menos, uma questão que carece de um estudo mais atento e que não se resolve à pri-
meira vista; vem a ser esta: se haverá um conhecimento assim, independente da experiência e de todas
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as impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja
origem é a posteriori, ou seja, na experiência.
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Esta expressão não é, contudo, ainda suficientemente definida para designar de um modo conve-

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niente todo o sentido da questão apresentada. Na verdade, costuma dizer-se de alguns conhecimentos,
provenientes de fontes da experiência, que deles somos capazes ou os possuímos a priori, porque os
não derivamos imediatamente da experiência, mas de uma regra geral, que todavia fomos buscar à
experiência. Assim, diz-se de alguém que minou os alicerces da sua casa que podia saber a priori que
ela havia de ruir, isto é, que não deveria esperar, para saber pela experiência, o real desmoronamento.
Contudo, não poderia sabê-lo totalmente a priori, pois era necessário ter-lhe sido revelado anterior-
mente, pela experiência, que os corpos são pesados e caem quando lhes é retirado o sustentáculo.
Por esta razão designaremos, doravante, por juízos a priori, não aqueles que dependem desta ou
daquela experiência, mas aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e qualquer expe-
riência. A estes opõe-se o conhecimento empírico, o qual é conhecimento apenas possível a posteriori,
isto é, através da experiência. Dos conhecimentos a priori, são puros aqueles em que nada de empírico
se mistura. Assim, por exemplo, a proposição segundo a qual toda a mudança tem uma causa, é uma
proposição a priori, mas não é pura, porque a mudança é um conceito que só pode extrair-se da
experiência.
I. Kant, Crítica da Razão Pura, FCG, 1985, pp. 36-37.

p. 181
Matéria e forma do conhecimento
Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se possa referir a objetos, é
pela intuição, que se relaciona imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio,
todo o pensamento. Esta intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objeto nos for dado;
o que, por sua vez, só é possível, se o objeto afetar o espírito de certa maneira. A capacidade de receber
representações (recetividade), graças à maneira como somos afetados pelos objetos, denomina-se sen-
sibilidade. Por intermédio, pois, da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições;
mas é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os conceitos. Contudo o pensa-
mento tem sempre que referir-se, finalmente, a intuições, quer diretamente, quer por rodeios e, por
conseguinte, no que respeita a nós por via da sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos
pode ser dado.
O efeito de um objeto sobre a capacidade representativa, na medida em que por ele somos afetados,
é a sensação. (…)
Dou o nome de matéria ao que no fenómeno corresponde à sensação; ao que, porém, possibilita que
o diverso do fenómeno possa ser ordenado segundo determinadas relações, dou o nome de forma do
fenómeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir deter-
minada forma, não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que, se a matéria de todos os fenómenos
nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espírito, pronta a aplicar-se
a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação.
Chamo puras todas as representações em que nada se encontra que pertença à sensação. Por conse-
quência, deverá encontrar-se absolutamente a priori no espírito a forma pura das intuições sensíveis
em geral (…). Essa forma pura da sensibilidade chamar-se-á também intuição pura. Assim, quando
separo da representação de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força,
divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensação, como seja impenetrabilidade, dureza, cor,
etc., algo me resta ainda dessa intuição empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição
pura, que se verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um objeto real dos sentidos ou
da sensação, como simples forma da sensibilidade.
I. Kant, Crítica da Razão Pura, FCG, 1985, pp. 61-62.
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p. 182
Espaço e tempo
Também (…) se demonstrará que o espaço e o tempo são apenas formas da intuição sensível, isto é,
somente condições da existência das coisas como fenómenos e que, além disso, não possuímos concei-
tos do entendimento e, portanto, tão-pouco elementos para o conhecimento das coisas, senão quando
nos pode ser dada a intuição correspondente a esses conceitos; daí não podermos ter conhecimento de
nenhum objeto, enquanto coisa em si, mas tão-somente como objeto da intuição sensível, ou seja,
como fenómeno; de onde deriva, em consequência, a restrição de todo o conhecimento especulativo da
razão aos simples objetos da experiência. Todavia, deverá ressalvar-se e ficar bem entendido que deve-
mos, pelo menos, poder pensar esses objetos como coisas em si embora os não possamos conhecer.
I. Kant, Crítica da Razão Pura, FCG, 1985, p. 25.

p. 182
Distinção entre juízos
Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um sujeito e um predicado (apenas consi-
dero os juízos afirmativos, porque é fácil depois a aplicação aos negativos), esta relação é possível de
dois modos. Ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente)
nesse conceito A, ou B está totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele. No primeiro
caso chamo analítico ao juízo, no segundo, sintético. Portanto, os juízos (os afirmativos) são analíti-
cos, quando a ligação do sujeito com o predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que
essa ligação é pensada sem identidade, deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros poderiam
igualmente denominar-se juízos explicativos: os segundos, juízos extensivos; porque naqueles o pre-
dicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela análise o decompõe nos conceitos par-
ciais, que já nele estavam pensados (embora confusamente); ao passo que os outros juízos, pelo con-
trário, acrescentam ao conceito de sujeito um predicado que nele não estava pensado e dele não podia
ser extraído por qualquer decomposição. Quando digo, por exemplo, que todos os corpos são exten-
sos, enuncio um juízo analítico, pois não preciso de ultrapassar o conceito que ligo à palavra corpo
para encontrar a extensão que lhe está unida; basta-me decompor o conceito, isto é, tomar consciên-
cia do diverso sempre que penso nele, para encontrar este predicado; é pois um juízo analítico. Em
contrapartida, quando digo que todos os corpos são pesados, aqui o predicado é algo de completa-
mente diferente do que penso no simples conceito de um corpo em geral. A adjunção de tal predicado
produz, pois, um juízo sintético.
[Os juízos de experiência, como tais, são todos sintéticos, pois seria absurdo fundar sobre a expe-
riência um juízo analítico, uma vez que não preciso de sair do meu conceito para formular o juízo e,
por conseguinte, não careço do testemunho da experiência. Que um corpo seja extenso é uma propo-
sição que se verifica a priori e não um juízo de experiência. Porque antes de passar à experiência já
possuo no conceito todas as condições para o meu juízo; basta extrair-lhe o predicado segundo o prin-
cípio de contradição para, simultaneamente, adquirir a consciência da necessidade do juízo, necessi-
dade essa que a experiência nunca me poderia ensinar. Pelo contrário, embora eu já não inclua no
conceito de um corpo em geral o predicado do peso, esse conceito indica, todavia, um objeto da expe-
riência obtido mediante uma parte desta experiência, à qual posso ainda acrescentar outras partes
dessa mesma experiência, diferentes das que pertencem ao conceito de objeto. Posso ainda previa-
mente conhecer o conceito de corpo, analiticamente, pelas características da extensão, da impenetra-
bilidade, da figura, etc., todas elas pensadas nesse conceito. Ampliando agora o conhecimento e vol-
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tando os olhos para a experiência de onde abstraí esse conceito de corpo, encontro também o peso
sempre ligado aos caracteres precedentes e, por conseguinte, acrescento-o sinteticamente, como
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predicado, a esse conceito. É pois sobre a experiência que se funda a possibilidade de síntese do predi-

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cado do peso com o conceito de corpo, porque ambos os conceitos, embora não contidos um no outro,
pertencem, contudo, um ao outro, se bem apenas de modo contingente, como partes de um todo, a
saber, o da experiência, que é, ela própria, uma ligação sintética das intuições.]
Nos juízos sintéticos a priori falta, porém, de todo essa ajuda. Se ultrapasso o conceito A para
conhecer outro conceito B, como ligado ao primeiro, em que me apoio, o que é que tornará a síntese
possível, já que não tenho, neste caso, a vantagem de a procurar no campo da experiência? Tomemos
a proposição: Tudo o que acontece tem uma causa. No conceito de algo que acontece concebo, é
certo, uma existência precedida de um tempo que a antecede, etc. e daí se podem extrair conceitos
analíticos. Mas o conceito de causa está totalmente fora desse conceito e mostra algo de distinto do
que acontece; não está, pois, contido nesta última representação. Como posso chegar a dizer daquilo
que acontece em geral algo completamente distinto e reconhecer que o conceito de causa, embora
não contido no conceito do que acontece, todavia lhe pertence e até necessariamente? Qual é aqui a
incógnita X em que se apoia o entendimento quando crê encontrar fora do conceito A um predicado
B, que lhe é estranho, mas todavia considera ligado a esse conceito? Não pode ser a experiência, por-
que o princípio em questão acrescenta esta segunda representação à primeira, não só com generali-
dade maior do que a que a experiência pode conceder, mas também com a expressão da necessidade,
ou seja, totalmente a priori e por simples conceitos. Ora é sobre estes princípios sintéticos, isto é,
extensivos, que assenta toda a finalidade última do nosso conhecimento especulativo a priori, pois os
princípios analíticos sem dúvida que são altamente importantes e necessários, mas apenas servem
para alcançar aquela clareza de conceitos que é requerida para uma síntese segura e vasta que seja
uma aquisição verdadeiramente nova.
I. Kant, Crítica da Razão Pura, FCG, 1985, pp. 42-45.
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 63

IV FILOSOFIA DA CIÊNCIA

T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S

p. 195
Senso comum
Suponha que se queima no fogão. O que acontece? Primeiro há dor. Depois, talvez irritação. Depois,
o tomar de consciência de que foi descuidado. A dor é uma sensação, a irritação uma emoção, e o
tomar de consciência de que foi descuidado um pensamento. As coisas – a sensação, a emoção e o pen-
samento – são componentes da sua experiência.
A dor no seu dedo é claramente uma sensação. O pensamento de que foi descuidado, por outro lado,
não parece uma sensação. Pensar e queimar-se no fogão, apesar de provocar desconforto, é diferente da
própria sensação de se queimar num fogão real.
E quanto à emoção de irritação? As emoções parecem uma mistura de sensações e pensamentos. A
irritação por se ter queimado é em parte uma sensação no seu corpo, uma sensação de agitação e talvez
de excitação. Mas também é em parte um pensamento, neste caso (talvez) o pensamento de que não
deveria ter sido tão descuidado.
O que tem, então, a experiência que nos faça pensar que estamos em contacto com a realidade? Não
será o componente da sensação, que por sua vez é composto por ver, ouvir, tocar, provar e cheirar? Dos
três componentes da nossa experiência – a sensação a emoção e o pensamento –, a sensação parece
colocar-nos em contacto direto com o mundo «lá fora», com a realidade, pois por norma as nossas sen-
sações são diretamente causadas pela acção de objetos físicos reais e pelos nossos órgãos sensoriais.
D. Kolak e R. Martin, Sabedoria sem Respostas, Temas e Debates, 2004, p. 87.

p. 198
Ciência e tecnologia
No âmbito das coisas, a ciência luta por aplicar os conhecimentos alcançados sobre a matéria à
melhoria das condições de vida do homem, mediante terapias que nos defendem das enfermidades, ou
de utensílios, ferramentas ou métodos que tornam menos duras as nossas vidas ou que nos entretém
nos nossos momentos de lazer. Graças a isso, a vida média, quer dizer, a esperança de vida ao nascer,
que era de 30-35 anos na Europa ocidental ao iniciar-se o século XIX, elevou-se até 40-45 anos nos
começos do século XX e aproxima-se hoje dos 80 anos.
Uma parte desta subida deve-se à diminuição espetacular da terrível mortalidade infantil, mas tam-
bém ao facto de as nossas vidas se terem tornado menos duras. Pensemos simplesmente como elas
eram antes da invenção da lâmpada ou do clorofórmio. É a isto que se chama ciência aplicada. Às vezes
busca-se a mera projeção da nossa espécie, que nos obriga a superar os nossos limites, outras vezes a
conseguir benefícios económicos, pois a ciência e a tecnologia estão na base da riqueza e do bem-estar
das nações que a têm sabido desenvolver.
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A aplicação desses conhecimentos obtidos «fora de todo o interesse prático», de acordo com a frase
de Husserl, é a chamada tecnologia. Acrescente-se que a linha que separa a ciência básica da ciência
64 C L U B E D A S I D E I A S 1 1

aplicada é difusa. Às vezes, o tempo transcorrido entre os conhecimentos básicos e as suas aplicações é

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tão breve que a curiosidade intelectual e o desejo de usar esses conhecimentos para melhorar o mundo
se confundem entre si. Ocorre também que sistemas, métodos ou instrumentos buscados para obter
benefícios práticos venham a servir para melhorar os conhecimentos básicos, tal como aconteceu com
os estudos sobre as lentes, que serviram, posteriormente, para melhor entender o sistema solar.
A. F. Rañada, in A. Balsas, O Avanço da Ciência e o Recuo de Deus, Fronteira do Caos, 2013, pp. 85-86.

p. 198
Limites da ciência
Limites éticos: Estes referem-se, sobretudo, ao tipo de experiências que se podem fazer ou à utiliza-
ção dos resultados da investigação, quer ao uso de dispositivos ou de aparelhos, quer ao das ideias. (…)
Limites de crescimento: O crescimento acaba muitas vezes por impor limites a si mesmo. O caso
mais chamativo é aquele que se deve à falta de recursos, o que na sua forma mais dramática, referida à
sociedade humana, se conhece como a bomba demográfica de Malthus. (…) A ciência poderia ter um
limite similar, se a nossa civilização tecnológica nos levasse a um holocausto nuclear ou à destruição
de zonas do planeta por contaminação ou a causar, por erro, uma pandemia que produzisse uma trava-
gem à humanidade. Mas, ainda que sejam estes os perigos reais a considerar, seria muito exagerado
pensar que a sua probabilidade seja grande. Além disso, seriam mais limites da própria humanidade do
que da ciência. (…)
Limites experimentais: Poderia acontecer que as experiências necessárias para fazer avançar algum
ramo científico fossem demasiado complexas de gerir. (…) A nossa capacidade de investigar experi-
mentalmente o modelo de big bang para entender a origem do universo está limitada pela potência dos
aceleradores. (…)
Limites cognitivos: Estes poderão ser de duas classes: devidos à limitada capacidade humana e
lógicos. (…)
Quando a verdade se valoriza muito menos do que a utilidade, a falta de apoio social pode ser um
travão decisivo para muitos empreendimentos científicos, necessários para perfilar as ideias básicas.
Justifica-se, assim, que falemos de limites da ciência.
A. F. Rañada, in A. Balsas, O Avanço da Ciência e o Recuo de Deus, Fronteira do Caos, 2013, pp. 93-105.

p. 213
Críticas à indução
Marco: Vamos lá então recapitular: 1 – a observação não é o ponto de partida, porque já existem
expectativas e ideias, ainda que vagas, antes mesmo de observarmos; 2 – não é neutra, porque essas
expectativas interferem nas observações; 3 – é seletiva, porque, num contexto científico, os cientistas
escolhem apenas os aspetos da situação que lhes interessam para o seu estudo.
Carla: Muito bem, é isso mesmo. Lá está outra vez a tua brilhante capacidade de síntese a fazer
maravilhas! Agora já estás a ver qual é o problema, face a estas críticas à «fiabilidade» das observações,
fará sentido atribuir-lhes um papel tão importante na construção da Ciência?
Marco: Mesmo que assim seja, sempre temos a verificação experimental para confirmar ou não as
hipóteses.
Cláudia: Também acho. É assim como uma espécie de «prova dos nove»…
Carla: Bom, isso já tem a ver com outra crítica ao método experimental, a crítica à indução.
Marco: E que é…
Carla: E que é esta: o facto de uma hipótese ser confirmada em todas as experiências realizadas não
permite concluir que essa hipótese é verdadeira.
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 65

Marco: Essa agora? Uma hipótese é confirmada em todas as experiências realizadas e nem assim é
considerada verdadeira! Afinal, o que é necessário acontecer para que uma hipótese passe a ser aceite
como verdadeira?
Carla: Realmente, há aqui uma subtileza que é necessário esclarecer. Tem a ver com aquilo que se
designa por problema da indução.
Marco: O que é a indução?
Carla: A indução é um tipo de argumento. Um argumento é indutivo quando nele se faz uma gene-
ralização a partir de um certo número de casos observados.
Marco: Podes explicar com um exemplo?
Carla: Claro que sim. Vou apresentar um exemplo utilizado pelo próprio Karl Popper. Sempre que
observas um cisne, constatas que as suas penas têm a cor branca; fizeste essa observação um grande
número de vezes e, em todos os casos observados, os cisnes são brancos; se, com base nisso, concluíres
que «todos os cisnes são brancos», estás a usar um argumento indutivo. Percebeste?
C. Café, Eles não sabem que eu sonho… Um jovem poeta no país da Ciência, Asa, 2005, pp. 100-101.

p. 221
Falsificabilidade e falsificação
Importa distinguir claramente entre falsificabilidade e falsificação. Introduzimos a falsificabilidade
apenas como um critério aplicável ao caráter empírico de um sistema de enunciados. Quanto à falsifi-
cação, deveremos introduzir regras especiais que determinarão em que condições um sistema há de
ser visto como falseado.
Dizemos que uma teoria está falseada somente quando dispomos de enunciados básicos aceites que
a contradigam (…). Essa condição é necessária, porém não suficiente; com efeito, vimos que ocorrên-
cias particulares não suscetíveis de reprodução carecem de significado para a ciência. Assim, uns pou-
cos enunciados básicos dispersos, e que contradigam uma teoria, dificilmente nos induzirão a rejeitá-
-la como falseada. Só a diremos falseada se descobrirmos um efeito suscetível de reprodução que refute
a teoria. Em outras palavras, somente aceitaremos o falseamento se uma hipótese empírica de baixo
nível, que descreva esse efeito, for proposta e corroborada. A essa espécie de hipótese cabe chamar de
hipótese falseadora. A exigência de que a hipótese falseadora seja empírica e, portanto, falseável, signi-
fica apenas que ela deve colocar-se em certa relação lógica para com possíveis enunciados básicos;
contudo, essa exigência apenas diz respeito à forma lógica da hipótese. O requisito de que a hipótese
deva ser corroborada refere-se a testes a que ela tenha sido submetida – testes que a confrontam com
enunciados básicos aceites.
Dessa maneira, os enunciados básicos desempenham dois papéis diferentes. De uma parte, utiliza-
mos o sistema de todos os enunciados básicos, logicamente possíveis, para, com o auxílio deles, conse-
guir a caracterização lógica por nós procurada – a da forma dos enunciados empíricos. De outra parte,
os enunciados básicos aceites constituem o fundamento da corroboração de hipóteses. Se os enuncia-
dos básicos aceites contradisserem uma teoria, só os tomaremos como propiciadores de apoio suficiente
para o falseamento da teoria caso eles, concomitantemente, corroborem uma hipótese falseadora.
K. Popper, A Lógica da Pesquisa Científica, Cultrix, 1972, pp. 91-92 (adaptado).

p. 233
Mudança de paradigma
Tomás: Ah, desculpa! Thomas Kuhn foi um célebre filósofo da Ciência americano. Morreu em
1996, dois anos depois de Popper. Algumas das mais recentes discussões filosóficas sobre a Ciência
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foram suscitadas por uma sua obra, intitulada A Estrutura das Revoluções Científicas, onde ele
defende pontos de vista que provocaram grande polémica.

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Cláudia: Como, por exemplo…

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Tomás: Como, por exemplo, o facto de revelar que os cientistas, tal como as outras pessoas, são
muito resistentes à mudança. Isso leva-o a discordar de Popper e a subscrever a crítica segundo a qual
Popper fala de como a Ciência deveria ser, não de como ela é realmente. Se olharmos para a História da
Ciência, afirmou ele, constatamos que os cientistas estão mais preocupados em confirmar as teorias já
aceites como verdadeiras do que em pô-las em causa para que possam surgir outras novas. É isso que
normalmente acontece no dia a dia dos cientistas. A maior parte da História da Ciência é constituída
por longos períodos em que as coisas funcionam deste modo, que ele designou por «Ciência normal».
Nestes períodos, os cientistas não põem em causa os paradigmas.
Cláudia: «Paradigmas»? Que é isso?
Tomás: Kuhn defendeu que as teorias científicas surgem a partir de um quadro conceptual, que é
uma certa maneira de ver as coisas e funciona como modelo. Essas teorias especiais, cujo alcance e
influência ultrapassam em muito o contexto em que surgiram, são os paradigmas. Constituem o
«pano de fundo», ou contexto mental, a partir do qual as teorias científicas vão surgindo, sem que esse
«pano de fundo» ou paradigma seja posto em causa.
Cláudia: Quer dizer que nem todas as teorias são paradigmas, embora todas as teorias se enqua-
drem num paradigma.
Tomás: Exatamente. Todas as teorias surgem num contexto preciso e obedecem a uma certa forma
de encarar as coisas que, segundo Kuhn, é anterior às próprias teorias. Estas estruturas são os paradig-
mas. (…)
Cláudia: Se isso é assim, como explica ele o aparecimento de teorias científicas revolucionárias?
Tomás: É uma pergunta inteligente, sim senhor! Realmente, se é verdade que os cientistas são tão
conservadores, como explicar aqueles momentos da História da Ciência em que apareceram teorias
extraordinariamente inovadoras e revolucionárias? Kuhn responde a essa objeção do seguinte modo: a
História da Ciência não é apenas constituída por esses longos períodos de «acalmia» conservadora (a
«Ciência normal»), mas também por autênticas «tempestades» que surgem de tempos a tempos.
Cláudia: Quando é que isso acontece?
Tomás: Precisamente quando as velhas teorias começam a revelar anomalias, ou seja, quando se
revelam inadequadas. É a partir deste momento que os paradigmas começam a entrar em crise, o que
dá origem a uma nova fase ou período. Para os distinguir da «Ciência normal», Kuhn dá a estes perío-
dos conturbados o nome de «Ciência extraordinária».
Cláudia: Porquê «extraordinária»?
Tomás: Porque a ocorrência destas «revoluções» não é frequente, acontece apenas de tempos a
tempos.
Cláudia: E o que é que acontece exatamente nessas alturas?
Tomás: Basicamente isto: o paradigma que até aí era aceite sem discussão é posto agora em causa.
Em consequência disso, os cientistas, que até aí se esforçavam por confirmar as teorias já conhecidas,
veem-se subitamente na necessidade de tentar encontrar teorias novas que se revelem mais eficazes
que as antigas agora em crise. Estes períodos são de grande utilidade para a Ciência. É neles que sur-
gem os grandes génios da Ciência. Kuhn realça o facto de essas teorias revolucionárias fazerem a
Ciência progredir imenso.
Cláudia: Já percebi: a Ciência avança com pequenos passos nos períodos da «Ciência normal» e dá
saltos de gigante nos períodos da «Ciência extraordinária». E depois, o que é que acontece?
Tomás: O velho paradigma é substituído pelo novo e volta tudo a funcionar como anteriormente,
reiniciando-se o período de «Ciência normal». É como naquele ditado, «Depois da tempestade vem a
bonança».
C. Café, Eles não sabem que eu sonho… Um jovem poeta no país da Ciência, Asa, 2005, pp. 123-126.
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p. 236
Da ciência normal à ciência extraordinária
Quando (…) se começa a pensar que uma anomalia não é somente mais um enigma da ciência
normal, dá-se início à transição para a crise e para a ciência extraordinária. A própria anomalia começa
a ser agora identificada como tal pela profissão. Mais e mais atenção lhe é dedicada por um número
cada vez maior de homens eminentes da área respetiva. Se a anomalia continua a resistir, o que não é
aliás comum, muitos desses homens podem passar a olhar para a sua solução como o objeto de estudo
da sua disciplina. Para eles, a área disciplinar já não se assemelha ao que era antes. Em parte, essa dife-
rente perceção resulta simplesmente do novo foco de atenção da pesquisa científica. Um fator ainda
mais importante de mudança é a natureza divergente das numerosas soluções parciais que resulta do
facto de a atenção dada ao problema se ter agora generalizado. Os primeiros ataques ao problema
recalcitrante seguirão de perto as regras do paradigma. Mas com a continuação da resistência, mais e
mais dos ataques que lhe são dirigidos implicarão ligeiros, ou não tão ligeiros, reajustamentos do para-
digma, nenhum deles igual aos outros, cada um saindo-se parcialmente bem, mas nenhum suficiente-
mente bem-sucedido de modo a poder ser aceite como paradigma pelo grupo. (…)
Estes reconhecimentos explícitos de um colapso são extremamente raros, mas os efeitos da crise
não dependem inteiramente do seu reconhecimento consciente. Que efeitos podemos dizer que são
esses? Apenas dois deles parecem ser universais. Todas as crises começam com o turvar do paradigma
e o consequente afrouxar das regras da ciência normal. A este respeito, a investigação durante a crise
assemelha-se muito à investigação durante o período pré-paradigma, tirando que no primeiro caso o
foco das divergências é mais circunscrito e também mais claramente definido. E todas as crises termi-
nam de uma de três maneiras. Por vezes, a ciência normal acaba por ser capaz de lidar com o problema
que provocou a crise, para desespero daqueles que viram naquela o fim do paradigma existente.
Noutras ocasiões, o problema oferece resistência mesmo a novas abordagens aparentemente radicais.
Nessa altura, os cientistas podem concluir que nenhuma solução estará para breve no presente estado
do campo de estudos. O problema é etiquetado e posto de parte para ser enfrentado por uma geração
futura que disponha de melhores ferramentas. Ou, finalmente, o caso que aqui mais nos interessa,
uma crise pode acabar com a emergência de um novo candidato a paradigma e com a batalha que se
segue relativa à sua aceitação.
T. Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, Guerra & Paz, 2009, pp. 120-123.

p. 238
Noção de objetividade 1
Partiu-se da hipótese de que a ciência reproduz operações cognitivas da experiência comum, mas
por uma forma sui generis. Fazemos a cada momento hipóteses, somos solicitados a provar o que
avançamos, servimo-nos de instrumentos, experimentamos, comunicamos o que sabemos. Aquilo que
caracteriza a ciência é introduzir constrangimentos suplementares que transformam todas estas prá-
ticas. (…) Antes de tudo o mais, a ciência é obra de indivíduos colaborando com outros indivíduos.
Procurou-se atentar nas implicações de ambas as coisas – a subjetividade e a socialidade – e nomeada-
mente na circunstância de as ciências se acharem quase permanentemente em situação de controvér-
sia. Se assim é, como se obtém e se garante a objetividade, ou seja, uma ciência que será a mesma para
todos porque se impõe da mesma maneira a todos? A história das ciências torna patente que a objetivi-
dade não é dada mas conquistada (…), que ela nunca é total e constitui a resultante de um conjunto de
fatores que não são todos interiores ao trabalho científico. (…) As suas linguagens distinguem-se das
línguas naturais, os seus métodos de observação e de representação, tal como o seu instrumentário,
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são-lhes próprios. (…) Assim, a medida é um elemento poderoso de objetivação, e por esse motivo se
quantifica: quantificar significa recorrer a uma linguagem matemática capaz de exprimir grandezas e
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de as medir. Torna-se por consequência necessário fabricar aparelhos com esta particular finalidade,

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em consonância com os quadros conceptuais dentro dos quais ocorrem as relações e as entidades que
se visa quantificar. Instrumentos, linguagens e teorias científicas coadaptam-se progressivamente. Mas
a instrumentação não se esgota nas operações de medida, a observação e a visualização dos fenómenos
requerem-na também; assim como a experimentação (…).
(…) As dificuldades da relação entre factos e teorias são conhecidas. Os factos constroem-se, não
são neutros relativamente às hipóteses e às teorias. Mas a objetividade exige uma certa independência
dos factos, que não podem revelar-se um mero decalque das teorias. Por outro lado, a ocorrência de
hipóteses explicativas diferentes põe-nas em competição e obriga a escolhas. O que leva a preferir uma,
preterindo outras, quando – como frequentemente acontece – nenhuma experiência crucial permite
decidir sem apelo num sentido determinado? Um terceiro problema, interior às teorias, reside na uni-
dade da ciência. Até que ponto continua ela a ser uma exigência de inteligibilidade? (…)
Uma vez formulada, a hipótese é posta à prova. As maneiras canónicas de o fazer chamam-se
demonstração, no que toca à parte matemática das teorias, e experimentação, no que se refere à sua
verificação. Mas a realidade da prova – a prova tal qual se faz – está longe de obedecer à racionalidade
estrita da demonstração e às regras da experimentação. Um largo setor da epistemologia contemporâ-
nea valoriza a argumentação persuasiva, as retóricas discursivas, as estratégias pragmáticas na repar-
tição do ónus da prova (…), a procura de consensos mais do que a suspensão prudente do juízo.
F. Gil, in F. Gil (coord.), A Ciência Tal Qual Se Faz, João Sá da Costa, 1999, pp. 11-12.

p. 238
Noção de objetividade 2
A objetividade sempre se opõe a algum aspeto da subjetividade, mas nem sempre ao mesmo. A sub-
jetividade tem muitas facetas – percetuais, cognitivas, emocionais. A objetividade que se opõe à subje-
tividade das débeis perceções humanas, substituindo os sentidos do observador humano por instru-
mentos difere significativamente da objetividade que se opõe à subjetividade de observadores
idiossincráticos através da sujeição dos dados a métodos estatísticos de análise. Estas duas formas de
objetividade não só podem ser conceptualmente distinguidas uma da outra, como podem também
puxar em duas direções diferentes. Os instrumentos científicos podem ser tão idiossincráticos como os
cientistas: vejam o tempo e o labor gastos a calibrar instrumentos ao longo do espaço e do tempo. E
quanto mais preciso o instrumento, maiores as dificuldades de calibragem. As idiossincrasias na obser-
vação – o que os astrónomos do século XIX chamavam a «equação pessoal» do observador individual
– pode tender tanto para um rigor acima da média como para um rigor abaixo da média. Adotar a
objetividade incorporada nos instrumentos científicos pode significar sacrificar a objetividade incorpo-
rada nos métodos estatísticos de análise, isto é, sacrificar a impessoalidade da observação ao rigor da
observação. É uma escolha! – uma escolha que possivelmente começou a verificar-se apenas em mea-
dos do século XIX – preferir a objetividade às outras virtudes epistemológicas como a verdade ou a
certeza. E, mesmo no interior do regime da objetividade, o cientista pode ter de escolher entre vários
tipos de objetividade.
L. Daston, in F. Gil (coord.), A Ciência Tal Qual Se Faz, João Sá da Costa, 1999, p. 83.
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 69

V DESAFIOS E HORIZONTES
DA FILOSOFIA
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S

p. 268
Espaço social
O facto de o espaço ter voltado nos últimos anos a adquirir importância para a análise da sociedade
não significa que o seu sentido se tenha tornado mais evidente. Pode estar a ocorrer justamente o con-
trário. A presença de elementos espaciais no discurso social – principalmente desde que a palavra
«globalização» se instalou como referência habitual – não obedece ao facto de se saber o que é o
espaço, mas sim ao de se o não saber com exatidão: como acontece com tantas coisas das quais não se
fala enquanto não se tornam problemáticas, tematiza-se e discute-se acerca do que noutros tempos e
noutras culturas era uma grandeza mais simples e mais familiar. Esta nova dificuldade de ler adequa-
damente o espaço resulta de ele ter deixado de ser uma dimensão silenciosa, um mero recipiente das
nossas ações. Já não reina em redor do espaço uma estável evidência desde que ele sofreu um processo
de virtualização que o converte, ao mesmo tempo e conforme for visto, numa coisa pouco menos que
irreal e carregada de uma grande significação. Tal como ocorre com outros fenómenos sociais (…),
também com o espaço acontece ter-se-nos tornado maximamente invisível no momento em que mais
visível era, como difícil se torna perceber o que é ruidoso e se faz notar em demasia.
A dificuldade de ver o espaço levou muitos a declarar o seu desaparecimento sem compreender que
o que aconteceu foi uma mudança de significação na relação do espaço com a sociedade.
D. Innerarity, A Sociedade Invisível, Teorema, 2009, pp. 101-102.

p. 268
Fazer política
Mas voltemos novamente (…) à pergunta primordial: porquê optar por fazer política, porquê inter-
vir nos assuntos coletivos com vontade de transformação social, em vez de nos contentarmos com a
perseguição dos nossos interesses privados, tentando maximizar as vantagens e diminuir os inconve-
nientes que o sistema estabelecido apresenta para a nossa vida pessoal? Em primeiro lugar, escolher a
política é aspirar a ser sujeito das normas sociais pelas quais se rege a nossa comunidade, não simples
objeto delas. Numa palavra, levar-se conscientemente a sério a dimensão coletiva da nossa liberdade
individual. A sociedade não é o ornamento irremediável da nossa vida, como a natureza, mas um
drama no qual podemos ser protagonistas e não só comparsas. Mutilar-nos da nossa possível atividade
política inovadora é renunciar a uma das fontes de sentido da existência humana. Viver entre seres
livres, não meramente resignados nem cegamente desesperados, é um enriquecimento subjetivo e
objetivo da nossa condição. Além disso, aumentar os benefícios que cada um obtém das instituições e
leis, melhorando por isso a sua aquiescência racional a elas, é uma garantia de segurança coletiva.
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Quanto maior é o equilíbrio de uma comunidade, a sua justiça, o reconhecimento que concede às exi-
gências razoáveis dos seus membros e à diversidade dos seus projetos, mais seguro é viver nela.
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Embora a vida em democracia seja sempre polémica, podem evitar-se os piores riscos do antagonismo

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social, a sua dimensão mais destruidora. Cara ao século XX, o desafio é conseguir reforçar as normas
institucionais da humanidade à escala planetária. Se alguma coisa deve ser globalizada, é precisamente
o reconhecimento efetivo do humano pelo humano. Mais de seis mil milhões de pessoas, crescente-
mente em intercomunicação de interesses e ameaças, não podem continuar a viver existências tribais,
nem a procurar criar ilhas de prosperidade amuralhada num oceano de desgraças e abandono.
Escolher a política é o passo pessoal que cada um pode dar, a partir da sua aparente pequenez que não
renuncia a procurar companheiros e cúmplices, para obter o melhor que for possível face às fatalida-
des supostamente irremediáveis.
F. Savater, A Coragem de Escolher, Dom Quixote, 2004, pp. 124-125.

p. 270
Sistemas e poder
Os sistemas tornam-se imunes à crítica assumindo-a. Para o poder, nada há melhor para neutrali-
zar uma rebelião que pôr-se ao seu lado. Quem hoje se manifestar contra alguém tem de contar que os
destinatários do protesto se declarem solidários com ele. Poderíamos afirmar que o poder de um sis-
tema está completo quando consegue introduzir a negação do sistema no próprio sistema. A nossa
sociedade deve a sua flexibilidade aos críticos, que já nada põem em perigo. Os meios de comunicação
cuidam do desvio e alimentam a inquietação da sociedade, isto é: a sua disposição para o conformismo.
Deste modo, quando a subversão é a corrente dominante, o mainstream, podemos encontrar revolu-
cionários a nadar no sentido da corrente, pessoas que falam nos meios de comunicação contra os
meios de comunicação, rotinas apresentadas como ruturas com a tradição e protestos que apenas
satisfazem o gozo da indignação. O underground foi introduzido no mainstream.
A economia é encenada eticamente; o marketing alia-se à subcultura; a crítica social é subvencio-
nada por instituições que deviam tremer perante a crítica… Todos estes fenómenos têm a mesma estru-
tura: a negação do sistema está introduzida no próprio sistema, que deste modo se tornou inatacável.
D. Innerarity, A Sociedade Invisível, Teorema, 2009, pp. 34-35.

p. 270
Meios de comunicação
Os meios de comunicação produzem na sociedade atual uma contínua presença de outros lugares,
o que nos incita à comparação, a adotar uma perspetiva externa. Já sabemos mais acerca da existência
de outros e, por isso mesmo, da relatividade da nossa própria posição, que é uma entre muitas. Estes
lugares estranhos funcionam como o espelho em que percebemos e julgamos o nosso próprio lugar. É
certo que dependemos do nosso ambiente espacial e dos que o habitam, mas as novas técnicas tornam-
-nos presente o longínquo e familiarizam-nos com outros lugares, de tal modo que põem em questão
o primado do local. (…) Aqueles que têm alguma coisa em comum podem-se entender mutuamente
ultrapassando as fronteiras territoriais e vencendo o afastamento no espaço. Esses interesses comuns
configuram uma verdadeira conversação da humanidade ou, se se preferir, a turbulência de uma
grande quantidade de conversações que se cruzam e sobrepõem sem que nenhuma instância central as
organize ou mantenha dentro de certos e determinados limites. Mercê dos meios de comunicação, o
contacto com pessoas afastadas é frequentemente mais rápido e mais fácil que com os nossos vizinhos.
Quando as relações humanas e as possibilidades de contacto estão menos limitadas aos fisicamente
próximos, mais se dilui a dependência imediata entre os homens.
(…) Já não estamos vinculados na mesma medida que noutros tempos à localidade como fonte de
informação, experiência, diversão ou segurança. O próprio lugar já não é necessariamente o cenário
central da vida. Neste contexto, as comunidades não desaparecem, mas libertam-se da sua dependência
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 71

de um território. A configuração de comunidades desligou-se gradualmente dos âmbitos espaciais, do


«princípio de proximidade espacial» (…). Com a dissolução dos espaços fechados, esfuma-se «o mito
da comunidade de vizinhos» (…). A comunidade já não deve ser entendida como uma trama local de
relações, como uma vizinhança. Os vínculos espaciais continuam reais, mas não constituem o único
tipo de relações. O telefone e o computador possibilitam a construção de «vizinhanças psíquicas» (…).
Já não pertencemos a uma única comunidade; a vida está repartida por uma pluralidade de redes,
nenhuma das quais pode pretender a exclusividade.
D. Innerarity, A Sociedade Invisível, Teorema, 2009, pp. 113-114.

p. 270
Poder da imagem
Onde quer que estejamos, ou onde vamos, se nos deparam coisas cuja finalidade é agarrarmos por
um braço e dizer-nos «olha para aqui!». O que está no cume da evolução da indústria não são as
máquinas e as organizações, são as técnicas que produzem e canalizam a atenção. A atenção tornou-se
o valor central da produção. O imperativo do êxito consiste simplesmente em conseguir um máximo
de atenção. Este imperativo terá de ser aplicado a qualquer atividade e a qualquer produto; «desenho»
e marketing são os conceitos-chave deste esforço estratégico, quer ele diga respeito a um programa
político ou a um artigo de consumo. O esmero posto na marca e no desenho dos produtos não tem a
simples missão de proclamar a sua existência, mas a subtil função de fazer que eles sejam adequados
para o encontro visual, para que se façam notar de uma maneira agradável. Para isso, não basta sur-
preender; é também preciso encenar a impressão de que o produto chamará as atenções de todos.
Muito anúncios procuram chamar as atenções representando que chamam as atenções: donas de casa
que são convencidas, observadores estupefactos, pessoas assombradas… Parece que o melhor procedi-
mento para conseguir qualquer coisa consiste em encenar o facto de tê-la conseguido – e isto também
acontece nos assuntos económicos.
D. Innerarity, A Sociedade Invisível, Teorema, 2009, p. 136.

p. 272
Tolerância e educação
Nas nossas sociedades pluralistas, a questão da educação cívica está diretamente ligada ao tema da
tolerância. Não há educação cívica que não fomente a tolerância democrática, mas não é a educação
cívica que tolera qualquer ideia ou conduta, isto é, que não distingue entre tolerância e indiferença
suicida. (…) Toda a educação é uma reflexão sobre a cultura efetivamente partilhada para procurar
nela aquilo que deve ser promovido e perpetuado. O objetivo da educação é a reprodução social cons-
ciente, não a tentativa de fotocopiar a ordem estabelecida até nos seus piores defeitos mas uma seleção
crítica dos seus aspetos científicos e valorativos mais promissores. No nosso caso, do que se trata é de
estabelecer o melhor, não de qualquer cultura ou de todas um pouco por igual mas da cultura demo-
crática. Nem todas as culturas são democráticas e, por isso, nem todas merecem o mesmo lugar e
reconhecimento na educação cívica: seria absurdo que educássemos os nossos jovens de igual modo
para um sistema parlamentar do que para um regime feudal, ou sem tomar partido entre a igualdade
de todas as pessoas e a discriminação por raça ou por sexo, ou concedendo o mesmo nível epistemoló-
gico ao método científico e à magia simpática dos xamanes. (…) Certos aspetos da vida podem ser
focalizados de diferentes perspetivas culturais: em geral, trata-se de questões relacionadas com o modo
de desfrutar a existência ou procurar a perfeição espiritual. (…) Mas no que toca às garantias e obriga-
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ções dos cidadãos, a pauta comum é, sem dúvida, imposta pelo marco constitucional democrático
baseado na declaração dos direitos humanos, que não pode ser abolido ou relativizado porque
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contrasta com certos costumes de grupos particulares dentro da sociedade. Depois de tudo, a demo-

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cracia moderna consistiu numa revolução contra numerosos e poderosos absolutos ancestrais e toda a
revolução afasta aspetos do passado para fundar a orientação do futuro. Seria absurdo que os países
democráticos, depois de terem superado revolucionariamente os absolutos antidemocráticos do seu
passado, aceitassem agora importá-los novamente em nome de uma tolerância que sabotaria os pres-
supostos políticos e culturais em que se baseiam as nossas sociedades.
F. Savater, A Coragem de Escolher, Dom Quixote, 2004, pp. 132-133.

p. 272
Limites da transparência
Entre o privado e o público há uma fronteira imprecisa. Devíamos assumir com realismo cético uma
certa opacidade do poder, tolerável se é capaz de proporcionar prosperidade e liberdade de forma imparcial.
Reclamamos transparência enquanto exigimos intimidade. Os limites imprecisos entre o público e
o privado, no entanto, tornam difícil atender a essas reivindicações contraditórias. Por um lado, a con-
tenda política estende-se até à vida pessoal dos cargos eleitos ou designados, submetidos ao escrutínio
minucioso ou ao assédio domiciliário; por outro, cada vez mais pessoas exibem sem pudor a sua inti-
midade nos media, para deleite culpado ou escândalo farisaico de audiências massivas. Reconciliar o
direito de acesso à informação pública com a proteção de dados pessoais é um desafio jurídico, mas
sobretudo um oximoro cultural.
Continuamos a defender retoricamente que o domínio público devia ser um recinto de vidro, trans-
parente ao exame do olhar comum, e o âmbito privado uma fortaleza hermética, blindada perante a
intrusão do Estado-Leviatã. Na realidade, a esfera pública – da legislação à diplomacia – é historica-
mente inseparável da opacidade ou da reserva, e o domínio privado sempre esteve submetido a uma
inspeção que hoje chegou ao seu paroxismo com a ubiquidade das câmaras e o registo digital das
comunicações, dos contactos ou das contas correntes. Talvez tenha chegado o momento de reconhe-
cer que a ética da responsabilidade autoriza a penumbra, e que a intimidade é uma invenção recente
que só podemos proteger reconhecendo os seus limites. (…)
Muitos dos que se escandalizam perante a difusão incontrolada dos dados pessoais colocam ima-
gens embaraçosas no seu mural do Facebook, praticam o sexting com WhatsApp e tuitam opiniões de
que rapidamente se envergonham, tudo enquanto procuram ampliar a sua lista de seguidores
(followers). As antigas violações do correio ou as escutas das linhas telefónicas foram substituídas pelo
processamento digital da informação contida nas redes sociais e nas bases de dados das empresas ou
arquivos públicos, e a proliferação imparável de telemóveis e máquinas fotográficas transformou-nos a
todos (…) em persons of interest: suscitamos o interesse do olho do Big Brother tal como as celebrida-
des se expõem à lente dos paparazzis. (…)
A busca da verdade foi substituída pela busca da notoriedade, e os 15 minutos de fama que Andy
Warhol prometia a cada um de nós exigem atualmente descobrir a tecla mágica que converte uma
mensagem em trending topic porque soube tornar-se viral ao entrar em sintonia com a inteligência
emocional da multidão, o que multiplica as visitas a um vídeo no YouTube porque apela ao humor ou
à curiosidade das massas, nesse género de democracia instantânea que a rede engendrou, transfor-
mando à sua passagem a política, a cultura ou o comércio devido ao crescimento exponencial dos
dados processáveis. (…)
Há meio século falávamos das «sete irmãs» para nos referirmos às sete grandes companhias que
dominavam a indústria do petróleo, e através dele a economia do planeta, mas hoje o petróleo que
move o mundo é a informação, e as sete irmãs contemporâneas respondem pelos nomes de Amazon,
Apple, eBAY, FaceBook, Google, Microsoft e Twitter.
Perante elas, e com a sua ajuda, em muitas cidades do Ocidente os jovens manifestam-se hoje
com a máscara – reinterpretada pela banda desenhada – de Guy Fawkes, um conspirador católico do
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 73

século XVII, e essa careta sorridente que lhes oculta as feições devia provocar tanta inquietação como
os capuzes do Ku Klux Klan ou as máscaras de terroristas (…). O protesto democrático não pode esca-
motear a identidade privada no âmbito público, e o anonimato nas ruas ou na rede é tão censurável
como a negação do rosto facilitada por um capacete policial ou imposta por uma burka islâmica.
A atabalhoada confusão entre o íntimo e o público é de tal natureza que os mesmos que exercem os
seus direitos políticos ou a força legítima ocultando a sua identidade estão dispostos a mostrar urbi et
orbi a sua vida privada, subvertendo a convencional separação entre essas duas esferas que fundamenta
as exigências de transparência pública e opacidade íntima. (…)
Hoje não precisamos de espreitar pelo buraco da fechadura para descobrir os segredos de cada casa,
porque as pessoas que lá moram já expõem a sua intimidade nas redes sociais ou nos media, enquanto
os assuntos públicos que a todos dizem respeito se escondem no labirinto de informação irrelevante ou
excessiva. Devíamos certamente aceitar com resignação que a reserva ou o pudor do cidadão privado
pertence ao passado e que a técnica nos fez a todos transparentes e frágeis; e assumir igualmente com
realismo cético uma certa opacidade do poder, tolerável se é capaz de proporcionar prosperidade e
liberdade de forma imparcial. (…)
O nosso ideal de felicidade doméstica é o recinto íntimo, o hortus conclusus dos clássicos ou o «a
minha casa é o meu castelo» dos anglo-saxões mas, de facto, vivemos na montra do Google, expostos à
abrasão do tráfego das redes sociais e sem outra «sala de pânico» que não seja a desconexão. Da mesma
forma, sonhamos com parlamentos transparentes, e quando tivemos que albergá-los/instalá-los em
edifícios históricos – como o Reichstag berlinês – o grande debate arquitetónico foi o da sua abertura
ao olhar vigilante dos cidadãos, mas o que é certo é que os legisladores, tal como o governo ou os tri-
bunais, são tão opacos atrás de um vidro como atrás de um muro. Enquanto continuarmos perdidos
entre o jardim vedado e a montra mediática será mais importante e urgente a reconstrução da respon-
sabilidade das elites do que a regulação da transparência do poder.
L. Fernández-Galiano, «Los límites de la transparencia», in El País, 09-08-2013 (traduzido e adaptado).

p. 274
Na hora de pôr a mesa

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:


o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
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sempre cinco.
J. L. Peixoto, A Criança em Ruínas, Quetzal, 2012.
74 C L U B E D A S I D E I A S 1 1

p. 276

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Viver uma vida ética
Suponhamos que escolho a minha própria felicidade como objetivo. Procuro alcançar este objetivo
de uma forma eficiente. Estou a viver uma vida ética? Por outras palavras, poderei ser puramente
egoísta e, ao mesmo tempo, igualmente ético? Eis uma razão – não necessariamente a única – para
dizer que poderá não ser o caso. Ao procurar a minha própria felicidade, posso interferir com outros
que estejam igualmente a procurar a sua felicidade. Talvez não tenha sequer pensado nesta possibili-
dade. Ou talvez, tendo pensado, a tenha posto de lado, considerando-a irrelevante, uma vez que, afinal
de contas, é com a minha felicidade que me preocupo, não com a dos outros. Em ambos os casos, não
fiz uma escolha ética. Agir eticamente é agir de um modo que se possa recomendar e justificar – isso,
pelo menos, parece fazer parte do próprio significado do termo. Ora, como posso eu recomendar e
justificar perante outros ações que se baseiam apenas no objetivo de aumentar a minha própria felici-
dade? Porque deverão as outras pessoas pensar que a minha felicidade é mais importante do que a
felicidade delas? Podem concordar quanto a eu ter alguma razão para promover a minha felicidade,
mas esse mesmo raciocínio levá-las-ia a promover os seus próprios interesses, não os meus – e isso é
precisamente o que eu não lhes recomendo, pois se elas forem tão obstinadas na defesa dos seus inte-
resses como eu sou na defesa dos meus, poderão interferir na minha procura dos meus próprios
interesses.
O argumento acabado de apresentar não mostra que seja irracional estar somente preocupado com
o interesse próprio, ignorando o impacto que temos sobre os outros. Mostra apenas que não pode ser
ético viver tal vida.
P. Singer, Como Havemos de Viver?, Dinalivro, 2006, pp. 306-309.

p. 278
Dilema do prisioneiro
(…) O nome [«O Dilema do Prisioneiro»] vem da forma como o quebra-cabeças é geralmente apre-
sentado: uma escolha imaginária que se apresenta a um prisioneiro. Há muitas versões. Eis a minha:
O leitor e outro prisioneiro jazem em celas separadas da Esquadra Principal da Polícia da Ruritânia.
Os agentes tentam fazer-vos confessar ter conspirado contra o Estado. Um interrogador vem até à sua
cela, serve um copo de vinho da Ruritânia, dá-lhe um cigarro e, num tom de amizade sedutora, pro-
põe-lhe um acordo.
– Confesse o crime! – exorta ele. – E se o seu amigo na outra cela…
O leitor protesta, alegando nunca ter visto antes o prisioneiro que se encontra na outra cela, mas o
interrogador ignora a objeção e prossegue:
– Ainda melhor, então, se ele não é seu amigo; pois, como eu estava a dizer, se o senhor confessar, e
ele não, usaremos a sua confissão para o engaiolar dez anos. A sua recompensa será a liberdade. Por
outro lado, se for estúpido ao ponto de se recusar a confessar, e o «amigo» na outra cela confessar, será
o senhor a ir para a prisão dez anos, e ele será libertado.
O leitor pensa nisto durante algum tempo e percebe que não tem informação suficiente para deci-
dir, por isso pergunta:
– E se confessarmos ambos?
– Então, e uma vez que não precisamos realmente da sua confissão, não sairá em liberdade. Mas,
tendo em conta que estavam a tentar ajudar-nos, passarão os dois oito anos na cadeia.
– E se nenhum de nós confessar?
T E X T O S C O M P L E M E N TA R E S 75

Uma expressão de desdém perpassa o rosto do interrogador e o leitor receia que ele esteja prestes a
golpeá-lo. Mas o homem controla-se e rosna que, então, uma vez que não terão provas para a condena-
ção, não poderão manter-vos lá dentro muito tempo. Mas acrescenta:
– Não desistimos facilmente. Ainda podemos manter-vos aqui seis meses, a interrogar-vos, antes de
os sacanas da Amnistia Internacional conseguirem pressionar o governo para vos tirar daqui. Portanto,
pense no assunto: quer o seu colega confesse, quer não, o senhor ficará melhor se confessar do que se
não o fizer. E o meu colega vai dizer a mesma coisa ao outro tipo, agora mesmo.
O leitor reflete no que ele disse e compreende que o guarda tem razão. Faça o que fizer o estranho
na outra cela, o leitor ficará melhor se confessar. Se ele confessar, a sua escolha é entre confessar tam-
bém, e apanhar oito anos de prisão, ou não confessar, e passar dez anos atrás das grades. Por outro
lado, se o outro prisioneiro não confessar, a sua escolha é entre confessar, e sair livre, ou não confessar,
e passar seis meses na cela. Portanto, parece que o melhor a fazer é confessar. Mas, então, ocorre-lhe
outro pensamento. O outro prisioneiro está exatamente na mesma situação. Se, para si, é racional
confessar, também será racional para ele confessar. Assim, passarão ambos oito anos na cadeia. Por
outro lado, se ninguém confessar, ambos ficarão livres dentro de seis meses. Como pode ser que a esco-
lha que parece racional, para cada um dos dois, individualmente – ou seja, confessar – vos prejudique
mais a ambos do que se decidirem não confessar? O que deve fazer?
Não há solução para o Dilema do Prisioneiro. De um ponto de vista puramente do interesse próprio
(aquele que não toma em consideração os interesses do outro prisioneiro), é racional, para cada prisio-
neiro, confessar – e se cada um fizer o que é racional do ponto de vista do interesse próprio, ficarão
ambos pior do que ficariam se tivessem escolhido de outro modo. O dilema prova que quando cada um
de nós, individualmente, escolhe aquilo que é do seu interesse próprio, pode ficar pior do que ficaria se
tivesse sido feita uma escolha que fosse do interesse coletivo.
P. Singer, Como Havemos de Viver?, Dinalivro, 2006, pp. 242-244.
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