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Death Valley Junction

(Entroncamento Vale da Morte)


Peça Teatral de Albert Ostermaier
Tradução de Christine Röhrig e Marcos Renaux
Copirraite e direitos de encenação Suhrkamp Theatervelag, Frankfurt/Meno

PERSONAGENS
Desmond
Valery
Beat
Tracy
Sylvester "Sly"
Sam "Dante" Spencer
Hal "Paradiso"
Gonzo

I. Dante's View

CENA 1: VIEW TO A KILL

Dante's View, pouco antes do amanhecer. Valery e Desmond num mirante em frente, a que
se chega por uma picada. Uma pele de cobra e latas de coca-cola sobre o chão. Ao fundo
um estacionamento, onde se vê apenas o carro deles. Desmond limpa o pó de suas botas,
Valery lê a placa de informações.

Valery - Quem atravessar o deserto, jamais...

Desmond nervoso, tenta fazer seu celular funcionar. Mudo. Totalmente mudo.

Valery - Jamais será mais o mesmo.

Desmond - Tudo cheio de areia.

Valery - Eu estava lá, no céu, que absorve quase toda a luz, e vi coisas que ninguém que
volta de lá tem coragem de contar; no rastro de seu desejo seu espírito corre na profundeza
infinita e não se lembra de como voltar.

Desmond - Mas o que é essa coisa incompreensível que você fica balbuciando aí o tempo
todo? Pare com isso.

Valery - As drogas estão fazendo efeito.

Desmond - Pare com isso, por favor, por favor.

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Vallery - Hello, hello Death Valley.

Desmond - Não, não pega, sem essa, vai. Que drogas? Do que é que você está falando,
afinal? Eu estou aqui nesse buraco desconectado de tudo, nesse morro de merda, tentando
uma ligação, e você fica aí fazendo um discursinho de hieróglifos de boas vindas pro
despenhadeiro, que não dá nem para ouvir direito. Tinha aquele hotel no caminho, aquele
barracão com as palmeiras, lembra? Nós temos que voltar, eu esqueci uma coisa, eu tenho
que telefonar sem falta. Vamos.

Valery - O tanque está vazio.

Desmond - Como é que é?

Valery - Nenhuma gota mais de gasolina.

Desmond - Valery, meu anjinho do deserto, sinceramente -- eu agora não estou com
disposição para esse tipo de brincadeira, você não sabe o que está em jogo.

Valery - Ainda deu justinho para chegar até aqui.

Desmond - Vamos voltar para o hotel, eu telefono, a gente toma café com toda a calma, e
em duas horas a gente está aqui de volta.

Valery - O sol está saindo agora.

Desmond - Valery, por favor.

Valery - O tanque de reserva.

Desmond - O quê?

Valery - No porta-malas.

Desmond - Que sorte.

Valery - Você encheu ele?

Desmond - Como, encheu?

Valery - Quando a gente estava no posto.

Desmond - E por que raio que eu devia ter enchido o tanque reserva?

Valery - Porque a gente estava indo para o deserto.

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Desmond - Ok, está bom, eu vou rolando lá para baixo para o hotel, e você, se você quiser,
fica por aqui e se dedica ao seu teatrinho natureba.

Valery - Vá pro inferno.

Desmond - O quê? Agora pirou de vez, é?

Valery -Você não vai longe.

Desmond - O que é que está havendo com você, hein?

Valery - Nada, por quê?

Desmond - Você me empurra no meio da noite para esse monte de pedra sem vida e, ainda
por cima me xinga porque esse maldito nascer do sol não me toca. Você que sabe: ou
você...

Valery - Ou eu...

Desmond - Ou você vem comigo agora, ou deixo você aqui e busco você depois, quando
você tiver acalmado. Nascer do sol tem em qualquer cartão postal, e agora você até já viu
ele, seja um pouco sensata, vai.

Valery - Entra à esquerda no cruzamento.

Desmond - Você vem comigo!

Valery - É melhor ir a pé de uma vez, de carro você não vai longe mesmo, pode ser que
você chegue no hotel antes do calor do meio-dia. Tem uma garrafa d'água no banco de trás.

Desmond - É um desses seus jogos psicológicos, de novo?

Valery - Tome a chave.

Desmond - Você dirige.

Valery - Mije no tanque então, pode ser que funcione.

Desmond - Até que não é uma má idéia, minha blefadora bonitinha. Desembuche logo, vai,
você pensou na coisa, você não esqueceu. Não faça tanto suspense. O que está acontecendo,
vamos lá, vai, conte para mim. Todos os nossos amigos vão sair da areia de repente com
uma garrafa de champanhe na mão, vão cair do céu com mochilas nas costas cheias de
caviar e o asfalto vai se enrolar num enorme baseado e nós vamos festejar junto com os
coiotes, chorar por causa das apostas e apertar a buzina com a bunda numa trepada. O que
foi que você pensou dessa vez, eu conheço você. Está começando do mesmo jeito que
daquela vez: todos os hotéis lotados, o rádio cheio de ruídos, minha bateria descarregada,
sem gasolina, última garrafa d'água, o sol nasce, você me manda para o inferno,

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provavelmente tem um revólver debaixo do acento, e tem uma cascavel se besuntando no
tanque, louca para me dar um beijo na boca. Dê o braço a torcer, você está blefando, você
não se esqueceu, é tudo uma grande conspiração.

Valery - Ele está no porta-luvas.

Desmond - E a cobra está embrulhada em papel de presente no meio das minhas gravatas
de couro, não é isso?

Valery - Uma bala para cada olho.

Desmond - E você quer, está bom, você está vendo que eu estou entrando na brincadeira,
quer que eu meta as balas na minha cabeça, enquanto você assobia: "Death Was a Thrill On
Suicide Hill". Depois disso você me empacota, me quebra os ossos para eu caber no porta-
malas, fixa a rota com a trava da direção, põe uma pedra no acelerador, solta o freio de mão
com um sorriso na boca, liga o motor e me atira precipício abaixo no meu caixão de zinco
cromado de ouro, para dentro do nascer do sol e para baixo, para o deserto salgado, voando
por alguns momentos porque você esqueceu o porta-malas aberto, e talvez o tanque esteja
mesmo vazio e você tenha que empurrar a carroça e sujar o seu tênis tão branquinho, de
qualquer jeito você espera que algum pássaro que esteja passando me coma os olhos e que,
quando o carro finalmente explodir, um segundo sol nasça para você. Foi mais ou menos
assim que você imaginou a coisa. Eu sabia que esse seu seminário de roteiros ia ascender
demais os seus pequenos desejos e que isso que eu estou vivendo aqui com você não passa
de uma cena de um filme. Eu digo a você como é que isso vai continuar: nós vamos trocar
de locação, trocar de papel, vestir uns trecos novos e aí a gente vêm com duas caras novas e
começa de novo esse maldito dia nessa maldita caixa de areia.

Valery - A gente está representando céu e inferno.

Desmond - Eu vou para o carro. Vou esperar por você e sua surpresa por dez minutos, não
mais. O telefonema é importante mesmo.

Valery - Daqui a cinco minutos você vai estar de volta aqui.

Desmond - Vamos ver o que foi que você imaginou. Eu te amo. Sai.

Valery - Fazendo círculos na areia. Como o aritmético, que reúne suas forças para medir
um círculo e não consegue, e que reflete sobre o teorema que seria necessário, é assim que
eu queria entender na nova cena, como aqui a face humana se une em círculo e como ela se
relaciona. Mas para isso nem ter asas bastaria -- até que de repente um raio me atingisse o
espírito e ajudasse o desejo.

Desmond - Tem um defunto no porta-malas, ele está usando as minhas coisas. Eu queria ir
embora, o tanque está vazio mesmo. Ele está usando as minhas coisas, Valery! Eu achava
que essa porra desse tanque reserva não podia estar vazio também, abro o porta-malas, e lá
está esse sujeito deitado, usando as minhas coisas, como é que ele chegou nas minhas
coisas? Minha bota! E no peito dele tem um placa: Happy Birthday, e é a sua letra, Valery,

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a sua letra, e puta que pariu é a minha tralha que ele está usando, Valery, Happy Birthday,
de onde que esse cara sabe que é meu aniversário, Valery, por que ele sabe disso? Eu tirei
a bota dele, é o meu tamanho, e ele tem exatamente o dinheiro que eu tenho colado lá
dentro, ele tem o meu dinheiro e o meu número. Valery, ele tem uma bala na perna, os
lábios dele estão totalmente estourados, ele rasgou minha camiseta, Valery ... Ele rasga sua
camiseta ... está lá deitado sem dizer uma palavra, e é o meu aniversário mesmo, e você se
esqueceu dele, você se esqueceu dele, Valery. Seu celular toca com a melodia, "Toque a
Canção da Morte para mim" (Spiel mir das Lied vom Tod). Pronto, alô, alô. Minha caixa
postal, merda, está chiando muito, uma mulher, caralho, eu não entendi o que ela disse.

Valery - Happy Birthday, Happy Birthday, Desmond.

CENA 2 - STOP AND GO

O estacionamento do mirante. Ao fundo, formações montanhosas bizarras em câmera


lentíssima, que sob luz crescente trocam de cor quase imperceptivelmente. Uma estrada
que sobe íngreme, que se pode intuir apenas pela visão inesperada de capôs e rodas
dianteiras. À frente de tudo vê-se apenas o carro dourado e reluzente de Desmond. O rádio
está ligado, o volume aumenta, o porta-malas abre-se e logo em seguida Desmond chega,
ofegante, até o carro.

Desmond - Valery, onde é que se meteu, Valery, se apresse. Por que o porta-malas está
aberto, eu estou com ele, eu preciso tirar as minhas coisas dele, o rádio, eu, Valery, Valery!
Junto ao porta-malas. Ele sumiu, puta que pariu, ele, ele deu no pé com as minhas botas,
ele desapareceu, desapareceu. Valery. Ele procura no porta-malas, joga o estepe e a caixa
de primeiros socorros no chão, revira seus bolsos. Ele não pode ter dado no pé. Ele rasteja
pelo chão, debaixo do carro. Areia por tudo que é lado, e nenhuma pista, por todo lado essa
maldita areia e nenhuma pista no asfalto, ele tinha que ter areia na bota. A placa, pode ser
que a placa ainda esteja lá. Ei, cadê você?

Valery - Estou aqui.

Desmond - Não, você não, ele é que sumiu, desapareceu, o cadáver, ele deu no pé, com as
minhas coisas, olha lá, o porta-malas está aberto, eu prendi ele, sério, eu prendi ele antes de
andar até você, eu prendi ele.

Valery - E deixou o rádio ligado.

Desmond - Você viu ele?

Valery - Quem, o cadáver?

Desmond - Eu não deixei o rádio ligado, ele nem funciona sem a chave.

Valery - A chave está no contato.

Desmond - A chave está aqui.

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Valery – A sua chave está no contato, por que é que você deixou o rádio ligado, você ainda
quer que a bateria vá pro brejo também, você joga as nossas coisas no asfalto e vem me
dizer que um tal de um caubói morto está vagando feito espírito aí pelo deserto pintando
plaquinhas de aniversário para você. Você está trabalhando demais, Desmond, você está
vendo fantasmas. Vamos esperar até que passe alguém para nos levar pro hotel.

Desmond - Ele não pode estar longe, a gente tem que achar ele. Eu não sou nenhum
assassino, Valery.

Valery - Uma miragem com bota de couro selvagem, escreva isso no seu diário.

Desmond - Talvez eu ache o lápis. De onde é que você tem a segunda chave, por que você
deixou a minha chave no contato. Eu não liguei o rádio quando a gente desceu do carro,
isso aqui era um silêncio mortal, não tinha som algum. No porta-luvas, o rádio estava
desligado, só ruído, só tinha ruído o tempo todo, não pegava estação alguma, você ainda
sabe disso, eu quase fiquei maluco por causa disso. Está aqui o revólver, está ali o lápis, eu
achei ele, eu falei para você, ele não pode estar longe.

Valery - Ele está de porre.

Desmond - Ele não está de porre, ele está morto, isso sim, e está vagando por aí, contando
que é meu aniversário. Foi com aquilo que ele escreveu, ei, como é que você sabe que a
tinta era vermelha?

Valery - Você que falou que estava escrito com batom.

Desmond - Eu não falei, não, eu disse que ele tinha uma placa no pescoço. Tem só uma
bala no revólver.

Valery - A segunda é para você.

Desmond - O quê?

Valery - Como se o sol fosse um pedaço de ferro que acaba de ficar incandescente.

Desmond - Nós temos que levá-lo e daí enterrar.

Valery - Quem, Ninguém?

Desmond - Ele tem que estar aqui por perto, ele deve ter se arrastado para algum lugar com
as últimas forças que ainda lhe restavam, estava ferido na perna.

Valery - Um presente de aniversário.

Desmond - Vamos procurar ele.

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Valery - Pode procurar o seu zumbi sozinho. Eu vou esperar aqui. Me dê a garrafa d'água.

Desmond - Está aqui, vazia, tem um furo, uma bala atravessou ela.

Valery - Duas balas, dois buracos, e ainda tem uma bala no revólver, um lápis azul, o seu
lápis, será que você não percebe que as suas histórias fantásticas não batem.

Desmond - Ele segurou a garrafa d'água na frente da perna e daí atirou, e a gente agora tem
que morrer de sede. Vamos embora de uma vez por todas, vai.

Valery - Você está se enrolando em suposições falsas, está fazendo as coisas difíceis para
você mesmo e não consegue ver as coisas que poderia ver muito bem se tivesse uma visão
clara.

Desmond - O que é que eu não consigo? Valery, eu...

Valery - Você não está mais tão nesse mundo quanto pensa.

Desmond - Eu acho que você está louca, não eu. Nós temos mais é que ficar com a cabeça
fria, calmos, bem calmos, é tudo muito simples.

Valery - O tanque está vazio, o tanque reserva também, nossas coisas estão jogadas,
espalhadas pelo estacionamento, o rádio está consumindo o que resta da bateria, você está
sofrendo de paranóia, manejando um revólver, de onde é que você tem ele afinal, fica
deixando suas impressões digitais em tudo que é lugar feito um principiante e... e é o seu
aniversário, Desmond. Tem uma garrafa de champanhe no isopor, nós não vamos morrer de
sede. Nada é inexplicável. Dê um sossego para esse seu fantasma, faça um brinde para ele,
o que é que pode acontecer com ele, ele está com as suas botas, o dinheiro vai ser suficiente
para chegar até a próxima cidade dos espíritos.

Desmond - Você acha que bastam umas palavrinhas ditas entre sorrisos, que a minha
primeira dúvida desaparece e pronto, já caio na próxima armadilha.

Valery - Primeiro descanse desse seu grande assombro. As coisas são todas interligadas.

Desmond - Valery, pela última vez, o que é que está sendo encenado?

Valery - Você está com um pé no inferno.

Desmond - O quê, como?

Valery - Me dê um beijo.

Desmond - Tem alguém vindo aí, está ouvindo?


Beat e Tracy chegam com sua moto ao estacionamento e rodeiam Desmond e Valery várias
vezes.

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Beat para Valery. - Ele está incomodando?

Valery - A gente se vira sozinho.

Desmond - De onde é que você arranjou essas botas?

Valery - Desmond!

Desmond - Ele está usando as minhas, as botas do...

Beat - O que é que tem com os meus boots, cara, está querendo me provocar, ou o quê? Ele
está incomodando, não estou falando? Esse mijãozinho está procurando encrenca.

Desmond - Não, eu, a bota.

Tracy - Mas eu conheço esse cara, ei, mijão, eu conheço você.

Desmond - Impossível, eu não conheço ela, Valery. Foi só. Desculpe, eu não queria
provocar você, de jeito nenhum, mas...

Tracy - Provocar, é isso mesmo, você me comeu em Las Vegas. Ele é bem docinho, o
garoto, ele me disse que a decoração do tapete, que as rosas do tapete estavam subindo
pelas minhas pernas, e aí ele rastejou com elas para baixo do meu vestido, onde ele ia
colher elas para mim. Por que é que você me largou lá no quarto?

Beat - O que é que o toupeira tem?

Tracy - Quando acordei, tinha picado a mula.

Desmond - Do que é que está falando, você deve estar me confundindo, sério.

Tracy - Ele é um fodedor de verdade, Beat, quase tão bom quanto você, só que mais
meigo, e com umas idéias e umas palavras tão malucas na cabeça, pegou o meu batom e
escreveu um poema no meu corpo inteiro, e tentou fazer ele comigo depois, fiquei com a
xoxota toda preta por causa desse cara. Desmond, meu amorzinho, bom ver você, seu
malaco velho, covarde.

Desmond - Eu nem sei como é que você se chama, eu não conheço ela, Valery.

Beat - Eu vou estourar as bolas do saco desse cara. Quer sacar a pistola.

Desmond com a mão na coronha do seu revólver, totalmente inseguro, tremendo - Eu não
conheço eles.

Tracy - Você tem que puxar o gatilho primeiro, coração.

Beat - Ele já está fazendo nas calças.

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Valery - Lá onde a suposição mortal se engana, onde a experiência carnal não tem
precedência, seu espanto deveria parar de se teimar, veja como é curto o vôo do
pensamento, mesmo quando persegue a razão. Tira o revólver dele. Não dê a sua bala de
presente.

Tracy - Eles são exatamente o que a gente está procurando, Beat.

Beat - Ok, vamos fumar o cachimbo da paz, me dê aí o saquinho, Tracy. Erva no deserto,
garoto.

Desmond - Eu não consigo me lembrar, eu não consigo me lembrar mesmo que eu tenha...

Tracy – Comido você?

Beat - Como é que você pode esquecer isso, a sua gatinha aí não vai me esquecer nunca.

Valery - Nosso tanque está vazio.

Desmond - Las Vegas.

Valery - Há um ano atrás, quando eu abortei.

Tracy - Você perdeu uma montanha de dinheiro no Black Jack.

Beat acende o fósforo na sola. - Isso ajuda. Oferece seu baseado a ele.

Desmond - Você está usando as botas.

Beat - Porra, e o que é que tem com elas, por que você olha para elas o tempo todo?

Valery - Ele faz anos hoje.

Tracy - É, você estava fazendo aniversário, agora estou me lembrando de novo.

Desmond - Onde é que você arranjou essas botas?

Tracy - Era o seu aniversário, e você no seu porre ficava o tempo todo me chamando de
"meu bolinho de aniversário" e passava aquele creme cor de rosa enjoativo no me corpo
inteiro, que depois você lambia da minha pele, até que você passou mal e vomitou tudo em
cima da minha barriga.

Beat - Quer saber mesmo de onde é que eu tenho elas, eu conto: encontrei um sujeito meio
pálido lá em baixo no cruzamento, com uma placa no pescoço, carregando a própria cabeça
debaixo do braço, que aliás se parecia com a sua, e ele cuspia na bota sem parar e dava
brilho nela com os lábios, até estourarem. Ela era do meu tamanho, e aí eu pensei: quem
anda sem cabeça pode muito bem andar descalço, não pode? Mais alguma pergunta?

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Desmond - Onde é que ele está?

Beat - Está me gozando, é?

Tracy - Provavelmente ele desceu até o Zabriskie Point, benzinho, pelo menos foi isso que
ele disse.

Valery – Na aparência de vocês brilha um encanto divino, misterioso, que mudou o


aspecto que tinham antes. Mas me digam, vocês não desejam alcançar um lugar mais alto,
para ver mais, para amar mais e melhor?

Tracy - Beat?

Beat - Ela está com insolação, e o sombra dela também.

Tracy - O que é que a gente vai aprontar com esses dois?

Desmond - Ele estava dentro do meu porta-malas.

Valery - Vocês têm gasolina para arrumar para gente?

Beat - E eu tenho cara de posto de gasolina, ou você só está querendo chupar minha
mangueira? Experimenta, tem combustível que chega, gatinha.

Desmond - Você pode ficar com o dinheiro, se você me levar pro hotel.

Beat - Nós vamos ficar bem aqui e apreciar a vista, é o maior paraíso aqui em cima, não é?

Desmond - Quanto você quer?

Beat - O que eu preciso, eu pego. E agora eu quero um pouco de diversão. Que tal se eu
puser você no seu trenó e empurrar só um pouquinho precipício abaixo, é bom que você vai
chegar rapidinho lá em baixo no inferno, e o seu anjinho fica aqui comigo e me faz um
ventinho com as asas e um pouquinho de sombra quando estiver sentada em cima da minha
barriga e a gente subir junto pro céu.

Tracy - Não é justo, eu também quero alguma coisa dele. A gente podia pelo menos regar
ele com um pouco de gasolina antes, o tanque dele está vazio. Ou você dá um tiro no joelho
dele, e eu enfio a garrafa de água no cu dele, nós estamos no deserto mesmo.

Desmond - O que vocês estão planejando fazer com a gente?

Beat - Está com cera no ouvido?

Desmond - Nós não fizemos nada para vocês, peguem tudo que quiserem e deixem a gente
ir embora, a gente consegue chegar no hotel.

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Beat - Não fizeram nada? Você roubou a inocência da minha gatinha e a consciência do
meu amigo. Isso não basta? Ri. Ele disse que eu reconheceria você pelas botas.

Valery - Não aqui, Beat.

Desmond - O quê? Valery!

Valery - Primeiro vamos comemorar o aniversário dele e fazer ele perceber que o paraíso
está em todos os lugares do céu, mesmo que o presente não resulte em clemência.

Tracy - Maneiro. Vamos esperar até que o Hal chegue.

Beat - Me dê o seu celular.

Desmond - Ele não está funcionando.

Beat - Dê ele logo, de uma vez. A senha?

Desmond - 62816

Beat - Ah, o seu aniversário, que original. Alô, Hal, onde é que você está? Até mais. Ele
vai chegar em dois minutos. Para Tracy. Pegue o champanhe no isopor. Tem também um
recado para você aqui, sua mãe, desejando tudo de bom e saúde para você.

Tracy - Aí vem ele.

Desmond - Vocês têm que nos ajudar.

Hal "Paradiso" – É o maior paraíso aqui em cima, faz jus ao meu nome.

Tracy - O nome dele é Hal Paradiso, não é engraçado isso?

Hal estala constantemente os ossos dos dedos. - Meu nome artístico.

Tracy - Porque despacha todo mundo pro além.

Hal - Pro paraíso, Tracy. Vocês não querem me apresentar os seus amigos? Não é
pitoresco isso aqui, esse visual, as montanhas que se ajoelham e se arranstam nas canelas
pelo deserto salgado adentro? Como o sol, quando se põe entoca Deus no Devils Course.
Eu amo este lugar, é tão calmo aqui em cima, uma paz, vocês deviam desligar o rádio e
desfrutar essa paz, essa paz celestial. Sabiam que a chuva evapora antes de tocar o chão?
Só aqui que ainda dá para pegar umas gotinhas com a língua. Eu sempre venho aqui,
quando estou melancólico. Você é o Desmond, não é. Esse é o melhor lugar mesmo para
comemorar o aniversário, tanto silêncio nem eu conseguiria arranjar para você.

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Desmond - Por favor, parem com isso, eu não agüento mais, eu sei, a Valery contratou
vocês, eu não agüento mais, por favor, vamos parar com isso.

Beat - Ele não está com a cabeça limpa, não.

Tracy – Mas é uma gracinha, não.

Hal - Não vejo a hora.

Valery - Vamos ficar aqui para sempre?

Hal para Valery. - Meu olho, que a acompanhou enquanto dava e depois perdeu ela de
vista, voltou para o alvo da exigência mais forte e totalmente para ela. Só que ela reluzia
tanto nos meus olhos, que no começo meu rosto não agüentou, e eu também tive que adiar
as minhas perguntas.

Tracy - Um avião.

Beat - Me dê o baseado.

Hal - A bonita tem razão, é melhor a gente ir andando, o sol muda junto com as dunas, a
melhor luz agora está lá em baixo.

Tracy - Zabriskie Point.

Hal - Você que está dizendo.

Tracy - E o nosso pobre Desmond finalmente vai poder ver de novo seu amigo do porta-
malas. Pode ser que ele dê a cabeça dele de presente para você, antes de a gente soprar a
sua velinha de aniversário.

Valery - Não machuca ele.

Hal - Ela me olha com os olhos tão abertos, que acabo perdendo a coragem e ficando
cabisbaixo feito um perdedor. Vamos embora.

Beat - Você vai com o Hal, a Valery comigo, vamos ver quem é o melhor helldriver.

Hal - Olhem mais uma vez para trás, paradisíaco, não.

Beat - Desmond, telefone para você.

II. Zabriskie Point

CENA 1: DREAM ON

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Paisagem de montanhas de lama, um rosto corroído de pele pisada ou um ninho de
esqueletos de cobra amontoados, sombras que inundam as dobras, precipícios negros, tons
marrons que se aquecem e modificam em vermelho, o céu de um azul sobrenatural. Ao
fundo um mirante redondo, que, como um nó, enfeixa os caminhos que levam a ele. Num
dos cumes das montanhas, Desmond e Valery, sós. À distância, pessoas irreconhecíveis, o
zumbido quase inaudível de um rádio de automóvel, o som intermitente de uma
motocicleta.

Desmond - Agachado, chorando, Valery segura-o em seus braços. - Eles foram todos
embora, todos, desapareceram.

Valery - Foi só um sonho ruim.

Desmond - Está ouvindo, olha aí, uma moto, me segura bem forte, eles estão voltando, nós
temos que fugir, você não ouviu essa moto, aqui, a gente escorrega por essa fenda, ninguém
vai ver a gente ali, venha.

Valery - Quieto, bem quietinho, já passou, estamos sós. Era o vento, foi só o vento.

Desmond - Eu estou falando, eles vão matar a gente, aí, de novo, você não ouve?

Valery - O ódio e o desespero estão invadindo o seu coração. O medo faz você ouvir
coisas.

Desmond - Parece que a minha língua está secando dentro da boca.

Valery - Você está com sede?

Desmond - É como se a parte de trás da minha cabeça estivesse sendo devorada, e quando
você me acariciasse o cabelo, uma baba cinza ficasse colada na sua mão, que você limpava
na minha nuca.

Valery - Nós não temos mais água.

Desmond - Para onde eles foram, porque eles nos deixaram viver, eu tive medo que eles
nos escalpelassem e fizessem guarda-sóis com a nossa pele, do jeito que aquele Hal falou.
Ele disse que nos nossos corpos tinha água suficiente para atravessar o deserto.

Valery - Ele salvou a sua vida. Se você não chorar agora...

Desmond - ... não chora nunca mais, eu me lembro. Mas -

Valery - Quando ele quebrar a sua nuca, não vai sair música nenhuma, foi o que ele disse, e
daí ele vai ficar bem melancólico. Imagine só o meu pressentimento.

Desmond - Eu me sinto como se as últimas horas fossem um buraco atrás na minha cabeça,
por onde uma cor densa e preta escorre quando eu tento me lembrar e as cenas me voltam.

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Valery - As primeiras lágrimas são duras, e como uma viseira elas impregnam debaixo das
sobrancelhas a órbita do olho.

Desmond - Taí o choro de novo. O que aconteceu, Valery, o que foi que aconteceu, que
diabo estamos fazendo aqui, o que vamos fazer agora, quando eles voltarem e só quiserem
tortura, um pouquinho de esperança, para que mais tarde a dor seja maior e se divirtam
ainda mais. Onde está meu celular, temos de chamar a polícia, eles têm que tirar a gente
daqui.

Valery - Procure no seu bolso.

Desmond - Mudo, está mudo de novo, totalmente muda essa coisa. Tem gente lá em cima,
com certeza vão dar uma carona para gente se a gente contar o que aconteceu, talvez
alguém tenha um telefone, temos que chegar no hotel, não pode estar muito longe, nem que
a gente tenha que ir a pé.

Valery - Ninguém vai acreditar em você, vão achar que você é louco.

Desmond - Eles quase mataram a gente!

Valery - Você não tem provas.

Desmond - Você é a minha prova.

Valery - E por acaso eu estou meio morta?

Desmond - Não, mas, puta que pariu...

Valery - É você.

Desmond - Puta que pariu, eles têm que acreditar na gente, ele está com a minha bota,
qualquer um enxerga isso, e o dinheiro está dentro dela.

Valery - Você com a sua bota no pé.

Desmond - E o morto, eles disseram que ele tinha que estar aqui.

Valery - Por acaso você está vendo mortos andando por aqui, tirando fotos de recordação
com máquinas automáticas?

Desmond - Então, onde é que ele está, caralho?

Valery - Talvez ele tenha achado um porta-malas onde se acomodou confortavelmente.

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Desmond - Páre de me gozar, Valery. Eu não estou entendendo nada. Merda, eu estou
morrendo de medo, está entendendo? Me explique o que está acontecendo aqui, eu não
estou louco, eu não vou ficar louco, Valery?

Valery - Você está quase no lugar exato onde as aparências irão lhe dar a resposta da causa
da expiação das dores.

Desmond - Eu estou sofrendo a danação do inferno.

Valery - Isso ainda virá.

Desmond - O que eu fiz de errado?

Valery - Tarde demais.

Desmond - Você não me ama mais. Tudo porque você não me ama mais. É esse o motivo,
não é?

Valery - Se é para ajudar, então me fale quem você é, que eu liberto você.

Desmond - Mas você me conhece, Valery, cada fiapo em mim, e o porco que eu sou, mas
você sempre me amou e me perdoou. Você sabe que eu não sei ser de outro jeito, mas eu
sempre amei você, mais ninguém, eu não queria machucar você, cometi um erro, não
deveria ter feito isso, mas a gente pode começar de novo, do começo, Valery. Na hora em
que eu quase morri de medo eu só pensei em você, está me ouvindo, só você. Você sempre
amou esse porco aqui, me dê uma chance, só uma, amanhã a gente vai estar em Las Vegas,
vai ser a última vez, só mais amanhã e a gente pode começar uma vida nova em qualquer
outro lugar, eu vou com você para qualquer lugar, para onde você quiser. Eles não vão me
pegar, amanhã não tem mais contas abertas, eu só preciso de mais esse um dia, desse um
dia, agüente esse maldito um dia comigo ainda como eu era e depois vamos esquecer tudo e
começar de novo. Estou falando sério, Valery.

Valery – Supersério.

Desmond - É, supersério se você quiser. Olhe, eu tatuei o seu nome debaixo do meu
coração, eu só ia mostrar para você hoje à noite. Isso é um começo, um maldito recomeço.
Valery, eu te amo, amo mesmo.

Valery – Você vai ter de riscar ele.

Desmond – Não.

Valery – Tem muito nome por baixo.

Desmond – Ninguém, Valery, só você, eu amo só você, sempre.

Valery – Eu quero que você corte uma ponta do seu dedo por mim.

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Desmond – O quê? Você ficou maluca?

Valery – Pode escolher qual.

Desmond – Por que, caralho, por que, para que isso, não basta que eu amo você, amo,
Valery.

Valery – Para que você não se esqueça.

Desmond – O que você quer com o meu dedo, para quê?

Valery – Tão logo o homem ensaia traição o corpo é tomado pelo diabo, que passa a
conduzi-lo até que seu tempo terrestre se expire.

Desmond – Eu não traí você, isso não foi traição.

Valery – A ponta do dedo ou eu mando você para o inferno.

Desmond – Eu não acredito, primeiro esses porcos querem me massacrar, daí vão embora e
você quer me mutilar. Você pagou eles, confesse. Vocês querem me enlouquecer. Ele está
atrás disso, vocês estão juntos nessa. Eu bem que desconfiei. Por que não pensei logo nisso.

Valery – Agora estique a mão e faça.

Desmond – Confesse! Ele pula nela e começa a enforcá-la. Confesse de uma vez!
Empurra-a para longe.

Valery – Agora também vai me matar?

Desmond – O que é que estou fazendo, estou ficando louco, estou pirando completamente!

Valery – Uma pequena prova de amor, um pequeno corte e tudo vai ficar bem de novo.
Nem dói tanto assim.

Desmond - Quer morder?

Valery - Morder seria o de menos. O canivete no seu bolso.

Desmond - Eu não tenho -- é verdade!

Valery – Se você me ama, sublinhe aí meu nome debaixo do seu coração com o cotoco do
dedo, daí vou acreditar em você, amado.

Desmond – Vou fazer. Me dê um beijo. Ela o beija ele corta a ponta do dedo fora.

Valery – É hora de ir embora, agora você está livre.

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CENA 2: POINT OF NO RETURN

O mesmo lugar, a moto de Beat na crista da montanha. Tracy e Beat de costas para o
público, encobrindo Desmond.

Tracy – Ele está acordando.

Beat --- Eu devia ter batido mais forte.

Tracy – Talvez a nuca dele emita um som musical.

Beat – Você pode assobiar com o toco do dedo dele.

Desmond – Onde estou?

Tracy – Estava sonhando né, que saímos voando como anjinhos. Deu azar, fofo. Não
saímos do seu lado.

Desmond – Dêem o fora.

Beat – Quer o dedo dele, eu corto para você, não tem problema.

Tracy – Já tenho ele.

Beat – Então está.

Desmond – Onde está a Valery?

Beat – Com o Hal.

Desmond – O que ele vai fazer com ela?

Tracy – Ah meu fofo, não seja tão ingênuo.

Beat - Eles foram se divertir um pouco no hotel.

Tracy - Que nem a gente com você.

Desmond – Ela não foi com ele porque quis, seus canalhas, soltem a minha mulher, eu vou
acabar com vocês, eu faço tudo, peçam o que quiserem, não vão ganhar nada se
massacrarem a gente aqui no deserto, eu tenho dinheiro, uma puta grana, é sério, amanhã,
amanhã, vocês só precisam me dar um tempo, um dia, só um dia, soltem a gente e eu
prometo a vocês, o que vão fazer com ela, ela não tem culpa de nada, foi meu erro, eu, por
favor, vocês não podem ser tão cruéis assim, por favor, tudo, o que quiserem.

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Tracy – A gente é capaz de ficar bravo de verdade, fofo, e sem nenhum motivo.

Beat – A cada hora ele vai mandar um dedo dela para gente, depende de você, se não quiser
que a gente enfie eles no seu rabo, um depois do outro, até que possa chupá-los na boca ou
caiam pela sua garganta.

Desmond – Mas você disse que ela tinha ido por vontade própria...

Beat – Isso torna a coisa toda ainda mais emocionante, não é, se de repente, enquanto
estiver dormindo com ele, faltar um dedo dela.

Desmond – Por que, por que estão fazendo isso, o que querem que eu faça?

Tracy – O Hal acha que a sua nuca não emite som, percalços do artista. Você é uma nota
excedente na partitura dele.

Desmond – Quem está pagando vocês, é o Hal?

Tracy – Eles expulsaram ele do paraíso, isso o deixou triste; não pode mais ouvir os
anjinhos e ele se lembra disso quando quebra a nuca de alguém, e quando não faz nenhum
som, ele fica puto, mas muito puto da vida.

Desmond – E daí? Mas que culpa tem a Valery, que a minha, que ela não emite som, como
é que ela ia saber?

Tracy – Mortos não emitem som, dentro deles não tem mais música.

Desmond – Mas que porra, eu não estou vivo ainda?

Beat – Está mesmo?

Desmond – Pegue em mim, aqui, no meu pulso, meu coração está batendo. Ele morde a
ferida do dedo. Olha aí, isso é sangue, merda, por que não sai sangue, espere.

Beat – Não é para ficar aqui feito menininho, roendo unha.

Tracy – A gente viu você deitado no porta-malas. O Beat tirou você de lá e roubou a sua
bota.

Desmond – Mas vocês chegaram depois, olhem para mim, eu estou com as mesmas botas,
não era eu, então como é que eu poderia estar aqui falando com vocês, pensem um pouco.

Beat – Está bom, já que prefere assim, então você está morto.

Tracy – Nem emite som.

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Beat – Exato.

Tracy – E os seus olhos estão tão opacos, não existe ressonância atrás dos seus olhos.

Desmond – Ok, entendi, estou morto, está certo, então agora me deixem sozinho por favor,
deixem a minha alminha sair do meu corpo e subir aos céus, deixem soltar um pouquinho
de gases e começar a apodrecer, vocês não querem ficar assistindo isso não é, e mandem a
Valery passar por aqui, para fechar meus olhos, vocês não podem me negar isso, um último
desejo, vocês não podem negar.

Tracy – Negar a gente pode.

Beat – O Hal ainda tem planos com você e até lá a gente pode se distrair um pouco.

Tracy – Quando ele fica bravo ele é capaz de estuprar defunto.

Desmond – Vou gritar por socorro, vão deixar vocês presos até o fim das suas vidas.

Tracy – Você já era. É melhor enterrar você no cemitério de automóveis. Você está no
porta-malas e o rádio ainda está tocando Like a rolling stone para você.

Desmond – Deve ter uma saída, deixem eu telefonar, vai dar, hoje de noite vocês vão ter a
grana, a gente se manda daqui junto e eu entrego a bufunfa para vocês, cem mil dólares.

Beat – Vai assaltar outro banco, caubói?

Tracy – E o Hal e aValery?

Desmond – A gente faz isso sozinhos, cinqüenta mil para cada um de vocês, vamos cair
fora no ato.

Beat – Quando a gente voltar a sua gatinha não terá nenhum dedo mais para fechar os seus
olhos.

Desmond – Vocês não precisam voltar, pensem no dinheiro, não vamos voltar, andem,
venham, estão esperando o quê, é uma bolada.

Beat – Mas o Hal vai ficar puto, ele queria ainda judiar de você um pouco.

Desmond – Se demorarem muito, será tarde, daí o negocio vai furar.

Beat – Ok.

Tracy – Eu tenho uma idéia melhor.

Desmond – Não dá bola para ela, cem mil dólares, cem mil.

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Tracy – O Hal vai matar a gente.

Desmond – Ele não vai encontrar vocês, conheço um ótimo esconderijo para vocês darem
um tempo.

Tracy – O Hal está em toda parte. Fugir do Hal é uma viagem pelo inferno e, de repente,
faz clic no meio das suas costas.

Beat – E o que vamos fazer agora, gata?

Tracy – O que ele disse.

Beat – E a grana?

Tracy – O Hal vai pagar você divinamente. Foi bonito né, como num segundo uma ponta
de esperança iluminou o seu olhar apagado.

Desmond – Eu conheço esse Hal, conheço ele sim, de onde é que conheço ele, o dinheiro,
pensem no dinheiro, vocês podem sugerir a ele, tem o suficiente para todos, vão ter mais
prazer com ele do que comigo, conosco, eu...

Beat – Vamos sortear um número.

Desmond – Que número?

Tracy – Exatamente como antes, naquele hotel, você se lembra, só que com uma pequena
variante.

Desmond – Dormir comigo, você quer, que variante?

Tracy – Enquanto você me fode, o Beat arromba o seu rabo por trás com o cacete enorme
dele e manda o seu occipital pelos ares se você não for delicado comigo. Ela tira a roupa e
se deita no chão.

Beat – Baixa as calças aí.

Desmond -- E daí?

Beat – E daí a gente acabou de falar.

Desmond – O que vocês vão fazer comigo depois?

Beat – Baixa as calças, ou vai esperar eu usar o trabuco?

Desmond – Vocês não podem me estuprar, eu sou –

Beat – A gente vai jogar o seu jogo predileto, vai demorar?

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Tracy – Venha, benzinho, eu sussurro poesias no seu ouvido enquanto isso. Desmond
deita-se sobre Tracy, Beat solta o cinto, ajoelha-se, nesse instante aparece Hal atrás de
Beat e quebra sua nuca.

Hal – Soa bem. Traidores tem o som mais puro.

Tracy – Hal, não!

Hal saca um revolver e atira nela. Pausa.

Desmond – Deixa eu viver, por favor, por favor, você é ...

Hal – Agora pense, se você ainda tiver senso para isso, o que vai ser de você entre a vida e
a morte, e imagine como o todo deve ser grande para que possa combinar com essas partes.
Você tem noção da origem do seu sofrimento e porque, o que antes era tão bonito, agora
ficou tão feio. Eu vou lhe contar, e depois disso nós dois vamos tocar uma música juntos e
eu vou estourar você no três. Então preste atenção e não perca a sua entrada quando eu
começar a contar. Eu quero que esteja preparado para o seu impulso para o inferno e que
você, quando atingido, diga “paradiso” para que eles saibam de quem você vem quando
virem a estrela preta entre os seus olhos. Então vamos tentar uma vez e daí eu explico tudo,
então preste bem atenção: um, dois, um, dois...

Tracy - com sua última força. Três.


Ela atira nele com a pistola de Beat. Desmond está deitado entre os cadáveres e grita. Sly
aparece, gesticulando muito, sempre tentando escapar de ataques imaginários,
completamente drogado.

Sly – Feche a tampa do meu crânio, rápido, está cheio de urubus, estão atacando meus
miolos, anda, vai logo, isso é demais, xô, xô, urubu, está vendo os urubus, um monte de
bicos, nhaque, nhaque, nhaque, tampe o meu crânio, ah, e agora ainda estou vendo um
monte de defuntos deitados por aí, do cacete, maior barato, do cacete, nhaque, nhaque,
nhaque, não vale bicar os meus olhos, ei, esse aí está com o meu cérebro no bico, rápido,
feche a tampa do meu crânio, anda, anda, vamos cair fora, os urubus, os urubus são
engraçados, um monte de defuntos, nem estão aí, onde é que estou, nhaque, nhaque,
nhaque, sumam, venha logo. Ele pega Desmond e os dois saem correndo.

CENA 3: POOL

O oásis. Uma piscina cintilante azul-claro ao nível do mar. No fundo um muro de pedras
do deserto com um nicho, no meio dele uma lareira superdimensionada, que parece um
fogão. No meio do muro, arcos pelos quais se vê à direita uma plantação de palmeiras e à
esquerda um deserto de sal. Acima um céu ardente, em que o sol derrete lentamente, até
que a água adquira a sua cor. No nicho, debaixo do guarda-sol, Valery e Sam "Dante”
Spencer, vestindo uma roupa tropical bege, deitados sobre cadeiras de vime brancas,
apreciando seus drinques. Atrás, lida Gonzo, que representa “o homem morto”. Não se
repara nele. A água começa a ferver imperceptivelmente.

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Sam “Dante” Spencer faz repetidas pausas para beber, enquanto fala. - Eu me ergui sem
uma palavra, me segurando só nele, só olhava para ele, quando ele começou: “Siga-me,
precisamos voltar para trás dessa encosta que mergulha plana em direção ao nível do mar".
Atingido pelo raio do sol, o entardecer já fugia e desaparecia, e ao longe eu reconhecia o
brilho refletido do mar salgado. Nós cruzávamos a terra abandonada, como se tivéssemos
perdido o caminho e tivéssemos desviado dele em vão. Quando chegamos a certo lugar,
onde o suor ainda resistia aos raios de sol e, meio na sombra, só evaporava lentamente, ele
esticou as duas mãos e colocou-as suavemente sobre o chão salgado. E eu entendi o que ele
tinha em mente e ofereci-lhe as faces molhadas pelo choro. Então ele limpou toda a cor do
vapor do inferno que em mim escureceu. Chegamos à praia deserta que nunca vira um
barco, onde jamais pisara alguém que depois tivesse encontrado o caminho de volta para
casa. Para o garçom. Traz mais um desses troços do inferno, mas com um pouco mais de
tabasco, ah, traz logo a garrafa, o negócio tem que ser muito forte para fazer efeito contra o
calor, tem que queimar na garganta. Para Valery. E o sol ardia nas minhas costas, e de mim
recortava, com raios interrompidos, o contorno do meu corpo. Eu me virei para o lado
morrendo de medo que estivesse abandonado, quando vi que o chão estava escuro só na
minha frente. E ele, meu amigo: “Por que o temor? Achou que eu não estaria do seu lado
para guiá-lo? Na terra distante onde agora alvorece a manhã, está enterrado o meu corpo
que fazia sombra”.

Valery – O senhor é mesmo parente do Scotty?

Spencer – Dê uma olhada nos meus antebraços e encontrará as veias douradas.

Valery – O senhor é chantagista como ele.

Spencer – Você tem razão, a minha mulher pesa cem quilos.

Valery – O que senhor faz aqui?

Spencer – Estou de passagem.

Valery – Para onde?

Spencer – Eu vou ficar mais um pouco aqui defumando com você e depois vou para
paraíso.

Valery – Ou direto para o inferno.

Spencer – Tudo depende se a gente ganha.

Valery – Las Vegas é um buraco quente.

Spencer – Pelo menos os pés não ficam frios. Sabe como os índios chamam Death Valley?

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Valery – Parece que vocês acham que estamos familiarizados com essa região, mas nós
somos peregrinos como vocês.

Spencer – Eles chamam de Tomesha: terra do fogo.

Valery – O senhor devia ter construído um cassino aqui.

Spencer – Eles tinham cartas ruins.

Valery – Não são os únicos que perdem tudo por aqui.

Spencer – Como eu.

Valery – O senhor não aparenta estar arruinado.

Spencer – Dinheiro não é tudo que se pode perder, meu bem.

Valery – Qual foi seu lance?

Spencer – A minha filha.

Valery – Apostou sua filha?

Spencer – Foram de fato horríveis todos os meus pecados, mas a misericórdia acolhe,
incansável, o arrependido.

Valery – Bendito quem consegue acreditar nisso.

Spencer – Ele trapaceou.

Valery -- Isso é um motivo, mas não é uma desculpa. Sua filha...

Spencer – Nunca mais a vi. Meu filho não quis acreditar que ela tenha se suicidado como
me contaram. Ele a procura, há um ano não tenho noticias dele.

Valery – Ele ainda fala com o senhor? Ele deveria ter matado o senhor ou apostado no
jogo.

Spencer – Ele bem que tentou. Ele nunca soube blefar tão bem como eu. É um péssimo
perdedor. Errou o tiro. Nem isso ele conseguiu. Acertei minhas contas com ele, fui ao
inferno e voltei. Quer ver a cicatriz, mandei tatuar um ás de copas no lugar, a cicatriz passa
bem pelo coração. E hoje, quando alguém quer me sacanear, ele bate forte e eu sou mais
rápido.

Valery – E sobre o peito ele desnudou sua ferida.

Spencer – E se entregou sorrindo.

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Valery – Por que não procura por ela?

Spencer – Cartas que desaparecem nas mangas sempre voltam a aparecer, mesmo que se
tenha de tirá-las de um morto. Eu espero.

Valery -- Mesmo quando se arrepende tem de esperar trinta vezes mais que a mais
perstistente das obstinações, se a prece não encurtar o seu tempo.

Spencer -- Por aí você pode ver como pode me consolar, se contar para minha filha em que
estado me encontrou e como estou esperando.

Valery – Num oásis no vale dos mortos com um coquetel na mão e calçando sapatos
brancos engraxados.

Spencer – Esperar é uma arte difícil. Enquanto espero, a areia cresce atrás dos meus olhos
e o tempo me é levado embora como uma duna e terei de vagar para sempre nesse vale.

Valery – E o trapaceiro?

Spencer – Eu percebi, depois, que ele a tinha levado para o quarto dele. Quando cheguei lá,
já era tarde.

Valery – Não foi atrás dele imediatamente?

Spencer – Sabe quantos quartos existem nesses hotéis?

Valery -- O senhor sabia o nome dele?

Spencer – Em jogos assim não existem nomes escritos em plaquinhas nas portas.

Valery – Mas conseguiu achar o quarto. A sua filha ainda estava lá, por que ela foi junto, e
por que ela foi junto afinal?

Spencer – Só encontrei um travesseiro ensangüentado.

Valery – O que ele fez com ela?

Spencer – Quando a mais preciosa das fortunas da alma é atingida pelo desejo ou pela dor
e toda a alma se volta para isso, é assim que ela demonstra que nada mais interessa a ela.
Eu só vejo esse travesseiro. Quando acordo de noite sinto cheiro do sangue e imagino que
ela respira do meu lado, eu quero colocar o meu braço em volta dela, como antigamente,
quando ela era criança e me procurava, quando tinha pesadelos que a tiravam da cama,
quero colocar meu braço em volta dela mas encontro o nada. Desde então quase não durmo
mais, só com calmantes. E eu nem ao menos consigo tomar demais dessa coisa porque
tenho medo de sufocar num mar de travesseiros ensangüentados e ainda assim não morrer e
poder esquecer.

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Valery – Como é que ela saiu do hotel, ninguém a viu, deve ter chamado atenção, ela
estava ferida, ele a carregou. O senhor deve ter descoberto algo? Tinha passado no máximo
uma hora.

Spencer – Mais um drinque? É só a alma dela que faz efeito em mim e vou envelhecer com
isso. Quando a alma é atraída e aprisionada pelo que se escuta, pelo que não se vê, o tempo
passa e a gente não percebe.

Valery – Não estou interessada nas suas manchas de senilidade, por que não foi atrás dela?

Spencer – Eu fiquei ali parado só olhando o travesseiro. Não sei mais como saí daquele
quarto.

Valery se abaixa. - Era muito covarde e esperou até que fosse tarde demais.

Spencer – Que cicatriz é essa na sua nuca?

Valery joga o cabelo para trás. - Quer entender como isso é possível? Recorde-se, daí
você vai entender. O senhor não é nada melhor que ele.

Spencer – Acha então que não posso esperar por nenhuma trégua nesse sofrimento?

Valery – Mais eu não digo, mas disso eu tenho certeza.

Spencer – Então é melhor continuar bebendo. Sabia que aqui, nesse belo oásis em que
estamos deitados, os primeiros colonos se devoraram uns aos outros e roeram a carne dos
ossos?

Valery – No senhor teriam muito que roer.

Spencer – Carne estragada não tem sabor. Tome aqui o meu cartão de visita caso seja
atingida pela fome alguma vez.

Valery – Por que tem esse “D” no meio?

Spencer – Uma fraqueza minha, sou um comediante.

Velery – “D” de...

Spencer – Temos visita.

Valery – O senhor lia histórias para seus filhos na hora de dormir?

Desmond aparece. Valery! Valery, você está viva e deitada aí...

Valery -- Posso apresentá-lo, Sr.Spencer.

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Spencer – Me chame de Sam.

Valery – Sam “D” Spencer.

Spencer – Não nos conhecemos?

Valery – Meu marido.

Desmond – Desmond. Valery, por que você não, por que está deitada aí, eu pensei que o
Hal tivesse, graças a Deus, o que aconteceu, você não veio com ele, por que não mandou
ninguém, eles estão mortos, por que você não mandou ninguém, ele veio com você para cá,
e daí ele voltou, ele matou eles, Beat e Tracy, mortos, daí ela, foi tudo tão horrível, eles
queriam me estuprar, ele ia atirar em mim, não fosse a Tracy, estão mortos, todos mortos,
Valery, como você pode ficar aí deitada tomando coquetel, não entendo, mortos, todos
mortos, por que você não foi me salvar, por que não tentou, eu ainda estaria lá em cima não
fosse o Sly, onde está o Sly, ele colocou o revólver na minha nuca e daí apareceu esse
maluco do Sly e me trouxe até aqui, eu procurei você, tive tanto medo por você, eles
mesmos acabaram com eles, e esse Sly pirado diz que estou vendo fantasmas, ele está
totalmente doidão, Valery, você viu eles, ele foi embora com você, Hal, ele voltou, o que
ele fez com você, revistamos o hotel inteiro, morto, também quero um drinque, tive tanto
medo, cacete, me traz algo para beber, Spencer, não Spencer, maldição, eu não conheço o
senhor, começa essa merda de novo, também não conheço nenhum deles, Valery, Valery,
não agüento mais, cadê o meu drinque, porra, eu não entendo coisa alguma. Explica para
mim, Valery, me explica.

Spencer – Um louco, quem espera que a nossa razão possa cruzar a fronteira sem limites.

Desmond – Cale a boca! Valery, por favor, eu não estou tendo alucinações não é, não estou
louco!

Sly – Ei, legal, bom, u'a piscina cum defunto dentro, cozinhando feito espaguete na panela,
ei Bloody Mary, maneiro, deixa eu beber essa piscina, nhaque, nhaque, nhaque, os urubus
de merda, onde estão, ei, Desmond, queridinho, vrum, vrum, vrum pela curva vrum, foi
maneiro né, a única coisa que você pode fazer nessa porra dessa terra de merda é morrer
numa estrada guiando um carro enorme, vrum, vrum , e acelerar, no giro máximo, só na
máxima velocidade, como diz meu advogado, e pá, nhaque, nhaque, nhaque, atropelar os
urubus e os caroneiros de merda, e judiar dos filhos da puta até espremer a piração deles
para fora do cérebro, nhoque, nhoque, nhoque.

Desmond – Sly!

Sly – Você tem que cheirar a coca de uma lata de cerveja com uma nota de cem dólares, até
estourar a cabeça e até conseguir foder elefantes, nheco, nheco, fom, fom, nhaque, eles
voltaram, nhaque, nhaque, nhaque, ei, Desmond, não quer apresentar seu amorzinho e seu
saco de gordura, o papai ou o quê, foda-se, os urubus, seu amorzinho está ardendo, ei,
baby’s on fire you better thow her, nhaque, nhaque, nhaque in the water, ei, amigos, meu

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coração parece o Aligator, não tem uma música melhor aqui, precisamos de baixos, baixos,
Bloody Margaritas, aqui o som de tudo parece abafado por travesseiros, ei, pá, agora
peguei um, ei Desmond, não vai me apresentar os freaks?

Spencer – Um drinque a quem chama do deserto, ele está com sede! Sou Sam, muito
prazer.

Sly – Sam, boa. Que diabos estamos fazendo aqui no deserto se nossos
corações estão doentes?

Valery – Acho que ele já tem o bastante.

Desmond – Alguém tem de chamar a polícia, eles estão mortos, estão lá jogados.

Sly – A polícia, a polícia, pega e pica e joga no pinico, ô seu cão safado filho de um
caroneiro, vê lá o que diz, senão eu meto esses tiras no pinico, é melhor você enrolar um
baseado.

Spencer – Não é da minha conta, mas para que chamar a polícia?

Desmond – Valery, temos que sair daqui.

Sly – Porque está enxergando defuntos, defuntos, defuntos em toda parte, como eu, bagulho
ruim quando a gente vê defuntos, bosta de bagulho, quando fede a defunto dentro do nariz,
remédio errado, também vi um monte de defuntos, está, pimba, e Desmond no meio deles,
péssimo bagulho, sobe pela perna
formigando e depois aparecem urubus por todo lado e o meu advogado cagão tem de
batalhar para livrar a minha cara.

Spencer -- Isso sim é que é um verdadeiro show de horrores, o que vocês dois estão
desfilando aqui. Com Aquiles deve ter acontecido assim, olhando em volta com os olhos
esbugalhados de medo.

Desmond – Será que agora pirou todo mundo, lá em cima têm três mortos e vocês ficam
fazendo piada. Valery, me ajude.

Valery – Você está drogado?

Desmond – Eu?

Sly – Uau, que baratão, puta barato, Desmond, tem um monte de morcego saindo da nuca
da Valery. Ei, pára de viajar, ali não tinha defunto algum, atira neles, pá, pá, pá os urubus
que os carreguem, aí estão eles fazendo nhaque, nhaque, nhaque em você, não eram
defuntos, mandei um cara ir lá ver, ele voltou dizendo que não tinha nada, nenhum morto,
nada, só urubus, ninguém, nada, nenhuma gota de sangue, o cara do hotel voltou e nada,
porra de bagulho de merda, ficou com paranóia de defunto, você tem de beber, bebe,
Desmond, amorzinho, quem é que está nadando ali, ei, o seu amorzinho tem uma cicatriz

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na nuca, Desmond, você fez nhaque, nhaque, nhaque, Desmond, legal, legal, vamos subir lá
de novo, não tem ninguém, só urubus, atirar neles, daí você vai ter defuntos, só não a
polícia, polícia não, ei, ei, não põe a mão em mim.

Spencer – Fique bem calmo Desmond, eu vou me informar se isso o tranqüiliza, mas
primeiro tome um bom gole e descanse um pouco.

Desmond – Eu não estou louco, não sou louco, eu vi quando o Hal...

Valery – O jogo acabou, Desmond, eu estou sabendo, Hal me contou tudo.

Desmond – Hal?

Valery – Não vamos discutir isso aqui na frente dele.

Desmond – Sly, cai fora, se manda daqui, pinica!

Valery – Desmond!

Sly – Atira no joelho dele, bacana essa bota, nadar sempre por cima, sempre por cima, a
água está fervendo, blube, blube, sempre por cima, Desmond, até que o sal faça uma crosta
no seu cu, não se esqueça de mim, os urubus vão nhaque, nhaque, nhaque em você, trincar
os seus ovos e assar pro jantar, nem precisa mais salgar, rá, rá, enfia o pau no seu joelho,
onde está meu remédio, meu advogado não vai ajudar você, logo, logo você é que vai ser
um defunto cagado, que a gente rega com cerveja na despedida, ninguém mais vai querer
levar você, vai ser uma trip do inferno, trip, trip, se preferir pode pular na água agora,
cartas ruins, Desmond, cartas ruins para você, só urubus, nhaque, nhaque, nhaque, em vez
de dama de copas, bye, bye, Desmond, bye, bye, Valery, bagulho ruim, bagulho ruim, tem
gosto de sal, vão para o inferno, vrum, vrum. Pula na piscina e desaparece.

Valery – Olha lá uma águia. Vai ver que ela só está dando rasantes com suas garras aqui e
sabe-se lá mais onde, e não quer pegar a gente. Parecia que estava voando em círculos em
cima de você e despencava como um raio fulminante e arrastava você para o céu em
chamas.

Desmond – Vamos cair fora daqui. Até que enfim aquele maluco se mandou. Vamos
embora, vamos deixar esse pesadelo enterrado atrás de nós.

Valery –Vou pedir mais um drinque, quer um também?

Desmond – Valery, está fervilhando de mortos isso aqui, preciso ir embora, tenho de
esquecer isso tudo, esquecer, não entendo mais o mundo, como é que você pode estar tão
calma, Hal, ele queria me, se ela não, e Sly, eu não estou inventando, estão lá, ainda estão
lá deitados, se a gente não chamar a polícia então logo será a nossa vez, estou com medo,
estou com um puta de um cagaço, Hal...

Valery – O Hal é seu amigo.

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Desmond – O quê?

Valery – Ele me contou tudo. Você é mesmo o pior monte de bosta que eu conheço.

Desmond – Eu e Hal, Hal queria me, eu não conheço ele, não conheço nenhum, vocês
todos querem me..

Valery – Vocês dois fizeram uma aposta suja por mim.

Desmond – Uma aposta, Hal e eu?

Valery – Ele desistiu.

Desmond – Uma aposta? Ele está mentindo, mentindo, Valery, eu não conheço ele mesmo,
ele quase me matou.

Valery - Devia ter me deixado com medo, eu pensei que ia me matar.

Desmond – Vem junto, vem, eu vou lhe mostrar, ele está morto do lado dos outros.

Valery – Pára de mentir para mim, estou de saco cheio das suas idéias perversas.

Desmond – Eu juro.

Spencer – Último alerta, Desmond. Os demônios montaram na sua garupa. O senhor não é
o primeiro que vê fantasmas por aqui. Sly estava certo, não encontraram ninguém, nenhum
sinal de sangue, ninguém que tivesse visto alguma coisa, só turistas fotografando. Parece
suportar melhor as drogas que o senhor, bem, agora podemos beber mais um trago com
toda calma e descontração antes de partirem para Las Vegas. Ah, como se passa da
tempestade à calmaria, e como medo se transforma em confiança no instante em que se
apresentam os verdadeiros fatos.

Desmond – Não, não, não pode ser. Las Vegas, nós, eu, nós...

Valery – É a sua última chance.

III - Badwater

CENA 1: SALT 'N' PEPPER

Um deserto de sal, oitenta e seis metros abaixo do nível do mar. Ao fundo, o panorama das
montanhas de lama, sobre o topo das quais as nuvens pendem como mortalhas, nas quais o
céu do poente finalmente se põe a dormir. O chão, um mosaico rasgado de crostas de sal.
Logo ao lado da estrada, no começo do deserto de sal, uma enorme poça de água salgada,
em que se espelha Dante’s View e os rostos retorcidos das pessoas. Tudo parece, apesar

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do caldeirão panorâmico, ser infinito e sem saída. Desmond e Valery estão parados diante
da poça, sós.

Valery diante da poça - A entrada é aqui. Aqui não se deixa nada pela metade, aqui é
preciso sufocar dentro de si a covardia. Estamos no lugar que eu falei que você vai ver as
pessoas mais tristes, que perderam a luz, ouvir discursos e palavras terríveis, erupção de dor
e ódio com vozes agudas e abafadas.

Desmond – Eu já ouvi e vi o suficiente por aqui, eu quero sair logo desse vale da morte,
senão ainda acaba me pegando mesmo. Aqui pelo menos não têm cobras. A gente precisa
mesmo ficar olhando isso, Valery? Vamos indo, aquela sensação estranha na barriga
voltou.

Valery – Só mais alguns metros, até o final da picada, eu quero ver o sol se pôr no meio do
deserto. Depois de tudo que aconteceu, você não pode me negar isso. Aqui estão toda a
escória que Deus rejeitou, e Seus inimigos. Quero ficar mais um pouco na crosta do Seu
cuspe e refletir por que aconteceu tudo isso. Você queria um recomeço, quando chegarmos
no final do caminho você o terá.

Desmond – Você não está acreditando em mim, né? O que você pretende?

Valery – Talvez amar você aqui e daí esquecer, lamber o sal das nossas peles e esperar até
que o suor seque nos nossos lábios e não precisemos mais mentir. Você vai entender tudo
isso assim que chegarmos lá.

Desmond – Não consigo me livrar tão fácil desse pressentimento, Valery, eu acho, está
bom, esquecer, mas tudo o que aconteceu aqui, eles estavam mesmo mortos, Valery, não
tenho culpa nenhuma, o sujeito no porta-malas, minhas botas, Sly e as histórias dele, o que
ele sabia, Valery, você sabe tudo a meu respeito, conhece minhas coisas, Las Vegas,
minhas dívidas de jogo, quer dizer, como é que eles sabiam, por que você estava tão
tranqüila ali, todos aqueles mortos, o revólver, Hal teria me matado, não fosse, Valery, quer
dizer, eu não quero suspeitar de você, você está pensando que sou culpado disso tudo, mas
então por que ainda está aqui comigo, depois de tudo ainda quer dormir comigo aqui no
meio do deserto, quer dizer, não estou entendendo nada, é demais para mim.

Valery – Ainda é o seu aniversário, amor.

Desmond – É... aniversário, Valery, olha, por favor, não me leva a mal, eu não quero
suspeitar de você, mas, honestamente, Valery, eu não consigo explicar de outra maneira,
você, você, deixa para lá, o que é isso, é melhor eu calar a boca, senão está tudo perdido,
mas, Valery, que papel, quer dizer, qual é o seu papel nisso tudo, você queria me dar uma
trip de horror de presente, ou, não vai ficar brava agora, não, só que, se fosse isso, talvez a
gente pudesse rir disso agora juntos, como eu sou covarde, um bundão medroso, está bom,
você teria exagerado um pouco, só falta ainda agora aparecerem índios para arrancar o meu
couro pela cabeça e beber água de fogo nele, não, não me entende mal, eu só quero
encontrar uma solução, qualquer coisa em que possa me segurar, fala de uma vez que foi
idéia sua, eu não vou ficar bravo com você, mas, eu, eu, você precisa acreditar nisso, eu sou

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completamente inocente naquilo tudo que aconteceu, está certo, eu fiz um monte de merda
nos últimos anos, você sabe disso, mas não pode ter nada a ver com isso aqui, só se você,
vamos deixar para lá, ou, no final, tudo foi só um sonho ou, vamos apagar esse capítulo,
agora você está brava comigo, eu não queria fazer nada com você, verdade, a gente
simplesmente continua nessa trilha, você trouxe água, não, e daí, daí a gente volta, entra no
carro e vamos embora e a gente finge que só passou por aqui e que nada aconteceu, está?
Concorda?

Valery – Você nem me perguntou o que eu trouxe para você de aniversário?

Desmond – O quê, você tem um presente para mim?

Valery – Você vai achar graça, um par de botas novas.

Desmond – E um cadáver, que vai amaciar elas para mim. Você está me gozando. Onde
estão?

Valery – Onde será? No porta-malas.

Desmond – Então é verdade.

Valery – O quê?

Desmond – Você está metida nisso.

Valery – E o medo pálido, batendo os dentes, agarrou a alma cansada e nua. Não,
Desmond.

Desmond – É mesmo, as botas que ele usava eram bem novas. E aquele Spencer, você já
conhecia ele, não conhecia?

Valery – Sim, mas ele não me reconheceu mais, você é que tinha que reconher ele.

Desmond – Eu?

Valery – Las Vegas.

Desmond – Quando? Eu teria lembrado da cara desse gordo nojento. Agora desembucha de
uma vez.

Valery – Chegamos. Quer um gole de água?

Desmond – Me dá um cigarro.

Valery – Toma.

Desmond – Fogo?

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Valery – Acende no sol.

Desmond – Me dá logo o isqueiro.

Valery – Me dá um beijo se quiser fogo.

Desmond beija-a – Isso não basta, preciso de mais fogo.

Valery continua beijando-o, saca o revólver e atira no joelho dele – Toma aí o fogo que
você merece.

Desmond – Valery, por que, você atirou no meu joelho, cacete, estou sangrando, Valery,
você não pode, me ajuda, cacete, me ajuda.

Valery – Todos aqueles que morrem pela ira de Deus se reúnem aqui para a viagem ao
inferno. Mas você não vai viajar, meu amor, você tem que rastejar. Atira em seu outro
joelho com a segunda bala. Eram destinadas para os seus olhos, mas você deve assistir à
sua morte. Boa viagem, Desmond.

Desmond - Fica aqui, caralho, por quê, não me deixa morrer aqui sozinho, por quê, Valery,
por quê, fica ou acaba comigo de vez.

Valery – Não tenho mais bala, o sol vai dar conta do resto. Amanhã de manhã, se você
agüentar até lá.

Desmond – A água, cadê a água?

Valery – Os deuses querem o seu bem, Desmond, tiro certeiro, a bala varou a garrafa, era
tão gananciosa quanto você.

Desmond – Eu, você não vai sair daqui, você não vai sobreviver, como eu. Tira as chaves
do carro do bolso e engole-as, quase sufocando.

Valery ri -- Lá na frente tem uma poça de onde você pode beber se estiver com sede. Ah, o
seu celular, vou deixar ele ali, talvez você queira se despedir de algumas pessoas ou se
desculpar, isto é, se você conseguir ir até lá. A bateria ainda deve durar duas horas. Não é
bonito aqui? Eu estava na beira do deserto que leva ao precipício de todas as dores, onde
incontestáveis sofrimentos se congestionam e rolam. Deixei o olho descansado passear ao
redor para o alto e firmei a vista, para localizar, onde seria o melhor lugar para observar a
sua expiação. Há um ano atrás um trovão abafado rompeu meu sono profundo e desde
então, como que violentamente acordada, soube de tudo o que devia fazer. E foi o que fiz,
lembranças minhas ao inferno, Desmond.

Desmond – Valery, me conta por que, não me deixa aqui deitado, por favor, eu faço
qualquer coisa, não me deixa morrer aqui, sem saber, por que, você está enganada, Valery,

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eu não fiz nada, eu, Valery, não me deixa morrer, eu te amo, você não pode me matar, por
que, por que, cacete, me conta, eu posso explicar tudo, por que porra?

Valery – Nem morrer você consegue como homem, covarde e bobo, até na morte.

Desmond – De que adianta essa vingança maldita, se eu morro e não sei o porquê. Daí terá
sido tudo em vão, tudo em vão. Valery. Você é covarde, uma puta duma covarde, porque
sabe que está sendo injusta, você é uma assassina covarde. Não esqueça nunca que eu te
amo mesmo assim. Carregue meu maldito amor junto para sua cova. Vai embora! Vai
embora, porra! Eu me viro aqui sozinho.

Velery – Ainda vai sobrar tempo bastante para você entender, e se não descobrir, você vai
ter que atravessar dois infernos.

Desmond – A gente se vê. Eu estou com a porra da chave.

Valery – Fique assando aí, Desmond.

Desmond – Cai fora!

Valery – Eu preveni: quem atravessar o deserto não permanecerá o mesmo.

Desmond – Meu anjo.

Valery – Sim?

Desmond – Vá para o inferno!

CENA 2 - ARE YOU LONESOME TONIGHT?

Noite sobre Badwater. Desmond abandonou sua luta e trata de sua agonia. Agoniza no
chão e não consegue mais falar, seus lábios estão trincados e sua pela se esfola em ferida
no sal, seus olhos brilham, brancos, ele adquire a cor do ambiente. O que ele percebe é
nada mais que o delírio da febre: vê Sly enterrado em baixo de urubus que arrancam seus
olhos com bicadas, Hal, que dorme com Valery sobre as costas dos cadáveres de Tracy e
Beat, Spencer, que joga roleta russa consigo mesmo e aposta dinheiro antes de cada tiro,
vê a cabeça decomposta que se recompõe depois de cada tiro que leva. Vê todos parados a
sua volta, rindo dele, tentando-o com garrafas de água que esvaziam diante de seus olhos,
ou permitindo que beba, mas ele cospe água salgada. Ele vê que todos calçam suas botas,
e que as tiram e enchem de areia que derramam nele. O deserto se transforma em uma
mesa de jogos em que Valery está deitada servindo de aposta, num quarto de hotel de Las
Vegas em que Gonzo, sua imagem, estupra Tracy num lago em chamas, o inferno, o
paraíso em que Valery espera por ele, o seduz, chama, mas ele não consegue alcança-la.
Ouve seu celular tocar e o recado da mãe na secretária desejando feliz aniversário, ouve
carros que se aproximam e somem novamente, ouve o uivar dos coiotes que se transforma
no ronco da motocicleta de Beat. Vê a pele caindo de seu corpo e percebe que a pele é de

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cobra. Lentamente os delírios o abandonam, as miragens desaparecem e o silêncio
irrompe, dilacerando-o. Ele tenta falar, como se tivesse entendido, mas percebe que é em
vão, desfalece, não tem mais forças. Ele só late ainda para a lua cheia e se ilude pensando
que as montanhas de lama se aproximam dele, tenta estancar os sangramentos com
retalhos da sua camisa, seu corpo desidrata. Perde a esperança, começa a ressecar e
afunda cada vez mais na cova salgada, até que finalmente sofre a mutação para um fóssil
do deserto. Desmond morre, o sol nasce em Badwater.

Cena final : Dead man

Dante's View pouco antes do nascer do sol. Valery e Desmond no mirante (cenário e
marcação como no início da peça). No chão a pele da cobra e latas de coca-cola. Valery
agora tem um binóculo nas mãos, ela lê para Desmond o que está escrito na placa. Tudo
agora tem um efeito bem turístico.

Valery – Oi, Desmond, ouve aqui, aqui está escrito: quem atravessar o deserto...

Desmond nervoso, tenta fazer seu celular pegar – Mudo. Totalmente mudo.

Valery – Jamais será o mesmo.

Desmond – Merda, sem serviço. Está cheio de areia, não tem sinal.

Valery – Deixe para lá, olha esse horizonte, agora o sol está escalando a serra, devagar, não
é maravilhoso. Lá em baixo fica Badwater. Badwater – não tem um som ótimo. Estamos
em Death Valley, no pico de Dante, olhando do Dante's View para Badwater. É um deserto
de sal, Desmond, só sal, e um pouquinho de água, água salgada. Não é uma loucura como
tudo está impregnado de mitologia aqui?

Desmond – Não quero saber, Valery, preciso telefonar.

Valery – Imagine só, que aquilo ali em baixo está a 86 metros abaixo do nível do mar e
continua afundando, e as montanhas estão desmoronando. A gente tem de descer lá depois
está?

Desmond – É um calor dos infernos, ali embaixo, eu já estou com a cabeça fervendo agora.
Talvez se eu encontrar um telefone antes. Totalmente sem sinal aqui, estamos no cu do
mundo aqui, Valery.

Valery – A gente devia rodar um filme aqui, iria combinar se a gente contasse a história de
Las Vegas...

Desmond – Já tem, Valery, já filmaram tudo.Vem, vamos indo antes que esquente mais
ainda. Estou com um mau pressentimento. Vale da morte, não é para mim, daqui a pouco
ainda vão pular diabinhos dos buracos da terra.

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Valery olha pelo binóculo – Olha só, vem aqui Desmond, tem alguém deitado lá em baixo,
no meio do deserto de sal. O que ele pode estar fazendo ali, só consigo ver os contornos
dele. Está lá deitado simplesmente, dá uma olhada.

Desmond – Vai ver que é um desses esotéricos, que tem um espírito mitológico como
você, procurando Atlântida oitenta e seis metros abaixo do nível do mar.

Valery – Talvez esteja morto. Ele não se mexe. Dá uma olhada nisso.

Desmond – Aposto que colocaram ele lá como atração turística ou vai ver que é um
monumento de advertência em memória dos colonos que morreram ali.

Valery – Que bobagem, Desmond, é melhor dar uma olhada, estou achando que se parece
com você.

Desmond – Agora chega, deixa eu ver!

Valery – E aí?

Desmond – Não sei.

Valery – Parece, sim. A altura, as botas.

Desmond – Deixa de ser macabra, eu vou ficar com medo.

Valery – Ele se mexeu?

Desmond – Não, esse não se mexe mais, talvez a gente devesse...

Valery – Buscar socorro?

Desmond – É. Por que é que justo agora esse maldito telefone tem que estar sem sinal.
Não, Valery, eu acho que a gente está vendo coisas, por que haveria de ter um morto ali
deitado numa hora dessas, acho que não, quer dizer, cheio de turistas, quem é que se
deitaria ali sozinho para morrer, vai ver que só é uma miragem.

Valery – Bobagem.

Desmond – Eu acho que agora ele se mexeu.

Valery – Deixa ver! Não consigo enxergar. Mas é uma imagem linda: um homem sozinho,
morto, no deserto de sal, parece um filme. A gente podia inventar uma história para ele, por
que ele estaria deitado ali?

Desmond – Você quer socorre-lo ou ficar delirando? Não começa com as suas historias,
você sempre tem de estar inventando coisas. Poupe-me!
Beat e Tracy aparecem, vão até o mirante e tiram fotografias.

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Beat para Valery – Ele está incomodando você?

Valery – A gente se vira sozinho.

Beat – Não se meta com a gente.

Desmond – Eu sabia que você estava procurando encrenca.

Tracy – Eu conheço esse mijão.

Beat – O quê?

Desmond – Sinto muito, não pode ser, eu nunca vi você mais gorda. Vem Valery, vamos
embora.

Tracy – Espera, já vou lembrar de onde conheço esse cara.

Beat – Lá vem o Hal.

Tracy – Oi Hal, demônio velho.

Hal – Não é pitoresca essa vista, as montanhas, que estão caindo de joelhos e se arrastando
pelas canelas para o deserto de sal. Como o sol, quando se põe, entoca Deus no Devil’s
Course. Eu amo esse lugar, é tão calmo aqui em cima, uma paz. Sabiam que a chuva aqui
evapora antes de tocar o chão? Só aqui você consegue pegar uma gota na língua. Eu sempre
venho aqui quando estou melancólico.

Beat – Por que está melancólico, a gente têm o que comemorar. Onde está o dinheiro?

Tracy – Acho que é de Las Vegas, eu já vou me lembrar.

Beat – Deixa o mijão para lá, não vamos deixar que ele estrague a nossa vista.

Desmond para Valery – Talvez eles têm a ver com o cara lá em baixo...

Valery – Agora você é que está inventando historias.

Desmond – Vem, vamos embora, senão...

Valery – Espera, só um instante, até o sol se pôr de vez.


Sly e Spencer aparecem. Sly gesticula como louco; Spencer atrás dele, esbaforido.

Sly – Isso aqui é demais, se alguém fechasse a tampa do meu crânio, tem muito urubu por
aqui, não estão vendo os urubus, anda logo Spencer, fecha a porra da tampa do meu crânio,
nhaque, nhaque, nhaque, vão me devorar, Spencer, vai logo, rápido, merda, nhaque,
nhaque, nhaque, meu cérebro, está voando ali, Spencer.

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Beat – Olha só, o cara está doidão. Tem um baseado aí cara?

Sly – Atira nesses urubus, anda, rápido, nhaque, nhaque, nhaque, atira neles.
Beat atira no ar com uma Magnum 45 Melhorou? Sem pânico, pessoal, são só balas de
festim.

Spencer – Imponente, é mesmo de derrubar qualquer um. Se acalma, Sly. Dante's View,
Sly, um paraíso. Recita alguma coisa patética. A luz maravilhosa do Todo-Poderoso
penetra o mundo e alastra seus raios mais claros ali e os abranda em outro lugar. Dante,
você reconhece, Sly?

Sly – Os urubus, nhaque, nhaque, nhaque, estou cagando para sua divina comédia, nhaque,
merda, meus olhos, melhor mandar os urubus para o inferno, você ainda tem bagulho?

Desmond – Vamos embora de uma vez por todas, ele está armado, Valery, aqui tem
malucos demais, está muito sinistro, vem.

Valery – Desmond, você se lembra daquela história em que os dois caras apostam a filha
do mais velho no jogo e o trapaceiro mais novo estupra ela num quarto de hotel e que o
filho procura a irmã e o sujeito em toda parte e que ela daí está tão mudada que nem mesmo
o pai dela a reconhece mais, e planeja a vingança dela justamente com esse cara?

Desmond – Valery, por favor, eu quero ir embora, me conte as suas histórias no carro.

Valery – Só uma foto, daí a gente vai. Me dá a máquina.

Desmond – Não está comigo.

Valery – Então ficou no porta-malas, você busca para mim?


Ei, Desmond.

Desmond – O quê?

Valery – O cara sumiu.

Desmond – Deixa ver! É mesmo. Viu só como eu tinha razão, vamos embora.

Valery – Sá busca a máquina, por favor, amor.

Desmond – Está bom, mas depois...

Valery – Está, depois a gente vai.

Spencer – E ali é o portal do inferno, Sly.

Sly – Os urubus, porra, os urubus, nhaque, nhaque, são o inferno, meu crânio está aberto.

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Spencer – Ali é a entrada da cidade das dores, a entrada para o sofrimento eterno. Acaba,
tu que estás ingressando...

Hal --...com todas as esperanças.

Spencer – O senhor?

Tracy – Agora lembrei, lembrei Beat, o cara me comeu em Las Vegas, me arrastou até o
quarto dele e depois simplesmente deu o fora, a ratazana.

Desmond – Valery, Valery, ele, ele está no porta-malas, o cara lá de baixo, no porta-malas,
morto, está morto, Valery, ele se parece comigo, minhas botas, Valery, está morto, morto.

Beat quer atacar Desmond – Eu...

Hal – Espera, ele é meu.

Tracy – Arranca as bolas dele.

Spencer enquanto Hal vai até Desmond e se põe na frente dele. Valery permanece calma e
sem ação – O grande vôo...

Sly – Os urubus, Spencer, os urubus.

Spencer – O grande vôo da visão foi interrompido; mas logo toda vontade e desejo me
foram arrebatados pela força do amor, que conduz o sol e as estrelas num círculo de
silêncio e comunhão.

Black.

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