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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, vol.

40, nº 1, e1602 (2018) História da Fı́sica e Ciências Afins


www.scielo.br/rbef cb
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0175 Licença Creative Commons

O Sonho de Johannes Kepler: uma tradução do primeiro


texto de hard sci-fi
The Dream by Johannes Kepler: a translation of the first hard sci-fi text

Jair Lúcio Prados Ribeiro∗1


1
Universidade de Brası́lia, Instituto de Quı́mica, Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências, Brası́lia, DF, Brazil

Recebido em 29 de Maio, 2017. Revisado em 20 de Junho, 2017. Aceito em 28 de Junho, 2017.


O artigo apresenta uma tradução do texto póstumo de Johannes Kepler, intitulado Somnium, o qual foi
publicado em 1634. Apesar de ter sido originalmente publicado como um tratado sobre a astronomia lunar, o
formato do texto permite classificá-lo também como um precursor da ficção cientı́fica moderna. São sugeridas
também algumas atividades pedagógicas, adequadas para a educação básica, que poderiam ser desenvolvidas a
partir do manuscrito.
Palavras-chave: história da astronomia, história da ciência, Johannes Kepler, ficção cientı́fica.

The article presents a translation of Johannes Kepler’s posthumous text entitled Somnium, which was published
in 1634. Although it was originally published as a treatise on lunar astronomy, the format of the text also allows it
to be classified as a forerunner of modern science fiction. Also, some pedagogical activities are suggested, suitable
for basic education, which could be developed from the manuscript.
Keywords: history of astronomy, history of science, Johannes Kepler, science fiction.

1. Introdução mais tarde. Kepler tomou então a decisão de reescrever


o manuscrito a partir do contexto de um sonho – daı́
No terceiro episódio da clássica série de divulgação ci- o adequado tı́tulo Somnium. Da influente análise de
entı́fica Cosmos – a personal voyage [1], intitulado A Marjorie Nicolson [4] sobre a forma final desse manuscrito,
harmonia dos mundos, o apresentador e astrônomo Carl depreende-se que a autora o entende como um trabalho
Sagan reconta a turbulenta vida de Johannes Kepler que não pode ser negligenciado na história das teorias
(1571-1630). Na passagem que encerra o episódio, Sagan astronômicas sobre a Lua, descrevendo-o como o primeiro
correlaciona a chegada do homem à Lua e a sonhada texto no qual uma viagem espacial é abordada a partir
expansão da humanidade pelo espaço com um onı́rico da ciência moderna e classificando-o como uma fonte
escrito póstumo de Kepler sobre a astronomia lunar, in- primária para as diversas “viagens cósmicas” que vieram
titulada Somnium [2] – literalmente, O Sonho (Figura a ser escritas durante o século XVII e XVIII – em especial,
1). o livro L’Histoire comique des États et Empires de la
Apesar de não ser exatamente obscura, a obra em Lune [5] 1 , publicado em 1655, de autoria do francês
questão não figura entre os escritos mais conhecidos Cyrano de Bergerac (1619-1655).
desse filósofo natural. De acordo com Anderson [3], Ke- Não nos causa consternação, portanto, que Gingerich
pler começou a desenvolver o manuscrito de Somnium [6] e Swinford [7] se refiram ao curto tratado de Kepler 2
ainda como estudante na cidade alemã de Tübingen como uma obra de ficção cientı́fica. Embora tal termo
em 1593. Nessa primeira versão, o filósofo natural em seja de difı́cil definição – dada a ampla variedade de
formação buscava desenvolver uma argumentação a favor obras, em diferentes mı́dias, que são açabarcadas pelo
do sistema heliocêntrico copernicano. Para isso, Kepler mesmo – entendemos que obras de ficção cientı́fica lidam,
descreveu os movimentos aparentes da Terra a partir de via de regra, com as consequências da ciência sobre a
uma Lua “estacionária”, uma consideração que levava sociedade ou sobre indivı́duos particulares; ou ainda,
a um importante corolário: se a Lua se adequava como como Johnson [8] afirma, “a ficção cientı́fica nos fornece
base para a construção de teorias sobre tais movimentos uma linguagem para falarmos sobre o futuro” (p.91). O
(ainda que ela não estivesse estacionária na realidade), o texto Somnium, a nosso ver, pode ser interpretado a
mesmo poderia ser verificado para a Terra. partir de tais definições, na medida em que Kepler o
A oposição à polêmica tese de Kepler foi veemente no construiu como um relato de uma viagem ficcional para a
âmbito da sua universidade, fazendo com que o filósofo
1
natural só pudesse vir a retrabalhar o texto dezesseis anos Tı́tulo em português: História cômica dos Estados e Impérios da
Lua.
∗ Endereço de correspondência: jairlucio@gmail.com. 2 Na versão original em latim [2], o texto tinha vinte e oito páginas.

Copyright by Sociedade Brasileira de Fı́sica. Printed in Brazil.


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2001 a space odyssey [10] 6 de Arthur Clarke (1917-2008)


e Tau zero [11] 7 , de Poul Anderson (1926-2001).
Nesse âmbito, o divulgador cientı́fico Marcelo Gleiser
[12] destaca que o texto de Kepler apresenta um caráter
mágico e sobrenatural no tocante ao deslocamento para a
Lua, fato que o afastaria da ficção cientı́fica hard; todavia,
Gleiser também ressalta que a análise astronômica dos
fenômenos celestiais observados do ponto de vista dos
seres lunares se apoiava nas teorias cientı́ficas de então, al-
gumas desenvolvidas pelo próprio Kepler. Ainda segundo
Gleiser, Kepler chegou até mesmo a antecipar alguns
aspectos da teoria darwiniana, ao imaginar a adaptação
dos seres lunares aos diferentes ambientes em que eles
viveriam. Vem daı́ a afirmação de Bozzetto [13], para
quem “Somnium pode ser visto como um importante
ancestral geral da ficção cientı́fica hard da atualidade”
(p.370).
Durante a vida de Kepler, Somnium circulou apenas
na forma de manuscrito, a partir de cópias “piratas” de
uma versão de 1609 [3]. O manuscrito não ganhou tanta
notoriedade quanto seu autor a princı́pio desejava, mas
repercutiu negativamente no julgamento eclesiástico ao
qual a mãe de Kepler foi submetida em 1615, sob a
acusação da prática de bruxaria. Algumas passagens do
manuscrito foram citadas então como evidências em tal
julgamento, pois Kepler atribuiu em Somnium a viagem
Figura 1: Capa do manuscrito original [2]. da Terra à Lua aos poderes mágicos da mãe. Assim, após
a árdua via crucis burocrática enfrentada pelo filósofo
até a absolvição de sua genitora, Kepler decidiu reelabo-
Lua mais de três séculos antes de tal jornada efetivamente
rar novamente o texto, incluindo um amplo conjunto de
ocorrer. Frisa-se ainda que essa viagem espacial entre os
notas explicativas (223 ao todo) ao manuscrito original
dois corpos do Sistema Solar também está presente na
– conforme o próprio autor relata, havia praticamente
clássica obra De la Terre à la Lune [9] 3 , publicada em
uma nota por sentença [3] – escritas ao longo da sua
1865 pelo romancista francês Jules Verne (1828-1905). O
última década de vida. Essas notas conferem um caráter
livro em questão é considerado como uma obra de ficção
mais formal ao texto, e permitem insights sobre as te-
cientı́fica desde a sua publicação inicial, estabelecendo um
orias de Kepler – por exemplo, em uma das notas, ele
paralelo importante para que se possa falar de Somnium
considera que a atração entre dois corpos celestes era
como uma obra sci-fi 4 .
inversamente proporcional à distância e não ao quadrado
Grosso modo, há duas vertentes principais na ficção
da distância, como Isaac Newton (1643-1727) viria a
cientı́fica, definidas na lı́ngua inglesa pelos termos soft
descrever posteriormente.
ou hard. Como essa própria nomenclatura permite an-
De acordo com Christianson [14], o artifı́cio narrativo
tever, a ficção cientı́fica soft trata a ciência com menor
de colocar o texto no enquadramento de um sonho tinha
rigor, chegando por vezes a desconsiderar ou subverter
duas justificativas principais: haveria uma menor objeção
por completo as teorias cientı́ficas atuais. Exemplos desse
dentre aqueles que defendiam o sistema ptolomaico, ao
estilo de narrativa incluem a obra supracitada de Cyrano
apresentar a ideia como um delı́rio incontrolável, advindo
de Bergerac [5] e a “ópera espacial” cinematográfica Star
da letargia, permitindo afastar a defesa do sistema co-
Wars 5 , lançada em 1977. Já as obras classificadas como
pernicano de uma argumentação herética; e consentiria
ficção cientı́fica hard são aquelas nas quais o autor de-
a Kepler a introdução de um agente mı́tico (chamado
monstra uma maior preocupação com o ideário cientı́fico,
Daemon no texto), o qual seria capaz de transportar
buscando compatibilizá-lo com a história a ser contada
humanos para a superfı́cie lunar.
e, por vezes, conferindo-lhe grande destaque no enredo.
Pode-se afirmar que Kepler tinha a intenção de su-
Dois exemplos proeminentes de hard sci-fi são os livros
pervisionar a publicação do manuscrito: afinal, em 1630,
quando adveio sua súbita morte, seis páginas do mesmo
já haviam sido impressas [14]. Após seu falecimento, as
condições econômicas precárias da sua viúva induziram
3 Tı́tulo em português: Da Terra à Lua. seu filho Ludovico (ou Ludwig, em alemão) a publicar
4 Sci-fi é uma abreviatura tradicionalmente usada em inglês para
se referir à expressão science fiction. 6 Tı́tulo em português: 2001 uma odisseia no espaço.
5 Tı́tulo em português: Guerra nas Estrelas. 7 Tı́tulo em português: Tau zero.

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o volume póstumo em 1634. Nessa versão em latim, a Ao contrário, o curto texto de Somnium é, a nosso ver,
qual se encontra disponı́vel na ı́ntegra na internet [2] bastante fluido e de leitura rápida, caracterı́sticas que
em uma digitalização do livro original, estão incluı́dos o tentamos reproduzir na tradução que aqui apresentamos.
texto Somnium e o extenso conjunto de notas do autor, Apesar de termos tomado como base para a elaboração
além de apêndices sobre a geografia lunar e uma obra do dessa tradução a versão para o inglês de Falardeau [17],
historiador e filósofo grego Plutarco De Facies in orbe na medida em que nosso domı́nio do latim cientı́fico é
lunae 8 , a qual foi traduzida da lı́ngua grega para a latina precário, buscamos também consultar a versão original
pelo próprio Kepler. [2] de 1634 para conferir como Kepler escrevia alguns
De acordo com Rosen [15], Somnium foi republicado termos. Admitimos também que, para um melhor entendi-
em latim apenas no século XIX. Duas versões parciais mento de passagens e contextos especı́ficos, consultamos
para o alemão foram apresentadas em 1871 e 1898, en- por vezes a tradução elaborada por Rosen [15]. Também
quanto uma tradução completa para o inglês só veio a foram de grande auxı́lio para a elaboração dessa tradução
ser publicada em 1965 por Kirkwood e Lear [16], sendo os resumos crı́ticos presentes nos textos de Nicolson [4]
esta brevemente seguida, dois anos depois, pela tradução e Christianson [14], os quais se revelaram bastante ex-
de Rosen [15]. Entretanto, durante a nossa pesquisa, to- plicativos, facilitando nossa interpretação de passagens
mamos conhecimento de uma tradução anterior para o do texto original. Para melhor compreensão de algumas
inglês elaborada por Falardeau [17], a qual não é mencio- frases, decidimos ainda pela inserção de algumas palavras
nada por Rosen. Usamos essa versão como base para a ou expressões, as quais estão identificadas entre colchetes.
nossa tradução, na medida em que a mesma se encontra Três narradores estão presentes na história de Som-
disponı́vel on-line e se encontra em domı́nio público. Tal nium: o primeiro narrador (no nosso entendimento e
tradução foi desenvolvida de forma independente pelo também de Nicolson [4], o próprio Kepler) inicia a história,
reverendo Normand Falardeau em 1962 9 , o qual a elabo- descrevendo que caiu no sono enquanto lia sobre a história
rou como parte da sua dissertação de mestrado. O autor, da Boêmia. Durante o sonho, ele se encontra lendo um
entretanto, não a publicou no formato de um livro tradici- livro que ele teria comprado em Frankfurt, um relato
onal, razão que contribuiu para a sua relativa obscuridade autobiográfico de um segundo narrador, chamado Dura-
em relação às traduções supracitadas. Vale destacar que, cotus – o qual Nicolson [4] defende ser também o próprio
no resumo de seu texto, Falardeau justificou o resgate do Kepler, dadas as similaridades biográficas expostas no
seminal texto de Kepler devido ao papel de protagonista texto. O islandês Duracotus reconta então suas viagens
que a Lua havia adquirido durante a década de 1960, a e seus estudos sobre a astronomia, realizados sob a su-
qual foi dominada pela corrida espacial e culminou com pervisão de Tycho Brahe (um personagem histórico real,
a chegada de uma missão norte-americana ao satélite em crucial também na biografia de Kepler), até que final-
1969. mente ele se reúne com a mãe Fiolxhilda, a qual exibe
Desconhecemos a existência de uma tradução de Som- caracterı́sticas de uma feiticeira ou, ao menos, mı́stica
nium para o português, daı́ nossa intenção em apresentá- (o paralelo com a mãe de Kepler, acusada de bruxaria,
la no artigo presente. Entretanto, ainda que tal tradução também é notável nessa passagem). A mãe de Duraco-
já exista, consideramos que novos esforços de tradução tus evoca então uma entidade, nomeada Daemon, que
são sempre louváveis, na medida em que permitem a re- assume o papel de terceiro narrador do texto, descre-
discussão do texto original e mesmo a comparação entre vendo a viagem até a Lua e também as caracterı́sticas
as traduções existentes. da geografia lunar e da vida daqueles que lá habitam.
Cabe frisar de antemão que, para os fins desse ar- Para facilitar o entendimento do leitor, vale destacar
tigo, apresentamos a tradução apenas do manuscrito de antemão que, ao longo do texto, Kepler se refere à
original em si. As notas explicativas, embora relevantes, Lua como uma “ilha nas alturas”, chamada Levânia. Já
exigiriam um trabalho adicional de proporções monu- os seres que habitam a superfı́cie da Lua se referem à
mentais, e o tamanho do texto resultante provavelmente Terra como Volva. Dois hemisférios lunares, com carac-
não seria adequado, a nosso ver, às dimensões dos arti- terı́sticas geográficas e celestiais bastante distintas, são
gos dessa publicação, exigindo um formato alternativo referenciados: o hemisfério Subvolva, cuja face está sem-
– quiçá um livro. Ademais, na busca de uma compatibi- pre voltada para a Terra, e o hemisfério Privolva 10 , cuja
lidade com o escopo dessa revista, consideramos que a face está voltada para o lado oposto à Terra. Tal oposição
pequena extensão do texto o qualifica para uso em aulas no posicionamento em relação à Terra leva a fenômenos
de fı́sica na educação básica, conforme argumentamos bastante diferentes nesses dois hemisférios, em especial
nas considerações finais desse trabalho. Recomendamos no tocante à duração do dia e da noite, à temperatura
ao leitor que deseje consultar tais notas a leitura da obra ambiente e à possibilidade de observação de eclipses.
de Rosen [15], que as apresenta na ı́ntegra; alertamos, Cabe frisar ainda, antes de apresentarmos a tradução
entretanto, que o próprio tradutor inclui suas próprias em si, que a defesa pelo uso da ficção cientı́fica em aulas
notas e comentários acerca das notas de Kepler, fato que de fı́sica já possui tradição na literatura acadêmica em
torna a leitura bastante densa e, por vezes, fastidiosa.
10 Kepler utiliza em Somnium também adjetivos pátrios referentes
8 Tı́tulo em português: As faces da Lua. a Subvolva e Privolva. Nessa tradução, decidimos pelo uso de
9 O reverendo Normand Raymond Falardeau faleceu em 2004. subvolvanianos e privolvanianos para tais adjetivos.

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ensino de ciências: ainda nos anos 1980, o livro de Dubeck os cumes mais baixos do Monte Hekla, especialmente por
et al. [18] já defendia a discussão de filmes sci-fi em sala de volta da época da festa de São João, quando o Sol ficava
aula, argumentando que tanto estudantes de graduação visı́vel por vinte e quatro horas e não deixava espaço para
quanto de ensino médio tendem a preferir a fantasia à a noite. Ela recolhia muitas ervas e em casa as cozinhava,
ciência, fazendo com que tal estratégia ajude a superar durante vários ritos religiosos. Ela fazia pequenos sacos
a apatia em relação às ciências naturais. Já Dark [19] de pele de cabra e, quando estes eram preenchidos com
argumenta que atividades em aulas de ciência inspiradas misturas de ervas, ela os levava para o porto vizinho, para
pela ficção cientı́fica encorajam o pensamento criativo e serem vendidos e assim aplacar os capitães dos navios.
podem ser usadas para desenvolver habilidades de escrita, Dessa forma, ela fornecia seus próprios meios de sustento.
enquanto Piassi e Pietrocola [20] propõem ir além do Por curiosidade, durante uma ocasião, abri um dos
método didático da ”busca por erros”11 em obras de sacos. Minha mãe, sem saber o que tinha acontecido,
ficção cientı́fica (tanto literárias quanto cinematográficas), vendeu-o. Eu havia retirado as ervas do [saco de] te-
na medida em que a esse modelo de ficção constitui cido de linho, o qual era ornamentado com bordados e
uma modalidade especı́fica de discurso sobre a ciência, apresentava vários sı́mbolos. Entretanto, ao abrir este
nas quais as questões cientı́ficas são discutidas sob um saco, eu a tinha defraudado de seu lucro. Minha mãe,
contexto de influência sociocultural. Assim, acreditamos inflamada de raiva, disse que me daria ao comandante
que disponibilizar tal tradução pode contribuir para novas [como serviçal] em lugar do saco, a fim de que ela pudesse
propostas de ensino de fı́sica, algumas das quais estão ficar com o dinheiro. No dia seguinte, inesperadamente,
citadas nas considerações finais desse artigo. o capitão levantou as velas [do barco] e zarpou do porto,
sob um vento favorável, rumo à ilha da Noruega. De-
pois de vários dias sob o vento ascendente do norte, o
2. Tradução
navio foi levado [para as águas] entre a Noruega e a In-
2.1. O Sonho glaterra. Atravessou esse canal e dirigiu-se então para
a Dinamarca, porque [o capitão] tinha [em seu poder]
Em 1608, quando as discórdias se desencadearam entre cartas de um bispo islandês, as quais deveriam ser entre-
os dois irmãos, o prı́ncipe Rodolfo II e o arquiduque gues a Tycho Brahe, o dinamarquês, que vivia na ilha de
Matias, a população examinou suas ações, comparando- Hveen. Eu era então um menino de catorze anos e estava
as com exemplos tirados da história da Boêmia. Naquela ficando gravemente doente, devido ao balanço do navio
época, fui impulsionado pela mesma curiosidade e passei e à temperatura incomum do ar. Quando [a carga do]
a me dedicar ao estudo das lendas boêmias. Quando me navio havia sido desembarcada, assim como as cartas,
deparei com a lenda do virago lı́bio, tão celebrado na o capitão me deixou na casa de um pescador da ilha e
arte da magia, algo aconteceu. Certa noite, depois de voltou a navegar, com a promessa de retornar [para me
ter contemplado atentamente a Lua e as estrelas, eu me buscar].
sentei pacificamente na minha poltrona e caı́ num sono Depois que as cartas lhe foram entregues, Brahe começou
bastante profundo. Em meu sonho, eu parecia pegar um a me fazer muitas perguntas, em um tom muito alegre.
livro da estante a fim de lê-lo. O teor do livro era o Eu não o entendia, porque eu não conhecia a lı́ngua [di-
seguinte: namarquesa], exceto por algumas palavras. Ele dedicava
Meu nome é Duracotus e minha pátria a Islândia, cha- todo o seu tempo para os seus alunos, os quais ele cuidava
mada Thule pelos antigos. Minha mãe, Fiolxhilda, morreu em grande número. Através do intermédio de Brahe, eles
recentemente, deixando-me livre para escrever algo que podiam frequentemente falar comigo. Depois de algumas
eu já desejava ardentemente produzir. Enquanto viveu, semanas de prática, comecei a falar dinamarquês de uma
ela diligentemente cuidou para que eu não escrevesse forma tolerável. Eu não estava menos preparado para res-
[esse texto], pois ela dizia que havia muitos maliciosos pondê-los do que eles estavam para me questionar. Fiquei
usurpadores das artes que, por não entenderem nada, maravilhado com muitos objetos [e assuntos] desconhe-
devido à ignorância de suas mentes, as deturpavam e cidos. Eu então relatei diversos acontecimentos recentes
faziam leis prejudiciais para a raça humana. Sob essas na minha pátria aos meus admiradores.
leis, muitos homens certamente haviam sido condenados Finalmente, quando o capitão do navio voltou para me
e engolidos nos abismos de Hekla. O nome do meu pai ela levar de volta, Brahe me manteve [ao seu lado]. Isso me
nunca me disse. Ela afirmava que ele era um pescador, o deixou extremamente feliz.
qual tinha morrido na idade de cento e cinquenta, quando Os exercı́cios astronômicos me agradavam em grau ex-
eu tinha três anos de idade. Eles estiveram casados por traordinário. Durante noites inteiras, Brahe e seus alunos
setenta anos, mais ou menos. se dedicavam ao estudo da Lua e das estrelas, usando
Na minha infância, minha mãe me guiava pela mão ou, máquinas maravilhosas. Essa prática trouxe minha mãe
me levantando nos braços, frequentemente me trazia para de volta à mente, pois ela também conversava com a Lua
11 Devemos frisar, entretanto, que consideramos válido tal método de maneira frequente. Devido a esse fluxo de acontecimen-
didático de comparar a ficção com a realidade, destacando seus tos, embora eu fosse considerado quase um semibárbaro,
erros e acertos, e inclusive propomos nas considerações finais desse devido ao lugar em que nasci e das minhas indigentes
artigo uma aplicação dessa prática didática a partir do texto aqui circunstâncias, cheguei ao conhecimento sobre a mais
traduzido.

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divina das ciências, [a astronomia], preparando o meu lugares, como se estivéssemos presentes lá. Ele, [o Da-
caminho para realizações maiores. emon], relatou para mim muitos fatos sobre os objetos
Depois de viver na ilha de Hveen por vários anos, eu que você examinou com seus olhos, aceitos a partir de
ansiava por revisitar minha terra natal. Devido [ao conhe- relatos ou extraı́dos de livros. Eu gostaria, especialmente,
cimento sobre] a ciência que eu havia adquirido, supus que você se tornasse um espectador, e [também] meu
que não me seria difı́cil alcançar até mesmo algum grau companheiro, daquela região sobre a qual ele me contou.
honorı́fico em minha própria nação de homens inexperien- Quão maravilhosas eram aquelas coisas que ele me disse
tes. Pedi uma permissão para me afastar do meu patrão sobre essa [região]! Ele havia conjurado Levânia.
[Tycho Brahe], despedi-me dele e fui a Copenhague. Meus Sem demora, concordei que ela deveria convocar seu
companheiros de viagem livremente me levaram sob sua professor. Sentei-me então no conselho, preparado para
proteção, devido à minha familiaridade com sua lı́ngua e ouvir não só o propósito da viagem mas também a des-
seu paı́s. Retornei para casa cinco anos depois de eu ter crição da região. A região se encontrava na [estação da]
partido. primavera. A partir do momento em que a Lua estava
Minha primeira fonte de alegria ao retornar foi des- [na fase] crescente, ela começava a brilhar, pois enquanto
cobrir que minha mãe ainda estava viva e continuava a a Lua estava [na fase] crescente, o Sol há havia se es-
prestar os mesmos serviços que ela anteriormente fazia. condido sob o horizonte, unindo-se ao planeta Saturno
Na medida em que eu ainda estava vivo e provido de no signo de Touro. Minha mãe, afastando-se de mim na
um meio de subsistência, [meu retorno] pôs um fim à encruzilhada mais próxima e soltando poucas palavras,
sua contı́nua tristeza por ter abandonado seu filho em apresentou seu pedido em um intenso clamor. Depois
um ataque de raiva. O outono estava se aproximando, que ela completou o cerimonial, ela retornou e, exigindo
e aquelas longas noites nossas [da Islândia] estavam se silêncio com a palma da mão direita estendida, sentou-se
aproximando. Em dezembro, o Sol mal se levantava um junto a mim. Mal tı́nhamos enrolado nossas cabeças com
pouco ao meio-dia, estando novamente escondido da vista. um pano (como era o costume), quando eis que surgiu o
Minha mãe permanecia perto de mim, agora que ela es- estertor de uma voz rouca e cantarolada, a qual imedi-
tava livre de seu trabalho, e não me deixava [só], não atamente começou a relatar a história a seguir, mas na
importando onde eu fosse. Por causa de minhas cartas lı́ngua islandesa.
de recomendação, fui interrogado sobre as terras que eu
havia visitado, e [ouvi] até mesmo perguntas sobre os 2.2. Daemon 12
de Levânia
céus. Minha mãe tinha prazer em comparar a extensão
do conhecimento que eu havia adquirido e o [conheci- A ilha de Levânia está localizada a cinquenta mil mi-
mento] que ela mesma descobriu como verdadeiro. Ela lhas alemãs para o alto da atmosfera. O caminho para
declarava que agora estava pronta para morrer, para que esta ilha a partir da nossa Terra, e vice-versa, é muito
pudesse tornar seu filho o herdeiro daquela informação raramente transposto; entretanto, quando é acessı́vel, [a
que apenas ela possuı́a. jornada] é fácil para o nosso povo. Todavia, o transporte
Por natureza, eu tinha uma verdadeira sede de apren- de homens, unido como é ao maior perigo de vida, é mais
der coisas novas. Assim, eu perguntei a minha mãe sobre difı́cil. Não admitimos homens sedentários, corpulentos
sua arte, e sobre quais professores em nosso paı́s se des- ou fastidiosos neste séquito. Preferimos aqueles que pas-
tacavam acima do resto. Então, num certo dia, quando sam o seu tempo cavalgando velozes cavalos de forma
havia tempo livre para ela falar, ela repetiu da seguinte persistente, ou [aqueles] que navegam para as Índias com
forma tudo o que sabia, desde o inı́cio: Duracotus, meu frequência, acostumados a subsistir com pães velhos re-
filho, o conhecimento está disponı́vel não só nas outras quentados, alho, peixe seco e outros pratos desagradáveis.
provı́ncias para as quais você viajou, mas também em Há mulheres mais velhas, exauridas, que são especial-
nossa própria pátria. Você me fez perceber o encanta- mente adequadas para o nosso propósito. A razão para
mento de outras regiões. Entretanto, ainda que tenhamos isso é bem conhecida. Desde a infância, tais pessoas estão
frieza, escuridão e outros desconfortos que agora me opri- acostumadas a pastorear cabras, ou usar mantos, en-
mem, ainda assim abundamos em pessoas com talento. quanto trafegam através de passagens estreitas e pela
Temos entre nós espı́ritos muito dotados, os quais evita- imensa extensão da Terra. Embora os alemães não se-
ram a maior luz de outras regiões, assim como o tagarelar jam adequados, não rejeitamos os corpos ressequidos dos
dos homens, e, [ao contrário], buscaram nossas áreas som- espanhóis.
breadas para conversar familiarmente conosco. Destes Toda a viagem, por mais distante que possa ser, é com-
espı́ritos, nove foram importantes. Um deles, de longe o pletada em um máximo de quatro horas. Nosso horário
mais gentil e mais inocente, foi particularmente conhe- de partida acontece quando estamos mais ocupados, an-
cido por mim. Este espı́rito me foi revelado por vinte tes que a Lua comece seu eclipse em sua seção oriental.
e um sinais. Muitas vezes, em uma fração de segundo, Se a Lua se tornar cheia enquanto ainda estivermos em
eu fui transportada pelo seu poder para outras paragens nosso caminho, nossa viagem de retorno é impossı́vel. A
que eu escolhi para mim. Mesmo que eu estivesse afas-
12
tada de certos lugares por causa de sua distância, [ainda Apesar da similaridade fonética com a palavra demônio, a palavra
assim] eu ganhava entendimento perguntando sobre tais latina Daemon está mais associada a uma divindade, espı́rito ou
entidade.

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ocasião se torna tão breve que temos poucos humanos os homens testemunham o eclipse do Sol. A partir disso,
[entre nós] e [praticamente] nenhum dos outros seres, explica-se porque os eclipses do Sol são tão temidos [entre
exceto aqueles mais úteis para nós. Formando uma co- os habitantes de Levânia].
luna, pegamos qualquer homem deste tipo e todos nós o Como consequência, estes comentários serão feitos so-
empurramos para cima, levantando-o para as alturas. O bre a viagem ao longo da [própria] Levânia. Falarei sobre
choque inicial é a pior parte desse evento para ele, pois a própria forma da provı́ncia, começando como fazem
[o homem] é girado para cima como se [fosse lançado os geógrafos, a partir dos eventos que lhe acontecem de
por] uma explosão de pólvora, voando então acima de cima.
montanhas e mares. Por isso, ele deve ser drogado com Mesmo que toda Levânia tenha a aparência de que há
narcóticos e opiáceos antes de seu voo. Seus membros estrelas fixas em comum conosco, observamos, contudo,
devem ser cuidadosamente protegidos, a fim de que eles muitos movimentos e um número de planetas diferentes
não sejam separados dele (o corpo [separado] das pernas, daqueles que vemos da Terra, fazendo com que toda a
a cabeça [separada] do corpo) e para que o recuo não astronomia deles tenha outro significado.
venha a se espalhar em cada membro de seu corpo. Então, Assim como os geógrafos dividem o globo terrestre
ele enfrenta novas dificuldades, como um frio intenso, e em cinco zonas devido aos fenômenos celestes, Levânia
[tem a] respiração prejudicada. Estas circunstâncias, as também é constituı́da por dois hemisférios, o Subvolvania-
quais são naturais aos espı́ritos, são aplicadas de maneira nos e o outro dos Privolvanianos. Destes dois hemisférios,
forçada ao homem. Nós continuamos em nosso caminho os Subvolvanianos sempre veem Volva, ou nossa Terra,
colocando esponjas umedecidas cobrindo nossas narinas. a qual, para eles, é como nossa Lua, enquanto os Pri-
Quando a primeira seção da viagem se completa, nosso volvanianos estão completamente privados da visão de
deslocamento se torna mais fácil. Assim, expomos nossos Volva. O cı́rculo que divide seus hemisférios, semelhante
corpos livremente ao ar e afastamos nossas mãos. Todos ao coluro 14 dos nossos solstı́cios, passa pelos polos do
esses seres são reunidos em uma bola dentro de si, devido mundo e é chamado de Divisor.
à pressão, uma condição que nós mesmos produzimos Explicarei primeiro o que ambos os hemisférios pos-
por um mero sinal da cabeça. Finalmente, na chegada à suem em comum. Toda a Levânia sofre as mesmas al-
Lua, cada corpo é dirigido para o seu lugar pretendido, ternâncias de dia e de noite como nós, mas ao longo do
por sua própria vontade. Este ponto crı́tico é de pouco ano, eles não têm outras mudanças anuais. Ao longo de
utilidade para nós, espı́ritos, porque é excessivamente toda a Levânia, seus dias são quase iguais às suas noites,
lento. Portanto, como eu disse, nós aceleramos por mag- exceto pelo fato de que para os Privolvanianos cada dia é
netismo 13 e passamos à frente do corpo do homem, para regularmente menor do que a sua própria noite, enquanto
[evitar] que por um impacto muito forte na Lua ele possa que o dia dos Subvolvanianos é regularmente mais longo.
vir a sofrer qualquer dano. Quando o homem acorda, Aquilo que é alterado, ao longo de um ciclo de oito anos,
ele geralmente se queixa de que todos os seus membros terá que ser mencionado mais tarde. Sob os dois polos,
sofrem de uma lassidão inefável, da qual, no entanto, ele metade do Sol está escondida para a equalização da noite,
se recupera completamente quando o efeito das drogas enquanto a outra metade brilha, formando um cı́rculo em
desaparece, quando então ele pode [voltar a] andar. torno das montanhas. Como as estrelas estão se movendo,
Ocorrem diversas outras dificuldades, as quais toma- Levânia parece estar não menos imóvel a seus habitantes
riam muito tempo para serem contadas [aqui]. Nada nos do que nossa Terra a nós. Um de nossos meses é igual a
acontece que seja inteiramente ruim. Por quanto tempo uma de suas noites e um dia. Quando o Sol vai nascer
essas sombras da Terra são as que habitamos na Lua no inı́cio de uma manhã, um sinal quase completamente
de maneira compacta! Quando esses homens tiverem novo do zodı́aco é mais aparente no dia seguinte do que
chegado a Levânia, já estaremos prontos. Eles, [os ho- no dia anterior. Assim como em um de nossos anos, o Sol
mens], parecem estar escalando de um navio para a terra. gira 365 vezes e as órbitas das estrelas fixas 336 vezes; ou,
Lá, rapidamente nos retiramos para as cavernas e para mais precisamente, em quatro anos o Sol gira 1461 vezes,
os lugares sombrios enquanto o Sol estiver aberto, mas mas as órbitas das estrelas fixas giram 1465 vezes para
quando ele é eclipsado um pouco mais tarde, somos ex- nós; então, para eles, em um ano o Sol gira em torno de
pulsos do nosso agradável lugar de repouso e forçados a doze vezes, enquanto a órbita de estrelas fixas gira [em
acompanhar a sombra que parte. Nossa inventidade se torno de] treze vezes; ou, mais precisamente, em oito anos
exercita nesses momentos de decisão. Nós nos juntamos o Sol gira em torno de 99 vezes e as órbitas das estrelas
aos [outros] daemons desta provı́ncia e uma sociedade se fixas 107 vezes. Mas eles estão mais familiarizados com
inicia quando o Sol começa a falhar sobre a localidade. um ciclo de dezenove anos: nesse número de anos, o Sol
Reunidos em multidões, nós nos desviamos do nosso curso se eleva 235 vezes e as estrelas fixas 254 vezes.
em direção da sombra. E, se a sombra atinge a Terra com O Sol nasce no centro ou nas regiões mais interiores do
seu ponto afiado, o que muitas vezes acontece, nós caı́mos [hemisfério] Subvolva quando o último quarto [da Lua]
pesadamente sobre a Terra com nossos companheiros sol- é visı́vel para nós; logo, para as regiões mais interiores
dados, pois não nos é permitido outro resultado quando do [hemisfério] Privolva quando o primeiro quarto [da
13 Entendemos que, nessa passagem, a aceleração a qual Kepler se 14Em astronomia, um coluro é um cı́rculo máximo da esfera celeste
refere seria similar à ação da gravidade, no sentido atual do termo. que passa pelo equinócio ou pelo solstı́cio.

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Lua] aparece para nós. O que eu digo sobre as partes um ciclo de oito anos e meio; o terceiro [movimento se-
centrais deve ser entendido como todos os semicı́rculos cundário] é de latitude e [ocorre] ao longo de um perı́odo
conduzidos através dos polos e os médios em ângulos de dezenove anos. Os Privolvanianos do centro observam
retos com o Divisor. Você pode chamá-los de semicı́rculos o Sol ao meio-dia mais do que as suas contrapartes de
de Medivolva. outras regiões, enquanto os Subvolvanianos observam
O cı́rculo intermediário entre os polos, o qual deter- menos do que se o Sol nascesse. Ambos são da mesma
mina o mesmo efeito que o Equador de nossa Terra, será opinião que o Sol se inclina para o hemisfério Subvolva
chamado por esse mesmo nome, [Equador]. Ele corta o por alguns minutos, para frente e para trás da eclı́ptica e,
Divisor em partes iguais e o Medivolva em pontos opostos. então, [se desloca] entre as estrelas fixas. Estas variações,
O Sol passa sobre alguns lugares no Equador [de Levânia] como eu disse, são restauradas ao longo de um espaço
em dois dias opostos do ano, precisamente no momento de dezenove anos para suas marcas anteriores. Este iti-
do meio-dia. Ao meio-dia, o Sol se desloca a partir do nerário toma conta um pouco mais de Privolva e um
zênite para os outros pontos, os quais se localizam em pouco menos de Subvolva. Embora o Sol e as estrelas
ambos os lados dos polos. fixas estejam pressagiados a cair igualmente em torno de
Em Levânia, há alguma variação entre o verão e o Levânia durante seu primeiro movimento, o Sol, contudo,
inverno, mas que não deve ser comparada com as nossas aumenta para os Privolvanianos ao meio-dia, mas quase
próprias [estações], pois não as observamos nem nos nada sob as estrelas fixas. Ao meio-dia, o Sol aparece
mesmos lugares nem na mesma época do ano. Em um [por um tempo] muito rápido para os Subvolvanianos,
perı́odo de dez anos, seu verão muda de uma parte do embora o contrário seja verdadeiro sobre a meia-noite.
ano estelar para a parte oposta, a partir de um mesmo Como resultado, sob as estrelas fixas, observa-se que Sol
local. Em um ciclo de dezenove anos estelares ou em dá alguns “saltos”, por assim dizer, separados para cada
235 dias, o verão e o inverno ocorrem vinte vezes, na dia.
direção dos polos, enquanto no equador [essas estações O mesmo é verdade para Vênus, Mercúrio e Marte,
ocorrem] quarenta vezes. Assim como temos os nossos mas no caso de Júpiter e Saturno [esses movimentos
meses, eles têm seis dias ao todo durante o verão, pois o secundários] são quase imperceptı́veis.
resto [dos dias] pertence ao inverno. A mesma alternância Entretanto, o movimento de cada dia não é o mesmo
é esparsamente sentida em torno do Equador, porque o à mesma hora de cada dia. Assim, às vezes, [esse mo-
Sol não divaga para os lados além de 50 [graus] para trás vimento] é mais lento para o Sol do que para todas as
e para frente desses lugares. [Essa alternância] é mais estrelas fixas, e é ainda mais rápido na parte oposta do
sentida [em regiões] próximas dos polos, em lugares onde o ano na mesma hora. Esta lentidão [do movimento] vai
Sol aparece ou desaparece, alternadamente, em intervalos para frente e para trás durante os dias do ano, de tal
de seis meses, assim como há na Terra aqueles de nós forma que, se agora ela se ocupar do verão, então será o
que residem sob um dos dois polos. O globo de Levânia inverno que sentirá tal [pequena] rapidez em outro ano.
também está dividido em cinco zonas, correspondendo um Tudo isso ocorre em um ciclo absoluto, ao longo de um
pouco às nossas zonas terrestres; isto é, as áreas tórrida e tempo pouco menor que nove anos. O dia se torna mais
frı́gida têm escassamente 10 graus [de latitude] cada; todo longo do que a noite devido a uma lentidão natural, e
o resto cai em proporção à nossa zona temperada. A zona não da forma como o temos na Terra, [na qual tal dife-
tórrida passa através das partes médias do hemisfério, rença ocorre] por uma seção desigual da órbita de um
metade do seu comprimento através de Subvolva e a dia natural.
outra metade através de Privolva. Embora a lentidão caia sobre o [hemisfério] Privolva à
Existem quatro pontos cardeais para as seções dos meia-noite, ela realiza seu desvio antes do dia seguinte;
cı́rculos do Equador [de Levânia] e do zodı́aco. Chamamos se, por outro lado, ela é concluı́da durante o dia, então
estes pontos de equinócios e solstı́cios, e a partir dessas a noite e o dia são iguais, algo que acontece uma vez
seções, dá-se o inı́cio do cı́rculo zodiacal. Desde seu inı́cio em nove anos. Isso é completamente diferente para o
até sua finalização, o movimento das estrelas fixas é [hemisfério] Subvolva.
muito rápido – de forma mais especı́fica, [elas gastam] Tais caracterı́sticas são comuns a ambos os hemisférios.
vinte anos tropicais, ou seja, definidos por um verão e
um inverno. As estrelas fixas se deslocam através de todo
o zodı́aco em aproximadamente 26.000 anos, o que é 2.3. Sobre o hemisfério Privolva
bastante para o seu primeiro movimento.
O que caracteriza separadamente cada hemisfério é a
A causa de seus movimentos secundários difere não
grande diferença entre eles. Não só a presença e a ausência
menos daqueles que aparecem para nós [na Terra], em-
de Volva leva a espetáculos bastante diferentes, mas esses
bora sejam muito mais intrincados. Além das muitas
fenômenos usuais diferem tanto aqui e ali em seus efei-
desigualdades existentes entre nós e todos os seis plane-
tos que se poderia, talvez mais corretamente, dizer que
tas - Saturno, Júpiter, Marte, o Sol, Vênus e Mercúrio -
o hemisfério Privolva intempera o temperado Subvolva.
eles observam a ocorrência de outros três [movimentos
A noite dos Privolvanianos dura quinze ou dezesseis de
secundários]; nomeadamente, dois de longitude, sendo
nossos dias, terrı́vel e com sombras intermináveis, assim
o primeiro diurno e o segundo observado ao longo de
como são nossas noites sem Lua. Os raios de Volva nunca

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e1602-8 O Sonho de Johannes Kepler: uma tradução do primeiro texto de hard sci-fi

brilham sobre eles. Por esta razão, tudo se torna rı́gido Como eu disse, Volva paira diretamente sobre deter-
devido ao gelo, à geada e aos ventos mais intensos e pode- minados lugares enquanto parece ter sido sugado para
rosos. Um dia então se segue, com duração [equivalente] baixo, [aparecendo] perto do cı́rculo do horizonte para as
a catorze de nossos dias, ou um pouco menos do que regiões restantes. Em todos os lugares, [Volva] transmite
aquele em que o Sol aparece com maior [tamanho]. O a evidência de uma altitude sempre constante.
Sol é lento sob as estrelas fixas e não há ventos. Então, Ainda assim, os Subvolvanianos têm seus próprios
[o hemisfério] se torna intoleravelmente quente. Dessa polos, os quais não estão entre essas estrelas fixas, onde
forma, para o espaço de um dos nossos meses ou de um temos os polos do [nosso] mundo, mas em torno de outras
dia levaniano e em um mesmo lugar, o calor se torna estrelas fixas, sendo então estes sinais eclı́pticos dos polos
quinze vezes mais quente do que a nossa África, e o frio, para nós. Em dezenove anos lunares, estes polos passam
insuportável. por pequenos cı́rculos ao redor dos polos da eclı́ptica sob
Em especial, deve-se notar que o planeta Marte é, às ve- a constelação de Dragão e suas opostas, [a constelação
zes, observado por aqueles [que estão] nas partes centrais de] Dourado 15 , [a constelação de] Peixe Austral 16 e a
do Privolva à meia-noite, e para outros [observadores] Grande Nuvem de Magalhães 17 . Quando esses polos, em
no inı́cio de sua própria noite, com quase o dobro do um quarto de cı́rculo, estão longe de Volva, de modo que
[tamanho aparente que é] visto por nós. as regiões possam ser classificadas tanto de acordo com os
polos quanto de acordo com Volva, se torna evidente quão
grande é a vantagem com que nos superam [em termos de
2.4. Sobre o Hemisfério Subvolva localização geográfica]. Estes polos marcam a longitude
dos lugares a partir do imóvel Volva, e marcam a latitude
À medida que atravesso este hemisfério, começo [a en-
tanto a partir de Volva quanto pelos seus [próprios] polos.
contrar] com seus habitantes fronteiriços, os quais vivem
Isso é diferente para nós, porque não temos meios de
no cı́rculo Divisor. Um fato particular para eles é a ob-
obter nossa longitude, com a exceção de subserviente e
servação das digressões de Vênus e Mercúrio em relação
pouco distinguı́vel inclinação de uma agulha magnética.
ao Sol, [as quais parecem ser] muito maiores do que como
O Volva, para os Subvolvanianos, permanece como se
nós [as percebemos]. Para essas mesmas pessoas, Vênus
tivesse sido fixado com um prego no céu, ficando imóvel
aparece em certos momentos como tendo mais que o do-
neste lugar. Outras estrelas e o próprio Sol atravessam [o
bro [do tamanho] da nossa visão de Vênus, especialmente
céu] do nascer ao pôr do sol. [Também] não existe uma
para aqueles que vivem no Polo Norte [de Levânia].
noite em que nenhuma das estrelas fixas no zodı́aco se
A mais agradável de todas as ocupações em Levânia
esconda atrás de Volva e emerja novamente na região
é a contemplação de Volva. Os Levanianos apreciam a
oposta. Embora as mesmas estrelas fixas não realizem
visão de Volva, da mesma forma que nós fazemos com
isso todas as noites, ainda assim, todas elas mudam [de
nossa Lua, [visão esta] que os Privolvanianos carecem
posição] completamente entre si; isto é, aquelas que se
completamente, porque estão profundamente dentro [do
movem até seis ou sete graus a partir da eclı́ptica. Em
astro]. Por causa da perene presença de Volva, esta região
dezenove anos, todo o circuito é realizado, fazendo com
é chamada Subvolva, assim como o resto é chamado
que elas retornem exatamente às suas posições originais.
Privolva, porque [essa outra região] é privada da visão
Para os Subvolvanianos, Volva não aumenta nem [chega
de Volva.
a] diminuir [para um tamanho] menor que a nossa Lua. A
Quando a nossa Lua se torna cheia e passa acima de
mesma razão existe tanto para a presença do Sol quanto
prédios distantes, nós, moradores da Terra, a observamos
para a digressão de Volva. Se estudarmos sua natureza,
de forma similar a um cı́rculo aberto em um grande barril
o tempo é o mesmo; mas [enquanto] os Subvolvanianos
de madeira. Quando ela se eleva para o meio do céu, a
os medem por um método, nós o fazemos por outro.
Lua traz à mente algo como a forma de um rosto humano.
Os Subvolvanianos pensam que um dia e uma noite é o
Os Subvolvanianos veem Volva no meio de seu próprio
perı́odo de tempo durante o qual todos os aumentos e
céu - Volva toma esta posição para aqueles que habitam
diminuições de Volva são concluı́dos. Nós chamamos esse
no meio ou no umbigo (sic) deste hemisfério - com um
perı́odo de tempo de um mês [terrestre]. Volva raramente
diâmetro um pouco menos de quatro vezes maior do que a
se esconde para os Subvolvanianos, mesmo [na fase] nova
nossa Lua para nós, de modo que, se estabelecermos uma
de Volva, devido ao seu tamanho e brilho, especialmente
comparação de discos, a superfı́cie de Volva [parece] ser
para os habitantes polares de Subvolva, para os quais
quinze vezes maior do que a nossa Lua. Para aqueles em
falta o Sol nessa época. Ao meio-dia, Volva vira suas
que Volva continuamente se desvia de forma rápida para
extremidades para cima em relação aos Subvolvanianos,
o horizonte, [Volva] aparece na forma de uma montanha
no próprio perı́odo intervolviano. Em geral, para aqueles
de fogo distante.
que habitam entre Volva e os polos sob o cı́rculo de
Assim como diferenciamos nossas regiões por meio
Medivolva, [a fase] nova de Volva é o sinal do meio-dia
de elevações maiores ou menores em relação ao polo,
e do primeiro quarto da noite. A [fase] cheia de Volva
embora não tenhamos necessariamente de ver o polo com
os nossos olhos, [da mesma forma] a altitude do sempre 15 No original, Xiphias.
presente Volva preenche a mesma necessidade para eles, 16 No original, Passer.
variando para os diferentes lugares. 17 No original, Nebecula Major.

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separa partes iguais da noite, e o último quarto [de Volva] A marca novamente se retira da última posição para o
traz o Sol de volta. Aqueles que têm Volva e os polos topo e para o leste de Volva, e sempre aparece lá. Entre-
fixados no horizonte vivem na interseção do Equador tanto, quando o Sol entra em Capricórnio, essa mancha
com o Divisor. Sua manhã e noite vêm [nas fases] nova e não pode ser vista em qualquer lugar, porque todo o
cheia de Volva, e seu meio-dia ou meia-noite, nos quartos cı́rculo, junto com seu polo, se esconde atrás do corpo
[crescente e minguante]. A partir dessas observações, de Volva. Durante estas duas partes do ano, as manchas
podemos tirar conclusões sobre aqueles que vivem entre caem diretamente para o oeste. Durante os perı́odos in-
os lugares descritos acima. termediários localizados a leste ou em Libra, as manchas
Os Subvolvanianos diferenciam as horas do dia por ou se afundam transversalmente ou sobem em uma linha
meio destas e outras fases de Volva, de modo que quanto curva. Esta apresentação nos ensina que, quando o centro
mais perto o Sol e Volva pareçam estar, tanto mais perto do corpo de Volva permanece em repouso, os polos da
está o meio-dia para os Subvolvanianos, assim como a perturbação no cı́rculo ártico circundam esses polos uma
noite ou o pôr do sol para os Medivolvanianos. Os Sub- vez em um ano.
volvanianos estão muito mais bem equipados do que Os observadores mais diligentes veem que Volva não
nós para medir os perı́odos de noite, que regularmente permanece com o mesmo tamanho. Durante as horas do
dura catorze de nossas horas. Dissemos que fora daquela dia em que as estrelas se movem rapidamente, o diâmetro
sequência de fases de Volva, onde a [fase] plena de Volva de Volva é muito maior, de modo que é claramente quatro
marca meia-noite para o próprio Medivolva, [o próprio] vezes maior que a nossa Lua.
Volva já [permite] distinguir suas horas. Embora Volva Agora, o que direi sobre os eclipses do Sol e de Volva
não pareça de modo algum mudar de lugar, nossa Lua, que ocorrem em Levânia, ao mesmo tempo em que os
ao contrário, gira em um mesmo lugar e explica adequa- eclipses do Sol e da Lua ocorrem aqui no globo terres-
damente o número surpreendente de marcas que mudam tre, mas, evidentemente, por razões diferentes? Quando
persistentemente desde o seu nascimento até o seu po- vemos o eclipse total do Sol, Volva eclipsa para eles, en-
ente. Quando as marcas se reiniciam após tal revolução, quanto que quando a nossa Lua eclipsa, o Sol é eclipsado
os Subvolvanianos contam uma hora do seu tempo, [a para eles. No entanto, eu não concordo exatamente com
qual é] igual a pouco mais de um de nossos dias e noites. todas essas coisas. Eles muitas vezes veem eclipses par-
Esta é, então, a única medida uniforme do tempo. Nós ciais do Sol mesmo quando nenhuma parte da Lua não
indicamos anteriormente que o Sol e as estrelas diaria- se mostra para nós. Pelo contrário, eles são frequente-
mente circulam em torno dos habitantes da Lua de uma mente isentos de eclipses de Volva quando observamos
maneira desigual do fato de que esta perturbação de nossos eclipses parciais do Sol. Eles têm eclipses de Volva
Volva especialmente é projetada, se você compará-la com durante a fase plena de Volva, assim como nós temos
os prolongamentos de estrelas fixas a partir da Lua. o nosso [eclipse] da Lua durante a Lua cheia; eles têm
A parte superior do norte de Volva parece ter duas eclipses do Sol na [fase] nova de Volva, da mesma forma
metades; isto é, uma que é bastante encoberta, como se que temos [eclipses solares] na Lua Nova. Já que eles
estivesse coberta com marcas contı́nuas, e outra um pouco têm dias e noites mais longos, eles experimentam eclipses
mais clara, espalhando-se no norte uma faixa brilhante mais frequentes de ambos os corpos celestes. Um grande
na linha divisória de ambos. A figura é difı́cil de explicar. número de nossos eclipses trafega em direção dos nossos
Em sua seção mais oriental, percebemos algo como antı́podas, e [no caso] deles, para seus antı́podas. Os Pri-
a frente de uma cabeça humana, cortada nos ombros, volvanianos não veem nenhum destes [eclipses], enquanto
inclinando-se para beijar uma menina vestida com uma apenas os Subvolvanianos observam tudo.
longa túnica, enquanto seu braço se estende para trás e Os Subvolvanianos nunca veem um eclipse total de
atrai um sedutor. A parte mais larga e maior da mancha Volva, mas através do corpo de Volva lá atravessa certa
projeta-se para o oeste sem qualquer forma visı́vel. Na mancha pequena, avermelhada em suas bordas e escura
outra metade de Volva, um brilho é espalhado mais no centro. Esta pequena mancha faz a sua entrada da
amplamente do que a mancha. Você pode visualizá-lo seção oriental de Volva e emerge através da borda oci-
como a imagem de um sino pendurado para baixo em dental; o mesmo é verdadeiro para os pontos naturais de
uma corda, balançando para o oeste. As partes superior Volva, antecipando-os rapidamente. A duração se estende
e inferior não podem ser comparadas com nada. até uma sexta parte das suas horas, ou quatro das nossas.
Não basta que Volva [permita] distinguir as horas sub- A causa de um eclipse solar [visı́vel para os] Subvolva-
volvanianas do dia desta forma, mas sim que dê indicações nianos é Volva, assim como a nossa Lua causa o nosso
claras das partes do ano se alguém prestar atenção a [eclipse solar]. Isso não pode acontecer, na medida em
ele ou se o propósito das estrelas fixas escapar a alguém. que Volva parece quatro vezes maior que o Sol, sem que
Quando o Sol passa para Câncer, Volva indica claramente o Sol passe do leste pelo sul atrás do inamovı́vel Volva
o Polo Norte de sua perturbação. Há uma pequena man- para o oeste. O Sol, então, desapareceria muito perto
cha escura acima da imagem da menina, inserida no meio de Volva, com o resultado de que parte ou todo o corpo
do brilho. Este brilho é deslocado da parte mais alta e do Sol estaria escondido por ele. Com frequência, há um
mais afastada de Volva para o leste; e, a partir daqui, eclipse muito perceptı́vel do corpo inteiro do Sol, porque
uma vez que fez a descida no disco, move-se para o oeste. dura por várias de nossas horas, quando a luz do Sol

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e1602-10 O Sonho de Johannes Kepler: uma tradução do primeiro texto de hard sci-fi

e de Volva é eclipsada ao mesmo tempo. Esta é uma se tivesse sido perfurada, através de cavernas ocas e
experiência importante para os Subvolvanianos, os quais [também] cavernas contı́nuas, especialmente prolongadas
têm outras noites não tão escuras quanto seus dias, por através do [hemisfério] Privolva. Estes lugares ocos são
causa do brilho e magnitude do sempre presente Volva. os principais meios à disposição dos Privolvanianos para
Durante um eclipse do Sol, ambos os corpos celestes, o se proteger do calor e do frio.
Sol e Volva, estão escondidos dos Subvolvanianos. Tudo o que brota da terra ou caminha sobre a su-
No que consta aos Subvolvanianos, os eclipses do Sol perfı́cie é de um tamanho monstruoso. Os aumentos de
têm um ponto em comum. Acontece com frequência que tamanho são muito rápidos. A vida é de curta duração,
o brilho se eleva do lado oposto quando o Sol mal se porque todos os seres vivos crescem a uma enorme massa
encontra encoberto, atrás do corpo de Volva, como se corporal. Os Privolvanianos não têm moradia fixa. No
o Sol se tivesse expandido e abraçado todo o corpo de espaço de um único dia, atravessam todo o seu mundo
Volva; contudo, em algum outro tempo e em muitas em hordas, seguindo as águas que recuam, seja por meio
seções, o Sol aparece menos do que Volva. A escuridão de pernas mais longas do que as dos nossos camelos,
completa nem sempre ocorre, a menos que os centros dos usando asas ou [viajando] em barcos. Se um atraso de
corpos coincidam estreitamente e o arranjo regular dos muitos dias é necessário, eles rastejam pelas cavernas, de
centros diáfanos se una. [Nesse caso,] Volva desaparece acordo com a natureza de cada um. Há muitos mergu-
de forma repentina, de modo que não pode ser discernida, lhadores entre eles e todos os seus seres vivos respiram
embora o Sol se esconda completamente atrás de Volva, muito lentamente. Ao combinar a natureza com a arte,
exceto nas ocasiões dos eclipses mais longos. No inı́cio eles podem se refugiar no fundo das águas profundas.
de um eclipse total, no entanto, Volva ainda permanece Dizem que aqueles que estão nas profundezas da água
branco em algumas seções do Divisor, como se houvesse sofrem com o frio, enquanto as ondas superiores estão
um carvão em brasa presente após a extinção da chama. fervendo devido ao calor do Sol. Aqueles que permanecem
Após esta brancura desaparecer, o ponto médio do eclipse na superfı́cie são fervidos pelo Sol do meio-dia e servem
mais longo é alcançado; pois isso não se extingue em nada como alimento para os colonos errantes. Em geral, o he-
menos que o eclipse mais longo. Quando a brancura de misfério Subvolva é comparável favoravelmente com os
Volva retorna (em lugares opostos do cı́rculo Divisor), nossos cantões, cidades e jardins, enquanto o [hemisfério]
a visão do Sol também se aproxima. De alguma forma, Privolva se assemelha a nossos campos, florestas e deser-
ambos os corpos desaparecem na fase intermediária dos tos. Outras criaturas, as quais acham a respiração mais
eclipses mais longos. necessária, se recolhem em cavernas que são abastecidas
Estas são as aparições em ambos os hemisférios de com água por canais estreitos, a fim de que a água possa
Levânia: em Subvolva, bem como em Privolva. A partir esfriar gradualmente em seu longo caminho; entretanto,
dessas considerações, passar um julgamento silencioso quando a noite vem, eles saem para comer. A casca das
sobre o quanto os Subvolvanianos diferem dos Privolva- árvores, a pele das criaturas vivas - ou qualquer outra
nianos em outros aspectos não é difı́cil para mim. coisa que tome seu lugar - ocupa a maior parte da massa
Uma noite subvolvaniana, mesmo equivalendo a catorze corporal, porque é esponjosa e porosa. Se qualquer cria-
de nossas noites longas, ilumina o solo e o protege do tura é tomada de surpresa no calor do dia, sua pele fica
frio, devido à presença de Volva. Uma massa tão grande dura e queimada, vindo [então] a cair durante a noite.
e tão brilhante não pode deixar de mantê-lo quente. Plantas no solo, e mesmo algumas na parte superior das
Embora o dia de Subvolva tenha a irritante presença montanhas, brotam e morrem no mesmo dia, criando
do Sol durante nossas quinze ou dezesseis noites, ainda espaço diariamente para as novas coisas em crescimento.
assim, o Sol não tem forças menos hostis. Os luminares Sua natureza é, em geral, como uma serpente. Elas têm
unidos atraem toda a água para esse hemisfério até que um estranho amor para se aquecer no sol do meio-dia,
a superfı́cie esteja completamente coberta, de modo que mas apenas perto de suas cavernas, para que elas [(as
muito pouco dela seja visı́vel. Pelo contrário, quando criaturas)] possam se recolher de forma rápida e segura.
toda a água foi removida do hemisfério Privolva, este Outras [criaturas], cujos espı́ritos foram exauridos pelo
se torna seco e frio. [Isso ocorre] porque os hemisférios calor do dia, perdem a vida, mas ressuscitam à noite,
têm os luminares divididos entre si: a noite vem sobre devido a alguma causa paradoxal, tal como a produção
o [hemisfério] Subvolva e o dia sobre o [hemisfério] Pri- de moscas aqui na Terra. Aqui e ali, todo o chão [é
volva. As águas são divididas de modo que os campos coberto] por massas dispersas, na forma de cones de
subvolvanianos são despojados de tudo, enquanto os pri- pinheiro. Suas cascas são queimadas pelo sol durante o
volvanianos desfrutam de uma abundância de umidade dia e morrem, mas à noite, produzem criaturas vivas
como um alı́vio insignificante para o calor. quando os esconderijos são abertos.
A totalidade de Levânia não se estende por mais de No hemisfério Subvolva, uma forma especial para alı́vio
mil e quatrocentas milhas alemãs em circunferência, uma do calor são as nuvens ininterruptas e as tempestades, as
quarta parte de nossa Terra. Possui montanhas muito quais por vezes ocorrem ao longo da metade ou mais da
altas, vales muito profundos e largos e, em consequência, metade dessa região.
perde muito em relação à nossa Terra em termos de Quando eu cheguei a esta parte de meu sonho, o
perfeita esfericidade. Toda a superfı́cie é porosa, como vento aumentou e se fez acompanhar de uma estron-

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Ribeiro e1602-11

deante chuva, perturbando meu sono e encerrando um


dos últimos livros que eu havia trazido de Frankfurt.
Quando o Daemon, o falante Duracotus, o filho com sua
mãe Fiolxhilda e os ouvintes tinham sido [todos] deixa-
dos para trás, voltei a meus sentidos, e da mesma forma
que eles tinham estado com a cabeça coberta, descobri
que minha cabeça estava em uma almofada e meu corpo
estava embrulhado em um cobertor.

3. Considerações finais
Toda tradução envolve riscos, e a “tradução de uma
tradução”, como a apresentada nesse artigo, é ainda mais
perigosa, pois más interpretações ou escolhas por parte
do tradutor original podem ser repassadas ou até mesmo
amplificadas na nova tradução – e.g. as deficiências apre-
sentadas nas traduções das obras de Lev Vygotsky para
o português, conforme aponta Prestes [21]. Assim, busca-
mos minimizar as chances de interpretações equivocadas
comparando continuamente nossa tradução com os apon-
tamentos de Nicolson [4] e Christianson [14] acerca do
contexto da obra. Apesar dessa ressalva, entendemos
que uma tradução direta da obra em latim seria a ideal,
e rogamos para que especialistas nessa lı́ngua clássica
venham a apresentá-la em algum momento no futuro.
Apesar desse receio, defendemos que o caráter de inedi-
tismo da disponibilidade do texto em português justifica
o nosso esforço de tradução.
Entendemos que a leitura da obra é relevante para
os pesquisadores ou interessados na história da ciência
pelo caráter duplo que a mesma apresenta, revelando-se
ao mesmo tempo mı́stica e racional. Tal dualidade, vale
lembrar, transparece ao longo de diversos episódios da
biografia de Kepler. A obra em questão permite, assim,
uma complementaridade com outros textos do autor. Em
particular, destacamos a passagem na qual Duracotus
encontra Tycho Brahe, na qual Kepler (representado
pela persona de Duracotus) exibe grande admiração pelo
astrônomo, mas ao mesmo tempo, demonstra até mesmo
alguns arroubos de superioridade em relação aos outros
discı́pulos do dinamarquês.
Consideramos uma infelicidade que o manuscrito não Figura 2: Esquema de Johannes Kepler para os eclipses solares
tenha sido ilustrado pelo autor, ao contrário de outras e lunares, presente nas notas de Somnium. Nesse esquema, S
obras de Kepler, e.g. seu seminal livro de óptica acerca representa o centro do Sol e C o centro da Terra. A Lua é
mostrada em quatro fases: N (nova), V (minguante), P (cheia)
da refração em telescópios, intitulado Dioptrice [22]. Há
e L (crescente). A figura foi extraı́da do original de Kepler [2]
poucas ilustrações presentes também nas notas do autor;
(p.39) e foi trabalhada em um editor de imagens para ampliação
em especial, destaca-se um esquema para os eclipses da sua qualidade.
solares e lunares (Figura 2), o qual é usado por Kepler,
em algumas notas explicativas, para explicar as diferenças
na observação de tais fenômenos na Terra e nos dois
hemisférios lunares (Privolva e Subvolva, conforme a principais, a nosso ver, se destacam: as fases de Volva
nomenclatura utilizada em Somnium). (ou seja, a Terra) vistas a partir de cada hemisfério da
A ausência dessas ilustrações, entretanto, pode se re- lua, assim como a forma pela qual os eclipses seriam
velar uma oportunidade para trabalhos em sala de aula visualizados em cada um destes hemisfério.
a partir do texto: assim, poder-se-ia trabalhar com a Embora a leitura não nos pareça cansativa, dada a
ilustração ou esquematização de certas passagens, sendo pequena extensão do texto, talvez ela possa se revelar
que os próprios estudantes deveriam elaborar tais cons- por demais extensa para alunos na educação básica, de-
truções a partir das descrições de Kepler. Dois exemplos vido a algumas passagens mais herméticas. Assim, caso o

DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0175 Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, vol. 40, nº 1, e1602, 2018
e1602-12 O Sonho de Johannes Kepler: uma tradução do primeiro texto de hard sci-fi

professor deseje trabalhar o texto, ele poderia optar por [15] E. Rosen, Kepler’s Somnium. The Dream, or Posthumous
uma contextualização geral, relatando o inı́cio do sonho Work on Lunar Astronomy (Dover, New York, 2003), 1ª
de Kepler, e lidar então com passagens especı́ficas do ed., 1ª reimp., 255 p.
manuscrito, as quais poderiam ser lidas pelos estudan- [16] P. Kirkwood and J. Lear, Kepler’s Dream: With the Full
tes. Em especial, acreditamos que trechos de Somnium Text and Notes of Somnium, Sive Astronomia Lunaris
são adequados à abordagem de tópicos como as fases da Joannis Kepler (University of California Press, Berkeley,
1965), 1ª ed.
Lua, a comparação entre os sistemas geocêntrico e he-
[17] N. Falardeau, The Somnium Astronomicum of Johann
liocêntrico, a dependência de um movimento em relação
Kepler translated, With Some Observations on Va-
a um referencial e, claro, o estudo dos eclipses. rious Sources. Dissertação de Mestrado em Ar-
No tocante a esses relevantes fenômenos celestiais, tes/Latim, Creighton University, 1962, p. 8-33, disponı́vel
poder-se-ia requerer que os estudantes desenvolvessem em http://hdl.handle.net/10504/109241, acesso em
seus próprios modelos (escritos, geométricos ou a partir 19/06/2017.
de materiais concretos) para aquilo que seria visto por [18] L. Dubeck, S. Moshier and J. Boss, Science in Cinema:
um observador na Lua durante um eclipse solar - quando Teaching Science Fact Through Science Fiction Films
o Sol é encoberto pela Terra - ou “terrestre” - quando (Teachers College Press, New York, 1988), 1ª ed., 187 p.
a sombra da Lua encobre parcialmente a superfı́cie da [19] M. Dark, The Physics Teacher 43, 463 (2005).
Terra. Posteriormente, os modelos construı́dos poderiam [20] L. Piassi e M. Pietrocola, Educação e Pesquisa 35, 525
ser comparados com os escritos de Kepler. Outra possibi- (2009).
lidade de trabalho pedagógico envolveria a comparação [21] Z. Prestes, Quando Não É A Mesma Coisa: Análise
das fotos obtidas pelas missões norte-americanas Apollo de Traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil:
Repercussões no Campo Educacional. Tese de Doutorado
[23], nos anos 1960 e 1970, as quais poderiam ser contras-
em Educação, Universidade de Brası́lia, 2011.
tadas com as descrições de Kepler, para verificar se as
[22] J. Kepler, Dioptrice seu demonstratio eorum quae visui
previsões do filósofo natural se revelaram corretas mais & visibilibus propter Conspicilla ita pridem inventa
de três séculos antes dos primeiros observadores humanos accidunt (Augustae Vindelicorum, Augsburg, 1611),
virem a pisar na Lua. 128 p, disponı́vel em https://archive.org/details/
DioptriceByJohannesKeplerAkaIoannisKepleri,
acesso em 19/05/2017.
Referências [23] Apollo Image Gallery, NASA, 2017. Disponı́vel em https:
[1] Carl Sagan, Cosmos: A Personal Voyage - Ultimate //www.nasa.gov/mission_pages/apollo/images.html,
Edition. Via Vision Entertainment, 2017, 3 Blu-ray (780 acesso em 19/05/2017.
minutos).
[2] J. Kepler, Somnivm, Seu Opvs Posthvmvm de Astro-
nomia Lvnari (Sagani Silesorium, Frankfurt, 1634),
1ªed., p. 1-28. Disponı́vel em https://archive.org/
details/den-kbd-pil-130011021345-001, acesso em
16/04/2017.
[3] D. Anderson, Renaissance Quarterly 22, 40 (1969).
[4] M. Nicolson, Journal of the History of Ideas 1, 259 (1940).
[5] C. de Bergerac, A Voyage to the Moon (Doubleday and
McClure, New York, 1899), 271 p, disponı́vel em https:
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acesso em 18/05/2017.
[6] O. Gingerich, Science 157, 416, (1967).
[7] D. Swinford, Through the Daemon’s Gate: Kepler’s Som-
nium, Medieval Dream Narratives, and the Polysemy of
Allegorical Motifs (Routledge, New York, 2006), 223 p.
[8] B. Johnson, Computer 49, 91 (2016).
[9] J. Verne, De la Terre à la Lune : Trajet Direct en 97
Heures 20 Minutes (J. Hetzel, Paris, 1872), 22ª ed.,
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delaterrelalu00vern, acesso em 29/05/2017.
[10] A. Clarke, 2001 Uma Odisseia no Espaço (Aleph, São
Paulo, 2013), 1ªed., 1ªreimp, 336 p.
[11] P. Anderson, Tau Zero (Doubleday, New York, 1970),
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[12] M. Gleiser, O Sonho de Kepler, disponı́vel em
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/
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[13] R. Bozzetto, Science Fiction Studies 17, 370 (1990).
[14] G. Christianson, Science Fiction Studies 3, 79 (1976).

Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, vol. 40, nº 1, e1602, 2018 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2017-0175

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