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Ao Marcelo Silvino, à Sara Jane e à Silvia Holme.

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TEMAS

DE

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

RENATEX

Textos elaborados no decorrer dos anos de 1991-2001

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ÍNDICE

Apresentação ............................................................................................................................................ 05

Rousseau: O Homem Nasce Livre e Bom a Sociedade o torna mal e o Escraviza (texto de 1991) .......... 08

Cabe ao Homem Aplicar Fé nas Coisas Temporais e Através da Purificação, Contemplar a Eternidade
(uma breve reflexão sobre uma passagem da ‘Trindade’ de Agostinho) texto de Junho de
1997).......................................................................................................................................................... 12
O Teatro para Diderot é o Lugar Apropriado para a Transformação Radical da Natureza Humana (texto
de 1998) ..................................................................................................................................................... 16

Algumas Observações a Respeito do “Ente e a Essência” de Tomás de Aquino ..................................... 20

O Conceito de Mimesis na Poética de Aristóteles (texto de Junho de 1999) ............................................ 29

Um Ponto Fixo no Infinito? (texto de novembro de 1999) ........................................................................ 34

Schopenhauer e o drama do mundo (texto de 1999) ................................................................................. 53

Notações Acerca do Empirismo de David Hume (texto de 1999) ............................................................. 58

Sartre e a expressão da subjetividade no romance do início do século xx (Texto de 1999) ..................... 63

A Redescoberta do Belo Artístico a Partir da Cultura Africana (Impressões de um leigo em sua visita ao
Museu de Arte e Etnologia da USP) (Texto provavelmente de 1999) ....................................................... 77

Montaigne Pirrônico ou Fideísta? (Texto de 2000) .................................................................................. 95

Nos Percalços da Razão (texto de 2000) ................................................................................................... 99

A Tese Do Sistema Construcional Para a Verificação Da Possibilidade Do Conhecimento Em Carnap Do


Período De 1930 (Texto provavelmente de 2000) ................................................................................... 104

Sobre a Idade Média em Walter Benjamin (Texto de 2000) ....................................................................113

Sobre a Poesia “Planando” de Edson Diniz (Texto de 2000) ................................................................ 115

Crítica da Visão Empresarial (Texto de 1999) ....................................................................................... 117

[Dois textos sem títulos, Textos de 1997 e 1999] .................................................................................... 119

SSSHHH...Têm Gente Pensando! (Texto de 2000) .................................................................................. 121

Sobre as Posições Políticas na USP (Texto de 2000) ............................................................................. 123

3
Quem tem fome de Quê ?(Texto de 2000) ............................................................................................... 124

Parabéns! (Texto de 1999) ...................................................................................................................... 126

Os Três Dogmas do FFLichismo (Texto de 2001) ................................................................................. 127

Shopping Doppin Center (Texto de 2001) ............................................................................................... 129

Razão e Afeto na Vida Política; Mando, Obediência e Desobediência - Afeto e tirania em La Boetie
(texto provavelmente de 2000) ................................................................................................................ 131

Drama Barroco e Modernidade em Walter Benjamin (Texto provavelmente de 2000) ........................ 134

A Explicitação da Questão da Existência e a Noção de Narrativa de Ficção em Sartre (Texto


provavelmente de 2001) ......................................................................................................................... 141

Entre A Realidade Humana e a Falta Constitutiva (Texto de 2001) ....................................................... 148

Levantamento de Questões a Respeito dos Cap. VII – X (                    )


HIPOTIPOSES PIRRÔNICAS (texto de 2001) ........................................................................................... 152

Thomas Kuhn (Texto de 2001) ................................................................................................................ 155

Para um Afastamento do Conflito das Verdades (Texto provavalmente de 2001) ................................. 158

Música como Movimento Em Si Mesmo da Subjetividade ideal (Texto de 2001) .................................. 162

O Mal da Pesquisa no Brasil (Texto de 2001) ........................................................................................ 167

Os Pronomes Pessoais Nas Línguas Românicas (Texto de 2002) .......................................................... 169

Muliere Civita (De Emancipatione) (Texto de 2002) ...............................................................................190

Um pequeno trecho de ‘Trabalho Estranhado e Propriedade Privada’ dos Manuscritos Econômicos-


Filosóficos de K. Marx (Texto de 2002 ) ................................................................................................. 192

Verificação Histórica do Paralelismo Ético-Físico no Atomismo Antigo (Texto de 2002) .................... 197

Aqui Terás um Caminho (Texto de 2003) ............................................................................................... 231

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Alguns dos textos aqui reproduzidos foram publicados pela Ferreavox - Revista de
Filosofia e Cultura, com circulação entre os anos de 1997 e 2002.

Apresentação

Desde o ano de 1995 – quando ainda era ativo o “quarteto dinâmico”, com Silvia Holme,
Sara Jane, Marcelo e eu, jovens professores de filosofia do então 2º. Grau – eu já havia
manifestado o desejo de escrever filosofia, mas não um livro de “Introdução à História”
dessa matéria, e sim algo que funcionasse como uma “Apostila Introdutória” a ser usada em
minhas aulas por meus alunos que, naquela época, eram só um pouco mais jovens do que eu.
Vinte anos depois, ao recolher esses textos a seguir (retirados da lata de lixo da minha
própria história intelectual), e que serviriam de base para minha antiga empreitada, eu não
faço, contudo, nem uma coisa nem outra.
Esses textos foram escritos para que qualquer aluno do ensino médio do final do séc. xx
pudesse acompanhar as aulas de filosofia de jovens professores idealistas. Ao recolhê-los
aqui, viso menos fazer honra à uma nostalgia pessoal, já que esses textos jamais foram
utilizados em sala de aula, que passar em revista a noção de filosofia que eu mesmo,
enquanto um estudante universitário, cultivei durante a minha primeira década de estudos.
Os “benefícios” e “objetivos” dessas linhas, portanto, não deixam de ser pessoais e até
certo ponto “intransferíveis”. Por outro lado, vamos dizer que essa “permissão”, a qual me
dedico agora ao lhes apresentar essas linhas tão pessoais, vivenciaria ainda um determinado
“sentimento burguês” de que me alimentei, mas certamente inoculado pela presença sincera
de quem se entregou totalmente como um eterno iniciante a mergulhar na belíssima
experiência do pensamento. Indico ainda que esse despropósito não se revelaria como uma
mera vaidade, bem mais um exemplo de como também se pode dar a enganos, mesmo que
pueris. Se não que, à essas páginas tateantes, por fim, fossem bem devidas e aceitas umas
belas de umas reprimendas!
Preferiu-se aqui, também por isso, manter a fidelidade para com os textos originais, tal
como foram escritos na época, evitando ao máximo quaisquer modificações doutrinárias ou
estilísticas e/ou ortográficas. Assim, permitiu-se que se datassem algumas de minhas falhas
de formação e outros tipos paralelos de fissuras, vistas sempre como importantes partes do
processo de acerto e histórico de vínculo teóricos particulares. Estabelecidos aqui também os
possíveis e muito prováveis erros intelectuais “incorrigíveis”, entre outras falhas visíveis,
mas que possam ter existido devido, ao cabo, principalmente, às resistências que desde o
início eu nutri contra os pesadelos da razão.

Renato Araújo, 2016.

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“Die poesie Heilt die Wunden die Verstand Schlägt”
Novalis

Disse Goya mais ou menos isso:

O sonho da razão produz monstros impossíveis; a imaginação, unida a ela é mãe das artes e
origem de suas maravilhas.

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Francisco Goya (1746 – 1828) – O Sono da Razão (1797-99)

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Rousseau: O Homem Nasce Livre e Bom a Sociedade o torna mal e o Escraviza
(texto de 1991)

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Cabe ao Homem Aplicar Fé nas Coisas Temporais e Através da Purificação, contemplar a
Eternidade (breve reflexão sobre uma passagem da ‘Trindade’ de Agostinho)
(Texto de 1997)
Necessitávamos de purificação por não sermos idô neos para compreender as coisas eternas e
nos oprimirem as imundícies dos pecados, contraídas pelo amor às coisas temporais e
arraigadas em nossa natureza pela transmissão da mortalidade. Ora, a purificação para nos
adaptarmos ao eterno só seria possível através do temporal ao qual já estávamos ordenados,
pois a distância entre a saúde e a enfermidade é imensa, mas o remédio não cura a não ser que
tenha alguma afinidade com a doença. Se assim não for, é incapaz de conduzir à recuperação.
Coisas temporais que são inúteis enganam os doentes. Mas coisas temporais de utilidade, uma
vez assimiladas, os curam e os encaminham para as coisas eternas. Ora, assim como a razão já
purificada deve aplicar-se à contemplação do eterno, do mesmo modo, quando ainda em vias de
purificação, ela deve depositar fé nas coisas temporais. Disse um daqueles que antigamente
eram chamados sábios da Grécia: ‘O que é a eternidade para o que teve começo, é a verdade
para a fé’”.
(Santo Agostinho - De Trinitate. Cap. XVIII - . 24)

Quando Santo Agostinho fala de purificação ele quer dizer graça. A nós, iniciantes na
filosofia do grande mestre africano de Tagate, na Numídia é muito difícil nos descolarmos de
nossos preconceitos ao tratar esta filosofia como pura teologia. Na realidade, esta filosofia como
tal é propriamente um arcabouço, um sistema que se sustenta por si. E encontrar seu lugar no
corpo da história entre as doutrinas ditas filosóficas, é seu desafio.
Em torno disso, façamos algumas notas a respeito da questão dos conceitos de invocação,
louvação, coisas temporais, coisas eternas, entre outros que seriam, ademais, alguns dos
conceitos introdutórios ao pensamento de Santo Agostinho.
No decurso de sua argumentação são redefinidos em Sto. Agostinho as bordas da
fraqueza humana, ou até que ponto o homem é fraco para felicidade, mas deve acima de tudo
desejá-la. O homem, preso à miséria do pecado que o oprime sente muito fortemente a cara
pesada de suas limitações que o retêm, puxa-lhe mesmo, para baixo. Neste sentido, a filosifia é
terra firme para a vida feliz, servindo à teologia como um esboço de questões intelectuais e

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existenciais. É propriamente aí o espaço teórico destinado à filosofia, colocando os problemas
relativos ao universo físico, ou indagando sobre a condição do homem que procura a beatitude.
Grandioso no homem é o seu desejo de felicidade - interesse fundamental da existência
humana, seu olhar para o alto, que é essa ligação com as coisas etéreas, ou seja, seu anseio de
beleza, paz e luz, que o livrará da tristeza de viver distante das coisas eternas.
Para Agostinho somente há alegria e felicidade em Deus, que tranascende a alma
individual e dá pleno fundamento à verdade. Do mesmo modo, o homem, separado dos prazeres
impuros, tendo já purificada a razão, reorienta-se para a conteplação das verdades eternas,
autêntica dissipadora das trevas da dúvida. É aqui que Agostinho apresenta o veradeiro sentido
para a vida que está disposto na busca da felicidade. Essa é uma resposta a alguns filósofos da
tradição que julgam dar fundamento de verdade às sensações dizendo que fazer juízos sobre as
sensações é errar, e que portanto, a sensação enquanto tal jamais é falsa. Essa é uma das questões
que ele levanta e que é de extrema importância para a consecução de sua filosofia que culminaria,
então, na felicidade da contemplação da verdade (eternidade).
A falta de aptidão no homem condiciona-o em sua carência dissoluta à exigência e à
necessidade de uma purificação. Pois, somente através da purificação que se estabelece a
capacidade de compreensão daquelas coisas de que ele está desencaminhado e estão além dele
mesmo, vale dizer, compreensão das coisas eternas.
O homem é um ser abandonado em sua carênca de entendimento e de purificação.
Devido à sua condição efêmera, num mundo de transitoriedade, ele frequentemente se desfaz no
aviltamento do estado em que se encontra. Esse estado de abandono é propriamente a situação do
ser atribulado pela iniquidade dos pecados que o distancia da pureza das coisas eternas. É o seu
recolhimento no mundo, reduzido à ocndição da temporalidade, que o mergulha neste estado de
torpeza.
Ainda assim, não é proposto por Agostinho uma simples fuga desta condição de ser
temporal em que o home está estreitamente ligado, à penúria do trnasitório. Ao contrário, diz
Agostinho “... a purificação para nos adaptarmos ao eterno só seria possível através do temporal”.
Eis um ponto crucial, uma vez que a encarnação do verbo é dada no tempo, a purificação
também deve ser dada no tempo e Agostinho vai além e diz que a purificação “só seria possível
através do temporal”.

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A temporalidade deste modo, é para o homem, condição para que ele se ordene, a partir
da purificação, ao ajustamento do sublime. Temos aqui o que é decisivo na filosofia de
Agostinho: o eterno só é possível pelo temporal, é como se a vida dos homens diante de su
arealidade temporal figurasse, em instância última, em conformidade com a adaptação ao eterno,
sendo assim, assimilados pela verdadeira substância e conduzidos à recuperação de sua condição
primeira.
Está na própria alma do homem a luz que é o resultado do bem que o ilumina. É dado a
ele, deste modo, condições para extrair da própria alma, ordenamento e inteligibilidade. Desu
cria existência de matéria “para fora”, e a matéria detidamente ordenada é colocada “para
dentro” ( como VOCAÇÃO ao retorno “para dentro”.) É exatamente nesse aspecto que as coisas
eternas possuem semelhança com o homem “como vocação”.
Entre a equidade e a torpeza, entre a abundância e a miséria, ou memso se quisermos,
entre a saúde e a doença, há a distância de um abismo, mas como se diz; o que seria da cura se o
remédio não tivesse alguma proximidade com a doença? Transformar o veneno em remédio seria
encurtar a distância do abismo que separa o homem de sua suprema felicidade que é o
encaminhar-se para as coisas eternas.
Movidas pelo engano, muitas coisas temporais não indicarão ao homem o certo caminho
de sua recuperação, podendo, por vezes, mantê-lo suprimido à baixeza de sua condição. Por
outro lado, certas coisas temporais, no dizer de Agostinho, “coisas temporais de utilidade”
devidamente absorvidas, além de curá-los, promove o necessário encaminhamento para as coisas
eternas.
É especialmente na purificação que o ser consumado na mortalidade é incapaz de, por si
mesmo, assimilar as coisas eternas, vai amoldar-se na compreensão da substância verdadeira. É
igualente importante a força das ações humanas, mas é imprescindível e essencial a ação da
graça divina associada à incorporação progressiva daquelas ocisas temporais que possuem
utilidade, elevando a alma humana, e servem sobretudo como fonte de salvação. A contemplação
da iluminação divina, a própria purificação como fator de correção é prova da graça e
generosidade divina.
Por fim, é preciso que a razão demonstre o alcance da fé e que a fé confira o seu encontro
com ela para a orientação do caminho da bem aventurança que levaria ao bem eterno. Ora, essa

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realização já purificada não e fruto de um mero procedimento intelectual, mas sim , de uma
realização intuitiva, e um ato de fé.

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O Teatro para Diderot é o Lugar Apropriado
para a Transformação Radical da Natureza Humana
(texto de 1998)

Seguindo já desde a época da Enciclopedie suas próprias inclinações de tranformador e,


por assim dizer, de revolucionário da arte e da moral, Diderot passa deste célebre
empreendimento que pretendeu abranger todos os ramos do conhecimento de então e no qual sua
colaboração fora fundamental, para um outro trabalho não menos louvável e que aliás o
registrará profundamente como uma sua característica: o filósofo torna-se dramaturgo.
Esta passagem foi certamente sentida por ele que, em meados de 1758, já via seus
colegas seguidamente D’Alambert e Rosseau deixarem a laboriosa tarefa da enciclopédia.
Contudo, é com muita naturalidade que Diderot revela o desejo de ser um autor de teatro. Além
disso, muito longe de ser uma troca de ofício, faz-se de uma importância crucial para sua
filosofia uma outra exigência, isto é, não simplesmente o filósofo se tornará dramaturgo, agora
com Diderot, espera-se que o dramaturgo se torne filósofo.
Eis o filósofo tranformador, que reorientando suas atividades, acaba por dar total
extensão às inclinações naturais e seu talento culminando assim numa reforma lapidar da
tradição teatral francesa. Mas um aspecto ainda deve ser ressaltado com relação a esta passagem
da filosofia à darmaturgia, pois, no ano de 1755, a enciclopédia já contava por volta de 4.000
exemplares, como ele próprio diz no “meta-verbete” Enciclopédia: “A finalidade da enciclopédia
é mudar a maneira geral de pensar”. Ora, é natural portanto que Diderot procure um maior
veículo para difusão de suas ideias, pois é no teatro, pensa ele, que conseguirá os efeitos em
proporções que jamais conseguira na enciclopédia.
Dado talvez à característica reformadora de sua personalidade, ele não suportava a
submissão às regras, ao contrário, para ele, não ha regras que poderiam sumeter um “homem de
gênio”, ele deverá render-se unicamente às leis da natureza.
É neste sentido que Diderot faz rigorosas acusações dirigidas ao teatro de sua época, esse
teatro moderno no dizer de Diderot, encontra-se totalmente intrincado em regras sumariamente
arbitrárias e demasiadas que em vez de modificar os cidadãos ou torná-los mais livres, melhores
mesmo, provocam quando nunca ao efeito contrário, entregando-os ao desamparo do
aprisionamento.

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Vê-se, deste modo, em toda sociedade a disseminação das figuras temerosas do vício, a
hipocrisia, a superstição, sobretudo a avareza, tão contrária à bondade e beneficiência. É portanto,
no interior deste campo extremamente fértil que Diderot irá encontrar um caminho por sua
“revolução”. Ora, se pergunta Diderot, não é especialmente a virtude que promove a
sociabilidade, juntamente com os atributos inexprimíveis da natureza, a verdade, bondade e
beleza? Sendo assim, eis aí a nobre missão dos “homens de gênio”, os grandes poetas, pintores e
músicos, devem-nos “fazer amar a virtude e odiar o vício”. Aos filósofos, diz Diderot, cabem
justamente convocar a esses homens não para a rigorosidade da filosofia, mas para a elevada
instrução moral da virtude.
No conteúdo de sua formulação estética, encontra-se explicitamente sua concepção de
arte como dotada de uma finalidade moral. É mais precisamente aí que o filósofo se propõe a
prolongar o debate filosófico contestando a poética clássica francesa. E na base desta contestação
à tradição teatral clássica está o rompimento com a “cláusula do Estado”, clausula
aristocratizante na qual os grandes mestres cujo exemplo máximo talvez seja o dramaturgo
Racine que, embora desenvolvam bem elaboradas cenas trágicas, elas têm um teor tão elevado
que não faz quase referência ao cotidiano. É sempre assim, longe de nos dar uma vitalidade, de
nos passar uma naturalidade, na Comedie Française moderna, o que vemos é ou ações elevadas
demais como vemos na tragédia, ou baixas demais como vemos na comédia. Então, que espaço
restaria para experiência propriamente humana?
Nosso filósofo, insubmisso às regras, preserva na sua definição de arte a sublimidade de
seu intuito: libertar os seres humanos dos vícios e dos preconceitos que os impedem de fazer uso
livre da razão. Dado a uma tal compreensão da arte em geral é decisivo em Diderot que agir
sobre o público através do teatro signifique transformar a sensibiliade do público que o assista,
melhorando o moralmente. Ao mesmo tempo em que reformar a cena significa, não só mudar a
maneira de ver, significa mudar a maneira de ver, desempenhar, e compor. Exige-se, então,
novos espectadores, novos atores e novos autores também.
Chega de um teatro que é um palavratório total sem personagens populares. Chega de um
teatro que desprestigie a verosimilhança da cena, chega de um teatro que não trate da natureza
humana tal qual é, desconhecendo a medida do maravilhoso.
O que nos comove, pergunta-nos Diderot, quando no espetáculo, diante de uma cena de
profunda paixão, senão o grito, a palavra inarticulada e o murmúrio entre os dentes? Deste modo,

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é preciso uma representação teatral de uma tal naturalidade que os espectadores sintam-se não
num espetáculo, mas como que vivendo uma cena real, ou seja, é preciso um teatro em que a
ilusão é duradoura e dá transtornadamente um sentido de realidade.
Eis o gênero sério, eis a espécie nova de teatro introduzido por Diderot, gênero
intermediário entre a comédia e a tragédia clássicas, cuja ocupação abrange ações e convenções
da vida cotidiana, no qual é mais visível e mais presente a experiência humana e as ações mais
comuns da vida.
De qualquer forma, falando da experiência humana, parece que a sociedade progride, em
geral, em detrimento dos ocstumes que por todos os lados encontram-se extenuados, os costumes
quando reorientados pela moral da virtude possuem uma capacidade política fora de série,
proporcionando uma transformação radical da sociedade.
Diderot estabelece em seu discurso sobre a poesia dramática a base da proposição de que
o teatro (longe de anular as relações entre o espetáculo e o público, isto é, longe de anular a
acolhida do espectador ao que é “patético” na cena teatral, tornando-se um espetáculo que seria
insuficiente para transformá-lo e suficiente apenas par diverti-lo) deve ser o lugar apropriado
para a transformação da natureza humana.
A prática do teatro e a sua compreensão especificamente, que sucitaram tanto o debate
entre os enciclopedistas (por vezes com divergências concretas, outras nem tanto) estimularam
Diderot a reorientar suas atividades como filósofo e apoiar-se nas práticas dramaturgicas para
resgatar a importância social desta atividade. Pois é tanto como filósofo quanto como dramaturgo
que ele pretende constatar que a grandiosidade do teatro está em que com a aparição artística do
sublime no palco, a peça pode estancar o vício e divulgar a virtude.
Ei-lo então, prontificado para reforma da estrutura do espetáculo. Ao reorientar suas
atividades, acaba por dar total extensão às suas inclinações naturais e a seu talento, culminando
assim, numa revisão do debate clássico sobre o teatro. A tradição teatral clássica francesa com
sua crença irreprimível no valor da fala para “tornar os homens mais esclarecidos e
melhores”(VOLTAIRE, Selected Works, 62) obstrui a representação da natureza humana tal
qual é, inflingindo artificialidade para as ações teatrais. Segundo Diderot, os homens não
modificam seus atos viciosos e crenças superticiosas apenas com um convite vocal.
Fugir do domínio absoluto da regra é fugir do encastelamento que inutiliza o teatro, basta
que, para uma maior reverência à naturalidade da peça, ele seja tanto verdadeira quanto possível.

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Pois esse domínio restrito, para que o exagero das regras não enclausure a todos, o teatro
somente é útil se for verossimilmente eficaz.
Ora, o que poderá parecer verdadeiro na obra teatral senão aquilo que faça por convencer
completamente a seus espectadores? Diderot quer encontrar o caminho para aplicar sua tese de
que, estando na platéia de teatro, um perverso desnudo de seus atos viciosos e maus “deixa o
camarote menos inclinado a praticar o mal.”
Dado uma tal compreensão da finalidade moral da arte, Diderot crê que agir sobre o
público através do teatro significa trnasformar a sensibilidade do público que assiste ao
espetáculo, melhorando-os moralmente. Lançar ao público uma peça que exija essa
transformação é deslocar os atores e os espectadores da fantasia e aproximá-los da realidade.
Quanto maior for, assim, o sentido de realidade introduzido numa peça proporcionalmente a isso
será o seu alcance e seu efeito. Sua impressão ficará registrada nos espectadores de tal modo que
propensos ou não a atos de natureza diversa são, aqui por força das paixões, de elementos
extraverbais representados nos gestos e nas ações, convidados à reflexão das circunstâncias de
seu caráter na vida cotidiana.
Por fim, Diderot pensa e realiza um teatro que tem justamente esse valor moral, esse
teatro sobretudo que reconcilia o homem à sua natureza, um tal espetáculo que provoca tanto o
espectador mau quanto o virtuoso ao vislumbramento da arte em sua realidade total, convidando-
os a repensarem suas ações na medida do modelo do êxtase: no virtuoso se verá escorrer pela
face aquelas “lágrimas deliciosas” provindas da sublimidade da observação de cenas em que é
abençoada a gloriosa virtude, e quanto homem perverso que útil e aproveitosamente se encontrar
no teatro, ele lançará mão de si próprio em favor da impressão que este espetáculo lhe ocasionou.
Esta é uma peça teatral com a qual se lançam os atutores, atores e espectadores ao transtorno
viceral da opinião pública.

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Algumas Observações a Respeito do “Ente e a Essencia” de Tomás de Aquino
(Texto de 1998)

Com o texto de “Ente e a Essência” Tomás de Aquino pretende dar o ponto de partida de
como é concebida a metafísica. No entanto, a proposta de Aquino é bem original. “Deve-se
passar da significação do entre à significação de essência, de tal modo que, começando pelo mais
fácil, o aprendizado se dê de maneira mais adequada, pois devemos receber o conhecimento do
simples a partir do composto e chegar ao anterior a partir do posterior” (AQUINO, T. “Ente e a
Essência” Prólogo § 2 pág. 13).
Passar, portanto, do composto ao simples para Aquino seria passar do ente à esseência.
Mas antes de prosseguirmos, é preciso saber qual é o significado atribuídos aos conceitos de Ente
e Essência. A terminologia de São Tomás, tomada de comentário aos textos de Aristóteles,
fundamenta-se extritamente no Estagirita. Dito isso, é adequado para aquele dizer que com
Aristóteles o “ente se diz de dois modos” (Metafísica V, 7, 1017a, 22):
1) “Ente”, que é dividido por dez gêneros. 2) significa a verdade das proposições. No
primeiro modo o ente é dito ente real e somente dele que é derivado o nome essência, que
designa a “coisa cuja natureza é ser”. Portanto, neste modo, são ditos entes aqueles qsue põe algo
na coisa. Já o ente dio de segundo modo, sendo ente, tudo a respeito do qual se pode formular
uma proposição afirmativa (ainda que não ponha nada na coisa”)1 as negações também são ditas
ente; em outras palavras, algo como as negações, que não possuem essência, podem ser dito ente,
neste segundo modo.
Outra citação de Aristóteles parace fundamental para Aquino: “O ente dito do primeiro
modo é o que significa a essência da coisa” (Metafísica, V, 14, SSc 56). A essência, desta
maneira configurada, deverá representar uma unidade comum a todos os entes tomados de cada
um dos seus respectivos gêneros e espécies - da mesma forma em que a essência do homem é
humanidade.
Essência é “aquilo que é significado pela definição”. Também chamada quididade, ela
exprime uma questão a respeito do que é a coisa. Nesse sentido que se diz “ a quididade de
Platão e Socrates é a mesma: animal racional. Essa é a essencia de ambos. Uma definição que

1
Tomás de Aquino refere-se aqui às privações que são ditas ‘entes’ embora “não ponham nada na coisa”. Ele dá
como exemplo a privação da cegueira que é dita ente segundo a verdade das proposições.

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pode ser chamada de quididade ou de forma. Se se perguntar qual a diferença entre Platão e
Sócrates, esta diferença será dita meramente material.
A substância (o que é) suporta dentro de si como atributo os acidentes (o que a ela é dado
vínculo). O ente, contudo, se dirá de maneira absoluta, quer dizer, anterior e, posteriormente, às
substâncias. Por outro lado, é preciso dizer, há nos acidentes essencia também, ainda que seja
tida como essência sob um certo modo e sob um certo aspecto.
Dentre as substâncias vê-se que uma são compostas e outras simples. Como o ser da
subsertancias simples constitui um ser de algum modo mais nobre e mais verdadeiro a considerar
ao menos a substância simples e primeira que é Deus, esta substância, por sua vez, é aos homens
mais oculta.
Por essa razão, exatamente, faz-se necessário partir das substâncias compostas. Como diz
Tomás “a fim de que, principiando pelo mais fácil, processe-se um aprendizado mais adequado.
Tal como se observa nas substâncias compostas, a matéria e a forma no homem se apresentam
como a alma e o corpo. É patente que não poderemos considerar que um deles sozinho é a
essência da coisa. Cumpre, então, investigarmos as razões. Na realidade Tomás de Aquino as
apresenta muito simplesmente como se segue: a coisa é cognoscível quando “é fixada” num
gênero ou espécie. Quando fixamos algo em seu gênero e espécie damos a esse algo
inteligibilidade. Assim, a matéria sozinha não pode ser considerada essência, pois, para se tornar
a coisa cognoscível, deveria ser classificada numa espécie ou gênero. Por isso se diz que matéria
não é prencípio de conhecimento. Mas a forma, por sua vez, também não pode ser ocnsiderada
sozinha coo a essência da coisa, visto que a essência é dada como aquilo que é significada pela
definição da coisa, não é razoável supor que na definição das substâncias naturais contenha
apenas forma. Nem se diz que a matéria é posta na definição da coisa como em acréscimo à sua
essência ou como um ente fora de sua essência. Em outras palavras, não se pode netender a
essência como uma relação entre a forma e matéria. Pois, se isso for feito atinge-se a
exterioridade de ambos. A essência seria então, algo distinto da matéria e forma - o que seria
absurdo. Conclui-se do que foi dito que a essência da coisa compreende a matéria e a forma, ou
seja, a essência é o próprio composto.
“De fato, pela forma que é ato da matéria, a matéria é tornada ente em ato e este em
algo.” (Idem Ibidem, p. 18 § 14). A forma é o princípio de perfeição e ato da matéria e, a seu
modo, causa deste ser que é composto. Posto que o ser por ela dado, a matéria não está em ato

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simplesmente, mas é dada a “ser em ato” tal como também os acidentes o fazem, por exemplo, a
brancura faz branco em ato. Etc.
Nesse sentido, a matéria é a potência receptiva ou princípio de individuação qu epermite
a multiplicação dos indivíduos na espécie. Tomás corrobora com a tese do lilemorfismo
(matériea e forma) defendida pelo filósofo estagirita. Se a matéria que entra na definição da
essência da substância composta é que possibilita à espécie se constituir como pluralidade de
singulares, de que maneira a essência pode ser elevada à noção de universal? Este é um aspecto
metafísico da questão deixado por aristóteles, no problema das universas, o qual ocupará o centro
das disputas intelectuais de todo o séc. XIII d.C.
Quando falávamos do princípio de individuação nos referíamos à razão pela qual se
constituem e se distinguem os diferentes indivíduos de uma mesma espécie - para flarmos em
jargão aristotélico é a matéria primeira, datada da aptidão de estender-se em determinadas
dimensões. Como diz Tomás: “a matéria é princípio de individuação, não tomada de qualquer
maneira, mas apenas a matéria assinalada”2 (Idem, Ibidem, pg. 19 § 17).
A matéria sendo potência, funciona como o princípio que limita a forma. E a matéria dita
assinalada (signata) individualiza a forma e engendra a multiplicidade dos singulares na espécie,
como vimos. H. D. Gordeil nos ensina que estas determinações são propriamente de caráter
acidental ou quantitativo. Sendo, porém, a matéria assinalada excluída e considerada apenas a
matéria comum, a matéria que não entra na definição do indivíduo, é possível significar a parte
formal ou a natureza simples da coisa, embora a essência também possa ser tomada como todo
potencial, desta maneira, somente contendo implicitamente a designação da matéria e podendo
ser predicado dos indivíduos.
Na substância composta, portanto, temos duas maneiras de significar a essência: como
todo ou como parte e esta segundo consideração: “designa o universal que exprime a ess~encia
de um sujeito” [quididade] (GARDEIIL, H.D. Iniciação à Filosofia de São Tomás de Aquino, vol.
IV. p.97). hÁ UMA DUPLA CONSIDERAÇÃO DA MATÉRIA. Sendo, pois a matéria
assinalada determinada por um acidente ela promove a distinção real entre substância e acidentes.
(outra distinção importante promovida pelo “doutor angélico” é a distinção entre a essência e a
existência que, encontrada já no velho Aristóteles, estabelece com Tomás uma separação

2
A título de curiosidade, nos anjos aos quais não se pode aplicar evidentemente, o princípio da matéria assinalada,
por serem puras formas subsistentes, isto é, sem composição alguma da matéria, não se podem multiplicar em
indivíduos numa mesma espécie. Se se supor alguma individuação é forçoso supor uma multiplicidade de espécies.

22
profunda entre o Ser necessário e os seres contingentes). Sua demonstração será no sentido de
mostrar que a existência não está incluída na essência como um de seus predicados.
A noção comum que formamos no termo “Homem” encontramos nos homens reais,
Sócrates, Tomás de Aquino, por exemplo - estes participam da mesma natureza humana. No
entanto, esta noção comum compreende universalidade no espírito que torna aplicável - tal
aplicação é uma operação do espírito, chamada abstração - uma extração da natureza comum;
todos por meio dos singulares que estão na origem do nosso conhecimento. Por exemplo “da
observação das diversas espécies animais, tira-se desta atividade abstrativa do espírito, é o que se
chama o universal metafísico” (GARDEIL, H.D. Idem, p.85). Segundo Gardeil, este não é o
universal em seu “estado perfeito” porque isola a natureza e é entendida como natureza pura. O
universal em seu “estado perfeito” seria o universal lógico no qual por uma espécie de
comparação de relacionamento “o espírito volta então aos sujeitos dos quais a natureza universal
foi tirada e reconhece que essa natureza universal convém a esses sujeitos e pode, portanto, lhes
ser atribuída” (GARDEIL, H.D., Idem, p.86) - o conceito é, desta maneira, considerado em
relação a seus “inferiores”.
Nossa digressão tem por objetivo compreender melhor como se dá a operação do
intelecto. Trata-se por isso de saber algo a respeito do movimento que vai do composto de
matéria e forma, para a apreensão dos universais, em função da operação do espírito que é a
abstração. Gilson também nos dá um bom indício para essa compreensão: “ O Homem,
composto de um corpo e da forma deste corpo, está situado num universo composto de natureza,
isto é, de corpos materiais cada um dos quais possui sua forma.” (GILSON A Filosofia na Idade
Média, p. 668). Justamente, o elemento que individualiza essas naturezas são suas respectivas
matérias; já o elemento universal que cada uma contém é, ao contrário, sua forma - conhecer será,
por fim, deprender da coisa o universal nela contida - e, justamente, é nessa teoria da abstração
em que se justifica a solução tomista à querela dos universais. “Assim sendo, resta que a noção
de gênero ou de espécie caiba à essência, na medida em que é significa o modo de todo, como
pelo nome de homem ou de animal, na medida em que contém implicitamente e indistintamente
o todo que está no indivíduo”. (Ente e Essência pg. 30 § 33).
Apenas o assinalado e o não assinalado diferirá aquilo que é dito essência de Sócrates e
essência de homem. Como vimos, na citação acima, encontramos a distinção na essência
significada da parte e a essência significada do todo. “A designação da espécie a respeito do

23
gênero se dá pela forma, a designação, porém, do indivíduo a respeito da espécie se dá pela
matéria” (Idem, pg. 28§ 28). Para falar de modo resumido, o que Toás vai concluir logo a diante
é o seguinte: O gênero e a espécie não se predicam da essência fora dos singulares, pois, não são
predicados do indivíduo. Este nome “Homem” significa essência como um todo e se predica dos
indivíduos (sem necessitar da matéria assinalada “Socrates”. Já a essência tomada como parte
não se predica do indivíduo. É o qu eacontece quando tomamaos este nome humanidade para
significar a essência tomada por parte, pois, ocntida em sua significação reside aquilo que
pertence ao homem sem predicar dos indivíduos particulares desta espécie.
Para conhecer, como vimos a universalidade não se predica dos indivíduos. Considerando
de maneira absoluta, exige-se que se faça atribuir-se aos indivíduos, por exemplo, homem pode
ser predicado de sócrates. Dizemos que Socrates é dito essência de Sócrates levando em
consideração o que se predica de homem, por outro lado não é dito essência daquilo que se
predica de humanidade.

24
Sobre o Artigo 4 da Questão 5 do Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio
(Texto de 1998)

O assunto central desse teto ocupa-se da questão de saber se a ciência divina trata das
coisas separadas do movimento e da matéria. Inicialmente se conclui pela negativa. “ A ciência
divina não abstrai materia do movimento”. Precisa-se, contudo, introduzir-se um esclarecimento
à essa questão - diz a primeira resposta. A de se saber qual ciência deve ser chamada de ciência
divina. Tal como observa Aristóteles na “Física”, qualquer ciência deve considerar os princípios
do gênero, pois é conhecimeto dos princípios que perfaz a ciência.
Quanto os princípios, são de dois tipos: a) os do tipo dos corpos celestes que sãoo os
princ´pios dos corpos inferiores e também com os corpos simples que são princípios dos
complexos (estes princípios “não são considerados somente nas ciências na medida em que são
princípios, mas também na medida em que são certas coisas em si mesmos” (pg. 130§ 3). Os
princípios de naturezas; por exemplo, a unidade do número, o ponto da linha e a forma e a
matéria do corpo físico. Esse tipo de princípio é tratado na ciência em que se observa o que é
pricipiado.
Mais adiante, como objeção Pa resposta primeira, diz-se que nada impede que na
ciênciadivina haja algo que é na matéria e no movimento porque tal como algo de mateático é
assumido nas ciência naturais cabe à ciência divina assumir o cohecimento da matéria e do
movimento; não fosse assim, essa ciência obteria seus conhecimentos acidentalmente, isto é, sme
qualquer participação.
Na questão dois se conclue realmente que a ciência divina não está separada do
movimento e isso se confirma nos argumetos da autoridade bíblica na qual Agostinho diz no
Livro VIII do gênesis que “Deus se move qual ao prieiro movente move-se a si mesmo.”
A resposta a esse argumento vaino sentido de interpretar que tal como certos princípios
comuns de cada gênero se estende a todos os princípios desse gênero, assim pode-se dizer dos
entes que se reúnem no ente e têm certos princípios que são princípios centrais de todos os entes
(“Princípios comuns de dois modos”) como chamava Avicena: 1- por predicação; “ a forma é
comum a todas as formas”, pois predica-se de qualquer uma. 2- por causalidade; sendo o sol um,
é princípio para tudo qu epode ser gerado. Ora, prosegue a resposta, há princípios comuns tanto

25
num modo quanto em outro. No primeiro, Aristóteles o confirma no Livro XI da Metafísica.
“Todos os entes têm os mesmos princípios de acordo com a analogia”. E no segundo modo
supõe que haja certas coisas numericamente as mesmas, que mostram-se como princípios de
todas as coisas - “todos os entes se reduzem, por meio de certa gradação e ordem, a certos
princípios. Além disso, em razão de ser preciso que o princípio de ser das coisas deve ser ente ao
máximo (Metafísica Livro II) é preciso também que tais pricípios sejam perfeitíssimos, ou seja, é
preciso que estejam em ato máximo, não tendo potência ou tendo só o mínimo dela. Por isso,
visto que as coisas divinas não lidam mcom a potência por serem em si naturezas completas, a
ciência divina não lida com o movimento.
Na objeção à segunda resposta se diz que não é aplicado a Deus mover-se senão a título
metafórico. Emprega-se, em geral, dois modos para isso: 1 ) chamado movimento, a operação do
intelecto ou da vontade ( os que assim o fazem tomam impropriamente o movimento: “diz-se que
alguém move a si mesmo qunado se intelege e se ama” (p.134) Isso fez Platão que disse que o
primeiro motor move-se a si mesmo, pois se intelege e se ama. 2) chamando de movimento a
procissão que é um fluxo causado a partir de suas causas - um movimento de causa no causado
por exemplo, a comunicação de Deus a respeito de sua semelhança a todas as criaturas - procede
em tudo, não é isso o que significa mover-se realmente - não seguese razão daí.
Cabe à ciência divina a tarefa de considerar não somente a respeito de Deus, mas também
a cerca dos anjos. Há relatos, portanto, da mobilidade dos anjos, os quais se movem por escolha
(de bons para maus) por lugar (mensageiros). Assim, fica claro que a ciência divina trata do
movimento.
A terceira resposta a esta questão a cima relembra Aristóteles que no livro II da
metafísica, em que aos primeiros princípios nossos olhos devem olhar como os olhos da coruja
olham para o sol. Não podemos chegar a eles pela luz da razão natural somente pelos seus efeitos.
As coisas divinas nãos ão tratadas pelos filósofos. Só pode trata-las aquela ciência que
compreende a medida dos princípios das coisas, nela está contido tudo que é comum a todos os
entes, ela é que tem por sujeito o ente enquanto ente - a ciência divina. Tal como se lê nas ‘I
Corinthios, 2 II ss. “o que é Deus, ningém conheceu senão o Espírito de Deus”. Nos, porém,
recebemos, não o espírito deste mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para qu
econheçamos”. Assim, não só por si mesmo, mas também como princípios das coisas são
tratadas as ciências divinas.

26
A ciência divina, refuta essa terceira resposta, sendo recebida por inspiração divina, não
trata como sujeito seu os anjos. Mas “somente como daquilo que é assumido para manifestação
do sujeito”. quanto aos anjos nãos e fala que estes se movem realmente senão quando se fala or
analogia, pois este seria o movimento do intelecto e da vontade. Assim, eles não se movem de
acordo com uma circunscrição, mas de acordo com a operação que exercem neste ou naquele
lugar. Assim, o movimento não os cabe de jeito nenhum.
Todas as coisas que existem, roga a quarta questão ou é forma pura ou matéria pura ou
composto de matéria e forma. Se o ajnjo fosse forma pura seria ato puro - isso só caberia a Deus.
Evidentemente, ele não pode ser matéria pura que seria absurdo, ele é portanto, composto de
matéria e forma. Conclui-se que a ciência divina não abstrai da matéria.
Na quarta resposta livra-se em consideração o seguinte: a ciência divina poderia ser vista
sob dois aspectos: a) o que considera as coisas divinas como princípios do sujeito e não como
sujeitos da ciência (os filósofos chamam-na metafísica). b) o que considera as coisas divinas por
si mesmas, como sujeitos de ciência (as sagradas escrituras tem-na por teologia). Ambas tratam
do que é separado da matéria e do movimento no que respeita ao ser e isso se dá de dois modos:
1) que a coisa separada não pode ser de maneira nenhuma na matéria e no movimento (tal como
Deus e os anjos) 2) que pode ser matéria e movimento, embora às vezes se encontre na matéria e
no movimento (tal como o ente, a substência, a potência e o ato). Ora, portanto, a Metafísica
determina a respeito do que é separado, do primeiro modo, como acerca dos princípios do sujeito;
a teologia da sagrada escritura, porém, trata do que é separado, do primeiro modo, como acerca
dos sujeitos, embora nela seja tratado algo que é na matéria e no movimento, na medida em que a
manifestação das coias divinas o requer.
Na quarta objeção, observa-se que o ato e a potência são mais ocmuns do que a matéria e
a forma. De tal modo que se não se encontra nos anjos a composição da matéria e forma,
encontram-se neles potência e ato. Entre a matéria e a forma vê-se composição somente naquilo
em cuja parteestá para com a outra ocmo é também a potência para o ato. Ora, o que pode ser
pode não ser e mais, como afirma Aristóteles no Livro I” Do céu e do mundo e no Lirvro VIII da
Metafísica, não se encontra a composição de matéria e forma senão no que é por natureza
corruptível. “Toda matéria que está sob alguma forma, pode também não estar, a não ser que,
acaso, seja conservada por causa extrínseca” (p.136). Se se considerar a natureza dos anjos sua
essência é incorruptível e assim não há ocmposição de matéria e forma. “ Mas coo o anjo não

27
tem ser por si mesmo, está ssim, em potência para o ser que recebe Deus, e asism, o ser recebido
de Deus copara-se à sua essência siples como o ato à potência.” (p.136). De qualquer forma, se
possuissem matéria os anjos essa matéria não seria sensível dado que dessa matéria seria forçoso
abstrair o que é de caráter matemático. Assim, como separado o que é de caráter metafísico.

28
O conceito de Mimesis na Poética de Aristóteles
(texto de Junho de 1999)

INTRODUÇÃO

Pretendemos aqui fazer um breve inventário das ocorrências do conceito de mimesis na


POÉTICA DE ARISTÓTELES. O termo mimesis é fortemente marcado, de uso corrente ao
longo de toda a obra (ver Apêndice). Buscamos modestamente relacionar a aparição do termo
com o contexto que emerge da teoria poética de Aristóteles.
O conceito de mimesis é, para a compreensão da Poética de Aristóteles, um termo chave
que sustenta suas considerações a respeito da Arte Poética; termo este que designa, em sua
acepção mais geral, IMITAÇÃO.
O conceito de imitação é longamente discutido na obra platônica (1), dada a importância
que tem (de perigo) na construção da Politéia ideal que, como veremos, será afastada da tese do
filósofo de Estagira, para o qual a imitação não representa perigo e sim, uma relevante
característica humana e o fundamento das artes poéticas.
Acompanhando a análise de Sigismundo Spina (2), vemos que Platão, ao tratar do
conceito de imitação em sua obra, refere-se a ele como uma impossibilidade de ser uma “cópia
fiel da realidade”. Afirmando que o decalque, uma reprodução perfeita só é possível a um deus,
nunca ao homem. Somente um demiurgo poderia fazer uma reprodução de um “segundo” Crátilo,
indo além da forma da qual retratam os pintores e conseguir ainda retratar o interior de sua
pessoa com todo caráter, ternura, calor, movimento, alma e pensamento. Platão retorna a este
conceito no Livro X da República; unindo-o à sua ontologia: “três são os criadores, três as
realidades criadas, isto é: deus, o artesão e o artista; deus é o autor da primeira realidade (o
arquétipo); o artesão, autor da segunda, que se inspira no arquétipo, e, o artista, autor da terceira,
que se inspira na realidade criada pelo artesão”(2). Assim, na “hierarquia da realidade”, um
objeto como por exemplo uma cama, que existe na natureza das coisas criadas por deus, é uma
cama real no entender de Platão. Ao mesmo tempo, uma cama, construída pelo artesão, é uma
imitação aproximada, uma cópia, uma sombra (skia) da idéia de cama, que existe no mundo
inteligível (real). Deste modo, a cama imitada pelo artista é uma cópia da cópia do original, por

29
isso, essa imitação é extremamente perigosa para a obtenção do objetivo dos “cidadãos da
República que é se aproximar da realidade do mundo das idéias.
Logo nos primeiros capítulos da Poética de Aristóteles, contudo, observamos seu
afastamento das concepções de seu mestre na própria definição da função do conceito de
imitação e na exposição que faz relativamente à arte da poesia, a qual descreverá como sendo a
arte da “imitação da ação”. A “arte poética” é realizada através da disposição do ritmo, da
linguagem e da harmonia, e ela subdivide-se em : epopéia, nomo, ditirambo, comédia e tragédia.
Assim, para a teoria aristotélica da arte poética, o conceito de mimesis é fundamental.
Mas, que relevância dá Aristóteles, entretanto, à mimesis no âmbito da espécie humana? Este
autor diz que o “imitar é congênito no homem”(Poética, 1448 a, II, §13). Há na espécie humana
a tendência natural para o imitar, aliás, isto o distingue de outros seres da natureza, pois entre
todos os outros ele é o mais verdadeiro. Ele se utiliza da imitação para adquirir as primeiras
noções.
Ao longo da descrição de sua concepção das artes poéticas, Aristóteles observa duas
grandes divisões nos modos de imitar, sobre as quais todas as outras espécies de imitar se
reúnem: o modo de imitar por meio da narrativa e o modo de imitar por meio de atores. Dessa
maneira, fica reservado ao poeta a narrativa dos acontecimentos, mediante as personagens, ou a
narração dos acontecimentos sendo ele próprio a personagem a representar a ação. Ficam assim
demarcados os componentes do tema a respeito dos quais Aristóteles faz suas considerações, a
saber: a epopéia, como a arte da narrativa; a tragédia e a comédia, representantes das artes
dramáticas.
A mimesis é a imitação da ação. Há uma separação entre os indivíduos que praticam as artes
miméticas e esta divisão é estabelecida conformemente a qualidade ou modo dos que
representam a imitação. De modo que, embora a epopéia, a tragédia, a poesia ditirâmbica, assim
como a maior parte da aulética e da citarística (3) sejam em geral, imitações, elas diferenciam-se
entre si nas circunstâncias do MEIO pelos quais imitam ou porque imitam; pelos OBJETOS que
variam na imitação, ou porque praticam ações por modos diversos a partir dos quais imitam
diferenciadamente.
Igualmente, em outras artes, tais como a dança ou a siríngica (arte de tocar “flauta de Pã”)
são designadas como artes MIMÉTICAS; estas imitam, respectivamente: a DANÇA; imita o

30
ritmo (imitação de afetos, ritmos gesticulados e ações); e as artes da MÚSICA, congêneres à
siríngica, imitam o ritmo e a melodia.
Relativamente às artes dramáticas e narrativas, Aristóteles distingue a tragédia, por exemplo,
como a imitação de uma ação austera ou de um ato nobre. Os imitadores da tragédia são homens
que praticam necessariamente ações elevadas e são distinguidos, em geral, pela virtude. Portanto,
cabe observar que , em qualidade, estas personagens imitam sempre homens melhores que nós.
Sófocles e Homero imitam em suas tragédias estes homens de caráter elevado (1448 a, II, §§ 7, 8
e 10). A imitação na tragédia se efetua não por narrativa, mas mediante personagens que
suscitarão nos espectadores o “terror e a piedade” com o propósito de purgar essas emoções. As
personagens da tragédia agem e se apresentam de acordo com seu próprio caráter e conforme
seus pensamentos.
Consecutivamente, Aristóteles divide a tragédia em seis partes, em relação à sua
“qualidade”, que constituem-se em: MITO, CARÁTER, ELOCUÇÃO, PENSAMENTO E
MELOPÉIA. “De sorte que quanto aos meios com que se imita são dois, quanto ao modo por
que se imita é um só, e quanto aos objetos que se imitam, são três; e além destas partes não há
mais nenhuma (...) não poucos os poetas que se serviram desses elementos” (1450 a, § 31). Na
arte da pintura, Aristóteles destaca Polignoto como quem representava os homens superiores.
É importante notar que a imitação na tragédia tem por elemento crucial a “trama dos
fatos”, pois, a imitação, tal como é estabelecida na tragédia, não é uma imitação dos homens mas
sim uma imitação de AÇÕES e imitação de VIDA [felicidade ou infelicidade] que residem
particularmente na ação. Aristóteles reforça esta idéia argumentando que “a própria finalidade da
vida é uma ação e não uma qualidade” (1448, II, § 32). Significando com isso que é o caráter dos
homens que os fazem possuir determinadas qualidade, no entanto, são ações que definirão ou não
sua bem aventurança. Consequentemente, a tragédia tem por constituintes as ações das
personagens e a composições dessas ações [ mito ou intriga ]. Além disso, observa Aristóteles, as
tragédias possuem dois aspectos ainda; a Peripécia e o reconhecimento. A peripécia, é a
“mutação dos sucessos”, ou seja, momento em que há na composição das ações das personagens
que imitam, uma mudança na fortuna. Aristóteles aplica este termo apenas às combinações de
ações (mitos) COMPLEXOS, no contrário, os mitos SIMPLES, são aqueles pelos quais não
ocorrem a peripécia. O reconhecimento “é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para

31
amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita”(1451 b,
XI, § 17).
A arte da epopéia, que “recorre ao simples verbo, quer metrificado quer não” (1447 a, XVII, §
4), perfaz o conjunto das combinações imitativas. No entanto, como descreve Aristóteles, essa é
uma arte que até seu tempo permaneceu inominada. Não há denominador comum entre as
variadas espécies de composições miméticas, por exemplo, entre os “mimos” de Sófron e de
Xenarco, bem como os diálogos socráticos e outros que se utilizam de versos trímetros jâmbicos
ou de versos elegíacos. Ainda assim, agregando-os em uma designação, a saber, de “poeta”, o
nome de uma só espécie métrica, aconteceu denominarem-se uns de “poetas elegíacos”, que
imitam em tom quase sempre terno e triste (canto plangente) por meio de versos hexâmetros e
pentâmentros; e outros, de “poetas épicos”, que imitam os “feitos épicos”, fora do comum,
“feitos heróicos”. Deste modo, não se designam pela imitação propriamente, mas sim, são
designados de acordo com o “metro”(métrica) que utilizam.
Em suma, todas as artes poéticas e incluindo a dança, a pintura, a escultura e a música,
serão reconhecidamente artes miméticas.

CONCLUSÃO

Vimos que o conceito de mimesis permeia toda a Poética de Aristóteles e que representa
o fulcro central das artes imitativas.
Para Platão este conceito de mimesis é pejorativo, pois impede o cidadão da República de
se aproximar do “mundo real”, das idéias em si. Enquanto que Aristóteles, compreende o
conceito de mimesis como um aspecto fundamental das artes miméticas.
A mimesis é imitação da ação. Há uma separação entre os indivíduos que praticam as
artes miméticas e esta divisão é estabelecida conformemente à qualidade dos que representam a
imitação. Conclui-se, por fim, que todas as artes poéticas - inclusive a dança, pintura, escultura e
música - são reconhecidamente artes miméticas.

NOTAS

32
(1) Ver: Rep., Livro. X, 377b, 403c, 595a, 597a; Fédon 100d; Sofista 236b; Timeu 50c.
(2) SPINA, Sigsmundo; “Introdução à poética clássica”; 2a. edição, Martins Fontes, pág. 84,
São Paulo, 1995.
(2) Aulética, do grego; Auletiké: arte de tocar flauta ou aulo. Citarística, do grego; Kithára,
do latim. Citharista: a arte de tocar cítara.

Apêndice

ÍNDICE ANALÍTICO:

(termos: IMITAÇÃO, IMITAR, IMITAM, etc. na poética de Aristóteles)

parte I
( 1447, §§ 2, 3.)
( 1447b,§§ 4,5,6.)
partes II / III / IV
( 1448a ,§§ 7,8,9,10,11.)
( 1448b, § 12,13,15,18,17)
partes V / VII / VIII
( 1449a, §§ 22,24,26,27.)
( 1449b, § 29.)
( 1450a,§§ 30,31,32.)
(1450b,§§ 35,41.)
(1451a § 49.)
partes IX / X / XI
( 1451b§§ 54,57.)
( 1452b§ 62)
partes XIII / XIV
( 1453a , §§ 69, 75.)
parte XV
(1454a , § 90)
partes XXII / XXIII XXIV
(1459a,§ § 145, 146,147.)
(1459b, § 154.)
(1460a ,§ 155.)
partes XXV / XXVI
(1460b,§§ 161,162)
(1461b,§§ 161, 162.)
( 1461b,§§ 180,181.)
(1462a ,§ 182.)
( 1462b, §183)

33
Um Ponto Fixo no Infinito?
(texto de novembro de 1999)

Nnuma palavra, o homen sabe que é miserável. Ele é, pois, miserável, de vez que o é ,
mas é bem grande de vez que o sabe

Pascal (pensées, 397)

Nosso presente trabalho pretende visualizar de passagem, alguns dos aspectos teóricos
que se seguiram à assim chamada “crise da consciência Européia”, séc. xvi-xvii , a que, ao
nosso ver, encontrou de certo modo – “direito de cidadania” –, resposta a boa altura num campo
de batalha bastante surpreendente, a saber: PASCAL-DESCARTES. Alexandre koyré (1), em
seu trabalho “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”, destaca o momento da chamada “crise
da consciência européia” como resultado imediato do surgimento de uma nova cosmologia que
viria reestruturar ou, por que não dizer, desestruturar toda a visão de mundo que se sustentava até
ali. Observaremos que a busca filosófica, tanto quanto as atividades científicas, serão afetadas
por esta crise e permitirão, no solo de muitas controvérsias, florir novos modelos em que se
basear.
A variedade de frutos teóricos derivados ou sob a influência das revoluções cosmológicas
do período, citando como exemplo a copernicana, motivou alguns intelectuais a identificar esse
período ao da perda da “bela totalidade”. Antes de entrarmos mais detidamente nesse assunto,
cumpre notar que, desde o mundo grego, as “revoluções” no campo “filosófico-científico
implicaram em mudanças radicais no modo de pensar da sociedade culta. O mundo grego,
armado de organicidade – em que se somavam num só tempo, o seu modo de ser, sua vida na
polis (cidade) e sua visão cosmológica – conduzia-se baseado em forças que para eles eram
inquestionáveis: a “unidade da verdade”; a “circularidade dos eventos “ e, portanto, a “bela
totalidade do cosmos”.
O surgimento de uma nova cosmologia, substituta do geocentrismo grego, revolucionou
sobremaneira a visão da época. A permuta de concepção cosmológica, de um mundo geocêntrico,
ou mesmo se quisermos, “antropocêntrico” do mundo clássico e passando ainda pelo
heliocentrismo medievo, culminando posteriormente no universo acêntrico da astronomia
moderna, implicou em mudanças radicais de todo tipo na mentalidade européia, e,

34
conseqüentemente, em toda cultura. As conseqüências mais significativas sintetizam em si o
sentimento de insegurança e confusão advindas dessa “nova filosofia”. A perplexidade
sobrevinda das descobertas no campo da astronomia, alterou o equilíbrio de um mundo que já
não mais possuia, como se pensava, aquela coerência e ordenação (influência grega; cosmos
(ordem , beleza, circularidade) num universo em que já não mais se manifestava a glória de Deus.
Há variadas descrições tomadas pelos historiadores a respeito deste momento
revolucionário. Destaca-se, entretanto, o que para alguns pesquisadores foi seu aspecto mais
significativo, que foi a “secularização da consciência” (despreocupação para com a outra vida); a
substituição do objetivismo dos medievos e dos antigos, pelo subjetivismo dos modernos; e por
fim, a mudança de relação entre a teoria e a prática (2). Muitas expressões do pensamento, desde
o mundo grego , inclinaram-se pela infinitização do universo. A redescoberta dos atomistas
gregos e outros fatores como a descoberta de Lucrécio ou Diógenes laercios, contribuiram em
muito a favor dessa concepção. Atribui-se, entretanto, a Nicolau de cusa (‘De docta ignorantia”-
1440) como sendo o primeiro pensador a rejeitar a concepção cosmológica medieval (de forte
influência aristotélica) que preconizava o heliocentrismo. Posteriormente, Nicolau será
interpretado por Giordano Bruno e Kepler como precursor de Copérnico e, por fim, Descartes o
citará como um “defensor da infinitude do mundo”. (Ver: KOYRÉ, idem, p.18) Talvez tenhamos
encontrado aqui o primeiro foco da controvérsia que vamos relatar mais a diante: Descartes.
(1596-1650), questionando Nicolau de Cusa (1401-1464), evita atribuir o qualificativo de
‘infinito’ ao mundo. Por outro lado, como se verá daqui a pouco, Pascal(1623- 1662)
reconhecerá naquela idéia de Nicolau de Cusa sobre a coincidência dos opostos no absoluto
paradigmas francamente válidos na infinitização de certas relações ‘apreendidas’ em objetos
finitos.
Assim, por exemplo, não há nada mais oposto na geometria do que ‘reto’ e ‘curvo; no
entanto, no círculo infinitamente grande, a circunferência coincide com a tangente, e no
infinitamente pequeno, com o diâmetro. Em ambos os casos, ademais, o centro perde sua posição
única, determinada; coincide com a circunferência; não está em parte alguma, está em toda parte
(3){cf. PASCAL, Pensées 72 § 01). E o que diz, por exemplo, Nicolau de
Cusa: ‘(...) Se considerarmos os diversos movimentos das orbes [celestes],(constatamos que) é
impossível para a máquina do mundo possuir qualquer centro fixo e imóvel, seja este centro a
terra sensível, o ar, o fogo ou qualquer outra coisa. Pois, não pode existir nenhum mínimo

35
absoluto em movimento, isto é , nenhum centro fixo, porque o mínimo deve necessariamente
coincidir com o máximo”( 4).
Com a revolução na concepção de cultura da mentalidade européia nos séc. xvi-xvii,
portanto – advinda das estrondosas descobertas no campo da cosmologia – surgiu entre os
intelectuais do período e os que se seguiram à esta revolução, a polêmica de se se
poderia ou não haver um “ponto fixo”, ou seja, algo a que se ater ou que pudesse substituir os
velhos padrões de fixidez desenvolvidos desde as civilizações clássicas, passando pela idade
média até ali, no prenúncio da modernidade. Ora, já tendo sido derrubados no campo astrofísico
aqueles modelos cuja concepção de universo fechado, ordenado, finito, contribuiam assim para
utilização desses mesmos ideais (manifestados no cosmo) de beleza, ordenação,
circularidade, aplicados aos demais campos da vicissitude humana – especialmente na moral, que
era ainda uma preocupação expressiva desde os “criadores” da modernidade até Kant, por mais
quanto tempo esses modelos fixos da política e da moralidade iriam se sustentar? Numa
Concepção em que o universo é infinito, portanto, distancia-se mais uma vez essa idéia de um
ponto que referencializasse o espaço. Por outro lado, quando se trata de moral, essa metáfora do
espaço é uma metáfora particularmente importante para compreendermos uma específica visão
da mentalidade moralista francesa sobre a seguinte questão : é possível ou não haver fixidez na
moral?
A entender pois, que se se pudesse encontrar um ponto fixo pelo qual se basear,
justificaria-se a aplicação de novos modelos que seriam eficazes para fundar o advento de
uma coerência nova e confiável para a realidade do mundo.
É importante notar que a idéia de “ponto fixo”pode ser concebida de maneira muito
diversa.. Já Montaigne, em seu ensaio “Dos canibais”, chamava a atenção de como um valor
aparentemente fixo pode ser objeto de questionamento e eventualmente sofrer uma inversão.
Montaigne(1533-1592) relata o assombro do rei diante do exército romano com o qual ia
defrontar-se; esse rei dizia: "Não sei que gênero de bárbaros são estes (pois assim chamavam os
gregos a todas as nações estrangeiras) mas a disposição do exército que vejo não é de forma
alguma bárbara. (5). Mais adiante, Montaigne critica a posição dos Europeus diante dos povos do
recém descoberto “novo mundo” que eram vistos por estes como simples selvagens ou bárbaros.
“creio, diz Montaigne, que não há nada de bárbaro ou selvagem nessa nação(...) sucede, porém,
que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes (diante da nossa) traição,

36
deslealdade, tirania e crueldade, que são os nossos pecados de todos os dias, podemos achá-los
bárbaros em relação às regras da razão (contra o canibalismo) mas não em relação à nós que os
sobrepassamos em toda espécie de barbárie.”(idem, pg.32)
Embora o problema do relatividade do ponto de vista já tenha sido analisado desde
Aristóteles, podemos ver essa crítica de Montaigne, como uma formulação arcaica de que a
fixidez dos valores inutiliza a compreensão da realidade e centraliza, pela inércia e
conservadorismo, os meios de obtenção ou entendimento dos aspectos do diverso da realidade
humana. O que se questionará, entretanto, no seio daqueles pensadores que, quer queiram quer
não, influenciaram-se pelos desdobramentos da revolução cosmológica? (Não se trata ainda aqui
da questão da fixidez na atribuição de valores exatamente, tal como Montaigne a criticou,
conquanto elas se associem de alguma forma; mas é por razão justamente delas se associarem
de algum modo que decidimos expor aqui essa visão de Montaigne – e por fim, fazer uma
tentativa de aproximá-la da visão da qual falaremos a seguir.) Ora, esses pensadores são
exatamente os moralistas franceses, herdeiros intelectuais de Montaigne, patriarca de uma linha
característica da literatura-filosófica francesa que alcança a Rousseau. Linha esta que seguirá, a
seu modo, a trilha deixada pelo velho Montaigne e que estabelecerá sobretudo o questionamento
sobre as “certezas” sejam as da fixidez ou as da crença absoluta na razão.
Questionamento esse que é perfeitamente adequado ao “patrono” Montaigne que um dia
asseverou ser tudo vão, incerto, duvidoso, passivo de controvérsia até mesmo no domínio das
ciências. Pascal, com seu livro “ Penssée”(6) escrito no auge do racionalismo e da polêmica
religiosa provocada pela reforma, do jansenismo e da contra-reforma, não tinha uma idéia
unitária de seus “pensamentos”. Contudo, ainda assim, bastaria uma visão geral por sobre os
“pensamentos” para reconhecer aí já uma franca apologia ao cristianismo, duras críticas
ao pirronismo, estoicismo e ateísmo, e, talvez, um possível esboço para uma teoria anti-
cartesiana (o menos provável, não pelo anti-cartesianismo de fato existente em Pascal, e sim, se
pensarmos na teoria, no sentido da sua possível sistematização).
Na realidade, nos seus “pensamentos”, Pascal – embora multiplicam-se as referências
indiretas – faz poucas referências nominais a Descartes (ver: “pensamentos” 76-79) o que nos
parece suficiente todavia, para observar o profundo desgosto que o afeta ao mencionar a marca
da filosofia de Descartes, o fato deste considerar como sendo a natureza do mundo a figura e a
extensão, montando uma “máquina” em cima disto: “Descartes, inútil e incerto (pensées, 78): em

37
outro lugar: “E ainda que fosse verdadeiro, não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora
de trabalho”( pensées, 77). Assim, como a metafísica cartesiana, sua moral também baseia-se em
princípios. No desenrolar dos “Pensamentos”, vemos que Pascal ataca frontalmente a filosofia
cartesiana como acometida de excessos. [os que] “estão habituados a raciocinar por princípios,
nada compreendem das coisas do sentimento, procurando nelas princípios e não podendo vê-las
de um golpe” (pensées, 3): e, num outro pensamento, diz porque exatamente lhe desagrada a
filosofia de Descartes: “dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão” (pensée, 253). Por fim,
sendo mais incisivo em caracterizar a antipatia ao esprit de geometrie, diz: “Essas pessoas
carecem de coração; não faríamos delas nossos amigos.” (pensées, 196)
Referimo-nos, portanto, à maneira de como os “penssée” de Pascal se adequaram ao
entendimento das paixões como um aspecto importante e até mesmo necessário da obra humana.
Evocando na entrelinha de seu ponto de vista a velha máxima atribuida à Agostinnho: “a razão
sem coração é manca, coração sem razão é cego”. Ora, o quão esse objetivo é conflitivo com o
de Descartes! Neste se realiza o abrandamento da paixão, o amortizamento do lirismo e o
afastamento dos transes sentimentais, que seriam capazes de abalar o encadeamento rigoroso que
leva à verdade segura e imutável, pois, segundo o pensador racionalista: “O exercício da virtude
é um soberano remédio contra as paixões.”(7) (DESCARTES, paixões da alma, art.148).
O propósito de fundar uma moral baseada estritamente na suficiência da razão foi, para
Descartes, seguido pela reflexão sobre o lugar em que ocupa a virtude, o soberano bem, a
felicidade na moral e a beatitude como a finalidade última do homem. Contudo, devido ao limite
de nosso estudo, daremos menor ênfase ao conteúdo específico da moral cartesiana. No entanto,
é preciso dizer e repetir, é certo que toda compreensão de moral em Descartes provém de sua
metafísica e as aplicações práticas que se pode absorver são produtos diretos de sua física.
Ambos demonstram o esforço do filósofo no sentido de retirar das noções gerais da moral as
regras práticas da conduta (8).
A “sagesse” cartesiana não encontra parâmetros naquela de Montaigne, que acata e
observa um processo mais ou menos contínuo de laicização da moral que se desenvolveria mais
a partir do renascimento. Descartes entende-a como uma união da ciência e da virtude. Essa será,
tecendo-se relações entre o Entendimento e a Vontade , o instrumento por meio do qual haverá o
construto do perfeito Conhecimento, das coisas que poderão ser objeto do entendimento humano.

38
A razão servir-lhe-á, portanto, como um fundamento a partir do qual poderá se adquirir a
primeira verdade (cogito) e, conseqüentemente, todas as outras verdades.
Embora se atribua normalmente o título de geômetra apenas a Descartes, é preciso dizer,
tanto Pascal quanto Descartes eram geômetras e matemáticos. Colocá-los frente a frente assim
como é nossos intuito, pretende menos fazê-los divergirem-se totalmente, que expor uma
polêmica que, a nosso ver, é um perfeito retrato daquilo que diferencia respectivamente,
Descartes e Pascal. num, diz Pascal, “os princípios são de uso comum (...) mas, no espírito de
finura, os princípios são de uso comum, aos olhos de todo mundo (pensée, 1). Esses espíritos, no
mesmo lugar acrescenta o filósofo, aproximariar-se-iam mais entre si se volvessem uma “vista
boa” um ao outro. Ao espírito de finura cabe considerar que a omissão de um princípio sequer na
geometria levaria ao erro, portanto, ele deve possuir a “vista bem clara ” para bem enxergar a
esses princípios e deve manter o espírito justo a fim de que não raciocine mal sobre princípios
conhecidos. Já ao espírito de geometria cabe “virar a cabeça” sem nenhum esforço, mas que
mantenha “boa vista” sob os princípios da finura pois, “são tão sutis e em tão grande número que
é quase impossível não nos escaparem alguns”. (pensée, 1)
Ora, do modo como nos fala o filósofo, tudo parece simples. E é simples! Bastaria então,
uma adequada incisão do olhar e cada espírito encontraria, por assim dizer, seu oposto? Bem,
ocorre que, diz Pascal, certos espíritos sutis “não podem de todo voltar-se para os princípios da
geometria”, e o que é pior, “alguns geômetras não são sutis porque não vêem o que está na frente
deles,” e que, estando “acostumados aos princípios nítidos e grosseiros da geometria”
(raciocinando somente após bem verem e bem manejarem seus princípios “perdem-se nas coisas
da finura”. Justamente, por esta razão, é raro encontrar sutis que sejam geômetras, e geômetras
que sejam sutis. O espírito de geometria força-nos ao método de resolução geométrica das coisas
sutis. “isso é ridículo”. Os espíritos sutis que julgam simplesmente “de um só golpe de vista,
espantam-se diante de proposições, definições prévias e princípios estéreis; desgostando-se disso,
terminam por afastarem-se. Mas os espíritos falsos – aqueles não explicam bem
todas as coisas por definição e por seus princípios – conclui Pascal. “Não podem ter a paciência
de descer até os primeiros princípios das coisas especulativas da imaginação, que nunca viram no
mundo e que estão completamente fora de uso”. Já os geômetras que não possuirem espírito reto
não explicando bem as coisas conformemente às suas definições e princípios estes serão espíritos
falsos.

39
Assalta-nos aqui um desejo irresistível de aproximar o “espírito de finura” de Pascal com
a “Docta ignorantia” de Nicolau de Cusa. E pensamos não estar absolutamente enganados se
fizermos tal ordem de coisas. Principalmente, porque, a considerar a função que ambos os
conceitos tomam no interior do pensamento destes filósofos, sobressalta-nos este avizinhamento.
Tanto Pascal quanto Nicolau de Cusa rejeitam, por assim dizer, a crença estrita
e efetiva na razão no sentido de ser a razão contedora por si da verdade e na crença de que esta
possa abranger a totalidade do real(9)
“( ... ) uma vez que é impossível encerrar o mundo entre um centro e uma circunferência
corpóreas, é [impossível para] nossa razão ter uma plena compreensão do mundo, posto
que implica a compreensão de Deus, que é seu centro e sua circunferência”(Nicolau de
Cusa, idem; pg. 100)

e ainda;

“Quem quisesse seguir apenas a razão seria louco perante o juízo do homem comum. Ë
preciso julgar de acordo com o julgamento da maior parte do mundo” (Pascal ,idem;
pensées, 82 § 10)

Nota: Este texto, como quase todos os outros aqui publicados ficou fora do ar e foi perdido com o fim
do geocities (yahoo) em 2009 (eu estava fazendo intercâmbio nos EUA na época e só soube desta tragédia
tarde demais, quando voltei ao Brasil). No entanto, uma minoria de textos foram recuperados da internet
posteriormente, por meio do trabalho arqueológico da |wayback machine| do Intenet Archive:
(http://archive.org/web/), a quem agradecemos. Com relação a este texto, no entanto, a conclusão, as
notas e as referências bibliográficas foram irremediavelmente perdidas.

40
Aspectos da Doutrina Leibniziana
(Texto de 1999)

“Mas, enquanto somos viajantes desse mundo, é impossível explicar


Sempre, em tudo, a admirável economia desta escolha. É bastante
Sabê-lo, sem o compreender.
É aqui o momento de reconhecer altitudinem divitiarum,
a profundidade e o abismo da sabedoria divina, sem buscar
Um esmiuçamento que envolve considerações infinitas”
(Discurso de Metafísica § 30)

INTRO

A presente pesquisa pretende lançar luz sobre o conteúdo e o sentido do trecho aciima, do
projeto de uma carta a Arnauld. Analisando, suscinta e superficialmente, os termos que emergem
do contexto da argumentação leibniziana, à luz de suas concepções sobre método e metafísica,
evocando sempre que possível e não necessariamente, os próprios textos, baseando-nos nas
conclusões dos argumentos concebidos pelo nosso autor.
Obviamente, a restrição limitante de uma análise forçadamente superficial, inclina-nos à
grave falta ao cumprimento de um dos objetivos da reflexão que justifica-se na “atenção ao que
já se encontra em nós conquanto que os sentidos não nos dão, com efeito, o que já levamos
conosco” (Nouv. Ess., Avant-Propos). Ademais, a ligeireza, ou se quisermos; a leviandade do
redobrar-se sobre as ideias restringe a reflexão ao “simulacro” de um pensamento. Contudo -
refazendo-nos mais otimistas 0 , que a reduzida abrangência de nosso estudo sirva-nos de “porta
de entrada” para uma posteriora análise (mais convicta) que mergulhe no inadiável refluxo da
consciência com maior profundidade.
Para o desenvolvimento desse trabalho, baseamo-nos principalmente na análise de Russel
sobre Leibniz, com o intuito apenas de esclarecer os conecitos da filosofia e não propriamente
para seguir suas críticas dirigidas ao sistema leibniizano. Além disso, deixamos de comentar aqui,
entre tantos tópicos relevantes, sobre o problema da necessidade e contingência metafísica - para
simplesmente afirmá-la como possibilidade tal como Leibniz a salientou - deixamos de fora
também a solução leibniziana do problema do mal e o problema da co-possibilidade, etc. Estas
questões são profundamente analisadas no livro d eRussel sobre “A filosofia de Leibniz” cuja

41
referência se encontra indicada na Bibliografia. Por fim, na trajetória deste pequeno esboço,
decidimos iniciar por uma breve exposição acerca da monadologia que, ao nosso ver,
caracteriza-se como o sustentáculo do discurso de Leibniz.

Bases Metafísicas

As mônadas, como as descreve Leibniz, em seu livro “Os Princípios da Filosofia Ditos a
Monadologia”, são substâncias simples, isto é, sem partes e que portanto, não possuem extensão.
Elas são, no dizer dele, “verdadeiros átomos da natureza (elementos das coisas)”.
É importante notar que nesta definição das mônadas está incluida a noção de que, por
serem simples, elas somente poderiam se originar na natureza por criação e acabar por
aniquilamento. Posto que, se fosssem compostos, começariam por partes e acabariam por partes,
e, como dissêmos, as mônadas não as possuem.Além disso, não é possível conceber, diz Leibniz,
que as mônadas possam se comunicar entre si, visto que se houvesse algum “movimento interno
que, de fora, seja excitado, dirigido, aumentado ou diminuído lá dentro”, haveria mudança entre
as partes como nos compostos e elas deixariam assim de serem substâncias simples. “As
mônadas não possuem janela por onde qualquer coisa possa entrar ou sair, os acidentes não
podem passear fora das substâncias, nem acidente pode vir de fora para dentro da mônada”.
Entretanto, caso as mônadas não tivessem qualidades, seriam indistinguíveis uma das
outras ( como na natureza não há dois seres idênticos - as mônadas também são distinguíveis).
Desta maneira, assim como para todo ser há mudança, també, para a mônada (criada) esta
mudança substiste em cada uma delas ( como uma mudança natural, advinda de um princípio
interno). E, além do princípio de mudança interno, é necessário conceber um pormenor (détail)
do que muda, pois, gradativamente, enquanto alguma coisa muda, outra sempre permanece.
Leibniz chama de percepção o estado passageiro em que envolve e representa a multiplicidade na
unidade da substâncias simples. Ele opõe percepção (movimento que vai desde a unidade à
multiplicidade, que pode ser percebido ou inapercebido), à Apercepção ( consciência). Ainda
mais, a ação do princípio interno de mudança, “passagem de uma percepção à outra, Leibniz a
define como Apetição. E, emboraa apetência possa não alcançar toda perfeção para a qual tende,
ela sempre alcança algo, sempre alcança novas percepções.

42
A natureza das mônadas é espiritual, representativas;cada uma reflete todo o universo sob
um aspecto particular. Assim, conforme seu conteúdo representativo, as mônadas são, numa
hierarquia elevadas metafisicamente em uma escala ascendente, contínua, da ínfima mÇonada
até à suprema, Deus. Nesta escala, Leibniz distingue quatro grandes ordens: as mônadas nuas, as
sensitivas, as racionais e a suprema.
Até aqui, vimos destacando as características gerais das mônadas. Contudo estendendo
essa definição à almas podemos, com Leibniz, dar a esta o mesmo tratamento. Em que sentido,
no entanto, podemos dar à alma esta mesma definição? Bem, a alma é uma unidade, e, para
reforçar, dizemos que é indivisível. Uma unidade, como entendia Leibniz, carrega consigo um
múltiplo infinito, pois, a alma, embora simples, traz em si mesma a multiplicidade do que
conhece. A própria definição de Leibniz da percepção3 como “a expressão de muitas coisas em
uma”, responde bem a essa ideia. A alma individual representada pela percepção, a
multiplicidade em sua unidade, e assim, a expressão em si mesma do que é. Desse modo, a
substância, em sua completude, possui uma noção tão acabada que se pode deduzir toda a sua
ocorrência. Então, a essência intrínseca à alma individual, a saber; a de César, já lhe é
previamente dada. O que isso quer dizer? Ora, significa dizer que, já estava contido na essência
de César que ele atravesaria o Rubicão, vale dizer, e o atravessaria livremente.
Sobre esta noção individual de César voltaremos a falar. Entretanto, passemos ainda a
vista por sobre oa proposição que justifica esse exemplo de César.
“Em todo juízo verdadeiro o predicado está contido na noção do sujeito”.
A noção do sujeito, da substância individual é atemporal, pois, a ela são aplicáveis em
qualquer tempo atributos possíveis. Sendo assim, essa noção implica eternamente a totalidade de
seus estados e de suas conexões. Lembrando todavia, que uma substância individual é aquele
sujeito para o qual se atribui diversos predicados sem que ele mesmo possa ser transformado em
um predicado de outro sujeito.
A natureza da noção individual, como foi dito, compreende toda multiplicidade de seus
predicados possíveis. É somente nela que se veem as provas “a priori” da verdade da ocorrência
de cada um de seus predicados. Essa noção contém até mesmo a razão deste acontecimento,
especificamente, e não outro. Todavia, ainda que certas, essas verdades não perdem a sua

3
Nov. Ess., II, 9, 1; cf.op.ed.Erdmann.pp.438, 464 e ss.

43
contingência, porque dependerão continuamente do livre-arbítrio de Deus e da contingência das
outras criaturas.
Quando se diz que a substânncia individual encerra nela mesma “inesse” tudo quanto lhe
pode acontecer e que na noção da substância, pode se deduzir tudo quanto for possível enunciar
dela, significa dizer que, se tivéssemos um conhecimento perfeito do sujeito isso permitiria-nos
deduzir todos os predicados contidos nele. Verificando, porém, que as ações das criaturas são
previamente determinadas, ainda quesejam contingentes, parecem nos mostrar aí um certo
fatalismo. No entanto, assevra Leibniz4 , é preciso contestar isso distinguindo o que é certo do
que é necessário, no sentido mesmo em que, embora sejam certos os futuros contingentes, dado
que poderão ser sempre predicados previstos por Dues, não quer dizer que sejam
necessários.Mas, se uma conclusão pode sr deduzida de uma noção, diz-se que essa noção é
necessária. Assim, o problema persiste. Eibniz irá resolvê-lo dizendo que há duas espécies de
conexão ou consecução; é absolutamente necessária aquela cujo contrário implique contradição
(esta dedução dá-se nas verdades eternas, como as da geometria); a outra é só necessária ex
hypotesi ou, por assim dizer, por acidente. Mas é contingente em si mesma, quando o contrário
não implique contradição (Greifo nosso) [ Disc. Met. § 13] Predicados contingentes ou concretos
são aqueles cuja especificidade não se faz derivar analiticamente de quaisquer predicados outros.
Assim, se um sujeito for definido destes predicados, não implicará nenhuma contradição supor
que este sujeito não possua também os predicados.
Para ilustrar a sua teoria, Leibniz lança mão daquele argumento sobre César, que assi m
simplificamos: o fato de César ter atravessado o Rubicão, ter vencido a batalha de Farsália e feito
tudo quanto fez em vida, esses acontecimentos conhecidos por nós pela história e outros não são
absolutamente necessários, a propósito, “nada é necessário se o oposto for possível”, segundo
Leibniz. Isto é, César poderia por puro arbítrio ter escolhido outros rumos ou ter sofrido a
influência de outros acontecimentos pos´siveis. Pois bem, o que Leibniz insiste em colocar é
justamente que, se era possível que César tomasse outros rumos, não os que ele efetivamente
tomou, isto não iplicaria nenhuma contradição. Qualquer um pode imaginar isso: é perfeitamente
possível que em vez de ter atravessado o Rubicão, César decidisse por deter-se. Ocorre que, caso
isos de fato acontecesse, esse César já não seria mais o César que ocnhecemos pela história, seria

4
Discurso de Metafísica §13. Leibniz, Gottifried. W., in: Col “Os Pensadores”, Trad. Marilena de. S. Chauí
Berlinck. 1a.Ed. Abril.: São Paulo, 1974.

44
talvez, um outro César, num outro mundo possível. Enfim, a possibilidade das coisas
acontecerem ou não, são certas aos olhos d eDeus com sua visão infinita, mas não são
necessários, pois, os acontecimentos supõe, nãor aras vezes, uma vontade-livre que os conduz.

Identidade dos Indiscerníveis e Princípio de Razão suficiente


(I)

Há ainda uma característica da substância, sem dúvida da maior relevância para a


compreensão do pensamento de Leibniz, pois, nela se inclui a conformação da identidade dos
indiscerníveis; essa característica se resume na proposição de que toda substância criada compõe
uma série de termos, os quais preenchem caca um uma posição intermediária possível e que só
pode ser preenchida uma vez e somente uma vez. Ou seja, entre os seres criados da natureza, não
deve haver um sequer que seja um ser real, absoluto e indiscernível dos outros ( o que já nos
referimos, de passagem, quando falávamos das “qualidades” das mônadas).
Mas, de que se trata, afinal, essa tese leibniziana da Identidade dos Indiscerníveis? Bem,
diz-se que dois ojetos de pensamennto são indiscerníveis quando não se distinguem um do outro
por nenhuma característica intrínseca. O princípio dos indiscerníveis é capital na teoria
leibniziana. Segundo este princípio, dois seres reais diferenciam-se sempre por caracteres
inerentes a ele e não somente por suas posições no tempo ou no espaço. “Ainda que haja várias
coisas da mesma espécie, é todavia verdade que elas nãosão nunca perfeitamente semelhantes:
assim, ainda que o tempo e o lugar, quer dizer, a relação exterior nos sirva para distinguier as
coisas que não distinguimos bem por si próprias, as coisas não deixam de ser distinguíveis em si”
(Nov. Ess. II, cap. 27).
A diferenciação e identidade entre as substâncias, notadamente, identidade dos
indiscerníveis auxililar-nos-á em perceber que duas substâncias diferentes na natureza,
diferemise também quanto a seus predicados5. E bastará verificar que cada substância possuirá
um atributo correspondente a cada momento do tempo, para observar que toda substância

5
Dessa ideia segue-se, claramente, que toda alma é um mundo à parte, que independe de tudo, excedo de Deus. Os
estados que se alternam numa substância dita permanente, são suficientes para explicar essas alterações sem supor
que algo de fora aja sobre a substância; essa teoria, contudo, fora criticada por Arnauld, imediatamente após a sua
leitura do livro de Leibniz “Discurso de Metafísica”. Citando a passagem de Leibniz que considerava um exempo do
“escândalo’ (§ 13 “A noção individual de cada pessoa implica de uma vez por todas tudo o que jamais me virá
acontecer (SIC)” (Escritos Filosóficos, II, 15) Citado por : RUSSEL, B., In: “A Filosofia de Leibniz. Trad. João
Rodrigues Villalobos, Hélio L.de Barros e João Monteiro. Ed. Nacional: São Paulo, 1968.

45
possuirá um número infinito de predicados. Assi, o estado de uma substância a cada momento é
exainável em um número infinito de atributos e o presente possui relações ocm todos os outros
estados passados e futuros de tal modo que estas vêm a afetá-lo.

II

Na “monadologia” (§§ 31, 32,33), Leibniz declara que dois grandes princípios de
contradição a partir do qual consideramos falso o que ele implica e verdadeiro o que lhe é
contraditório - este princípio é extensão do princípio de identidade, que se formula
prontamente na equação parmenídia A=A e o princípio da razão suficiente, com o qual
afirmamos não poder ser considerado nenhum fato ou enunciado como veradeiro ou
existente sem que haja uma razão suficiente por via da qual ele seja assim e não de outra
maneira, embora estas razões não possam ser conhecidas por nós frequentemente (há tabé,
continua ele, duas espécies de verdades: as de razão e as de fato. “As verdades de razão
são necessárias, e seu oposto impossível, as de fato, contingentes, e seu oposto é possível.
O princípio de razão suficiente quando aplicado aos existentes reais encerra-se na
afirmação de causas finais porque os desejos reais tendem, por finalidade, ao que lhe
parece melhor. Ao que nos faz reportar à concepção de que o próprio Deus escolhe por
esta finalidade de sua escolha não é nete sentido, diferente da nossa, quer dizer, livre. Por
conseguinte, tanto nossas escolhas quanto as de Deus são baseadas no princ´pio da razão
suficiente. A distinção que podemos fazer é que entre as escolhas possíveis, somente
Deus tem a clareza de saber qual é efetivamente a melhor, enquanto que, a dedução da
totalidade das razões a partir da análise das noções, estão sepre para além das
possibilidades humanas.

Harmonia preestabelecida

A teoria leibniziana de uma harmonia preestabelecida (criticada por Kant como


uma espécie de refúgio dogmático) para “cobrir as lacunas de seu pensamento” exige
como premissa imediata a concepção de que, entre os predicados possíveis, a substância
já contém todos que lhe são próprios em si mesma, inscritos em sua noção. Mas como,

46
afinal, se acomodaria a doutrina da harmonia preestabelecida ao corpo do projeto de
Leibniz?
Falávamos a pouco, no início deste trabalho, sobre a necessidade da atividade
intrínseca a toda substância. Pois bem, o conceito de harmonia preestabelecida é
originário do produto subsequente à percepção e Pa compreensão da mútua
independência das mônadas. As mônadas são constituídas de uma natureza tal que seu
estado ou a série de seus atributos são sempre consequência de seu estado precedente.
Diz-se, em geral, que há uma harmonia quado há uma unidade (orgânica) de uma
multiplicidade, quer dizer, gênero particular de ordem que constistem qu efunções
divergentes não se oponham, mas concorram para um resultado conjunto, concorram à
uma finalidade. A doutrina preesetabelecida, tal como Leibniz a empregou, indica que
não há ação direta das substâncias criadas uma sobre as outras, mas, apenas um
desenvolvimeto paralelo que mantém entre elas em cada momento, uma relação mútua,
antecipadamente ordenada. Conclui-se daí que, representando o universo inteiro, cada
mônada particular, seus estdos correspondem-se no snetido de qeu elas representam o
mesmo universo. Assim há, entre elas, uma correspondência que é uma harmonia
preestabelecida, uma ação direta de Deus que sustenta a matéria inerte do universo por
ocasião do surgimento de cada voliçao6. A concomitância é como que uma sinfonia do
universo. Essa ordem, essa harmonia preestabelecida do universo, justifica a força
anímica das substâncias [ entelequia]7 e é ilustrada pela metáfora perfeita dos “relógios”
que, construídos por um relojoalheiro supremo, dão as horas certeiras,
independentemente dos outros relógios.

Suplemento Metafísico

É de se considerar naturalmete, que o Deus leibniziano exprime a noção do Ser


transcendete e absolutamente perfeito. Aliás, é isto que designa a prova ontologica de sua

6
RUSSEL, B. “A Filosofia de Leibniz” Trad. João.R.Villalobos et.al. Ed. Nacional: São Paulo, 1968.
7
Esta expressão enteléquia foi aplicada por Leibniz às mônadas: “mostrei em outra parte que a noção de entelequia
não é inteiramente de desprezar e que, sendo permanente, ela traz consigo não só uma simples faculdade ativa, mas
também aquilo que se pode chamar força, esforço, conatus, cuja própria ação deve prosseguir, se nada a impede”
(TEODICÉIA, I, § 87). “Poder-se-ia dar nome de enteleuquia a todas as substâncias siples ou mônadas criadas, pois
elas têm em si certa perfeição; há uma suficiência que as torna fonte das suas ações internas e, por assim dizer,
autômatos incorpóreos” (Monadologia, § 18 cf. Ibd. § 48, 62, 63, 66, 70, 74).

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existência. O fato de que Deus contém todas as prerfeições, e, entre as perfeições de Deus
inclui-se sua existência, assim, supor que o Ser mais perfeito não exista seria
contraditório. Deus é possível 0 a possibilidade de existência e necessidade de Deus se
conclui a posteriori da existência doas contingentes, pois ele É por si mesmo necessário
ese isto não fosse possível nada mais seria. Além disso, a perfeição divina corresponderia
exatamente, à reunião (em Deus) de todas as perfeições num grau supremo. Deste modo,
não pode de maneira alguma, no entender de Leibniz, haver limites para essa perfeição e
consequentemente, para a onisciência e onipotência de Deus. Igualmente, contedor de
infinita sabedoria, sua ação não é só metaficiametne perfeita, mas também detentora de
perfeição moral ( Disc. Metaf. § 1).
No “Discurso”, Leibniz chama a atenção aos últimos inovadores” filósofos
modernos de cuja opinião Leibniz se afasta, pois conceem os feitos de Deus como mera
consequência de sua Vontade. Opostamente a isso, Leibniz considera que por motive da
vontade supor sempre alguma razão de querer e esta razão ser anterior à vontade. Deus
não poderia estar subordinado à sua vontade, reflete Leibniz. Então, as coisas criadas são
na realidade tão-somente consequências do intelecto de Deus.
Deus jamais oporia a razão de querer fazer algo à sua vontade, dito de outra forma,
a vontade de Deus de fazer algo e a razão dividna de fazê-lo, nãoconcorrem nunca. A
criação, por isso, não poderia ser diferente do que é. Haja vista que a vontade divina é a
sua própria razão. Obviamente cabe aqui, o famigerado: “Vivemos no melhor dos
mundos possíveis”. Deus escolheu o mundo mais imples em hipóteses e o mais rico em
fenômenos (Disc. Met. § 6).
Há tal ordem na conduta divina que suas ações são, para Leibniz, decididamente
necessárias. Quaisquer que sejam as suas ações, são sempre as mais perfeitas e as mais
desejáveis possíveis. Assim, conclui Leibniz, seria difícil bem-amar a Deus sem amar por
necessidade, tudo que nos sucede segundo a sua vontade. Esse amor a Deus, contudo, não
significa quietismo e sim agir de acordo com a vontade de Deus tanto quanto podemos
julgá-la, contribuindo ao bem geral nos aperfeiçoando e tendo sempre em vista a reta
intenção, pois a conduta divida é regida pela “via da simplicidade” e da “conveniência”.

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Comentários:
A ‘Era dos Extremos” de Hobsbawm
(Texto de 1999)

- Dependência do Séc. XX às Ciências Naturais.

Hobsbawm, na “Era dos Extremos” procuar enfrentar o paradoxo do historiador do


séc.XX, a saber, o embaraço de ser o séc. XX o período histórico mais penetrado pelas ciências
naturais, mas por outro lado, desde a retratação de Galileu, nenhum período da história “se sentiu
menos à vontade com elas”.
Será preciso, portatno, se fazer um reconhecimento das dimensões deste fenômeno. Em
primeiro lugar, este século XX viu o crescimento impressionante do número de cientistas na
Europa e no mundo. Se em 1910, os físicos e químicos alemães e britânicos juntos contavam-se
em uns 8 mil, o número de cientistas no mundo em 1980 era estimado em cerca de 5 milhões.
Nos vinte anos que se seguiriam ao ano de 1970, o número de cientistas praticametne dobrou.
Reflexo direto da revolução educacional da segunda metade do século.
Hobsbawm identifica o fim do eurocentrismo da ciência neste século, sobretudo, ao
triunfo do nazismo. Essa sujeição europeia à era das catástrofes deslocou o foco de emancipação
científica para os EUA.
O século xx viu a fuga massiça de cérebros europeus para a América por motivos
políticos. O crescimento do número de cientistas e evolução tecnológica impulsionou também
grandemente o número de publicações na área. Assim, com o aumento da especialização, por um
lado, as questões teórico-científicas ficavam cada vez mais submersas num mundo partiuclar das
diversas correntes da comunidade científica. Então, até mesmo para os próprios cientistas, a
dificuldade de acompanhar o enorme número de inovações somente era possível atra´ves de mais
publicações.
Hobsbawm reforça a ideia de que a dependência do séc. XX com relação à ciência é uma
consequência direta da própria evolução domodo de se fazer ciência e da compreensão de que a
ciência dita “avançada” se afastou da experiência diária e do conhecimento de toods os dias.
Assim, a exigência agora é que se passe muitos anos na escola se especializando. E aquele que
pretender se encaminhar para uma “fomração de pós-graduação esotérica” marcará com os

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outros ainda mais esta distância e dependência entre as pessoas comuns com relação aos
iniciados.
O próprio Hobsbawm relata sob este aspecto sobre a distância existente entre os
intelectuais e mestres “de ponta” tomando-se como exemplo. Na época em que nosso autor foi
bolsista de uma faculdade, em Cambridge Crick e Watson preparavam sua descoberta da
estrutura do DNA, descoberta esta considerada como “uma das conquistas fundamentais do
século”. Entretanto, embora o bolsista Hobsbawm tenha até conhecido socialmente Crick na
época, eles ignoravam completamente que ali, debaixo de seus próprios olhos formulava-se
extraordinária evolução científica. Ocorre que, “os que as pesquisavam simplesmente não viam
sentido em falarem delas, uma vezz que não podiam contribuir para o seu trabalho, nem sequer,
provavelmente, entenderiam quais eram os seus problemas” (p.508).
Por outro lado, a série de revoluções levadas a cabo pelas novas tecnologias que se
assemtaram neste século, trouxe, em termos práticos uma condução mecânica para o
desempenho do trabalho. É assim, por exemplo que a “cobrança nos caixas dos supermercados
na década de 1990 tipificava essa eliminação do elemento humano. Não exigia do operador
humano mais do que reconhecer as cédulas e moedas do dinehri local e registrar a quantidade
entregue pelo cliente” (pg. 509). Por esotéricos e distantes do povo comum que estivessem, o
funcionamento interno das máquinas inovadoras, por novas tecnologias, essas eram “traduzidas”
já “ quase imediatamente em tecnologias práticas”. Cada máquina, portanto, já é fabricada com
seu equivalente prático para facilitar o manuseio. A menos que algo der errado, o trabalho de
muitos desses operadores não necessita sequer de alfabetização. Consequência imediata da
suficiência do domínio mecânico.
Avassaladoramente, a ciência vem preenchendo os espaços da atividade humana e
conquistando cada vez mais um terreno que é definitivo. Através do “Know-How” tecnológico e
dos produtos técnicos, a ciência rege os processos de produção e modela a vidad dos indivíduos e
das sociedades mantendo o que Hobsbawn interpreta como sendo “a dependência do séc. XX à
ciência”.
Adiantando ainda mais, vê-se esse domínio do triunfo da ciência “ que são os triunfos da
mente huana” alcançando com relativo sucesso o respeito das ideologias religiosas tradicionais.
Na verdade, deste triunfo, tal como afirma Hobsbawm, “deveriamos ter esperado até mesmo que
enfraquecesse a oposição das ideologias religiosas tradicionais, grandes redutos de resistência à

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ciência do séc. XIX no Séc. XX o que vemos é exatamente isso: “a própria religião se tornou
dependente da ciência”. Dito de outra forma, até o séc. XIX a ciência e a tecnologia não tinham
ainda criado fortes problemas de compatibilidade com a doutrina religiosa em geral. Ao contrário,
no séc. XX, as religiões viram-se obrigadas a seguirem, subordinadamente, os padrões de
evolução tecno0científicas aprendendo a se beneficiar disso com destreza [Vide o caso das
Comunicações].
Se por um lado, portanto, as revouções tecnológicas do séc. XX tornaram a todos
muitíssios dependentes da ciência, enquanto controle de uma especificidade do saber, por outro
lado, este é o paradoxo, o século XX viu-se embaraçado e sentindo-se muito pouco a vontade
para com ela, muito embora se considere, em geral, que ela tenha sido um esforço de realização
extraordinário.
“O progresso das ciências naturais se deu contra um fulgor, ao fundo, de desconfiança e
medo, de vez em quando explodindo em chamas de ódio e rejeição da razão e de todos os seus
produtos.. “ (p. 511). A ficção científica exemplificou amplamente este medo. Julio Verne (1828-
1905) antecipara já essa sensação que encontrará no finalzinho do século XIX um fundador para
o gênero; H.G.Wells (1866-1946) em cujos personagens se percebe a insegurança da condição
humana em seus desafios científicos e suas perspectivas quanto ao domínio da técnica.
Segundo Hobsbawm, a desconfiança e o medo da ciência eram nutridos por outros
sentimentos: “o de que a ciência era incompreensível; o de que as suas consequências tanto
práticas quanto morais eram imprevisíveis e provavelmente catastróficas; o de que ela acentuava
o desemparo do indivíduo, e solapava a autoridade” (p. 512). Nao se pode ignorar de fato, diz ele,
uma vez que a ciência interfere na ordem natural das coisas, que ela seja inerentemente perigosa.
Por isso, esssa desconfiança em relação à ciência podia vir, guardadas as proporções, tanto dos
leigos quanto da parte dos cientistas. Essa desconfiança, entretanto, passou diversas vezes a se
transformar em uma reação contra a sensação de impotência dos leigos flertanto por isso, com
coisas qu a ciência não pode explicar, recusando-se a acreditar que elas pudessem algum dia ser
explicadas pela ciêcia oficial.
Constitui um fato evidente que os cientistas do séc.XX sabiam melhor do que ninguém o
alcance ou pelo menos as consequências potenciais de suas descobertas. Esse “medo da ciência”
distribuido na sociedade tomou vulto significativo posteriormente ao período da segunda guerra
mundial, no qual o perigo da bomba atômica atualizava o terror iminente com o pesadoelo da

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guerra nuclear. Mas dado talvez ao recrudeciemento econômico mundial, a “Era das Catástrofes”
ainda foi de complacência científica sobre a capacidade humana de controlar os poderes da
natureza, ou, na pior das hipóteses, sobre a capacidade da natureza de adaptar-se ao pior que o
homem pudesse fazer.” (p. 515.)

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Schopenhauer e o drama do mundo
(texto de 1999)

Na perspectiva da compreensão do que seja a visão de mundo de Schopenhauer,


passemos sob vistoria alguns dos temas mais significativos de sua doutrina filosófica bem como
os momentos em que ele se aproxima ou se distancia daquele que Nietszche chamou de “o
Chinês de Konigsberg”- Kant. Em seu livro, “Mundo Como Vontade e Representação”,
Schopenhauer nos apresenta seu modo de pensar trazendo para a história da filosofia uma
profunda revisão, em suma, também no nosso entendimento do que seja a própria
contemporaneidade.
É neste livro que ele nos mostra sua metafísica na qual o espaço e o tempo é governado
pelo princípio de razão suficiente; a Vontade é apresentada como a coisa-em si ; e o corpo é o
objeto imediato da vontade. A relação existente entre a mente humana e o mundo natural é uma
problemática bastante controversa na filosofia. Podemos situar Schopenhauer no entremeio do
idealismo e do materialismo – no qual o real constitui a representação do mundo externo.
O Mundo como representação se divide em duas metades inseparáveis; o sujeito e o
objeto. Nenhum dos dois podem existir nem mesmo pensar-se em si, isto é, independente um do
outro. Ser sujeito não significa justamente outra coisa que formar e ter representações; ser objeto,
nada mais é que ser conteúdo de uma representação. Um erro básico para Schopenhauer,
portanto, seria aplicar a causalidade à esse eixo sujeito/objeto.
A causalidade, como todas as relações e determinações que podemos pensar, vale
unicamente para aquilo que foi pensado e, na base de todas essas relações se compreende as
formas comum desse “ser objeto.” As formas próprias são, como em Kant, as formas do espaço e
tempo. No pensamento de Schopenhauer, todas as demais funções do pensar são substituídas em
favor da causalidade. Schopenhauer desenvolve a distinção kantiana entre o noumenon e o
fenômeno, mas, por outro lado, situa-se numa posição diferenciada em termos de perspectiva.
Em Kant, o fenômeno é a única realidade cognoscível para o sujeito e o noumenon (realidade
transcendente – um conceito apenas negativo), é o limite do conhecimento humano. Com o
interesse em desenvolver e integrar o pensamento de Kant, Schopenhauer acaba por se distanciar
dele. Para Schopenhauer, o fenômeno é pura representação, ilusão (o “véu de Maya” de que fala
a filosodia indiana e budista). Por outro lado, tanto para Schopenhauer como para Kant o mundo
que conhecemos é o mundo dos fenômenos. O nosso conhecimento é a nossa representação do

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mundo, pois o objeto conhecido é o objeto como o sujeito apresenta a si através de formas
subjetivas.
A noção de intuição intelectual é também outra questão desenvolvida e utilizada por
Schopenhauer, entretanto, de maneira radicalmente distinta da de seus predecessores. A intuição
é tida aqui como a fonte única de toda experiência e, por conseqüência, fonte também de todo o
conhecimento. É um erro querer encontrar nos conceitos ou em uma ciência feita de conceitos,
algo mais que a expressão abstrata onde encerram nossas intuições, além disso, os filósofos que
precederam a Schopenhauer, especialmente Kant, estavam errados querendo alcançar por meio
de uma “pretensa intuição intelectual” o conhecimento conceitual que nos conduziria para além
do conteúdo da experiência.
Mas o caminho que leva ao conhecimento da coisa-em-si não pode dar-se por meio da
representação. Sob este ponto de vista, dado que o espaço, tempo e causalidade não são mais que
“formas da nossa representação”, eles não podem conter em si a essência do real; esta deve estar
fora dessas formas, diz o Alemão de Dantzig. Posto que toda multiplicidade só pode ser pensada
no tempo e no espaço , a multiplicidade não será senão uma peculiaridade do mundo da
experiênica, e o ente real haverá de constituir uma unidade sem diferenças, livre de toda
multiplicidade. Sem o espaço e o tempo não se dá nenhuma existência individual; eles são como
diriam os escolásticos o principium individuationis. A utilização deste princípio não pode ser
confundido, contudo, com uma conclusão epstemológica mas sim, Metafísica e Ontológica do
pensamento de Schopenhauer.
Dentro da experiência possível, observa-se também um grupo de fatos que nos abrem um
caminho totalmente singular para o conhecimento da coisa-em–si . O sujeito com sua capacidade
cognocitiva se conhece não só como sujeito de suas representações mas, também, como sujeito
do seu querer. A identidade de ambos os sujeitos resulta tão inexplicável como a identidade do
mundo dos fenômenos em geral. De qualquer forma, isto é certo, a vontade, tal como se
manifesta imediatamente em nossa consciência, está livre da forma da intuição a que chamamos
de espaço e, embora ela esteja sujeita a forma temporal, ela está mais próxima da essência, da
coisa-em-si, que qualquer outro fenômeno externo que se apresentam à nossa consciência. A
vontade é portanto, entendida como a realidade que sustenta o mundo das representações. Dizer
isso é o mesmo que dizer ser possível a explicação dos fatos da experiência externa dos objetos
em analogia com nossa experiência interna que possui como conteúdo a vida volitiva.

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A vontade está por toda parte. Ela é como que uma raiz, um princípio primeiro do mundo
e ela extravasa do agir humano. Em todos os fenômenos da natureza, da vida dos astros, ao
instinto dos animais e mesmo no querer consciente dos homens lá encontramos a manifestação
dessa vontade. Não somos tão livres quanto pensamos, pois, tudo o que acontece, acontece
segundo a necessidade. O corpo objetiva a vontade enquanto impulso, infinito, uno e irracional e
independe de qualquer individuação. Todo ato real da vontade do sujeito é o movimento de seu
corpo, e o corpo é apenas a vontade tornada visível, é a própria vontade enquanto objeto da
intuição. Assim, toda impressão exercida sobre o corpo afeta imediatamente a vontade, onde
aparece, então, o prazer e a dor.
Schopenhauer teve suas idéias profundamente influenciadas pela tradição hindu dos
Upanishads e pelo budismo. Schopenhauer foi o primeiro filósofo europeu na modernidade que
assumiu publicamente o ateísmo, entretanto, ele admirou no budismo e no próprio cristianismo
seu lado ascético. Retirando-se os dogmas, estas religiões tem como seu fundamento a abolição
da vontade.
A filosofia de Schopenhauer reflete, em seu conteúdo, que na vida humana as dores
superam os prazeres e a felicidade é inalcançável. A vida humana é má. O mundo, em sua
totalidade é uma manifestação de força irracional como “vontade de vida”. Ele foi o primeiro
europeu a falar do mundo como sofrimento, chamando o que nos cerca visivelmente
de confusão, paixão, mal. “Todo querer se origina da necessidade, portanto, da carência, do
sofrimento. A satisfação lhe põe um termo; mas para cada desejo satisfeito, dez permanecem
irrealizados” (O Mundo como Vontade e Representação, Livro III. Parágrafo 38, p. 26). Os seres
humanos são as criaturas ativas que se encontram compelidos para amar, para odiar, para o
desejo e para a rejeição. Os homens possuem o conhecimento de que a natureza é
irredutivelmente desse modo. Nem mesmo o suicídio limita a ação da vontade, pois ele é
simplesmente uma afirmação da própria vontade. Do ponto de vista positivo é a própria dor que
é a essência do mundo.
Em Schopenhauer, encontramos a idéia de que não há nenhum ‘local’ de escape da
vontade na natureza, as expressões dela são vistas em torno de todo o mundo. Assim, os
movimentos animais, o desabrochar de uma semente, a força invisível do imã, refletem aquele
mesmo impulso fundamental que rege tudo e a todos. A única finalidade da vida é justamente
escapar da vontade partindo do apaziguamento das paixões todas, evitando assim a percepção

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dos impulsos dolorosos que impedem o alcance do que os hindus chamam de Nirvana. As artes,
especialmente a música, a mais elevada das artes, têm uma função importante neste aspecto. Elas
podem fornecer um céu provisório no qual se verifica um aspecto da contemplação
verdadeiramente positiva. No entanto, a única saída possível para o término do sofrimento está
na extinção completa da vontade.
Nosso filósofo discordou do idealismo alemão, em geral. Ele se opôs fortemente às
idéias de Hegel que acreditava numa natureza espiritual da realidade. Somente em
Kant, Schopenhauer encontra um interlocutor, aceitando de certa forma a concepção de que os
fenômenos existem somente enquanto a mente os percebe como idéia. Por outro lado, como
dissemos, discorda de Kant no tocante à “coisa-em-si” (Ding an Sich), ou de que a realidade
última das coisas esteja para além da experiência. A “coisa-em-si” de Schopenhauer é a própria
vontade que se experimenta. Para ele, contudo, a vontade não se limita à uma ação voluntária de
providência. Toda atividade experimentada pelo ser é incluída entre as funções fisiológicas
inconscientes. Esta vontade é a natureza interna de cada um que experimenta ser e pressupõe a
aparência - no espaço e no tempo - do corpo. Isso, partindo ainda do princípio de que a vontade é
uma natureza interna dos corpos que é ao mesmo tempo uma aparência no tempo e no espaço.
O mundo da percepção para nosso filósofo é um espetáculo de incessante mudança no
qual se processa a revolução de implacáveis atividades - frutos da vontade. A atividade humana,
como foi dito, não é uma exceção. A única diferença é que os esforços humanos são guiados por
motivos superáveis, e, assim, pode-se ‘bloquear’ a força da vontade. O conceito de compaixão,
encontrado na filosofia religiosa foi tambám utilizado na teoria ética de Schopenhauer
Schopenhauer conclui que a realidade interna de todas as aparências materiais é a
realidade final e universal de todas as coisas. Para este filósofo intrínsecamente alemão a
tragédia da vida surge da natureza da vontade, que incita constantemente o indivíduo para a
satisfação dos seus objetivos irracionais. Assim, a vontade conduz inevitavelmente à dor, à
tragédia e ao sofrimento num ciclo infinito de nascimento e morte, renascimento etc. Este ciclo
de atividade da vontade só pode ser rompido finalmente numa atitude de renúncia em que a razão
governa a vontade até o ponto de cessá-la.
Enquanto que a introspecção berkeleriana era concernente apenas ao fato geral sobre o
status do mundo (Berkeley não explica como o mundo existe em nossa representação), o grande
Kant levou a diante essa tarefa. Kant, procurando como fazer o exame do idealismo de Berkeley

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acaba por desenvolvê-lo somente a partir da segunda edição e nas edições subseqüentes da
“Crítica da Razão Pura”. A resposta de Schopenhauer foi acusar Kant de contradizer sua própria
doutrina. Foi só posteriormente que Schopenhauer descobriu a “negligência” da primeira edição
da crítica.
Enquanto os filósofos das tradições anteriores à Schopenhauer buscavam em seus
trabalhos render tributo à sabedoria divina, a um “arquiteto” criador de todas as coisas em
sua maior perfeição, Schopenhauer observa o mundo em seu mistério e imperfeição
generalizada. Ele chega mesmo a contrariar Leibniz entendendo que este é o pior dos mundos
possíveis, e que este mundo não poderia ser mais mau sem cessar de existir.
Sobre a questão das formas, entre os Gregos, pode-se encontrar teoria similar.
Parmênides, precedendo a Platão declara que o caminho que leva à realidade, a verdade, é único
e imutável. A pluralidade e a mudança são relegadas ao caminho da opinião. Neste ponto de
vista, é impossível explicar o mundo da percepção tendo por referência o mundo dos
fenômenos. Contrariamente, Platão entende que a explicação pode ser dada seguindo-se a
pluralidade das formas imutáveis do real. As formas são realidades e o mundo da percepção não
é mais que uma sombra dela. A filosofia de Platão é vista por Schopenhauer tal como a filosofia
dos hindus, como uma filosofia que procurou ser mais alegórica que filosófica. E, apesar de
Schopenhauer identificar a realidade fundamental do mundo como vontade, diz ele, nós nos
aproximamos da contemplação. Contemplação esta que é tarefa das artes, as quais nos fornecem
o relevo provisório para a libertação miserabilidade da existência.

BIBLIOGRAFIA

SCHOPENHAUER, Arthur. “Os pensadores” Nova Cultural Trad. M. A. R e Maria Lucia


Cacciola. In Col. Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1980.
MANN, Thomas, “O pensamento Vivo de Schopenhauer” Trad. Pedro F. do Amaral Ed. USP
Sp 1975.
“Los Grandes Pensadores II”- Schopenhauer, Revista de Occidente Espasa-Calpe Argentina S.A.
Buenos Aires.1940.

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Notações Acerca do Empirismo de David Hume
(texto de 1999)

“todas cores da poesia , por mais esplêndidas,


jamais poderão pintar os objetos naturais de tal modo que a descrição seja tomada por uma verdadeira paisagem.
O mais vivo pensamento é ainda inferior à mais embotada das sensações
(HUME, D. Investigação Acerca do Entendimento Humano. sec. II §11)

Toda metafísica medieval e até mesmo a antiga baseava-se na crença ingênua de que o
mundo ou a realidade (ser das coisas) apareciam ao pensamento tal como são em si mesmos. O
redirecionamento promovido pelos pensadores modernos no desenvolvimento de uma teoria do
conhecimento condicionou toda metafísica à epistemologia. Com o pensamento moderno, o
antigo questionamento quanto ao “que seja a realidade”, cedeu lugar a uma nova preocupação
quanto ao “que seja o conhecimento” e, principalmente, à pergunta “como é possível o
conhecer ”?
Passemos rapidamente a vista sobre algumas notações acerca do empirismo humeano que,
na história desse desenvolvimento do pensamento que aponta afastar-se da metafísica (ou ao
menos manter-se vigilante a certos preceitos desta), obteve um valioso reconhecimento, por
exemplo, pela parte de Kant, que organizou a sua reflexão avivado pelas sugestões teóricas de
David Hume. Para o autor das Críticas, David Hume o teria “despertado do sono dogmático”; a
adoção pela razão pura de um método que multiplica enunciados acerca de “realidades”, sem
submetê-los à crítica prévia. Obviamente, trata-se menos de entender como falsos os juízos
metafísicos que propender, sem prévia avaliação, a juízos que acomodam-se em certos preceitos
irredutíveis.
É a metafísica tradicional a representante dogmática da história das idéias. Ela que,
desprezando precipitadamente as lições da experiência, fundamenta-se total e puramente em
conceitos. São essas as conseqüências do pensamento de Hume do qual faremos um pequeno
registro, em plano, especialmente a partir das idéias desenvolvidas em seu livro “SUMÁRIO DO
TRATADO DA NATUREZA HUMANA”, bem como utilizando-nos de alguns trechos da
INVESTIGAÇÃO ACERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO”.
O desenvolvimento geral fomentado no “SUMÁRIO” objetiva “anatomizar a natureza
humana de modo regular” tão metodicamente quanto seria possível a regulação, precisão e

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ordem nas elaborações da filosofia natural. Tal interesse é apresentado por Hume de maneira a
dar ao exame da natureza humana o STATUS de interdiciplinaridade e a importância de uma
ciência que compreenda todas as outras. Para nosso autor, vale notar; sequer a GEOMETRIA
deve ter status de uma ciência suficientemente exata. Pois, esta admite conclusões “tão sutis”
referentes, por exemplo, à divisibilidade infinita, conceito da geometria ao qual Hume , contra a
exatidão dessa ciência , faz uma objeção que se baseia na observação de que toda a geometria
têm por fundamento as noções comparativas de igualdade e desigualdade. Assim, a exatidão
dessa ciência dependerá exclusivamente de um PADRÃO que proporcione mais ou menos
exatidão desta relação de igualdade e desigualdade.
Desconstrói-se, deste modo, todo critério que justifica a necessidade ou exatidão para se
referir a uma plano ad infinitum da divisibilidade. Mas como se colocará Hume face aos
problemas do conhecimento? Bem, na constituição básica da teoria do conhecimento Humeano
ele destaca a PERCEPÇÃO como sendo qualquer representação mental; quer seja advinda dos
sentidos (paixões) ou originadas da própria reflexão . Essas percepções são de duas espécies, a
saber; IMPRESSÕES, que são as imagens dos objetos do mundo exterior que são captadas pelos
sentidos, assim como as emoções e sentimentos mais imediatos a nós. Essas são as percepções
mais fortes que se nos apresentam; e as IDÉIAS, que são resultado de nossa reflexão sobre uma
paixão ou um objeto ausente. Essas percepções seriam-nos mais fracas.
Na “INVESTIGAÇÃO ACERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO”, Hume classifica
a conexão entre as idéias em 3 princípios distintos de associação: a associação por
SEMELHANÇA; quando, por exemplo, observamos um quadro e este remete nosso pensamento
a imagem original; a associação por CONTIGÜIDADE (que pode ser de tempo ou lugar),
caracteriza-se quando mencionamos a respeito de algo como um aposento de uma casa e este
comentário desperta em nós, naturalmente, uma alusão a outro aposento desta casa; e por fim, a
CAUSA e o EFEITO, quando pensamos em um ferimennto ou vemos um, e que dificilmente
essa visão não acompanha uma idéia de dor. Assim, partindo dessa classificação, Hume organiza
os “objetos da razão”, a fim de que se conquiste com isso maior evidência nos conhecimentos
adquiridos a respeito do mundo fenomênico e da natureza humana. Então, ele divide entre
“relações de idéias, a qual é identificada às ciências da GEOMENTRIA, ÁLGEBRA e
ARITIMÉTICA, pois são do tipo de relações que fazem intuitiva ou demonstrativamente,
afirmações certas. “Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos dois lados é

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uma proposição que expressa uma relação entre essas figuras. Proposições desse gênero podem
ser sugeridas apenas por maquinações do pensamento, independentemente do que possa existir
no universo . “Ainda que não existisse um círculo ou um triângulo na natureza, as verdades
demonstradas por Euclides conservariam para sempre a sua certeza e evidência”(INVESTIG.
ENTEND. HUMANO. sec. IV parte I § 20).
E há ainda as questões de fato, pelas quais se afirma que seu contrário é sempre possível
pois nunca implica em contradição. Desta maneira, por exemplo, o contrário da afirmação de que
o “Sol nascerá amanhã” não é uma assertiva menos compreensível ou implica mais contradição
que a afirmação contrária, a saber, “Que o sol não nascerá amanhã”. Ora, o que está contido por
detrás desta idéia? É notório que nós concebemos determinadas relações causais entre os objetos
da natureza .Por exemplo, que o sol nascerá amanhã ou que em minutos ele esquentará esta pedra
etc.
Hume pergunta-nos entretanto : - “O que justifica essa notoriedade ?” Bem, movidos por
algum desejo de compreendê-lo responderíamos : - “Ora, tudo foi sempre assim!.” Partindo de
questões como estas surge-nos o interesse em descobrir de que maneira se origina no espírito
humano a idéia de uma relação causal. Como, de fato, autorizamo-nos a inferir que de uma causa
específica origina-se um efeito específico? Hume, em suas obras, constrói diversos argumentos
que se provará, como veremos, que a relação causal é injustificável. Observe: Quando um corpo
em movimento atinge outro corpo que está estacionado e esse segundo corpo também adquire
movimento, observamos claramente nesse evento, diz Hume, duas situações : 1o.) a da
“contigüidade de causa e efeito” – no tempo e no espaço – e 2o.) “prioridade da causa na ordem
temporal” (SUMÁRIO DO TRATADO DA NATUREZA HUMANA., Introd. p. 8).
E, por fim, a observação de uma terceira circunstância, quando em experiência
posteriores, choques do mesmo tipo e em circunstâncias semelhantes promovem novamente o
movimento do segundo corpo em questão, circunstância essa chamada por Hume de “conjunção
constante” entre causa e o efeito. Deste modo, a assimilação de um evento futuro de um corpo
dado movimentando-se em direção à outro leva um eventual espectador a supor prontamente que
no choque entre esses corpos haverá o movimento do segundo corpo. Então, a condução dessa
assimilação de um evento passado para outro evento futuro semelhante, caracteriza, com efeito, a
idéia da inferência causal no âmbito do espírito humano.

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Para ilustrar sua teoria, David Hume lança mão de um exemplo, notoriamente extremo,
em que se supõe um primeiro habitante do mundo, nomeadamente, Adão. Imagina-se que Adão
tenha plena capacidade mental, mas não seja capaz de fazer qualquer inferência causal do tipo,
por exemplo, do choque entre dois corpos no movimento de um em direção ao outro. Adão não
poderá inferir, tal qual aquele nosso hipotético espectador, que no choque entre esses dois corpos
haverá o movimento do segundo, pois, Adão, como supomos, não tem qualquer experiência
anterior do que ocorre nos eventos do mundo. A capacidade raciocinativa de Adão não o
permitiu observar nada na causa que o faça inferir dali um efeito necessariamente conseqüente.
Sendo assim, Adão dependerá do auxilio exclusivo da EXPERIÊNCIA para poder fundamentar
seu raciocínio causal. Nós sabemos, por experiência, que algumas vezes, uma efeito segue uma
causa específica, mas outras vezes, segue outra.. O que se constata nessa peculiaridade, afora a
suposição que temos em um resultado predeterminado num efeito precisamente concebido; é o
fato de que, analogamente à Adão, a maior parte dos raciocínios sobre o mundo fenomênico
reduzem-se à experiência. Hume afirma também que há uma CONJUNÇAO CONSTANTE
entre as ações da vontade e seus motivos, por isso é freqüentemente tão certo quanto um
raciocínio sobre os corpos. Faz-se sempre uma inferência que seja proporcional à constância dos
corpos. Também é importante notar que na assimilação da experiência há a passagem do plano o
desconhecido, inferindo-se a causa do efeito, ao plano do conhecido, de tal modo que se supõe
que o curso da natureza permanecerá sempre o mesmo. Assim como Adão, nós não poderíamos
provar que há uma conformidade e repetição continuada de ocorrências no tempo na natureza. A
observação e a experiência, (com a repetição de certos acontecimentos similares, na linguagem
de Hume, com as "uniformidades" que revelam), fazem nascer o HÁBITO de crer que tais
conformidades se verificarão também no futuro e tornam portanto possível conceber "previsões"
sobre as quais se funda nossa vida cotidiana. Mas essa previsão, segundo Hume, não é justificada
por nada, mesmo depois que se fez a experiência, a conexão entre causa e efeito permanece
arbitrária (já que causa e efeito permanecem dois acontecimentos distintos) de modo que
permanece arbitrária a previsão fundada naquela conexão. Tudo que concebemos , diz Hume ,
“ao menos no sentido metafísico” é possível. Até mesmo nossas idéias mais insólitas. Nossa
mente é capaz de formular quaisquer eventos produzindo quaisquer causas. Somos capazes, por
exemplo, de juntar duas idéias compatíveis formando uma só, ainda que essa terceira idéia não
tenha realidade, ela é de certo concebível – de duas idéias como; MONTANHA, OURO; unindo-

61
as, obtemos: MONTANHA DE OURO e assim por diante. Se algumas dessas idéias, todavia ,
forem demostradas, o contrário delas será IMPOSSIVEL, ou seja , implicará numa contradição.
Então, conclui Hume, todas as nossas “idéias ou percepções mais fracas são cópias de nossas
impressões, ou percepções mais vivas”(INVEST. ACERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO
sec. LL § 13).
Dizer simplesmente que de uma causa não se segue necessariamente seu efeito e que
nossa mente é capaz de formular quaisquer eventos produzindo quaisquer causas, não significa
dizer que “qualquer coisa pode de fato produzir qualquer coisa", mas sim, que não podemos por
meio da intenção ou qualquer tipo de demonstrabilidade sugerir que de uma causa tal obteremos
o efeito tal, para todas as vezes que observarmos novamente tal causa. Na realidade, Hume não
descarta a necessidade de um princípio causal. É claro que deve haver um número indefinido de
causas na natureza pelos quais produz-se efeitos possíveis. Só que tais efeitos, insondáveis,
através meramente de uma análise de causa e efeito nunca poderão ser constituidos no domínio
da necessidade, ou seja, nunca poderão ser deduzidos “a priori”.

BIBLIOGRAFIA

ABRAGNANO, Nicolas. “DICCIONÁRIO DE FILOSOFIA” trad.ESPANHOLA, ALFREDO N.


GALLETTI , 2ed. Fondo de cultura econômica, MÉXICO, 1974.
LEIBNIZ, Gottifried. W., col. [“OS PENSADORES”] ; “A MONADOLOGIA’ – “DISCURSO
DE METAFÍSICA” – “NOVOS ENSAIOS SOBRE O ENTENDIMENTO HUMANO”. Trad.
Diversos.1ed Abril , SÃO PAULO, 1974.
RUSSEL, Bertrand. “A FILOSOFIA DE LEIBNIZ”. Trad. JOÃO R. VILLALOBOS, HÉLIO L.
DE BARROS e JOÃO P. MONTEIRO. SÃO PAULO, Ed. Nacional, 1968.

62
“Sartre e a expressão da subjetividade no romance do início do século xx”
(Texto de 1999)

“Escrever é desvendar o mundo”


Simone de Beauvoir

“escrever é apelar ao leitor que este faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi
por meio da linguagem”
Jean-Paul Sartre

A Expressão da subjetividade na literatura encontra em Jean-Paul Sartre seu sustentáculo


filosófico. Pode-se pensar por exemplo, na força de estatuto em que se encerra a filosofia e sua
eventual distancia que a separa da arte literária. Entretanto, em Sartre, essa distancia é pura
virtualidade, quero dizer, não existe! Filosofia e literatura fundem-se para criar significados.
Entendamos, pois, a partir de suas características, a concepção sartriana de literatura.
Mas, antes disso, convém analisarmos, mesmo que superficialmente, algumas noções de sua
filosofia que compõe, com efeito, suas teses a respeito do que seja a criação literária e
conseqüentemente, em que aspecto se dá, na literatura, o seu fundamento.
Toda compreensão possível de como Sartre entende a literatura passa pela observação
de sua teoria filosófica. Sartre, filósofo chamado “existencialista” é o representante mais
significativo da corrente segundo a qual “a existência precede a essência” - máxima esta que
significa que não há nenhuma essência prévia pela qual o existente deve se submeter e pela qual
estaria, por toda vida, determinado. Ao contrário, já que não há essência (um ser “por-detrás-da-
aparição”) justamente é a existência que é o mais importante. Deste modo, dizer que “a
existência precede a essência” é dar ênfase à existência. Ao mesmo tempo , isso significa, em
resumo; se não há “essencia” não há o determinado para o existente, e se não há o determinado, o
existente somente pode definir-se como puro auto-construto, ou seja, como pura liberdade.
Na análise de Sartre (1905-1980) sobre o significado da literatura encontramos uma
aplicação dos fundamentos teóricos da filosofia dita existencialista. Façamos então,
preliminarmente, uma breve notação acerca da filosofia sartriana, com objetivo de lançarmos luz
em sua tese.
Sartre é sem dúvida nenhuma o mais importante teórico da corrente existencialista e
figura entre os mais importantes pensadores do nosso século. Embora há quem afirme que há

63
bases medievais para a expressão do pensamento existencialista é somente com o filósofo
Dinamarquês Sören Kierkgaard (1813-1855) que este modo de pensar toma uma forma
sistematizada. Entre outros “existencialistas” podemos destacar Martin Heidegger e Karl Jaspers.
O objeto próprio da reflexão filosófica do existencialismo é o homem na acepção de
sua existência concreta e em uma situação determinada. Mas, o ser do existente - dirá o
existencialista - é sempre um “ser-em-situação”, um “ser-no-mundo” Assim, sua situação,
embora determinada pelo contingente, ela não é necessária, pois, o “ser-em-situação” não possui
uma essência abstrata, universal, que o impedisse de sua liberdade.
Os próprios existencialistas dividiram-se entre Cristãos e Ateus. Entre os Cristão,
encontravam-se o próprio Kierkgaard e Karl Jaspers e entre os Ateus, Heidegger e Sartre. Em
seu livro “O Ser e O Nada”, que se revelaria sua obra fundamental, Sartre expõe quais eram os
termos de sua teoria filosófica: “Não há mais, diz Sartre, um exterior do existente, se por isso
entendermos uma pele artificial que dissimulasse ao olhar a verdadeira natureza do objeto (...) o
fenômeno não indica, como se apontasse por trás de seu ombro, um ser verdadeiro que fosse ele
sim, o absoluto. O que o fenômeno é, o é absolutamente, pois se desvela como é. Pode ser
estudado e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo”(1).
Baseando-se nas realizações da filosofia moderna, quanto à redução de “certos
dualismos que embaraçavam a filosofia” ao monismo do fenômeno, Sartre identifica a
Aparência à realidade mesma. Isto é, desde que foi possível crer naquelas realidades supra-
sensíveis da qual falavam Platão e Kant, o fenômeno era o contraponto do Ser e Aparecer, coisa-
em-si [noumenom] e Fenômeno, Real e Fantasmagoria, Imagem e Cópia (σκια = sombra) –
impediu que se visse o fenômeno (o que aparece) como a realidade.
O existencialismo ateu proclama. “tudo está por se fazer” o que há diante do homem é
sua liberdade. De certo, como em Heidegger, somente a morte ao homem, encerra absolutamente
o enxame de possibilidades que lhe oferece a realidade. André Maulraux disse certa vez : “a
morte transforma a vida em destino”. A morte é o limite. Situação única em que o homem está ,
como diz Pascal “on mourra seul” (“morremos sozinhos”). Com a morte, encerra-se a totalidade.
Suprime-se em absoluto a totalidade do que foi, é, e projetou-se ser. Sartre insiste, entretanto,
em não dar lugar a ela enquanto indivíduo, em sua subjetividade: “não deixarei que minha morte
interfira na minha vida”.

64
Antecipa-se a morte pela angústia. A sensação do vazio, a espera do nada, justapõe-se
na intuição do existente perante sua presença de ser aí. “Mergulhado nas coisas, que eu distingo
confusamente, porque confusamente a negação as cinge, o Ser revela-se-me na tonalidade afetiva
do tédio, da “náusea”, dirá Sartre (2). Do questionamento da existência, de súbito, procede a
angústia. É no momento do descolar-se das coisas que ela aparece. Portanto, o homem vive entre
a náusea e a angústia. Isto é, vive imerso nas coisas, vive na “lama” indiferenciada dos objetos. E,
por sua vez, vive os raros momentos de afastamento das coisas de sua descolagem.
Em seu romance “A Náusea” Sartre descreve a personagem principal, Roquentin, como
o protótipo do homem que adquire consciência da existência. O enredo do livro, sua ordenação, é
o menos importante aqui sob o ponto de vista de um certo procedimento do romance
contemporâneo. Mas Sartre faz Roquentin crer desde o início do livro, na possibilidade de ordem
no enredo de sua vida. Além disso, o fará crer também, no momento da perda de sua ingenuidade
perante o mundo, na possibilidade de salvação pela obra de arte. Só a arte incorporaria um
sentido à vida para Roquentin. Evidentemente, desde Nietzsche não se via a tentativa de
encontrar na obra de arte, um sentido para existência (estetização do mundo e da vida) – em todo
caso até mesmo essa esperança é frustrada no caso de Roquentin. “O homem é responsável e sem
desculpas”, dirá Sartre em uma de suas sentenças mais bombásticas e inspiradoras.
Um dos momentos lapidares no curso deste livro é a famosa cena no jardim, no qual
Roquentin tem uma intuição da existência descobrindo-a como pura contingência. A descrição
sartreana desta cena é feita num pretérito imperfeito, transmitindo a impressão de um acontecido
inconcluso. Esta forma estilística revela o fato de que Roquentin poderia estar indefinidamente
passando por aquela experiência.
Aquela experiência de Roquentin é o desencantamento do mundo pela facticidade. A
personagem da “Náusea” prova a perda da virtualidade (“magicalização” do mundo, modo de
Ser de sua consciência, inclinação para a qual tende a consciência nas coisas a fim de não
revelar seu conteúdo Ou seja, seu vazio inominável e imemorial. Do nada engendrado pelo o Ser,
no dizer de Heidegger. “a consciência não é um modo particular de conhecimento, chamado
sentido interno ou conhecimento de si : é a dimensão de ser transfenomenal do sujeito”(3)
A percepção de que o mundo em que esta situado, não possui nenhuma determinação
nem coerência imediata faz com que Roquentin se veja desprotegido. Um mundo de
possibilidades se lhe abrira. Com a liberdade, nenhuma forma de desculpa ele poderá dar-se a si

65
mesmo. Roquentin está perdido. A descoberta da contingência desestruturou aquele mundo no
qual havia depositado certeza nos acontecimentos, confiança no destino e a segurança de seus
propósitos.
A contingência, como a percebe Roquentin, promove a negação da ordem objetiva.
Roquentin, anteriormente ao “desvelamento”, sentia-se parte dessa ordem que lhe parecia
“abstrata” e “ïnofensiva”. Agora, perdida aquela percepção da ordem, perde-se toda e qualquer
noção de sentido. Roquentin vê-se então cercado pela realidade contingente. Há, todavia, uma
alternativa que se abre – já que houve uma negação da certeza de sua inserção na ordem
objetiva – e essa alternativa possível será, então, a de fazer a negação do mundo contingente. Um
recuo diante desse mundo significaria uma reconstituição do Eu que parecia “dissolver-se” nas
coisas. A situação, portanto, revela se deste modo: de um lado, há a contingência revelando um
universo imprevisível e excessivamente livre que o desprotege. De outro, ao negar esse universo,
reconstituir-se-ia a previsibilidade e ao mesmo tempo recuperar-se-ia a integridade.
Até um dado momento de sua vida Roquentin sentia ter “vivido” suas aventuras. No
momento em que se cumpriu o desvelamento, a idéia de tê-las vivido realmente desapareceu –
não sobrou mais nada para ele. A “perda do passado” segue-se à desilusão com relação à
aventura, que era vista por ele (Roquentin) como um motivo de orgulho. Agora, a própria palavra
“aventura” não tem para ele qualquer significado. Enquanto que o desejo (que será fracassado)
que ele pretende ver realizado é justamente uma aventura no presente.
O sentimento de aventura era percebido portanto como um encadeamento dos fatos que
o fazia crer possuir um “rigor” uma “necessidade” uma organicidade nos acontecimentos do seu
passado a partir do momento em que há essa sensação de ruptura acaba-se o reino da linearidade
de onde havia um fio invisível que dava forma e ordenação nos acontecimentos. Cria-se assim,
uma nova temporalidade. Constrói-se, desta maneira, o próprio projeto sartreano de integração
de filosofia e literatura. Nesse caso, a “Náusea” de Roquentin, publicada em 1938, é o ventre do
qual Sartre conceberá “O Ser e o Nada”, publicado cinco anos depois. Curioso notar que quem
endossou esse projeto de Sartre não foi nada menos que seu “melhor amigo-inimigo”, o escritor
Albert Camus: “Um romance nunca passa de uma filosofia posta em imagens. Em um bom
romance, toda a filosofia passou pelas imagens”(4).
Sartre, em sua reflexão filosófica, parte de início da subjetividade. E ao fazê-lo apóia-se
no cogito cartesiano para constituir aí a própria subjetividade “individual – universal”.

66
Subjetividade pela qual o existente descobre a si e aos outros ao mesmo tempo. Com esta
subjetividade(do cogito), diz Sartre, o indivíduo descobre a todos os outros como a condição de
sua existência ; “não pode haver outra verdade, no ponto de partida, senão esta ; Penso, logo
existo; é aí que se atinge a si próprio a verdade absoluta da consciência” (SARTRE, “O
Existencialismo é um humanismo” in: col. “Os Pensadores” Trad. Virgílio ferreira, p. 21 1ª. Ed.
Abril, 1973).
Localiza-se no sujeito, portanto, na subjetividade, a verdade elementar da consciência.
A apreensão, sem intermediários, isto é, apreensão imediata do Ser no existente. A constatação
do cogito amplia o campo de verdade do sujeito, mais que isso, partindo da primeira verdade,
pode-se agora – com maior exatidão – definir o campo do provável e do possível. Já que o
possível tem como condição suficiente para existir, estar ligado a uma verdade. “toda teoria que
considera o homem fora deste momento é antes de mais uma teoria que suprime a verdade,
porque, fora deste cogito cartesiano todos os objetos são apenas prováveis e uma doutrina de
possibilidades que não está ligada a uma verdade desfaz-se no nada; para definir o provável,
temos de possuir o verdadeiro”(Idem, Ibidem, p. 21). Paradoxalmente, o objetivo tem que ser
subjetivo mesmo, porque toda objetividade supões um pouco de subjetividade. Um texto, por
exemplo, que se pretenda objetivo, isto é, que tenha o máximo de “isenção” ao expor suas idéias,
representaria uma inversão de sentido no próprio significado da escrita. O texto escrito, por mais
“isentamente” que pretenda se colocar, terá sempre a marca do sujeito que o produziu, isto
invariavelmente. Conquanto a descrição fenomenológica seja predominante na maioria dos
romances contemporâneos, a questão da narração transformou-se, em certo período, num
problema de difícil resolução. “É impossível narrar, visto que a forma da novela exige
narração”(5). O narrador distancia-se daquilo que ele narra. Vamos dizer, ele mais “observa” a
realidade do que a “narra”. Ele reporta a realidade instaurando seu olhar sob um alvo móvel que
está em constante mutação. Não há nada de estagnado que se justifique na configuração do real.
Ao mesmo tempo, este mundo, o qual o narrador deseja reportar, é inteiramente fragmentado.
Em uma palavra, onde é possível a narrativa contemporânea, também somente é possível a
desconstrução , a descontinuidade.
Com Proust, por exemplo, no livro “Em Busca do tempo perdido (1913), vemos o
aparecimento de uma revolução da estrutura do romance como se entendia até então. O
desrespeito pela coerência formal do romance tradicional é levado a cabo. Proust leva a diante e

67
mais acentuadamente a perspectiva da abordagem psicológica a qual Dotoiévsky iniciou no séc.
xix. Proust instaura o “caos narrativo” e propõe uma “nova ordem”, uma “estranha harmonia”
pela qual se sobre-eleva a função da memória na leitura do texto. Uma memória bergsoniana,
uma “duração” para além das fronteiras do relógio ou da sucessão bem encadeada dos
acontecimentos.
Uma série de outros revolucionários do romance se seguiram a Proust, multiplicando e
levando ainda mais além as possibilidades de renovação técnica, mudança de sentido, subversão
das imposições formais de todo tipo. O resultado é uma aproximação cada vez mais efetiva com
o real e um conseqüente distanciamento com o que tradicionalmente se convencionou por
“fantástico”.
Na medida em que não há nenhuma lógica prévia entre a sucessão dos fatos do
acontecido no individual da pessoa concreta; não haverá ordenamento prévio que fundamente tal
sucessão na literatura. Não há senão o esforço da razão para organizar, ordenar classificar o
ambiente do sujeito no intuito de dar-lhe unidade – nào haverá senão esforço de razão (do leitor)
para dar caráter unitário à obra que reflete a descontinuidade do real.
Nomes poderosos dentro da literatura como André Gide construiram suas personagens
com a “disponibilidade psicológica” para, imprevisivelmente assumir o pathos da existência
conformemente ao realismo. James Joyce, com seu Ulysses(1922) relativisou o tempo e o espaço
na desconstrução mesma da temporalidade; “O caos do mundo Joyce transporta-o para o
romance, numa linguagem rebelde a boa parte das imposições normativas da gramática e da
lógica : e, entregando-se às “livres associações”, põe-se a desintegrar a sintaxe tradicional e a
experimentar soluções novas e esdrúxulas simultaneamente com a criação de neologismos
imprevistos”.(6)
Thomas Mann, Virgínia Woolf, Kafka, Faulkner, John Dos Passos, Steibeck e outros,
vislumbram o ápice do que se chama aqui de romance contemporâneo e todos foram muito caros
a Sartre. Particularmente, um movimento de renovação do romance um pouco mais recente e de
origem Francesa o “nouveu roman”, cujos maiores expoentes talvez sejam Marguerite Duras e
Maurice Blanchot reconstitui algumas das reformas elaboradas pelos autores (supramencionados)
que os precederam ou lhes foram contemporâneos. Conquanto, o que observamos nesse grupo
especialmente é, além do desprezo ao acontecimento, visualismo, encontramos também a
deslocação do eixo narrativo em direção do objeto em vez da personagem, um antipsicologismo,

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linguagem automática em obediência a uma lógica estética tão alógica quanto o universo em sua
desordenada aparência. Ou seja, tendendo para o fim da “literatura”(no sentido clássico) ou
tendendo para “anti-literatura”- uma crítica à literatura pela própria literatura.
Dispõe-se assim, em plano, a evolução do romance contemporâneo. Como foi visto, um
esforço no sentido de agrupar num só rótulo, a diversidade de aspectos que adquirem as obras
desses autores do nosso tempo seria uma atitude desmerecida. Entretanto, que aspectos gerais
poderíamos levantar na tentativa de defini-los?
Um universo, por todas as direções multifragmentado é o espaço sobre o qual se
localiza a literatura da contemporaneidade. Presentifica-se bastante fortemente o fragmentarismo
textual, por exemplo, na utilização freqüente de textos colocados em seqüência sem um
relacionamento muito explícito entre os significado das partes – ao leitor caberá “organizar” ou
“alcançar” a partir de “traços semânticos” esse sentido comum, de conjunto, associando as partes
que não possuem mais uma estrutura linear. Radicalizam-se também as “posições anti-
racionalistas e anti-burguesas ; assume-se, com freqüência, uma posição cultural aristocrática, o
que contribui, no caso da literatura americana, por exemplo, para a pouca popularidade da
narrativa pós-moderna fora dos círculos intelectuais ou dos programas universitários”.(7)
Podemos também ressaltar, entre os aspectos significativos do romance contemporâneo
uma franca preferência por abordagens literárias de caráter social. Excetua-se aqui o nouveu
roman, evidentemente. O modo de produção da literatura contemporânea pode ser alegorizado
pelo modo da produção cinemetográfica. Deste modo, técnicas que anteriormente eram próprias
do cinema passaram a figurar como técnicas literárias Ex: o decoupage, o simultaneísmo, o
close up, a sucessão de planos etc. Estes são somente um tímido exemplo do que passa até a
notabilizar a forma de alguns autores contemporâneos importantes, como é o caso da ficção norte
americana de John Dos Passos e W. Faulkner.
O mesmo interesse que nutria Proust pela imagem fotografada(8), nutriam também
Faulkner e J. Dos Passos. A cena seqüencial da objetiva do cinema, ou mais precisamente a
imagem no fotolito, é a substanciação do instante irremovível e exasperante do momento
presente. Este tormento é eterno. É o fogo eterno do aqui e agora consumindo os que nele estão
encarcerados na pressa de que se removam da sofreguidão do estar aí.
É o que nos relega Sartre, por exemplo, em “A propósito de ‘Som e Fúria’ a
Temporalidade em Faulkner”(9), comentando esta frase da página 92 desse livro; “o tempo

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permanece morto enquanto é roído pelo tique-taque das rodinhas” (...) “É só quando o pêndulo
pára que o tempo torna a viver”- ao que segue o comentário de Sartre : “O gesto de Quentin, que
parte para o relógio, tem pois um valor simbólico: dá-nos acesso ao tempo sem relógio. Sem
relógio também , o tempo de Benjy, o idiota, que não sabe ler as horas. O que se descobre então
é o presente. Não o limite ideal cujo lugar está marcado prudentemente entre o passado e o futuro:
o presente de Faulkner é catastrófico por essência”.
Assim Faulkner exemplifica o caráter do tempo no romance contemporâneo. Este
também é fragmentado. Nada nos aguarda no para além deste presente inquietante e
atormentador. O próprio Sartre localiza o mesmo sentido de tempo em outros autores
contemporâneos reconhecendo nesta questão a existência de um fenômeno literário paralelo.
“Proust, Joyce, Dos Passos, Faulkner, Gide, Virgínia Woolf, cada um à sua maneira,
tentaram mutilar o tempo”.(Idem, Ibdem, Pg.68) O clima de fatalidade se prolonga muito
acentuadamente em Faulkner, pois, como afirma Sartre, está justamente no fato do homem ser
um ser temporal é que reside a sua desgraça – mesmo se, por uma eventualidade, as desgraças
acabassem, ainda restaria ao homem a desgraça do tempo. É essa a razão mesma do tempo ser
considerado catastrófico, sua persistência.
Tanto Faulkner, quanto Proust, entendem o tempo como aquilo que separa. Entretanto,
a “salvação”, em Proust, estaria no próprio tempo, com o reaparecimento integral do passado
perdido. Em Faulkner, “infelizmente”, diz Sartre, ao contrário, o passado encontra-se sempre
presente e de modo obsessivo. Faulkner nutre-se do alívio do tempo pelo esquecimento. É
preciso esquecer o tempo! “foi por ter esquecido tempo que o negro perseguido de ‘Luz de
Agosto’ atinge de repente a sua estranha e atróz felicidade.”(Idem, Ibidem. p. 67).
Em “A propósito de J. Dos Passos e de ‘1919’” Sartre refere-se a J.. Dos Passos como
“O maior escritor do nosso tempo”. É justamente por encará-lo como alguém que leva a fundo a
possibilidade da criação literária que Sartre alega nessa frase, o que nos parece um tanto
bombástica e, sobre um certo ponto de vista, até exagerada mesmo. Mas não! J. Dos Passos
sintetiza a visão da literatura como um espelho que se desdobra em realidade invertendo as
figuras do reflexo para abarcar o real e a imagem que não serão nunca dualidades fugidias. Dos
Passos “fez tudo para que o seu romance parecesse ser apenas um reflexo... Repare-se, contudo,
na curiosa intenção, mostrar este mundo, o nosso. Mostrá-lo simplesmente sem explicações nem
comentários.”(9)

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O Apelo à realidade no romance de Dos Passos é algo patente. O contorno das
personagens, a aparição efusiva de um noticiário, o uso do pretérito perfeito e imperfeito de seu
estilo romanesco (o que Sartre chama de “retrocesso estético” por um artifício de encenação; são
os aspectos poéticos (porque também imaginário) da realidade sem mistérios, mas ao mesmo
tempo oculta sob o “verniz” da aparência. Essa aparência, demasiadamente conhecida pelo
espectador, é uma aparência “a qual cada um se acomoda, mas que Dos Passos a torna
insuportável”. O que foi dito por Sartre a respeito do autor de “Nossa Senhora das Flores” bem
poderia ser dito deste autor de “1919” : “A princípio parece ter apenas um tema, a Fatalidade: os
personagens são os joguetes do destino. Porém logo descobrimos que esta impiedosa providência
não é senão o contrapartida de soberana verdade, divina – liberdade, a liberdade do autor.”(10).
O tempo utilizado por Dos Passos é um tempo que é “uma criação própria: nem romance, nem
relato. Ou antes, em outras palavras, é o tempo da história. E, para falarmos somente de uma
coisa que Sartre considera que há em comum entre Faulkner e Dos Passos é o caráter de soma
que estes escritores dão para suas narrativas. “E...e...,e então...” – utilização de partículas
aditivas que demonstram a sobreposição ou melhor “soma” ; a repetição da qual o acrescentado
não se livra. Faulkner é apenas mais discreto em relação a Dos Passos, mas o modelo narrativo
da adição se perpetua : “as próprias ações, quando são vistas por quem as realiza, ao penetrarem
no presente estouram e espalham-se (Idem, “A propósito de J. Dos Passos e de ‘1919’” p. 64).
O que Sartre fundamenta em sua análise é justamente uma literatura da ação. Ele
prioriza o “fazer” entre a ligação tradicional da literatura e o caráter meramente descritivista do
real e contemplativo da obra de arte. Assim, na ênfase ao “fazer”, o trabalho vincula-se ao
homem na sua tomada de consciência. No fato dele ser um “ser produtor”. E também no fato de
que a realidade humana possui uma representação existencial tal que o absolve de qualquer
condição de servidão. O homem é a liberdade de agir. Portanto, essa liberdade regulariza sua
ação a ponto de obstruir qualquer tentativa de interpretação da literatura senão como Ação e
Liberdade
Sartre, em seu livro “O Que é a Literatura”, lança as bases do que seja a experiência do
escritor em sua ação. A chave para esta compreensão, localiza-se no modo de refletir do escritor
e no sentido da transformação da realidade. Dentro desta perspectiva, o engajamento do escritor
funciona como uma maneira objetiva de provocar uma intervenção por meio de sua prática no
conjunto da sociedade relacionando-se com a História.

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O que Sartre quer é, “examinar a arte da literatura sem preconceitos”(11) Para isso, ele
responde a certas críticas feita por seus contemporâneos que mal- interpretaram sua concepção
de literatura a qual, na realidade, para Sartre, possui em si, imanentemente, a própria noção de
engajamento. Assim, perguntam-lhe seus opositores : “Você não engajaria as outras artes?”. Em
primeiro lugar, Sartre tenta demonstrar que não é possível engajar a arte. É preciso haver uma
mudança de sentido nesta questão. “Engajar a arte”, especialmente a literatura em prosa – como
veremos – seria atribuir a ela algo que já não lhe fosse próprio. O que seus opositores não
entendem é que não se pode “engajar a literatura” se a própria definição de literatura em Sartre
comporta já a idéia do engajamento de modo irremovível. Em segundo lugar, compara-se
erroneamente a arte da literatura com as demais artes e essa comparação não deve ser feita. “mas
hoje é elegante ‘falar de pintura’, no jargão do músico ou do literato, ou ‘falar de literatura’, no
jargão do pintor, como se no fundo só existisse uma única arte, exprimindo-se indiferentemente
em qualquer dessas linguagens, à maneira da Substância spinozana, que cada um de seus
atributos reflete com adequação “(Idem, Ibidem. p. 9). Segundo Sartre, não há paralelo entre as
artes, cada uma possui suas reinvidicações próprias.
A literatura, por exemplo, não traz, em suas características básicas uma interioridade
que representaria uma passividade, uma visão individualista do escritor porque refletiria uma
“Arte pela Arte”. Em todo caso, Sartre não diz que seja possível isso nas outras artes (O tempo
de Sartre é o tempo tido por uns como “pós-moderno” onde a noção de “arte pela arte” apareceu
parcialmente, mas de modo convicto. Ora, uma real “arte pela arte” não exigiria público ou
espectadores. Mas, no caso de Sartre, uma arte que não “pensa” o outro já desde sua origem seria
absurda).
Com relação à música e à pintura, embora seja impossível reduzir as notas e as cores
em si mesmas, elas não remetem a nada que lhes seja exterior. Diferentemente do que
aconteceria com a literatura. A escolha do amarelo ou violeta na pintura pode refletir “tendências
mais profundas”, só que jamais exprimiriam – cólera, alegria, angústia, como fariam as palavras
ou a expressão de um rosto. No “céu de angústia” de Tintoreto, a própria “angústia” não é algo
“legível” – diz Sartre – é como um esforço imenso e vão, sempre interrompido a meio caminho
entre o céu e a terra, para exprimir aquilo que sua natureza lhes proíbe exprimir.”( Idem, Ibdem p.
11). Numa palavra, o amarelo de Tintoreto não é legível, “feito angústia”. O vermelho, o verde, o
amarelo, existem. São coisas. O significado são as coisas; “se as rosas brancas para mim

72
significam ‘fidelidade’, é porque deixei de vê-las como rosas...” Assim, bem como o azul de
Picasso, o “G – G – G – E” da 5 sinfonia de Beethoven ; o amarelo de Tintoreto é o amarelo
feito coisa. O azul de Picasso é o azul feito coisa. O significado de uma melodia, ao contrário das
idéias, não podem ser traduzidos adequadamente : “Diga-se que a melodia é alegre ou sombria ;
ela estará sempre além ou aquém de tudo que se possa dizer a seu respeito”( Idem, Ibidem. p. 11).
Sartre chama essa atribuição - a tal melodia como sombria, alegre, etc. ; tal e tal cor,
angústia, paz ou fidelidade –“virtude abstrata”. Embora se possa conferir-lhes, por meio da
convenção, o valor de signos; possa-se falar em “significado duma melodia, essa atribuição me
desloca da coisa para contemplar, somente para contemplar sua “virtude abstrata”. O desvio das
coisas, para sua significação convencional é uma distração, é uma transferência. Um verdadeiro
artista veria as coisas como são, ou seja, como aparecem. : “para o artista, a cor, o aroma, o
tinido da colher no pires são as coisas em grau máximo ; ele se detém na qualidade do som ou
da forma, retorna a elas mil vezes, maravilhado ; é essa cor – objeto que irá transportar para a
tela e a única modificação por que as fará passar é transformá-la em objeto imaginário. (Idem,
Ibidem, Pg. 10).
Por esta razão, um casebre na literatura pode ser mostrado como o símbolo de injustiças
sociais, já um casebre na pintura pode ser qualquer coisa - assim como não se pintam
significados, não se pode exigir do pintor ou do músico que se engajem. Mas, e quanto ao
escritor? Bem , o escritor , ao contrário dos outros artistas, lida exatamente com os significados.
Mas, atenção! “O império dos signos é a prosa – a poesia está lado a lado com a pintura,
escultura, a música”. Para Sartre, a poesia não se serve de palavras, mas sim é a poesia que as
serve. “Na verdade o poeta se afastou por completo da linguagem – instrumento: escolheu de
uma vez por todas a atitude poética que considera as palavras como coisas e não como signos.
Pois a ambigüidade do signo implica que se possa, a seu bel-prazer, atravessá-lo como a uma
vidraça e visar através dele a coisa significada, ou voltar os olhos para a realidade do signo e
considerá-lo como objeto” (...) “A prosa é utilitária por excelência”(Idem, Ibidem p. 13 e 18).
Desse modo, a visão sartriana do caráter instrumental da linguagem da prosa sustenta toda sua
teoria do compromisso do escritor em sua singularidade. Neles reunir-se-á as forças dialéticas de
sua subjetividade em direção à história.
Como vimos, o texto “O Que é a Literatura” foi uma resposta de Sartre às criticas que
ele recebeu daqueles que diziam que ele pretendia engajar a literaturas num eventual uso político

73
dela. Ao contrário, afirma Sartre, não se trata de uma questão política. Se o escritor não deseja
agir de má fé ele deverá compreender que o compromisso é um elemento interno da literatura,
isso concorde sua própria definição. Podemos também destacar dois procedimentos no arranjo
metodológico de “O Que é Literatura”. Vejamos:

a) Por um lado, uma análise interna da questão da literatura que é o sentido de sua
própria definição. E por outro lado, um levantamento sobre as razões que levam o escritor na
escolha desta opção e para quem visa o ato desta escolha.
b) Uma análise histórica da questão da literatura. Ou seja, o escritor está sempre em
confronto com seu tempo histórico. De tal modo que compreender sua obra é uma maneira
efetiva de compreender sua situação.

“Só existe arte por e para outrem”(Idem, Ibidem p. 37). Cada escritor possui suas
razões particulares para escrever, entretanto, há uma “escolha profunda e mais imediata” comum
a todos. Há uma impressão de essencialidade em relação ao mundo para quem se lança em
direção da criação artística. Há um desejo de “ser” em relação à criação, um desejo de realizar-se.
Portanto, introduzindo-se ordem onde não havia previamente uma, assim como impor uma
“unidade de espírito à diversidade da coisa”, consegue-se a satisfação do desejo do escritor. Vale
dizer, ele sente-se essencial em relação à sua criação. A articulação do ser é o trabalho da
consciência. Se os objetos do mundo continuam a existir, mesmo quando o olhar do escritor se
desvia deles, mostrando que as coisas são independentes da consciência. Por outro lado, a
consciência do escritor articula os objetos remodelando-os. Nesse momento o mundo se
desvenda para a consciência do escritor e este assim, apela ao leitor para que faça um movimento
para que a obra passe a existir : o ato da leitura. Ler é um “exercício de generosidade ; e aquilo
que o escritor pede ao leitor não é a aplicação de uma liberdade abstrata, mas a doação de toda a
sua pessoa, com suas paixões, suas prevenções, suas simpatias, seu temperamento sexual , sua
escala de valores.”( Idem, Ibidem p. 42). O leitor pode evitar a obra deixando-a em cima da mesa
ou na estante de livros, mas, uma vez que ele a abre para a leitura, ele é inteiramente responsável.
De fronte à obra, então, o leitor não pode comportar-se como se tivesse observando um elemento
natural (contemplativamente). O leitor não pode se manter indiferente com relação à obra lida,

74
deverá responder a solicitação do escritor por via dos afetos (indignações, concordância ou
discordância com o autor, etc.)
O destinatário da literatura para o próprio escritor seria, na verdade, o “absoluto”. Capta
esse “espírito absoluto” quem compreender sua liberdade como responsabilidade. Neste “pacto
de generosidade” entre o autor e o leitor, a obra de arte se insurge numa totalidade do Ser, que
nada mais é que uma representação dirigida à liberdade do espectador para retomada total do
mundo. Nesse “vaivém dialético” – no qual “cada um confia no outro, conta com o outro, exige
do outro tanto quanto exige de si mesmo”(Idem, Ibidem p. 46) a liberdade manifesta do autor
desvenda também a liberdade do leitor.
Para Sartre, a liberdade, como vimos, tem papel fundamental em sua compreensão de
literatura. Na realidade, dela depende a própria finalidade da arte, segundo Sartre. “Pois é bem
esta a finalidade última da arte : recuperar este mundo, mostrando-o tal como ele é, mas como se
tivesse origem na liberdade humana”( Idem, Ibidem p.47). Eis aí a alegria estética do prazer
estético : broto do âmago da consciência (do nada), harmonia criada entre a Subjetividade e a
Objetividade. Retomada do mundo feito apelo ; criação – desvelamento; compromisso e convite
ao compromisso. Conquista de “implicações recíprocas das suas exigências” sustentada pela
liberdade. Por fim, o escritor está só – diante da folha em branco – mas a caminho de se lançar na
batalha. E o leitor também está só, porque a ele “tudo está feito e tudo está por fazer” com
relação a leitura da obra. Mas este também está em vias de assumir as exigências de sua
liberdade. Ambos somente estarão convictos suficientemente de que estão subjetivamente, e por
assim dizer, metafisicamente livres de seus grilhões - Freud diria; livre de seus “fantasmas”-
quando tomarem consciência de que o apelo ao desvendamento não é senão o apelo à criação do
real pelo imaginário, criação do objetivo pelo subjetivo. Não há escolha sem responsabilidade,
no sentido mesmo em que na doutrina filosófica existencialista a qual Sartre promulga, a própria
definição de escolha impede-a de tratá-la como um conceito que descreve uma imobilidade. Pois,
mesmo a negação da escolha, seja ela de qualquer tipo – como não escolher nenhuma das
alternativas possíveis, ou fazer uma suspensão de juízo – já é em si, uma escolha. Dessa escolha
surgirá o engajamento, a forma do compromisso assumido com nós mesmos e com os outros ao
assumirmos uma posição. Esta escolha, portanto, jamais é totalmente deliberada, porque no fim,
esta escolha envolve a humanidade interira. Ao cabo, isso só é possível, pois, “o escritor, homem

75
livre que se dirige a homens livres só pode ter como único tema : a liberdade"(11) (SARTRE, “O
Que é Literatura” p. 50)

BIBLIOGRAFIA E NOTAS

(1) Sartre, “O Ser e o Nada” Trad. Paulo Paulo Perdigão 5 Ed. Vozes Rj. 1997.
(2) Ferreira, Virgílio. In: “Prefácio para – “O Existencialismo é um humanismo” 2 Ed.
Presença Lisboa 1964.
(3) Sartre, J.P-. “o Ser e o Nada” Trad. P. Perdigão p. 22 2 Ed. Vozes Rj 1997.
(4) Camus, Albert “A Inteligência e o Cadafalso” Trad. Manuel da Costa Pinto e Cristina
Murachco, Ed Record. SP, 2008.
(5) Adorno, Theodor w., “Notas de Literatura” p. 45. Trad. Español Samuel Sacristán Ed
Ariel Barcelona 1962.
(6) Moisés, Massaud. “A criação Literária- introd. à Problemática da :Literatura” p. 150-
153 Ed. Melhoramentos. São Paulo, 1965.
(7) Filho, Dominicio p., “Pós-Modernismo e Literatura”Ed Ática São Paulo, 1988.
(8) Nantet, Jacques, “Marcel Proust et la Vision Cinematographique”- La Revue des
lettres modernes, n° 36-38. In: Cinéma et Roman, p. 307-312, 1958.
(9) Sartre, J.P-, “Situações I” p. 63 Trad. Rui Mário Gonçalves Ed. Europa-América,
1968.
(10) Sartre, “Saint Genet, comedien et martyr, Paris, Galimard. p. 497 –535.
(11) Sartre, J.P-“O Que é a Literatura”, Prefácio. Trad. Carlos F.Moisés. Ed Ática. SP,
1989.

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A Redescoberta do Belo Artístico a Partir da Cultura Africana
(Impressões de um leigo em sua visita ao Museu de Arte e Etnologia da USP)

Seguido do levantamento geral das peças do museu (texto de 5 e 9 de Ago.1999)

O ideal do belo artístico enquanto representação e natureza da sociabilidade sempre foi


perseguido pelos seres humanos. Na medida em que foram se tornando conhecedores do modo
de o produzir, isto é, na medida em que foram, cada um à sua maneira, conquistando os bens
naturais na aquisição da cultura, transformando esses bens, os homens produziram suas
representações tendo sempre em vista o útil e belo. Este ideal, por impalpável que fosse,
continuamente se demonstrou quase ao alcance das mãos.
Com as sociedades africanas, ou as ditas “civilizações orientais” este fato não ocorreu de
maneira diferente. Produziu-se bens, utilitários ou menos utilitários, objetos de culto e rito, bem
como objetos de arte profanos, sem função religiosa – não se deixou excluir a esfera humana da
esfera divina, considerando-as mesmo como esferas indistintas.

Essas peças que eu contemplo com admiração no museu do MAE-USP, não são peças
irreais, são utensílios artesanais e obras de arte que refletem esse espírito humano-divino, numa
palavra o “simbólico”, seja ele entendido em seu sentido mais concreto como o sucedâneo ou a
representação de uma realidade complexa, ou ainda como materialização do abstrato e ausente,
por meio de uma convenção – na verdade, trata-se de um colocar arrojado e alegórico que se
exibe (se exterioriza), obra que permanece ao se colocar e assim sustenta a expressão da
sociabilidade.

As peças de tradição africana da exposição permanente do MAE-USP estão divididas em


vitrines segundo amostras básicas da realidade social de alguns povos da chamada África negra.
Os exemplos não são exaustivos e o espaço no museu dedicado à este tipo de arte representa
apenas metade do dedicado à arte egípcia/mediterrânea no mesmo museu. Mas estes objetos são
representativos tanto do ponto de vista da arte dos povos que habitaram e habitam a África
subsaariana e exportaram parte da sua cultura em conseqüência do tráfico negreiro, quanto do
ponto de vista estrito da beleza plástica e da diversidade estilística, geográfica e sócio-cultural.

Com efeito, os exemplares abrangem desde as “Influências na Sociedade Brasileira” – as


raízes; objetos “Rituais e de Representação” – o simbólico; a “Diversidade Estilística e de
Cultos” – o fetiche; e até o destaque à diversidade do “Meio-Ambiente” – a floresta, a savana e
o árido; os “Objetos de Culto e Poder” – a realeza africana e o culto ancestral; e a “Metalurgia do
Bronze e Ferro” e etc. Estes exemplares, em seu conjunto, descrevem a boa convivência (poder
próprio da arte africana) em relação à dicotomia entre unidade e diversidade das culturas da
África.

77
Os objetos do imaginário afro-brasileiro, tão próximos e tão distantes, são os que abrem a
exposição ao freqüentador do museu. Fotos da belíssima umbigada, amostras do assentamento do
Orixá Odé (Oxóssi) e de Ogum no terreiro Nagô em São Paulo, Vodum Ewá (dançando-se o rito
jeje do Maranhão), a Congada, a Capoeira e etc, ilustram em geral, o que consistiu a influência
da cultura africana no Brasil, sua característica, sua afinidade e seu alcance. Sempre que possível
é demonstrado contiguamente os objetos representados nas fotos (por exemplo, as cabaças e
lenços utilizados no enfeite de uma casa de culto aos antepassados, apresentados na vitrine
“raízes Africanas”, remete à uma foto da vitrine anterior “influências na sociedade brasileira”,
que possui os mesmos objetos). Aqui também, o número de peças não é exaustivo, no entanto,
isso se deve, segundo acredito, somente à falta de espaço, uma vez que se tratam apenas de
objetos etno-museológicos para exemplificação desta influência, em sua maior parte, ou peças de
inspiração africana, contudo, não estritamente “objetos de arte”, por isso, seriam objetos de mais
fácil aquisição. Entre eles vejo o “Opaxorô de Oxalá” (exemplar bahiano do cajado da criação);
uma coroa (Adê) de Oxum; alguns instrumentos musicais como os tão presentes atabaque e o
birimbau; um colar de contas e um bastão (Oxê) de Xangô ambos também da Bahia; alguns
artigos religiosos para prática de “feitiços”, entre outros.

A presença de mapas contribui amplamente ao enriquecimento da visita. É aí que o


visitante do museu encontrará informações sobre as expansões migratórias das culturas africanas,
permitindo lhe concentrar sua visita com informações de checagem étnica, geográfica e
lingüística da África em geral, cotejando-as também com os respectivos exemplares de arte
africana da coleção do MAE.

Que um leigo em arte africana pode dizer sobre essas estatuárias, essas máscaras, esses
objetos rituais e do cotidiano expostos no MAE-USP? Acaso esses motivos arcaicos e o
sentimento do primitivo, do primal, ainda mais quando expressos nessa beleza instantânea, não
são aqueles mesmos que evocam o primordial em nós? A experiência do belo artístico exige
impalpáveis interpretações formais e estritamente estilísticas? Não, certamente. Esse primordial
evocado é o resultado parcial do alcance da tradição. A cultura africana, representada na
exposição do MAE-USP, em primeiro lugar, nos toca. Essa tradição chega até nós, nos
engrandece, nos impressiona pela graciosidade no rústico – espirituosidade na madeira; pela
exuberância de adornos – contas, plumas e búzios; pela superabundância intransigente na
expressão de seus cultos e na exaltação dos mistérios.

É especialmente a arte de Senufo a que me chamou atenção imediatamente. A fim de não


me estender muito, cito apenas alguns exemplares que me impressionaram bastante. Por exemplo,
na vitrine “Rituais e Representação” encontrei uma pequena estatueta que era, na verdade, uma
peça com figura animal em madeira (um pássaro Calao), símbolo de fertilidade da cultura Senufo.
A estátua é de uma beleza íntegra e por que não dizer “ingênua”? Mas não no sentido habitual e
sim no sentido daquilo que é delicado, sutil, como um pássaro mesmo o é – naturalíssimo. Isso
pode não parecer uma avaliação estética mas, por mais de uma vez, parecia que esse pássaro

78
sorria para mim. Foi essa a impressão que tive. Acredito que se a arte é “ingênua”, como dizem,
talvez ela deva mesmo estimular a ingenuidade...

Também me parece bastante justificável que a beleza plástica dos objetos seja percebida
primeiramente a partir de critérios apreendidos subjetivamente como a proporcionalidade, a
simetria e assimetria, o jogo de curvas e de retas, ou mesmo, quando existentes, pelo volume e
pela profundidade, assim por diante. A aproximação imediata do olhar é certamente formal,
contudo, gostaria também de ressaltar isso da minha visita ao MAE-USP, essa aproximação do
olhar, no que diz respeito à essas peças de culto e rito, supõe, mesmo aí, neste campo primeiro de
observação, específicas particularidades tais como a saliência do umbigo nas estatuetas
antropomórficas femininas de culto à fertilidade.

De qualquer forma, aquém da disputadíssima querela teórica dos entendidos nos assuntos
de arte, não encontraríamos maneira especial de distinguir uma arte que seria por exemplo,
oriental, ocidental ou primitiva, exceto por seu modo de produção, seu “objetivo” primeiro, sua
reflexão e identidade com o povo que a tornou possível etc. Quando falamos de modo geral em
“arte primitiva”, não estamos nos referindo necessariamente a arte sem complexidade formal,
sem riqueza na composição, ou sem beleza. Ao contrário, a “arte primitiva”, ou a arte produzida
por povos de organização econômica primitiva, com suas referências e técnicas particulares,
pode também revelar muito do elevado, do belo, do sublime, do generoso, do prazer estético
característico da totalidade das sociedades humanas. Neste sentido, podemos afirmar que a arte é
um conhecimento universal e a forma de arte dita primitiva, com grande razão, luta pelo seu
universalismo.

Encontrei também aquelas máscaras rituais com seus adornos terríveis, aquele zumbido
de imagem da “máscara para a ordem social” (Nibwa), feita em madeira, tecido, pele animal e
pelos. Este zumbido que eu ouço é o zumbido da natureza e, neste contexto, a natureza é ordem
social. E ainda aqueles impressionantes fetiches de culto aos ancetrais (Benin) com tecido de
fundo e com diversos objetos ritualísticos que eu, acanhado, não consigo sequer dizer o que são.

A arte africana de conteúdo, não sei se posso chamar assim a arte ritualística africana, de
maneira alguma, precisa ser subestimada por ser precisamente assim, ou seja, ser uma arte cujo
conteúdo remete ao religioso. Longe disso, esta é uma arte ainda mais de acordo com a função
social e com a relação do humano com o divino. A arte tenta sempre ser expressão do divino
enquanto busca do belo e do mais perfeito – no caso africano, como ficou muitas vezes
demonstrado, essa perfeição se atinge na efetividade prática do divino, numa obra que aproxima
as esferas humana e divina por meio de ligações, amarras, trânsito.

Por fim, não sou particularmente religioso e não compreendo o candomblé. No entanto, a
despeito de eu ser descendente também de africanos, entre outros, poderia dizer, não é para me
sentir africano que vou ao MAE-USP contemplar essas peças da África. De fato, não sou
africano. Mas vou sim para praticar o direito de me sentir tributário ou herdeiro desta cultura que

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foi a dos meus antepassados, em parte, e ainda é a cultura dos meus companheiros e cultura de
todo mundo. Tal como nos sentimos tributários da tradição européia ou indígena porque também
são nossas, temos direito a elas. Assim, essa cultura não é deles ou minha ou sua, é nossa cultura;
essa beleza humana é a beleza nossa. É a cultura da humanidade com seus percalços, seus
direitos, sua utilidade e sua inutilidade, mas nossa cultura, expressão do humano, que não é
demasiado, mas o que há decididamente de divino em nós – é arte.

Relatório de Visita ao Museu – Mae

05/08/1999

Observação Geral e Levantamento das Peças do Acervo de Arte Africana

Renato Araújo e Alessandra Melo (2002)

Vitrine

[INFLUÊNCIAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA]

FOTOS:

1. Umbigada (piracicaba SP)

2. Casa de culto aos antepassados no rito jeje (maranhão)

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3. Assentamento do orixá Odé (oxóssi) e de Ogum – Terreiro Nagô –SP

4. Vodum Ewá ( dançando rito Jeje – Maranhão)

5. Grupo folclórico Cacumbi, Festa dos santos reis (Sergipe)

6. Família-de-santo (mãe de santo cercada por duas equedes)

7. Congada

8. Iemajá

9. Festa de São Benedito ( Aparecida-SP)

10. Oferendas de Exu feitas no terreiro de armando de Ogeon – Rito Queto

11. Capoeira

Vitrine

[RAÍZES AFRICANAS: OBJETOS DO IMAGINÁRIO AFRO-BRASILEIRO]

{objetos diversos em exposição}8

a) cabaça e lenços utilizados no enfeite de casa de culto aos antepassados como indica a foto 2

b) instrumentos musicais ( atabaque e birimbau)

c) elementos rituais (velas ovos, charutos, contas, búzios, tijelas, etc.)

1- Paxorô de Oxalá (cajado da criação)- Bahia

2- Ibiri de Nanã – Bahia

3- Adê (coroa) de Oxum – Bahia

4- Abebê ( Leque de Iemanjá

5- Colar de contas de Xangô – Bahia

8
Objetos numerados indicam nome dado na exposição. As chaves “{}” indicam interpolação pessoal, isto é,
observações e impressões minhas.

81
6- Par de pulseiras d eOxum – Bahia

7- Bastão Oxê de Xangô – Bahia

{um cachimbo grande}

MAPAS

Mapa 1:

a) Expansão das culturas africanas.

{persebe-se a expansão dos elementos culturais africano pelo tráfico de


escravos – Bantus, por toda região costeira da América do sul, pelo atlântico, e,
excetuando as levas que partiram do congo, percebe-se também, na américa do
norte, que a maior parte dos elementos culturais africanos que chegaram ali por
tráfico são de origem da costa norte do atlântico africano; nas regiões do Benin,
Ife em Efik e Etc.}

b) Expansão por migrações secundárias

c) Escravos libertos (rota de retorno à África)

Mapa 2:

a) Rotas da Humanidade { Expansão humana no globo}

- Ancestrais Humanos

- 150.000 - 100.000 AP. ( África)

- 40.000 AP (Europa/Austrália)

b) Coleções etnográficas no acervo do MAE

82
{organizado segundo grupos étinicos}

(Ashanti, Azande, Bambara, Benin, Fon, Ifé, Yorubá, etc.)

c) Africa pré-colonial 900 dc. 1500 d.c.

1800d.c.- 1880 dc.

{Colônias Francesas, Inglesas, portuguesas, alemãs, Belgas, Espanholas


Italianas, incluindo território de controle turco na atual Líbia e países
indenpendentes, no atual Marrocos, Etiópia e Libéria.}

d) África independente geopolítica contemporânea

{ Mapa geopolítico fonte: Atlas Geográfico-República popular de


Moçambique, 1986}

e) África: Classificação Lingüística

1- Niger Kordofaniano (Mande, Adawawa, Kwa e etc.)

2- Nilo-Sahariano (Songhai, Maban, Komaniano etc.)

3- Afro-Asiático (Semítico, Berbeu, chádico, cuxítico)

4- Khoisan

5- Malaio –Polinisiano

Vitrine

83
[RITUAIS E REPRESENTAÇÃO]

(Porta de celeiro – Dogon) { Obj. em Madeira de cerca de 60 cm de altura por 50cm de largura}

A) Fotos:

1 – casa dos homens “Toguna”(com figuras ancestrais –Dogon)

2 – utilização de adorno de cabeça “TYI-WARA”

B) Estatuetas:

1 – estatueta de culto aos ancestrais (Dogon)

2 – estátua dupla (Mali)

3 – estatueta masculina de culto aos ancestrais (Senufo)

4 – estátua de pássaro Kalao – símbolo da fertilidade (Senufo)

5 – adorno de cabeça ritual (Senufo)

6 – máscaras rituais tsiwara – ritual agrário ( bambara)

7 – { Representação animal com chifres – sem plaqueta de identificação}

{ as estatuetas 1, 3, 5, respectivamente de Dogon e duas de Senufo contém o umbigo


proeminente. Isto me chamou a atenção e aguçou minha curiosidade quanto às razões disso.}

Vitrine

[DIVERSIDADE ESTILÍSTICA E CULTOS]

Fotos:

- Estatuárias Públicas { Grupo de esculturas em meio à floresta}

84
-“Fetiche”de culto aos ancestrais (Benin) { Trata-se de uma impressionante instalação com
tecido de fundo que abriga diversos objetos ritualísticos: 3 estatuetas com figuras humana, um
sininho de metal, alguns búzios e outros objetos que eu não soube identificar}

- Estatuárias em recinto fechado

{figuras humanas sentadas ao cnato da parede e com as mãos nos joelhos e uma figura animal,
possivelmente um leopardo}

- Altar, figura ancestral(Bijagó)

{estatueta representando um altar com uma figura humana proeminente acima do encosto, na
realidade, trata-se, até onde posso perceber, de uma fusão da figura do ancestral e o “assento-
abrigo”}

- Estátua mágica e culto à fertilidade (Teke)

- (Songye) {estatueta de cerca de 15 cm) em sua base observa-se alguns pelos animais sobre uma
pele.

Estatuetas de fertilidade

-(bambala) {20cm, aproximadamente}

-(Luba) {figura feminina – cerca de 25 cm}

-Estatueta NKISI de culto à fertilidade (Bayaka)

-Estatueta/Fetiche de culto à fertlidade (Azande)

-Estatueta Bonga, figura ancestral (Teke)

-Terracota Funerária (Ashanti)

-“Fetiche”de culto à fertilidade (Baulê)

-Figura de altar de culto à fertilidade (Yoruba)

-Estatueta feminina de culto à fertilidade (Senufo)

-Estatueta de culto aos ancestrais (Baulê)

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-Estatueta de culto à fertilidade (Baulê)

-“Fetiche” de culto à fertilidade (Hobi-Nagô)

[Diversidade estilística e cultos]

-Máscara (Dogon) { Objeto de madeira com aproximadamente 30 cm. De rosto e um totem


elevado acima da cabeça em formato de chifre; um virado para cima, outro para baixo}

-Máscara Geledê (Nagô)

Foto:

Kanaga- Dogon {dois Homens com trajes típicos usando a máscara (Dogon) referida acima}

-Máscara mortuária (Guro)

-Máscara de culto aos ancestrais (Dogon)

-Adorno de cabeça (Bamileke) { objeto em madeira com representação animal com cornos}

-máscara Geledê – culto de Egungun (Yorubá)

Fotos:

-Camarões { uma pessoa com trajes típicos: uma manta adornada e uma máscara.}

-Sociedade secreta Geledê

-Máscara protetora da maternidade (Bago)

-Mascara para a ordem social (Nibwa) { feita em madeira, tecido, pele animal e pelos.}

-Máscara feminina (Yaurê)

-Máscara ibó (Yorubá)

-Máscara (Marka)

86
-Máscara de culto aos ancestrais (Senufo)

-Máscara miniatura com formato de antílope (Mossi)

-{Cabeça miniatura sem ficha de descrição, figura humana sustentando dois pássaros.

- Máscara miniatura de culto aos ancestrais (Baulê)

-Máscara miniatura representando ser mítico (Senufo)

[DIVERSIDADE: MEIO-AMBIENTE/ARQUITETURA]

Fotos:

Floresta (Kabinda, Angola)

1- ambiente

2- aldeia

3- casa

Savana (Moçambique)

1- ambiente

2- aldeia

3- casa

Árido (Níger)
1- vilarejo

2- interior de uma casa peul (Wíger)

Parede do museu

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Foto: Celeiro de silos Dogon com fetiches

Fechadura de culto aos ancestrais { objeto em madeira }

[Rituais: objetos de culto e poder]

Fotos:

- contextualização do Ibeji { mulher segurando uma estatueta com crianças ao fundo}

- advinhador { um senhor com búzios}

- Ibejis (Yorubá) {duas estatuetas femininas}

- Ibejis(Ewê) { duas estatuetas – um casal, sem ficha de descrição}

-Veste de Ibeji (Yorubé) { aparentemente uma “luva”para o ante-braço}

-Cerâmica ritual (Fon)

-Fetiche de fertilidade (Mossi)

-Boneca de fertilidade Akuabá (ashanti)

-Boneca “fetiche de fertilidade (Bobo)

-Adtelê-ifá (Yorubá)

-Bandejas de Ifá

-(Nagô) { objetos ponteagudos de 25 à 35 cm aproximadamente}

-colar de babalão (Nagô)

-campainhas rituais (Fon)

-Sinueta ritual Ogboni

-Bastão Ogboni (Yoruba)

-Bastão de chefia (Baulê)

-colher ritual (Yorubá)

-concha ritual(Baulê)

-concha ritual(Fon)

88
-concha ritual (Baulê)

-Báuculo, bastão utilizado no culto da fertilidade (Fon)

-{no teto, pendurado} Espanta mosca-símbolo do poder ( Baulê)

[OBJETOS DA REALEZA: CULTO E SÍMBOLOS DO PODER]

Fotos:

- utilização de espanta mosca (camarões)

-uso de torneleira em dança cerimonial

-atributor de sedução (Gana)

-utilização do tambor

[COTIDIANO DA REALEZA]

Foto:

- Nana Kwakye Ameyan II (chefe do Techiman – Gana)

- Rei Kuba – Kota Mbweeky III (Zaire)

-Oba (Rei) – Benin

Objetos
1)

a) – tambor (Ifá) 50 cm mais ou menos.

b) – prato para medir cereais (Zaire)

c) – pulseira “Abiku”

d) – taças cerimoniais (Kuba)

e) – espanta-mosca (Kuba)

f) – esteiras (Kuba)

89
2)

a) – elemento de altar

b) – conjunto “rei carregado na rede” (Fon)

c) – cena de sacrifício Humano (Fon)

d) – escultura em bronze (Fon)

[ALTAR CERIMONIAL DE CULTO AOS ANCESTRAIS REAIS]

1)

- bastão ritual agrário (Yorubá)

- {bastão sem plaqueta}

- espanta mosca – símbolo do poder (Senufo)

- machados rituais de Xangô { dois machados}

- máscara em Bronze (Bo)

- máscara para a cintura (Bo) 10cm.

2)

- estatuetas femininas Ogboni (Yorubá)

- figura de rei (Benin)

- adorno de cabeça culto de Enrilê (Yorubá)

- cabeça em terracota- rei (Ifá)

- cabeça de bronze

- cabeça de bronze Oba (Benin)

- cerâmicas rituais de Oxá (Yorubá) {duas peças}

3)

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- casa real Ogboni {duas estatuetas –casal}

- facas rituais (Ashanti)

- sino duplo de culto de xangô

- escultura de felinos em bronze (Mossi)

- banco de chefia (Senufo)

- pulseira

Tornozeleiras em Bronze

- (Senufo)

- (Senufo)

- Fula

- Baulê

- Costa do Marfim

[METALURGIA DO BRONZE E DO FERRO]

Fotos:

- quebra do molde de argila para extração da peça final em bronze.

- Processo de fundição do bronze: técnica da cera perdida (acredito que deva ser “técnica
perdida da cera”

- a presença do metal nas relações econômicas e políticas: adornos e objetos de prestígio


(diversas etnias).

- peça retirada para estudo.

- {um rei cercado de 3 súditos, em bronze}

- alguns brincos, colares e pulseiras em bronze na parede.

- tecnologia do ferro e do bronze: instrumentos da fundição e da força (Yoruba)

91
- {um alicate; um paralelepípedo e outros objetos) incluindo um foles em madeira coberto
por pele animal em sua boca}

Foto:

-uso de foles na alimentação de um forno de fundição do ferro (região da Lunda Angola)

-{2 objetos pontiagudos}

-Símbolos de Oxossi (divindade relativa à caça: ferramentas de uso cotidiano e ritual


(diversas etnias)

-espada de Gu (divindade relativa ao ferro e a forja –Fon)

Gavetas
a) 3 estilingues (Baulê)

b) peças retiradas para tratamento

- pesos de ouro em bronze (peça ausente)

-pulseira de vidro (troca) (Nupe, Bida)

-uma balança de 10cm aproximadamente e com bandejas de 3,5 cm.

[COMÉRCIO]

Fotos:

- mercado em bonaque (Costa do Marfim)

- Mercadores (sem plaqueta de identificação)

[TECELAGEM]

- tear fon

92
fotos:

- uma criança a tecelar ( em placa)

- 3 tecelãos com roupas “ocidentais”

- batedor de fibra (Senufo) {objeto em madeira}

- {alguns objetos de madeira sem plaquetas}

- uma senhora e uma menina teando

- polias de tear {objeto em madeira)

Foto:

-dançarina Mangbetu

-Moçambique

-Lobi

Objetos

-tanga/avental(Nigéria)

-peças retiradas para estudo

- cesta (Yorubá)

-esteira Kuba

-cache-fesse (mangbetu) {tampa nádegas}

Gavetas

a) 3 pentes

b) 4 pentes

93
[O TRABALHO NA MADEIRA]

- (Yorubá)

- Máscara usada no culto de Egungun (Yorubá)

- Fases da máscara Geledê

- Máscara Ogun (Nagô)

- conjunto de enxós para confecção de máscaras (Nagô)

- conjunto de facas para confecção de máscaras (Nagô)

- máscara Geledê para crianças (Nagô)

- máscara miniatura de culto à fertilidade (Benin)

- máscara (Nigéria)

94
Montaigne Pirrônico ou Fideísta?
(Texto de 2000)

Propomo-nos fazer um comentário geral a respeito dos temas levantados no trecho do


livro II Cap. XII dos Essais de Montaingne com referênciaà Apologia de Raymond Sebond, bem
como ressaltar rapidamente alguns aspectos da, por assim dizer, “filosofia de Montaigne”.
A criação e estabelecimento do ensaio, por Montaigne, enquanto uma forma de expressão
literária, moldou um tipo de construção mental que variava em seu sentido ao de uma formulação
teórica sistemática. Trata-se, sim, de um cogitar-se incessante, uma meditação que não se
desprende da realidade de si, concreta, individual (do ponto de vista não do que é real ou ideal,
mas do que é aparente a si ou passivel de crença para si).
Mas, antes de mais nada, é preciso dizer que Montaigne parte das filosofias da
antiguidade para apresentar essa sua maneira de ser. Sua forma de “ceticismo” afirmado na sua
fórmula de expressão, não sai de seu interior, para o qual são quase absurdas as sistematizações
das opiniões retas, tal como seria absurda a criação de regras para condutas certas. Ainda que não
se deduza daí falsidade das condutas e opiniões, pois seria contraditório, ou mais
especificamente diaphonico que reconhecêsssemos a falsidade de uma opinião ou
mantivêssemos um padrão geométrico para as condutas.
Já na antiguidade, foi possível observar que a filosofia estava entrecortada nos três
gêneros destacados pelos pirrônicos e relembrados nos Essays, a saber: se se procura por algo, ou
bem se diz que o encontrou ou que este não pode ser encontrado, ou bem que ainda o está
buscando. Foi sempre o objetivo da filosofia a busca da verdade, ciência e certeza. Mas,
paradoxalmente, é justo aí, nessa “confraria dos doutos”, que se sustenta a realidade relativa,
humana, não mais que humana.
A Epokhé (suspensão do juízo) em sentido grego, pirrônico (1), longe de ser uma
suspensão valorativa dos juízos numa decisão filosófica, é o modo próprio da crítica que se
aparta da diaphonia (espírito de discordância teórica). Da Epokhé pirrônica, não se concorda ou
discorda; assim como ela, tomada por atitude somente em sentido crítico, não aprova ou reprova
o tovelinho da diaphonia filosófica tal como ele se constituiu; fadado a sempre ser, em sua
história, divergência, conflito e inconclusão. De espírito crítico, Montainge, circunscrito sobre a
dúvida de si mesmo, reflete sob certo aspecto o credo quia absurdum de Santo Agostinho.

95
Criatura minúscula e vã, o homem não pode, sem a ajuda da luz divina, afirmar com segurança
qualquer coisa, sequer tentar abarcar pela ciência o cosmos. No entanto, ainda mais grave que
aquele, Montaigne não abre espaço para um certo “repouso” no cosmo com juízos corretos sobre
a natureza (ciência) ou na certeza de um “ponto fixo” (Deus).
Alexandre Koyré, em seu trabalho “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”, destaca o
momento da chamada “crise da consciência européia” como resultado imediato do surgimento
de uma nova cosmologia que viria reestruturar ou, por que não dizer, desestruturar toda a visão
de mundo que se sustentava até ali. Observou-se que a busca filosófica, tanto quanto as
atividades científicas, foram afetadas por esta crise e permitiram, no solo de muitas controvérsias,
florir novos modelos em que se basear. A variedade de frutos teóricos derivados ou sob a
influência das revoluções cosmológicas do período, citando como exemplo a copernicana,
motivou alguns intelectuais a identificar esse período ao da perda da “bela totalidade” dos gregos
antigos. (SILVA, Renato Araujo da. “Um Ponto Fixo no Infinito ?”, 1999 – In: Sobrescritos de
Introdução à Filosofia, 2014).
Percebe-se entre os séculos XV – XVII, principalmente a secularização da consciência e
a substituição do objetivismo dos medievos e dos antigos, pelo subjetivismo dos modernos, o
questionamento sobre as “certezas” sejam as da fixidez ou as da crença absoluta na razão.
Questinamento esse que é perfeitamente adequado ao “patrono” de tais idéias em meio ao
renascimento, Montaigne, que um dia asseverou ser tudo vão, incerto, duvidoso, passivo de
controvérsia até mesmo no domínio das ciências.
Montaigne é, portanto, um cético, mas não se pode encará-lo como um cético em sentido
puramente pirrônico. Seu ceticismo dá espaço também para a fé, ainda que essa fé seja especial.
Ele segue de perto aquela repreensão de Raymond de Sabond para o qual os cristãos “não tem
razão quando querem apoiar em em razões humanas a sua crença, a qual não se concebe senão
pela fé e por uma inspiração particular da graça divina”. O que fez Sebond foi de fato, um
discurso humano e por isso, no limite, não mais valioso que os outros discursos, isso quer dizer,
não mais sobre-humano. Mas o que mais é exigido do homem cristão desta envergadura senão
dar extensão ao instrumento retórico a fim de obter persuasão? E foi o que Sebond, com seus
estudos e pensamentos permitiu vir a luz. Ele adornou, alargou, amplificou a verdade de sua
crença. E, neste sentido, constuiu o meio da persuasão. Este meio é o próprio meio humano pelo
qual o homem rende seu “culto corporal” (ver: Apologia. p.310. Col. Rubaiyat. RJ, 1961). Este é

96
um tipo próprio de ceticismo que não apresenta interdições para a revelação divina, mas que,
sobretudo, abre espaço para o caminho da prática da tolerância.
Esse é, grosso modo, o conteúdo básico do pensamento de Montaigne, submerso na
inconstância dos sentidos e na relatividade das idéias. Não se dispõe de um meio seguro para a
obtenção da felicidade, ainda que seja justamente ela a quem buscamos.
O ponto de partida para este ceticismo de Montaigne, não é o livrar-se apenas do espírito
de rivalidade por meio da suspenção do julgamento, mas sim da consciência total da ignorância,
abertura que se reflete no epigrama de Lucrécio:

Nihil sciri quisquis putat, id quoque nescit


An sciri possit quo se nil scire fatetur
(Quem acredita que nada podemos saber, não sabe
Sequer se sabemos o suficiente para afirmar que nada sabemos)
(LUCRÉCIO, IV, 470)

Nas próprias palavras de Montaigne, L’ignorance qui se sçait, qui se juge et qui se
condamne, ce n’est pas un entiere ignorance: pour L’estre, il faut qu’elle s’ignore soy-meme
(Les Essays. T. 1 Livro II Cap. XII. p.502. Presse Universitaires de France). Esse é o elemento
primeiro que circunscreve Montaigne em si mesmo, a ignorância total pela dúvida a respeito de
tudo. Tem-se, de um lado, a capacidade humana de conhecer o mundo, de conquista da natureza,
capacidade esta, de tão boa conta aos doutos (que não deixam de ter mérito por isso) e, de outro,
tem-se uma anulação, uma dissolução desta mesma capacidade de conhecer.
Como de uma cadeia de conceitos filosóficos absorvidos de cada doutrina se subsume
uma verdade entre os dogmáticos, esta é ilustrada como reduto último do real, como
circunferência da totalidade do que é – conceituação por meio da aceitação e assentimento a algo.
Já com o neopirronismo, o qual Montaigne se mostra de algum modo admirado, ao eliminar seu
juízo, escapa também da navalha lógica imposta por sua própria concepção de que não é possível
ajuizar.
Em síntese, os peripatéticos, epicuristas e estóicos, figuravam-se entre os que pensavam
haver encontrado a verdade; isso permitiu o aparecimento da confiança na ciência, no otimismo
racionalista. De outra feita, Clitômaco, Carnéades e os Acadêmicos, ao se debruçarem sobre

97
estes assuntos, entenderam que a verdade não poderia, pelo meios humanos, ser compreendida, e
estes obtiveram, na visão de Montaigne “adeptos mais nobres” (Op. Cit. p. 502). Enquanto que
os céticos, em busca da ataraxia (tranquilidade da alma e ausência de perturbação), buscam por
meio do método da contra-argumentação abandonar todo assentimento – método esse que leva à
suspenção do juízo. Sexto Empírico, nas Hipotiposes, diz que os céticos não rejeitam as
impressões sensíveis [ e investigam a substância []
aceitando o fato de que ela constitui o conjunto do que aparece []. Essa investigação
não tem como objeto o aparente mesmo, mas a explicação desta aparência. Assim, o mel, em sua
apreensão sensível é aceito como doce sem se questionar se é deste modo em si mesmo – afirmar
isso seria realizar um juízo sobre o aparente que, como foi dito, o cético não o realiza, apenas
continua sua busca. Quando Sexto fala da “investigação do aparente”
[’] própria do dogmático, ele quis distingui-la do “que é
dito do que aparece” [], investigação própria do cético.
O dogmático precipita-se para coisas não evidentes [  ] sem cuidado. Quanto aos
céticos, ao fazerem suspensão de juízo a respeito do aparente, isso não significa rejeição do
aparente, mas uma prevenção contra o engano, um afastamento do conflito da verdade.
Nesta visão de Montaigne dos céticos, tudo lhes é igual, isto é, não fazem escolhas, mas
do ponto de vista pratico, nas ações da vida, eles seguem o modo comum. Deixam-se levar pelas
aparências, desde que não surja uma discorância muito patente, fruto de uma prática que caminha
para a tranquilidade. Eis o núcleo de toda a questão o qual faz parte do ponto de vista de
Montaigne: a evidência pirrônica de que tudo é passível de dúvidas.
Vejo Montaigne, portanto, menos como um pirrônico e mais como um simulador de
fideísmo que um discípulo de Santo Agostinho. Ele aproveita-se do método cético para
estabelecer o subjetivo e com isso abre espaço para o recôndito. É por isso que é um instaurador
de um movimento importante na história do pensamento europeu pricipalmente por influenciar
posteriormente os moralistas franceses e ainda ao promover a procura pela certeza e suas
implicações ainda que essas “certezas” partam de ou se entreguem às dúvidas ou ainda que
simplesmente sejam renegadas as possibilidades do ajuizar.

(1) O pirronimo é decrito como distinto do “dogmatismo negativo” do ceticismo


acadêmico.

98
Nos Percalços da Razão
(texto de 2000)

“A experiência do deslumbramento, para utilizarmos uma expressão de Adorno na ‘Teoria Estética’, força-nos a
fechar os olhos ao racional, na consciência de forças que o ultrapassam.”
(Olgária C. Féres de Matos- Revis. HYPNOS Puc. Ed. Palas Athena, SP.1998)

“Nous attachons à ce titre l’idée d’um fou féroce, qui n’écoute que son caprice; d’un
barbare qui fait ranger devant lui sés courtisans prosternes, et qui, pour se divertir, ordonne à sés
satellites d’etrangler à droite et d’empoler à gouche.”
( Voltaire, “Commentaire sur l’Esprit dês lois”. Oeuvre complètes, Ed. Moland- Paris, 1890,XXX, p.409)

“O Homem é um animal político.” Tal frase, dita a milênios, não nos transforma
imediatamente em Aristotélicos, mas, nos recobra, momento a momento, que a política é
predominantemente elementar em nossas vidas. Sob os efeitos das consciências particulares a
relação com o outro sugere sempre aquilo que o velho Aristóteles concordaria imediatamente;
estando na Polis, na civilização, o homem deve visar o Bem comum. Para aquém do alcance
desta sugestão, as práticas políticas e a vida no Estado, em geral, durante toda a história, ou bem
se guiaram na perspectiva do mal, ou bem se guiaram no sentido do bem particular. Em torno
disso, quais seriam as Razões e os Afetos envolvidos na prática política que concorreriam para
demonstrar que é possível a vida em sociedade?
Hobbes diz em paráfrase: “Homo homini lupus”. Eis a luta perpétua e universal do
homem contra o próprio homem contida (ou pelo menos amenizada) apenas com o advento do
Soberano; figura centralizadora tal que contém dentro de si a concórdia da cidade. O Soberano
é entendido por Hobbes como a pedra fundamental que guia por suas próprias forças, o conjunto
dos seres civis, isto é, cidadãos convictos e conscientes do pacto. O pacto, para falar à maneira
hobbesiana, seria a proteção da lei como providência geral, a qual estará contida a “instrução
pública”, ou seja, o modo de vida social dos indivíduos, em outras palavras, as formas da lei.
Garantida por quem ocupa o cargo soberano, a proteção legítima aos cidadãos, uma gravidade
para o Bem estar do Estado seria a deslegitimação desse poder. Muitas vezes, pensa Hobbes, os
homens perdem as “rédeas” da razão e com isso concorrem para a guerra civil e para a
conseqüente dissolução do Estado. “Se os homens se servissem da razão da maneira como
fingem fazê-lo, podiam pelo menos evitar que seus Estados perecessem devido a males

99
internos.”( Hobbes Op. Cit., Cap. XXIX). Dito de outra forma, o Estado perece ( em guerra civil)
por falta de razão.
Assim, para Hobbes, uma vez instituído o Estado pelo pacto dos seus cidadãos, jamais
estes devem ser obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que contradiga o atual. São
obrigados sim, cada homem perante cada homem, tanto a reconhecer quanto a considerar-se
autores de tudo que fizer o Soberano, pois, a instituição ratifica as ações dele.
Vimos falando nada menos que a respeito da noção de desobediência em Hobbes. Eis
um flagelo terrível à manutenção do cargo do Soberano representante. Só que, antes de mais
nada, é preciso dizer, caberia tanto a quem ocupa o cargo soberano quanto aos cidadãos,
observar e cumprir os direitos essenciais à manutenção do Estado. A perspicácia de Hobbes
chega ao ponto de evocar a racionalidade de tal argumentação. Na concepção de Hobbes de que
esses direitos sustentam-se em princípios racionais, aqueles que entrarem em desacordo com
eles levando ao desequilíbrio do Estado estarariam praticando atos contrários à razão.
Para Hobbes todo poder do Estado deve ser centralizado nas mãos do Soberano. O medo
que os homens têm de serem governados por um Soberano forte, neste caso, numa monarquia,
se supõe a partir da leitura de livros de história e política da Grécia e Roma antigas; “eles
formam uma idéia de que aqueles que vivem em um Estado popular gozam de liberdade e
aqueles que vivem numa monarquia são todos escravos.” (Hobbes, Op. Cit. p. 247, Cap. XXX).
O Soberano não seria visto por todos necessariamente como um déspota. O déspota é
aquele que, como diz Walter Benjamin na “Origem do Drama Barroco Alemão”, instaura o
Estado de exceção seguindo suas paixões mais violentas. O desregramento do mundo despótico
se inicia com a perda de freios do Déspota e a HYBRIS (Desmedida) é seu pecado original..
O termo despótico e despotismo são, desde Platão e Aristóteles, associados ou pelo
relacionamento entre Senhor e Escravo ou na forma da organização política do Oriente (1).
Outros períodos procuraram interpretar o termo diferenciadamente; os humanistas, por exemplo,
preferiam usar os termos “dominator”e “dominatio” . No tempo de Luiz XIV e no período que
sucedeu a guerra espanhola, o despotismo era ainda encarado como uma oposição ao conceito de
liberdade. Já para Montesquieu o despotismo não provém só do governante, a sociedade também
pode manifestar despotismo.(2) Ele elabora seu conceito de despotismo sem o opor
necessariamente à liberdade, fora de toda discussão prévia dos conceitos de mando, da
Soberania, da servidão ou das “Práticas Orientais”(nem todos os orientais são escravos; eis o

100
que diz Montesquieu. O ocidente inventou fantasias a respeito do despotismo oriental. Uma dos
caminhos de explicação disso é talvez a observação feita pelos ocidentais da vida sexual do
Soberano do Oriente. No Império Persa, por exemplo, aquele que manda, (observe-se aqui o
sentido falocrático do mando) é quem possuiria todo poder sexual, político etc. Aqueles que
obedecem, (castradamente - isto é, as mulheres e Eunucos) seriam privados de sua liberdade.
Num documentário sobre Ética, exibido pela TV Cultura de São Paulo, o Prof. Antônio
Cândido nos lembra do sentido duplo do valor do mando: o caso do Cônsul Julio Brutus da
República Romana é um bom exemplo de uma concepção do mando como privação da
liberdade do fazer. Diz Cândido; - “Isso é muito interessante sob o ponto de vista de uma certa
filosofia do mando, pois, - [Tal como ocorreu] - o filho o traiu, manda matar!” De um lado,
tem-se o pai que mata o filho e comete uma monstruosidade, de outro, tem-se a obrigação do
chefe de Estado que manda matar um súdito que traiu a República. Tal contenção do desejo de
preservação do filho é uma renúncia; e esta constitui a própria virtude pública entre os
Romanos.
Durante a República Romana não faltou exemplo de abnegação também entre os seus
Cidadãos. Hoje, alguns poucos saudosistas do mundo romano esforçam-se - sem muito sucesso -
em recobrar por via do sacrifício dos interesses privados, o favor do bem comum, da coisa
pública. Para ser cidadão de Roma, no entanto, se exigia antes de tudo, a excelência moral e a
força de vontade capaz de refrear os apetites. Para o estabelecimento da autonomia romana
jamais se pensou noutro modo de contenção do desejo senão ao estilo da renúncia. Isso, sem
sombra de dúvida, remete imediatamente à construção de uma Aristocracia. Terá mais excelência
moral, será mais virtuoso, aquele que tiver mais controle de si e for o mais abnegado. É por isso
que, numa república aristocrática, tal como foi a romana - na qual a qualidade e a excelência
comandava a apreensão estética da vida dos cidadãos de alta estirpe - o “apelo”das massas se
converte em “desejo” das massas, paternalismo. Conseqüente do despreparo no entendimento da
razão como a “boa medida.”
E por falar em razão... Perdido o momento da racionalidade abstrata, na modernidade,
aqueles conceitos e imagens trazidos por Adorno, em suas afinidades eletivas, permite-nos
recriarmos o sujeito”meta-racional”, sujeito para o qual o auto-engano deixa de ser fim, mas
apenas meio. Nem sempre se lidou bem com o fato de que é possível se enganar. Os gregos se
perguntavam; “Como é possível o erro?” Já o auto-engano da razão, nos séculos da modernidade,

101
por mais itinerante, reto, astucioso que ele seja, não nos faz facilmente desviar o olhar de algo
que a realidade não é; absoluto, contínuo,universal, inteligível, fixo, essencial...Ao contrário,
estes mesmos são os conceitos puramente racionais. Talvez por isso não poderíamos conceber
uma prática política que se basea-se estritamente nos ditames da razão. Uma prática política que
contenha, o contínuo, no período próprio do descontínuo, imporia barreiras na reconstrução do
sujeito por meio da criação e cultura que não são necessariamente contínuas.
Com a revolução na concepção de cultura da mentalidade européia nos séc. XVI –
XVII advinda das estrondosas descobertas no campo da cosmologia, com o fim do
heliocentrismo e previsão da infinidade do universo – surgiu entre os intelectuais do período e
os que se seguiram à esta revolução, a polêmica de se se poderia ou não haver um ponto fixo,
ou seja, algo a que se ater ou que pudesse substituir os velhos padrões de fixidez desenvolvidos
desde as civilizações clássicas, passando pela idade média até ali no prenúncio da modernidade.
Ora, já “tendo sido derrubados no campo astrofísico esses modelos cuja concepção de
universo fechado(3) , ordenado, finito, contribuiria para utilização desses mesmos ideais de
beleza, ordenação, continuidade, circularidade, aplicados aos demais campos da vicissitude
humana – especialmente na política e, sobretudo na moral, que era ainda uma preocupação
expressiva desde os “criadores”da modernidade até Kant, por mais quanto tempo esses modelos
fixos da política e da moralidade iriam se sustentar? Numa Concepção em que o universo é
infinito portanto, distancia-se mais uma vez essa idéia de um ponto que referencializasse o
espaço (SILVA, Renato Araujo da. “Um Ponto Fixo no Infinito ?”, 1999 – In: Sobrescritos de
Introdução à Filosofia, 2014) . Por outro lado, quando se trata de política, essa metáfora do
espaço é uma metáfora particularmente importante também se a entendermos como uma
referência ao espaço público. Isto é, se se perdeu a referência cosmológica para o ponto de ordem
no espaço, que não se perca o sentido da ordem do espaço público e da vida comum na sociedade
organizada. Eis um sentido possível para a idéia de criação e recriação do espaço; dar valor e
vida à sociedade.
A entender pois, que se se pudesse encontrar um ponto fixo pelo qual se basear, justificaria a
aplicação de novos modelos de sociedade que seriam eficazes para fundar o advento de uma
nova coerência para a realidade do mundo em que se poderia confiar. Talvez a confiança na
empreitada da realização humana não seria por fim, um total idealismo. Pensar, contudo, que
a política possa se guiar apenas na razão, isto sim, seria idealismo. je ne parle pás des fous, je

102
parle des plus sages; et c’est parmi eux que l’imagination a le grand doit de persuader les
hommes. La raison a beau crier, elle ne peut mettre lê pri aux choses.” ( PASCAL “Pensées”,
104 - Imagination-livre de poche. Ed. Librairie générale Francaise P. 65, 1962).
Ao falarmos de razão ou afeto, não se trata de fazermos uma escolha entre ambos. Não
poderíamos sequer admitir um ponto fixo entre eles. Com o advento da modernidade, os apelos
do afeto se mostraram bem úteis tanto para o lado da exploração da vida privada em detrimento
da vida pública quanto para impulsionar grupos de “renunciados” na construção de política de
bairro, ou pequenos grupos de reivindicação política. Por outro lado, a razão “Mãe do reto
pensar” serve ainda para afirmar e negar qualquer coisa na esfera da retórica, é nesse sentido que
o velho Hobbes deleita-se ainda no bom sono dogmático dos “percalços da razão”.

BIBLIOGRAFIA E NOTAS

(1) Citado por: Franco Venturi: “Oriental Despotism” Journal of History of Ideas Ano: 1
Pág. 133 Jan/March 1963. O Despotismo é assunto de um estudo de R. Koebner “Despot
And Despotism: Vicissitudes of a Political term” Journal of the warburg and Courtauld Institutes,
XIV (1951), 275 ff. E também pode ser confrontado com “Le Mythe du Despotisme Oriental”,
Schweizer Beiträge Zur Allgemeinen Geschichte (1960-1), 328 f.
(2) Tal como diz Venturi a respeito de Montesquie “It’s not only disregard for or
negation of the law of the land which characterizes this type of rule, but it is also the violation of
the laws of society and the transformation of men into instruments of the will” ( Franco Venturi
“Oriental Despotism” Journal of History of Ideas Ano: 1 , Jan/March 1963.
(3) KOYRÉ, ALEXANDRE .”Do mundo fechado ao universo infinito” Trad. Donaldson
M. Garschagen,2 Ed. Rj. F.V. :São Paulo. Edusp. 1986.
(4 ) HOBBES - “Leviatãn” Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva
Ed. Nova Cultural 1997.

103
A Tese Do Sistema Construcional Para a Verificação Da Possibilidade Do Conhecimento
Em Carnap Do Período De 1930
(texto provavelmente de 2000)

Carnap e os representantes do Círculo de Viena, propõem um revisionismo no método


empírico clássico partindo do desenvolvimento do instrumental lógico promovido por Frege e
Russell.
Significatividade – esta é uma preocupação que acompanhou toda história da evolução da
filosofia da linguagem desde seus primórdios com Port Royal (ou mesmo antes com Platão-
Aristóteles) até os momentos mais recentes do início do séc xx, culminando numa visão
pragmatista, levando a variadas elaborações de teorias da significação.
Perguntou-se, através dos anos, qual seria o núcleo do significado? Que expressões fazem
sentido? Os enunciados têm referência, i. é, se referem a alguma coisa? Qual é o papel da
linguagem e da filosofia na elaboração dos métodos da ciência?
Os filósofos da ciência e demais intelectuais de áreas relacionadas se propuseram a
debater questões deste tipo e o chamado Círculo de Viena veio acrescentar ao debate formulando
critérios de sentido estritamente empírico para determinação da validade de um conhecimento
científico.
O empirismo clássico contribuiu para o enquadramento conceitual da ciência moderna
permitindo a previsão de uma experiência futura à luz de uma experiência passada. Indo mais
além, foi possível com o empirismo que este arcabouço conceitual fosse simplificado.
No empirismo, tal como foi desenvolvido por Hume e outros, entretanto, apresentava-se
os termos, os conceitos dos enunciados, como constituintes nos quais se mantinha o sentido do
enunciado. Para estes, um enunciado tem sentido quando é resultado de impressões ou
combinações de impressões supostas e consideradas dos objetos físicos. Assim, por exemplo; a
expressão “Cavalo alado”, dentro do empirismo clássico, tem sentido, pois, temos aqui uma
combinação de impressões de “cavalo” e “alado” que dão sentido ao termo.
Grosso modo, o revisionismo aplicado no empirismo clássico, baseado na critica da
analítica do atomismo lógico (Bertrand Russel), considerará como sendo as unidades básicas do
sentido não os termos, mas sim as próprias proposições. O termo do exemplo acima “cavalo”,
no entender dos teóricos do Círculo, não é verdadeiro nem falso, isto é, ele não pode ser
submetido ao teste experimental. Nós só encontramos sentido no que testamos

104
experimentalmente e o que se testa não são os conceitos, mas as proposições. Desta maneira,
“isto é um cavalo”, é uma expressão que faz sentido porque ela é passível de ser testada e ,por
isso, pode ser verificada ou não na experiência.
A própria tese do sistema construcional apresentada no texto “Pseudo-Problemas na
Filosofia” vai nesta mesma direção. Esse sistema oferece à ciência uma formulação mais precisa
do objetivo da epistemologia abandonando conceitos da filosofia tradicional que não podem ser
problematizados.
Um problema, na visão de Carnap, seria uma questão da ciência que mantenha ou adquira
a possibilidade de justificação empírica. A epistemologia, enquanto um departamento crucial na
filosofia da ciência, tem por tarefa empreender uma análise dos conceitos da ciência empírica
(seja do conteúdo das ciências naturais ou culturais) e , por fim, reduzir esses conceitos a outros
conteúdos de cognições mais simples.
Esse processo de evolução metodológica trazida por Carnap e pelo Círculo de Viena,
garanteria uma maior clarificação e purificação dos conceitos da ciência. O mundo, apresentado
como um problema, necessita do apelo à experiência. Não se fará ciência nem se terá real acesso
ao mundo apenas pela forma do pensamento.
A exigência de uma base empírica, isto é, a exigência do ponto de vista epistemológico
de que os conceitos da ciência são da ordem do sintético a posteriori, remete à característica
essencial desse método que é a simplificação. Deriva-se o conteúdo de uma certa cognição por
meio de cognições já dadas supostamente como válidas. Carnap refere-se aqui à prática da
epistemologia que é o próprio método de derivação no qual um conteúdo de uma cognição é
reduzido a outro e, por fim, é epistemologicamente analisado. A simplificação, consiste, então,
em depurar os conceitos e objetos da ciência, encontrando aqueles que seriam
epistemologicamente fundamentais.
Dito em resumo, a análise epistemológica nada mais é que a análise do conteúdo teórico
da experiência. O primeiro passo para efetuá-la é uma divisão entre os constituintes da
experiência com o objetivo de encontrar aqueles constituintes que seriam empiricamente mais
fundamentais em relação aos outros.
Há no entanto, diz Carnap, uma ressalva a ser feita, ao empreendermos uma divisão ela
não significa uma divisão real e sim, apenas uma análise conceitual, por assim dizer, “abstrativa”,
uma vez que a experiência permanecerá como um todo intuitivo inalterável. “a análise ocorre no

105
curso de uma consideração subseqüente da experiência passada”
(“Pseudo-Problemas na Filosofia” Pg. 151 § 3). Então, temos a experiência inicialmente e
depois promovemos a análise com objetivos puramente epistemológicos.
Carnap dá-nos um exemplo bastante simples do método da análise epistemológica tendo
em vista a possível aquisição teórica do conhecimento. É a experiência da avaliação epistêmica
de uma chave. Chama-se na divisão desta experiência o constituinte “a” a forma tátil da chave e
o constituinte “b” a sua forma visual.
A análise epistemológica empreendida deverá demonstrar que há um constituinte dessa
experiência que é epistemologicamente fundamental em relação a outro constituinte que seria
dispensável. Assim, podemos inferir de nossa avaliação epistêmica da chave (mesmo se
estivermos de olhos fechados, isto é , privando-nos do constituinte “b” da experiência)
que, “esta coisa tem tal ou qual forma; ou esta coisa tem tal ou qual borda como a chave da
minha casa; ou ainda, esta coisa é realmente a chave da minha casa.”
Isso mostra que podemos prescindir do constituinte “b” como sendo dispensável para
obtenção de cognições, que nesse nosso exemplo são representadas por este conjunto de
inferências supracitado. Portanto, a partir daqui chamaremos “a” o constituinte
epistemologicamente suficiente aos nossos fins de obtenção de cognição, e o constituinte “b”
epistemologicamente dispensável em relação ao constiuinte “a”.
Todo enunciado que fizermos (conjunto de inferências) acerca desta experiência, nos
permitirá avaliar até que ponto essa experiência se acrescenta ao nosso conhecimento teórico.
Diz Carnap: “ esta adição consiste não somente no conteúdo teórico da própria experiência, mas
também em tudo aquilo que posso inferir desse conteúdo com ajuda de meu conhecimento
anterior”( Op Cit. Pg. 152).
A experiência continua inalterável. Mas quando desenvolvemos a avaliação epistêmica
percebemos, como foi dito, que podemos deixar de lado a forma visual, pois, somente a forma
tátil, mais o nosso conhecimento anterior, são por si só suficientes para a aquisição da cognição.
Podemos inferir da forma tátil, por representação, sua forma visual, mesmo sua cor, etc.
Entretanto, se esta análise fosse uma simples análise lógica, isto é, uma análise que não
levaria em conta o valor epistêmico de cada constituinte, essa análise se revelaria deveras
ambigua. Quer dizer, numa mera análise lógica dos constituintes da experiência poderíamos,

106
num exercício contrário, privarmo-nos da forma tátil e mantermos simplesmente a forma visual
como um constituinte indispensável.
Isso ressalta a importância de tratarmos “aquilo que é indispensável” somente em sentido
epistemológico, pois, em sentido lógico, “b “ pode ser reduzido a “a”, tanto quanto “a”pode ser
reduzido a “b” – verificamos, desta maneira, uma ambigüidade lógica entre os constituintes. Já a
noção de que um objeto “b” é, não logicamente, mas epistemologicamente redutível ao objeto
“b” da experiência, nos remete à própria averiguação epistemológica, demonstrando que uma das
formas representa um constituinte irremovível da experiência , portanto, do qual não podemos
prescindir, a saber, a forma tátil da experiência da chave. Por isso, diz Carnap: “Uma vez que
somente se apalpou a chave e que esta não foi vista, não podemos, nessa experiência, dispensar a
forma tátil sem ao mesmo tempo remover a própria experiência”( Op. Cit. Pg. 152 § 2). Deste
modo, na análise epistemológica , serão chamados na relação entre os constituintes, “a” ,de
núcleo, e o constituinte “b”, de parte secundária. Com a forma tátil, sendo um irremovível da
experiência, pode-se superar a ambigüidade e com isso permite-nos mantê-la como um
constituinte fundamental para obtenção de cognições.
Em diversos momentos na história da evolução da ciência ocorreu de se dar
intuitivamente uma resposta correta a uma questão se que esta tenha tido ainda uma formulação
mais precisa. Com o método da construção racional elaborado, tendo em vista que a única fonte
possível de acesso ao mundo é a experiência, alcança–se o grau de pureza e clarificação
apresentando o significado dos objetos que seriam à ciência, epistemologicamente funtamentais
Uma resposta intuitiva a um problema científico, diz Carnap, está ainda num estágio de
Suspensão. Ela somente se fundamenta quando recebeu uma formulação conceitual precisa. Ela
só garante para si um significado real quando se liberta de seu estado de projeção intuitivo
assentando-se sobre a base empírica da precisão que exige o sistema científico. A ciência esteve
de posse até mesmo dos próprios resultados da análise epistemológica de modo intuitivo e sem
poder dar um sentido preciso a esses resultados por essa mesma razão. Fora freqüentemente
preciso que se lançasse mão de um procedimento que determinasse quais são os verdadeiros
objetos da ciência e formular a precisão dessas respostas.
Recorrer-se-á, assim, à essa ciência especial afim de reconhecer quais são na experiência
aqueles constituintes que representam nela o seu núcleo e a sua parte secundária. A questão que
se coloca aqui é a possibilidade de justificar uma cognição partindo do conteúdo de outra

107
cognição hipoteticamente válida. Deste modo, é possível construir um sistema em que se
inspecionam criticamente o procedimentos das ciências individuais. O plano de Carnap,
apresentada essa ciência especial, seria a possibilidade de padronizar os princípios e novamente
abordar o material já com a padronização – sem que isso se mostre como um ciclo vicioso ,
porque é característico da ciência não se determinar seu sistema claramente a partir do material
dado. Diz Carnap: “ Desta maneira, a inter-relação entre a investigação científica particular e a
investigação epistemológica conduzirá a um sistema integrado da ciência unificada”( Op Cit. Pg.
156).
Como vimos, a preocupação de Carnap e também Círculo de Viena é o entendimento de
como as idéias se estruturam e qual é o sentido das suas proposições. Dentro dessa perspectiva,
a filosofia somente faria sentido se se adotasse um tipo de método que valoriza a pureza e clareza
do rigor lógico sem os quais o próprio filosofar não remeteria às coisas que fazem realmente
sentido. Essa seria, de acordo com as pretensiosas idéias gerais formuladas pelo Círculo de Viena,
a tarefa mesma da filosofia argumentativa, que abandonaria a linguagem psicologista, as teorias
e os próprios sistemas teóricos.
No texto “Pseudo-Problemas na Filosofia”, Carnap traça considerações a este respeito
concluindo que todo reconhecimento das ocorrências heteropsicológicas, quer dizer, ocorrências
que envolvem um segunda agente do conhecimento, tem como núcleo epistemológico a
percepção dos eventos físicos. “Os objetos heteropsicológicos são ‘epistemologicamente
secundários’ relativamente aos objetos físicos”. ( Op. Cit. Pg 161). Esses objetos que seriam em
sentido amplo as entidades, os eventos, as propriedades etc. seriam, por suas vez primários em
relação aos objetos heteropsicológicos.
Pode-se, portanto, formular o que Carnap chama de Resumo da Genealogia dos
Conceitos (ou objetos) e por fim, poder-se-ia demonstrar que os conceitos superiores são
epistemologicmente primários em relação aos inferiores. “Além disso, pode-se mostrar que os
objetos físicos são epistemologicamente secundários relativamente aos objetos auto-
psicológicos, uma vez que o reconhecimento dos objetos físicos depende da percepção”(Op. Cit.
p. 162).
A conseqüência da tese do sistema construcional esboça a tarefa epistemológica da
estratificação dos quatro tipos mais importantes de objetos da ciência 1) O auto-psicológico (do
qual todos os outros objetos dependem 2) Objetos físicos (o mundo factual) 3)

108
Objetos heteropsicológicos (que remete ao problema de haver teses conflitantes como veremos a
seguir) 5) Objetos culturais (conceitos epistemologicamente mais secundários).
Essa extratificação enquanto um expediente metodológico de redutibilidade de toda
epistemologia tem por finalidade a simplificação dos conceitos científicos a poucos conceitos
básicos. “Passo a passo, diz Carnap, conduz em uma construção, a todos os outros
conceitos.”(Op. Cit. Pg. 162)
Depois desta nossa digressão quanto a noção do método da ciência empírica em Carnap,
acreditamos que podemos lançar luz ao problema levantado no início deste trabalho a respeito da
significatividade dos enunciados como um dos critérios para a proposta de Carnap de eliminação
dos Pseudoproblemas da teoria do conhecimento.
“ O significado de um enunciado reside no fato de que ele expressa um ESTADO DE
COISAS {o grifo é nosso} concebível, não necessariamente existente.” (Carnap Op. Cit. Pg.
162). Essa consideração chama-nos atenção à distinção entre a questão do sentido de uma
proposição, e a questão secundária que seria sua verdade.
A proposição que descreve um estado de coisas é significativo em primeiro lugar e em
segundo só será verdadeiro ou falso caso esse estado de coisas passa se comprovar na
experiência , isto é, se esse estado de coisas realmente existe ou não. Por isso é correto
dizermos que uma proposição é significativa mesmo antes de sabermos se a proposição é
verdadeira ou falsa.
Para todos os enunciados que contiverem um novo conceito será preciso indicar seu
significado e com isso - apontando quais seriam as condições experienciais em que um
enunciado seja chamado verdadeiro, simplesmente, e não para que seja verdadeiro, e apontando
também quais são as condições em que ele é chamado falso - conquistamos o procedimento no
qual é possível indicar o seu significado. Com o intuito de reforçarmos o que já foi dito, entende-
se que só por meio do apelo à própria experiência encontramos uma representação adequada que
satisfaça a condição de decidibilidade entre a veracidade ou a falsidade do enunciado. Vê-se
claramente que a intenção primeira deste princípio é a eliminação do campo da ciência daqueles
conceitos que apareceriam como empiricamente supérfluos.
A prática geral que caracteriza os filósofos do Círculo de Viena é a busca pelo sentido
cognitivo de um enunciado. Carnap nos indica que podem ocorrer facilmente que um pseudo-
enunciado pode ser tomado erroneamente como uma sentença significativa. A logística tem por

109
função eliminar com esses erros lógicos por meio da decidibilidade, como foi dito, através do
critério de testebilidade dos enunciados filosóficos para se decidir qual desses enunciados são
carentes ou não de significatividade.
Um enunciado que tem significatividade, diz Carnap, possui conteúdo factual. Isto é, se
esse enunciado tem condições nas suas experiências (ou estado de coisas que descreve) são ao
menos concebíveis e se se pode indicar suas características. “Segue-se destas definições que se
um enunciado é testável, então ele tem conteúdo factual”.(Op. Cit. Pg. 164).
Uma análise mais precisa, todavia, admoesta Carnap, mostra-nos que nem todo
enunciado que tem conteúdo factual é testável. Por exemplo, o enunciado “existe uma certa cor
vermelha cuja visão causa terror” é um enunciado que não é de maneira nenhuma testável, pois,
não saberíamos como encontrar uma experiência que fundamentaria o enunciado.”(Op. Cit.
Pg.164). Por outro lado, verificamos que ele tem conteúdo factual, porque sempre podemos
pensar e descrever as características de uma experiência por meio da qual esse enunciado estaria
fundamentado. Em outras palavras, nós podemos pensar e descrever uma experiência na qual o
sentimento de terror ao vermelho é presente - em algum estado patológico, por exemplo.
Por fim, para aquém do nível metafórico (aliás, é isso o que significa metáfora, em grego,
‘transposição’ – que estaria num outro nível do real) as expressões “esta rocha esta triste”, “este
triângulo é virtuoso”, e mesmo a expressão dita por Heidegger “o nada nadifica” – seriam todas
expressões sem sentido, pois não possuiriam conteúdo factual.
Para Carnap, a controvérsia entre os filósofos realistas e idealistas, são um exemplo claro
da necessidade de estabelecer o fato empírico como o único critério na aquisição do
conhecimento e nos mostra que, somente nos campos de filosofia (e da teologia) ocorrem
enunciados ostensivos sem conteúdo factual.
Carnap, em sua auto-crítica, considera-se um intelectual que apresenta um critério de
significação liberal. Ele não falará em nenhum momento que as teses do realista ou do idealista
estão corretas ou incorretas, nem que a metafísica não existe ou é de todo imprestável. O que ele
vai dizer a respeito da controvérsia é que ela é inútil e não acrescenta em nada o conhecimento
do objeto. E a respeito daquela que foi chamada a “ancila da filosofia” ele vai dizer, mais ou
menos que se trata de uma espécie de artigo de fé, concluindo que nenhumas dessas teses possui
significado científico.

110
No capitulo referente à realidade do mundo exterior, Carnap menciona que a inutilidade
da controvérsia entre realistas e idealistas assenta-se em sua carência de significatividade. Supõe-
se dois geógrafos que seriam um realista e outro idealista. São incumbidos de verificar se uma
lendária montanha supostamente existente num determinado lugar na África realmente existe ou
não. Por realista entenda-se o pesquisador que concebe as coisas físicas não apenas como
conteúdo de sua percepção, mas, além disso, que elas existem por si mesmas (como sub-tese
concebe que os corpos das pessoas possuem reações perceptíveis similares às suas e que
possuem consciência). Por idealista entenda-se o ponto de vista estritamente contrário ao acima
descrito, para o qual o mundo exterior não é em si mesmo real, mas são reais somente as
percepções ou representações dele. (como subtese concebe que somente seus próprios processos
de consciência são reais, os processos de consciência dos outros são apenas construções e
ficções).
A despeito da divergência de pontos de vista entre os dois geógrafos hipotéticos, ambos
chagarão, a respeito da existência da montanha na África, ao mesmo resultado, seja ele positivo
ou negativo. O que garante nesse caso, tanto para a geografia quanto para a física , um conceito
de realidade que sempre conduzirá a resultados definitivos independentemente da convicção
filosófica do investigador. Tal é o “critério de realidade empírica”. A montanha, enquanto objeto
físico, possui características que permitem a ambos os geógrafos chegarem às mesmas
conclusões, sua posição, sua forma, sua altura etc. são suas características. Diz Carnap: “Em
todas as questões empíricas há unanimidade”. Assim, conclui, o que é verdadeiro para a
montanha, generalizando, podemos considerar verdadeiro para o mundo o exterior em geral.
Somente o conteúdo factual de uma experiência nos serve como critério para estabelecermos a
significatividade de um denunciado. Os geógrafos entrarão em discordância apenas quando
fizerem uma interpretação filosófica de suas conclusões empíricas, um afirmará pela realidade
em si mesma da montanha, o outro negará isso dizendo que ela não é real, senão enquanto fruto
de uma representação.
Desta controvérsia fica claro, então, que é uma questão de cunho pragmático a
decidibilidade entorno da posição filosófica com a qual se especula sobre a realidade. Todavia, o
conteúdo da ciência natural independe dessas elocubrações de cunho filosófico. Portanto, a
significatividade da experiência deverá ser advinda somente das ocorrências físicas dos objetos
da ciência.

111
Para finalizar, vimos que Carnap rejeita a noção de significação que não se baseia
estritamente no critério empírico de verificação. Tendo em vista os objetos físicos, o
conhecimento é possível. Nada na ciência se apresenta como um problema insolúvel, uma vez
que cada um destes problemas poderão ser submetidos a experiência e esta a mais novos testes
até que se conclua pela sua significatividade.

BIBLIOGRAFIA

CARNAP, Rudolf. “Pseudo-Problemas na Filosofia” Coleção “Os Pensadores” Abril cultural.


Trad.: Scheir-probleme in der Philosophie, Felix Verlag. Hamburg. 1961 por Páblo Mariconda.

112
O ‘Sobre a Idade Média’ de Walter Benjamin
(Texto de 2000)

Benjamin critica no texto ‘sobre a idade média’ a sua propensão ao absoluto, surgido
neste período especialmente em função do domínio político-religioso da Igreja que se exprime
numa formalização do mundo abandonando o conteúdo real do absoluto da visão antiga, por esta
visão desdivinizada, opressiva e formal, a qual redundou no racionalismo escolástico, o caráter
racional-mágico do gótico, mas também no estilo pictórico da prmeira renascença alemã e em
Boticelli.

Para efetuar essa critica, Benjamin parte do contraste existente entre o que chamou de
tendênncia asiática do espírito em contraposição ao espírito dominante da idade média. Nesta
“tnedência asiática, entendida também como espírito do oriente, ao contrário do caráter geral da
idade média observa-se também uma imersão no aboluto, mas que se serve de seu conteúdo real
no qual a arte e a religião se identificam. No espírito medieval, o que se observa é a aniquilação
dos deuses (natureza desdivinizada), perda do fundmaento mitológico e progressão formal na
medida em que tende ao absoluto.

Esse contraste é verificado para Bejamin na “afetação” em arte como fantasia afetada e
“Afetação” em arte como fantasia afetada e “afetação” em filosofia e na teologia como
racionalismo escolástico. A arte é “afetada” porque perdeu seu fundamento mitológico,
desdivinizou-se, é portanto um esquematismo mágico, já que a arte surge com o ornamento
místico. A filosofia é “afetada” porque mantém a divisão entre o princípio dominante e o
dominado e a tendência ao absoluto como formalização automática, mecânica, própria do
racionalismo medieval.

Tal como a alquimia, que procura o ouro por meios máticos, a arte procura o “seu ouro” a
partir do mítico, há aqui uma analogia. Contudo, enquanto que o ornamento asiático está
saturado de mitologia, o ornamento gótico não é mais mágico apenas lembrado por impressões
remanescentes deste poder (Ex. O anel de Salomão, a pedra da sabedoria, os livros sibilinos),
tem-se a ideia formal da mitologia que se reflete em arte. Assim, este caráter racional-mágico do

113
gótico exerceria efeito sobre os homens e não mais sobre deuses, onde o sublime deve aparecer
como elevado e supremo, e em que há sempre uma ideia de quintessência mecânica nele, de
progresso automático, de exterioridade desdivinizada e profundamente nostálgica. Essa visão não
só é mais restrita que a da antiguidade como é a mais restrita que a nossa.

(incompleto)

114
Sobre a Poesia “Planando” de Edson Diniz

(Crítica ao livro de poesia “Enquanto Ela Não Vem” de Edson Diniz (2000)

PLANANDO

Todo dia meu 14 Bis


confirma a verdade de elefante
E três dias seguidos voei.
ao som de trompete
só pra te ver Islândia.
Esfumaceada pela água quente
cai todos os dias sem tramas e muita sorte.

Seu corpo nu de banho a vapor,


e meu lenço azul no pescoço.

Outro dia ao descer a escada no chalé de beira mar


(sobrado de grilos e passarinhos)
Dobrei o pé e gemi.

Que besteirol não ser vida


Não ser amor
Pior ainda é navegar o mundo,
e agarrado, de muletas ficar.

Apague esta imagem islândia!


Vem me dar um beijo,
pois a bunda é sua eu sei,
mas os pés, os pés são o mundo.

Edson Diniz

A Islândia no poema de Edson diniz é o puro duplo sentido. Território a descobrir


“planando”. Figura de arremate que, de um lado é “terra” e “pés” e de outra é “asas” e “voo”. O
“meu 14 bis” é imperdoável nas lancinantes patas do elefante da distância. Não te presenciar é
dor Islândia.

A ambiguidade da “Islândia” no poema revela que sem a islândia dos brados do poeta
nada mais existe. Existe sim, o sufocante e rarefeito e frio, ar que não a rodeia islândia. A
ambiguidade é aqui fundamental. A islândia que é terra e sobrevoo e a Islândia que é a mulher,

115
nua, esfumaceada (não esfumaçada, porque ela é vapor quente, molhado) a cair todos os dias
(sempre) sem tramas ou sorte.

Parece que a islândia não fica nada distante daqui. Sem contar a memória que na poesia
de Edson diniz, apresenta-se como um aqui e agora. É assim, por exemplo, quando do corpo nu
(a vapor), é assim quando do chalé de beira-mar.

A memória como conceito do fazer-se presente retoma aquilo que jamais deveria ter
saído do tempo. E quando falamos de “Planando” em particular, esse tempo é o tempo presente
inexistente, quer dizer, o tempo presente não sentido. É claro que uma fantasia é irremediável, no
entanto, quando se consegue com gênio fazer síntese entre uma escada de chalé, grilos, e uma
dor no tornozelo, surgem mais realidades no mundo que o mundo real é capaz de oferecer=nos.

Com “Planando”, Edson Diniz emerge como grande esperança para a poesia brasileira.
Pois, quando ele fala de Islândia, seu corpo, ele está faendo poesia brasileira. “Que besteirol não
ser vida, não ser amor” - é o amor da personagem Planando, seu 14 Bis e um trompete: isso sim é
vida, é momento de vôo... Certametne a torção no pé não é uma queda é uma turbulência
deslocada a vertigem que comove, a sua busca de se unir sem fronteiras, faz deste avião um
revolucionário. Não é absolutamente à toa que “navegar o mundo é pior ainda”. Atado Pa terra, o
real, o mundo significa a perda do plano fantástico de todas as imagens da Islândia.

... “É sobretudo nos estados caóticos, em suas desordens e estragos mais violenteos e
desregrados que a natureza evoca melhor a ideia de sublime” (Kant, “Critica do Juízo, paragrafo
23).

116
Crítica da Visão Empresarial
(Comunicado aos calouros de filosofia - Jornal “Crítica Fora”9 - Texto de fev. de 1999)

A febre do modo de ser de empresa tem se difundido por todos os setores da


sociedade como uma epidemia. Fala-se de uma era dita GLOBAL na qual cada ser vivo é
objetivamente visto cmoo um consumidor em potencial. E cada evento da vida é visto como
um novo conceito ou paradigma a ser seguido pelos que estão em destaque, ou por aqueles
que possuem sensibilidade, tino comercial, para assim evoluir ocm os rendimentos da
empresa.
A conjuntura econômica internacional atingida pela paranóia capitalista da
competitividade sonda limites cada vez mais profundos. Não é absolutamete à toa que as
populações de países desenvolvidos e por que não dizer, também uma massa de indivíduos
de países em desenvolvimento apoiam irrefletidamente o envio de tropas “apaziguadoras”
para o exterior com o objetivo evidente de obter o controle da justiça nos trópicos e com o
objetivo latente de GERENCIAR bem essa empresa.
Já outros, mais comedidos e pacientes, digamos, moderados, atribuem um valor a
mais no objeto de seu gerenciamento. Estes não querem em absoluto, tratar a seus clientes
como números, eles querem sim, “HUMANIZAR O CONSUMIDOR” - como se não fossem
já humanos. Eles dizem: “nosso atendimento é personalizado...!” “A filosofia da nossa
empresa é bem atender ao cliente e trata-lo como parceiro” etc. Enquanto que, sabemos bem,
toda relação comercial é mediada pelo interesse material, e, qualquer tentativa de maquiar
isso põem um dos lados, e, eventualmente a ambos, num papel ridículo.
Repararam como se tornou immpossível passar um único dia que seja sem sofrer um
atentado contra a sua humanidade? Entramos, por exemplo, em uma loja qualquer para
comprar uma camisa de R$10,00 e somos tratados como se fossemos Ppresidentes da
República a escolher sua nova medida econômica: “- Essa está muito boa... Combina
enormemente com o senhor (a).... Puxa! Essa camisa estava aqui como que esperando-o(a)
para comprá-la, ela foi feita pro Senhor (a)!” Por Deus, será que não somos capazes de
escolher a própria roupa que vestimos? Será qu e é preciso sempre termos ao nosso lado um
profissional de visão empresarial nos dizendo o que fazer com as nossas próprias vidas?
Vinha lhes dando, antes disso, exemplos extremos, no entanto, não é difícil
reconhecer esse desgosto num sem fim de aspectos da nossa sociedade. Parece que ter visão
empresarial da realidade hoje é estar de acordo com a avalanche de termos da moda - entre os
quais, timidamente, esbocei alguns em maiúsculo nesse texto. Infelizmente, o leque da

9
O Jornal “Crítica Fora” foi um folhetin crítico lançado no Conjunto Residencial da USP (CRUSP), em 1999 e
obteve grande circulação na USP durante a greve de 2000. Fundado pelo mímico, poeta e filósofo Edson Moreira
Diniz, teve tiragem inconstante e circulou por 3 anos (1999-2001)., até o fim da gestão da chapa do AMORCRUSP
(Associação dos Moradores do CRUSP, cujo secretário era Renato Araújo da Silva e um dos diretores Edson
Moreira Diniz).

117
superficialidade das relações entre os homens tem se ampliado a horizontes longínquos.
Vejam, por exemplo, também, que sequer um aperto de mão pode ser gratuito. Outro dia, um
rapaz simpático se apresntou a mim como estudante do Instituto de Física da USP.
Conversamos por alguns minutos sobre assuntos gratuitos, depois percebi que esses minutos
foram antecipadamente calculados por ele. Conversamos sobre o tempo, sobre a vida
universitária, etc. Depois, sem mais nem menos, interrompeu o fluxo livre da conversa e me
perguntou: “O que você acha da Bíblia”? Eu, sem saber o que dizer, achando qu efosse
apenas mais uma pergunta gratuita, simplesmente sorri. Então ele repetiu a pergunta e cada
vez mais incisivamente não se demorou a tentar gerenciar mais uma alma para o seu reino.
Eu senti um pouco de asia naquele dia ao retornar para casa, reconhecendo que os gerentes
de visão empresarial encontram-se em todos os lugares e é preciso esquivar-se deles para
viver-se mais humanamente quanto nos for possível.
Por fim, a alguns dias atrás, eu senti que esta visão empresarial como febre veio
realmente para ficar. Pensei, por exemplo, na criação do ciclo de dois anos para o calouro da
FFLCH. Seria esta uma forma velada de aparar os defeitos dos alunos no aproveitamento do
curso secundário ou mais um exemplo do utilitarismo gerencial?

118
[sem título]
(Comunicado aos calouros de filosofia - Jornal “Crítica Fora - Texto de 19-10-1999)

Bem que poderia haver um movmento de racionalidade econômica, nesse país e no mundo. Podia-se
chamar isso de neo-nacionalismo da economia ou o diabo!
Bastaria imaginarmos, por exemplo, o que se faria com os 40 milhões gastos com o processo “Clinton”
se não houvesse certos promotores querendo se PROMOVER.
A primeira pauta a esse movimento de racionalidade seria a classificação e a acusção de disperdícios.
Obviamente não faltariam comparações entre o montante do disperdício e o que ele poderia reverter em
benefícios sociais.
Já se faz isso esporadicamente. Abrimos o jornal e tem sempre lá: “O governo gastou tanto... na
decoração de Brasilia para o natal desse ano”. O que se segue ao nos informarmos a respeito do montante gasto
é realmente nosso assombro:
“Puxa!!! O governo gastou isso tudo?” e “Será que precisava tanto?” Entretanto, o que não nos ocorre
é que, logo abaixo, a descrição que nos faz a reportagem sobre a belezura que ficou o planalto central, nos faz
esquecer involuntariamente que o gasto nem sempre vale à beleza. (É o cado de se perguntar se um Estado que
é separado da Igreja merece um enfeite de natal..)
Na realidade, outros diriam: “esse gasto não significa nada perto do PIB do Brasil!” Ora, nesses dias de
deslavada miséria é o que continua dizendo uma porção significativa dos que ganham destaque na imprenssa.
Qualquer um pode fazer a experiência disso. Quantas vezes você já ouviu isso?: “Esse gasto é irrisório...”; “Isso
parece muito mas...”; “Isso é pouco, guardadas as devidas proporções...”
Pois é, já pensou se todo ministro da economia pensasse como o promotor dos EUA? Bancarrota na
certa!
É obvio que cada centavo, sendo público, tem um valor significativamente maior que esses “mestres de
comparação de valor” podem efetivamente supor. Considerando isso, a racionalidade na economia deveria
proclamar: todo centavo público é sagrado!

119
[sem título]
(Comunicado aos calouros de filosofia - chapa “Coletivo Controvérsia” CAF -
Centro Acadêmico de Filosofia 1997)

Sou mais brasileiro do que presume o próprio ser...brasileiro..., e do que se presume o ser-aí.
Quantas fortalezas me trazem a esta crença real no meu país...?
Ora, que existência (neste país), por mais breve que seja, por seu curto período de vida, concluiria assim
comigo?:

“Para ser brasileiro é preciso ser DADA,


Mas para ser dada não é preciso ser brasileiro”

Que existência (neste país) que significando o máximo da incerteza concluiria comigo?:

“Dada, esse maravilhoso fio de trevas,


Meu pai eunuco, mais distinto
É aquele que me ilumina quando
Eu estou na luz”.

Mais retardada é a incerteza, martírio ambulante, mas permanente tanto quanto a certeza exatamente o é.
E a danação não é possuir brasilidade, mas sim construir o não-ser a partir de Pedro Álvares Cabral
Menos porque os Portugueses eram fedorentes ao desembarcarem aqui de sua longa viagem sem banho a
500 anos atrás, e mais por causa desse fedor ter permanecido.

DADA É O QUE FICOU, VAMOS FEDER COM TUDO

120
SSSHHHH !!! TÊM GENTE PENSANDO !
(Comunicado aos calouros de filosofia - Jornal “Crítica Fora - Texto de fev. de 2000)

O que é o silêncio de alguns de nossos professores? Qual é o intuito de alguns de


seus comentários? Qual é o alcance de sua passividade? Quase sempre essa nossa sede de
justiça nos diz: - Essa vida acadêmica é um romance! O pior de tudo é que esse romance
não é exatamente um romance de Guimarães Rosa ou de Mário de Andrade , se bem que os
personagens sejam bem tupiniquins.

Não é preciso nem dizer que nós alunos, estamos bem atentos a esse provincianismo de
alguns dos professores da USP cuja tendência se aproxima da maioria. E estamos bem
atentos também ao reconhecimento das “picuinhas” que eles andam comentando em aula que,
na verdade certos de estarem sendo despretenciosos, insistem ano a ano em cultivar suas
tolices.

Você que é aluno da USP ou especificamente da excêntrica FFLCH sabe bem o que, ou
porque estou dizendo isso. – “O quê ? ” Perguntou-me um calouro –“A malícia infantil de
uns... Respondi: - “E por que ?” Perguntou-me um aluno do 2 ano. – Bem, porque é quase
insuportável ter que ouvir uma voz afetada dizendo coisas do tipo; Vocês nem pensem que
vão me ensinar algo sobre Sto Agostinho porque eu já estudo a mais de 10 anos, não há nada
que vocês escreverão na dissertação que eu não saiba ! ”

Espero estar sendo suficientemente claro a ponto de dispensar comentários mais


drásticos acerca dessa malícia. Exceto pelo que queria simplesmente dizer sobre isso, para
não ser mal interpretado: vale dizer, que essa baixeza acima referida sob aspas no bom e
velho estilo acadêmico, descreve literalmente algo que é dito ano após ano bem aqui no
nosso departamento debaixo de nossos olhos e ouvidos!

Ora, ainda que fosse a mais gloriosa verdade - o que é efetivamente possível- palmas para o
professor! Mas se isso não passar de uns “tortos ganchos de malícia”, eu, juntamente com
uma boa seção de alunos, preferiríamos nunca ter ouvido isso porque, como se pisassem em
nosso calo mais dolorido, teriam, por razão disso, que ouvir nosso berro de dor. Além disso,
na FFLCH a dor é mais embaixo. Nosso berro é de indignação porque uns professores nos
querem tratar como uma couve-flor ou como uma pedra. O caso é que essa falta de finesse
impede-nos de uma convivência mais adequada até mesmo para atingir o objetivo da
graduação.

Tem professor aí que diz que não gosta de alunos. O que significa isso? Bem , em primeiro
lugar , é evidente que ninguém é obrigado a gostar de ninguém. Mas, é muito mais saudável,
já que alguém tem que se desgostar de alguém que desgostemos nós desses...Os nossos

121
professores estão longe de serem uns exemplos (“heróis”) para nós. Por isso, colegas
calouros, nunca deixem eles contar mentiras para vocês, pois a nossa geração, estejam certos,
é a primeira a sofrer isso, não porque precisamos de “heróis”, ao contrário, porque fomos os
únicos a rejeitá-los. (não queremos NEM O TIO SAM, NEM O CHE GUEVARA como
ídolos).
Se nossos professores eram hippies ou reacionários na nossa idade, pouco importa. O que
importa é que a geração deles tinha muito mais ilusão do significado da malícia ou da
demagogia que agente. E o fato de não sabermos nos comunicar como eles querem em
linguagem escrita ou na linguagem falada, não nos farão (é isso que nós vamos mostrar para
eles) exatamente passivos ao sermos tratados feito algodão-doce. Porque ao sermos tratados
assim, porque estamos atentos, nós os trataremos como exatamente são : uns maliciosos!

É isso! Uns professores são uns maliciosos! Isto não é uma afronta, apenas uma
observação.É preciso ser sincero, minha honestidade me levou a escrever-lhes, meus
camaradinhas. Quero ser honesto, sobretudo continuar sendo assim porque já o era muito
antes de entrar na universidade, digo, ninguém me ensinou a ser desta forma aqui.

Ass. Não é tão ruim assim ser um veterano ressentido... vocês vão ver...

122
SOBRE AS POSIÇÕES POLÍTICAS NA USP
(Comunicado aos calouros de filosofia - Jornal “Crítica Fora” - Texto de 04/04/2000).

É muito triste que nossos professores, a respeito da realidade, somente possam dizer coisas
engraçadas.( refiro-me ao bom humor dos poucos que se comprometeram dizer algo a respeito
das questões atuais nos debates e em seus parênteses nas aulas).
Não é preciso citar nomes, mas acho que a fantasia tem, neste departamento, tomado o lugar de
qualquer análise mais realista ou, se quisermos, menos fantástica do tratamento do que
é real(dados imediatos da realidade – os problemas do nosso tempo).

É com esta luxúria necessária (auto-imposta) que pretendemos lidar com o mundo das idéias,
do reino de Deus, do espírito absoluto, da coisa-em-si e de todas as outras fantasias, sem nos
desviarmos sequer um milímetro do rigor e seriedade que são as atitudes básicas para qualquer
filósofo, professor ou aluno de filosofia.

É exatamente com este rigor que tratamos tudo do quanto é mais fantasticamente belo em
nossa profissão de literatos filosóficos – que ninguém tenha a inocência de que o “homo
filosoficus” não seja o “homo literatus” pois já desde antes de se encarar contemporâneamente a
filosofia já havia um mundo como vontade e representação para senão todos, ao menos, para
muitos de nós. Mas não é isso o que vemos quando tratamos de nossa realidade imediata. Nem
objetividade ou volição são ações próprias da humanidade dos humanos ditos sérios e rigorosos
para com a verdade do real(técnicos do saber prático = interpretes de texto). E isso é válido não
só aos professores, mas principalmente aos alunos, pois os que se calaram consentiram.

O que se vê é, quando na sala de aula ao falarmos da coisa-em-si ou do reino de Deus não há


possibilidade nenhuma de nos desviarmos do método próprio da exatidão da ordem das
estruturas ou das razões das “fantasias” caso alguém muito inocentemente tente desviar-se
dessa retidão logo no primeiro ano receberá uma nota de seu professor para ser prontamente
enquadrado no esquema. Ora, que nota nós alunos daremos aos professores que tratam da
realidade não com rigor, seriedade, estrutura mas somente com engraçadíssimas piadas?

Os fatos demonstram que é muito mais fácil falar das “regras para direção do espírito” que
propor, partindo do real, uma “espiritualização das regras.”Nenhum de nós temerá o futuro.
Somos mesmos os construtores dele. A piada, a exposição e “o que fazer” filosófico, são todos
condições a posteriori da análise imediata da situação.

Tanto é assim que, quando os empresários monopolísticamente gerirem também a educação não
seguiremos o exemplo de nossos professores, mas indisciplinadamente, da nossa piada faremos
muito mais gente rir!

123
Quem Tem Fome de Quê?
(Comunicado aos calouros de filosofia - Jornal “Crítica Fora” - Texto de 02/09/2000).

Está na hora de alguém sugerir algo para contrariar o embotamento e o fedor


generalizado que se assenta sobre o crusp.

Esse lugar já foi palco de excelentíssimos acontecimentos; os encontros felizes nos quais
se divertiam jovens sadios , seja nos seus apartamentos ou nas rodinhas e festinhas regradas a
vinho, marola ou cachaça; o circuito das discussões acaloradas que davam valor e sentido à
Universalidade da Universidade. Mas tudo isso acabou !!!

Meus caros colegas, enfrentemos juntos essa realidade. O crusp já era! Nada aqui da
gosto ou estímulo Universitário. A começar pelo esgoto a céu aberto que é promovido por
(burgueses –que tomam o espaço público e privatiza-o) um grupinho minoritário de sujeitos
infelizes que aqui encontraram refúgio.

O Problema social de alguns ex-alunos desta Universidade ou dos favelados que se


beneficiam desta miséria que lhe é ofertada chamada UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO com
todos os seus revezes e suas benesses, não é um problema específico do crusp. Não é problema
do crusp como um todo o problema social dessas pessoas, assim como não é problema do crusp
como um todo o problema do tráfico de drogas no Campus. Se há traficantes é porque não lhes
falta demanda. Eu particularmente, como um bom ateu, acredito que, como a Religião, o tráfico
de drogas tenha lá seus benefícios sociais. Mais ou menos como dizem os sociólogos das
mulheres da vida “ a profissão das prostitutas serve à sociedade como um “desafogo social”, uma
válvula de escape para o curto-circuito que se forma na hipocrisia da sociedade. De qualquer
forma, esses problemas sociais absolutamente me dizem respeito diretamente.

É óbvio que nos sentimos empáticos para como os problemas sociais sejam de alunos, ex-
alunos, ou dos que jamais atingirão nÍvel Universitário. Malogrado os esforços no sentido de
trazer este público para Civilização, esse ideal nunca foi atingido. Eu quero dizer que,
considerando o fato de que é quase impossível ser herói – eu próprio o desisto!!!

Alguns vampiros sugaram a última gota do sangue de minha paciência, assim, eu desejo
fortemente com todos os cruspianos: DEIXEM-NOS EM PAZ!!! A Universidade é do povo e
dos estudantes. O ideal do “deixa fazer deixa passar” não é nosso ideal. É o ideal de vocês seus
burgueses nojentos. Seus pobres de espírito.Seus zangões exploradores chupadores de mel. Seus
glutões lambedores de peido. LEAVE US ALONE!!!

Aproveito também para manifestar meus votos de protesto de Democracia e Cidadania


para todos – a “burguesia” fétida tem-nos impedido disso.

124
[sem título]
(Comunicado aos moradores do CRUSP - Conjunto Residencial da USP -
Jornal “Crítica Fora” - Texto de 02/08/2000) .
O autor faz referência a si próprio,
Tal como era chamado na época “Araújo”

Seus comedores de cocô de mamute. Eu vos odeio a todos!!! A começar pelo Araújo esse
univesiotário chinfrin duma figa, esse comedor de chocolate filho da pulga.

E depois... Ah... E depois todos os outros idiossincráticos do batuque que paril... A


recomeçar todos os dias os gritos lancinantes nos ouvidos dos outros. Ja reparou como todo
mundo aqui vive falando? Todos os dias o mesmo rosnar, o mesmo mexirico, o mesmo
burburinho, zumbidinho desses zangões chupadores d emel com peido.

Vão arrotar seus retardardos! (“dardos” por que sem alvo, na certa). Ó mundinho! Ó
terceiro timinho chumbrega da Silva! Ó novo horizonte de todos os tempos! Ó lanterrninha
desgarrada de todos os dias do resto dos meus dias! Ó meus algozes! Vão pras putas que os
pariram! Vão arrotar molho de cobra de azeite de milho em outro lugar! Vão dechavar pentelho
da butrêca da tia cecília! Vão enxugar gelo ou qualquer outra coisa.

Eu não aguento mais vocês! Principalmente o Araújo, este fedelho enchedor de saco dos
outros! Esse Bumbum paticumbum prugurundum! Esse honestidade! Esse salafrário de camisa
xadrez!

Esse Araújo é um idiota! Ele não tem o que fazer e fica aqui enchendo o saco! É um
patife, é cartola de meia sola! Um UNIVERSIOTA! Um gola de lã! Um mosca! Um delicado!
Um jeca! Um “retardartário! (SIC) Um fazedor de mil tempestades num só copo D’água! Um
peso morto! Um sem fazê nada! Um fazes nada! Um fezes nada! Um aprendiz de intelectual! Um
nota C! Um ranzinza! Um porre! Um CHATEADO! Um boca suja! Um desperdício! Enfim, um
chatonildo de primeira galocha! Esses diretores! Esses caras! Esses políticos! Aliás, pra que
serve esse diabo de AMORCRUSP? Vâmu destruí essa droga! (SIC)

E depois? Ah, e depois vem todo esse povo do cursinho... Esses professores! Esses caras!
Esses políticos! Aliás, pra que serve esse diabo de cursinho? Vâmo destruí essa droga! (SIC). E
depois? E depois vem todo esse povo da conveniência, do xerox e da Ação Global dos Povos -
esses sim - primeira mente esses. Ação globadores! Esses caras! Esses políticos! Aliás, pra que
serve esse diabo de xerox, conveniência, Ação Global? Nenêm: meu desodorante acabou. Vamos
feder com tudo.

125
PARABÉNS

(Comunicado aos moradores do CRUSP - Conjunto Residencial da USP -


Jornal “Crítica Fora” - Texto de 12/10/2000)

Nós da ralé temos nos comportado relativamente bem nos últimos dias. Isso me faz mais
ou menos feliz a ponto de ouvir congratulações dirigidas a nós: PARABÉNS!
Em razão de eu próprio me constituir como um elemento no universo da ralé e eu
desgostar de me sentir como somos - desprezados - gritei uma ou duas vezes contra tal estado de
coisas. O CRUSP vai bem, obrigado. No entanto, eu tenho um capricho. Eu queria ver isso aqui
realmente bem e ver essas pessoas, nossas pessoas com um pouco mais de amor-próprio, se isso
não nos forcar ao aburguesamento ou a atos que camuflem nosso real estado de abandono.
De qualquer forma parabéns! Não vejo quase mais aquela bagunça nojenta que
promovida por aquele grupinho minoritário de burgueses (os que chamamos carinhosamente de
JUNKS) que nos incomodam às vistas e não possuem sequer umzinho de compromisso com a
universidade do povo.
Parece-me que eles entenderam bem o meu último recado. Os atos de vandalismo contra
a verdadeira ralé quem necessita do apoio para superar os seus conflitos - os alunos da USP
moradores do CRUSP, têm diminuído quase que magicamente. Vejam vocês que o CEPEUSP
“Concedeu” que os alunos moradores pagem somente R$4,00 para o famigerado exame médico -
isso é uma vitória, a considerar o momeno que vivemos de reta final para a privatização de
nossas vidas. Por outro lado, outra maravilha ocorreu. Parece que o pessoal que ´so usa a USP
para se protejer da polícia de fora do campus, está maneirando em suas demasias - isso é mais qu
uma vitória, isso é lindo: PARABÉNS!

126
Os Três Dogmas Do FFLichismo
(Comunicado aos calouros de filosofia - Jornal “Crítica Fora” - Texto de 11/02/2001)
(Eis o que eu chamo de manifesto meio provençal contra o nosso total provincianismo)

Em nome do Pai do Filho, do espírito Santo, AMÉM! É inadimissível que


nossos ilustres professores seguidos dos "melhores alunos" pratiquem essa religião; a
irreprimível óstia aprovação, o sacramento da nota 8, a eucaristia da média ponderada;
são estes os três dogmas da igreja FFLCH.(1)
Um dos Santos da Igreja revelou-nos; "eu não posso excluir um fiel em função
de ele ter pecado em média ponderada..."Já outros sacerdotes, menos agraciados, não
tiveram tanta força para impedir a influência do mundo secular. "Se Deus não
quissesse que vivêssemos em chula concorrência não teria inventado os E.U.A. !"
"Prevenir é melhor que remediar! "Confirma o senso-mais-que-comum
daqueles que não são nem sacerdotes, nem fiéis da igreja, mas que , em razão de
teram se ocupado com o carreirismo burocrático , conquistaram cargos com os quais
não comandam nada ( Graças ao falso profeta do colegiado), mas que fingem
comandar. Esses administradores de igreja ( que não são exatamente os filisteus do
mundo moderno simplesmente porque não aparentam má vontade), são, em todo caso,
os defensores clássicos dasECCLESIAM DOGMATIS.
Ave verum corpus Christi - salvo excentricidades, a FFLCH vai muito mal!
Ninguém quer se livrar deste obscurantismo atrós que equilibra progresso cultural à
medidor "intelectual" de aproveitamento escolar. Evidentemente, ao se confessarem,
os fiéis ( ávidos do céu) regozijar-se-ão das poucas penitênicas a cumprir para chegar
ao paraíso sonhado da Pós-graduação: 'Anima' Dominum Jesus Cristu 'dativus' vita
aeterna - talvez uma Ave Maria ( como cumprimento impecável do relatório), uns
dois ou três Mea Culpea, Mea Maxima Culpea (como justificativa por ter acrescido a
lascívia de um pensamento próprio na dissertação, rompendo assim com a "estrutura-
do-estruturalismo-estruturado-na-estruturalidade-estrutural-do-mundo". E por fim, os
padres rogarão para que se reze uns cinco Pais-Nossos por supor um dia que o
intelectual pode errar (vidit Fernandum Henriquorit Cardoseum)

(1) sei disso como um antigo bom coroínha de média ponderada 8.00

TE FFLCH (DEUM) LAUDAMUS,


TE DOMINUM CONFITEMUR.
TE AETERNUM PATREM, OMNIS TERRA VENERATUR.

127
TE GLORIOSUS (PUPILUS) APOSTOLORUM CHORUS,
TE PROPHETARUM LAUDABILIS NUMERUS.
TE MARTYRUM CANDIDATUS LAUDAT EXERCITUS.

TE PER ORBEM TERRARUM SANCTA CONFITETUR


(FFLCH)

ECCLESIA.

Antiga foto da atual Administração da FFLCH.

( FFLCH- Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP)


FeFelixo, para os meus amigos da Poli,..Mas seria excessiva maldade estudantil.

128
Shopping Doppin Center
Jornal “Crítica Fora” - Texto de 2001

SUMO

SUMO

ASSUMO

DROGA

CHERAÍNA

EM PÓ

O CONSUMO

SUMO

SUMO

Poesia concreta dedicada aos consumidores de hoje em dia

129
[Sem título]

Jornal “Crítica Fora” - Texto de 2001

Minha Faculdade, meu mofo mofo

Meu departamentinho de coisas feitas...

Chulé chulé!

Animada a violência com que o sol derretia

De suas costas rangias dobrasdas o silêncio

130
Tema : Razão e afeto na vida Política; Mando, Obediência e Desobediência
Afeto e tirania em La Boetie (Texto provavelmente de 2000)

“Um mau encontro”, estas são as palavras utilizadas por La Boetie para designar o momento
em que o homem, voltado naturalmente para à liberdade engendra um Senhor, faz-se a passagem
da liberdade à servidão voluntária. Mais, o absurdo inominável é que uma multidão de homens
sirvam a um único homem, no mais das vezes efeminado, franzino: as razões da servidão em La
Boetie são invertidas, o tirano só o é por obra dos próprios servos. O poder do tirano não lhe é
imanente mas derivado daqueles que o querem servir, ou melhor, a origem e a sustentação da
tirania estão na vontade do servo.
O Discurso toma a questão do poder na sociedade a partir do ponto de vista da base e
interroga-se por quê os homens tendo nascidos para a liberdade investem um senhor que, “não
tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suportá-lo(...) ver um milhão de
homens servir miseravelmente, com o pescoço sob jugo, não obrigados por uma força maior,
mas de algum modo ( ao que parece) encantados e enfeitiçados pelo nome de um (...)”(La
Boetie,“Discurso da Servidão Voluntária” Pág. 12) Doença mortal, ferida incurável é uma
vontade de servir uma vez presente no homem, “parece que o amor da liberdade não é tão
natural”. La Boetie, a chama primeiramente de vício e depois de desnaturação.
Sem que nos esclareça a gênese da servidão a educação, os costumes e uma natureza capaz de
amoldar-se ao que lhe é dirigida é-nos proposta por La Boetie como aquilo que faz com que os
homens uma vez nascidos na tirania tomem gosto pela servidão: “ desse modo os homens
nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão contentam-se em viver como
nasceram (...), consideram natural a condição do seu nascimento.”(Idem, Pág. 31). A educação
e os costumes num regime tirânico formam o homem servil, pior, a se comprazer da servidão.
O tirano não estando alheio às forças dos costumes para sua manutenção do poder utiliza-se
de estratagemas para corromper e seduzir o povo seja por meio da censura e perseguição, pelo
pão e circo ou pela religião. Por meio da primeira, o tirano visa sufocar naqueles que olham o
presente à luz de um passado e um porvir, qualquer tentativa de exercício da liberdade, portanto
da pluralidade.Por meio do pão e do circo, visa, além de fazer seu poder como imanente a ele
mesmo, e não como derivado dos que o servem, também adula-los. E pela religião, aparece ao
povo como algo misterioso, dir-se-ia como de origem divina, “ se esforçam (os tiranos) para

131
acostumar o povo à eles , não só por obediência mas também por devoção.”( Idem, ibidem,
Pág.31).
Segundo Lefort, La Boetie rompe com o discurso político cristão, o qual justifica a figura do
rei e o seu poder absoluto como decorrentes da vontade divina. Tal concepção de poder
justificaria a priori a dominação. Trata-se, no entanto, de indagar acerca da origem da
dominação no plano das questões mundanas. Nas palavras de Lefort: “La Boetie recusa os
signos visíveis da servidão e da dominação, esses signos que sugerem causas naturais, volta o
seu leitor em direção do invisível, o nome de Um; mas desse modo exclui, sem que precise dizer,
o Um invisível, materializado no todo poderoso divino, o Senhor absoluto, do qual, contudo, só a
noção bastaria para impedir a idéia de uma servidão voluntária, a idéia de que o homem seja
autor de sua sujeição.”( Claude Lefort “ O nome de Um” Pág. 135).
Interessante notar que, uma vez constituída a tirania a partir da própria vontade de servir, La
Boetie nos diz que a não aceitação da servidão se daria apenas com aquelas cabeças bem
pensantes, isto é, daqueles sujeitos apenas à razão: “(...) são esses que, tendo as cabeças, por si
mesmos, bem feitas, a poliram com estudo e saber. Estes, mesmo que a liberdade estivesse
inteiramente perdida e de toda fora do mundo, a imaginam e a sentem em seu espírito, e ainda a
saboreiam; e a servidão não é de seu gosto, por mais que esteja vestida”(La Boetie, Pág. 24) Mas,
como nos diz La Boetie estes são em número resumidíssimo e a censura torna seus pensamentos
fantasia singulares, enquanto o grande populacho padece de uma doença incurável, prazer de
servir.
Mas, dado que os estratagemas do tirano visam apenas a manutenção e o reforço de seu poder,
há na base da dominação uma rede de desejos de dominação, a pirâmide dos tiranetes. Esta
pirâmide, interiormente, significa desejo de servir e exteriormente, interesse pela dominação.
Como diz La Boetie : “ São sempre quatro ou cinco que mantém o tirano; quatro ou cinco que
lhe conservam o país inteiro em servidão. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do
tirano e por si mesmos deles se aproximaram; ou então por ele foram chamados para serem os
cúmplices de suas crueldades, os companheiros de seus prazeres., Esses seis têm seiscentos que
crescem debaixo deles e fazem de seu seiscentos o que os seis fazem do tirano. Esses seiscentos
conservam debaixo deles seis mil e esses têm milhões”.( La Boetie Pág.31-32) Daí em diante,
La Boetie expressa o séquito dos tiranetes, esse séqüito forma uma estrutura hierarquizada de
dominação na qual o tirano ocupa o topo. O desejo de posse e poder representado pelos tiranetes

132
é oriundo da pretensão em participar do poder do tirano, no entanto, essa estrutura de dominação
faz com que todos se tiranizem uns aos outros.
Composta a partir da desconfiança recíproca, essa relação de poder inverte-se
paradoxalmente: os que estão no topo da pirâmide são os menos livres de todos enquanto os que
estão na última camada, na base, são os mais livres na medida em que não têm mais quem
oprimir. No entanto, como todos são tiranos e servos ao mesmo tempo La Boetie nos
pergunta: “ Isso é viver? Chama-se a isso viver?”
Compreende-se desse modo, que a tirania está intrinsecamente ligada à questão dos afetos
formados por uma educação e costumes deformados e deformadores. Trata-se também de
compreender que a razão torna-se como água no deserto, escassa num espaço onde a pluralidade
desapareceu e onde a comunicação está ausente.
Segundo Lefort, trata-se para La Boetie de pensar a dimensão social a partir do viés da
comunicação, o que desde o início pressupõe um a concepção de sociedade que abarque cada
homem como um ser singular na relação com o seu semelhante, o que implica a negação da
ilusão do Um, a qual se faz sob a máscara do tirano e a união de todos na figura do Povo. Essa
polaridade tirano/povo encobre a realidade dos homens como Uns e impede a possibilidade de
se entre-conhecerem e respeitarem suas diferenças. Neste sentido, sob a égide do governo está a
figura da dominação e é essa que é interrogada por La Boetiel. A separação entre poder e povo
constitui uma barreira para comunicação colocando dominantes e dominados em níveis de
desigualdades extremos.
Bibliografia

#La Boetie, “Discurso da Servidão Voluntária” Trad.Laymert G. dos Santos 1 Ed Brasiliense SP.
1982.
# Lefort, Claude; “O nome de Um” In: “Discurso da servidão Voluntária”
# Chauí, Marilena-“Amizade,Recusa do Servir” In:“Discurso da servidão Voluntária.”

133
Drama Barroco e Modernidade em Walter Benjamin
(Texto provavelmente de 2000)

Introducão

Este pequeno estudo visa avaliar a função do tirano no drama barroco bem como as
conseqüências alegóricas suscitadas na filosofia de Walter benjamin no que diz respeito ao
caráter barroco encontrado na contemoporaneidade. Essas conseqüências, entretanto, não
poderão ser vistas de forma conclusiva ou como se fossem uma análise formal que se
pretendesse definitiva. Opostamente a isso, como se verá, a “conseqüência barroca na
modernidade” se consistirá numa antinomia.
Mas como conduzir o esforço para compreender Benjamin? Se houver uma análise
estrutural, é bom que ela não seja “estruturada”! Se houver uma dialética, que não haja síntese!
(Pelo menos não a síntese tradicional hegeliana). Além disso, não se encontrará em Benjamin
uma origem que não for uma origem por assim dizer, sem princípios (inegendrada) e um
fenômeno, sem solidão conceitual.
Entre os diversos caminhos que se seguiram na consecução deste pequeno trabalho, devo
dizer, elegi, por tentação, o próprio cominho do nosso autor – Melhor dizendo, optei pelo
descaminho. Significando assim que “os desvios”, “as interrupções”, “as fraturas”, “as
descontinuidades, serviram-me de instrumento para tentativa de conversar com os termos
benjaminianos, evocando-os de seus conteúdos possíveis erigindo assim a imagem desse
pequeno mosaico. Em suma, quanto ao estilo do próprio Walter benjamin : Elegi-o por tentação
e tento erigi-lo por fragmentos.

134
O Triunfo da Alegoria

Retrato de W. Benjamim
Scholem's "Walter Benjamin", Paris ,1939.
Gisela Freund

“A tragédia antiga é uma escrava acorrentada ao carro triunfal do barroco”


( Walter benjamin; ”Origem do drama barroco alemão.” p.122.)
Em sua tese de livre docência iniciada em 1923, a origem do drama barroco alemão,
Walter benjamin identifica a alegoria como a principal marca do teatro barroco. Originalmente
do grego allegorei que é a exposição de um pensamento de forma figurada ou ainda a invenção
de um artifício que representa uma coisa para dizer outra.
Considerando a alegoria em seu sentido mais amplo, Benjamin a contrapõe ao símbolo.
Valorizando aquela em detrimento deste, ele enfatiza a riqueza da diversidade que a alegoria
suscita. A concretização de idéias, qualidades, por meio de imagens (figuras), permite a alegoria
abarcar mais profundamente os significados multiplicando-os. A alegoria alfabética,
notadamente, os sinais gráficos dos “hieróglifos”, manifestam o afastamento dessas da
linguagem sagrada. Mesmo entre os antigos Egípcios que procuravam assegurar o “caráter
sagrado da palavra escrita”, sintomaticamente eles eram obrigados, devido a rigorosidade
instrumental e semântica da língua, a retornar ao mundo dos significados humanos.
Poderíamos dizer de Benjamin o que ele diz de Wincklelman, considerando sua
“Descrição do torso de Hércules no Belvedere de Roma”(1) olhar penetrante... “totalmente anti-

135
clássico”. Mas limitemo-nos a igualá-los na reverência áquela “sabedoria dos antigos” (sapientia
veterum) da renascença, da qual ambos se aproximam ( O.D.B.A, p.193). É o confronto entre
“panacéia espiritual” e a “eterna repetição das cenas de martírio dos modernos”.
A alegoria considerada do ponto de vista de sua significação no drama barroco é
virtualmente carregada de antinomias. Mas, a multiplicidade de significações pode também
consumar em significações quaisquer. “Na perspectiva alegórica, portanto, o mundo profano é ao
mesmo tempo exaltado e desvalorizado”. Perdida a linguagem sagrada, o mundo das artimanhas
minisfesta-se como martírio. Então, alternadamente recai-se entre a exaltação do divino e a
glorificação do profano.
Sendo assim, o barroco, já desde a sua concepção básica, seus efeitos estéticos, tanto
quanto sua carga cultural tem por relevo a questão da alegoria. Ainda resguardando seu sentido
etimológioco – Allegorei. (falar do outro) – ela por si só evoca outra “sombra” que permeia todo
o barroco, que agrupando-se a ela, representam ambas foco central que fundamenta o
“TRAUERSPIEL” – A melancolia. Mas, como a alegoria se transforma em melancolia? Pela
perda! !
No teatro barroco a perda não se limita a questão da linguagem. Só o fato de “falar o
outro” já subentende uma perda, uma desagregação, um prejuízo. A esse dano segue-se um
sentimento de ausência designado pela melancolia.

DRAMA BARROCO E TRAGÉDIA

Além do sentimento de melancolia sugerida no drama barroco, entre as suas


características gerais encontra-se a preocupação freqüente com a temporalidade incerta (o acaso),
a sensação de abandono no mundo como uma dor, a fatalidade ávida por acontecer a todo o
momento, e , como se não bastasse, há os morticínios, a sensação de que tudo é sem sentido e
que se vive num estado de guerra permanente.
Sob o ponto de vista estético, utiliza-se no palco barroco “cenários enormes e suntuosos,
música instrumental como reflexo da glória de Deus e do poder da igreja”. (2).
Walter benjamin, ao longo de seu livro sobre a “origem do drama barroco”, identifica uma série
de erros de interpretação do significado dos temas barrocos feitas pela pesquisa acadêmica de sua
época e também na análises feitas em épocas ulteriores ao teatro barroco.

136
Encontramos nas cenas da tragédia clássica a mesma condição de aflição que enfrenta o
homem ( príncipe herói ) – ANER “ o homem viril “ (3) barroco perante seu destino e perante
aos Deuses, sentimento esse que incorpora o terror da morte ou seja, a consciência da
mortalidade que se dará pela catástrofe.
Há uma série de comparações possíveis, analogias comunhões mesmo, entre o drama
barroco e a tragédia. Entretanto, Benjamin postula que a massa de comentadores da
inventiva barroca se auto-influenciaram confundindo numa mesma imagem, drama barroco e
tragédia. Ao passo que Walter Benjamin reconhece nelas uma distinção salvando a autonomia do
drama barroco enquanto idéia. Além de outras distinções, Benjamin reconhece que o drama
barroco descreve como protagonistas personagens absolvidos em sua condição abjeta de simples
criaturas humanas ainda que estes sejam heróis ou reis. Enquanto que na tragédia, os heróis
trágicos, reis e príncipes, reúnem dentro de si o destino de forma individual, ou seja a tragédia o
herói trágico rompe com a “cláusula” que o relega à condição de simples mortal e prenuncia-o
para além da humanidade na vitória sobre os deuses.
Para bem compreendermos o teatro barroco na dimensão segundo a qual é para Benjamin
a sua dimensão mais representativa – a partir da alegoria – procurarei traçar, então, os
“periféricos” que envolvem a alegoria e especificamente a função do príncipe no drama barroco.
As personagens do drama barroco, sobretudo o príncipe e o cortesão manifestam em si próprios
uma marca caracteristicamente barroca – a ambigüidade. O príncipe é ambíguo. Integram se nele
duas faces ambiguas poderosas: a do mártir e a do tirano. Também o cortesão, seguindo o ditame
habitual do ambiente barroco apresenta a ambigüidade em suas atitudes simultaneamente como
santo e intrigante.
A peça do teatro barroca centraliza-se na figura do príncipe. A ele é destinado assegurar a
ordem e a estabilidade da comunidade por meios ditatoriais. O príncipe incorpora a história e
passa a confundir-se com ela aumenta assim seu poder de convencimento.
A obsessão pela catástrofe, a relação do sujeito entregue ao mundo das coisas, juntamente com a
imanência radical do maneirismo barroco contrapõe-se ao ideal histórico da estabilização do
estado que se preocuparia com a garantia constitucional da prosperidade militar, cientifico-
artística e eclesiástica dentro do estado.
Ao “preparar o terreno” para a discussão da questão do tirano no “drama barroco”,
Benjamin analisa a confrontação jurídica entre as doutrinas do direito da idade média e o novo

137
conceito de soberania que formou-se no século XVII. No século das luzes, ressurgia o velho
problema do tiranicídio. Meditava-se nessa época mais especificamente na figura do usurpador.
No drama barroco a discussão se apresenta aludindo a iminência da instauração do estado
de exceção. É esse ato específico que caracteriza o tirano em sua função : “A função do tirano é
restauração da ordem durante o estado de exceção : uma ditadura cuja vocação utópica será
sempre a de substituir as incertezas da História pelas leis de ferro da Natureza” (O.D.B.A., p.
97)
De acordo com Benjamin, a teoria do estado de exceção no drama barroco assenta-se
sobre uma antítese: sua obsessão pela idéia de catástrofe contraposta ao “ideal histórico da
restauração”. Assim, a sociedade, num momento de conflitos, revoltas, instabilidade financeira,
guerras etc. em fim, num momento de grande turbulência, vê ser instaurado o estado de exceção
(uma ação dirigida na forma do sujeito oculto).
Aparentemente, a instauração do estado de exceção (suspensão das leis com objetivo
suposto de restaurar a ordem) faz-se de modo necessário. O príncipe não age como o tivesse
instaurado. Todo acontecido, considerado insuspeito o desejo do príncipe em provocá-lo, aparece
a todos como: “Instituiu-se” o estado de exceção, não por um acaso, ou por alguém específico,
mas por necessidade. O destino e o príncipe-história fundam-se, desta forma, para estabelecer
seu escopo no drama barroco e exercer sua função na cidade – apaziguar a história. Por fim, o
príncipe exerce tão bem a sua função que, ao longo do período do estado de exceção, o público
sujeita-se, aceita-se, acostuma-se a situação, e pelo hábito, então, o estado de exceção tornar-se
regra.
É neste ponto de ação do príncipe ao instaurar o estado de exceção que recorremos a
analogia pela qual Benjamin identifica na sociedade moderna os elementos características do
barroco. “O final desse livro (TRAUERSPIELBUCH) é marcado por uma discussão teológica do
mal trazendo à tona a existência problemática do intelectual moderno” (4) : “O saber, e não a
ação, é o modo de existência mais própria do mal”. (O.D.B.A, p.253).
Como foi visto, o príncipe é mártir e homem comum; é tirano e vítima do destino .
Considerando o aspecto do mártir revolucionário, o príncipe se comporta como um estóico da
alma, o controle de suas emoções equivale ao controle exercido na cidade. Por outro lado, esse
estado de exceção dentro da alma, unido ao domínio do acontecimento histórico sucumbido
juntamente com a natureza (poder do mais forte) pelo príncipe, leva o a uma posição ambivalente:

138
ele subjuga a natureza promovendo o estado de exceção dentro da alma, mas é completamente
sujeitado pela natureza em sua condição humana.
Na modernidade, isso vale tanto para o tempo de Benjamin quanto ao nosso, vivemos sob
a emergência ou ainda sob o influxo do estado de exceção. Temos, por exemplo, a ocultação do
sujeito na história e nas elaborações intelectuais; “Diz-se que, falou-se que” Indicando uma ação
de cujo agente se faz abstração. Ao mesmo tempo, gerações entorpecidas pela ditadura da luxuria
sobre o amor (alheias a valores matriciais e passivas, sujeitas as coisas como se elas estivessem
sempre assim, integram a bancada do “misère” barroco. Por fim, a difusão da mercantilização de
toda a realidade humana, apresentou-se como uma armadilha radicalmente capitulada pela
sociedade moderna, criada pelo próprio homem, acabou-se revoltando contra ele, limitando o seu
alcance na escala de valores. O homem moderno, então, é uma pessoa não só estética, mas
essencialmente barroca.

Inconclusão

À guisa de inconclusão, não poderia omitir, entre o intuito que me levou à formulação
deste pequeno trabalho, o reconhecimento da insuficiência da análise e interpretação aqui
levantadas em razão da rápido passagem por entre os tópicos e da limitação dos conteúdos aqui
propostos. Não foi possível, infelizmente, por exemplo, no campo limitado e suscinto da presente
pesquisa, analisarmos mais aprofundadamente questões relevantes como a historiografia
bejaminiana, a própria questão da melancolia no barroco, e o tempo na tragédia etc. Poderíamos
ainda ter passado a vista ainda – considerando as conseqüências do drama barroco identíficadas
na sociedade moderna – sobre a “ditadura da ciência”, como sabemos, caminha em direção a
algum lugar que não se sabe bem ao certo – todos os caminhos são possíveis, inclusive os da
aniquilação das espécies terrestres, as quais a ciência aparentemente procura salvar. Na
modernidade, especificamente no momento em que o conhecimento científico é altamente
especializado e difundidamente privatizado, sabe-se menos ainda aonde se quer chegar. Embora
não investiguemos essas questões adequadamente, elas exigem, sem dúvida, maiores atenções.

139
NOTAS

Citado por Benjamin : Johamn (Joachim) winckelmann: Leipzig, 1866. p.443 e segs.
Eloá Heise, Ruth Röhl – “História da Literatura Alemã” . p.16. Série Princípios., ed. Ática,
1986. Para uma análise mais detalhada das recorrências nas tragédias gregas dos
termos ( “Brotós, Anthopos, anér) utilizados para se referirem ao termo “Homem” ou ainda
“Humanidade”. Ver : “Ética”. – Org. Adauto Novaes, “Tragédia Grega e o Humano” – Nicole
Loraux p.20 em diante. SP. Cia da Letras : Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
O Professor Willi Bolle Trata desse tema num belíssimo livro em que observa a questão da
imagem dialética a luz da “obra das passagens” e outros trabalhos de Benjamin . Para isso ver :
Willi bolle – “Fisiognomias da metrópole moderna” , Representação da história em Walter
Benjamin. p . 127 SP . Edusp. !994.

BIBLIOGRAFIA

Eloá Heise, Ruth Röhl – “História da Literatura Alemã” . p.16. Série Princípios., ed.
Ática, 1986.
Benjamin Walter – “Doc. de Cultura, Doc de Barbárie”, ed. Cultrix. SP 1986.
Grazia, Sebastian de – “Maquiavel no Inferno”, Trad. Denise Bothman SP ed. Cia das
Letras 1993
Konder, Leandro – Walter Benjamin – “O Marxismo da Melancolia”. RJ . Ed. Campos.
1988.
Osborne, Piter – “A filosofia de W. Benjamin: “Destruição e experiência” ed. Jorge
Hazar Trad. Maria Luiza Borges . 1997.

140
A EXPLICITAÇÃO DA QUESTÃO DA EXISTÊNCIA E A
NOÇÃO DE NARRATIVA DE FICÇÃO EM SARTRE
(Texto provavelmente de 2001)

“Em toda atividade descobre-se uma liberdade,


particularmente na atividade intelectual porque dá pouca margem à repetição”
Simone de Beauvoir – “Na força da Idade” I, p. 13

Desvendar, remeter, dar testemunho... a função do escritor, consagrada pelo estatuto da


consciência reconhece como sua realidade irrecusável a atividade da liberdade. Dever-se-ia
circuscrever um fundamento do seu próprio trabalho não fosse a liberdade para a consciência o
fundamento daquilo que não tem fundamento.
Fala-se nesse momento de invenção. O autor recria o mundo em sua evidência. Tal
otimismo ordenador molda por seus próprios princípios acontecimentos que de direito não são
menos verdadeiros que os acontecimentos de fato. Esse é o sentido da narrativa de ficcão
em Sartre, o desvendar de uma factualidade que não tem menos significatividade que os eventos
da experiência concreta. O escritor busca em sua “invenção” reportar por meio da estrutura da
existência humana, o embate das situações.
Qual é o terreno dessa invenção? Ela, em algum instante, conhecera limites? Vê-se
conflitos entre o fato narrado e o fato vivido? Em primeiro lugar, Sartre insiste em descartar a
narrativa pois a ordem narrativa é uma ordem falaciosa. A narrativa hesita diante do fracasso. Ela
contorna o abismo entre a palavra e a coisa, entre o dado e o narrado, entre o mundo e sua
impressão. “Pela literatura, pensava, justificamos o mundo recriando-o na pureza do imaginário,
e ao mesmo tempo salvamos a própria existência...”(BEAUVOIR, “Na Força da Idade I p.69).
O ato de escolha, sendo um ato livre, só tem valor não relativo quando afirmado na
força da universalidade. Eu só assumo minha individualidade num ato de escolha quando
reconheço que este meu ato é um ato que vale para todos. As situações se equivalem sob o ponto
de vista da universalidade moral, pois o valor individual da ação é envolvido pela liberdade
individual de todos os indivíduos. A mesma liberdade que revela o meu Para-si, a minha
consciência, é fatalmente relacionada às outras liberdades. Ora, essa relação é portanto vinculada
aos conflitos supostos pela diversificação das liberdades. Eu tenho um ato de escolha que é
conferido pelo Para-si como um ato livre, e, ao mesmo tempo, esse ato remete ao ato livre dos
outros que equivalem ao meu, possuindo o mesmo estatuto. Por liberdade entendemos um

141
conceito de itinerância (direção do projeto) em afastamento daquilo que pode ser definido,
deduzido, acabado. No entando, este afastamento tende a constituir-se e pode-se falar mesmo que
ele quer constituir-se, esse desejo, essa tentativa resultará certamente em fracasso.
O Em-si, este sim, plenamente definido, acabado, não contém a itinerância da liberdade.
A consciência se projeta em diração ao Em-si na pretensão de constituir-se, mas na medida em
que ela supõe apreender esse algo, reconhece sua absoluta separação, pois esse ser para o qual a
consciência tende é inapreensível. Sartre caracteriza a noção da consciência humana, como um
nada em oposição ao Ser. A consciência por ser “nada”, ou seja, não conter dentro de si nenhum
conteúdo inato, escapa a qualquer determinismo. Somente ela se auto-determina enquanto
atividade de negação. Sendo um "nada, ela "nadifica" seus objetos. A consciência é
essencialmente negadora das coisas em-si mesmas, na medida em que se encontra revestida da
característica ontológica de ser, ela própria, o seu próprio nada.
A escolha livre possui um caráter gratuito que precisa ser melhor analisado. Para Sartre,
toda escolha é livre e essa liberdade realmente supõe uma gratuidade, já que não há nenhuma
instância superior a qual o homem pudesse consultar para definir sua escolha. Mas essa
gratuidade representa somente aquilo que no homem é sua falta constitutiva. Nenhuma máxima
moral me dirá que ação devo tomar, concebendo essa ação como a correta. E no entanto, eu sou
moralmente responsável pela minha escolha porque mesmo ao não optar pela escolha eu já
figuro-me em uma, a saber, o quietismo, a abstenção, a imobilidade. Por outro lado, o homem,
se se pode defini-lo, isso só pode ser feito por meio de seu projeto, seu compromisso. Ora, do
que foi dito fica claro que a escolha gratuita tem como único guia a liberdade do sujeito em
direção à constituição do seu projeto.
Esse é , grosso modo, o pano de fundo da reflexão sartreana do estatuto ontológico da
humanidade. A consciencia é esse projetar-se em direção à constituição de si e ao mesmo tempo
em que projeta, remete-se para fora, ou seja, perde-se no exterior perseguindo nessa
trancendência que lhe é peculiar a finalidade de sua existência. Esse movimento de
transcendência deve ser visto pois, como a própria construção da subjetividade, uma vez que essa
construção não é dada no sujeito em si mesmo. Ele a busca para-fora-de-si, experimentando
permanentemente um jogo entre uma transcendência e uma imanência porque, se por um lado, o
sujeito parte em busca deste constituir-se no qual seu ego está adiante de si, e, por consegüinte
está no domínio da contingência porque percebe que este “fora” é inessencial. Por outro lado, ele

142
se vê às voltas de sua própria história como também uma construção dele, como o resultado
daquilo que ele faz com sua liberdade.
Essa relação entre a realidade histórica, vista como relatividade histórica (pois
nenhuma determinação constitui o indivíduo) e a realidade ontológica da consciência (vista
como relatividade da consciência, pois não há nada na consciência e por isso se diz que
consciência é sempre consciência de algo), nos permite observar a visão sartreana do papel
conferido à literatura. Uma vez que a escolha do sujeito tem caráter absoluto, já que este é o
caráter mesmo da consciência – sua irredutibilidade, esta escolha livre é equivalente ao destino
(1).
De qualquer modo, não havendo uma redutibilidade do sujeito em nível histórico
enquanto um determinar-se, conclui-se daí que nem pode o sujeito abandonar-se ao destino e por
consegüinte, ele não poderia abandonar-se a qualquer determinação histórica. Em suma, ele
deverá sempre assumir uma posição, no limite, a partir do nada. E essa é mesmo a função da
literatura: você tem um indivíduo em sua escolha absoluta particular exigindo algo que desvele
para si o universal que é o campo da história ao qual o indivíduo está estreitamente relacionado.
O que faz a tentativa de mediação (que não é extrema e, por isso, nem sempre alcançada) entre
esse particular e aquele universal é justamente a narrativa ficcional. A narrativa busca em seu
desvelamento do real a interpenetração entre o relativo e o absoluto.
Vemos que Sartre concentra seu esfoço na superação entre o abstrato e o concreto. É a
mesma preocupação da dialética hegeliana, enquanto processo que se eleva a ponto de alcançar a
unidade na diferença. Essa é a tarefa da filosofia para o filósofo alemão, o constituir-se da
unidade latente na diversidade. Hegel separa o universal e o concreto das determinações e com
isso reduz a significatividde na identidade mostrando a importância do sistema de relações.
Sartre também toma de Heidegger o projeto de reconciliar o objetivo com o subjetivo
“si la littérature nést pas tout, elle ne vaut pas une heure de peine. Cést cela que je veux
dire par ‘engagemente’. Elle sèche sur pied si vous la réduisez à l’ innocence, à des chansons si
chaque phrase écrite ne resonne pas à tous le niveaux de l’homme et de la societé, elle ne
signifie rien” (Sartre, Situations ix “Sur Soi-Même”, p. 15). Mediar, relacionar, reconstruir; a
literatura, ao delinear o conflito ordinário das consciências retoma o sentido histórico que está
contido na experiência das subjetividades. Esse senso histórico, contudo, não se trata de uma
justificativa da preservação dos ideais de classe tal como se figurava na geração de escritores que

143
precedeu a geração de Sartre. Esses escritores consideravam o desenvolvimento histórico da
sociedade como uma ação do passado sobre o presente ( Ver: “O Que é literatura p. 152) sem o
vislumbre de uma totalidade sintética do tempo, sem sequer uma apreensão sintética dos
indivíduos em suas singularidade; numa palavra, faltou-lhes a compreensão no sentido em que
Karl Jaspers/hegel e mesmo Heidegger davam ao termo. Para estes escritores da geração que
precedeu a de Sartre, se impõe “um mito objetivo segundo o qual a literatura deveria escolher
temas eternos, ou ao menos inatuais”. Esse empreendimento falsifica as verdadeiras relações
humanas que devem se constituir no âmbito do concreto. Cada situação, no limite, se equivale.
Não há, neste sentido, uma situação, a saber, do herói romanesco, que seria privilegiada em
relação às demais. A literatura atinge então esse reconhecimento do qual falava Hegel, o qual
“salva os homens da imanência e da contingência”(Ver: “Na Força da Idade p. 157). Essa
temporalidade sintética permite que um evento histórico seja objeto de um romance.
As singularidades representam-se a si mesmas e aos outros, nessa relação intermitente, o fato a
constituir-se é imediato e se dá ao mesmo tempo em que se constitui a situação.
“Jéntends par roman, une prose que se donne pour but de totaliser une temporalisation
singulière et fictive.”(Situations ix “je-tu-il” p. 277-315).
A experiência do singular remete à essa experiência de totalização na qual é possível
fazer uma teoria das situações. Não se trata, poi,s de uma narração no sentido tradicional do
termo, uma estória contada segundo os eventos de uma temporalidade analítica, parcial. Com a
função da literatura organizada pela facticidade histórica do homem às voltas de uma realidade
objetiva, o escritor não terá aí apenas um termo do qual falar, mas encontrará também uma
urgência e uma atualidade inescapável nessa mesma realidade objetiva.
Sua geração não teve escolha. “Brutalmente reintegrados à história, éramos acuados a
fazer uma literatura de historicidade”. (“Que é Literatura” p. 159). Pode-se falar portanto em
uma reincorporação violenta com a história. As gerações que precederam a de Sartre não
vislumbraram esse aspecto coercitivo e inelutável das circunstâncias históricas. Redescoberta a
função da literatura, sua geração se depara com um tema que não pode ser ignorado. Assim,
diante desta surpreendente situação o escritor deve assumir a historicidade.(2)
Esse rigor característico da própria função da literatura impõe à narração do romance
certas perspectivas também rigorosamente determinadas. Todo o construto lógico-onológico das
situações são elaborados, tudo sempre em vista à estrutura básica da posição do sujeito no mundo.

144
Assim, paralelamente à falta de narrativa interna nos romances, vê-se a desconcentração da
atitude positiva frente aos acontecimentos. O “herói”, por assim dizer, não tem de estar
necessariamente de posse da atitude moral, isto é, não cabe a ele necessariamente a absolutização
ou universalidade de seus atos Agem por vezes, ao contrário, por deliberação gratuita, sem
intenção, sem “atividade”, sem compromisso. Sua mente, como a das demais personagens é
semi-lúcida, semi-obscura, mas nunca totalmente obscura ou totalmente lúcida. Isso explica em
partes a razão porque Sartre não apresenta em seus romances uma personagem que representaria
em seu total rigor suas condições filosóficas impostas por suas concepções da estrutura do Para-
si. Uma personagem que encarnasse esse rigor estóico de plena positividade e autencidade
falsearia a narrativa sartreana que se pretende sobretudo realista (em sentido fraco). (3) Uma
consciência plena, tal como reinvidica a noção da ontologia fenominológica de Sartre, não
implica necessariamente em conduta de boa-fé, de translucidez, conduta de liberdade positiva.
Quando nunca, ao contrário, fecha-se os atos na espectativa mascaradora de se “libertar” da
liberdade na espectativa mascaradora de se “libertar” da liberdade. E essa é aqui e ali as atitudes
das personagens sartreanas.
A má-fé é delineada também pela estrutura da consciência. Define-se a má-fé por sua
extensão delimitada à metafísica da existência. Pode-se tentar ingenuamente velar o mundo dado
dos fatos para os outros; mas não se vela ingenuamente este mundo para si. A má-fé aparece
sempre para si pois quando ela é içada feito instrumento de consolo, quando é sacada da manga
feito recurso ad hoc numa tentativa desesperadora de salvar um dogmatismo, quando postiça
alavancagem é inserida para disfarçar defeitos feito Deus ex machina, tem-se um desvio no
aparecer, uma interrupção na superfície como verniz, tem-se uma evasão da transparência. De
outra feita, não se desaparece...se desvia, não se nadifica uma superfície...se a enverniza, dito de
outra forma : “ não se mente pra si mesmo.” Os gregos têm uma noção muito clara disso e sua
língua registrou “pseudomai”(mentira) é um termo na voz media (equivalente mais ou menos ao
nosso reflexivo) – voz média quer dizer que o sujeito participa da ação. Ou seja, quando se
mente, leva-se a mentira consigo. A luminosidade plena da consciência atinge sempre a
evidência dos fatos.
Mesmo não levando muito em conta o rigor moral das personagens sartreanas (4), tal
como ele mesmo afirma o gênio, para ser gênio, não pode expressar sequer uma obra mediocre.
Nesse sentido mesmo em que Proust foi considerado gênio pelo conjunto manifesto de sua obra.

145
Concluímos disto que, mesmo o medíocre, não pode ter um lapso sequer de genialidade também,
pois isso, em parte, o tiraria da classe dos medíocres. O mesmo se pode dizer das personagens
sartreanas, elas não podem agir covardemente ou não agir covardemente, como isso fizesse parte
de um conjunto de regras da narrativa o qual cada “natureza humana-personagem” deveria seguir
a esmo. Ao tratar-se deste tipo de personagem de romance de situação, vemos que não é possível
considerá-los como heróis, mas ao contrário, deve-se considerá-los como humanos,
demasiadamente humanos. Por consegüinte, reiteramos, não há de modo algum , um privilégio
de perspectiva entre as personagens tomadas em abstrato, comparativamente. Podemos, se
quisermos, encarar essa perspectiva como homogênea, ou seja, como equivalentes entre si,
porque , ainda que em desigualdade de situações, elas gozam de igualdade quando se vêem em
liberdade de escolha. “Que em liberdade se manifeste(sc. as personagens) em nossos romances,
nossos ensaios, nossas peças de teatro. E como nossas personagens ainda não podem usufruí-la,
pois são homens do nosso tempo, saibamos ao menos mostrar o que lhes custa a sua falta”(Que é
Literatura p. 204).

NOTAS

(1) Não se fala propriamente em destino na filosofia sartreana, pois isto seria um contra-
censo haja vista à própria noção de consciência apresentada por Sartre. Justamente, este é o
carácter ambíguo que a liberdade estabelece ao sujeito; a escolhe é absoluta, portanto a liberdade
é absoluta e não há nenhuma instância ou determinismo histórico que o impeça de escolher –
tem-se o que se pode chamar de “liberdade fatal” ou “condenação à liberdade”.
(2) Sartre diz criticamente, a despeito de sua posição política a favor do proletariado
mundial, que a única positividade do escritor com a 1a. Internacional foi a tarefa de exercer sua
negatividade sobre os valores burgueses com a “literatura de testemunho da opressão”. Embora,
segundo Sartre, a 1a. Internacional tenha só superficialmente tocado neste ponto, ao ajudar o
proletariado a tomar connsciência de si mesmo ele é um exemplo de sintonia da literatura com as
exigências históricas.
(3) Pelo menos este é o aspecto geral das personagens sartreanas; em geral, o herói é o
anti-herói. Se se levar em conta a exigência filosófica da conduta a qual o homem está em
constante processo de elaboração, neste ponto de vista, essas personagens são moralmente fracas.

146
(4) O caso de Mathieu na trilogia “Os Caminhos da Liberdade” é exemplar. Sua ação
característica no romance é sempre moderada. Sempre vacilante, sempre remetendo à inação. Ele
tenta escapar da ação evitando escolher por uma conduta específica (má-fé). Sua ida para a
guerra ilustra isso. Ele vai, mas sem vontade de ir ou de ficar. Vai...simplesmente.

BIBLIOGRAFIA

SARTRE, J. P. “O Ser e o Nada” Trad. Paulo Perdigão, Petrópolis Rj: Vozes, 1997.
____________ “O que é Literatura” Trad. Carlos F. Moisés Ed. Ática SP, 1999.
____________ “Com a Morte na Alma” Trad. Sérgio Milliet 6ed Dif. Européia do
livro SP,1969.
____________ “Sursis” Trad. Sérgio Milliet ed. Difusão Européia do livro SP, 1958
____________ “Situations xi” je-tu-il Galimmard france, 1972.

147
Entre A Realidade Humana e a Falta Constitutiva
(Texto de 2001)

Um dos esquemas fundamentais de sua ontologia fenomenológica e ponto de partida para


suas reflexões quanto ao estatudo da consciência é a noção de que o “homem é o ser cujo ser está
em constante questão”. Na sua descrição ontológica da realidade da consciência, Sartre parte da
dedução cartesiana fundamental do cogito dando ênfase em primeiro lugar à existência,uma vez
que a existência será o meio próprio do pensar e da possibilidade do ser constituir-se.
O projeto de descrição da realidade humana parte da perspectiva da subjetividade como o
modo intrínseco o qual subordina todas as relações humanas. A característica principal entre a
consciência e o mundo é a posição desvendante na qual a consciência ocupa o mundo. Esse é o
papel da consciência, promover a articulação do ser. Essa articulação pode ser entendida como
uma relação que é desenvolvida pela consciência, isto é, pelo sujeito, em relação aos objetos do
mundo.
A concepção sartreana da consciência passa a ser fundamental para a compreensão dos
“fundamentos” da realidade humana. E ela não se define de outro modo senão como liberdade.
Quer dizer, não há alternativa, a liberdade é um dado imediato da consciência, é seu próprio
modo de constituir-se. Falar em consciência é falar sempre da consciência de alguma coisa. Não
há nada na consciência que poderíamos tratar por ser, portanto, ela é, na medida em que é Para,
ou seja, a consciência é o movimento do sujeito em direção à realidade, mas só se fundamenta
ontologicamente como forma de presença a si, e, neste sentido, ela é identificada ao Para-si
Em oposição à consciência (o Para-si), encontra-se o que Sartre chama de “Em-si”, ou
seja, o ser que é (constituido, realizado). Do “Em-si”, sendo o que é, fala-se que ele se constitui
de densidade infinita e por isso, é igualado a si mesmo no pincípio de identidade de ser. São
infinitas sua densidade e sua compressão de ser. Nas palavras de Sartre, não há “a menor fissura
pela qual pudesse deslizar o nada”(O Ser e o Nada p. 122). Ao contrário, é característico da
consciência que haja descompressão de ser. Pois esta não se coincide consigo mesma. Não há
lugar em si na consciência, dito grosso modo, a consciência só existe em relação a um outro
lugar para o qual ela tende, ela desliza. Esse movimento imprescindível da consciência torna o
Em-si como seu objetivo. O Em-si constitui o ser e o Para-si, uma vez não coincidindo consigo
mesmo comporta neste “Si” em unidade, o nada. Diz Sartre, este é o “ato perpétuo para o qual o

148
ser coloca em questão o seu ser, ou seja, precisamente a consciência ou Para-si”.
É preciso supor para a consciência uma facticidade. É da estrutura da consciência ser para o
outro. Não se fala portanto, de isolamento reflexivo do particular concreto. A translucidez da
consciência a empurra para a impossibilide contemplativa. Ela lança-se feito projeto em direção
ao futuro. E portanto, em sentido subjetivo, mas também em todos os sentidos a consciência vive
seu projeto e procura incessantemente realizá-lo. Sartre parte da subjetividade da moral kantiana
para exemplificar o mote da conduta humana e o seu compromisso com a realidade. Cada
homem reflete enquanto exemplo, o conceito universal da humanidade. As qualidades que
encontramos neste homem particular, encontramos no nível do conceito em todo homem em sua
definição. Daí procede aquela noção apresentada por Sartre no texto “O Existencialismo é um
Humanismo” no qual diz que o homem se responsabiliza pela sua individualidade restrita, mas,
ligado a todos os homens por sua subjetividade é também responsável por todos os outros.
Escolhe-se a si mesmo, enquanto sujeito individual, mas ao escolher-se a si, escolhe com isso a
toda a humanidade.
A objetividade do mundo revela sua contingência. Jogado ao mundo dos objetos, o
homem possui um caráter de coisa “existente em demasia”. No entanto, o ser da consciência não
faz do homem um ser igualado a esta mesa, a esta pedra, a esta couve-flor. Ele possui uma
dignidade maior. A consciência, em seu estatuto subjetivo, permeia toda a realidade humana. O
acontecimento, entretanto, passa a “agredir” a consciência, tal que ela se vê forçada a tomar uma
posição diante deste acontecimento histórico. Assim, tal como não escolho a época em que vou
viver, e num certo sentido não escolho também a situação em que nasci, não tenho outra medida
senão a medida futura das possibilidades, que se me abrem para escolha. A escolha apresenta-se
então como algo irreversível. Há que se tomar uma posição, seja ela qual for e mesmo que eu
negue essa tomada de posição a escolha assim mesmo já está feita. Escolher é para Sartre
assumir a situação e por isso, assumir a historicidade. Já que não há um tribunal isento no qual a
consciência poderia se apoiar, algo que lhe serviria de consultor, cabe estritamente a ela essa
decisão, trata-se de um caráter absoluto de escolha no qual a consciência se vê como liberdade.
Do que foi dito fica claro que a compreensão ontológica da existência passa necessariamente
pelo plano existencial das condutas humanas. Assim, temos alguns indícios importantes que
indicam o aspecto da situação do homem no mundo. De um lado, vemos que a conduta concreta
do indivíduo expressa a liberdade, de outro, faltou considerar a conduta primeira que permite a

149
elucidação ontológica, será preciso identificar qual é essa conduta – ela, vale dizer, permitirá o
acesso ao exame das outras condutas. Essa conduta primeira não é outra senão o próprio
questionamento do ser. Em outras palavras o problema se encaminha para resolução no próprio
ato de colocar-se enquanto problema. Ao perguntar-se pela conduta o homem já institui a
conduta primeira, pois a atitude começa por esta interrogação. Como o ser não se constitui, a
conduta interrogativa é o primeiro momento da situação da existência.
Partindo da subjetividade, o estudo da realidade humana revelou que a estrutura
cartesiana do cogito é concebido numa temporalidade instantânea. Em “O Ser e o Tempo”
Heidegger emprega em sua analítica existencial a descrição do Ser-aí (Dasein), no entanto, como
faz Sartre, a recorrer à consciência. Heidegger quis apreender as estruturas existenciais para
elaborar uma noção de filosofia compreendida em seu significado novo que postula a
inessencialidade do mundo. A própria pergunta interrogativa é melhor entendida se se parte dos
termos Heideggerianos. Para ele, aquilo que molda o existente faz compreender seu significado.
O significado da conduta interrogativa parte, então dessa noção de compreensão heideggeriana.
Em sua analítica, Heidegger enumera as estruturas existenciais e fala do ser do
existente – entre as estruturas existenciais fundamentais está a compreensão (Verstand) { Ver “O
Ser e o Tempo” paragrafo, 31 p. 198 Ed. Vozes}. Essa descrição do Ser-aí Heideggeriano mostra
o Dasein (Ser-aí) “escapando a si no projeto de si rumo às possibilidades que ele é” ( SARTRE,
O Ser e o Nada p. 135). A compreensão é justamente esse projeto de si fora de si. Neste sentido,
a realidade humana constitui-se como “reveladora-revelada”. A dificuldade deste projeto faz
Sartre não suprimir a dimensão “consciência”. Seguindo a tradição fenomenológica de Husserl,
toda consciência é consciência de... Desta forma a compreensão só tem sentido enquanto
consciência de compreensão.
A descreção da consciência como translucidez Para-si, na qual tudo se ilumina, tudo se
desvela Para-si. Mostrou que o ser do Para-si é afetado por uma nadificação. A consciência se
mostrou como uma falta de ser. Somos envolvidos em nossa realidade pela falta e esta é
envolvidada por nós enquanto eterno constituir-se, eterno vir-a-ser. Isso justifica o título de
nosso presente estudo, o nosso ser é algum ponto “entre a realidade humana e a falta
constituitiva”. Não basta introduzir o vazio na consciência. A determinação do Para-si como a
negação de ser Em-si “significa que só pode fundamentar-se a partir do Em-si e contra o Em-si”.
O Em-si é por isso nadificado pela consciência e é essa nadificação que representa a falta

150
constitutiva.
Sartre, nesta visão da realidade humana como existente nessa negação interna primitiva diz
que essa negação não pertence à natureza do Em-si, visto que este é plena compressão de ser,
plena positividade. Esse momento de negação é o momento de determinação subjetiva que só
aparece no mundo com o surgimento da realidade humana. Os objetos existem por si como
coisas, mas é correto falarmos que toda realidade é realidade humana , pois supõe sempre uma
consciência que lhe permite o estatuto da presença. De uma maneira inelutável (salvo o processo
de ideação dos objetos) estes são reconstituidos para o sujeito e ao mesmo tempo, reconstitui-
se a visão da historicidade. O real, em todos os seus aspectos não será desvinculado da
experiência vivida.

BIBLIOGRAFIA

SARTRE, J. P. “O Ser e o Nada” Trad. Paulo Perdigão, Petrópolis Rj: Vozes, 1997.
____________ “O que é Literatura” Trad. Carlos F. Moisés Ed. Ática SP., 1999.
____________ “Com a Morte na Alma” Trad. Sérgio Milliet 6ed Difusão Européia do
livro SP., 1969.
____________ “Sursis” Trad. Sérgio Milliet ed. Difusão Européia do livro SP, 1958 .

151
Levantamento de Questões a Respeito dos Cap. VII – X
(                    )
HIPOTIPOSES PIRRÔNICAS
(texto de 2001)
(Esquisses pyrrhoniennes-trad. P. Pellegrin. Ed. Du Seuil)

VII

Procuraremos problematizar em síntese, o conteúdo dos capítulos vii ao x das


Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico. Logo no início do cap. vii, Sexto Empírico distingue
o sentido genérico, comum [     ] do termo dogma (sc. “dar aprovação a algo”) [ 
        ] ao sentido aplicado ao cético negativamente. (sc. “dar assentimento a objetos não
evidentes da investigação científica) [     ]. Com
isso, se conclui que o cético não dogmatiza, no último sentido, pois os pirrônicos, diz Sexto, não
dão assentimento a nada que seja não evidente.
O cético não será chamado dogmático também ao enunciar “ ”
[“não mais – em valor ou grau – isto do que aquilo; ou “ ” [“nada determino”],
pois, ao contrário do dogmático, o cético não toma este que existe [           ] como
inteiramente existente [                 ] , mas sim elimina seu próprio juízo sobre a
determinação da coisa ao dizer “  ” enunciando apenas suas impressões [] ,
sem sustentar qualquer opinião [].

QUESTÕES

Ao eliminar seu juízo, o cético escapa da navalha lógica imposta por sua própria
concepção de que não é possível ajuizar. Por outro lado, nos parece que ele não fica com nada.
Aparentemente seria muito fácil a postura do cético, e de bom ajuste a qualquer um. Bastaria que
se evitasse qualquer posicionamento para livrar-se do embaraço da tomada de tese. O ceticismo,
visto assim, equivaleria à malícia, ou à preguiça. Nossa questão, portanto; é possível ao cético
identificar alguma justificação não teórica, mas pelo menos de sua postura, que convenha à sua
suspenção? Isto é, será o ceticismo uma atitude “para-filosófica”(do tipo filosofia de vida) ou
uma filosofia acrítica (do tipo para a qual só há uma certeza, a saber, que não é possível ter
certeza)? Dito numa frase: o que resta ao cético depois da suspenção de juízo?

152
VIII

No Cap. Viii, Sexto propõe a seguinte inferência: uma vez que o cético não se inclina a
seguir dogmas, como fazem os que aderem a uma escola, ele próprio, o cético, não pertence a
nenhuma escola. Por outro lado, os seguidores de uma escola tem isso em comum: seguir uma
linha argumentativa, ora, os céticos seguem uma cadeia coerente de raciocínio “    
” [segundo o que aparece] e as próprias impressões [ ].

QUESTÕES

O cético não adere a uma escola, mas adere a uma forma lógica de uso próprio que é a
impossibilidade de determinação. Com isso esboça-se uma possível resposta para nossa questão
anterior, talvez reste ao cético a “habilidade de obter a suspenção”. Em todo caso, uma questão
ainda resiste, essa “habilidade” poderia ser ensinada? É possível trasmitir a “habilidade de obter
suspenção”? Ainda assim, o cético não teria discípulos no sentido exato, alunos que seguiriam
uma norma, mas teria talvez, ouvintes atentos à maneira em que o mestre cético obteve a
suspenção.

IX
No Cap. ix afirma-se que o objetivo do cético não é tomar partido ou convicções sobre os
objetos das ciências naturais, mas sim praticar a oposição das asserções destas ciências, com o
fim de alcançar a tranquilidade.

QUESTÕES

O cético tem esse “método” que poderíamos chamar método da oposição, para cada
explicação científica se opõe uma equivalente cética para se alcançar a tranquilidade de espírito.
Nossa questão fica assim: é dado que a tomada de posição é uma coisa contrária a 
(isto até filologicamente, pois siginifica [ausência de problema] ou [tranquilidade da alma] ). A
prática cética dos estudos de ciência natural nos parece ter menos propensão técnica que apoio

153
moral. Seria isto? O estudo das ciências naturais e das outras ciências, para os céticos, são
formas de alívio e de consolo apenas?

Por fim, no Cap. x Sexto expõe as noções “epistemológicas” dos céticos. Como foi dito,
os céticos não rejeitam as impressões sensíveis [               ] e investigam a
substância [              ] aceitando o fato de que ela é constitui o conjunto do que
aparece[          ]. Essa investigação não tem como objeto o aparente próprio, mas a
explicação desta aparência. Assim, o mel, em sua apreensão sensível é aceito como doce sem se
questionar se o é, deste modo, em si mesmo – afirmar isso seria realizar um juízo sobre o
aparente que, como foi dito, o cético não o realiza, apenas continua sua busca. O dogmático
precipita-se para coisas não evidentes[] sem cuidado. Quanto aos céticos, ao fazerem
suspensão de juízo a respeito do aparente isso não significa rejeição do aparente, mas uma
prevenção contra o engano.

QUESTÕES

Nos ficou claro que o cético não rejeita o aparente. Quando Sexto fala da “investigação do
aparente”[ ’   ] própria do dogmático, ele quis distingui-la do
“que é dito do que aparece” [    ], investigação própria do cético.
Isso nos pareceu ser uma investigação de linguagem em primeiro lugar. Como se daria, então,
esta “investigação cética.”? De qualquer maneira, nos pareceu que o cético recoloca o hiato entre
o sujeito do conhecimento e as coisas, uma vez que não pode afirmar ou negar nada a respeito
delas. Dito de outra maneira, o cético não se precipita, mas também não experimenta. Seria lícito
dizer que o cético lida apenas com as formas do pensar? Não resta mais nada a ele?

154
Thomas Kuhn
(Texto de 2001)

1) Segundo Kuhn, o surgimento de um período de crise é um fenômeno de


fundamental importância para a transição revolucionária da ciência. Kuhn parte da explicação de
como uma nova teoria brota da ciência normal. Têm-se em primeiro lugar a conciência de
anomalia, isto é, a consciência de que algo não está dando certo nos parâmetros da ciência
produzida num dado momento. Todas as revoluções em ciência, no mais das vezes, dependem
deste período de insegurnança profissional. Essa insegurança é fruto do fracasso constante
(tomado do cientista individualmente) dos “quebra-cabeças” da ciência normal, em produzir os
resultados esperados. O fracasso das regras atuais tem origem na observação de discrpâncias
existentes entre teoria e fato. Kuhn faz uma distinção como ele próprio diz, que é artificial entre
teoria e fato, que não se mantém posteriormente. Há uma tendência da ciência normal em
aproximar cada vez mais fatos e teorias. Não há fato novo sem que se busque novas teorias e
com isso, uma nova maneira de agrupar os fatos. A contribuição mais importante desses períodos
de crise é que eles permitem que os cientistas revejam suas dificuldades no sentido de diminuir o
grau de discrepâncias. O fracasso na correção dessas discrepâncias é o cerne da crise. No entanto,
é dele que surge o interesse para encontrar novas regras. Kuhn chama ainda a atenção para o
estudo de fatores externos tais como a mudança no ambiente cultural e social etc., para
determinação do momento do fracasso do paradigma.
2) Em segundo lugar, depois de receber críricas quanto à sua noção de
icomensurabilidade dos paradigmas, Kuhn procura dirimir esses mal-entendidos com um texto
posterior ao das “Estruturas das Revoluções Científicas”, chamado “Reflexão sobre os meus
Críticos”. Kuhn refuta os positivistas lógicos que, segundo ele, fazem com que uma teoria
sempre utilizada por um grupo significante de cientistas seja imune ao ataque. Mas talvez a
principal crítica de Kuhn aos positivistas seja a noção de que a revolução em ciência não se dá
por acumulação e sim por transformação. Um dos pressupostos de Kuhn é de que os paradigmas
sucessivos da ciência possuem diferenças necessárias e irreconciliáveis. Cada paradigma aceito
nos ensina coisas diferentes a respeito da natureza. O que é mais importante é que essas
diferenças mostram que os paradigmas não são só irreconciliáveis sob o ponto de vista da
natureza. Mas são também sob o ponto de vista da ciência que os produziu. Os paradigmas
permitam o estabelecimento de padrões de soluções de problemas aceitos por qualquer

155
comunidade científica amadurecida. À mudança de paradigma segue-se a mudança nos padrões
que distinguem as soluções científicas das não científicas e por isso o novo paradigma é visto
como incompatível ou até mesmo icomensurável em relação ao antigo paradigma. É preciso,
portanto, entender os debates da ciência levando em conta essa icomensurabiliade dos
paradigmas. Icomensurável também se diz em sentido semântico. Os termos e os conceitos
deverão ser tomados não isoladamente, mas sim como um todo a fim de que, salvo o contexto, o
sentido teórico passa a emergir na comunicação entre os cientistas. Assim, uma comparação
entre duas teorias sucessivas exigiria uma linguagem capaz de traduzir pelo menos as
conseqüências empíricas delas sem que haja alterações ou perdas.
3) A análise histórica que faz Kuhn lhe permite concluir que as teorias
historicamente significativas concordaram com os fatos. Contudo, a medida de adequação aos
fatos proposto por uma teoria individual é impreciso e por isso mesmo a corcordância histórica
das torias quanto aos fatos é somente relativa. A questão que se coloca é a seguinte: dada duas
teorias rivais em competição, qual delas adequaria-se melhor aos fatos ? Ainda assim, se for só a
adequação o critério para a escolha do paradigma, bastaria a criação de um conjunto de regras ou
um proceidmento que contasse o número de problemas resolvidos pelo paradigma que se veria
de modo rotineiro e mecênico o paradigma vencedor como o que resolveu mais problemas. No
entanto, não é assim que se dá simplesmente essa escolha. Não se trata de colocar uma prova de
que o paradigma de uma comunidade científica é melhor que o de outra. Há sempre em ciência
problemas não resolvidos. A aplicação de um paradigma não pode, por isso, ser uma questão de
teste. Ao contrário, há teorias rivais que criam dificuldades para uma teoria oposta, as quais ela
ainda não havia considerado. Fala-se de mal-entendido entre os cientistas rivais, os quais por um
método de “conversão” no qual, a partir da existência de um colapso de comunicação entre os
cientistas, é possível que um traduza a teoria do outro em sua própria linguagem e assim
promova a descrição do mundo a que essa teoria se aplica. Sem uma linguagem neutra (do tipo
dos positivistas), o desfio é fazer tal qual um antropólogo que tenta aprender uma língua nativa
diferente, desenvolve-se essa comunicação em um mundo correspondentemente diferente. Cada
defensor de paradigma exerce sua profissão em mundos diferentes, mesmo havendo resistência
na aceitação de um paradgma, as conversões ocorrem progressivamente até que por fim, todos os
membros da profissão passarão a seguir um único paradigma.

156
Argumentos a favor da simplicidade, da clarificação ou até mesmo a favor da adequação estética,
embora menos eficazes nas ciências que nas matemáticas, são às vezes utilizados para a escolha
de teorias de modo decisivo. Deve-se também levar em conta que não se sabe qual paradigma
deverá orientar o futuro, por isso essa decisão entre as teorias para Kuhn deve basear-se também
mais nas promessas futuras que nas realizações passadas. O triunfo final de uma teoria pode, por
fim, depender de poucos. Diz Kuhn: “se esses cientistas nunca tivessem aceito rapidamente o
novo paradigma por razões individuais, este nunca teria se desenvolvido suficientemente para
atrair a adesão da comunidade científica como um todo” (p.196). Não existe um único argumento
que possa ou deva persuadir todos os cientistas, mas aqueles que forem convencidos da
fecundidade da nova concepção praticarão a nova ciência normal excluindo de seu círculo os
“resistentes” ou “contra-revolucionários”.
4) Kuhn define a ciência normal como a “pesquisa firmemente baseada em uma ou
mais realizações científicas passasdas”. Essas realizações permitirão posteriormente que uma
comunidade científica específica baseie-se e oriente-se no estabelecimento da prática normal em
ciência. Embora a ciência normal suprima freqüentemente as novidades, em função dos seus
compromissos com o paradigma, há um grau de arbitrariedade neste compromisso que nos
permite dizer que essa supressão não persistirá por muito tempo. Essa concepção de ciência de
Thomas Kuhn faz-nos entender o progresso da ciência como uma evolução e um
desenvolvimento não cumulativo provindos da transição de um paradigma a outro. Esse seria o
papel das revoluções científicas, um movimento evolutivo (diferente de uma simples redução de
uma teoria a outra) em que se passa da prática normal para a prática extraordinária. Assim, é
somente durante períodos de ciência normal que o progresso parece assegurado. Kuhn critica
aquela teoria segundo a qual haveria uma convergência para a verdade. Ao contrário, o processo
científico evolui de princípios primitivos através de estágios sucessivos caracterizados pelo
aumento de precisão e detalhe no conhecimento em relação à natureza. Não é um progresso em
direção a algo, pois é difícil mesmo imaginar que haja algo objetivamente que permita uma visão
única da natureza. A questão se resume, então, da seguinte maneira, deveremos aprender a
substituir a evolução em direção ao que queremos saber pela evolução a partir do que sabemos
(evolução teleológica) e o problema da indução estará mesmo localizado em algum ponto aqui,
nos diz Kuhn.

157
Para um afastamento do conflito das verdades
(Texto provavalmente de 2001)

O Prof. Porchat ressaltou diversas vezes em seus textos que a Epokhé [suspensão]
neopirrônica (como a pirrônica) longe de ser uma suspensão valorativa dos juízos numa decisão
filosófia, é o modo próprio da crítica que se aparta da Diaphonia (espírito de discordância
teórica). Da Epokhé neopirronica, não se concorda ou discorda; assim como ela, tomada por
atitude somente em sentido crítico, não aprova ou reprova o torvelinho cenil da Diaphonia
filosófica tal como ele se constituiu, fadado a sempre ser, em sua história, divergência, conflito e
inconclusão.
Como de uma cadeia de conceitos filosóficos absorvidos de cada doutrina se subsume
uma verdade, esta é ilustrada como reduto último do real, como circunferência da totalidade do
que é – do conjunto dessas doutrinas divergentes ou bem se soma o ecletismo que aproxima o
conceito, em suas variedades, à adequação de sentido ao seu significante no aclaramento da
linguagem, ou bem se justifica a certeza da apreensão do juízo e das especificidades da reta razão,
que dão esse entorno da verdade. Ao afastar-se da “verdade”(agora em áspas, para designar não a
busca por definição   [segundo significado] mas a Definitiones dictionum ad
veritam pertinentium10 - ou simplesmente   [falo a verdade]). O que conduz à
Epokhé não se dimensiona no perímetro deste conflito, senão dimensiona-se a si mesmo como
independente de efetivação e constituição dos juízos - postura crítica de elevar-se com a
suspensão. (mesmo sendo um dos bispos, disse Sartre, sobre dois filósofos que se encontram e
que estão dispostos a discutir sobre a verdade: Ora! Eles estão no seu mais baixo moral...!!!11)
Para elucidar melhor este afastamento do conflito da verdade, talvez fosse preciosa a
retomada das classificações levantadas por Sexto Empírico em suas “Hipotiposes Pirrônicas.”
Por meio do qual procuraremos problematizar em síntese, o conteúdo dos capítulos vii ao x. para
lançar luz ao tema e para verificar a atualidade da, por assim mal dizer, proposta pirrônica.

10
Em tradução live: Definição dada pela pertinência da verdade. A divisa católica: ad veritam pertinentium. É bem
cabida aos “sacerdotes do      ”, trata-se da definição instaurada, ou a definição mesma, a determinação: In
sermones populares eo consilio ut instauratio diligentissima sacrae Liturgiae efficeretur, scilicet unum ex
praecipuis praedicti Concilii propositis. (CONCILII Vaticani Secundi de Sacra Liturgia Recta Ordinandam -Ad
Const. art. 36).
11
Sartre Par Lui Meme - Entrevista filmada por Alexandre Astruc. Abril de 1980.

158
Logo no início do cap. vii, Sexto Empírico distingue o sentido genérico, comum
[] do termo dogma (sc. “dar aprovação a algo”) [ ] ao sentido aplicado
ao cético negativamente. (sc. “dar assentimento a objetos não evidentes da investigação científica)
[     ]. Com isso, se conclui que o cético não
dogmatiza, no último sentido, pois os pirrônicos, diz Sexto, não dão assentimento a nada que seja
não evidente.
O cético não será chamado dogmático também ao enunciar “ ”
[“não mais – em valor ou grau – isto do que aquilo; ou “ ” [“nada determino”],
pois, ao contrário do dogmático, o cético não toma este que existe [           ] como
inteiramente existente [ ] , mas sim, elimina seu próprio juízo sobre a
determinação da coisa ao dizer “ ” enunciando apenas suas impressões [] ,
sem sustentar qualquer opinião [].
Ao eliminar seu juízo, o cético escapa da navalha lógica imposta por sua própria
concepção de que não é possível ajuizar. Por outro lado, com sua lábia ranzinza, dirão outros
sacerdotes, “nos parece que ele não fica com nada...”. Aparentemente seria muito fácil a postura
do cético, e de bom ajuste a qualquer um. Bastaria que se evitasse qualquer posicionamento para
livrar-se do embaraço da tomada de tese. O ceticismo, visto assim, equivaleria à malícia, ou à
preguiça. Nossa questão, portanto; é possível ao cético identificar alguma justificação não
teórica, mas pelo menos de sua postura, que convenha à sua suspenção? Isto é, será o ceticismo
uma atitude “para-filosófica”(do tipo filosofia de vida) ou uma filosofia acrítica (do tipo para a
qual só há uma certeza, a saber, que não é possível ter certeza)? Dito numa frase: o que resta ao
cético depois da ‘suspenção de juízo’?
Realmente, nada. Apenas sua postura. Sua, digamos, pré-postura, ao evitar o próximo passo da
aceitação, afirmação (e/ou negação), em seus contraditórios combatimentos sugados pelo
torvelinho do conflito da verdade descrito. Mas trata-se de uma filosofia a-crítica, como tem
aclamado nosso sacerdócio? Não. A postura imediata do crítico é o não se meter, não se subtrair,
não se misturar. Sexto propõe a seguinte inferência, uma vez que o cético não se inclina a seguir
dogmas, como fazem os que aderem a uma escola, ele próprio, o cético, não pertence, portanto, a
escola alguma. Por outro lado, os seguidores de uma escola tem isso em comum: seguir uma

159
linha argumentativa. Ora, os céticos seguem apenas uma cadeia coerente de raciocínio “    
” [segundo o que aparece] e as próprias impressões [ ].
Por conseguinte, o cético não adere a uma escola, mas adere a uma forma lógica de uso
próprio que é a impossibilidade de determinação. Com isso, esboça-se uma possível resposta
para aquela questão acima quanto ao que fica para ele, talvez reste ao cético a “habilidade de
obter a suspensão”. Em todo caso, uma questão ainda resiste, essa “habilidade” poderia ser
ensinada? É possível trasmitir a “habilidade de obter suspensão”? Ainda assim, o cético não teria
discípulos no sentido exato, alunos que seguiriam uma norma, mas teria talvez, ouvintes atentos
à maneira de como o mestre cético obteve a suspenção. A resposta a isso tudo fica, por aqui,
suspensa. Afirma-se que o objetivo do cético não é tomar partido ou convicções sobre os objetos
das ciências naturais, mas sim praticar a oposição das asserções destas ciências, com o fim de
alcançar a tranquilidade da alma, ou a ataraxia. Que tranquilidade da alma pediria para si
discipulos? Com um pé cá na tranquilidade dos picos montanhenses, e outro lá no meio do
conflito, Zarathustra a ignorou.
O cético tem esse “método” que poderíamos chamar “método da oposição” no qual, para cada
explicação científica se opõe uma equivalente cética para se alcançar a tranquilidade de espírito.
É dado que a tomada de posição é uma coisa contrária à         (isto se mantém
filologicamente, pois,        é a [ausência de problema] ou [tranquilidade da alma] ). A
prática cética dos estudos de ciência natural, dirão outros sacerdotes, nos parecem ter menos
propensão técnica que apoio moral. Seria isto? O estudo das ciências naturais e das outras
ciências, para os céticos, seriam formas de alívio e de consolo apenas? Essas interrogações
remeteriam ao emblema de Fausto (ante-místico, porquanto próprio da modernidade) que é
fundante: Quê poderia nos salvar? “Nem a ciência[wissen], nem a fé [glaube], alles ist
Lüge![tudo é mentira]”. Todavia, todo Fausto ainda se alimenta de esperanças...
Os anátemas do sacerdócio, os abandonadores do conflito da verdade, os céticos, de
qualquer modo, não rejeitam as impressões sensíveis [ ] e investigam a
substância [ ] aceitando o fato de que ela constitui o conjunto do que aparece
[]. Essa investigação não tem como objeto o aparente próprio, mas a explicação desta
aparência. Assim, o mel, em sua apreensão sensível é aceito como doce sem se questionar se o é,
deste modo, em si mesmo – afirmar isso seria realizar um juízo sobre o aparente que, como foi
dito, o cético não o realiza, apenas continua sua busca. Quando Sexto Empírico fala da

160
“investigação do aparente”[ ’   ] própria do dogmático, ele
quis distingui-la do “que é dito do que aparece” [    ], investigação
própria do cético.
O dogmático precipita-se para coisas não evidentes[] sem cuidado. Quanto aos
céticos, ao fazerem suspensão de juízo a respeito do aparente, isso não significa rejeição do
aparente, mas uma prevenção contra o engano, um afastamento do conflito da verdade.

BIBLIOGRAFIA FILOSÓFICA

-Que livros ler?


Todos.
-Que livros não ler?
Nenhum.

BIBLIOGRAFIA NEOPIRRONICA

-Que livros não ler?


Nem todos.
-Que livros ler?
Alguns.

161
Música como Movimento Em Si Mesmo da Subjetividade ideal
(Texto de 2001)

“Die poesie Heilt die Wunden die Verstand Schlägt”


Novalis

“Apenas as melodias trazem orgulhosamente em si a própria morte, como uma


necessidade interna só que elas não existem...”
J.P Sartre

A obra de arte segundo Hegel se localiza na esfera exterior da idéia enquanto


pleno ser Em-Si e Para-Si que assedia, objetiva este exterior e volta-se a si mesma. Sendo
manifestação do espírito absoluto, a obra de arte reside no mesmo plano deste Ser-aí, desta
individualidade imediata, exterior, sensível do mundano.
O belo artístico existe por oposição ao belo natural, ele não o nega, mas o supera,
porquanto na beleza natural só se encontra o contingente e é pura exterioridade onde não se
observa a efetividade e a presença conciliadora do espírito absoluto. Ao contrário, o belo artístico,
objeto único da Estética, não refletiria esta palidez acidentária, limitada e imperfeita que é esta
exterioridade natural; o belo artístico, em representações subjetivas, refletiria em sua forma mais
elevada o espírito absoluto de modo mais verdadeiro, mais real.
O idealismo hegeliano é necessariamente histórico e, por isso, um seu "ideal da arte" só
se poderia supor na medida do "decurso" do "desenvolvimento", ao longo da temporalidade
histórica. A estética, neste sentido, representa uma delimitação lógico-histórica da obra de arte
que não necessita se opor à crítica mesma da arte como tal.
No caso estrito da música, Hegel, em seus Cursos de Estética, ressaltou a
possibilidade de se deter nos questionamentos estéticos sobre a música em seu sentido mais geral.
Confessa ele próprio ser pouco versado em teoria musical propriamente dita, mas que pretenderia
restringir-se aos pontos de vista mais universais e também às observações isoladas. Certamente,
no caso hegeliano, não é preciso ir a fundo nos tramites técnicos da teoria musical para que
somente aí seja possivel fazer uma avaliação estética. O sistema estético da música será por isso

162
avaliado segundo a mesma metodologia da avaliação estética das demais artes românticas, ou
seja, segundo sua lógica interna e sua história diacrônica.
São três, grosso modo, os momentos dialéticos supostos na compreensão da arte
que advém do pensamento lógico de Hegel. Assim, o espírito se desenvolve em primeiro lugar
como subjetivo, ( e este está relacionado ao indivíduo), como objetivo ( este se relaciona à
sociedade) e como absoluto (Deus). A arte é tida como a primeira figura do espírito absoluto. Ela
é a expressão do absoluto enquanto intuição estética. O intuito da arte é a própria vida, ela parte
deste espírito finito, mas é um dos modos de apreensão (sensível) do absoluto – seguida da
religião e por fim, da filosofia.

DETERMINAÇÃO ONTO-NEGATIVA(ou espaço-negativa) DA MÚSICA

A música pode ser determinada, em termos hegelianos como a expressão do


interior enquanto interioridade subjetiva que nega totalmente a espacialidade, “um material que
em seu ser-para-o-outro é destituído de consistência e que já desaparece imediatamente em seu
nascimento e existência mesmos.” (Cursos pg 278). Enquanto a arquitetura se utiliza do espaço
como matéria de sua representação exterior do espírito resignado à limitação da espacialidade e
inclusive assumindo o sofrimento gravitacional, a música se absolve na exerioridade negando-a,
em primeiro lugar, sendo interioridade subjetiva ao se exprimir, e, em segundo, mantendo esta
mesma interioridade ao ser contemplada como objeto interno de vibração.
Seja na escultura, em que a expressão do espiritual não se dá como uma certa
paraticularidade e sequer como interioridade subjetiva: identidade esta existente apenas para si
mesma em seu “organismo corporal”( matéria pesada) mas não como elemento de sua própria
interioridade, seja na arquitetura, em que não há ultrapassagem da alusão simbólica; seja na
pintura, em que a expressão do espiritual não se dá senão como subjetividade ideal (ideele)
particular de cuja aparência ainda é subsistente – não há eliminação completa da determinação
espacial ou exterior como há na música. A música, portanto, se determina onto-negativamente
em relação às outras artes e em relação a si mesma, pois ela é a realização do “completo
retraimento na subjetividade segundo o lado do interior como da exteriorização” (Cursos pg. 278)
e em seu ser-para-o-outro é destituída de consistência (sem consistência na exterioridade e sem

163
subsistência por si mesma), visto que “desaparece imediatamente em seu nascimento e existência
mesmos”(Cursos, pg.278).
Chegamos assim à definição da música como sendo a única expressão do
espiritual que toma autenticamente para si o subjetivo de maneira simultânea como conteúdo e
forma. Uma manifestação da interioridade subjetiva, como a pintura certamente, mas, como diz
Hegel “na sua objetividade permanece ela mesma subjetiva”(Cursos, pg.278).
Se a pintura reduziu as dimensões espaciais da escultura à superfície, a música
reduziu sua relação com a exterioridade até a supressão, sendo que seu campo de ação, sua
materialidade, se apresenta como som. O som é um material sensível determinado que entra em
movimento ao vibrar em si mesmo, mas também aspira o retorno a seu estado anterior.
O som, assim determinado é um vibrar oscilante que nega a forma exterior e a
visibilidade, fazendo a música precisar de um órgão subjetivo ( o ouvido) para apreender as
produções musicais (Hegel distingue o ouvido, assim como as vistas, como sentidos teóricos).
Trata-se, por isso, de um modo pr’poprio de contemplar no qual o órgão da
percepção musical se perde teoreticamente em si mesmo, isto é, não se volta praticamente para
seu objeto de percepção – o som. Ele apreende teoricamente esse movimento resultante da
vibração dos corpos, porém estes não se manifestam na forma material estática, mas sim é um
aparecer material vibrante cuja negação da exterioridade se duplica; negação espacial e negação
e desaparecimento em si mesmo (na sich selbst). Por isso, Hegel diz que o som é “em si e para si
algo de mais ideal do que a corporeidade real para si mesma subsistente, também abandona esta
existência mais ideal e desse modo torna-se um modo de exteriorização adequado ao
interior.”(Cursos, pg.279).
Hegel distingue a música como a arte propriamente romântica. Ela está em certo
sentido, ligada à pintura, e também à poesia (embora nesta arte somente por ter como material
sensível o som), contudo, ela está mais especialmente ligada à arquitetura, pois nesta, o conteúdo
se manifesta em formas arquitetônicas sem penetrar nelas totalmente, permanecendo distinto
enquanto ambiente exterior. Similarmente a música dissolve “a identidade clássica do interior e
de sua existência exterior, mesmo que de modo invertido, já que a arquitetura, como espécie de
exposição simbólica ainda não era capaz de alcançar aquela unidade” (Cursos pg. 282). O que as
duas, a música e a arquitetura têm em comum é que as duas tomam suas formas não do existente,
mas da invenção espiritual, sejam as formas fantásticas desenvolvidas pela música (sons

164
melódicos do sentimento), sejam as representações do Deus, as formas das colunas puramente
racionais, construção dos muros e vigamentos etc. A música também é uma arquitetura, uma
invenção espiritual cuja forma de expressão se mostra como configuração simétrica e eurrítimica.
Particularmente com a música, essa configuração simétrica é regida por leis da harmonia e essa
configuração eurrítimica é regida por leis do compasso e do rítimo.
Ora, ao contrário, na música, aquela matéria pesada da arquitetura, massa sensível
da forma espacial exterior, se dissolve. É a alma do som que se desprende desta forma exterior e
passa a ser movimento temporal da ressonância.
Fica claro que a música não lida com o conteúdo da mesma maneira que as artes
plásticas nem da poesia. Ela tem um modo próprio de expressão deste conteúdo e em seu aspecto
geral há que se considerar os seguintes pontos a) como ela apresenta o lado material ou a forma
dos fenômenos exteriores objetivos b) como se dão as representações do conteúdo espiritual.
Vista no sentido de uma objetividade real, comparativamente às artes plásticas, o
som é totalmente abstrato – isso é problemático, pois, o som o som não é capaz de ter existência
efetiva, ele é uma forma abstrata da temporalidade. Ele faz a expressão do interior sem objeto e é
a exterioridade da forma ideal, manifestação e ressoar não da objetividade, mas da subjetividade
abstrata, de maneira que na música, seu conteúdo é subjetivo em si mesmo (an sich selbst), como
diz Hegel. Este é seu aspecto formal; o fato de possuir uma interioridade destituída de objeto.
Justamente, este caráter abstrato e formal obriga que ao se fazer a transição ao particular, a
música o faça impulsionando o conteúdo espiritual por meio de determinações técnicas, ou seja,
na correlação sonora, na diversificação do timbre, harmonização das tonalidades e etc. Hegel
nota que o estremismo formal ( próprio das músicas mais recentes; ver Cursos, pg. 286) tende
limitar a arte da música ao mero interesse, dando atenção ao que é puramente musical da
composição e à habilidade musical em detrimento do prazer. Isso acarreta em uma perda do
interior e o rompimento com o conteúdo, um retorno ao próprio elemento abstrato da música.
É adequado portanto falar que a expressão do conteúdo espiritual que executa este
ressoar é na verdade um retraimento ou “um recuo para dentro da liberdade do interior”(Cursos
pg.283) Liberta da configuração teórica, a fruição artística se propaga como regozijo musical,
“assim a música conduz esta liberdade para o seu ponto máximo.”
Na relação existente entre a música e a poesia, Hegel observa que o predomínio de uma
arte é prejudicial para a outra. Encontramos, de fato, como nos coros dramáticos dos antigos uma

165
autonomia do texto poético em relação à música, que existia apenas como apoio. Por outro lado,
encontramos também independência da música no campo do encontro música-texto, como em
óperas, cantos , árias, textos de oratórios etc que em geral as palavras são vistas apenas como
ocasião para um comentário musical – o que deve prevalecer, todavia, é que a música, com seu
conteúdo (inhalt), seja plenamente desenvolvido pela poesia, nestes casos.

NOTAS

(1) O termo “Estética: cunhado por Baumgarten (1714-1762) em “Aesthetica” 1750,


é adotado abertamente por Hegel e reflete a noção de arte como individuação do espírito
absoluto e manifestação sensível deste, e a Estética mesma é a reflexão sobre esta manifestação,
é a ciência ou a filosofia da arte. A Estética (do grego “Aesthesis” percepção sensível) tem como
objeto “o vasto império do belo artístico”

BIBLIOGRAFIA

HEGEL, G. W. F. “Cursos de Estética” Vol III Trad. Marco Aurélio Werle/Oliver Tolle.
São Paulo, 2002.

166
O Mal da Pesquisa no Brasil
por: Erica Rocha e Renato Araújo (2o.Semestre 2001)

O investimento em ciência e tecnologia, que se dá através do incentivo à formação de


pesquisadores, bem como através do fortalecimento da educação em todos os níveis, é de vital
importância para o desenvolvimento de um país.
Trata-se de um investimento a longo prazo, porém de retorno garantido. Investindo na
formação de pesquisadores, o Brasil exportou quase 2 bilhões de dólares em aviões a jato e 3
bilhões em soja o ano 2000.
No ano de 2001, a União teve uma arrecadação muito superior àquela dos anos anteriores. A
despeito disso, descontada a inflação, a verba destinada ao ensino superior vem sendo
drasticamente reduzida. As despesas com instalações, laboratórios e equipamentos tiveram uma
queda de 82% no período de 1995 a 1998. A verba total investida pelo CNPq apresentou uma
redução de 16 % de 1995 a 2001, em virtude dos cortes de bolsa de mestrado e doutorado,
principalmente, e do congelamento de todas as bolsas há mais de 7 anos. Esse congelamento
vergonhoso inibe a capacidade de criação de nossos pesquisadores e é a principal razão do
descontentamento geral.
Apenas 2475 dos 50.000 estudantes da USP têm bolsa de iniciação científica, agora também
negada àqueles com mais de 24 anos. Pelo visto, o governo quer se ver livre da obrigação de
investir em pesquisa e, com uma visão ingênua de economia de fluxo de caixa, aos poucos vai
permitindo a invasão de empresas do setor privado para fazer “parceria” com a Universidade.
Em outras palavras, a universidade entra com a infra-estrutura, os recursos humanos e sai sem
nada, uma vez que esse investimento não é a fundo perdido, mas sim, exige troca e, no mais das
vezes, lucro pesado. Observa-se significativas disparidades de remuneração entre os
pesquisadores, resultado das pressões do mercado. Porém, a pesquisa aplicada, em um futuro não
muito distante, também ficará comprometida pela falta de investimento em pesquisa de base.
Além disso, a pesquisa de base é deixada de lado, uma grande parte dos trabalhos fica
engavetada, a fim de favorecer a pesquisa aplicada - a verdadeira universidade é esmagada pelo
mercado.
Mesmo aqueles pesquisadores que encaixam nessa malha fina e que resistem a todas essas

167
provações têm seu trabalho muito prejudicado, apesar de demonstrarem grande
perseverança. Aquele que é pesquisador ou aspira a um lugar ao sol, não pode manter-se
unicamente com o que recebe pela sua pessquisa, a não ser que sua família possa contribuir com
seu sustento, e então procura outras atividades não relacionadas a seu interesse profissional. Com
o sucateamento do ensino fundamental e médio gratuito, o ingresso nas universidades fica
praticamente restrito a estudantes de classe média alta. Estudantes economicamente auto-
suficientes. A elitização da universidade é muito interessante para o governo que gradualmente
vai desviando a verba destinada à universidade para geralmente aplicá-la em obras que rendam
votos e também onde o FMI determina.
É indispensável que os estudantes, pesquisadores e toda a sociedade notem o quão destoada e
faltosa tem sido a política do atual governo para com a educação e a pesquisa, contribuindo para
a manutenção da dependência do país, que terá de continuar comprando tecnologia do primeiro
mundo.

168
Os Pronomes Pessoais Nas Línguas Românicas
(Texto de 2002)

1. INTRODUÇÃO

Já no período do gramático Dionysio Trácio utilizava-se o termo  para designar


aquela classe de palavras que tinham por função serem substitutas do nome. No latim esse termo
foi traduzido por pronomen e entendido como a palavra que substitui o substantivo, ou que o
acompanha para dar lhe ênfase ou para tornar mais claro o seu significado.
Na presente pesquisa procuraremos abordar em linhas gerais, especialmente, a história e
desenvolvimento filológico dos pronomes pessoais desde sua fonte latina até seus variados
afluentes em algumas das línguas românicas.
Antes de mais nada, é preciso destacar a característica básica dos pronomes pessoais.
Eles são, de fato, aqueles que designam as três pessoas gramaticais na emissão comunicativa.
Contudo, estão intimamente ligados à oralidade e, portanto, são basicamente de 1a. e 2a. pessoas
(“eu” e “tu”), pois, são essas pessoas gramaticais que constituem o eixo do diálogo. A 3a. pessoa
e as demais se acrescentam por analogia e podem, no limite, remeter-se àquelas, “eu” e “tu”.12
Determina-se os papéis no discurso segundo o que se segue: a 1a. pessoa (“eu”) é a que fala; a 2a.
pessoa (“tu”) é aquela a quem se fala e a 3a. pessoa (“ele”) é a de quem se fala.
Veremos que distingue-se três categorias gramaticais específicas13 para o pronome
pessoal latino. Pessoa, caso e número.
a) Pessoa: O latim reservou o uso dos pronomes pessoais no nominativus casus
exclusivamente para dar ênfase ou precisão à fala, assim, a característica gramatical do morfema
pessoal exprime-se no carácter obrigatório das relações que contrai. “Cada morfema de persona
determina um cierto modo de organización dentro de las demás categorías de morfemas”(Iordan,
pg.279).
b) Caso: A flexão latina dos pronomes pessoais era abundante, isto é, mantinha os seis.
O caso ablativo e o acusativo emprestaram a forma do singular e em combinação com o plural, a

12
Os pronomes pessoais são os verdadeiros pronomes, pois vêm no lugar do nome. Sua origem mostra que não são
anafóricos. As 3a.s pessoas (seja no singular ou plural) estão fora do eixo básico do diálogo; são dêiticos. (Ver :
MURACHCO, H. Língua Grega pp. 163-165 vol.I Ed. Vozes/Discurso, São Paulo, 2001.
13
IORDAN, Iorgu Iordan. Manual de lingüística Románica p. 279 e ss. Editorial Gredos Madrid, 1972.

169
forma do ablativo é a mesma do dativo (Nobis, Vobis etc.). Era possível, apenas por possuir o
vocativo, distinguir a 2a. e a 5a. pessoa envolvidas no diálogo, das outras, ou seja, “podían
fugurar em la cadena del discurso sin ninguna función sintáctica.”( Iordan, pg. 280).
c) Número: Não é correto afirmar que os pronomes “nós” e “vós” são os plurais de “eu”
e “tu”. O “nós” indica tanto o conjunto das pessoas que fazem parte do diálogo ou
eventualmente, o conjunto das pessoas incluídas pelo falante. Deste modo, compõe este “nós” o
“eu e tu”; o “eu e aqueloutro” e “eu e aquele(s)”. O “vós” indica o conjunto dos colocutores ou
outro conjunto também específico. Assim, compõe este “vós” o “tu e tu(outro)” e “tu e ele(s)”.
Do ponto de vista do gênero os pronomes latinos da 1a. e 2a. pessoa independiam do sexo
dos falantes, já nas línguas românicas, a 3a. pessoa apresenta diferentes morfemas no feminino e
masculino(algumas no neutro). Outra característica importante dos pronomes é a possibilidade de
expressar no discurso o enfático e o não-enfático. A desinência pessoal do verbo já indicaria em
si o sujeito da oração (Lat. canto “eu canto”; cantas “tu cantas”; cantat “ele canta” etc). Quando
se acrescenta um pronome pessoal como sujeito (lat. “ego canto”, it. “io canto”, port. “eu canto”,
esp. “yo canto” etc...) este pronome é tônico como um substantivo-sujeito, segundo afirma
Lausberg14, explica-se a obrigatoriedade deste pronome-sujeito em função da influência
germânica. (cf. o alemão Ich singe “eu canto”, du singst “tu cantas”. No francês essa
obrigatoriedade faz os pronomes perderem intensidade, assim as formas dos pronomes-sujeitos
“je, tu, il , ils” têm como substitivos as formas obliquas “moi, toi, lui, eux”.
Por fim incluímos a análise dos pronomes de tratamento e o pronome reflexivo em
função de sua relação com o presente tema. Os pronomes de tratamento foram estabelecidos
tardiamente nas línguas românicas e são resultados, em boa parte, do estilo jurídico ou
administrativo da corte (Iordan, p. 293) e também da conversão em fórmulas reverenciais de
significado distintivo ou de afastamento, por isso, não implicado no eixo do discurso.15 Ao fim e
ao cabo, analisaremos o pronome reflexivo que, no latim, podia adquirir o valor de pronome
pessoal de 3a. pessoa em estilo indireto [oratio obliqua]

14
LAUSBERG, H. Lingüística Románica, p. 154 Tomo II Ed. Gredos Madrid, 1973.
15
Tanto no Latim quanto no Grego, línguas de larga expressão oral, as expressões de tratamento eram efetuadas em
2a. pessoa (singular e plural). “As expressões de tratamento em 3a. pessoa têm origem litúrgica, palaciana,
subserviente e servil e se baseiam no receio da abordagem direta. Em alguns países e regiões de língua portuguesa e
castelhana, esse tratamento prevalece e lembra as relações senhoriais de um sociedade escravocrata.”(MURACHCO,
H. Ibidem, p.165)

170
(IORDAN, p. 295) embora se diferencie deste por não ter nominativo e não ter variação em
termos de número.

2. EVOLUÇÃO DIACRÔNICA DOS PRONOMES PESSOAIS

a) LATIM CLÁSSICO

Verificando o quadro de declinação dos pronomes pessoais latinos da 1a. pessoa temos:

Singular Plural

Nom. ego eu nos nós


Gen. mei de mim nostrum de nós
nostri de nós
Acus. me me nos nos
Dat. mihi me/ a mim nobis a nós/nos
Abl. me por mim/me/-migo nobis por nós/-nosco

Obs.: Os pronomes pessoais eram mais usados no latim vulgar que no clássico.

Na 2a.. Segunda pessoa, temos:

singular plural

Nom. tu tu vos vós


Gen. tui de você/de ti vestrum de vós
vestri de vós
Acus. te te vos vos

171
Dat. tibi te/ a ti vobis a vós/vos
Abl. te ti/te/-tigo vobis vos/-vosco

Exemplos

Nom.: Ego clamo. (“Eu grito”)

Gen.: Memǐni tui. (“Lembrei-me de ti”)

Acus.:Quinque pedes ad dextram ambulavit (“Ele andou cinco pés para a direita”)

Dativo: Se videt (“Ele se vê a si próprio”)

Ablativo: Mecum ambulat. (“Ele passeia comigo”)

Na 3a. pessoa:

Não há no latim um pronome que caracterize particularmente a terceira pessoa, quer seja
do singular ou do plural. Ela não tem nominativo e é de sentido reflexivo. Todavia, encontramos
os substitutos is (utilizado como anafórico), ea, id , ou ainda ille, illa, illud. Estes últimos deram
origem ao artigo definido português, o, a , como veremos mais adiante. O emprego do pronome
“Ille” mostrava o afastamento no espaço no que diz respeito ao ato do discurso, por isso, era o
mais correto para o uso em ocasiões em que não está presente a pessoa a qual se refere o discurso.
Posteriormente, com o enfraquecimento de seu valor espacial, Ille se transformou em uma
expressão de terceira pessoa na maior parte das línguas românicas. De qualquer forma, sua
evolução semântica não foi suficientemente grande para ser considerado um pronome pessoal.16

16
Bourciez afirma “A côté de ille, ipse pouvait aussi fonctioner comme pronom de la 3ª pers.: c’est lui que est resté
dans cet emploi en Sardaine, et il a également joué un rôle important en Italie et en Orient.”
(Édouard Bourciez “Éléments de Linguistique Romane” Pg. 93 4ª. Ed Klincksieck Paris 1946).

172
Os pronomes chamados do “caso reto” no latim são:

Ego (eu)
Tu (tu)
Is, Ea, Id (ele/ela)
Nos (nós)
Vos (vós)
Ii, Eæ, Ea (eles/elas)

b) LATIM VULGAR

1a. pessoa do singular

Ego – (nom.) Transformado em “eo” baseado no latim vulgar que, segundo Meyer-Lübke,
aparece em textos latinos do século VI,17 servindo ao desenvolvimento posterior; sendo que a
forma plural “nos” se manteve como no latim clássico.

Mihi – (dat.) em “mi” Mē (acus.)


Mecum – (abl.) em “mego” (forma arcaica) e “migo” que resultou na forma pleonástica
“comigo” do português). O mesmo ocorreu com Tecum (abl.) em “tecum” (forma arcaica)
resultando em “tigo”.

Quadro geral dos pronomes pessoais no latim vulgar

1a. pess. Ego >eo 1a. pess. Mi 1a. pess. Tē


Nom. sing. Dat. sing. Acus. sing.
2a. pess. Tu 2a. pess. Tibi >ti 2a. pess. Vōs

17
Ver: “Pontos de Gramática Histórica:” Ismael de Lima Coutinho In: Biblioteca Brasileira de Filologia no. 4,
pág. 278, 4a.Ed Livraria Acaêmica Rj. 1958.

173
c) LÍNGUAS ROMÂNICAS

A língua é um recurso vivo de comunicação. Como fruto de freqüentes ampliações


semânticas e transformações fonéticas do latim vulgar os idiomas românicos se formaram
sustentando parte do que outrora fora a língua falada pelo cidadão romano comum,( soldados,
comerciantes etc.) e tendendo a desenvolver formas específicas.
Boa parte dos pronomes latinos se manteve nas línguas românicas. Nos casos chamados
obliquos, observa-se a partícula formante “m-” para a primeira pessoa e “t-“ para a segunda
pessoa.

1a. pessoa do singular

Ego – (Nom.) Destaca-se a sincope do “-g-” como se percebe em todas as línguas


românicas. Observe o deslocamento do acento no romeno, sardo, provençal e no português.

Romeno - eŭ
Italiano - io
Françês - jo > je
Provençal - jo
Sardo - ęγo > ęo
Friulano - jò
Catalão - jo
Espanhol - yo
Português - eu

Me – (Acus.) Manutenção deste acusativo no sardo, fr., it. Etc...

Me – (Abl.)

174
Mecum/Tecum – (it. Meco, teco; port. antigo mego, tego – com a adição da preposição
cum como em “cum illo amico”; tosc. Com meco, com teco, sardo kumméγus, kutéγus.

Mihi - resultou “mi” na maioria das línguas românicas. No romeno, a forma “me”
aparece “mie” e no acusativo, esta forma é (“mă”, posição tônica e “mine”, posição átona). No
sardo aparece a forma “mene” e no Veglioto “main”. No português a evolução diacrônica se
deu desta maneira: mihi > mi > mim; sendo que essa forma “mim” é resultante da nasalização
por transferência e contaminação do “m-” inicial como em multo > muito [com a pronuncia
anasalada muînto]. O pronome “mim” data do fim do século xv, aproximadamente. Mas é
mesmo possível encontrar a forma “mi” em Camões; “Ouve os danos de mi”. Esta é uma forma
átona arcaica da qual originou a atual “me”. “O que explica a função de objeto indireto que pode
desempenhar esta variação pronominal. (COUTINHO, 1958, p. 278)

1a. pessoa do plural

Nos (Nom.) – permanece idêntico no rom., it., Port., e em fr. apresenta a natural
ditongação nous como em trēs > trois. (LAUSBERG, p. 162), explica que esta forma francesa
mostra o vocalismo pré-tônico que se dá pelo apoio do pronome-sujeito. Em espanhol e no
Catalão o pronome ganha ênfase com a inclusão de “alteros, alteras”, assim, tem-se: (it.
Noialtri, voialtri ; sardo noisáteros, boisátero; fr. Nous autres, vous autres; esp. Nosotros,
vosotros. etc)

Nōs(Nom.) – resulta em “nós” no português. Alguns gramáticos explicam o emprego de


“noscum” como uma contração de “nobiscum” e influência do termo “nobis”. (No Apendix
Probi tem se * Nobiscum non Noscum [App. Probi. 220, cit. por Bourciez pg. 93]). Contudo,
argumenta Coutinho, admite-se hoje que esta forma é o acusativo plural latino “nos + cum”.
(COUTINHO, Ibidem, p. 279)

Nostrum (Gen.) – Substituido sempre por “de nos” e no sardo “de nobis”.

175
Nos (Acus.) – Permanece idêntico ao latim.

Nobis (Dat.) – Permanece dativo também no romeno, mas nominativo/acusativo no sardo.

2a. pessoa do singular

Tu (nominativo)
Tibi (dativo)

Na 2a. pessoa (“tu”) a situação do latim se apresentou idêntica nas línguas românicas, no
geral. “Tibi” é convertido geralmente em “ti”. No romeno “ţ” e “ţie”. É patente observar aqui a
analogia “ti/ tie” da 2a. pessoa com as formas “mi, mie”.( ver quadro geral dos pronomes
pessoais do romeno à página 9). O acusativo “te” também se mostrou igual.18
Tecum (abl.) “tego” (arcaico), “tigo”, no português. A forma tecum originou-se do
ablativo te + cum. O arcaico “tego” modificou-se em “tigo” por influência de “ti”, segundo
Leite de Vasconcelos. Afirma-se, todavia, que “ticum” ascende ao latim popular e a atual forma
pleonástica contigo provém da necessidade de reforço.

2a. pessoa do plural

Vos – (Nom.) O “ó” no português mostra influência de vosso (Coutinho, pg.279)

Vos – (Acus.) À semelhança de nos essa forma pode também exercer a função de objeto
indireto.

18
Iordan atesta que no romeno, a forma “te” observa-se os derivados “te, tine” , según lo dicho para “mine”,
puesto que tanto “me” com “te” tenían una e larga (=lat. Vogal “e” abierta), el francés la diptongó em “ei”,
haciendo después “oi”, de donde los actuales “moi y toi”(IORD,AN, p. 290, nota 16). São correntes tais formas no
rom. tine e no sardo tene.

176
Voscum – (Abl.) > vosco, entendido anteriormente como possível síncope de vobiscum
resultante da transposição do acento para a primeira sílaba, o que se explicaria pela influência da
acentuação de vobis. Entretanto, têm se afimado que trata-se do acusativo plural vos + cum
semelhante à combinação cum+tecum supracitada. No português arcaico não havia reforço (com
inclusão do “cum” latino) no emprego de vosco.

Ille – (masc.) cuja forma popular era “illu”, isto é, “illus”, por influência de adjetivos do tipo de
“bonus, -a, -um”)

Rom. - el (u)
Ital. - egli (com “–i” final tomada por analogia de outras formas pronominais)
Fr. - il
Prov. - el
Esp. - él
Port. - elle

Illa - (fem.) de cuja forma derivam:

Rom. - ea
Ital. - ella
Fr. - elle
Prov. - ila
Esp. - ella
Port. - ela

Illui (dativo vulgar de “illi”) Nas línguas românicas; Rom./Ital./Fr. “lui”

177
e o dativo feminino (forma vulgar “illae”, posteriormente “illaei”) resultou em Rom. “ei”, It.
“lei”, Fr. antigo “li” 19

No francês a 1ª pessoa do sing. “je” se deveu por enfraquecimento gié, jé; dialetalmente
sobretudo no noroeste “jo, jou”.(Bourciez, pg. 354) A forma provençal eu, ieu e a 2ª pessoa “tu”,
ocorre em toda região de fala provençal. As formas em regime do francês moi , toi, soi
(acentuadas) são mi,ti,si no leste (trata-se de uma distinção antiga) e as formas átonas são as
correntes me, te, se. A prova de que as formas francesas nos, vos eram utilizadas sobretudo
como formas átonas, segundo Bourciez, vem do fato delas não terem se transformado em neus,
veus, respectivamente, mas sim nous, vous, no séc. XII.

Quadro geral dos pronomes pessoais no francês

Sing.
(Nom.) ílle > il; “lui” (no francês moderno)
(Acus.) íllu > lui
(Dat.) illúi > lui, a lui; “à lui” (no fr. mod.) [observe o reforço ad illúi > a lui]
(Gen.) illúius > de lui
Pl.
(Nom.) ílli > il (metafonia)
( Acus.) íllos > eus (lour dialetal); “eux” (no fr.mod.)
(Dat.) illóru > a eus (a lour dialetal); “à eux” (no fr. mod.)
(Gen.) illóru > d´eus; “d´eux” (no fr. mod.)

No Português, enquanto que somente o acusativo latino restou nos substantivos e


adjetivos, os casos nominativo e acusativo e por vezes o dativo dos pronomes pessoais também
sobreviveram embora estes casos nem sempre estejam restritos à sua função original. Algumas
formas de acusativo são empregadas como dativo e algumas formas do nominativo e dativo são
empregadas com preposições. (Williams, pg. 148)

19
As línguas românicas restantes não apresentam estas formas, pois elas só apareceram no latim falado na Itália em
época relativamente tardia, não alcançando assim, provincias mais distanciadas do centro do Império.(Ver:
IORDAN, Ibidem p. 290, nota 16)

178
Quadro geral dos pronomes pessoais no português

(Nom) Ego>eu
(Acus) me > a mim
( Dat.) mi > a mim
(Gen.) mei (lat. Classico) lat.vulg.(?) > de mim
(Nom.)Tu >tu
(Acus.) te > a ti
(Dat.) tibi > a ti
(Gen.) tui (lat. Clássico) lat. Vulg. (?) > de ti
Ille>ele, que se tornou el (arcaico e popular) por próclise.
Illa>ela
Nos>nós, que recebeu influência de “nosso”
Vos>vós, que recebeu influência de “vosso”

*As terceiras pessoas do pl. eles, eis - arcaico, ęlas não provenieram diretamente do latim,
são formações analógicas que vieram por meio da adição da terminação do plural ele, el e ela,
formas do nominativo popular. Já as formas correspondentes no espanhol ellos e ellas, provieram
diretamente das formas do acusativo plural.
Mihi >mi > “mi”, no português arcaico, era usado como dativo, mas nos cancioneiros
primitivos ganha a gradual função de dativo e acusativo conjuntivo.(Williams, p. 149)
Como já nos referimos, a preposição cum se juntou como enclítica ao ablativo dos
pronomes pessoais e reflexivos. De modo que o quadro das combinações de pronomes se dá
como se segue:

Latim clássico português arcaico português moderno


Mecum mego, comego, migo, comigo comigo
Tecum tego, contego, tigo, contigo contigo
secum sego, consego, sigo, consigo consigo

179
*Lat.cl. nobiscum *Lat.cl. vobiscum
lat.Vulg.Noscum (Ap. Probi) lat.vulg. voscum(Ap. Probi)
port.Arc.nosco port. arc. bosco
port.mod connosco/conosco port. mod. Convosco

O emprego pelo povo do pronome de tratamento você, explica Said Ali, é originado do
“uso e abuso da fórmula vossa mercê”. Este emprego “ acabou por aplicar-se a indivíduos de
condição igual, ou inferior à da pessoa que fala” (Ali, p. 93). Outra forma alterada de vossa
mercê é vossancê “Guarde Deos a Vossancê”. Coutinho nos fornece a seguinte linha diacrônica
no uso desse pronome: Vossa Mercê > Vossemecê > Vosmecê > Você. (COUTINHO, p. 280)
As formas me, te , se, nos, vos do latim se mantiveram. Com a atenção de que é possível
encontrar a pronúncia moderna de nos como [nus], e de vos como [vus].
Além disso, percebe-se a influência pelos sons dos verbos adjacentes, de outros pronomes
ou de outras partes do discursos nas seguintes formas não acentuadas no português.

Latim clássico português arcaico português moderno


Illum (acus.) lo o -lo -no
Illud (acus.) lo o -lo -no
Illam(acus.) la a -a -na
Illos(acus.) los os -los -nos
Illas(acus.) las as -las -nas
Illi (dat.) li li(arcaico) e lhe
Illis(dat.) lis lis(arcaico)e lhes
Te che (arcaico)
Se xe(arcaico)

Vale observar que na linguagem popular de Portugal ainda se ouve a pronúncia li.
Quando temos um “l” seguido de semivogal diz-se que este “se molha” (Coutinho, p. 280). Quer
seja, trata-se da palatalização do “l” como em “filiu > filho” que se generalizou para o uso
arcaico do lhe, por vezes, sem distinção do plural. Há semelhança disso no português moderno

180
na seqüência dos pronomes “o, a”, desta maneira, as formas “lho, lha” podem tanto representar
lhe+o, lhe+a quanto lhes+o, lhes+a (COUTINHO, p.280).
Na língua Friulana (Friuli, de Forum Juli, ou cidade de Júlio César) falada na região
norte-oriental da Itália20, o pronome pessoal tem dupla forma, afirmativa e interrogativa e essa
última torna-se enclítica do verbo. Temos aqui um exemplo na flexão do verbo “Sei” [Ser] no
presente do indicativo.

Alguns pronomes pessoais em Friulano

Forma afirmativa Forma Interrogativa


Jò ‘o Soi ................................................Sojo?
Tu tu sês ................................................Sestu?
Lui ol é (je ‘e jé) ísal ....................................I? (I se?)
No ‘o sin ................................................Sino?
Vo ó seis ................................................Seiso?
Lôr ‘e son ...............................................Sono?

O romeno mantém os mesmos casos do latim vulgar nas formsa dos pronomes pessoais:

Quadro geral dos pronomes pessoais em romeno

a) Nominativo
Eo > eu
Tu > tu
Illu (acus.) > el fem. Illae > ele (nom.)

b) Casos com função de complemento : os pronomes pessoais são, no romeno, classificados


em duas formas de função completiva, a forma acentuada e a não-acentuada., nas 1a., 2a. e 3a.
pessoas do singular (reflexivas);

20
Uma faixa do Friuli oriental foi anexada pela Iuguslávia depois da 2a. Guerra mundial. Os primeiros documentos
em Friulano remontam ao século XII. Ver: MAGNANI, Sérgio. O Friulano pp 46-47 in: “Anais do 2o. Encontro de
estudos Românicos. Dep. De Letras UFMG, 1995.

181
Posição Tônica Posição átona
Dat. Acus. Dat. Acus.

1a. Mie mine mi ma


2a. tie tine ti te
3a. sie sine si se

E 2a. pessoas do plural:

Formas Tônicas Formas átonas


1o. Nouã ne, ni
2o. Vouã vâ, vi

A 3a. pessoa e as formas tônicas no acusativo:

Masc Femin.
sing. Illu > el illa > ea
pl. illi > ei illae > ele

Formas tônicas no dativo:

Masc. Femin.
sing. Illui > lui illaei >ei
pl. (masc. e fem.) illorem > lor

Formas átonas no dativo:

Masc. e fem. sing.: illi > îi, i

182
Masc. e fem. pl.: illae > le

No provençal21

1a. pessoa

sing. ieu, eu (as formas io, yo são raras) pl. nos

me, mi (mei, muito rara) mos

2a. pessoa

sing. tu pl. vos


te vos

3a. pessoa
a) forma acentuada
masc.
sing. el, elh (a forma il é mais rara)
lui, el, elh
pl. il, ilh (elh, mais rara)
els, elhs, lor

Observa-se no provençal também o emprego de formas apoiadas. Assim, “nos” apoiado na


palavra precedente pode perder o “o” e se reduzir a “ns”; também “vos” pode perder o “o”
reduzindo-se a “us”. Em resumo;

ieu vos: “ie. us”, “ ie. s”; (o ponto alto simboliza o apoio)
Non nos: “no. ns;

21
ANGLADE, Joseph. Grammaire du l’Ancien Provençal” pp. 245-248 Ed. Klincksieck. Paris, 1921.

183
Non vos: “nóus, nó.us (monosilábico)
Si nos: “Si. ns; que nos: que .ns;
Si vos: “Sius, si. us (monosilábico); que vos: que. Us

Veja alguns Exemplos:


So qui. us dic - Isto que você diz.
So qu’le.us – (ou qu’ ie. s) dic – Isto que eu lhe disse.
No. ns ve – Ele não nos vê.
Si. ns faitz clamor – Se nos faz um pedido.

b) forma acentuada

sing. ela ilh (o que reporta à forma li empregada em função de artigo feminino)
liei, lieis; lei, leis; ela ( com ditongação)

pl. elas
elas; lor.

Reflexivo: Observe que a forma do singular não se distingue da plural. O português arcaico
manteve essa mesma característica até os tempos de Camões onde é possível encontrar pronomes
como “lhe” empregado em sentido plural.

(Masc. e fem.)
sing. se, si (sei, raro)
pl. se, si

Formas átonas: estas formas, afirma Anglade, são empregadas no caso obliquo. Os casos-sujeitos
não se diferem das formas acentuadas deles.

Masc.
sing. (dat.) li ; forma apoiada .L, .lh, .ilh.

184
(Acus.) lo; forma apoiada .L.

pl. (dat.) lor; forma apoiada .Ls.

Fem.
sing. (Dat) li, f. apoiada .lh, .ll. Etc.
. (Ac) la

pl (Dat.) lor ( a forma lur é rara)


(Ac.) lor

Os pronomes pessoais no italiano:

1ª pess. sing. io (Nom.); me (Acus.); a me (Dat.); di me (Gen.)

2ª pess. sing. tu (Nom.); te (Acus.); a te (Dat.); di te (Gen.)

1ª pess. pl. noi (Nom.);noi (Acus.); a noi (Dat.); di noi (Gen.)

2ª pess. pl voi (Nom.); voi (Acus.); a voi (Dat.); di voi (Gen.)

* As formas me, te, que são tanto do caso acusativo como do ablativo no latim clássico
passam a ser a forma casual (praepositionalis) preposicionada. O mesmo vale para o francês, o
provençal, o romeno etc. como vimos acima. E as formas átonas são: mi, ti.

O “io”do italiano possue a forma reduzida “ i´ ” permitida, contudo, apenas na poesia e


não na prosa. (Meyer-Lübke e D´ovício, pg. 167)

A 3ª pessoa masculina no italiano advém de ille e ipse. Assim;


a) ille (Nom.) > egli (lui) “egli” é a prolongação da forma antervocálica illi cujo
emprego se extendeu à posição anteconsonântica(Lausberg, pg.167) ; (Acus.) lui; (Dat.) a lui;

185
(Gen.) di lui. A forma pl. églino < illi tem a forma antiga: illi e esta terminação “no” é
influência da terceira pessoa do plural dos verbos; (Dat.) loro; (Acus.) loro; (Gen.) di loro.
b) ipse (Nom.) torna-se esso; ipsu (Acus.) esso; ipsúi (Dat.) ad esso; ipsúius (Gen.) di
esso. A forma pl. italiana essi (Nom.) provém de ipsi do latim vulgar; essi (Acus.) de ipsos; ad
essi (Dat.) de ipsoru; e, por fim, di essi (Gen.) provém de ipsoru. (Lausberg. pp. 165-166)

O feminino;
Lat. V. It.
(nom.) illa > ella (lei)
(Acus.) illa > lei
(Dat.) illaei > a lei
(Gen.) illaeius > di lei

Pronome Reflexivo:

No que diz respeito ao pronome reflexivo, as mesmas características do latim foram


mantidas nas línguas românicas. Esse pronome, no latim, podia adquirir o valor de pronome
pessoal da 3ª pessoa em estilo indireto (oratio obliqua).
Nas línguas românicas, acrescenta-se uma função de índice da diótesis reflexiva. A forma
pronominal no caso do reflexivo dinâmico perde aquela característica fundamental do pronome
pessoal de substituir o nome (cf. Rom. El se gêndesti).
A diótesis médio-passiva do latim caiu em desuso, e isso favoreceu a aproximação dos
pronomes reflexivos aos pessoais. Assim os pronomes pessoais de 1ª, 2ª, 4ª e 5ª pessoas
desenvolveram um valor reflexivo.
Temos, portanto, o dativo do pronome pessoal (le, lês) no espanhol que tem a variante
“se” quando um pronome pessoal no acusativo o segue. Ex.: Se lo prometi por le io prometi
(Iordan, pg. 296).
Segundo Iordan o que ocorreu foi uma dissimilação do segundo palatal pela ação dos
pronomes de 3ª pessoa com s- em zelo > selo, conforme segue: illi + illu > *lliello >
*zello > zelo > selo.

186
3. CONCLUSÃO

Vimos que os pronomes pessoais tiveram um percurso bem definido em seu


desenvolvimento. Isso mostra que nas línguas românicas se torna crucial exercer uma avaliação
dos seus constituintes lingüísticos sob o ponto de vista diacrônico e comparativo.
Os pronomes pessoais chegam às línguas Românicas derivados sobretudo do latim vulgar.
Com a função de serem substitutos do nome, os pronomes pessoais representam os verdadeiros
pronomes. (Grego: , lat. Pronomen).
Vimos que a herança pronominal do latim nas línguas românicas se transferiu sem
rompimentos muito abruptos. Aplica-se aqui as mesmas características fonéticas gerais que
explicam os diversos metaplasmos que se estabeleceram nas constituições das línguas dos povos
romanizados em particular onde cada um exprimiu sua “base comum”, o latim vulgar, a sua
maneira. Alguns dos traços gerais que distinguem o latim vulgar das línguas dele derivadas são a
perda do “-g” em “Ego”, Italiano – io, Francês – jo > je, Provençal – jo, Espanhol – yo e assim
por diante. Sonorização das surdas intervocálicas no ocidente e a sua conservação no oriente e
etc.
O uso dos nomes pessoais latinos, no nominativo, manifestavam ênfase. No exemplo que
se segue, a ênfase é dada para o dono da ação: Ego clamo(Sou eu quem grito). Quanto ao
genitivo, as línguas analíticas o exprimiram com o uso de preposições: Tui - “de ti”; Vestrum –
“de vós” etc.
Os pronomes pessoais estão intimamente ligados à oralidade e, portanto, são basicamente
de 1ª e 2ª pessoas, pois, são essas pessoas gramaticais que constituem o eixo do diálogo. A 3ª
pessoa é de sentido reflexivo e não tem no latim um pronome específico. O pronome ille, de
valor espacial, para referência ausente do discurso em questão resultou em expressão da 3ª
pessoa na maior parte das línguas românicas.

5. Auto-Avaliação final (exposição das dificuldades)

Minha deficiência de formação em filologia é patente, no entanto, a bibliografia indicada


e se mostrou insuficiente para satisfazer a grande curiosidade que nos suscitou a pesquisa, por

187
exemplo, na explicação comparativa do por quê as diversas línguas românicas optaram por uma
específica mudança fonética e sua correspondente demonstração (assimilação, dissimilação,
síncope, eferese, apócope etc...). Eis a razão da falta de comentário detalhado do
desenvolvimento diacrônico de alguns dos pronomes. É sabido que são mudanças naturais e
fazem parte do aparelho fonador. Uma demonstração das razões, ainda que talvez não fossem
completas, dadas as dificuldades com a comprovação textual dessas modificações, tornaria o
estudo ainda mais completo.
O tratamento do Latim Vulgar como um item em separado das línguas românicas
dificultou nossa pesquisa que tendeu a ficar extensa, forçando-nos sobretudo a repetir
informações que eventualmente não tenham sido claras numa primeira leitura. Encontramos
dificuldade também em fazer um estudo sistemático dentro da bibliografia em função de cada
informação específica que procurávamos estar dispersa. Em geral, isto se faz de modo
condensado. Se talvez, por exemplo, houvesse alguma tabela da evolução diacrônica dos
pronomes seria melhor para situá-los em seu desenvolvimento e, quiçá compreendê-los como um
todo.

5. Bibliografia

ALI, Said M. “Gramática Histórica da Língua Portuguesa” in: Biblioteca Brasileira de


Filologia Ed. Melhoramentos Rio de Janeiro 1927.
BOURCIEZ, Édouard “Éléments de Linguistique Romane” Pg. 93 4ª. Ed Klincksieck Paris 1946.
COUTINHO, Ismael de lima “Gramática Histórica” In: Biblioteca Brasileira de Filologia no. 4,
pág. 278, 4a.Ed Livraria Acadêmica Rj. 1958.
IORDAN, Iorgu : “Manual de lingüística Románica” pg. 279 e ss. Editorial Gredos Madrid 1972.
MEYER-LÜBKE, W., e D´OVÍDIO, F. “Grammatica Storica della Língua e Dei Dialetti
Italiani” Ed. Della Real Casa, Milano 1919.
MURACHCO, H. “Língua Grega” pp. 163-165 vol.I Ed. Vozes/Discurso, São Paulo 2001.
RIBEIRO, Ernesto Carneiro “Estudos Gramaticais e Filológicos” in: Obras completas Vol. 3 Ed.
Aguiar e Sousa ltda. Bahia 1957.
RÓNAI, Paulo “Não Perca o Seu Latim” Ed. Nova Fronteira 1980.

188
WILLIAMS, Edwin B. “Do Latim ao Português” trad. Antônio Houaiss in: Col. de Filologia III
Ministério da Educação e Cultura, Instit. Nac. do Livro 1961.

189
MULIERE CIVITA (De Emancipatione)
Para Alessandra Melo

(Texto de 08/03/2002)

É que a duração das coisas não pode ser determinada pela sua essência, visto que
a essência das coisas não envolve nenhum tempo certo e determinado de existência; mas uma coisa qualquer,
quer ela seja mais perfeita quer menos, poderá perseverar sempre na existência com a mesma força
por que começou a existir, de tal sorte que, neste ponto, todas as coisas são iguais.”

ESPINOSA (Ética -IV in:COL. Os Pensadores pg. 235 trad.Antônio Simões ed. Abril Cultural SP 1973)

“Quem se cala, consente”


(Provérbio Popular)

Emancipação tem pelo menos dois sentidos, a respeito dos quais vale a pena tratar ainda
que superficialmente. O primeiro sentido, o mais relevante, remete ao instituto jurídico pelo qual,
por exemplo, a criança ultrapassa sua minoridade e atinge o gozo e a responsabilidade dos
Direitos Civis no Direito Romano (Emancipatione) - para todos os comentários possíveis dentro
deste assunto, o único que nos é imediatamente insólito e incompreensível nos nosssos dias é a
necessidade de provas de que a mulher seja um ser civilmente capaz. Outro sentido, de não tão
menor relevo é a noção da emancipação como um efeito do desobrigar-se da imposição sexual
com a qual os seres humanos mutuamente se acorrentam.
Lutar pela libertação da mulher é também lutar pela liberdade do homem, pois, a
emancipação do homem depende da emancipação da mulher. Fala-se, na verdade, de
humanidade quando há valores e quando estes se posicionam centralmente como os valores
fundamentais da liberdade e igualdade. Estamos falando não da alforria deste ou daquele escravo,
mas sim, da abolição total da escravatura.
Para não nos limitarmos a refletir em tese, consideremos alguns dados. O índice de
analfabetismo entre as mulheres especialmente no terceiro mundo é ainda exorbitante se
comparado ao dos homens. 40% das mulheres dos países pobres são analfabetas a despeito de
representarem, por exemplo, no Brasil, 41% da população economicamente ativa.(Os homens
representam 59,33 %) [IBGE PNAD/98 – DIEESE]. Segundo o ramo de atividade, as posições
em que a mulher supera em número aos homens, são sobretudo na Área social de 18,1% contra
4,1% dos homens e também na área de perstação de serviços, sendo 29% de mulheres e 12,4%
de homens.
O crescimento de oportunidades para a mulher no setor terciário da economia (também
em desenvolvimento no Brasil) dá novo aspecto positivo ao panorama da evolução da condição
feminina. Por outro lado a imposição continua porque não bastaria que a mulher exercesse sua

190
profissão com eficiência.É lhe tambem imposto que sexualize sua profissão. Não é a toa que as
secretárias devem ser atraentes e que as vendedoras sejam mecânicas mulheres de plástico que
nasceram para sorrir.
Muito além de possuir vínculos empregatícios a conquista da emancipação da mulher é
sinônimo da conquista civil dos direitos e da liberdade do cidadão. É verdade que a nova mulher
do séc. xxi não precisa ser convencidada do carácter mítico das relações de poder que a oprime.
Contudo, tais relações de poder são de fato antigos fantasmas que ainda povoam a mente de
grande parte das pessoas. Uma vez subsumida a igualdade pela compreensão dos verdadeiros
contrastes e diferenças, as relações de poder entre os sexos se absolve da noção da dominação e
posse que são sempre a tirania mais ou menos consentida entre si. A relação de poder pela
dominação constitui antigo valor no qual se apoiava as sociedades (sobretudo os homens) para
evitar a insegurança advinda da liberdade. Por outro lado, esse mito ainda oprime. É comum
ouvir-se em todas as camadas sociais “ uma mulher não deve fazer isso..” “à uma mulher não
cabe aquilo...etc” Esses indícios de restrição social à mulher são indiicativos evidentes de que há
persistência no mito da submissão ao valor, à regra, à conduta ditos normais para uma mulher. A
extirpação do mito de que haja qualquer esfera de poder acima da liberdade individual cidadã da
mulher, eliminará toda noção explicita ou implicita da condição subalterna da mulher seja no
campo do fato cultural ou do direito civil.
Tornar-se independente, adquirir autonomia, conquistar o direito e um bem que é a
obenção da liberdade pela emancipação civil, constitui o primeiro ato da cidadania. O que é
interessante, este ato não deveria ser entendido como um esforço, ele não é a luta. Digo que para
atingir a cidadania basta ter 18 anos. Desobrigar-se do pátrio poder é livrar-se do embaraço do
comedimento infantil; é desprender-se do comprometimento do outro que lhe é responsável, em
função de assumir consigo e com o outro, que de agora em diante é lhe um igual, a
responsabilidade dos seus próprios atos conquistando assim a emancipação natural e civil, a
emancipação simultânea de fato e de direito.

191
(um pequeno trecho de TRABALHO ESTRANHADO E PROPRIEDADE PRIVADA
Manuscritos Econômicos-Filosóficos – K. Marx)

(exposição aos inteligentes alunos de primeiro ano do Prof. Ricardo Terra - Texto provavelmente de 2002)

- Os Manuscritos foram escritos em Paris em 1844 e permaneceram inéditos até a primeira


publicação Soviética de 1932.

- O livro foi dividido em três partes e o item a respeito do “trabalho estranhado e propriedade
privada” encontra-se no final da primeira parte.

Dificuldades e modo de exposição do texto

- No texto do trabalho estranhado Marx faz no final ou no começo de cada argumento a


reconstituição ou um pequeno resumo do que foi dito e faz uma referência ao que vai ser
analisado. Assim, começa recobrando que nos capítulos anteriores, tal como agora, ele partiu dos
pressupostos da economia nacional para concluir que o trabalhador baixa à condição de
mercadoria.

- Quando Marx fala da economia nacional ele está criticando a visão clássica de economia de sua
época e ele diz que esta, a economia nacional, parte da propriedade privada como de um fato
dado e acabado. Dito de outra forma a economia nacional não problematiza a propriedade privada
e nem sequer a define.

- Segundo Marx, o processo material da propriedade privada passa por fórmulas gerais e abstratas
que, para a economia nacional, passam a valer como leis. (seria a naturalização deste processo)

- Marx se utiliza de boa parte deste capítulo para criticar e suprimir esse engano, corroborando com
a análise feita nos capítulos anteriores que mostrou não haver diferença entre o capitalista e o
rentista fundiário, entre o trabalhador em manufatura e o agricultor e, que toda sociedade tem de
decompor-se nas duas classes as dos proprietários e a dos trabalhadores sem propriedade.

- Marx parte e insiste na importância de se partir de um fato nacional-econômico presente para a


teorização econômica. Ao contrário, o economista nacional, quando quer esclarecer algo se
desloca a um estado primitivo imaginário (aqui Marx faz referência a Adam Smith) “Um tal

192
estado primitivo nada explica, diz Marx, ele simplesmente empurra a questão para uma região
nebulosa e cinzenta”.

- Essa análise do presente, para Marx pode ser esclarecida por meio da análise da realidade do
trabalhador. E é esta realidade que mostrará as contradições entre o capital e o trabalho, entre a
produção e a propriedade privada.

- Então, qual é a realidade do trabalhador? Marx afirma de início (pg.80) “o trabalhador se torna
tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e
extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias
cria.” Eis aqui a equação marxiana que aponta a desvalorização do homem trabalhador como
fruto direto da valorização do mundo das coisas produzidas.

- Dentro da atividade capitalista o trabalho humano é igualado a qualquer outro elemento da


produção de mercadorias. O trabalhador se confunde nas coisas que produz, tornando ele mesmo
um elemento desta produção, tornando ele mesmo uma mercadoria.

- O trabalho é a mediação entre homem e natureza, é a partir do trabalho que o homem se efetiva,
pois da interação entre homem e natureza deriva todo o processo de formação humana.

- Por outro lado, a produção capitalista, em sua apropriação do trabalho alheio, cria a desefetivação
do trabalhador. Assim, o produto do seu trabalho aparece a ele como um ser estranho, como um
poder independente do produtor.

- Chegamos aqui à noção do trabalho estranhado. Não vamos entrar em minúcias filológicas, talvez
o professor possa acrescentar algo nesse sentido, mas vale destacar que se faz, em geral, uma
distinção entre os termos Estranhamento (Entfremdung) e Alienação (Entäusserung) que, segundo
a própria nota de tradução na pág. 15 “São termos que ocupam lugares distintos no sistema de
Marx”.

- O próprio tradutor confessa que no texto de Marx nem sempre é tão evidente o vínculo entre
esses dois conceitos como sinônimos.(embora eles se integrem na visão marxiana da apropriação
do trabalho).

193
- Esboçando uma definição: o conceito de Alienação (Entäusserung) é um estado marcado pela
negatividade, situação esta que pode ser corrigida pela emancipação do trabalhador (a alienação
serve, nesse sentido, como categoria universal na crítica do sistema capitalista). Entäusserung
significa remeter para fora, extrusar, passar de um estado a outro qualitativamente distinto.
Significa igualmente, despojamento, realização de uma ação de transferência, carregando consigo,
(portanto o sentido da exteriorização que sintetiza o movimento de transposição de um estágio a
outro de esferas da existência). Seria o momento de objetivação humana do trabalho, por meio de
um produto resultante de sua criação.

- Já o termo Estranhamento (Entfremdung), ao contrário, é a objeção socioeconômica à realização


humana.

- Dentro da análise da presente situação do trabalhador, Marx faz considerações a respeito do


trabalho e de suas caractarísticas intrínsecas.

- O produto do trabalho, a efetivação dele é a sua objetivação. E no entanto “esta efetivação do


trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação do trabalhador; é a
objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento,
como alienação.”(pg. 80)

- O alheiamento se dá então no campo da apropriação do trabalho e de seu produto. Assim, a


objetivação do trabalho tanto aparece como perda do objeto, que o trabalhador é despojado dos
objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. O trabalhador
está alheio a tudo isso.

- Diz Marx (pg. 81) “Sim, o trabalho mesmo se torna um ojbeto, do qual o trabalhador só pode se
apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções.” A apropriação do
objeto tanto aparece como estranhamento (Entfremdung) que, quanto mais objetos o trabalhador
produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital.

- Dito em outras palavras, a gente pode resumir tudo isso na fórmula marxiana seguinte “A miséria
do trabalhador põe-se em relação inversa à potência e à grandeza de sua produção”. Enfim, o
trabalhador se perde no mundo dos objetos porque ele mesmo é objeto.

194
- O homem trabalha, se desgasta, torna o mundo objetivo mais poderoso na criação do trabalho,
mas inversamente, ao se desgastar no trabalho, ele se torna tanto mais pobre, e também seu
mundo interior, estranhando-se até de si mesmo.

- Este tipo de raciocínio encontra paralelo na religião, algo que já foi referido em aula e que Marx
destaca aqui nos Manuscritos. “Quanto mais o homem põe em Deus tanto menos ele retém em si
mesmo. O trabalhador encerra a sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a ele, mas
sim ao objeto. Por conseguinte, quão maior esta atividade, tanto mais sem objeto é o
trabalhador.” (pg. 81)

- Percebe-se a partir daqui a aplicação da mesma equação utilizada anteriormente, mas em relação
ao domínio da natureza, vimos que quanto mais produz o trabalhador menos ele tem, quanto mais
ele se objetiva no mundo do trabalho mais ele se desefetiva em sua condição humana, e assim por
diante. Aqui, na relação do trabalhador com a natureza, quanto mais ele se apropria do mundo da
natureza por meio de seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida porque esse objeto
não lhe pertence. Ou seja, o mundo externo, a natureza, que deveria suprir os meios de vida
enquanto objetos de trabalho e enquanto meio de subsistência do trabalhador, é um objeto que lhe
escapa e mais que isso um objeto do qual ele se torna servo.

- A economia nacional oculta esse estranhamento na essência do trabalho, segundo Marx, porque
não considera a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção e esta é, em suma,
a essência do trabalho, a relação do trabalhador com a produção. Pois, a relação do abastado com
os objetos da produção e com a produção mesma é uma conseqüência desta primeira relação.

- Marx vai ainda mais além, examinando o estranhamento não só na relação entre o trabalho e
aprodução, mas também no próprio ato produtivo. A própria atividade produtiva deve ser
entendida como a exteriorização (entäusserung) do trabalho e dizer que o trabalho é externo ao
trabalhador é dizer que este não pertence a seu ser, o trabalhador não se afirma em seu trabalho,
ao contrário, nega-se nele. Justo pois este trabalho não lhe pertence, mas a um outro.

- A citação de Marx é esclarecedora: “O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro


lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si [quando] no trabalho. Está em casa
quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto
volutário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é por isso, a satisfação de uma
carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza
(Fremdheit) evidencia-se aqui [de forma] tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra
qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste” (pg.83).

195
- Enfim, conclui-se daí que o trabalhador só se sente como um ser livre e ativo, em suas funções
animais de comer, beber, procriar etc. Porque são estas as funções que seu trabalho lhe permite;
estas são funções humanas também, mas não enquanto finalidades últimas e exclusivas, caso
contrário, o trabalhador se afirmaria apenas enquanto animal.

- A partir daqui Marx traça considerações a respeito da liberdade e da generalidade humanas. E de


como estas influem no conceito de estranhamento.

196
VERIFICAÇÃO HISTÓRICA DO PARALELISMO ÉTICO-FÍSICO NO ATOMISMO ANTIGO

(Texto de 2002)

'demócrito

'

(Sexto Empírico, “Contra os Matemáticos” VII, 137; DK 68 B 6)

1. INTRODUÇÃO

A procura pela explicação a respeito da causa material do fenômeno de ser, no


atomismo antigo, tem como ponto de partida a indiferença ontológica (em
qualidade) entre o Ser e o Não-Ser (o pleno e o não-denso). Essa causa material,
nas próprias palavras de Aristóteles, consiste em Não-Ser (que não existe mais que
o Ser) e em Ser (que não é mais real que o Não-Ser). “
           ”. Os dois juntos (sc. os átomos e o vazio -
) são as [“causas materiais das coisas existentes”] (Metaf.
A 4, 985 b 4). A preocupação pela base material no atomismo resultou na
demarcação do campo do Ser. Grosso modo, encerrou-se o Ser à redução na qual
também a atividade prática e a esfera dos valores estariam submetidas à
sobredeterminação dos átomos e do vazio.

O   , ou a compreensão racional do mundo, a compreensão da lei natural,


nestes termos, subordinaria o desejo  e a vontade  aos fundamentos
últimos da realidade, sustentada pelos átomos e pelo vazio. Assim deveria ser, ao

197
menos, se tomássemos em sentido estrito todas as conseqüências teóricas trazidas
pelo atomismo. Esta visão delimitativa dos constituintes da realidade (natureza) em
termos de átomos e vazio determinaria o comportamento moral conduzindo a
vontade a ações corretas prescritas pelo dever.22[1]

Nosso estudo tem por objeto, portanto, a verificação histórica das seguintes
questões: Como seria possível a prescrição de uma conduta moral e de uma ação
voltada para o dever ser no atomismo, uma vez que não há nenhum agente externo
aos átomos e ao vazio que definisse este comportamento? Ainda que fosse
possível esta prescrição, a ética de Demócrito adviria ou, ao menos, levaria em
consideração a física de acepção atomista? Quais seriam as relações ou o
“paralelismo”, entre as noções éticas e físicas no atomismo antigo?

Tomamos a expressão “ética atomista” aqui apenas em sentido figurado. Ao


falarmos em relação ético/física, referimo-nos tão somente às conseqüências ou às
aplicações das noções cosmológicas no plano dos valores. Para isto, temos que
partir de certos pressupostos.23[2] Trata-se de uma redução do plano físico à esfera
dos valores?(1o. pressuposto) Sim, pois o rigor da cosmologia atomista imporia a
todo mundo físico uma regulação mecanicamente estabelecida.24[3] Tratar-se-ia

22[1] É preciso ser crítico em relação a Demócrito. A tentação na qual caiu Mondolfo (“Moralistas Griegos”, pg. 49,
1936) ao interpretar na moral atomista e na análise do conceito do dever uma antecipação do imperativo categórico é
atraente, mas inócua. Com a análise da autonomia do sujeito, em sentido kantiano, comparado ao destaque da
subjetividade na ética atomista, abre-se uma fenda muito grande, separando profundamente a moralidade moderna
do rústico mecanicismo de Demócrito. Cf. Alfieri “Atomos Idea” pg. 198. Florença 1953.
23[2] Estes pressupostos são apenas delimitações que utilizamos com o intuito de facilitar o desenvolvimento da
pesquisa e não os entendemos como conjecturas teóricas passíveis de serem extraídas facilmente da doutrina
atomista em si mesma.
24[3]
Para Demócrito, aparentemente, não se colocou como problema a inserção do homem dentro de seu mundo
mecânico. Obviamente, o problema da subjetividade ( já levada em conta neste período final do naturalismo Pré-
Socrático – quanto a isso ver: R. Mondolfo, “La Comprensión del Sujeito Humano em La Cultura Antigua”, Pág. 97
e ss Ed. Imán, Buenos Aires 1955) deverá ser analisado na presente pesquisa, por parecer apenas estar justaposto ao
modelo teórico mecanicista de Demócrito. Na concepção atomista, sem romper as barreiras da “lei natural”, o
homem está encerrado nos limites impostos pela natureza. (Ver análise da diferença do conceito de natureza em
Demócrito e Epicuro: Langerbeck,   Studien zu Demokrits Ethik und Erkenntnislehre (in: Neue
Philology Untersuchungen. 10, 1935).

198
de uma ética sistemática, esta de Demócrito? (2o.pressuposto) Não. Por que?
Ainda que nos falte dados concludentes, considerando apenas os fragmentos que
chegaram até nós, seria isto sim, como diz Kirk, por outras razões, “um azar
irritante”25[4] caso os atomistas tivessem escrito uma ética minimamente
sistemática que não nos tenha sobrevivido e que, além disso, dela não se tivesse
qualquer notícia – Platão não teve sequer a decência de citá-lo em quaisquer de
seus livros, tão pouco Aristóteles a identificou. Reforçamos especialmente à
conhecida preocupação histórica de Aristóteles, que jamais deixaria de levar tal
“Ética” em consideração, se ela realmente “existisse”, nos quadros da compreensão
do mestre de Estagira. Qual seria o alcance desta redução? (3o. pressuposto) Total
(universal, se quisermos). Haja vista também ao fato de que o homem,
componente não muito mais extraordinário que os outros seres da natureza, estaria,
na teoria de Demócrito, incluído no conjunto dos seres que sofreriam os efeitos das
leis naturais. 26[5]

Dentre as variadas interpretações das autoridades no pensamento de


Demócrito a respeito deste assunto, sintetiza-se duas grandes linhas: de um lado
temos, no final do séc. XIX, em princípio, Paul Natorp 27[6], para o qual
Demócrito via na ética um sistema em conexão com suas teorias físicas e que, em
sua visão, a moralidade prática atomista era mesmo baseada nessas teorias.
Enquanto que, de outro lado, incluindo-se comentadores mais recentes, de modo

25[4]
Kirk,G. S. & Raven, J. E., “The Presocratic Philosophers” – A Critical History with a Selection of Texts Pág.
406 Cambridge, London 1957.

26[5]
A carência de uma exposição sistemática a respeito da atividade prática, das ações e deveres morais nas linhas
supérstites de Demócrito, não nos obriga a deixar essa ética de lado. Ao contrário, pode-se considerar tal ética até
mesmo, como querem alguns críticos, em seu caráter proverbial e discursivo. Em outras palavras, a ética atomista é
digna de análise ainda que aqui, nos fragmentos éticos, encontremos detrimento do espírito racionalista tão
característico de Demócrito em seus fragmentos gerais. Posteriormente, com Socrates-Platão e Aristóteles,
conquista-se sistematicidade em ética e ela passa a ter um corpo organizado que, agora sim, define a conduta por
meio de critérios explícitos.
27[6]
Paul Natorp, “Die Ethika des Democritos” Marburg. 1893.

199
majoritário, estão inclinados a negar completamente a possibilidade de Demócrito
ter construído conscientemente um sistema ético - estes partem das observações de
Dyroff, também do final do séc. XIX.28[7] Dentre essas duas grandes linhas, no
mais das vezes, a historiografia tradicional confunde a questão de saber se
Demócrito tinha ou não uma teoria ética sistemática, com a questão de se sua teoria
ética era ou não baseada em sua física. A falta de dados referentes a uma possível
sistematização da teoria ética de Demócrito nos força a propor avaliar apenas a
questão das bases éticas do atomismo, ou especificamente, as supostamente
demonstráveis relações existentes entre a ética e a física.

Não trataremos, pois, de nos posicionar diante das visões históricas deste
paralelismo. Senão, somente nos ocuparmos desta relação ético/física e reportar,
por meio dos divergentes caminhos da tradição indireta dos comentadores, a
discussão doutrinária relevante bem como ao plano exequível de conjecturas sobre
o alcance da “ética” no atomismo. O historiador da filosofia que trata deste
problema tem diante de si uma gama imensa de opiniões inconclusas que o força a
abdicar, nas grandes linhas, da posição de uma hermenêutica definitiva. Nas
pequenas linhas, contudo, cabe ao historiador referir-se às tendências
hermenêuticas de maior relevo, as quais são frutos de pesquisas mais recentes.
Trata-se, portanto, de conduzir uma verificação histórica dos pontos onde seja
possível uma vinculação (paralelismo) ético/físico e dos pontos onde isto não seja
possível.

2. VERIFICAÇÃO HISTÓRICA DO PROBLEMA

“

28[7]
Dyroff “Demokritstudien”, pp. 127 e ss., Leipzig : Dietriech 1899 .

200
”
Sexto Empírico, Contra os Matemáticos,VII, 136; DK 68 B 9)

As tentativas históricas de aproximações entre as concepções éticas à física de


Demócrito - segundo a análise majoritária dos comentadores - não foram bem
sucedidas. O. Gilbert, em 1911, já havia proposto a existência de paralelismo
ético/físico no atomismo, segundo Guthrie, também sem muito sucesso.29[8] É
preciso destacar, contudo, os esforços de G. Vlastos, seguido de Von Fritz e
Cappeletti 30[9], no sentido de reforçar a importância ou, ao menos, ressaltar a
possibilidade de interpretação dos fragmentos éticos de Demócrito à luz de sua
teoria física.

Apoiado nas conclusões de Natorp, embora mais timidamente,


Cappelletti32[10] considera possível falarmos de um paralelismo entre a filosofia
teórica e a prática em Demócrito. Isto ainda a despeito da esmagadora maioria dos
comentadores (entre eles, Bailey, Zeller, Kirk, Barnes, etc.) considerarem esse
vínculo difícil ou mesmo impossível.

“Em realidad, todos o casi todos los fragmentos éticos, pedagógicos y políticos
que Demócrito nos quedan, pueden ser interpretados a la luz de sus doctrinas
ontológicas y gnoseológicas fundamentales.”(Cappelletti, Op. Cit. Pg.62)

29[8]
Ver: Gilbert, “Greek Religionsphilosophie” Pág.457-478 Apud. Guthrie “Hist. of Greek Philos.” Pág. 496.
30[9]
Posteriormente, outras tentativas e propostas menos ousadas conquistaram terreno. Para uma ratificação do
paralelismo ético/físico entre comentadores recentes ver: Von Fritz, “Philosophie und Sprachlicher Ausdruck bei
Demokrit, Platon und Aristoteles, NY., 1938; Darmstadt 1966 Pág. 33 e ss.; Alfieri, “Atomos idea” Pág.196 e ss.; e,
especialmente, G. Vlastos “Ethics and Physics in Democritus” Philosophical Review 54 LIV, 6 (1945) Pág. 578-
592 e LV, 1 53-64 (1946) onde apresenta a oposição do naturalismo de Demócrito em relação aos Pré-Socráticos
anteriores, tais como Anaximandro, Heráclito, Parmênides e Empédocles.
32[10]
Cappelletti, Angel “Ensayos Sobre El Atomismo Antigo” Sociedad Venezolana de Ciencias Humanas.
Pág. 62, Caracas 1979.

201
Cappelletti acrescenta a importância de se falar mais de um paralelismo entre a
filosofia teórica e prática que falar numa derivação da ética a partir da física (tema
importante o qual destrincharemos nesta pesquisa), mas o historiador vai mais
longe quando chega a afirmar as bases racionais da ética Democriteana:

“ En el plano moral ( y también en el pedagógico y el político), Demócrito


aplica estas mismas ideas.[sc. necessidade de basear-se em num órgão mais puro
para obtenção do conhecimento - quer seja, a razão.]”( Idem, Op. Cit. Pg. 65)

A consideração que exalta a base racional da física de Demócrito, por si só,


como se verá, permitiu que alguns historiadores avaliassem sua ética do mesmo
modo. O que eles fizeram foi sustentar que a ética atomista possui a mesma base
que a física. Daí, posteriormente, foi possível relacionar as duas já que elas
partiriam da mesma base, a saber, a base racional. Essas considerações nos são
úteis por dois motivos. Em primeiro lugar, por afirmar que as relações ético/físicas
são demonstráveis e que elas se apresentam a Demócrito por meio de uma
aplicação racional. Em segundo, porque, dada a aceitação da base de sustentação
racional ético/física, pode-se também construir um caminho de referência de uma
em direção à outra, o que facilitaria também, no limite, a demonstração da
existência de uma passagem entre elas.

Vê-se que, realmente, é possível estabelecer uma interpretação ou uma explicação


atomista no campo da percepção, por exemplo, quanto a sua origem, sua
assimilação e seus desdobramentos, e remetê-la à redução atomista, ou seja,
remetê-la àquela situação última das coisas - o fato delas serem todas reduzidas aos
átomos e ao vazio.

“ ‘’ 

202
” 33[11]

De qualquer forma, essa dificuldade ainda persiste. O passo seguinte, isto é, a


leitura de que as observações éticas de Demócrito tenham também como ponto de
partida essa redução é algo difícil de provar. Contudo, mesmo entre o grupo
majoritário de comentadores que julgam difícil fazê-lo, (Bailey, Kirk, Zeller,
Dyroff e outros) concorda-se, em geral, que não é impossível traçar
compatibilidades entre as teses de física e as concepções dispostas nas sentenças
morais supérstites de Demócrito. Em função disso, na interpretação de Cappelletti
(Op. Cit. pg. 98), conserva-se em ética a mesma oposição que Demócrito
reconhece na física entre as qualidades sensíveis e átomos, entre conhecimento
obscuro e conhecimento autêntico (oposição esta que estaria no contraste entre
ação tola, obscura, dos insensatos e a ação sábia, autêntica, daqueles que tem
entendimento). Pois, assim, o quadro da “boa disposição” [ no homem
ético, partiria dos princípios da razão (base racional para ética) e não dos afluxos
da opinião e da apreensão sensível. Embora nos pareça uma visão um tanto
limitada, é sempre nessa direção que caminha toda interpretação que pretende
aproximar as noções éticas das questões físicas no atomismo.

Na verdade, o que constatamos é que há uma nuance muito sutil de aspectos


chaves que norteiam a interpretação deste paralelismo. Três posições basicamente
são observadas: em primeiro lugar, esta de Cappelleti acima referida que dá
atenção à oposição, também na esfera dos valores, entre as qualidades sensíveis e
33[11]
Frag. 09: “Por convenção existe o doce, [e] por convenção o amargo, por convenção
o quente, por convenção o frio, por convenção a cor; na realidade, porém, átomos e vazio.”
(Sexto Empírico, “Contra os Matemáticos”, VII, 135 ; DK 68 A 9) Como veremos mais adiante,
este fragmento 9, que descreve o conteúdo da “Teoria do Conhecimento” atomista, é também
exemplar na consideração desta redução. (Seguimos no presente texto, com pouquíssimas
discordâncias em alguns pontos que serão apontados, a tradução de Rubens R. Torres Filho para
os frags. de Demócrito: Os Pensadores V. 1, 2a. Ed. Abril Cultural, São Paulo 1978.)

203
os átomos, fazendo a ética atomista ter base racional. Em segundo, procurando
manter a relevância do paralelismo, temos a tese formulada por Gregory Vlastos,
que destaca a aplicação de termos da física em ética (Op. Cit. Pág. 582-4). E por
fim, em terceiro lugar, a posição de Von Fritz (Op. Cit. Pág. 33 e ss.) que,
analisando o fragmento DK 68 B, 191, conclui que; “o distúrbio e dispersão dos
átomos da alma são prejudiciais à paz de espírito” (Op. Cit. Pág. 35). Parece-nos
que, à exceção de uma hermenêutica conscientemente anacrônica, toda
interpretação favorável a este paralelismo do qual vimos tratando passará
necessariamente por uma dessas três posições.

Passada a vista sob as sentenças morais conservadas de Demócrito, um


espírito grego par excellence, encontramos, isso é verdade, a presença de “lições
do dever” de cunho fortemente racionalista. Percebe-se imediatamente que esses
fragmentos éticos não são, em princípio, contraditórios às suas concepções físicas e
cosmológicas.

O que resulta disso, a primeira vista, é a qualidade racionalista e o grau de


rigor teórico encontrados em suas máximas morais.34[12] Todavia, é tanto

34[12]
O alcance desse rigor, evidentemente, é sempre medido pelos comentadores em função ou bem do grau de
sistematização suposto nas teorias ético/físicas, ou bem em função do grau de inserção da ética de Demócrito no
conjunto do modo de ser da cultura grega geral. Havendo, todavia, consenso quanto a existência desse rigor,
pensamos, por hipótese, que as linhas de moral em Demócrito, embora não possam ser sistematizadas, ao menos não
precisam ser consideradas totalmente como um conjunto de meras prescrições dogmáticas ou de caráter puramente
aconselhativo tal como são as máximas de Hesíodo ou de Teógnis de Mégara. Tal questão conjectural foi levantada
por Bailey, por exemplo, (Cyril Bailey “The Greek Atomist & Epicurs” Pág. 186 e ss. Oxford, 1928.) e não nos
parece ser definitivamente justificada, principalmente em função de haver em alguns fragmentos éticos, ainda que
escassos, os traços da aquisição de uma autonomia moral e por isso, os traços de uma “elaboração conceitual”
sugerida nos nossos dias por meio da reconstrução teórica dos seus conceitos fundamentais. Outra indicação seria o
fato de Demócrito não definir explicitamente um fim moral a ser atingido; isso resolveria nosso problema de
conhecer qual teria sido sua “objetividade” em ética (coisa que não temos como saber), mas, por outro lado, dada a
gritante incoerência com os seus fragmentos morais (eis o problema a ser resolvido), essa “objetividade ética” teria

204
possível fazer uma interpretação das sentenças e estabelecer explicações a respeito
do que seja para Demócrito o bem, a justiça, a disposição psíquica dos homens
diante da natureza etc. levando em consideração essas concepções físicas; quanto
também é possível não levá-las, em absoluto, em consideração. Somente o exame
histórico detalhado dos diversos argumentos neste ponto podem dar composição e
organização ao problema. Mas, em sentido geral, suas exortações, representando
uma visão da vida bastante coerente e bem determindada35[13], garante
potencialmente para sua ética, uma aparência de sentido conciso que uma ética
mais sistemática poderia ter.36[14] Em outras palavras, a moral de Demócrito,
ainda que careça de sistematização, ela não é contraditória, portanto, seu sentido é
bastante claro. Demócrito via na Ética a possibilidade de manifestação do estado
de ânimo da “boa disposição” [ do sábio.

de se sustentar, em tese, naquela “objetividade” crucial da natureza. Além disso, não é certo que todas as prováveis
oito obras de Demócrito que tratam de questões éticas – e, especialmente, a “”[Da Tranquilidade
da Alma] (DK 68 B 2c e 3) - teriam tido, a princípio, um aspecto “sentencial”; essa impressão chegou até nós dado
ao interesse “moralizante” (para o sentido das dos doxógrafos e antologistas. É isso o que gostaríamos de
ressaltar. Demócrito não foi um moralista do ponto de vista estrito. A questão que não pode ser respondida
satisfatoriamente aqui é a seguinte: Esse “corpo ético”, mais ou menos teórico, existiu e se perdeu, ou essa aparente
coerência das máximas são na verdade apenas de uma “bela coincidência” e que sequer se passou pela consciência
de Demócrito estabelecer uma teorização em ética? Todas as respostas a essas questões até hoje, porém, não
ultrapassaram o domínio da conjectura.

35[13]
Esta é a posição de E. Zeller, historiador intensamente sóbrio, afirmou que a ética de Demócrito, embora não
fosse científica, revelava coerência. (Ver: “La Filosofía dei Greci” Zeller-Mondolfo Págs. 282-3, I, V. Florença
1961 - Edição Françesa “La Philosophie des Grecs Considérée dans son Développement Historique” T. 2 Pág. 279 e
ss. Hachette, Paris 1882)

36[14]
Consideramos, portanto, que Demócrito se posiciona a meio caminho entre as exposições aconselhativas de
moralidade dos sábios da grécia e a fundamentação teórica em ética dos sofistas e socráticos. Verdadeiro logos de
itinerância e transição para a composição e complexidade moral. Como diz Zeller (Op. Cit. Ed. Francesa Pág. 350)
é aqui, nos fragmentos éticos de Demócrito que encontramos “la preuve de ce développement progressif de la
réflexion morale...”.

205
A ética de Demócrito foi muitas vezes entendida como um conjunto(a-
crítico) de asserções de carácter exortativo que não tinham outra função senão a de
advertir os discípulos a assumirem uma postura sábia diante dos problemas
cotidianos. Isto não é exato, na verdade, mesmo considerando esse escasso grupo
de máximas morais que foram conservadas e levando em conta a reconstrução
conceitual dos assuntos éticos, compreende-se o intuito construtivo de Demócrito,
assim como uma primeira tentativa em direção à formulação de princípios
consistentes para orientação da prática moral.

Essa tentativa será sustentada tanto pela possibilidade da relação ético/física


quanto em razão da manifestação de atitude moderada do sábio; sendo que esse
comedimento[  (ver frags. DK 68 B 208, 211, 191, 233, 215, 216)
curiosamente, Demócrito também utiliza os seguintes termos;


Clem. de Alexanndria, Tapeçarias, II, 130; DK 68 B 4,
*eDK 68 A 167)  é a sua característica mais importante visto que ele
está relacionado ao meio de obtenção da DK 68 B 174, 191). O caráter geral da
ética de Demócrito nos indica que ele possuía uma ética individualista, em grande parte
utilitarista e sobretudo objetivista i. é., com “princípios” naturalistas.38[16]

É certo que não se pode definir uma única finalidade nas concepções da
moralidade prática, ou mesmo uma essência da atividade moral. A definição de um
único objetivo para a conduta moral esbarraria numa interdição teórica que é a tão
ressaltada propensão anti-finalista da física atomista (dificuldade que,

37[15]
Bailey Op. Cit. Pág. 192-193.
38[16]
Demócrito foi o primeiro pensador a estabelecer as bases de uma ética naturalista. (ver: G.Vlastos, “Ethics And
Phisics in Democritus - Studies in the Presocratic Philosophy”, London 1975.)

206
supostamente, deveria ter sido evidente ao racionalismo de Demócrito). Além
disso, observa-se outra dificuldade interpretativa, esta de carácter organizacional; o
estabelecimento de uma “unidade” na ética atomista, por valiosa, contribuiria
apenas para se somar à quantidade esplêndida de conjecturas, muitas vezes
desconexas.

De qualquer maneira, no que se refere à permanência de indícios para


obtenção de algumas poucas hipóteses neste tema, o campo da conjectura ganha
forma e status que compreende a esfera do possível. É desse modo que,
paradoxalmente, o comentário geral em torno dos fragmentos éticos de Demócrito
abre espaço para interpretações favoráveis a associação da ética com a física
mesmo entre os que não crêem absolutamente na existência dela. 39[17]

O fragmento 69 das sentenças de Democrates40[18]:

“    ”41[19],


é também tomado por alguns comentadores como ponto de partida para esta
interpretação que estabelece o paralelo ético/físico. Vê-se aqui uma boa amostra do
universalismo do conceito aplicado a ética. O “Verdadeiro”, do qual fala
39[17]
"Os fragmentos éticos exprimem, de uma forma gráfica e gnômica altamente desenvolvida, os sentimentos
helênicos de comedimento, senso comum e sensatez. Não são introduzidas sanções de tipo irracional para o
comportamento, nem uma justiça ou uma natureza que se não pudessem explicar pela interação de átomos e vazio."
(Kirk, “The Presocratic Philosophers” pg.425.)
40[18]
Partindo das conclusões de Diels (ver: “Die Fragmente der Vorsokratiker, pp. 153-4 ) os “Denksprüche des
Demokrates”, considerados como espúrios por alguns comentadores, são, na verdade, fragmentos autênticos
registrados como sendo (supostamente) de um tal Demócrates de Afidna, mas que se trata de uma corruptela para o
nome Demócrito. Essas sentenças DK 68 B 35 a 115 são hoje, portanto, concensualmente aceitas pelos
comentadores como originais de Demócrito. Para críticas quanto a autenticidade de alguns fragmentos morais de
Demócrito ver: E. Rohde, “Klein Schriften” e “Psique” Pág. 428 e ss. V.2 Ed Labor Barcelona 1973; K. Freeman,
“The Presocratic Philosophy” Ancilla to the Pre-Socratic Philosophers - A Complete Translation of the Fragments:
in Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker. Oxford: Basil Blackwell & Mott, Ltd., 1948 e A Companion to the
Presocratic Philosophers Oxford 1946; H. Laue, “De Democriti Fragmentis Ethicis”, Gött. Diss., 1921 e “Die
Ethik des Demokritos” ( in: Jahresber des Philologichen Vereins 49, 1923); W K C. Guthrie “A Hist. of Greek
Philos.”, Cambridge 1962.
41[19]
"Para todos os homens é o mesmo o bom e o verdadeiro; o prazer, todavia, é diferente para cada um"
(Demócrates, 34; DK 68 B 69 )

207
Demócrito neste fragmento, segundo Vlastos42[20], corresponde ao ser, e são
naturalmente, os átomos e o vazio (ambos compõe o que é real). O “bom”
[corresponde à “boa disposição” [, ao bem estar e à felicidade.
Enquanto que, num contraste rigoroso e numa oposição quase absoluta do ponto de
vista do que é para cada um (no nosso jargão, do que é “subjetivo”) e do que é para
todos, encontra-se o “prazer” [], e este corresponde apenas à aparência ou ao
afluxo subjetivo. Em resumo, inclui-se entre o que é para todos a noção do átomo e
do vazio; e o que é para cada um a noção do prazer.43[21]

Segundo esta interpretação, então, seria a “boa disposição” [ que


coordenaria a ação sabia. O garantiria a consciência de que, para além das
convenções do doce e do amargo, só há átomos e vazio, e estes seriam vistos,
portanto, não só como o fundamento epistemológico que dá racionalidade ao
sistema teórico do atomismo, mas seriam vistos como o próprio fundamento
consciente da vida moral. A “boa disposição” permitiria ao sujeito moral encontrar
o caminho da necessidade do dever e o da busca da satisfação pessoal. Nesta visão,
Gregory Vlastos chega mesmo a considerar a felicidade nos termos que seriam
propriamente atomísticos, afirmando que a felicidade seria resultado de uma certa
configuração dos átomos da alma,44[22] porém, isso não se pode demonstrar.

42[20]
Ver: "Ethics And Physics in Democritus"- Studies in the Presocratic Philosophy. pp. 388-389 London 1975
43[21]
Cf. Frags.166, 167. Em outras palavras, o prazer e o desprazer, o favorável e o desfavorável, são coisas
próprias de cada um; o que é próprio de todos são somente os átomos e o vazio. Ainda neste sentido, Demócrito diz
que “certas imagens [ se aproximam dos homens e que, destas, umas são benfazejas[ e outras
malfazejas[. Por isso desejava encontrar imagens favoráveis.” (DK 68 B 166)
44[22]
G. Vlastos, “Ethics And Physics in Democritus.”. pg.389 ss. Cf.Windelband. “La Filosofia de Los
Griegos”. Pg. 172 Mexico 1948.

208
Antes de voltarmos a análise do conceito de “átomos da alma” cabe
fazermos uma pequena digressão a um tema de não menor importância. Trata-se da
dificuldade da inclusão da noção da necessidade no mundo moral.

Tendo assumido, em sua aplicação universal, a supremacia da necessidade

[no mundo físico

Leucipo)


’  os atomistas excluem de uma só vez a


interpretação teológica do mundo e a concepção do acaso (como causa
eficiente. Essa noção deveria ter sido estendida, em sua universalidade, também ao
campo estrito do comportamento, o que resultaria no determinismo moral.

De fato, a eliminação do acaso em termos morais nos fragmentos éticos de


Demócrito, revela que ele deveria ter em mente a global influência da necessidade
física na esfera prática.

[



45[23]
“(Leucipo) diz no ‘Sobre o Espírito’, nada provém do acaso; tudo provém da razão e da necessidade”Aécio I,
25, 4 ; DK 67 B 2 Pág.81); atestam da mesma forma a universalidade do conceito em Demócrito as seguintes fontes:
“[Demócrito] remete todas as coisas a necessidade”
(Arist. De Generatione Animalium, V, 8 , 789); “[Demócrito] preferiu assumir que tudo ocorria por necessidade
antes da separação dos movimentos naturais dos átomos”(Cícero, De Fato, 10, 23)

209


As ações dos insensatos ( não incluídos como seres éticos, como se verá
mais adiante) desobedeceriam essa “lei natural” que prevê serem todas as coisas
pré-ordenadas. A inclusão da necessidade no plano moral limitaria a ação humana
ao domínio das leis que regem o mundo natural, e o insensato [  é
incapaz de perceber que não há cabimento no acaso; está impossibilitado de
contemplar o alcance da necessidade por não ter entendimento para isso.

[



Assim mesmo, o contraste existente entre a supressão da idéia do acaso no


mundo físico e os relatos superstites da eliminação do acaso entre os constituintes
dos acontecimentos na vida prática, retoma o obscurantismo que nos impede de
associar imediatamente a necessidade física com o dever ser moral. Sendo assim,
nos perguntamos, a aceitação do determinismo físico como tendo conscientes
implicações morais caracterizar-se-ia como um problema do tempo de Demócrito?

A aceitação de um único fragmento que seja ( no caso o frag. DK 68 B 191,


como veremos) na direção da suposição de existência de relação dos átomos com o
dever ser, deverá indicar qual o nível de consciência ético/físico de Demócrito e
estimulará a verificação e o comentário a respeito de outros fragmentos baseando-

46[24]
“Os homens plasmaram uma imagem da sorte como desculpa para sua falta de julgamento; pois, raramente a
sorte conflita com a inteligência, no mais das vezes, na vida o olhar penetrante e inteligente mostra o caminho
reto”( Dionísio, bispo de Alexandria, em Eusébio, “Preparação Evangélica” XIV, 27, 4, DK 68 B 119 Pág. 166-67).
47[25]
“Os insensatos são moldados pelos dons da sorte, os que têm entendimento para tais coisas, pelos da
sabedoria” (Estobeu , III, 4, 71; DK 68 B 197)

210
se no mesmo expediente, quer seja, a associação ético-física por meio da
associação átomos-alma. Diz o Fragmento 191;

[“

’

’



(...)”48[26]

A grande tentação na interpretação deste fragmento se inclina a considerar,


com um bom grau de coerência, que a mudança dos átomos da alma (por meio de
grandes comoções e extremos) produz interferência negativa na conduta. As ações
dos sábios são retas (ver frags. DK 68 B 2, 40, 58, 67, 197, 248), pois estão em ajuste ao
quadro da “boa disposição”; as ações dos insensatos (ver: frags. DK 68 B 197, 202, 76),
pelo contrário, não estão dispostas neste quadro, por isso, estes são acometidos de
má constituição (ver: frag. DK 68 B 223) [i.é, má constituição atômica, de acordo com
esta tradição - a despeito de não encontrarmos uma referência direta aos átomos
nesses fragmentos, trata-se de uma interpretação bastante aceitável.] (ver: Aécio: IV,
3, 5 ; DK 68 A 102 pg. 109).

48[26]
"Para os homens o bom ânimo vem a existir com a moderação de alegria e comedimento de vida. As coisas
que faltam e as que sobram costuma sofrer mudanças e produzir na alma grandes comoções. As almas que oscilam
entre pontos extremos nem são estáveis, nem animosas (...)" (Estobeu, III, 1, 210; DK 68 B 191).

211
Essa noção de mudança nos átomos da alma como base de sustentação de
determinada ação e ponto de partida para o agir, por lamentavelmente conjectural,
serve de modelo interpretativo para os desdobramentos da ação moral conduzidas
pelos átomos, aplicado também a outros pontos da ética. As interpretações que se
pretenderem mais sóbrias terão de limitar-se àquelas sentenças cujo desdobramento
moral esteja atrelado de algum modo ao conceito de alma determinado. Há,
realmente, alguns fragmentos supérstites de Demócrito em que se interpreta haver
uma referência longínqua da conduta como fruto da distribuição dos átomos (ver
frags. DK 68 B 191, 197, 57, 61). Mas somente daí, não podemos afirmar que o dever

ser e que a necessidade são guias, por assim dizer, absolutos da atividade
moral.50[27]

Ao basearmo-nos na noção de que a alma seja por si, um composto atômico,


como de fato se verifica nas definições da alma que consagram a doxografia

50[27]
O conjunto dos fragmentos morais supérstites de Demócrito apresentam diversos guias da
atividade moral, assim, a razão, o dever, a necessidade constituem-se como norteadores da conduta

( ver sobretudo frags. DK 68 B 31, 40, 76, 187, 216, para inteligência e razão; frags. DK 68 B 41, 191, 264,
para posições referentes ao dever (este último relaciona-se com a questão da necessidade em muitos
sentidos); frags. DK 68 B 278, 289, para (276) “”, (277) “


” - grifos nossos ), mas também é guia para o agir a consciência, pois ela impõe sanções
compensatórias aos tormentos e aflições humanas. Por exemplo, na invenção de “um tempo após o
fim”, como medo de punição depois da morte (ver sobretudo frags 297- Cf. Lucrécio. iii 978 ss.). Neste
Fragmento, a consciência [  , tal como ressaltou Jaegger, aparece pela primeira vez na
cultura grega, aplicada em sentido moral. (Jaegger, “Theology of The Early Greek Philosophers” nota 40
Cap. X pp. 181 e 249, Oxford Press, London 1964)

212
atomística, 51[28] encontramos particular coerência em supor que o caráter seja,
com efeito, moldado da mesma maneira, isto é, por alguma espécie de arranjo
atômico. Segundo Guthrie ( Op. Cit. Pág. 497) há, de fato, na linguagem de
Demócrito, algo que sugere isso. Por exemplo, o uso do termo em
contexto éticos e também no campo do conhecimento, facilitaria a interpretação
deste paralelismo. Guthrie propõe que esta questão se ajusta ao problema da
relação entre a disposição natural e a prática da instrução, e, em outras palavras,
nas relações entre cultura e natureza; e vai buscar no Fragmento DK 68 B 33
indicações nesse sentido:

[

 53[30] A citação grega é


esclarecedora e indicativa da visão possível do paralelismo ético/físico em uso
terminológico. Porquanto o termo (Cf. com o termo que
aparece no frag.

DK 68 B 197) que basicamente simboliza “a configuração atômica”, também possa

ser estendido à “configuração do caráter”, por meio da instrução [.

51[28]
Segundo o relato de Aristóteles “A alma constitui-se da átomos esféricos”(De Anima I, 2), ver também ( De
Anima 405 A 8-13) e ( Lucrécio III 370-373).
52[29]
também chamado é uma das diferenças intrínsecas dos átomos, que Aristóteles (Met. 985 b
4 ) determina como sendo a figura atômica. Anoção de formação nos é particularmente importante pois vem ao
encontro das noções que foram postas em causa, de que a composição, a formação e a caracterização geral do ser
está em conformidade com a composição, formação e caracterização dos átomos desse ser. (Os átomos também
diferem-se ainda entre si por Ordem [ e Posição [ ] ).
53[30]
“A Natureza[   e a instrução[] são algo semelhante[], pois a instrução
transforma[] o homem, mas, transformando-o, cria-lhe a natureza” Clemente de Alexandria,
Tapeçarias, IV, 151; DK 68 B33 - cf. Stobeu II 31, 66 e Idem II, 31,72 ; frags. DK 68 B 82 e 183).

213
Esta é uma interpretação obviamente conjectural, na medida em que não dá
explicação convincente de como se faz a passagem da física para a ética, ou de
como o carácter (não definido ainda atomisticamente) pode responder à
determinação dos átomos e do vazio. De qualquer forma, o modo da busca por
simples indícios, sempre tomou parte significativa na história da filosofia. Não é
diferente com a tradição dos comentários Pré-Socráticos. Esforços como o de
Gregory Vlastos continuamente se multiplicam.

O fragmento DK 68 B 197, (o qual já nos referimos)54[31] também apresenta


o termo [ como ponto de conexão entre a teoria moral e a teoria
física. Além disso, acrescenta Vlastos, o termo que corresponde a posição [ -
“turning”] que, sem dúvida nenhuma, é utilizado como “posição dos átomos”, tal
como nos certifica o testemunho de Aristóteles (Met. 985 b4; Phy. 203a 33 e De Caelo
275b 31) é aplicado, da mesma maneira, nas qualidades morais. Os fragmentos nos

quais se baseia Vlastos para estas conclusões são os frag. DK 68 B 57 e 61.55[32]


Todavia, sua argumentação é fortemente criticada por Guthrie56[33] por ser
meramente conjectural, sendo assim, o refuta por partes. Primeiramente, no frag.
61,

“      ”57[34] o


termo tropo  argumenta Guthrie, “tão familiar a todos no sentido do hábito ou

54[31]
“
” “Os insensatos são moldados pelos dons da sorte, os que têm entendimento para tais coisas, pelos da
sabedoria.” (Estobeu , III, 4, 71; DK 68 B 197)
55[32]
Ver Vlastos, Op. Cit. 1946, no. 10.
56[33]
Guthrie Op. Cit. Nota 3 Pág. 497
57[34]
“Aqueles cujo caráter é bem ordenado vivem na boa ordem”( Democrates, 26 ; DK68 B 61).

214
caráter” não deve ter sido aplicado em Demócrito em seu uso técnico de
Seria absurdo afirmar isto, acrescenta. No fragmento 57,

[“   

”] 58[35] Guthrie não apresenta qualquer correção, apenas diz que a
frase é   , Vlastos “também vê a última das três diferenças
atômicas a  refletida na frase do fragmento DK 68 B
223
[“...’

  ”]59[36]. Contudo, reitera Guthrie, esta é uma leitura


hipotética e incerta. Mas , pelo visto, a despeito de sua amarga contra-
argumentação quanto a possibilidade do paralelismo, Guthrie concorda que “a
evidência mais forte para (leia-se: “a aceitação da...”) teoria de Von Fritz e de
Vlastos” estaria no fragmento DK 68 B 191. Guthrie reconhece que neste fragmento,
onde “os prazeres moderados e a vida equilibrada são ditos serem necessários
para o contentamento em função de que o excesso e a ausência de prazer” [nas
palavras de Demócrito; “causam mudanças e produzem na alma grandes
comoções...” (sc. produzem grandes movimentos dos átomos da alma)], Demócrito
sustenta mesmo que a manutenção da vida equilibrada depende do equilíbrio do
movimento anímico. Ou seja, para o homem se integrar ao quadro da “boa
disposição” ( ele precisa evitar as grandes comoções, a grande produção

58[35]
“ A boa natureza dos animais é a força do corpo a dos homens, a excelência do carácter”(Estobeu IV, 29 18;
Democrates 23a; DK 68 B 57)
59[36]
“...ter tudo quanto precisa de pena e sofrimento e torna dolorosa a vida não é o corpo que deseja, mas a má
constituição do pensamento” – i. é, “má constituição” atômica? (DK 68 B 223).

215
de movimento, em outras palavras - quiséssemos tomar ao limite esta
interpretação - , ele precisaria evitar o desiquilíbrio atômico nos conglomerados
de átomos da alma.

Esta linguagem de Demócrito, que fala de uma “produção de movimento na


alma”, tal como afirma Von Fritz 60[37] pode ser apenas metafórica, de qualquer
forma, reflete uma referência evidente ao desempenho da conduta e da prática
moral de concepção atômica mecanicista.

Num último esforço, Reimar Müller 61[38] chega a falar de uma “fisiologia
da alma” em Demócrito como uma base fundante da influência moral do
indivíduo na qual a fala, o pensamento reto, exerce uma “ação direta sobre a
estrutura dos átomos da alma.” Müller também supõe o aperfeiçoamento moral
nestes termos. “amène des modifications dans la combinaison des atomes,
améliore la constituition de l’âme et entrâine une conduite morale
correspondante.” De qualquer forma, Müller segue também a hermenêutica
majoritária e diz que as lições morais de Demócrito tem uma função que se
restringe a uma “terapia da alma”, evidentemente sem qualquer fundamento
sistemático.

60[37]
Von Fritz Op. Cit. Pág. 35. Ver também “Grudprobleme der Geschichte der Antiken Wissenschaft” Pág. 91
Berlin-New York 1971 e Philosophie et Expression Linguistique chez Démocrite, Platon et Aristote New York-
Leipzig-Paris-Londres 1938. Destaca-se também referências da passagem da física à ética ( por estensão da
“simetria” matemática) no livro de Frank, (“Plato U. d. Sogen. Pythag.”, Pág.95 e nota na pág. 366 Apud Alfieri
Trad. Op. Cit. Pág. 223) mas essa análise apresenta uma explicação que, como acusa Alfieri (“Gli Atomisti-
Fragmenti e Testimonianze”, nota 566 pág. 223, Bari, 1936), “contudo, não persuade, por excesso de
sistematicidade.” (para essas referências cf. DK 68 B 61, 69, 102, 207, 233, 235)
61[38]
“Le Rapport entre la Philos. de la Nature et la Doctrine Morale chez Démocrite. Et Epicure (in:
“Democrito e L’Atomismo Antico – Atti del Convegno Internazionale. Pág. 342; Catania- 18-21 Aprile,
1979 Fac. Lett. e Filos. Univ. Catania 1980.

216
A consistência lógica do conceito de alma no atomismo é adquirida do rigor
conceitual deste mecanicismo que supõe ser o mundo anímico regido, por
conseqüência, pelo mundo das causas e dos efeitos. Além disso, não há espaço
para a interpretação de que “esses mundos” sejam distintos, ao contrário, trata-se,
de fato, do mesmo mundo. Não há, naturalmente distinções de valor entre os seres
da natureza, todos obedecem à suas leis, válidas a todo corpóreo.

Já na escola Jônica foi possível observar a referência ao corpóreo como uma


realidade completa. A este respeito, Kirk (Op. Cit. pg. 410) destaca que o corpóreo
atomista é “ completamente corpóreo e homogêneo, como a ‘esfera’ Eleática do
ser” – não contém vazio nem interstícios, portanto não se pode dividir. Para uma
leitura dos fragmentos de Demócrito que leve às últimas conseqüências a realidade
total do corpóreo, deve-se ter em mente aquela distinção dos átomos feita por
Leucipo. Eles não diferem materialmente entre si, mas sim formalmente (diferem
em    A posição a ordem e o entrelaçamento definem as diferenças
qualitativas dos objetos. Em resumo, deve-se ter em mente que as diferenças em
qualidade nos conglomerados de átomos são resultados das diferenças quantitativas
nas ligações. Cumpre ressaltar, pois, que na teoria da sensação atomista é possível
estabelecer com toda tranquilidade, uma linha direta sem interstícios, ou mesmo se
quisermos, um paralelismo imediato entre a concepção física e, por assim dizer, a
teoria do conhecimento atomista. Ou seja, a “teoria do conhecimento” da assim
chamada escola de Abdera, está toda ela baseada na visão dos átomos e do vazio.

“Leucipo, Demócrito e Epicuro dizem que a percepção e o pensamento


surgem quando entram imagens do exterior; nenhum deles ocorre a ninguém sem
o choque de uma imagem.”( Écio, iv, 8, 10)

217
“Eles atribuíram a vista a certas imagens, do mesmo formato que o objeto,
que estavam continuamente a correr dos objetos e a chocar com o olho. Esta era a
opinião da escola de Leucipo e Demócrito (..)” (Alexandre, De Sensu , 56, 12)

Esses passos nos mostram que no atomismo de Demócrito a percepção só é


possível porque os “átomos da coisa” (sua imagem) se desprendem dela e chocam-
se com o órgão da percepção. É nesse encontro, nesse choque entre os átomos da
coisa percebida com os sentidos, que se produziria a percepção para
Demócrito.63[39]

A alteração física produzida pelo arranjo dos átomos no vazio, dando


possibilidade ao movimento, determina a realidade da sensação e até mesmo do
pensamento. Não encontra dificuldades quem quiser expor a teoria atômica do
conhecimento como dependente do rearranjo dos átomos no vazio. A percepção só
é possível por haver um deslocamento de posição, ordem ou entrelaçamento dos
átomos no vazio infinito. O pensamento, grosso modo, é uma espécie de faculdade
de percepção que julga com critério e tem a qualidade de inferir a realidade da
“" (outro nome para “átomo”) e do vazio (É por isso que faz muito sentido
dizer que para Demócrito, só a é real).

63[39]
Aristóteles critica-o por reduzir as percepções ao tato (e aos constituintes visíveis, por conseqüência):
“Demócrito e a maioria dos filósofos da natureza que tratam da percepção, são culpados de um grande absurdo;
pois eles representam toda a percepção como sendo pelo tato.” (Ver: Aristóteles De Sensu 4, 442b, 29) Na realidade,
este trecho demonstra a resistência Aristotélica quanto a teoria democriteana da percepção como fruto da interação
das figuras atômicas. (W. D Ross “The Works of Aristotle” Oxford. 1955. )

218
A forma genuína do conhecimento é aquela que percebe que a realidade é
constituída por átomos e vazio. A opinião intelectual, diz Kirk (Op. Cit. pg. 424)
“penetra para além das características secundárias convencionais até a realidade
última.” Mesmo o pensamento, portanto, está sujeito ao campo da redução
atomista, pois, os movimentos mecânicos dos átomos (cuja evolução possui arranjo
e disposições variáveis) possibilita e otimiza, por meio dos choques com os
átomos-alma, a atividade do entendimento.

Essa formulação reforçaria, em sua conclusão, esta mesma linha


interpretativa a qual vimos nos referindo. Assim, o pensamento e, em primeiro
lugar, as sensações, são obtidos do resultado do rearranjamento dos átomos.
Vemos que na teoria atômica, esses campos do saber não são absolutamente
distintos. O que se verifica, todavia, numa observação de conjunto, é que os
campos da ética, teoria do conhecimento e da percepção etc. se interpenetram com
maior prioridade do ponto de vista dos alicerces da razão que com o emprego da
teoria atômica em si mesma. Também por isso, as dificuldades na busca pela
demonstração de que as bases éticas no atomismo são físicas se ampliam
sobremaneira.

3. OBJEÇÕES QUANTO A POSSIBILIDADE DO PARALELISMO

“Deveríamos a Demócrito muitos sacrifícios fúnebres,

219
simplesmente para reparar os erros do passado para com ele”

( F. Nietzsche, Anotações sobre Demócrito – Col. Os Pensadores

“Os Pré-Socráticos” Pág. 351 trad. Rubens.R.Torres Filho

2a Ed.Abril Cultural,1978)

Muitos dos comentadores que sustentam não ser possível interpretar a


existência de relação ético/física em Demócrito limitam-se a simplesmente negar
essa possibilidade. Isto ocorre, talvez, porque a maior dificuldade estaria mais em
demonstrar a ocorrência do paralelismo ético/físico do que demonstrar sua
impossibilidade.

Para compreendermos melhor as razões disso, cumpre fazermos algumas


observações históricas no que diz respeito a acolhida do pensamento, e a posterior
pesquisa em torno da “ética” do atomismo. Não é raro entre os comentadores, o
reconhecimento da insuficiência de dados para a aproximação ético/física no
pensamento de Demócrito. É necessário muita empresa e um esforço de
imaginação considerável organizar, relacionar e demonstrar a referência física nos
fragmentos morais. Em relação a isso Gomperz64[40], por exemplo, aciona uma
ironia quase maldosa.

“Le préjugé encore si répondu de nos jours que prétend établir une
connexion nécessaire entre le matérialisme scientifique et ce que l’on peut appeler

64[40]
Gomperz, “Les Penseur de la Grece”- Histoire de la Philosophie Antique I , Pág. 407 Payot, Paris 1928.

220
le matérialisme éthique (sic) est réfuté victorieuxment par l’image que s’est faite
l’antiquité de la persone et de la doctrine morale du Sage d’Abdère, et qui s’est
conservée intacte jusqu’a l’époque la plus récente.”

[ sc. imagem de que a doutrina de Demócrito “reflete os sentimentos mais puros,


e testemunho da mais alta concepção da vida humana”].(grifo nosso)

Sem dúvida, a busca por indícios de universalismo na ética atomista é um trabalho árduo,
no mais das vezes inútil. Para a linhagem majoritaria dos comentadores que lançam objeções
quanto a possibilidade de paralelismo ( Dyroff, Bailey, Kirk, Gomperz, Guthrie, etc.) a
dificuldade está justamente em definir o fundamento ético já que ele deveria depender dos
átomos e do vazio em sua definição.

Demócrito deve ser visto, por isso, como o primeiro elaborador (em grande
parte inconsciente) da psicologia materialista pelas implicações e conseqüências do
desenvolvimento da teoria dos átomos. Mas não deve ser apoiado sobre ele o total
encargo dessas implicações. Aparentemente, o alcance da consciencia ético/física
em Demócrito ficou reduzido a escassas referências sem muito sentido unitário.
Por conseguinte, a tentativa de associação ético/física encontrou apenas uma
resolução parcial do problema. Numa perspectiva histórica, não se responderá
negativamente a esta tentativa, senão para definir de um lado, que a escassez de
dados restringe qualquer conclusão mais precisa, e de outro, que somente uma
elaboração sistemática em ética poderia garantir a consciência das implicações
práticas da visão de mundo determinista.

O reconhecimento geral de que se está em terreno sinuoso força a alguns


comentadores a abandonar qualquer tentativa, inicialmente esperançosa, de

221
encontrar estes paralelos, e, sobretudo, encontrar um sistema ético em Demócrito.
Se alguém se dispor a isso procurará em vão.”65[41]

Bailey desautoriza, nestes termos, ( “loose conexion” Op. Cit. Pág. 214) as
intenções associativas que pretendiam encontrar esses paralelos e também as que
almejavam dar fundamento filosófico à ética. Para isto, baseia-se principalmente
no aspecto geral dos fragmentos morais supérstites 66[42], que, embora
surpreendam pela quantidade, não demonstram senão a aceitação de um padrão de
moralidade convencional da cultura grega, sem princípios muito consistentes.
“There is no effort to set the picture of the ‘cherful’ [man on a firm
philosophical system: he is content in a discursive manner to draw a portrait. (…)
the aphorism of Democritus leave one with the impression of a series of comments
of life made from no very deep conviction of its ultimate purpose, but rather with

65[41]
“Le fragments n’offrent aucun point d’appui à une interprétation atomist de L’éthique: on y trouve beaucoup
de sentences, d’une nature plus ou moin banale; on y trouve des remarques acerbes, mêmes spirituelles; on y trouve
le traces d’une position théorique, d’um hédonisme asse rude(sic). Mai quant à um système de morale, sans parler
d’um système de morale lié à l’atomisme, on l’y chercherait em vain”. (in:Col. “Philosophie Grecque”- Dir.
Monique Canto-Sperber, Pág. 69 Colaboradores J. Barnes, L. Brisson, J. Brunschwig, G. Vlastos Press Univ. de
France, Paris 1997.)
66[42]
Essas tentativas, é importante ressaltar, levaram sempre em conta, como afirma Kirk, que “as doutrinas éticas
certamente não são incompatíveis com a física e que conexões poderiam ter sido estabelecidas em extratos de
Demócrito que não chegaram até nós” (Kirk, Op. Cit. Pág.426). Há, na verdade, fortes razões para esta crença.
Questionamos acima se o problema das conseqüências da existência da necessidade no mundo físico era de fato um
proplema do tempo de Demócrito. Ora, sabe-se historicamente que Heráclito tinha consciência deste problema e que,
certamente, Demócrito estudou Heráclito. ( Ver: Zeller “La Philosophie des Grecs Considérée dans son
Développement Historique” T. 2 Hachette, Paris 1882; Cf. Cappelletti., Op. Cit. Pág. 27 e Barnes Op. Cit. Pág. 627
Cf. diretamente os Frags de Heráclito 80, 62a , etc...) Isto sem mesmo considerar as fontes que direta ou
indiretamente fizeram referência ao tema, por exemplo, Barnes destaca “Górgias o diz explicitamente em sua
‘Helena’ e este [tema] está implícito em muitos dos problemas que se discutiram no tempo de Eurípides”( Barnes,
Op. Cit. Pág. 267). Seria difícil crer que Demócrito tenha sido negligente neste sentido; essa é uma boa razão para se
ter dúvidas quanto às críticas de “ingenuidade dogmática” levantadas contra ele.

222
an acceptance of conventional standards and modes of expression(…)”(Bailey Op.
Cit. 522-23)

O que se segue é do mesmo tom. Parece que há um certo descontentamento quanto a carência de
bases para afirmação segura do que quer que seja neste assunto. Nem em textos que se intitulam
críticos, observa-se necessidades maiores de explicação para negação do paralelismo.

“[os fragmentos morais de Demócrito] are not based in any way upon the
Atomic Theory, and cannot be deduced from it. Hence they have no scientific
foundation but are merely detached saying, epitomizing the experience and wordly
wisdom of Democritus.”67[43]

A verdade é que pouco se pode afirmar que fosse muito além da referência
às dificuldades supracitadas. É neste sentido que a crítica histórica de referência a
este assunto se tornou repetitiva a ponto de assumir uma característica própria.

“Il [ fragmentos morais] ne semble pas qu’il y ait lieu de s’y arrêter. De ces
fragments, se dégage mal une vue d’ensemble, dont on puisse saisir la liaison avec
les principes généraux du système.”68[44]

Por outro lado, em forma de imprecisão, percebe-se certas disposições


positivas, mas que não se aprofundam e encerram bruscamente onde deveriam
desenvolver-se.

“Faut il voirun lien entre as morale et se conception physiques? Zeller ne le


pense pas. Nietzsche, au contraire, apercebait dans la morale de Démocrite la clef
de as physique; c’est peut-être songer um peu trop à ses continuateurs, à Épicure,
67[43]
W.T. Stace “A Critical History of Greek Philosophy” Pág. 92-93 Ed. Macmillan, London 1950
68[44]
León Robin, “La Pensée Grecque- et les origins de l’esprit scientifique” Ed. Albin Micher, Paris 1948. Cf C.J.
De Vogel “Greek Philosophy” Vol. 1 p.77 Leiden, Holanda 1950, para o qual “in these fragments Democritus
appears to us as an ethical humanist, who, in default of a religions or metaphysical principle, was not able to
connect his ethics organically with his philosophy of nature.”

223
à Lucrèce, pour qui il importe avant tout d’assurer la paix de l’âme; dans ce cas,
la physique n’est effectivement que le soutien de l’ éthique.”69[45]

Uma indicação importante é preciso ser feita. Dentre a nossa bibliografia


pesquisada, John Barnes70[46] é o único que tenta explicar as razões do “fracasso”
na esperança em buscar relações ético/físicas, ou uma moral sistemática em
Demócrito por meio de uma justificação direta fornecida pelos próprios fragmentos;
por este motivo, esta análise nos interessa 71[47]. Dando, por conseguinte, atenção
ao relativismo de alguns fragmentos, ou mais especificamente às “incoerências”
encontradas em meio a visão coerente do conjunto das sentenças supérstites,
Barnes supõe que as sentenças de demócrito talvez sejam apenas “guias para a
maioria, e que talvez ofereceriam um logos ou um conjunto sistemático apenas
para uns poucos intelectuais.”(Op. Cit. P’g.623).

69[45]
Jean Voilquin “Les Penseurs Grecs Avant Socrate - de Thales de Milet a Prodicos” Pág. 155-156 Garnier
Frères Paris 1941. É conhecida esta passagem de Nietzsche ( “Nascimento da Filosofia na Época da Tragédia
Grega, pp. 136-139- Obras, Vol. XIX, p. 372-375 Apud Col. Os Pensadores V. 1 Pág. 353 Trad. Rubens Rodrigues
Torres Filho, Ed. Abril Cultural 1978) na qual procura ressaltar, ao modo da crítica de Pascal à Descartes, por meio
de qual psicologia o racionalismo de Demócrito construiu seu mundo físico. A frase exata de Nietzsche é
“Vauvenargues diz com razão que os grandes pensamentos vêm de coração. É na moral que está a chave da física
de Demócrito. Sentir-se liberto de todo Incognoscível – É a meta de sua filosofia.” ; mas ela não tem relação direta
ao paralelismo ético/físico tal qual temos desenvolvido até aqui.
70[46]
“ Los Presocráticos”, trad. Eugenia Martín López, Pág. 621-627 Ed. Catedra, Madrid 1992.
71[47]
Embora, em algum ponto, diga-se de passagem, trate-se uma análise equivocada, principalmente em função de
sua predileção por anacronismos. “Los amantes del anacronismo (entre los cuales felizmente me cuento) pueden
empezar a pensar em um utilitarismo al estilo de Bentham; aunque no inventara ni defendiera la aritmética moral,
Demócrito preparó el camino: el gran sistema moral de Bentham se anunció em Abdera.” (Op. Cit. Pág. 625)
Dignas de nota são as opiniões de Bertrand Russell a este respeito ( ver: “History of Western Philosophy” Prefácio,
London 1950), para quem há que se fazer também trabalhos de vinculações históricas de teses e escolas em filosofia;
porém que não se confundam com trabalhos especializados, melhor produzidos coletivamente.

224
Barnes relembra que a questão fundamental da “incoerência” de Demócrito
consiste em ser um determinista que insiste a oferecer preceitos morais.72[48] Ora,
se a ética de Demócrito se aproxima da noção Cínica da aceitação do destino,
como ele poderia dar concelhos?73[49]

Por outro lado, afirma; “talvez possamos discernir em sua coleção de


uma postura coerente, mas em vão buscaremos uma ética sistemática. Em
seguida cita o frag. DK 68 B 53 “Muitos viven segundo o logos ainda que não o
tenham aprendido.”

As observações históricas aqui selecionadas concorrem para a ilação de que


o motivo principal que sustenta a improbalidade de haver relações conscientes
entre a ética e a física em Demócrito é o caráter assistemático encontrados em seus
fragmentos remanescentes. O estudo da filosofia antiga nos ensina que não se deve
atribuir qualquer um de nossos preconceitos modernos e/ou anacrônicos à tradição.
O alargamento do campo próprio da conjectura, por isso, não favorece a
compreensão do que a nós se mostrou insuficiente do ponto de vista das provas,
sequer lançou luz senão, mais obscuridades.

Não culpemos os doxógrafos antigos! Mas, obstinações à parte, um exame


cauteloso mostra, entre outras coisas, a dificuldade da tradição em lidar com muita
informação. O problema mais instigante seria saber até que ponto os fragmentos
restantes de Demócrito refletem sua vasta obra. Isso nunca poderá ser

72[48]
Ver Bailey Op. Cit. Pág. 188 e 383.
73[49]
O importante fragmento transmitido por Diógenes de Anoanda, fr. 32 = DK68 A 50, descreve a preocupação
antiga quanto à “falha” lógica na ética de Demócrito. “ Quem segue a doutrina de Demócrito(...) [afirma]
claramente que tudo se move por necessidade (...) [mas] não sabem quem quer que seja, que os átomos possuem
um movimento livre que Demócrito não descubriu, mas Epicuro trouxe à luz, e que é um desvio na trajetória(...)? A
idéia mais importante é essa: Se crermos no destino, põe-se fim a todo concelho e a toda censura.”

225
suficientemente respondido. Dito isto, o campo que nos resta para verificação
histórica do paralelismo ético/físico no atomismo antigo está decisiva e
lamentavelmente reduzido à essas migalhas.

CONCLUSÕES GERAIS

Vimos que as propostas e as tentativas que pretenderam encontrar um


paralelismo ético/físico nos fragmentos de Demócrito quedaram antes de atingir
satisfatoriamente seus objetivos.

Seguindo as considerações de Natorp e Dyroff, duas grandes linhas


interpretativas divergentes estabeleceram suas posições a respeito dessas relações
ético/físicas. Por assim dizer, a ala à direita, de força majoritária (Dyroff, Zeller,
Bailey, Kirk etc...) negam completamente a possibilidade de haver referência
ético/física nos fragmentos supérsites de Demócrito; enquanto que a ala à esquerda
(Natorp, G. Vlastos, Von Fritz e Cappelletti e outros) num esforço tímido destacam
que não é impossível encontrar em seus fragmentos esses mesmos pontos de
referência que aproximam os deveres morais da supremacia da necessidade do
mundo físico.

No plano da crítica histórica do problema constatou-se que foi possível


levantar apenas algumas poucas conjecturas e alguns parâmetros pouco firmes que

226
servissem tanto de sustentação da tese de unidade das concepções éticas de
Demócrito quanto de afirmação da possibilidade da existência de vínculo
ético/físico. As razões disso , como foi visto, deveu-se a :

a) falta de dados para a reconstituição da real teoria ética de Demócrito ( se é que


ela deveria existir).

b) incoerências teóricas em ética, se confrontadas as máximas morais supérstites


com a teoria física.

c) mera descrença de que seja possível atribuir ao próprio Demócrito essas relações
paralelas de modo consciente, ainda que não seja impossível a nós estabelecê-las.

Fica claro que as concepções anacrônicas mais destratam o problema que o


resolvem. A própria idéia (hoje contestada74[50]), tão comum a nós, de que a
visão de mundo de Demócrito implica em reducionismo, tendo suas origens, na
verdade, na crítica Epicurista da física do mestre de Abdera, demonstra que
teremos de recomeçar nossa pesquisa do início, considerando agora também as
oposições reducionistas (Democrito?) e anti-reducionistas ( Epicuro) dos filósofos
atomistas da antigüidade.

O resultado das tentativas de reconstituição conceitual dos fundamentos da


ética atomista nos permitiu supor que sua ética, por assistemática, mantém-se num
registro distinto do caráter puramente aconselhativo e, por assim dizer, a-crítico
como são as máximas morais de Hesíodo ou de Teógnis. A principal prova disso é
o uso técnico do importante termo físico nos fragmentos éticosDk 68
B 197). Se este uso não demonstra suficientemente a existência do vínculo

74[50]
Ver: Pierre-Marie Morel “Démocrite et la recherche des causes” Préface: J. Brunschwig Pág. 12 In: Col.
Philosophies antiques, Klincksieck 1996.

227
ético/físico, certamente ele nos indica que Demócrito possuía, ainda que em fase
de formulação, uma visão filosófica da ética.

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230
Aqui Terás Um Caminho

“A vida passa. Que resta de Bagdad e de Balk?


O choque mais ligeiro é fatal à rosa completamente desabrochada...
Bebe vinho e contempla a lua, evocando
as civilizações que ela já viu morrer.”
(Omar Kháyyám - Poeta Persa 1040-1124)

Para: Larissa com muitos fandangos

Venho hoje no Dia Internacional das Mulheres não divinizá-las como jamais fiz, nem
estritamente justificar meu apoio à sua emancipação como o faço todos os anos neste dia, sequer
acusá-las pelo que não vem fazendo, mas lançar luz para o que é possível a elas fazer a si e à
humanidade inteira. E todavia lançarei mão de todos esses recursos antes de assegurar-vos de
que aqui terás um caminho, porquanto o caminho é abertura que caiba a todos e sobretudo a
todos quantos possam interessar...
Onde será este “aqui”, figura opaca e só aparentemente distante? Antes de tentarmos
ensaiar umas respostas, retornemo-nos a si, pois não mais nos é patente divinizar a mulher. E
destaquemos em especial o amor incondicional que ela pode exercer aos filhos. Eis aqui um
primeiro motivo, haja vista que o amor exercitado ao homem ser-lhe-á percebido depois como
um dos caminhos e não a estrada principal. É lhes digno de repressão o pensar assim, mulheres?
Não! Por isso, em primeiro lugar, por outro lado, divinizemo-nas chamando-as MÃE.
De todo modo, porém, não é o tema da maternidade o tema comemorativo nesse dia que
representa a expressão do espírito combativo e o projeto dos dias melhores que certamente hão
de nos contemplar e por que as estradas principais todas serão pisadas. Não! Hoje é por bem dia
de reavaliarmos nossas forças para transformação do mundo em digno de si. Por isso, em
segundo lugar, não a divinizaremos, faremo-nas sobretudo admitir e verem-se como
HUMANAS.
Consentir-se uma divindade é tarefa árdua. Naturalmente aí o amado emancipa o amante.
Fácil motivo de se ver porque a extrema maioria das mulheres conhecidas acostumam-se com a
ilusão do adepto. Feito deusa, uma mulher aceita a reverência, o incenso e o sacrifício. Alguns
homens que verificaram isto explicaram-no pela educação na infância, super proteção dos pais e

231
apoio social na “pureza (sagrada) da mulher” (refiro-me à virgindade imposta e posteriormente
auto-imposta e ainda mais posteriormente suspensa ou por ato de vontade ou por decreto de
casamento). Homens inteligentes estes, quiseramos segui-los. Todavia não! Preferimos ouvir o
mais profundo da mulher e além, aceitando no momento da juventude da mulher onde as
experiências emancipatórias estão ainda aquém da assimilação de si por divindade e além da
pureza imposta; este é o momento da emancipação sexual.
Perguntar-me-iam pelas razões da insistência na sexualização da emancipação. Não
deveria responder se de todo eu próprio as soubessem. No entanto, reafirmo algo
permanentemente simples: enquanto aguardamos a emancipação dos homens pela das mulheres;
vivenciemos todos, homens e mulheres um pouquinho dessa estrada na liberação sexual da
mulher.
Ainda assim, disseram-nos algumas vezes. “já vi mulheres liberadas que eram virgens...”
Por obscuro, tive de concordar. Mas jamais ousaríamos deixar de arrematar uma coisa, ainda que
desprezássemos como digna de exemplo Joana Dark e suas seguidoras: “- E no entanto, o motor
de sua liberdade residiria ali mesmo próximo ao hímen...” E por fim era necessário que
insistíssemos nessa visão sexual da liberdade. Não porque fosse a importância da liberdade o fim
para o qual os impulsos da fruição, da natureza e da felicidade se guiassem. E sim móvel,
desenvolvimento pelo qual se transporta a escolhas dignas de emancipação.
Dito isso, pareceu-nos não haver discordância quanto a um ponto. A nova mulher e o
novo homem se equivalem. O que se exprime daí a pergunta; houve conquistas? Sim, houve
conquistas! A equivalência sentimental, visual, psicológica e social (pensando no trabalho) etc.
foram vistas por nós todos entortando nossos narizes. Mas é desta equivalência que gerará a
pacificação das divergências para as próximas gerações. Será preciso fé; por que a fé é possível,
constituinte sine qua non da criação. É isso o que considero possível; é possível emancipar-se.
Mas o que é emancipar-se? Poderiam me perguntar. Sim, eu respondo , poderemos nos fazer essa
pergunta sempre. É filosoficamente impossível dar uma definição definitiva. Haja vista que
emancipar-se não constitui-se apenas uma conquista. Emancipar-se , tarefa conjunta da
humanidade inteira, refere-se não apenas a um patamar, a uma elevação a ser conquistada, mas
refere-se à renúncia diária dos pensamentos e ações cativos, ainda que sejam atingidas
conquistas.
Modo de ser que se resume minimamente assim:

232
“A mulher não é divina, é humana; o que “ela” não fez foi desdivinizar-se humanizando-
se; e aqui terás o caminho se construirmos o seu sexo livre.”

233
Fundada sobre o grito eterno do non passaron e criada como “Revista de Filosofia e Cultura” em
1999, a revista anti-facista ferreavox foi aonde eu publiquei meus antigos textos de filosofia; e
éainda hoje a editora por meio da qual eu tenho publicado meus e-books. O termo

“Ferreavox” vem de uma citaçao que mistura a referêcia da Eneida de Virgíio com uma reediçao
em Cíero e Erasmo de roterdã Non, mihi si linguae centum sint, oraque centum, ferrea vox,
omnis scelerum comprehendere formas, omnia poenarum percurrere nomina possim

(Tradução: Mesmo que tivesse cem líguas, cem bocas e voz de ferro, eu nã poderia enumerar

todos os tipos de loucos, nem todas as formas de loucura). Virgíio (Eneida, livro VI, verso 625).
Para mim, esta não era senão uma “revista de filosofia dos tempos da faculdade”, mas para os
revolucionáios franceses do XVIII, que criaram um jornal com este nome, era o úico lugar aonde
se “botava a boca no trombone”!

234

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