Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
redemocratização
Introdução
Cheryl Clarke afirmou, no final dos anos 1980, que ser lésbica em uma cultura
misógina, racista, capitalista e homofóbica é um ato de resistência (CLARKE, 1988: 99). Uma
declaração ainda extremamente atual e pertinente, sobretudo no Brasil, país
internacionalmente conhecido como o que mais assassina lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais.1 A existência das lésbicas desafia um dos pilares centrais do patriarcado: a
heterossexualidade, aqui entendida como um regime político baseado na naturalização da
diferença sexual, cujo objetivo é a manutenção da dominação das mulheres e sua apropriação
individual e coletiva para usufruto masculino (WITTIG, 2006 [1992]: 26-27).
Por sua irreverência, rebeldia e potencialidade política, as lésbicas têm sido
sistematicamente marginalizadas e invisibilizadas – patologizadas pela medicina, apagadas
das narrativas históricas e expulsas dos movimentos sociais. No entanto, ao menos desde
meados da década de 1970, existe um movimento organizado que busca fazer frente a essa
situação, por meio da mobilização política, produção artístico-cultural e publicações
Uma das consequências do golpe militar de 1964 foi a censura contra os meios de
comunicação, alinhada à pressão econômica a órgãos que não aderiram ao regime. Emissoras
de tevê, revistas e jornais foram fechados, seus equipamentos e materiais apreendidos, ao
passo em que jornalistas de esquerda foram duramente perseguidos. É nesse contexto em que
2
Refiro-me, de maneira ampla, aos partidos políticos de esquerda, aos sindicatos, às organizações de direitos
humanos e aos movimentos negro, feminista e homossexual, denominados “novos movimentos sociais”.
3
Como em diversos países da América Latina (México, Argentina, entre outros), no Brasil as lésbicas
organizaram-se, em um primeiro momento, dentro dos grupos homossexuais mistos, e posteriormente
constituíram grupos autônomos e exclusivamente lésbicos (MOGROVEJO, 2000).
nasceu a imprensa alternativa, ou imprensa “nanica”, que representou uma oposição à
ditadura e a possibilidade da existência de vozes dissidentes. As publicações da imprensa
alternativa geralmente eram em formato tabloide, com matérias que iam da sátira contra o
regime à análise política profunda. Segundo Bernardo Kucinski (2001:5), entre 1964 e 1980,
chegaram a existir aproximadamente 150 periódicos.
As publicações da imprensa homossexual e feminista devem ser analisadas dentro
desse cenário mais amplo. Ao lado do Chanacomchana e do Lampião, importantes jornais
como o Nós Mulheres e o Brasil Mulher se somaram às estratégias dos novos movimentos
sociais para promover a circulação de ideias, a articulação política e o fortalecimento dos
grupos durante o período.
Segundo Edward MacRae, o Lampião constituiu um importante veículo que trouxe à
tona a temática da homossexualidade, abordando uma série de temas como a “saída do
armário”, os espaços de sociabilidade, a natureza da homossexualidade, entre outros. Também
houve espaço de discussão para assuntos relacionados à lesbianidade, ao feminismo, ao
movimento negro e ao ecologismo, ainda que de maneira minoritária (MACRAE, 1990: 74-
75). O Lampião foi marcado por um enfoque informativo e politizado da homossexualidade,
ao mesmo tempo em que incorporou a linguagem popular do meio homossexual, alternando
entre a crítica e o deboche (FACCHINI & SIMÕES, 2008: 87-88).
Vale lembrar que as lésbicas que integravam o Somos criaram em junho de 1979 um
subgrupo denominado Lésbico-Feminista (LF), a partir do esforço conjunto com outras
mulheres para produzir os textos sobre lesbianidade e espaços de sociabilidade lésbica em São
Paulo que eram publicados no Lampião. A constituição de um grupo autônomo e exclusivo de
lésbicas se deu no ano seguinte, em 1980, motivada pelas hierarquias existentes dentro grupo,
a pouca atenção dada às demandas das lésbicas e a misoginia dos gays (MACRAE, 1990:
107) – o que implicou em uma aproximação com o feminismo que não esteve isenta de
tensões e conflitos (SOARES & COSTA, 2011/2012).
Na primeira matéria que as lésbicas publicaram no Lampião, em maio de 1979,
intitulada “Nós também estamos aí”, elas protestaram veementemente contra o apagamento da
existência lésbica. Afirmaram que “estavam atrasadas”, não só porque o jornal já existia há
um ano, mas porque “sempre abdicamos de existir”:
Nós estamos atrasadas porque temos medo, receio, cagaço mesmo de viver o
que somos. Porque não construímos o espaço do nosso viver. Porque vivemos na
clandestinidade. Nós estamos atrasadas, mas não queremos fazer isso virar um mea
culpa, um muro de lamentações.
Sabemos e conhecemos a existência da repressão. E não falamos apenas
daquela do camburão, do cessetete, da bomba de gás. Falamos daquela que está
presente nas nossas relações na família, no emprego, com os amigos, na escola.
Falamos da repressão que, pelos mais variados mecanismos – meio de comunicação,
educação, religião, etc. –, nos diz o que somos ou devemos ser, querer, desejar, na
tentativa de nos amoldar. Diz o que é natural, normal, certo, justo e bom para nós
mulheres. (LAMPIÃO, 1979: 7)
Colocar-se enquanto lésbica tem mais a ver, num primeiro instante, com a busca de
uma vida de maior prazer, integridade, alegria e sem mentiras e auto-punição. Além
disso, num segundo instante, é uma declaração política não só porque desmistifica a
crença na ‘naturalidade’ das relações heterossexuais institucionais (casamento, lar,
reprodução, etc...) como também porque cria novas propostas de independência
feminina. A experiências lésbica, tão particularmente ‘feminina’ quanto a
maternidade, é umas poucas formas concretas de poder e autonomia acessíveis às
mulheres. (CHANACOMCHANA, 1984: 4)
A historiadora Patricia Lessa traz importantes reflexões sobre o contexto de produção
dos boletins Chanacomchana. Em consonância com as condições de produção da época, estas
publicações mobilizaram uma linguagem da transgressão e da libertação, na busca pela
produção de novos sentidos para a lesbianidade, afastados do estigma e da exclusão, ao passo
em que se exprimia uma vontade de mudança e diálogo com a sociedade. Neste sentido, os
textos transitam entre o amor, a ironia, o humor e a revolta, criando um universo semântico
próprio (LESSA, 2007: 123-126).
A periodicidade do Chanacomchana foi instável, entre trimestral e quadrimestral, com
uma tiragem de cerca de 200 exemplares, que eram enviados para diversas capitais do país
(CARDOSO, 2004: 99). As ativistas do GALF também distribuíam os jornais em bares da
capital paulista frequentado por lésbicas. Elizabeth Cardoso (Idem: 97) considera que a
publicação poderia ser considerada um ícone rebelde, que fazia uma contraposição ao
discurso da igualdade entre homens e mulheres.4
Finalmente, o Chanacomchana teve como objetivo criar um espaço de articulação
entre lésbicas, onde elas poderiam contar experiências pessoais, ter acesso à informação
crítica e também conhecerem outras lésbicas. Na primeira edição, o GALF definiu o que
pretendia com o boletim:
Havia uma seção de publicação das cartas das leitoras, que contavam suas
experiências pessoais e mencionavam o jornal como um meio importante de combate à
solidão e de afirmação da própria sexualidade. Além disso, o boletim foi um veículo por meio
do qual o GALF conseguiu articular-se com outros grupos lésbico-feministas
latinoamericanos, recebendo cartas e materiais de leitura que compuseram sua biblioteca. São
recorrentes as menções ao Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS), organização
lésbica europeia, à Associação Lésbica e Gay Internacional (ILGA) e aos Encontros Lésbico-
4
Vale mencionar que Elizabeth Cardoso analisa o Chanacomchana como parte constituinte da 2ª geração da
imprensa feminista, que na década de 1980 voltou-se complemente para as questões de gênero. Efetivamente, o
boletim encontra-se no cruzamento entre a imprensa homossexual e feminista, ora enfatizando a
“homossexualidade feminina”, ora o feminismo lésbico. Optei, para fins analíticos, situá-lo ao lado da imprensa
homossexual a fim de enfatizar a atuação política de lésbicas e gays durante o período.
Feministas da América Latina. Assim, o Chanacomchana foi uma ferramenta para a discussão
de ideias, o fortalecimento de vínculos entre pessoas e a criação de redes de ativismo.
A prisão por “suspeita” atinge diretamente aos homossexuais e outra minorias, como
os negros, por exemplo. Por avaliação subjetiva, poderá ser preso não apenas
qualquer viado, como qualquer negro, qualquer pobre ou qualquer indivíduo que não
consiga provar vínculo empregatício. Ué, mas isso já não acontece? Acontece – mas é
ilegal. E se for legalizado, perderemos então qualquer possibilidade de luta
(LAMPIÃO DA ESQUINA, 1980: 18).
Diante dessa situação, os movimentos homossexual, feminista e negro realizaram uma
campanha contra Richetti. Por um lado, convocou-se um ato público contra a violência
policial para o dia 13 de junho de 1980. Reunidos diante do Teatro Municipal, os grupos
caminharam até o Largo do Arouche, protestando contra as batidas de Richetti, a prisão de
travestis e o racismo. Na matéria do Lampião de fevereiro de 1980, mencionada
anteriormente, critica-se a falta de adesão da esquerda à manifestação. “Talvez os chamados
setores democráticos não tenham achado a causa suficientemente nobre”, escreveu o ativista
homossexual João Silvério Trevisan (LAMPIÃO DA ESQUINA, 1980: 18). Pode-se entrever
uma crítica à pouca abertura dos setores progressistas às demandas dos gays e das lésbicas,
pois ainda consideravam a homossexualidade um “desvio burguês”.
Por outro lado, parlamentares oposicionistas, ao lado de militantes feministas e
estudantes, chamaram a atenção da imprensa para a situação e, por meio do Conselho
Parlamentar de Defesa dos Direitos Humanos (CPDDH), o delegado Richetti foi convocado a
comparecer na Assembleia Legislativa para prestar esclarecimento. Por conta de uma série de
irregularidades durante a sessão e a falta de quorum ao final, não foi possível fazer nenhum
encaminhamento (MACRAE, 1990: 225-229). De acordo com Edward MacRae:
5
Há poucos documentos históricos disponíveis sobre a “Operação Sapatão”. Até o momento, encontrei somente
a pequena nota publicada no Lampião e uma notícia escrita pelo jornalista Omar Cupini Júnior, que pode ser lida
em: https://memoriamhb.blogspot.com/2009/04/operacao-sapatao-richetti-15-nov-1980.html.
6
Em 2003, Luiza Granado e Neusa Maria de Jesus, ativistas da Rede Um Outro Olhar e da Associação da Parada
do Orgulho LGBT, propuseram o dia 19 de agosto com Dia do Orgulho Lésbico. Segundo Miriam Martinho, foi
em homenagem à Rosely Roth, uma das protagonistas da manifestação em 1983. Em 2008, a Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo aprovou o projeto que instituiu oficialmente a data. Conferir o folheto
elaborado por Miriam Martinho, disponível em: http://www.umoutroolhar.com.br/2017/08/19-de-agosto-
primeira-manifestacao-lesbiana-contra-discriminacao-no-brasil.html
A partir das ações políticas analisadas acima, observa-se que o processo de abertura
política no Brasil não foi linear, nem isento de ambiguidades. Em meio aos avanços que
representaram a greve dos metalúrgicos do ABC, as mobilizações dos novos movimentos
sociais, o surgimento da imprensa alternativa e a campanha pelas “Diretas Já”, para citar
apenas alguns exemplos, a repressão policial contra gays e lésbicas emerge como um capítulo
estranho dessa história. Pouco comentado pela historiografia, esses eventos parecem destoar
das narrativas que enfatizam o otimismo pelas transformações que se anunciavam com a
abertura democrática. Talvez esse otimismo não tenha contagiado tanto as lésbicas e os gays,
que continuavam sendo perseguidos pelo Estado, pela Igreja e pela sociedade moralista,
fundamentados no regime político da heterossexualidade.
O GALF também buscou intervir nos debates nacionais suscitados pela formação da
Assembleia Constituinte e a elaboração na nova Constituição. As militantes consideravam que
o contexto nacional dava a oportunidade de discutir as demandas de lésbicas e gays como
assuntos públicos. Na edição de número 9 do Chanacomchana, Suely Roth analisou as
constituições que o Brasil já teve, o impacto da campanha pelas “Diretas Já” e os limites do
processo de conformação da Constituinte. O GALF propunha que os grupos homossexuais
promovessem debates e buscassem o apoio de advogados a fim de elaborarem propostas para
a Constituição em defesa dos homossexuais (CHANACOMCHANA, 1985-86: 19).
Na edição seguinte, de número 10, a proposta aparece melhor formulada. Em conjunto
com o Grupo Gay da Bahia e o Triângulo Rosa (Rio de Janeiro), o GALF defendeu a inserção
no artigo 153 da Constituição a frase “contra a discriminação por preferência ou orientação
sexual” (CHANACOMCHANA, 1986: 14). Graças à campanha promovida por esses grupos,
pela primeira vez os temas referentes à homossexualidade foram debatidos no Congresso
Nacional. Apesar da proposta não ter sido aprovada, tratou-se de um acontecimento inédito de
grande importância no momento (FACCHINI & SIMÕES, 2009: 122-123).
Nesta mesma edição, Rosely analisou o impacto das normas jurídicas na vida
cotidiana de gays e lésbicas. Ainda que não houvesse leis que se referissem diretamente à
homossexualidade, diversos artigos do Código Penal poderiam servir para criminalizá-la ou
recusar determinados direitos. Por exemplo, em relação ao estupro, para a lei vigente este se
dava apenas mediante a “conjunção carnal” (a penetração), excluindo outras formas de
violência sexual, consideradas apenas “atos libidinosos”. Para Rosely, a lei possuía um
fundamento patriarcal, pois:
Considerações finais