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de teologia ao

alcance de todos
FUNDAMENTOS DA FÉ CRISTÃ

Emanuence
Copyright original InterVarsity Press

Copyright 2011 por Editora Central Gospel Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

B o i c e , James Montgomery (ed )


Título original: Foundations o f the Christian Faith - A Comprehensive & Readle Theology
Título em português: Fundamentos da f é cristã - Um manual de teologia ao alcance de todos
Rio de Janeiro: 2011
632 páginas
ISBN: 978-85-7689-190-1
1. Bíblia - Teologia / Doutrina bíblica. Título I

Gerência Editorial Revisão íinal


Jefferson Magno Costa Michelle Candida
Patrícia Calhau
Coordenação do projeto
Patrícia Nunan
Patrícia Nunan
Capa
Tradução
Joede Bezerra
Eduardo M. Oliveira
Eliane Albuquerque Projeto gráfico e diagramação
Hivana Malafaia Joede Bezerra
Joel Macedo
Impressão e acabamento
Cotejo e copidesque Sermograf
Célia Nascimento
Cláudia Lins
Gisele Menezes
Joseane Cabral
Michelle Candida
Patrícia Calhau
Patrícia Nunan

Ia edição: m arço/2011

As citações bíblicas utilizadas neste livro foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida (ARC),
salvo indicação específica, e visam incentivar a leitura das Sagradas Escrituras.
É proibida a reprodução total ou parcial do texto deste livro por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos,
xerográficos, fotográficos etc.), a não ser em citações breves, com indicação da fonte bibliográfica.
Este livro está de acordo com as mudanças propostas pelo novo Acordo Ortográfico, em vigor desde
janeiro de 2009.

Editora Central Gospel Ltda.


Estrada do Guerenguê, 1851
C EP: 22713-001 — Taquara — Rio de Janeiro (RJ)
Tel. (21) 2187-7000
Su m á r i o

Apresentação da edição em português....................9 Capítulo 5


Apresentação da edição original............................. 11 A autenticidade das E scritu ras............................. 54
Agradecimentos........................................................... 13 A unidade na diversidade.......................................... 54
Precisão incomum.......................................................55
Profecias........................................................................ 57
LIVRO I A preservação da Bíblia.............................................58
O D EUS S O B ER A N O ........................................... 15 Vidas transformadas................................................... 59

Capítulo 6
Parte 1 - 0 conhecimento de D eu s .................17
Quão verdadeira é a Bíblia?....................................62
Capítulo 1 A visão dos primeiros 16 séculos............................62
Sobre conhecer D eus................................................19 Visões pós-reforma.................................................... 64
Crise contemporânea.................................................19 A filosofia do criticismo moderno..........................65
Um terceiro caminho.................................................21 A defesa da inerrància................................................66
Por que conhecer Deus?...........................................23 A defesa contra a inerrància.....................................67
A ciência mais elevada............................................... 25 A questão dos erros.................................................... 69

Capítulo 2 Capítulo 7
O Deus Desconhecido............................................. 28 O criticismo bíblico m oderno............................... 72
Consciência de Deus................................................. 29 As raízes da crítica superior......................................72
Dupla revelação.......................................................... 29 O Jesus histórico.........................................................73
Rejeição a D eus...........................................................31 Bultmann e a mitologia..............................................74
Rejeitando o conhecimento de Deus.....................32 Características mais importantes
A ira de Deus...............................................................32 da crítica superior.........................................................75
Uma resposta à crítica superior................................ 77
P a rte 2 - A P a la v ra de D eus...............................35 Capítulo 8
Capítulo i Como interpretar a Bíblia?.....................................80
A Bíblia.........................................................................37 Um livro, um autor, um tema.................................. 80
Deus falou.................................................................... 37 O componente humano............................................ 82
A Bíblia diz /Deus d iz.............................................. 39 Respondendo à Palavra..............................................84
Movidos por Deus......................................................40 O testemunho interior do Espírito.........................85
O testemunho de Jesus Cristo.................................42
P a r te 3 - Os A trib u to s de Deus........................ 87
Crendo na Bíblia........................................................44
Capítulo 9
Capítulo 4 O Deus verdadeiro.................................................... 89
A autoridade das Escrituras.................................. 46 Autoexistente............................................................... 89
Sola Scriptura...............................................................47 Autossuficiente............................................................ 91
O livro que me entende............................................48 Eterno............................................................................ 92
Um assunto.................................................................. 51 Nenhum outro Deus..................................................93
Palavra e Espírito........................................................ 53 O louvor a Deus..........................................................94
Capítulo 10 Anjos decaídos..........................................................148
Deus em três Pessoas.................................................96 Um ser decaído..........................................................149
Três Pessoas................................................................. 96 Um ser limitado.........................................................150
Luz, calor, a r................................................................ 98
O ensino da Bíblia..................................................... 99 Capítulo 18
Redenção tripla.......................................................... 101 A providência de Deus............................................153
O domínio de Deus sobre a natureza.................. 153
Capítulo 11 O domínio de Deus sobre as pessoas.................. 155
Nosso Deus soberano.............................................103 O curso da história................................................... 156
Questionamentos intelectuais................................103 Responsabilidade humana...................................... 158
Questionamentos humanos.................................... 105
Bênçãos da soberania ..............................................106
Deus pode...................................................................108
LIVRO II
DEUS, O R ED EN T O R ........................................ 161
Capítulo 12
Santo, Santo, S an to................................................110
Separado...................................................................... 110 P a r te 1 - A Q ueda do homem...........................163
O tabernáculo............................................................ 112
Atração e terror.........................................................113 Capítulo 1
Um povo santo.......................................................... 115 A Q u ed a.....................................................................165
Visões da humanidade..............................................165
Capítulo 13 Deslealdade................................................................ 167
O Deus onisciente................................................... 118 Rebelião.......................................................................170
A “ameaça” da onisciência...................................... 119 Orgulho....................................................................... 171
Cobertos por trajes de justiça................................ 120
Razões para alegrar-se..............................................121 Capítulo 2
As conseqüências da Queda................................. 173
Capítulo 14 O grau e a extensão do pecado.............................. 173
O Deus que não muda........................................... 124 A morte do espírito, da alma e do c o rp o ........... 174
Sem mudanças............................................................125 Pecado original .........................................................177
Uma verdade perturbadora e confortante.........125 Condenação e justificação representativas .......178
Planos imutáveis....................................................... 126
Capítulo 3
P a rte 4 - A C ria ç ã o de D eus............................129 A escravidão da vontade.......................................180
A história de um debate.......................................... 180
Capítulo 15 A liberdade da vontade de Edwards...................182
A criação do hom em ...............................................131 Nenhuma doutrina nova......................................... 185
À imagem de Deus................................................... 132
Agentes morais..........................................................134 P a r te 2 - Lei e g r a ç a ........................................... 189
Imagem despedaçada................................................136
Capítulo 4
Capítulo 16 O propósito da Lei de Deus..................................191
A n atu reza................................................................ 139 Definindo a Lei..........................................................191
A origem do universo............................................. 139 Restringindo o mal...................................................192
No princípio.............................................................. 141 Revelando o mal....................................................... 193
A resposta da natureza............................................ 143 O evangelho da L e i..................................................195

Capítulo 17 Capítulo 5
O mundo espiritual............................................... 145 Os Dez Mandamentos e o amor a D eus......... 197
Os anjos.......................................................................145 Primeiro mandamento: não adorar
O ministério dos anjos............................................ 146 nenhum outro deus senão o Senhor......................198
Segundo mandamento: não criar P a r te 4
imagens de escultura para adoração..................... 199 A obra de C risto ................................................... 255
Terceiro mandamento: santificar o santo
nome de Deus............................................................. 201 Capítulo 12
Quarto mandamento: guardar o Sábado............ 202 Profeta, Sacerdote e R ei........................................257
O Logos de Deus: Profeta......................................258
Capítulo 6 O Mediador de Deus: Sacerdote........................... 261
Os 10 mandamentos e o am or aos o u tro s...... 205 O Reino de Deus: R ei..............................................264
Quinto mandamento: honrar os pais ...................205 Imitadores de C risto................................................268
Sexto mandamento: não matar............................. 206
Sétimo mandamento: não cometer adultério..... 207 Capítulo 13
Oitavo mandamento: não roubar......................... 209 Apaziguando a ira de Deus.................................. 270
Nono mandamento: não mentir........................... 210 Propiciação: o próprio Deus aplacando Sua ira ...270
Décimo mandamento: não cobiçar Quatro textos do Novo Testamento.................... 272
coisas alheias............................................................... 211 Esclarecimento sobre outras verdades.................275
O salário do pecado e o dom de Deus................ 212
Capítulo 14
Capítulo 7 Integralmente p ag o ................................................278
A ira de D eu s........................................................... 214 O triângulo da salvação.......................................... 279
A ira no Antigo Testamento.................................. 215 Resgatar: alforriar..................................................... 282
A ira no Novo Testamento.................................... 217 Livre para servir........................................................ 284
Apaziguando a ira de Deus.................................... 219
Capítulo 15
Capítulo 8 A grandeza do amor de Deus..............................286
Salvação no Antigo Testamento........................ 222 Amor: motivação de Deus......................................287
O caso de Abraão.....................................................222 Grande am o r........................................................... 288
Vislumbrando o R edentor.................................... 224 Amor inesgotável..................................................... 289
A dádiva do amor..................................................... 290
P a r te 3 Amor soberano......................................................... 290
A pessoa de C risto ............................................... 229 Amor eterno.............................................................. 291

Capítulo 9 Capítulo 16
A divindade de Jesus C risto................................. 231 A doutrina fundamental da ressurreição.......293
O ensino de Paulo....................................................231 O selo sobre a existência de Deus........................ 294
O ensino de Jo ão ...................................................... 234 O selo sobre a divindade de Cristo...................... 295
As declarações de Cristo.........................................236 O selo sobre a justificação......................................296
Um homem bom, um louco, O selo sobre a santificação.................................... 296
um impostor ou o Filho do homem? .................. 238 O selo sobre a vida eterna.......................................297
O selo sobre o julgamento..................................... 299
Capítulo 10
A humanidade de C risto.......................................241 Capítulo 17
A heresia gnóstica.....................................................242 Verificando a ressurreição................................... 300
As emoções de C risto.............................................244 As narrativas da ressurreição................................. 300
Igual a nós, tanto nos sofrimentos O túmulo vazio........................................................ 302
como nas tentações...................................................246 Um túmulo quase vazio.......................................... 303
As aparições depois da ressurreição..................... 305
Capítulo 11 Os discípulos transformados................................. 307
Por que Cristo se tom o u hom em ?....................248 O novo dia da adoração cristã............................... 308
O motivo da encarnação........................................ 249
A salvação por intermédio do Deus-Homem ....250 Capítulo 18
A importância da cru z ............................................252 Ele ascendeu ao céu.................................................310

ó
Ascensão ao céu......................................................... 311 A justificação de D eus............................................. 363
Assentado à direita................................................... 312 A salvação de Cristo é ímpar..................................364
Para julgar os vivos e os mortos............................ 314
Capítulo 7
A justificação pela fé e o papel das ob ras........368
LIVRO III O papel das obras......................................................369
O DESPERTAR PARA D E U S ...........................317 É Deus quem trabalha..............................................370
Uma doutrina prática............................................... 373
Parte i
O E spírito de D eus................................................ 319 Capítulo 8
As provações............................................................. 375
Capítulo 1 Garantia para o cristão.............................................375
O cristianismo pessoal............................................ 321 O conhecimento do cristão....................................376
Uma pessoa ou um poder?.....................................322 O teste doutrinário................................................... 377
O Espírito é Deus?................................................... 324 O teste moral............................................................. 380
O teste social.............................................................. 382
Capítulo 2
A obra do Espírito Santo......................................327 Capítulo 9
Glorificar a Cristo.................................................... 327 Um a nova família.....................................................385
Ensinando sobre Cristo ......................................... 328 Novos relacionamentos.......................................... 386
Levando pessoas a C risto.......................................330 Privilégios de família................................................ 388
Reproduzindo o caráter de Cristo....................... 330 Confiança em nosso Pai...........................................391
Levando cristãos ao serviço....................................333
Capítulo 10
Capítulo 3 O caminho que leva para o alto..........................392
A união com C risto ................................................334 Perfeitos, mas sendo aperfeiçoados..................... 392
União passada, presente e futura...........................334 Meios para alcançar as bênçãos de D eus............ 395
Mistérios da união com Cristo.............................. 337
O batismo com o Espírito Santo...........................339 P a rte 3
A vida do cristão................................................... 399
P a r te 2
C omo D eus salva os pecadores ........................345 Capítulo 11
Abrace a cru z............................................................ 401
Capítulo 4 Negando a nós mesmos.......................................... 402
O novo nascimento.................................................347 Levando a cruz de C risto.......................................404
O que sucede à salvação?........................................347 O discipulado diário................................................406
A iniciativa divina..................................................... 348
O vento e a água....................................................... 350 Capítulo 12
A concepção espiritual........................................... 352 Liberdade, liberdade!............................................. 408
A busca da liberdade................................................408
Capítulo 5 Três liberdades...........................................................410
Fé e arrependimento.............................................. 354
O que a fé não é ........................................................ 354 Capítulo 13
Fé: a escritura............................................................355 Conhecendo a vontade de Deus..........................414
A ciência da fé............................................................356 As vontades de Deus................................................415
O amor e o comprometimento.............................358 A nossa vontade e a de Deus................................. 415
A fé de Abraão...........................................................358 Situações questionáveis........................................... 417
Olhando para Jesus..................................................419
Capítulo 6
Justificação pela fé: a essência da salvação......360 Capítulo 14
O veredito acerca do que Deus fez...................... 361 Falando com Deus................................................... 421
O problema da oração............................................. 421 História como progresso....................................... 472
A oração é a Deus......................................................422 Uma visão cristã da história...................................473
Por intermédio de Jesus C risto............................. 424 A glória de Deus........................................................479
No Espírito Santo.................................................... 425
Seja feita a Tua vontade.......................................... 425 Capítulo 3
Cristo, o centro da história..................................481
Capítulo 15 A plenitude dos tempos...........................................482
Deus falando conosco.............................................428 O tempo como plenitude........................................ 483
O mau uso das Escrituras Sagradas..................... 428 Senhor da história..................................................... 487
Estudando a Bíblia................................................... 430
P a rte 2
Capítulo 16 A I greja de D eus .................................................... 489
Servindo...................................................................... 435
Fugindo da obrigação..............................................435 Capítulo 4
A compaixão de C risto........................................... 436 A Igreja de C risto.....................................................491
O sal da terra.............................................................. 438 O legado do Antigo Testamento...........................492
Alicerçados em Cristo..............................................493
P a r te 4 Capacitados pelo Espírito.......................................496
O trabalho de D e u s .............................................443 Incluindo todos ........................................................498

Capítulo 17 Capítulo 5
Chamados por Deus ............................................. 445 As marcas da Igreja................................................. 500
O Deus que toma a iniciativa................................ 445 Um povo alegre ....................................................... 500
O propósito de D eus...............................................446 Um povo separado.................................................. 501
O chamado de Deus.................................................448 Um povo enraizado na verdade............................ 503
Os benefícios da doutrina.......................................449 Um povo missionário .............................................503
Um povo unido ........................................................505
Capítulo 18 Um povo am oroso................................................... 506
O poder protetor de D eu s....................................451
O que não é perseverança......................................452 Capítulo 6
Aquele que guarda Israel........................................453 Como adorar a D eus............................................. 509
Quatro textos-chave para Os princípios bíblicos da adoração...................... 509
a segurança do cristão............................................. 454 Valoração de D eu s................................................... 512
Em espírito e em verdade.......................................512

LIVRO IV Capítulo 7
DEUS E A H IST Ó R IA ........................................459 Símbolos e selos da salvação................................ 516
Quatro elementos de um sacramento.................516
Parte i Batismo.......................................................................518
T empo e H istória ................................................... 461 Batizados em Cristo................................................ 520
A Ceia do S enh or.................................................... 521
Capítulo 1
O que está errado com igo?.................................. 463 Capítulo 8
A procura pela identidade..................................... 464 Dons espirituais....................................................... 526
Comunhão................................................................. 465 Todos têm um dom ..................................................527
Uma identidade histórica....................................... 466 O que são os dons? ............................................... 529
A importância do presente.................................... 468 Encontrando seu dom............................................. 536

Capítulo 2 Capítulo 9
A m archa do tem po............................................... 470 Capacitando os santos........................................... 538
Uma visão ciclíca da história.................................470 Duas funções..............................................................538
A capacitação dos santos........................................ 540 Complacência para com a teologia,
Como capacitar..........................................................542 a agenda e os métodos mundanos........................ 581
Um desafio..................................................................583
Capítulo 10
Gestão da igreja........................................................545 Capítulo 15
Um ministério de serviço........................................ 545 Cidade de Deus....................................................... 585
Um ministério de misericórdia.............................547 Secularismo................................................................ 586
Supervisão e ensino.................................................. 549 Autoridades, teologias e prioridades diferentes....588
Qualificações espirituais..........................................551 Novo estilo de vida.................................................. 590
Dependência de D eus..............................................592
Capítulo 11
A vida no Corpo...................................................... 555 Capítulo 16
Vida em comunhão................................................... 555 Igreja e E stado..........................................................594
Uns aos outros...........................................................557 Somente Deus............................................................596
O fogo de D eus......................................................... 561 Somente César...........................................................598
César no controle..................................................... 599
Capítulo 12 Deus no controle...................................................... 600
A Grande Comissão................................................562
O ide do Senhor........................................................563 Pa r t e 4
A ira de Deus............................................................. 565 O f im d a H i s t ó r i a .................................................. 605
O amor de C risto..................................................... 565
Capítulo 17
P a rte 3 Como isso tudo acabará?......................................607
U ma história de duas cidades ........................ 569 A volta de Cristo...................................................... 608
Ressurreição do corp o.............................................611
Capítulo 13 Dia do Juízo............................................................... 613
A cidade secu lar.......................................................571
Duas cidades ............................................................. 572 Capítulo 18
Babilônia e Jerusalém ..............................................573 Finalmente no la r.................................................... 616
Secular e Sagrado..................................................... 575 Onde está Jesus?....................................................... 617
A cidade de Deus...................................................... 576 Reunião ......................................................................618
Como fomos designados para s e r ....................... 620
Capítulo 14 À semelhança de Jesus.............................................621
A igreja secular.........................................................578
Secularização cristã................................................... 578
Complacência para com a sabedoria do mundo ..580 B IB LIO G R A FIA .................................................... 623


S
A pr esen ta ç ã o da e d iç ã o em p o r t u g u ê s

Pensando no crescimento espiritual, intelectual e acadêmico dos nossos leitores, a Editora


Central Gospel tem o privilégio de publicar Fundamentos da f é cristã, um manual teológico,
com uma visão geral e abrangente das principais doutrinas que sustentam a fé cristã.

Este volume único está organizado em quatro livros, com 18 capítulos cada, subdivididos
em quatro seções. O Livro I reúne as doutrinas acerca de Deus; o Livro II, acerca do pecado e
da obra redentora de Cristo; o Livro III, acerca do Espírito Santo e da redenção; e Livro IV,
acerca da Igreja e de sua participação histórica.

Esta obra de James M. Boice é bem fundamentada e possui um grande lastro bibliográfico,
contando com citações de importantes e consagrados teólogos e escritores cristãos, como J. I.
Packer, R. C. Sproul, R. A. Torrey, A. W. Tozer, F. E Bruce, C . S. Lewis e John Stott.

O texto é direto, claro e conciso. As questões abordadas são atuais e relevantes. Para ajuda
adicional, foram incluídas nesta edição em português notas com explicações tiradas de ferra­
mentas eletrônicas de fácil acesso e uma bibliografia extensa, permitindo ao leitor (que tem
acesso à literatura teológica em língua inglesa) um aprofundamento dos temas e um vislumbre
melhor das obras utilizadas (fontes primárias).

Este livro é uma leitura indispensável para tanto para leigos em teologia e recém-converti-
dos ao cristianismo com o para pregadores, pastores, evangelistas, professores, seminaristas e
estudiosos, que desejam fundamentar sua fé, ampliar seus conhecimentos sobre as doutrinas
cristãs e estar preparados para responder a todos que lhes pedirem a razão da sua esperança
(1 Pedro 3.15).

— Os editores
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Digitalizado ©

t f

Emanuence
Digita]
A presen ta çã o da ed iç ã o o r ig in a l

Logo após a Universidade de Harvard ter sido fundada em 1636, os curadores da institui­
ção escreveram: “Permitam que todo o aluno seja claramente instruído e seriamente compeli­
do a considerar [que o] principal objetivo de sua vida e de seus estudos é conhecer Deus e
Jesus, daí a necessidade de alicerçá-los em Cristo, o fundamento de todo sólido conhecimento
e aprendizagem”.

N os 350 anos que se passaram aproximadamente, Harvard (assim como a maioria de outras
universidades) moveu-se em uma direção puramente secular. Mas as palavras daqueles antigos
curadores ainda são verdadeiras, e muitas pessoas ainda têm como seu principal objetivo de
vida conhecer Deus melhor. E para tais pessoas que este livro, originalmente publicado em
quatro volumes separados pela InterVarsity Press, entre 1978 e 1981, foi escrito.

Nem sempre eu, com o autor, percebo a necessidade de algum livro sobre alguma área de
conhecimento ser escrito. Mas, a meu ver, a área abrangida por este livro é uma exceção, por­
que, durante anos, procurei por uma obra que pudesse ser dada a uma pessoa (particularmente
um cristão novo) que é atento e questionador e que poderia beneficiar-se com uma visão geral
abrangente e de fácil leitura acerca da fé cristã, uma teologia básica de A a Z. Mas não consegui
encontrar nenhum que fosse exatamente o que eu tinha em mente. Dessa forma, decidi que eu
mesmo deveria tentar escrevê-lo.

É impossível fazer algo desse escopo perfeitamente. Por isso, adiei o início do meu trabalho
por muitos anos. Eu poderia tê-lo protelado indefinidamente. Entretanto, chega um momento
quando, a despeito das suas limitações, uma pessoa deve simplesmente ir em frente e dar o seu
melhor. O resultado do meu trabalho é este livro, organizado em quatro partes, divididas em
16 seções, que correspondem mais ou menos ao conteúdo abordado por João Calvino nos
quatro livros de sua obra monumental As Institutas.

Este livro não é uma reedição das Institutas, embora eu seja um devedor de Calvino. Esta
obra é apenas uma tentativa de abordar o mesmo conteúdo, numa linguagem mais fácil, bem
como introduzir temas que Calvino não tratou, mas que precisam ser tratados hoje, e relacio­
nar tais doutrinas a pontos de vista e problemas contemporâneos, em vez de aos antigos.

O Livro I trata da doutrina de Deus e de como conhecemos Deus; o Livro II, do pecado e
da obra redentora de Cristo; o Livro III, do Espírito Santo e da aplicação da redenção ao indi­
víduo; e Livro IV, da Igreja e de sua participação na história da humanidade.
Fui obrigado a recorrer a uma série de escritores e pensadores, como as notas indicam. Entre
eles, há alguns, como John R.W. Stott, J.I. Packer, R. C. Sproul, John Gerstner e Roger Nicole,
que cheguei a conhecer pessoalmente e com os quais trabalhei por ocasião da Conferência anual
da Filadélfia sobre Teologia Reformada, iniciada em 1974. Também sou grato a Thomas Watson,
B. B. Warfield, R. A. Torrey, A. W. Tozer, A. W. Pink, C. S. Lewis, Emil Brunner, F. F. Bruce,
John Warwick Montgomery, Jonathan Edwards, Francis A. Schaeffer e outros.

N o Livro III, minha maior dívida é com John Murray, que discorreu sobre a obra do Espí­
rito Santo brilhante e concisamente em Redemption Accomplished and Applied [Redenção re­
alizada e aplicada].

Em minha discussão sobre a doutrina da Igreja, fui imensuravelmente ajudado por autores
que analisaram a natureza da Igreja e seu ministério nos dias de hoje, como Ray C. Steadman,
Gene A. Getz e Elton Trueblood. Também fui ajudado por pensadores mais antigos com o Ja ­
mes Bunnerman, um pregador escocês e conferencista de seminário do século 19.

Tem sido difícil encontrar bons livros contemporâneos sobre história, mas tenho lido e
extraído informações de trabalhos de Reinhold Niebuhr, O scar Cullman, R. G. Collingwood,
H erbert Butterfield e outros. Um a porção deste material aparece em um artigo intitulado New
Vistas in Historical Jesus Research [Novas visões na pesquisa do Jesus histórico], publicado no
Christianity Today, de 14 de março, 1968, e outras porções em trabalhos meus sobre as Escri­
turas, como o que aparece em The Gospel o fJo hn [O Evangelho de João], volume 2, capítulos
12 a 15. Alguns escritos apareceram numa versão reduzida nas edições de junho-agosto de 1976
e de junho-agosto de 1977 da Bible Studies Magazine [Revista de estudos bíblicos.]

Um a discussão sobre The Bondage o f the Will [A escravidão da vontade] apareceu de forma
semelhante em Tenth: A n Evangelical Quaterly [Décima: um anuário evangélico], de julho de
1983. The Marks o f the Church [As marcas de Igreja] foi condensada no The Gospel ofJohn [O
Evangelho de João], volume 4, capítulos 50 a 55 e 58, impresso pelo editor Earl D. Radmacher,
em Can we trust the Bible?[Podemos acreditar na Bíblia?].

A decisão dos editores de publicar o trabalho em novo formato deu-me a oportunidade de


reeditar o todo e mudar partes de acordo com o que aprendi desde que os quatro volumes fo­
ram publicados. As mudanças mais extensas estão no Livro 3, particularmente na discussão do
lugar das obras na vida cristã. Também fiz alterações na discussão sobre vontade no Livro 2,
baseadas nas contribuições de Jonathan Edwards. Os Livros 1 e 4 sofreram poucas mudanças.

Que Deus seja louvado por essa obra e que o conteúdo dela possa contribuir para que
muitos acordem para o chamado à vida eterna!

— James Boice


A g r a d ec im en t o s

Gostaria de manifestar apreço a Srta Caecilie M. Foelster, minha assistente editorial, que
ajudou na produção de todos os meus livros. Ela se encarregou do pesado fardo de digitar, re­
visar e preparar os índices.

Também sou grato à 10a Igreja Presbiteriana da Filadélfia, com a qual o teor desses capítulos
foi compartilhado em forma de sermão. A congregação respondeu com muitos comentários e
sugestões proveitosas.
L iv r o

O D eus so bera n o
Pa r t e

1
O conhecimento de Deus

Para ser sábio, é preciso primeiro temer a Deus, o SENHOR. Se você conhece o Deus
Santo, então você tem compreensão das coisas.
Provérbios 9.10 ( n t l h )

E a vida etema é esta: que conheçam a ti só por único Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a
quem enviaste.
João 17.3

Porque do céu se manifista a ira de Deus sobre toda impiedade e injustiça dos homens que
detêm a verdade em injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer neles se manifes­
ta, porque Deus lho manifestou. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do
mundo, tanto o seu eterno poder como a sua divindade, se entendem e claramente se vêem
pelas coisas que estão criadas, para que elesfiquem inescusáveis; porquanto, tendo conhe­
cido a Deus, não o gbrificaram como Deus, nem lhe deramgraças; antes, em seus discur­
sos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscunceu. Dizendo-se sábios,
tomaram-se loucos. E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da ima­
gem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis.
Romanos 1.18-23
Emanuence
Digital
/?
C A P ÍT U L O /

So b r e conhecer D eus

| / | u m a noite quente, nos primeiros que primeiro experimentasse uma transforma­


/'A í anos da era cristã, um homem so­ ção profunda e espiritual.
fisticado e muito culto, chamado
V Nicodemos, foi ver um jovem ra­ Jesus respondeu e disse-lhe: N a verdade,
bino, Jesus de Nazaré. Aquele homem queria na verdade te digo qu e aquele qu e não
discutir sobre a realidade. Então, começou a nascer de novo não pode v er o Reino de
conversa com uma afirmação sobre aonde sua Deus. Não te maravilhes de te ter dito:
própria busca pessoal pela verdade o havia Necessário vos é nascer de novo. O vento
levado. Ele disse: assopra onde quer, e ouves a sua voz,
mas não sabes donde vem , nem para on­
Rabi, bem sabemos que és mestre vindo de de vai; assim é todo aquele qu e é nascido
Deus, porque ninguém pode fa z er estes si­ do Espírito.
nais que tu fazes, se D eus não fo r com ele. João 3.3,7,8
João 3.2
Os com entários subsequentes de N ico ­
C om exceção da palavra rabi, uma manei­ demos — Com o p o d e um hom em nascer,
ra educada de um judeu se dirigir a um mestre sendo v elh o ? Porventura, p od e tornar a en ­
em teologia, as primeiras palavras de N icode­ trar no ven tre de sua m ãe e nascer? (Jo
mos eram uma alegação de conhecimento 3.4,9) — revelaram, ao menos, um reconhe­
considerável, pois ele afirmou: sabemos. A cimento implícito de sua falta de conheci­
partir daí, Nicodemos começou a cogitar as mento sobre coisas importantes [a que o
coisas que ele poderia saber, ou achava que Rabi se referia].
sabia, e com as quais queria iniciar a discus­ Jesus enfatizou que o verdadeiro conheci­
são: (1) que Jesus continuava a fazer muitos mento começa pelo conhecimento da realidade
milagres; (2) que aqueles milagres tinham co ­ espiritual, o conhecimento que vem de Deus,
mo propósito legitimá-lo com o Mestre envia­ e que isso se encontra na revelação do Altíssimo
do por Deus; (3) e que, por conseguinte, Jesus sobre si mesmo na Bíblia e na vida e obra de
era aquele a quem eles deveriam dar ouvidos. Jesus, a obra do Salvador da humanidade.
Infelizmente, para Nicodemos, Jesus res­
pondeu que tal prerrogativa \sabemos\ estava C r is e c o n t e m p o r â n e a ______________________

errada e que Nicodemos não poderia, portan­ Esse diálogo [entre Jesus e Nicodemos]
to, saber algo sobre a realidade espiritual até ainda é relevante em nossos dias, pois os
questionamentos, dúvidas e frustrações que ainda, meros dados), e homens e mulheres se
Nicodemos enfrentou há quase dois mil anos tornam coisas também, com o resultado ine­
ainda são atuais. vitável de que podem, assim, ser manipulados
Nicodemos tinha certo conhecimento como qualquer outra matéria-prima, para
[das Escrituras], mas faltava-lhe a chave para quaisquer fins.
acessar o conhecimento [espiritual], o ele­ U m exemplo disso é a manipulação das
mento que juntaria as peças. [Com o mestre nações mais pobres pelas mais ricas, para o
de Israel (Jo 3.10)] Nicodemos sabia algumas “bem” da economia em expansão destas. (Tal
coisas, contudo sua busca pela verdade o ha­ injustiça é analisada e corretamente condena­
via levado a uma crise pessoal. da por Karl Marx2 no Manifesto Comunista,
D a mesma forma, hoje, sabe-se muito no O Capital e outros trabalhos.) O utro exem­
sentido de ter informações e conhecimento plo é o próprio comunismo que, apesar de seu
técnico e científico, mas [do ponto de vista ideal de melhorar o destino das massas, mani­
espiritual das verdades eternas] sabe-se tanto pula-as com fins ideológicos.
hoje quanto se sabia em qualquer época an­ A o nível pessoal, há uma ciência da tecno­
terior, pois o tipo de conhecimento que sub­ logia comportamental e ensinamentos assus­
sidia a informação e dá significado à vida tadores de um homem com o B. F. Skinner, da
está ausente. Universidade de Harvard, que afirma que in­
A natureza do problema pode ser consta­ divíduos devem ser condicionados cientifica­
tada ao examinarmos as duas quase exclusivas mente para o bem da sociedade.
abordagens ao conhecimento hoje [a racional H á ainda outro problema com a tentativa
e a emocional]. de conhecer a realidade por meio apenas da
Por um lado, existe a ideia de que a realida­ razão: esta abordagem não dá uma base ade­
de pode ser conhecida apenas pela razão. Essa quada para a ética. Pode dizer o que a realida­
abordagem não é nova, é claro. É a abordagem de é; no entanto, não o que ela deveria ser. Em
desenvolvida por Platão1 e assumida pelo pen­ conseqüência, os extraordinários avanços
samento grego e romano, depois dele. tecnológicos de hoje são acompanhados por
N a filosofia de Platão, o conhecimento uma permissividade moral extrema e debili-
verdadeiro é o conhecimento da essência tante, que promete em seu devido tempo
eterna e inalterável das coisas, não apenas o romper até com os valores e o sistema que
conhecimento de fenômenos mutáveis; é um permitiram tanto os avanços com o a permis­
conhecimento de formas, ideias e/ou ideais. sividade. Essa era a mesma lógica de muitos
N osso equivalente mais próximo seriam as filósofos gregos que, embora fossem homens
chamadas leis da ciência. de grande intelecto, tinham vidas depravadas.
De modo superficial, essa abordagem ao co­ Recentemente, as falhas do sistema racio-
nhecimento pelo exercício da razão suposta­ nalista contribuíram para uma nova geração
mente imparcial parece desejável, porque ela é no mundo ocidental que abandonou a razão,
produtiva, como os avanços técnicos atuais em a fim de conhecer a realidade por meio da
geral indicam. Mas ela não vem sem problemas. experiência emocional.
Sob um determinado aspecto, é um co ­ N a antiguidade, a reação mais comum dos
nhecimento bem impessoal e, com o diriam gregos à impessoalidade de sua filosofia se
alguns, despersonalizante, pois, nessa abor­ dava por meio da participação intensa deles
dagem, a realidade se torna [um objeto de es­ nos rituais de religiões místicas, que prom e­
tudo ou] uma coisa (uma equação, lei, ou pior tiam uma união emocional com algum deus,
induzida por luzes, música, incenso ou, tal­ em especial naqueles pontos onde as outras
vez, drogas. Em nossa época, a mesma abor­ abordagens são deficientes.
dagem veio à tona com a redescoberta de reli­ A base dessa terceira abordagem é que há
giões orientais [o hinduísmo, o budismo, o um Deus que criou todas as coisas, que Ele
taoísmo, o confucionismo e o xintoísmo], a mesmo estabeleceu um propósito para a cria­
ioga e a meditação transcendental, o potencial ção e que podemos conhecê-lo.
de movimento humano (H PM )3 e outras prá­ Essa é uma possibilidade emocionante e
ticas, em tese, expansoras da mente, que po­ satisfatória. E emocionante porque envolve a
dem ou não se utilizar de drogas [para alcan­ possibilidade de contato entre o indivíduo e
çar outras dimensões da realidade]. Deus, por mais insignificante que o indivíduo
Essa outra abordagem moderna também possa parecer aos seus próprios olhos ou aos
tem vários problemas. Primeiro, a experiência olhos de outros. É satisfatório porque esse
não dura. E transitória. Cada tentativa de al­ conhecimento não advém de uma ideia ou
cançar a realidade por meio de experiência uma coisa, e sim de um Ser supremo e pessoal,
emocional promete algum tipo de êxtase, mas e porque tal conhecimento em geral resulta
este é seguido de uma sensação de vazio, com numa profunda mudança de conduta [de
o problema adicional de que estímulos cada quem o obtém].
vez mais intensos parecem tornar necessário É por isso que a Bíblia enfatiza que, para
repetir a experiência. N o final, isso termina ser sábio, é preciso primeiro temer a Deus, o
em autodestruição ou em desilusão profunda. Senhor. Se você conhece o Deus Santo, então
U m segundo problema é que a abordagem você tem compreensão das coisas (Pv 1.9 n t l h ).
da realidade por meio das emoções não satis­ Aqui, contudo, precisamos ser claros so­
faz a mente. Promotores dessas experiências, bre o que queremos dizer quando falamos em
em particular experiências com drogas, falam conhecer Deus, pois muitos usos comuns do
de uma percepção mais intensa da realidade verbo conhecer são inadequados para transmi­
que resulta dela. Mas a experiência deles não tir o significado bíblico [naquela passagem].
tem conteúdo racional. A razão humana, que O verbo conhecer pode ser usado com o
deseja analisar tais coisas e compreendê-las, mesmo sentido de saber [ficar sabendo, ter
fica insatisfeita. O resultado dessa situação é indícios, ciência, informação da existência de
uma crise, hoje, na área do conhecimento co ­ algo ou alguém].
mo na antiguidade. Muitas pessoas não sabem Nesse caso, podemos dizer que sabemos
para onde ir. onde uma pessoa mora ou do acontecimento
E m suma, a abordagem racionalista é im­ de certos eventos. Este tipo de conhecimento
pessoal e amoral. Já a abordagem emocional é não requer nosso envolvimento pessoal e tem
sem conteúdo, transitória e, com frequência, um peso pequeno em nossa vida.
imoral. O u tro sentido do verbo conhecer é [ser
“Esse é o fim? N ão há outras possibilida­ apresentado, reconhecer] saber p o r experi­
des? N ão há um terceiro caminho?” — mui­ ência própria sobre algo ou alguém. É o co ­
tos indagam. nhecimento pela descrição. E isso que a B í­
blia quer dizer quando fala sobre conhecer
U m t e r c e i r o c a m i n h o _____________________
Deus.
N esse sentido, o cristianismo se apre­ [Partindo desses dois significados do ver­
senta com a reivindicação de que há um ter­ bo conhecer] Podemos dizer, por exemplo,
ceiro caminho e que este caminho é forte que conhecemos a cidade de N ova Iorque,
Londres ou Moscou, querendo aludir com mera consciência de que Deus existe, pois
isso que temos ciência da cidade, dos nomes aquele tipo de conhecimento implica afirmar
das ruas onde as maiores lojas se encontram e que Deus é poderoso e o criador de tudo o
outros fatos por termos vivido lá ou pela lei­ que vemos e sabemos.
tura de livros [e/ou de guias de viagem, Inter­ Ainda assim, esse tipo de conhecimento é
net e outras fontes]. inferior ao que a Bíblia considera com o co ­
N a esfera religiosa, o tipo de conheci­ nhecimento profundo e verdadeiro sobre
mento [que recebemos de forma mais impes­ Ele, uma vez que, na Bíblia, para alguém co ­
soal] vem por meio da teologia, que, embora nhecer Deus, precisa nascer de novo, de um
importante, não é tudo sobre religião nem a novo m odo [ser gerado espiritualmente por
alma desta. Deus], a fim de poder conversar com Ele e
A Bíblia nos diz muito sobre o Criador, a conhecê-lo.
fim de que possamos entender [cognitiva- (Assim, a existência do criador se torna
mente sobre Ele e Seus atributos]. (N a ver­ não apenas algo em que se possa crer, mas Ele
dade, muito do que se segue nesse livro é próprio se torna um amigo com o qual pode­
dirigido à nossa necessidade de tal conheci­ mos relacionar-nos e conhecer de modo pes­
mento.) Mas o conhecimento teológico não soal, e nós podemos continuar sendo trans­
é o suficiente, pois até os grandes teólogos formados no processo.)
podem confundir-se e achar que a vida não Tudo isso nos leva, passo a passo, a uma
tem sentido. melhor compreensão da palavra conheci­
O verdadeiro conhecimento sobre Deus mento. Todavia, ainda uma qualificação é
também é mais do que conhecer pela experi­ necessária. De acordo com a Bíblia, mesmo
ência própria. Afinal, seria possível a alguém quando o significado mais alto possível é da­
que viveu numa determinada cidade dizer do à palavra, conhecer D eus não é apenas
que seu conhecimento desta localidade ad­ saber quem Ele é, conhecer [Seus atributos
vêm não de livros, mas da experiência de ele ou Seus feitos] isoladamente. E sempre co ­
ter morado lá, andado pelas ruas, comprado nhecer Deus [reconhecendo Seus atributos,
nas lojas, ido aos teatros. Suas leis e Seu modo de agir] em Seu relacio­
Quanto a isso, teríamos apenas de admitir namento conosco.
que o conhecimento desse alguém está num Em conseqüência, de acordo com a Bíblia,
nível acima do meramente teórico adquirido o conhecimento de Deus acontece só quando
por meio da leitura ou da experiência de ou­ há também conhecimento sobre nós mesmos
trem; contudo, ainda assim, não é o conheci­ e nossa profunda necessidade espiritual, jun­
mento completo sobre algo, como no sentido to a uma aceitação da provisão graciosa de
cristão. Deus de nossas necessidades por meio da
Suponha, por exemplo, que uma pessoa obra de Cristo e a aplicação prática dessa obra
fosse a um campo iluminado por estrelas no em nós pelo Espírito de Deus. Logo, o co ­
frescor de uma noite de verão, contemplasse nhecimento de Deus ocorre no contexto da
os céus cintilantes, e voltasse dizendo que piedade cristã, do louvor e da devoção.
veio conhecer Deus por meio do campo. O A Bíblia ensina que esse conhecimento
que você diria a ela? sobre Deus é obtido nem tanto devido à nos­
O cristão não tem que negar a validade sa intensa busca por Ele, mas porque o Se­
dessa experiência, até certo ponto. P or certo, nhor [de modo soberano] revelou-se a nós em
aquele é um conhecimento mais rico do que a Cristo e nas Escrituras.
J. I. Parker escreveu sobre esse conheci­ De modo semelhante, aqueles que não
mento, dizendo: apreciam a oferta de vida eterna de Deus de­
monstram que não têm a capacidade de com ­
Conhecer Deus envolve, primeiro, ouvir a Pa­ preender e valorizar o que lhes falta.
lavra de Deus e recebê-la como o Espírito San­ A Bíblia diz:
to a interpreta, aplicando-a a si mesmo; segun­
do, ao perceber a natureza de Deus e Seu Ora, o hom em natural não compreende as
caráter, como Sua Palavra e Sua obra o revelam; coisas do Espírito de Deus, porque lhe pa­
terceiro, aceitar Seu convite e fazer o que Ele recem loucura; e não pode entendê-las,
manda; quarto, reconhecer e regozijar-se pelo porque elas se discernem espiritualmente.
amor que Ele demonstrou e, assim, aproximar- 1 Coríntios 2.14
-se [dele] e trazer alguém à Sua comunhão divi­
na. (P a c k e r , 1973, p. 32) Talvez ajudasse se fosse dito àquela pessoa
que a promessa de vida eterna é também a pro­
Por qu e con h ecer D e u s ?_________________
messa de desfrutar uma vida abundante como
“Espere um minuto,” alguém poderia ar­ um ser humano autêntico [e glorificado].
gumentar, “tudo isso soa complicado e difícil. Isso é verdade, contudo a vida eterna sig­
N a verdade, parece difícil demais. Se é isso nifica bem mais do que isso. Significa voltar a
que está envolvido, não quero tomar parte viver não só num sentido novo, mas também
nisso. Dê-me uma boa razão para eu me dar a num sentido eternò. Foi o que Jesus afirmou
esse trabalho”. Essa é uma objeção justa, to ­ [implicitamente] quando declarou:
davia há uma resposta adequada a ela. N a
verdade, há muitas. E u sou a ressurreição e a vida; quem crê
Em primeiro lugar, o conhecimento sobre em mim, ainda que esteja morto, viverá; e
Deus é importante, pois somente por meio todo aquele que vive e crê em m im nunca
disso uma pessoa pode entrar no que a Bíblia morrerá.
chama de vida eterna. Jesus indicou isso João 11.25,26
quando orou:
E m segundo lugar, o conhecimento de
E a vida eterna é esta: que conheçam a ti só Deus é importante porque, com o ressaltamos
por único D eus verdadeiro e a Jesus Cristo, antes, ele também envolve um conhecimento
a quem enviaste. acerca de nós mesmos.
João 17.3 Em nossa época, repleta de psiquiatras e psi­
cólogos, homens e mulheres gastam bilhões de
À primeira vista, a vida eterna não parece dólares por ano na tentativa de conhecerem a si
ser importante o bastante para o homem na­ mesmos, compreender sua psique, sua alma.
tural desejar conhecer Deus a todo o custo. Certamente, há uma necessidade da psi-
Isso ocorre porque, por carecer da vida quiatrià, particularmente a psiquiatria cristã.
eterna, o homem não entende o que está per­ Mas esta, sozinha, é insuficiente, ainda mais
dendo. Ele é como uma pessoa que diz não se não cooperar para que as pessoas conhe­
apreciar boa música. A inaptidão dele não faz çam Deus, de modo que o valor e as falhas
com que a música não tenha valor; apenas in­ delas possam ser confrontados.
dica princípios inadequados de apreciação P or um lado, o conhecimento de nós mes­
estética dele. mos por meio do conhecimento de Deus é
humilhante. N ós não temos os atributos dele. para santidade pessoal. Este é um objetivo
Ele é santo; nós, impuros. Ele é bom; nós, que o homem natural dificilmente deseja.
maus. Ele é sábio; nós, tolos. Ele é forte; nós, Mas é essencial, não obstante. Nossos proble­
fracos. Ele é amoroso e cheio de graça; nós, mas procedem não somente do fato de ser­
cheios de ódio e presunção egoísta. Portanto, mos ignorantes sobre Deus, mas também do
conhecer Deus implica ver a nós mesmos co­ fato de sermos pecadores e não querermos o
mo Isaías se viu em Isaías 6.5: que é bom. Às vezes, odiamos o bem, mesmo
o bem nos beneficiando.
Então, disse eu: ai de mim, qu e vou p ere­ Conhecer Deus pode levar-nos à santidade.
cendo! Porque eu sou um hom em de lábios Conhecer Deus como Ele é implica amá-lo
impuros e habito no meio de um povo de como Ele é e querer ser como Ele. Esta é a
impuros lábios; e os meus olhos viram o rei, mensagem em um dos textos mais importantes
o Senhor dos Exércitos! da Bíblia acerca do conhecimento sobre Deus:

Implica reconhecer nossas falhas, como Assim diz o Senhor: Não se glorie o sábio na
Pedro, que disse a Jesus: Senhor, ausenta-te de sua sabedoria, nem se glorie o forte na sua
mim, por que sou um homem pecador (Lc 5.8). força; não se glorie o rico nas suas riquezas.
Em contrapartida, tal conhecimento de Mas o que se gloriar glorie-se nisto: em me
nós mesmos a partir do conhecimento de conhecer e saber que eu sou o Senhor, que
Deus também pode ser confortante e satisfa­ faço beneficência, juízo e justiça na terra;
tório, pois, apesar do que nos tornamos, ain­ porque destas coisas me agrado, diz o Senhor.
da somos criação de Deus e por Ele somos Jeremias 9.23,24
amados. N ão há maior dignidade dada a ho­
mens e mulheres do que esta. Jeremias, um profeta do Antigo Testamen­
Em terceiro lugar, o conhecimento de to, também escreveu sobre o dia em que os que
Deus também nos dá conhecimento sobre não conhecem Deus virão a conhecê-lo:
mundo: seu bem e seu mal, seu passado e fu­
turo, seu propósito e julgamento iminente E não ensinará alguém mais a seu próximo,
pelas mãos de Deus. nem alguém, a seu irmão, dizendo: Conhe­
Em certo sentido, é uma extensão do ar­ cei ao Senhor; porque todos m e conhecerão,
gumento que acabamos de apresentar. Se o desde o m enor deles até ao maior, diz o Se­
conhecimento acerca de Deus nos permite nhor; porque perdoarei a sua maldade e
conhecer melhor a nós mesmos, inevitavel­ nunca mais m e lembrarei dos seus pecados.
mente nos traz conhecimento sobre o mun­ Jeremias 31.34
do, pois este é formado também por pessoas.
Por outro lado, o mundo tem uma relação Por fim, o conhecimento sobre Deus é im­
especial com Deus: está em pecado e rebelião portante porque apenas por meio dele a Igre­
contra o Criador, mas tem valor com o instru­ ja pode tornar-se forte. E m nós mesmos so­
mento para Seu propósito; é um lugar confu­ mos fracos, mas, com o Daniel escreveu, o
so até que conheçamos o Deus que o criou e povo que conhece ao seu D eus se tornará forte
aprendamos com Ele a respeito do que vai e ativo (Dn 11.32b a r a )
acontecer com o mundo. Não temos uma Igreja nem muitos cristãos
A quarta razão de o conhecimento sobre fortes hoje. Se rastrearmos a causa, constatare­
Deus ser importante é ser o único caminho mos a falta de conhecimento espiritual profundo.
Por que a Igreja está fraca? Por que um Quando uma grande estátua de Nabucodo-
cristão isolado dos outros é fraco? Porque nosor foi erguida e de todos foi exigido que se
permitiu que sua mente se conformasse ao curvassem diante dela, para adorá-la, os três
“espírito de nossa era”, com seu pensamento amigos de Daniel se recusaram (ver Dn 3), e
mecanicista, ímpio. Muitos cristãos se esque­ quando, por decreto real, foi proibido dirigir
ceram de como Deus é e o que Ele promete qualquer petição, a não ser ao rei, por 30 dias,
àqueles que nele confiam. Daniel fez o que sempre fazia: continuou oran­
Peça a um cristão mediano para falar so­ do a Deus três vezes ao dia, diante de uma janela
bre Deus. Após ele dizer coisas previsíveis, aberta que dava para Jerusalém (ver Dn 6).
você constatará que tal pessoa [pelo seu des­ O que havia de errado com aqueles quatro
conhecimento da Palavra e sua falta de expe­ homens? Eles estavam enganados em relação
riência com o Senhor] crê num deus pequeno, às conseqüências [de sua insubmissão aos de­
de sentimentos vacilantes; um deus que gos­ cretos reais]? Acharam que o não cumpri­
taria de salvar o mundo, mas não consegue; mento passaria despercebido?
que gostaria de refrear o mal, mas, de algum De jeito nenhum. Eles sabiam as conseqüên­
modo, isto parece estar além do seu poder; cias, mas conheciam Deus. Confiavam que o
um “vovô” que se aposentou de sua obra, mas Senhor tinha poder para resolver aquela situ­
que ainda tem boa vontade para dar bons ação. Ele poderia manifestar Sua salvação tan­
conselhos, embora, na maior parte do tempo, to na cova dos leões como na fornalha.
permita que seus filhos deem seu jeito para [Com base em sua fé e conhecimento so­
sobreviver num ambiente perigoso. bre Deus, ousadamente] Hananias, Misael e
Tal deus não é o Deus da Bíblia! Aqueles Azarias disseram ao rei Nabucodonosor:
que conhecem Deus percebem o erro concei­
tuai e rejeitam-no. O Deus da Bíblia não é Eis que o nosso Deus, a quem nós servi­
fraco; é todo-poderoso. N ada acontece sem a mos, é que nos pode livrar; ele nos livrará
permissão dele ou fora de Seus propósitos, do forno de fogo ardente e da tua mão, ó
nem o mal. N ada o perturba ou confunde. rei. E, se não, fica sabendo, ó rei, que não
Seus propósitos são sempre realizados. A s­ serviremos a teus deuses nem adoraremos
sim, aqueles que o conhecem de fato, agem a estátua de ouro que levantaste.
com ousadia, seguros de que o Todo-podero­ Daniel 3.17,18
so está com eles para realizar Seus agradáveis
propósitos na vida deles. A concepção de um deus fraco não p ro­
Vejamos um exemplo. Daniel e seus três duz homens fortes; um deus assim nem mere­
amigos [Hananias, Misael e Azarias] eram ce ser adorado. Já o Deus todo-poderoso, o
homens espirituais [fiéis a Deus e obedientes Deus bíblico, é uma fonte de força para aque­
aos Seus mandamentos]. [Após a invasão les que o conhecem.
dos caldeus, os quatro jovens judeus foram
deportados para a Babilônia]. Viviam no am­ A c i ê n c i a m a is e l e v a d a ____________________
biente ímpio da corte babilônica. Eles esta- Então, vamos aprender sobre Deus e co-
vam cativos, mas eram bons escravos. Eles nhecê-lo num sentido mais pleno e bíblico.
serviam ao rei. Mas a dificuldade surgiu Jesus nos encorajou a fazer isso quando disse:
quando se recusaram a infringir os manda­
mentos do Deus verdadeiro a quem eles co ­ Vinde a mim, todos os que estais cansados
nheciam e adoravam. e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre
vós o m eu jugo, e aprendei de mim, que sua imensidão; é tão profundo, que nosso orgu­
sou manso e humilde de coração, e encon­ lho se afoga em sua infinitude. Podemos com­
trareis descanso para a vossa alma. preender e manejar outros assuntos, sentir algum
Mateus 11.28,29 tipo de satisfação com isto, e seguir o nosso ca­
minho pensando “vejam como sou sábio”. Mas,
Essa aproximação proporciona sabedoria quando nos deparamos com essa ciência supe­
verdadeira a todos. E uma responsabilidade rior, descobrimos que nosso fio de prumo não
especial e um privilégio do cristão. pode ressoar a profundidade dela e que nossos
Qual é o melhor curso teológico para olhos de águia não podem ver sua grandiosidade,
quem é filho de Deus? N ão é assentar-se aos e voltamos com [...] a solene exclamação: “sou de
pés do próprio Deus, para conhecê-lo de m o­ ontem, e nada sei”[...] Contudo, enquanto humi­
do pessoal? lha a mente, pensar sobre Deus também a expan­
H á outros estudos que valem à pena, é de [...] Nada ampliará tanto o intelecto, nada
verdade. Mas a ciência mais elevada, mais ex- magnificará tanto a alma do homem, quanto uma
pansora de mente, dentre todas é a revelada devotada, honesta e contínua investigação do
por Deus. grande assunto: Deus. (S p u r g e o n , 1975, p.l)
Spurgeon escreveu:
Todo cristão deve buscar esse objetivo.
Há algo muito proveitoso para a mente na con­ Deus prometeu que aqueles que o buscam o
templação do divino. E um assunto tão vasto encontrarão e que, para aqueles que batem, a
que todos os nossos pensamentos se perdem em porta se abrirá (ver M t 7.7).

N otas

1 Platão foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e
fundador da Academia, em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Com seu
mentor, Sócrates, e seu pupilo, Aristóteles, Platão ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da
filosofia ocidental.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Plat%C3%A3o)
2 Karl Marx foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista moderna, que atuou como
economista, filósofo, historiador, teórico político e jornalista. Herdeiro da filosofia alemã, ele foi considerado, ao
lado de Kant e Hegel, um de seus grandes representantes.
A teoria marxista é, substancialmente, uma crítica radical das sociedades capitalistas. Marx se posicionou contra
qualquer separação drástica entre teoria e prática, entre pensamento e realidade, porque essas dimensões, para ele, se­
riam abstrações mentais (categorias analíticas) que, no plano concreto, real, integram uma mesma totalidade complexa.
O marxismo constitui-se como a concepção materialista da História, longe de qualquer tipo de determinismo, mas
compreendendo a predominância da materialidade sobre a ideia e da dialética das coisas. Portanto, não é possível en­
tender os conceitos marxianos como forças produtivas, capital, entre outros, sem levar em conta o processo histórico.
Marx compreendeu o trabalho como atividade humana que desenvolve socialmente o homem. Sendo este um ser
social, a história das relações sociais e de produção dá lugar à humanidade. É a partir desta compreensão e concepção
revolucionárias do homem, que Marx identificará a alienação do trabalho como a alienação das demais coisas, tendo
sua compreensão do real influenciado cada dia mais a ciência por sua consistência.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Marx)
3 O potencial de movimento humano foi uma psicoterapia humanista desenvolvida entre 1960 e 1970, com técnicas
de desenvolvimento de indivíduos por meio de grupos de encontro, de terapia do grito primai e outras psicoterapias
associadas. Embora o potencial do movimento humano e a terapia humanista sejam algumas vezes usados como si­
nônimos, esta (que floresceu entre 1940 e 1950, com base nos ensinamentos de Freud e Nietzsche) precedeu o po­
tencial do movimento humano, fornecendo sua base teórica.
A terapia humanista foi inicialmente vista como capaz de ajudar uma pessoa a fazer pleno uso das suas capacida­
des pessoais que a levariam à criatividade, autorrealização e felicidade pela integração de todos os componentes da
personalidade. Esses elementos incluiriam o desenvolvimento físico, emocional, intelectual, comportamental e espi­
ritual. As marcas de uma pessoa autorrealizada e feliz seriam a maturidade, o autoconhecimento, a independência e
a autenticidade. O problema parece ter sido a mistura nesta terapia de técnicas psicanalíticas e místico-religiosas, que
vieram à tona com os movimentos de Nova Era.
(Fonte: wikipédia)
O D eus d e s c o n h e c id o

soma total da nossa sabedoria, a Se a culpa é nossa, embora esse fato em si pos­
que merece o nome de sabedoria sa ser desconfortável, é possível pelo menos
verdadeira e certa, abrange estas corrigi-lo, pois Deus pode qualquer coisa.
duas partes: o conhecimento que Ele pode intervir. P or outro lado, se a culpa é
se pode ter de Deus, e o de nós mesmos. de Deus (ou, como preferiríamos dizer, se a
( C a l v i n o , 1960, p . 35) culpa é da própria natureza das coisas), então
Essas palavras do parágrafo inicial da obra não pode ser feito absolutamente nada. A
Institutes o f the Christian Religion [As Institu- chave do conhecimento inevitavelmente esca­
tas da religião cristã] marcam o ponto para o pa de nós, e a vida é absurda.
qual o capítulo anterior nos trouxe, mas tam­ Em The Dust o f Death [As cinzas da mor­
bém introduzem um novo problema. Se de fato te], Os Guinness1 ilustra isso ao descrever
a verdadeira sabedoria consiste no conhecimen­ uma apresentação teatral cômica encenada
to sobre Deus e sobre nós mesmos, somos ime­ pelo comediante alemão Karl Vallentin. N es­
diatamente levados a perguntar: “Mas, quem sa performance, o comediante sobe num pal­
tem tamanho conhecimento? Quem conhece co iluminado apenas por um pequeno círculo
Deus ou conhece a si mesmo de verdade?” de luz. Ele anda para lá e para cá ao redor do
Se form os honestos, teremos de admitir círculo com um semblante preocupado. Ele
que, enquanto form os deixados p or nossa está procurando por alguma coisa.
própria conta ou confiarmos em nossas Passado algum tempo, um policial chega
próprias habilidades, a única resposta p os­ perto dele e pergunta o que ele perdeu. “Perdi
sível é “ninguém”. Se vivermos de acordo a chave da minha casa”, Vallentin responde.
com nossas próprias convicções, nenhum O policial se junta a essa busca, mas por fim a
de nós verdadeiramente conhecerá Deus, tam ­ procura parece inútil. “Tem certeza de que a
pouco conhecerem os nós mesmos de m a­ perdeu aqui?”, pergunta o policial. “Ah,
neira adequada. n ão!”, diz Vallentin, apontando para o canto
Onde está o problema? É evidente que não escuro. “Foi ali.” “Então, por que você está
conhecemos a nós mesmos porque falhamos procurando aqui?” “Ali, não há luz”, respon­
em primeiro conhecer Deus. Mas, por que não de o comediante (Os G u in n e s s , 1973, p .148).
conhecemos Deus? Ele é impossível de ser co­ Se Deus não existe, ou se Deus existe, mas
nhecido? A culpa é dele ou é nossa? o fracasso em conhecê-lo é culpa dele, então a
Antes de chegarmos a essa conclusão de­ busca pelo conhecimento é como a busca do
vemos estar conscientes do que está envolvido. comediante alemão. Onde ela deveria ser feita
não há luz; onde há luz não há sentido em criadas, para que eles fiquem inescusáveis;
procurar. Mas, é esse o caso? N a Bíblia é de­ porquanto, tendo conhecido a Deus, não o
clarado que o problema está em nós, não em glorificaram como Deus, nem lhe deram
Deus. Portanto, o problema tem solução. graças; antes, em seus discursos se desvane­
Tem solução porque Deus pode dar, e na ver­ ceram, e o seu coração insensato se obscu-
dade já deu, passos para se revelar a nós, pro­ receu. Dizendo-se sábios, tornaram-se
vendo, p or meio disso, a chave que faltava loucos. E m udaram a glória do D eus incor­
para o conhecimento. ruptível em sem elhança da im agem de
hom em corruptível, e de aves, e de qua­
C o n s c iê n c ia d e D e u s ______________________ drúpedes, e de répteis.
Devemos começar com o problema: por Romanos 1.18-23
mais estranho que possa parecer, a pessoa que
não conhece Deus, ainda que num sentido Nesses versículos, vemos três ideias im­
menor, mas válido, conhece-o, embora repri­ portantes: 1) a ira de Deus contra o homem
ma esse conhecimento. natural é demonstrada; 2) o homem intencio­
Nesse ponto, precisamos voltar à distin­ nalmente rejeitou Deus; 3) essa rejeição acon­
ção entre uma consciência sobre D eus e o ver­ teceu apesar de uma consciência natural de
dadeiro conhecimento de Deus. Conhecer Deus que toda pessoa tem.
Deus é penetrar no conhecimento de nossa
profunda necessidade espiritual e da provi­ D u p l a r e v e l a ç ã o ___________________________

dência dele para essa necessidade, e daí vir a A terceira ideia, a consciência natural so­
confiar no Senhor e reverenciá-lo. Ter cons­ bre Deus que toda pessoa tem, é o ponto de
ciência sobre Deus é meramente uma sensa­ onde precisamos partir, pois vemos que, em­
ção de que há um Deus e que Ele merece bora ninguém naturalmente conheça Deus, a
nossa obediência e adoração. Homens e mu­ deficiência que temos de conhecê-lo não é
lheres não conhecem, obedecem ou adoram a culpa dele. O Senhor nos deu uma dupla re­
Deus naturalmente. Contudo, certamente têm velação de si mesmo, e todos nós a temos.
uma consciência sobre Ele. A primeira parte dela é a revelação de
Isso nos remete a algumas das mais im­ Deus na natureza. O argumento de Paulo po­
portantes palavras já registradas em benefício de ser resumido assim: tudo que possa ser
da humanidade — da carta do apóstolo Paulo conhecido sobre Deus pelo hom em natural
à recém-estabelecida Igreja em Roma. Elas foi revelado na natureza. Obviamente, pre­
contêm a primeira tese do apóstolo em sua cisamos reconhecer que é um conhecim en­
grande exposição da doutrina cristã. to limitado. N a verdade, Paulo definiu isso
com o duas coisas apenas: o poder eterno de
Porque do céu se manifesta a ira de D eus Deus e Sua divindade. Todavia, embora esse
sobre toda impiedade e injustiça dos ho­ conhecim ento seja limitado, é suficiente pa­
mens que detêm a verdade em injustiça; ra eximir de culpa qualquer pessoa que fa­
porquanto o que de D eus se pode conhecer lhe ao partir desse ponto para buscar Deus
neles se manifesta, porque D eus lho mani­ plenamente.
festou. Porque as suas coisas invisíveis, des­ N o discurso contemporâneo, a expressão
de a criação do m undo, tanto o seu eterno poder eterno poderia ser reduzida à palavra
poder como a sua divindade, se entendem supremacia, e divindade poderia ser traduzida
e claramente se vêem pelas coisas que estão como ser. Paulo estava dizendo, então, que há
uma evidência ampla e completamente con­ isso não fará diferença. Um a vez que você está
vincente na natureza de um Ser supremo. Deus dirigindo o carro, a responsabilidade de ver a
existe, e os seres humanos sabem disso. Este é placa e obedecer-lhe é sua. Além disso, você é
o argumento. responsável se, por tê-la ignorado, você negli­
Quando, em seguida, homens e mulheres gentemente se lança num penhasco e destrói a
se recusam a reconhecer e adorar a Deus, como si mesmo e aos passageiros.
fazem, a culpa não está numa falta de provas, Paulo estava dizendo, primeiro, que há uma
mas numa determinação irracional e resoluta placa. É a revelação de Deus na natureza. Se­
deles de não conhecê-lo. gundo, você tem visão. Se você opta por ignorar
O Antigo Testamento aponta uma clara a placa, consequentemente procura o desastre,
revelação de Deus na natureza: portanto a culpa é sua.
N a verdade, o julgamento de Deus (como o
Os céus manifestam a glória de Deus e o do policial) vem não porque você não sabia ou
firm amento anunáa a obra das suas mãos. não poderia saber sobre Deus, mas porque, es­
Um dia fa z declaração a outro dia, e uma tando consciente de Deus, você, não obstante,
noite mostra sabedoria a outra noite. Sem recusou-se a reconhecê-lo como Deus. Paulo
linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vo­ escreveu: Tais homens são, por isso, indesculpá­
zes em toda a extensão da terra, e as suas veis; porquanto, tendo conhecimento de Deus,
palavras, até ao fim do mundo. não o glorificaram como Deus, nem lhe deram
Salmo 19.1-4 graças (Rm 1.20,21).
Paulo não estava dizendo que há tantas pro­
A questão é que a revelação de Deus na vas suficientes sobre Deus na natureza que o
natureza é suficiente para convencer qualquer cientista, que investiga detalhadamente os misté­
um da Sua existência e do Seu poder, se o in­ rios da natureza, pode ter consciência dele. O
divíduo assim quiser. apóstolo não disse que a placa está lá, mas está
A segunda parte da revelação do Senhor é tão escondida que só poderemos encontrá-la se
a Sua autorrevelação. Poderíamos chamá-la de procurarmos cuidadosamente. Paulo afirmou
revelação interna ou, pelo menos, a capacidade que a placa é clara. E um outdoor. Ninguém, não
interna de receber uma. Ninguém em seu esta­ importa quão débil ou insignificante, tem como
do natural vem a conhecer Deus no sentido apresentar uma desculpa para não notá-la.
pleno da Bíblia. Mas, a toda pessoa foi dada a H á provas suficientes de Deus numa flor
capacidade de receber a revelação natural. para levar tanto uma criança como um cien­
Paulo falou dessa capacidade quando dis­ tista a adorá-lo. H á provas suficientes numa
se que porquanto o que de D eus se pode co­ árvore, numa pedra, num grão de areia, numa
nhecer é manifesto entre eles [os homens que impressão digital, para nos fazer glorificar o
detêm a verdade pela injustiça], porque Deus Senhor e dar graças a Ele.
lhes manifestou (Rm 1.19 a r a ). Esse é o caminho para o conhecimento.
Suponha que você esteja dirigindo numa Entretanto, as pessoas não fazem isso. Elas
rua e encontre uma placa que diz “Desvio — substituem a natureza ou partes desta por
Vire à esquerda”. N o entanto, você ignora e Deus, e seu coração se encontra obscurecido.
continua dirigindo. Mas, há um policial pre­ Calvino2 delineou esta conclusão:
sente, que para você e começa a anotar uma
multa. Que desculpa você poderia dar? Você Mas, embora careçamos de capacidade natu­
pode argumentar que não viu a placa. Porém, ral para podermos chegar ao puro e líquido
conhecimento sobre Deus, somos impedidos de ( S p r o u l , 1974, p. 59), ressaltando que é nesse
toda e qualquer escusa porque o defeito dessa ponto que a culpa humana recai. Conheci­
obtusidade está dentro de nós. Não temos di­ mento suficiente foi dado a todas as pessoas
reito à tergiversação, nem justificativa alguma, para fazer com que se voltassem de si mes­
porque não podemos pretender tal ignorância mas e de seu próprio m odo de vida para
sem que nossa própria consciência nos con­ Deus, e começassem a procurá-lo. Mas, esse
vença de negligência e ingratidão. ( C a l v i n o , conhecimento, com o uma grande mola, foi
1960, p. 68,69) pressionado para baixo. Assim, a mola ame­
aça pular e demolir as opiniões e o estilo de
R e je iç ã o a D e u s _____________________________
vida daquele que a reprime. Portanto, quan­
Quando Calvino fala de negligência e in­ do a pessoa a pressiona para baixo, ela está
gratidão, ele nos conduz ao segundo ponto reprimindo a verdade.
do argumento de Paulo em Romanos 1.18: o P or que fazemos isso? Se é verdade, con­
fato de que todos rejeitaram Deus a despeito forme observado no capítulo anterior, que o
da Sua revelação na natureza. Entretanto, ao conhecimento sobre Deus nos leva a nosso
desenvolver esse ponto em Romanos, o após­ mais importante objetivo, e se, assim como
tolo mostrou a natureza da rejeição e por que acabamos de dizer, o início desse conheci­
ela aconteceu. mento já está presente em nós, por que o
A chave para essa rejeição universal a reprimimos? N ão acolheríamos tal verdade
Deus se encontra na frase que detêm a verda­ e buscaríamos que ela emergisse? As pesso­
de pela injustiça (Rm 1.18). Em grego, o ver­ as são tão irracionais a esse ponto? O u a
bo traduzido com o detêm é katechein, que visão de Paulo é hesitante?
significa segurar, segurar firm e, guardar, p e ­ Paulo não errou. Homens e mulheres re­
gar, impedir, restringir ou reprimir. primem a verdade. Porém, a razão para faze­
Num sentido positivo, o verbo é usado para rem isso é que eles não gostam da verdade
significar reter o que fo r bom. Paulo diz retendo sobre Deus. N ão gostam do Deus para o qual
firmemente a palavra da vida (Fp 2.16 n v i). a verdade os leva.
Num sentido negativo, é empregado para signi­ Observe que Paulo iniciou Romanos 1.18
ficar erroneamente reprimir ou impedir algo. ( a r a ) dizendo que a ira de Deus se revela do
Assim, em outras traduções bíblicas o texto de céu contra toda impiedade e perversão dos
Romanos 1.18 menciona os homens que supri­ homens. Im piedade tem vários significados.
mem a verdade pela injustiça (NVI), suprimem Neste caso, o significado não é tanto que os
a verdade em injustiça (NASB), e mantêm a homens não são com o Deus (ainda que seja
verdade aprisionada em sua perversidade (JB). verdade), mas que, além disso, estão em opo­
Isso, portanto, é a natureza do problema. sição a Deus e à Sua natureza divina. Deus é
A ira de Deus é derramada do céu contra os soberano, mas as pessoas não gostam de Sua
seres humanos não porque eles simplesmen­ soberania. N ão querem reconhecer que há
te, e talvez de forma descuidada, negligen­ alguém que exerce poder justo sobre elas. A
ciaram a verdade, mas sim porque deliberada santidade do Senhor coloca nosso próprio
e maldosamente reprimiram qualquer coisa, pecado em questão.
no fundo de seu coração, que soubessem so­ Deus é onisciente, mas não gostamos des­
bre Deus. se conhecimento total dele. N ão gostamos de
R. C. Sproul3 chamou esse argumento de “o um Deus que vê no escuro recôndito de nosso
cerne da psicologia de Paulo sobre o ateísmo” coração e conhece-nos intimamente. Quase
tudo que pode ser conhecido sobre Deus é d e ir o c h o c a e f e r e as p e s s o a s . É t r a u m á t ic o .
assustador para o homem natural de um jeito C o n s e q u e n te m e n te , e la s r e p r im e m o que
ou de outro. Então ele reprime as provas que sa b e m . “ N ã o h á tra u m a se o s o lh o s e s tã o
o levariam na direção do verdadeiro conheci­ s e m p r e f e c h a d o s e m r e a ç ã o a o c h o q u e d a lu z
mento de Deus. — a p ó s a d o r s e r e x p e r i m e n t a d a ” (SP R O U L ,
A segunda palavra no versículo 18 de R o­ 1974, p. 75).
manos 8 é perversão. Tudo sobre Deus é re­ O ponto importante neste caso é que o
pugnante ao homem natural, mas o motivo conhecimento de Deus, embora reprimido,
predominante dessa repugnância é a justiça de não é destruído. Ele permanece intacto, ain­
Deus. Ele é santo, mas as pessoas são pecami­ da que profundamente enterrado no sub­
nosas. Elas são ímpias e gostam da impiedade. consciente. A falta é, portanto, sentida, e a
Consequentemente não desejam conhecer um substituição de “o que não é D eus” pelo
Deus que faz reivindicações morais a elas. C o ­ Deus verdadeiro segue-se.
nhecer Deus exige mudanças. Em outras pala­
vras, a recusa em conhecer Deus é baseada A ir a d e D e u s __________________________________

tanto em motivos intelectuais como morais. Finalmente, chegamos à primeira afirma­


tiva de Paulo, tendo analisado os três pontos
R e je it a n d o o c o n h e c im e n t o d e D eu s
mais importantes de Romanos 1.18 em ordem
N este ponto, chegamos à fonte verdadei­ reversa: a ira de Deus é merecidamente desfe­
ra do problema humano. Homens e mulhe­ rida contra os seres humanos porque eles re­
res rejeitaram o conhecimento inicial sobre primiram o conhecimento de Deus que estava
Deus por motivos morais e psicológicos. claro para eles.
C ontudo, acham impossível parar por aí. Algumas pessoas se sentem profundamen­
Eles rejeitaram Deus; mas ainda são criatu­ te perturbadas pelo fato de o grande Deus do
ras de Deus e têm uma necessidade do Se­ universo expressar ira. Elas entendem que Ele
nhor em sua composição intelectual e moral. é um Deus de amor, e de fato é, e não conse­
N ão dispostos a conhecer o Deus verda­ guem conceber como Ele pode ter esta caracte­
deiro e sendo incapazes de viver sem Ele, os rística assim como aquela.
seres humanos inventaram deuses substitu­ Nisso as pessoas fracassam: ou em conhe­
tos para preencher Seu lugar. Esses deuses cer, ou em entender o amor de Deus. U m
podem ser leis científicas sofisticadas da Deus que não se ira contra o pecado é um Ser
nossa cultura, os ídolos dos gregos e rom a­ mutilado ou deformado. Falta-lhe alguma
nos ou as imagens bestiais, depravadas, do coisa. Deus é perfeito em Seu amor. Isso é
paganismo. verdade. Mas, Ele é também perfeito em Sua
A universalidade da religião não se deve a ira, a qual, como Paulo nos diz em Romanos,
homens e mulheres que buscam Deus, como se revela do céu contra toda impiedade e per­
alguns têm defendido. Em vez disso, é porque versão dos homens.
não aceitam Deus. Ainda assim, algo tem de Em qualquer apresentação lógica de dou­
ocupar o lugar dele. trina, a ira de Deus é a primeira verdade que
O processo de rejeição se dá em três está­ aprendemos sobre Ele.
gios bem conhecidos dos psicólogos tradi­ Por que Paulo não começou dizendo que
cionais: trauma, repressão e substituição. o amor de Deus se revela do céu? N ão é que
Em sua análise sobre o ateísmo, Sproul Deus não seja amor, porque Ele é, como Pau­
mostra que o confronto com o Deus verda­ lo posteriormente sustenta. Antes, é assim
para que reconheçamos nossa profunda ne­ do Senhor de form a humilde, reconhecen­
cessidade espiritual e sejamos preparados pa­ do que de fato rejeitaram o que foi clara­
ra receber o conhecimento de Deus no Se­ mente revelado sobre Deus na natureza,
nhor Jesus Cristo, o Salvador, somente no que eles não têm desculpa, que a ira de Deus
qual o podemos receber. merecidamente paira sobre eles, então Deus
Se homens e mulheres se aproximarem de trabalhará em sua vida. Ele m ostrará que já
Deus vangloriando-se de seu suposto conhe­ providenciou um meio de apaziguar a ira
cimento espiritual, Deus os declarará igno­ que lhes era devida, que Jesus já a aplacou,
rantes. Se o fizerem vangloriando-se de e que o caminho está aberto para seu cresci­
seus próprios feitos, Deus não poderá, nem mento tanto no amor com o no conheci­
irá, recebê-los. Mas, se eles se aproximarem mento de Deus.

N otas

1 Os Guinness é cientista social e um dos principais apologistas da atualidade. Nascido na China, hoje reside nos
Estados Unidos e possui mais de 20 obras de grande sucesso internacional publicadas.
(Fonte: http://www.iqc.pt/entrevistas/os-guinness-cientista-social-e-apologista-crist-o-fala-da-actualidade-e-desafia-
-os-cr.html)

2 João Calvino, teólogo cristão francês do século 16, foi um dos maiores influenciadores da Reforma Protestante. A dou­
trina que ensinou e viveu é conhecida como calvinismo.
iFonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Calvino)
? Robert Charles Sproul, nascido em 1939 em Pittsburgh, Pensilvânia, é um teólogo calvinista e pastor, fundador e pre­
sidente da Ligonier Ministries, uma organização sem fins lucrativos sediada em Orlando.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Charles_Sproul)
Pa r t e

2
A Palavra de Deus

Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para
corrigir, para instruir emjustiça, para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente
Instruído para toda boa obra.
2 Timóteo 3.16,17

E disseram um para o outro: Porventura, não ardia em nós o nosso coração quando,
peb caminho, nos falava e quando nos abria as Escrituras?
Lucas 24.32

A lei do SENHOR é perfeita e refrigera a alma; o testemunho do SENHOR é fiel e dá


sabedoria aos simplices. Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o
mandamento do SENHOR é puro e alumia os olhos.
Salmo 19.7,8

Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou um tíl se
omitiú da kí sem que tudo seja cumprido.
Mateus 5.18

Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; peb contrário, cercar-se-ão de
mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se
recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas.
2 Timóteo 4.3,4 — A R A

Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar,
que maneja bem a palavra da verdade.
2 Timóteo 2.15
—n
C A P ÍT U L O O '

A B íb l ia

| y /^ o s s o estudo sobre a doutrina cristã Ele morreu no lugar de pecadores e ressusci­


/U / conduziu-nos a três grandes verda- tou como prova de justificação divina. Segun­
/ Vi/ des: 1) o conhecimento de Deus é do, temos a revelação escrita, a Bíblia.
? nosso maior bem; 2) Deus revelou Deus providenciou registros interpretati-
na natureza certas verdades sobre si mesmo a vos do que foi feito para nossa redenção. F i­
todos; mas 3) as pessoas rejeitaram essa revela­ nalmente, temos a aplicação dessas verdades
ção e substituíram-na por deuses falsos no lu­ na mente e no coração do indivíduo por in­
gar do Criador. termédio do Espírito Santo. Com o resultado,
A consciência do Deus verdadeiro é dada a o indivíduo nasce de novo, recebe Jesus como
nós externamente, em tudo o que vemos, e in­ Salvador, e é capacitado para segui-lo até o
ternamente por meio do funcionamento de fim da vida.
nossa mente e de nosso coração. Contudo, É evidente, entretanto, que nessa revela­
negamos nossa consciência de Deus, mudando ção especial em três estágios a Bíblia é funda­
o conhecimento que temos em superstição. mental. Somente nas Escrituras aprendemos
Com o resultado, o mundo, com toda a sua sa­ sobre a divina redenção dos pecadores em
bedoria, não conhece Deus e, assim, carece de Cristo; por meio delas, Deus fala com indi­
conhecimento sobre si mesmo também. víduos. Portanto, com o disse Calvino, “nos­
O que há para ser feito? E óbvio, pelo que sa sabedoria deveria ser nada mais do que
foi dito, que homens e mulheres não podem abraçar com humilde ensinabilidade, e pelo
fazer nada por si mesmos. Mas, as boas novas menos sem encontrar defeito, o que quer
do cristianismo são que, embora não possa­ que seja ensinado na Escritura Sagrada”
mos fazer nada, Deus fez alguma coisa. Ele (C a lv in o , 1960, p. 237).
fez o que precisava ser feito: comunicou-se
conosco. Em outras palavras, além da geral, D eu s fa lo u _____________________________________

mas limitada, revelação dele mesmo na natu­ A importância da Bíblia está em ser a Pa­
reza, o Senhor providenciou uma revelação lavra de Deus escrita. E a primeira razão para
especial, planejada para levar aqueles que não acreditar que a Bíblia é isso é o próprio ensi­
o conheciam e não queriam conhecê-lo a um namento da Bíblia sobre si mesma. Esse é o
conhecimento salvador dele. ponto de onde todas as pessoas, e particular­
Essa revelação especial tem três estágios: mente os cristãos, deveriam partir.
primeiro, temos a redenção na história. Isso Muitos apelam para as Escrituras em defe­
está centrado na obra do Senhor Jesus Cristo. sa de doutrinas básicas: a doutrina de Deus, a
divindade de Cristo, a redenção, a ressurrei­ O que o termo diz que a Escritura é não é que
ção, a natureza da Igreja, a obra do Espírito seja “inspirada para dentro por Deus”, ou que
Santo, o julgamento final e muitos outros seja produto de “inspiração divina” para den­
pontos da teologia. Eles o fazem corretamen­ tro de seus autores humanos, mas que é respi­
te. N o entanto, se a Bíblia tem autoridade e é rada para fora por Deus [...]. Quando Paulo
correta nesses assuntos, não há razão pela declara, então, que Toda Escritura é produto
qual ela não deveria ter autoridade e ser cor­ do folêgo divino, “é emanada de Deus”, ele
reta quando fala de si mesma. afirma isso com tanta energia quanto possa
Quando seguimos essa abordagem, o pri­ empregar que a Escritura é produto de uma
meiro texto a ser lido é 2 Timóteo 3.16. Nele, operação especificamente divina. ( W a r f i e l d ,
o N ovo Testamento fala do Antigo Testamen­ 1959, p. 133)
to, mencionando que Toda Escritura é divina­
mente inspirada. A expressão em inglês é inspi­ Algumas coisas registradas na Bíblia, claro,
rada p o r (RSV) ou é dada p or inspiração de são meramente as palavras de homens fracos e
(KJV) só traduz uma palavra grega. Essa pala­ falhos. Todavia, quando esse é o caso, as pala­
vra, como B. B. Warfield ressaltou no início do vras são indicadas como tal, e o ensino divino
século, “muito distintamente não significa nas passagens envolvidas é que tais pontos de
inspirada por Deus” ( W a r f i e l d , 1959, p. 132). vista são fracos e falhos. Para dar um exemplo,
Essa expressão inglesa chegou até nós pela nos capítulos iniciais do livro de Jó lemos pele
Vulgata Latina (divinitus inspirata) mediante por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela
tradução de Wycliff ( “A l Scripture o f G od sua vida (Jó 2.4). Mas isso não é verdade, pelo
ynspyrid is...”) e outras versões do inglês ar­ menos não em todos os casos.
caico. Mas, a versão grega não significa inspi­ Com o isso se explica? Ao ler o capítulo 2
rada. Ela literalmente significa soprada por de Jó cuidadosamente, vemos que as palavras
Deus. Esta palavra nunca foi corretamente foram faladas pelo diabo, descrito em outros
traduzida por nenhuma versão em inglês até a trechos como pai da mentira (Jo 8.44).
publicação, em 1973, da N ova Versão Inter­ Semelhantemente, no restante do livro, en­
nacional: N ovo Testamento. contramos capítulos longos cheios de conse­
A palavra grega theopneustos combina a lhos vãos, e muitas vezes errados, dos consola­
palavra para D eus (theos) e a palavra para res­ dores de Jó. Contudo, as palavras deles não são
pirar ou espírito (pneustos). Em inglês, temos totalmente verdadeiras, e de repente Deus in­
a palavra para D eus preservada nas palavras terrompe a falta de propósito para perguntar:
theology (teologia), theophany (teofania), Q uem é este que escurece o conselho com pala­
monotheism (monoteísmo), atheist (ateu), e vras sem conhecimento? (Jó 38.2). Nesta passa­
nos nomes Dorothy, Theodore, entre outros. gem, Deus especificamente expõe as falsas
Pneuma é preservado nas palavras pneumáti­ opiniões dos conselheiros de Jó.
co e pneumonia. Juntos, esses vocábulos ensi­ A Bíblia tem autoridade absoluta em re­
nam que as Escrituras são o resultado direto lação à veracidade das narrativas, e, toda vez
do fôlego de Deus. que Deus fala tanto de forma direta como
Warfield escreveu: por intermédio de um de Seus profetas, não
há somente perfeita exatidão, mas também
O termo grego não tem [...] nada a dizer sobre autoridade plena em Suas palavras. Foi ob­
iwspirado ou sobre zwspiração; fala apenas servado que, só no Pentateuco, a expressão
sobre o ato de respirar (spiring ou spiration). D eus disse ocorre mais de 800 vezes, e que a
sentença assim disse o Senhor é um refrão Porque diz a Escritura a Faraó: Para isto
recorrente declarado pelos profetas. mesmo te levantei, para em ti mostrar o
meu p od er e para que o m eu nom e seja
A B íb l ia d iz /Deu s d i z _______________________ anunciado em toda a terra.
Ao lado de 2 Timóteo 3.16, pode ser colo­ Romanos 9.17
cada uma série dupla de passagens coletadas
por Warfield, mostrando claramente que os Mas deveras para isto te mantive, para
escritores do N ovo Testamento identificaram mostrar o m eu pod er em ti e para que o
a Bíblia que eles possuíam, o Antigo Testa­ m eu nom e seja anunciado em toda a terra.
mento, com a palavra viva de Deus. Êxodo 9.16

Numa dessas classes de passagens, as Escritu­ N ão foi, entretanto, a Escritura (que não
ras são descritas como se fossem Deus; na outra, existia na época) que, prevendo o propósito
fala-se de Deus como se Ele fosse as Escrituras: da graça no futuro, falou essas palavras pre­
nas duas juntas, Deus e as Escrituras são trazi­ ciosas a Abraão, mas Deus mesmo, em Sua
dos em tamanha conjunção que mostram que própria pessoa. N ão foi a ainda inexistente
quanto à diretividade de autoridade não havia Escritura que fez esse anúncio a Faraó, mas
distinção entre eles. (W a r f i e l d , 1959, p. 299) Deus por intermédio de Moisés. Esses atos
poderiam ser atribuídos à “E scritu ra” ape­
O leitor sensível da Bíblia pode concluir nas com o resultado de uma identificação
que o único e divino caráter dos livros sagra­ habitual, na mente do escritor, do texto da
dos não foi absolutamente uma afirmação in­ Escritura com o discurso de Deus. P or isso,
ventada ou abstrata dos escritores bíblicos, tornou-se natural o uso da expressão a Es­
mas sim uma aceitação básica por trás de tudo critura diz, quando o que realmente se pre­
que eles ensinaram ou escreveram. tendia era “Deus, conform e registrado na
Exemplos dessa primeira classe de passa­ Escritura, disse”.
gens selecionadas por Warfield são: Exemplos da outra classe de passagens:

Ora, tendo a Escritura previsto que Deus Ele, porém , respondendo, disse-lhes:
havia de justificar pela f é os gentios, anun­ N ão tendes lido que, no princípio, o
ciou primeiro o evangelho a Abraão, dizen­ C riador os fe z macho e fêm ea e disse:
do: Todas as nações serão benditas em ti. Portanto, deixará o hom em pai e m ãe e
Gálatas 3.8 se unirá à sua mulher, e serão dois num a
só ca rn e?
Ora, o S E N H O R disse a A brão: Sai-te da Mateus 19.4,5
tua terra, e da tua parentela, e da casa de
teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua
far-te-ei uma grande nação, e abençoar- mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão
-te-ei, e engrandecerei o teu nome, e tu ambos uma carne.
serás uma bênção. E abençoarei os que te Gênesis 2.24
abençoarem e amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem; e em ti serão benditas to­ Portanto, como diz o Espírito Santo, se ou-
das as famílias da terra. virdes hoje a sua voz.
Gênesis 12.1-3 Hebreus 3.7
Porque ele é o nosso Deus, e nós, povo do Faz dos ventos seus mensageiros, dos seus
seu pasto e ovelhas da sua mão. Se hoje ou- ministros, um fogo abrasador.
virdes a sua voz. Salmo 104.4
Salmo 95.7
O teu trono, ó Deus, é eterno e perpétuo.
Senhor, tu és [...] que disseste pela boca de Salmo 45.6
Davi, teu servo: Por que bramaram as
gentes, e os povos pensaram coisas vãs? D esde a antiguidade fundaste a terra.
Atos 4.24,25 Salmo 102.25

Por que se amotinam as nações, e os povos N ão é na boca de Deus que essas palavras
imaginam coisas vãs f no texto do Antigo Testamento são coloca­
Salm o 2.1 das: são palavras de outros, registradas na
Escritura como faladas por Deus ou a Deus.
E que o ressuscitaria dos mortos, para Poderiam ser atribuídas a Ele somente por
nunca mais tornar à corrupção, disse-o meio de uma identificação habitual, na mente
assim: As santas e fiéis bênçãos de D avi dos escritores, do texto da Escritura com as
vos darei. Pelo qu e também em outro Sal­ declarações de Deus. P or isso, tornou-se na­
mo diz: Não permitirás que o teu Santo tural usar a expressão D eus diz, quando o que
veja corrupção. realmente se pretendia era a Escritura, a Pala­
Atos 13.34,35 vra de Deus, diz.

Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e Os dois grupos de passagens, juntos, mos­
a vossa alma viverá; porque convosco farei tram, portanto, uma identificação absoluta, na
um concerto perpétuo, dando-vos as firmes mente desses escritores, da Escritura com o
beneficências de Davi. falar de Deus. (W a r f ie l d , 1959, p. 299,300)
Isaías 55.3
M o v id o s p o r D e u s ___________________________

Pois não deixarás a minha alma no infer­ Nenhuma das discussões anteriores tem
no, nem permitirás que o teu Santo veja como objetivo negar o legítimo elemento hu­
corrupção. mano nas Escrituras.
Salmo 16.10 Em 2 Pedro 1.21 ( a r a ), o apóstolo escre­
veu: porque nunca jamais qualquer profecia
E, quando outra vez introduz no m undo o fo i dada p or vontade humana; entretanto,
Primogênito, diz: E todos os anjos de D eus homens [santos] falaram da parte de Deus,
o adorem. movidos pelo Espírito Santo. Isso deve ser ex­
Hebreus 1.6 cessivamente enfatizado, principalmente por
causa de alguns equívocos atuais de que Pe­
Jubilai, ó nações, com o seu povo, porque dro reconheceu que pessoas tiveram uma par­
vingará o sangue dos seus servos, e sobre cela em escrever as Escrituras. Ele disse ho­
os seus adversários fará tornar a vingan­ mens... falaram . Entretanto, o que torna a
ça, e terá misericórdia da sua terra e do Bíblia diferente de outros livros é que na sua
seu povo. fala (ou escrita) os autores foram movidos
Deuteronômio 32.43 por Deus.
Os escritores bíblicos escreveram a partir revelação aos escritores bíblicos variavam.
de sua própria experiência. Eles usaram o seu Aparentemente alguns escreviam como as
próprio vocabulário. O refinamento literário pessoas poderiam escrever hoje, coletando
de seus escritos varia. Eles por vezes usaram material e compondo-o para apresentar os
fontes seculares. Foram seletivos. De muitas eventos ou ênfases mais significativos. Assim
maneiras os livros da Bíblia apresentam evi­ eram João, o autor do quarto Evangelho, e
dências de terem sido escritos por pessoas Lucas, o autor do terceiro Evangelho e de
que foram muito humanas e atentas ao seu Atos (Jo 20.30; L c 1.1-4; A t 1.1,2). Eles não
tempo. Ainda assim, também apresentam evi­ receberam os livros por palavras de Deus.
dências de serem algo mais que simplesmente Moisés recebeu a revelação da Lei no mon­
escritos de homens. te Sinai em meio ao fogo, à fumaça e ao trovão
Pedro disse que esses escritores falaram (Êx 19.18,19). O Senhor revelou Sua mensa­
da parte de D eus e foram movidos pelo Espí­ gem a Daniel em visão (Dn 2.19), como talvez
rito Santo. A palavra traduzida como movi­ também a Paulo uma vez (GI 1.11,12). Isaías
dos é significativa. Ela foi usada por Lucas disse ter ouvido a voz do Senhor como teria
para descrever a descida do Espírito Santo ouvido a voz de outro ser humano: Mas o SE ­
como um som, como de um vento veem ente e N H O R dos Exércitos se declarou aos meus
impetuoso (At 2.2). ouvidos (Is 22.14). Os métodos são claramente
Posteriormente, Lucas empregou mais variados, mas o resultado é o mesmo. O pro­
uma vez tal palavra no relato dramático da duto é uma revelação específica de Deus.
tempestade mediterrânea que destruiu o na­ A maioria dos textos mencionados até
vio que levava Paulo a Roma. Lucas observou agora tem a ver com o Antigo Testamento.
que o navio foi arrastado pelo vento: sendo o Mas, há também textos que indicam que o
navio arrastado com violência, sem poder re­ ensino do N ovo Testamento sobre o Antigo
sistir ao vento, cessamos a manobra e nos fo ­ aplica-se aos escritos do N ovo Testamento da
mos deixando levar (At 27.15 a r a ). mesma forma. Assim, Paulo escreveu sobre o
N o versículo 17 de Atos 27 ( n t l h ) está evangelho que ele pregava:
escrito que desceram as velas e deixaram que
o navio fosse levado pelo vento. Lucas quis Pelo que também damos, sem cessar, graças
dizer que o navio estava à mercê da tempesta­ a Deus, pois, havendo recebido de nós a pa­
de. N ão deixou de ser navio, mas deixou de lavra da pregação de Deus, a recebestes,
ter controle sobre seu curso e destino. não como palavra de homens, mas (segun­
Da mesma forma, Pedro ensina que os es­ do é, na verdade) como palavra de Deus, a
critores da Bíblia foram levados ao longo de qual também opera em vós, os que crestes.
seus escritos a escrever as palavras que Deus 1 Tessalonicenses 2.13
oíanejava que fossem registradas. Eles escre­
veram como pessoas, mas pessoas movidas De igual modo, Pedro colocou as cartas
relo Espírito Santo. O resultado foi a revela­ paulinas na mesma categoria que o Antigo
rão de Deus. Testamento:
O texto de 2 Pedro 1.21 não sugere nada
sobre um método particular pelo qual os es- E tende por salvação a longanimidade de
:ritores bíblicos tornaram-se conscientes da nosso Senhor, como também o nosso amado
Palavra de Deus e a transcreveram. Os méto­ irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabe­
dos que o Senhor usava para comunicar Sua doria que lhe fo i dada, falando disto, como
em todas as suas epístolas, entre as quais há de duas formas: primeiro, por meio de uma
pontos difíceis de entender, que os indoutos repreensão, afirmando que eles não conheciam
e inconstantes torcem e igualmente as ou­ nem as Escrituras nem o poder de Deus; se­
tras Escrituras, para sua própria perdição. gundo, utilizando uma citação direta de Êxodo
2 Pedro 3.15,16 3.6: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de
Abraão, o Deus de Isaque e o D eus de Jacó.
É óbvio que o N ovo Testamento não fala Em muitas ocasiões Jesus se referiu às E s­
de si mesmo com a mesma frequência e exata­ crituras para justificar Suas ações, como
mente da mesma maneira que fala do Antigo quando defendeu a limpeza do templo (Mc
Testamento, uma vez que os livros do Novo 11.15-17) ou mencionou Sua submissão na
Testamento não haviam sido reunidos em um cruz (Mt 26.53,54). Cristo ensinou que a Es­
volume autorizado durante o tempo de vida critura não pode ser anulada (Jo 10.35). Ele
dos escritores. N ão obstante, em muitas oca­ declarou: Porque em verdade vos digo: até
siões os escritores do N ovo Testamento com que o céu e a terra passem, nem um i ou um til
certeza falam de seus escritos como as pala­ jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra
vras de Deus. Em alguns casos, quando um (Mt 5.18 a r a ).
livro do N ovo Testamento foi escrito tarde o Mateus 5.18 merece uma consideração
suficiente para saber de outro escrito do N o ­ adicional. E evidente, mesmo quando lemos a
vo Testamento, o livro mais recente fala dos frase após um espaço de cerca de dois mil
anteriores usando os mesmos termos com anos, que as palavras nem um i ou um til eram
que cristãos e judeus costumavam referir-se uma expressão comum referindo-se às partes
ao Antigo Testamento. mais meticulosas da lei mosaica.
O i (iota) era a menor letra do alfabeto he­
O testem u n h o d e J esu s C r is t o ___________ braico, a letra que transliteraríamos por um i
A razão mais importante para crer que a ou y. N o hebraico escrito ela se parece com
Bíblia é a palavra de Deus escrita e, portanto, uma vírgula, embora fosse escrita junto à par­
a única autoridade para cristãos em todas as te de cima das letras mais do que junto à parte
questões sobre fé e conduta é o ensino de Je­ de baixo.
sus Cristo. Hoje é comum para alguns con­ O til era o que poderíamos chamar de seri-
trastarem a autoridade da Bíblia desfavora­ fa, um traço ou barra que remata cada haste de
velmente com a de Cristo. Mas, tal contraste certas letras, distinguindo, por exemplo, um
é injustificável. Jesus se identificava tanto caractere romano de outro mais moderno. Em
com as Escrituras e interpretava Seu ministé­ muitas Bíblias, o Salmo 119 é dividido em 22
rio à luz das mesmas que é impossível enfra­ seções, cada uma começando com uma letra
quecer a autoridade dele sem ao mesmo tem­ diferente do alfabeto hebraico. Se uma Bíblia
po enfraquecer a autoridade da Bíblia. for bem impressa, o leitor poderá ver o que um
O grande apreço de Cristo pelo Antigo til é ao comparar a letra hebraica antes do ver­
Testamento é visto primeiro pelo fato de que sículo 9 com a letra hebraica antes do verso 81.
Jesus se referia a ele como autoridade infalível. A primeira letra é beth. A segunda é kaph. A
Quando tentado pelo diabo no deserto, Jesus única diferença entre elas é a serifa. A mesma
respondeu três vezes com citações de Deute- característica distingue daleth de resh e vau de
ronômio (Mt 4.1-11). Ele respondeu à pergun­ zayin. De acordo com Jesus, então, nem mes­
ta dos saduceus sobre o status celestial do casa­ mo um “i” ou uma “serifa” da Lei se perderia
mento e a realidade da ressurreição (Lc 20.27-40) até que toda a Lei fosse cumprida.
O que pode conferir à Lei caráter tão per­ nele se não tivesse primeiro crido nos escritos
manente? Obviamente, nada humano, pois de Moisés, pois Moisés escreveu sobre Ele.
todas as coisas humanas passam. A única ex­
plicação para a qualidade imperecível da Lei é Examinais as Escrituras, porque vós cui­
porque ela é verdadeiramente divina. A razão dais ter nelas a vida eterna, e são elas que
pela qual ela não vai passar é porque é a Pala­ de mim testificam. Não cuideis que eu vos
vra do verdadeiro, vivo e eterno Deus. Essa é hei de acusar para com o Pai. H á um que
a substância do ensino de Cristo. vos acusa, Moisés, em quem vós esperais.
Jesus via Sua vida como o cumprimento Porque, se vós crêsseis em Moisés, creríeis
das Escrituras. Cristo se submetia a elas de em mim, porque de mim escreveu ele. Mas,
modo consciente. Ele iniciou Seu ministério se não credes nos seus escritos, como crereis
com uma citação de Isaías 61.1-12: nas minhas palavras f
João 5.39,45-47
O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que
me ungiu para evangelizar os pobres, en­ N o momento de Sua morte, suspenso na
viou-me a curar os quebrantados do cora­ cruz, Jesus novamente pensou nas Escrituras, e
ção, a apregoar liberdade aos cativos, a dar disse: Deus meu, Deus meu, por que m e de-
vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimi­ samparaste} (Mt 27.46, uma referência ao Sal­
dos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. mo 22.1). Cristo disse que tinha sede. Deram-
Lucas 4.18,19 -lhe uma esponja embebida em vinagre, para
que o Salmo 69.21 pudesse cumprir-se.
Quando Jesus terminou de ler, fechou o Três dias depois, após a ressurreição, Jesus
rolo e disse: H oje se cumpriu esta Escritura estava no caminho de Emaús com dois de
em vossos ouvidos (Lc 4.21). Jesus afirmava Seus discípulos, repreendendo-os porque não
ser o Messias, aquele sobre quem Isaías havia haviam usado as Escrituras para compreender
escrito. Ele estava identificando Seu ministé­ a necessidade de Seu sofrimento. Ele disse:
rio com os desígnios estabelecidos para Ele
nas Escrituras. Ó néscios e tardos de coração para crer
Posteriormente, no ministério de Cristo en­ tudo o que os profetas disseram! Porventu­
contramos os discípulos de João Batista indo ra, não convinha que o Cristo padecesse
àquele com a pergunta deste: Es tu aquele que essas coisas e entrasse na sua glória? E, co­
havia de vir ou esperamos outro f (Mt 11.3). Je­ meçando por Moisés e p or todos os p rofe­
sus respondeu com uma segunda referência a tas, explicava-lhes o que dele se achava em
essa seção da profecia de Isaías. Foi como se Ele todas as Escrituras.
dissesse: “N ão considerem minha palavra por Lucas 24.25-27
quem eu sou. Observem o que Isaías profetizou
sobre o Messias. Então, vejam se eu o estou Baseando-se nessas e em muitas outras
cumprindo.” Jesus desafiava as pessoas a avalia­ passagens, não há dúvida nenhuma de que
rem Seu ministério à luz da Palavra de Deus. Jesus tinha o Antigo Testamento em alta esti­
O Evangelho de João mostra Jesus con­ ma, e constantemente se submetia a ele como
versando com os principais dos judeus sobre uma revelação autorizada. Cristo ensinou
ratoridade, e o clímax do que Ele disse é to­ que as Escrituras testemunhavam dele, assim
talmente pertinente em relação às Escrituras. como Ele testemunhava delas. Porque elas
Cristo afirmou que ninguém jamais creria são a Palavra de Deus, Jesus confirmava a
completa confiabilidade delas, com o um todo ouvido e vos anunciará o que há de vir. Ele
e em seus pormenores. m e glorificará, porque há de receber do
Jesus também endossava o N ovo Testa­ que é m eu e vo-lo há de anunciar.
mento, embora de um modo diferente do que João 16.12-14
endossava o Antigo (porque, é claro, o N ovo
Testamento ainda não havia sido escrito). Ele Os apóstolos cumpriram sua comissão?
profetizou a escritura do N ovo Testamento. Sim. O resultado é o N ovo Testamento. Além
Então, escolheu os apóstolos para serem os disso, a Igreja primitiva reconhecia o papel
recebedores da nova revelação. deles, pois, quando chegou o momento de
Havia dois requisitos para ser um apósto­ declarar oficialmente que livros deveriam ser
lo, como consta em Atos 1.21-26 e outras incluídos no cânone do N ovo Testamento, o
passagens. Primeiro, o apóstolo teria de ser fator decisivo foi constatar se eles haviam si­
alguém que houvesse conhecido Jesus duran­ do escritos pelos apóstolos ou se tinham
te Seus dias de ministério terreno, e tivesse aprovação apostólica. A Igreja não criou o
sido testemunha de Sua ressurreição em par­ cânone; se o tivesse criado, tomaria o lugar
ticular (v. 21,22). das Escrituras. Em vez disso, ela foi submissa
O apostolado de Paulo foi, sem dúvida, às Escrituras como autoridade maior.
desafiado nesse ponto porque ele se tornou
um cristão após a ascensão de C risto ao céu; C ren d o na B íb l ia _____________________________

portanto, não tinha estado com Ele em car­ Finalizo este capítulo com uma pergunta
ne. Mas, Paulo citava sua visão do Cristo óbvia: cremos nesses ensinamentos? Cremos
ressurreto na estrada para Damasco com o que a Bíblia é de fato a Palavra de Deus escri­
tendo preenchido esse requisito. N ão sou eu ta de acordo com Seu próprio ensinamento e
apóstolo? [...] Não vi eu a Jesus Cristo, Se­ do Senhor Jesus Cristo?
nhor nosso? (1 C o 9.1). H oje é popular duvidar disso, o que tem
O segundo requisito era que os apóstolos causado muita confusão na teologia e na Igre­
deveriam ser escolhidos por Jesus para desem­ ja cristã. Mas a dúvida não é nova. E a mais
penhar uma tarefa e exercer um papel ímpares. fundamental e original de todas as dúvidas. E
Como parte disso, Cristo lhes prometeu uma encontrada nos lábios de Satanás nos capítu­
dádiva única do Espírito Santo, para que eles los iniciais da Bíblia:
pudessem lembrar-se das verdades em relação a
Seu ministério, compreendê-las e registrá-las. Ora, a serpente era mais astuta que todas
as alimárias do campo que o S E N H O R
Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, D eus tinha feito. E esta disse á m ulher: E
que o Pai enviará em m eu nome, vos ensi­ assim que D eus disse: Não comereis de to­
nará todas as coisas e vos fará lem brar de da árvore do jardim ?
tudo quanto vos tenho dito. Gênesis 3.1
João 14.26
A questão é: podemos confiar em Deus? A
Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós Bíblia é verdadeiramente a Sua Palavra? Cre­
não o podeis suportar agora. Mas, quando mos nisso sem nenhuma reserva intelectual? Se
vier aquele Espírito da verdade, ele vos questionamos a Palavra de Deus e se temos
guiará em toda a verdade, porque não f a ­ reservas intelectuais quanto à sua autoridade,
lará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver nunca nos interessaremos por um verdadeiro
estudo bíblico, nem chegaremos à plenitude da O texto com o qual começamos o capítulo
sabedoria sobre Deus e nós mesmos que Ele — Toda Escritura divinamente inspirada [so­
deseja para nós. Por outro lado, se aceitamos prada por Deus] é proveitosa para ensinar,
essas verdades, desejamos estudar a Bíblia, e, para redargüir, para corrigir, para instruir em
consequentemente, cresceremos em conheci­ justiça — continua: para que o hom em de
mento e devoção. N a verdade, o estudo das Deus seja perfeito e perfeitamente instruído
Escrituras nos abençoará. para toda boa obra (2 Tm 3.16,17).
A AUTORIDADE DAS ESCRITURAS

causa fundamental da confusão estudam a Bíblia, Deus fala com elas em seus
dentro da Igreja cristã hoje é a falta estudos e as transforma pelas verdades que
de uma autoridade válida. Tem ha­ são encontradas nas Escrituras.
vido tentativas de suprir essa auto­ H á um encontro do cristão individual­
ridade por meio dos pronunciamentos de con­ mente com Deus. Foi o que Lutero quis dizer
selhos eclesiásticos, encontros existenciais com quando declarou na Assembleia de Worms:
uma intangível “palavra” de Deus e outros “Minha consciência foi aprisionada pela Pala­
meios. Contudo, nenhuma dessas abordagens vra de Deus”. Foi também o que Calvino quis
pode dizer que foi bem-sucedida. O que há de dizer quando declarou que “a Escritura é au­
errado? Qual é a fonte da autoridade cristã? tenticada por si mesma” ( C a l v i n o , 1960, p. 80).
A resposta protestante clássica é a Palavra Nada, a não ser a experiência pessoal com
de Deus revelada, a Bíblia. Ela tem autoridade o Senhor, jamais poderá convencer alguém de
porque não é a palavra de meras pessoas, em­ maneira conclusiva de que as palavras da Bí­
bora pessoas tenham sido o canal pelo qual blia são as palavras autênticas e de autoridade
ela chegou até nós, mas é o resultado direto de Deus. Com o disse Calvino:
do “sopro” de Deus. É produto dele.
Contudo, há outro nível sob o qual a Portanto, é necessário que o mesmo Espírito
questão da autoridade pode ser levantada. E s­ que falou pela boca dos profetas penetre em
te se relaciona à maneira pela qual nos torna­ nosso coração, para que nos persuada de que
mos convencidos da autoridade da Bíblia. O eles proclamaram fielmente o que lhes fora di­
que há na Bíblia ou no seu estudo que poderia vinamente ordenado. ( C a l v i n o , 19 6 0 , p. 79).
convencer-nos de que ela é de fato a Palavra
de Deus? A Bíblia é algo mais do que um conjunto
O aspecto humano concernente à autori­ de verdades reveladas, uma coleção de livros
dade nos leva um pouco mais adiante no que verbalmente inspirada por Deus. E a viva voz
queremos dizer quando afirmamos que a Bí­ de Deus. O Deus vivo fala por meio das pági­
blia é a Palavra de Deus, pois o significado nas dela. Portanto, a Bíblia não é para ser con­
pleno dessa afirmação é não somente que siderada como um objeto sagrado a ser colo­
Deus falou aos profetas e aos apóstolos para cado numa estante e negligenciado, mas como
que a Bíblia fosse constituída, mas que Ele terra santa, onde o coração e a mente das
continua a falar com as pessoas por meio dela. pessoas podem entrar em contato vital com o
E m outras palavras, à medida que pessoas Deus vivo e gracioso.
De uma perspectiva mais apropriada das aventurado a dizer em nome de seu Senhor.
Escrituras para uma compreensão válida da (M o n tg o m e ry , 1975, p. 44,45)
revelação deve haver uma constante inter-re-
lação entre os seguintes fatores: uma Palavra N o tempo de Lutero, a Igreja romana ti­
infalível e de autoridade, a atividade do Espí­ nha enfraquecido a autoridade da Bíblia ao
rito Santo em interpretar e aplicar essa Pala­ exaltar tradições humanas, colocando-as no
vra e um coração humano receptivo. Nenhum mesmo nível das Escrituras, e ao insistir que
conhecimento verdadeiro de Deus acontece o ensino da Bíblia somente poderia ser co ­
sem esses elementos. municado a cristãos por intermédio de pa­
pas, concílios e padres. Os reformadores
S o l a S c r i p t u r a ________________________________ restauraram a autoridade da Bíblia ao defen­
A segurança de que Deus falou aos refor­ der que o Deus vivo fala a Seu povo direta­
madores diretamente por meio de Suas san­ mente e com autoridade pelas páginas das
tas Escrituras conferiu a eles uma ousadia Escrituras.
singular. A formação dessa verdade teológi­ Os reformadores chamaram a obra de
ca foi o elemento fundamentalmente novo Deus por meio da qual a verdade de Sua Pala­
na Reforma. vra é difundida na mente e consciência de Seu
O lema da batalha da Reforma era Sola povo de “a-obra interna do Espírito Santo”.
Scriptura (somente a Escritura). Mas, Sola Eles ressaltavam que tal atividade era a con­
Scriptura significou mais para os reformado­ trapartida subjetiva ou interna da revelação
res do que dizer que Deus revelou a si mesmo objetiva ou externa, e frequentemente se refe­
nas proposições da Bíblia. riam a textos dos escritos de João.
O novo elemento não era que a Bíblia,
tendo sido revelada por Deus, fala com auto­ O vento assopra onde quer, e ouves a sua
ridade de Deus. A Igreja romana também voz, mas não sabes donde vem, nem para
defendia isso. O novo elemento, como Packer onde vai; assim é todo aquele que é nasci­
ressaltou: do do Espírito.
João 3.8
Era a crença, difundida pelos reformadores pe­
la própria experiência deles de estudo bíblico, E vós tendes a unção do Santo e sabeis tu­
de que a Escritura pode interpretar-se, e cer­ do. E a unção, que vós recebestes dele fica
tamente se interpreta, ao fiel a partir de si em vós, e não tendes necessidade de que
mesma. A Escritura é sua própria intérprete, alguém vos ensine; mas, como a sua unção
Scriptura sui ipsius interpres, como Lutero co­ vos ensina todas as coisas, e é verdadeira, e
loca, de forma que ela não somente dispensa não é mentira, como ela vos ensinou, assim
papas ou concílios para nos dizer, como Deus, nele permanecereis.
o que ela quer dizer; ela pode, na verdade, de­ 1 João 2.20,27
safiar pronunciamentos papais ou conciliares,
convencê-los de que são ímpios e falhos, e exi­ Porque três são os que testificam no céu; o
gir do fiel separar-se deles [...]. Como a Escritu­ Pai, a Palavra e o Espírito Santo; e estes
ra era a únicafonte pela qual os pecadores pode­ três são um. E três são os que testificam na
riam obter o conhecimento verdadeiro sobre terra: o Espírito, e a água, e o sangue; e es­
Deus e santidade, a Escritura era então o único tes três concordam num.
juiz do que a Igreja, em todas as épocas, tinha se 1 João 5.7,8
A mesma ideia está presente nos escritos Bíblia é aceita como a autoridade final em to­
de Paulo. dos os assuntos de fé e prática por todos que
são filhos de Deus.
Mas nós não recebemos o espírito do m un­
do, mas o Espírito que provém de Deus, O LIVRO QUE ME ENTENDE

para que pudéssemos conhecer o que nos é Quando começamos a ler a Bíblia, e o E s­
dado gratuitamente p or Deus. As quais pírito Santo fala enquanto lemos, várias coi­
também falamos, não com palavras de sa­ sas acontecem. Primeiro, a leitura nos afeta
bedoria humana, mas com as que o Espíri­ como nenhuma outra leitura o faz.
to Santo ensina, comparando as coisas espi­ Dr. Emile Cailliet era um filósofo francês
rituais com as espirituais. Ora, o homem que após certo tempo se radicou nos Estados
natural não compreende as coisas do Espí­ Unidos e tornou-se professor no Seminário
rito de Deus, porque lhe parecem loucura; Teológico de Princeton em N ova Jérsei. Ele
e não pode entendê-las, p orque elas se dis­ havia sido criado de acordo com os princípios
cernem espiritualmente. Mas o que é espi­ de uma educação naturalista. Nunca havia
ritual discerne bem tudo, e ele de ninguém demonstrado o menor interesse por coisas
é discernido. espirituais. N unca havia visto uma Bíblia.
1 Coríntios 2.12-15 Contudo, irrompeu a Primeira Guerra Mun­
dial, e enquanto servia nas trincheiras ele se
Não cesso de dar graças a D eus por vós, encontrou refletindo sobre a inadequação da
lem brando-m e de vós nas minhas orações, sua perspectiva de mundo e de vida.
para que o D eus de nosso Senhor Jesus Emile se fez as mesmas perguntas que
Cristo, o Pai da glória, vos dê em seu co­ Levin em A nna K arenina, de Leo Tolstoy,
nhecimento o espírito de sabedoria e de enquanto este personagem estava sentado ao
revelação, tendo iluminados os olhos do lado da cama de seu irmão moribundo: “De
vosso entendimento, para que saibais qual onde veio a vida? O que ela significou, se é
seja a esperança da sua vocação e quais as que significou alguma coisa? Qual o valor
riquezas da glória da sua herança nos san­ das leis científicas ou teorias diante da reali­
tos e qual a sobre excelente grandeza do dade?” Cailliet mais tarde escreveu: “C om o
seu p od er sobre nós, os que cremos, segun­ Levin, eu também senti, não com minha ra­
do a operação da força do seu poder, que zão, mas com todo o meu ser, que estava
manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos destinado a perecer miseravelmente quando
mortos e pondo-o ã sua direita nos céus. o momento chegasse”.
Efésios 1.16-20 Durante as longas noites de vigília, Cailliet
começou a ansiar pelo que veio a chamar de
Analisados juntos, esses textos ensinam “um livro que pudesse entender-me”. Ele ti­
que não só nosso novo nascimento, mas tam­ nha um alto grau de instrução, mas não co­
bém nosso completo crescimento em sabedo­ nhecia tal livro. Portanto, quando tempos
ria espiritual e nosso conhecimento de Deus depois foi ferido, liberado do exército, e vol­
são resultado da obra do Espírito divino em tou a seus estudos, Cailliet determinou que
nossa vida e mente por meio das Escrituras, e prepararia esse livro secretamente para seu
que nenhuma compreensão espiritual é possí­ uso pessoal. Enquanto lia para seus cursos,
vel separada dessa obra. O testemunho do ele arquivava trechos que pareciam falar à sua
Espírito Santo é, portanto, a razão pela qual a situação. Depois, ele os copiava no seu livro
de capa de couro. Emile esperava que as cita­ o meu próprio em vão. Continuei a ler profun­
ções, as quais ele cuidadosamente indexava e damente noite afora, principalmente os Evan­
numerava, levassem-no do medo e da angús­ gelhos. E eis que, enquanto eu os analisava,
tia à libertação e ao júbilo. Aquele do qual eles falavam, Aquele que falava
Finalmente, chegou o dia em que ele deu os e agia neles, tornou-se vivo para mim. Essa vi­
toques de acabamento ao seu livro, “o livro vida experiência marcou o início da minha
que me entende”. Cailliet saiu, sentou debaixo compreensão sobre a oração. Também provou
de uma árvore e abriu a antologia. Ele come­ ser minha iniciação à noção de Presença que
çou a ler, mas, em vez de libertação e júbilo, mais tarde se mostraria tão crucial no meu pen­
um desapontamento cada vez maior começou samento teológico.
a dominá-lo enquanto reconhecia que, em vez As circunstâncias providenciais nas quais o Li­
de falar de sua situação, os vários trechos ape­ vro me encontrou naquele momento tornaram
nas o lembravam de seus contextos e do traba­ claro que, embora parecesse absurdo falar de
lho dele de procurá-los e registrá-los. Então, o um livro que entendesse um homem, isso po­
âlósofo percebeu que todo aquele trabalho deria ser dito da Bíblia, porque suas páginas
simplesmente não iria funcionar, porque o li­ eram animadas pela presença do Deus Vivo e
vro era um livro feito por ele mesmo. O livro da força de Seus atos poderosos. A esse Deus
não possuía nenhuma força de persuasão. D e­ eu orei naquela noite, e o Deus que respondeu
solado, ele colocou o volume no bolso. era, o mesmo Deus do qual se falava no Livro.
Naquele exato momento, sua esposa (que ( C a il l ie t , 1968, p. 11-18)
rüo sabia nada do projeto) apareceu com uma
-listória interessante. Ela estava andando por Em todas as épocas, o povo de Deus teve a
íua pequena cidade francesa naquela tarde e compreensão da Reforma. Eis a expressão da
encontrou por acaso uma capela huguenote. mesma verdade por Calvino:
zla. nunca a havia visto antes, mas entrou e
rediu uma Bíblia, para sua própria surpresa. Quão peculiar, porém, é esse poder à Escritura,
O presbítero deu-lhe uma. Ela começou a transparece claramente disto: que dos escritos
lísculpar-se com o marido, pois sabia dos humanos, por maior que seja a arte com que são
cntimentos dele em relação à fé cristã. P o ­ burilados, nenhum sequer nos consegue im­
rém, ele não estava ouvindo as desculpas dela. pressionar de igual modo. Basta ler Demóstenes
'Você disse uma Bíblia? Onde está? Mostre- ou Cícero; Platão ou Aristóteles, ou quaisquer
e”, disse Emile. “Eu nunca vi uma antes.” outros desse plantei: em grau admirável, reco­
Quando a esposa mostrou a Bíblia, ele correu nheço-o, são atraentes, deleitosos, comoventes,
rira seu escritório e começou a ler. Observe arrebatadores. Contudo, se te transportares dali
;-_ ís próprias palavras: para esta sagrada leitura, queiras ou não, tão vi-
vidamente te afetará, a tal ponto te penetrará o
Eu abri e “caí” nas bem-aventuranças! Eu li, e coração, de tal modo se te fixará na medula, que,
íi, e li — daquela vez em voz alta com um calor ante a força de tal emoção, aquela impressivi-
indescritível vindo de dentro... Eu não conse­ dade dos retóricos e filósofos quase que se des­
guia encontrar palavras para expressar minha vanece totalmente, de sorte que é fácil perceber
admiração e meu espanto. E de repente o en­ que as Sagradas Escrituras, que em tão ampla
tendimento raiou em mim. Aquele era o livro escala superam a todos os dotes e graças da in­
que me entenderia! Eu precisava muito dele, dústria humana, respiram algo de divino.
embora, sem saber, eu tivesse tentado escrever ( C a l v in o , 1960, p. 82)
O utro exemplo é registrado no final do havia acontecido. Seus próprios testemunhos
Evangelho de Lucas. Jesus havia acabado de eram assim: Porventura, não ardia em nós o
ressuscitar dos mortos e tinha começado a nosso coração quando, pelo caminho, nos fala­
aparecer aos discípulos. Dois deles estavam va e quando nos abria as Escrituras? (Lc
retornando para sua cidade natal, Emaús, 24.32). Eles ficaram convencidos pela Palavra
quando Jesus se aproximou deles na estrada. de Deus. Neste exemplo, o próprio Jesus
Eles não o reconheceram. Quando Cristo cumpriu o papel do Espírito Santo ao inter­
lhes perguntou por que estavam abatidos, pretar a Bíblia para Seus discípulos e ao apli­
responderam contando o que havia aconteci­ car as verdades para eles.
do em Jerusalém nos dias da Páscoa. A Bíblia também nos modifica. Torna-
Contaram a Ele sobre Jesus, que foi um mo-nos homens e mulheres diferentes como
profeta poderoso em obras e palavras diante de resultado do encontro com ela. U m a seção
Deus e de todo o povo (Lc 24.19). Contaram a do décimo terceiro capítulo de Romanos
Jesus como os principais dos sacerdotes e prín­ mudou a vida de Agostinho quando ele se
cipes o entregaram à condenação de morte e o voltou para a Bíblia no jardim da proprieda­
crucificaram (Lc 24.20). Esses discípulos ha­ de de um amigo próxim o de Milão, Itália.
viam estado em Jerusalém naquela mesma Lutero nos conta com o, em meditação sobre
manhã e tinham ouvido histórias das mulhe­ as Escrituras, enquanto recluso no Castelo
res que tinham ido ao túmulo, relatando que de Wartburg, ele se sentiu nascido de novo, e
o corpo do Mestre não estava lá, e que anjos diz com o Romanos 1.17 tornou-se para ele o
haviam aparecido proclamando que Jesus ti­ portão do céu. A meditação de John Wesley
nha voltado à vida. Todavia, eles não acredita­ sobre as Escrituras provocou sua conversão
vam em ressurreição. N em haviam se dado ao num pequeno encontro em Aldersgate.
trabalho de ir ao túmulo e ver por eles mes­ J. B. Phillips escreveu:
mos, embora estivessem a uma pequena dis­
tância dali. O sonho tinha acabado. Jesus es­ Alguns anos antes da publicação da New En-
tava m orto. Os dois discípulos estavam indo glish Bible [Nova Bíblia em Inglês], fui convi­
para casa. dado pela BBC para discutir o problema da
Porém, Jesus começou a falar com eles e a tradução com o Dr. E. V. Rieu, que tinha ele
explicar a missão de Cristo ensinando-lhes mesmo produzido recentemente uma tradu­
pelas Escrituras. Ele disse: O néscios e tardos ção dos quatro Evangelhos para a Penguin
de coração para crer tudo o que os profetas Classics. Quase no fim da discussão pergunta­
disseram! Porventura, não convinha que o ram ao Dr. Rieu sobre sua abordagem no tra­
Cristo padecesse essas coisas e entrasse na sua balho, e sua resposta foi esta:
glória? (L c 24.25,26). Então, começando por “Minha razão pessoal para fazer isso foi meu
Moisés e passando pelos profetas, Jesus lhes interesse intenso de satisfazer-me em relação à
explicou a partir das Escrituras as coisas que autenticidade e ao conteúdo espiritual dos
eles disseram sobre Ele mesmo. Evangelhos. E, se eu recebesse qualquer nova
Finalmente, chegaram aonde os dois discí­ iluminação por meio de um estudo intenso dos
pulos moravam. Eles convidaram Jesus para originais gregos, transmitiria isso a outros. Eu
entrar, e Jesus se revelou a eles enquanto co­ os abordei com o mesmo espírito com que te­
miam juntos. Cristo desapareceu, e os discí­ ria abordado caso eles tivessem sido apresenta­
pulos no mesmo instante voltaram para Jeru­ dos a mim como se fossem recém-descobertos
salém para contar aos outros discípulos o que manuscritos gregos.”
Alguns minutos depois, perguntei a ele: “Você gerais do Antigo Testamento; e (2) ao cum­
teve a sensação de que todo o material estava prir profecias específicas encontradas nele.
extraordinariamente vivo? [...] Tive a sensação U m tema essencial do Antigo Testamento
de que a coisa toda estava viva mesmo enquan­ é o pecado e nossa carência dele resultante. A
to estava sendo traduzida. Embora tenham si­ Bíblia começa com a história da criação. Mas,
do feitas várias versões de uma mesma passa­ tão logo essa história é contada (no primeiro
gem, ela ainda tinha vida. Você sentiu isso?” capítulo de Gênesis), é contada a nós a queda
Dr. Rieu respondeu: “Tive a mais profunda do ser humano. Em vez de ficarmos humilde
sensação que eu poderia ter sentido. Ela me e agradecidamente dependendo do Criador,
transformou; minha tradução me transformou. como deveríamos estar, entramos em estado
E cheguei à conclusão de que aquelas palavras de rebelião contra Deus. Fizemos do nosso
traziam o selo do Filho do Homem e de Deus. jeito, em vez de do jeito de Deus. Assim, as
E eles são a Carta Magna do espírito humano.” conseqüências do pecado (basicamente, a
Achei particularmente emocionante ouvir um morte) recaíram sobre nós.
homem que é um catedrático de primeira linha, N o restante do Antigo Testamento vemos
bem como um homein de sabedoria e experi­ tais conseqüências se desenrolando: o assassi­
ência, admitindo abertamente que aquelas pa­ nato de Abel, a corrupção que levou ao dilú­
lavras escritas há tanto tempo estavam podero­ vio, o culto aos deuses pagãos, as perversões
samente vivas. Elas traziam para ele, assim sexuais, e, ao final, a própria tragédia para a
como para mim, o anel da verdade. (P h i l l i p s , escolhida nação de Israel, apesar das grandes
1967, p. 74,75) bênçãos. O Antigo Testamento é bem resu­
mido no salmo de arrependimento de Davi,
Um a s s u n t o _____________________________________
que com toda a propriedade deveria ser o sal­
O utro resultado de ler a Bíblia é que o E s­ mo de todo ser humano.
pírito Santo que fala nas suas páginas vai dire­
cionar o estudioso a Jesus. A Bíblia contém Tem misericórdia de mim, ó Deus, segun­
um material bastante variado. Ela abarca cen­ do a tua henignidade; apaga as minhas
tenas de anos de história. Contudo, o objeti­ transgressões, segundo a multidão das
vo das Escrituras em cada uma de suas partes tuas misericórdias. Lava-m e completa­
é mostrar Jesus, e este objetivo é realizado em m ente da minha iniqüidade e purifica-
nível subjetivo pelo Espírito de Cristo. -m e do m eu pecado. Porque eu conheço
Jesus disse: Mas, quando vier o Consolador, as minhas transgressões, e o m eu pecado
:?:ie eu da parte do Pai vos hei de enviar, aquele está sempre diante de mim. Eis que em
Espírito da verdade, que procede do Pai, testifi- iniqüidade fu i form ado, e em pecado me
zjtrá de mim (Jo 15.26). Já que o papel do Espí­ concebeu minha mãe.
rito Santo é revelar Jesus nas Escrituras, pode­ Salmo 51.1-3,5
mos ter certeza de que estamos ouvindo a voz
io Espírito quando isso acontece. Eis aqui uma importante doutrina bíblica.
Alguém poderia perguntar: “A Bíblia não Entretanto, se a entendemos corretamente,
; principalmente história? C om o Jesus pode­ percebemos que ela não é um fim em si mes­
ria ser o assunto no Antigo Testamento? E ma. A verdade sobre nosso pecado e nossa
como pode o Espírito Santo nos levar a Ele?” carência é exposta na Bíblia porque a Bíblia é
Jesus se torna o assunto do Antigo Testamen­ também capaz de mostrar Cristo como solu­
to de duas formas: (1) ao ajustar-se aos temas ção do dilema.
U m segundo tema do Antigo Testamento profeta aparentemente desonesto e incons­
é a existência de um Deus que age com amor tante nos tempos de Moisés. Balaque, um rei
para redimir pecadores. Deus Pai fez isso hostil a Israel, tinha contratado Balaão para
durante todo o período do Antigo Testa­ amaldiçoar o povo judeu. Mas, toda vez que
mento. A o mesmo tempo, enquanto o fazia, Balaão abria sua boca, bênçãos saíam dela,
Ele indicava que a vinda do Filho do H o ­ ao invés de maldições. E m uma ocasião, ele
mem redimiria homens e mulheres perfeita­ disse: uma estrela procederá de Jacó, e um
mente e para sempre. cetro subirá de Israel [...] e dominará um de
Quando Adão e Eva pecaram, o pecado os Jacó (N m 24.17,19).
separou do Criador. Eles tentaram esconder- Aproximando-se a hora de sua morte, o
-se. Deus, entretanto, veio até eles na viração patriarca Jacó disse: O cetro não se arredará
do dia, chamando-os. É verdade que Deus de Judá, nem o legislador dentre seus pés, até
falou em julgamento, como deveria fazer. O que venha Siló; e a ele se congregarão [ou
Senhor revelou a conseqüência do pecado de obedecerão] os povos (Gn 49.10).
ambos. Ainda assim, matou animais, vestiu o Moisés também falou sobre Aquele que
homem e a mulher com peles, cobrindo sua viria: O S E N H O R , teu Deus, te despertará
nudez, e começou a ensinar-lhes o caminho um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como
da salvação mediante o sacrifício. Falou tam­ eu; a ele ouvireis (D t 18.15). Novamente,
bém a Satanás, revelando a vinda daquele que Deus falou: E porei as minhas palavras na sua
um dia iria derrotá-lo para sempre: esta [a boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe orde­
semente da mulher] te ferirá a cabeça, e tu lhe nar (v. 18).
ferirás o calcanhar (Gn 3.15). O livro de Salmos contém grandes profe­
N ove capítulos depois, encontramos ou­ cias. O Salmo 2 descreve a vitória e o domí­
tra referência, um tanto quanto velada, à se­ nio de C risto sobre as nações da terra. Esse
m ente que iria esmagar Satanás. Foi a primei­ salmo foi popular entre os cristãos primiti­
ra grande promessa de Deus a Abraão, vos (ver A t 4). O Salmo 16 prediz a ressur­
ressaltando que nele todas as nações seriam reição (v. 10; ver A t 2.31). N os Salmos 22, 23
abençoadas (Gn 12.3; 22.18). A bênção à qual e 24 vemos três representações de Jesus: o
o Senhor se referia certamente não seria der­ Salvador que sofre, o Pastor compassivo e o
ramada sobre todas as pessoas por Abraão Rei. Alguns salmos abordam outros aspec­
pessoalmente. N ão seria derramada sobre to­ tos de Sua vida e Seu ministério. O Salmo
dos os judeus de modo indiscriminado, pois 110 retorna ao tema do reinado de Cristo,
nem todos os judeus são sequer teístas. A manifestando o anseio pelo dia em que Ele
bênção predita seria derramada pela semente se assentará em Seu trono à direita do Pai,
de Abraão, a semente prometida, o Messias. quando todos os Seus inimigos serão feitos
Anos mais tarde, o apóstolo Paulo, que escabelo de seus pés.
conhecia esse texto, usou-o para mostrar: (1) Detalhes da vida de Cristo, Sua morte e
que a semente era o Senhor Jesus; (2) que a ressurreição se encontram nos livros dos pro­
promessa a Abraão seria cumprida por inter­ fetas — Isaías, Daniel, Jeremias, Ezequiel,
médio de C risto; e (3) que a bênção seria Oséias, Zacarias e outros.
derramada p or meio de Sua obra redentora O Senhor Jesus e a Sua obra são os as­
(G1 3.13-16). suntos principais da Bíblia. E a função do
U m a profecia interessante proveniente Espírito Santo revelá-los. C om o a revela­
do Senhor foi proferida p or Balaão, um ção acontece à medida que a Bíblia se torna
compreensível, a Escritura testifica a E scri­ filhos de Deus [...], sem o Espírito, veem-se
tura, e o poder do Deus vivo m ove-se por privados de toda a luz da verdade, todavia não
suas páginas. ignoram que a Palavra é o instrumento pelo
qual o Senhor dispensa aos fiéis a iluminação
Palavra e E s p ír it o ___________________________ de Seu Espírito, pois não conhecem outro Es­
A combinação de uma revelação objetiva e pírito além daquele que habitou nos apóstolos
escrita com a interpretação do indivíduo pelo e falou por intermédio deles, de cujos oráculos
Espírito Santo é a chave da doutrina cristã são continuamente convocados a ouvir a Pala­
para o conhecimento de Deus. Essa combina­ vra. (C a lvin o , 1960, p. 95,96)
ção nos livra de dois erros.
O primeiro é o erro de espiritualizar exa- Por outro lado, a combinação de uma pala­
geradamente a revelação. Esse erro confundiu vra objetiva com uma aplicação dessa palavra
os entusiastas anabatistas nos tempos de Cal- pelo Espírito de Deus também pode livrar-nos
vino, e desde então tem enganado muitos de do erro de intelectualizar de forma exagerada a
seus seguidores. Os entusiastas reivindicavam verdade divina. Esse erro era evidente nos há­
revelações pessoais dadas pelo Espírito Santo bitos de estudo dos escribas e fariseus no tem­
como justificação de suas decisões e conduta. po de Jesus. Eles não eram alunos preguiçosos.
Todavia, estas eram frequentemente contrá­ Eram meticulosos em sua busca pelo conheci­
rias a ensinamentos expressos da Palayra de mento das Escrituras, a ponto de contar cada
Deus, como, por exemplo, sua eventual deci­ letra da Lei. Contudo, Jesus os repreendeu di­
são de pararem de trabalhar e ficarem juntos zendo: Examinais as Escrituras, porque vós
para uma antecipada volta do Senhor. Sem a cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de
Palavra objetiva não haveria meios de julgar mim testificam (Jo 5.39).
:ais “revelações” ou livrar as pessoas do erro Para conhecer Deus, precisamos apreen­
que as havia atingido. Calvino escreveu em der os ensinamentos registrados nas Escritu­
referência a esse dilema: ras por intermédio do Espírito Santo. Só as­
sim, uma plena consciência da natureza da
O Espírito Santo de tal modo se junge a Sua Bíblia e de sua autoridade se torna clara em
verdade, expressa nas Escrituras, que manifesta nossa mente e em nosso coração, e encontra-
e patenteia Seu poder, rendendo-se, afinal, à mo-nos adotando um posicionamento firme
Palavra a devida reverência e dignidade [...]. Os sobre essa preciosa revelação.
A AUTENTICIDADE DAS ESCRITURAS

principal evidência de que a Bíblia Quarto, temos o poder da Bíblia para in-
é a Palavra de Deus é o testemunho fluenciar-nos enquanto a lemos. Se a Bíblia
interior do Espírito Santo sobre não é divina tanto na sua fonte como na trans­
ela. Sem tal testemunho, a veraci­ formação que opera no homem, por que pro­
dade das Escrituras nunca se imprimirá ade­ duz tamanhos resultados?
quadamente num leitor. N o entanto, isso não Thomas Watson, um dos grandes purita­
significa que não há bases racionais para a con­ nos1 ingleses, escreveu:
vicção de alguém. Os argumentos racionais
devem ser conhecidos pelo cristão maduro as­ Eu me pergunto de onde a Escritura viria, se­
sim como por qualquer pessoa que está apenas não de Deus. Homens maus não poderiam ser
começando a considerar o cristianismo. seus autores. Suas mentes se aplicariam em
Quais são esses argumentos? Alguns já proclamar linhas tão santas? Eles se declara­
foram sugeridos. Primeiro, temos as afirma­ riam tão agressivamente contra o pecado? H o­
ções da própria Escritura. Os livros da Bíblia mens bons não poderiam ser seus autores.
afirmam ser a Palavra de Deus. Em bora isso Conseguiriam eles escrever de tal maneira? Ou
em si mesmo não prove que eles o são, é, não poderiam eles deixar que sob sua mercê o no­
obstante, um fato a ser considerado. Precisa­ me de Deus fosse forjado e colocar Assim diz o
mos indagar como livros que parecem estar Senhor em um livro de sua própria autoria?
tão certos sob tantos outros aspectos pode­ (W atson , 1970, p. 26)
riam, contudo, estar errados quanto ao ponto
crucial de sua autoconsciência. Há, portanto, quatro boas razões para
Segundo, há o testemunho de Jesus, que é o considerar a Bíblia como a Palavra de Deus
maior argumento de todos. Mesmo que Jesus revelada, e mais uma quinta derivada do argu­
fosse apenas um grande mestre, Sua considera­ mento de Watson: os escritores bíblicos não
ção pela Bíblia como a autoridade final no que teriam reivindicado uma origem divina para
diz respeito à vida não poderia ser desprezada. um livro que eles reconhecessem como deles
Terceiro, temos a superioridade doutrinai próprios. A seguir, são expostas mais cinco
e ética da Bíblia em relação aos outros livros. evidências que comprovam essa conclusão.
Essa superioridade tem sido frequentemente
reconhecida, mesmo por não cristãos, mas A UNIDADE NA DIVERSIDADE________________
também negada por alguns poucos que de fa­ U m a sexta razão para considerar a B í­
to leram e estudaram suas páginas. blia com o a Palavra de Deus revelada é a
extraordinária unidade desse livro. Esse argu­ O que sustenta essa unidade? Só há uma
mento é antigo, mas sólido. É do tipo que coisa capaz de fazê-lo: a mente perfeita, sobe­
cresce em força quanto mais se estudam os rana e orientadora de Deus por trás dos esfor­
documentos. ços de mais de 40 autores humanos.
A Bíblia é com posta de 66 livros, escri­
tos num período de aproximadamente 1500 P r e c is ã o in c o m u m ____________________________

anos (1450 a.C . a 90 d .C .) p or mais de 40 Um a sétima razão para crer que a Bíblia é
pessoas. Esses indivíduos provinham de di­ a Palavra de Deus é sua precisão incomum.
ferentes níveis da sociedade e de diversas C om certeza, sua exatidão não prova que ela
origens. Alguns eram reis. O utros eram p o­ é divina — seres humanos algumas vezes tam­
líticos, sacerdotes, profetas, um coletor de bém são bem precisos —, mas é o que deverí­
impostos, um m édico, um fazedor de ten­ amos esperar se a Bíblia é resultado do esfor­
das, pescadores. ço de Deus. P or outro lado, se a precisão das
Se perguntados sobre absolutamente Escrituras atinge a inerrância (a qual será
qualquer assunto, eles teriam tido pontos analisada no próximo capítulo), essa seria
de vista os mais diversos, com o as opiniões uma prova direta de sua natureza divina.
de pessoas que vivem hoje. C ontudo, jun­ Em alguns pontos a precisão da Bíblia po­
tos produziram um volume que é uma uni­ de ser testada externamente, como nas por­
dade maravilhosa em termos de doutrina, ções históricas do Antigo Testamento. Pode­
pontos de vista históricos, ética e expectati­ mos tom ar o Evangelho de Lucas e o livro de
vas. E , em resum o, uma única narrativa so­ Atos como exemplo. Eles são uma tentativa
bre redenção divina, que com eçou em Isra­ de escrever um “relato m etódico” da vida de
el, centrada em Jesus C risto, e culmina com Jesus e da rápida expansão da Igreja cristã pri­
o fim da história. A natureza dessa unidade mitiva (L c 1.1-4; A t 1.1,2).
é im portante. Isso seria uma tarefa homérica mesmo
Com o assinalou R. A. Torrey: em nossos dias. Ainda mais na Antiguidade,
quando não havia jornais nem livros de con­
Não é uma unidade superficial, mas uma uni­ sulta. N a verdade, havia poucos documentos
dade profunda. Na superfície, por vezes en­ escritos de qualquer tipo. Apesar disso, L u ­
contramos aparente discrepância e desacordo, cas traçou o crescimento do que começou
mas, à medida que estudamos, a aparente dis­ com o um insignificante movimento religio­
crepância e o desacordo desaparecem, e surge so em um canto distante do Império R om a­
uma unidade profunda subjacente. Quanto no, um movimento que progrediu de forma
mais profundamente estudamos, mais comple­ discreta e sem sanções oficiais, tanto que 40
ta descobrimos ser a unidade. Esta é também anos após a morte e ressurreição de Jesus
orgânica — quer dizer, não é a unidade de uma C risto havia congregações na maioria das
coisa sem vida, como uma rocha, mas de algo grandes cidades do império. O trabalho de
vivo, como uma planta. Nos primeiros livros Lucas foi bem-sucedido? C om certeza, e
da Bíblia temos o pensamento germinador; com uma aparente precisão.
quando continuamos a leitura, vemos a planta, Por um lado, ambos os livros mostram uma
mais à frente o botão, depois a flor, e mais tarde exatidão admirável ao lidar com títulos oficiais e
o fruto maduro. Em Apocalipse encontramos esferas de influência correspondentes.
o fruto maduro de Gênesis. (T o r r e y , 1904- Isso foi docum entado p or F. F. Bruce, da
1906, p. 26) Universidade de Manchester, Inglaterra, em

óó
uma pequena obra intitulada T he N ew Tes- governador romano na Grécia, como o pro­
tam ent D ocum ents: A re they reliablet [Os cônsul da Acaia (At 18.12), o título do repre­
docum entos do N ovo Testamento: eles são sentante de Roma durante a época da visita de
confiáveis?]. Paulo a Corinto, mas não durante os 29 anos
Bruce escreveu: antes de 44 d.C. ( B r u c e , 1974, p. 82, 83).
Esse tipo de precisão de apenas um dos
Uma das mais notáveis amostras de sua [de Lu­ escritores bíblicos é um testemunho que pode
cas] precisão é sua sólida familiaridade com os ser multiplicado quase indefinidamente. Por
títulos distintivos de todas as pessoas eminen­ exemplo, em Atos 19.38, o escrivão de Efeso
tes mencionadas em suas páginas. Isso não era tenta acalmar os cidadãos em tumulto ao
de modo algum um feito fácil no tempo dele, lembrá-los das autoridades romanas: há pro-
tampouco no nosso, quando é tão simples con­ cônsules, ele diz, usando o plural.
sultar convenientes livros. O uso preciso de À primeira vista, o escritor parece ter co­
Lucas dos vários títulos do Império Romano metido um erro, já que havia apenas um pro­
foi comparado à maneira fácil e confiante co­ cônsul romano por vez numa determinada
mo um homem comum de Oxford em uma região. Entretanto, uma análise mostra que,
conversa informal refere-se aos diretores das um pouco antes do tumulto em Efeso, Júlio
faculdades pelos seus títulos — o dirigente de Silano, o procônsul, havia sido assassinado
Oriel, o diretor de Balliol, o reitor de Exeter, o por enviados de Agripina, a mãe do adoles­
presidente de Magdalen, e assim por diante. cente N ero. Um a vez que o novo procônsul
Alguém que não é de Oxford nunca se sente à não havia chegado a Efeso, a imprecisão do
vontade com a multiplicidade desses títulos de escrivão pode ter sido intencional ou pode
Oxford. (B ru c e , 1974, p. 82) mesmo referir-se aos dois emissários, Hélio e
Celer, que eram os aparentes sucessores de
Lucas obviamente se sente à vontade com Silano no poder.
os títulos romanos; ele nunca os confunde. Lucas depreendeu a situação instalada na
Bruce acrescenta que a dificuldade de Lu­ cidade numa época de desordem interna, assim
cas teve um agravante, pois os títulos não per­ como em outros locais — Antioquia, Jerusa­
maneciam os mesmos por muito tempo. Por lém, Roma —, cada qual com sua característica
exemplo, a administração de uma província específica.
poderia passar de um representante direto do A arqueologia também conferiu uma con­
imperador para um governo senatorial, e seria fiabilidade extraordinária aos escritos de Lucas
então governada por um procônsul, em vez e a outros documentos bíblicos. Um a placa foi
de um legado imperial (legatus pro praetore). encontrada em Delfos identificando Gálio co­
Chipre, uma província imperial até 22 mo procônsul de Corinto na época exata da
a.C., tornou-se uma província senatorial na­ visita de Paulo à cidade. O tanque de Betesda,
quele ano, passando, portanto, a ser governa­ contendo cinco pórticos, foi encontrado há
da por um procônsul. Assim sendo, quando aproximadamente 21 metros abaixo do atual
Paulo e Barnabé chegaram a Chipre, cerca de nível da cidade de Jerusalém. Ele é menciona­
47 d.C., foi o procônsul Sérgio Paulo que os do em João 5.2, mas tinha sido perdido de vista
saudou (At 13.7). devido à destruição da cidade pelo exército de
Semelhantemente, Acaia foi uma província Tito em 70 d.C. até recentemente. O pátio cal­
senatorial de 27 a.C. a 15 d.C., e de novo após çado com pedras usado para o julgamento de
44 d.C. Dessa forma, Lucas se refere a Gálio, o Jesus por Pilatos (Litóstrotos, ou, em hebraico,
Gabatá), mencionado em João 19.13, também Se analisados superficialmente, esses re­
foi descoberto. latos se m ostram diferentes, mas, quando
Documentos antigos — de Dura, Ras Sha- m elhor examinados, revelam uma notável
mra, do Egito e do mar M orto — têm contri­ harmonia. Fica claro que um grupo de mu­
buído para a confiabilidade bíblica. Têm sido lheres, incluindo todas às quais se aludiu,
recebidos relatórios de descobertas extraordi­ foi ao sepulcro. A o encontrar a pedra re­
nárias em Tell Mardik, no noroeste da Síria, o movida, as mulheres mais velhas enviaram
local da antiga Ebla. Até agora, 15 mil tábuas Maria Madalena para contar o ocorrido aos
datando de aproximadamente 2300 a.C. (200 apóstolos e pedir a orientação deles. N a au­
a 500 anos antes de Abraão) foram encontra­ sência dela, as mulheres restantes viram os
das. Nelas há centenas de nomes, tais como anjos (com o Mateus, M arcos e Lucas rela­
Abrão, Israel, Esaú, Davi, Javé e Jerusalém, tam), mas não o Senhor ressurreto, pelo
mostrando que esses eram nomes comuns an­ menos não até aquele momento.
tes de aparecerem nos relatos bíblicos. A me­ Por outro lado, Maria, voltando ao sepul­
dida que forem cuidadosamente estudadas, cro mais tarde e sozinha, viu Jesus (como
essas tábuas vão esclarecer muito sobre os João revela). Da mesma forma, a menção de
costumes concernentes à era dos patriarcas João a o outro discípulo que acompanhou Pe­
do Antigo Testamento (Moisés, Davi e ou­ dro ao sepulcro de Cristo (Jo 20.3) esclarece
tros). A própria existência deles tende a au­ Lucas 24.24, onde é dito que alguns dos que
tenticar as narrativas do Antigo Testamento. estavam conosco foram ao sepulcro, depois
A evidência interna da precisão da Bíblia que as mulheres tinham estado lá, embora
também está disponível, particularmente on­ Lucas cite apenas Pedro em sua narrativa.
de há relatos paralelos dos mesmos eventos. Essas correlações entre passagens bíblicas
Os relatos dos Evangelhos sobre as aparições são detalhes. Mas, porque são minúcias, con­
de Jesus Cristo ressurreto são um exemplo. ferem uma importância especial à ideia de
Apresentam-se, de forma clara, como quatro precisão dos Evangelhos.
relatos separados e independentes; caso con­
trário, não haveria discrepâncias aparentes. ! P r o f e c i a s ________________________________________
Escritores trabalhando juntos teriam esclare­ U m a oitava razão para crer que a Bíblia é
cido quaisquer dificuldades. Contudo, os a Palavra de Deus é o cumprimento de profe­
Evangelhos, na verdade, não contradizem uns cias. Esse é um assunto muito amplo, que
aos outros. Eles se complementam. Além dis­ transcende o escopo deste capítulo. Entretan­
so, um detalhe incidental em um às vezes es­ to, é possível mostrar de maneira breve o im­
clarece o que parece uma contradição entre pacto do argumento como um todo.
dois outros. Primeiro, temos as profecias explícitas, que
Mateus (27.61) fala de Maria Madalena e dizem respeito ao futuro do povo judeu (in­
de outra Maria indo ao sepulcro de Cristo na cluindo as coisas que já aconteceram e algumas
primeira manhã da Páscoa. M arcos (16.1) que não ocorreram ainda) e ao futuro das na­
menciona Maria Madalena, Maria mãe de ções gentílicas. Muitas descrevem, sobretudo,
Tiago (identificando, assim, a outra Maria a vinda do Senhor Jesus, Sua morte, ressurrei­
citada em Mateus) e Salomé. Lucas (24.10) ção, e Sua volta com grande poder e glória.
menciona as duas Marias, Joana e as outras Torrey cita cinco textos bíblicos — Isaías 53 (o
que com elas estavam. João (20.1) só men­ capítulo inteiro), Miquéias 5.2, Daniel 9.25-27,
ciona Maria Madalena. Jeremias 23.5,6 e Salmo 16.8-11 — e comenta:

ó7
Nas passagens citadas temos profecias da vinda testemunho cumulativo de tais profecias é
do Rei de Israel. Elas nos falam sobre o mo­ devastador. Ele consiste em fatos, os quais
mento exato da manifestação dele ao povo, o exigem um respaldo. O que irá respaldá-los?
local exato de Seu nascimento, a família na qual A existência de um Deus soberano. Ele reve­
ele deveria nascer, as condições da família no lou antecipadamente o que aconteceria
momento de Seu nascimento (condições total­ quando enviasse Seu Filho unigênito para
mente diferentes das existentes no tempo em redimir a humanidade, e fez com que tudo o
que a profecia foi escrita, e contrárias a todas as que fora predito acontecesse.
probabilidades nessa situação), o fato, o méto­ Muito mais pode ser dito em relação às
do e os detalhes em relação à morte de Jesus, profecias. O que foi comentado até agora se
com circunstâncias específicas no tocante ao refere apenas à vinda de Cristo. H á também
Seu sepultamento, Sua ressurreição e a vitória profecias acerca da dispersão e reunião de
subsequente à ressurreição. Essas profecias se Israel, bem com o profecias sobre as nações
cumpriram em Jesus de Nazaré nos mínimos gentílicas e as capitais dessas nações, muitas
detalhes. (T o r r e y , 1904-1906, p. 19) das quais foram destruídas exatamente da
forma com o a Bíblia havia indicado gera­
O utro escritor, E. Schuyler English, ex- ções e mesmo séculos antes. As instituições,
-presidente do comitê editorial da The N ew cerimônias, ofertas e festas de Israel tam ­
Scofield R eference Bible [Nova Bíblia de R e­ bém são proféticas na vida e no ministério
ferência Scofield] e editor chefe da The Pilgrim de Jesus.3
Bible [A Bíblia do peregrino], observou:
A preserv a ç ã o da B íb l ia ____________________

Mais de 20 profecias do Antigo Testamento em U m a nona razão para crer que a Bíblia é
relação a eventos que circundariam a morte de a Palavra de Deus é sua extraordinária pre­
Cristo, palavras escritas séculos antes de Seu servação ao longo dos séculos. H oje, após
primeiro advento, foram precisamente cum­ ter sido traduzida em parte ou na sua tota­
pridas dentro de um período de 24 horas no lidade para centenas de idiomas, alguns
momento de Sua crucificação (apenas). Por com múltiplas versões, e após milhões de
exemplo, em Mateus 27.35 está escrito: E, ha­ cópias do texto sagrado terem sido impres­
vendo-o crucificado, repartiram as suas vestes, sas e distribuídas, seria quase impossível
lançando sortes. Isso é o cumprimento do Sal­ destruir a Bíblia. Mas, essa situação nem
mo 22.18, no qual consta o seguinte: Repartem sempre prevaleceu.
entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre a Até a época da Reforma, o texto bíblico foi
minha túnica. (E n g l ish , 1972, p. 26)2 preservado por causa do árduo e demorado
trabalho de copiá-lo várias vezes à mão, pri­
Muitas profecias foram questionadas e meiro em folhas de papiro e depois em perga­
tentativas foram feitas para conferir outras minhos. Durante boa parte desse tempo, a Bí­
datas aos livros do Antigo Testamento, blia foi alvo de ódio extremo por muitos em
aproximando-os da época de Cristo. Toda­ posição de autoridade. Eles tentaram aniquilá-
via, ainda que algumas profecias sejam en­ -la. N os primeiros anos da Igreja, Celso, Por-
quadradas no período mais recente imagina­ fírio e Luciano tentaram destruir a Escritura
do pelos críticos radicais e destrutivos, elas pela força. Em muitos momentos foi conside­
continuarão pertencendo a centenas de anos rado um crime grave possuir uma cópia de
antes do nascimento de Jesus. Além disso, o partes dela. Todavia, o texto sobreviveu.

se
Se a Bíblia consistisse apenas em pensa­ caminhava pelas ruas da cidade, H arry se
mentos e obra de seres humanos, ela teria sido aproximou de um grupo de voluntários do
eliminada há muito tempo diante de tamanha Exército da Salvação e fez uma reunião com
oposição, como outros livros foram. N o en­ eles na esquina das avenidas Market e Grant.
tanto, ela perdurou, cumprindo as palavras de E provável que houvesse 60 pessoas. Quando
Jesus: O céu e a terra passarão, mas as minhas reconheceram Ironside, imediatamente per­
palavras não hão de passar (Mt 24.35). guntaram se ele poderia dar seu testemunho.
Ele assim o fez, falando sobre como Deus o
V i d a s t r a n s f o r m a d a s ________________________ havia salvado pela fé na morte física e na res­
Um a décima razão para crer que a Bíblia é surreição de Jesus.
a Palavra de Deus é sua capacidade de trans­ Enquanto Ironside falava, ele observou
formar os piores homens e mulheres, fazendo que de um lado do grupo um homem bem
deles uma bênção para sua família, seus ami­ vestido tinha tirado um cartão do bolso e es­
gos e sua comunidade. O Salmo 19.7-9 trata crito alguma coisa nele. Quando Ironside
desse poder: terminou seu discurso, aquele homem foi à
frente, cumprimentou-o com o chapéu e, de
A lei do S E N H O R é perfeita e refrigera a modo muito educado, entregou-lhe o cartão.
alma; o testemunho do S E N H O R é fiel e De um lado, estava seu nome, o qual Ironside
dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do imediatamente reconheceu. O homem era um
S E N H O R são retos e alegram o coração; dos primeiros socialistas que se tornaram co ­
o mandamento do S E N H O R é puro e nhecidos ministrando palestras não só a favor
alumia os olhos. O temor do S E N H O R é do socialismo, mas também contra o cristia­
limpo e perm anece eternam ente; os juízos nismo. Quando o Dr. H arry virou o outro
do S E N H O R são verdadeiros e justos lado do cartão, leu o seguinte: “Senhor, eu o
juntamente. desafio a um debate comigo sobre a questão
‘agnosticismo versus cristianismo’ na sala da
Conforme discutimos no capítulo anterior, Academia de ciências, no próximo domingo à
a transformação ocorre pelo poder do Espírito tarde, às 16 horas. Pagarei todas as despesas”.
Santo, que trabalha por meio da Palavra. Ironside releu o cartão em voz alta e res­
Será que a Bíblia realmente muda homens pondeu algo como:
e mulheres, transformando-os em pessoas es­
pirituais? Sim. Prostitutas foram regeneradas. Estou muito interessado neste desafio... Portan­
Bêbados se tornaram sóbrios. Orgulhosos se to, terei prazer em participar desse debate sob as
tornaram humildes. Pessoas desonestas tor- seguintes condições: para provar que o Sr.... tem
naram-se íntegras. Homens e mulheres fracos algo pelo qual vale a pena lutar e pelo qual vale
tornaram-se fortes, e tudo por causa da trans­ a pena debater, ele prometerá levar consigo para
formação operada neles por Deus enquanto a sala no próximo domingo duas pessoas cujas
ouviram e estudaram a Escritura. qualificações eu direi num instante, como prova
Um a ilustração digna de nota concerne à de que o agnosticismo tem o poder de mudar
vida do Dr. H arry A. Ironside. N o início de vidas e construir um caráter íntegro.
seu ministério, o grande evangelista e minis­ Primeiro, o Sr.... tem de prometer levar consi­
tro do evangelho morava em San Francisco go um homem que foi durante anos o que co-
Bay e trabalhava com um grupo de cristãos mumente chamamos de ‘vagabundo’. Não se­
chamado Irmãos. Certo domingo, quando rei detalhista sobre a exata natureza dos pecados
que destruíram a vida dele e o tornaram um honrada na sociedade desfrutando de uma vida
marginal da sociedade — se foi um beberrão, limpa, virtuosa e feliz — tudo porque se tor­
um bandido, ou uma vítima de seu apetite se­ nou agnóstica.
xual. O importante é que seja um homem que Agora — disse Ironside, dirigindo-se ao cava­
durante anos esteve sob o poder de vícios dos lheiro que lhe tinha entregado o cartão e pro­
quais não conseguia livrar-se, mas que em de­ posto o desafio —, se você prometer levar es­
terminada ocasião participou de uma das reu­ sas duas pessoas com você como exemplo do
niões do Sr...., ouviu a glorificação do agnosti- que o agnosticismo pode fazer, eu prometo
cismo e suas denúncias da Bíblia e do encontrá-lo na sala de Ciência às 16 horas no
cristianismo, e cujos coração e mente, enquan­ próximo domingo, e levarei comigo pelo me­
to ouvia tal chamado, ficaram tão afetados que nos 100 homens e mulheres que durante anos
ele saiu daquele encontro dizendo: ‘Daqui para viveram em tal degradação pecaminosa como
a frente, eu também sou agnóstico!’. tentei descrever, mas que foram gloriosa­
Como resultado da absorção daquela filosofia mente salvos ao crer no evangelho que você
específica, descobriu que um novo poder havia ridiculariza. Terei esses homens e mulheres
sido introduzido em sua vida. Os pecados que comigo no palanque como testemunhas do
ele um dia amou passaram a ser odiados, e justi­ miraculoso poder de salvar de Jesus Cristo, e
ça e bondade seriam agora seus ideais de vida. como prova atual da veracidade da Bíblia.
Ele agora seria um homem inteiramente novo, ( I r o n s id e , 1939, p. 99-107)
uma honra para ele mesmo e um bem para a so­
ciedade — tudo porque se tornou agnóstico. O Dr. Ironside voltou-se para o capitão
Segundo, eu gostaria que o Sr.... prometesse do Exército da Salvação, uma mulher, e per­
levar consigo uma mulher — acho que ele terá guntou: “Capitão, você sabe de alguém que
mais dificuldade em encontrar a mulher do poderia ir comigo a essa reunião?”
que o homem — que tenha sido uma pobre Ela exclamou com entusiasmo: “Podemos
rejeitada, destruída e sem caráter, escrava de enviar com você pelo menos 40 só deste gru­
paixões vis, e vítima da vida corrompida de po, além de um grupo de louvor para liderar a
um homem... Talvez uma que tenha vivido caminhada até lá”.
durante anos num lugar ruim... Totalmente “Ó tim o”, Dr. Ironside respondeu. “Bem,
perdida, arruinada e destruída por causa da Sr...., não terei dificuldade em conseguir os
sua vida de pecado. Mas, essa mulher também outros 60 de várias missões, congregações e
entrou na sala onde o Sr..... estava proclaman­ igrejas evangélicas da cidade; se o senhor
do em alta voz seu agnosticismo e ridiculari­ prom eter fielmente levar dois exemplares do
zando a mensagem da Santa Escritura. En­ que descrevi, irei marchando na frente do
quanto ouvia, a esperança brotou no coração grupo de louvor tocando Onward, Christian
dela, e ela disse: ‘Isso é exatamente o que eu Soldiers4 [Avante, soldados cristãos] e estarei
preciso para me livrar da escravidão do peca­ pronto para o debate”.
do!’ Ela seguiu os ensinamentos e tornou-se O homem que propôs o desafio parecia
uma agnóstica. ter senso de humor, pois deu um sorriso
Como resultado, todo o seu ser se rebelou amarelo e moveu a mão protestando com o se
contra a degradação da vida que ela estava vi­ dissesse “Deixa para lá!”. Depois, saiu de fi-
vendo. Ela abandonou o covil de iniqüidade ninho enquanto os espectadores aplaudiam
onde tinha estado cativa por tanto tempo, e ho­ Ironside e os outros. O poder do C risto vivo
je conquistou seu lugar de volta a uma posição operando pelo Espírito Santo p or meio das
Escrituras transforma vidas. Isso tem sido prova poderosa de que a Bíblia é de fato a
comprovado ao longo da história. E uma Palavra de Deus.

N otas

1 A Revolução Puritana foi um movimento que surgiu na Inglaterra no século 16, de confissão calvinista, que rejei­
tava tanto a Igreja Romana como a Igreja Anglicana. Os membros dessa seita, conhecidos como puritanos, eram
presbiterianos rigoristas que desejavam praticar um cristianismo mais puro, muitos dos quais, após as perseguições
do século 17, emigraram para a América do Norte.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Puritanismo)

2 O autor convida o leitor a comparar: Mateus 26.21-25 com Salmo 41.9. Mateus 26.31,56; Marcos 14.50 com Zacarias
13.7. Mateus 26.59 com Salmo 35.11. Mateus 26.63; 27.12,14; Marcos 14.61 com Isaías 53.7. Mateus 26.67 com Isaías
50.6; 52.14; Miquéias 5.1; Zacarias 13.7. Mateus 27.9 com Zacarias 11.12,13. Mateus 27.27 com Isaías 53.8. Mateus
27.34; Marcos 15.36; João 19.29 com Salmo 69.21. Mateus 27.38; Marcos 15.27,28; Lucas 22.37; 23.32 com Isaías
53.12. Mateus 27.46; Marcos 15.34 com Salmo 22.1. Mateus 27.60; Marcos 15.46; Lucas 23.53; João 19.41 com Isaías
53.9. Lucas 23.34 com Isaías 53.12. João 19.28 com Salmo 69.21. João 19.33,36 com Salmo 34.20. João 19.34,37 com
Zacarias 12.10.

3 Para uma discussão mais completa sobre essa área tão interessante dos estudos do Antigo Testamento, ver
BUKSBAZEN, Victor. The Gospel in the Feasts o f Israel [O evangelho nas FestasdeIsrael].Fort Washington
Park: Christian Literature Crusade, 1954 e G EISLER, Norman L. Christ: The Them e o f the B ible [Cristo: o
tema da Bíblia]. Chicago: Moody Press, 1968, p. 31-68.
4 N. T.: o autor se refere ao hino de número 368 do Cantor Cristão, Confiança.
Q uão v e r d a d eir a e a B íb l ia ?

esde o início da Igreja cristã até tar plenamente convencidos de que as Escritu­
/ j£ | boa parte do século 18, a grande ras são de fato perfeitas, uma vez que foram
maioria dos cristãos de todas as ditas pela Palavra de Deus e de Seu Espíri-
denominações reconhecia que t o ” (R o B E R T s e D o n a l d s o n , p. 399).
as Escrituras do Antigo e do N ovo Testamen­ Cirilo de Jerusalém1, que viveu no quarto
to eram unicamente a Palavra de Deus. século, disse:
Nesses livros Deus fala. E porque Deus
fala nas Escrituras - com o não faz em ne­ Nem mesmo uma declaração casual pode ser fei­
nhum outro lugar da mesma forma - todos ta sem as Escrituras Sagradas; nem devemos ser
os que alegavam ser cristãos reconheciam a levados para outro lado por meras possibilidades
Bíblia com o uma autoridade divina trazendo e artifícios do discurso [...] Porque essa salvação
a todos um conjunto de verdades objetivas na qual cremos não depende de argumentos in­
que transcendem a compreensão subjetiva. gênuos, porém da demonstração das Sagradas
Nesses livros, os atos de salvação de Escrituras. (S chaff e W ace , 1893, p. 23)
Deus na história são revelados a nós para
que possamos crer. E os eventos dessa his­ Em carta a Jerônimo, o tradutor da Vulga-
tória são divinamente interpretados para ta Latina, Agostinho revelou:
que homens e mulheres possam entender o
evangelho e responder a ele com inteligên­ Eu [...] acredito com firmeza que nenhum des­
cia, tanto em pensamentos com o em ações. ses autores errou ao escrever qualquer coisa que
A Bíblia é a Palavra de Deus escrita. C om o fosse. Se porventura encontro algo nesses livros
a Bíblia é a Palavra de Deus, as Escrituras que pareça contrário à verdade, decido que o
do Antigo e do N ov o Testamento têm au­ texto é ora corrompido, ora o tradutor não se­
toridade e não falham. guiu o que realmente foi dito, ou que eu falhei
ao entender [...] Os livros canônicos são livres
A VISÃO DOS PRIM EIRO S 1 6 SÉCULOS_______ de falsidade. (P ais da I g reja , 1951, p. 3 9 2 ,409)2
H á muitas declarações que substanciam a
existência desta visão estimada das Escrituras E em seu tratado Sobre a Trindade, Agos­
nos documentos da Igreja primitiva. tinho advertiu:
Ireneu, que vivera em Lyon no início do
segundo século [em Contra Heresias, II, xxvii, Não se disponham a render-se a meus escritos
Ia edição 1885], escreveu que “deveríamos es­ como às Escrituras canônicas; porém nessas,
quando vós tiverdes descoberto até mesmo o Em Conversa de mesa, Lutero assinalou
que vós outrora não crieis, crede sem hesita­ que:
ção. (S ch aff , 1887, p. 56)3
Precisamos diferenciar muito bem a Palavra de
A mesma posição é mantida por Lutero. Deus da palavra de homens. A palavra do ho­
Alguns consideram que a referência de Lute­ mem é um pequeno som, que ecoa pelo ar, e lo­
ro à Bíblia com o “o berço de C risto” provaria go se esvai, entretanto a Palavra de Deus é maior
que ele acreditava numa revelação na Bíblia, que os céus e a terra, sim, maior que a morte e o
não numa idêntica a ela, e que ele tinha as E s­ inferno, pois faz parte do poder de Deus, e per­
crituras em menor estima do que o Cristo da dura para sempre. (K e r r , 1943, p. 10)
qual ela falava. Para alguns, isso significaria
que nem toda a Bíblia é a Palavra de Deus. Em alguns momentos, Calvino é ainda
Contudo, isso não é correto. mais direto. Comentando sobre 2 Timóteo
A expressão de Lutero, o berço de Cristo, 3.16, o reformista de Genebra afirmou:
ocorre no fim do terceiro parágrafo de seu
Prefácio ao Antigo Testamento. E ali, com o o Esse é o princípio que distingue nossa religião
falecido estudioso luterano J. Theodore de todas as outras, pois sabemos que Deus fa­
Mueller demonstrou, Lutero estava na ver­ lou conosco e estamos totalmente convencidos
dade defendendo o valor do Antigo Testa­ de que os profetas não falaram de si mesmos,
mento para os cristãos. Longe de estar con­ todavia por intermédio do Espírito Santo, pro­
denando as Escrituras, Lutero estava na nunciavam apenas aquilo que haviam sido co­
verdade preocupado em “expressar sua mais missionados para declarar. Todos aqueles que
reverente estima às Escrituras Sagradas, que desejam beneficiar-se das Escrituras precisam
oferecem aos homens a bênção suprema da primeiro aceitá-las como princípio estabeleci­
salvação eterna em C risto” (Cristianismo do, a Lei e os ensinamentos dos profetas não
hoje, 2 4 /1 0 /1 9 6 0 , p. 11). são transmitidos ao bel-prazer de homens, ou
O próprio Lutero disse em seu Prefácio ao elaborados a partir de doutrinas terrenas, fo­
Antigo Testamento: ram escritos por homens, contudo inspiradas
pelo Espírito Santo.
Rogo e de forma verdadeira exorto que cada Devemos às Escrituras a mesma reverência que
Cristão piedoso não seja ofendido pela simpli­ devemos a Deus, uma vez que Ele é sua única
cidade da linguagem e das histórias que encon­ fonte e não há nada de origem humana mistura­
trará aqui no Antigo Testamento. Permita que do a elas. (C alvino , 1964, p. 330)
ele não duvide que, por mais simples que pos­
sam parecer, são as próprias palavras, obras, Em seus comentários de Salmos, Calvino
julgamentos e atos da grande majestade, poder falou da Bíblia com o aquela regra certa e in­
e sabedoria de Deus. (P lass , 1959, p. 71) falível (SI 5.11).
Em Um catecismo romano, John Wesley
Em Aquelas doutrinas de homens que de­ disse algo parecido:
vem ser rejeitadas, Lutero afirmou:
A Escritura é, por isso, regra suficiente em si
As escrituras, embora tenham sido também es­ mesma, e foi por homens divinamente inspira­
critas por homens, não são de homens nem vêm dos ao mesmo tempo entregue ao mundo.
de homens, mas de Deus. (P lass , 1959, p. 63) (W esl ey , 1872, p. 90)
Se houver erros na Bíblia, pode ser que haja mais do que pela Palavra absoluta e inerrante
milhares. Se houver falsidade nesse Livro, não desloca o peso da autoridade para longe da
veio do Deus da verdade. (W e sl e y , 1872, p.82) Palavra de Deus.
N o Protestantismo, o ataque veio pelo
N os séculos 16 e 17, a glória de Cristo res­ chamado alto criticismo\ Por um tempo, co­
plandecia em todos os cristãos, em diversos mo resultado de sua herança e acirrada polê­
lugares, apesar das diferenças do entendimen­ mica contra o catolicismo, igrejas protestan­
to sobre teologia ou em questões sobre a tes em geral aferravam-se a uma Bíblia
Igreja. Naquela época, os cristãos eram fiéis infalível. Contudo, no século 18 e em particu­
às verdades bíblicas. As Sagradas Escrituras lar no século 19, uma apreciação crítica das
eram autoridade suprema e inerrante em to ­ Escrituras, apoiada por um racionalismo na­
dos os aspectos para os seguidores de Cristo. tural, logrou êxito ao expulsar a Bíblia do lu­
A Palavra podia ser negligenciada e até con­ gar que ela ocupava antes. Para a Igreja da era
testada, havendo discordância sobre o que o do racionalismo, a Bíblia se tornou a palavra
Livro realmente ensinava, no entanto, mesmo do homem sobre Deus, em vez de a Palavra
assim, a Bíblia era aceita como a Palavra de de Deus para o homem.
Deus. E essa era a única regra de fé e prática Por fim, ao rejeitar o único divino caráter
infalível dos cristãos. da Bíblia, muitos críticos rejeitaram também
sua autoridade.
V is õ e s p ó s - r e f o r m a __________________________
A Igreja Católica enfraqueceu a visão
N o período posterior à Reforma, a visão ortodoxa da Bíblia ao elevar as tradições
ortodoxa da Bíblia sofreu ataques devastado­ humanas ao mesmo nível das Escrituras. Os
res de modo crescente. protestantes enfraqueceram a visão ortodo­
N a Igreja Católica, os ataques vieram das xa das Escrituras ao rebaixarem a Bíblia ao
tradições estabelecidas pela própria Igreja. Já nível das tradições. As diferenças são gran­
enfraquecida ao longo dos séculos por repor­ des, entretanto os resultados são semelhan­
tar-se mais aos patriarcas da Igreja primitiva tes. Nenhum dos grupos negou totalmente
do que às Escrituras (em defesa de pontos de a qualidade de revelação das Escrituras.
doutrina e em reação violenta à Reforma P ro­ Todavia, em ambos os casos o caráter único
testante), a Igreja Católica, em 1546, deu o das Escrituras se perdeu, sua autoridade foi
passo de oficializar a tradição da Igreja ao la­ enfraquecida e a função da Bíblia como voz
do das Escrituras como uma fonte válida de reformadora de Deus dentro da Igreja foi
revelação divina. esquecida.
O significado pleno dessa decisão foi in­ O fato de nenhuma dessas duas posições
dubitavelmente negligenciado na época do [a católica e a protestante] serem aceitáveis
Concilio de Trento, mas foi algo monumen­ deveria tornar-se evidente a todos e trazer a
tal. O ato trouxe conseqüências trágicas para Igreja de volta à sua posição original. Porém,
a Igreja Católica com o desenvolvimento não é isso que parece estar acontecendo. Em
contínuo de doutrinas enfraquecedoras, co ­ vez disso, alguns evangélicos que têm tradi­
mo a mariolatria4 e a veneração de santos de­ cionalmente insistido em defender a inerrân-
monstram. cia da Palavra parecem estar movendo-se para
Em teoria, a Bíblia permanece infalível, pe­ uma direção mais liberal, demonstrando uma
lo menos para os grandes setores do catolicis­ atitude cada vez mais ambivalente em relação
mo. Mas a preferência humana por tradições à infalibilidade do texto bíblico.
Precisamos ser extremamente cuidadosos U m estudioso escreveu:
nesse ponto. É importante questionar o signi­
ficado do termo inerrância, que difere de rejei­ O desenvolvimento científico do século passa­
ção total. Por exemplo, alguns estudiosos mui­ do mostrou ser insustentável toda a concepção
to conservadores indagaram se inerrância seria da Bíblia como um Livro verbalmente inspira­
realmente o melhor termo para usarmos com do por Deus, ao qual podemos buscar com
referência à Bíblia, já que isso aparentemente absoluta certeza para direção infalível em to­
exigiria uma precisão de detalhes tão exata a dos os assuntos sobre fé e conduta. (K n o x ,
ponto de incluir até mesmo uma necessidade 1931, p. 99)
de gramática perfeita, o que não existe. Então,
eles preferiram a palavra infalibilidade por Mas o estudo da crítica moderna exige
esta parecer exigir padrões modernos, cientí­ uma mudança radical de nossa visão da Escri­
ficos de precisão em expressões que os escri­ tura? Dúvidas emergem quando nos damos
tores antigos obviamente não tinham. conta de que a maioria dos “erros” apontados
Tais estudiosos preferiram falar da Bíblia na Bíblia não são descobertas recentes do cri­
como fiel ou verdadeira. N o entanto, essas ticismo científico, são apenas dificuldades
não são as áreas de preocupação real. Nessas conhecidas há séculos pela maioria dos erudi­
áreas pode muito bem haver variação, basea­ tos bíblicos sérios.
da no conhecimento de que não há nenhum Orígenes, Agostinho, Lutero, Calvino e inú­
termo — inerrância, infalibilidade, fidelida­ meros outros tinham consciência desse proble­
de, confiabilidade, veracidade, ou outros — ma. Eles sabiam que vários períodos de tempo
que descreva com perfeição o que queremos da Bíblia eram relatados de forma diferente por
dizer. Contudo, não deve haver dúvidas escritores diferentes. Por exemplo, em Gênesis
quanto ao caráter único e autoridade da Bí­ 15.13 é dito que o período de Israel no Egito foi
blia, com o um todo e em partes, com o a Pala­ de 400 anos, enquanto em Êxodo 12.41 é dito
vra de Deus. A palavra infalibilidade, quais­ que a estada durou 430 anos. Nos relatos dos
quer que sejam suas limitações, pelo menos quatro Evangelhos, o número de anjos junto ao
preserva essa ênfase. sepulcro de Jesus, após Sua ressurreição. [Em
Mateus 28.1-5 e em Marcos 16.5-7, é menciona­
A FILO SO FIA DO CRITICISM O MODERNO do um anjo; em Lucas 24.4-7 e em João 20.10-
O criticismo bíblico moderno é em geral 13, são mencionados dois anjos.]
creditado por derrubar a antiga visão de iner­ Entretanto, aqueles estudiosos entendiam
rância. Diz-se que a inerrância era uma alter­ que detalhes como esses eram resultado me­
nativa possível na época em que homens e ramente de perspectivas distintas dos autores
mulheres sabiam muito pouco sobre os textos ou da intenção específica deles ao escreverem.
bíblicos ou sobre história da Bíblia. Porém, Assim, não se sentiram compelidos a alijar a
descobertas modernas mudaram tudo isso. concepção ortodoxa da Escritura por causa
Hoje sabemos que na Bíblia certos fatos são dessas variantes.
citados de modo errôneo. P or exemplo, apa­ O verdadeiro problema com a inerrân­
rentemente Quirino não foi a rigor o gover­ cia vai além dos dados produzidos pelo cri­
nador da Síria na época do nascimento de ticismo científico para a filosofia subjacente
Cristo (Lc 2.2), e Moisés não teria escrito [de à iniciativa da crítica moderna. Essa filoso­
próprio punho] o Pentateuco. Em vista disso, fia é o naturalismo. Essa visão de mundo
a infalibilidade bíblica é discutida. nega o sobrenatural, ou busca situá-lo para
além da investigação científica. O sobrena­ falar da Escritura com o Palavra de Deus, a
tural, não tem correlação direta com as p a­ Bíblia é privada do seu direito de falar sobre
lavras específicas do texto bíblico. Ele é, qualquer outro assunto também.
para usar o term o de Francis Schaeffer6,
uma realidade de história superior, além de A d e f e s a d a in e r r â n c ia _____________________

provas ou contradições. A autenticidade divina é a rocha que sus­


Pinnock alertou: tenta a defesa da Escritura como a Palavra de
Deus de autoridade e completamente fidedig­
O criticismo negativo agora é a ferramenta da na. As etapas dessa defesa são as seguintes:
nova teologia. Ele deixou de ser empregado
como uma maneira rápida de trazer à tona ca­ S A Bíblia é de modo geral um documento fide­
racterísticas questionáveis do ensino bíblico. digno. Sua confiabilidade é estabelecida ao tra­
Ele agora serve para desacreditar a completa tá-la como qualquer outro registro histórico,
noção no coração do cristianismo de que há como, por exemplo, a obra de Josefo ou relatos
um corpo de informações reveladas, normati­ de guerra de Júlio César.
vas para a teologia cristã. N o interesse moder­ S Com base nos registros históricos, há razão
no pela hermenêutica, não vemos um revives- suficiente para crermos que o personagem cen­
cimento do interesse em levar a verdade da tral da Bíblia, Jesus Cristo, fez o que se afirma
Escritura a sério, mas apenas uma tentativa de que Ele fez, sendo assim Ele é o que afirma ser:
usar a Bíblia de uma maneira nova, não literal e o único Filho de Deus.
existencial. (P in n o c k , 1967 p. 4) •S Como Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo
é uma autoridade infalível.
U m grande exemplo disso seria a teologia •SJesus Cristo não apenas reconhecia a autori­
de Rudolf Bultmann, que escreveu volumes dade da Bíblia, Ele a ensinava, chegando ao
de exposição teológica, negando que a reve­ ponto de afirmar que é inerrante e eterna, por
lação cristã tivesse qualquer conteúdo pro- ser a Palavra de Deus. Porque em verdade vos
posicional. digo que, até que o céu e a terra passem, nem
Se este fosse de fato o ponto no debate um jota ou um til se omitirá da lei sem que tudo
sobre a inerrância, a discussão seria obvia­ seja cumprido (Mt 5.18)
mente muito mais importante do que se exis­ ■S Se a Bíblia é a Palavra de Deus, como Jesus
tem ou não alguns erros insignificantes nas ensinou, ela deve ser, por essa razão única, total­
Escrituras. Mas o que está em jogo é a ques­ mente fidedigna e inerrante, pois Deus é o Deus
tão da revelação como um todo. Deus pode da verdade.
revelar-se à humanidade? E , para ser mais es­ ■S Logo, baseada no ensino de Jesus Cristo, o
pecífico, Ele pode revelar-se em linguagem, infalível Filho de Deus, a Igreja crê que a Bíblia
que é a especificidade do que se torna norma­ também é infalível7.
tivo para a fé e ação cristãs? Com uma Palavra
inerrante essas coisas são possíveis. Sem isso, Em outras palavras, a defesa da inerrância
a teologia inevitavelmente entra no terreno repousa sobre (e é uma conseqüência inevitá­
infértil da especulação humana. vel) o tipo de material apresentado nos capítu­
A Igreja, que precisa de uma Palavra de los 3 e 4. A Bíblia como um documento histó­
Deus segura, tropeça. Sem uma revelação rico nos fornece um conhecimento seguro
inerrante, a teologia não está só à deriva, ela sobre um Cristo infalível, que sempre demons­
não tem sentido. A o repudiar seu direito de trou a mais alta consideração pelas Escrituras.
C om o conseqüência, as doutrinas de C ris­ Tendo em vista essa ilustração, entende­
to devem e têm de ser as doutrinas de Seus mos que a natureza dos documentos bíblicos
seguidores. em si não tem nada a ver com a questão da
inerrância.
A DEFESA CONTRA A INERRÂNCIA___________
Muitos que seguem a lógica da defesa tra­ 2. Um a segunda objeção à inerrância da
dicional de inerrância da Escritura ficam in­ Bíblia começa onde a primeira objeção termi­
comodados com o que parecem ser objeções na. Ela não tem tanta relação com a natureza
insuperáveis. Analisemos essas objeções e dos livros bíblicos, e sim com o simples fato
vejamos se elas são tão formidáveis quanto de que eles são produções humanas. Errar é
parecem. humano, tais críticos defendem, por conse­
guinte, a Bíblia, com o um texto humano, de­
1. A primeira objeção é baseada na nature­ve conter erros.
za dos textos bíblicos. Alguém poderia inda­ A primeira vista esse argumento pode pa­
gar: “U m dos problemas não é admitir que recer lógico, todavia uma análise mais pro­
esses são documentos históricos confiáveis? funda mostra que não é assim. Mesmo que
Tais textos são obviamente históricos, por­ seres humanos de fato errem, não é verdade
tanto são documentos produzidos por seres que certa pessoa errará o tempo todo ou em
humanos. São seletivos no que contêm. Usam qualquer situação.
a limitada e, muitas vezes, figurada linguagem Por exemplo, o desenvolvimento de uma
da época em que foram escritos. Relatos para­ equação científica é, para o propósito para o
lelos revelam pontos de vista diferentes per­ qual é dada, literalmente infalível. O mesmo
tencentes a diferentes autores. O tratamento pode ser dito sobre uma notificação impressa
literário do material varia. E isso que deve­ de uma reunião, instruções para fazer um car­
mos esperar de uma revelação divina? Isso, ro funcionar entre outras coisas.
em si mesmo, significaria que estamos lidan­ C om certeza, com o John W arwick
do com um livro puramente humano?” M ontgom ery observou ao desenvolver seu
Essas são questões legítimas, mas não cabe argumento:
a nós dizer de que forma uma revelação divi­
na deve ser dada nem insistir que a revelação A produção ao longo dos séculos de 66 livros
não seja divina por causa de certas caracterís­ inerrantes e mutuamente consistentes por dife­
ticas. E óbvio que nada meramente humano rentes autores é uma tarefa muito difícil, e alegra-
pode ser um veículo adequado para a verdade -nos atribuir ao Espírito de Deus realizá-la. En­
de Deus. O Senhor, porém, não está impedi­ tretanto, o ponto permanece de que não há nada
do de condescender-se em usar a linguagem metafísico inumano ou contra a natureza humana
humana para transmitir à humanidade Sua em tal possibilidade. (M o n tgo m ery , 1974, p. 33)
verdade inerrante.
Calvino comparou a ação de Deus com a de A analogia entre concepção e nascimento
uma mãe que usa o tatibitate para se comunicar do Senhor Jesus Cristo e a maneira como a
com um filho. Essa comunicação é limitada, Bíblia nos fo i dada é instrutiva. Lemos que,
pois a criança não consegue dialogar no mesmo quando o Senhor foi concebido no ventre da
nível elevado de linguagem da mãe. Contudo, virgem Maria, o Espírito Santo a cobriu com
ela consegue baixar o padrão para falar com ele. Sua sombra, para que a criança gerada fosse
Logo, é uma comunicação verdadeira. chamada de Filho de Deus (Lc 1.35). O divino
e o humano se encontraram na concepção de é possível. Pelo contrário, de acordo com
Jesus, e o resultado foi também, por sua vez, John Warwick Montgomery:
tanto humano com o divino. Cristo era um
homem de verdade. Ele era uma pessoa sin­ O número de erros textuais diminui de modo
gular, um judeu. Ele tinha uma determinada constante à medida que nos voltamos para os
altura e uma aparência reconhecível. Também manuscritos perdidos, encorajando, com razão,
era divino, santo e sem pecado. a suposição de que, se pudéssemos preencher
Assim como o Espírito Santo desceu sobre por inteiro o intervalo entre os originais e nos­
a virgem Maria para que ela concebesse o Filho sos textos e fragmentos mais antigos, alguns
humano de Deus em seu ventre, o Espírito papiros, remontando ao primeiro século, todos
Santo atuou nas células do cérebro de Moisés, os erros aparentes iriam desaparecer [...] O
Davi, os profetas, os evangelistas, Paulo e ou­ evangélico conservador apenas recorre aos ma­
tros escritores bíblicos, para que a revelação nuscritos perdidos, desprezando os melhores
divina fosse compreendida pela mente deles e textos existentes, naqueles exemplos limitados e
escrevessem aqueles livros que constituem específicos, tais como o registro de numerais,
nossa Bíblia. Seus escritos trazem as marcas da quando evidências independentes mostram uma
personalidade humana de cada um. Por isso, os alta probabilidade de erros de transcrição que
livros diferem em estilo. Contudo, a fonte vêm desde o início. (M o n tg o m ery , 1974, p. 36)
principal de revelação bíblica é divina; e o to­
que humano não imprimiu erro nos escritos, Aquele que crê em infalibilidade lida
assim como o ventre humano de Maria não com problemas textuais da mesma forma
contaminou com o pecado o Salvador. que um estudioso secular lida com proble­
mas relacionados a qualquer documento an­
3. Um a terceira objeção à inerrância é base­ tigo. Entretanto, devido ao extraordinário
ada no fato de que ela é reivindicada apenas em número de variedades de manuscritos bíbli­
relação aos manuscritos originais, não às có ­ cos, não há razão para duvidarmos de que o
pias que foram feitas a partir deles, nas quais texto de hoje seja idêntico ao texto original
nossas traduções contemporâneas se baseiam. em todos os aspectos, com exceção de algu­
Um a vez que nenhuma pessoa viva até ho­ mas pequenas variações textuais. E essas
je viu os manuscritos, não seria possível nem poucas variantes são bem conhecidas pelos
ratificá-los nem fraudá-los. Logo, não seria comentaristas bíblicos.
um despropósito epistemológico recorrer­ 4. U m a quarta m aior objeção à doutrina
mos aos originais? da inerrância diz respeito à própria função
Alguém poderia indagar: “E se houver um da linguagem com o veículo da verdade. A l­
original inerrante?” Já que não o temos, o guns estudiosos sugerem que a verdade
apelo a uma Bíblia inerrante não faz sentido. transcende a linguagem de modo que a ver­
Mas é isso mesmo? Seria verdade se (1) o nú­ dade das Escrituras encontra-se nos “pen­
mero de erros aparentes permanecesse cons­ samentos das E scritu ras” mais do que em
tante quando alguém comparasse as cópias suas palavras.
aos escritos originais, e se (2) aqueles que Mas, com o observou Pinnock:
creem na infalibilidade bíblica recorressem a
um original que fosse substancialmente dife­ Faria sentido aceitar a inspiração dos pensa­
rente da melhor cópia do manuscrito em exis­ mentos, e não as palavras, dos escritores bíbli­
tência. Contudo, nenhuma das duas sentenças cos, ou que esses pensamentos, além de serem
contraditórios não apenas em relação às afir­ feitas por muitas pessoas influentes. N o pas­
mações das Escrituras, seriam intrinsecamente sado, quase todo teólogo bíblico e acadêmico
sem sentido? O que é um pensamento inspira­ falava de “resultados comprovados” ou “des­
do expresso em uma linguagem não inspirada? cobertas cabais”, que imaginavam suficientes
(P in n o c k , 1967, p. 8) para derrubar por terra a concepção ortodoxa
da Bíblia. Hoje, entretanto, qualquer pessoa
Se a Bíblia é de fato inspirada, ela tem que que teve a oportunidade de pesquisar sobre
ser inspirada verbalmente. E inspiração ver­ essas questões com profundidade sabe que
bal significa infalibilidade! essas expressões não podem ser usadas com
C om certeza, há textos das Escrituras em frequência; aliás, raramente se aplicam, por­
que a escolha de uma palavra pode fazer que, como resultado de uma marcha contínua
pouca diferença no registro de um fato ou de investigações bíblicas e arqueológicas,
de uma doutrina. O vocábulário usado em muitos dos chamados resultados comprova­
alguns versículos pode ser mudado, como dos foram destruídos diante daqueles que os
tradutores fazem com regularidade para apresentavam.
transmitir o significado próprio a uma cul­ Em 2 Reis 15.29, por exemplo, há uma refe­
tura em particular. Mas há outros textos em rência a um rei da Assíria chamado Tiglate-Pile-
que as palavras são cruciais, e a doutrina ine­ ser, que invadiu o Reino do Norte (Samaria) e
vitavelmente sofrerá se não conseguirmos levou cativos muitos líderes israelitas.
levá-la a sério. Indubitavelmente, se cremos Acadêmicos de uma geração atrás diziam
na autoridade da Bíblia, temos de crer tam­ — seus livros ainda constam em nossas bi­
bém numa Bíblia verbalmente inspirada e, bliotecas — que esse rei nunca existiu e que o
por isso, infalível tanto no ponto em ques­ relato da queda de Israel pela Assíria é algo
tão com o em outros pontos também. Essa próximo à mitologia. Hoje, contudo, após
visão condiz com o próprio ensino bíblico e arqueólogos escavarem a cidade que era capi­
com a natureza da sua linguagem. tal de Tiglate-Pileser, essa história bíblica foi
comprovada. Eles encontraram o nome de tal
A QUESTÃO DOS ERROS_______________________ governante impresso em tijolos onde se lia:
Por fim, existem aqueles que acompanha­ “Eu, Tiglate-Pileser, rei das terras do oeste,
riam esse argumento até aqui, e até mesmo rei da terra, cujo reino se estende até o grande
concordariam com ele em algumas partes; mar”. O leitor de língua inglesa encontra re­
contudo, sentem que certos “erros” foram latos de batalhas dele com Israel no livro de
descobertos pelos resultados apontados pelos James B. Pritchard Ancient N ear Eastern
estudiosos da Bíblia. Texts Relating to The O ld Testament [Textos
Haveria realmente erros comprovados? antigos Oriente Próximo relacionados ao
H á dificuldades em algumas partes. Ninguém Antigo Testamento],
questiona isso. N o entanto, a academia teria, Contemporâneos daqueles primeiros es­
de fato, demonstrado que certos detalhes nas tudiosos, negavam que Moisés teria escrito os
informações relatadas nos livros da Bíblia são cinco primeiros livros da Bíblia sobre a pre­
falsos e, em vista disso, que os escritos foram missa (aparentemente irrefutável) de que a
produzidos apenas pela vontade de homens escrita não havia sido inventada na época de­
[sem a inspiração divina], afinal de contas? le. Entretanto, arqueólogos modernos desen-
Houve uma época não tão remota, quan­ cavaram milhares de tábuas com inscrições
do reivindicações como essa eram abertamente centenas de anos anteriores a Moisés e até a

&
Abraão. Para dizer a verdade, hoje se sabe de que esperam algo mais da Bíblia podem tam­
seis diferentes línguas escritas a partir da épo­ bém concluir que a credibilidade dela foi
ca de Moisés e antes dela. acentuada. Após mais de dois séculos de en-
Em períodos mais recentes, muitos pode­ frentamento das armas científicas mais pesa­
riam achar que os livros históricos do Novo das que pudessem ter sido usadas, a Bíblia
Testamento, escritos numa data muito próxi­ sobreviveu — talvez esteja melhor sob cerco.
ma aos eventos que relatam, seriam pouco Mesmo nos termos dos próprios críticos, fato
confiáveis. Os Evangelhos sinóticos (Mateus, histórico, as Escrituras são mais bem aceitas
Marcos e Lucas), em particular, foram datados agora do que eram quando os racionalistas
tarde, mas o Evangelho de João, que parecia iniciaram o ataque. {Time, 30/12/1974, p.41)
ter em grande medida influências helenistas,
foi atribuído ao segundo século ou, de acordo Os cristãos nunca devem temer por firma­
com alguns acadêmicos, ao terceiro século de­ rem-se na Palavra de Deus e reconhecerem a
pois de Cristo. Contudo, no momento certo, autoridade dela, como fez o Senhor Jesus
um pedaço de papiro descoberto no Egito exi­ Cristo. Em alguns momentos, haverá teorias
giu que os estudiosos datassem o quarto evan­ críticas que irão contrariá-la. Os argumentos
gelho no máximo até o ano 125 d.C., ou seja, poderão parecer sem réplica, e quem tentar
muito antes da primeira época apontada. ficar contra eles poderá ser rejeitado como
Os resultados da academia, em vez de de­ um “obscurantista”.
sacreditarem a Bíblia, validam cada vez mais a Os sábios deste mundo diriam: “Você po­
afirmação dela. N ão provaram a infalibilida­ de acreditar nisso se quiser, mas os resultados
de — nenhuma quantidade de dados poderia da crítica científica nos ensinam além.” Tais
provar isso —, e sim confiabilidade dela, pois coisas aconteceram antes e vão acontecer de
revelam que nada é incompatível com as con­ novo. Contudo, cristãos que estão firmados
siderações nas Escrituras. N a verdade, como nas Escrituras descobrirão que, quando os
a Revista Time reconheceu na reportagem de chamados “resultados comprovados” come­
capa, de 30/12/1974, sobre a Bíblia, intitulada çarem a tombar entre os estudiosos, a visão da
Ganho para os que creem : Bíblia oferecida por Jesus Cristo e a visão his­
tórica da Igreja sempre prevalecerão.
A amplitude, sofisticação e diversidade de H á alguns anos, um antigo líder da Igreja da
toda essa investigação bíblica são impressio­ Inglaterra, o Bispo Ryle de Liverpool, escreveu:
nantes. Mas propõem uma questão: elas tor­
naram a Bíblia mais, ou menos, confiável? Dê-me o plenário, a teoria verbal da inspiração
Literalistas que sentem o chão mover-se bíblica com todas as suas dificuldades, em vez
quando um versículo é modificado diriam que da dúvida. Eu aceito as dificuldades e com hu­
a credibilidade foi afetada. A dúvida foi seme­ mildade aguardo as soluções. Mas enquanto
ada; a fé está em risco. N o entanto, cristãos espero, estou firme na Rocha.
N otas

1 Cirilo de Jerusalém (315—386 d.C.), foi bispo da Igreja de Jerusalém em sucessão ao bispo Máximo, no ano 348.
Ofereceu forte oposição ao arianismo, o qual negava a Trindade. É considerado grande doutor e apologista da
Igreja cristã. Suas famosas 23 aulas de catequese que ele pregou contêm instruções sobre os principais temas da fé
cristã e prática, mais popularmente do que de uma forma científica, cheio de um amor e carinho pastorais para com os
catecúmenos. Cada palestra é baseada em um texto da Bíblia, e há uma abundância de citação bíblica por toda parte.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cirilo_deJerusal%C3%A9m)

2 Epístola 82 de Agostinho, da obra Cartas de Agostinho 1-82, in: The Fathers o f the Church [Os Pais da Igreja].
Vol.12. Trad. Wilfrid Parsons. Washington: The Catholic University of America Press, 1951, p. 392,409.

3 Prefácio do capítulo 3, na obra Sobre a Trindade, de Agostinho, in: S c h a f f , Philip (ed.). The Nicene and Post-Ni-
cene Fathers [Os Pais nicenos e pós-nicenos]. Series 1. Vol 3. Buffalo: The Christian Literature Company, 1887, p. 56.
4 O termo mariolatria vem de Maria, forma grega do nome hebraico Miriã, e de latreia. A mariolatria é o culto ou a
adoração a Maria.
5 O criticismo bíblico é um movimento teológico-filosófico bem ao gosto da época, inspirado no Kritizismus de
Kant, voltado a fazer leituras críticas dos Livros Sagrados e demais documentos dogmáticos.
Em sentido restrito, o criticismo é empregue para denominar uma parte da filosofia kantiana (aquela que diz
respeito à questão do conhecimento). Esta propõe-se investigar as categorias ou formas apriori do entendimento. A
sua meta consiste em determinar o que o entendimento e a razão podem conhecer, encontrando-se livres de toda
experiência, bem como os limites impostos a este conhecimento pela necessidade de fazer apelo à experiência sensí­
vel para conhecermos. Este projeto pretende fundamentar um pensamento metafísico de carácter não dogmático.
Entre o cepticismo e o dogmatismo, o criticismo kantiano instaura-se como a única possibilidade de repensar as
questões próprias à metafísica. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Criticismo)
6 Francis Schaeffer (1912-1984) foi um teólogo cristão evangélico americano, filósofo e pastor presbiteriano. Tor­
nou-se famoso por seus escritos e pela criação da comunidade L’Abri (do francês, O Abrigo), na Suíça. Opondo-se
ao modernismo teológico, à chamada neo-ortodoxia, Schaeffer defendia uma fé baseada na tradição protestante e um
enfoque pressuposicional na apologética cristã.
O Manifesto Cristão, de Schaeffer, publicado em 1981, posiciona suas teses como uma resposta cristã ao Manifes­
to Comunista, de 1848, e aos documentos do Manifesto Humanista, de 1933 e 1973. O diagnóstico de Schaeffer
dizia que o declínio da civilização ocidental se deve à sociedade ter se tornado cada vez mais pluralista, resultando
em um desvio “para longe de uma cosmovisão que era pelo menos vagam ente cristã na memória das pessoas... em
direção a algo totalmente diferente”. Schaeffer argumentava que há um combate filosófico entre o povo de Deus e
os humanistas seculares. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Francis_Schaeffer)

7 Essa abordagem clássica em defesa da Escritura é discutida de forma detalhada por R.C. Sproul em seu ensaio The
Case f o r Inerrancy: A M ethodological Approach [A Defesa da Inerrância: Uma Análise Metodológica], in:
M o n t g o m e r y , J.W. (ed). G od ‘s Inerrant Word [A Palavra Inerrante de Deus]. Minneapolis: Bethany Fellowship,
1974, p. 248-260.
O CRITICISMO BÍBLICO MODERNO

, . { criticismo bíblico moderno, mais lançou um método de estudo bíblico que en­
^ do que qualquer coisa, enfraque- contraria grande aceitação, primeiro na Ale­
§[ ceu e quase destruiu a elevada re- manha, depois por toda a Europa e nos Esta­
^ putação que a Bíblia conquistou dos Unidos. Astruc observou que:
ao longo da história do cristianismo. Portanto,
é necessário analisar as principais linhas dessa No texto hebraico de Gênesis, Deus é designa­
escola de pensamento, como se desenvolveu do por dois nomes diferentes. O primeiro é
nos últimos dois séculos, para, por fim, refletir Elohim. Embora esse nome tenha outros signi­
sob uma perspectiva evangélica. ficados em hebraico, é especialmente aplicado
ao Ser Supremo. O outro é Jeová, o grande
As r a í z e s d a c r í t i c a s u p e r i o r ________________ nome de Deus que expressa Sua essência.
A crítica superior (ou crítica nova) do A n­ Ora, alguém poderia supor que os dois nomes
tigo e do N ovo Testamento, aliada às linhas eram usados de forma indiscriminada como
literárias, não é exclusiva aos séculos 19 e 20. termos sinônimos, para dar variedade ao estilo.
Teodoro de Mopsuéstia, um dos mais notá­ Isso, entretanto, estaria errado. Os nomes nun­
veis teólogos da Escola de Antioquia, relegou ca são alternados; há capítulos inteiros, ou par­
um número de salmos (tais com o o 51, o 65 e tes grandes de capítulos, em que Deus é sempre
o 127) à época do exílio babilônico. chamado de Elohim, e outros, pelo menos tão
Durante a Idade Média, Ibn Ezra, um es­ numerosos quanto, nos quais Ele é sempre
tudioso judeu, alegou ter descoberto certo chamado de Jeová.
número de anacronismos no Pentateuco. Até Se Moisés fosse o autor de Gênesis, teríamos
mesmo Martinho Lutero aplicou uma forma de atribuir essa variação estranha e desarmôni-
de crítica literária a seus pronunciamentos ca a ele mesmo. N o entanto, podemos conce­
ocasionais sobre a autenticidade e o valor re­ ber tamanha negligência na composição de um
lativo dos livros bíblicos. Todavia, só em me­ livro tão curto quanto Gênesis? Imputaríamos
ados do século 18, em 1753, para ser exato, a a Moisés tamanha falha que nenhum outro es­
crítica superior foi introduzida em grande es­ critor cometeu? Não é mais natural explicar
cala e com propósito comparável ao nosso essa variação ao supor que Gênesis foi com­
uso da expressão hoje. posto por duas ou três memórias, nas quais os
Naquele ano um cientista e médico da diferentes autores deram nomes distintos a
corte francesa, Jean Astruc, publicou um tra­ Deus, um usando Elohim, outro Jeová ou Jeo­
balho sobre as fontes literárias de Gênesis e vá Elohim? (H a stin g s , 1912, p. 315)
A afirmação de Astruc é uma expressão A profunda mudança que isso envolveu é
primitiva do espírito crítico, exibindo carac­ clara nas palavras de E. C. Blackman, que elo­
terísticas que logo se tornariam representan­ giou as realizações de Wellhausen por ter
tes do criticismo literário com o um todo. possibilitado “a compreensão do Antigo Tes­
Primeiro, ela revela um cisma com visões tra­ tamento em termos de revelação progressiva
dicionais, de acordo com as quais Moisés é o [...]; uma real libertação” ( B l a c k m a n , 1957,
autor do Pentateuco. Segundo, revela uma p. 141). Emil G. Kraeling observou que tam­
mudança no objeto de estudo, que vai do sim­ bém “marcou o início de um estudo comple­
ples significado das palavras até questões so­ tamente secular e evolucionista das fontes do
bre a autenticidade e integridade dos livros Antigo Testamento” ( K r a e l i n g , 1955, p. 94).
bíblicos. Terceiro, mostra um novo método
de procedimento. O J e su s h is t ó r ic o ___________________________

A o deixar de lado o testemunho da histó­ Em estudos do N ovo Testamento os críti­


ria e da tradição, pelo menos temporariamen­ cos superiores foram direcionados a um alvo
te, essa crítica foca o estilo, o vocabulário, a um pouco diferente: recuperar o Jesus históri­
sintaxe, as ideias e características dos docu­ co por meio de um estudo das origens das nar­
mentos como base única pelos quais questões rativas dos Evangelhos e do desenvolvimento
em relação à autenticidade e integridade po­ da teologia do N ovo Testamento como preser­
dem ser resolvidas. vada nas epístolas de Paulo, nas pastorais, na
A princípio o trabalho de Astruc recebeu literatura joanina e no Apocalipse.
pouca atenção. Contudo, após alguns anos, Contudo, os mesmos princípios estão en­
ele foi recuperado por alguns eruditos ale­ volvidos, e eles foram levados adiante nos es­
mães entre outros e nele foi incluído todo o tudos do N ovo Testamento de uma maneira
Antigo Testamento. Johann Eichhorn aplicou ainda mais radical do que na investigação do
a abordagem de Astruc ao Pentateuco inteiro. Pentateuco no século 19.
Wilhelm de Wette e Edward Reuss tentaram A origem dos princípios da crítica superior
alinhar os resultados com a história judaica. no estudo do N ovo Testamento é em geral atri­
Reuss concluiu que na seqüência histórica buída a Ferdinand Christian Baur (1792-1860),
correta os profetas vieram antes da Lei, e os Sal­ teólogo e historiador alemão que tentou organi­
mos depois de ambos. O mais popular e, de al­ zar o material ao longo de linhas históricas.
guma forma, a obra de culminância nesse cam­ Hegel havia sugerido a teoria de que o de­
po foi o Prolegomena de Julius Wellhausen, senvolvimento histórico origina-se da tese,
publicado em 1878. antítese e síntese. Baur aplicou princípios he-
Essa obra disseminava amplamente a hi­ gelianos à história bíblica, citando o suposto
pótese documentativa de quatro estágios co­ conflito da teologia de Paulo e de Pedro co ­
nhecida com o JE P D (J de Jeová, E de Elohim, mo prova de uma tese e antítese doutrinária
P de documentos e código sacerdotais, e D da dentro da Igreja primitiva.
obra editorial posterior da escola deuterono- Segundo a visão do teólogo, isso levou à
mista ou deuteronômica). síntese do catolicismo primitivo. Hoje a tese
Wellhausen datou os escritos da Lei após geral de Baur é rejeitada. Mesmo assim, ele foi
o exílio babilônico e situou apenas o Livro da bem-sucedido em abalar as visões tradicionais
Aliança e a edição mais antiga das seções de em relação à autoria e composição dos livros
narrativa d o / e do E com o anteriores ao oita­ do N ovo Testamento, e chamou a atenção do
vo século antes de Cristo. mundo acadêmico para uma redescoberta do
Cristo histórico como o principal problema sobre Jesus como sendo fruto da imaginação
do N ovo Testamento. da comunidade cristã primitiva.
A chamada busca pelo Jesus histórico data Mesmo hoje, todos ficariam impressiona­
da morte, em 1768, de Hermann Samuel Rei- dos com a imensa energia e o talento que os
marus, o historiador com quem Albert eruditos alemães empregaram na velha busca
Schweitzer começou seu levantamento da pelo Jesus “original”, porém os resultados
pesquisa no século 19. Reimarus não era um foram medíocres e as conclusões erradas, co­
erudito em N ovo Testamento, contudo, com mo Schweitzer descobriu em seus estudos. A
sua morte, ele deixou para trás um manuscri­ academia tentara modernizar Jesus, no entan­
to que teria implicações de longo alcance. Ele to o Jesus que eles produziram não era nem o
defendia que historiadores deveriam distin­ Jesus histórico nem o Jesus das Escrituras.
guir entre o objetivo de Jesus e o objetivo de
Seus discípulos, isto é, entre o Jesus histórico e B u l t m a n n e a m it o l o g ia ___________________

o Cristo das pregações da Igreja primitiva. Em anos mais recentes, a crítica superior
Confrontado por uma escolha entre o que do N ovo Testamento centrou-se na obra de
ele acreditava serem objetivos mutuamente Rudolf Bultmann, o reconhecido pai da crí­
excludentes, o historiador optou pelo primei­ tica da forma, antigo professor da Universi­
ro, postulando um Jesus não sobrenatural. De dade de Marburg, na Alemanha. M uito da
acordo com ele, Jesus pregava a chegada do energia de Bultmann foi gasto em desmitifi-
Reino de Deus, porém Ele morreu esquecido car o que ele considerava ser a “mitologia”
por Deus e desiludido. O cristianismo foi vis­ dos escritores do N ovo Testamento: céu,
to como “produto” dos discípulos primitivos inferno, milagres.
que roubaram o cadáver de Jesus e proclama­ Contudo, as opiniões do professor são
ram uma ressurreição física para arrebanhar mal compreendidas se alguém imaginar que o
seguidores. Jesus historicamente real está debaixo da ca­
Reimarus foi extremado, e seu trabalho, mada mitológica. De acordo com seus estu­
polêmico. N o entanto, suas opiniões sobre as dos, o que está debaixo da mitologia é a com ­
origens cristãs ditaram o padrão para um sé­ preensão mais profunda da Igreja sobre a vida
culo de pesquisa sobre o Jesus histórico. Rea­ criada pela experiência dela com o Senhor
gindo contra o elemento sobrenatural nos ressurreto. Com o conseqüência, nada pode
Evangelhos e procurando por um Jesus feito ser conhecido sobre Jesus em termos de his­
à própria imagem e semelhança deles, idealis­ tória pura, exceto pelo fato de que Ele existiu.
tas descobriram em Cristo o homem ideal; N a obra de Bultmann Jesus and the Word [Je­
racionalistas o viram com o um grande pro­ sus e a Palavra], ele afirma: “N ão temos como
fessor de moralidade; socialistas o considera­ saber nada sobre a vida e a personalidade de
ram como um amigo dos pobres e dos revolu­ Jesus” ( B u l t m a n n , 1934, p. 8).
cionários. Trabalhando com a hipótese de que um
As mais populares biografias de Jesus, as período de transmissão oral interpôs-se entre
duas escritas por David Friedrich Strauss, re­ os anos de ministério terreno de Cristo e a
jeitaram a maior parte do material dos Evan­ transcrição das tradições sobre Ele nos Evan­
gelhos com o mitologia; e Bruno Bauer, filó­ gelhos, Bultmann visualiza uma Igreja inven­
sofo, teólogo e historiador alemão, terminou tiva, que de forma gradual sobrepôs sua pró­
sua busca afirmando que nunca houve um pria representação secular ao que ela recebera
Jesus histórico. Ele justificou todas as histórias da época e dos ensinamentos de Jesus.
A habilidade de criar da Igreja aconteceu livre para crer. É esse autoentendimento que
num “estágio oral” do desenvolvimento da determina o trabalho de interpretação, pois a
tradição. Durante esse período muito do ma­ interpretação deve dar livre espaço à fé, criação
terial dos Evangelhos circulava na forma de de Deus. (K ren t z , 1966, p. 16)
unidades orais separadas, as quais poderiam
ser classificadas e organizadas em uma seqüên­ Resumindo, de acordo com a escola
cia de tempo baseada na sua forma. bultmanniana: (1) As fontes cristãs prim iti­
Acredita-se, como Bultmann e outros de vas verdadeiras não m ostram interesse na
sua escola, que muito pode ser entendido so­ história ou personalidade de Jesus; (2) Os
bre a situação da Igreja a partir dessas “unida­ documentos bíblicos são fragmentados e
des” do Evangelho. Todavia, praticamente legendários; (3) N ão há outras fontes com as
nada pode ser aprendido sobre o Jesus real, quais os dados fornecidos por escritores bí­
histórico. As expressões de fé da Igreja primi­ blicos possam ser comparados; e (4) A preo­
tiva, preservadas para nós no N ovo Testa­ cupação com o Jesus histórico é na verdade
mento, devem ser reinterpretadas em termos destrutiva para o cristianismo, porque leva
existenciais para que possam ter relevância na não à fé em Jesus Cristo com o Deus, mas a
Era Moderna. uma seita de Jesus, cujos efeitos podem ser
A o rejeitar a suposta mitologia do N ovo vistos com clareza no pietismo.
Testamento, Bultmann rejeitou a literal pree­ A inconsistência de algumas dessas pers­
xistência de Cristo, Seu nascimento virginal, pectivas é constatada hoje em determinados
Sua impecabilidade e divindade, o valor de segmentos. P or conseqüência, a liderança te­
Sua morte redentora, a ressurreição literal e a ológica está passando para outras mãos1.
ascensão de Cristo, bem como o julgamento
C a r a c t e r ís t ic a s m a is im p o r t a n t e s d a
futuro de todas as pessoas.
C R ÍT IC A S U P E R IO R ______________________________
Bultmann afirmou uma nova “possibili­
dade de existência” que significa a possibili­ Apesar de breve, nossa análise da crítica
dade de abandonar o passado (morrer com superior revela grande diversidade. Pontos de
Cristo) e abrir-se para o futuro (ser ressusci­ vista estão em constante mudança, e até na
tado com Cristo). Aceitar essa possibilidade mesma época aqueles que trabalham em áreas
traz libertação interior e incrível liberdade similares com frequência contradizem uns
(salvação). aos outros. Entretanto, apesar da diversidade,
Edgar Krentz, erudito luterano, filósofo e há certas características comuns às várias ex­
historiador, escreveu sobre as conclusões de pressões da crítica superior.
Bultmann: Primeiro, temos o humanismo, a filosofia
moral que coloca os humanos com o pri­
Por um lado as Escrituras são, como qualquer mordiais, numa escala de importância. N a
outro livro, o objeto de investigação histórica, maioria das formas do debate moderno as
que busca os fatos. N o entanto, nenhum signifi­ Escrituras do Antigo e do N ovo Testamento
cado absoluto se encontra em fatos. O significa­ são tratadas como se fossem as palavras do
do é encontrado só quando um homem pessoal­ homem sobre Deus, em vez de a Palavra de
mente confronta a história e descobre um Deus para o homem.
sentido para sua própria existência (interpreta­ Todavia, como J. I. Packer, teólogo angli­
ções existenciais). Só quando o homem não está cano e professor de teologia, assinala, isso é
sujeito a uma visão secular desconhecida ele está simplesmente a filosofia romântica de religião
estabelecida por Friedrich Schleiermacher, futuro não poderemos mais afirmar: “A Bíblia é
pregador protestante, teólogo e filósofo a Palavra de Deus”. Até mesmo dizer “A Pala­
(1768-1834), “a saber, que o real objeto de vra de Deus está na Bíblia” estará errado, se ti­
estudo da teologia não são as verdades divinas vermos a intenção de mostrar que certas afirma­
reveladas, mas a experiência religiosa huma­ ções da Bíblia são puramente humanas e o resto
na” ( P a c k e r , 1960, p. 148). Dentro desse é a Palavra de Deus. Deveremos declarar algo
contexto, a Bíblia é apenas um registro da re­ como: “A Bíblia não é a Palavra de Deus, mas
flexão e ação humanas no campo da religião. toma-se a Palavra de Deus para qualquer um
A tarefa do intérprete se torna o trabalho de que acredite nela como tal”. Isso soa perigoso...
filtrar essa experiência e avaliar se é possível (F e in e r e V isc h e r , 1 9 7 5 , p. 1 0 1 )
utilizá-la em nossa época.
Deve-se reconhecer, é óbvio, com o res­ A segunda característica da crítica superior
saltado no capítulo anterior, que a Bíblia de é seu naturalismo, expresso pela crença de
fato tem um elemento humano genuíno. Por que a Bíblia é o resultado de um processo
outro lado, devemos fazer objeção a qual­ evolucionário. Evidências dessa crença po­
quer tentativa de torná-la humana em detri­ dem ser vistas em estudos do Antigo Testa­
mento de ser divina. Além disso, como mento do modo como a teoria documentária
acrescentou Packer: do Pentateuco se desenvolveu.
A crença é evidente também na teoria da
Se um fator deve ser ressaltado em detrimento forma de Bultmann, pois tudo depende da
do outro, perde-se muito menos ao tratar as Igreja primitiva, que gradualmente desenvol­
Escrituras como simples oráculos de Deus es­ veu sua compreensão da realidade e preser-
critos do que como uma coleção de ideias ju­ vou-a em vários estágios por meio das tradi­
daicas sobre Deus. Não temos razão para con­ ções orais.
siderar palavras meramente humanas como Presume-se que a compreensão antiga e pri­
inerrantes e de autoridade; o que terá autorida­ mitiva de Deus e da realidade abriu caminho
de para nós, se tomarmos uma posição liberal, para concepções posteriores mais desenvolvi­
será nosso próprio julgamento sobre até que das. As chamadas ideias primitivas podem ser
ponto as Escrituras podem ser confiáveis e até rejeitadas em favor de outras mais modernas.
que ponto não devem ser. Logo, chegamos, Portanto, relatos de milagres podem ser
por bem ou por mal, ao subjetivismo. (P ack er , dispensados. Além disso, de acordo com essa
19 6 0 , p. 148 ) visão, conceitos rígidos com o a ira de Deus,
o sacrifício e uma segunda vinda visível do
U m exemplo claro de tal subjetivismo é a Senhor podem ser excluídos da religião do
seção A Escritura, em The Common Catechism N ovo Testamento.
[O catecismo comum], uma confissão de fé A terceira característica mais importante
moderna amplamente divulgada por uma im­ da crítica superior é baseada nas duas primei­
pressionante equipe de teólogos católicos e ras. Se pessoas e suas ideias mudam à medida
protestantes contemporâneos. Declara-se que: que hipóteses evolucioriárias especulam, em
tal caso elas vão continuar a mudar; elas têm
Tudo que teremos de discutir [...] está baseado mudado desde que os últimos livros da Bíblia
nesta atual inquestionável premissa de que a Bí­ foram escritos; com o conseqüência, precisa­
blia pode e deve ser examinada como prova da mos ir além da Escritura para entender tanto
fé de vários homens e de várias gerações [...]. No a humanidade como a religião verdadeira.
H á muitos exemplos dessa atitude, parti­ os livros realmente são de Deus, a natureza
cularmente em sermões populares, nos quais deles em si não limita as opções críticas?
os pontos de vista de pensadores seculares são É não somente inútil como também errôneo
frequentemente ventilados, enquanto pers­ negar aos críticos o direito de examinar os tex­
pectivas contrárias dos escritores bíblicos são tos bíblicos. Eles o farão caso sejam solicitados
esquecidas. ou não. Além disso, se as Escrituras são verda­
deiras, eles devem submeter-se a qualquer mé­
U m a re s p o s ta à c r ít ic a s u p e r io r ________ todo crítico válido; não podemos cometer o er­
O que é para ser dito em resposta a essa ro dos fundamentalistas do século 19 de
abordagem divulgada e popular? H á duas reivindicar uma isenção especial para a Bíblia.
perspectivas. Por um lado, há uma área neutra Por outro lado, devemos sustentar que
na qual qualquer um pode usar pelo menos qualquer método crítico tem de levar em con­
algumas partes do método crítico. Ele pode sideração a natureza do material à sua dispo­
ser usado para iluminar o elemento humano sição. N o caso da Bíblia, os críticos devem
nos escritos bíblicos. Atenção pode ser dada aceitar os argumentos de que ela é a Palavra
às palavras e aos seus vários usos, ao contexto de Deus ou oferecer razões satisfatórias para
histórico do qual os escritos vieram e às ca­ rejeitá-los. Se a Bíblia é a Palavra de Deus,
racterísticas singulares dos vários livros bíbli­ como ela afirma ser, então a crítica deve in­
cos. Além disso, existem questões de arqueo­ cluir uma compreensão da revelação em seu
logia e história secular paralela que esclareceram procedimento metodológico.
os textos. O insucesso da crítica ao fazer isso é mais
O uso do método nessas áreas e dessa ma­ aparente do que sob qualquer outro aspecto
neira é valioso. P or outro lado, os mais co ­ quando tenta divorciar o Jesus histórico do
nhecidos expoentes do método crítico de­ Cristo da fé. Se Jesus fosse como qualquer ou­
ram seguimento às premissas inaceitáveis tro ser humano, e a Bíblia, um livro comum,
para teólogos bíblicos verdadeiros, e o mé­ isso poderia ser feito. N o entanto, Jesus tam­
todo pode, em vista disso, ser julgado como bém é divino e a Bíblia é a Palavra de Deus so­
malsucedido nas mãos deles. bre Ele. Nesse caso é obrigação da crítica reco­
A primeira objeção a esse tipo de crítica é nhecer a natureza dos textos sagrados como
que os que utilizam o método crítico exigem uma interpretação divina que relaciona a vida, a
o direito de serem científicos em seu estudo morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Fi­
de dados bíblicos. Contudo, eles são vulnerá­ lho de Deus, especialmente os Evangelhos.
veis não quando são científicos, mas sim C om uma avaliação firme da Bíblia como
quando falham em ser científicos o suficiente. revelação, a crítica literária ficaria livre, por
Os críticos literários negativos pressu­ um lado, de todas as acusações de irreverência
põem o direito de examinar a Bíblia de uma e abuso e, por outro, de um otimismo fácil e
maneira idêntica à que usariam para estudar infundado que reconheceria a solução para
literatura secular. N o entanto, é válido abor­ todos os problemas bíblicos como uma ques­
dar a Escritura como nada mais do que uma tão de simples compreensão.
coleção de escritos seculares? E científico ou A mesma falha é evidente no tratamento
sábio negligenciar o fato de que esses livros que os críticos dão à Bíblia com o resultado de
alegam ser resultado do sopro de Deus? um processo de evolução humana, de acordo
Um a decisão com o essa pode ser adiada com o qual uma parte da Escritura pode fa­
enquanto o estudo dos livros prossegue? Se cilmente contradizer a outra. Se a Bíblia foi
inspirada por Deus, essas não são contradi­ Corremos o risco de abandonar a afirmação de
ções, mas sim revelações complementares ou que o verbo se fez carne e de renunciar à histó­
progressivas de uma verdade única. ria da salvação, a obra de Deus por intermédio
A segunda objeção à crítica superior é que, de Jesus de Nazaré e Sua mensagem; estamos
ao falhar em aceitar a Bíblia pelo que ela é, na iminência perigosa de aproximarmo-nos do
críticos negativos inevitavelmente fracassam docetismo, segundo o qual Cristo é considera­
quando prosseguem em outros assuntos. Por do uma ideia. (J er e m ia s , 1957-1958, p. 335)
isso, acabam por mostrar sua fragilidade.
U m exemplo claro é o da velha busca Até mesmo os partidários de Bultmann
pelo Jesus histórico, a qual, conform e foi devem achar um pouco incongruente que sua
ressaltado, com simplicidade moldou o Theology o f the N ew Testament [Teologia do
C risto histórico à própria imagem do intér­ N ovo Testamento] ofereça apenas 30 páginas
prete. aos ensinamentos de Jesus, enquanto dedica
O utro exemplo é Bultmann, que, embo­ mais de 100 páginas a um relato imaginário da
ra tenha gozado de renome quase legendá­ teologia das chamadas comunidades helenis-
rio, é hoje cada vez mais abandonado por tas, das quais nada sabemos.
seus seguidores. Bultmann minimizou ao extremo a preo­
Eles perguntam: “Se, como declara Bultmann, cupação da Igreja primitiva com fatos da vi­
praticamente tudo o que temos sobre a histo- da de Jesus e sua dependência dele como
ricidade da fé cristã é a mera ‘experiência’ de Mestre. Em bora seja verdade que, com o o
Jesus Cristo, Sua existência, então por que erudito argumenta, os documentos bíblicos
isso? Por que a encarnação foi necessária? E , preocupam-se principalmente com a identi­
se ela não foi necessária ou se é impossível dade de Jesus com o Messias e com a revela­
mostrar por que ela foi necessária, o que evita ção que Ele trouxe do Pai, não é menos sig­
que a fé cristã decaia para o âmbito das ideias nificativa a compreensão deles de que Jesus
abstratas? E o que nesse caso distinguirá sua esteja revelado não em tratados teológicos
perspectiva da encarnação do docetismo ou ou mitologias cósmicas (com o no gnosticis-
do mito do Redentor gnóstico?”. m o), mas nos Evangelhos. A estrutura destes
Ernst Kaesemann, pastor protestante e é histórica.
teólogo, porto seguro de Bultmann, levan­ Além do mais, cada texto dos Evangelhos
tou essas questões na famosa referência à parece bradar que a origem da fé cristã não
reunião de antigos alunos da Universidade está nem em uma iluminação repentina dos
de Marburg em 1953. Ele argumentou: cristãos primitivos nem numa experiência re­
N ão podemos pôr de lado a identidade ligiosa evolucionista, todavia em fatos rela­
entre o Senhor exaltado e o terreno sem cair cionados a Jesus Cristo: Sua vida, morte e, em
no docetismo2, e nos privarmos da possibilida­ particular, Sua ressurreição. Justamente o
de de traçar uma linha entre a fé pascal da co ­ querigma, o anúncio das boas-novas de Jesus,
munidade e o mito. ( K a e s e m a n n , 1964, p. 34) proclama o evento histórico, que foi Jesus de
Alguns anos depois Joachim Jeremias, Nazaré quem morreu por nossos pecados, foi
especializado em hebraico e aramaico e uma sepultado e ressuscitou no terceiro dia, de
autoridade no campo do judaísmo rabínico acordo com as Escrituras (1 C o 15.3,4)3.
e do ambiente sociocultural de Jesus, ex­ A terceira objeção a esse tipo de crítica
pressou uma advertência semelhante à de superior é a mais importante. Tais críticos
Kaesemann: admitem um deus muito pequeno. Eles não
negam totalmente a existência de Deus, po­ da Bíblia de ser a Palavra de Deus assim como as
rém com certeza minimizam Sua imutabili­ palavras registradas por pessoas em particular,
dade e Sua presença. nesse caso deve lidar com a questão que envolve
Para esses críticos, Deus pode falar com ou a negação ou a resposta da fé.
uma pessoa, entretanto Ele não pode garantir o Quando o criticismo enfrenta o fato de
conteúdo da revelação ou preservá-la numa for­ que o “retrato” de Jesus que aparece nos
ma escrita confiável. Ele pode atuar na história, Evangelhos torna o homem humilde de N a­
contudo não pode agir de maneira miraculosa. zaré em Filho de Deus, deve perguntar se essa
Milagres são possíveis? Se são, então muito é ou não a interpretação correta, e, se é, é pre­
do que os críticos superiores desdenham como ciso aceitar esse ensino.
mitológico requer uma reivindicação muito Quando o criticismo confronta as afirma­
justa de ser histórico. Se os milagres aconte­ ções da Bíblia em relação a sua própria natu­
cem, o Deus dos milagres é capaz de revelá-los reza, deve perguntar e responder se a Escritu­
com autoridade e de modo infalível. ra é verdadeiramente a revelação expressa de
C om toda a sua alegada objetividade, em Deus. Se a resposta a essa pergunta for sim,
última análise, o criticismo moderno não um novo tipo de crítica emergirá.
consegue escapar de importantes questões: Essa nova crítica tratará as afirmações
Existe um Deus? O Deus da Bíblia é o verda­ bíblicas como sendo verdadeiras, buscará
deiro? Deus se manifestou na Bíblia e em Jesus afirmações complementares, em vez de con­
de Nazaré como ponto central da revelação tradições, e perceberá a voz de Deus (bem
escrita? Se, como foi sugerido, é necessário para como as vozes de pessoas) em toda parte. Tal
o criticismo lidar com a natureza completa do crítica será julgada pelas Escrituras, em vez
material escrito, em particular com a exigência do contrário.

N otas

1 Partes do material sobre a busca do Jesus histórico e sobre Bultmann já constaram no artigo pelo autor entitulado
N ew Vistas in Historical Jesus Research [Novas visões na pesquisa do Jesus histórico]. Chrístianity Today, 15 de
março de 1968, p. 3-6.
2 Docetismo (do grego õ o k é c o [dokeõ], para parecer) é o nome dado a uma doutrina cristã do século 2 considerada
herética pela Igreja primitiva. Antecedente do gnosticismo, o docetismo defendia que o corpo de Jesus Cristo era
uma ilusão e que Sua crucificação teria sido apenas aparente. Não existiam “docetas” enquanto seita ou religião es­
pecífica, mas como uma corrente de pensamento que atravessou diversos estratos da Igreja.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Docetismo)
3 Partes dessa crítica a Bultmann também se encontram em N ew Vistas in Historical Jesus Research [Novas visões na
pesquisa do Jesus histórico], p. 3-6.
C o m o in t e r p r e t a r a B íb l ia ?

Alguns livros devem ser provados, outros co? Aqueles que seguem essa abordagem apa­
devem ser engolidos, e poucos devem ser mas­ rentam ser conduzidos às crenças estranhas e
tigados e digeridos. Isso significa que alguns irracionais. Ou ela deve ser lida de uma ma­
devem ter apenas determinadas partes lidas; neira natural — da maneira com o leríamos
outros, porém, devem ser lidos sem curiosida­ qualquer outro livro? Essa última opção pa­
de, e poucos devem ser lidos em sua totalidade, rece adequada, entretanto é o propósito con­
com diligência e atenção. (B acon , 1955, p. 129) fesso da crítica superior naturalista, a qual
temos combatido. Sendo assim, qual seria a
Sir Francis Bacon foi um ensaísta, político abordagem do leitor ou do acadêmico cris­
e filósofo inglês do século 17 que não estava tão?
pensando com exclusividade na Bíblia quan­ A resposta é encontrada nas quatro mais
do escreveu essas palavras. Contudo, não há importantes verdades sobre a Bíblia, discu­
dúvida de que, se a advertência for “lida em tidas nos capítulos anteriores: 1. O autor
sua totalidade, com diligência e atenção”, po­ verdadeiro da Bíblia é D eus; 2. A Bíblia foi
derá ser aplicada inclusive às Escrituras, que dada a nós por intermédio de homens; 3. A
são a Palavra de Deus. Bíblia tem um propósito unificador, a saber,
A Bíblia é uma das ferramentas graciosas levar-nos a um conhecimento profundo e à
utilizadas por Deus para se revelar a homens adoração do Deus verdadeiro; e 4. Entender a
e mulheres. Deve ser tida na mais alta conta. Bíblia requer a operação sobrenatural do Espí­
O amor a Deus, o desejo de conhecê-lo me­ rito Santo, cujo trabalho é iluminar nossa inter­
lhor e de obedecer a Seus mandamentos de­ pretação. Os princípios essenciais do estudo
vem impelir-nos a estudá-la com zelo. da Palavra de Deus estão contidos nesses qua­
N o entanto, nesse caso um problema se tro pressupostos.
desenvolve. Se a Bíblia é o Livro de Deus, re­
velado a nós num período aproximado de Um l iv r o , um autor , um tem a _____________

1.500 anos por mais de 40 escritores huma­ A Escritura tem só um autor, e este é
nos, é óbvio que ela é diferente de qualquer Deus. A Bíblia também chegou até nós por
outro livro que tenhamos encontrado. Logo, intermédio de homens, porém mais impor­
os princípios de estudo seriam diferentes. tante é o fato de que ela, com o um todo e em
Quais seriam eles? todas as suas partes, procede de Deus. De
A Bíblia deve ser considerada espiritual­ maneira superficial, uma pessoa pode ver a
mente, isto é, num sentido místico ou mági­ Bíblia com o uma miscelânea de escritos
reunidos pelos acidentes da história. C ontu­ meio dos sacrifícios, tentavam agradá-lo e
do, a Palavra de Deus não é apenas uma co ­ desviar Sua ira de sobre eles. Essa parece ser a
leção de textos ao acaso. Ela é, com o J. I. ideia geral de sacrifício nas religiões pagãs da
Packer afirma, “um único Livro com um Antiguidade. Também era aceita pelos anti­
único autor (Deus Espírito) e um único te­ gos povos semitas.
ma: Deus Filho e os propósitos salvadores E m seu devido tem po, acredita-se que
do Pai, os quais se concentram na pessoa de tal visão primitiva de Deus cedeu lugar a
Jesus” ( P a c k e r , 1960, p. 84). uma concepção mais elevada dele. Deus não
A autoria da Bíblia induz a dois princípios foi mais visto com o um Deus de extrava­
de interpretação: o da unidade e o da não con­ gâncias, caprichos e ira, mas sim com o um
tradição. Considerados juntos, eles afirmam Deus de justiça. D aí a Lei com eçou a desta­
que, se a Bíblia procede verdadeiramente de car-se, substituindo o sacrifício com o cen­
Deus, e se Ele é um Deus genuíno, então: 1. as tro da religião.
partes do Livro devem harmonizar-se para Por fim, os adoradores evoluíram em seu
contar uma história; e 2. se duas partes pare­ entendimento a respeito de Deus, passando a
cem estar em oposição ou em contradição, considerá-lo um Deus de amor. Nesse ponto
nossa interpretação de uma ou de ambas deve o sacrifício desapareceu. Aquele que pensa
estar errada. dessa forma pode fixar o ponto crítico na
Nesse sentido, é possível concluir que, se vinda de Jesus Cristo e em Seus ensinamen­
um estudioso está despendendo seus esforços tos. P or isso, hoje desconsidera tanto os sa­
para ressaltar contradições no texto bíblico, crifícios com o a ideia de ira divina, enxergan­
ele, na verdade, está indicando com o podem do-os com o conceitos ultrapassados.
ser resolvidas; tal pessoa não está demons­ Em contraste, outra pessoa, como, por
trando sua sabedoria ou honestidade tanto exemplo, um evangélico, abordaria o material
quanto está demonstrando seu insucesso co­ com pressuposições diferentes e faria uma in­
mo intérprete da Palavra de Deus. terpretação completamente distinta. Ele co­
Muitos alegarão que tentar encontrar uni­ meçaria observando que o Antigo Testamento
dade em textos nos quais declaram não haver de fato revela muito sobre a ira de Deus. C on­
nenhuma é desonestidade. Todavia, o proble­ tudo, ambos concluiriam que esse elemento de
ma é mais de interpretação e pressuposições. maneira alguma é eliminado à medida que se
Tomemos com o exemplo os sacrifícios. prossegue na leitura da Bíblia, surgindo com
Todos reconhecem que os sacrifícios tiveram mais certeza no N ovo Testamento.
um papel importante no Antigo Testamento, A ira do Senhor é um dos temas mais im­
e que não são enfatizados no N ovo Testa­ portantes abordados por Paulo. Ela emerge
mento. P or que isso? Com o devemos consi­ com força no livro de Apocalipse, quando é
derá-los? Nesse caso é ventilada a ideia de mencionada sua execução contra os pecados
uma consciência religiosa em evolução, su- de um povo rebelde e ímpio.
pondo-se que os sacrifícios eram necessários N o que tange a sacrifícios, é verdade que
apenas nas mais primitivas formas de religião. estes são detalhados no Antigo Testamento e
Tais práticas podem ser explicadas pelo medo não são mais realizados no N ovo Testamen­
que o homem tinha dos deuses ou de Deus. to. Todavia, seu desaparecimento não é devi­
Se compreendemos dessa forma, admiti­ do a uma suposta concepção primitiva de
mos que Deus seria uma divindade capricho­ Deus que foi substituída por outra mais avan­
sa e vingativa, e que Seus adoradores, por çada, mas sim porque o sacrifício de Jesus

St
Cristo foi perfeito, definitivo, portanto su­ que não é múltiplo, mas único, esse texto po­
plantou todos os demais, como elucida o li­ derá ser estudado e compreendido por outros
vro de Hebreus. que falem com mais clareza (Atos 15.15; João
Para a pessoa que adquire essa compreen­ 5.46; 2 Pedro 1.20,21). (I, IX )
são, a solução não é encontrada numa con­
cepção evolutiva de Deus. Para ela, Deus é O COMPONENTE HUMANO___________________

sempre o mesmo — um Deus de ira contra o Um a segunda verdade sobre a Bíblia é


pecado, um Deus de amor pelo pecador. que ela foi dada a nós por intermédio de ho­
Isso, na verdade, pode ser observado na mens, embora Deus seja a fonte suprema das
revelação progressiva de Deus de si mesmo à Escrituras.
humanidade, uma revelação em que os sacri­ Seu componente humano não significa
fícios (para os quais o Senhor deu instruções que a Bíblia esteja sujeita a erros como os li­
específicas) tinham a intenção de expor de vros comuns. Entretanto, todos os princípios
modo claro a natureza do pecado e servir de sensatos de interpretação devem ser usados
representação da obra salvífica de Cristo. ao estudar a Palavra, com a mesma precisão
João Batista foi capaz de afirmar, referindo- com que têm de ser empregados no estudo de
-se ao sistema sacrificial da vida judaica antiga qualquer outro documento antigo.
que todos compreenderiam: Eis o Cordeiro de Deus usou diversos homens para escrever
Deus, que tira o pecado do mundo (Jo 1.29). a Bíblia como instrumentos para que, pelas
Pedro escreveu: Escrituras, o ser humano o conheça. P or con­
seqüência, a única maneira apropriada de in­
Sabendo que não foi com coisas corruptí­ terpretar a Bíblia é descobrir, com o auxílio
veis, como prata ou ouro, que fostes resga­ do Espírito Santo, o que os escritores se pre­
tados da vossa vã maneira de viver que, por ocuparam em expressar.
tradição, recebestes dos vossos pais, mas E essencial à interpretação adequada que
com o precioso sangue de Cristo, como de cada afirmação bíblica seja considerada num
um cordeiro imaculado e incontaminado. contexto, isto é, dentro do contexto do capí­
1 Pedro 1.18,19 tulo, do livro e, por fim, da Palavra de Deus
como um todo.
Nesse exemplo concernente a duas formas Entender o contexto é uma necessidade
de percepção dos sacrifícios, como em todos óbvia na interpretação de qualquer documen­
os casos de interpretação bíblica, os dados são to. Deslocar uma afirmativa do contexto é
os mesmos. A única diferença é que uma re­ quase sempre enganoso. E preciso estar pre­
corre à Escritura procurando contradição e venido contra isso ao interpretar a Bíblia em
desenvolvimento, enquanto outra considera a especial, uma vez que pessoas que creem nela
Escritura como se Deus a tivesse escrito, lo­ consideram com tanta seriedade as palavras
go, procura unidade, permitindo que uma da Escritura que às vezes dão mais importân­
passagem esclareça a outra. cia ao texto do que ao contexto.
A Confissão de Westminster1 declara: Frank E. Gaebelein, autor de um livro de
grande valia para a interpretação da Bíblia,
A regra infalível de interpretação da Escritura é afirma:
usar a própria Escritura; portanto, quando
houver questão sobre o verdadeiro e pleno Percebendo que a Bíblia é a Palavra de Deus
sentido de qualquer texto da Bíblia, sentido inspirada, o leitor devoto atribui peculiar

< fô
importância a cada afirmação que ela contém. O resultado de uma interpretação literal
Essa reverência é recomendável; porém, quan­ dessa passagem é uma figura deformada.
do ela descende à prática de considerar versos P or outro lado, quando se descobre que
isolados como prova de todo tipo de coisa, cada uma dessas características é uma imagem
torna-se definitivamente perigosa. Se isso fosse associada a Deus no Antigo Testamento, a
um método sensato de interpretação, seria pos­ visão nos proporciona um retrato de Jesus
sível encontrar respaldo bíblico para todo tipo que o concebe como um com Deus Pai em
de crime, de bebedeira a assassinato e de men­ todos os Seus atributos: santo, eterno, onis­
tira a engano. (G a e b e l e in , 1950, p. 134) ciente, onipresente, revelador e soberano.
A questão do estilo também deve ser comen­
A Bíblia por si fala da necessidade de in­ tada no caso das parábolas do Novo Testamen­
terpretação adequada: to. O uso de parábolas era um método especial
de ensino, e tem de ser reconhecido como tal.
Procura apresentar-te a Deus aprovado, co­ Em geral uma parábola estabelece um ou,
mo obreiro que não tem de que se envergo­ no máximo, alguns pontos principais. Por
nhar, que maneja bem apalavra da verdade. conseqüência, é um erro tentar aplicar uma
2 Timóteo 2.15 interpretação a cada detalhe da história. Por
exemplo, a tentativa de atribuir um significa­
Nesse versículo, a exoressão traduzida co­ do às bolotas, aos porcos e outros detalhes da
mo que maneja bem significa que corta reto parábola do filho pródigo é absurda.
ou manipula corretamente. Uma terceira necessidade a ser considerada
U m a segunda necessidade a ser considera­ no tocante à interpretação bíblica é imaginar o
da é o estilo do material, para que a interpre­ propósito por que uma passagem em particular
tação se dê de acordo com sua estrutura. foi escrita. Em outras palavras, precisamos levar
Levar em conta o estilo é importante ao lidar em conta seu escopo.
com literatura poética com o os livros de Sal­ Gaebelein escreveu:
mos, Provérbios, Jó , e mesmo partes dos
profetas. A Bíblia tem um único propósito principal. Ela
Os livros poéticos com frequência empre­ foi escrita para revelar o amor de Deus mani­
gam símbolos e imagens, que são mal interpre­ festo na providência divina da salvação por in­
tados se as metáforas são compreendidas de termédio do nosso Senhor Jesus Cristo. Esse é
forma literal. o objetivo das Escrituras, e uma interpretação
O livro de Apocalipse não é para ser enten­ sensata nunca deve perder o foco desse objetivo.
dido dessa forma em todas as suas partes, co­ Como conseqüência, é um erro sério e engano­
mo, por exemplo, na que concerne à visão de so considerar a Bíblia como um livro de referên­
João descrita nos versículos 14 e 15 de seu pri­ cia em ciência, filosofia ou outra área de estudo
meiro capítulo. cujo tema central não seja a divindade em rela­
ção à humanidade. Afinal, existe um escopo
E a sua cabeça e cabelos eram brancos co­ próprio da Escritura, um âmbito determinado
mo lã branca, como a neve, e os olhos, co­ não por escritores individuais, mesmo sendo
mo chama de fogo; e os seus pés, semelhan­ inspirados, mas pelo Autor divino de todo o
tes a latão reluzente, como se tivesse sido Livro. Não se pode responsabilizar a Bíblia por
refinado num a fornalha; e a sua voz, como campos do conhecimento fora do escopo deli­
a voz de muitas águas. neado para ela. (G a e bel ein , 1950, p. 138-139)
Um a aplicação óbvia disso pode dar-se em chamado de método histórico-literal de inter­
relação àquelas referências que pareciam tan­ pretação bíblica.
to incomodar Rudolf Bultmann, nas quais se O método simplesmente quer mostrar,
supõe que o céu esteja em cima e o inferno como Packer coloca, “o sentido natural, ade­
embaixo. quado, de cada passagem, isto é, o sentido
De novo, uma consideração do propósito intencional do escritor deve ser considerado
ou escopo se aplica às passagens sobre ossos como fundamental” (P a c k e r , 1960, p .102,103).
clamando, vísceras desejando, rins esclarecendo O sentido intencional das palavras em seu
e ouvidos julgando. Declara-se com frequência próprio contexto e no discurso do escritor é o
que tais expressões transmitem uma noção equi­ ponto de partida.
vocada do universo e da fisiologia humana, en­
tretanto isso é absurdo. Todas mostram que os Em outras palavras, as afirmações da Escritura
escritores bíblicos lançaram mão da linguagem devem ser interpretadas à luz das regras de gra­
da época deles, para que fossem compreendi­ mática e discurso, por um lado, e, por outro, do
dos. O uso de tais expressões não é mais cientí­ seu próprio lugar na história. Isso é o que deve­
fico do que o uso de frases como “andando nas mos esperar na natureza do caso, percebendo
nuvens”, “um nó na garganta”, “do fundo do que os livros bíblicos originaram-se como docu­
meu coração”, entre outras. mentos ocasionais direcionados às platéias con­
N em sempre é fácil determinar se uma temporâneas. Isso é exemplificado na exposição
passagem bíblica está escrita em linguagem do Antigo Testamento apresentada no Novo
literal ou figurada. Por isso, devemos ser cui­ Testamento, no qual a extravagante alegorização
dadosos. O mais importante é ter consciência praticada por Fílon2 e os Rabinos está espanto­
do problema e, com atenção, buscar o alcance samente ausente. (P a c k e r , 1960, p. 102-103)
verdadeiro do texto. Ao tentar entender seu
propósito, é imprescindível perguntar: Para O princípio é baseado no fato de que a Bí
quem foi escrito? Quem escreveu? Quando blia é a Palavra de Deus em linguagem huma­
foi escrito? O que afirma? na. Significa que a Escritura deve ser interpre­
Um a quarta necessidade no que diz res­ tada no seu sentido natural, e não se pode
peito à interpretação é atentar para o signifi­ permitir que as preferências teológicas ou cul­
cado das palavras isoladas. É possível que turais obscureçam o significado fundamental.
Deus pense sem precisar de palavras ou ou­
tros símbolos, porém nós não conseguimos. R espo n d en d o à P a l a v r a ____________________

Assim, o significado das palavras e o uso iso­ A terceira verdade sobre a Bíblia é que ela
lado delas são de grande importância. Quan­ nos foi dada por Deus para provocar em nós
do falhamos ao levá-las em consideração, é uma resposta pessoal. Se não nos dispomos
inevitável interpretarmos de maneira errada. para que isso aconteça, é inevitável usarmos
E óbvio que estudiosos da Bíblia não po­ mal a Palavra; mesmo a estudando, interpre­
dem deixar de dar atenção minuciosa ao signi­ tamos de modo equivocado.
ficado preciso das palavras. Estudos desse tipo Certa ocasião Jesus disse aos líderes ju­
por si só podem ser recompensadores; palavras deus de Seu tempo:
como fé, salvação, justiça, amor, espírito, gló­
ria, igreja e muitas outras são fascinantes. Examinais as Escrituras, porque vós cuidais
O resumo dos pontos que têm sido deline­ ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim
ados até agora está contido no que veio a ser testificam. E não quereis vir a mim para
terdes vida. Eu não recebo glória dos ho­ Lei do Antigo Testamento, transmitida por
mens, mas bem vos conheço, que não tendes intermédio de Moisés, testifica.
em vós o amor de Deus. Como podeis vós A mesma coisa acontece quando as pes­
crer, recebendo honra uns dos outros e não soas compram uma Bíblia bonita para colocar
buscando a honra que vem só de D eus? num lugar de destaque em casa, porém não a
João 5.39-42,44 leem. Por que fazem isso? Elas acreditam que
a Bíblia é algo especial, por isso a reveren­
Ninguém poderia acusar os judeus do ciam. Todavia, sua crença não vai além da su­
tempo de Cristo de desdenhar das Escrituras, perstição. Com o resultado, nunca a leem e
pois eles na verdade as tinham na mais alta nunca entram em contato com seu Autor.
conta. Também não poderiam ser acusados de Jesus disse que saberemos a verdade sobre
falta de estudo meticuloso. Os judeus real­ Ele apenas se estivermos dispostos a fazer a Sua
mente estudavam as Escrituras. vontade, ou seja, se nos permitirmos ser trans­
Contudo, em sua estima pela Bíblia, eles formados pelas verdades encontradas nas Escri­
perderam de vista a intenção dela: transformar turas. Ele afirmou: Se alguém quiser fazer a
vidas. Embora tivessem ganhado aclamação vontade dele [de Deus], pela mesma doutrina,
humana por seu conhecimento detalhado da conhecerá se ela é de Deus ou se eu falo de mim
Palavra, muitos deles não receberam a salvação. mesmo (Jo 7.17). N ão devemos tomar por certo
N o Evangelho de João lemos sobre a cura que vamos entender de forma plena qualquer
de um homem cego de nascença. A parte mais passagem da Palavra de Deus, a não ser que es­
importante da história está no fato de que, co­ tejamos dispostos a ser modificados por ela.
mo todo mundo, ele também era espiritualmen­
te cego antes que Cristo o tivesse tocado. De­ O t e s t e m u n h o in t e r io r d o E s p ír it o

pois disso, o homem adquiriu visão espiritual. U m ponto final na discussão sobre a inter­
Quando o cego foi curado, ele entrou em pretação bíblica está no testemunho interior
conflito com os principais judeus. Estes sabiam do Espírito sobre a verdade da Palavra de Deus.
sobre Jesus, entretanto não criam nele. N a ver­ Nesse sentido, a Escritura fala de forma sucinta.
dade, não criam nele como deveriam por causa O Espírito não apenas foi ativo na confecção
da atitude que tinham em relação à Escritura. dos livros bíblicos, mas também o é ao trans­
Para esses homens, a revelação registrada no mitir a verdade da Bíblia àqueles que a leem.
Antigo Testamento era um fim em si mesma. Paulo escreveu:
Nada poderia ser adicionado e nada era exigido.
Os líderes judeus disseram: Nós bem sa­ Mas nós não recebemos o espírito do m un­
bemos que D eus falou a Moisés, mas este não do, mas o Espírito que provém de Deus,
sabemos de onde é (Jo 9.29). O homem que para que pudéssemos conhecer o que nos é
havia nascido cego não tentou competir com dado gratuitamente p or Deus. As quais
a mestria deles no Antigo Testamento, no en­ também falamos, não com palavras de sa­
tanto apontou para o fato inquestionável de bedoria humana, mas com as que o Espíri­
sua cura. Ele concluiu: Se este não fosse de to Santo ensina, comparando as coisas espi­
Deus, nada poderia fa z er (v. 33). rituais com as espirituais.
Ao tratar o Antigo Testamento como um 1 Coríntios 2.12,13
fim em si mesmo, os judeus, na verdade, per­
verteram seu verdadeiro significado. Eles não A Bíblia lida com temas espirituais, por­
perceberam que é precisamente de Jesus que a tanto é necessário o auxílio do Espírito Santo


para que possamos entendê-la. Ele é quem Se, entretanto, vocês não ouvirem, nunca sa­
nos ensina. E o Espírito que traz vida nova berão nada. Por isso, é decretado: Deus não
para aqueles que ouvem o evangelho. será visto, conhecido ou compreendido, ex­
Devemos orar quando estudamos as E s­ ceto pela Palavra. Então, o que quer que al­
crituras, e pedir que o Espírito Santo realize guém dedique à salvação fora da Palavra
Sua obra de iluminar nosso coração. A pre­ será em vão. Deus não responderá a isso.
sença do Espírito não nos é dada para tornar Ele não aceitará; não o tolerará de modo al­
um estudo diligente e cuidadoso da Palavra gum. Portanto, permita que o Livro dele,
de Deus desnecessário. Ela nos é dada para pelo qual Ele fala com você, seja recomen­
tornar nosso estudo eficaz. Deus fala por dado a você, porque o Senhor não fez com
meio da Bíblia. Temos de permitir que Ele que a Bíblia fosse escrita em vão. Ele não
fale, e temos de ouvi-lo. queria que a negligenciássemos, como se es­
N o apogeu da Reforma pediram a Marti- tivesse falando com camundongos debaixo
nho Lutero que autografasse a folha em bran­ do banco ou com moscas no púlpito. Deve­
co no início da Bíblia, como acontecia com mos ler a Bíblia, pensar e falar sobre ela e
frequência após sua própria tradução ter sido estudá-la, certos de que Deus, não um anjo
publicada. Ele pegou a Bíblia e escreveu João ou uma criatura, está falando conosco nela.
8.25: Quem, és tu?\...~\ Isso mesmo que já desde (P l a ss , 1 9 5 9 , p. 8 1 )
o princípio vos disse. E adicionou:
Aquele que lê a Bíblia em oração, de ma­
Eles [...] desejam conhecer quem Jesus é e neira reflexiva e receptiva, descobrirá que de
não considerar o que Ele afirma, enquanto o fato ela é a Palavra de Deus, e que éproveitosa
Senhor deseja que eles primeiro ouçam; as­ para ensinar, para redargüir, para corrigir, pa­
sim, saberão quem Ele é. A regra é: no come­ ra instruir em justiça, para que o hom em de
ço ouça e permita que a Palavra opere; depois D eus seja perfeito e perfeitamente instruído
o conhecimento se seguirá com tranqüilidade. para toda boa obra (2 Tm 3.16,17).

N o tas

1 A Confissão de Fé de Westminster é uma confissão de fé reformada de orientação calvinista. Adotada por muitas
igrejas presbiterianas e reformadas em todo o mundo, essa confissão de fé foi produzida pela Assembleia de
Westminster e aprovada pelo parlamento inglês em 1643.
(Fonte:http://pt.wikipedia.org/wiki/Confissão_de_Fé_de_Westminster)

2 Fílon de Alexandria foi um filósofo judeu (25 a.C.-50 d.C.) que viveu durante o período do helenismo. Tentou uma
interpretação do Antigo Testamento à luz das categorias elaboradas pela filosofia grega e da alegoria. Foi autor de
numerosas obras filosóficas e históricas, nas quais expôs sua visão platônica do judaísmo.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org /wiki/Fílon_de_Alexandria)

âó'
Pa r t e

3
Os atributos de Deus

Tua é, SENHOR, a magnificência, e o poder, e a honra, e a vitória, e a majestade; porque


teu é tudo quanto há nos céus e na terra; teu é, SENHOR, o reino, e tu te exaltaste sobre
todos como chefe.
1 Crônicas 29.11

E os quatro animais tinham, cada um, respectivamente, seis asas e, ao redor e por dentro,
estavam cheios de olhos; e não descansam nem de dia nem de noite, dizendo: Santo,
Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-poderoso, que era, e que é, e que há de vir.
Apocalipse 4.8

Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão inson-
dáveis são os seusjuízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos/ Porque quem compreen­
deu o intento do Senhor? Ou quem jõi seu conselheiro?
Romanos 11.33,34
O D eu s v e r d a d e ir o

evidente que precisamos de mais Israel, já tinha consciência do Deus verdadeiro,


do que um conhecimento teórico pois havia nascido em uma família temente ao
sobre Deus. Mas, podemos conhe- Senhor. Ainda assim, quando Deus disse que o
cê-lo apenas quando Ele se revela enviaria ao Egito e que por intermédio dele
a nós nas Escrituras, e não podemos com ­ livraria o povo de Israel, Moisés respondeu:
preender as Escrituras até que estejamos dis­
postos a ser transformados por elas. O co ­ Então, disse Moisés a Deus: Eis que quan­
nhecimento de Deus só ocorre quando do vier aos filhos de Israel e lhes disser: O
reconhecemos nossa profunda necessidade D eus de vossos pais m e enviou a vós; e eles
espiritual e tornam o-nos receptivos à Sua m e disserem: Q ual é o seu n om e? Q ue lhes
graciosa provisão por meio da obra de C ris­ direi? E disse D eus a Moisés: E U S O U O
to e da aplicação dessa obra em nossa vida Q U E S O U [...]. Assim dirás aos filhos de
pelo Espírito Santo. Israel: E U S O U m e enviou a vós.
C om base nisso, voltamos à questão con­ Êxodo 3.13,14
cernente ao próprio Deus e perguntamos:
Quem é Deus? Quem é esse que se revela nas A denominação E U S O U O Q U E S O U
Escrituras na pessoa de Jesus Cristo e na do está ligada ao nome antigo de Deus, Jeová.
Espírito Santo? Talvez admitamos que um Todavia, isso é mais que um nome; é um no­
conhecimento verdadeiro de Deus pode me descritivo, apontando para tudo o que
transformar-nos. Talvez até estejamos dispos­ Deus é em si mesmo. Em particular, mostra
tos a mudar. Todavia, por onde começamos? que Ele é aquele que é totalmente autoexis­
tente, autossuficiente e eterno.
A utoexistente __________________ _____ Esses são conceitos abstratos, mas impor­
Já que na Bíblia prevalece a unidade, po­ tantes, pois tais características, mais do que
demos responder a essas questões partindo de quaisquer outras, diferenciam Deus de Sua
qualquer afirmativa constante nela. Podemos criação e revelam o que Ele é. Deus é perfeito
começar por Apocalipse 22.21 tanto como em todos os Seus atributos.
por Gênesis 1.1. Contudo, há algumas virtudes divinas
Contudo, não há melhor passagem para que nós, criados à imagem e semelhança de
tomar como base do que a da revelação de Deus, compartilhamos. P or exemplo, Deus é
Deus de si mesmo na sarça ardente. Mesmo perfeito em Seu amor; porém, por Sua graça,
antes desse episódio, Moisés, o grande líder de nós também amamos. Ele é totalmente sábio;
entretanto, também temos uma medida de Causa e efeito apontam para Deus, entre­
sabedoria. Ele é todo-poderoso; nós exerce­ tanto — essa é a questão — apontam para um
mos um poder, ainda que limitado. Deus que está fora do nosso alcance, para
N o entanto, não é assim em relação à au- aquele que está além de nós em tudo. Eles
toexistência de Deus, à Sua autossuficiência indicam que Deus não pode ser conhecido ou
e eternidade. Só Ele possui essas característi­ avaliado com o as outras coisas podem.
cas. O Senhor existe nele mesmo e por si A. W. Tozer percebeu que essa é uma ra­
mesmo; nós não. Ele é autossuficiente; nós zão pela qual a filosofia e a ciência nem sem­
não. Ele é eterno, mas nós acabamos de “en­ pre simpatizaram com a ideia de Deus. Essas
trar em cena”. disciplinas são dedicadas à tarefa de explicar
A autoexistência consiste em que Deus as coisas como as conhecemos, e são impa­
não foi criado por outrem e, por conseqüência, cientes com tudo o que não se deixa explicar.
não deve explicações a ninguém. Filósofos e cientistas admitem que há
Matthew Henry declarou em Commentary muito que eles não sabem. Contudo, diferen­
on the Whole Bible: te disso é admitir que há alguma coisa que
nunca poderão conhecer por completo e que,
O maior e melhor homem do mundo pode di­ na verdade, não desvendam porque a tecnolo­
zer ‘pela graça de Deus eu sou o que sou’, mas gia de que dispõem é insuficiente.
Deus declara de forma absoluta — e isso é mais Para encontrar Deus, cientistas podem
do que qualquer criatura, homem ou anjo possa tentar rebaixá-lo ao nível deles, definindo-o
afirmar — Eu sou o que sou. (H en ry , p. 284). com o uma lei natural, evolução ou algum
princípio desse tipo. N o entanto, ainda assim
Assim, Deus não tem princípio nem fim; Deus lhes escapa. H á mais sobre Ele do que
Sua existência não depende de ninguém. qualquer desses conceitos é capaz de delinear.
A autoexistência é um conceito difícil pa­ Talvez, também, seja por isso que pessoas
ra nós entendermos porque significa que que creem na Bíblia parecem passar pouco tem­
Deus, com o é em si mesmo, é impossível de po pensando sobre a pessoa e o caráter de Deus.
ser conhecido. Tudo o que vemos, cheira­ Em Conhecimento do sagrado, Tozer es­
mos, ouvimos, provamos ou tocamos tem creveu:
uma causa. N ão conseguimos pensar em ne­
nhuma outra categoria. Poucos de nós deixam o coração contemplar
Qualquer coisa que observemos tem de maravilhado o E U SOU, o Ser autoexistente,
ter uma causa adequada para explicá-la. Bus­ que nenhuma criatura pode compreender. Tal
camos por isso. Causa e efeito são até mesmo entendimento é muito doloroso para nós. Prefe­
a base para a crença em Deus nutrida por rimos pensar no que nos trará melhor proveito
aqueles que não o conhecem. — como construir uma ratoeira mais eficaz, por
Tais pessoas acreditam em Deus não por­ exemplo, ou como fazer duas camadas de grama
que tiveram uma experiência pessoal com crescerem onde antes só crescia uma. Por isso,
Ele ou porque o descobriram nas Escrituras, estamos pagando um preço alto demais pela se-
porém simplesmente porque inferem Sua cularização de nossa religião e pela decadência
existência. Elas raciocinam da seguinte for­ de nosso ser interior. (T o z e r , 1961, p. 34)
ma: “tudo vem de alguma coisa; portanto,
deve haver um grande ser que está por trás A autoexistência de Deus significa que Ele
de tudo”. não deve satisfações a nós nem a ninguém, e

JO
não gostamos disso. Queremos que o Senhor glória externa de Sua graça que advém de Seus
se explique, para justificar Suas ações. Em bo­ redimidos, pois Ele é glorioso o suficiente em
ra Ele às vezes o faça, não tem obrigação, e si mesmo sem isso. O que o moveu a predes­
com frequência não o faz. tinar Seus eleitos para o louvor da glória de
Sua graça?
A uto ssuficiente ______________________ Foi como está escrito em Efésios 1.5: segundo o
A segunda qualidade de Deus comunicada beneplácito de sua vontade. A força disso é que
a nós pelo nome E u sou o que sou é a autossu- é impossível fazer com que o Todo-poderoso
ficiência. E possível ter pelo menos um senso fique obrigado com a criatura; Deus não lucra
de significado desse termo abstrato. Ser autos­ nada conosco. (P in k , p. 2,3)
suficiente significa não depender de ninguém.
Nesse caso vamos de encontro a uma ideia Tozer ressaltou o mesmo ponto:
difundida e popular: Deus coopera com o ho­
mem, e vice-versa; cada um suprindo o que Se toda a humanidade repentinamente se tor­
falta no outro. Imagina-se, por exemplo, que nasse cega, ainda assim o sol brilharia todos
Deus sente falta de glória, por isso criou ho­ os dias e as estrelas à noite, pois estes não de­
mens e mulheres para supri-la. Deus cuida vem nada aos milhões que eles beneficiam com
deles como recompensa. Ou então, imagina- sua luz. Da mesma forma, se todos os homens
-se que Deus precisa de amor, e criou homens se tornassem ateus, isso não afetaria Deus de
e mulheres para amá-lo. Alguns falam da cria­ modo algum. Ele é o que é em si mesmo sem
ção com o se Deus fosse solitário e nos tivesse dizer respeito a nenhum outro. Crer nele não
criado para lhe fazer companhia. adiciona nada à Sua perfeição, e duvidar dele
Em um nível prático vemos o mesmo po­ não lhe subtrai nada. (T o z e r , 1961, p. 40).
sicionamento naqueles que imaginam que
homens e mulheres são imprescindíveis para Deus também não precisa de ajudadores.
executar o plano de Deus de salvação com o Essa verdade é mais difícil ainda para aceitar­
testemunhas e defensores da fé, esquecendo mos do que qualquer outra. Isso porque ima­
que Jesus declarou que até destas pedras p o ­ ginamos Deus como a figura de um avô, sim­
de D eus suscitar filhos a Abraão ( Lc 3.8). pático, porém quase patético, alvoroçado para
Deus não precisa de adoradores. Arthur ver quem Ele pode encontrar para ajudá-lo a
W. Pink, que escreveu sobre esse tema em The administrar o mundo e salvar a humanidade.
Attributes o f God [Os atributos de Deus], en­ Que caricatura!
fatizou: C om certeza, o Senhor confiou a nós um
trabalho de administração. Ele disse a Adão
Deus não estava sob nenhuma pressão, nenhu­ e Eva no Éden: Frutificai, e multiplicai-vos,
ma obrigação, nenhuma necessidade para criar. e enchei a terra, e sujeitai-a; e dom inai so­
Ele ter escolhido fazê-lo foi puramente um ato bre os peixes do mar, e sobre as aves dos
soberano de Sua parte, provocado por nada ex­ céus, e sobre todo o anim al qu e se m ove so­
terior a Ele mesmo, determinado por nada além b re a terra (G n 1.28). Deus também deu a
de Seu bel-prazer, pois Ele faz todas as coisas, todos os que creem uma comissão: Id e p or
segundo o conselho da sua vontade (Ef 1.11). todo o m undo, p rega i o evangelho a toda
Ele ter criado foi simplesmente para Sua mani­ criatura (M c 16.15).
festa glória [...]. Deus não tira proveito de nos­ A verdade, entretanto, é que nenhum as­
sa adoração. Ele não estava com necessidade da pecto da disposição de Sua criação tem um
fundamento em si mesmo. Deus escolheu fa­ Porque Deus é suficiente, podemos des­
zer as coisas dessa forma. Ele não precisava cansar nessa suficiência e trabalhar com efici­
fazê-las. Poderia tê-las feito de inúmeras ou­ ência para Ele. Deus não precisa de nós. Mas
tras maneiras. O Senhor escolheu agir assim a alegria de vir a conhecê-lo está em aprender
porque depende unicamente do exercício li­ que Ele, apesar disso, trabalha naqueles e por
vre e soberano de Sua vontade. meio daqueles que são Seus filhos, portanto
Declarar que Deus é autossuficiente tam­ crentes e obedientes.
bém significa que Deus não precisa de defen­
sores. E claro, temos a oportunidade de falar E t e r n o ________________________________________

em Seu favor perante aqueles que desonram Um a terceira qualidade contida no nome
Seu nome e difamam Seu caráter. Devemos de Deus revelado a Moisés, E u sou o que sou,
fazer isso. Contudo, mesmo que falhemos, é a perenidade, perpetuidade ou eternidade. É
não devemos pensar que Deus é prejudicado difícil encerrar tal característica em uma pala­
por isso. Ele não precisa ser defendido, pois é vra, porém significa simplesmente que Deus
como é e permanecerá assim a despeito dos sempre foi e sempre será, e que é imutável.
ataques arrogantes e pecaminosos de pessoas Encontramos esse atributo divino em todas
más. U m Deus que precisa ser defendido não as partes da Bíblia.
é Deus. N a verdade, o Deus da Bíblia é auto- Abraão chamava Jeová de D eus eterno
existente e verdadeiro defensor de Seu povo. (Gn 21.33). Moisés escreveu:
Quando nos damos conta de que Deus é o
único verdadeiro e autossuficiente, começa­ S E N H O R , tu tens sido o nosso refúgio, de
mos a entender por que a Bíblia tem tanto a geração em geração. Antes que os montes
dizer sobre a necessidade da fé somente nele e nascessem, ou que tu formasses a terra e o
porque não crer em Deus traz conseqüências mundo, sim, de eternidade a eternidade,
tão graves. tu és Deus.
Tozer escreveu: Salmo 90.1,2

De todos os seres criados, nenhum se atreve a O livro de Apocalipse descreve Deus como
confiar em si mesmo. Somente Deus o faz; os o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim (Ap 1.8;
outros seres precisam confiar nele. A descrença 21.6; 22.13). De acordo com a visão de João, as
na verdade é uma fé pervertida, pois coloca sua criaturas diante do Seu trono diziam: Santo,
confiança não no Deus vivo, mas no homem Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-podero-
perecível. (T o z e r , 1961, p. 42) so, que era, e que é, e que há de vir (Ap 4.8).
O fato de que Deus é eterno traz duas
Se nos recusamos a ter fé em Deus, o que grandes conseqüências para nós. A primeira é
estamos mostrando é que ou nós ou outra que é possível confiar nele porque Ele perma­
pessoa ou coisa merece mais nossa confiança. necerá como revela ser. Em geral a palavra
Isso é calúnia contra o caráter de Deus, e é usada para descrever essa característica é imu­
vaidade. N ada além dele é autossuficiente. tabilidade, que significa invariabilidade. Toda
Por outro lado, se começamos a confiar no boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto,
Senhor, encontramos um fundamento sólido descendo do Pai das luzes, em quem não há
para toda a nossa vida. Deus é suficiente, e mudança, nem sombra de variação (Tg 1.17).
podemos confiar em Sua Palavra para tudo o Deus é imutável em Seus atributos. Por
que Ele criou. isso, não devemos temer, por exemplo, que o
Deus que uma vez nos amou em Cristo de O conselho do S E N H O R perm anece para
alguma forma mude de ideia e deixe de amar- sempre; os intentos do seu coração, de g e­
-nos no futuro. O Senhor sempre é amor em ração em geração.
relação a Seu povo. Salmo 33.11
De maneira semelhante, não devemos
pensar que Ele talvez mude Sua atitude em Tais afirmações proporcionam grande
relação ao pecado, de modo que comece a conforto ao povo de Deus. Se o Senhor fos­
classificar com o permissível algo que sempre se com o nós, não poderíamos confiar nele.
foi proibido. O pecado continuará sendo pe­ Ele mudaria, e, com o resultado disso, Sua
cado porque é definido como qualquer trans­ vontade e Suas promessas mudariam. N ão
gressão ou falta conforme a Lei de Deus, que poderíamos depender dele. N o entanto,
é imutável. Deus permanecerá santo, sábio, Deus não é com o nós. Ele não muda. C om o
gracioso, justo e tudo o mais que se revele conseqüência, Seus propósitos permanecem
ser. N ada que possamos fazer mudará o os mesmos de geração a geração.
Deus eterno. A rthur Pink declarou em Atributos de
Deus também é imutável em Seus desíg­ Deus\
nios. Ele faz o que predeterminou que faria, e
não há variação em Sua vontade. Algumas Aqui, pois, está a rocha sobre a qual podemos
pessoas tentam mostrar, baseadas em deter­ fixar nossos pés, enquanto a poderosa torrente
minados versos da Bíblia, que Deus se arre­ varre tudo ao nosso redor. A permanência do
pendeu de um ato, como em Gênesis 6.6: caráter de Deus garante o cumprimento de Su­
Então, arrependeu-se o S E N H O R de haver as promessas. (P in k , p. 4 1 )
feito o hom em sobre a terra.
Nesse exemplo, o verbo arrepender-se é A segunda maior conseqüência da eterni­
usado para indicar o severo desprazer do Se­ dade de Deus para nós é que Ele é inevitável.
nhor com as atividades do homem. N o entan­ Se o Senhor fosse um mero humano, e não
to, o conceito que temos de arrependimento gostássemos dele ou do que Ele faz, podería­
não se aplica a Deus, com o pode ser constata­ mos ignorá-lo sabendo que Ele teria a opção
do nos textos a seguir: de mudar, afastar-se de nós ou morrer.
N o entanto, Deus não muda de ideia. Ele
D eus não é homem, para que minta; nem não se afasta nem vai morrer. C om o conse­
filho de homem, para que se arrependa; qüência, não podemos escapar dele. Mesmo
porventura, diria ele e não o faria? Ou fa ­ que o ignoremos agora, teremos de prestar-lhe
laria e não o confirmaria? contas de nossos atos no porvir. Se o rejeitar­
N úm eros 23.19 mos hoje, teremos de, por fim, enfrentar
Aquele que rejeitamos e experimentar Sua
E também aquele que é a Força de Israel eterna rejeição a nós.
não m ente nem se arrepende; porquanto
não é um homem, para que se arrependa. N enh um o utro D eus __________________
1 Samuel 15.29 Somos levados a uma conclusão natural:
devemos buscar e adorar o Deus verdadeiro.
Porque os dons e a vocação de D eus são Este capítulo é baseado em sua maior parte
sem arrependimento. em Êxodo 3.14, passagem em que Deus reve­
Romanos 11.29 la a Moisés o nome pelo qual Ele deseja ser
conhecido. Tal revelação convergiu para a li­ Assim, Deus nos mostra nesses versículos
bertação de Israel do Egito. Após o êxodo, que qualquer representação física dele é uma
Deus fez uma revelação no monte Sinai que desonra. Por quê? Primeiro porque ela obs-
se aplica à revelação anterior dele mesmo co ­ curece Sua glória, pois nada visível é capaz de
mo o Deus verdadeiro e à vida religiosa e de sequer representá-lo de maneira adequada.
adoração da nação liberta. Segundo porque isso desvirtua aqueles que o
adoram.
E u sou o S E N H O R , teu Deus, que te tirei Esse erro pode ser observado no episódio
da terra do Egito, da casa da servidão. Não da fabricação do bezerro de ouro por Arão,
terás outros deuses diante de mim. Não fa- como J. I. Packer indica em sua discussão so­
rás para ti imagem de escultura, nem algu­ bre idolatria. Para Arão, pelo menos, o bezer­
ma semelhança do que há em cima nos céus, ro tinha como propósito representar Jeová.
nem em baixo na terra, nem nas águas de­ Ele pensou que, sem dúvida, a figura de um
baixo da terra. Não te encurvarás a elas boi, mesmo que pequeno, simbolizaria a for­
nem as servirás; porque eu, o SEN H O R , ça de Deus. Todavia, é claro, isso não aconte­
teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a mal­ ceu. E de maneira nenhuma a estátua comuni­
dade dos pais nos filhos até a terceira e cou os demais atributos do Senhor: soberania,
quarta geração daqueles que me aborrecem justiça, misericórdia, amor e retidão. Em vez
e faço misericórdia em milhares aos que me disso, o bezerro os obscureceu.
amam e guardam os meus mandamentos. Ademais, a figura de ouro desencami-
Êxodo 20.2-6 nhou os adoradores. Eles de imediato asso-
ciaram-na com os deuses e deusas da fertili­
Esses versículos estabelecem três pontos dade do Egito, e o resultado de sua adoração
fundamentados na premissa de que o Deus foi uma orgia.
que se revela na Bíblia é o Deus verdadeiro: Packer concluiu:
1. Devemos louvá-lo e obedecer a Ele.
2. Devemos rejeitar a adoração a qual­ E certo que, se você tem o hábito de focalizar
quer outro deus. seus pensamentos numa imagem ou retrato da­
3. Devemos rejeitar a adoração ao Deus quele para o qual você vai dirigir sua oração,
verdadeiro por qualquer meio que pensará nele e orará de acordo com o que a
não seja digno dele, como o uso de imagem representa. Portanto, nesse sentido,
retratos ou imagens. você se curvará e adorará sua imagem, deixan­
do de adorar a Deus em verdade. E por isso
À primeira vista, parece um pouco estra­ que Deus nos proíbe de fazer uso de imagens
nho que uma proibição contra o uso de ima­ em nossa adoração. (P ack er , 1973, p. 41)
gens na adoração tenha ocupado um lugar no
início dos Dez Mandamentos. N o entanto, O lou vo r a D e u s _____________________________

percebemos que não é tão estranho quando Contudo, apenas evitar a adoração a ima­
lembramos que os princípios de uma religião gens ou mesmo o uso destas na adoração ao
dependem da natureza do deus dessa religião. Deus verdadeiro não é em si adoração. Temos
Se o deus é sem valor, a religião não terá valor de reconhecer que o Deus verdadeiro é o
também. Se o conceito da divindade é da eterno, autoexistente e autossuficiente Se­
maior importância, a religião será do mais al­ nhor, aquele que está imensuravelmente além
to nível. de nossos pensamentos mais sublimes.
Temos de humilhar-nos e aprender dele, conhecido, o eterno Deus é revelado no tem­
permitindo que nos ensine com o Ele é e o po e no espaço.
que Ele fez pela nossa salvação. Fazem os o E necessário que nos questionemos: “Eu
que o Senhor manda? Podemos ter certeza olho para Cristo no intuito de conhecer Deus?
de que em nossa adoração estamos de fato Eu penso nos atributos divinos pelo que Jesus
adorando o Deus verdadeiro, que se revelou me mostra deles?”. Se a resposta é não, esta­
na Bíblia? mos adorando uma imagem de Deus, ainda
Só há uma maneira de responder a essa que forjada em nossa própria mente. Se olhar­
questão com honestidade. E perguntando: mos para Jesus, saberemos que estamos ado­
“Eu realmente conheço a Bíblia e louvo a Deus rando o Deus verdadeiro, como Ele se revelou.
com base na verdade que encontro nela?”. Paulo declarou que, embora alguns conhe­
Essa verdade é centrada no Senhor Jesus cessem Deus, eles não o glorificaram como
C risto. N as Escrituras, o Deus invisível Deus, nem lhe deram graças (Rm 1.21). Vamos
torn a-se visível, o inescrutável torna-se rogar que isso não aconteça conosco.
D eu s em t r ês pessoas

I o capítulo nove foi apontada uma suficiente para rejeitarem a doutrina.


é razão
distinção entre os atributos de Tais pessoas com frequência reclamam que a
Deus que parcialmente comparti­ teologia deveria ser simples, porque a simplici­
lhamos — amor, sabedoria, poder, dade é bonita, Deus é belo etc. N o entanto,
entre outros — e os que não compartilhamos. esse é um entendimento errado da realidade e
Aqueles conseguimos entender, porém estes da natureza de Deus reveladas a nós na Bíblia.
não. Podemos compreender o que significa a Por que a realidade deve ser simples? N a
autoexistência de Deus, Sua autossuficiência verdade, com o C. S. Lewis ressaltou em Cris­
e Sua eternidade, mas até certo ponto. tianismo puro e simples, o que acontece em
E possível expressá-los de forma negativa, geral é que “a realidade, além de complicada,
mostrando que Deus não tem origem, não é quase sempre estranha. N ão é precisa, nem
precisa de nada, nunca deixará de existir e não óbvia, nem previsível. [...] A realidade, com
muda. Todavia, é difícil entender o que essas efeito, é algo que ninguém poderia adivinhar”
características significam por si mesmas. L o ­ (L ewis, 2008, p. 55).
go, as primeiras respostas para quem é Deus e Isso é verdadeiro em relação a coisas triviais
como Ele é são modestas. — uma mesa e uma cadeira, por exemplo. Elas
O capítulo 11 focará aqueles atributos di­ parecem elementares; contudo, se tivermos
vinos que conseguimos depreender melhor. de falar sobre sua constituição de átomos e as
Contudo, primeiro, vamos analisar mais uma forças que mantêm esses átomos unidos, per­
questão problemática: a Trindade. Deus, em­ cebemos que mesmo essas coisas supostamen­
bora seja único, subsiste em três pessoas: te simples vão além da nossa compreensão.
Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Coisas mais complexas transcendem ainda
A Palavra Trindade não está na Bíblia. Ela mais nossa percepção. Assim sendo, o fabri­
deriva do vocábulo latino trinitas, que significa cante da mesa e da cadeira é mais complicado
estar em três. Embora o termo não conste nas do que os objetos que ele produziu, e Deus,
Escrituras, a ideia trinitária está presente nelas e que criou o fabricante, deve ser o mais com ­
é de grande importância. Tal relevância se deve plicado e incompreensível de todos.
ao fato de que não poderá haver uma bênção re­
al sobre nós ou sobre nosso trabalho se negligen­ T rês pessoas ___________________________
ciarmos qualquer uma das pessoas da Trindade. Deus nos revelou um pouco de Sua com ­
Para alguns, a dificuldade de compreender plexidade na doutrina da Trindade. O que
como Deus pode ser um e três ao mesmo tempo sabemos sobre ela só sabemos por causa da
revelação de Deus na Bíblia, e mesmo assim Tem se argumentado que, já que os versí­
não a conhecemos muito bem. culos 4 a 9 de Deuteronômio 6 começam com
N a verdade, tendemos tanto a cometer O uve, Israel, o S E N H O R , nosso Deus, é o
erros quando lidamos com esse assunto que único S E N H O R , a Trindade estaria excluída.
precisamos ser extremamente cuidadosos, pa­ Contudo, nesse texto, a palavra para único é
ra não irmos além ou interpretarmos de for­ echad, que significa não um em isolamento,
ma errada o que encontramos na Escritura. porém um em unidade.
O primeiro ponto a ser destacado é que os De fato, esse termo nunca é usado na Bí­
cristãos creem, tanto quanto os judeus, que só há blia hebraica referindo-se a uma entidade sin­
um Deus. Os cristãos também creem na Trinda­ gular. Ele é empregado para aludir a um cacho
de, e foram de modo errôneo acusados de crer em de uvas, por exemplo, ou para mostrar que o
três deuses, o que seria uma forma de politeísmo. povo de Israel respondeu como um só povo.
É verdade que os cristãos veem uma plu­ Após Deus ter criado uma esposa para
ralidade na manifestação de Deus. N o entan­ Adão, este disse:
to, isso não é politeísmo. Cristãos, assim co­
mo judeus, são monoteístas, isto é, creem em Esta é agora osso dos meus ossos e carne da
um só Deus. minha carne; esta será chamada varoa,
Sendo assim, recitamos, como o judeu: porquanto do varão fo i tomada. Portanto,
deixará o varão o seu pai e a sua mãe e
Ouve, Israel, o SEN H O R , nosso Deus, é o apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos
único SEN H O R . Amarás,pois, o SEN H O R , uma carne.
teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a Gênesis 2.23,24
tua alma, e de todo o teu poder. E estas pala­
vras que hoje te ordeno estarão no teu cora­ De novo, a palavra traduzida com o uma é
ção; e as intimarás a teus filhos e delas falar ás echad. N ão se sugere que o homem e a mu­
assentado em tua casa, e andando pelo cami­ lher se transformariam em uma única pessoa,
nho, e deitando-te, e levantando-te. Tam­ mas uma só carne; estariam unidos com o um
bém as atarás por sinal na tua mão, e te serão só. De modo semelhante, Deus é um Deus,
por testeiras entre os teus olhos. E as escreve- entretanto se manifesta em três pessoas.
rás nos umbrais de tua casa e nas tuas portas. U m a de nossas dificuldades é que não te­
Deuteronômio 6.4-9 mos uma palavra adequada em nossa língua
para expressar a natureza das diferentes exis­
Nessa passagem, em linguagem mais clara, tências dentro da Trindade. O melhor termo
está o ensinamento de que Deus é um, e que de que dispomos é pessoa, derivado da pala­
isso deve ser conhecido por Seu povo, falado vra latinapersona, que significa a máscara que
por ele e ensinado a seus filhos. um ator usava quando representava um per­
A mesma verdade consta no N ovo Testa­ sonagem num drama grego.
mento, que é unicamente cristão. Lemos que Todavia, quando falamos em máscara, já
o ídolo nada é no m undo e que não há outro nos desviamos do sentido que pretendemos,
Deus, senão um só (1 C o 8.4). Somos lembra­ pois não devemos pensar nas três pessoas
dos do fato de que há um só D eus e Pai de concernentes a Deus como uma forma pela
todos, o qual é sobre todos, e p or todos, e em qual Ele de vez em quando representa a si
todos (E í 4.6). Tiago declarou: Tu crês que há mesmo para os seres humanos. Esse erro em
um só D eus? Fazes bem (Tg 2.19). particular é conhecido como modalismo ou
sabelianismo', originário do nome do homem quase impossível encontrar uma boa ilustra­
que popularizou a ideia na história da Igreja ção, embora algumas tenham sido sugeridas.
em meados do terceiro século. Alguns propõem a ideia de um bolo,
A palavra mais usada na língua grega era constituído de ingredientes, montado em ca­
homoousios, que literalmente significa um ser. madas e servido em fatias. O Pai poderia ser
N o entanto, de novo, isso induz ao erro se co­ comparado aos ingredientes, o Filho às ca­
meçamos a pensar que há três seres distintos madas (pelas quais nos achegamos ao Pai) e
com naturezas diferentes dentro da Trindade. o Espírito Santo às fatias, pela forma como é
Calvino não gostava de nenhuma dessas distribuído.
palavras. Ele preferia o vocábulo subsistência. Outra ilustração é a do homem que ao
Contudo, mesmo sendo provavelmente bem mesmo tempo cumpre as funções de pai, filho
escolhido, o termo não transmite muito signi­ e marido. Contudo, o problema com essa
ficado à maioria dos leitores do nosso século. ilustração é que ele só pode desempenhar ca­
N a verdade, a palavra pessoa está adequada, da um desses papéis para uma pessoa, ou, no
enquanto entendemos o que queremos mostrar caso do pai, para um pequeno grupo de pes­
com ela. N o discurso coloquial, a palavra deno­ soas, enquanto Deus é o Pai, o Filho e o Espí­
ta um ser humano, portanto alguém que é um rito Santo para todos.
indivíduo único. Temos esse conceito em mente Talvez uma ilustração mais eficaz da
quando falamos de despersonalizar alguém. Trindade seja a da luz, do calor e do ar. Se
Todavia, esse não é o significado da pala­ você estender sua mão e olhar para ela, per­
vra como é usada em teologia. O ser existe ceberá que cada um desses três elementos
independente do corpo carnal. Podemos, por está presente. Você necessita da luz porque
exemplo, perder um braço ou uma perna em só através dela pode ver sua mão. N a verda­
um acidente, contudo ainda seremos a mesma de, mesmo com a escuridão da noite, ainda
pessoa com todas as marcas da personalidade. há luz. Em bora muitas vezes não seja possí­
Além disso, pelo menos de acordo com o vel vê-la, ela pode ser notada por equipa­
ensinamento cristão, mesmo quando m orre­ mentos especiais.
mos e nosso corpo entra em decomposição Também há calor entre sua cabeça e sua
ainda somos pessoas, pois o espírito, no qual mão. Você consegue provar isso usando um
está a vida, é eterno. Então, estamos falando termômetro.
de um senso de existência que se expressa em Por fim, existe o ar. Você pode assoprar
conhecimento, sentimento e vontade. sua mão e senti-lo. Pode balançá-la e assim se
Assim, há três pessoas ou subsistências em abanar.
Deus, cada uma com conhecimento, senti­ O ponto é que cada um desses três ele­
mento e vontade. Entretanto, mesmo consi­ mentos — luz, calor e ar — é distinto. Cada
derando esse entendimento, saímos da per­ um obedece a suas próprias leis e pode ser
cepção adequada, pois, no caso de Deus, estudado de forma separada. E ainda assim é
conhecimento, sentimento e vontade de cada impossível, pelo menos em um local normal
pessoa que compõe a Trindade — Pai, Filho e da terra, ter qualquer um sem os outros. Eles
Espírito Santo — são idênticos. são três e são um. Juntos compõem o ambien­
te no qual existimos.
Luz, c a l o r , a r _______________________________
O interessante nessa ilustração é que a Bí­
Com o podemos ilustrar que Deus é um blia menciona cada um desses elementos em
único Deus, se Ele existe em três pessoas? E relação a Deus2.
D eus em t r ê s pessoas

Luz: E esta é a mensagem que dele ouvi­ aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda
mos e vos anunciamos: que D eus é luz, e a terra, e sobre todo réptil que se move so­
não há nele treva nenhum a (1 Jo 1.5). bre a terra.
Gênesis 1.26
C alor: porque o nosso Deus é um fogo con­
sumidor (Hb 12.29). Eia, desçamos e confundamos ali a sua lín­
gua, para que não entenda um a língua do
A r, sopro e vento (o radical de significado outro.
da palavra Espírito): O vento assopra onde Gênesis 11.7
quer, e ouves a sua voz, mas não sabes don­
de vem, nem para onde vai; assim é todo Depois disso, ouvi a voz do Senhor, que
aquele que é nascido do Espírito (Jo 3.8). dizia: A quem enviarei, e quem há de ir
por nós? Então, disse eu: eis-me aqui, en­
O en sin o da B íblia ____________________ via-me a mim.
O que importa agora não é se consegui­ Isaías 6.8
mos entender a Trindade ou não, mesmo
com a ajuda de ilustrações, e sim se vamos Em outras passagens um ser celestial de­
crer no que a Bíblia tem a declarar sobre o nominado o anjo do Senhor é, por um lado,
Pai, o Filho e o Espírito Santo, e sobre o re­ identificado com Deus, todavia, por outro la­
lacionamento entre eles. O que consta nas do, também é distinguido dele. Assim, lemos:
Escrituras pode ser resumido nas cinco pro­
posições seguintes: E o Anjo do S E N H O R a achou [Hagar]
junto a uma fon te de água no deserto,
1. H á um só Deus, vivo e verdadeiro, junto à fonte no caminho de Sur. Disse-
que existe em três pessoas: Deus Pai, -Ihe mais o Anjo do SEN FIO R : Multipli­
Deus Filho e Deus Espírito Santo. carei sobremaneira a tua semente, que
não será contada, p or numerosa que será.
Já analisamos essa verdade de modo geral. E ela chamou o nom e do S E N H O R , que
Vamos analisá-la com profundidade quando com ela falava: Tu és D eus da vista, por­
falarmos sobre a divindade plena do Filho e que disse: Não olhei eu também para
do Espírito Santo nos livros dois e três deste aquele que me vê?
volume. Gênesis 16.7,10,13
Observamos, nesse caso, uma pluralidade
dentro da Trindade sugerida inclusive nas pá­ Um caso ainda mais estranho é a aparição
ginas do Antigo Testamento, antes de Jesus de três anjos a Abraão e Ló. Destes fala-se co­
Cristo vir a terra ou de o Espírito Santo ser mo se fossem três e às vezes um. Além disso,
derramado sobre o povo de Deus. Tal plurali­ quando eles falam, é o Senhor que, como fica­
dade pode ser vista, em primeira instância, mos sabendo, fala a Ló e a Abraão (Gn 18).
naquelas passagens em que Deus fala sobre si Provérbios 30.4 é um texto surpreenden­
mesmo no plural. te. Nele, Agur confessa sua ignorância sobre
o poder extraordinário de Deus.
E disse Deus: Façamos o homem à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança; e Q uem subiu ao céu e desceu? Q uem en­
domine sobre os peixes do mar, e sobre as cerrou os ventos nos seus punhos f Q uem
amarrou as águas na sua roupa? Q uem então nossa salvação não é válida. Nenhum
estabeleceu todas as extremidades da ter­ ser menor que o próprio Deus, mesmo que
ra ? Qual é o seu nome, e qual é o nome de exaltado, poderia levar sobre si a punição pe­
seu filho, se é que o sabes? los pecados do mundo.
A divindade do Senhor Jesus Cristo é en­
N a ocasião, Agur conhecia apenas o nome sinada em muitas passagens cruciais. Lemos
Yehowah [traduzido em muitas versões bíbli­ que no princípio, era o Verbo, e o Verbo esta­
cas como Senhor, numa alusão ao Deus Pai]. va com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava
Hoje sabemos que este é uma variante do no­ no princípio com D eus (Jo 1.1,2).
me do Filho de Deus: Jesus. João (1.1,2) fala do Senhor Jesus Cristo de
acordo com João 1.14, onde ficamos sabendo
2. Jesus Cristo é totalmente divino, sen­ que o Verbo se fe z carne e habitou entre nós
do a segunda pessoa da Trindade, que (v. 1).
se fez homem e habitou entre nós. De modo semelhante, Paulo escreveu:

E nesse ponto que se encontra o cerne do D e sorte que haja em vós o mesmo senti­
debate sobre a Trindade. Aqueles que não gos­ mento que houve também em Cristo Jesus,
tam da doutrina não gostam dela porque não que, sendo em form a de Deus, não teve
estão dispostos a exaltar Jesus como homem. p or usurpação ser igual a Deus. Mas ani-
Tal relutância é vista primeiro nos ensi­ quilou-se a si mesmo, tomando a form a de
namentos de A rio3 de Alexandria, m orto servo, fazendo-se semelhante aos homens;
em 336 d.C . Sabélio, mencionado antes, e, achado na form a de homem, humilhou-
tendia a fundir as pessoas da Trindade, de s e a si mesmo, sendo obediente até à mor­
form a que o Pai, o Filho e o Espírito Santo te e morte de cruz.
seriam apenas manifestações temporárias Filipenses 2.5-8
do Deus uno, assumidas para o propósito
da nossa redenção. A declaração sendo em forma de Deus, não teve
Ário, cuja obra principal foi imediatamen­ por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-
te posterior à de Sabélio, considerou o outro s e a si mesmo não significa que Jesus deixou de
extremo. Ele dividiu as pessoas da Trindade ser divino na encarnação, como alguns susten­
de modo que o Filho e o Espírito Santo se tam, mas apenas que Ele temporariamente abriu
tornaram inferiores a Deus Pai. De acordo mão de Sua glória divina para viver entre nós.
com Ário, o Filho e o Espírito eram seres que Lembramos que durante os dias de Sua vida na
Deus determinou que existissem com o p ro­ terra Jesus declarou: Eu e o Pai somos um (Jo
pósito de trabalhar como Seus agentes na re­ 10.30) e quem me vê a mim vê o Pai (Jo 14.9).
denção. Em vista disso, Eles não seriam eternos (P acker , 1973, p. 51-55)
como Deus, tampouco seriam completamente
divinos. Ário usou a palavra divino para descre- 3. O Espírito Santo é totalmente divino.
vê-los em um sentido menos valoroso do que
quando aplicada ao Pai. Foi o Senhor Jesus Cristo quem de forma
Em séculos mais recentes, o mesmo erro mais clara descreveu o ministério do Espírito
tem sido ratificado por unitarianos4 e por al­ Santo. N o Evangelho de João, Jesus compa­
gumas seitas modernas. Todavia, isso é um rou o ministério do Espírito Santo com Seu
grande equívoco, pois, se Cristo não é divino, próprio ministério:

/OO
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro U m exemplo é a obra da criação.
Consolador, para que fique convosco para Sobre Deus Pai, está escrito: D esde a anti­
sempre, o Espírito da verdade, que o m un­ guidade fundaste a terra; e os céus são obra
do não pode receber, porque não o vê, nem das tuas mãos (SI 102.25); e no princípio, criou
o conhece; mas vós o conheceis. D eus os céus e a terra (Gn 1.1).
João 14.16,17 Lê-se acerca do Filho: porque nele foram
criadas todas as coisas que há nos céus e na
Esse entendimento do Espírito Santo é terra, visíveis e invisíveis (Cl 1.16); e todas as
apoiado pelo fato de que atributos divinos coisas foram feitas p o r ele, e sem ele nada do
são imputados a Ele: eternidade (H b 9.14), que fo i feito se fe z (Jo 1.3).
onipresença (SI 139.7-10), onisciência (1 C o Em relação ao Espírito Santo, consta o se­
2.10,11), onipotência (L c 1.35), entre outros. guinte: O Espírito de D eus me fe z (Jó 33.4).
Da mesma forma, a vinda de Cristo é mos­
4. Em bora todas as pessoas da Trinda­ trada como tendo sido realizada pelas três pes­
de tenham atributos divinos comuns, soas da Trindade trabalhando em unidade, em­
elas tem papéis diferentes na salvação bora só o Filho tenha se tornado carne (Lc 1.35).
do homem. N o batismo de Jesus, as três pessoas esta-
vam presentes: o Filho emergiu das águas, o
Por conseqüência, em geral se afirma, com Espírito desceu sob a aparência de uma pom­
base na Escritura, que o Pai, não o Espírito, ba e a voz do Pai foi ouvida do céu declaran­
enviou o Filho ao mundo (Mc 9.37; Mt 10.40; do: Este é o m eu Filho amado, em quem me
G1 4.4), mas que ambos, o Pai e o Filho, en­ comprazo (M t 3.17b).
viaram o Espírito (Jo 14.26; 15.26; 16.7). As três pessoas da Trindade participaram
N ão sabemos o que tal descrição dos relacio­ do sacrifício de Jesus, como Hebreus 9.14 de­
namentos na Trindade significa. Contudo, via de clara: Cristo, que, pelo Espírito eterno, se ofere­
regra, declara-se que o Filho é sujeito ao Pai por­ ceu a si mesmo imaculado a Deus. A ressurrei­
que o Pai o enviou, e que o Espírito é sujeito a ção de Cristo é do mesmo modo atribuída às
ambos, Pai e Filho, porque Ele foi enviado ao vezes ao Pai (At 2.32), às vezes ao Filho (Jo
mundo pelos dois. Devemos lembrar, porém, 10.17,18) e às vezes ao Espírito Santo (Rm 1.4).
que quando falamos de sujeição não nos referi­ N ão devemos surpreender-nos, portanto,
mos à desigualdade. Embora relacionados um que nossa salvação como um todo seja tam­
ao outro dessa forma, os membros da Trindade bém atribuída a cada uma das três pessoas:
são, não obstante, “da mesma substância, do eleitos segundo a presciência de D eus Pai, em
mesmo poder e da mesma eternidade”5, como santificação do Espírito, para a obediência e
mostra a Confissão de Fé de Westminster (p. 6). aspersão do sangue de Jesus Cristo (1 Pe 1.2).
N em nos surpreender quando somos envia­
5. N a obra de Deus, as pessoas da Trin­ dos ao mundo para ensinar todas as nações,
dade trabalham juntas. batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do
Espírito Santo (M t 28.19).
E comum os cristãos dividirem a obra de
Deus entre as três pessoas da Trindade, atribuin­ R edenção t ripla ______________________

do a criação ao Pai, a expiação ao Filho e a santi­ E necessário novamente observar que,


ficação ao Espírito Santo. A maneira mais correta embora possamos fazer declarações significa­
é mostrar que cada pessoa coopera em cada obra. tivas sobre a Trindade, baseadas na revelação

/ O/
de Deus sobre as pessoas que a compõem, a A doutrina da Trindade não se traduz em
Trindade ainda é inescrutável. três é igual a um, é claro, e o orador sabia dis­
Devemos ser humildes no que concerne ao so. N a verdade, consiste em que Deus é três
conhecimento acerca da Trindade. Certa vez em um sentido e um no outro. N o entanto, a
perguntaram a Daniel Webster, importante resposta de Daniel Webster mostrou um grau
orador americano, como um homem de seu adequado de humildade da criatura em rela­
intelecto podia acreditar na Trindade. “Como ção ao Criador. Cremos na doutrina da Trin­
um homem com tamanha capacidade intelec­ dade não porque a entendemos, mas porque
tual acredita que três é igual a um?”, repreen­ está registrada na Bíblia e porque o próprio
deu o crítico. Ele respondeu: “N ão tenho a Espírito testemunha em nosso coração que
intenção de entender a aritmética do céu”. assim é.

N otas

1 Sabelianismo (também conhecido como modalismo) é a crença estabelecida no século 3 de que a Trindade não se
configura em três pessoas, mas em modos, ou atributos, de Deus. Tal crença é atribuída a Sabélio, que difundiu uma
vertente dessa doutrina em Roma. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sabelianismo.

2 A ilustração da Trindade como luz, calor e ar é antiga, mas extraí essa peculiar expressão dela de Donald Grey
Barnhouse, em M an’s Ruin [A ruína do homem], publicado pela Eerdmans, em 1952, p. 64-65.
3 Ário ou Arius (n.256 f.336), presbítero cristão de Alexandria, foi o fundador da doutrina cristã denominada arianismo.
Ele defendia a doutrina da Cristologia, segundo a qual: a) O Logos e o Pai não são da mesma essência; b) O Filho é uma
criação do Pai; e c) Houve um tempo em que o Filho ainda não existia. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ário.
4 O unitarismo (ou unitarianismo) é uma corrente de pensamento teológico que afirma a unidade absoluta de Deus.
Há dois ramos principais do unitarismo: os unitários bíblicos, que consideram a Bíblia como única regra de fé e
prática, assemelhando as demais religiões cristãs evangélicas, exceto, claro, pela concepção unitária de Deus, e os
unitários universalistas, surgidos recentemente nos Estados Unidos, que pregam a liberdade de cada ser humano de
buscar sua própria verdade, e a necessidade de cada um buscar o crescimento espiritual sem recorrer a religiões,
dogmas e doutrinas. In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Unitarismo.
5 Trecho extraído da Confissão de Fé de Westminster, Igreja Presbiteriana do Brasil, p. 3.
Nosso D eus so b e ra n o

á qualidades de Deus que nunca tornando-o inútil para nós. O mesmo se dá


iremos entender por completo. com a justiça divina. Deus poderia desejar es­
j Podemos falar sobre Sua autoe- tabelecer justiça entre os seres humanos, po­
xistência, Sua autossuficiência, rém, se Ele não fosse soberano, a justiça seria
Sua eternidade e Sua natureza trina. Todavia, frustrada e a injustiça prevaleceria.
temos sempre de reconhecer que não as com ­ Portanto, a doutrina da soberania de Deus
preendemos plenamente, pois não somos co­ não é um dogma filosófico destituído de valor
mo Deus em nenhuma dessas características. prático. Antes, é uma doutrina que dá signifi­
Devemos com humildade confessar que Ele é cado e substância às outras doutrinas.
o Criador e que nós somos Suas criaturas. C om o Arthur Pink observou, a soberania
O infinito está além de nossa compreen­ de Deus “é o fundamento da teologia cristã [...],
são. P or outro lado, há atributos de Deus que o centro de gravidade do sistema da verdade
conseguimos entender porque compartilha­ cristã — o sol ao redor do qual todas as órbitas
mos deles até certo ponto. Isso procede com a menores estão agrupadas” ( P i n k , 1969, p. 263).
maioria das virtudes: sabedoria, verdade, mi­ É também, como veremos, a força e o conforto
sericórdia, graça, justiça, ira, benignidade, fi­ do cristão em meio às tempestades da vida.
delidade, entre outras. É com essa categoria
que nos ocuparemos agora. Q u e s t i o n a m e n t o s i n t e l e c t u a i s __________

Comecemos pela soberania de Deus. Ele É claro que há problemas em afirmar o


tem autoridade absoluta e governa sobre a cria­ governo de Deus em relação a um mundo que
ção. Ser soberano é saber tudo, ter todo o poder, seguiu seu próprio caminho. Podemos con­
além de ser livre. Se o Senhor fosse limitado em cord ar que Deus governe os céus. C o n tu ­
qualquer um desses predicativos, não seria so­ do, a terra é um lugar corrom pido. Aqui a
berano. Contudo, a soberania de Deus é maior autoridade divina é burlada, e o pecado
do que todos os atributos que ela engloba. com frequência prevalece.
Outras virtudes parecem ser mais impor­ Podemos com clareza declarar que Deus é
tantes para nós, com o, por exemplo, o amor. soberano sobre tal mundo? Se olharmos para
Todavia, um pouco de reflexão mostrará que o mundo de modo isolado, acharemos que
o exercício de qualquer uma delas só é torna­ não. N o entanto, se considerarmos a Escritu­
do possível pela soberania de Deus. O Senhor ra, como devemos fazer para conhecer Deus,
poderia amar, mas, se Ele não fosse soberano, poderemos afirmar isso, pois a Bíblia aponta
talvez circunstâncias impedissem Seu amor, em diversas passagens que Ele é soberano.
Podemos não entender essa doutrina rela­ passasse do Egito para o deserto, e depois fez
tiva à soberania. Podemos ainda nos pergun­ com que as águas voltassem ao seu curso e
tar como Deus tolera o pecado. Contudo, destruíssem os soldados egípcios que perse­
mesmo assim não vamos duvidar da doutrina guiam o povo. O Senhor expressou Sua sobe­
nem nos esquivar de suas conseqüências. rania ao enviar o maná para alimentar os isra­
N a Escritura, a soberania divina é um elitas enquanto estavam no deserto.
conceito tão difundido e importante que é Em outra ocasião Ele enviou codornizes
impossível tratá-la de modo abrangente. O b ­ ao campo como provisão para Israel. Deus
serve alguns textos que a abordam: dividiu as águas do rio Jordão para que o po­
vo atravessasse para Canaã. Ele fez com que
Tua é, S E N H O R , a magnificência, e o p o ­ as muralhas de Jericó caíssem, e “parou o sol”
der, e a honra, e a vitória, e a majestade; nos dias de Josué em Gibeão, a fim de que
porque teu é tudo quanto há nos céus e na Israel conquistasse a vitória completa sobre
terra; teu é, S E N H O R , o reino, e tu te seus inimigos em fuga.
exaltaste sobre todos como chefe [...] e tu N o tempo de Jesus, a soberania divina
dominas sobre tudo. manifestou-se quando Ele alimentou quase
1 Crônicas 29.11,12 cinco mil homens multiplicando poucos pãe-
zinhos e peixes, curou doentes e ressuscitou
D o S E N H O R é a terra e a sua plenitude, mortos. P or fim, a soberania de Deus foi vista
o m undo e aqueles que nele habitam. nos eventos relacionados à crucificação de
Salmo 24.1 Cristo e Sua ressurreição.
Outros textos mostram que a soberania de
Aquietai-vos e sabei que eu sou D eus; serei Deus atua sobre a vontade do ser humano e,
exaltado entre as nações; serei exaltado so­ por isso, influencia suas atitudes. Assim, o
bre a terra. Senhor endureceu o coração do faraó para
Salmo 46.10 que ele se recusasse a deixar o povo de Israel
partir. P or outro lado, Deus quebranta o co ­
Pois D eus é o R ei de toda a terra. ração de alguns para que respondam ao Seu
Salmo 47.7a amor e obedeçam a Ele.
Pode-se argumentar que os homens, não
A doutrina da soberania de Deus é o fun­ obstante, desafiam Deus e desobedecem aos
damento de todas as exortações para confiar Seus princípios. N o entanto, essa observação
nele, louvá-lo e entregar seu caminho a Ele. não pode subverter o ensino da Bíblia em re­
Além desses textos e muitos outros, há lação ao governo de Deus sobre Sua criação, a
exemplos do governo de Deus sobre a maté­ não ser que a Escritura se contradiga, o que
ria. O mundo material obedece às regras que não ocorre.
Ele estabeleceu, ou seja, às leis da natureza ou A explicação para essa aparente contradi­
da ciência. N ão devemos pensar que as leis ção é a rebelião humana. Embora em oposição
são absolutas e que Deus de alguma forma é à expressa ordem de Deus, encaixa-se em Seu
controlado ou limitado por elas, pois o Se­ propósito eterno. Significa que o Senhor per­
nhor age de modo sobrenatural para realizar mite o pecado por Suas próprias razões, saben­
o que chamamos de milagre. do de antemão que Ele o julgará no dia de Sua
Deus mostrou Sua soberania sobre a natu­ ira, e que nesse ínterim o pecado não ultrapas­
reza ao dividir o mar Vermelho para que Israel sará os limites que Deus estabeleceu para ele.
Em nossa perspectiva, muitas coisas traba­ Hoje, embora mais de 200 anos tenham se
lham contra a soberania de Deus. Contudo, na passado, o lema permanece. Assim, o governo
perspectiva de Deus, Seus decretos sempre são do povo na verdade significa ser governado
estabelecidos. Eles são, na verdade, como o por si mesmo ou por aqueles que comparti­
Breve Catecismo de Westminster os descreve: lham dos mesmos ideais. Deus, o Senhor de
direito sobre todas as nações e todos os indi­
Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sá­ víduos, é sutilmente excluído das instituições
bio e santo conselho da sua própria vontade, decisórias de nossa vida nacional.
ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto Nem a igreja está melhor, com o indica
acontece, todavia de modo que nem Deus é o Sproul. C om frequência ouvimos as caracte­
autor do pecado, nem violentada é a vontade rísticas de Deus com o Salvador serem ressal­
da criatura, nem é tirada a liberdade ou contin­ tadas — Seu amor, Sua misericórdia, Sua bon­
gência das causas secundárias, antes estabeleci­ dade, entre outras —, todavia a soberania
das. (Confissão de Fé de Westminster, Igreja dificilmente é mencionada. Essa distorção é
Presbiteriana do Brasil, p. 4) clara no evangelismo.
N a prática moderna, o chamado ao arre­
Q u e s t i o n a m e n t o s h u m a n o s _______________ pendimento é em geral denominado de apelo,
O verdadeiro problema com a soberania o qual alguém pode aceitar ou recusar. E ofe­
de Deus, sob uma perspectiva humana, não é recido com educação. E raro ouvirmos que o
que a doutrina pareça falsa, embora haja pro­ arrependimento é uma exigência soberana de
blemas em entendê-la, mas sim que os ho­ Deus, e que é requerida de nós total submis­
mens não gostam desse aspecto do caráter são à autoridade do Rei nomeado por Ele,
divino, visto que os perturba e humilha. Cristo Jesus.
Poderíamos pensar, se olhássemos para H oje, a ênfase da mensagem da Igreja é na
esse assunto com superficialidade, que ho­ libertação. N o entanto, às vezes é pregado
mens e mulheres vivendo em meio a uma que o ser humano tem de libertar-se não só
cultura caótica seriam receptivos à soberania das estruturas sociais opressivas, com o os p ro­
divina. Afinal, o que poderia ser melhor do ponentes da teologia da libertação denomi­
que saber que as coisas estão sob controle, nam, mas também do próprio Deus. Sproul
apesar das aparências, e que Deus é capaz de declarou: “A libertação moderna envolve
fazer com que todos os eventos concorram uma revolta contra a autoridade soberana de
para o bem do ser humano? Essa constata­ Deus enquanto membros da Igreja e do Esta­
ção, contudo, falha ao não reconhecer a re­ do unem forças em um ato mútuo de traição
belião da humanidade contra Deus em busca cósmica” ( S p r o u l , 1974, p. 139).
de autonomia. A razão básica pela qual os homens não
A rebeldia tem sido característica da hu­ gostam da doutrina da soberania de Deus é
manidade desde a queda. N o entanto, ela é porque não querem um Deus soberano. Eles
patente na cultura contemporânea, como R. desejam ser autônomos. L ogo, ora negam a
C. Sproul aponta em The Psychology o f existência de Deus p or completo, ora sim­
Atheism [A psicologia do ateísmo]. Nosso sis­ plesmente o ignoram em todos os propósi­
tema democrático, por exemplo, rejeita toda a tos práticos.
autoridade monárquica. Não servimos a ne­ O principal motivo do colapso atual do
nhum soberano aqui foi o slogan da Guerra de respeito à autoridade é o impacto do existen-
Independência americana. cialismo europeu pela obra de homens como

ZO ó
Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Albert diferença entre o bem e o mal, mas de uma
Camus e Martin Heidegger. Em suas obras a forma pervertida. Eles aprenderam fazendo o
autonomia do indivíduo é um ideal filosófico mal. N o entanto, não ganharam a liberdade
dominante diante do qual todos os outros que desejavam. Em vez disso, foram escravi­
conceitos, incluindo a existência de Deus, de­ zados pelo pecado, do qual apenas o Senhor
vem ser eliminados. Jesus Cristo, por Sua obediência ao Pai, foi
N ós apenas nos encontramos quando as capaz de livrar tanto eles como nós.
restrições externas são lançadas fora. Apenas A autonomia humana atingiu seu ápice
quando Deus é descartado podemos ser au­ com a crucificação de Cristo.
tênticos humanos. Mas, isso funciona? N a
obra de Nietzsche, a figura ideal é o super- Os reis da terra se levantam, e os príncipes
-homem ou o Uebermensch, aquele que cria juntos se mancomunam contra o SE ­
seus próprios valores e que não deve satisfa­ N H O R e contra o seu ungido, dizendo:
ções a ninguém, a não ser a si mesmo. Rompamos as suas ataduras e sacudamos
Todavia, Nietzsche, o formulador dessa de nós as suas cordas.
filosofia, morreu não com o uma pessoa livre, Salmo 2.2,3
mas como prisioneiro de sua própria mente
pela insanidade. A filosofia da autonomia A verdadeira liberdade é conseqüência da
existencial é uma rua sem saída — pior que crucificação com Cristo, como o apóstolo
isso, um desastre. Ainda assim, é a filosofia do­ Paulo indicou:
minante de nossa era. Deus é restritivo, por
isso deve ser rejeitado. Esse é o ponto de vista. Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não
Perguntas devem ser respondidas não com mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida
base em um princípio divino revelado do certo que agora vivo na carne vivo-a na f é do
contra o errado, porém com base no que um Filho de Deus, o qual m e amou e se entre­
indivíduo ou a maioria dos indivíduos deseja. gou a si mesmo p o r mim.
Às vezes, a maioria dentro de um segmento da Gálatas 2.20
sociedade se coloca em oposição aos que fa­
zem parte de outros segmentos. Entretanto, o Isso é um paradoxo, é claro, como Agosti­
problema não começou com o existencialismo. nho, Lutero, Edwards, Pascal e outros ressal­
A questão teve início muito antes disso, taram. Quando indivíduos se rebelam contra
quando Satanás confrontou a primeira mu­ Deus, eles não conquistam a liberdade; ao con­
lher no jardim do Éden ao fazer a Eva a per­ trário, passam a viver em escravidão, porque a
gunta diabólica: D eus disse? E depois suge­ rebelião é pecado, e o pecado é um tirano.
rindo que, ao desobedecer ao que Deus disse, P or outro lado, quando os homens se sub­
ela e seu marido se tornariam como o Senhor, metem ao Senhor, colocando-se com o servos
conhecendo o bem e o mal. Como Deus é a dele, tornam-se livres de verdade. Eles con­
expressão crucial, pois ela significa tornar-se quistam a capacidade de transformarem-se
autônomo. Foi a tentação de tentar substituir em seres plenos, especiais e únicos, como
Deus no tocante à soberania, como o próprio Deus os criou para ser.
Satanás havia tentado fazer.
O s resultados prometidos pela serpente B ê n ç ã o s d a s o b e r a n ia _______________________

se cumpriram? De maneira alguma. E verda­ Encontramos a genuína liberdade quando


de que o homem e a mulher aprenderam a nos dispomos a aceitar a realidade com o ela é,

W á'
inclusive a justa e efetiva soberania de Deus dos Exércitos; toda a terra está cheia da
sobre toda a Sua criação, e quando permiti­ sua glória.
mos que Ele nos transforme em tudo o que Isaías 6.1-3
pode fazer de nós. A questão da soberania
divina, longe de continuar a ser uma ofensa O Deus das Escrituras é grande. Foi uma
para nós, pode tornar-se uma doutrina mara­ visão dele, não de um deus menor, que trans­
vilhosa da qual obtemos grandes bênçãos. formou o ministério de Isaías.
Quais são essas bênçãos? Primeiro, o en­ A segunda bênção que um conhecimento
tendimento de que a soberania de Deus inevi­ de Deus em Sua soberania proporciona é con­
tavelmente aprofunda nossa adoração ao forto em meio às provações, tentações e à dor.
Deus vivo e verdadeiro. Sem a compreensão e Tentações e dor atingem cristãos e não cris­
apreciação dessas verdades, é questionável se tãos da mesma forma. A pergunta é: como as
em absoluto conhecemos o Deus do Antigo e enfrentaremos ?
do N ovo Testamento ou não, pois o que é um Sem dúvida, se tivermos de enfrentá-las
Deus cujo poder é frustrado pelos planos das sem a convicção de que estão sob o controle
pessoas e de Satanás? Que tipo de Deus é esse de Deus e são permitidas pelo Seu bom pro­
cuja soberania tem de ser cada vez mais restrin­ pósito, elas não terão significado, o que nos
gida, para que não pensemos nele como um in­ levará a concluir que a vida é uma tragédia.
vasor da fortaleza do nosso livre-arbítrio? Isso é o que muitos existencialistas afirmam.
Quem pode adorar uma divindade tão Mas, se crermos que Deus ainda está no con­
incompleta e digna de pena? E m Soberania trole, saberemos que tais circunstâncias são
de Deus, Pink afirmou o seguinte: conhecidas dele e têm um propósito.
E claro que não conhecemos todos os
Um deus cuja vontade é resistida, cujos planos propósitos de Deus. Para tal, teríamos de ser
são frustrados, cujo propósito é questionado, Deus. Contudo, podemos conhecer alguns de­
não pode ser considerado uma divindade, e es­ les porque o Senhor os revela a nós. Por exem­
tá muito longe de ser um objeto adequado de plo, o apóstolo Pedro, já idoso, escreveu para
adoração; ele não merece nada, a não ser des­ alguns que passavam por grandes provações,
prezo. (P in k , 1969, p. 28) lembrando-os de que ainda não seria o fim —
Jesus voltaria; enquanto isso, Deus os fortale­
P or outro lado, um Deus que verdadeira­ ceria e purificaria por meio de suas lutas:
mente reina sobre Seu universo é um Deus
que se deve buscar com alegria, adorar, e a Em que vós grandem ente vos alegrais,
que se deve obedecer. É o Deus contemplado ainda que agora importa, sendo necessá­
por Isaías em sua visão: rio, que estejais p or um pouco contristados
com várias tentações, para que a prova da
N o ano em que morreu o rei Uzias, eu vi vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro
ao Senhor assentado sobre um alto e subli­ que perece e é provado pelo fogo, se ache
m e trono; e o seu séquito enchia o templo. em louvor, e honra, e glória na revelação
Os serafins estavam acima dele; cada um de Jesus Cristo.
tinha seis asas: com duas cobriam o rosto, e 1 Pedro 1.6,7
com duas cobriam os pés, e com duas voa­
vam. E clamavam uns para os outros, di­ De forma semelhante, Paulo escreveu aos
zendo: Santo, Santo, Santo é o S E N H O R cristãos em Tessalônica que tinham perdido

/O /
seus entes queridos por morte, lembrando-os mais do qu e vencedores, p o r aquele que
de que o Senhor Jesus Cristo voltaria, e de nos amou. Porque estou certo de que
que naquele momento reuniria todos os que nem a morte, nem a vida, nem os anjos,
estivessem vivos e seus queridos. Paulo con­ nem os principados, nem as potestades,
cluiu: Portanto, consolai-vos uns aos outros nem o presente, nem o porvir, nem a al­
com estas palavras (1 Ts 4.18). tura, nem a profundidade, nem alguma
A terceira bênção proveniente da compre­ outra criatura nos poderá separar do
ensão da soberania de Deus é o encorajamen­ am or de D eus, qu e está em Cristo Jesus,
to e a alegria no evangelismo. C om o pode al­ nosso Senhor!
guém evangelizar sem tamanha confiança? Romanos 8.31,35,37-39
C om o alguém pode propor-se a pregar a
mensagem que é tão desagradável ao homem D e u s p o d e _______________________________________

natural e ter qualquer esperança de movê-lo a D o começo ao fim a Bíblia é cheia de afir­
aceitá-la, a não ser que Deus seja capaz de mações sobre o que Deus é capaz de fazer e
quebrantar pecadores e mudá-los ? fará por Seu povo. A seguir constam sete ver­
Se Deus não consegue fazer isso, como sículos que, quando analisados juntos, alu­
pode qualquer ser humano são ter esperança dem a quase todas as doutrinas fundamentais
em si mesmo de fazê-lo? Ele tem de ser alheio do cristianismo.
ao problema ou, de forma ridícula, autocon-
fiante. N o entanto, se Deus é soberano nesses 1. Hebreus 7.25, em certo sentido, en­
e em todos os outros assuntos — se Deus globa os textos restantes. Ele nos
chama quem Ele quer e o faz com efetividade mostra que Jesus C risto p od e tam­
—, então podemos ser audaciosos no evange­ bém salvar perfeitam ente os qu e p o r
lismo, sabendo que o Senhor, pela graça, pode ele se chegam a Deus, vivendo sem­
usar-nos com o canais para a Sua bênção. N a p re para interceder p o r eles.
verdade, temos consciência de que Ele vai Mel Trotter, um evangelista da gera­
usar-nos, pois é pelo nosso testemunho que ção anterior que Deus havia resgata­
Deus atrai os outros para si. do do alcoolismo, disse que esse era
Por último, um conhecimento da sobera­ seu versículo. Ele falou sobre a habi­
nia de Deus nos dará um profundo sentimen­ lidade de Deus de salvar uma pessoa
to de segurança. Se olharmos para nós mes­ “da terrível sarjeta para a total liber­
mos, não encontraremos segurança alguma. dade”. Essa é nossa história também.
As cobiças da carne e dos olhos e o orgulho Ela envolve o passado, o presente e o
da vida são mais fortes do que nós. Todavia, futuro de nossa salvação.
quando olhamos para a força do nosso Deus,
podemos ter confiança. 2. Em 2 Timóteo 1.12 Paulo escreveu:
Paulo escreveu: Porque eu sei em quem tenho crido
e estou certo de que é poderoso para
Q ue diremos, pois, a estas coisas? Se Deus guardar o m eu depósito até àquele
é p or nós, quem será contra nós? Q uem Dia. A metáfora é bancária, e o ver­
nos separará do am or de Cristo? A tribu- sículo literal quer mostrar que Deus
lação, ou a angústia, ou a perseguição, ou tem o poder de cuidar de nossos de­
a fo m e, ou a nudez, ou o perigo, ou a es­ pósitos espirituais. Ele não nos desa­
pada? Mas em todas estas coisas somos pontará.

/OS
3. Em seguida, em 2 Coríntios 9.8, Pau­ Ora, àquele que é poderoso para fa z er
lo afirmou: E D eus é poderoso para tudo muito mais abundantem ente
tornar abundante em vós toda graça, além daquilo que pedimos ou pensa­
a fim de que, tendo sempre, em tudo, mos, segundo o p od er que em nós ope­
toda suficiência, superabundeis em ra, a esse glória na igreja, por Jesus
toda boa obra. Alguns cristãos pen­ Cristo, em todas as gerações, para todo
sam que a salvação de um homem ou o sempre. A m ém !
de uma mulher por Deus é apenas
para o futuro, mais ou menos como 6. O poder do Senhor de salvar não atua
uma filosofia pie in the sky [torta no somente em nosso espírito, mas também
céu]1. N ão é assim. N a Bíblia vemos se estende ao nosso corpo. Jesus Cris­
que a graça de Deus está disponível to transformará o nosso corpo abatido,
para nos ajudar em toda boa obra para ser conforme o seu corpo glorioso,
agora. É nesta vida que devemos segundo o seu eficaz poder de sujeitar
transbordar na suficiência dele. também a si todas as coisas (Fp 3.21).

4. Também nos é dito que Deus pode 7. Por fim, em Judas 1.24,25, Deus é
ajudar-nos nos momentos de tenta­ exaltado por Seu poder:
ção. A Bíblia declara de Jesus: Porque,
naquilo que ele mesmo, sendo tentado, Ora, àquele que é poderoso para vos
padeceu, pode socorrer aos que são ten­ guardar de tropeçar e apresentar-vos
tados (Hb 2.18). O melhor comentá­ irrepreensíveis, com alegria, perante a
rio para esse versículo se encontra nas sua glória, ao único Deus, Salvador
Escrituras. Depreendemos de outras nosso, por Jesus Cristo, nosso Senhor,
passagens que, embora a tentação seja seja glória e majestade, domínio e p o­
comum ao homem, Deus não permi­ der, antes de todos os séculos, agora e
te que sejamos tentados além de nossa para todo o sempre. A m ém !
capacidade de resistir. Além disso, Ele
provê o escape mesmo antes que a ten­ Esses versículos declaram que Deus, além
tação nos confronte (1 C o 10.13). de salvar-nos, pode guardar-nos da tentação e
da queda, conduzindo-nos à eternidade. Pode,
5. Efésios 3.20 nos mostra que Deus também, proporcionar-nos ótimas experiên­
pode ajudar-nos a crescer espiritual­ cias e satisfazer-nos por completo. Essas afir­
mente. Isso está registrado em forma mações são verdadeiras? Sim, porque é o plano
de ação de graças: eterno e imutável do Deus que é soberano.

N ota

1 A expressão Pie in the Sky [torta no céu], usada por Joe Hill em 1911 na canção The Preacher and the Slave [o
pregador e o escravo], é uma paródia ao hino In the Sweet By and By, do Exército da Salvação, que foi incorporado
à Harpa cristã sob o título O dia do triunfo de Jesus, hino 48. A canção de Joe Hill caçoa da promessa do céu, que,
para ele, é uma ilusão, negação da realidade, ou tentativa de fuga do sofrimento na terra.
(Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/The_Preacher_and_the_Slave)

/()()
Sa n t o , S a n to , S anto

Do ponto de vista da revelação, a primeira A santidade de Deus é celebrada sem ces­


coisa que tem de ser considerada sobre Deus é sar pelos serafins diante de Seu trono. Isaías
Sua soberania. Mas, esse primeiro atributo os ouviu cantar:
está ligado com um segundo. N a verdade, am­
bos estão tão próximos que poderíamos até E clamavam uns para os outros, dizendo:
mesmo perguntar se o segundo não deveria ter Santo, Santo, Santo é o S E N H O R dos Exér­
vindo primeiro: Deus é Aquele que é Santo. citos; toda a terra está cheia da sua glória.
(B ru n n er , 1950, p. 157) Isaías 6.3

Essas palavras do notável teólogo suíço O apóstolo João ouviu os quatro seres no
Emil Brunner refletem a importância da san­ meio e ao redor do trono do Senhor dizerem:
tidade de Deus. A própria Bíblia com diligên­ Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-
cia confirma a visão de Brunner, já que nela -poderoso, que era, e que é, e que há de vir
Deus é inúmeras vezes chamado de Santo. (Ap 4.8).
Este é o epíteto mais freqüente relacionado O povo de Deus também é chamado a con­
ao Seu nome. Também lemos que só o Se­ clamar louvores a Ele: Cantai ao SE N H O R ,
nhor é santo. vós que sois seus santos, e celebrai a memória da
sua santidade (SI 30.4). Por causa disso, a Igreja
Q uem te não temerá, ó Senhor, e não mag- ora: santificado seja o teu nome (Mt 6.9c).
nificará o teu nom e? Porque só tu és santo;
por isso, todas as nações virão e se prostra- S e p a r a d o ________________________________________

rão diante de ti, porque os teus juízos são Declarar que a santidade é um atributo
manifestos. importante não é afirmar que o entendemos.
Apocalipse 15.4 De todos os atributos de Deus, esse é o mais
mal interpretado. Pensar nele com base em
Em Êxodo 15.11 está escrito que Deus é concepções humanas é um equívoco. Imagi­
glorioso em santidade: namos que a santidade ou retidão é algo que
possa ser graduado para mais ou para menos.
Ó S E N H O R , quem é como tu entre os Por exemplo, quando olhamos ao nosso re­
deusesf Q uem é como tu, glorificado em dor, vemos homens que se encontram num
santidade, terrível em louvores, operando nível muito baixo nessa escala: criminosos,
maravilhas? pervertidos, entre outros.
Se adotássemos uma pontuação para clas­ que é idêntica a ela. Todavia, o sentido do ra­
sificar o grau de retidão, e o seu máximo fosse dical de santo e santificar é o mesmo.
100, poderíamos concluir que tais pessoas De acordo com o conceito bíblico, um
merecem menos que 10. Acima delas se en­ santo não é uma pessoa que atingiu certo ní­
quadram os indivíduos medianos de nossa vel de bondade, porém alguém separado por
sociedade, pontuados entre 30 ou 40. Depois Deus. Santos são os chamados que compõem
estão as pessoas muito boas, os juizes, filan­ a Igreja. A mesma ideia está presente quando,
tropos e outros humanitários; podemos ima­ em Êxodo 40, a Bíblia se refere à santificação
ginar que seriam avaliados entre 60 e 70. L o ­ dos objetos.
go, se considerarmos 100 pontos ou mais, Nesse capítulo de Êxodo, Moisés é ins­
chegamos à bondade de Deus. truído a santificar o altar e a pia no meio do
Muitas pessoas concebem algo assim tabernáculo. O capítulo não menciona ne­
quando pensam sobre a santidade de Deus. nhuma mudança na natureza das pedras, elas
Para elas, trata-se apenas de um aperfeiçoa­ não se tornam justas. Apenas indica que os
mento da boa índole do ser humano. Todavia, objetos deveriam ser separados para um uso
de acordo com a Bíblia, a santidade divina especial. De forma semelhante, Jesus orou
não pode ser colocada na mesma categoria declarando: E por eles m e santifico a mim
que a benignidade do homem. mesmo, para que também eles sejam santifica­
Constatamos a veracidade do conceito bí­ dos na verdade (Jo 17.19).
blico quando estudamos um texto com o R o ­ O versículo de João não quer mostrar que
manos 10.3, no qual o apóstolo Paulo escre­ Jesus se fez mais justo, pois Ele já o era, mas
veu sobre dois tipos de justiça. Ele declarou que Ele se separou para uma tarefa especial:
sobre Israel: Porquanto, não conhecendo a trazer a salvação à humanidade por Sua morte.
justiça de D eus e procurando estabelecer a A santidade é a característica de Deus
sua própria justiça, não se sujeitaram à justi­ que o distingue das coisas e seres criados.
ça de Deus. Sendo assim, ela engloba pelo menos quatro
Esse versículo distingue com clareza a jus­ elementos.
tiça de Deus da nossa justiça. Assim, mesmo O primeiro é a majestade. Majestade im­
que pudéssemos reunir toda a justiça que os plica honra, dignidade, autoridade e poder
homens são capazes de exercer, ela sequer se soberano, bem como imponência ou grandio­
aproximaria da justiça divina, que se enqua­ sidade. E a característica própria aos monar­
dra em uma categoria diferente. cas e, é claro, é o atributo supremo daquele
O que queremos mostrar sobre a santida­ que é monarca sobre todos. A majestade é o
de de Deus? Para responder a essa questão, elemento dominante nas visões de Deus em
não devemos com eçar pela ética. Ela está Sua glória, vistas tanto no Antigo Testamento
envolvida, com o veremos. C ontudo, em como no N ovo. O elemento da majestade liga
seu sentido original, santo não é um concei­ a ideia de santidade à soberania.
to ético. N a verdade, é um atributo que de­ Um segundo elemento na ideia de santida­
fine a própria natureza de Deus e o que o de é a vontade soberana, o que implica perso­
distingue de tudo o mais. E o que separa nalidade. Sem isso, a ideia de santidade se
Deus de Sua criação. Tem a ver com Sua torna abstrata, impessoal, é estática, em vez
transcendência. de concreta, pessoal e ativa.
O significado fundamental da palavra santo Além disso, se perguntarmos em que a
é preservado no significado da palavra santificar, vontade de Deus predomina, a resposta é que

///
ela está estabelecida em proclamar Ele mesmo não é de jeito nenhum igual a qualquer emoção
com o o totalmente O utro1, cuja glória não que conhecemos na experiência humana.
deve de forma alguma ser diminuída por cau­ Ela é, na verdade, um exemplo necessário
sa da arrogância e da rebelião deliberada do e apropriado do Deus santo a tudo que se
homem. N o elemento da vontade a ideia de opõe a Ele. Significa que o Senhor leva a sério
santidade se aproxima bem do ciúme de Deus, a questão de ser Deus, tão a sério que Ele não
que o homem moderno acha tão repugnante. permitirá que qualquer coisa ou pessoa alme­
je Seu lugar.
Eu, o SEN H O R , teu Deus, sou Deus zeloso.2 Quando Satanás buscou isso, foi julgado e
Êxodo 20.5 será julgado ainda. Quando o homem se re­
cusa a ocupar o lugar que Deus designou para
Bem entendida, a ideia de ciúme é central ele, ele também será julgado.
em qualquer conceito verdadeiro sobre Deus. U m elemento final na ideia de santidade é
É com o Brunner ressaltou na analogia ao ciú­ um que mencionamos antes: justiça. A justiça
me apropriado dentro do casamento. Um a está envolvida na santidade não porque é a
pessoa casada não deve permitir que uma ter­ melhor categoria pela qual a santidade pode
ceira pessoa entre em seu relacionamento ín­ ser compreendida, porque, ao falar sobre a
timo. De forma semelhante, Deus rejeita vontade de Deus, de imediato começamos a
qualquer ataque a Seus direitos exclusivos ver que o que Deus requer é justiça e santida­
como Senhor da criação. de em seu sentido ético.
E m outras palavras, quando perguntamos
A santidade de Deus é, portanto, não apenas o que é certo, o que é moral, respondemos à
uma diferença absoluta de natureza, porém é questão não apelando para algum padrão m o­
uma autodiferenciação ativa, a energia volitiva ral independente, com o se pudesse haver um
com a qual Deus assevera e sustenta o fato de padrão para qualquer coisa separado de Deus,
que Ele é o Totalmente Outro contra tudo o e sim apelando para a vontade e natureza do
mais. A incondicionalidade dessa diferença se próprio Deus. O certo é o que Deus é e reve­
torna sem restrições de Sua santa vontade, que la para nós.
é suprema e única. (B ru n n er , 1950, p. 160) A natureza de Deus é um fundamento es­
sencial para qualquer moralidade verdadeira e
Em termos mais simples, a santidade de que perdura. Com o conseqüência, onde Deus
Deus significa que Deus não é indiferente co­ não é reconhecido, não importa o quanto se
mo o homem o considera. Ele não segue um fale sobre a moralidade, pois ela declina, co­
caminho solitário sem prestar atenção à rejei­ mo tem sido na civilização ocidental contem­
ção das pessoas a Ele. Em vez disso, o Senhor porânea. E o desejo de obedecer a Deus que
delibera e age para que Sua glória seja reco­ em última instância torna o comportamento
nhecida. O reconhecimento vem na hora, em ético possível.
cada caso individual, ou se realizará para cada
um no dia do julgamento de Deus. O ta bern á cu lo ________________________________

U m terceiro elemento na ideia de santida­ Temos uma dramatização da santidade de


de é a ira, que é uma parte essencial da santi­ Deus nas leis dadas na construção do taberná-
dade de Deus, porém não devemos compará-la culo judeu. Sob um aspecto, o tabernáculo foi
a uma reação emocional, uma reação que em construído para ensinar a imanência de Deus,
geral consideramos como raiva. A ira de Deus a verdade de que Deus está sempre presente
com Seu povo. N o entanto, por outro lado, A comunhão com Deus só acontecia dentro
ele também ensinou que Deus é separado de do Santo dos Santos.
Seu povo por causa de Sua santidade e dos N o entanto, a fim de entrar, três cortinas
pecados do povo, e só pode ser abordado da deveriam ser atravessadas, cada uma contri­
maneira com o Ele determina. buindo com o enorme abismo que existia en­
N ão devemos pensar que o povo judeu tre Deus e a humanidade: primeiro, a cortina
tinha uma maior compreensão da vontade de entre o arraial e o pátio; segundo, a que co ­
Deus do que nós, pois não tinha. E ra necessá­ bria a entrada do Lugar Santo; terceiro, a
rio para Deus ensiná-lo sobre isso. O ponto cortina separando o Lugar Santo da câmara
principal do tabernáculo era que um homem mais interior.
pecador não poderia entrar sem pedir licença Da mesma forma, a fim de entrar no Santo
Àquele que é Santo. dos Santos, o sumo sacerdote tinha de reali­
Entendia-se que Deus simbolicamente zar um sacrifício no altar de bronze do pátio,
habitava na câmara mais interior do taberná­ lavar-se na pia do pátio, e então passar pelo
culo, conhecida com o o Santo dos Santos. Lugar Santo à luz do castiçal de ouro de sete
As pessoas não podiam entrar lá. U m grego braços e por meio do incenso que estava
poderia entrar em qualquer um dos templos sempre queimando sobre um altar dentro
da Grécia e rezar diante de um deus ou deusa daquela sala.
pagãos. U m rom ano poderia entrar em O que aconteceria se um homem ignoras­
qualquer um dos templos de Rom a. N o en­ se essas barreiras? A resposta é que ele seria
tanto, um judeu não poderia entrar no Santo de imediato consumido, como alguns que
dos Santos. entraram lá. A ira de Deus se inflamaria con­
N a verdade, só uma pessoa poderia entrar; tra aquele pecado que tencionava daquela
essa pessoa era o sumo sacerdote de Israel; e forma invadir ou comprometer Sua santida­
mesmo ele só podia entrar uma vez por ano e de. Ao reconhecer a santidade de Deus, co ­
apenas após ter feito sacrifícios por ele mesmo meçamos a entender um pouco do pecado
e pelas pessoas no pátio exterior. O Santo dos humano e da necessidade da morte propicia-
Santos, a câmara mais interior do tabernáculo, tória de Cristo na cruz.
era separado do Lugar Santo, a câmara exterior
do tabernáculo, por um espesso véu. A tração e ter r o r ____________________________

Aquilo não era tudo. Assim como havia A santidade de Deus é outro atributo que
um véu entre o Santo dos Santos e o Lugar o faz indesejável e até mesmo ameaçador para
Santo, que dividia aquelas duas câmaras den­ muitos. Já ressaltamos que os homens não
tro do tabernáculo, havia também outro véu gostam da soberania de Deus porque ela lhes
espesso separando o Lugar Santo do pátio parece uma ameaça ao seu desejo por autono­
anterior. E também havia um terceiro véu fe­ mia. Eles não gostam de um Deus soberano e
chando a entrada do pátio do circundante ar­ agradável. Reações negativas são ainda mais
raial dos israelitas. aparentes em relação à santidade divina.
O significado da palavra v éu é separar, e Aqui somos assistidos com profundidade
posterior esconder. Assim, o significado por uma cuidadosa análise da ideia de sagrado
dos véus foi que Deus, embora tivesse esco­ pelo teólogo alemão Rudolf O tto. Ele escre­
lhido habitar com Seu povo, estava, não veu um livro que em alemão se chama Das
obstante, separado ou escondido dele por Heilige, e, em inglês, The Idea o f the Holy [A
causa de Sua santidade e do pecado do povo. ideia do sagrado], no qual busca entender a

//J
natureza específica, não racional ou super- Observaste tu a m eu servo Jó ? Porque nin­
-racional da experiência religiosa a partir de guém há na terra semelhante a ele, hom em
uma perspectiva fenomenológica. O tto cha­ sincero, e reto, e temente a Deus, e des-
ma o elemento super-racional de o numinoso3 viando-se do mal.
ou o sagrado. Jó 1.8
H á muita diferença entre o numinoso ou
sagrado com o um conceito abstrato nas reli­ E óbvio, se alguém pudesse ter ficado
giões não cristãs e o sagrado com o pessoal diante da santidade de Deus, esse seria Jó.
dentro do judaísmo e do cristianismo. Toda­ Chegando ao final do livro, após Deus ter co­
via, quanto a isso, a análise ajuda muito, pois locado para Jó uma série de questões e decla­
mostra que os homens acham o Deus verda­ rações planejadas para ensinar um pouco da
deiro ameaçador. Sua verdadeira majestade àquele servo sofre­
Em sua análise, o autor distingue três ele­ dor, Jó ficou quase sem fala e em situação de
mentos no sagrado. O primeiro é ser tremen­ colapso. Ele respondeu a Deus:
do, pelo que queremos afirmar aquilo que faz
trem er em profundidade. Usamos a palavra Eis que sou vil; que te responderia eu? A mi­
tremendo para significar muito ruim ou terrí­ nha mão ponho na minha boca. Por isso, me
vel, essa é uma ideia diferente. O elemento abomino e m e arrependo no pó e na cinza.
tremendo do sagrado é que é tão estarrecedor Jó 40.4; 42.6
que produz medo ou tremor no adorador. O
segundo elemento é a majestade. Vemos o mesmo fenômeno em Isaías, que
O poder supremo e majestoso inevitavel­ recebeu uma visão do Senhor assentado sobre
mente engendra uma sensação de impotência um alto e sublime trono. Ele ouviu o louvor
e de total debilidade no adorador. O ele­ dos serafins. N o entanto, o efeito da visão so­
mento final é a energia, pela qual Rudolf bre Isaías, longe de ser uma causa de autossa-
O tto fala do elemento dinâmico presente tisfação ou orgulho de que tal visão tivesse
no encontro. sido concedida a ele, na verdade foi devasta­
O ponto é que a experiência de confrontar dor. Ele respondeu:
o sagrado é suprema e ameaçadora. O adora­
dor é atraído pelo sagrado, todavia ao mes­ A i de mim, que vou perecendo! Porque eu
mo tempo é aterrorizado por ele. A energia sou um hom em de lábios impuros e habito
admirável e dominadora do sagrado ameaça no meio de um povo de impuros lábios; e os
destruí-lo. meus olhos viram o rei, o S E N H O R dos
Devemos também observar que encontra­ Exércitos!
mos o mesmo fenômeno na Bíblia, embora a Isaías 6.5
Escritura o explique, já que não cristãos não o
fazem. O relato de Jó é um exemplo. Jó havia Isaías se viu como arruinado ou inacaba­
sofrido a perda de suas posses, família e saúde. do. Só quando uma brasa viva foi tirada do
Quando seus amigos foram convencê-lo altar e usada para purificar seus lábios ele foi
de que sua perda era por causa de algum peca­ capaz de colocar-se de pé de novo e respon­
do, admitido ou escondido, Jó , resoluto, de- der de forma afirmativa ao chamado para o
fendia-se das acusações deles. Jó estava certo serviço de Deus.
ao fazê-lo, pois estava sofrendo sendo um Habacuque também teve uma visão de
homem justo. Deus. Ele havia ficado angustiado com a
impiedade do mundo ao seu redor e per­ até mesmo chama de justos, como seria para
guntara a si mesmo com o o ímpio poderia aqueles que antagonizam com Deus? Para
de certo triunfar sobre a pessoa que era mais eles, a experiência seria esmagadora.
justa. O profeta então entrou em sua torre de Com o resultado eles resistem, tentam fa­
vigia e esperou pela resposta de Deus. Quan­ zer pouco ou fugir de Deus.
do Deus respondeu, Habacuque foi domina­ Tozer escreveu:
do pelo medo.
O choque moral sofrido por nós por meio do
O uvindo-o eu, o m eu ventre se comoveu, forte rompimento com o desejo superior do
á sua voz tremeram os meus lábios; entrou céu nos deixou com um trauma permanente
a podridão nos meus ossos, e estremeci que afeta todas as partes de nossa natureza.
dentro de mim. (T o z e r , 1961, p. 110)
Habacuque 3.16
Ele está certo. C om o conseqüência, os ho­
Habacuque era um profeta. N o entanto, mens não irão a Deus, e aquilo que deveria ser
mesmo assim, um confronto com Deus era a sua grande alegria é detestável para eles.
estarrecedor.
De forma semelhante, embora a glória de U m p o v o s a n t o ________________________________
Deus estivesse velada na pessoa de Jesus Cris­ Então o que faremos, nós que somos peca­
to, de vez em quando aqueles que eram Seus dores e que ainda assim somos confrontados
discípulos percebiam de maneira sutil quem pelo Deus santo? Vamos continuar nosso cami­
Ele era, e tinham reações semelhantes. nho? Fazer o melhor que pudermos? Virar as
Assim, após Pedro ter reconhecido a gló­ costas ao Sagrado? Se não fosse pelo fato de que
ria de Deus no milagre de Cristo ao conceder Deus escolheu fazer alguma coisa por nossa di­
uma grande pesca na Galileia, Pedro respon­ fícil situação, seria tudo o que poderíamos fazer.
deu: Senhor, ausenta-te de mim, p o r que sou A glória do cristianismo é a mensagem de
um hom em pecador (L c 5.8c). que o santo Deus fez o que precisava ser feito
Quando o apóstolo João recebeu a revela­ para nos salvar. Ele preparou para nós um ca­
ção da glória de Cristo, vendo o Senhor res- minho de acesso — o Senhor Jesus Cristo — à
surreto de pé em meio aos sete castiçais de Sua presença. C om o resultado, o que não é
ouro, ele caiu aos pés dele com o m orto e le- santo é santificado e recebe permissão para
vantou-se apenas depois que o Senhor o toca­ habitar com o Eterno.
ra e lhe dera a comissão de escrever o livro de Aqui podemos voltar à ilustração propor­
Apocalipse. João só pôde ficar diante do Se­ cionada pelo tabernáculo no deserto. O ta­
nhor após ter experimentado algo com o uma bernáculo foi planejado para ensinar sobre o
ressurreição. grande abismo que existia entre o homem em
E isso que significa estar face a face com o sua santidade e a humanidade em seu pecado.
sagrado. N ão é uma experiência agradável. E Todavia, também ensinava o caminho por
profunda e ameaçadora, pois o sagrado não meio do qual o abismo poderia ser atravessa­
pode coexistir no mesmo espaço com o que do. N os tempos do Antigo Testamento esse
não é santo. Deus deve destruir o que não é caminho era simbólico. Era pelo sacrifício de
santo ou purificar o pecado. animais que o pecado das pessoas era transfe­
Além disso, se é verdade para aqueles que rido para a vítima inocente, que então morria
Deus escolheu para serem profetas e que Ele no local de adoração. Por isso se exigia do
4
//d
sumo sacerdote que realizasse primeiro um entanto, precisamos aprender a odiar o peca­
sacrifício por si mesmo e depois pelo povo, do, senão aprenderemos a odiar Deus, que
antes que ele pudesse entrar no Santo dos exige uma vida santa daqueles que são segui­
Santos no Dia da Expiação. dores de Cristo.
Em bora o simbolismo fosse importante e Vemos uma grande tensão durante a vida
vivido, não era a morte dos animais, não im­ do Senhor Jesus Cristo. Alguns viram a santi­
porta quantos, que purificava dos pecados. A dade dele, vieram a odiar o pecado e torna­
verdadeira e única expiação estava para ser ram-se Seus seguidores. Outros o viram, vie­
providenciada pelo Senhor Jesus Cristo, co ­ ram a odiá-lo e, por fim, crucificaram-no.
mo o verdadeiro Cordeiro de Deus, m orto no Segundo, aqueles que chegaram ao conhe­
lugar de pecadores. cimento do Santo pela fé em Jesus Cristo
Além disso, não foram apenas os sacrifí­ aprenderão a amar a justiça e a lutar por ela.
cios que prefiguraram Sua obra. Estava em Tais pessoas com frequência precisam de
cada parte do tabernáculo, o altar, a pia, o cas­ exortação.
tiçal, o incenso, o pão da proposição dentro O apóstolo Pedro escreveu a estas em sua
do Lugar Santo e tudo o mais. época mostrando o seguinte:
Em outras palavras, Jesus Cristo é aquele
pelo qual somos lavados do pecado; Ele é a Mas, como é santo aquele que vos chamou,
luz do mundo, o pão da vida; Ele é a base da sede vós também santos em toda a vossa
adoração por meio da oração, assim como o maneira de viver, porquanto escrito está:
nosso sacrifício suficiente e definitivo. Sede santos, porque eu sou santo.
E Cristo é verdadeiro e suficiente. N o 1 Pedro 1.15,16
momento em que Ele levou sobre si nosso
pecado e foi separado da presença do Pai em O versículo não declara: “Sejam santos
nosso lugar, o próprio Deus rasgou o véu do como eu sou santo”. Nenhum de nós poderia
templo em dois, de cima a baixo, assim indi­ fazer isso. N ão podemos ser santos no mes­
cando que o caminho para Sua presença, para mo sentido em que Deus o é. Todavia, pode­
o Santo dos Santos, estava agora aberto a to ­ mos ser santos no sentido de uma caminhada
dos que iriam a Ele pela fé em Cristo, como justa e reta diante dele.
Ele exige. Terceiro, precisamos aguardar pelo dia em
N unca seremos santos no sentido do To­ que Deus será plenamente conhecido em Sua
talmente Outro, como Ele é. Mas somos pri­ santidade pelos homens, e poderemos regozi-
meiro separados para Ele por Jesus Cristo, jar-nos em antecipação àquele dia. Se não ti­
como Seus santos, e depois santificados de véssemos conhecido Deus pela fé em Cristo,
maneira prática e cada vez maior à medida aquele dia seria terrível. Significaria a exposi­
que a natureza dele transforma nosso ser. ção do nosso pecado e nosso julgamento.
Haverá várias conseqüências para aqueles Ao chegar, significará na verdade a finali­
que chegam ao conhecimento do sagrado. zação de nossa salvação para que possamos
Primeiro, aprenderão a odiar o pecado. N ão ser feitos com o Jesus. Seremos como Ele, em
odiamos o pecado com naturalidade. De fa­ santidade e em todas as outras formas: sere­
to, o contrário é verdade. Em geral amamos mos semelhantes a ele; porque assim como é o
o pecado e relutamos em abandoná-lo. N o veremos (1 Jo 3.2d).
N otas

1 De acordo com Karl Barth, o homem nada pode saber e dizer a respeito de Deus por si mesmo. A pessoa que pre­
tende falar de Deus a partir de seus sentimentos e seu raciocínio está na verdade falando de um ídolo. O verdadeiro
Deus é totalmente Outro em relação ao ser humano, em tudo o que Ele pensa, sente, deseja, elabora e compreende.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_de_Karl_Barth)
2 A maioria das traduções da Bíblia em português emprega a palavra zelo no lugar da palavra ciúme, que é a tradução
literal de jealous.
3 Rudolf Otto trabalha em seu livro o sagrado em direção ao aspecto não racional, sem deixar de lado os aspectos do
racional, já que sua intenção é fazer uma interação entre o não racional e o racional. Para identificar o sagrado no seu
aspecto não racional, ele cunha a palavra numinoso. (In: O TTO , Rudolf. O Sagrado: um estudo do Elemento não
racional na ideia do divino e a sua relação com o racional. Trad. Prócoro Velasquez Filho. São Bernardo do Campo:
Imprensa Metodista, 1985.)

// /
O

O D eus o n isc ien t e

atributo divino da onisciência, ter­ Q uem é este que escurece o conselho com
mo teológico próprio para defi­ palavras sem conhecimento? Agora cinge
nir o conhecimento de Deus so­ os teus lombos como hom em ; e p ergu n -
bre todas as coisas, é o que tar-te-ei, e, tu, responde-m e. O nd e esta­
caracteriza Sua perfeição. A onisciência en­ vas tu quando eu fu n d a v a a terra ? Faze-
volve não apenas o conhecimento de Deus -m o saber, se tens inteligência. Q uem lhe
sobre nós, mas também Seu conhecimento pôs as m edidas, se tu o sabes? O u quem
sobre a natureza, o passado, o presente e o estendeu sobre ela o co rd el? Sobre que
futuro. Envolve tudo que podemos imaginar estão fu n d a d a s as suas bases, ou quem
e muito mais. E um conhecimento que o Se­ assentou a sua p ed ra de esquina, q u a n ­
nhor tem e sempre terá. do as estrelas da alva juntas a leg rem en ­
N a verdade, se analisarmos o conheci­ te cantavam , e todos os filhos de D eus
mento divino em sua totalidade, percebere­ reju bila v a m ?
mos que Deus nunca aprendeu nada e não Jó 38.2-7
tem necessidade de aprender, pois já sabe e
sempre soube de tudo. Mais uma vez, a resposta é que, compara­
A onisciência de Deus é mencionada no do ao conhecimento de Deus, que é perfeito,
questionamento de Isaías a uma nação rebelde: o conhecim ento humano é quase nulo. O
conhecim ento do Senhor alcança o mais ín­
Quem. guiou o Espírito do S E N H O R ? E tim o conhecim ento do indivíduo: Porque
que conselheiro o ensinou? Com quem to­ conheço as suas obras e os seus pensam entos!
mou conselho, para que lhe desse entendi­ (Is 66.18).
mento, e lhe mostrasse as veredas do juízo, Davi declarou:
e lhe ensinasse sabedoria, e lhe fizesse no­
tório o caminho da ciência? S E N H O R , tu m e sondaste e m e conheces.
Isaías 40.13,14 Tu conheces o m eu assentar e o m eu levan­
tar; de longe entendes o m eu pensamento.
A resposta clara é: ninguém. Deus é infini­ Cercas o m eu andar e o m eu deitar; e co­
to e está acima de Sua criação em todo o co ­ nheces todos os meus caminhos. Sem que
nhecimento e compreensão. De forma seme­ haja uma palavra na minha língua, eis
lhante, o próprio Senhor falou a Jó de um que, ó S E N H O R , tudo conheces.
redemoinho: Salmo 139.1-4
O autor de Hebreus escreveu: E não há Sartre falou do medo de estar sob o olhar de
criatura alguma encoberta diante dele; antes, alguém. N ão nos importamos em fixar o
todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos olhar em alguém, por exemplo. Contudo, no
daquele com quem temos de tratar (Hb 4.13). momento em que temos consciência de que
alguém está olhando para nós, ficamos com
A “a m ea ç a ” d a o n is c iê n c ia ________________ vergonha, confusos e amedrontados, e nosso
Poderíamos pensar que a onisciência de comportamento se altera. Odiamos a experi­
Deus é confortante para nós em nosso estado ência e fazemos qualquer coisa para evitá-la.
natural, pois a crença de que existe um conhe­ Se não podemos evitá-la, a experiência se tor­
cimento perfeito, embora não o detenhamos, na intolerável.
deveria tornar o mundo menos ameaçador. N o que é talvez o trabalho mais conheci­
N a realidade, o contrário é o que ocorre. do de Sartre, a peça Entre quatro paredes,
Reconhecer que há um Deus que sabe tu­ quatro personagens estão confinados em um
do sobre todas as coisas é também reconhecer quarto sem nada para fazer a não ser falar e
que tal Deus nos conhece. E porque não quere­ olhar uns para os outros. É um símbolo do
mos que certas coisas sobre nós sejam conheci­ inferno. Nas linhas finais da peça, isso se
das, nós as escondemos — não apenas dos ou­ torna bem claro quando Garcin fica em pé
tros, mas também de nós mesmos. U m Deus próxim o à lareira afagando o busto de bron­
que nos conhece por completo é perturbador. ze e declara:
Arthur W. Pink, em Atributos de Deus, afir­
mou que a ideia da onisciência divina “enche- Pois bem, é agora! O bronze aí está; eu o con­
-nos de inquietação”(PiNK, p. 13). A. W. Tozer, templo e compreendo que estou no inferno.
em Conhecimento do sagrado, ponderou: Digo a vocês que tudo estava previsto. Eles
previram que eu pararia em frente a este bron­
Na divina onisciência vemos demonstrados ze, tocando-o, com todos esses olhares sobre
contra cada um o terror e a fascinação da divin­ mim, todos esses olhares que me comem!
dade. Que Deus conhece cada pessoa em sua (Volta-se bruscamente). Ah, vocês são só duas?
plenitude pode ser a causa do grande medo do Pensei que fossem muitas, muitas mais! (Ri).
homem que tem algo a esconder — algum pe­ Então, é isso que é o inferno! Nunca imaginei
cado oculto ou crime secreto cometido contra [...] Não se lembram? O enxofre, a fogueira, a
o homem ou contra Deus. (T o z e r , 1961, p. 63) grelha [...]. Que brincadeira! Nada de grelha.
O inferno [...]. O inferno é os outros! (S a r t r e ,
Tozer está falando da humanidade, por­ 1949, p. 47)
tanto de nós. Todos se rebelaram contra
Deus, por isso temem a exposição. As instruções finais de palco são para os
Ninguém documentou nosso medo de ser­ personagens caírem sentados, cada qual sobre
mos expostos com mais cuidado do que R. C. um sofá, deixarem de rir e entreolharem-se.
Sproul em The Psychology ofAtheism [A psico­ N a filosofia de Sartre esse medo de estar
logia do ateísmo]. O autor dedicou um capítulo sob o olhar do outro é a razão para pôr Deus
ao tema God and Nakedness [Deus e a nudez] e de lado, pois debaixo do olhar de Deus somos
analisou o medo que o homem moderno tem de reduzidos a objetos, e nossa humanidade é
ser revelado, primeiro a outros, depois a Deus. destruída. O ponto de interesse aqui, entre­
O primeiro objeto de sua análise é Jean- tanto, é o medo da exposição. De onde ele
-Paul Sartre, filósofo francês, escritor e crítico. vem, senão de uma culpa real e merecida

//J
resultante de nossa rebelião contra o único o homem anseia por ser conhecido. Prova
santo e soberano Deus do universo? disso é a popularidade dos grupos de encon­
A seguir Sproul analisa a obra Linguagem tro, da psiquiatria, dos talk-shows e dos fil­
corporal, de Julius Fast. Esse livro é um estudo mes para adultos. Contudo, de maneira muito
de como os seres humanos comunicam-se de mais profunda o homem teme tal exposição,
forma não verbal por várias posições corpo­ pois tem vergonha do que está para ser visto
rais, gestos, ao balançar a cabeça, levantar as por outras pessoas e por Deus. C om os ou­
sobrancelhas, e assim por diante. tros sempre há formas de conseguir um dis­
Fast ressalta que alguém pode encarar um farce. Usamos roupas, por exemplo.
objeto por um longo período. Alguém pode N o âmbito psicológico, vigiamos o que
encarar animais. Mas, o olhar fixo para outra dizemos para que só aquelas coisas sobre nós
pessoa é um comportamento social inaceitá­ que desejamos que se tornem públicas sejam
vel porque, se o olhar for mantido por muito conhecidas. Às vezes, usamos uma fachada.
tempo, provoca embaraço, hostilidade, ou os N o entanto, o que podemos fazer em relação
dois. O fato é que temos portas, cortinas nas a Deus, diante de quem todos os corações es­
janelas, roupas e cortina no chuveiro, para tão abertos, todos os desejos são conhecidos?
demonstrar nosso desejo e nossa necessidade N ão há nada que possamos fazer, pois isso é a
de privacidade. onisciência de Deus, bem como Sua soberania
O terceiro objeto de análise de Sproul é o e santidade, que produzem ansiedade e cau­
livro O macaco nu, outra obra popular, de sam medo ao ser humano decaído.
Desmond Morris. Sproul afirma que o livro é
uma visão singular do ser humano. Ele res­ C o b e r t o s p o r t r a je s d e ju s t iç a __________

salta que o macaco nu é, óbvio, o ser huma­ O temor da onisciência de Deus é normal
no. O título do livro e seu conteúdo realçam para os cristãos. N o entanto, antes de vermos
a singularidade do homem em sua nudez. o que isso significa para eles, precisamos de­
Para o autor, seriamos animais nus, sem pe­ terminar por que esse atributo divino deixou
los para cobrir-nos, entretanto temos vergo­ de causar medo. Nesse ponto, a experiência
nha em nossa nudez e buscamos esconder- de Adão e Eva é esclarecedora. Adão e Eva
-nos do olhar de outras pessoas. pecaram; quando o fizeram, reconheceram
Sproul, no quarto objeto de seu estudo, que estavam nus. Até então, eles estiveram
menciona o filósofo e escritor dinamarquês nus no sentido puramente físico. Contudo,
S<|>ren Kierkegaard, observando que ele: como ainda não haviam pecado, não se enver­
gonhavam (Gn 2.25).
E um crítico aguçado da pessoa que vive total­ Depois que desobedeceram ao Senhor,
mente no plano estético ou espectador da vida, sua nudez se tornou algo mais do que apenas
funcionando dentro do contexto de um enco­ físico; tornou-se uma nudez psicológica, liga­
brimento com máscaras, enquanto ele mesmo da à sua culpa moral. O casal passou a apre­
preservou uma ilha de encobrimento para si e sentar-se culpado diante um do outro e tam­
para todos os homens. Ele sabia que a solidão bém de Deus.
permite um lugar secreto que é necessário para O que aconteceu? Deus veio passeando
o sujeito. (S p r o u l , 1974, p. 114-116) pelo jardim para confrontá-los em sua nudez.
Ele expôs o pecado de Adão e Eva, pois o pe­
O que emerge dessas expressões moder­ cado não pode ficar escondido em Sua pre­
nas é uma estranha ambivalência. Por um lado, sença. Contudo, o Senhor fez algo tremendo:
Ele os vestiu com túnicas de peles de animais pessoas. Se não é assim, por que somos tão
que Ele mesmo sacrificou. cuidadosos em mostrar nosso melhor aos ou­
Essa é a mensagem do cristianismo: que tros? Entretanto, Deus já conhece o pior de
não podemos ser conhecidos e estar vestidos nós e mesmo assim continua a demonstrar
ao mesmo tempo. Todavia, estar vestido não Seu amor. Ele conhece a nossa estrutura e sabe
significa lançar mão de “peles de animais”. A que somos pó (Sl 103.14).
vestimenta de Adão e Eva era apenas um sím­ N ão precisamos temer que algo dentro de
bolo do que estava por vir para todos quando nós surja e surpreenda Deus, que algum es­
Deus enviasse Jesus Cristo, o qual morreria queleto saia de nosso armário para expor nos­
carregando nossos pecados e, assim, remo­ so passado constrangedor, ou que algum in­
vendo nossa culpa. formante fale com clareza contra nós, para
N a base de Seu perfeito e propiciatório nos envergonhar. N ão pode acontecer nada
sacrifício, Deus “vestiria” com Sua própria que já não seja conhecido por Deus.
justiça todos que cressem em Cristo. P or cau­ Donald Barnhouse relaciona o senso de
sa da obra de Jesus, Deus não nos olha mais segurança ao ministério do Espírito Santo em
como pecadores, e sim como aqueles que se nós.
tornaram justificados por Seu Filho unigêni-
to. Agora podemos colocar-nos diante dele Confortemo-nos de que o Espírito Santo não
ao invés de esconder-nos, não porque o Se­ habita em nós como um espião, a fim de desco­
nhor não conhece o nosso pecado ou não se brir nossas fraquezas e contá-las a Deus para
importa com ele, mas porque sabe de tudo e nossa condenação. O Espírito Santo sabe que
já lidou com o pecado de modo definitivo. Cristo foi condenado em nosso lugar, e veio
Agora podemos declarar como Isaías: habitar em nós como “contador” e “caixa do
banco” de Deus, para sempre nos lembrar de
Regozijar-me-ei muito no S E N H O R , a nosso saldo de crédito, e dar-nos os frutos de
minha alma se alegra no m eu Deus, por­ nossa herança, a fim de que possamos viver no
que m e vestiu de vestes de salvação, m e triunfo que Ele adquiriu para nós. (B a rn h o u s e ,
cobriu com o manto de justiça, como um 1963, p. 145-146)
noivo que se adorna com atavios e como
noiva que se enfeita com as suas jóias. A segunda razão por que a onisciência de
Isaías 61.10 Deus é uma grande bênção é porque o Senhor
não apenas conhece o pior de nós, como tam­
R a zõ es para a leg r a r - s e ____________________ bém conhece o melhor, mesmo que esse me­
A onisciência de Deus é causa de descon­ lhor não seja conhecido por nenhuma outra
forto e mesmo de medo para aqueles que não pessoa. H á momentos em que agimos muito
tiveram seus pecados cobertos pela justiça de bem em alguma situação e ainda assim acha­
Cristo. Todavia, por três razões Sua onisciên­ mos que passamos despercebidos; ou faze­
cia é uma grande bênção e um motivo de ale­ mos o melhor possível, mas falhamos, pois
gria entre os cristãos. nosso ato é mal interpretado.
Primeiro, porque Deus sabe de todas as Às vezes as coisas acontecem de uma for­
coisas, Ele conhece o pior de nós e ainda as­ ma que não planejamos, daí as pessoas ques­
sim nos amou e salvou. Em nossos relaciona­ tionam (mesmo nossos amigos): “Com o o
mentos, com frequência tememos que algo fulano pode fazer uma coisa dessas? Eu tinha
em nós possa vir à luz para nos separar das um conceito muito melhor dele”. Elas não

/£ /
sabem da situação nem conhecem nosso cora­ Porque os que dantes conheceu, também
ção. M ostram-se críticas, e nada que fazemos os predestinou para serem conformes ã
ou dizemos parece mudar a opinião delas. imagem de seu Filho, a fim de que ele seja
E então? H á conforto em saber que Deus, o primogênito entre muitos irmãos.
que sabe de todas as coisas, também nos co­
nhece e sabe que na realidade demos o melhor Deus está determinado a tornar-nos como
de que fomos capazes. O Senhor não nos jul­ Jesus Cristo. Esse é o Seu propósito com a
ga nem nos condena. redenção, e foi nesse contexto que Romanos
U m pai está ensinando sua filha de um ano 8.28 foi escrito. A redenção começa com o
a andar. Ela está tentando, mas cai. Ele a colo­ pré-conhecimento eletivo de Deus de Seu
ca de pé, e ela cai de novo. Ele se zanga, gri­ próprio povo, Sua predestinação para que se­
ta e esbraveja: “Você é uma criança burra! ja conformado à imagem de Cristo. Além
Eu sou um professor bom, porém você não disso, a redenção inclui o chamado desses
está aprendendo!”. Quando ela cai pela ter­ eleitos por Deus para a salvação, a justificação
ceira vez, ele bate nela por causa disso. E pela obra de Cristo e, por fim, a glorificação,
óbvio que faríamos uma ideia ruim de um com o resultado de que os propósitos do Se­
pai desse tipo. nhor para eles são totalmente atingidos.
Por outro lado, veríamos com bons olhos Por vezes, ficamos desanimados na vida
um pai que afirmasse: “N ão se preocupe com cristã, e por boas razões. Damos um passo à
isso. Você caiu, mas um dia vai andar. Sei que frente e recuamos meio. Somos bem-sucedi­
você está fazendo o melhor que pode”. N os­ dos uma vez, porém depois falhamos duas
so Deus é como este segundo pai. Ele conhece vezes. Vencemos a tentação, mas também caí­
nossas fraquezas e pecados, no entanto tam­ mos em muitas outras e várias vezes. Declara­
bém reconhece quando estamos tentando, e mos: “N ão estou progredindo nem um pou­
Ele é paciente. co. Estou sendo pior este ano do que ano
A terceira razão por que a onisciência di­ passado. Deus deve estar desanimado comi­
vina é uma bênção é porque Deus sabe o que go”. N o entanto, Deus não desiste de nós.
vai fazer conosco, isto é, Ele estabeleceu o Esse é o ponto. Deus sabe de tudo. Por
propósito para o qual fomos criados, e com isso, ainda que seja verdade que Ele tem total
certeza nos conduzirá ao cumprimento de conhecimento de nossos fracassos e vitórias,
nosso desígnio em seu devido tempo. ainda que as vitórias sejam poucas, o Senhor
Esse objetivo está descrito em Romanos tem conhecimento de muito mais do que isso.
8.29. A maioria dos cristãos conhece o versí­ Ele sabe o que seremos um dia, quando, pela
culo anterior. E uma promessa reconfortante: Sua graça, ficarmos semelhantes à imagem de
Jesus Cristo. Isso é certo. Portanto, devemos
E sabemos que todas as coisas contribuem pôr nossa confiança nessa verdade, embora os
juntam ente para o bem daqueles que desalentos sejam muitos.
amam a Deus, daqueles que são chamados Temos um grande destino; em vista disso,
por seu decreto. todas as realizações pomposas de nossa era e
nossas realizações pessoais diminuem à quase
N o entanto, é uma pena que poucos te­ insignificância.
nham tentado aprender o versículo seguinte, H á outras áreas em que a onisciência de
porque ele mostra qual é o decreto menciona­ Deus afeta nossa vida. Se Deus é o Deus de todo
do no versículo 28: o conhecimento, logo devemos ter consciência
da importância de conhecê-lo. Somos feitos à nos conhece. N ão temos de fingir ser algo
Sua imagem. que não somos.
Isso significa que podemos aprender a Por fim, tornamo-nos capazes de perma­
pensar de acordo com a Palavra de Deus e necer animados nas dificuldades. Jó passou
compartilhar o conhecimento que Ele possui. por inúmeras tribulações, porém ainda assim
Podemos ter o conhecimento verdadeiro, declarou: Mas ele sabe o m eu caminho; prove-
embora não no mesmo grau do conhecimen­ -me, e sairei como o ouro (Jó 23.10). Porque
to de Deus. Deus sabe de tudo, os cristãos podem descan­
A hipocrisia é tolice. Talvez tentemos en­ sar. Podemos orar com confiança, pois temos
ganar os outros sobre quem realmente somos, certeza de que nenhuma oração, nenhum gri­
e tenhamos êxito até certo ponto. N o entan­ to por socorro, nem mesmo um soluço ou
to, não conseguiremos enganar o Senhor. lágrima escapam ao conhecimento daquele
Sendo assim, quando estamos diante do que vê com profundidade nosso coração.
Pai, com nossos pecados expostos, mas justi­ Às vezes, talvez nem consigamos orar.
ficados por Cristo, ficamos perante qualquer N o entanto, como está escrito em Isaías
um sem tem er que nos conheça com o so­ 65.24, e será que, antes que clamem, eu res­
mos de verdade. E podemos ter a ousadia ponderei; estando eles ainda falando, eu os ou­
de fazer o que é certo, mesmo que isso seja virei. Tudo o que é preciso é que tiremos essas
mal interpretado ou ridicularizado. Pode­ verdades da prateleira alta da teologia e as co­
mos ser pessoas de palavra porque Deus loquemos para funcionar enquanto vivemos.
O D eus q u e não m uda

xjj/ imutabilidade de Deus está ligada ímpios com o sendo o m ar bravo que se não
/if à Sua eternidade, que foi analisada pode aquietar (Is 57.20). Judas fala deles co­
/ W / àe forma resumida no capítulo mo nuvens sem água, levadas pelos ventos
ÍL y nove, mas elas não são idênticas. (1.12c), e como estrelas errantes (1.13c), sem
A eternidade de Deus significa que Ele sem­ uma órbita certa.
pre existiu e sempre existirá; nada veio antes C om certeza não há melhor lugar para de­
dele, nada depois. A imutabilidade do Se­ monstrar a dimensão moral da variabilidade
nhor denota que Ele é sempre o mesmo em humana do que na reação das pessoas ao Se­
Seu ser eterno. nhor Jesus Cristo. Em uma semana elas cla­
Podemos entender isso de imediato. C on ­ mavam: Hosana! Bendito o Rei de Israel que
tudo, essa qualidade é a que separa o Criador vem em nome do Senhor! (Jo 12.13). N a se­
até mesmo da mais superior de Suas criatu­ mana seguinte, gritavam: Crucifica-o! Cruci-
ras. Deus é imutável, enquanto nenhuma fica-o! (L c 23.21b).
outra parte de Sua criação o é. Tudo o que N ão se pode confiar na natureza humana,
conhecem os muda. O mundo material mu­ todavia podemos confiar em Deus. Ele é imu­
da, e não no sentido circular, com o os gre­ tável. Sua natureza é sempre a mesma. Sua
gos entendiam — de m odo que todas as vontade é invariável. Seus propósitos são se­
coisas no final voltam a ser o que eram —, guros. Deus é o ponto fixo num universo
mas sim no sentido de desgastar-se, com o a conturbado e decaído para aqueles que em
ciência indica. verdade o conhecem.
Por exemplo, elementos com elevados Após Tiago ter falado sobre o pecado e
complexos e ativos, tais como materiais ra­ os erros humanos, ele também afirmou que
dioativos, decaem para menos ativos. Os re­ toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm
cursos variados e abundantes da terra são ex- do alto, descendo do Pai das luzes, em quem
tinguíveis. Espécies de vida podem tornar-se não há m udança, nem sombra de variação
extintas, e muitas já se tornaram. De forma (Tg 1.17).
individual, homens e mulheres nascem, cres­ A mesma perspectiva é compartilhada pe­
cem, envelhecem e morrem. N ada que conhe­ lo profeta Malaquias, que observa em um ver­
cemos dura para sempre. sículo que já se aproxima do final do Antigo
N a humanidade, a mutabilidade se deve Testamento: Porque eu, o S E N H O R , não
ao fato de que somos criaturas decaídas e es­ mudo; p o r isso, vós, ó filhos de Jacó, não sois
tamos separados de Deus. A Bíblia fala dos consumidos (Ml 3.6).
Sem m u d a n ç a s __________________________________ tal filosofia, tão lógica quanto possa parecer.
Cada um dos versículos anteriores fala da A Bíblia nos mostra que Deus é de fato imu­
imutabilidade de Deus na Sua essência. Sendo tável, porém Ele percebe e é afetado pela obe­
perfeito, Ele nunca fica diferente de si mes­ diência, pelo empenho ou pelo pecado de
mo. Para um ser moral mudar, seria necessário Suas criaturas.
mudar em uma ou duas direções. O u a mudan­ Brunner, em Herdeiros de D eus, escreveu:
ça é de alguma coisa pior para uma coisa me­
lhor, ou de algo melhor para algo pior. Se for verdade que realmente há tais coisas co­
É evidente que Deus não pode mudar pa­ mo a misericórdia de Deus e a ira de Deus, en­
ra melhor, porque isso significaria que ou- tão Deus, também, é afetado pelo que acontece
trora Ele havia sido imperfeito. Se estivésse­ a Suas criaturas. Ele não é como aquela divinda­
mos falando sobre justiça, por exemplo, de do platonismo, que é despreocupada e que,
significaria que Ele não havia sido em Sua portanto, não se comove com todas as coisas que
totalidade justo, e, p or isso, teria sido peca­ acontecem na terra, mas segue sua vida no céu
dor. Se estivéssemos falando sobre conheci­ sem olhar ao seu redor, sem considerar o que está
mento, significaria que Ele não sabe de tudo, acontecendo aqui. Deus decidiu “olhar ao re­
e seria ignorante. dor”; Ele em definitivo importa-se com o que
Por outro lado, Deus não pode mudar para acontece ao homem. Ele se preocupa com as mu­
pior. Nesse caso, Ele se tornaria menos do que danças na terra. (B runner , 1950, p. 268)
havia sido em algum momento, tornando-se
pecaminoso ou imperfeito. U m exemplo primário é visto no Senhor
A imutabilidade de Deus, de acordo com a Jesus Cristo, que, apesar de ser Deus, chorou
Escritura, não é a mesma coisa que a imutabi­ pela cidade de Jerusalém e no túmulo de
lidade de deus descrita pelos filósofos gregos. Lázaro.
N o pensamento grego, a imutabilidade signi­
ficava não apenas nunca mudar, porém tam­ U ma verd a d e pertu rba d o ra
e c o n f o r t a n t e _________________________________
bém a falta de habilidade de ser afetado por
qualquer coisa de alguma forma. A palavra A imutabilidade de Deus também se apli­
grega para isso, a característica primária de ca a Seus atributos. O Breve Catecismo de
deus, era apatheia, da qual deriva a palavra em Westminster1 define Deus como sendo espírito,
português apatia, que significa indiferença. infinito, eterno e imutável em Seu ser, sabedoria,
Contudo, o termo grego vai além dessa poder, santidade, justiça, bondade e verdade.
ideia. Significa uma total inabilidade de sentir Deus tem todo o conhecimento e a sabe­
qualquer emoção. Os gregos acreditavam que doria, e Ele sempre terá toda a sabedoria. Ele
deus tinha essa qualidade porque de outro é soberano e sempre o será. Ele é santo e sem­
modo teríamos poder sobre ele a ponto de pre será santo. Ele é justo e sempre será justo,
poder fazê-lo sentir raiva, alegria ou pesar. bom, verdadeiro. N ada que acontece jamais
Ele deixaria de ser absoluto e soberano. diminuirá Deus nesses ou em qualquer de
Assim o deus dos filósofos, embora não Seus atributos.
das mitologias mais populares, seria solitário, Essa verdade tem dois lados: é perturba­
isolado e sem compaixão. dora para aqueles que estão em rebelião con­
Isso estabelece uma boa filosofia. Tem ló­ tra Deus e é confortante para aqueles que
gica. N o entanto, não é o que Deus revela so­ vieram a conhecê-lo por intermédio de Cris­
bre si mesmo na Escritura, e devemos rejeitar to. O primeiro é evidente no que dissemos
nos três capítulos anteriores. Se for verdade como havia amado os seus que estavam no
que a soberania, santidade e onisciência de mundo, amou-os até ao fim.
Deus são conceitos improváveis para o ho­ João 13.1
mem natural, o fato de que Deus não muda­
rá em nenhuma dessas áreas é ainda mais Tozer escreveu sobre o conforto encon­
perturbador. trado na imutabilidade de Deus:
A pessoa que não está salva não se sentiria
tão incomodada pela soberania de Deus se Que paz traz ao coração do cristão entender
pudesse pensar que um dia Deus se tornaria que o Pai celestial nunca fica diferente de si
menos soberano, e o indivíduo mais autôno­ mesmo. Ao aproximar-nos dele em qualquer
mo. Seria concebível que ela, ou a humanida­ momento não precisamos perguntar-nos se o
de, poderia substituir Deus um dia. encontraremos numa disposição receptiva. Ele
De novo, esse indivíduo não ficaria tão sempre é receptivo à tristeza e à necessidade,
perturbado pelos pensamentos sobre a santi­ assim como ao amor e à fé. Ele não segue um
dade de Deus se fosse possível imaginar que horário comercial nem reserva períodos em
com o tempo Deus se tornaria menos santo, que não verá ninguém. Ele também não muda
chamando o que Ele hoje considera como pe­ de opinião a respeito de nada. Hoje, neste mo­
cado de não pecado, e ignoraria a culpa. O u, mento, Ele está voltado para Suas criaturas,
se Deus pudesse esquecer, logo o mal não se­ para os bebês, para os doentes, para os decaí­
ria tão problemático; se fosse dado tempo, ele dos, para os ímpios, com exatidão como fazia
poderia desvanecer-se na memória de Deus. quando enviou Seu único Filho ao mundo para
Todavia, a imutabilidade de Deus significa morrer pela humanidade. Deus nunca muda
que Ele será sempre soberano, sempre santo, Seu humor, esfria em Suas afeições ou perde
sempre onisciente. P or conseqüência, todas Seu entusiasmo. (T o z e r , 1961, p. 59)
as coisas devem ser trazidas à luz e julgadas
diante dele. Assim, temos grande conforto aqui. Se
O utro lado dessa doutrina diz respeito ao Deus variasse como Suas criaturas variam, se
cristão. Para nós é um grande conforto. Neste Ele quisesse uma coisa hoje e outra amanhã,
mundo as pessoas nos esquecem, mesmo quem confiaria nele ou seria encorajado por
quando trabalhamos duro e as servimos. Elas Ele? Ninguém. N o entanto, Deus é sempre o
mudam de atitude em relação a nós à medida mesmo. Sempre o encontraremos como Ele
que suas próprias necessidades e circunstân­ se revelou ser em Cristo Jesus.
cias determinam. C om frequência são injus­
tas, com o nós somos também. Contudo, P la n o s i m u t á v e i s ______________________________

Deus não é assim. Deus também é imutável em Seus propó­


N a verdade, a atitude dele em relação a sitos e planos. N ós com frequência mudamos
nós agora é a mesma que era na distância mais de planos. Em geral temos uma visão falha
remota da eternidade passada e será a mesma para antecipar tudo o que pode acontecer, ou
na distância mais longínqua da eternidade falta-nos o poder para executar o que nos
que está por vir. O Pai nos amará até o fim, propomos. Deus não é como nós a esse res­
como foi dito sobre Jesus: peito. “Infinito em sabedoria, não pode haver
erro na concepção de Seus planos; infinito em
Sabendo Jesus que já era chegada a sua poder, não pode haver falha na Sua realiza­
hora de passar deste m undo para o Pai, ção” ( H o d g e , 1960, p. 390).
D eus não é homem, para que minta; nem na terra, e debaixo da terra, e toda língua
filho de homem, para que se arrependa; confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para
porventura, diria Ele e não o faria? Ou glória de D eus Pai.
falaria e não o confirmaria? Filipenses 2.9-11
Números 23.19
E tolice resistir à glória de Cristo. Pode­
Arrependimento significa revisar o plano mos fazer isso agora, com o muitos o fazem,
de ação de alguém, entretanto Deus nunca faz contudo está chegando o dia quando Jesus
assim. Seus planos são feitos com base no per­ terá de ser confessado com o Senhor mesmo
feito conhecimento, e Seu poder perfeito p ro­ por aqueles que não o aceitaram com o Senhor
videncia sua realização. nesta vida. Nesses versículos a palavra que é
traduzida como confesse, exhomologeo, signi­
O conselho do S E N H O R perm anece para fica reconhecer com ação de graças.
sempre; os intentos do seu coração, de ge­ Por exemplo, é usada como um reconhe­
ração em geração. cimento ou uma confissão de pecado e da
Salmo 33.11 concordância de Judas com os príncipes dos
sacerdotes para trair seu Mestre. E nesse sen­
O S E N H O R dos Exércitos jurou, dizen­ tido de reconhecimento que a palavra é usada
do: Como pensei, assim sucederá; e, como sobre aqueles que se rebelaram contra a auto­
determinei, assim se efetuará. ridade de Cristo e a glória de Sua vida. Eles o
Isaías 14.24 rejeitaram aqui, mas vão reconhecê-lo na
eternidade. Eles não vão confessar com ale­
Lem brai-vos das coisas passadas desde a gria que Jesus Cristo é o Senhor, no entanto
antiguidade: que eu sou Deus, e não há vão confessá-lo enquanto estão sendo bani­
outro Deus, não há outro semelhante a dos de Sua presença para sempre.
mim; que anuncio o fim desde o princípio Segundo, o propósito de Deus para Seu
e, desde a antiguidade, as coisas que ainda povo redimido não mudará. Ele pretende trans-
não sucederam; que digo: o m eu conselho formá-lo à imagem de Jesus Cristo, como vimos
será firm e, e farei toda a minha vontade. no capítulo 13, e trazê-lo em segurança para Sua
Isaías 46.9,10 presença ao final de sua peregrinação terrena.
N a epístola aos Hebreus, considera-se
Salomão escreveu: Muitos propósitos há no que as promessas de Deus a Abraão revelam a
coração do homem, mas o conselho do S E ­ natureza de Sua promessa para nós.
N H O R perm anecerá (Pv 19.21).
Quais são as conseqüências da imutabili­ Porque, quando D eus fe z a promessa a
dade de Deus? Primeiro, se os propósitos de Abraão, como não tinha outro maior por
Deus não mudam, então os propósitos de quem jurasse, jurou p o r si mesmo, dizen­
Deus para Cristo também não mudarão. Seu do: Certamente, abençoando, te abençoa­
propósito é glorificar Cristo. rei e, multiplicando, te multiplicarei. E as­
sim, esperando com paciência, alcançou a
Pelo que também D eus o exaltou sobera­ promessa. Porque os homens certamente
namente e lhe deu um nome que é sobre juram p o r alguém superior a eles, e o jura­
todo o nome, para que ao nom e de Jesus se mento para confirmação é, para eles, o fim
dobre todo joelho dos que estão nos céus, e de toda contenda. Pelo que, querendo Deus
mostrar mais abundantemente a imutabili­ Os homens, às vezes, fazem afirmativas que
dade do seu conselho aos herdeiros da pro­ não sentem porque não conhecem sua própria
messa, se interpôs com juramento, para que mente; também porque suas perspectivas mu­
por duas coisas imutáveis, nas quais é im­ dam, eles com frequência descobrem que não
possível que Deus minta, tenhamos a firm e podem mais ficar firmes em relação ao que
consolação, nós, os que pomos o nosso refú­ disseram no passado. Todos nós, às vezes, te­
gio em reter a esperança proposta. mos de revogar nossas palavras, poríque fatos
Hebreus 6.13-18 duros as refutam. As palavras dos homens são
instáveis.
O propósito de Deus é trazer os Seus para Todavia, não é assim com a Palavra de Deus.
o desfrutar pleno de Sua prometida herança. Ela fica para sempre. Nenhuma circunstância
Ele o confirma por meio de um juramento vai induzi-lo a revogá-la; nenhuma mudança
imutável. Nesse propósito cada filho redimi­ em Seu próprio pensamento exige que Ele a
do de Deus deve ter ânimo. corrija. Isaías escreveu: Toda carne é erva
Por fim, o propósito de Deus para os ím­ [...]. Seca-se a erva, [...] mas a palavra de
pios não mudará. É Seu propósito julgá-los, e nosso Deus subsiste eternamente (Is 40.6-8).
Ele irá fazê-lo. Deus ao culpado não tem por (P a ck er , 1973, p. 70)
inocente (Ê x 34.7c). Muitas outras passagens
declaram com frequência o julgamento em si. Os cristãos devem ficar firmes nas pala­
A imutabilidade do julgamento divino de­ vras e promessas do Deus imutável. As pro­
ve ser uma advertência para qualquer um que messas do Senhor não são “relíquias de eras
não se voltou para o Senhor Jesus como Salva­ passadas”, com o Packer observa, mas sim a
dor, e deve impeli-lo a Cristo enquanto ainda revelação inalterável e válida da vontade do
há esperança. nosso Pai celestial. Suas promessas não se al­
A imutabilidade de Deus também significa terarão. U m homem e uma mulher sábios
que a verdade de Deus não muda. confiam nessa verdade.

N ota

1 O Breve Catecismo de Westminster foi formulado por teólogos ingleses e escoceses da Assembleia de Westminster,
no séc. 17. É um catecismo resumido, de orientação calvinista, composto de 107 questões. Ao lado da Confissão de
Fé de Westminster e do Catecismo M aior de Westminster, compõe os símbolos de fé das igrejas presbiterianas ao
redor do mundo. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Breve_Catecismo_de_Westminster)
Pa r t e

4
A Criação de Deus

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e do­
mine sobre os peixes do mar, e sobn as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra,
e sobn todo réptil que se move sobn a terra. E criou Deus o homem à sua imagem; à
imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou.
Gênesis 1.26,27

No princípio, criou Deus os céus e a terra.


Gênesis 1.1

E olhei e ouvi a voz de muitos anjos ao ndor do trono, e dos animais, e dos anciãos; e era
o número deles milhões de milhões e milhares de milhans, que com grande voz diziam:
Digno é o Cordeiro, que fõi morto, de nceber o poder, e riquezas, e sabedoria, e fõrça, e
honra, e glória, e ações de graças.
Apocalipse 5.11,12

Muitos propósitos há no coração do homem, mas o conselho do SENHOR permanecerá.


Provérbios 19.21
A CRIAÇÃO DO HOMEM

á três razões pelas quais a cria­ Todavia, o homem na verdade é e conside­


ção do homem deve ser estuda­ ra-se superior à criação ao redor dele. Ele go­
da quando estamos tratando do verna sobre a criação, e não por força bruta,
conhecimento de Deus: uma ge­ pois muitos animais são mais fortes. Em vez
ral, uma específica e uma teológica. disso, ele domina pelo poder de sua mente e
A razão geral é que a criação como um personalidade. Além disso, o homem tem a
todo revela algo do seu Criador, de modo consciência de Deus, que os animais não têm.
que, como visto no capítulo dois, embora o A consciência de Deus faz com que as pes­
homem não adore nem sirva a Deus, o que é soas se tornem culpadas aos olhos dele ao re-
revelado sobre Deus na natureza se insurgirá cusar-se a adorá-lo. Nenhum animal é culpa­
para confundir e condenar aquela pessoa. do de pecado moral ou espiritual. P or outro
A razão específica é que o homem, como lado, a consciência de Deus é também nossa
parte singular da criação, foi feito à imagem glória, pois nenhuma outra criatura pode da
de Deus, de acordo com a Bíblia. Assim, a mesma forma, em verdade, glorificar Deus e
humanidade revela aspectos de Deus que não regozijar-se nele eternamente.
são vistos no restante da criação. A Bíblia ressalta nossa alta posição quan­
Do ponto de vista teológico, uma vez que do declara no final do primeiro relato sobre a
não podemos ter um conhecimento direto de criação:
Deus, se quisermos conhecê-lo melhor e reve­
renciar nosso Criador, teremos de, ao menos, E disse Deus: Façamos o hom em à nossa
investigar a imagem dele em nós, pois embora imagem, conforme a nossa semelhança; e
tenhamos decaído ao pecar, fomos redimidos domine sobre os peixes do mar, e sobre as
por Cristo [tendo essa imagem restaurada]. aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda
O início do estudo sobre a criação de a terra, e sobre todo réptil que se move so­
Deus é a partir da humanidade, pois o homem bre a terra. E criou D eus o hom em à sua
é a parte mais importante da criação. Declarar imagem; à imagem de D eus o criou; ma­
que a humanidade é a parte mais importante cho e fêm ea os criou.
áa criação poderia ser considerado com o Gênesis 1.26,27
*.ima afirmação ingênua ou exacerbada, quer
iizer, se fôssemos peixes, sem dúvida ne­ Nesses versículos nossa singularidade e
nhuma, diríamos que os peixes foram os superioridade em relação ao restante da cria­
mais importantes. ção são expressas de três formas. Primeiro, é
dito que fomos criados à imagem de Deus, o era responsável por reconhecer seu status pela
que não é dito sobre as coisas nem sobre os obediência.
animais. Segundo, nos é dado domínio sobre A partir da Queda a liberdade foi ainda
peixes, pássaros, animais e mesmo sobre a ter­ mais restringida, tanto que, com o disse Agos­
ra. Terceiro, temos a repetição do verbo criou. tinho, o original posse non peccare [capacida­
O mesmo verbo é usado em apenas três de para não pecar] tornou-se um non posse
pontos da narrativa da criação: Primeiro, non peccare [não consigo não pecar]. Ainda
quando Deus criou matéria do nada (v. 1); se­ assim, há uma liberdade limitada para homens
gundo, quando Deus criou vida consciente (v. e mulheres mesmo em seu estado decaído, e
21); e terceiro, quando Deus criou a humani­ com isso vem a responsabilidade moral.
dade (v. 27). Em suma, não precisamos estar em peca­
A progressão é do corpo ou matéria para a do ou pecando, como ocorre com frequência.
alma, a personalidade, e para o espírito ou vi­ E mesmo quando pecamos por compulsão,
da com consciência de Deus. P or isso, a hu­ como pode ser o caso, sabemos que é errado.
manidade está situada no ápice da criação. Em vista disso, confessamos inadvertidamente
Com o Francis Schaeffer1 escreveu, ao re­ nossa semelhança com Deus, ainda que decaí­
petir o verbo criou, “é como se Deus pusesse dos em moralidade como em outras áreas.
pontos de exclamação aqui para indicar que O terceiro elemento no ser feito à imagem
há algo especial sobre a criação do homem” de Deus é a espiritualidade. A humanidade
( S c h a e f f e r , 1972, p. 33). existe para comunhão com Deus, que é Espí­
rito (Jo 4.24a). Essa comunhão é planejada
À im a g e m d e D e u s ____________________________
para ser eterna, como Deus é eterno.
Vamos observar de forma mais específica Aqui poderíamos declarar que, embora
o que significa ser criado à imagem de Deus. tenhamos corpo físico, como as plantas, e alma,
Um a coisa que isso significa é que o homem como os animais, só humanos têm espírito. E só
tem certos aspectos de personalidade de Deus, por termos espírito que podemos ter consciên­
mas os animais, as plantas e a matéria não. cia de Deus e estar em comunhão com Ele.
Para ter personalidade alguém deve ter Há um debate contínuo entre aqueles que
conhecimento, sentimentos, inclusive senti­ acreditam em uma construção de três partes de
mentos religiosos e vontade. Deus tem uma nosso ser e aqueles que acreditam que o homem
personalidade, e nós também. pode ser considerado só em duas partes. O de­
Afirmar que um animal tem alguma coisa bate não deve preocupar-nos excessivamente.
semelhante à personalidade humana faz senti­ Todas as partes do debate reconhecem que
do até certo ponto. Personalidade, no sentido os seres humanos consistem pelo menos da
em que estamos falando aqui, é uma coisa que parte física, que morre e precisa da ressurrei­
liga a humanidade a Deus, porém não liga nem ção, e de uma parte imaterial, que vive além da
a humanidade nem Deus ao resto da criação. morte, a parte que chamamos de a pessoa em
U m segundo elemento ao ser criado à si. A única questão é se a parte imaterial pode
imagem de Deus é a moralidade. A morali­ ser ainda mais distinguida por conter o que o
dade inclui os elementos adicionais de liber­ homem tem em comum com os animais (cor­
dade e responsabilidade. C om certeza, a li­ po e alma) e o espírito, que o relaciona a Deus.
berdade que o homem tem não é absoluta. Aqui os dados lingüísticos devem ser de­
Mesmo nos primórdios o primeiro homem, terminantes, contudo não são tão claros co ­
Adão, não era autônomo. Ele era criatura, e mo se poderia desejar. Às vezes, em particular
nos fragmentos iniciais do Antigo Testamento, O u, se eles aderem à ideia das duas partes,
alma, nephesh, e espírito, ruach, são usados de mesmo assim reconhecem que há algo sobre o
forma intercambiada, o que suscitou confusão. homem que o separa dos animais. Isso é o que
Todavia, com o passar do tempo, ruach a distinção entre espírito e alma no sistema de
cada vez mais veio a designar o elemento pelo três partes significa. Espírito, alma e corpo são
qual o homem se relaciona com Deus, em dis­ simplesmente bons termos para usar ao falar
tinção a nephesh, que significava apenas o sobre o que realmente significa ser humano.
princípio de vida. Em conformidade com essa O corpo é a parte da pessoa que vemos, a
distinção, alma é com frequência usada em parte que tem vida física. À primeira vista,
referência a animais, entretanto espírito não é. tendemos a pensar que isso é o que nos dife­
De modo inverso, dos profetas, que ouvi­ rencia de Deus, e em certo sentido é. Temos
ram a voz de Deus e tiveram comunhão com um corpo, Ele não. N o entanto, sob conside­
Ele em sentido especial, declara-se sempre rações posteriores, essa distinção não é tão
que são movidos pelo espírito, não pela alma óbvia quanto parece.
de Deus. Com o exemplo, temos a encarnação do
N o N ovo Testamento os dados lingüísti­ Senhor Jesus Cristo. O u ainda, o que veio
cos são semelhantes. Por isso, enquanto alma, primeiro à mente de Deus, o corpo de C ris­
psyche, e espírito, p neum a , são às vezes li­ to ou o corp o de A dão? C risto se tornou
vremente trocados um pelo outro, com o no com o nós p or meio da encarnação ou nós
Antigo Testamento, pneum a não obstante nos tornam os com o Ele por meio do ato
também expressa aquela capacidade particu­ criativo de Deus ?
lar de relacionar-se com Deus, que é a glória Calvino, que discute essa questão de ma­
da pessoa redimida, em oposição à psyche, neira breve em As Institutas, não acredita que
que mesmo os não salvos e os indiferentes Adão foi moldado ao padrão do Messias que
têm (1 C o 2.9-16). viria. O teólogo desconsidera a ideia de que
E possível, embora não exato, que nos es­ Cristo teria vindo mesmo que Adão não ti­
critos paulinos o espírito de um homem seja vesse pecado ( C a l v i n o , 1960, p. 186-189; 470-
considerado como estando perdido ou m orto 474). Contudo, as duas ideias não estão neces­
como resultado da Queda, e com o sendo res­ sariamente em conflito. Alguém poderia até
taurado apenas naqueles que foram regenera­ mesmo especular que, quando Deus andou
dos ( N i e b u h r , 1941, p. 151-152). pelo jardim com Adão e Eva antes da Queda,
Contudo, não podemos sair do ponto Ele o fez como segunda pessoa da Trindade,
principal aqui, pois, quer falemos de duas ou numa forma pré-encarnada, mas não corpórea.
de três partes do ser humano, um indivíduo de O ponto da discussão é que nosso corpo
qualquer maneira é uma unidade. A salvação tem grande valor e deve ser honrado pela ma­
dele consiste na redenção do todo, não mera­ neira com o o tratamos. Com o homens e mu­
mente da alma ou do espírito, assim como de lheres redimidos, devemos entender que nos­
modo paralelo cada parte é afetada pelo pecado. so corpo é templo de Deus (veja 1 C o 6.19).
Nessa área as palavras que foram usadas A alma é a parte do corpo que chamamos
em particular são menos importantes do que de personalidade. Esse também não é um as­
as verdades que elas devem transmitir. Mes­ sunto fácil de discutir. A alma está ligada ao
mo aqueles que insistiriam com mais força na corpo pelo cérebro, e é uma parte do corpo.
unidade do homem creem que ele é mais do Também é difícil pensar nela sem as qualidades
que matéria. que associamos ao espírito.

/SS
N o entanto, em termos gerais, a alma está mulher são a única e valiosa companhia para
relacionada pelo menos ao que torna o indiví­ Deus. Apoiados nessa ideia, precisamos ape­
duo uma pessoa única. Poderíamos esclarecer nas pensar no ensino do N ovo Testamento
que a alma se centraliza na mente e inclui as em relação a Cristo com o noivo, e à Igreja
preferências e os desagrados, habilidades es­ com o Sua noiva.
peciais ou fraquezas, emoções, aspirações e
qualquer outra coisa que torne o indivíduo A g en tes m o r a i s _____________________________

diferente de todos os outros. Porque temos O homem foi feito à imagem de Deus, e é
alma podemos ter comunhão, amor, e comu- por isso que somos agentes morais responsá­
nicar-nos uns com os outros. veis no universo de Deus. A responsabilidade
Todavia, a humanidade não tem comu­ moral está implícita nas faculdades de nosso
nhão, amor, nem se comunica apenas entre si. ser — conhecimento, sentimento, vontade,
Também temos amor por Deus e comunhão consciência de Deus — e no teste de obediên­
com Ele para o que precisamos de um espíri­ cia a Deus apresentado depois (Gn 2.16,17).
to. O espírito é, em vista disso, a parte da na­ Contudo, o conceito está presente mesmo
tureza humana que se relaciona com Deus e no relato da criação. O mesmo versículo que
partilha em certa medida da própria essência fala da decisão de Deus de fazer o homem à
de Deus. Sua própria imagem também nos declara o
N ão é dito em nenhum lugar que Deus é que se esperava dele: E dom ine sobre os p ei­
corpo ou alma, embora Ele possa ter cada um xes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre
desses aspectos nos sentidos indicados antes. o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo
N o entanto, Deus é definido com o espírito. réptil qu e se m ove sobre a terra (G n 1.26).
D eus é Espírito, disse Jesus. Logo, importa O domínio de qualquer uma dessas coisas,
que os que o adoram o adorem em espírito e entretanto, com particularidade dessa am­
em verdade (Jo 4.24). Porque o homem tem plitude, envolve a capacidade de agir com
espírito e torna-se uma nova criatura por responsabilidade.
meio do novo nascimento, ele pode ter comu­ Hoje no mundo ocidental há uma forte
nhão com Deus e amá-lo. tendência de negar a responsabilidade moral
Nisso está nosso verdadeiro valor. Somos humana com base em certo tipo de determi­
feitos à imagem de Deus e somos, por isso, nismo. A Bíblia não permite tal possibilidade.
valiosos para Deus e para os outros. Deus O determinismo de hoje em geral toma uma
ama o homem muito além do Seu amor pelos ou duas formas. Pode ser um determinismo
animais, plantas ou matéria inanimada. Além físico, mecânico — os seres humanos são pro­
disso, Ele tem compaixão do homem, identi­ duto dos seus genes e de química corporal —,
fica-se com ele em C risto, sofre por ele e in­ ou pode ser um determinismo psicológico —
tervém na história para transformar cada um os seres humanos são produto do seu am­
de nós no que Ele determinou que devería­ biente e da sua história passada.
mos ser. Em qualquer um dos casos o indivíduo é
Podemos ter uma ideia da natureza espe­ eximido de responsabilidade pelo que faz.
cial desse relacionamento quando lembramos P or conseqüência, passamos por um período
que, de maneira semelhante, a mulher, Eva, no qual o comportamento criminoso foi cada
foi feita à imagem do homem. Por conseqüên­ vez mais denominado de doença, e o crimino­
cia, ainda que diferente, Adão se via nela e a so era mais considerado uma vítima de seu
amava como sua companheira. O homem e a ambiente do que vitimador.
Recentemente tem havido uma tendência Segundo, as pessoas são responsáveis por
de pelo menos reconsiderar esse assunto. seus atos em relação às outras pessoas. Essa é
Apesar de menos escancarados, atos não me­ a razão de todas as declarações bíblicas insti­
nos moralmente repreensíveis ainda são justi­ tuindo a pena de morte com o uma resposta
ficados com afirmações do tipo: “Eu acho apropriada ao assassinato, com o, por exem­
que ele não tinha com o evitar isso”. plo, está escrito em Gênesis 9.6: Q uem derra­
A visão bíblica não poderia ser mais dife­ m ar o sangue do homem, pelo hom em o seu
rente. Schaeffer observa: “U m a vez que Deus sangue será derramado.
fez o homem à Sua própria imagem, o homem Tais versículos não estão na Bíblia como
não é apanhado pelas rodas do determinismo. relíquias de uma era mais bárbara ou porque
N a verdade, o homem é tão grandioso que na perspectiva bíblica as pessoas não têm va­
pode influenciar a história para si mesmo e lor. Em vez disso, eles estão lá pela razão con­
para outros, nesta vida e na vida que está por trária: porque as pessoas são valiosas demais
vir” (S c h a e f f e r , 1969, p. 80). para serem de forma arbitrária destruídas, e,
N o entanto, somos decaídos, mas mesmo em vista disso, as penas mais severas são re­
em nosso estado decaído temos responsabili­ servadas para aqueles que cometem tamanha
dade. Podemos fazer grandes coisas ou pode­ destruição.
mos fazer coisas terríveis, pelas quais teremos De maneira semelhante, em Tiago 3.9,10, é
de responder diante de Deus. proibido o uso da língua para amaldiçoar ou­
H á quatro áreas nas quais nossa responsa­ tros pela simples razão de que todos os ou­
bilidade deve ser exercida. Primeiro, ela deve tros também são feitos à imagem de Deus:
ser exercida em relação a Deus. Deus é aquele Com ela bendizemos a D eus e Pai, e com ela
que criou o homem e a mulher e deu a eles amaldiçoamos os homens, feitos á semelhança
domínio sobre a natureza criada. C om o con­ de D eus [...] Meus irmãos, não convém que
seqüência, seriam responsáveis em relação a isto se faça assim.
Deus pelo que fizessem com ela. Quando o Nesses textos, matar ou amaldiçoar al­
homem pecou, como o relato de Gênesis guém está proibido com base em que a outra
mostra, foi Deus que exigiu uma satisfação: pessoa, mesmo após a Queda, retém alguma
coisa da imagem de Deus e deve, p or isso, ser
O nde estás? Q uem te mostrou que estavas valorizada por nós, assim como Deus tam­
n u? Comeste tu da árvore de que te ordenei bém a valoriza.
que não comesses? [...] Por que fizeste isso? Terceiro, temos uma responsabilidade em
Gênesis 3.9,11,13 relação à natureza, que será discutida em mais
detalhes nos próximos capítulos. Precisamos
Nas centenas de anos desde o Éden, mui­ entender que a maneira como nos com porta­
tos se convenceram de que não devem satisfa­ mos em relação à natureza, seja se a cultiva­
ção a ninguém. mos e aprimoramos ou se a usamos ou des­
Contudo, o testemunho das Escrituras é truímos, não deixa de ter implicações morais.
que essa área de responsabilidade ainda per­ N em é um assunto indiferente para Deus.
manece, e que todos irão um dia responder a A profundidade dessa responsabilidade é
Deus no julgamento do grande trono branco. vista pela maneira como o próprio Deus fala
E os mortos foram julgados pelas coisas que da natureza, observando que a criação ficou
estavam escritas nos livros, segundo as suas sujeita á vaidade, devido à vontade do ho­
obras (Ap 20.12d). mem; no entanto, ela ainda será libertada da
servidão da corrupção, para a liberdade da tendência em direção a uma forma não refle­
glória dos filhos de D eus no momento da res­ xiva ou anti-intelectual de cristianismo, como
surreição final e consumação de todas as coi­ John Stott ressalta em Your M ind Matters
sas (Rm 8.20,21). [Sua mente é importante].
A quarta área de responsabilidade de um Esse anti-intelectualismo é malsucedido por­
indivíduo é em relação a si mesmo. D a manei­ que é pela mente que Deus fala conosco enquan­
ra como a Bíblia os descreve, o homem e a to estudamos Sua Palavra e refletimos sobre ela,
mulher foram feitos pouco menores do que os que faz com que cresçamos em graça pela reno­
anjos (Sl 8.5), isto é, foram colocados entre os vação do [nosso] entendimento (Rm 12.2b), e
seres mais superiores e os mais inferiores, en­ permite-nos ganhar outros ao fazermos uma
tre anjos e bestas2. defesa da nossa esperança cristã (ver 1 Pe 3.15).
É significativo que sejamos descritos co­
mo estando um pouco abaixo dos anjos, mas A posição atual cultivada em alguns círculos
um pouco acima das bestas. N osso privilégio cristãos de anti-intelectualismo [...] não é abso­
é sermos uma figura mediadora, todavia tam­ lutamente uma crença verdadeira, mas parte da
bém sermos alguém que olha para cima mais moda do mundo, portanto é uma forma de
do que para baixo. mundanismo. Denegrir a mente é menosprezar
Quando rompemos o laço que nos une a doutrinas cristãs fundamentais. Deus nos criou
Deus e tentamos lançar fora os Seus manda­ como seres racionais, e devemos negar a huma­
mentos, não nos levantamos para tom ar o nidade que Ele nos deu? Deus tem falado co­
lugar do Senhor, com o desejamos, porém nosco, e não devemos ouvir Suas palavras?
nos rebaixamos ao nível mais bestial. N a Deus não renovou nossa mente por intermédio
verdade, chegamos a pensar em nós mesmos de Cristo, para que pensemos com ela? Deus
com o animais, O macaco nu, ou, pior ainda, nos permite julgar por Sua Palavra, e não deve­
com o máquinas. mos ser sábios e construir nossa casa sobre essa
Em contraste, o homem redimido, que Rocha? (S t o t t , 1972, p. 26)
tem o laço com Deus restaurado, deve olhar
para o Pai e exercer com responsabilidade ca­ Certamente, os cristãos devem permitir
da parte de seu ser. Cada um de nós tem um que Deus os desenvolva intelectualmente,
corpo, e devemos usá-lo como o que ele real­ tornando-se conhecidos com o homens pen­
mente é: o templo do Espírito de Deus. N ão santes. Assim como Stott continua demons­
podemos permitir que ele seja corrompido trando, “sem respeito à mente não há adora­
por preguiça física, por comer em excesso, ção verdadeira, fé, santidade, orientação,
pelo uso de drogas, que causam dependência, evangelismo ou ministério cristão”.
pelo uso de álcool ou qualquer outra prática
debilitante. Im agem d e s p e d a ç a d a _______________________

Cada um de nós tem uma alma, e devemos Neste capítulo estudamos o homem como
usá-la em sua plenitude, permitindo que nos­ Deus o fez e pretende que ele seja, isto é, an­
sa mente e personalidade se desenvolvam à tes da Queda ou com o ele vai tornar-se em
medida que Deus nos abençoa e instrui. Cada Cristo. Contudo, não seria certo ignorar o
um de nós tem um espírito, que devemos exer­ fato de que, embora o homem tenha sido feito
citar ao adorar e servir ao Deus verdadeiro. à imagem de Deus, essa imagem tem sido
Os cristãos em particular precisam usar e manchada ou despedaçada com o resultado
desenvolver sua mente. Hoje há uma forte do pecado. É verdade, vestígios da imagem
permanecem. N o entanto, hoje não somos o destruiu o andar de cima p or inteiro. E s­
que Deus planejou. Somos seres decaídos, e combros caíram no segundo andar, danifi­
os efeitos da Queda são vistos em cada nível cando-o. O peso dos dois andares arruina­
do nosso ser: corpo, alma e espírito. dos mais o choque produziram rachaduras
Quando o Senhor deu a Adão e Eva o tes­ nas paredes do primeiro andar, de modo que
te da árvore proibida, que era para ser uma ele está condenado a desabar em algum m o­
medida de sua obediência e responsabilidade mento. Assim foi com Adão. Seu corpo era a
para com o Deus que os havia criado, Ele disse: habitação da alma, e seu espírito estava aci­
D e toda árvore do jardim comer ás livremente, ma dela. Quando ele caiu, o espírito foi com ­
mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela pletamente destruído, a alma arruinada, e o
não comerás;porque, no dia em que dela come- corpo destinado ao colapso e à ruína finais
res, certamente morrerás (Gn 2 .16b,17). ( B a r n h o u s e , 1966, p . 36-37).
Adão e Eva comeram da árvore proibida, N o entanto, a glória e a plenitude do
e de fato morreram. Seu espírito, aquela parte evangelho de Cristo são vistas com precisão
deles que tinha comunhão com Deus, morreu nesse ponto, pois quando Deus salva alguém
num instante. Sua morte espiritual é clara a Ele salva a pessoa por inteiro, começando pe­
partir do fato de que eles fugiram de Deus lo espírito, continuando com a alma e termi­
quando Deus os procurou no jardim. nando pelo corpo. A salvação do espírito vem
Desde então o homem tem fugido e se es­ primeiro, Deus estabelece contato com aque­
condido da presença do Senhor. Além disso, a le que se rebelou contra Ele. Essa é a regene­
alma, a sede do intelecto, com sentimentos e ração, ou o novo nascimento.
identidade, começou a morrer. Assim, o ho­ Deus começa a trabalhar na alma, reno-
mem começou a perder o senso de sua pró­ vando-a até a imagem do homem perfeito, o
pria identidade, a dar vazão a sentimentos Senhor Jesus Cristo. Esse trabalho é a santifi­
ruins e a sofrer a decadência do intelecto. cação. P or fim, temos a ressurreição na qual
A o descrever esse tipo de decadência, até o corpo é redimido da destruição.
Paulo afirmou que, ao rejeitar Deus, as pesso­ Além disso, Deus transforma a pessoa re­
as, de forma inevitável, dimida em uma nova criatura com o Paulo
afirma em 2 Coríntios 5.17. Ele não remenda
E m seus discursos se desvaneceram, e o seu o espírito antigo, a alma antiga e o corpo an­
coração insensato se obscureceu. Dizendo- tigo, com o se a casa que está para desabar es­
s e sábios, tornaram-se loucos. E m udaram teja apenas sendo reformada e recebendo uma
a glória do D eus incorruptível em seme­ nova demão.
lhança da imagem de hom em corruptível, N a verdade Deus cria um novo espírito,
e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. conhecido como o novo homem. Hoje somos
Romanos 1.21-23 salvos com o cristãos, porém também estamos
no processo de santificação, o que significa
P or fim, até mesmo o corpo morre. Por que o presente é importante.
isso, Deus declara: porquanto és pó e em p ó te Além disso, temos um olhar para o futuro,
tornar ás (Gn 3.19c). pois só no momento futuro da ressurreição a
Donald Grey Barnhouse comparou o re­ redenção que começou nesta vida será com ­
sultado da Queda do homem a uma casa de pletada, e nos colocaremos de modo perfeito
três andares que foi bombardeada durante a diante de nosso grande Deus e Salvador, o
guerra e severamente danificada. A bomba próprio Jesus Cristo.
N otas

1 Teólogo cristão evangélico norte-americano, filósofo e pastor presbiteriano. (In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fran-


cis_Schaeffer).

2 A referência de ter sido feito pouco m enor do que os anjos aplica-se em primeira instância à pessoa do Messias que
viria, o Senhor Jesus Cristo. Mas é em referência apenas à Sua encarnação que é dito isso. Portanto, a expressão e,
sem dúvida, todo o Salmo são corretamente entendidos como fazendo referência a homens e mulheres em geral. Os
versículos subsequentes referem-se ao passado, ao papel de domínio dado a Adão e Eva em Gênesis: Fazes com que
ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés (SI 8.6).
A NATUREZA

ão é suficiente estudar a natureza A O RIGEM DO UNIVERSO_____________________


humana para aprender sobre Deus A grande questão em relação à natureza é:
por meio da criação, pois a huma­ De onde vem o universo? Algo está lá — algu­
nidade não representa o todo da ma coisa imensa, intrincada e regular. Ele estava
ordem criada. A natureza foi criada primeiro, lá antes de nós. N ão podemos sequer imaginar
embora tenha menos importância que o ser nossa existência sem ele. Mas como ele chegou
humano, que foi a última obra na criação de lá? E como ele veio a ser da forma como o per­
Deus, tendo sido feito no sexto dia. cebemos? Com o em todas as grandes questões,
Quando o homem e a mulher foram cria­ apenas algumas respostas são possíveis.
dos já havia um lindo e variado universo esta­ A primeira perspectiva é que o universo
belecido por Deus para recebê-los. Assim, não teve origem. Isto é, não há origem para o
concluímos que a natureza deve ser estudada universo porque de alguma forma o universo
mesmo que não haja outra razão senão por sempre existiu; a matéria existiu. A segunda,
ela estar aqui, ter estado aqui primeiro e por tudo veio de alguma coisa pessoal, e essa coisa
ela fazer parte do nosso meio ambiente. pessoal era boa, o que corresponde à visão
Todavia, há razões mais importantes. Por cristã. A terceira, todas as coisas vieram de
um lado, a natureza também revela Deus, até alguma coisa pessoal, e essa coisa era ruim.
por si mesma. E uma revelação limitada, co ­ Por fim, a quarta: existe e sempre existirá um
mo já foi ressaltado várias vezes. Contudo, dualismo. Essa última perspectiva assume va­
ainda assim é uma revelação, e ela se torna riadas formas, dependendo se pensamos em
uma revelação mais completa para aqueles dualismo pessoal ou impessoal, moral ou
que estão redimidos. Esse pensamento é a ba­ amoral, as perspectivas estão relacionadas.
se do Salmo 19.1: Os céus manifestam a glória Algumas possibilidades podem ser redu­
de D eus e o firm amento anuncia a obra das zidas. A número três, que prevê uma origem
suas mãos. pessoal, maligna, do universo, não precisa ser
Existe uma distinção clara entre a humani­ analisada a fundo, pois, embora seja uma pos­
dade e as demais coisas criadas. Apenas o ho­ sibilidade filosófica, praticamente ninguém a
mem foi criado à imagem de Deus. Contudo, consideraria com seriedade.
os propósitos do Criador para a humanidade Ainda que seja possível pensar no mal co ­
serão revelados plenamente quando Seus pro­ mo uma corrupção do bem, não é realmente
pósitos para a natureza também tiverem se possível pensar no bem como tendo emergido
cumprido no plano de redenção. do mal. O mal pode ser um uso desvirtuado
de habilidades ou características outrora bo­ Se os dois poderes são julgados por esse pa­
as. Contudo, não há nada que possa originar drão, então o próprio padrão ou o Ser que o
o bem se apenas o mal existe. criou está além e acima de qualquer um dos
A quarta possibilidade também não é sa­ poderes. É Ele o Deus verdadeiro. N a rea­
tisfatória desde que suas deficiências não sejam lidade, quando dizemos que um poder é bom e
evidentes à primeira vista. A crença no dualis­ o outro é mau, entendemos que um está em
mo tem sido bem popular e perdurou por lon­ relação harmoniosa com o Deus verdadeiro e
gos períodos da história, entretanto ela não se supremo, e o outro, não. (L ew is , 2008, p. 57)
sustenta sob uma análise mais detalhada.
Isso porque, ao afirmar o dualismo, de De novo, podemos declarar que para que
imediato queremos passar dele para algum o poder maligno seja maligno ele deve ter os
tipo de unidade que o inclua. Senão, escolhe­ atributos de inteligência e vontade. Todavia,
mos uma parte do dualismo e a fazemos mais já que esses atributos são em si mesmo bons,
proeminente do que a outra; nesse caso, esta­ ele com certeza os obtém do poder benigno e,
mos na verdade dando preferência a uma en­ portanto, é dele dependente. N em uma origem
tre outras possibilidades. maligna para o universo, do qual o bem surgiu,
C. S. Lewis apontou para a armadilha des­ nem o dualismo de forma adequada dão conta
se sistema. De acordo com o dualismo, os da realidade da maneira como a conhecemos.
dois poderes, espíritos ou deuses, um bom e o Assim, a alternativa verdadeira está entre a
outro mau, são supostamente independentes visão que propõe uma eternidade da matéria
e eternos. U m não é responsável pelo outro, e ou a visão que entende que todas as coisas
cada um tem o mesmo direito de chamar a si vieram a existir pela vontade de um Deus pes­
mesmo de Deus. Cada um com presunção soal, moral e eterno.
pensa que é bom e o outro é mau. A primeira visão é a filosofia dominante
N o entanto, o que temos em mente quan­ da atual civilização ocidental. Essa visão em
do dizemos que um poder é benigno e o ou­ geral não nega que haja algo com o uma per­
tro é maligno? Queremos pura e simplesmen­ sonalidade no mundo hoje, ela a concebe co­
te afirmar que preferimos um ao outro? Se for mo tendo surgido de uma substância impes­
isso o que queremos dizer, temos de desistir soal. Ela não nega a complexidade do universo,
de qualquer discussão verdadeira sobre o entretanto supõe que a complexidade veio do
bem e o mal. E , se o fizermos, a dimensão que era menos complexo, e este, por sua vez,
moral do universo desaparece por completo, veio de algo ainda menos complexo, até que
e não nos resta nada mais do que a matéria, por fim chega-se ao que é o mais simples de
operando de determinadas maneiras. N ão todos, isto é, a matéria. A matéria, supõe-se,
podemos dizer isso e defender o dualismo. sempre existiu — porque não há outra infor­
Se, do contrário, queremos afirmar que mação além dessa. Essa visão é a base filosófica
um poder é benigno e o outro é maligno, na da ciência moderna, e é o que baseia a maior
verdade estamos apresentando um terceiro parte das ideias da Evolução.
fator no universo, uma lei, ou padrão, ou re­ N o entanto, tal descrição da origem do
gra geral do bem à qual o primeiro poder se universo já apresentou problemas que a p ró­
submete, e o outro, não. E esse fator, mais do pria teoria aparentemente não consegue re­
que os outros, se mostrará como sendo Deus. solver. Primeiro, falamos de uma forma para a
Lewis, em Cristianismo puro e simples, matéria e depois de formas mais complexas.
conclui: Porém, de onde vem essa forma?
Forma significa organização e talvez pro­ teológica, entretanto temos de reconhecer
pósito. Mas como organização e propósito isso porque, se não o fizermos, vamos de
podem surgir da matéria? Alguns insistiriam forma inevitável encontrar-nos procurando
que organização e propósito seriam inerentes explicações científicas para as coisas, e nos
à matéria, como genes em um óvulo ou esper­ desviaremos.
matozóide. N ão que o registro de Gênesis se oponha
Contudo, além de fazer com que a teoria a qualquer dado científico estabelecido; a ver­
não faça sentido — tais matérias não são mais dade em uma área, se de fato é verdade, nunca
que mera matéria —, a questão básica perma­ irá contradizer a verdade de outra área.
nece sem resposta, pois o problema é como a Ainda assim, Gênesis 1 não é uma forma
organização e o propósito chegaram até lá. de descrição na qual podemos ter expectativa
Em certo ponto, mais cedo ou mais tarde, te­ de encontrar respostas a questões puramente
mos de dar conta da forma; logo, nos encon­ científicas. N a verdade, é uma declaração das
tramos procurando por aquele que deu a for­ origens no campo dos significados, propósito
ma, a organização ou propósito. e relacionamento de todas as coisas com Deus.
Além disso, também apresentamos a ideia O capítulo apresenta mais três pontos. O
do pessoal; se começamos com um universo primeiro e mais óbvio: ele ensina que Deus
impessoal, não temos uma explicação crível estava no princípio de todas as coisas, e Ele
para o surgimento do ser humano. mesmo é aquele a partir de quem todas as coi­
Francis Schaeffer escreveu: sas vieram a existir. O capítulo resgata isso de
modo eloqüente nas primeiras quatro pala­
A hipótese de um começo impessoal nunca po­ vras: N o princípio criou D eus... Bem no co ­
de de forma adequada explicar os seres pesso­ meço, desse modo, nosso pensamento é di­
ais que vemos ao nosso redor, e quando tenta­ recionado para a existência e a natureza
mos explicar o homem com base no original desse Deus.
impessoal, ele logo “desaparece”. ( S c h a e f f e r , N a língua hebraica o nome para Deus nes­
1972, p. 21) se versículo é Elohim, um plural majestático.
P or ser plural, sugere que há dimensões em
O cristianismo começa pela pergunta pen­ Seu ser. N o capítulo 10, discuti com o isso e
dente. A doutrina cristã afirma que o univer­ outras evidências bíblicas sugerem três mem­
so existe com form a e personalidade, porque bros da Trindade com o estando presentes no
foi trazido à existência por um Deus pessoal e princípio, tendo existido antes de qualquer
metódico. E m outras palavras, o Deus pes­ outra coisa. Os elementos que associamos à
soal estava lá antes que o universo viesse a Trindade — amor, personalidade e comunica­
existir pela vontade dele. Ele criou tudo o que ção — são, portanto, eternos e têm valor. Essa
conhecemos, incluindo a nós. C om o conse­ é a resposta cristã para o medo do homem de
qüência, o universo com naturalidade traz estar perdido em um universo impessoal e ca­
essas marcas de Sua personalidade. rente de amor.
O segundo ponto mais importante de Gê­
No p r i n c í p i o ________________________________ nesis 1 é que a criação estava de acordo com
O que encontramos quando nos voltamos um desdobramento ordenado da mente e dos
para o capítulo de abertura de Gênesis? Aqui propósitos de Deus. Isto é, foi uma progres­
a visão cristã é estabelecida pela primeira vez são, marcada por uma seqüência de seis dias
e de form a definitiva. É uma declaração significativos.
Lemos esse relato e de imediato pensamos sobre Deus. Isso significa que, embora possa
em questões em consonância com uma linha ter havido algo com o um desenvolvimento
científica que gostaríamos que fosse respon­ evolutivo acontecendo nos períodos entre o
dida: A seqüência dos dias de Gênesis deve uso do verbo bara, não é o que acontece pelo
ser comparada à seqüência dos chamados pe­ menos nesses três pontos. Além disso, o capí­
ríodos geológicos? Os fósseis substanciam tulo ensina que toda a criação não foi um de­
essa narrativa? Qual era a duração dos dias senvolvimento aleatório, mas sim o resultado
— períodos de 24 horas ou épocas indefini­ da orientação direta de Deus.
das? E , talvez o mais importante, o relato de Deve ser observado que o mundo científi­
Gênesis dá lugar ao desenvolvimento evolu- co de hoje pode estar presenciando o começo
cionário guiado por Deus, ou ele requer uma de um movimento que se afasta de alguma
intervenção divina e a criação instantânea em forma da evolução naturalista, em particular
cada caso? do darwinismo, como uma explicação para o
O capítulo não responde a nossas per­ universo.
guntas. Observei que o relato de Gênesis é Para dar um exemplo, a edição de 1976 da
uma declaração teológica mais do que um H a rp er’s Magazine contém um importante
tratado científico, e precisamos ter isso em artigo de Thomas Bethell, editor do The Wa­
mente aqui. E verdade que o capítulo nos for­ shington Monthly, intitulado D arw in’s Mis-
nece base para especulação construtiva, e em take [O erro de Darwin].
alguns pontos até bem explícita. Todavia, não O artigo é essencialmente uma resenha
foi escrito para responder a tais questões; pre­ sobre estudos recentes da questão da evolução,
cisamos reconhecer isso. e o ponto principal é que os cientistas estão em
N a verdade, não há razões bíblicas sólidas vias de silenciar e abandonar a teoria de Da­
para rejeitarmos algumas formas da teoria rwin. Por quê? Porque, de acordo com Bethell,
evolucionista, contanto que ela seja com cui­ a teoria de Darwin não consegue dar conta da
dado classificada em pontos-chave. N ão há coisa mais importante que a evolução deveria
razão, por exemplo, para negar que uma for­ explicar, que são as espécies de plantas, peixes
ma de peixe possa ter evoluído de outra for­ e demais animais e outras formas de vida.
ma, ou mesmo que uma forma de animal ter­ N a abordagem de Darwin, o elemento
restre possa ter evoluído de uma criatura chave é a seleção natural, que supostamente
marinha. O termo hebraico bara, traduzido deveria explicar como as variadas formas vie­
para o nosso idioma como o verbo haja, que ram a existir. Todavia, quando os cientistas
aparece por todo o relato da criação, permiti­ voltam a examinar sua teoria, entendem que a
ria tal possibilidade. seleção natural explica apenas com o alguns
H á, entretanto, três pontos significativos organismos geravam mais prole que outros e
nos quais uma única ação de Deus para criar sobreviviam, mas não com o aconteceu para
em sentido especial parece ter sido assinalada que vários organismos, alguns dos quais so­
pelo poderoso verbo hebraico bara, que sig­ breviviam e outros que não sobreviviam,
nifica criou. Bara em geral significa criar do viessem a existir primeiro.
nada, o que sugere que a ação que o verbo Bethell, em O erro de Darwin, observou:
descreve é por isso uma prerrogativa de Deus.
E , como ressaltei no capítulo 15, esse ver­ Não há, então, nenhuma seleção na natureza,
bo é usado em Gênesis 1 para marcar a criação nem a natureza age como se afirma com tanta
da matéria, da personalidade e da consciência frequência em livros de biologia. Um organismo
pode de fato ser mais apto do que outro, do a terra feita na época de N oé — após a Q ue­
ponto de vista evolucionista, porém o único da. Naquele momento Deus declarou:
evento que determina essa habilidade é a
morte ou a infertilidade. Isso, é claro, não é E eu, eis que estabeleço o m eu concerto
algo que ajuda a criar o organismo, mas é algo convosco, e com a vossa semente depois de
que o extermina. vós, e com toda alma vivente, que convos­
Parece-me que Darwin está em processo de ser co está, de aves, de reses, e de todo animal
descartado, porém, talvez em deferência ao da terra convosco; desde todos que saíram
respeitável senhor, que repousa confortavel­ da arca [...] O m eu arco tenho posto na
mente na Abadia de Westminster ao lado de Sir nuvem ; este será p o r sinal do concerto en­
Isaac Newton, isso está sendo feito tão discreta tre m im e a terra.
e delicadamente, com um mínimo de publici­ Gênesis 9.9,10,13
dade. (B e t h e l l , 1976, p. 70-75)
Aqui o cuidado de Deus é expresso não
O terceiro ponto no relato da criação em por N oé e pelos homens que estavam com ele
Gênesis é o pronunciamento moral de Deus na arca, todavia pelas'aves, pelo gado e até
sobre o que Ele havia feito, traduzido na ex­ mesmo pela própria terra. Toda a Sua criação é
pressão repetida: E viu D eus que era bom. boa. De forma semelhante, Romanos 8 expres­
Esse pronunciamento não é feito com refe­ sa o valor de tudo o que Deus criou. Ele pre­
rência a algum objeto para o qual nós pode­ tende redimir toda a terra afligida pela Queda.
mos apontar e declarar de forma pragmática:
“Esse objeto é útil para mim”. A mesma criatura será libertada da servi­
O pronunciamento de Deus sobre a be- dão da corrupção, para a liberdade da gló­
nignidade do restante da criação veio antes ria dos filhos de Deus. Porque sabemos que
mesmo que nós tivéssemos sido feitos. E isso toda a criação gem e e está juntam ente com
quer mostrar que uma árvore, para dar um dores de parto até agora. E não só ela, mas
exemplo, não é boa só porque podemos cor- nós mesmos, que temos as primícias do Es­
tá-la e fazer uma casa com ela ou porque pode­ pírito, também gememos em nós mesmos,
mos queimá-la para nos aquecermos. Ela é boa esperando a adoção, a saber, a redenção do
porque Deus a fez e declarou que ela era boa. nosso corpo.
Ela é boa porque, como tudo o mais na cria­ Romanos 8.21-23
ção, ela está de acordo com a natureza de Deus.
Schaeffer escreveu sobre essa bênção divina: A RESPOSTA DA NATUREZA___________________
O valor da criação nos leva a uma co n ­
Este não é um julgamento relativo, porém um clusão natural: se Deus considera o univer­
julgamento do Santo Deus, que tem um caráter, so bom em cada parte e com o um todo, em
e cujo caráter é a lei do universo. tal caso precisamos considerá-lo assim tam ­
Cada passo e cada esfera da criação, e todas as coi­ bém. Isso não quer dizer que nos recusare­
sas colocadas juntas — o próprio homem e seu mos a ver que a natureza foi corrom pida
ambiente na totalidade, os céus e a terra — estão pelo pecado.
de acordo com Ele. (S chaeffer , 1972, p. 55) De fato, os versículos de Gênesis 9 e R o­
manos 8 não têm explicação sem a percepção
A avaliação de Deus em Gênesis 1 é con­ de que a natureza sofreu em conseqüência da
firmada pela aliança dele com a humanidade e Queda da humanidade. Ela foi estragada por
espinhos, ervas daninhas, doenças e pela mor­ se entregou p o r ela, para a santificar, puri­
te. Contudo, mesmo em seu estado corrom ­ ficando-a com a lavagem da água, pela
pido ela tem valor, assim como a humanidade palavra, para a apresentar a si mesmo
decaída. P or isso, devemos ser gratos pelo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga,
mundo que Deus criou e louvá-lo. nem coisa semelhante, mas santa e irre­
E m algumas expressões de crenças e pen­ preensível.
samentos cristãos, apenas a alma tem valor. Efésios 5.25-27
Essa visão nem é correta nem é cristã. N a ver­
dade, a elevação do valor da alma e a degrada­ De modo semelhante, homens e mulheres,
ção do corpo e de outras coisas materiais é juntos, devem de maneira apropriada buscar
uma ideia pagã grega, baseada numa falsa santificar e purificar a terra, para que ela seja
compreensão da criação. mais com o Deus a criou, em antecipação a sua
Se Deus tivesse feito só a alma ou espírito, redenção final.
e se o mundo material tivesse vindo de uma C om certeza nosso planeta deve ser usado
origem menos importante ou maligna, em tal pelas pessoas de modo sustentável. Onde há
caso os gregos estariam certos. Contudo, a árvores em abundância, algumas podem ser
visão cristã é que Deus fez tudo o que há e cortadas para fazer madeira para uma casa.
que, portanto, tudo tem valor e deve ser valo­ N o entanto, não devem ser cortadas simples­
rizado por causa de sua origem. mente pelo prazer de cortá-las ou porque é a
Devemos deleitar-nos na criação. Delei- maneira mais fácil de aumentar o valor de um
tar-se está intimamente ligado a ser grato, terreno. Em cada área deve-se pensar com
entretanto é um passo além. É um passo que cuidado no valor e propósito de cada coisa, e
muitos cristãos nunca deram. Muitas vezes os deve haver uma abordagem cristã, em vez de
cristãos olham para a natureza apenas como uma abordagem puramente utilitária para ela.
uma das provas clássicas da existência de P or fim, após ter contemplado a natureza
Deus. Em vez disso, eles deveriam na verdade e chegado a valorizá-la, os cristãos devem
apreciar o que veem. Devemos apreciar a be­ voltar-se para o Deus que a fez e a sustenta a
leza natural. Além disso, devemos exultar nela cada momento e aprender a confiar nele.
mais do que não cristãos por causa da revela­ Deus se preocupa com a natureza, apesar do
ção de Deus que está por trás da natureza. abuso que ela sofre pelos nossos pecados.
Os cristãos devem demonstrar uma res­ Contudo, se Ele se importa com a nature­
ponsabilidade em relação à natureza. N ão za, podemos confiar nele para cuidar de nós
devemos destruí-la, mas sim buscar elevá-la a também. Tal argumento aparece no meio do
seu mais pleno potencial. Sermão do Monte, quando Cristo chama a
H á um paralelo aqui entre a responsabili­ nossa atenção para o cuidado de Deus com as
dade de homens e mulheres em relação à cria­ aves, a vida animal, os lírios e a vida vegetal.
ção e a responsabilidade do marido em rela­ O Senhor Jesus pergunta:
ção a sua esposa no casamento. N os dois
casos, a responsabilidade é baseada em um Não tendes vós muito mais valor do que
domínio dado por Deus ainda que os dois elas? [...] Pois, se D eus assim veste a erva
não sejam idênticos. do campo, que hoje existe e amanhã é lan­
çada no forno, não vos vestirá muito mais
Vós, maridos, amai vossa mulher, como a vós, homens de pequena fé ?
também Cristo amou a igreja e a si mesmo Mateus 6.26c-30
O MUNDO ESPIRITUAL

ntes que homens e mulheres fos­ acima, a terra, abaixo. As mitologias grega e
sem criados, Deus já havia criado romana falavam de deuses e semideuses visi­
um universo belo e variado para tando a terra.
recebê-los, como vimos no capítu­ Assim é com praticamente todas as civili­
lo anterior. zações da Antiguidade. Críticos da Bíblia às
Todavia, se Jó 38.7 é para ser entendido co­ vezes consideram sua referência ao mundo
mo se referindo a anjos, como há todas as ra­ espiritual com o evidência de que a Bíblia
zões para crer que assim o é, mesmo antes da também é mitologia, isto é, com o não tendo
criação do universo material havia um vasto nenhuma base factual, pelo menos nessa área.
mundo de seres espirituais. N o entanto, é igualmente possível que as
N ão sabemos quando foram criados. N a mitologias na verdade preservem uma memó­
verdade, sabemos pouco sobre eles. Contudo, ria distorcida de uma experiência primitiva da
sabemos que eles existiram antes de tudo o que civilização. Essa possibilidade é acentuada,
podemos ver que foi criado e que existe hoje. mesmo para não cristãos, pela impressionante
Como Deus disse a Jó: renovação de interesse atual pelo mundo dos
espíritos.
O nde estavas tu quando eu fundava a ter­ Tais seres existem? Anjos e demônios de
ra? Faze-mo saber, se tens inteligência. fato existem? Eles visitam a terra? A Bíblia dá
Q uem lhe pôs as medidas, se tu o sabes f Ou respostas fidedignas a tais questões. Embora
quem estendeu sobre ela o cordelf Sobre seja verdade que a Bíblia não nos mostra tudo o
que estão fundadas as suas bases, ou quem que gostaríamos de saber — muito sobre a ori­
assentou a sua pedra de esquina, quando as gem e função do mundo espiritual é envolto em
estrelas da alva juntas alegremente canta­ mistério —, ela com certeza nos afirma o que é
vam, e todos os filhos de Deus rejubilavam? preciso saber e expõe-nos de modo verdadeiro.
Jó 38.4-7
Os a n j o s _________________________________________
É interessante, à vista do testemunho da Anjos são mencionados mais de 100 vezes
Bíblia sobre a existência de espíritos, que as no Antigo Testamento e mais de 160 vezes no
mitologias de civilizações antigas também N ovo. Sabemos que eles são mensageiros de
reivindicam sua existência. A mitologia babi- Deus — esse é o significado da palavra anjo.
lônica retratava os espíritos com o deuses que Eles foram criados e, por isso, não são eter­
traziam mensagens do mundo dos deuses, nos. Existem em vasto número.
E olhei e ouvi a voz de muitos anjos ao re­ trono de Deus e protegem Sua santidade de
dor do trono, e dos animais, e dos anciãos; qualquer contaminação pelo pecado (Gn 3.24;
e era o núm ero deles milhões de milhões e Ê x 25.18,20; E z 1.1-18). Deus instruiu que que­
milhares de milhares. rubins de ouro fossem colocados sobre o propi-
Apocalipse 5.11 ciatório da arca da aliança dentro do Santo dos
Santos do tabernáculo judeu. O querubim pode
Os anjos têm personalidade; eles rendem ser idêntico ao serafim descrito em Isaías 6.2-7.
louvor inteligente a Deus: Com grande voz Por fim, há um vasto número de hostes
diziam: Digno é o Cordeiro, que fo i morto, de angelicais para as quais não é dado nenhum
receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, nome especial. São descritas como os anjos
e honra, e glória, e ações de graças (Ap 5.12). eleitos, para distingui-las daqueles anjos que
Algumas dessas qualidades também são pecaram com Satanás e caíram (1 Tm 5.21).
indicadas pelos termos usados para nos refe­ A grandeza e a complexidade do mundo
rirmos a eles nas Escrituras. São chamados de angelical são suficientes para despertar em
exércitos celestiais (Lc 2.13), por exemplo. Isso nós o desejo de estudá-lo. Mas, além disso, tal
sugere que, como as tropas de um imperador o estudo aumenta nosso senso da glória de
cercam e servem a ele, assim esses seres servem Deus. Calvino observou: “se ansiamos co­
a Deus e tornam Sua glória visível. nhecer as obras de Deus, de modo algum se
Também são chamados de prinápados, po­ deve omitir tão preclaro e nobre exemplar
deres, potestades, domínios, autoridades e tro­ com o Seus anjos” ( C a l v in o , 1960, p. 162).
nos (Ef 1.21; Cl 1.16) porque são aqueles por
meio de quem Deus administra Sua autoridade O M IN ISTÉRIO DOS ANJOS____________________

no mundo. O primeiro e mais óbvio trabalho dos an­


A Bíblia também revela algo dentro da jos é a adoração e o louvor ao Senhor, que
hierarquia angelical; algumas classes ou or­ vemos em muitas passagens da Bíblia. Por
dens de anjos são mencionadas. exemplo, Isaías escreveu que os serafins, que
N a primeira classe está o anjo mais men­ estavam acima do trono de Jeová, clamavam
cionado na Bíblia: Miguel. Os nomes de ape­ uns para os outros, dizendo: Santo, Santo,
nas dois anjos estão registrados. Ele é descrito Santo é o S E N H O R dos Exércitos; toda a ter­
como sendo o arcanjo, que é o cabeça de to­ ra está cheia da sua glória (Is 6.3).
dos os santos anjos. Seu nome significa aque­ Daniel descreveu a cena com o envolvendo
le que é como D eus (Dn 10.21; 12.1; 1 Ts 4.16; uma quantidade maior de anjos.
Jd 1.9; Ap 12.7-10).
Um a segunda categoria contém aqueles Eu continuei olhando, até que foram pos­
que são como mensageiros especiais de Deus. tos uns tronos, e um ancião de dias se as­
O segundo anjo mencionado pelo nome, Ga­ sentou; a sua veste era branca como a ne­
briel, estaria nessa categoria, pois foi incumbido ve, e o cabelo da sua cabeça, como a limpa
de uma revelação especial para Daniel, a mensa­ lã; o seu trono, chamas de fogo, e as rodas
gem de Zacarias sobre o nascimento de João dele, fogo ardente. Um rio de fogo mana-
Batista, e o anúncio do nascimento de Jesus à va e saía de diante dele; milhares de mi­
virgem Maria (Dn 8.16; 9.21; Lc 1.18,19,26-38). lhares o serviam, e milhões de milhões es­
Um a terceira categoria engloba aqueles tavam diante dele; assentou-se o juízo, e
anjos chamados de querubins. São descritos abriram-se os livros.
com o criaturas magníficas que rodeiam o
Em Apocalipse, os anjos — descritos co ­ Porque aos seus anjos dará ordem a teu res­
mo as quatro criaturas viventes, os 24 anciãos, peito, para te guardarem em todos os teus
que poderiam ser seres humanos redimidos, e caminhos. Eles te sustentarão nas suas mãos,
os milhares de milhares de seres espirituais — para que não tropeces com o teu p é em pedra.
não descansam nem de dia nem de noite, di­ Salmo 91.11,12
zendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o
Todo-poderoso, que era, e que é, e que há de O anjo do S E N H O R acampa-se ao redor
vir (Ap 4.8). dos que o temem, e os livra.
O fato de que anjos adoram a Deus em tão Salmo 34.7
grande número deveria tanto nos humilhar
como nos encorajar em nossa adoração. D e­ Sob um ponto de vista prático, se os cris­
veria humilhar-nos porque Deus não ficaria tãos pensassem com mais frequência nessa
privado de adoração mesmo se deixássemos proteção angelical, sentiriam menos medo
de honrá-lo. Os anjos já fazem isso. P or ou­ das circunstâncias e dos inimigos. A o mesmo
tro lado, deveria encorajar-nos porque nossa tempo, nosso esquecimento é compreensível,
voz um dia será unida às vozes do grande co­ pois em geral anjos não são visíveis para nós.
ro angelical (Ap 7.9-12; 19.1-6). Somos como o servo de Eliseu em D otã
Segundo, os anjos servem a Deus como diante de sua visão do exército de Deus. Eli­
agentes de Suas muitas obras. Lemos que os seu revelara os planos de Ben-Hadade da Sí­
anjos estavam presentes na criação (Jó 38.7) e ria, inimigo de Israel, ao rei de Israel, e Ben-
na entrega da Lei; é dito que a Lei foi dada -Hadade havia retaliado tentando capturar
por ordenação dos anjos (A t 7.53; G 1 3.19; Hb Eliseu. Assim, à noite, ele havia cercado Dotã,
2.2). U m anjo foi o veículo da revelação de onde Eliseu e seu servo estavam hospedados.
Deus a Daniel; muitos foram usados para re­ Ele estava presente com toda a sua força,
velar eventos futuros ao apóstolo João (Dn quando o servo de Eliseu saiu da cidade para
10.10-15; Ap 17.1; 21.9; 22.16). Gabriel anun­ buscar água na manhã seguinte.
ciou o nascimento tanto de João Batista como O relato mostra que o servo descobriu
de Jesus Cristo (L c 1.11-38; 2.9-12; M t 1.19- um exército ao redor da cidade, com cavalos e
23). Muitos anjos cantaram por esse evento carros. Ele ficou aterrorizado! Então, correu
na presença dos pastores (L c 2.13,14). para Eliseu dizendo: A i! M eu senhor! Que
De forma semelhante, após a tentação de farem os? (2 Rs 6.15).
Cristo, anjos se fizeram presentes para minis­ Eliseu respondeu: Não temas; porque mais
trar a Ele (Mt 4.11), assim como no jardim do são os que estão conosco do que os que estão
Getsêmani (Lc 22.43), na ressurreição, para com eles (2 Rs 6.16). Depois ele orou para que
anunciar a vitória de Cristo sobre a morte às mu­ os olhos do jovem fossem abertos para ver os
lheres que tinham ido ao sepulcro (Mt 28.2-7), e anjos do Senhor.
em Sua ascensão (At 1.10,11). Eles aparecerão de
novo em grande número na segunda vinda de E o S E N H O R abriu os olhos do moço, e
Cristo (Mt 24.31; 25.31; 2 Ts 1.7). viu; e eis que o monte estava cheio de ca­
Terceiro, os anjos são servos espirituais valos e carros de fogo, em redor de Eliseu.
enviados para ajudar e defender o povo de 2 Reis 6.17
Deus. Portanto, lemos primeiro em referên­
cia a Cristo, porém agora em referência a nós O s anjos feriram os exércitos de Ben-
mesmos com o Seu povo: -H adade com cegueira, para que Eliseu
pudesse levá-los cativos até a capital israe­ ao domínio de Deus e a prejudicar Seu povo.
lita de Samaria. Eles compõem uma força grande e terrível,
De modo semelhante, lemos que um anjo com o a Bíblia os descreve.
de Deus matou 185 mil soldados da Assíria N o entanto, não nos são descritos para
para livrar Jerusalém dos exércitos de Sena- nos induzir ao pavor, mas para nos alertar do
queribe nos dias do rei Ezequias. perigo, a fim de que nos aproximemos de
U m quarto ministério especial dos anjos é Deus com o aquele que pode proteger-nos. O
servir ao povo de Deus no momento de sua número de anjos decaídos pode, de certa for­
morte. N ão há muitos textos para argumentar ma, ser mensurado, como lemos na passagem
sobre esse ponto, entretanto, deve ser obser­ que registra que Maria Madalena foi liberta
vado que, de acordo com Jesus, anjos carrega­ de sete deles (M c 16.9; L c 8.2), e no texto em
ram Lázaro para o seio de Abraão (Lc 16.22). que denominaram a si mesmos de Legião,
Por fim, anjos serão agentes de Deus nos quando possuíram o homem que Cristo en­
julgamentos finais profetizados para os ho­ controu no território dos gadarenos defronte
mens, os demônios e este mundo. A extensão à Galileia (L c 8.26-33).
desses julgamentos é descrita de modo mais Qual é o propósito de Deus ao contar-nos
detalhado no livro de Apocalipse do que em sobre esse exército?
qualquer outro lugar.
Primeiro, haverá uma série de julgamen­ Por essa razão, prevenidos também de que in­
tos parciais contra a terra que será revelada cessantemente nos ameaça o inimigo, e um
pela abertura dos selos (Ap 6.1 —8.1), pelas inimigo prestíssimo em audácia, vigoroso em
trombetas que serão tocadas (Ap 8.2 — 11.19) forças, astuto em estratagemas, infatigável em
e pelas sete salvas de ouro cheias da ira divina diligência e presteza, munido de todos os ape­
que serão derramadas (Ap 15.1 — 16.21). E s­ trechos bélicos, com habilidade na arte de
ses julgamentos ocupam a parte principal do guerrear, conduzamos tudo a este fim: que não
livro, e os anjos estão associados a cada um. nos deixemos sobrepujar por inércia ou pusila-
Segundo, haverá um julgamento contra a nimidade, mas, em contraposição, tendo o âni­
grande cidade da Babilônia, talvez um símbo­ mo soerguido e despertado, finquemos pé a re­
lo de Roma e daqueles associados a ela em sistir; e uma vez que essa beligerância não se
seus pecados. Os anjos também farão parte finda senão com a morte, exortemo-nos à perse­
desse julgamento (Ap 17.1 — 18.24). verança. Sobretudo, porém, cônscios de nossa
Terceiro, haverá o julgamento contra a insuficiência e obtusidade, invoquemos a assis­
besta, provavelmente o anticristo, e contra tência de Deus a nosso favor, nem tentemos
Satanás e o falso profeta (Ap 19.17—20.3,10). coisa alguma, senão apoiados nele, visto que só
Enfim, ocorrerá o julgamento do grande tro ­ a Ele pertence o ministrar conselho, força, cora­
no branco, no qual os mortos serão julgados gem e armas. (C alvino , 1960, p. 173)
de acordo com suas obras (Ap 20.11-15).
O ponto para começarmos a colocar-nos
A n jo s d e c a í d o s ______________________________
contra Satanás e seus exércitos é no conheci­
A menção do julgamento, incluindo a sen­ mento do próprio diabo, tanto de suas forças
tença contra Satanás, alude a um segundo as­ com o de suas fraquezas. E o ponto para co­
pecto desse assunto. De acordo com a Bíblia, meçarmos a conhecer Lúcifer é o fato de que
há legiões de anjos decaídos que, sob o domí­ ele é real e pessoal. Ele é real no sentido de
nio de Satanás, estão determinados a opor-se que não é fruto da imaginação humana, e é
pessoal no sentido de que não é uma vaga um dia, afirma-se, perambular pela cidade
personificação do mal. Jesus deu testemunho destruída e deserta. A palavra hebraica para
dessas verdades quando se referiu a Satanás esse animal ou criatura é sair, que traduzida
pelo nome (Mt 4.10; 16.23; L c 22.31) e quan­ significa um bode selvagem. Contudo, poucos
do o venceu no momento de Sua tentação no sabiam o que essa palavra significava. Assim,
deserto (M t 4.1-11). em algumas traduções antigas da Bíblia, ela é
A ideia de um demônio pessoal tem sido chamada de sátiro, que era uma das figuras da
negada por grandes segmentos da Igreja cris­ mitologia metade humana metade besta.
tã, e para alguns já se tornou quase motivo de Considerava-se, portanto, que a Bíblia
piada. P or causa do revivescimento da bruxa­ descrevia uma criatura idêntica à popular fi­
ria e do satanismo nos dias atuais, talvez não gura de Satanás, e a prática medieval parecia
seja motivo de piada como antes. Contudo, justificada. Em tempos modernos, devido a
muitos considerariam pensamentos sobre a uma falta de suporte semelhante, o diabo tem
existência de um demônio real algo duvidoso. sido concebido como o tentador sofisticado
Para o imaginário popular, o diabo é uma da Lenda de Fausto2 ou da popular peça tea­
criatura vermelha com chifres e rabo. Essa tral e filme D am n Yankees3.
não é a imagem de Satanás retratada na Bíblia. Já que o diabo da ficção é tão inacreditá­
O apóstolo Paulo observou que não éra­ vel, não é de se admirar que milhões não o
mos ignorantes dos ardis de Satanás (2 C o levem em conta. Todavia, isso é um erro. De
2.11). A palavra ardil significa truque, arma­ acordo com Jesus, não só o diabo existe, co­
dilha, sagacidade, estratagema. Em vista dis­ mo também aqueles que o seguem. N a verda­
so, o ponto é que os cristãos sabem, ou deve­ de, o Mestre advertiu Seus discípulos de que
riam saber, das armadilhas do diabo, que deveriam orar: E não nos induzas á tentação,
buscam enganar as pessoas e ganhá-las para mas livra-nos do mal (M t 6.13a).
ele. Um a delas, a qual ele usa em momentos
da história, é fazer as pessoas acreditarem que U m s e r d e c a í d o _____________________________
ele não existe. O diabo também é um ser decaído, como
A figura de um pequeno ser com chifres Jesus ensinou em João 8.44: ele fo i homicida
teve um desenvolvimento interessante, a pon­ desde o princípio e não se firm ou na verdade,
to de surgirem suposições de que estivesse de porque não há verdade nele; quando ele pro­
forma errada ligada à Bíblia. fe re mentira, fala do que lhe épróprio, porque
N a Idade Média, quando a maioria das é mentiroso e pai da mentira. Jesus também
pessoas era analfabeta e a Igreja utilizava “mi­ disse: E u via Satanás, como raio, cair do céu
lagres”1 para ensinar princípios bíblicos bási­ (L c 10.18).
cos, havia uma necessidade de fazer com que Essa questão também é com frequência
qualquer personagem representando o diabo rejeitada por homens e mulheres, mesmo
fosse de imediato reconhecido no palco. A quando acreditam no diabo. Em vez de cre-
convenção escolhida era baseada na ideia pa- rem que Satanás é uma forma depravada do
gã em voga, de acordo com a qual Satanás se­ que fora outrora, eles preferem imaginá-lo
ria de alguma forma um m onstro com chifres. com o um herói, mais ou menos com o o
Acreditava-se que essa caricatura tinha res­ campeão dos homens decaídos.
paldo na Bíblia. John M ilton4, ainda que não tenha glori-
Em Isaías 13, em uma profecia contra a ficado Satanás, não obstante contribuiu para
Babilônia, há menção de uma criatura que iria corroborar essa ideia.
Em bora seja verdade que nas páginas ini­ seguinte à Queda de Adão e Eva foi um assassina­
ciais de seu grande épico, O paraíso perdido, to; como resultado da Queda, Caim assassinou
Milton de fato descreve a queda de Satanás do seu irmão. Também lemos que Satanás entrou em
céu e mais tarde prevê seu julgamento final, Judas para que entregasse Cristo nas mãos de
também é verdade que grande parte do seu Seus inimigos, a fim de ser crucificado (Jo 13.2). A
primeiro livro desse épico descreve os esfor­ história de Satanás é escrita com sangue.
ços heroicos de Lúcifer para erguer-se das Também é escrita com engano, porque o
profundezas do inferno e fazer algo a partir diabo é um mentiroso, como Cristo disse. Sa­
de seu suposto novo reino. tanás mentiu para Eva quando se esforçou
Milton faz isso de forma tão brilhante que para convencê-la a comer o fruto da árvore
é impossível não se solidarizar com Satanás. proibida: Certamente não morrereis (Gn 3.4).
Extraímos, porém, uma impressão bem dife­ Todavia, Eva de fato morreu.
rente das Escrituras. Em 1 Reis lemos que um espírito mentiro­
Para começar, Satanás nunca esteve no in­ so, supostamente um demônio, possuiu os
ferno e não o controla. A Bíblia nos mostra profetas de Acabe para que ele travasse uma
que Deus criou o inferno, preparando-o, em batalha contra os Sírios e fosse derrotado em
parte, para o diabo e seus anjos, que um dia Ramote-Gileade (1 Rs 22.21-23).
serão enviados definitivamente para lá. Em Atos ficamos sabendo que Satanás en­
A Bíblia também caracteriza Satanás co ­ cheu o coração de Ananias para fazê-lo men­
mo tendo sido outrora cheio de sabedoria e tir sobre o preço de sua propriedade; como
perfeito em formosura. Afirma que ele antes conseqüência, Ananias morreu (At 5.3). Sata­
estava no Éden, jardim de Deus, que era p er­ nás mente hoje.
feito em todos os seus caminhos desde o dia Por isso, temos de considerá-lo perigoso,
em que fora criado, até que a iniqüidade foi enganador e malicioso, entretanto, acima de
encontrada nele (E z 28.12-15). tudo, um pecador e um fracassado. Ele pecou
Em Isaías 14.13,14 ficamos sabendo que a quando deixou de permanecer em seu gran­
queda de Satanás foi por causa de seu orgu­ dioso chamado.
lho, expresso por meio de um desejo arrogan­
te de ficar no lugar de Deus. Satanás declarou: U m s e r l i m i t a d o ____________________________
P or fim, Satanás é um ser limitado, pois
E u subirei ao céu, e, acima das estrelas de não é onisciente, onipotente e onipresente,
Deus, exaltarei o m eu trono, e, no monte da com o Deus é. Se Lúcifer é um assassino desde
congregação, m e assentarei, da banda dos o princípio, ele é moralmente limitado. Se vai
lados do Norte. Subirei acima das mais al­ enfrentar o julgamento, é limitado em poder.
tas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo. Em bora devamos estar conscientes da exis­
tência do diabo e advertidos contra ele, não
Deus responde que, como resultado de seu devemos criar o hábito de pensar no tentador
pecado, o diabo na verdade será levado ao in­ como um ser poderoso em maldade como
ferno, ao mais profundo do abismo (Is 14.15). Deus o é em bondade.
Isso não é o retrato de um ser heroico, mas de Satanás não é onisciente. Deus é quem
um ser decaído. É um ser que deve ser repelido. sabe de todas as coisas. Acima de tudo, o
Satanás trouxe a destruição à humanidade. diabo não sabe do futuro. Sem dúvida, ele
Ele é assassino e autor do assassinato, como Je­ pode palpitar a respeito, pois conhece a na­
sus disse a Seus ouvintes. O primeiro crime tureza humana e as tendências da história.
As chamadas revelações de médiuns e adivi­ por Ele ao mesmo tempo. Todavia, o diabo
nhos — quando não são fraudes descaradas tem de tentar uma pessoa de cada vez ou traba­
— enquadram-se nessa categoria. Contudo, lhar por intermédio de um ou mais daqueles
essas pessoas não têm o verdadeiro conheci­ anjos, agora demônios, que caíram com ele.
mento do que está por vir. Assim, as previsões A conseqüência interessante desse fato é
são vagas e em geral não têm fundamento. que é muito provável que Satanás nunca tenha
Em certo momento, Deus declarou isso tentado você ou qualquer um que você conhe­
em forma de desafio a todos os falsos deuses: ça. Mesmo na Bíblia encontramos poucos que
foram tentados diretamente por ele. Tivemos
Apresentai a vossa demanda, diz o S E ­ Eva, é claro. Cristo foi tentado. Pedro foi ten­
N H O R ; trazei as vossas firm es razões, diz tado. O diabo encheu o coração de Ananias
o R ei de Jacó. Tragam e anunciem-nos as para fazer com que ele mentisse sobre o preço
coisas que hão de acontecer [...] Anunciai- da propriedade. N o entanto, isso é tudo.
-nos as coisas que ainda hão de vir, para Em uma ocasião Paulo pode ter tido seus
que saibamos que sois deuses; fazei bem ou planos impedidos por Satanás (1 Ts 2.18); en­
fazei mal, para que nos assombremos e, tretanto, em outra foi apenas um mensageiro
juntamente, o vejamos. Eis que sois menos de Satanás que o esbofeteou (2 C o 12.7).
do que nada, e a vossa obra é menos do De forma semelhante, demônios menores
que nada; abominação é quem vos escolhe. opuseram-se a um anjo que trazia uma revela­
Isaías 41.21-24 ção a Daniel (Dn 10.13,20).
E , embora um grande exército de demônios
Satanás também não é onipotente. Logo, tenha cercado Eliseu em Dotã, vencido em nú­
ele não pode fazer tudo o que quer, e, no caso mero pelo exército de Deus, não é dito que o
dos cristãos, só pode fazer o que Deus permi­ próprio diabo estava entre eles (2 Rs 6.16,17).
tir. O exemplo mais conhecido é o de Jó, que Em bora cristãos nunca devam ignorar ou
vivia em abundância até que Deus permitiu subestimar Satanás e seus estratagemas, eles
que o diabo tirasse todos os bens dele. Mes­ não devem superestimá-lo. Acima de tudo,
mo assim, o Senhor tinha um propósito váli­ nunca devem concentrar-se nele ao ponto de
do. Ele sabia que Jó permaneceria fiel inde­ desviar os olhos de Deus. O Senhor é nossa
pendente das circunstâncias. força. Ele limita Satanás. Deus nunca permiti­
Lúcifer não é onipresente, o que significa rá que cristãos sejam tentados além do que
que ele não pode estar em todos os lugares ao conseguem suportar, e sempre nos dará uma
mesmo tempo, tentando a todos. Deus é oni­ maneira de escapar (1 C o 10.13). Quanto ao
presente. Ele pode ajudar todos que clamam diabo, seu fim é o lago de fogo5 (M t 25.41).

N otas

1 Na Idade Média, em algumas nações como a Inglaterra e a França, existia um tipo de teatro religioso que tinha como
modalidades os mistérios, os milagres e as moralidades. Os mistérios (também chamados de dramas litúrgicos) re­
presentavam as festividades religiosas descritas nas Escrituras, como o Natal, a Paixão e a Ressurreição. Os milagres
eram representações que retratavam a vida dos servos de Deus, e nelas, por vezes, apareciam as pessoas a quem os
santos ajudavam. As moralidades eram representações que se desenvolveram mais tarde do que os mistérios e os
milagres. Eram repletas de ensinamentos cristãos, mas tinham um caráter mais intelectual e, em vez de utilizar as
personagens da Bíblia, serviam-se de figuras que personificavam defeitos, virtudes, acontecimentos e ações.
(Fonte: http://members.fortunecity.com/rui_nuno_carvalho/religios.html)

/ó /
2 Fausto é o protagonista de uma popular lenda alemã de um pacto com o demônio, baseada no médico, mágico e
alquimista alemão Dr. Johannes Georg Faust (1480-1540). (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fausto)
3 Damn Yankees é um musical da Broadway que reconta a lenda de Fausto, ambientada nos anos 50 em Washington
D.C.

4 John Milton é um escritor inglês, um dos principais representantes do classicismo de seu país e autor do célebre livro
O paraíso perdido, um dos mais importantes poemas épicos da literatura universal. Foi político, dramaturgo e estu­
dioso de religião. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Milton)

5 O material sobre Satanás é emprestado em parte do capítulo 52, That other Family [Aquela outra família], João
8.41-50, de meu livro The Gospel o f John [O Evangelho de João], vol. 2

/S ã
A PROVIDÊNCIA DE DEUS

rovavelmente, não há um ponto O d o m ín io d e D eu s so b r e a n atureza

em que a doutrina cristã entre A ideia da ausência de Deus certamente


mais em conflito com as perspec­ não é óbvia com relação à natureza, a primei­
tivas contemporâneas do mundo ra das três maiores áreas da criação divina
do que a questão da providência de Deus. discutidas anteriormente. A grande questão
Providência significa que Deus não aban­ sobre a natureza, levantada por filósofos gre­
donou o mundo que criou, mas trabalha nele gos da Antiguidade e por cientistas contem­
a fim de administrar todas as coisas de acordo porâneos, é por que há um padrão nas ativi­
com o “imutável conselho da Sua própria von­ dades dela, mesmo estando em constante
tade” (Confissão de F é de W estm insterV, i). mudança. N ada permanece igual: os rios
Em contrapartida, o mundo, em geral, não fluem, as árvores crescem, as flores secam e o
crê que Deus intervém em assuntos humanos mar se agita. Todavia, de certa forma, todas as
hoje em dia, embora às vezes o reconheça co­ coisas continuam seguindo um padrão. A ex­
mo Criador. Muitos pensam que milagres não periência de uma geração com a natureza é se­
acontecem, que orações não são respondidas e melhante à experiência das gerações anteriores.
que a maioria das coisas ocorre como um re­ A ciência costuma explicar essa uniformi­
sultado de leis impessoais e imutáveis. dade da natureza por meio da lei da probabi­
O mundo argumenta que o mal existe em lidade. Porém, essa explicação não é comple­
abundância. Muitos questionam: “Com o o ta. Por exemplo, pela mesma lei da probabilida­
mal pode ser compatível com um Deus que de, é possível que em algum momento todas
governa ativamente o m undo?”. as moléculas de um gás ou sólido (ou a maior
N o passado, desastres naturais com o in­ parte delas) movam-se na mesma direção, em
cêndios, terrem otos e enchentes eram cha­ vez de moverem-se em direções aleatórias. Se
mados de “atos de D eus”. Devemos culpá- esse fosse o caso, então a substância deixaria de
-lo por eles? N ão seria m elhor imaginar ser como a conhecemos, e as leis da ciência em
que Ele simplesmente deixou o mundo tri­ relação a ela seriam inoperantes.
lhar seu próprio caminho? De onde vem a uniformidade, senão de
Tanta especulação pode ser respondida em Deus? Entendemos, pela Bíblia, que ela vem
dois níveis. Primeiro, mesmo sob uma pers­ dele quando lemos que Cristo está sustentan­
pectiva secular, tal pensamento não é tão ób­ do todas as coisas pela palavra do seu poder
vio quanto parece. Segundo, esse não é o en­ (H b 1.3), e que todas as coisas subsistem por
sinamento bíblico. ele (Cl 1.17).
O ponto é que a providência de Deus está garantia de que toda a raça humana cometerá
por detrás do mundo metódico que conhece­ um suicídio moral. Permitamos que toda a res­
mos. Esse era o pensamento básico na mente trição divina seja removida, e que o homem
dos autores do Catecismo de H eidelberg2 seja deixado absolutamente livre no mundo,
quando definiram providência: então todas as distinções éticas irão desapare­
cer de imediato, a barbárie prevalecerá no uni­
É o poder de Deus, onipotente e presente em verso, e o pandemônio reinará supremo. (P in k ,
todo lugar (At 17.25,27,28; Jr 23.23,24; Is 1984, p. 42-43)
29.15,16; Ez 8.12), pelo qual, como por Sua pró­
pria mão, sustenta e governa o céu, a terra e to­ Porém, não é isso o que acontece, pois
das as criaturas de tal maneira (Hb 1.3) que tudo Deus não deixa Suas criaturas em total auto­
o que a natureza produz, a chuva e o sol (Jr 5.24; nomia. Elas são livres, contudo dentro de
At 14.17), a fertilidade e a esterilidade, a comida certos limites. Além disso, Deus, em Sua per­
e a bebida, a saúde e a enfermidade (Jo 9.3), a feita liberdade, também intervém diretamen­
riqueza e a pobreza (Pv 22.2), não acontece sem te, como lhe convém, a fim de ordenar os de­
motivo, por acaso ou azar, mas segundo o con­ sejos e ações dos homens.
selho e a vontade do Pai celeste (Mt 10.29; Pv O livro de Provérbios contém muitos ver­
16.33). (Catecismo de Heidelberg, questão 27)3 sos sobre esse tema. E m Provérbios 16.1, le­
mos que, embora um indivíduo faça planos
Remova a providência de Deus da nature­ em seu coração, é o Senhor quem determina a
za, e não somente toda a sensação de seguran­ resposta de sua boca: D o hom em são as prepa­
ça irá embora, mas também o mundo se aca­ rações do coração, mas do S E N H O R , a res­
bará; mudanças sem sentido logo substituirão posta da boca.
sua ordem. O mesmo princípio é aplicado às emoções
A mesma coisa é verdadeira em relação à em Provérbios 21.1, em que as inclinações do
sociedade. Mais uma vez há grande diversida­ rei são utilizadas como exemplo: Como ribeiros
de e mudança. Porém, na vida do homem, de águas, assim é o coração do rei na mão do
também há padrões e limites além dos quais, S E N H O R ; a tudo quanto quer o inclina.
por exemplo, o mal parece não ter permissão As ações do homem também estão dentro
para ir. Pink, ao longo de seu livro A sobera­ da esfera da providência de Deus: O coração
nia de Deus, argumenta: do hom em considera o seu caminho, mas o
S E N H O R lhe dirige os passos (Pv 16.9). Deus
Para efeito de discussão, diremos que todo ho­ também trabalha nos resultados dessas ações,
mem chega a esse mundo agraciado com uma pois Sua vontade sempre prevalece: Muitos
vontade livre, e que é impossível forçá-lo ou propósitos há no coração do homem, mas o
coagi-lo sem destruir sua liberdade. Digamos conselho do S E N H O R perm anecerá (Pv
que todo homem possui um conhecimento so­ 19.21). Tudo isso é resumido em Provérbios
bre certo e errado, podendo escolher entre eles, 21.30: Não há sabedoria, nem inteligência,
e é livre para tomar suas decisões e seguir seu nem conselho contra o S E N H O R .
próprio caminho. Então, entendemos que o ho­ D a mesma forma, Deus exerce Seu domí­
mem é soberano, pois faz o que lhe convém e é nio sobre o mundo espiritual. Os anjos estão
o arquiteto de seu futuro. Mas, nesse caso, não sujeitos ao Seu comando expresso e regozi-
podemos assegurar que todo homem rejeitará o jam-se em obedecer a Ele. Os demônios, em­
bem e escolherá o mal. Não temos nenhuma bora em rebelião contra o Senhor, ainda estão
sujeitos aos Seus decretos e à Sua mão sobera­ N o primeiro capítulo de Romanos, Paulo
na. Satanás não pôde tocar em Jó antes de ter escreveu que o homem natural não reconhece
a permissão de Deus, e, quando a recebeu, Deus como o Deus verdadeiro, não o adora
certos limites foram estabelecidos: Pois bem. com o Criador, nem lhe é grato. Essa pessoa,
Faça o que quiser com tudo o que Jó tem, mas portanto, é lançada a um caminho que a con­
não faça nenhum mal a ele mesmo (Jó 1.12 duz para longe de Deus, passando a sofrer
N t l h ). E disse o S E N H O R a Satanás: Eis graves conseqüências, incluindo a degradação
que ele está na tua mão; poupa, porém , a sua de seu próprio ser.
vida (Jó 2.6).
Dizendo-se sábios, tomaram-se loucos. E
O d o m ín io d e D eu s so b r e as pesso a s mudaram a glória do D eus incorruptível
O ponto de maior interesse para nós não em semelhança da imagem de hom em cor­
está no domínio de Deus sobre a natureza ou ruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de
sobre os anjos, mas na providência dele acer­ répteis.
ca dos homens, particularmente quando deci­ Romanos 1.22,23
dimos desobedecer ao Senhor.
E claro que não há nenhum problema com N os versículos seguintes, lemos que Deus
a providência de Deus quanto aos assuntos abandonou os homens em sua rebelião. P o­
humanos, quando lhe obedecemos. Deus rém, quando Paulo escreveu que Deus os
simplesmente declara o que Ele quer que seja abandonou, isso não significa que Ele os dei­
feito, e assim se faz — com boa vontade. xou ao léu, como se tivesse simplesmente re­
Mas o que dizer daqueles momentos em movido Sua mão deles, permitindo que fos­
que desobedecemos? E em relação ao grande sem levados pelas circunstâncias. Em cada
número de pessoas não regeneradas que, ao caso, Deus os entregou a uma situação especí­
que parece, nunca obedecem a Deus de bom fica: no primeiro caso, à imundícia, para de­
grado? P or acaso Deus diz: “Bem, eu o amo, sonrarem o seu corpo entre si (v. 24); no se­
apesar de sua desobediência, e com certeza gundo, às paixões infames (v. 26); e no terceiro,
não vou insistir com nada desagradável. E n ­ a um sentimento perverso, para fazerem coi­
tão vamos apenas esquecer minha vontade.”? sas que não convém (v. 28).
Deus não age dessa forma. Se agisse, Ele não Em outras palavras, Deus permite que os
seria soberano. P or outro lado, Ele também ímpios façam as coisas do seu jeito, mas, em
não diz: “Você vai fazer isso! Eu vou esmagá- Sua sabedoria, determinou que, quando o fi­
-lo até você fazer!”. O que de fato acontece, zessem, sofressem as conseqüências de seus
quando decidimos que não queremos fazer o atos de acordo com as regras estabelecidas
que Ele deseja? por Ele.
A resposta básica é que Deus estabeleceu Se a raiva e a tensão não forem controla­
leis para limitar a desobediência e o pecado, das, o corpo sofrerá com úlceras e pressão
assim como estabeleceu leis para ordenar o alta. A devassidão abre caminho para as do­
mundo físico. Quando as pessoas pecam, ge­ enças venéreas e para uma vida destruída. O
ralmente acham que estão seguindo seus orgulho é autodestrutivo. As conseqüências
próprios termos. Porém , Deus diz: “Q uan­ físicas das atitudes do homem são equivalen­
do vocês desobedecerem, tudo será de acor­ tes às espirituais.
do com as minhas leis, e não de acordo com O princípio é verdadeiro para os ímpios,
as suas”. mas também para os cristãos. A história de

fó ó
Jonas, no Antigo Testamento, ensina-nos que trabalho missionário e à conversão do povo
um crente pode desobedecer a Deus com tanta de Nínive. Em uma conjuntura maior, a histó­
determinação que é preciso uma intervenção ria caminha para a glorificação de Deus em
direta de Deus na sua história. Mas, quando o todos os Seus atributos, principalmente na
crente desobedece, ele sofre as conseqüências pessoa de Seu Filho, Jesus Cristo. Essa ideia é
que Deus previamente estabeleceu para coibir extraída da definição de providência encontra­
a desobediência. da na Confissão de Fé de Westminster, que diz:
Jonas havia sido comissionado para levar
uma mensagem de julgamento a Nínive. A Pela Sua muito sábia providência, segundo a
missão dada a Jonas foi semelhante à Grande Sua infalível presciência e o livre e imutável
Comissão dada a todos os cristãos, pois a ele conselho da Sua própria vontade, Deus, o
foi dito: Levanta-te, vai à grande cidade de grande Criador de todas as coisas, para o lou­
N ínive e clama contra ela, porque a sua malí­ vor da glória da Sua sabedoria, do Seu poder,
cia subiu até mim (Jn 1.2). Porém, Jonas não da Sua justiça, bondade e misericórdia, sus­
queria seguir a ordem de Deus, assim como tenta, dirige, dispõe e governa todas as Suas
muitos cristãos nos dias de hoje. Ele pegou criaturas, todas as ações e todas as coisas, des­
um navio em Jope, na costa da Palestina, e de a maior até a menor. (Confissão de Fé de
seguiu em direção a Társis, que ficava prova­ Westminster, V, i)
velmente na costa da Espanha.
Jonas foi bem-sucedido? N em um pouco. O curso da história que conduz à glorifi­
Sabemos o que aconteceu com ele. Deus to ­ cação de Deus é para o nosso bem também,
mou medidas drásticas, a fim de mudá-lo de pois sabemos que todas as coisas contribuem
rumo: deixou-o dentro da barriga de um juntam ente para o bem daqueles que amam a
grande peixe por três dias. Jonas, então, deci­ Deus, daqueles que são chamados p o r seu de­
diu obedecer a Deus e ser um missionário. creto (Rm 8.28).
Qual o significado de bem nessa passa­
O c u r s o d a h is t ó r ia _______________________ gem? Obviamente, há muitas coisas a serem
Até agora, nosso estudo revelou exclusiva­ desfrutadas agora, e esse versículo as inclui.
mente atitudes cristãs em relação à providên­ Mas, em seu sentido pleno, bem significa al­
cia. Primeiro, a doutrina cristã é pessoal e mo­ cançar o propósito para o qual fomos criados,
ral, em vez de abstrata e amoral. Isso a faz porque os que dantes conheceu, também os
totalmente diferente da ideia pagã de destino. predestinou para serem conformes à imagem
Segundo, a providência é uma operação especí­ de seu Filho (Rm 8.29).
fica. N o caso de Jonas, ela envolveu um homem O propósito de Deus é que sejamos como
em particular, um navio, um peixe e a revelação Jesus Cristo; assim, iremos glorificá-lo e des­
da vontade divina para a cidade de Nínive. frutar de Sua presença para sempre. A provi­
H á mais uma coisa que deve ser dita a res­ dência de Deus certamente fará todas essas
peito da providência de Deus. Ela é proposi­ coisas.
tal, isto é, é direcionada para um fim. Existe Discorrer sobre o bem exige que ò mal
uma relação com a história real. Os eventos se seja objeto de nosso estudo também. Em R o ­
movem numa direção específica, não são está­ manos 8.28, lemos que todas as coisas contri­
ticos ou sem significado. buem para o bem daqueles que amam a Deus,
N a história de Jonas, o curso dos aconte­ e imediatamente nos perguntamos se o mal
cimentos o levou ao seu eventual, e relutante, está incluído.

/ó â '
O mal está sob a direção de Deus? Até po­ eliminá-lo. Satanás trabalhou por meio desse
deríamos interpretar que todas as coisas, se­ ódio para atacar Deus, encorajando o povo a
gundo a justiça, cooperam para o bem dos tratar Jesus sem misericórdia. Porém, Deus
que amam a Deus, mas esse entendimento, à transformou tudo isso em bem, permitindo a
luz das Escrituras, seria uma injustificável di­ crucificação de Cristo para a nossa salvação.
luição do texto. Portanto, Deus usa todas as Em nada disso Deus foi responsável pelo
coisas, incluindo o mal, para cumprir Seu mal ou conivente com o pecado, embora os
bom propósito no mundo. pecados do homem e de Satanás estivessem
H á duas situações a serem consideradas envolvidos.
em que Deus usa o mal para promover o bem. O próprio Jesus disse em referência ajudas:
A primeira, quando o mal é praticado pelos Em verdade o Filho do H om em vai, como acer­
outros; e a segunda, quando o mal é praticado ca dele está escrito, mas ai daquele homem por
por nós mesmos ao pecarmos. quem o Filho do H o m em é traído! (M t 26.24).
A Bíblia revela, por meio de muitos exem­ Anteriormente, Ele havia declarado: Por­
plos, que o mal praticado pelos outros coope­ que é mister que venham escândalos, mas ai
ra para o bem dos cristãos. daquele hom em p o r quem o escândalo vem !
O filho de Noemi, um israelita, casou com (Mt 18.7).
uma moabita chamada Rute. Os judeus não Portanto, sem participar do pecado, Deus
deveriam casar-se com os gentios, pois isso era operou por meio dele, a fim de promover, em
contrário à vontade revelada de Deus. Esse ca­ concordância com Seus propósitos eternos, o
samento, então, era considerado pecado. C on­ bem.
tudo, foi por meio dessa união que Rute se A segunda situação em que Deus usa o
tornou nora de Noemi e conheceu o Deus ver­ mal para realizar Seus propósitos é quando es­
dadeiro, escolhendo servir a Ele: O teu povo é o se mal é praticado por nós mesmos toda vez
meu povo, o teu Deus é o meu Deus (Rt 1.16). que pecamos. Essa questão é difícil de enten­
Depois que o marido de Rute morreu, ela se der, pois o pecado gera infelicidade no homem,
casou com Boaz, e entrou para a linhagem do deixando-o cego para os atos de Deus. Porém,
Messias, o Senhor Jesus Cristo (veja Mt 1.5). de qualquer forma, o bem está envolvido.
Davi foi alguém que sofreu muito por Por exemplo, os irmãos de José tinham
causa dos pecados dos outros, incluindo até ciúme dele porque era o favorito do pai. Eles
mesmo os pecados de seus filhos. Mas, à me­ conspiraram e venderam-no para uma carava­
dida que era transformado por meio dessas na de comerciantes midianitas, que o levou
experiências, Davi entendia que a mão de para o Egito. Lá, José trabalhou como escravo
Deus estava no controle, revertendo em bên­ e logo foi jogado na prisão por causa das acu­
çãos todo o seu sofrimento, e pôde expressar sações injustas de uma mulher rejeitada. Mais
isso em maravilhosos salmos, que têm sido tarde, chegou ao poder, tornando-se o agente
bênção para milhões de pessoas. pelo qual grãos foram armazenados durante
Oséias sofreu com a infidelidade de sua sete anos de prosperidade para os subsequen­
esposa, Gomer. Mas Deus usou sua experiên­ tes sete anos de miséria e fome generalizada.
cia para produzir um dos livros mais bonitos, Durante esse período de fome no Egito e
tocantes e instrutivos do Antigo Testamento. em todo o mundo, os irmãos de José foram
O pecado de toda a humanidade foi lançado ajudados por José, aquele que haviam rejeita­
sobre Jesus. Os líderes de Sua época o odia­ do! E esse resultado estava sob o controle de
vam por causa de Sua santidade e desejavam Deus, com o José mais tarde lhes explicou:
E disse José a seus irmãos: Peço-vos, che- O pecado continua sendo pecado, e ainda
gai-vos a mim. E chegaram-se. Então, dis­ traz conseqüências. O mal não mudou, mas
se ele: E u sou José, vosso irmão, a quem Deus é maior do que o mal. Esse é o ponto!
vendestes para o Egito. Agora, pois, não Deus está determinado a cumprir o Seu pro­
vos entristeçais, nem vos pese aos vossos pósito, apesar do mal.
olhos p or me haverdes vendido para cá; A providência de Deus não nos isenta de
porque, para conservação da vida, Deus responsabilidade. Deus trabalha por meio de
m e enviou diante da vossa face. Porque já instrumentos (integridade, trabalho árduo, obe­
houve dois anos de fo m e no meio da terra, diência e fidelidade dos cristãos, por exemplo).
e ainda restam cinco anos em qu e não ha­ A providência dele não nos isenta de fazermos
verá lavoura nem sega. Pelo qu e D eus me escolhas sábias ou de sermos prudentes. Por
enviou diante da vossa face, para conser­ outro lado, ela nos livra da ansiedade ao fazer­
var vossa sucessão na terra e para guar­ mos a vontade do Pai: Pois, se Deus assim veste
dar-vos em vida p o r um grande livra­ a erva do campo, que hoje existe e amanhã é
mento. Assim, não fostes vós que m e lançada no forno, não vos vestirá muito mais a
enviastes para cá, senão Deus, que m e vós, homens de pequena fé ? (Mt 6.30).
tem posto p o r pai de Faraó, e p or senhor Em vez de ser um motivo para a autoin-
de toda a sua casa, e como regente em to­ dulgência, concessão, rebelião ou qualquer
da a terra do Egito. outro pecado, a doutrina da providência, na
Gênesis 45.4-8 verdade, é um porto seguro e um estímulo à
fidelidade a Deus.
Após a morte do pai deles, os irmãos pen­ Calvino nos deixou um sábio conselho
saram que José então se vingaria. Mas nova­ sobre esse tema:
mente ele acalmou seu medo dizendo: Não
temais; porque, porventura, estou eu em lugar A gratidão de alma pelo próspero resultado das
de D eus? Vós bem intentastes mal contra coisas, seja a paciência na adversidade, seja, inclu­
mim, porém D eus o tornou em bem, para fa ­ sive, a inabalável segurança em relação ao porvir,
zer como se vê neste dia, para conservar em segue essencialmente esse conhecimento. Logo,
vida a um povo grande (Gn 50.19,20). qualquer coisa que acontecer de modo favorável
U m grande mal havia habitado o coração e segundo o desejo do seu coração o servo de
dos irmãos. Porém, Deus usou a maldade de­ Deus atribuirá totalmente a Deus, quer sinta Sua
les não apenas para salvar outros, mas até beneficência por meio do ministério dos homens,
mesmo para salvar a própria vida deles e a de quer seja ajudado por criaturas inanimadas, pois
suas esposas e seus filhos. pensará assim: “Por certo que o Senhor inclinou
o espírito destes para comigo, ligando-os a mim,
R e s p o n s a b i l i d a d e h u m a n a ________________ a fim de serem instrumentos de Sua benignida-
Sempre haverá alguém que ouve essas de”. (C alvino , 1960, p. 219-220)
verdades e imediatamente apregoa que ensi­
nam que os cristãos podem pecar impune­ Sob essa perspectiva, o cristão deixará de
mente. Essa mesma acusação foi feita contra preocupar-se com as circunstâncias e crescerá
Paulo (Rm 3.8). Porém , nada é ensinado nes­ no amor e no conhecimento de Jesus Cristo,
se sentido. nosso Senhor, e do Pai, nosso Criador.
N otas

1 É uma confissão de fé reformada, de orientação calvinista, adotada por muitas igrejas presbiterianas e reformadas ao
redor do mundo. Esta Confissão de Fé foi produzida pela Assembleia de Westminster e aprovada pelo Parlamento
Inglês em 1643. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Confiss%C3%A3o_de_F%C3%A9_de_Westminster)

2 O chamado Catecismo de H eidelberg é um documento protestante que se apresenta na forma de uma série de per­
guntas e respostas, utilizadas nas igrejas reformadas.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Catecismo_de_Heidelberg)

3 Fonte: http://www.ebenezer.org.br/Download/Onezio/CatecismoHeidelberg.pdf
Pa r t e

1
A Queda do homem

E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda árvore dojardim comerás livre­
mente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque, no dia em
que dela comens, certamente momrás.
Gênesis 2.16,17

Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; não
há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram e juntamente se fizeram inúteis.
Não há quem fãça o bem, não há nem um só.
Romanos 3.10-12

Ninguém pode vira mim, se o Pai, que me enviou, o não trouxer.


João 6.44
A Q ueda

(1 X l s o templo de Apoio em Delfos, ani- Essa é a razão pela qual, com o Reinhold
\ / nhado contra uma montanha ro- N iebuhr afirma na abertura de seu livro
\\ /
/ chosa numa das áreas remotas da The N ature and Destiny o f Man [A natureza
í Grécia, uma inscrição sintetizou a e o destino do homem]: “O próprio homem
sabedoria do mundo antigo: Gnothi seauton tem sido o seu problema mais complicado”
[conhece a ti mesmo]. (N iebuh r , 1949, p. 1).
Essas duas palavras resumiram a profunda O ponto de vista bíblico sobre a humani­
convicção de que, com o Alexander Pope1 dade é o que nos interessa, principalmente
mais tarde expressou, “o estudo apropriado neste capítulo. Ele é mais bem compreendido
da humanidade é o próprio homem”, ou seja, quando comparado com as duas maiores vi­
a nossa sabedoria consiste na precisão e na sões não cristãs que dominam nossa cultura.
profundidade do autoconhecimento.
Em um determinado nível, o cristianismo V is õ e s d a h u m a n i d a d e _____________________

não entra em conflito com essa análise, con­ A primeira dessas visões conceituadas so­
tanto que seja lembrado que o conhecimento bre o homem é o ponto de vista da Antigui­
do nosso eu sempre envolve um conhecimen­ dade Clássica2, isto é, a perspectiva hegemô­
to similar e pessoal do Deus que nos criou, e nica do mundo greco-romano. As visões
que o conhecimento de Deus sempre implica­ clássicas do homem, embora variem em al­
rá o conhecimento de nossas necessidades guns pontos de pensador para pensador, sem­
pessoais e da salvação que só Ele concede. pre tiveram um tópico em comum.
O cristianismo nega que possamos conhe- Já que a substância mais elevada no ser hu­
cer-nos independente de Deus, isto é, sem mano era o nous ou faculdade da razão, a
considerar a revelação que Deus faz de si pessoa deveria ser entendida primordialmen­
mesmo. E verdade. Podemos conhecer muito te pelo ponto de vista dessa característica. O
sobre o ser humano. Somos capazes de estu­ ser humano pensa ou racionaliza, por isso
dar nossa constituição química e emocional, Platão, Aristóteles, e outros pensadores da
de entender com o funcionamos. Todavia, não Grécia antiga consideram-no à parte do res­
conseguimos conhecer o homem com o ele é tante do mundo visível.
em si mesmo. N ão podemos descobrir o que Em Aristóteles, o nous é alguma coisa que
íomos designados para ser, ou por que falha­ vem a nós primariamente de fora. Em Platão,
mos constantemente em atingir essa meta, o nous é a substância mais elevada da alma.
sem a revelação de Deus. N o entanto, em ambos os pensadores, a razão
é o elemento crucial no qual os homens en­ Essa perspectiva pessimista aparece bas­
contram sua especificidade. tante nas tragédias gregas. Elas apresentam o
Os resultados da exacerbação da razão são homem com o uma vítima das circunstâncias
bem conhecidos. Primeiro, essa ênfase tende ou da sua própria falha trágica, não podendo
a deificar a razão, fazendo dela a substância mudar nem uma nem outra. O mundo clássi­
de Deus no ser humano. A justificativa para co não via sentido algum na história.
tal deificação está nas características básicas Um a variação da perspectiva clássica é um
da razão, a saber, sua capacidade de refletir dos pontos de vista mais conceituados do ho­
sobre o que vê, para avaliar, criticar, formar e mem na cultura moderna: o racionalismo pu­
criar. Cada uma pode ser entendida como ca­ ro e simples. Em harmonia com os grandes
racterística divina. pensadores gregos, os expoentes modernos
U m segundo resultado da exaltação clássi­ dessa visão enfatizam a supremacia da nossa
ca da razão é um conseqüente dualismo no razão, como fator que nos coloca à parte do
qual o corpo se torna algo mau. Se a mente é restante da criação, e confirmam que somos
boa, a matéria é má. Isso desencadeia o eterno essencialmente bons no âmago de nosso ser.
conflito entre espírito e mente, de um lado, e Porém, o elemento trágico, percebido tão cla­
corpo e matéria, do outro, que, por sua vez, ramente pelos gregos e romanos, não aparece
forneceu elementos às expressões mais co ­ aqui.
nhecidas da cultura grega: o teatro, a arte e a Essa lacuna não significa que os raciona-
filosofia. listas modernos enxergam o homem melhor
O utra tensão no pensamento grego, per­ do que os antigos enxergavam, ou que o ho­
cebida mais claramente nas religiões ocultis- mem se tornou melhor com o passar dos sé­
tas, enxergava a natureza humana em termos culos; ao contrário, os pensadores modernos
mecânicos ou materialistas. Contudo, essa são estranhamente relutantes em encarar a
não era a visão predominante da Antiguidade. realidade.
Mais dois fatos podem ser observados na A teoria do desenvolvimento histórico de
visão clássica, como Niebuhr assinala em sua Hegel por meio de tese, antítese e síntese não
análise. Primeiro, há um otimismo básico no deixa espaço para qualquer impasse ou re­
ponto de vista clássico. Se a razão é boa e o gressão causados pelo pecado humano. O
homem é essencialmente racional, o homem é mesmo acontece com o materialismo dialéti­
essencialmente bom. Ele está ligado ao divino co de Karl M arx e com a evolução biológica
no nível mais fundamental de sua personali­ de Darwin. Todas essas teorias defendem uma
dade, por isso não tem defeito. progressão infindável e inevitável.
P or outro lado, há uma estranha, porém N os últimos anos, com o resultado de du­
inequívoca, sinalização na cultura clássica. as guerras mundiais e de grande inquietação
N a Ilíada, de H om ero, Zeus é citado quando internacional, ficou mais difícil sustentar a
afirma: visão otimista. Apesar de tudo, a visão con­
temporânea dominante é que todos esses gra­
Não há nada, segundo me parece, mais lastimá­ víssimos problemas podem ser superados, se
vel do que o homem, entre todas as coisas que utilizarmos todo o nosso potencial racional.
rastejam e respiram sobre a face da terra Ou, Só uma minoria de pensadores refinados
como Aristóteles comenta: Não ter nascido é a parece consciente de que a raiz dos proble­
melhor coisa, e a morte é melhor que a vida. mas, desta e das demais eras, não está nas cir­
(N ie b u h r , 1949, p. 9-10) cunstâncias apenas, ou no déficit de educação
do povo, mas na própria constituição do ser como não pode contentar-se com a visão m o­
humano. derna do pensamento clássico. De fato, elas
O fator racional é importante, como os estão aprisionadas num dilema que conduz à
gregos comprovaram, contudo não é nem di­ perplexidade profunda. Niebuhr analisa isso
vino nem infalível. E o corpo, assim como a desta forma:
mente, é de valor inestimável, ainda que deca­
ído. Esses pensadores entendem que em todas Se o homem insiste que ele é um filho da natu­
as partes do nosso ser estamos muito abaixo reza e que não deve pretender ser mais que um
do que realmente fomos designados para ser. animal, [...] o homem tem de admitir que é, em
N o mundo moderno, porém, outra abor­ alguma escala, um tipo curioso de animal que
dagem sobre a humanidade compete com a tem tanto inclinação como capacidade para le­
visão clássica recebendo grande aceitação. Ela var a bom termo essa curiosidade. Se ele insis­
está vinculada à visão minoritária dos antigos, te, por outro lado, que o seu único lugar é na
mencionada antes, refletida nas religiões ocul- natureza, mas aponta para suas faculdades ra­
tistas e em pensadores como Heráclito, Pitá- cionais como prova de superioridade, há em
goras e Epicuro. geral um traço de angústia nessa declaração de
Segundo essa visão, o homem é essencial­ exclusividade, que trai seu sentimento incons­
mente corpo ou matéria, em vez de mente ou ciente de parentesco com os bichos. (N ie b u h r,
espírito. Isso quer dizer que o universo inteiro, 1949, p. 1)
incluindo a humanidade, é mecanicista. N ão
há nada fora da matéria. N ão há mente univer­ N ada na vida moderna explica a nossa na­
sal ou qualquer ser maior com o qual somos tureza a não ser as verdades do cristianismo,
ligados, e que dê forma e direção à vida huma­ uma vez que a grandeza e a tragédia do homem
na. Por conseqüência, a vida é um mero cálcu­ excedem os esforços de compreensão de nossa
lo de resultados de leis básicas e impessoais. cultura. Somos mais que matéria. Somos feitos
N o mundo moderno existem várias teo­ à imagem de Deus. N o entanto, estamos tam­
rias formuladas com base nessa visão mecani­ bém conscientes de que deturpamos essa ima­
cista. Um a é a postura determinista de Char­ gem e de que os laços que deveriam existir entre
les Darwin3, segundo a qual a evolução acontece nós e o Criador foram rompidos. Logo, sob o
pelas leis de seleção natural. O utro exemplo é sorriso perene da modernidade há uma careta
o comunismo, que enxerga a história como a de desilusão e cinismo (N iebuhr , 1949, p. 121).
operação de leis econômicas imutáveis e da Devemos estudar a Bíblia com autonomia,
luta de classes. pois nela Deus nos revela a nossa verdadeira
A psicologia behaviorista de Skinner4 condição, segundo o cristianismo. Devemos
também se encaixa nessa categoria. Por certo, começar pela análise bíblica da Queda do ho­
como no mundo antigo, há muitas variações mem, pois vemos não apenas o que o homem
entre os que se apegam à natureza materialista estava designado a ser, mas também o que ele
das coisas, todavia eles estão unidos em seu infelizmente se tornou por causa do pecado.
compromisso com o naturalismo5 amoral e
mecânico. O homem é um animal — este é o D eslealdade __________________________
argumento deles —, e um animal é apenas De acordo com os capítulos iniciais de
am a máquina extremamente complexa. Gênesis, quando Deus estabeleceu o homem
A maioria das pessoas não pode conten­ e a mulher no Éden para serem Seus adminis­
tar-se com esse tipo de naturalismo, assim tradores na terra, Ele deu ao casal a maior
liberdade, autoridade e domínio possível so­ D e toda árvore do jardim comerás livre­
bre os seres criados. Adão e Eva deviam mente, mas da árvore da ciência do bem e
governar a terra para o Senhor. E não havia do mal, dela não comerás-, porque, no dia
restrições aparentes sobre com o deviam fazê- em que dela comeres, certamente morrerás.
-lo, a não ser no tocante à árvore do conheci­ Gênesis 2.16,17
mento do bem e do mal, da qual não podiam
comer o fruto — como símbolo da autorida­ Tudo indica que Satanás aparece pouco
de máxima de Deus. depois para insinuar que Deus não é tão bom
Muita bobagem tem sido dita sobre aquela assim e que Suas palavras não merecem con­
árvore. Ela tem sido chamada de macieira, e fiança. A Palavra de Deus é o centro da ques­
seu fruto de maçã, de fruto proibido, todavia tão na tentação sofrida por Eva. As primeiras
sem base bíblica. U m escritor especulou que palavras do diabo terminam com uma per­
o fruto era a uva, e o pecado era fazer vinho. gunta que visa lançar dúvida sobre a credibi­
Isso é hilário. Outros entenderam o fruto co ­ lidade de Deus: E assim que D eus disse? (Gn
mo o sexo, um ponto de vista que lança luz 3.1). Esta é a primeira pergunta encontrada na
sobre a culpa com que muitos de nossos con­ Bíblia.
temporâneos abordam esse assunto; entretan­ N o original em hebraico não há marcas de
to, não ajuda a iluminar nem um pouco o li­ pontuação de qualquer espécie, contudo a
vro de Gênesis. pergunta implícita torna o ponto de interro­
Sabemos que não é esse o significado da gação apropriado em nossa Bíblia. “Deus dis­
árvore, porque Deus instruiu o primeiro casal se? Deus realmente disse?” A essência do pe­
a ser frutífero e multiplicar, antes de alertá-los cado está na especulação.
sobre a presença do fruto do conhecimento As palavras de Satanás foram para tirar
do bem e do mal (Gn 1.28). N a verdade, o proveito, pois a frase continuou para especifi­
mandamento para multiplicar foi parte do car o assunto que estava sendo questionado:
presente dado por Deus ao homem e à mu­ E assim que D eus disse: Não comereis de toda
lher de domínio sobre toda a terra. árvore do jardim ? É evidente que não foi o
O fruto era um símbolo marcante de que que Deus disse. O que Ele disse foi:
o homem e a mulher, mesmo com grande li­
berdade e domínio sobre a terra, eram criatu­ D e toda árvore do jardim comerás livre­
ras de Deus; eles desfrutavam sua liberdade e mente, mas da árvore da ciência do bem e
exerciam seu domínio como uma conseqüên­ do mal, dela não comerás; porque, no dia
cia do dom gratuito do Senhor. O fruto era em que dela comeres, certamente morrerás.
um limite imposto a eles, para lembrá-los de Gênesis 2.16,17
que não eram Deus e que estavam sujeitos a
Ele. Q ue tipo de fruto era não faz a menor Satanás transformou o convite positivo de
diferença. Deus para comer de toda árvore do jardim
N ão sabemos por quanto tempo Adão e ressaltando uma única exceção, com o intuito
Eva viveram no jardim do Éden em estado de de lançar dúvida sobre a bondade do Senhor.
graça, antes da Queda, embora o livro de Gê­ E possível enxergar o que estava aconte­
nesis nos dê a impressão de que o assalto de cendo. Deus deu ao homem e à mulher toda a
Satanás veio rápido, antes de eles terem se fir­ criação para que desfrutassem dela, com ape­
mado num bom padrão de obediência. Com nas uma proibição — e até esta é explicada
certeza, Satanás ouviu a advertência de Deus: pelo significado da punição relacionada a ela.
N o entanto, Satanás insinuou que Deus é bondade de Deus e de Sua veracidade, condu­
essencialmente um proibidor, que Ele não é zindo de forma inevitável a uma atitude de
bom e que não deseja o melhor para Suas rejeição. Em nossos dias, vemos isso com cla­
criaturas. reza na avalanche de negações da Palavra de
A mulher, a princípio, não concordou Deus, até mesmo por teólogos e pastores, e
com o argumento da serpente. Todavia, a per­ também nas declarações, quase instintivas, de
gunta astuta do diabo colocou Eva na defen­ muitos homens e mulheres culpando Deus
siva, e ela respondeu, inicialmente, com uma pela tragédia humana.
confirmação do que Deus disse: Em um episódio da série A 11 in the Family
[Tudo em família], o personagem Archie
Mas, do fruto da árvore que está no meio Bunker está discutindo sobre cristianismo
do jardim, disse D eus: Não comereis dele, com seu genro ateu, Michael, porque Archie
nem nele tocareis, para que não morrais. deseja ver o filho de Michael, seu neto, bati­
Gênesis 3.3 zado, e o genro não quer. Eles discutem sobre
muitas coisas supérfluas.
Nesse instante, Satanás contra-atacou Por fim, Michael pergunta a Archie: “Di-
com uma negação frontal: ga-me, se existe Deus, por que o mundo é
esta porcaria?”. Archie sente o golpe. Ele fica
Certamente não morrereis. Porque Deus petrificado por um tempo, e tenta recuperar o
sabe que, no dia em que dele [o fruto da fôlego. Ele se volta para Edith, sua esposa, e
árvore] comerdes, se abrirão os vossos diz: “Por que sempre temos de dar as respos­
olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e tas, Edith? Diga a esse polaco idiota a razão
o mal. por que o mundo é esta porcaria, se foi criado
Gênesis 3.4,5 por Deus”. Edith responde: “Bem, imagino
que é para nos fazer valorizar mais o céu
O que estava em jogo nessa negação? C o ­ quando chegarmos lá”.
mida? Maçãs? Sedução? Sexo? Liberdade? Qualquer pensador honesto admitirá que
Nenhuma dessas coisas. O tema nessa pri­ o problema do mal é uma grande questão e
meira parte da tentação é simplesmente a in­ que estimula perguntas que provavelmente
tegridade da Palavra de Deus. Tendo começa­ nunca conseguiremos responder nesta vida.
do a lançar dúvida sobre a bondade do Senhor, C om o o mal pôde entrar num mundo
da qual o primeiro casal não tinha razão algu­ criado por um Deus bom é um verdadeiro
ma para duvidar, Satanás contradisse insolen­ quebra-cabeças. P or que Deus permite a
te a veracidade de Deus. A questão é simples: atuação do mal, mesmo que temporariamen­
Deus fala a verdade? te, é algo que está além da nossa compreen­
Então, a Bíblia nos conta que a mulher são. Todavia, uma coisa que podemos afirmar
olhou para o fruto e viu que era agradável aos é que o mal é culpa nossa, quaisquer que se­
olhos, e árvore desejável para dar entendi­ jam as razões que Deus tenha para permiti-lo.
mento (Gn 3.6b), e o comeu. C om o se não N o entanto, no episódio de Tudo em família,
bastasse, ela o ofereceu a seu marido, que isso nunca passa pela cabeça de Michael,
também o comeu. Archie, Edith ou dos autores da série.
Nesse ponto está a primeira revelação da Em vez de reconhecerem essa verdade
natureza do pecado e do que está errado com simples, porém desagradável, as pessoas di­
o homem. O pecado é desleal. Ele duvida da zem, com o H . G. Wells, que confrontados
com a maldade do mundo devemos concluir tenho liberdade absoluta, eu a odeio! Então,
que ou Deus tem poder, contudo não se im­ eu comerei do seu fruto e morrerei, seja lá o
porta, ou se importa, mas não tem poder; ou, que isso signifique”.
ainda, que Deus não existe. Essas manifesta­ Se Adão não foi enganado, como lemos
ções fracassam em reconhecer que a causa do em 1 Timóteo 2.14, ele deve ter pecado com
problema está em nós, e cegam-nos para en­ perfeita consciência do que estava fazendo.
xergarmos a solução de Deus para o proble­ Ou seja, ele escolheu comer em desobediên­
ma do pecado por intermédio de Jesus Cristo. cia deliberada a Deus. E a morte, primeiro a
morte de seu espírito, porém depois a morte
R e b e l iã o ________________________________________
de sua alma e de seu corpo, entrou na nature­
Nada do que já dissemos, no entanto, za humana.
aponta o fator mais importante sobre o peca­ A Bíblia nunca põe a culpa pela Queda da
do, que pode ser visto na Queda do homem. humanidade na mulher. Nossas brincadeiras e
Em tal episódio, em nenhum momento é su­ a literatura popular costumam culpar Eva pelo
gerido que Adão foi vítima da trapaça de Sa­ desastre. Contudo, na Escritura não há uma
tanás. A mulher, entretanto, caiu no laço dos palavra sequer sobre isso. A mulher foi enga­
argumentos ardilosos do diabo. nada, porém a culpa recai sobre o homem.
N a verdade, Eva deu ouvidos à serpente Vejamos o que Paulo afirmou:
de forma voluntária; ela acreditou que a árvo­
re do conhecimento do bem e do mal a torna­ Porque, assim como a morte veio p o r um
ria mais sábia, e desejou que ela e seu marido hom em [...] todos m orrem em Adão.
desfrutassem daquela bênção. Eva se enga­ 1 Coríntios 15.21,22
nou, e seu engano a fez pecar.
Todavia, seu erro, por mais sério que te­ Pelo que, como p o r um hom em entrou o
nha sido, não foi um erro duplo, como no pecado no mundo, e pelo pecado, a morte
caso de Adão, nem foi tão repreensível. Adão [...]. Porque, se, pela ofensa de um só, a
pecou em atitude de rebelião contra Deus. A morte reinou [...] pela desobediência de um
diferença é observada na interpretação do só homem, muitos foram feitos pecadores.
apóstolo Paulo do episódio da Queda: E Romanos 5.12,17,19
Adão não fo i enganado, mas a mulher, sendo
enganada, caiu em transgressão (1 Tm 2.14). A natureza da Queda de Adão aborda
Deus colocou Adão e Eva no jardim para outro ponto importante: o pecado é a deser­
terem domínio sobre a criação (Gn 1.28), e ção de alguma coisa que existia antes e era
deu a eles a liberdade de comer do fruto de boa. Ele é o inverso das intenções de Deus
todas as árvores, exceto de uma. Além disso, para a humanidade. Vemos isso em quase to­
alertou que, se comessem dela, morreriam. dos os sinônimos para pecado encontrados
Adão, entretanto, com pleno conheci­ nas Escrituras: Pesha, transgressão, chata, er­
mento do que estava fazendo, olhou para rar o alvo, shagah, desviar-se, hamartia, defi­
aquela árvore e disse em seu coração: “N ão ciência, e paraptoma, ofensa. Cada um desses
me importa ter permissão para comer de to­ termos retrata o abandono de um padrão
das as árvores deste jardim. Se esta árvore está mais elevado ou de um estágio desfrutado an­
fincada no jardim como um símbolo de mi­ teriormente.
nha situação de criatura, se ela está aqui para Com o mencionamos, de acordo com a vi­
me lembrar de que eu não sou Deus e que não são grega, a essência do mal é para ser achada

//()
na matéria ou na vida dos sentidos. Confor­ desgarrou-se do rebanho e do Pastor; ela se
me Emil Brunner sublinhou: desviou do caminho. (B r u n n er , 1952, p. 91)

A concepção de pecado na filosofia grega está Pecado é rebelião porque ele é só um ele­
baseada no fato de que os instintos paralisam a mento secundário. O elemento primário é
vontade, ou pelo menos atrapalham ou sufo­ aquela boa, agradável e perfeita vontade de
cam. O mal é, deste modo, devido à natureza Deus, da qual nos desviamos e para a qual so­
dobre do homem. (B r u n n er , 1952, p. 91) mos restaurados pelo poder assombroso e
inspirador da graça divina em Jesus Cristo.
A razão também é falha, já que é incapaz
de controlar a ação dos instintos com rapidez. O rg u lh o _____________________________
O mal, porém, encontra-se em seu elemento Em nossa análise de Gênesis 3, nós nos
mais vil. empenhamos em separar o pecado da mulher
Brunner prosseguiu: do pecado do homem, para melhor definir suas
duas raízes como deslealdade e rebelião. Quan­
Se o mal é para ser trazido para a relação com o do comparamos o pecado da mulher e o do
tempo, ele tem de ser descrito como aquele que homem, descobrimos, por analogia, um tercei­
ainda não é bom, ou que ainda não alcançou o ro elemento básico em sua natureza: o orgulho.
plano do espírito, ou que ainda não está domi­ O orgulho se encontra na raiz da decisão
nado pelo espírito. (B ru n n er , 1952, p. 91) da mulher de comer o fruto proibido e ainda
oferecê-lo ao seu marido. O orgulho também
A visão bíblica reverte a questão, trocan­ se encontra na raiz da decisão de Adão de se­
do o ainda não pelo não mais. O homem es­ guir seu próprio caminho, em vez de o cami­
tava sem pecado, assim como toda a criação. nho que Deus colocou diante dele.
Deus criou todas as coisas perfeitas. Entre­ N o caso da mulher, o orgulho também foi
tanto, o homem se rebelou contra Deus e a expresso na convicção de que ela sabia mais
perfeição, abandonando aquela natureza su­ do que Deus sobre o que era melhor para ela
blime e o destino que Deus tinha para ele. e para seu marido. Deus havia dito que comer
Para Brunner, este é o principal lembrete do fruto da árvore do conhecimento do bem
da Bíblia a respeito do pecado: e do mal traria graves conseqüências, sendo a
morte a principal. Eva, porém, estava conven­
Sempre que os profetas repreendiam Israel por cida por sua própria observação empírica —
seu pecado, este era o principal conceito: você após Satanás ter levantado a dúvida — de que
desertou, desviou-se, foi desleal. Você renegou a árvore seria, na verdade, boa para ela, e que
Deus, quebrou o pacto com Ele, trocou-o por Deus estava enganado. Quanta arrogância!
outros deuses. Você virou as costas para o Se­ N o caso do homem, o mesmo elemento
nhor! Da mesma forma, as parábolas de Jesus estava presente. Em seu orgulho, ele reprodu­
falam do pecado como rebelião, como o aban­ ziu o pecado original de Lúcifer, mostrando
dono de Deus. O filho pródigo abandona o lar, mais ou menos isto: “Eu me desviarei do go­
afasta-se de seu Pai, vira as costas para Ele. Os verno de Deus. Sou grande demais para ficar
arrendadores malvados usurpam os direitos atado a Ele. Vou me declarar independente”.
do proprietário e, com perversidade, apossam- E u serei semelhante ao Altíssimo (Is 14.14).
-se da terra que eles somente arrendaram. Eles Com o esse orgulho é pernicioso! E como
são rebeldes, usurpadores. A ovelha perdida ele é difundido, já que não desapareceu com a

///
m orte do primeiro homem e da primeira parecer. N ão estamos livres do pecado pela
mulher! simples natureza das coisas, como os gregos
O orgulho se encontra no âmago da natu­ antigos costumavam afirmar. N ão somos
reza pecaminosa do homem. Ele é o cerne da simples máquinas, como se isso pudesse des­
imoralidade. “O orgulho leva a todos os ou­ culpar-nos sob a ótica dessas análises.
tros vícios; é o estado mental mais oposto a Somos seres caídos. Somos infiéis, rebel­
Deus que existe” ( L e w is , 2008, p. 162). Ele nos des, e cheios de orgulho. C om o resultado
faz querer ser mais do que somos ou do que disso, a nossa única esperança está naquela
podemos ser, e, consequentemente, desvia-nos graça pela qual Deus enviou um Redentor,
do grande propósito para o qual fomos criados. que, ao invés de ser infiel, era fiel; ao invés de
P or causa disso, somos seres caídos. N ão ser desobediente, era obediente; e ao invés de
estamos em curva ascendente, com o os ex­ ser cheio de orgulho, humilhou-se a si mesmo
poentes do otimismo de hoje querem fazer [...] até à morte e morte de cruz (Fp 2.8).

N otas

1 Um dos maiores poetas britânicos do século 18.

2 O termo Antiguidade Clássica refere-se a um longo período da história da Europa que se estende aproximadamen­
te do século VIII a.C., com o surgimento da poesia grega de Homero, à queda do Império Romano do ocidente no
século V d.C., mais precisamente no ano 476. No eixo condutor dessa época, que a diferencia de outras anteriores
ou posteriores, estão os fatores culturais das suas civilizações mais marcantes, a Grécia e a Roma antigas. (Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Antiguidade)

3 Darwin foi um naturalista britânico que alcançou fama ao convencer a comunidade científica da ocorrência da
evolução e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural e sexual. Essa teoria se desen­
volveu no que é agora considerado o paradigma central para explicação de diversos fenômenos na biologia.
4 Skinner, um autor e psicólogo estadunidense, conduziu trabalhos pioneiros em psicologia experimental e foi o
propositor do behaviorismo radical, abordagem que busca entender o comportamento em função das inter-relações
entre a filogenética, o ambiente (cultura) e a história de vida do indivíduo.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Burrhus_Frederic_Skinner)

5 O naturalismo é uma escola literária conhecida por ser a radicalização do realismo, baseando-se na observação fiel
da realidade e na experiência, mostrando que o indivíduo é determinado pelo ambiente e pela hereditariedade. A
escola esboçou o que se pode declarar como os primeiros passos do pensamento teórico evolucionista de Charles
Darwin. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Naturalismo)
ÀS CONSEQÜÊNCIAS DA Q UED A

/ ' “l) empre que começamos a falar do pe- de Deus; achamos que não precisamos dela.
f cado, nós nos defrontamos com dois Contudo, se pela graça de Deus tomamos
H
f problemas: primeiro, o desconforto consciência da nossa enfermidade, então con­
que esse tema provoca; segundo, o seguimos compreender o significado da obra
desejo de enxergarmo-nos de uma forma me­ de Cristo em nosso favor, recebê-lo como
lhor do que a que a Bíblia usa para retratar o Salvador e ser transformados por Ele.
pecador, o que nos leva de imediato a procurar
caminhos para nos desculparmos e para justifi­ O GRAU E A EXTENSÃO DO PECADO_________

car nossas condutas. Ao enfrentarmos essa tendência da nature­


N o dia-a-dia, se somos criticados em al­ za humana e tentarmos compreender o peca­
guma coisa, nosso instinto de defesa entra em do, devemos estar alerta contra dois tipos de
ação mesmo quando estamos errados. C ostu­ argumentação. Eles estão ligados ao grau e à
mamos dizer: “Você não tem direito de dizer extensão do pecado, ou seja, ao quanto o pecado
isso”, ou “isso não é culpa minha”. E o pior é é realmente nocivo e a quem é afetado por ele.
que muitas pessoas nunca admitem que estão Muitas vezes ouvimos dizer, e até alimen­
erradas em relação a alguma coisa. tamos isso, embora seja errado, que a nature­
Reflitamos sobre essa tendência de nossa za humana não é tão ruim quanto a Bíblia
natureza. Precisamos vencê-la, se quisermos afirma, que os autores bíblicos eram profetas
conhecer mais a nós mesmos e a Deus. Sem a melancólicos que viviam numa época amarga,
plena consciência de nossa deslealdade e re­ e eram, por natureza, pessimistas. O mundo
belião, nunca chegaremos a conhecer o Se­ deles era repleto de guerras, doenças e muitas
nhor como um Deus de verdade e graça. formas de privação econômica. Mas, não vi­
Sem a consciência de nosso orgulho, nun­ vemos mais no ano 2000 antes de Cristo!
ca o conheceremos em Sua grandeza nem Não somos perfeitos, porém tentamos
chegaremos até Ele para obter a cura que pre­ aproximar-nos ao máximo da perfeição. So­
cisamos. Quando estamos fisicamente doen­ mos imperfeitos, mas nossa imperfeição não
tes e sabemos disso, procuramos um médico e deve ser considerada com o um pequeno pe­
seguimos sua orientação. N o entanto, se não cado, uma culpa leve ou um defeito ínfimo.
sabemos que estamos doentes, não procuramos Se a natureza humana é apenas levemente
ajuda e podemos morrer dessa enfermidade. deficiente, como essa argumentação supõe,
O mesmo acontece na vida espiritual. então já deveria estar aperfeiçoada a esta altura.
Quando estamos bem, nunca aceitamos a cura Logo, tal visão é totalmente irreal.
A Bíblia assinala que nosso estado é deses- estão, e até os problemas pendentes poderão
perador, e podemos constatar isso. O pecado ser resolvidos no futuro. A situação pode estar
está ligado à morte, com o afirma a Escritura, ruim, porém enquanto há vida há esperança.
e a morte é o último inimigo a ser vencido. A visão bíblica é de que o homem não está
Devemos escapar dela, se temos a convicção bem nem simplesmente doente. N a verdade,
de que a imortalidade é o nosso destino por ele está m orto no que tange ao seu relaciona­
direito. mento com Deus. Ele está m orto em suas
Mesmo sem levar em conta essa conside­ ofensas e pecados (Ef 2.1), como Deus avisou
ração, a tragédia da existência humana é visí­ que ele estaria quando previu as conseqüên­
vel para qualquer pessoa que se dispõe a en­ cias do pecado antes da Queda:
xergar com honestidade a pobreza crescente,
o sofrimento, o ódio, o egoísmo e a indiferen­ Mas da árvore da ciência do bem e do mal,
ça em nosso planeta. A fé cristã não é insensí­ dela não comerás; porque, no dia em que
vel a essas catástrofes, ainda que muitos cris­ dela comeres, certamente morrerás.
tãos pareçam ser. Gênesis 2.17
O posicionamento bíblico pode ser reco­
nhecido ao notarmos que na história da hu­ A M ORTE DO ESPÍR ITO , DA ALMA E DO
manidade houve apenas três visões básicas da CORPO_________________________________________

natureza humana, sintetizadas do seguinte Qual é o grau de nosso pecado? Ao consi­


modo: o homem vai bem, o homem está en­ derarmos essa questão, será útil recordar a
fermo, e o homem está morto. natureza de nosso ser discutida no Livro 1.
H á variações nas duas primeiras visões. Nele, foi assinalado o posicionamento do tex­
Os otimistas afirmam em uníssono que o ho­ to bíblico quando ensina que fomos criados à
mem vai bem, todavia alguns admitem que ele imagem de Deus, isto é, como seres tricotô-
não está tão bem quanto poderia. E os estudio­ micos, da mesma forma que a Trindade.
sos mais realistas divergem sobre o quanto a Deus existe em três pessoas: Deus Pai,
humanidade está enferma ou em fase terminal. Deus Filho e Deus Espírito Santo. N o en­
Os que sustentam a primeira visão, a de tanto, Deus é um. D a mesma maneira, cada
que o homem vai bem, concordam que todo um de nós foi criado com um corpo, uma
homem tem suas carências, e, se ele precisa de alma e um espírito. C ontudo, somos uma só
algo, é de um pouco de exercício físico, algu­ pessoa.
mas vitaminas, check-up uma vez por ano. “Es­ O ser humano que Deus criou era perfeito
tá tudo bem comigo” é o discurso do otimista. em seu espírito, sua alma e seu corpo, o ápice
Aqueles que sustentam a segunda visão da criação. N o entanto, a Queda afetou cada
estão de acordo que a humanidade está enfer­ parte de sua magnífica natureza. De forma
ma. Ela pode até estar mortalmente doente, específica, o espírito do homem morreu por­
alguns diriam, mas a situação ainda não é de- que seu relacionamento com Deus foi rompi­
sesperadora; com um cuidado adequado, re­ do; sua alma começou a morrer porque ele
médios, com o milagre da medicina espiritual começou a mentir, a enganar e a matar; seu
moderna e muita vontade de viver, quem sabe corpo, por fim, tornou-se mortal, pois como
ela sobreviva. Precisamos trabalhar duro para Deus havia dito: Porquanto és pó e em pó te
curar nossas doenças. tornarás (Gn 3.19).
Ainda que hoje algumas doenças estejam N o tocante ao espírito, o resultado do pe­
além da nossa capacidade de cura, nem todas cado de Adão foi instantâneo e completo.
Quando o espírito morreu, a comunhão com Por exemplo, se falharmos ao definir jus­
Deus foi cortada. Adão provou isso se escon­ tiça em relação à justiça de Deus, reconhece­
dendo quando Deus o procurou no jardim. remos que não há bem algum em nós. E isso
N a linguagem atual, isso é descrito como alie­ não é verdade quando consideramos o assun­
nação, afastamento de Deus, e é o primeiro to de um ponto de vista humano. Nem todas
sintoma da morte espiritual que nos sobre­ as pessoas são tão más quanto poderiam ser, e
veio como conseqüência do pecado. até mesmo as piores têm o que podemos cha­
John Stott chama isso de “a mais apavo­ mar de “lampejos de bondade”.
rante de todas as conseqüências do pecado”, Contudo, não é isso o que o texto de R o ­
pois afirma: manos declara. Ele explica como Deus enxer­
ga a justiça. Dessa perspectiva, é verdadeiro
O destino mais elevado do homem é conhecer que não há um justo, nem um sequer. A morte
Deus e manter um relacionamento pessoal do espírito afetou profunda e permanente­
com Ele. O que torna o homem realmente ad­ mente a nossa natureza moral.
mirável é ter sido feito à imagem de Deus e ser O pecado nos afetou também na área do
capaz de conhecê-lo. Mas esse Deus que fomos intelecto: Não há ninguém que entenda. As
designados a conhecer é um Ser moral, e nós palavras de Paulo em Romanos 3.10-12 ne­
somos pecadores. Por causa disso, nossos pe­ gam que tenhamos entendimento das coisas
cados escondem Sua face de nós, assim como as espirituais, sem a operação do Espírito de
nuvens encobrem o sol [...] Não temos mais Deus, que é o único que dá entendimento.
comunicação com Ele. Estamos mortos em Isso é manifesto em 1 Coríntios 2.14:
ofensas e pecados (Ef 2.1) que cometemos.
( S t o t t , 1958, p. 72,75) O hom em natural não compreende as coi­
sas do Espírito de Deus, porque lhe pare­
A alienação de Deus é completa em seus cem loucura; e não pode entendê-las, por­
efeitos. Ela nos arremessa num estado em que que elas se discernem espiritualmente.
não é possível encontrar o caminho de volta
para o Pai, a não ser com a ajuda do Espírito A terceira área afetada pela morte do espí­
Santo. O apóstolo Paulo deixou isso bem cla­ rito é a nossa vontade, não há ninguém que
ro na carta aos Romanos: busque a Deus, que será discutida no próxi­
mo capítulo. Apesar de nosso pecado e da
Não há um justo, nem um sequer. Não há justiça de Deus, somos capazes de buscar o
ninguém que entenda; não há ninguém Senhor por intermédio do Espírito Santo.
que busque a Deus. Todos se extraviaram Os homens desejam um deus, uma divin­
e juntam ente se fizeram inúteis. Não há dade que seja feita por eles e que possa preen­
quem faça o bem, não há nem um só. cher o vazio de sua vida. Porém, não querem
Romanos 3.10-12 o Deus verdadeiro, que se revela a nós pela
Bíblia e na pessoa de Cristo. Jesus declarou:
É importante entender que cada um destes N inguém pode vir a mim, se o Pai, que me
três elementos citados em Romanos 3.10-12 enviou, o não trouxer (Jo 6.44).
— justiça, entendimento e busca — são defi­ H á uma doença conhecida como miaste-
nidos no relacionamento com Deus. De outra nia gravis, na qual os músculos do corpo não
forma, distorcemos o ensinamento da Escri­ podem reagir aos estímulos que são manda­
tura e afirmamos algo que não é verdade. dos pelo cérebro. Num a pessoa normal, o
cérebro ordena aos músculos que se con­ N a resposta de Adão há algumas verda­
traiam ao enviar impulsos elétricos através des. A mulher lhe dera o fruto. Deus lhe tinha
dos nervos para os músculos, onde são rece­ dado uma mulher. Adão estava tentando des­
bidos por um aparato especial conhecido co ­ viar a culpa de si e colocá-la em alguém, no
mo placa motora final. Esta placa recebe o caso sua esposa, a fim de isentar-se de sua
sinal e transmite-o por todo o músculo. responsabilidade — uma atitude desonesta.
N os que sofrem de miastenia gravis, as Contudo, além disso, Adão também esta­
placas finais estão faltando. Logo, ainda que o va tentando culpar Deus. Ele estava dizendo
cérebro envie o sinal, ele nunca é recebido que a Queda não teria ocorrido se Deus não
pelo músculo. E, porque não é recebido, o tivesse cometido o erro de criar Eva e instituí-
músculo não responde, atrofiando-se. -la como sua companheira.
Essa é uma analogia do que aconteceu na Assim com o o marido, Eva tentou esqui­
personalidade humana por causa da morte do var-se da culpa. Quando Deus perguntou:
espírito. N o ser humano, o espírito deveria Por que fizeste isso? A mulher respondeu: A
cumprir o papel da placa motora final. Ele serpente m e enganou, e eu comi (Gn 3.13).
deveria receber os sinais enviados por Deus. O ponto é que se esquivar da culpa é uma
N o entanto, quando o homem pecou, seu es­ atitude típica da natureza pecadora, e de­
pírito (a placa) atrofiou e morreu. P or isso, monstra o que acontece quando a comunhão
ainda que os sinais estejam lá, ainda que Deus com Deus é quebrada. Deus é a fonte de toda
esteja falando, o sinal não é recebido, e a vida boa dádiva (Tg 1.17). Quando a ligação com
espiritual definha. Deus se rompe, irresponsabilidade, covardia,
A ilustração da miastenia gravis sugere mentira, ciúme, ódio e todo sentimento malig­
também uma segunda conseqüência da Q ue­ no recaem sobre o homem. Logo, entramos na
da na maneira com o ela afeta o indivíduo. O esfera da decadência moral e psicológica.
fato de o músculo não poder receber os si­ Todavia, não é só isso. A decadência pes­
nais do cérebro não significa que o músculo soal tem inevitavelmente implicações sociais.
falha em reagir com o o cérebro deseja. O Portanto, uma conseqüência posterior da
músculo sofre porque em seu estado inativo Queda é o conflito. Será que o relacionamen­
ele se contrai e m orre. A m orte do espírito to entre Adão e Eva foi harmonioso depois
também afeta a alma, fazendo com que os que ele tentou colocar a culpa na esposa? Cla­
homens sejam corrom pidos também nessa ro que não. Ali foi o começo de um conflito
área. conjugal. Da mesma forma, o desejo de cul­
Depois da Queda e da aparição de Deus par os outros, o egoísmo e a autopromoção
no jardim do Éden, de acordo com a Bíblia o produzem conflitos entre indivíduos, grupos
casal se escondeu da presença do Senhor. Esse sociais, instituições e países.
foi um sintoma da sua alienação de Deus, e o Por fim, as profundezas do espírito e da
primeiro efeito visível de seu pecado. N o en­ alma que sofreram esse terrível efeito são
tanto, o Senhor os compeliu a encontrar-se acompanhadas também pela morte do corpo.
com Ele, e começou a interrogá-los sobre o Quando Adão pecou, o espírito morreu em
que haviam feito. Deus perguntou a Adão: instantes. Com o resultado, toda a humanida­
Comeste tu da árvore de que te ordenei que de herdou uma natureza pecaminosa. A alma
não comesses? (Gn 3.11). Adão respondeu: A começou a morrer.
m ulher que m e deste p o r companheira, ela me Nessa área, o contágio se alastrou à medi­
deu da árvore, e comi (v. 12). da que o homem foi sendo cada vez mais
envolvido pelo pecado. A outra parte da na­ secular. Todavia, o que um pensador não al­
tureza humana, o corpo, morre por último. A cança, e que a Bíblia afirma plenamente, é que
morte é universal. Paulo usou esse fato para existe um vínculo entre todas as ocorrências
mostrar a extensão do pecado: A morte pas­ de pecados individuais.
sou a todos os homens, p or isso que todos peca­ Em outras palavras, o ponto não é sim­
ram (Rm 5.12). plesmente que todos pecam e, portanto, são
pecadores, embora isso seja verdade. O ponto
P ecado o rig in a l _____________________ é que todos pecam p orque são pecadores.
A morte de um ser humano é triste e as­ O pecado original de Adão e sua culpa são
sombrosa, mas é só a metade do problema do extensivos à humanidade. A visão bíblica afir­
pecado. A extensão deste, assim com o seus ma que Deus considerou todos culpados por
estágios, deve ser considerada. causa da transgressão adâmica. Essa doutrina
Poderemos pensar que a miséria humana tem sido rejeitada. Ela é vista como indigna
responde com clareza a essa questão. Mas, de Deus. Mas, antes de a doutrina do pecado
aqueles que se opõem ao conceito bíblico da original ser rejeitada, temos de examinar se
natureza do pecado poderão opor-se. Prova­ ela é verdadeira.
velmente argumentarão que a corrupção atri­ A veracidade da origem do pecado como
buída ao pecado não é verdadeira, mas que, se afirma o texto bíblico pode ser observada na
todas as pessoas tiverem sido afetadas pelo própria miséria humana e na morte. Podemos
pecado, foi por causa das circunstâncias exter­ concordar que em muitos casos a miséria é
nas, não por algo relativo ao homem interior. conseqüência direta de nosso pecado ou de
Entretanto, a natureza humana é afetada nossas fraquezas. P or exemplo, o fumante
pelo pecado porque foi contaminada pela compulsivo não pode culpar ninguém pelo
transgressão de Adão e Eva. Paulo escreveu: seu câncer de pulmão, a não ser a si mesmo. O
indivíduo que come muito deve ser o único
Pela ofensa de um, m orreram muitos. [...] culpado por sua doença cardíaca.
Pela ofensa de um só, a morte reinou. Por Todavia, não é apenas o fumante que tem
uma só ofensa veio o juízo sobre todos os câncer nem o glutão que tem doença cardíaca.
homens. Pela desobediência de um só ho­ Mesmo aqueles que nada fazem para atrair
m em, muitos foram feitos pecadores. essas moléstias são afetados por elas. Crian­
Romanos 5.15,17,18,19 ças, e até bebês, contraem doenças graves.
Com o as deficiências de nascença, o câncer
Todos m orrem em Adão. em recém-nascidos e outras formas de sofri­
1 Coríntios 15.22 mento em inocentes podem ser explicados,
senão pelo que a Bíblia diz sobre o pecado?
Porque todos pecaram e destituídos estão Em toda a história do pensamento, apenas
da glória de Deus. duas teorias tentaram explicar o pecado. A
Romanos 3.23 primeira é a da eternidade do mal. Ela afirma
que o mal existe desde o início do mundo,
Contudo, uma leitura cuidadosa das pas­ assim com o o bem existe desde o começo;
sagens de onde esses versículos foram extraí­ portanto, a vida é caracterizada pela mistura
dos mostra que eles se referem a algo mais do dos dois.
que o pecado. Que todo mundo peca, isso N o entanto, não é uma teoria aceitável
pode ser afirmado por qualquer pensador porque simplesmente declara que o pecado e
o mal sempre existiram. Apesar de ser insatis­ de Deus por Ele agir de maneira tão “injusta”.
fatória como explicação da realidade, ainda Mesmo que o texto bíblico seja'verdadeiro,
que seja uma posição filosófica, tenta concei­ não deveríamos detestar um Deus que é tão
tuar o mal como uma derivação ou corrupção arbitrário ao ponto de lançar o julgamento do
do bem. Isso não explica o pecado. pecado sobre todos por causa da transgressão
A outra teoria engloba doutrinas simila­ de um só homem?
res, popularmente conhecidas com o reen- N a verdade, o fato de Adão ser o repre­
carnação e transm igração1 (ou m etempsico- sentante da espécie humana é uma prova da
se2) das almas. Estas sustentam que cada um graça de Deus.
de nós teve outras vidas. O mal que pratica­ Em primeiro lugar, isso foi um exemplo
mos hoje veio supostamente de encarnações da Sua graça sobre Adão. O que poderia ser
anteriores. mais bem planejado para produzir um eleva­
Deveria ser dito em defesa dessa visão que do senso de responsabilidade e obediência em
ela é, pelo menos, uma tentativa séria de con­ Adão do que a consciência de que a sua res­
siderar o nosso estado presente tendo em posta ao mandamento de Deus afetaria in­
conta as ações específicas dos indivíduos. contáveis descendentes seus?
Com isso, busca satisfazer o conceito básico É possível compreendermos isso mesmo
de justiça que compartilhamos, a saber, que em relação a uma família, pois tanto o bem
cada um deve sofrer pelos seus próprios peca­ como o mal que um pai ou uma mãe fizerem
dos, e não pelos dos outros. poderão afetar a sua prole. Pais que são incli­
Todavia, como uma solução definitiva pa­ nados ao alcoolismo podem manter o contro­
ra a questão, a teoria é insatisfatória. Dese­ le se tiverem consciência de que seus filhos
jamos de imediato perguntar: “De que for­ serão prejudicados por seu mau hábito. Pais
ma as pessoas se tornaram transgressoras que tiverem chance de roubar podem recuar
nas vidas passadas?”. A reencarnação só ao perceberem que, se forem presos, toda a
empurra o problema para trás, sem resolver família sofrerá danos.
o enigma. Da mesma forma, a consciência do efeito
N ão há nenhuma resposta para a discus­ do pecado sobre toda a humanidade deveria
são sobre o pecado, exceto a bíblica: o pecado ter atuado como fator inibidor em Adão. Isso
é resultado do juízo de Deus sobre o homem teria sido um incentivo poderoso para o bem.
por causa da transgressão de Adão. De acor­ Se Adão caiu, foi contrariando a graça de
do com o plano divino, Adão seria o repre­ Deus sobre ele, e não como uma reação justi­
sentante da espécie humana. Ele estava diante ficada a um decreto arbitrário.
de Deus, por isso Paulo diz que, quando Ainda mais importante, a natureza repre­
Adão caiu, nós também caímos, e fomos atin­ sentativa do pecado de Adão é um exemplo
gidos, de forma inevitável, pelas conseqüên­ da graça de Deus sobre nós, porque a mesma
cias de sua desobediência. representação é uma garantia de que Deus
pode salvar-nos. Paulo afirmou:
C ondenação e justificação
representativas _______________________
Pela desobediência de um só hom em , mui­
E aceitável que uma pessoa possa seguir a tos fora m feitos pecadores, assim, pela
visão cristã até este ponto, concordando que a obediência de um, muitos serão feitos
doutrina do pecado original é a única explica­ justos.
ção viável para o pecado, mas ainda discordar
Se todos os seres humanos fossem como a Adão e seu pecado como no que diz respeito
os anjos, que não têm família ou relaciona­ a Jesus e Sua justiça, a salvação é possível.
mentos representativos, e se fossem julgados Em Jesus, aqueles que são pecadores po­
como os anjos foram quando caíram — de dem ser justificados. N ós, que morremos em
imediato, individualmente, e por seus próprios ofensas e pecados, podemos reviver em espí­
pecados, que é como a maioria dos homens rito. As bênçãos da salvação vêm não por lu­
pensa que gostaria de ser julgada —, não have­ tarmos contra os caminhos de Deus ou por
ria esperança alguma de salvação, assim como odiarmos Ele pelo que consideramos uma
não há esperança para os anjos caídos. injustiça Sua, mas, ao contrário, por aceitar­
Todavia, porque somos pessoas que vivem mos o Seu veredicto sobre a nossa verdadeira
em sociedade e porque Deus escolheu tratar natureza como seres caídos e voltarmos para
conosco dessa forma, tanto no que diz respeito Cristo, em fé, para salvação.

N otas

1 Doutrina filosófica de origem indiana, transportada para o Egito, de onde mais tarde Pitágoras a importou para a
Grécia. Os discípulos desse filósofo ensinavam ser possível uma mesma alma, depois de um período mais ou menos
longo no império dos mortos, voltar a animar outros corpos de homens ou de animais, até que transcorresse o
tempo de sua purificação e pudesse retomar à fonte da vida. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki)
2 Do grego meta (mudança) + en (em) + psique (alma), é o termo genérico para transmigração da alma de um corpo
para outro, seja este do mesmo tipo de ser vivo ou não. É usualmente denominada de metacomorfose.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Metempsicose)
A ESCRAVIDÃO DA VONTADE

^ pós estudarmos a natureza do pe- pecados? Isso significa que estamos realmen­
/& cado e seus efeitos radicais e con- te mortos no que implica qualquer capacida­
/ M tundentes sobre a humanidade, é de de responder a Deus ou de escolhê-lo? Ou
/ M /
preciso ainda discutirmos a escravi­ ainda temos, pelo menos, a capacidade de
dão da vontade. Nesse ponto é que se encon­ responder de forma positiva a Ele quando a
tram as maiores divergências e em que os resul­ oferta de salvação é feita a nós?
tados do pecado são expostos com mais clareza. Se pudermos responder ao que Paulo quis
Lutero reconhecia a importância desse tó ­ ensinar quando escreveu não há ninguém que
pico. N o final de sua monumental defesa da busque a D eus (Rm 3.11), devemos conside­
escravidão da vontade, depois de demolir os rar o que Jesus afirmou: N inguém pode vir a
argumentos do famoso humanista Erasmo de mim, se o Pai, que m e enviou, o não trouxer
Rotterdam 1, Lutero se voltou para Erasmo e (Jo 6.44).
elogiou os escritos dele por, pelo menos, Por outro lado, se não temos condições de
manter o foco sobre o tema crucial. Lutero dar uma resposta positiva à oferta de salva­
escreveu: ção, qual é o significado das muitas passagens
nas quais o evangelho é oferecido a homens e
Eu lhe presto louvores sinceros e recomen­ mulheres caídos? Com o uma pessoa pode ser
dações por ter promovido esta explicação, responsável por não aceitar Jesus, se ela é in­
por você somente, e não os outros, ter tocado capaz de fazê-lo sem que Deus ilumine seu
no ponto certo, isto é, no tópico essencial. entendimento?
(L u t e r o , 1957, p. 319) Essas perguntas comprovam a importância
de compreender a escravidão da vontade. Ade­
De forma parecida, Emil Brunner fala do mais, demonstram como as doutrinas do peca­
entendimento da liberdade e da falta de li­ do e corrupção, da eleição, da graça e da res­
berdade com o o ponto decisivo para a com ­ ponsabilidade humana são conseqüências dela.
preensão do homem e do pecado humano.
(B runner , 1950, p. 121) A H ISTÓRIA DE UM DEBATE__________________
Qual foi a extensão da Queda do homem? A importância de determinar se a vontade
Foi apenas um lapso? Ele caiu e não há mais é aprisionada ou livre é também trazida a nós
esperança? Ou ele caiu e não pode mais obede­ pela história do dogma cristão. Debates teo­
cer a Deus? O que a Bíblia quer explicar quan­ lógicos relevantes na história da Igreja se con­
do afirma que estamos mortos em ofensas e centraram nesse tema.
N os tempos primitivos da Igreja, a maio­ Adão tinha antes de sua Queda, ou seja, numa
ria dos teólogos parecia endossar a tese da li­ posição de neutralidade em relação ao peca­
vre vontade; estavam preocupados em “var­ do; e terceiro, os seres humanos são capazes
rer” o determinismo entranhado do mundo de viver livres do pecado, se assim o deseja­
grego e romano. rem, e podem fazer isso mesmo sem ter cons­
De alguma forma, eles estavam certos. A ciência da obra de Cristo e da operação so­
visão cristã não é determinista, nem exime o brenatural do Espírito Santo.
homem de sua responsabilidade pelo pecado. A posição de Pelágio limitava a abrangên­
Os primeiros pais da Igreja, como Orígenes2, cia do pecado e conduzia, de forma inevitável,
Crisóstom o3, Jerônimo4 e outros, estavam à negação da necessidade absoluta da imereci­
certos ao opor-se ao determinismo, mas erra­ da graça de Deus para salvação. Além do
dos em vários pontos, inclusive ao exaltar a mais, mesmo que o evangelho da graça de
capacidade humana de não pecar, que os im­ Deus seja pregado com liberdade à pessoa pe-
pedira de enxergar o pecado e sua culpa. cadora, o que determina em definitivo se ela
Agostinho de Hipona se levantou para será salva não é a operação sobrenatural do
desafiar esse posicionamento e argumentar Espírito Santo dentro dela, mas a vontade da
com fúria a favor da escravidão da vontade, pessoa, que, na teoria de Pelágio, tem liberda­
brandindo sua fidelidade à Palavra contra o de total para receber ou rejeitar o Salvador.
monge britânico Pelágio5, seu opositor mais N o início de sua vida cristã, Agostinho
declarado. adotou uma posição similar. Todavia, ele con­
N ão era a intenção de Pelágio negar a uni­ seguiu enxergar que aquela visão não fazia jus
versalidade do pecado, pelo menos no início tanto à doutrina bíblica do pecado — que
de sua atuação em Roma. Nesse ponto, ele sempre retratava muito mais do que simples
desejava permanecer ortodoxo. N o entanto, ações individuais e isoladas — como à graça
foi incapaz de enxergar quanta responsabilida­ de Deus, definitivamente o único elemento
de poderia residir em nós sem a livre vontade. determinante na salvação.
A capacitação deve estar presente, se é pa­ Agostinho argumentava que há uma cor­
ra haver comprometimento, ele argumentava. rupção hereditária, pela qual não é possível ao
Deve-se fazer alguma coisa, eu tenho aptidão indivíduo parar de pecar. Sua frase chave era
para isso. Pelágio sustentava que a vontade, non posse non peccare. Significa que uma pes­
em vez de estar amarrada ao pecado, é, na ver­ soa não tem a capacidade de não pecar.
dade, neutra, de forma que em algum m o­ Agostinho afirmava que o homem, tendo
mento ou em alguma situação ela está livre usado mal a sua livre vontade na Queda, per-
para escolher o bem e praticá-lo. deu-se e perdeu sua vontade. O teólogo de­
Nessa abordagem, eram definidos como monstrava que a vontade humana havia sido
pecado apenas aqueles atos deliberados e sem de tal forma escravizada que não tinha poder
ligação entre si, nos quais a vontade escolhe para escolher a retidão. Sustentava também
fazer o mal, e qualquer conexão obrigatória que a vontade humana, por estar escravizada
entre pecados e a noção hereditária de pecado pelo pecado, é livre para afastar-se de Deus,
era esquecida. mas não para aproximar-se dele.
Pelágio, mais tarde, declarou: primeiro, o Agostinho estava empenhado em estabe­
pecado de Adão não afetou ninguém além lecer que a graça é uma necessidade absoluta e
dele próprio; segundo, todos que nasceram que fora dela ninguém pode ser salvo. Além
depois de Adão nasceram na condição que disso, é uma questão de graça do começo até

/& /
o fim, não apenas da graça antecedente ou forma que não podemos agradá-lo, porque
parcial, à qual o pecador acrescenta seus p ró­ nossos atos são imundos.
prios esforços. De outra forma, a salvação N osso único papel é admitir nosso pecado
não seria inteiramente de Deus, a honra do e clamar ao eterno Deus por misericórdia, sa­
Senhor seria diminuída, e o homem teria es­ bendo que, mesmo quando desejamos fazê-
paço para exaltar-se no céu. -lo, não o podemos, a não ser que Deus esteja
A o defender esse ponto de vista, Agosti­ à frente de nossa vontade para nos convencer
nho deu um passo à frente na teologia da do pecado e conduzir-nos a Jesus Cristo, a
Antiguidade, e a Igreja da época o apoiou. fim de que recebamos a salvação.
N o entanto, no decorrer da Idade Média, a João Calvino, Ulrico Zuínglio7, Martin
Igreja retrocedeu em grande escala para o Bucer8 e todos os outros líderes da Reforma
pelagianismo6. protestante uniram-se a Lutero nessas con­
Muitos anos mais tarde, na época da R e­ vicções. Em reação à Reforma, no entanto, a
forma, a mesma batalha ressurgiu em diversas Igreja Católica, no Concilio de Trento9, ado­
frentes. U m a confrontação direta foi entre tou uma posição quase pelagiana, segundo a
Erasmo e Lutero. Erasmo tinha sido simpáti­ qual a vontade humana coopera com a imere­
co à Reforma em seu primeiro momento, pois cida ajuda divina ao crer nela. Mais tarde, na
via as corrupções da Igreja medieval e anelava Holanda, Jacó Arm ínio10 e os arminianos11
por sua correção. Contudo, sem ter a profun­ mais radicais reviveram os conceitos de Pelá­
didade espiritual de Lutero, Erasm o foi, por gio de diferentes formas.
fim, dominado pela ideia de desafiá-lo. Hoje, provavelmente, a maioria dos cris­
Erasmo afirmava que a vontade devia ser tãos de todas as denominações, assim como
livre, por razões muito parecidas com as de muitas correntes teológicas, são pelagianos,
Pelágio. N ão era um tema pelo qual Erasmo embora não admitam. Eles estão certos?
tinha muito interesse, entretanto, de forma que Agostinho e os líderes reformadores beberam
ele aconselhou moderação ainda que estivesse da fonte bíblica? O homem está totalmente
opondo-se a ninguém menos que Lutero. arruinado por sua Queda? O u ele sucumbiu
Todavia, não era um assunto qualquer pa­ pela metade?
ra Lutero. Ele se debruçou sobre o tema com
extremo zelo, enxergando-o como um assun­ A LIBERDADE DA VONTADE DE EdW ARPS

to do qual a própria veracidade de Deus de­ Antes de respondermos a essas perguntas,


pendia. Lutero reconhecia que, psicologica­ é importante observarmos a contribuição
mente, homens e mulheres fazem escolhas. teológica para esse debate. Talvez a mais sig-
Isso é tão óbvio que não pode ser negado por nificante de todas seja a do teólogo e prega­
ninguém. N o entanto, na área específica da dor americano Jonathan Edwards12. Ele tem
escolha pessoal por Deus ou no fracasso em o mesmo ponto de vista de Agostinho, Lute­
escolhê-lo, Lutero negava a liberdade da von­ ro e Calvino.
tade, tanto quanto Erasmo a afirmava. N o entanto, é um detalhe interessante
Lutero declarava que estamos completa­ que seu tratado não tenha o título do grande
mente vendidos ao pecado. Então, nossa úni­ estudo de Martinho Lutero, The Bondage o f
ca atitude é reconhecer com humildade o pe­ the Will [A escravidão da vontade], porém
cado, confessar nossa cegueira e admitir que um título que parece querer fixar exatamente
não podemos mais escolher Deus, porque o oposto: The Freedom o f the Will [A liberda­
nossa vontade está escravizada, da mesma de da vontade] ( E d w a r d s , 1976, p. 3-93).
Isso exige uma explicação, e ela é encon­ coisa que não preferiu. Contudo, você, sendo
trada nas contribuições singulares de Edwards uma pessoa equilibrada e racional, escolhe o
a esse debate. Sua primeira contribuição va­ que lhe parece ser a coisa certa, adequada, boa
liosa foi definir vontade, o que ninguém havia e vantajosa a fazer. (G e r st n er , 1982, p. 4-5)
feito.
Todos antes dele trabalharam supondo Posso enxergar essas colocações de forma
que soubéssemos o que é vontade. Chama­ negativa. Suponha que, quando confrontado
mos de vontade a instância em nós que faz por uma situação de escolha, nenhum motivo
escolhas. Edwards define a vontade como permeie sua mente. Isso significa que a esco­
aquilo por meio do qual fazemos escolhas. lha será impossível de ser feita e que não será
Em outras palavras, o que escolhemos é de­ possível tomar qualquer decisão.
terminado, segundo Edwards, não pela von­ Tomemos como ilustração a imagem de
tade em si, mas pela mente. Nossas escolhas um cavalo num estábulo. À direita dele há um
são determinadas pelo que julgamos ser mais monte de cenouras alinhadas com perfeição, e
desejável. à esquerda um monte de cenouras espalhadas.
A segunda contribuição de Edwards diz C om o o cavalo escolherá entre os dois mon­
respeito aos motivos. Ele perguntou: “Por tes? Se um monte tem o mesmo número de
que minha mente escolhe uma coisa, e não cenouras que o outro e não há motivo algum
outra? A resposta é que a mente escolhe base­ para escolher um em vez do outro, o que vai
ada em motivos”. Ou seja, a mente escolhe o acontecer com o cavalo?
que pensa ser melhor. Edwards trabalha esse Ele vai passar fome, paralisado entre os
ponto ao longo do seu livro, e não é fácil sin­ dois montes de cenoura! N ão haverá nada
tetizar seus argumentos. que o faça inclinar-se para um lado ou para o
Todavia, é possível resumir seu ponto de outro. Então, se ele for para um lado ou para
vista citando um trecho de um pequeno livro o outro, será porque, por algum motivo des­
de instruções sobre livre vontade de John conhecido por nós, uma escolha ou outra é
Gerstner. Ele aponta: preferível.
Quando você e eu fazemos uma escolha,
Suas escolhas como uma pessoa racional são ela acontece da mesma forma. Por qualquer
sempre baseadas em várias considerações, ou que seja a razão, uma coisa nos parece melhor,
motivos, que estão diante de você naquele mo­ e porque parece melhor é que a escolhemos.
mento. Esses motivos têm certo peso para vo­ A terceira contribuição de Edwards diz
cê, e os motivos para ler ou deixar de ler um respeito à responsabilidade, o tema que con­
livro, por exemplo, são pesados na balança de fundiu Pelágio tão profundamente. O que
sua mente; os motivos que pesam mais sobre Edwards fez, e com muita sabedoria, foi dis­
todos os outros são os que você, sem dúvida, tinguir entre o que chamou de incapacidade
escolhe seguir. Você, sendo uma pessoa racio­ natural e incapacidade moral.
nal, sempre escolherá o que parecer ser a coisa Vejamos três exemplos dessa diferença:
certa, sábia, a coisa mais aconselhável a fazer. primeiro, um exemplo meu; segundo, um
Se você escolhesse não fazer a coisa certa, exemplo dos escritos de Arthur W. Pink; e
aconselhável, a que você estivesse inclinado a terceiro, um exemplo do próprio Edwards.
fazer, você seria, é claro, uma pessoa insana. N o mundo animal há espécimes que só co­
Você estaria escolhendo fazer uma coisa que mem carne, os carnívoros. H á outros animais
não escolheu. Você consideraria preferível uma que só se alimentam de grama ou vegetais, os

/SS
herbívoros. Imagine um leão, que é carnívo­ a incapacidade deles para falarem com tran­
ro, diante de um pasto abundante ou de uma qüilidade com José por causa de seu ódio por
tina cheia de aveia. Ele não comerá nem a rel­ ele (Pink , 1969, p. 187-188).
va nem a aveia. Fisicamente, poderia devorar Chegamos, por fim, ao exemplo de
ambos em poucos minutos. Então, por que Edwards. Ele menciona os arminianos holan­
ele não comerá? A resposta é que não está na deses, que afirmam a posição irracional de
sua natureza fazê-lo. Calvino. Edwards sustenta que os arminianos
Se fosse possível perguntar ao leão por é que estão sendo ilógicos.
que ele rejeitou a refeição vegetariana, e se ele
pudesse responder, diria: “N ão consigo co ­ Deixemos o senso comum determinar se há ou
mer essa comida; eu a detesto. Só comerei não uma grande diferença entre esses dois ca­
carne”. sos: o primeiro de um homem que insulta o seu
O homem natural não pode responder de rei e é lançado na prisão; depois de ficar um
forma positiva ou escolher a salvação de tempo por lá, o rei o visita e diz-lhe que, se ele
Deus. Em sua mente ele é capaz, porém no se curvar e com humildade lhe pedir perdão,
espírito não. Ele simplesmente não consegue. será perdoado e colocado em liberdade, e, co­
O homem não aceita porque não ama Deus. mo se não bastasse, receberá riquezas e honras.
Arthur W. Pink recorreu à Escritura para O prisioneiro se arrepende de coração de seu
ilustrar a diferença: ato descontrolado e da maldade que praticou
contra o soberano e aceita a oferta do rei; en­
E já Aías não podia ver, porque os seus tretanto, ele está confinado a fortes paredes,
olhos estavam já escurecidos p o r causa da com portas de bronze e barras de ferro.
sua velhice. O outro caso é de um homem que tem um es­
1 Reis 14.4 pírito indomável, um caráter teimoso, arrogan­
te e ingrato; além disso, é envolvido com trai­
Os homens remavam, esforçando-se por ção e tem no seu coração uma inimizade
alcançar a terra, mas não podiam, por­ extrema por um rei justo. Por causa de sua re­
quanto o m ar se ia em bravecendo cada belião, acaba sendo lançado na cadeia, e fica
vez mais contra eles. muito tempo por lá, atado por correntes e num
Jonas 1.13 estado lastimável.
Compadecido, o rei vai até o presídio, ordena
Nesses versículos, é a incapacidade natu­ que as correntes sejam retiradas e que as por­
ral que está em jogo. Nenhuma culpa é atri­ tas sejam abertas para o prisioneiro; chama-o
buída a isso. Por outro lado, em Gênesis 37.4, para fora e diz que, se ele se curvar diante de­
lemos: le, reconhecer que o tratou de maneira indig­
na e pedir perdão, ele será de imediato posto
Vendo, pois, seus irmãos que seu pai o em liberdade e colocado em posição de digni­
amava [José] mais do que a todos os seus dade na corte.
irmãos, aborreceram-no e não podiam fa ­ N o entanto, o homem é tão soberbo e cheio de
lar com ele pacificamente. maldade que não tem vontade de aceitar a
oferta; seu orgulho enraizado e sua malícia o
Essa é uma incapacidade moral ou espiri­ dominam e mantêm seu coração acorrentado.
tual. Por isso, os irmãos de José eram culpa­ A oposição de seu coração tem poder total so­
dos, o que a passagem deixa claro ao sublinhar bre ele, exercendo uma influência sobre sua
mente muito maior do que a graça oferecida Bíblia ensina que qualquer um pode ir a Cristo
pelo rei, com toda a sua bondade, suas ofertas e se quiser. O próprio Jesus disse que aquele
promessas. que se aproximar dele não será lançado fo­
Agora, recorrendo ao senso comum, vemos ra”. Isso é verdade. C ontudo, o ponto não é
que não há diferença entre esses dois casos, as­ esse. E certo que qualquer um que quiser
sim como na culpa atribuída aos dois prisionei­ poderá buscá-lo. E isso que torna a nossa
ros. (E dwards , 1976, p. 66) recusa em ir a Ele tão absurda, e torna nossa
culpa ainda maior.
Quando lemos exemplos com o esse, nos­ N o entanto, quem tem vontade de ir a
so instinto inicial é sustentar que a doutrina Cristo? A resposta é ninguém, a não ser
da corrupção é verdadeira, todavia ela não é aqueles em quem o Espírito Santo já realizou
verdadeira para nós porque, como diríamos, a operação irresistível do novo nascimento,
não somos tão arrogantes ou orgulhosos a de forma que, como conseqüência desse mi­
ponto de afrontar a majestade do rei. lagre, os olhos espiritualmente cegos do ho­
Contudo, isso é o que a Bíblia afirma que mem natural são abertos para enxergar a ver­
somos. Estamos de tal forma contra Deus dade de Deus, e a mente corrompida do
que, quando a oferta do evangelho é apresen­ pecador é renovada para receber Jesus Cristo
tada a nós, não a recebemos, não por causa de com o Salvador.
um instinto natural, como o leão diante da
relva e da aveia, mas porque as forças que N enhum a do utrina nova _____________
operam em nós são contrárias a Deus. P or acaso, esse é um ensinamento novo?
Quando julgamos a questão, achegar-nos De jeito algum. E apenas a forma mais básica
a um Deus como Ele é apresentado na Bíblia, e pura da doutrina do homem adotada pela
logo não queremos fazê-lo. Deus é descrito maioria dos protestantes e até em âmbito pri­
como soberano; se vamos até Ele, devemos vado por alguns católicos.
reconhecer Sua soberania em nossa vida — e Em um dos 39 Artigos da Igreja da Ingla­
não queremos isso. Deus é santo; se vamos terra, lemos:
até um Deus santo, devemos curvar-nos dian­
te de Sua santidade e confessar nosso pecado. A condição do homem depois da Queda de
Porém, não queremos fazê-lo. Adão é tal que ele não pode voltar-se e dispor-
Ainda, se nos aproximamos de Deus, de­ -se, por sua própria força natural e suas boas
vemos admitir Sua onisciência, e não quere­ obras, para a fé e invocar a Deus; por conseguin­
mos fazer isso. Se vamos a Deus, devemos re­ te, não temos poder para fazer boas obras, agra­
conhecer Sua imutabilidade, porque qualquer dáveis e aceitáveis a Deus, sem a Sua graça por
Deus digno deste nome não muda em qualquer Cristo nos prevenindo [isto é, estando conosco
de Seus atributos. Deus é soberano e sempre de antemão para nos motivar], para que possa­
será soberano. Deus é santo e será sempre san­ mos ter uma vontade boa, e trabalhando conos­
to. Deus é onisciente e será sempre onisciente. co quando tivermos essa vontade. (Artigo 10)
Esse é exatamente o Deus que não queremos.
Então, não vamos até Ele. E nem podemos ir, O Catecismo Maior de Westminster declara:
até que a Sua graça faça o que só pode ser en­
tendido como um milagre em nossa vida. O pecado desse estado em que o homem caiu
Alguém que não aceita a doutrina dos refor­ consiste na culpa do primeiro pecado de Adão
madores poderá colocar: “Mas, com certeza, a e na corrupção de sua natureza, pela qual se
tornou inteiramente indisposto, incapaz, e de term os feito tudo o que desejamos na
oposto a todo o bem espiritual e inclinado a vida. Pelo m enos, podem os apostar nessa
todo o mal, e isso continuamente. (Resposta à possibilidade.
pergunta 25) Por outro lado, se estamos mortos em
nosso pecado, como a Bíblia revela, e isso en­
U m bom entendimento da escravidão da volve a nossa vontade, assim como todas as
vontade é importante para todas as pessoas, outras partes de nossa constituição física e
pois é apenas nesse entendimento que os pe­ psicológica, então nos encontraremos em de­
cadores aprendem o quanto a sua situação é sespero. Veremos nosso estado como sem es­
desesperadora e com o a graça de Deus é perança, fora da intervenção sobrenatural e
fundamental. Se confiarmos em nossa p ró­ imerecida da graça de Deus.
pria capacidade espiritual, ainda que míni­ Isso é o que Deus exige, se quisermos ser
ma, nunca nos preocuparemos seriamente salvos de nosso pecado e chegar até Ele. O
com a nossa condição. Poderem os saber que Senhor não aceita qualquer vangloria ou con­
precisamos crer em Jesus Cristo com o nos­ tribuição humana, por menor que seja, em se
so Salvador, porém não haverá um sentido tratando de salvação. Todavia, se renunciar­
de urgência. mos a todos os pensamentos sobre a nossa
Afinal, a vida é longa. Haverá tempo para própria capacidade, Ele nos mostrará o cami­
crer mais tarde. Poderem os crer quando nho da salvação por intermédio de Jesus Cris­
quisermos, talvez no leito de m orte, depois to e nos guiará até Ele.

N otas

1 Erasmo ficou conhecido como Erasmo de Rotterdam, mas seu nome era Desidério Erasmo, e ele foi um pregador do
evangelismo filosófico. Nasceu na cidade de Rotterdam, na Holanda. Em 1488 ingressou na Ordem dos Agostinianos e vi­
rou padre, depois aceitou o cargo de secretário do bispo de Combai, na França.
(Fonte: http://www.consciencia.org/erasmo)

2 Orígenes, cognominado Orígenes de Alexandria, Orígenes de Cesareia ou Orígenes o Cristão (Alexandria, Egito, 185—
Cesareia, ou, mais provavelmente, Tiro, 253), foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é um dos padres gregos. Um
dos mais distintos pupilos de Amônio de Alexandria, Orígenes foi um prolífico escritor cristão, de grande erudição, ligado
à Escola Catequética de Alexandria, no período pré-niceno.
Orígenes de Alexandria, além dos seus trabalhos teológicos, dedicou-se ao estudo e à discussão da filosofia, em es­
pecial Platão e os filósofos estoicos. Escreveu cerca de 600 obras, entre as quais as mais conhecidas são: D e Prináppis;
Contra Celso e a Hexapla. Entre os seus numerosos comentários bíblicos devem ser realçados: Comentário ao Evan­
gelho de Mateus e Comentário ao Evangelho de João. O número das suas homílias que chegaram até aos dias de hoje
ultrapassa largamente a centena. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Or%C3%ADgenes)
3 João Crisóstomo foi um teólogo e escritor cristão, patriarca de Constantinopla no fim do século IV e início do V. Sua de­
posição em 404 produziu uma crise entre a Santa Sé e a Sé Patriarcal. Pela sua inflamada retórica, ficou conhecido como
Crisóstomo (que em grego significa boca de ouro).
João Crisóstomo tem uma importância ímpar enquanto exegeta na medida em que ele é a norma teológica signi­
ficativa da Escola de Antioquia. Não recusando as leituras alegóricas e místicas dos textos da Bíblia, defendia que as
mesmas só deveriam ser normativas quando os próprios autores das mesmas sugerissem, direta ou indiretamente,
este significado mais profundo que, não obstante, ele reconhecia como sendo o mais autêntico.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jo%C3%A3o_Cris%C3%B3stomo)
4 Jerônimo foi um padre e apologista cristão ilírio. É conhecido sobretudo como tradutor da Bíblia do grego antigo e do
hebraico para o latim. A tradução da Bíblia de Jerónimo, a Vulgata — publicada cerca de 400 d.C., poucos anos depois de o
cristianismo se tornar a religião oficial do Império Romano (391d.C.)— é ainda o texto bíblico oficial da Igreja Católica.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jer%C3%B3nimo_de_Str%C3%ADdon)

A ftf
5 Pelágio da Bretanha foi um monge a quem é atribuída a doutrina do pelagianismo.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pelagio)
6 O pelagianismo é uma teoria teológica cristã atribuída a Pelágio da Bretanha. Sustenta basicamente que todo homem é to­
talmente responsável pela sua própria salvação e, portanto, não necessita da graça divina.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pelagianismo)
7 Ulrico Zuínglio foi o líder da Reforma suíça e o fundador das igrejas reformadas suíças. Independente de Martinho Lutero,
que era doctor biblicu$yZuínglio chegou a conclusões semelhantes pelo estudo das Escrituras do ponto de vista de um eru­
dito humanista. Zuínglio não deixou uma Igreja organizada, mas as suas doutrinas influenciaram as confissões calvinistas.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ulrico)

8 Martin Bucer foi um reformador protestante em Estrasburgo que influenciou as doutrinas luterana, calvinista, anglicana e
outras práticas. Bucer era originalmente um membro da Ordem Dominicana, mas, depois da reunião e sendo influenciado
por Martinho Lutero, em 1518 conseguiu que seus votos monásticos fossem anulados. Ele então começou a trabalhar para
a Reforma, com o apoio de Franz Von Sickingen.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Martin_Bucer).
9 O Concilio de Trento, realizado de 1545 a 1563, foi o 19° concilio ecumênico. E considerado um dos três concílios funda­
mentais na Igreja Católica. Foi convocado pelo papa Paulo III para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica, no
contexto da Reforma da Igreja Católica, e em reação à divisão então vivida na Europa devido à Reforma Protestante, razão
pela qual é denominado como Concilio da Contrarreforma.
10 Armínio era um distinto pastor e professor holandês, cuja formação teológica havia sido profundamente calvinista.

110 arminianismo é uma escola de pensamento de dentro do cristianismo protestante baseada sobre ideias de Jacó Armínio,
teólogo reformado holandês, e de seus seguidores históricos, os remonstrantes. A aceitação doutrinária se estende por boa
parte do cristianismo, incluindo os protestantes evangélicos.

1 2 0 trabalho teológico de Edwards é muito abrangente, com sua defesa da teologia reformada, a metafísica do determinismo
teológico, e a herança puritana. Edwards teve um papel fundamental na formação do primeiro Grande Despertar, e super­
visionou alguns dos primeiros fogos de avivamento em 1733-1735 na sua igreja em Northampton, Massachusetts.
Pa r t e

2
Lei e graça

Ora, nós sabemos que tudo o que a lei díz aos que estão debaixo da lei o diz, para que
toda boca esteja fichada e todo o mundo seja condenável diante de Deus. Por isso, nenhu­
ma carne serájustificada diante dele pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimen­
to do pecado.
Romanos 3.19,20

E um deks, doutor da lei, interrogou-o para o experimentar, dizendo: Mestre, qual é o


grande mandamento da lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande
mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Mateus 22.35-39

Porque do céu se manifesta a ira de Deus sobre toda impiedade e injustiça dos homens que
detêm a verdade em injustiça.
Romanos 1.18

Então, o SENHOR. Deus disse à serpente: Porquanto fizeste isso, maldita serás mais que
toda besta e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás e pó come-
rás todos os dias da tua vida. E porei inimizade entre ti e a mulher e entre a tua semente
e a sua semente; esta te firiiá a cabeça, e tu lhe fmrás o cakanhar.
Gênesis 3.14,15
O p r o p ó s it o da L ei de D eus

ma coisa é afirmar uma doutrina, padrão de Deus diante do qual nos sentimos
outra é estar convencido dela e todos pequenos e, ou somos condenados por
mudar sua vida por causa dela. ela, ou somos dirigidos para o Salvador.
Isso é verdadeiro em relação a
qualquer ensinamento bíblico, porém mais D e f in in d o a L e i _____________________________

verdadeiro ainda em relação à doutrina da O que é a Lei de Deus? Esta não é uma
Queda e do pecado humano. Estes são ensina­ pergunta fácil de responder, como podemos
mentos difíceis de digerir e que não aceitamos supor de início. O conceito de lei é complexo
de imediato. Por isso, Deus parece estender-se e difícil de absorver. Temos uma dimensão do
bastante para nos convencer deles. problema até mesmo nos dicionários. Por
O principal meio escolhido por Deus para exemplo, o abrangente Dicionário de Inglês
revelar o pecado e o pecador é a Sua Lei, re­ de O xford lista 23 definições para a palavra
gistrada nas Escrituras, e a revelação é o p ro ­ lei. O mais limitado Dicionário Webster, por
pósito primário da Lei. U m a visão comum sua vez, lista nove significados, mais um ex­
da Lei é que o seu propósito é ensinar-nos tenso parágrafo de sinônimos.
com o sermos bons. Todavia, essa não é a ên­ Sob a perspectiva bíblica, está escrito no
fase da Bíblia. Webster: “A lei judaica ou mosaica contida no
E verdade que a Lei instrui os ímpios para Hexateuco, o Pentateuco mais Josué, e em
que se abstenham de praticar o mal, e ela en­ Ezequiel 4 0 —48, e, na terminologia cristã, o
sina também aos cristãos a expressão da von­ Antigo Testamento”.
tade e do caráter de Deus, para que possam O significado bíblico é o que nos interessa
firmar-se na vida cristã. Contudo, o objetivo neste estudo, entretanto mesmo assim o tema
principal da Lei é convencer-nos de que so­ não é simples. H á variações tanto na utiliza­
mos pecadores e precisamos de um Salvador. ção do Antigo Testamento como nas aplica­
E de conduzir-nos a Ele. ções com distinções diferentes do N ovo Tes­
Alguém já disse que somos pecadores aos tamento.
olhos de Deus de três maneiras. Somos peca­ N o Antigo Testamento, a utilização mais
dores p o r nascimento, herdamos o pecado e a simples e mais limitada da palavra lei é para o
sua culpa de Adão; p or escolha, repetimos por Livro da Lei, identificado com o livro de
vontade própria os pecados de nossos ante­ Deuteronômio, e, de forma mais específica,
passados; e p or veredicto divino. E pela Lei com o Decálogo ou Dez Mandamentos, que
que o decreto é transmitido a nós. A Lei é o são o cerne da Lei judaica.
Essa Lei foi escrita em tábuas depois que o conceito de Lei divina importante e criativo,
povo atravessou o rio Jordão no início de suas no sentido mais amplo do termo, um concei­
conquistas (Dt 27.2,3), as quais eram mantidas to do qual todas as definições menores proce­
na arca da aliança, no interior do tabernáculo. dam, e que dê o significado dessas definições
Mais tarde, a Lei passou a abranger os cinco específicas.
primeiros livros do Antigo Testamento, o Pen- Em outras palavras, a definição importan­
tateuco, também chamado de Torá. Isso teria te é que L ei é uma expressão do caráter de
peso de lei nos livros históricos para os quais a Deus, e é, portanto, uma unidade, como Ele
lei primitiva projetou-se (1 C r 16.40; 22.12). próprio é uma unidade, apesar das várias ex­
Logo, o conceito se expandiu bastante. A pressões particulares dela. Esse entendimento
frase a lei e os profetas, que aparece com fre­ do ponto de vista bíblico é sustentado pelo
quência no N ovo Testamento, porém que já fato de a palavra L ei nunca ser usada na Torá
estava em uso antes daquele tempo, sugere oral ou em qualquer outra forma das tradi­
que a Lei é a totalidade do Antigo Testamento ções meramente humanas.
com exceção dos livros proféticos. N o caso
dos Salmos, a palavra parece ir além, até mes­ R e s t r i n g i n d o o m a l ________________________

mo para estipular a revelação divina em geral Por que foi dada a Lei escrita? Já sugeri­
(SI 1.2; 19.7-9; 94.12)1. mos duas respostas para essa pergunta: para
Nas referências exclusivas do N ovo Testa­ nos convencer do pecado e para nos apontar
mento, em especial nos escritos de Paulo, o Senhor Jesus Cristo como Salvador. Preci­
aqueles quatro significados [de lei] do Antigo samos examinar isso em mais detalhes.
Testamento são, ao mesmo tempo, alargados A primeira vista, pode-se pensar que a Lei
e estreitados. Assim que, por um lado, lei p o­ do Antigo Testamento não tem relação algu­
de referir-se meramente a um inciso único da ma com os que não fazem parte do povo elei­
Lei, com o em Romanos 7.3 — mas, morto o to de Deus. Podemos argumentar que a Lei
marido, [ela, a mulher] livre está da lei. foi dada a Israel, não a todas as nações. Isso
P or outro lado, pode referir-se a um con­ seria um erro por dois motivos.
ceito de lei tão amplo que até os gentios po­ Primeiro, passaria por cima do fato de que
dem balizar-se por ele. De maneira que, nem todos em Israel eram salvos; a salvação
quando os gentios, que não têm lei, fazem sempre alcançou os remanescentes, em vez de
naturalmente as coisas que são da lei, não ten­ o povo com o um todo. Todavia, salvos ou
do eles lei, para si mesmos são lei (Rm 2.14). não, eles estavam debaixo do que era para eles
N os escritos polêmicos de Paulo, lei pode pelo menos uma lei civil, que proibia certas
até mesmo se referir aos estatutos da Lei pe­ coisas e afixava certas penalidades.
los quais ninguém pode ser justificado para Segundo, isso ignoraria a similaridade en­
salvação (G 12.15,16; 3.2,5). tre a Lei de Israel e as melhores leis das anti­
N o entanto, o que representa a variedade gas nações gentias. Essa similaridade demons­
de definições no uso que a Bíblia faz da pala­ tra que, embora a Lei do Antigo Testamento
vra lei? Se as várias definições fossem contra­ seja a mais pura expressão do caráter santo de
ditórias, isso poderia mostrar que a Bíblia não Deus, ainda assim o caráter de Deus também
fornece uma definição universal aceita do que foi manifesto na consciência moral geral, ain­
a lei é. Contudo, não há contradição. da que de forma enfraquecida. Logo, existe
E m vez disso, um estudo cuidadoso revela uma consciência universal de lei moral e uma
que cada escritor está consciente de um necessidade disso.
A conclusão é que há algum valor na Lei Ele e o ser humano. Trata-se de uma coisa in­
para os não cristãos, independente da opera­ terina. Assim como houve um tempo em que
ção do Espírito Santo, pela qual todos são le­ a Lei escrita não tinha sido manifesta, talvez
vados ao arrependimento do pecado e à fé em haja um tempo em que não haverá mais ne­
Cristo. cessidade dela.
Nessa perspectiva, o propósito da Lei é
restringir o mal, como declarou Calvino: R e v e l a n d o o m a l ___________________________

Um a segunda função da Lei é revelar o


Uma função da lei é [...] pelo medo da punição pecado e o pecador como tal. A Lei é dada
intimidar certos homens que não se importam para desmascarar a hipocrisia do coração hu­
com o que é justo e certo, a não ser que sejam mano, que imagina constantemente estar cer­
compelidos duramente pelas ameaças da lei, to diante de Deus, e também para mostrar a
acrescentando que essa justiça forçada e restri­ corrupção da raça adâmica.
tiva é necessária para a comunidade dos ho­ Paulo escreveu:
mens, para que se garanta aquela tranqüilidade
que o Senhor providenciou quando se preocu­ Mas eu não conheci o pecado senão pela
pou para que as coisas não fossem confusas e lei; porque eu não conheceria a concupis-
tumultuadas. (C a lvin o , 1960, p. 358-359) cência, se a lei não dissesse: Não cobiçarás.
Romanos 7.7
Paulo parece estar falando dessa função da
Lei ao escrever a Timóteo: A fim de que pelo mandamento o pecado
se fizesse excessivamente maligno.
Sabendo isto: que a lei não é feita para o Romanos 7.13
justo, mas para os injustos e obstinados,
para os ímpios e pecadores, para os profa­ Breves resumos da Lei ocorrem em toda a
nos e irreligiosos, para os parricidas e matri- Bíblia. U m a pessoa perguntou a Jesus qual
cidas, para os homicidas, para os fornicado- era o maior entre todos os mandamentos da
res, para os sodomitas, para os roubadores Lei. Jesus respondeu: Amarás o Senhor, teu
de homens, para os mentirosos, para os Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua
perjuros e para o que fo r contrário à sã alma, e de todo o teu pensamento (M t 22.37,
doutrina. numa referência a D t 6.5). Ele então acrescen­
1 Timóteo 1.9,10 tou: E o segundo, semelhante a este, é: A m a­
rás o teu próximo como a ti mesmo (Mt 22.39,
Esses versículos, e outros, indicam que a numa referência a Lv 19.18).
Lei é como uma corda para amarrar os impul­ Esse resumo da Lei se coloca muito aci­
sos destrutivos e selvagens de nossa natureza ma das cerimônias ou regulamentações e, em
pecaminosa. N o entanto, se assim é, segue-se vez disso, encaminha a Lei para um relacio­
outra coisa: a Lei não é o principal na revela­ namento apropriado entre o indivíduo e
ção que Deus faz de si mesmo à humanidade. Deus, e entre um indivíduo e todos os ou­
A Lei surge por causa do pecado, com o Paulo tros indivíduos. Ambos os relacionamentos
afirmou (Rm 5.20; Gl 3.19). devem ser marcados pelo amor. Nisso reside
A Lei é boa porque é uma expressão do a nossa obrigação. C ontudo, a dura realida­
caráter de Deus. Todavia, essa não é a base de é que não amamos Deus de todo o nosso
que Deus deseja para o relacionamento entre coração, nossa alma e nosso pensamento,
nem amamos o nosso próxim o com o ama­ Seus padrões de retidão é injusta. Poderia ser
mos a nós mesmos. usado com o argumento que não deveríamos
O grande resumo da Lei no Antigo Tes­ mencionar o primeiro e maior mandamento,
tamento — o Decálogo — está registrado tan­ ou o segundo mandamento, ou talvez nem
to em Êxodo 20.1-17 com o em D euteronô- mesmo os dez mandamentos. Em vez disso,
mio 5.6-21. Estudaremos essas leis em detalhes nada mais do que a regra de ouro2-. Portanto,
no próxim o capítulo, observando aqui, ape­ tudo o que vós quereis que os homens vos fa ­
nas, que ninguém jamais as cumpriu com çam, fazei-lho também vós (M t 7.12). N ão
perfeição. Podemos até chegar a elas com a disse Jesus: Porque esta é a lei e os profetas}
intenção de cumpri-las. N o entanto, se for­ Em resposta, devemos confessar que, se a
mos sérios e examinarmos nosso coração à intenção dessa objeção é baixar os padrões de
luz do que encontramos nessas leis, estamos Deus, ela é imprópria, impossível e tola.
devedores. Deus tem direito aos mais elevados padrões
Metade do Decálogo trata de nossa rela­ — até porque outros padrões seriam possí­
ção com Deus, assim como Jesus resume o veis para Ele? —, e é por esses padrões que
primeiro mandamento. Essa metade nos seremos julgados, quer os consideremos jus­
mostra que devemos adorar somente a Ele e tos, quer não.
não devemos ter ídolos, antes, devemos res­ Contudo, à parte dessa consideração, res­
peitar o Seu santo nome e guardar o Sábado. pondemos que, em certo sentido, não impor­
Todavia, não fazemos isso, assim como não ta realmente por que padrões nós seremos
faziam os judeus para quem a Lei foi particu­ julgados, uma vez que estamos condenados
lar e solenemente dirigida. também pela regra de ouro, porque não faze­
A segunda metade do Decálogo fala do mos aos outros tudo que gostaríamos que
relacionamento que devemos ter com os ou­ fosse feito a nós.
tros, como sintetiza o segundo mandamento E o que colocar dos padrões mais baixos?
apontado por Jesus. Ela nos fala para honrar O que afirmar do padrão complacente do “eu
nossos pais, não matar, não adulterar, não não faço mal a ninguém”? Por que não tratar
roubar, não mentir e não cobiçar qualquer as pessoas com delicadeza? N ós fazemos is­
coisa que pertença a outra pessoa. Mas não é so? Por acaso, sempre tratamos as pessoas
assim que nos comportamos. Portanto, a Lei com a mesma medida de delicadeza que apli­
expõe os nossos pecados e deixa-nos despi­ caríamos se estivéssemos interessados em al­
dos diante de Deus. guma coisa da parte delas? Todos nós sabe­
A função da Lei de expor o pecado foi de­ mos que não agimos dessa forma, pelo menos
monstrada no decorrer da história na época não o tempo todo.
em que a Lei foi dada. N o exato momento em Logo, concluímos que a Lei, não importa a
que Moisés estava no alto do monte Sinai re­ maneira como ela apareça da sua manifestação
cebendo os mandamentos, o povo, que devia mais alta até a mais baixa, expõe nosso pecado
recebê-los, estava lá embaixo no vale prati­ e traz sua justa condenação ao pecador.
cando as mesmas coisas que Deus vinha proi­ Com o Calvino ressaltou:
bindo. Isso foi uma demonstração cabal de
que a justiça de Deus não pode ser cumprida A Lei é, de fato, um espelho, no qual nós
pelos homens. contemplamos nossa fraqueza e a iniqüidade
Alguns podem objetar nesse ponto que a que emerge dela, e por fim a maldição que
expectativa de Deus para que vivamos em procede de ambas — assim como um espelho
nos mostra as manchas em nosso rosto. Quando Deus deu a Lei, Ele deu também
(C a l v in o , 1960, p. 355) instruções a respeito dos sacrifícios. Quando
o Senhor escolheu Moisés como ensinador da
O apóstolo Paulo declarou: Lei, Ele também escolheu Arão para ser o su­
mo sacerdote. E como se Deus, no momento
Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz em que revelou no Decálogo, prosseguisse
aos que estão debaixo da lei o diz, para afirmando calmamente: “N ão farás [...], po­
que toda boca esteja fechada e todo o rém eu sei que vocês farão, e aqui está o cami­
m undo seja condenável diante de Deus. nho para sair dessa enrascada”.
Por isso, nenhum a carne será justificada Todos os sacrifícios do Antigo Testamen­
diante dele pelas obras da lei, porque pela to apontam numa ou noutra direção para a
lei vem o conhecimento do pecado. vinda do Senhor Jesus Cristo. Todavia, o sig­
Romanos 3.19,20 nificado do sacrifício de Cristo ficou claro
nas instruções para os dois sacrifícios a serem
A Lei tem muitas funções, entretanto uma feitos em Israel no Dia da Expiação.
coisa que ela não consegue fazer é tornar o N o primeiro, um bode era levado a Arão
homem justo diante de Deus. Em vez disso, ou ao sacerdote que o sucedeu. O sacerdote
ela revela a nossa culpa. colocava suas mãos na cabeça do animal iden­
tificando ele próprio e o povo que ele repre­
O EVANGELHO DA L E I________________________
sentava com o bode. Ele confessava os peca­
Em bora a função primária da Lei seja ex­ dos do povo em oração, como uma maneira
por o pecado, ela não foi dada para que Deus de transferir de forma simbólica os pecados
se deliciasse quando Suas criaturas rebeldes se para o animal. Então, o bode era levado para
vissem com o pecadoras e fossem rejeitadas campo aberto para ser morto.
por Ele. Deus “não esfrega as Suas mãos” e A Bíblia descreve assim aquela cerimônia:
declara: “Bem, pelo menos eles sabem o
quanto são pecadores”. Assim, aquele bode levará sobre si todas as
N ão. Mesmo com a revelação do pecado, iniqüidades deles á terra solitária; e o ho­
um propósito mais amplo da Lei fica evidente m em enviará o bode ao deserto.
que, tendo descoberto o seu pecado, as pesso­ Levítico 16.22
as possam voltar-se para Cristo para serem
limpas. O espelho foi providenciado, de for­ O sacrifício aponta para Jesus, que, com o
ma que, ao verem a sujeira em seu rosto, as o bode, padeceu fo ra da porta para nos la­
pessoas passarão do espelho para a água e o var das nossas iniqüidades (H b 13.12).
sabão, com os quais a sujeira pode ser limpa. O segundo sacrifício era feito no átrio do
A falha nessa ilustração é sugerir que a Lei templo, de onde o sangue era levado para o
nada tem a esclarecer sobre a solução do pro­ Santo dos Santos para ser aspergido sobre a
blema. Nesse ponto, a parte mais ampla de arca da aliança. O lugar onde o sangue devia
nossas definições anteriores de Lei — a tota­ ser colocado era simbólico (com o, aliás, to ­
lidade da revelação bíblica — deve ser aven­ do o ritual); era chamado de propiciatório.
tada. A Lei, nesse sentido, inclui não só as Estando na cobertura da arca, o propiciató­
proibições diante das quais somos condena­ rio ficava entre as tábuas de pedra da Lei de
dos, mas também a promessa de uma perfei­ Moisés (no interior da arca) e no espaço en­
ta salvação. tre as asas estendidas dos querubins sobre a

/ Jâ
arca (simbolizando o lugar da morada de dos que deveriam ser mortos, e a prova disso é
Deus). o sangue ali aspergido. A ira é desviada. Agora,
Sem o sangue, a arca com a sua Lei e os Deus contempla o pecador com graça.
querubins representam um quadro terrível. Quem está representado naquele sacrifí­
H á a Lei, que nós desobedecemos. H á o cio? Jesus. N ão podemos afirmar o quanto
Deus, que nós ofendemos. Além do mais, aqueles que viveram antes da época de Cristo
quando Deus olha para baixo, é a Lei que sabiam sobre salvação. Alguns, como os pro­
nós desrespeitamos que Ele vê. É um quadro fetas, podiam saber muito. Outros sabiam
de julgamento, de nossa eterna perdição fora menos. Contudo, seja qual fosse o nível de
da graça. entendimento, o propósito da Lei era claro:
N o entanto, o sacrifício é realizado; o su­ revelar o pecado e apontar para a vinda do
mo sacerdote entra no Santo dos Santos e Senhor Jesus Cristo como Salvador.
deposita o sangue da vítima inocente sobre o Antes de Deus nos dar as boas-novas do
propiciatório [que simboliza o sangue de evangelho, Ele nos instruiu com a Lei. N o
Cristo], que fica entre Deus (com Sua santi­ entanto, quando fez isso, Ele mostrou que a
dade) e nós (com nossos pecados). Houve a Lei contém em si mesma o evangelho - e que
substituição. U m inocente morreu no lugar nos conduz a Ele.

N otas

1 Compare o artigo sobre nomos, Lei, no Theological Dictionary o f the N ew Testament [Dicionário Teológico do
Novo Testamento], IV, ed. Gerhard Kittel. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1967, p. 1022-85, em particular, p.
1044-1046.

2 “Trate os outros do modo como você mesmo gostaria de ser tratado”. Desde a Antiguidade a Regra de Ouro tem
sido uma ótima referência moral. Pensadores gregos e judeus, Confúcio, Jesus e professores de Ética ensinaram esse
princípio, chamado “de ouro” para indicar sua posição privilegiada como regra fundamental da vida. Haveria um
ensinamento melhor para aplicarmos em nosso dia-a-dia? Uma variante da Regra de Ouro que se aplica a essa situ­
ação é: “Trate seu filho como você gostaria de ser tratado se estivesse na mesma situação”.
(Fonte: In: http://helenab.tripod.com/jan_hunt/regrade.htm)

/Jf
Os D ez M a n d a m e n to s e o a m o r a D eus

enganoso, e até errado, considerar responsabilidade: Amarás o teu próximo co­


os Dez Mandamentos com o a tota­ mo a ti mesmo (v. 39).
lidade, ou mesmo com o a parte Vale notar que no catolicismo medieval a
mais importante, da Lei. A Lei é lista foi organizada colocando três mandamen­
uma unidade, e nada, seja no Antigo ou no tos na primeira categoria e sete na segunda.
Novo Testamento, justifica esse isolamento do Quando nos voltamos para os manda­
Decálogo que ocorreu em alguns dos escritos mentos específicos do Decálogo, não pode­
da Igreja. Os Dez Mandamentos assumiram mos esquecer seu contexto mais amplo. D e­
essa importância toda por causa de seu valor no vemos ter cuidado para interpretar cada
doutrinamento bíblico. Ainda assim, deveriam mandamento à luz da revelação bíblica com ­
ser estudados com cuidado por diversas razões. pleta. E necessário aplicar a seguinte diretriz:
Em primeiro lugar, essa discussão ajuda a
transportar a Lei de uma posição abstrata que 1. Os mandamentos não estão restritos às
ela muitas vezes parece ter para assuntos especí­ ações externas, mas também se aplicam às in­
ficos. Para a Lei preencher sua função primária clinações da mente e do coração. A lei huma­
de convencer-nos do pecado, ela deve conven- na está relacionada apenas com as ações exter­
cer-nos de pecados particulares, dos quais so­ nas, porque seres humanos não podem enxergar
mos todos culpados. Reconhecer “eu sou um o coração dos outros. Todavia, Deus, que
pecador” pode significar pouco mais do que pode enxergar o interior, também trata das
“eu não sou perfeito”. Todavia, é uma coisa motivações.
bem diferente admitir “eu sou um idólatra, um N o Sermão do Monte, Jesus ensinou que
assassino, um adúltero, um ladrão”, e por aí afo­ o sexto mandamento proíbe a raiva e o ódio
ra. E nesse sentido que a Lei deve ser aplicada. da mesma forma que proíbe o ato de matar
Em segundo lugar, os Dez Mandamentos (Mt 5.21,22), e que o sétimo mandamento
têm um valor especial porque são abrangen­ proíbe o desejo lascivo da mesma forma que
tes. N a maioria das listas protestantes, as pri­ proíbe o adultério (Mt 5.27-30). O apóstolo
meiras quatro áreas de alcance de Cristo são João corroborou essa visão em sua primeira
cobertas por Seu primeiro e grande manda­ epístola, afirmando que qualquer que aborre­
mento: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o ce a seu irmão é homicida (1 Jo 3.15).
teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o
teu pensamento (Mt 22.37). Os seis manda­ 2. Os mandamentos sempre contêm inter­
mentos restantes tratam da segunda área de pretações amplificadas. O mandamento para
honrar pai e mãe poderia ser interpretado co ­ Contudo, para desobedecer, a pessoa não pre­
mo apenas expressar respeito e não falar mal cisa prestar adoração a um ídolo definido —
deles. Mas isso é muito pouco, uma vez que Zeus, Minerva, um imperador romano ou um
Jesus ensinou que o mandamento inclui a dos incontáveis ídolos modernos. N ós peca­
nossa obrigação de sustentá-los financeira­ mos sempre que damos a alguma pessoa ou
mente na sua velhice (Mt 15.3-6). Em outras coisa o primeiro lugar em nosso coração, lu­
palavras, o mandamento se refere a tudo que gar que deve pertencer somente a Deus. Com
puder ser feito em favor de nossos pais sob a frequência, o “deus substituto” somos nós
luz do segundo maior mandamento. mesmos ou o conceito que temos de nós mes­
mos. Pode ser também o sucesso, os bens ma­
3. U m mandamento expresso em lingua­ teriais, a fama ou o poder sobre os outros.
gem positiva também envolve a negativa, e C om o nós cumprimos esse mandamento?
um mandamento negativo também envolve o John Stott escreveu:
positivo. Assim, quando somos ensinados a
não usar o nome de Deus em vão, devemos Cumprir o primeiro mandamento seria para
entender que a obrigação também funciona nós, como disse Jesus, amar o Senhor nosso
na direção contrária, ou seja, a Palavra nos Deus com todo o nosso coração, com toda a
manda reverenciar o Seu nome (D t 28.58; SI nossa alma e com toda a nossa mente (Mt
34.3; Mt 6.9). O mandamento que proíbe ma­ 22.37); seria enxergarmos todas as coisas a par­
tar não significa apenas que não devo matar tir desse ponto de vista, e não fazermos nada
ou odiar o meu próximo, mas também que sem ligação com Ele; fazermos da vontade de
devo fazer tudo que eu puder para o bem dele Deus o nosso guia e de Sua glória a nossa meta;
(Lv 19.18). colocá-lo em primeiro lugar nos pensamentos,
palavras e obras, nos negócios e no lazer, nas
4. A Lei é um todo em que cada manda­ amizades e no local de trabalho, no uso de nos­
mento está relacionado com os outros. N ão so dinheiro, nosso tempo e nossos talentos, na
podemos cumprir apenas algumas das obriga­ rua ou em casa [...] porém, nenhuma pessoa
ções listadas, pensando que com isso estamos além de Jesus de Nazaré conseguiu cumprir
isentos de cumprir as demais. Porque qual­ esse mandamento. (S t o t t , 1958, p. 65)
qu er que guardar toda a lei e tropeçar em um
só ponto tornou-se culpado de todos (Tg 2.10; Todavia, por que não deveríamos ter ou­
compare com D t 27.26). tros deuses? A resposta está no prefácio do
mandamento que também funciona como
P r im e ir o m a n d a m e n to : n ã o a d o r a r prefácio de todo o Decálogo. Ela se divide em
N EN H UM OUTRO DEUS SENÃO O SEN H O R
duas partes: de início, por quem Deus é; em
O primeiro mandamento começa por on­ seguida, pelo que Deus fez.
de realmente deveria, ou seja, nosso relacio­ Quem é o verdadeiro Deus está expresso
namento com Deus. Ele é um convite à ado­ nas palavras: E u sou o Senhor, teu Deus. Em
ração exclusiva e piedosa. Eu sou o S E N H O R , hebraico, as palavras são Yahweh Eloheka. A
teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da razão por que deveríamos obedecer a esses
casa da servidão. Não terás outros deuses mandamentos é que o Deus que está falando
diante de mim (Ê x 20.2,3). nos mandamentos é o verdadeiro Deus, o
Adorar qualquer coisa além do Senhor da Deus que não tem com eço nem fim: E u sou
Bíblia é desobedecer a esse mandamento. o qu e sou (Ê x 3.14). Ele é autoexistente.
Ninguém o criou, portanto Ele não deve sa­ Contudo, será que nós adoramos a Deus
tisfação a ninguém. Ele é autossuficiente. N ão com intensidade por causa disso? A resposta
precisa de ninguém e não depende de nin­ é não. Logo, o primeiro mandamento nos jo­
guém para nada. ga na cara o quanto somos ingratos, desobe­
Qualquer deus menor que esse não é dientes, rebeldes e governados pelo pecado.
Deus, e todos os chamados deuses são meno­
res. Essa é a razão por que Deus pode reivin­ S e g u n d o m a n d a m e n to : n ã o c r ia r
IMAGENS D E ESCULTURA PARA ADORAÇÃO
dicar tal adoração.
O que deus fez está indicado nas seguintes O primeiro mandamento lida com o obje­
palavras: que te tirei da terra do Egito, da casa to único de nossa adoração, proibindo a ado­
da servidão (E x 20.2). Num a abordagem pri­ ração a qualquer falso deus. O segundo man­
mária, essas palavras se aplicam com exclusi­ damento lida com a maneira como adoramos,
vidade a Israel, a nação liberta da escravidão proibindo-nos de adorar até o verdadeiro
no Egito, e a quem esses mandamentos foram Deus de forma indigna. E um clamor pela
dados em particular. adoração espiritual.
Ainda que Deus fosse apenas um senhor
tribal limitado, os israelitas deveriam a ele re­ Não farás para ti imagem de escultura,
verência por sua libertação. Contudo, a refe­ nem alguma semelhança do que há em ci­
rência é literal, mas não esgota a declaração. ma nos céus, nem em baixo na terra, nem
Ela se aplica a qualquer pessoa que tenha re­ nas águas debaixo da terra. Não te encur-
cebido livramento, seja da morte, da escravi­ varás a elas nem as servirás; porque eu, o
dão, da pobreza ou da doença. S E N H O R , teu Deus, sou Deus zeloso, que
N ão há ninguém que não tenha sido aben­ visito a maldade dos pais nos filhos até à
çoado por Deus com livramento em alguma terceira e quarta geração daqueles que me
área, ainda que permaneça sem consciência aborrecem e faço misericórdia em milhares
disso ou que não reconheça Deus como a aos que m e amam e guardam os meus
fonte. mandamentos.
C om o acréscimo, a libertação se aplica à Êxodo 20.4-6
área espiritual assim como aos assuntos mate­
riais. A libertação de Israel não foi simples­ Se esse mandamento for olhado à parte do
mente física, porém incluiu também liberta­ primeiro mandamento, ele parece apenas uma
ção da idolatria egípcia, uma libertação de proibição à adoração de ídolos. Todavia,
falsos deuses. O chamado de Deus a Abraão quando o primeiro mandamento é considera­
para que deixasse a terra de U r foi um chama­ do junto, essa interpretação se mostra inade­
do para servir ao Senhor, em vez de continuar quada; ele seria apenas uma repetição do pri­
servindo aos deuses sem nenhum valor da meiro com palavras diferentes. N ós já traçamos
Mesopotâmia (Js 24.2,3). essa progressão: primeiro Deus proíbe a ado­
Nessa perspectiva, o raciocínio que nor­ ração a outros deuses; depois, Ele proíbe a
teia o primeiro mandamento se aplica a todo adoração até a si mesmo por meio de imagens.
homem. Todos nós experimentamos o livra­ A adoração a Deus por imagens, ou qual­
mento do Senhor. Todos nós fomos benefi­ quer utilização de imagens como estímulo à
ciados pela investida da verdade sobre a su­ adoração, a princípio, não parece coisa tão
perstição, pela revelação trazida ao mundo séria. Pode-se argumentar que adoração é
por meio do judaísmo e do cristianismo. uma questão prática, tanto quanto a teologia.
O que há de errado em usar imagens na ado­ Arão teria dito, provavelmente, que a es­
ração se elas forem úteis? Algumas pessoas colha de um bezerro era para representar a
defendem que as imagens ajudam a focalizar grande força do Senhor. Os israelitas estavam
sua atenção na adoração. Contudo, ainda que rebaixando seu Deus, grande e verdadeiro, à
elas estejam enganadas, que prejuízo isso po­ categoria dos impotentes deuses egípcios.
de causar? U m objetivo do envio de pragas ao Egito
O quebra-cabeça se torna maior quando foi mostrar a superioridade de Deus em rela­
nós observamos a advertência severa acopla­ ção aos deuses daquela nação. A o transfor­
da a esse mandamento: Porque eu, o S E ­ mar a água do rio Nilo em sangue, Deus de­
N H O R , teu Deus, sou Deus zeloso, que visito monstrou Seu poder sobre os deuses do Nilo
a maldade dos pais nos filhos até à terceira e — Osíris, Hapimon e Tauret. A o produzir
quarta geração daqueles que m e aborrecem uma abundância de rãs, Deus mostrou Seu
(Êx 20.5). Afinal, por que isso é tão sério? poder sobre a deusa Hekt, que sempre era re­
H á duas respostas para essa pergunta. A tratada com a cabeça e o corpo de uma rã. O
primeira é simplesmente que “imagens de­ juízo sobre a terra mostrou a supremacia de
sonram a Deus” (P a c k e r , 1973, p. 40). As Deus sobre Geb, o deus terra.
imagens desonram a Deus porque elas turvam E assim por diante com todas as pragas,
a Sua glória. É claro que um adorador de ima­ até o juízo contra o deus sol, Rá, quando o sol
gens não pensa assim — ele acredita que a foi encoberto pela escuridão e veio a morte
imagem representa um aspecto valioso da sobre os primogênitos de todo o Egito, in­
glória de Deus. Entretanto, nada material po­ cluindo o primogênito do faraó, que seria o
de representar apropriadamente as virtudes próximo “deus supremo”. O Deus de Israel
do Senhor. não era para ser posto em tal categoria, entre­
Temos um exemplo no livro de Êxodo. tanto foi o que Arão fez ao esculpir uma re­
N ão muito tempo depois de Moisés ter subi­ presentação dele.
do o monte Sinai para receber a Lei, os israe­ A segunda razão por que estamos proibi­
litas que aguardavam no vale ficaram impa­ dos de adorar o Deus verdadeiro por meio de
cientes e pediram a Arão, irmão de Moisés, imagens é que “imagens enganam o adorador”,
que lhes fizesse um ídolo. Eles argumentaram como Packer também comentou. Logo, no
que não sabiam o que tinha acontecido a exemplo do bezerro de Arão, o resultado da
Moisés e que precisavam de um deus para ir “festa” esteve muito longe da santidade que
adiante deles na jornada. Deus transmitia a Moisés no alto do monte Si­
Arão cedeu, e tomando o ouro e a prata nai naquela hora. A “festa” virou uma orgia, na
disponíveis esculpiu um bezerro, provavel­ qual a maioria dos outros mandamentos, senão
mente uma versão em miniatura dos deuses todos, foram violados (P a c k e r , 1973, p. 41).
reverenciados no Egito. O interessante sobre O lado positivo do segundo mandamento
essa atitude de Arão é que ele não considerou é importante. Se a adoração a Deus por meios
o bezerro como representante de outro deus. indignos é proibida, deveríamos empenhar-
Em vez disso, ele o considerou com o o pró­ -nos ao máximo para descobrir o que em ver­
prio Senhor em forma visível, com o fica claro dade lhe agrada, e assim adorá-lo como o
no relato bíblico. Arão identificou o ídolo único grande, transcendente, espiritual e ines-
com o Deus que tirou o povo do Egito (Êx crutável Deus do universo. N ós o adoramos
32.4) e anunciou sua dedicação com as pala­ dessa forma? N ão creio. E m vez de desejá-lo,
vras: A m anhã será festa ao Senhor (Ê x 32.5). esforçando-nos para conhecê-lo e adorá-lo,
nós ainda nos desviamos dele fazendo deuses começam com : “N ã o ”]. O nome de Deus
de nossa própria invenção. representa Sua natureza. Logo, desonrar es­
Paulo falou sobre isso: se nome é desonrar o Senhor, e santificar
esse nome significa honrar o Senhor. Um a
Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o vez que os vários nomes de Deus representam
glorificaram como Deus, nem lhe deram Seus muitos atributos de valor e dignidade,
graças; antes, em seus discursos se desvane­ nós santificamos Seu nome quando honra­
ceram, e o seu coração insensato se obscu- mos algum aspecto de Seu caráter.
receu. Dizendo-se sábios, tomaram-se lou­ Calvino declarou:
cos. E mudaram a glória do D eus incor­
ruptível em semelhança da imagem de Em minha opinião, devemos observar com di­
hom em corruptível, e de aves, e de qua­ ligência os três pontos seguintes: primeiro, o
drúpedes, e de répteis. conceito que temos de Deus. O que a nossa
Romanos 1.21-23 boca pronuncia deve ter o perfume de Sua ex­
celência, estar à altura do Seu santo nome, e
Essa é a razão para a terrível advertência servir para glorificar a Sua grandeza.
que fecha o segundo mandamento. Deus não Segundo, não deveríamos, de forma impruden­
é ciumento da maneira como nós entendemos te ou perversa, adulterar Sua santa Palavra e os
o ciúme, e não se magoa quando nós parece­ mistérios da adoração, seja para satisfazer nos­
mos indiferentes. O que acontece é que a nos­ sas ambições, cobiças ou distrações; contudo, a
sa indiferença tem como base a ingratidão, a dignidade de Seu nome deve sempre ser honra­
vaidade e o pecado, que nos tornam merece­ da entre nós.
dores do julgamento divino. A o mesmo tem­ Por fim, não devemos difamar ou caluniar as
po, quando fala de juízo, Deus também fala Suas obras, como os homens miseráveis que se
da misericórdia derramada sobre as muitas acostumaram a vociferar contra elas; ao con­
gerações daqueles que o amam e guardam os trário, sempre que reconhecermos como feitas
Seus mandamentos. por Ele, deveremos falar delas com louvor,
exaltando a Sua sabedoria, retidão e bondade.
T e r c e i r o m a n d a m e n to : s a n t if ic a r Isso é o que significa santificar o nome de
O SANTO N OM E D E D e US_____________________
Deus. (C a lvin o , 1960, p. 388)
Não tomar ás o nome do S E N H O R , teu
Deus, em vão; porque o S E N H O R não Os vários nomes de Deus têm significados
terá p or inocente o que tomar o seu nome específicos. Elohim é o Seu nome bíblico mais
em vão. comum. Elohim é o Deus criador de tudo que
Êxodo 20.7 há. E o termo usado para designar Deus no
versículo de abertura da Bíblia: N o princípio,
O terceiro mandamento é para ser consi­ criou D eus os céus e a terra (Gn 1.1).
derado com a seguinte frase do Pai-Nosso, Elohim criou o sol, a lua e os planetas. Ele
oração usada por Jesus como modelo para criou a terra, cobrindo-a com vegetação e
ensinar os discípulos a orarem: santificado se­ povoando-a com peixes e animais. Ele fez o
ja o teu nome (Mt 6.9). homem e a mulher. Ele fez você. Contudo,
Essa oração acrescenta uma dimensão p o­ você o honra como seu Criador? Senão, você
sitiva ao elenco negativo de mandamentos do também desonra o Seu nome e desobedece ao
Antigo Testamento [os mandamentos que terceiro mandamento.
O utro nome de Deus é E l Elyon, que sig­ e Davi, assim como o Deus de Débora, Ana e
nifica D eus altíssimo. Ele aparece pela primei­ Ester. Ele é o Deus dos escritores do Antigo e
ra vez no relato do encontro de Abraão com do N ovo Testamento, dos profetas e de todos
Melquisedeque, depois de sua batalha contra os apóstolos; é o Senhor dos senhores e o Rei
os reis e do resgate de Ló. Melquisedeque era dos reis.
sacerdote do D eus altíssimo (Gn 14.18). Se não o honrarmos com respeito a todos
E l Elyon aparece também na declaração esses nomes e títulos, nós o estaremos deson­
rebelde do querubim ungido em Isaías 14.14: rando e desobedecendo ao Seu mandamento.
Subirei acima das mais altas nuvens e serei Precisamos entender que nossas ações im­
semelhante ao Altíssimo (Is 14.14b). portam tanto quanto nossas palavras. Sempre
O termo traduzido como Altíssimo enfati­ que nosso comportamento não condiz com
za o governo e a soberania de Deus. Você o nossa profissão de fé cristã, ainda que seja
honra como soberano Deus? N ão, se vive re­ uma profissão meramente formal, estamos
clamando das circunstâncias ou duvidando da desonrando a Deus.
capacidade dele de cuidar de você e de cum­ Todos que pertencem a Deus tomaram o
prir Suas promessas. Seu nome, por assim dizer, e devem santificá-
Já o termo Yahweh é traduzido como E u -Io por suas atitudes. Se cometem adultério
S ou O q u e Sou. Aponta para a autoexistência, com o mundo, estão traindo Seu grande amor
a autossuficiência e a eternidade de Deus. Foi e desonrando o título cristão (que significa
usado nas revelações que Deus fez de si mesmo parecido com Cristo). Essa desonra é pior do
como Redentor, por exemplo, a Moisés diante que a loucura dos ateus.
da libertação do povo de Israel do Egito.
Será que nós o temos honrado como nos­ Q u a r t o m a n d a m e n to : g u a r d a r o
S á b a d o ________________________________________
so Redentor? N ós o temos louvado pela
grandeza de Sua remissão em Jesus Cristo? Ao lidar com a Lei do Antigo Testamento,
Todos os nomes de Deus revelam algo so­ o ponto em que os cristãos têm mais dificul­
bre Sua natureza e Seu caráter, e Ele deveria dade é a interpretação do quarto mandamen­
ser honrado por nós em relação a todos esses to. Este mandamento prescreve o Sábado como
maravilhosos atributos. o dia do descanso [após seis dias de trabalho].
N ós examinamos em particular os nomes Entretanto, a grande maioria dos cristãos não
Elohim, E l Elyon e Yahweh. N o entanto, Ele cumpre isso. Apesar de o dia separado para
também é conhecido como Yahweh Jireh, o adorar ao Senhor pela maioria absoluta dos
Deus provedor; é o Yahweh Tsebaoh, o Se­ cristãos ser o domingo, estes sequer guardam
nhor dos Exércitos; Ele é o Pai, o Filho e o esse dia de acordo com as regras reveladas no
Espírito Santo; é o Alfa e o Omega; é o A n­ Pentateuco para o dia de descanso.
cião de Dias sentado em Seu trono no céu; é o Isso está certo? N ão! O que não pode ser
nosso Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, feito é tratar esse assunto com displicência!
Pai da Eternidade e Príncipe da Paz. De todos os mandamentos, esse que lida com
O Senhor é a nossa rocha e castelo forte o descanso é o mais longo e, talvez, o mais
onde nos refugiamos e estamos seguros; Ele é formal:
o caminho, a verdade e a vida; é a luz do mun­
do; é o pão da vida; é a ressurreição e a vida; o Lem bra-te do dia do sábado, para o santi­
bom, o grande e o sumo Pastor; Ele é o Deus ficar. Seis dias trabalharás e farás toda a
de Abraão, de Isaque e de Jacó, de José, Moisés tua obra, mas o sétimo dia é o sábado do
S E N H O R , teu D eus; não farás nenhum a que outro [dia] foi colocado em seu lugar”
obra, nem tu, nem o teu filho, nem a tua ( C a l v in o , 1960, p. 399).
filha, nem o teu servo, nem a tua serva, Qual a solução? Devemos observar várias
nem o teu animal, nem o teu estrangeiro coisas importantes. Primeiro, o Sabbath foi
que está dentro das tuas portas. Porque em uma ordenação guardada exclusivamente pe­
seis dias fe z o S E N H O R os céus e a terra, o los judeus, não sendo observada por nenhum
m ar e tudo que neles há e ao sétimo dia des­ outro povo ou nação. O mesmo não ocorre
cansou; portanto, abençoou o S E N H O R o em relação aos outros mandamentos; eles em
dia do sábado e o santificou. geral estão em paralelo com outros antigos
Êxodo 20.8-11 códigos de lei.
Os defensores do Sabbath costumam ape­
Em geral, há três abordagens para a ques­ lar para Gênesis 2.2,3 (mencionado no quarto
tão do Sábado. mandamento) como demonstração do con­
Primeiro, tem sido ensinado por alguns trário. Esses versículos declaram que Deus
que os cristãos devem guardar o Sábado. Esta descansou no sétimo dia de toda a sua obra,
é a posição, por exemplo, dos adventistas do que tinha feito. E abençoou D eus o dia sétimo
sétimo dia e também de outros. e o santificou; porque nele descansou de toda a
Segundo, há a visão de que o domingo é o sua obra, que Deus criara e fizera.
equivalente no N ovo Testamento ao que é o Todavia, para sermos exatos, esses versí­
Sábado no Antigo, e, portanto, é para ser culos não m ostram que Deus instituiu o
guardado de maneira similar. Sabbath no ato da criação; no entanto, exis­
A Confissão de F é de Westminster chama o tem outros versículos que parecem indicar
Dia do Senhor de Sabbath cristão, acrescen­ que Ele o fez. Dois deles estão em Neemias
tando que: 9.13,14.
Neemias, que tinha sido instrumento de
Este Sabbath é para ser santificado ao Senhor um grande avivamento entre os judeus que
quando os homens, após a devida preparação haviam voltado a Jerusalém após o exílio na
do seu coração e do ordenamento de seus afa­ Babilônia, programara um culto especial de
zeres de antemão, não apenas guardam um oração e consagração. Nesse culto, os sacer­
santo descanso, o dia todo, de suas próprias dotes conduziram o povo em adoração, afir­
obras, palavras e pensamentos, em relação às mando em relação a Deus:
suas ocupações e divertimentos, como também
ocupam todo esse tempo em práticas públicas e E sobre o monte de Sinai desceste, efalaste
privadas de adoração, assim como nos deveres com eles desde os céus, e deste-lhes juízos
de ajuda e misericórdia. (X X I. 7,8) retos e leis verdadeiras, estatutos e m anda­
mentos bons. E o teu santo sábado lhes fi­
Mais tarde, a teologia reformada e purita­ zeste conhecer; e preceitos, e estatutos, e lei
na corroborou essa posição. lhes mandaste pelo ministério de Moisés,
Terceiro, há a visão de que o Sábado foi teu servo.
abolido pela morte e ressurreição de Jesus, e
que um novo dia, o Dia do Senhor, que tem Esses versículos ligam a transmissão da
características próprias, substituiu-o. Essa foi Lei no que diz respeito ao Sábado ao monte
a visão de Calvino, que disse com clareza que Sinai, e dão a entender que o Sábado não era
“o dia sagrado para os judeus foi descartado e conhecido ou guardado antes daquela época.
A outra passagem importante está em marcas relacionadas tanto ao dia em que Cris­
Êxodo 31.12-17: to ressuscitou com o àquele em que reencon­
trou Seus discípulos, instruiu-os e assoprou
Falou mais o S E N H O R a Moisés, dizen­ sobre eles o Espírito Santo (Jo 20.22), comis-
do: Tu, pois, fala aos filhos de Israel, dizen­ sionando-os a pregar o evangelho ao mundo.
do: Certamente guardareis meus sábados, Nas narrativas sobre a Igreja primitiva,
porquanto isso é um sinal entre mim e vós vemos que o domingo, em vez de o Sábado,
nas vossas gerações; para que saibais que foi estabelecido pelos cristãos com o dia de
eu sou o S E N H O R , que vos santifica. Por­ reunião e adoração a Deus.
tanto, guardareis o sábado, porque santo é N o Antigo Testamento, a palavra Sábado
para vós; aquele que o profanar certamen­ é mencionada muitas vezes. N o livro de Atos,
te m orrerá; porque qualquer que nele fizer ao contrário, o Sábado é encontrado apenas
alguma obra, aquela alma será extirpada nove vezes, e em nenhuma das vezes é mencio­
do meio do seu povo. Seis dias se fará obra, nado que este dia fosse guardado pelos cristãos.
porém o sétimo dia é o sábado do descanso, N o primeiro capítulo de Atos, há menção
santo ao S E N H O R ; qualquer que no dia a esse dia na frase do caminho de um sábado
do sábado fizer obra, certamente morrerá. (At 1.12). N o capítulo 13 de Atos, o termo
Guardarão, pois, o sábado os filhos de Is­ aparece quatro vezes para descrever como
rael, celebrando o sábado nas suas gerações Paulo usava esse dia para objetivos evangelísti-
p or concerto perpétuo. Entre mim e os fi­ cos. Ele ia à sinagoga para pregar aos judeus
lhos de Israel será um sinal para sempre; que lá se reuniam (13.14,27,42,44). Capítulos
p orque em seis dias fe z o S E N H O R os céus posteriores de Atos (15.21; 17.2; 18.4) contêm
e a terra, e, ao sétimo dia, descansou, e algumas outras referências ao Sábado.
restaurou-se. Em suma, na Bíblia, não é sugerido que a
Igreja se reunisse no Sábado ou mesmo que
Esses versículos retratam o Sábado como contemplasse esse dia com alguma atenção ou
um sinal da aliança entre Deus e Israel; isso é afeição especial. Contudo, não devemos pen­
importante, pois é repetido duas vezes. É di­ sar que o quarto mandamento ou a celebração
fícil enxergar, no entanto, como a separação e cristã do domingo como o Dia do Senhor na­
guarda do Sábado com o dia sagrado pode ser da tenha a ver com o pecado humano ou com
aplicada a outras nações. Ao contrário, era a a nossa necessidade de um Salvador. O Sába­
observância do Sábado que diferenciava Israel do era um dia para se lembrar de Deus como
das outras nações, da mesma forma como a Criador e Libertador de Seu povo. Já o do­
circuncisão mantinha os judeus à parte. mingo cristão é um dia que celebra a ressur­
E em relação ao domingo? [De acordo reição de Cristo.
com alguns teólogos] O domingo seria outro N o entanto, esse quarto mandamento é
dia estabelecido por Deus, para a Igreja, e não respeitado com naturalidade? Acaso o ho­
para Israel, e mesmo assim com característi­ mem separa um tempo, qualquer tempo que
cas bem diferentes. seja, para adorar e servir a Deus, para se ale­
O Sábado judaico é um dia de descanso e grar com Seus muitos favores? N ão. O cora­
adoração. Violar esse descanso sagrado gera ção humano não é nem receptivo nem grato.
punições. A o contrário, o domingo cristão é Logo, estamos condenados nesse quesito da
um dia de alegria, atividade e comunhão, Lei também.
{l í
//

Os D e z M a n d a m e n to s e o a m o r a o s o u t r o s

""S)m certo ponto de seus escritos, o fundamental para todas as outras relações e
grande religioso puritano Thomas estruturas sociais.
Watson comparou os Dez Manda- Outros tipos de pais estão incluídos na
mentos, em Êxodo 20, à escada de intenção desse mandamento. Comentaristas
Jacó'(em Gn 28.11-19). Ele afirmou: bíblicos observaram que há “pais políticos”
(aqueles em posições seculares de autorida­
O primeiro platô diz respeito a Deus e é o topo de), “pais espirituais” (pastores ou pastoras e
da escada que alcança o céu; o segundo platô outros conselheiros cristãos) e aqueles que
diz respeito aos superiores e aos inferiores e é o são chamados de pai ou de mãe em virtude de
pé da escada, que repousa sobre a terra. Pelo sua idade e vasta experiência.
primeiro platô, caminhamos com reverência O quinto mandamento, entretanto, refe­
em direção a Deus; pelo segundo, caminhamos re-se de forma específica aos pais naturais. O
com zelo em direção aos homens. Não pode­ mandamento de Deus é: H onra a teu pai e a
mos ser bons no primeiro e ruins no segundo. tua mãe, para que se prolonguem os teus dias
(W a tso n , 1970, p. 122) na terra que o S E N H O R , teu Deus, te dà (Êx
20.12). Isto significa que “devemos respeitar
A verdade da última frase de Watson deve­ aqueles que Deus colocou para cuidar de nós
ria estar clara. Assim como não podemos co­ e tratá-los com honra, obediência e gratidão”
nhecer nós mesmos e os outros sem conhecer­ ( C a l v in o , 1960, p . 401).
mos Deus, não podemos agir com correção O pano de fundo sombrio desse manda­
com as pessoas sem ter atitudes adequadas mento é encontrado na resistência natural
com Deus. O inverso também é verdadeiro. que as pessoas têm às autoridades. E por isso
Para servir a Deus, devemos servir aos outros. que a família é tão importante na organização
Ser uma pessoa espiritual implica ser de “utili­ de Deus. Se os filhos não forem ensinados a
dade terrena”. respeitar os pais, mas forem autorizados a se­
guir em frente desobedecendo e desonrando a
Q u in t o m a n d a m e n to : h o n r a r o s p a is
eles, mais tarde se rebelarão contra outras
O segundo platô da Lei com eça com o formas constituídas de autoridade.
relacionam ento de uma pessoa com seus Se os filhos desobedecerem a seus pais, al­
pais. Isso é proposital, pois, ao tratar com gum dia desobedecerão às leis. Se não respeita­
pais, o mandamento se concentra na m e­ rem seus pais, não respeitarão os professores,
n or célula da sociedade, a família, que é aqueles dotados de sabedoria nem os policiais
e outras pessoas investidas de autoridade em homicídio culposo (quando se mata sem intenção
alguma área. E pior, se não honrarem seus premeditada). Esse mandamento deveria ser en­
pais, eles não honrarão a Deus. tendido como não assassinarás. A falta de com­
Assim, o quinto mandamento pode reque­ preensão sobre isso levou alguns a entender que
rer dos pais disciplinar os filhos e filhas, uma a Bíblia condena todas as formas de matança.
responsabilidade sobre a qual a Bíblia é clara: Contudo, essa interpretação despreza o
fato de que a Bíblia aceita a morte de animais
Instrui o menino no caminho em que deve para a alimentação e o sacrifício, de inimigos
andar, e, até quando envelhecer, não se na batalha e de réus considerados culpados
desviará dele. por crimes hediondos após um justo julga­
Provérbios 22.6 mento. Aliás, em outras partes da Torá são
prescritas penas de morte para algumas ofen­
E se for preciso: sas listadas no Decálogo.
N o entanto, afirmar que a palavra ratsach
Castiga teu filho enquanto há esperança, significa assassinar, e não matar, é bastante
mas para o matar não alçarás a tua alma. desconfortável, pois, na perspectiva bíblica,
Provérbios 19.18 assassinar tem um alcance amplo e contém
indícios de que todos nós somos culpados.
Quando a Bíblia admoesta as crianças e os Aqui, o ensinamento do Senhor Jesus no
jovens a honrarem seus pais, ela dá uma pala­ Sermão do Monte é em particular importante.
vra igualmente séria para os pais. Eles devem N a época de Jesus e muitos anos antes, assas­
ser o tipo de pais que os filhos possam honrar. sinato havia sido definido pelos líderes de Is­
Os filhos devem sempre honrar os pais, devo­ rael como um ato externo, e eles ensinavam
tando a eles respeito e consideração, indepen­ que o mandamento se referia tão somente ao
dente das deficiências destes. N o entanto, é ato. Todavia Jesus questionou: “Assassinato é
certo que os filhos têm dificuldade de honrar só isso? O ato de matar de forma injusta? É o
pais indecorosos, bêbados, drogados, depra­ que mostram as atitudes? O que dizer de uma
vados e/ou irresponsáveis. pessoa que planejou matar outra, mas foi im­
Um a vez que os filhos podem honrar e pedida de fazê-lo por circunstâncias externas?
obedecer por completo aos pais que são dedi­ Ou daquela que deseja matar alguém, entre­
cados, honestos, trabalhadores, fiéis, compas­ tanto não o faz por medo de ser presa? E a
sivos e sábios, o quinto mandamento encoraja pessoa que mata por olhares e palavras?”.
todos que são pais a serem dignos. Além dis­ Os homens fazem distinção usando esses
so, exige esse padrão de todos os que estão em parâmetros, e até estão certos pela perspectiva
posição de autoridade: políticos, patrões, humana da lei. Deus, no entanto enxerga o
chefes, educadores e líderes que exercem in­ coração e, por isso, preocupa-se também com
fluência sobre outros. as intenções. Jesus disse:

S e x to m a n d a m e n to : n ã o m a t a r __________ Ouvistes que fo i dito aos antigos: Não ma­


O sexto mandamento tem sido mal com­ tarás; mas qualquer que matar será réu de
preendido por muitos devido às traduções juízo. Eu, porém, vos digo que qualquer
ruins da palavra hebraica ratsach como matar. que, sem motivo, se encolerizar contra seu
A palavra, na verdade, significa assassinar ou irmão será réu de juízo.
destruir, a forma substantiva da palavra significa
Logo, não é só dar lugar à ira que o sexto interior de nosso coração como Deus vê.
mandamento proíbe. De acordo com Jesus, ( B o i c e , 1972, p . 105-11)2
Deus julgará até mesmo expressões grosseiras
e maliciosas. S é tim o m a n d a m e n to : n ã o c o m e t e r
AD U LTÉRIO ____________________________________

Eu, porém , vos digo que qualquer que, Este mandamento também é muito direto:
sem motivo, se encolerizar contra seu ir­ Não adulterarás (Ê x 20.14).
mão será réu de juízo, e qualquer que cha­ N o Sermão do Monte, o Senhor também
m ar a seu irmão de raca será réu do Siné- o amplificou, explicando que esse manda­
drio; e qualquer que lhe chamar de louco mento tem a ver com os pensamentos e as
será réu do fogo do inferno. intenções do coração, tanto quanto com as
Mateus 5.22 ações exteriores. Além disso, Ele associa esse
mandamento a uma visão adequada para o
N o texto grego, esse versículo contém du­ casamento ao permitir o divórcio que nor­
as palavras chaves: Raca e moros. Raca é um malmente se segue ao adultério.
termo pejorativo que significa vazio; entre­ Jesus declarou:
tanto, o insulto vai além do significado da
palavra. Isso poderia ser traduzido como Ouvistes que fo i dito aos antigos: Não co-
“você é um ‘Zé ninguém’, um nada”. Moros, meterás adultério. Eu, porém , vos digo
por sua vez, significa bobo (ou moroso). N o que qualquer que atentar num a m ulher
entanto, a ofensa fala de alguém moralmente para a cobiçar já em seu coração cometeu
retardado. Alguém que sempre faz papel de adultério com ela [...]. Também fo i dito:
bobo. Logo, a palavra tem o sentido de difa­ Q ualquer que deixar sua mulher, que lhe
mar a reputação de alguém. dê carta de desquite. Eu, porém, vos digo
P or essas palavras, Jesus ensinou que, pe­ que qualquer que repudiar sua mulher, a
los padrões de Deus, a expressão injuriosa e não ser p o r causa de prostituição, fa z que
os comentários ofensivos desse tipo consti­ ela cometa adultério; e qualquer que casar
tuem desobediência ao sexto mandamento. com a repudiada comete adultério.
E óbvio, essa interpretação sonda a p ro ­ Mateus 5.27,28,31,32
fundeza de nossa alma. N ão ajuda muito
lembrar que existe uma coisa com o “raiva De acordo com a visão de Jesus da Lei,
justa”, ou que há diferença entre estar irado luxúria é equivalente a adultério, da mesma
contra o pecado e irado contra o pecador. forma que ódio é equivalente a assassinato. O
C ontudo, a nossa raiva não costuma ser des­ padrão de Deus é pureza no leito conjugal e
se tipo. E m geral, o que nos provoca ira é fidelidade fora dele.
alguma injustiça, real ou imaginária, que ou­ Em nenhum outro ponto a moralidade
tros cometem contra nós. contemporânea está em conflito mais eviden­
Nesse caso, ao darmos lugar à ira comete­ te com os padrões bíblicos. A mídia usa a lu­
mos assassinato? Sim, cometemos, de acordo xúria para fortalecer o materialismo e estimu­
com o padrão de Jesus. Guardamos rancor; lar a busca do prazer.
fofocamos e caluniamos; perdemos a calma; A televisão enche nossas salas e quartos
matamos por menosprezo, maldade e inveja. com propagandas recheadas de sexo. N os ci­
E , sem dúvida, fazemos coisas ainda piores, nemas, é ainda pior; até as áreas mais nobres
que reconheceríamos se pudéssemos ver o de nossas cidades estão infestadas de filmes
pornográficos e de terror. Os jornais anun­ própria situação, e não por qualquer norma
ciam esses filmes com imagens que seriam ética predeterminada (mesmo que seja bíbli­
consideradas escandalosas há pouco tempo, e ca). A segunda é que o único fator absoluto
os telej ornais descrevem os crimes sexuais em qualquer situação ética é a exigência do
nos mínimos detalhes. amor. Qualquer coisa está certa se não ferir a
O hedonismo3 dos séculos 20 e 21 está outra pessoa. Todavia, se isso vai ferir a outra
sintetizado na chamada filosofia do prazer, pessoa ou não, é conclusão para ser tirada só
que tem com o ícone revistas com o a Playboy. no contexto da situação.
A proeza, de gosto duvidoso, da revista foi O que acontece é que de acordo com esses
expor em papel de primeira linha a explora­ postulados, a fornicação e o adultério não são
ção do sexo nos guetos, vender essa cultura a necessariamente errados. O certo e o errado
milhões, incentivando uma filosofia que faz vão depender de se o ato ajuda ou fere a outra
do prazer, tanto no sexo como em todas as pessoa. N a mesma linha de raciocínio, mentir,
outras áreas, a meta principal da vida. roubar, burlar a lei e outras ações considera­
O hedonismo faz do prazer pessoal o ob­ das erradas necessariamente não precisam ser
jetivo número um. E visto na cobiça de uma evitadas.
segunda casa, de um terceiro carro e no círcu­ O amor seria um guia apropriado para a
lo lucrativo de amigos, assim como na preten­ ação correta, à medida que fôssemos capazes
sa “liberdade” que leva alguém a experimen­ de amar como Deus ama e pudéssemos ter
tar o sexo. Revistas como a Playboy e dezenas pleno conhecimento da situação e das conse­
de outras ainda mais sórdidas apregoam a qüências totais de nossos atos. Contudo, não
importância de escolher o melhor vinho, o amamos assim. Amamos de forma egoísta.
mais potente aparelho de som, bem como o Além do mais, não conhecemos as conseqüên­
melhor tipo de parceiro sexual. cias totais que a nossa ação supostamente de­
O problema não é a revista em si, mas a sinteressada e amorosa possa ter.
ideologia do prazer em primeiro lugar que ela U m casal pode decidir que o sexo antes do
capitalizou e difundiu, que se resume em: o casamento será bom para eles e que ninguém
que contribui para o meu prazer é prioridade sairá ferido. Todavia, não pode ter certeza
máxima e, na busca desenfreada desse prazer, disso, e muitos, senão todos, que pensaram
vale tudo. dessa maneira se deram mal. H á muita culpa
O fato de não haver normas para o exercí­ envolvida, muitos modelos de infidelidade
cio dessa liberdade sexual remete-nos a outro profundamente entranhados, e até muitos
desafio no terreno da ética bíblica: a assim bebês indesejados, para que a “nova morali­
chamada “nova moralidade”, popularizada dade” seja uma opção válida.
p or clérigos com o o Bispo J. A. T. Robin- Sob o impacto do movimento da mídia,
son, da Inglaterra, pelos americanos Joseph do hedonismo e da “nova moralidade”, o
Fletcher, H arvey C ox, James Pike e outros. chavão se parecer bom, faça tornou-se a pala­
Desde as primeiras publicações de suas vra de ordem de nosso tempo. Esse novo pa­
novas visões da moral, alguns desses autores drão deve ser aceito? C om base nos manda­
mudaram de posição; entretanto, um dia eles mentos de Deus, no Decálogo e no Sermão
lançaram uma abordagem de moralidade ba­ do Monte os cristãos devem responder não.
seada em duas convicções. A primeira é que o N o entanto, ao mesmo tempo devemos
curso adequado da ação em qualquer conjunto reconhecer com honestidade, como esclare­
de circunstâncias é para ser determinado pela ceu C. S. Lewis, que o padrão cristão é tão
difícil e tão contrário aos nossos instintos e a vida do marido desta, Davi disse em refe­
que, é óbvio, alguma coisa está errada, ou co ­ rência a Deus: Contra ti, contra ti somente
nosco ou com a sociedade ( L e w i s , 1958, p. pequei (SI 51.4).
75). Devemos reconhecer que somos todos N ão devemos pensar que cumprimos esse
pecadores e que nem os cristãos são automa­ oitavo mandamento só porque não arromba­
ticamente vitoriosos sobre os pecados e per­ mos a porta de uma casa para roubar os bens
versões sexuais4. de quem mora nela. H á situações diferentes
C om o um mandamento em negativa no em que podemos roubar algo de Deus, de ou­
Decálogo, o sétimo mandamento contém tras pessoas e até de nós mesmos. H á muitas
também seu lado positivo. A declaração posi­ maneiras de roubar: por furto, violência,
tiva, com o mencionado antes, é a pureza no mentira ou engano. E há muitas coisas que
leito conjugal e a fidelidade fora dele. N ós podemos roubar: dinheiro, tempo, ou mesmo
não seremos puros no leito nem fiéis fora dele a reputação de uma pessoa.
se os pensamentos não forem levados em Roubamos de Deus quando deixamos de
conta, pois os pecados começam no pensa­ adorá-lo como deveríamos ou quando colo­
mento (Tg 1.14,15). camos nossos próprios conceitos ou interesses
E impressionante como estamos longe na frente dos dele. Roubamos-lhe quando gas­
dos padrões de Deus! E quanta miséria atraí­ tamos nosso tempo em ocupações preguiço­
mos para a nossa vida e a vida de outros como sas, em vez de falar aos outros da Sua graça.
resultado disso! Roubamos de um empregador quando
não fazemos o melhor de que somos capazes,
O ita v o m a n d a m e n to : n ã o r o u b a r _______ quando estendemos demais a hora do lanche
A visão de que não se deve roubar é nor­ ou saímos do trabalho antes da hora. Rouba­
malmente aceita como padrão em toda a hu­ mos quando gastamos com negligência os
manidade, mas apenas a doutrina bíblica de­ produtos com os quais trabalhamos, usamos
monstra porque isso é errado. A razão é o telefone ou a internet para longas conversas
porque tudo que uma pessoa possui por di­ pessoais, em vez de assuntos de trabalho.
reito e justiça foi concedido a ela por Deus. Roubamos quando, com o comerciantes,
Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do cobramos caro demais por um produto ou
alto, descendo do Pai das luzes, em quem não tentamos levar vantagem em algum negócio.
há mudança, nem sombra de variação (Tg Roubamos ao vender um produto inferior
1.17). Portanto, roubar alguma coisa de al­ com a imagem melhor do que de fato é. Tam­
guém é pecar contra Deus. bém roubamos de nossos empregados se o
É claro que o roubo também é um abuso ambiente de trabalho for nocivo à saúde de­
contra os outros. Ele pode prejudicar muito les ou se não os pagarmos o suficiente para
se a pessoa lesada não puder repor a perda. que mantenham sua saúde e padrão de vida
U m roubo sempre causa dano, pois ele trata a adequado.
pessoa roubada como alguém que não é digno Roubamos quando administramos mal o
de respeito ou amor. E até nisso nós pecamos dinheiro dos outros, quando pegamos em­
contra Deus já que foi Ele quem concedeu prestado e não pagamos na data combinada
valor à outra pessoa. ou simplesmente deixamos de pagar.
Temos um exemplo dessa perspectiva no Roubamos de nós mesmos quando des­
grande salmo de confissão de Davi. Embora perdiçamos nossos recursos, sejam eles talen­
ele tenha roubado o bom nome de Bate-Seba tos, tempo ou dinheiro; quando temos bens
materiais em excesso, enquanto faltam aos O caso de Ananias e Safira é, às vezes, ci­
outros as necessidades básicas de subsistência tado para apoiar a teoria comunal, pois eles
(comida, roupa, moradia ou cuidado médi­ supostamente caíram mortos por reterem da
co). Roubamos quando nos tornamos ava­ Igreja uma parte dos ganhos com a venda da
rentos, acumulando dinheiro e não suprindo propriedade (A t 5.1-11). N o entanto, o peca­
nem as nossas próprias necessidades. do deles não foi possuir a propriedade, mas
O lado positivo desse oitavo mandamento terem mentido tanto à Igreja como ao Espíri­
é óbvio: se nos disciplinarmos para não furtar to Santo. Eles fingiram estar dando tudo
o que pertence aos outros, poderemos tam­ quando, na verdade, estavam retendo uma
bém fazer tudo que estiver ao nosso alcance parte.
para prosperar os outros, ajudando-os a atin­ Neste episódio, o apóstolo Pedro até en­
gir o seu potencial completo. dossou o direito do casal àquelas possessões.
O Senhor vaticina este dever na R egra áu­ Ele disse:
rea: Portanto, tudo o que vós quereis que os
homens vos façam, fazei-lho também vós, Ananias, p o r que encheu Satanás o teu co­
porque esta é a lei e os profetas (Mt 7.12). ração, para que mentisses ao Espírito San­
N ão podemos deixar de ver que esse man­ to e retivesses parte do preço da herdade ?
damento estabelece de forma indireta o direi­ Guardando-a, não ficava para ti? E, ven­
to à propriedade privada. Se não devemos dida, não estava em teu p o d er? Por que
tirar dos outros, fica bastante claro que a formaste este desígnio em teu coração?
base da proibição é o direito das pessoas de Não mentiste aos homens, mas a Deus.
possuírem bens, e que esse direito é reco­ Atos 5.3,4
nhecido por Deus.
Alguns ensinam que os cristãos deveriam O fato de a Bíblia estabelecer o direito à
ter tudo em comum; entretanto, isso não é propriedade privada não torna mais fácil para
bíblico. É verdade que por várias razões his­ nós cumprirmos o oitavo mandamento. Tor­
tóricas e sociais um grupo de pessoas pode na as coisas ainda mais difíceis. N ão há co ­
escolher disponibilizar suas posses para uso mo escapar do fato de que muitas vezes nós
comum, assim com o os cristãos primitivos roubamos dos outros aquilo que lhes é devi­
fizeram durante um tempo em Jerusalém do, e tornam o-nos ladrões perante o tribu­
(A t 2.44,45). nal de Deus.
Alguns podem ser chamados especifica­
mente para fazer isso, a fim de testemunha­ N o n o m a n d a m e n to : n ã o m e n t i r ________

rem diante do mundo que a vida de alguém Ao falarmos de roubo da reputação de al­
não consiste na abundância dos bens que pos­ guém no tópico anterior, antecipamos o nono
sui (Lc 12.15), ou para que aquela pessoa, que mandamento: Não dirás falso testemunho con­
está presa às suas posses, seja liberta desse tra o teu próximo (Êx 20.16).
jugo e venha a crescer espiritualmente. Essa é a última seqüência de mandamen­
O jovem rico ouviu a recomendação de tos que tem a ver com a preocupação com os
Jesus de que devia abrir mão de seus bens e direitos dos outros com o uma expressão ade­
dar aos pobres. Apesar desse conselho, dado quada do mandamento para amar. A o difa­
numa situação especial, nem o Antigo nem o marmos uma pessoa, nós espoliamos o seu
N ovo Testamento proíbem a possessão parti­ bom nome e a sua posição social.
cular de bens; ao contrário, estimulam-na. John Stott afirmou:
Este mandamento não é aplicável apenas Jesus passa a controlá-lo, o que dissermos
às cortes e aos tribunais. Isso não inclui será cada vez mais verdadeiro e edificante.
perjúrio. Contudo, inclui também todas
as formas de escândalo e difamação, toda D é c im o m a n d a m e n to : n ã o c o b iç a r
COISAS A LHEIAS_______________________________
conversa ociosa e disse m e disse, todas as
mentiras, os exageros ou distorções da Este é talvez o mandamento mais revela­
verdade. Podemos prestar falso testemu­ dor e devastador de todos, pois trata em espe­
nho simplesmente ouvindo aos maus ru­ cial da natureza interior da Lei. Cobiça é uma
mores, assim com o passando eles adiante, atitude da natureza interior que pode ou não
ao fazermos gracinhas à custa de alguém, ser expressa num ato aquisitivo exterior.
ao criarmos impressões falsas, por não Além disso, a cobiça pode ser direcionada pa­
corrigirmos as declarações incorretas; por ra praticamente tudo. O texto do Decálogo
nosso silêncio e por nossa fala. (S t o t t , esclarece:
1958, p. 69)
Não cobiçarás a casa do teu próximo; não
N osso dever para com a outra pessoa é só cobiçarás a m ulher do teu próximo, nem o
a metade da história. N ão se trata apenas de seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi,
ferirmos a outra pessoa pelo falso testemu­ nem o seu jum ento, nem coisa alguma do
nho ou por palavras ásperas. N ós também teu próximo.
desonramos a Deus por faltarmos com a ver­ Êxodo 20.17
dade. Ele é o Deus da verdade e detesta a
mentira (Is 65.16; Jo 14.6). É impressionante com o esse mandamento
A Bíblia afirma que alguém que é obe­ é atual e como ele atinge em cheio a raiz de
diente a Deus ama e não folga com a injustiça, nossa cultura ocidental materialista. U m ele­
mas folga com a verdade (1 C o 13.6). Ela nos mento repugnante de nosso materialismo é a
exorta: Falai a verdade cada um com o seu insensibilidade para com as necessidades do
próximo (Ef 4.25). próximo, que se reproduz na indiferença pelo
Isso não é nada fácil para qualquer um que pobre tanto nas nossas cidades como no resto
esteja consciente e preocupe-se com sua inte­ do mundo. Todavia, ainda mais repugnante
gridade pessoal. Em algumas situações, con­ que isso é a nossa insatisfação com as nossas
tar uma mentira ou omitir a verdade parece riquezas e oportunidades.
quase imperioso. Em outras situações, falar a É verdade que nem todos no Ocidente são
verdade parece impossível. Para o homem prósperos e não há nada errado em tentar me­
pode até ser impossível, porém para Deus tu­ lhorar nossa vida material numa justa medida,
do é possível (Lc 18.27). em especial quando pertencemos a uma classe
C om o nós começamos a crescer nessa social inferior. Isso, em si, não é cobiça. C on­
área? Quando começamos a perceber que a tudo, é errado desejar alguma coisa simples­
boca fala do que está cheio o coração (Mt mente porque vemos outra pessoa desfrutar
12.34) e que o coração pode ser transformado daquilo. E errado desejar possuir mais quan­
quando habitado pelo Senhor Jesus Cristo. Se do não há necessidade disso. E errado aborre­
em nosso coração estiver entronizado nosso cer-se com a limitação de nossos recursos.
eu, então será inevitável escondermos a verda­ A cobiça é o que a mídia parece determi­
de para tirar algum proveito. Todavia, se a ver­ nada a insuflar em nós, para que a nossa eco­
dade encher o coração, o que acontece quando nomia nacional extravagante e esbanj adora
continue a crescer, mesmo que isso cause dano Deus nos vê em nosso pecado, pois todas
à economia das nações menos desenvolvidas. as coisas estão nuas e patentes aos olhos da­
N ão há outra maneira como possamos en­ quele com quem temos de tratar (Hb 4.13).
xergar nossa cobiça. Muitos, principalmente Então, qual é a reação de Deus ? Ele não nos
os cristãos, contentam-se com o que Deus dá. desculpa automaticamente, pois Ele não pode
N ão são materialistas em demasia. N o entan­ compactuar com o pecado. Ele nos esclarece
to, são cobiçosos em relação aos filhos. Sem­ que, de forma alguma, Ele nos purificará da
pre querem que eles tenham o melhor e, em culpa [se não nos arrependermos de verdade].
muitos casos, sentem-se magoados e até rejei­ Ele ensina que o salário do pecado é a morte
tados quando os filhos, já crescidos, respon­ (Rm 6.23). Logo, o julgamento em breve será
dem de forma positiva ao chamado de Deus executado.
para renunciarem à vida de abundância mate­ O que podemos fazer? P or nós mesmos,
rial e dedicarem-se à obra missionária ou a nada. Contudo, a glória do evangelho é que
outro serviço cristão. não fomos deixados sozinhos. Em vez disso,
Deus interveio para fazer o que não podía­
O s a l á r io d o p e c a d o e o d o m d e D eu s
mos. Fom os julgados pela Lei, e achados cul­
N ão posso encerrar este estudo sobre a pados. Deus, entretanto, enviou Jesus, que foi
Lei de Deus como está exposta nos Dez Man­ julgado pela Lei e achado perfeito. Ele mor­
damentos sem aplicá-la de forma pessoal. reu em nosso lugar recebendo sobre si a justa
Examinamos, pois, dez áreas em que Deus condenação que nos cabia, para que o cami­
exige certos padrões de conduta do homem. nho fosse aberto e Deus nos revestisse com a
Ao deparar-nos com os mandamentos de Sua justiça.
Deus, sentimo-nos julgados por não o ado­ Todavia, a Bíblia vai além de lembrar que
rarmos como deveríamos, e elegermos ídolos; o salário do pecado é a morte. Ela declara que
por não honrarmos por completo o nome de o dom gratuito de Deus é a vida eterna em
Deus; não nos regozijarmos no Dia do Senhor Cristo Jesus nosso Senhor (Rm 6.23). A Lei faz
nem o servirmos bem. Além disso, somos fa­ o trabalho certo. Ela não justifica ninguém.
lhos no trato com nossos pais. Matamos nosso [Antes, expõe o pecado de quem não a ob­
próximo, por ódio e com o olhar, quando não serva.] Mas somos justificados por Cristo,
de forma literal. Cometemos adultério por pen­ ao arrepender-nos de nossas obras perversas
samentos e, quem sabe, alguma vez por atos. e voltar-nos para o Salvador, que é nossa
N ão temos sido verdadeiros. Desejamos e cobi­ única esperança [de perdão e justificação
çamos coisas que são de nossos vizinhos. diante de Deus].

N otas

1 A Escada de Jacó representada na fachada oeste da Abadia de Bath. A Escada de Jacó é uma escada mencionada na
Bíblia (Gn 28.11-19) pela qual os anjos ascendiam e desciam de lá. Foi vista pelo patriarca Jacó durante um sonho,
depois de sua fuga por seu confronto com seu irmão Esaú.
(Fonte: http://pt.wikilingue.com/es/Escada_deJacob)

2 Eu discuti este mesmo tema com abrangência maior em The Sermon on the Mount [O Sermão do Monte]. In: Pas­
tores sem fronteiras. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1972, p. 105-11.
3 O hedonismo (do grego hedonê, prazer, vontade) é uma doutrina filosófico-moral que afirma ser o prazer o supre­
mo bem da vida humana. Surgiu na Grécia, e seus importantes defensores foram Aristipo de Cirene e Epicuro. O
hedonismo filosófico moderno procura fundamentar-se numa concepção mais ampla de prazer entendida como fe­
licidade para o maior número de pessoas. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Hedonismo)
4 O material sobre moralidade sexual contemporânea também aparece no meu livro The Sermon on the Mount [O
Sermão do Monte], p. 112-15. Uma discussão completa da interpretação de Jesus do sétimo mandamento e da
questão do divórcio ocupa as páginas 112-48.
A ir a d e D eus

einhold Niebuhr, em seu livro indigno de um Deus de amor. P or isso, esse


The Nature and Destiny o f Man não é um tema muito falado, pelo menos em
[A natureza e o destino do ho­ público.
mem], identifica três elementos Ouvimos muitas pregações sobre o amor
que influenciam a visão que o ser humano tem de Deus. Livros e mais livros nos ensinam
de Deus: como o poder dele nos ajuda a resistir às ten­
tações, ao desânimo, à tristeza e a muitas ou­
[Primeiro,] há o sentido de reverência pela ma­ tras coisas. Os evangelistas não se cansam de
jestade e de dependência diante da fonte pri­ falar sobre a graça de Deus e sobre Seu plano
mordial do ser. [Segundo,] o sentido de dever para nos salvar da condenação eterna. N o en­
moral que transcende o próprio eu e de insufi­ tanto, ouvimos pouco sobre a ira ou o julga­
ciência moral diante de um juiz. [Terceiro,] o mento divino. O que está errado?
anseio por perdão. (N ie b u h r , 1949, p. 131) Os escritores da Bíblia não compartilha­
vam dessa visão, visto que consideravam a ira
Esses três elementos, dispostos especifica­ do Senhor como uma de Suasperfeições. Isso os
mente nessa ordem, descrevem a forma como levava a apresentar o evangelho como uma or­
construímos nosso conhecimento a respeito dem de Deus para o arrependimento (At 17.30).
de Deus enquanto Criador, Juiz, e Redentor. Será que os cristãos modernos perderam
N ão podemos conhecê-lo de forma adequada de vista alguma coisa que os autores bíblicos
como Juiz antes de conhecermos nossos de- sabiam e admiravam? Será que estamos negli­
veres para com Ele enquanto Criador. Tam­ genciando uma doutrina sem a qual as outras,
bém não podemos conhecê-lo como Reden­ inevitavelmente, perdem o sentido? Ou será
tor até que estejamos conscientes do quanto que esse ponto de vista moderno está mais
pecamos contra Ele, estando, por causa disso, correto?
debaixo de Seu implacável juízo. U m dos problemas que se apresentam é
Isso significa, é claro, que devemos estu­ que, nem sempre, nosso vocabulário atual
dar a ira divina antes de apreciarmos correta­ consegue expressar a verdadeira essência da
mente as doutrinas de redenção. Contudo, ira divina. A palavra para ira, por exemplo,
aqui surge um problema. Muitos de nossos significa raiva, fúria ou cólera, e isso (pelo
contemporâneos, incluindo cristãos, enver­ menos no âmbito humano) não é exatamente
gonham-se da existência da ira do Senhor, o que queremos afirmar quando falamos que
visto que a consideram algo essencialmente o Senhor se ira no julgamento do pecado.
Todavia, nosso maior problema nesse A nenhum a viúva nem órfão afligireis. Se
contexto não é lingüístico, mas sim espiritu­ de alguma maneira os afligirdes, e eles cla­
al, visto que, por causa do pecado, o relacio­ marem a mim, eu certamente ouvirei o seu
namento entre toda a humanidade e seu clamor e a minha ira se acenderá, e vos
Criador foi quebrado. A abundância de pe­ matarei à espada; e vossas mulheres fica­
cado produziu, para nós, um estado de con­ rão viúvas, e vossos filhos, órfãos.
denação, tornando-nos incapazes de reco ­ Êxodo 22.22-24
nhecer nossa culpa, o que, por sua vez, faz
com que consideremos injusta a ira de Deus Dez capítulos adiante, numa passagem so­
sobre nós. bre o pecado cometido na construção e adora­
P or que os cristãos tendem a aceitar essa ção do bezerro de ouro, Deus e Moisés discu­
avaliação contemporânea que nada tem de tiram sobre a ira. O Senhor, então, declarou:
bíblica? P or certo, a ideia da ira divina nunca
foi popular, mas nem assim os profetas, após­ Agora, pois, deixa-me, que o m eu fu ro r se
tolos, teólogos e mestres da Antiguidade dei­ acenda contra eles, e os consuma; e eu farei
xaram de falar sobre ela: “Um a das coisas de ti uma grande nação. Porém Moisés su­
mais contundentes a respeito da Bíblia é o plicou ao S E N H O R , seu Deus, e disse: O
vigor com que ambos os Testamentos enfati­ S E N H O R , p or que se acende o teu fu ro r
zam a realidade e o terror da ira de Deus” contra o teu povo, que tu tiraste da terra
(P a c k e r , 1973, p. 134-135). do Egito com grande força e com forte
A maneira de vencer nossa relutância é mão ? Por que hão de falar os egípcios, di­
desejar redescobrir a importância da ira do zendo: Para mal os tirou, para matá-los
Senhor por meio de um estudo minucioso de nos montes e para destruí-los da face da
todo o ensinamento bíblico sobre ela. terra ? Torna-te da ira do teu fu ro r e arre­
pende-te deste mal contra o teu povo.
A ir a n o A n t ig o T e s t a m e n t o ____________ Êxodo 32.10-12
N o Antigo Testamento, em meio a muitas
referências à cólera humana, mais de 20 pala­ Ficou claro, nessa passagem, que o apelo de
vras foram usadas, em cerca de 600 passagens Moisés não estava baseado nem na suposta
importantes, a fim de expressar a ira divina. inocência do povo (todos sabiam que este não
Além disso, elas não são passagens isola­ era inocente), nem na ideia de que Deus, por
das, obras de um autor desleixado editadas ser amor, não deveria irar-se. O apelo ao Senhor
por um redator igualmente desatento. Mil foi feito com base na reputação de Seu nome,
vezes não. Estamos falando de palavras inter­ com alegações de que Seus atos seriam mal in­
ligadas com os temas mais essenciais do Anti­ terpretados pelos não aliançados com Ele. Con­
go Testamento: a transmissão da Lei, a vida na tudo, não restam dúvidas de que a ira é uma
terra, a desobediência de uma parte do povo reação apropriada de Deus diante do pecado.
de Deus, e a escatologia. A primeira característica bíblica da ira di­
As menções mais antigas da ira de Deus vina a diferencia imediatamente da ira exerci­
estão em conexão com a transmissão da Lei da pelas divindades pagãs: sua consistência.
no monte Sinai. Para sermos exatos, as pri­ Ela não é arbitrária, como se Deus, por algum
meiras referências ocorreram apenas dois capricho ou razão mesquinha, decidisse vol­
capítulos depois do relato da entrega dos tar-se contra os que Ele amou e favoreceu em
Dez Mandamentos: tempos passados.
Ao contrário, diante do pecado e do mal, Por isso, encontramos referências freqüentes
Deus é consistente e inflexível. N essa pri­ ao dia da ira de Deus ou dia do juízo.
meira passagem, o Senhor se irou p or causa O primeiro capítulo do livro de N aum é
do pecado cometido contra as viúvas e os um exemplo disso:
órfãos e, na segunda, por nossos pecados
contra Ele mesmo. O S E N H O R é um D eus zeloso e que toma
Outros exemplos podem ser dados. N o vingança; o S E N H O R toma vingança e é
último capítulo do livro de Jó, o Senhor se cheio de fu ro r; o S E N H O R toma vingan­
irou contra os amigos do patriarca por causa ça contra os seus adversários e guarda a ira
de seus conselhos tolos e arrogantes (Jó 42.7). contra os seus inimigos. O S E N H O R é
Em Deuteronômio 29.23-28 foi aborda­ tardio em irar-se, mas grande em força e
do o tema do derramamento da ira divina ao culpado não tem p or inocente [...]
contra Sodoma, G om orra e outras cidades Q uem parará diante do seu furo r? E quem
devido à sua idolatria. subsistirá diante do ardor da sua ira? A sua
Em Deuteronômio 11.16,17, o pecado foi cólera se derramou como um fogo, e as ro­
descrito como servir a outros deuses e adorá-los. chas foram p o r ele derribadas. O SE ­
Esdras, por sua vez, escreveu sobre a ira de N H O R é bom, uma fortaleza no dia da
Deus sobre todos os que o deixam (Ed 8.22). angústia, e conhece os que confiam nele. E
Algo mais ficou evidente nessas passagens. com uma inundação transbordante acaba­
Com o o pecado que instiga a ira do Senhor é rá de uma vez com o seu lugar; e as trevas
essencialmente um afastamento ou uma rejei­ perseguirão os seus inimigos.
ção a Ele, nós mesmos somos responsáveis N aum 1.2,3,6-8
pelas conseqüências dela, tendo em vista que a
mesma é a resposta divina a nossa rebeldia. H á menções à ira de Deus sendo dirigida
Isso não significa, é claro, que a ira de contra as nações pagãs também em Salmos:
Deus seja passiva, pois o Senhor sempre ope­
ra de forma ativa, e vai agir em perfeita medi­ Então [o Senhor], lhes falará na sua ira e
da no Juízo Final. Entretanto, tampouco quer no seu fu ro r os confundirá. Eu, porém , un­
dizer que ela deva ser considerada um aspecto gi o m eu R ei sobre o m eu santo monte
negativo da personalidade divina, visto que é Sião. Recitarei o decreto: O S E N H O R me
tão real com o todos os Seus demais atributos. disse: Tu és m eu Filho; eu hoje te gerei.
N osso pecado não é capaz de anular a pre­ Pede-me, e eu te darei as nações por heran­
sença do Pai em nossa vida. O máximo que ça e os confins da terra p or tua possessão. Tu
podemos fazer é trocar um relacionamento com os esmigalharás com uma vara de ferro; tu
Ele por outro, ou seja, se não experimentarmos os despedaçarás como a um vaso de oleiro.
Seu amor e Sua graça, vivenciaremos Sua ira, pois Salmo 2.5-9
Deus não pode ser tolerante com o mal.
O caráter judicial identificado na manifes­ Amós direcionou o aviso do Senhor para
tação da ira divina é irrefutável. Sabendo que os religiosos que erroneamente julgaram que
a justiça nunca será completamente exercida o dia da ira divina seria favorável a eles:
neste mundo, os autores do Antigo Testamen­
to projetaram para o futuro o derramamento A i daqueles que desejam o dia do S E ­
perfeito da resposta de Deus ao pecado, mo­ N H O R ! Para que qu er eis vós este dia do
mento em que todas as contas serão ajustadas. S E N H O R ? Trevas será e não luz. Como
se um hom em fugisse de diante do leão, e Quando queriam aludir à ira divina, os escri­
se encontrasse com ele o urso ou como se, tores bíblicos habitualmente usavam uma pa­
entrando em uma casa, a sua mão encos­ lavra que se refere não tanto a uma súbita
tasse à parede, e fosse mordido p or uma chama de paixão que logo se apagará, mas a
cobra. Não será, pois, o dia do S E N H O R uma oposição firme e forte a tudo que é mau,
trevas e não luz? Não será completa escu- que brota da própria natureza de Deus.
ridade sem nenhum resplendor? (M o r r is , 1956, p. 162-63)
Amós 5.18-20
Os escritores neotestamentários falam da
Devido ao acúmulo de pecado e à necessi­ ira vindoura. N o N ovo Testamento, há um
dade cada vez maior de uma justiça final e reconhecimento amplo de que nós vivemos
retributiva, há uma ênfase crescente no que se no tempo da graça de Deus, o qual é caracte­
refere ao tempo do juízo de Deus nos últimos rizado pela livre oferta do evangelho da salva­
livros do Antigo Testamento. ção por intermédio da fé em Jesus Cristo.
Contudo, isso não significa que Deus in­
A ir a no Novo T e s t a m e n t o _______________ terrompeu o derramar de Sua ira sobre o pe­
A presença, ainda que menos freqüente, cado, ou que Ele não a manifestará no Juízo
de textos que tratam da ira de Deus no N ovo Final. Pelo contrário, a apreensão geral sobre
Testamento mostra-nos que essa questão era esse dia tem se intensificado cada vez mais.
tão real para Jesus e para os autores neotes- Jesus falou muitas vezes do inferno, aler­
tamentários quanto para os autores vetero- tando sobre as conseqüências do pecado e
testamentários. mencionando a punição justa e certeira pre­
O N ovo Testamento grego tem apenas parada por Deus para as pessoas incrédulas.
duas palavras principais para ira. Um a delas é O autor do livro de Hebreus escreveu:
thymos, de uma raiz (thyo) que significa pre-
cipitar-se com ímpeto, estar no calor da vio­ Quebrantando alguém a lei de Moisés,
lência ou ofegar com fúria. Seu significado m orre sem misericórdia, só pela palavra de
único seria arquejar cólera. duas ou três testemunhas. D e quanto
A outra palavra é orge, que tem uma ori­ maior castigo cuidais vós será julgado m e­
gem bem diferente. Sua raiz (orgao) signifi­ recedor aquele que pisar o Filho de Deus, e
ca tornar-se pronto para algum a coisa; a tiver por profano o sangue do testamento,
forma substantiva fala da ira que vai tom an­ com que fo i santificado, e fizer agravo ao
do form a de maneira lenta, durante um lon­ Espírito da graça? Porque bem conhece­
go período. mos aquele que disse: Minha é a vingança,
Em muitas aplicações, as duas palavras apa­ eu darei a recompensa, diz o Senhor. E ou­
rentemente perderam seus sentidos originais, tra vez: O Senhor julgará o seu povo. H o r­
passando a ser usadas de forma alternada. To­ renda coisa é cair nas mãos do D eus vivo.
davia, orge se encaixa melhor para exemplificar Hebreus 10. 28-31
a ira de Deus como um crescimento e uma in­
tensificação gradual de oposição ao pecado. Portanto, a revelação do N ovo Testamen­
Leon Morris observou que, fora do livro to sobre a ira de Deus também é relevante,
de Apocalipse, thymos é usada apenas uma assim com o no Antigo.
vez com a conotação de fu ro r de D eus, e Em Romanos 1.18, Paulo utilizou o tempo
concluiu: verbal no presente: Porque do céu se manifesta
a ira de D eus sobre toda impiedade e injustiça famílias, na insanidade, e em outras formas de
dos homens que detêm a verdade em injustiça. desintegração psicológica, bem como em al­
Se tivesse utilizado o futuro, sua afirmação guns aspectos supostamente pequenos de
também faria sentido, visto que ele estaria nossa vida, como a impaciência, a insônia, a
referindo-se ao Juízo Final de Deus. insatisfação e a infelicidade.
Entretanto, no tempo presente, o versícu­ Ao somar esses fatores, por um lado te­
lo parece referir-se a uma manifestação contí­ mos a reação básica e quase universal da hu­
nua da ira divina contra a impiedade em todos manidade contra o conceito da ira divina, que
os lugares e épocas da história, ou seja, contra é vista com o um sentimento vingativo e cruel,
o excesso dos efeitos do pecado que foi discu­ indigno de um Deus de amor. P or outro lado,
tido no restante do capítulo. temos a totalidade da revelação bíblica na
Entre esses efeitos, está a cegueira de en­ qual essa reação do Senhor ao pecado é retra­
tendimento responsável pela rejeição da ver­ tada com o uma de Suas perfeições.
dade de Deus (Rm 1.21), bem com o a degra­ Interpretada como um posicionamento
dação da consciência religiosa de uma pessoa coerente do Altíssimo contra o mal, a ira é
e sua correspondente destruição (Rm 1.23) tida como algo judicial, manifestação da natu­
por causa das perversões sexuais, das menti­ reza divina que os seres humanos atraíram
ras, da inveja, do ódio, do assassinato, das ri­ para si e, não menos importante, como algu­
xas, dos enganos, da desobediência aos pais, ma coisa sobre a qual nós temos sido alerta­
entre outras coisas (Rm 1.24-31). dos com clareza.
N ada nessas listas sugere que o apóstolo A ira de Deus não é ignóbil. A o contrário,
Paulo estava substituindo uma manifestação ela é nobre, muito justa e perfeita, sendo pre­
presente e excessiva do pecado por uma ma­ cisamente por isso que nos incomoda. N o
nifestação direta e pessoal da ira do Senhor que tange aos assuntos humanos, temos em
em algum tempo futuro, como alguns teólo­ alta consideração a justiça e a ira do sistema
gos chegaram a ensinar ( D o d d , 1932, p. 20). judiciário, pois ele nos protege. Se, por alguma
Apesar de também ter mencionado uma ma­ razão, estivermos em conflito com a lei, temos
nifestação futura do furor divino (Rm 2.5; 1 a oportunidade de apelar, de escapar por uma
Ts 1.10; 2.16; 5.9), Paulo enxergava a evidên­ lacuna legal ou de alegar um delito menor e ser
cia deste nos efeitos presentes do pecado. perdoados por ele. Todavia, com Deus não po­
Podemos afirmar que Deus nos alertou demos fazer isso, visto que, em Cristo, não li­
sobre o julgamento que estava por vir. Pri­ damos com as imperfeições da justiça humana,
meiro, pela nossa própria consciência de cer­ mas com a perfeição da justiça divina.
to e errado, de justiça e injustiça; segundo, N o que se refere ao sistema judicial divi­
pelas evidências de um inevitável derrama­ no, lidamos com Aquele para quem não ape­
mento de Sua justiça nos dias de hoje. nas as ações, mas também os pensamentos e
Paulo descreveu esse processo com o o tes­ intenções são visíveis. Quem pode escapar de
temunhara no paganismo e, atualmente, é tal justiça? Quem pode suster-se diante de um
possível encontrar evidências paralelas a ele, Juiz tão inflexível? Ninguém.
pois, quando desistimos de Deus, Ele nos en­ Diante dessa verdade, ofendemo-nos com
trega às concupiscências [...] às paixões infa­ a ira de Deus contra nosso pecado e tentamos,
mes [...] [e] a um sentimento perverso (Rm ainda que infrutiferamente, negar sua reali­
1.24,26,28). Vemos isso na decadência galo­ dade de todas as maneiras possíveis. N egan­
pante da moral ocidental, na destruição das do-a, nunca enxergaremos nossa carência
espiritual nem seremos capazes de voltar- cima nos céus, nem embaixo na terra, nem
-nos para o Senhor Jesus C risto a fim de nas águas debaixo da terra. Não te encur-
buscar a salvação. varás a elas nem as servirás; porque eu, o
Se não nos voltarmos para o Senhor, nun­ S E N H O R , teu Deus, sou D eus zeloso, que
ca o conheceremos de verdade nem consegui­ visito a maldade dos pais nos filhos até à
remos ver-nos como somos. E somente quan­ terceira e quarta geração daqueles que me
do nós conhecemos a Deus com o Criador aborrecem e faço misericórdia em milhares
que podemos discerni-lo com o Juiz, e, então, aos que m e amam e guardam os meus
quando o reconhecemos como tal, podemos mandamentos.
discerni-lo com o nosso Redentor. Êxodo 20.2-6

A p a z ig u a n d o a ir a d e D e u s ______________ Enquanto o Senhor estava entregando es­


Vamos prosseguir examinando a revelação sas palavras, o povo que Ele salvara da escra­
de Deus com o Redentor no Antigo e no N o ­ vidão no Egito fazia exatamente o que era
vo Testamento. Isso nos ocupará no próximo proibido. E não apenas isso: os israelitas pra­
capítulo (no que se refere ao Antigo Testa­ ticavam adultério, mentira, cobiça, desonra­
mento) e, depois, dos capítulos nove até o 18 vam seus pais, e, sem dúvida, descumpriam
(no que tange ao N ovo), quando trataremos todos os outros mandamentos. Nesse ponto,
da pessoa e da obra de Jesus Cristo. quando Deus declarou Sua intenção de julgar
Entretanto, devemos rever, antes de qual­ o povo de forma total e imediata, Moisés in­
quer coisa, a passagem na qual Deus e Moisés tercedeu por Israel.
conversam a respeito do pecado de Israel. De Por fim, Moisés começou a descer o mon­
certa forma, esse versículo vem entre a decla­ te para tratar com o povo. Mesmo em um ní­
ração da ira divina contra o pecado e a revela­ vel humano e à parte de qualquer ideia da
ção subsequente do caminho da salvação que graça de Deus, o pecado deve ser julgado.
nos é dada por Ele. Então, Moisés começou a lidar com isso
Moisés esteve no monte por 40 dias rece­ da melhor maneira que sabia. Primeiro, ele
bendo a Lei. Quando os dias viraram sema­ repreendeu Arão em público. Depois, convo­
nas, os israelitas que esperavam inquietos ti­ cou todos que ainda estavam do lado do Se­
nham convencido o irmão de Moisés, Arão, a nhor para se separarem dos demais e ficarem
esculpir um deus substituto para eles. ao lado dele.
Sabendo o que estava acontecendo no va­ A tribo de Levi se apresentou. Ao coman­
le, Deus interrompeu Sua revelação da Lei do de Moisés seus integrantes foram enviados
para contar a Moisés o que o povo estava fa­ a campo aberto para executar de forma impie­
zendo, preparando seu retorno para ele. dosa os líderes da rebelião. O capítulo afirma
Essa foi uma situação irônica. Deus dera a que três mil homens morreram na ocasião,
Moisés os Dez Mandamentos, que começa­ número aproximado de meio por cento dos
vam da seguinte forma: 600 mil que deixaram o Egito (Ê x 12.37;
32.28; incluindo mulheres e crianças, o núme­
E u sou o S E N H O R , teu Deus, que te tirei ro total naquele êxodo pode ter sido de dois
da terra do Egito, da casa da servidão. milhões de pessoas). A o mesmo tempo, M oi­
Não terás outros deuses diante de mim. sés também destruiu o bezerro de ouro. Ele o
Não farás para ti imagem de escultura, lançou ao chão, misturou o ouro da imagem
nem alguma semelhança do que há em destruída com água e fez o povo beber.
De um ponto de vista humano, Moisés que está indicado pelo rompante no meio de
tratou com o pecado. Os líderes rebeldes fo­ Êxodo 32.32. É um clamor desesperado, um
ram punidos. Arão foi repreendido. A lealda­ gemido que sai do coração de um homem que
de do povo foi, pelo menos temporariamente, pede para ser punido se isso puder representar
recuperada. Tudo parecia estar bem. Moisés a salvação do povo que ele veio a amar.
permaneceu numa relação especial com Deus
assim como numa relação especial com o po­ Assim, torno u Moisés ao S E N H O R e dis­
vo. Mas, Deus ainda aguardava em ira no to­ se: Ora, este povo pecou pecado grande,
po da montanha. O que Moisés devia fazer? fazendo para si deuses de ouro. Agora,
Para teólogos de gabinete, o conceito da pois, perdoa o seu pecado; se não, risca-me,
ira de Deus pode parecer apenas especulação. peço-te, do teu livro, que tens escrito.
Todavia, Moisés não era um teólogo de gabi­ Êxodo 32.31,32
nete. Ele tinha conversado com Deus. Ele ti­
nha ouvido a Sua voz. Naquela altura, nem Moisés se ofereceu para tomar o lugar do
toda a Lei havia sido dada, entretanto Moisés povo para livrar Israel do juízo de Deus; ele
tinha recebido o suficiente dela para saber al­ aceitou ficar separado de Deus por amor ao
guma coisa do horror do pecado e da nature­ seu povo.
za incorruptível da justiça de Deus. N a véspera, antes de Moisés ter descido
N ão havia dito Deus: Não tereis outros do monte, Deus havia dito algo que poderia
deuses diante de mim (Ê x 20.3)? N ão havia ter sido uma grande tentação. Se Moisés con­
Ele prometido visitar a iniqüidade dos pais cordasse, Deus destruiria o povo por causa
nos filhos até a terceira e quarta gerações? do pecado e começaria tudo de novo, fazendo
Quem era Moisés para pensar que o julga­ uma nova nação judaica a partir de Moisés
mento limitado que ele havia começado satis­ (Ê x 32.10,11). Ele rejeitou a oferta.
faria a santidade de um Deus como esse? Contudo, depois de ter estado com seu
A noite havia passado e chegara a manhã povo e ser reavivado no seu amor por ele, Sua
em que Moisés voltaria a subir o monte. Ele resposta, de novo negativa, atinge dimensões
esteve pensando. Em algum momento da noite ainda maiores. Deus disse: “Eu os destruirei e
veio a ele uma maneira que possivelmente des­ farei uma grande nação de você”. Moisés re­
viaria a ira de Deus contra o povo. Moisés se plicou: “N ão. E m vez disso, destrói a mim e
lembrou dos sacrifícios dos patriarcas hebreus salve a eles”.
e do recém-instituído sacrifício da Páscoa. Moisés viveu nos primórdios da revelação
Com certeza, Deus mostrara por esses de Deus para o seu povo, e naquele ponto ele
sacrifícios que estava preparado para aceitar provavelmente conhecia muito pouco. Com
um substituto inocente no lugar da morte certeza ele não sabia com o nós sabemos hoje,
merecida do pecador. A ira de Deus poderia aquela sua petição não poderia ser respondi­
algumas vezes cair sobre o substituto. “Quem da. Moisés se ofereceu para salvar a vida de
sabe, Deus aceitará?” Quando rompeu a ma­ seu povo.
nhã, Moisés subiu o monte com grande deter­ N o entanto, Moisés não podia salvar se­
minação. quer a si mesmo, pois também era um peca­
Ao chegar ao topo, ele começou a falar dor. Ele até tinha cometido assassinato, que­
com Deus. A conversa deve ter sido tensa, pois brando assim o sexto mandamento. N ão tinha
o texto hebraico não é uniforme e a segunda condições para substituir seu povo. N ão pode­
frase de Moisés se interrompe sem um fim, o ria morrer por este.
4
220
Contudo, havia um que poderia: Mas, Sobre o fundamento da morte de Cristo,
vindo a plenitude dos tempos, D eus enviou na qual Ele recebeu sobre si o derramamento
seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, plenamente legal da ira de Deus contra o pe­
para rem ir os que estavam debaixo da lei, a cado, aqueles que agora creem podem experi­
fim de recebermos a adoção de filhos (G14.4,5). mentar não mais a ira (ainda que a mereçamos
A morte de Jesus não foi apenas para os enfaticamente), porém a graça abundante.
crentes da época do Antigo Testamento, mas A graça não elimina a ira. A ira ainda está
para aqueles que pecaram no deserto e para reservada para os que não se arrependerem.
seus sucessores. Ela foi também por nós que Todavia, a graça elimina a necessidade de to ­
vivemos hoje, tanto judeus como gentios. dos terem de sofrê-la.
Sa l v a ç ã o no A n t ig o T esta m en to

icou evidente nas observações fei­ Essa visão era compartilhada por quase todos
tas no estudo anterior sobre a Lei os judeus na época de Paulo, como está eviden­
que uma pessoa era salva na época ciado pelo seu tratamento do tema em Romanos
do Antigo Testamento pela fé, as­ 9. Ela é acolhida pela maioria dos judeus e ainda
sim como uma pessoa é salva hoje. hoje até por um número significativo de cristãos.
Os que viveram antes de Cristo eram sal­ Contudo, todos os judeus foram ou estão
vos pela graça por meio da fé num Redentor salvos? Para colocar de uma forma ainda mais
que estava para vir. Depois de Cristo, a salva­ restrita, todos os judeus foram salvos antes de
ção é pela graça por meio da fé no Redentor Cristo? Tanto o Antigo com o o N ovo Testa­
que já veio. mento negam isso.
N o Antigo Testamento, os homens espe­ U m a segunda visão errônea, e talvez mais
ravam por Cristo. Hoje, conhecemos o Jesus comum, é que os crentes do Antigo Testa­
que foi enviado a terra para nos salvar. mento eram salvos p or obedecer à Lei. Isso
Fora essas diferenças, os parâmetros de não explica como Adão e Eva ou Abraão e
salvação são idênticos, visto que os sacrifícios Sara, ou qualquer que tenha vivido antes da
do Antigo Testamento apontavam para o Fi­ Lei, foram salvos, porém encaixa-se no reni­
lho de Deus. tente desejo humano de conquistar a própria
Contudo, se a um cristão mediano (para salvação. Os homens querem ardentemente
não mencionar um não cristão) fosse pergun­ ser salvos fazendo alguma coisa para isso. To­
tado como as pessoas do Antigo Testamento davia, na verdade, a Lei os condena.
eram salvas, é provável que ele desse uma res­ Por fim, alguns diriam que os crentes do
posta errada. Antigo Testamento eram salvos pela prática de
Por exemplo, alguns pensam que os que sacrifícios e outros ritos especificados no códi­
viveram no período do Antigo Testamento go levítico. Isso se aproxima mais da verdade,
eram salvos por serem judeus. Tais pessoas ba­ porque salvação consistia naquilo que os sacri­
seiam esse ponto de vista em seu entendimento fícios representavam. Ainda assim, a salvação
de que as promessas de Deus para Israel foram não acontecia pelo sacrifício, assim como não
dadas especificamente para a nação, isto é, in­ acontece, hoje, pelo batismo e pela Santa Ceia.
cluindo sem exceção todos os descendentes de
Abraão. Essa compreensão encontraria apoio O c a so d e A b r a ã o ____________________________

em textos como João 4.22, no qual Jesus disse à Afinal, as pessoas do Antigo Testamento
mulher de Samaria: a salvação vem dos judeus. eram salvas? O apóstolo Paulo foi confrontado
pelos que pensavam que os judeus eram sal­ hoje, da mesma forma como os gentios são sal­
vos simplesmente por sua origem, por obede­ vos, ou seja, pela fé na graça eletiva de Deus
cer à Lei, por observar os sacrifícios ou por concentrada na obra de Cristo no Calvário.
uma combinação de tudo isso. Ele respondia O que era Abraão quando Deus o cha­
a essas visões ensinando que a salvação é sem­ mou? Ele não era um judeu no sentido nacio­
pre pela graça, não pelas obras; logo, a salva­ nalista que veio depois, embora fosse tornar-
ção é, em última análise, um caso de escolha e -se o primeiro cidadão da nação judaica.
eleição soberana de Deus. Quando Deus chamou Abraão, ele era
Em Romanos 4, Paulo utilizou um capítu­ apenas um indivíduo de uma vasta quantida­
lo inteiro para mostrar que Abraão, o pai da de de povos semitas que ocupavam o antigo
nação judaica, foi salvo pela fé, independente Oriente Próximo naquela época, a maioria for­
da Lei. N o entanto, mesmo que isso mostre o mada por adoradores de ídolos. Abraão veio
caminho da salvação, deixa sem resposta a se­ de uma família desse tipo. N o entanto, ele foi
guinte pergunta: Por que Israel como um todo salvo, não por mérito pessoal (como se tivesse
não aceitou a oferta de Deus em Jesus Cristo? buscado a Deus, pois ele não o buscou), mas
Israel havia recebido promessas relativas à porque Deus o escolheu para salvação.
vinda de Cristo e tinha entre suas práticas os A eleição de Abraão está registrada em
sacrifícios que apontavam para o Messias. Por diversas partes da Bíblia. Josué, p or exem­
isso, devia ter crido. Todavia, quando os pri­ plo, lançou um fardo final sobre o povo no
meiros pregadores do evangelho saíram em qual ele lembrava os israelitas de seu passado
campo com a sua mensagem, pareceu que Is­ incircunciso, de com o Deus os libertou, e da
rael estava rejeitando o Salvador, enquanto os obrigação que tinham de servir a Ele. Em
gentios, ao contrário, estavam crendo. Por certo ponto, Josué se referiu a Abraão, afir­
quê? Deus estaria abandonando Seu povo? O mando:
meio para se obter a salvação teria mudado?
Paulo respondeu a essas perguntas em R o ­ Então, Josué disse a todo o povo: Assim diz
manos 9. Primeiro, ele negou que os judeus o S E N H O R , D eus de Israel: Dalém do
foram salvos por sua origem. O apóstolo de­ rio, antigamente, habitaram vossos pais,
monstrou que alguns eram salvos e outros não. Tera, pai de Abraão ep a i de Naor, e servi­
ram a outros deuses. Eu, porém , tomei a
N em todos os qu e são de Israel são israeli­ Abraão, vosso pai, dalém do rio e o fiz an­
tas; nem por serem descendência de Abraão dar p or toda a terra de Canaã; também
são todos filhos [espirituais]. E m Isaque multipliquei a sua semente e dei-lhe Isa­
será chamada a tua descendência. que. E a Isaque dei Jacó e Esaú; e a Esaú
Romanos 9.6,7 dei a montanha de Seir, para a possuir;
porém Jacó e seus filhos desceram para o
Depois, Paulo mostrou que os que são se­ Egito. Então, enviei Moisés e Arão e feri
mente espiritual verdadeira de Abraão o são ao Egito, como o fiz no meio dele; e depois
apenas pela eleição soberana de Deus: Não vos tirei de lá. Agora, pois, temei ao SE­
são os filhos da carne que são filhos de Deus, N H O R , e servi-o com sinceridade e com
mas os filhos da promessa são contados como verdade, e deitai fora os deuses aos quais
descendência (Rm 9.8). serviram vossos pais dalém do rio e no Egi­
Portanto, os judeus eram salvos durante o to, e servi ao S E N H O R .
período do Antigo Testamento, e são salvos
Esses versículos mostram com clareza que pensemos) Ele não garante os mesmos privi­
Abraão foi escolhido por Deus em meio à an- légios a todos.
cestralidade idólatra, e que ele, Tera e N aor Alguns, sem dúvida, argumentaram que o
um dia adoraram falsos deuses. caso de Isaque não comprovava o posiciona­
Isaías declarou a mesma coisa: mento de Paulo. Isaque tinha nascido de
Abraão e Sara, logo, de dois pais judeus, po­
Ouvi-me, vós que seguis a justiça, que bus- rém Ismael veio ao mundo por Abraão e H a-
cais ao S E N H O R ; olhai para a rocha de gar, a escrava egípcia de Sara. Ismael tinha
onde fostes cortados epara a caverna do poço sangue misturado, eles diriam; logo, a nega­
de onde fostes cavados. Olhai para Abraão, ção da salvação pela origem sustentada por
vosso pai, e para Sara, que vos deu à luz. Paulo não foi comprovada.
Isaías 51.1,2 Paulo respondeu ao avançar para a geração
seguinte. Nesta, no caso dos dois filhos de Isa­
Nada na ancestralidade de Abraão pode­ que, Jacó e Esaú, Deus fez Sua escolha entre fi­
ria favorecê-lo perante Deus. A salvação é lhos de pai e mãe judeus. Além disso, para que
sempre pela graça. ninguém tentasse introduzir a questão da idade
Em outros momentos de seus escritos, Paulo como fator decisório, os irmãos eram gêmeos. E,
negou que Abraão tenha sido salvo por guardar para que ninguém pudesse argumentar que a es­
a Lei ou por observar os sacrifícios. Ele obser­ colha tinha sido feita com base nas virtudes mo­
vou que Abraão viveu 430 anos antes de a Lei rais ou no caráter dos meninos, Deus anunciou
ter sido transmitida (G1 3.17), e que o patriarca Sua decisão enquanto os filhos ainda estavam no
foi declarado justo por Deus por meio da fé, an­ ventre de Rebeca, isto é, antes que tivessem a
tes de receber o rito da circuncisão (Rm 4.9-11). chance de fazer ou escolher qualquer coisa.
Alguém poderia argumentar que, embora Sobre essa eleição, Paulo foi incisivo:
o chamado de Deus a Abraão tenha sido de
acordo com a graça, posteriormente tal salva­ E não somente esta, mas também Rebeca,
ção teria passado a ser hereditária. Alguém quando concebeu de um, de Isaque, nosso
poderia concluir que todos os descendentes pai; porque, não tendo eles ainda nascido,
de Abraão teriam sido salvos. N o entanto, nem tendo feito bem ou mal (para que o
essa é a opinião contra a qual Paulo escreveu propósito de Deus, segundo a eleição, ficas­
em Romanos e à qual ele respondeu de forma se firm e, não p o r causa das obras, mas por
específica no capítulo nove. aquele que chama), foi-lhe dito a ela: O
Os judeus da época de Paulo confessavam maior servirá o menor. Como está escrito:
ter um relacionamento especial com Deus A m ei Jacó e aborreci Esaú.
por causa de sua descendência de Abraão. Romanos 9.10-13
Contudo, ao fazerem isso, omitiam o fato de
que Abraão teve mais de um filho. O ponto principal dessa argumentação é que
Sim, Isaque era o filho da promessa. N o a escolha de quem receberá a bênção da salvação
entanto, antes de Isaque, Abraão teve Ismael. recai sobre Deus, tanto naquele tempo como
O que declarar de Ismael? Com certeza, agora. Deus concede vida a quem Ele escolher.
Deus escolheu Isaque, em vez de Ismael, em­
bora Isaque fosse mais novo, demonstrando V is l u m b r a n d o o R ed en to r ________________

assim que a salvação é resultado de uma livre Afirmar que os judeus do período do An­
escolha de Deus e que (não importa o que tigo Testamento eram salvos pela graça de
Deus, assim como os gentios são salvos hoje, qual D eus propôs para propiciação pela f é
é apenas uma parte da questão. Em bora a elei­ no seu sangue, para demonstrar a sua jus­
ção seja a causa desencadeadora da salvação, tiça pela remissão dos pecados dantes co­
ela não é a única. metidos, sob a paciência de Deus; para de­
N ós somos levados às seguintes pergun­ monstração da sua justiça neste tempo
tas: Baseado em que Deus salva o incircunci- presente, para que ele seja justo e justifica-
so? C om o Deus pode perdoar o pecado? dor daquele que tem f é em Jesus.
Deus pode justificar o pecador e ainda assim Romanos 3.24-26
ser justo? O valor dessas perguntas conduz à
importância da morte de Cristo mesmo para A causa inicial da salvação é a graça sobe­
os crentes do Antigo Testamento. rana de Deus, porém a causa formal é, e tem
O apóstolo Paulo tratou desse tema pelo sido sempre, a morte do Mediador da N ova
menos em dois versículos. Em sua primeira Aliança.
exposição completa do evangelho, Paulo fa­ A segunda passagem importante dos es­
lou da revelação da justiça de Deus por meio critos de Paulo sobre esses temas é Gálatas 3,
de Cristo. na qual o apóstolo fundamentou em Abraão
Primeiro, a justiça é para todos e sobre todos seu argumento da salvação pela graça por
os que crêem. (Rm 3.22). As palavras sugerem meio da fé no Senhor Jesus Cristo. Nesse tex­
ser cobertos com a justiça ou tê-la depositada to, Paulo afirmou três coisas: Abraão foi sal­
em nossa conta, como numa transação bancária. vo por crer em Deus (v. 6); a essência de sua
Segundo, Paulo argumentou que Deus é crença foi que Deus ia enviar um salvador, que
revelado como justo pela morte de Cristo. seria Jesus Cristo (v. 16); e a obra de Cristo era
Antes da época de Cristo, Deus havia salvado para ser uma obra de redenção (v. 13,14).
muitos crentes do Antigo Testamento pela Alguns podem objetar: “Você realmente
eleição. Contudo, eles ainda eram pecadores, quer declarar que as pessoas que viveram na
então deu a impressão de que Deus estava sim­ época do Antigo Testamento contemplavam a
plesmente se esquecendo dos pecados deles, o vinda de Cristo e que foram salvas pela fé ne­
que não é verdade. N ós podemos até simpati­ le, da mesma forma que nós olhamos para
zar com a ideia de Deus esquecer os pecados, Cristo e somos salvos por crer nele como
entretanto isso não a torna correta. O que afir­ nosso Salvador? C om o elas podiam crer nele?
mar da justiça? O que mostrar do pecado? Jesus ainda não tinha vindo ao mundo. As
Essas perguntas são respondidas pela re­ profecias sobre a Sua vinda eram vagas. E, se até
velação da justiça de Deus em Jesus Cristo. mesmo Seus discípulos tinham uma ideia equi­
Foi com base na morte de Cristo que Deus vocada de Seu ministério — pensando que Ele
perdoou os nossos pecados desde o princípio, era um “Messias político” (At 1.6) —, como as
ainda que a morte não tivesse acontecido na pessoas comuns podiam ter uma visão correta?
época veterotestamentária. Quando ela acon­ Como alguém poderia realmente ser salvo pela
teceu, o mistério foi explicado — e Deus foi fé num Redentor que ainda estava por vir?”.
enxergado com o justo. U m a resposta é que muitos, é óbvio, não
Paulo expressou isso ao escrever sobre contemplavam a vinda de Cristo, por isso não
aqueles que foram justificados: foram salvos. Com certeza, também, dos
muitos que se encontraram com Jesus mais
Justificados gratuitamente pela sua graça, tarde, a maioria não foi salva. As massas po­
pela redenção que há em Cristo Jesus, ao diam ser atraídas por Seu ensinamento um dia
e louvá-lo, todavia foram capazes de pedir a testificando com isso a sua fé (ainda que equi­
Sua crucificação no dia seguinte. N a época de vocada) de que o Prometido havia chegado.
Jesus, assim com o em todo o período históri­ N ós já contemplamos Abraão com refe­
co do Antigo Testamento, os que foram sal­ rência à sua eleição por Deus para salvação, e
vos eram os remanescentes. também a sua fé pessoal no Redentor que es­
Um a segunda resposta é que houve três tava por vir. Mas não chamamos atenção para
níveis diferentes de entendimento. A essência aquele que é provavelmente o versículo mais
da fé em todos que tiveram algum entendi­ importante sobre o assunto. E m João 8.56,
mento foi que se reconheciam como pecado­ Jesus afirmou: Abraão, vosso pai, exultou por
res, que se voltavam para Deus em busca de v er o m eu dia, e viu-o, e alegrou-se.
salvação. Cada um que se aproximava com Um a maneira de interpretar esse versículo
honestidade para apresentar um sacrifício pe­ difícil é supor que Jesus quis mostrar que
lo pecado confessava sua condição. Abraão estava vivo no céu (ou paraíso) na­
A resposta completa, entretanto, trans­ quela época alegrando-se com Seu ministério.
cende ambas. N ós podemos afirmar com base A dificuldade com essa visão é que o tema da
na mais plena comprovação bíblica que mui­ discussão em João 8 não é o prolongamento
tos creram. Além disso, eles sem dúvida en­ da consciência de Abraão além do túmulo,
tendiam e enxergavam muito mais do que nós mas a preexistência de Cristo.
lhes creditamos. O versículo 58 declara: Antes que Abraão
Encontramos evidências disso por toda a existisse, eu sou. Se Jesus quisesse afirmar que
Escritura. Quando Adão e Eva pecaram no Abraão ainda estava vivo e alegrando-se com
Éden, Deus foi até eles para confrontar seu Seu nascimento e ministério, teria sido mais
pecado e conduzi-los ao arrependimento. natural usar os tempos presentes para os ver­
Q uando Ele os vestiu com peles de animais bos (Abraão está alegrando-se por ver o meu
que Ele próprio, sem dúvida, havia matado dia; ele o vê, e alegra-se). N o entanto, parece
ali, já se prefigurava o sacrifício de Cristo, mais apropriado identificar a fala de Jesus
que seria m orto pelo Pai, para que nós, pe­ com o entendimento de Abraão no seu p ró­
cadores, pudéssemos ser revestidos com a prio tempo de vida do que com algum episó­
Sua justiça. dio contemporâneo ao ministério de Cristo.
Deus prometeu um Redentor ao declarar Situar a visão na época de Abraão por si só
a Satanás: E porei inimizade entre ti e a m u­ não resolve o problema, já que muitos mes­
lher e entre a tua semente e a sua semente; tres fizeram isso — falaram de uma visão do
esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferir ás o calca­ Messias que supostamente Abraão teve, con­
nhar (Gn 3.15). tudo discordaram a respeito de com o isso
C om certeza, essas palavras não se refe­ aconteceu.
rem simplesmente a um medo generalizado A visão de Abraão do advento de Cristo
de serpentes por parte do homem, como al­ pode muito bem ser encontrada na história
guns teólogos modernos as interpretariam, do quase sacrifício de Isaque no monte M o-
mas à vinda do Messias, que derrotaria Sata­ riá. Nesse episódio, Abraão aprendeu de um
nás e destruiria o seu poder. Nesse ponto re­ modo novo que o Senhor proverá.
side a salvação da maldição do pecado. Foi Deus disse a Abraão que tomasse seu fi­
isso que Adão e Eva entenderam. Quando lho, o herdeiro da promessa, e sacrificasse
seu primeiro filho nasceu, eles o chamaram de num monte. Deve ter sido uma luta terrível
Caim, que significa aqui está ele ou aquisição, para Abraão quando ele argumentou com
Deus a respeito de Sua ordem. Abraão sabia Dessa maneira, Abraão contemplou a
que devia obedecer, no entanto sabia também vinda de Jesus, inclusive com o significado
que o Senhor era um Deus de palavra e que de Sua morte e ressurreição, e regozijou-se
tinha se comprometido a erguer uma nação nessa vinda.
por intermédio de Isaque. Imagine se perguntássemos hoje a Abraão:
Nessa altura, Isaque não tinha filhos; lo­ “Abraão, por que você está no céu? Foi porque
go, se Deus estava ordenando a Abraão que você deixou a sua parentela em U r dos Caldeus
matasse Isaque, então Deus, que havia opera­ e foi para Canaã? Foi por causa da sua fé, do
do o milagre do nascimento de Isaque, teria seu caráter, ou da sua obediência?”. Ele respon­
de realizar outro milagre na sua morte, ou deria: “N ão. Vocês não leram a minha história?
seja, ressuscitá-lo. Deus me prometeu uma grande herança. Eu cri
A narrativa mostra que Abraão esperava nas Suas promessas. E a maior dessas promes­
voltar da montanha com Isaque, após fazer o sas foi que Ele enviaria um Salvador por inter­
sacrifício (Gn 22.5). O autor do livro de H e- médio da minha linhagem, por meio de quem
breus declarou de forma explícita: Ele abençoaria todas as nações. Eu estou no céu
porque acreditei que Deus faria isso”.
Pela fé , ofereceu Abraão a Isaque, quan­ “E você, Jacó? P or que você está no céu?
do fo i provado, sim, aquele qu e recebera Você está no céu por causa de sua fé ou por­
as promessas ofereceu o seu unigênito. que nasceu na linhagem de Abraão?” “N ão ”,
Sendo-lhe dito: E m Isaque será chamada responderia Jacó, “estou no céu porque vis­
a tua descendência, considerou que D eus lumbrei o Redentor. Lembra com o falei so­
era poderoso para até dos mortos o res­ bre Ele a meu filho Judá quando eu estava
suscitar. E daí também , em figura, ele o morrendo? Ali, eu não sabia o Seu nome.
recobrou. Mas disse: O cetro não se arredará de Judá,
Hebreus 11.17-19 nem o legislador dentre seus pés, até que v e­
nha Siló; e a ele se congregarão os povos (Gn
Abraão creu que Deus realizaria um mila­ 49.10). O ra, eu estou no céu porque contem ­
gre trazendo Isaque de volta da morte, exata­ plei a Sua vinda”.
mente o milagre que Deus, o Pai, fez com Je­ “Davi, por que você está no céu? Deve ser
sus Cristo, o Filho, como os versículos de por causa de seu caráter, afinal você era consi­
Hebreus demonstram. Ainda assim, isso não derado um homem segundo o coração de
é tudo. Quando a prova terminou e Deus in­ Deus.” “Meu caráter? Você esquece que eu
terveio para salvar Isaque, providenciando cometi adultério com Bate-Seba e tentei en­
um cordeiro para o sacrifício no lugar do me­ cobri-lo mandando o seu marido para a mor­
nino, Abraão se rejubilou e chamou aquele te? Ora, eu estou no céu porque olhei para o
lugar de Jeová Jireh , que significa o S E N H O R prometido Redentor meu e do meu povo. Eu
proverá (Gn 22.14). sabia que Deus tinha prometido a Ele um
U m pouco antes, isso poderia significar o Reino que duraria para sempre.”
Senhor proverá a ressurreição de Isaque. “E quanto a você, Isaías? Você esperava o
Após o ocorrido, isso podia apenas significar Redentor?” “Claro que sim” — Isaías res­
que o mesmo Deus que proveu um cordeiro ponderia. “Eu falei dele como alguém que le­
em substituição a Isaque entregaria um dia o vou sobre si as nossas enfermidades e as nossas
Seu próprio Filho como substituto e sacrifí­ dores, que foi ferido pelas nossas transgressões
cio perfeito para nossa salvação. e moído pelas nossas iniquidades. Eu sabia
que o Senhor lançaria sobre Ele os pecados de Em cada período, sempre houve aqueles
todos nós.” que contemplaram o Salvador para alcançar
N ós chegamos à época de Cristo e encon­ salvação. N os tempos antigos foram Abraão,
tramos o mesmo tipo de resposta, só que agora Jacó, Davi, Isaías, Malaquias e muitos outros,
os que creem não pertencem às classes sociais tanto homens como mulheres. N a época de
importantes, não estão no palácio de Herodes Jesus foram Isabel, Zacarias, João Batista, Jo ­
nem entre os sacerdotes. Eles são gente co­ sé, Maria e outros. E muitos nos dias de hoje.
mum. São pessoas como Simeão, a quem fora Só há um caminho para a salvação:
revelado pelo Espírito Santo que ele não mor­
reria antes de ter visto o Cristo do Senhor (Lc Porque há um só D eus e um só mediador
2.26); ou Ana, uma profetisa que, quando Si­ entre D eus e os homens, Jesus Cristo, ho­
meão estava abençoando o bebê Jesus, dava mem, o qual se deu a si mesmo em preço de
graças a D eus e falava dele a todos os que espe­ redenção por todos, para servir de teste­
ravam a redenção em Jerusalém (Lc 2.38). m unho a seu tempo.
Essa tem sido a fé dos filhos de Deus. Ao 1 Timóteo 2.5,6
anunciar o nascimento de Cristo, o anjo disse:
e lhe porás o nom e de JE S U S, porque ele sal­ E da pessoa e da obra desse único Media­
vará o seu povo dos seus pecados (Mt 1.21). dor que vamos tratar nos próximos capítulos.
Pa r t e

3
A pessoa de Cristo

No principio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no principio com Deus.
João 1.1,2

E o Verbo se fez cante e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigê-
nito do Pai, cheio de graça e de verdade.
João 1.14

Porque há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem,


o qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos, para servir de testemunho a
seu tempo.
1 Timóteo 2.5,6
A d iv in d a d e d e J esu s C r is t o

e você já está seguindo a linha de pen­ que Ele também é Deus, pois somente Sua
samento dos capítulos anteriores, mas divindade dá sentido às Suas palavras e ações.
ainda não é cristão, talvez esteja pen­ Essa foi a experiência dos primeiros discípu­
sando que depositamos nossas espe­ los e apóstolos.
ranças em algo frágil demais. N ós, obviamen­ Acerca desse tema, Brunner escreveu:
te, colocamos toda a esperança de salvação
sobre os ombros de um prometido Redentor, a Somente quando eles [os discípulos] o enten­
quem os cristãos identificam como Jesus Cris­ deram como Senhor absoluto, a quem pertence
to de Nazaré. Pode ser que você questione se a plena soberania divina, a Páscoa, como vitó­
alguma pessoa, por mais extraordinária que ria, e a Paixão, como um fato da salvação, tor­
seja, está à altura disso. Com o poderia qual­ naram-se inteligíveis. Somente quando conhe­
quer homem, um simples homem, fazer tanto? ceram Jesus como o Senhor celestial do
Essa é a questão. Estamos falando de um presente, entenderam-se como aqueles que
homem ou de Deus? Os cristãos admitem teriam o seu quinhão no Reino messiânico
que, se Jesus fosse apenas um homem, inde­ como homens do novo, da Era messiânica.
pendente do quão notável fosse, não poderia ( B r u n n e r , 1950, p . 339)
ser nosso Salvador, sendo também imprová­
vel que tivesse realizado as muitas coisas so­ Diante disso, quero, com o ensinamento
brenaturais atribuídas a Ele. desses homens, dar início à análise da pessoa
P or outro lado, se Jesus não é somente um de Jesus Cristo, isto é, buscando compreen­
homem, mas é também Deus, então, nada lhe der os ensinamentos da própria Bíblia.
é impossível, e Ele, de fato, conquistou nossa
salvação. Deus não mente e, por isso, cumpri­ O e n s in o d e P a u l o ___________________________

rá tudo o que prometeu. A divindade de Cris­ Comecemos com os escritos do apóstolo


to é, portanto, a questão-chave sobre Ele. Paulo, que, além do próprio Jesus Cristo, foi
Isso não significa que devemos aproxi- inquestionavelmente o maior mestre e teólo­
mar-nos de Jesus de uma forma mística. Pelo go da Igreja primitiva.
contrário, temos de vê-lo primeiro como um Por não ter sido um dos 12 primeiros
homem que, dentro de um contexto históri­ apóstolos, não é possível suspeitar que a opi­
co, de fato, disse e fez coisas extraordinárias. nião de Paulo possa ter sido influenciada pelo
Contudo, mesmo nesse contexto, nunca ire­ afeto pessoal que os demais discípulos tinham
mos compreendê-lo até que reconheçamos pelo Mestre. Em vez disso, ele começou como
um inimigo de Cristo e da Igreja, a qual, em
f primeira é o termo grego morphe, encontrado
sua juventude, diligentemente tentou destruir na expressão em form a de Deus. Em portu­
(At 8.1-3). guês, a palavra form a, geralmente, refere-se à
Além disso, sua oposição era cuidadosa­ forma externa de um objeto, a algo exterior.
mente fundamentada. Paulo, um judeu pie­ N a Bíblia, esse é um significado que ocorre na
doso e sério, fazia uma abordagem da religião descrição de Paulo daqueles que têm uma fo r­
sob a premissa: da unidade de Deus, uma vez ma de religião, mas negam sua eficácia pelo
que ele era monoteísta e achava que a alega­ seu modo de proceder (2 Tm 3.5). N o entan­
ção da divindade de Cristo pelos cristãos tra- to, esse é um significado menos comum.
tava-se de pura blasfêmia. O utro uso do termo sugere a ideia bíblica
De fato, se um homem como ele chegou a dominante. Às vezes, dizemos “estou em boa
converter-se, foi porque tinha base em uma forma hoje” e, com isso, queremos falar não
experiência religiosa profunda e evidências somente de uma aparência externa, mas tam­
muito bem respaldadas. bém de boa condição física. Isso é o que Pau­
U m a passagem importante em que Paulo lo tinha em mente, de modo mais fundamen­
revela sua compreensão de Jesus é Filipenses tal, quando escreveu sobre Jesus em Seu estado
2.5-11: pré-encarnado. O apóstolo quis dizer que,
como um comentarista já parafraseou: “Ele
D e sorte que haja em vós o mesmo senti­ [Cristo] possuía, em Seu interior, e demonstra­
mento que houve também em Cristo Jesus, va, em Seu exterior, a mesma natureza do pró­
que, sendo em form a de Deus, não teve prio Deus” ( M o t y e r , 1966, p. 74).
p or usurpação ser igual a Deus. Mas ani- A segunda palavra ainda mais importante
quilou-se a si mesmo, tomando a form a de é isos, a qual significa igual. Com base nesse
servo, fazendo-se semelhante aos homens; significado, formaram-se, em português, os
e, achado na form a de homem, humilhou- termos científicos isômero, isomorfo, isomé-
s e a si mesmo, sendo obediente até à mor­ trico e isósceles.
te e morte de cruz. Pelo que também Deus U m isômero é uma molécula que tem uma
o exaltou soberanamente e lhe deu um estrutura ligeiramente diferente de outra mo­
nom e que é sobre todo o nome, para que lécula (com o uma imagem espelhada dela),
ao nom e de Jesus se dobre todo joelho dos mas idêntica à outra em sua composição quí­
que estão nos céus, e na terra, e debaixo da mica. U m isomorfo é algo que tem a mesma
terra, e toda língua confesse que Jesus forma de outra coisa; isométrico significa na
Cristo é o Senhor, para glória de D eus Pai. mesma medida, e um triângulo isósceles pos­
sui dois lados iguais. Assim, quando, para re-
Nesse breve trecho, o apóstolo traça a vida ferir-se a Cristo, Paulo usou a palavra isos,
de Cristo desde a eternidade, quando Ele ain­ que, na Língua Portuguesa, deu origem ao
da não havia encarnado e tinha todos os mes­ prefixo presente nos termos citados, ele visa­
mos atributos de Deus. Em seguida, mencio­ va ensinar que Cristo é igual a Deus.
na a realidade de Sua vida terrena. Depois, Além disso, essa é a maneira pela qual a
fala do futuro, novamente no plano eterno, passagem bíblica evoluiu como um todo.
quando Cristo é glorificado pelo Pai. Após ter descrito com o Jesus se despojou de
Ao falar da posição que Jesus desfrutava Sua antiga glória, a fim de tornar-se homem e
com o Pai na eternidade, Paulo usou duas pa­ m orrer p or nós, o apóstolo continuou a
lavras que merecem um estudo cuidadoso. A m ostrar com o o Filho de Deus recebeu a
glória de volta, observando que, agora, Ele Essas asserções nos dão a convicção mais plena
deve ser confessado com o Senhor por toda a possível de que Jesus é homem, em Sua nature­
criatura racional no universo de Deus. za, em circunstâncias e experiências, e, em par­
N a última seção, o nom e que é sobre todo ticular, na esfera do relacionamento com Deus,
o nome é o de Deus, o Senhor. Nenhum outro o Pai. Além disso, também nos asseguram - no
além deste pode ser considerado assim. A mesmo tom e de um modo igualmente vital ao
passagem flui para a confissão que, implícita argumento disponível - de que Ele é tanto di­
na afirmação Jesus Cristo é o Senhor, significa vino assim como humano. ( M o u l e , p. 97)
que Jesus é Deus.
A paráfrase de Paulo — para que ao nome As várias partes da doutrina de Paulo so­
de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos bre Cristo estão declaradas nessa passagem de
céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda língua maneira incomum e, por isso, nós a analisa­
confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória mos um pouco a fundo. Entretanto, não de­
de Deus Pai — é uma sutil alusão a Isaías 45.23b, vemos concluir que a carta aos Filipenses é a
trecho no qual Deus se declarou como único única a mencionar tais temas, visto que, em­
objeto de adoração: Diante de mim se dobrará bora menos elaborados, eles ocorrem de for­
todo joelho, e por mim jurará toda língua. ma muito semelhante em todos os escritos do
O s versículos de Filipenses 2.5-11 são no­ apóstolo em questão.
táveis por sua profunda teologia em relação a Duas passagens apontam para a glória de
Jesus, pois sobrepujam todas as confissões Cristo desde a eternidade: 2 Coríntios 8.9 e
menores sobre Ele, mostrando que qualquer Gálatas 4.4,5.
um que afirme que Cristo foi apenas mais um N a primeira, o apóstolo falou sobre Jesus
dos grandes mestres ou profetas está equivo­ Cristo, que, sendo rico, p o r am or de vós se fe z
cado. Tais textos também se destacam porque pobre, para que nós, pela sua pobreza, enri­
sua doutrina acerca do Filho de Deus é indi­ quecêssemos.
reta, sendo apresentada não em prol de si N a segunda, por sua vez, Paulo escreveu:
mesma, mas inteiramente em favor da defesa
de outras questões. O argumento maior de Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus
Paulo não é a identidade de Jesus, mas, sim, o enviou seu Filho, nascido de mulher, nasci­
fato de que devemos ser como Ele. do sob a lei, para rem ir os que estavam
O bispo e comentarista inglês Handley debaixo da lei, a fim de recebermos a ado­
C . G. Moule, sobre esse tema, escreveu em ção de filhos.
Philippian studies:
Em ambos os casos, o autor estava pen­
Temos aqui uma série de afirmações sobre nos­ sando em uma glória anterior de Cristo, tem­
so Senhor Jesus Cristo, feitas em Jerusalém no porariamente deixada de lado, a fim de que
espaço de 30 anos após Sua morte, nos dias Ele pudesse realizar a nossa redenção.
abertos ao intercurso público cristão. Como A estrutura de todas as passagens nas
todo leitor deve perceber, essas afirmações não quais, de certa forma, é mencionado o fato de
foram feitas de maneira controversa, nem se Deus ter enviado Seu próprio Filho é idêntica
posicionam contra dificuldades e negações. (compare com Rm 8.23; 1 C o 15.47; E f 4.8-10).
Em vez disso, podemos dizer que elas se deram D a mesma forma, em Colossenses 1.19
em um tom de uma certeza estabelecida, co­ está escrito que fo i do agrado do Pai que toda
mum e muito viva. a plenitude nele habitasse.
Em Colossenses 2.9 lemos: Porque nele homem], p or causa da paixão da morte,
habita corporalmente toda a plenitude da para que, pela graça de Deus, provasse a
divindade. morte p or todos.
Em 1 Timóteo 3.16, Paulo falou da divin­ Hebreus 2.9
dade de Jesus, o qual se manifestou em carne,
e referiu-se à aparição dele na terra com o uma Em outras passagens dessa mesma carta,
epifania (2 Tm 1.10, no texto em grego). Jesus foi descrito como alguém que reflete a
N o entanto, a mais dramática de todas as glória de Deus, a expressa imagem da sua pes­
citações foi a que ele usou em Tito 2.11-13: soa (Hb 1.3), santo, inocente, imaculado, se­
parado dos pecadores e feito mais sublime do
Porque a graça de D eus se há manifestado, que os céus (Hb 7.26) e a quem será dada gló­
trazendo salvação a todos os homens, ensi­ ria para todo o sempre (Hb 13.21).
nando-nos que, renunciando à impiedade
e às concupiscências mundanas, vivamos O e n s in o d e J oão_____________________
neste presente século sóbria, justa e pia­ N os livros tradicionalmente atribuídos
mente, aguardando a bem-aventurada ao apóstolo João, em especial no quarto
esperança e o aparecimento da glória do Evangelho, a divindade de Cristo é um tema
grande D eus e nosso Senhor Jesus Cristo. dominante.
O propósito do Evangelho de Marcos - se
Benjamim B. Warfield, falecido professor de é que ele pode ser resumido - foi revelar Jesus
teologia do Seminário Teológico de Princeton, como servo de Deus. Mateus, por sua vez,
afirmou que “a concepção da pessoa de Cristo, retratou-o como o Messias judeu, enquanto
que encontra expressão na epístola aos H e­ Lucas ressaltou Sua humanidade, mas, em
breus, é indistinguível da que governa todas João, Jesus foi revelado como o eterno e pree­
as alusões ao nosso Senhor nas epístolas de xistente Filho de Deus, que, tornando-se ho­
Paulo” ( W a r f i e l d , 1970, p. 47). mem, revelou o Pai a nós, trazendo-nos vida
O segundo capítulo de Hebreus, assim eterna por meio de Sua morte e ressurreição.
como Filipenses 2.5-11, tem com o base a pre­ De fato, no final do Evangelho, João nos
missa da preexistência e da plena divindade de disse, explicitamente, que esse é seu propósito:
Cristo. Seu ponto mais importante é que
Cristo, movendo-se de Sua anterior posição Jesus, pois, operou também, em presença
de glória, encarnou e veio ao mundo para nos de seus discípulos, muitos outros sinais, que
salvar, estando, agora, plenamente glorificado não estão escritos neste livro. Estes, porém,
mais uma vez: foram escritos para que creiais que Jesus é
o Cristo, o Filho de Deus, epara que, cren­
Tu o fizeste um pouco m enor do que os an­ do, tenhais vida em seu nome.
jos, de glória e de honra o coroaste e o cons- João 20.30,31
tituíste sobre as obras de tuas mãos. Todas
as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés. Sabendo disso, não foi à toa que João des­
Hebreus 2.7,8a tacou, bem no início de seu Evangelho, que
Jesus é Deus: N o princípio, era o Verbo, e o
Vemos, porém , coroado de glória e de hon­ Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
ra aquele Jesus que fora feito um pouco Ele estava no princípio com D eus (Jo 1.1,2).
m enor do que os anjos [que é, foi feito Embora, somente no versículo 14 desse texto,
tomemos conhecimento de que o Verbo ao se expressou por meio da doutrina da divisão
qual João se referira é Jesus, fica claro que de pessoas dentro da Trindade.
Cristo estava com Deus desde o início, isto é, Assim, embora o apóstolo tenha dito que
desde a eternidade, o que, de fato, comprova Cristo é Deus, fato confirmado quando, mais
Sua divindade. adiante, Jesus afirmou que quem o vê vê
Assim, as frases de abertura desse Evange­ também o Pai (Jo 14.9), ele também estava
lho são afirmações categóricas da divindade consciente de que há uma diversidade dentro
de Cristo, dentre as quais destacamos três da Trindade, o que demonstrou afirmando
distintas, sendo que uma delas aparece mais que o Verbo não somente era D eus, mas es­
de uma vez, em uma linguagem ligeiramente tava com Ele.
diferente. A terceira declaração é a de que Jesus é
E m um primeiro momento, João disse totalmente divino, a qual é corroborada de
que, no princípio, Jesus já existia com Deus. maneira literal pelos originais do texto em
Essa expressão é usada de várias maneiras na grego. Tudo o que pode ser dito sobre o Pai
Bíblia. Em 1 João, ela foi utilizada em refe­ também pode ser dito sobre o Filho. Deus é
rência ao ministério terreno de Cristo: soberano? Jesus o é. É onisciente? Jesus o é. E
onipresente? Jesus também o é. N a verdade,
O que era desde o princípio, o que vimos em Cristo podemos encontrar sabedoria, gló­
com os nossos olhos, o que temos contem­ ria, poder, amor, santidade, justiça, benigni-
plado, e as nossas mãos tocaram da Pala­ dade e a verdade divina.
vra da vida, [...] isso vos anunciamos, para Em certo sentido, tudo no Evangelho de
que também tenhais comunhão conosco; e João demonstra que Jesus é Deus. João orga­
a nossa comunhão é com o Pai e com seu nizou o texto da mesma forma que um aluno
Filho Jesus Cristo. estrutura um trabalho de conclusão de curso.
1 João 1.1-3 Primeiro, disse o que queria provar; depois,
provou, e, finalmente, resumiu o trabalho co ­
E m Gênesis, ela apareceu no início da mo se fosse dizer ao leitor: “Veja, fiz o que
criação: N o princípio, criou D eus os céus e a disse que faria”. Por causa disso, tudo nesse
terra (Gn 1.1). Contudo, no Evangelho de Evangelho deve ser levado em conta em nos­
João, o significado dessa expressão é muito so estudo: os milagres, os discursos, a reação
mais abrangente, visto que o apóstolo se refe­ dos inimigos e amigos de Cristo e, até mes­
riu à eternidade, dizendo, na verdade, que mo, os próprios comentários de João.
quando uma pessoa começa a falar sobre Je ­ Entretanto, em vez de fazer isso de modo
sus só pode fazê-lo adequadamente ao voltar completo, vale a pena tomar um único texto
ao passado, levando seu pensamento além da como indicativo da orientação geral de João.
vida terrena de Cristo, até chegar ao primeiro Esse trecho mostra, inquestionavelmente,
momento da criação, na eternidade, pois era que o conceito do apóstolo sobre Jesus Cristo
lá que Ele estava. Nessa perspectiva, João se era o mais alto que se possa imaginar. Trata-se
alinhou com o ensino de Paulo em Filipenses, do capítulo 12, versículo 41, no qual, após ter-
bem como com os escritos de Flebreus. -se referido à visão que Isaías teve de Deus em
A segunda declaração, no primeiro capí­ Isaías 6, João declarou: Isaías disse isso quan­
tulo de João, é a de que Jesus Cristo estava do viu a sua glória e falou dele.
com Deus. Essa é uma afirmação sutil sobre a Para as pessoas da atualidade, em particu­
personalidade individual de Cristo, já que Ele lar os cristãos, essa referência pode parecer
natural, pois estamos acostumados a declara­ indireta de divindade, e Seu primeiro sermão
ções teológicas que conferem plena divindade foi um exemplo claro disso.
a Cristo, mas aquilo não era nem um pouco Ao declarar a chegada iminente do Reino
natural para João, um judeu monoteísta, e de Deus, João Batista apontou para Aquele
menos ainda para seus contemporâneos. que iria incorporá-lo, e, quando o Salvador
Segundo o ponto de vista de um judeu da­ veio, Seu primeiro sermão foi um anúncio da
quela época, o Senhor era quase inacessível chegada desse Reino: O tempo está cumprido,
em Sua transcendência, pois era o único Deus e o Reino de D eus está próximo. Arrependei-
de Israel e vivia em glória inatingível. N in­ -vos e crede no evangelho (M c 1.15).
guém nunca o havia visto de verdade e, mes­ Mais adiante, ao falar com os fariseus, Je ­
mo quando, em inusitadas ocasiões, algumas sus afirmou acerca de si mesmo: Porque eis
pessoas privilegiadas, como Moisés ou Isaías, que o Reino de D eus está entre vós (Lc
afirmaram ter visto Sua glória, era-lhes difícil 17.21b). Jesus dizia que as profecias do A n ­
vislumbrar isso. Contudo, apesar de dizerem tigo Testamento eram a Seu respeito, tendo
que tal visão tinha sido, na verdade, apenas sido cumpridas nele. Todas as palavras de
uma imagem ou um reflexo do Altíssimo, por C risto sobre o Antigo Testamento entram
causa dela eles se encheram de temor e tremor. nessa categoria, sendo o resumo de Seu en­
Dessa forma, o que Isaías viu foi algo mais sino: Não cuideis qu e vim destruir a lei ou
parecido como um “retrato” verdadeiro do os profetas; não vim ab-rogar, mas cum prir
Deus vivo e santo, e foi essa visão de tirar o (M t 5.17).
fôlego que João aplicou a Jesus. Sem dúvida, Quando o Mestre convidou homens para
o conceito de João a respeito de Cristo era tão segui-lo (M t 4.19), Sua intenção foi dizer que
alto que nos dá a impressão de que o apóstolo Ele era suficientemente digno de ser segui­
se apropriou da visão mais exaltada de Deus, do. A o perdoar pecados, Jesus sabia que
descrita no Antigo Testamento, e afirmou estava realizando o que somente Deus p o ­
que esta retratava, também, um carpinteiro de dia fazer (M c 2 .1 -1 2 ). A o fim de Sua vida,
Nazaré, o qual seria crucificado. Ele prom eteu enviar o Espírito Santo para
estar com Seus discípulos após Sua partida,
As declaraçõ es d e C r is t o _________________
o que, novamente, envolvia a questão da
De onde aqueles homens - que, apesar de divindade.
estarem obviamente impressionados com Algo digno de ser comentado entre as de­
Cristo, não eram tolos - tiraram tão alto con­ clarações de Cristo é Sua singular referência a
ceito sobre Ele? P or que acreditaram que Deus com o Seu Pai. Isso não era, de forma
Jesus era Deus? alguma, um modo comum de expressão no
A resposta para essas perguntas se encon­ judaísmo (com o o é no cristianismo hoje),
tra em dois níveis. Primeiro, porque isso era o pois nenhum judeu jamais trataria o Senhor
que o próprio Cristo ensinava; segundo, por­ diretamente dessa maneira. Contudo, era essa
que suas observações pessoais referentes à a forma de invocação que Jesus utilizava, em
vida do Filho de Deus não permitiam outra particular em Suas orações.
explicação que fizesse sentido. N a verdade, essa era a única forma de
As próprias declarações de Cristo, feitas ao Cristo invocar a Deus, a qual tinha a ver, ex­
longo dos Evangelhos, corroboram Sua divin­ clusivamente, com Seu relacionamento com o
dade, tanto direta como indiretamente. Quase Pai. Jesus disse: Eu e o Pai somos um (Jo
tudo o que Jesus disse era uma declaração 10.30). Afirmou também:
Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, diretamente, sendo, na época, consideradas
para que também o teu Filho te glorifique blasfêmia e, portanto, punidas com a morte.
a ti. [...] Pai justo, o m undo não te conhe­ Para evitar uma morte rápida e prematura,
ceu; mas eu te conheci, e estes conheceram Jesus teve de ser cauteloso no que dizia e a
que tu m e enviaste a mim. quem dizia, mas, mesmo assim, fez algumas
João 17.1,25 afirmações diretas. N o capítulo oito de João,
por exemplo, os líderes do povo haviam
Com o resultado do relacionamento de Je­ questionado tudo o que Jesus dissera e, agora,
sus com Seus discípulos, Ele os ensinou a in­ duvidavam de Sua declaração de que Abraão
vocar o Senhor com o Pai também. Todavia, havia exultado por saber que veria o dia de
mesmo nesse caso, Sua relação com Deus era Cristo.
diferente, por isso Ele falou a Maria Madale­ Diante disso, eles disseram: A inda não
na: Vai para meus irmãos e dize-lhes que eu tens cinqüenta anos e viste A braão? (Jo 8.57).
subo para m eu Pai e vosso Pai, m eu Deus e Jesus, então, respondeu: E m verdade, em ver­
vosso D eus 0 o 20.17). N ão foi à toa que Ele dade vos digo que, antes que Abraão existisse,
não disse a nosso Pai ou para nosso Pai. eu sou (Jo 8.57,58). Isso enfureceu tanto os
Sobre esse assunto, Joh n Stott afirmou: líderes que eles, imediatamente, ameaçaram
apedrejar Jesus.
A ligação de Jesus com Deus era tão íntima De acordo com nosso modo de pensar, é
que, segundo Ele, tudo o que fizessem com um pouco difícil entender por que essa afirma­
Ele estariam fazendo, também, com o Pai. ção, em particular, gerou uma reação tão vio­
Assim sendo, conhecê-lo era conhecer a lenta. O apedrejamento era a penalidade desti­
Deus (Jo 8.19; 14.7); vê-lo era ver a Deus (Jo nada a pessoas que, blasfemando, demonstras­
12.45; 14.19); crer nele era crer em Deus (Jo sem querer ser adoradas como Deus. Contudo,
12.44; 14.1); recebê-lo era receber Deus (Mc de que forma alguém podia perceber isso nas
9 .3 7 ); odiá-lo era odiar Deus (Jo 15.23), e palavras de Jesus? Ora, pelo próprio fato de
honrá-lo era honrar a Deus (Jo 5 .23). (S t o t t , Ele alegar existir antes de Abraão nascer.
1958, p. 26) É óbvio que, pelo tempo verbal, Ele estava
declarando uma preexistência eterna, mas so­
É importante dedicar uma atenção espe­ mente isso não seria motivo suficiente para o
cial aos momentos em que Jesus usou a ex­ apedrejamento. A real razão para essa reação
pressão E u sou, visto que Ele declarou ser violenta foi que, ao dizer E u sou, Jesus usou o
tudo o que os seres humanos precisam para N om e divino pelo qual Deus se havia revela­
ter uma vida espiritual plena. Somente Deus do a Moisés na sarça ardente:
poderia fazer tais declarações de modo per­
tinente: E u sou o pão da vida (Jo 6.35); Eu Então, disse Moisés a Deus: Eis que quan­
sou a luz do m undo (Jo 8.12; 9.5); E u sou a do vier aos filhos de Israel e lhes disser: O
porta das ovelhas (Jo 10.7-9); E u sou o bom D eus de vossos pais m e enviou a vós; e
Pastor (Jo 10.11,14); E u sou a ressurreição e a eles m e disserem: Q ual é o seu nom et
vida (Jo 11.25); Eu sou o caminho, e a verda­ Q ue lhes direi? E disse D eus a Moisés:
de, e a vida (Jo 14.6); E u sou a videira verda­ E U S O U O Q U E SO U . Disse mais: A s­
deira (Jo 15.1,5). sim dirás aos filhos de Israel: E U S O U m e
Além dessas afirmações indiretas, certas de­ enviou a vós.
clarações de Cristo reivindicavam a divindade
Esse é o N om e que Jesus tomou para si e, homem, ou então é, na melhor das hipóteses,
por causa disso, ao reconhecerem sua origem, um lunático, e, na pior, um impostor. Então,
os judeus tentaram matá-lo. o que devemos fazer com Suas declarações?
U m exemplo final da singular visão que N ão podemos escapar delas. Sobre isso, John
Cristo demonstrou ter de si mesmo ocorreu R. W. Stott escreveu:
pouco depois da ressurreição, no dia em que,
estando Tomé presente, Ele apareceu outra As afirmações que estão aí, por si só, não cons­
vez aos discípulos. tituem evidências a respeito da divindade de
Diante da incredulidade deste, registrada Cristo. Suas declarações poderiam ter sido fal­
no versículo 25 do capítulo 20 do Evangelho sas, mas é preciso que encontremos nelas algu­
de João, Jesus apareceu mais uma vez, pedin­ ma explicação. Não podemos considerar Jesus
do-lhe que fizesse o teste para comprovar que um grande mestre se Ele estivesse tão grave­
Sua ressurreição havia mesmo acontecido: mente equivocado sobre Seu principal ensina­
Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; che­ mento, que vem a ser sobre Ele mesmo. (S t o t t ,
ga a tua mão epõe-na no m eu lado (Jo 20.27). 1958, p. 32)
Emocionado pela presença de Cristo, To­
mé, imediatamente, caiu ao chão e o louvou, C. S. Lewis havia dito algo semelhante:
dizendo: Senhor meu, e Deus m eu! (Jo 20.28).
Apesar de o discípulo em questão ter usado a Faça a sua escolha. Ou esse homem era, e é, o
expressão Adonai Elohim, que designa Senhor Filho de Deus, ou não passa de um louco ou
e Deus, Jesus não o corrigiu e aceitou a sauda­ coisa pior. Você pode querer calá-lo por ser um
ção, o que prova que, de fato, Ele se via assim. louco, pode cuspir nele e matá-lo como se fos­
se um demônio; ou pode prosternar-se aos
Um h o m em bo m , um lo u c o ,
Seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas
UM IM PO STO R OU O F lL H O D O H O M EM ?
que ninguém venha, com paternal condescen­
Ao investigarmos as declarações sobre a dência, dizer que Ele não passava de um grande
divindade de Cristo nos escritos do apóstolo mestre humano. Ele não nos deixou essa op­
Paulo, no livro de Hebreus, no Evangelho de ção, e não quis deixá-la. ( L e w i s , 1958, p. 41)
João e nos ensinamentos do próprio Cristo, é
possível que nos perguntemos: “Dá para acre­ Em outras palavras, não é possível aceitar
ditar nisso? E possível crer no fato de que um que Jesus, embora não fosse o Filho de Deus,
carpinteiro de Nazaré, por mais extraordiná­ como dizia ser, tenha sido um bom homem e
rio que fosse, pudesse ser, de fato, Deus?”. um mestre extraordinário que devemos levar
Um a resposta verdadeiramente incoerente em consideração. C. S. Lewis, na citação
foi dada, primeiro, pelo povo de Jerusalém. mencionada, deixou claro que, no que se refe­
Em bora não cressem que Jesus era quem afir­ re ao caráter de Cristo, só podemos ter três
mava ser, em certa ocasião algumas pessoas pontos de vista coerentes.
disseram que Ele era bom (Jo 7.12). Essa afir­ Segundo o primeiro ponto de vista, se Je­
mação não é plausível porque nenhum ho­ sus não era, de fato, quem afirmara ser, Ele
mem de caráter afirmaria ser o Salvador da era um louco, ou sofria de megalomania. Essa
humanidade sabendo que não era verdade. era a visão de alguns de Sua época, os quais
Assim, ou Jesus é mesmo o Messias en­ diziam: Tens demônio (Jo 7.20). Hitler, e pro­
viado por Deus, com o afirmava ser, o que, vavelmente Napoleão, sofriam desse mal. Je ­
por conseguinte, faz dele mais que um bom sus também sofreria?
Antes de tirarmos conclusões apressadas, ou mesmo de semideuses era aceitável. Ela foi
precisamos perguntar-nos se o caráter de Je ­ feita no coração do judaísmo monoteísta.
sus com o um todo, de acordo com o que co ­ Os judeus eram ridicularizados e, às ve­
nhecemos, sustenta essa especulação. N a ver­ zes, perseguidos por sua crença rígida em um
dade, ao lermos os Evangelhos, a conclusão só Deus. N o entanto, agarravam-se a essa
parece fazer-nos crer que, em vez de louco, doutrina e eram fanáticos em sua defesa. Em
Cristo era, na verdade, o homem mais são meio a esse clima teológico, Cristo fez Suas
que já viveu. Ele falava com serena autorida­ declarações, e o que aconteceu? O mais in­
de, sempre parecia estar no controle da situ­ crível é que Ele conseguiu que pessoas de
ação e nunca ficou surpreso nem agitado. todos os níveis sociais e intelectuais cressem
Portanto, Cristo não se enquadra nessa sim­ nele, dentre as quais encontramos muitos
plória classificação. homens e mulheres, simples e sofisticados,
Essa é uma das razões que tornam Jesus sacerdotes e, mais tarde, até membros de Sua
uma pessoa tão fascinante. Talvez por isso própria família.
Charles Lamb tenha dito: “Se Shakespeare en­ Por outro lado, se Jesus fosse um impos­
trasse nessa sala, todos nós nos levantaríamos tor, se não fosse Deus, Ele poderia ter sido
para conhecê-lo, mas, se essa pessoa (Jesus) considerado um demônio. Pense bem nisso.
entrasse aqui, todos nós nos prostraríamos e Jesus não disse apenas “Eu sou Deus”, mas,
tentaríamos beijar a borda de Suas vestes”. sim, “Eu sou o Deus que veio salvar a huma­
O utra razão pela qual Cristo não poderia nidade perdida; sou o meio de salvação, con­
ter sido um louco é a reação dos outros no fie a mim sua vida e seu futuro”.
que se refere a Ele. Enquanto alguns apenas o O Filho de Deus ensinou que o Senhor é
suportavam, certas pessoas o defendiam até a santo e que nós, por não sermos santos como
morte, largando tudo para segui-lo, e outras Ele, estamos banidos de Sua presença. Nosso
se posicionavam violentamente contra Ele. pecado é uma barreira entre nós e Deus. Além
Essa não é a postura que adotamos diante de disso, Cristo afirmou que morreria por nos­
alguém que perdeu a sanidade. Podemos ficar sos pecados, suportando o castigo em nosso
irritados com o comportamento irracional de lugar. Ele garantiu que todos que confiassem
um louco, podemos ignorá-lo e trancafiá-lo nele seriam salvos. Essa seria uma boa notícia,
se suas alucinações forem perigosas, mas, di­ uma notícia maravilhosa mesmo, mas só se
ficilmente, ele poderia dar-nos motivos sufi­ fosse verdade, porque, se não fosse, os segui­
cientes para matá-lo. Contudo, foi isso o que dores de Cristo seriam os seres humanos mais
os homens fizeram a Jesus. infelizes da terra, e Ele seria odiado como um
U m a segunda possibilidade é que Cristo, demônio do inferno.
na visão de alguns, era um impostor (Jo 7.12), Se Jesus não fosse quem afirmava ser, po­
isto é, Ele tencionava enganar o povo delibe­ deríamos culpá-lo por enviar gerações de se­
radamente. Antes de estabelecermos uma res­ guidores ingênuos para uma eternidade sem
posta, entretanto, precisamos entender de esperança. Seria Ele um enganador? Seria essa
modo claro o que está envolvido nisso. Em explicação justa para referir-se Àquele que
primeiro lugar, se Jesus realmente fosse um ficou conhecido com o manso e suave, e que
enganador, seria, certamente, o melhor que já se tornou um pobre evangelista itinerante, a
viveu. Cristo afirmava ser Deus, mas essa ale­ fim de salvar os pobres e ensinar àqueles que
gação não foi feita em ambientes gregos ou eram desprezados pelos outros, dedicando-se
romanos, nos quais a ideia de muitos deuses ao ponto de dizer: Vinde a mim, todos os que

asg
estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei m á-lo de impostor. Então, qual seria uma
(Mt 11.28)? teoria coerente? Se Ele não era enganador
De alguma forma, as peças não se encai­ nem louco, só resta uma possibilidade: Je ­
xam. N ão podemos analisar os fatos da vida sus é quem Ele disse ser - Ele é D eus, e de­
e os ensinos de C risto e, ainda assim, cha- vemos segui-lo.
A HUMANIDADE DE CRISTO

mbora alguns hoje, com o em todas nasceu, mas, com o Filho de Deus, Ele nos foi
as épocas, neguem a divindade de dado. A mesma distinção ocorreu nos escri­
Cristo, também existem aqueles tos de Paulo:
que a afirmam com tanta veemên­
cia que acabam ignorando Seu lado humano, Acerca de seu Filho, que nasceu da descen­
o que também é um erro. dência de D avi segundo a carne, declarado
N ão podemos ignorar que Jesus, além de Filho de D eus em poder, segundo o Espíri­
divino, também era totalmente humano, aspec­ to de santificação, pela ressurreição dos
to tão importante como o outro. Entretanto, mortos, Jesus Cristo, nosso Senhor.
embora Cristo seja Deus desde a eternidade, o Romanos 1.3,4
mesmo não é verdade com respeito à Sua huma­
nidade: Ele se tornou homem, em um momento De acordo com a genealogia humana, Jesus
particular da história, ao encarnar. Contudo, [ao era descendente de Davi, mas, [pela genealogia
ascender aos céus e ser glorificado, reassumindo divina], Ele é designado Filho de Deus:
Seu lugar junto ao Pai] Ele levou consigo Sua
natureza humana, tornando-se Deus-homem, o Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus
único em quem devemos buscar a salvação. enviou seu Filho, nascido de mulher, nasci­
N a Bíblia, essa verdade aparece em várias do sob a lei, para rem ir os que estavam
passagens, mesmo no Antigo Testamento. debaixo da lei, a fim de recebermos a ado­
Por exemplo, na profecia de Isaías, lida tão ção de filhos.
frequentemente na época do Natal, foi descri­ Gálatas 4.4,5
ta a dupla natureza da vinda de Cristo:
Jesus Cristo sempre foi [e ainda é] o Filho
Porque um menino nos nasceu, um filho se de Deus; no entanto, foi nascido de mulher,
nos deu; e o principado está sobre os seus sob a Lei, e, assim, tornou-se homem.
ombros; e o seu nom e sem Maravilhoso N a Bíblia, a plena divindade e a plena hu­
Conselheiro, D eus Forte, Pai da Eternida­ manidade de Cristo sempre aparecem juntas,
de, Príncipe da Paz. muitas vezes em ilustrações feitas por meio
Isaías 9.6 dos vários eventos no ministério dele.
Por exemplo, no segundo capítulo do
Nesse trecho, há dois verbos importantes: Evangelho de João, o Senhor se encontrava em
nasceu e deu. Com o qualquer criança, Ele um casamento (Jo 2.1-11). Poucas situações
poderiam ser mais humanas do que essa. A heresia da negação da divindade de
Contudo, quando o vinho acabou, deixando Cristo é conhecida como arianismo. Essa teo­
o anfitrião em via de ser envergonhado, Jesus ria, desenvolvida por um padre da Alexandria
transformou água em vinho novo, sendo este, chamado Ário, morto em 335, questionava a
inclusive, de melhor qualidade, o qual foi co ­ divindade de Cristo, visto que, para ele, Jesus
locado nas grandes talhas de pedra usadas e o Espírito Santo foram apenas instrumentos
para as purificações judaicas. usados por Deus, criados para que se cum­
N o capítulo oito de Mateus foi narrada prisse o propósito da redenção. Em outras
outra ocasião na qual percebemos a união dos palavras, segundo essa doutrina, somente
aspectos divino e humano de Jesus. A o ler- Deus é eterno, e, para Á rio, nem sempre
mos o trecho que vai do versículo 23 ao 27, Jesus e o Espírito Santo existiram.
vemos que, enquanto os discípulos de C a- N egar a divindade e a humanidade de Je­
farnaum estavam atravessando o mar da Ga- sus são erros igualmente graves. O segundo
lileia rumo à terra dos gadarenos, Jesus, caso também constitui uma heresia, que teve
exausto após um dia de trabalho, dormia na origem a partir do movimento conhecido co­
embarcação. mo gnosticismo. Essa doutrina, conhecida
N o meio do caminho, irrompeu-se uma como docetismo, foi, mais ou menos, contem­
tempestade tão intensa que até mesmo os pes­ porânea dos primeiros anos do cristianismo e
cadores mais experientes ficaram assustados. tinha duas características principais. A pri­
Estes, desesperados, acordaram Cristo dizen­ meira delas consistia no estabelecimento de
do: Senhor, salva-nos, que perecemos (Mt um princípio chamado de “supremacia do
8.25), o qual, por sua vez, prontamente acal­ intelecto e superioridade mental à fé e à con­
mou a tempestade. duta” (Ross, 1954, p. 115).
O que poderia ser mais humano do que a Os gnósticos, como mostra o próprio sig­
total exaustão de nosso Senhor no barco? O nificado da palavra, consideravam-se conhe­
que poderia ser mais divino do que acalmar cedores, e criam que a salvação ocorre, princi­
os ventos e as ondas? Os discípulos exclama­ palmente, por meio do conhecimento, isto é,
ram: Q ue hom em é este, que até os ventos e o por uma iniciação ao misticismo que eles ale­
mar lhe obedecem f (Mt 8.27). gavam compreender mais que as demais pes­
D a mesma forma, nada poderia ser mais soas. E claro que, em tal sistema, a encarnação
humano do que a morte de Jesus por crucifi­ literal do Filho de Deus não tinha significado.
cação, assim como nada poderia ser mais divi­ O importante era o conceito expresso pela
no do que o escurecer do céu, o rasgar do véu pessoa de Cristo ou as verdades anunciadas
do templo, a abertura dos túmulos dos santos por Ele.
enterrados próximos a Jerusalém e a triunfan­ Um a segunda característica do sistema
te remoção da pedra do túmulo naquela pri­ gnóstico era sua crença no abismo radical e
meira manhã de Páscoa. insuperável que existe entre espírito e maté­
ria, sendo, portanto, a natureza da matéria
A h e r e s ia g n ó s t ic a __________________________ totalmente ruim, e a do espírito absoluta­
Essas duas verdades nem sempre foram mente boa.
reconhecidas por todos ao longo da história Essa visão, que era compartilhada pela
da Igreja. Quase não há doutrinas no cristia­ maioria dos outros sistemas de pensamento
nismo que, em um dado momento, não te­ naquele período, por um lado levava a uma
nham sido negadas por alguém. negação da importância da vida moral, uma
vez que a salvação era considerada apenas no também tenhais comunhão conosco; e a
âmbito espiritual, o que significava que as nossa comunhão é com o Pai e com seu Fi­
coisas relacionadas à vida física não importa­ lho Jesus Cristo.
vam. Por outro lado, essa forma de pensar 1 João 1.1-3
produzia um tipo de religião filosófica, sepa­
rada da história concreta. Esses versículos se referem a três dos cin­
É óbvio que, diante disso, o gnosticismo co sentidos. Depois, João falou de um teste
entrou em conflito com o autêntico cristia­ capaz de definir o verdadeiro cristianismo:
nismo. De acordo com esse sistema, qualquer
encarnação real do Filho de Deus seria im­ Nisto conhecereis o Espírito de Deus: todo
possível. Se a matéria fosse má, então o Se­ espírito que confessa que Jesus Cristo veio
nhor não teria tido um corpo humano, e Sua em carne é de Deus; e todo espírito que não
encarnação teria sido aparente [e não real, confessa que Jesus Cristo veio em carne
como foi]. não é de Deus; mas este é o espírito do an-
A palavra docetismo vem do verbo grego ticristo, do qual já ouvistes que há de vir, e
dokeo, que significa aparecer. Em algumas eis que está já no mundo.
formas do suposto gnosticismo cristão, acre­ 1 João 4.2,3
ditava-se que o Espírito de Deus veio sobre
Jesus somente no momento de Seu batismo, Algum tempo depois, Marcion de Ponto,
permanecendo nele durante os anos de Seu que lecionou em Rom a por volta da metade
ministério e, depois, abandonando-o pouco do segundo século, também popularizou as
antes de Sua crucificação. Em outras palavras, visões docéticas. Ele era conhecido não só
Jesus apenas parecia humano, mas, na verda­ p or sua rejeição ao Antigo Testamento e a
de, não o era. Sendo assim, Ele não possuía, partes do N ovo, mas também por sua rejei­
de fato, um corpo material, o que, portanto, ção à materialidade do corpo de C risto, a
impossibilitava-o de morrer de verdade, e as­ qual era vista com o uma espécie de ameaça
sim por diante. para a Igreja.
Por ser anátema ao cristianismo, o doce­ O utra heresia popular na época da Igreja
tismo foi fortemente rejeitado. A primeira primitiva era o maniqueísmo, que teve uma
resposta a esta doutrina foi a do apóstolo forte influência no início da caminhada de
João, preservada, principalmente, em suas Agostinho. Ele incluía a crença de que o cor­
epístolas. Ele insistia na encarnação verdadei­ po de Cristo era composto de uma “matéria
ra do Filho de Deus tão intensamente que celestial”, mas não verdadeiramente material.
iniciou sua primeira epístola enfatizando sua Esses erros foram refutados consistentemente
própria experiência física referente a Jesus: em uma série de concílios.
N o Credo da Calcedônia (451 d.C .), de­
O que era desde o princípio, o que vimos clarou-se a respeito de Jesus Cristo:
com os nossos olhos, o que temos contem­
plado, e as nossas mãos tocaram da Pala­ [Jesus é] verdadeiramente divino e humano,
vra da vida (porque a vida fo i manifesta­ constando de alma racional e de corpo, con­
da, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos substanciai com o Pai, segundo a divindade, e
anunciamos a vida eterna, que estava, com consubstanciai a nós, segundo a humanidade;
o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e em tudo semelhante a nós, exceto pelo pecado;
ouvimos, isso vos anunciamos, para que divinamente gerado pelo Pai, antes de todos os
séculos, e nestes últimos dias, segundo a huma­ indiferente a elas. Outros valorizam o aspecto
nidade, para nossa salvação, nascido da virgem emocional a tal ponto que passam a agir como
Maria, único Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, se Jesus nem exigisse reverência de nossa par­
que se deve confessar em duas naturezas in­ te. A postura ideal a ser adotada no que se
confundíveis, imutáveis, indivisíveis, insepará­ refere a este assunto, apresentada no N ovo
veis. A distinção de naturezas de modo algum Testamento, está, de certa forma, entre esses
é anulada pela união [do divino com o huma­ dois extremos.
no], antes é preservada a propriedade de cada A emoção mais atribuída a Cristo é a com ­
natureza, concorrendo para formar uma só paixão, ou piedade, que representa Sua ex­
pessoa e em uma subsistência, não separado pressão de profundo amor quando confron­
nem dividido em duas pessoas, mas um só e o tado pela necessidade desesperada de homens
mesmo Filho, Unigênito, Verbo de Deus, o e mulheres que, por algum motivo, desvia-
Senhor Jesus Cristo. ram-se da presença de Deus.
Algumas vezes, essa emoção é provocada
N o Credo Atanasiano, atribuído a Ataná- pela necessidade física. Assim, em certa oca­
sio, grande defensor da ortodoxia do terceiro sião, quando se encontrou diante da fome de
século, provavelmente composto após o da uma grande multidão que o seguia, Jesus disse:
Calcedônia, está escrito, de maneira mais
simples: Tenho compaixão da multidão, porque há
já três dias que estão comigo e não têm o
Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo é tanto que comer. E, se os deixar ir em jejum para
Deus como homem [...] Perfeito Deus, perfeito casa, desfalecerão no caminho, porque al­
homem [...]. Embora seja Deus e homem, não é guns deles vieram de longe.
dois, mas um só Cristo. Não pela conversão da Marcos 8.2,3
Sua divindade em humanidade, mas por Sua
divindade haver assumido Sua humanidade. Sabemos que Cristo, movido de grande
compaixão, curou leprosos (Mc 1.41), cegos
Esses credos, bem como as Escrituras nas (Mt 20.34) e, também tocado por esse senti­
quais eles se baseiam, ensinam que Jesus, o mento, ressuscitou o filho da viúva de Naim
Filho de Deus, tornou-se como nós em todos (L c 7.13).
os aspectos (exceto com relação ao pecado), A necessidade espiritual também tocava
para que pudéssemos ser como Ele. o coração do Salvador. Lem os, inúmeras ve­
zes, que Ele se compadecera da multidão,
As EMOÇÕES DE C R IST O _____________________
porque via aquelas pessoas como ovelhas
N o ensaio intitulado On the Emotional qu e não têm pastor (M c 6.34; ver também
L ife o f O ur Lord [A vida emocional de nosso M t 9.36; 14.14).
Senhor], que consta no livro The Person and Houve momentos nos quais Jesus de­
Work o f Christ [A pessoa e a obra de Cristo], monstrou Suas emoções até mesmo com lá­
B. B. Warfield assinalou quejesus se asseme­ grimas, chegando a chorar por causa da incre­
lha a nós também no que tange ao nosso as­ dulidade obstinada da cidade de Jerusalém
pecto emocional. (L c 19.41) e da tristeza que se abateu sobre
H á pessoas, na igreja, que têm tentado Ele diante do túmulo de Lázaro (Jo 11.35).
separar seu relacionamento com Cristo de A menção às lágrimas de Cristo leva-nos a
todas as suas emoções, com o se Ele estivesse outra área da Sua vida emocional, a da dor,
que pode gerar, inclusive, indignação e raiva, acabou emitindo um grito involuntário, ar­
como vimos no caso da morte de Lázaro. Em rancado de Seu coração. Essa é a visão de J. B.
ocasiões como essa, utilizava-se uma palavra Phillips, que, acerca de Cristo, afirmou: “Ele
incomum, embrimaomai, tanto para dizer estava profundamente agitado e visivelmente
que Jesus estava com raiva do que estava perturbado”; é também a dos tradutores da
acontecendo com o para afirmar que Ele esta­ N ova Versão Internacional, que dizem: Jesus
va movido em espírito, perturbado. N o N ovo agitou-se no espírito e perturbou-se.
Testamento, ela é encontrada em apenas três Alguns cristãos consideram isso inaceitá­
passagens (Mt 9.30; M c 1.43; 14.5). Em duas vel, pois acham inapropriado Jesus perturbar-
delas, seu significado eqüivale a advertir seve­ -se de tal forma por causa da dor dos outros,
ramente e, na terceira, a repreender. mas como podemos ler essa passagem sem
Entretanto, apesar de, aparentemente, ne­ constatar que Jesus chorou com as irmãs de
nhum desses significados serem coerentes Lázaro em seu lamento? Sobre isto, Robert
com o contexto da reação de C risto diante Lightfoot e G. Campbell Morgan, respectiva­
da m orte de Seu amigo, William Barclay mente, disseram:
acreditava que cada um deles continha “certa
severidade, quase raiva”, o que levou alguns A expressão usada [...] implica que Ele agora,
comentaristas a sugerir uma ideia de indig­ voluntaria e deliberadamente, aceita e toma
nação, ou, até mesmo, ira, na passagem de para si a emoção e a experiência da qual, de
João. C om base nisso, o versículo seria tra­ acordo com Seu propósito, deve livrar os ho­
duzido da seguinte forma: “Jesus se irou em mens. ( L i g h t f o o t , 1963, p. 229)
Seu espírito”.
Se perguntássemos por que isso havia Ele [...] catalisou para dentro de Sua personali­
acontecido, responderiam que era por causa dade toda a infelicidade resultante do pecado,
da suposta incredulidade ou hipocrisia da­ representada por um homem morto e pessoas
queles que choravam por Lázaro, ou porque de coração partido ao seu redor. (MORGAN,
Cristo estava com raiva da morte, entendida s.d., p. 197)
como uma das ferramentas de Satanás e uma
grande inimiga. Entretanto, essa insincerida­ Em alguns momentos, no entanto, a dor
de não foi mencionada nem sugerida no texto demonstrada por Jesus transformou-se em
bíblico, e, independente da motivação do co ­ raiva, com o no caso de Suas denúncias seve­
ração das pessoas que ali estavam, certo é que ras sobre os líderes religiosos de Sua época.
Maria e Marta de maneira alguma fingiram Ele os chamava de hipócritas (Mt 15.7), túmu­
sua dor. los caiados (M t 23.27), serpentes (M t 23.23),
H á uma vertente interpretativa, que en­ guias cegos (M t 15.14) e os acusava de ter p or
tende raiva com o gra nd e emoção, respon­ pai ao diabo (Jo 8.44).
sável p or defender outro uso do term o Houve ocasiões em que Cristo teve raiva
em brim aom ai, na língua grega, o qual passa até mesmo de Seus discípulos, com o, por
a descrever o relinchar de um cavalo, que, exemplo, quando eles foram presunçosos e
em geral, acontece por causa de uma carga tentaram impedir as crianças de se achegarem
pesada ou da excitação de uma batalha. a Ele: Jesus, porém , vendo isso, indignou-se e
Logo, segundo essa linha de pensamento, disse-lhes: D eixai vir os pequeninos a mim e
há quem acredite que Jesus expressou Sua não os impeçais, porque dos tais é o Reino de
profunda emoção com tanta veemência que D eus (Mc 10.14).
O Cristo que nos é apresentado no N ovo que tenham a minha alegria completa em si
Testamento não é impassível, insensível e frio. mesmos (17.13).
Pelo contrário, é alguém que tomou sobre si a
nossa dor e que, por ter-se feito igual a nós, é Igual a n ó s , t a n t o n o s s o f r im e n t o s
c o m o n a s t e n t a ç õ e s ________________________
capaz de compreender nossa tristeza (Hb
4.15); alguém que, em certos momentos, sentiu Há, ainda, duas outras áreas em que Jesus,
justa indignação e ficou com raiva do pecado. por meio da encarnação, tornou-se com o nós,
U m terceiro aspecto da vida emocional de sendo, portanto, igualmente importantes para
Cristo envolve os sentimentos de regozijo e nosso relacionamento com Ele como nosso
alegria. Sobre isso, Warfield escreveu: guia na caminhada cristã.
A primeira é que Ele se tornou sujeito à
Chamamos nosso Senhor de homem de dores, tentação: Porque não temos um sumo sacerdo­
e essa designação é obviamente apropriada pa­ te que não possa compadecer-se das nossas
ra alguém que veio ao mundo para levar os fraquezas; porém um que, como nós, em tudo
pecados dos homens, dando Sua vida em resga­ fo i tentado, mas sem pecado (Hb 4.15).
te de muitos. Não é, contudo, uma designação As tentações enfrentadas por Cristo en­
aplicada a Cristo no Novo Testamento, e, mes­ contram-se registradas em Mateus 4.1-11 (o
mo o profeta Isaías parece referir-se mais às texto paralelo é L c 4.1-13). Após ser batizado
aflições objetivas do justo Servo do que a Seus por João Batista, o Filho de Deus foi levado
sofrimentos subjetivos (Is 53.3). ao deserto e, tendo passado 40 dias jejuando,
De qualquer forma, precisamos ter em mente foi, então, tentado pelo diabo.
que nosso Senhor não veio ao mundo para ser A primeira área a ser atacada foi a física: com
destruído pelo poder do pecado e da morte, fome, Jesus foi desafiado pelo inimigo a trans­
mas, sim, para destruí-los. Ele veio como um formar pedras em pães, ao que respondeu: Está
conquistador, com a alegria de uma vitória imi­ escrito: N em só de pão viverá o homem, mas de
nente em Seu coração. Pela alegria proposta toda apalavra que sai da boca de Deus (Mt 4.4).
para Cristo, Ele conseguiria suportar a cruz, Dessa forma, Ele venceu a tentação de colocar
desprezando a afronta (Hb 12.12). Assim co ­ necessidades físicas acima das espirituais.
mo Ele não prosseguiu Sua obra duvidando A segunda tentação enfrentada foi espiri­
da missão, também não hesitou no que se re­ tual. O diabo levou Jesus a um pináculo do
feria ao Seu método. N a verdade, Ele se ale­ templo em Jerusalém e o desafiou a jogar-se lá
grou no Espírito Santo (como lemos em Lc de cima, contando que Seu Pai iria salvá-lo.
10.21), quando contemplou os meios median­ Satanás disse:
te os quais Deus traria muitos filhos à glória.
(W a r f i e l d , 1970, p. 122,123) Se tu és o Filho de Deus, lança-te daqui
abaixo; porque está escrito: Aos seus anjos
Algumas vezes, Jesus mencionou o desejo dará ordens a teu respeito, e tomar-te-ão
que tinha de que Seus seguidores também nas mãos, para que nunca tropeces em al­
possuíssem Sua alegria: Tenho-vos dito isso gum a pedra.
para que a minha alegria perm aneça em vós, e Mateus 4.6
a vossa alegria seja completa (Jo 15.11). N o ­
vamente, Cristo declarou na oração sacerdo­ O Mestre, então, respondeu que seria er­
tal, encontrada no Evangelho de João: Mas, rado fazer isso, porque também está escrito
agora, vou para ti e digo isto no mundo, para que não devemos colocar Deus à prova.
Por fim, o diabo apelou para uma tentação experiências semelhantes, pudéssemos enca-
vocacional, pois sabia que, segundo o que já rá-las com o um encorajamento para achegar-
havia sido profetizado desde o Antigo Testa­ mo-nos a Ele em oração, sabendo que nosso
mento, Jesus um dia receberia os reinos deste Salvador compreende, mais do que ninguém,
mundo (SI 2.7-12). Satanás sabia que o cami­ o que estamos enfrentando.
nho para tal herança seria a renúncia, e, na­ Pedro falou do valor de Cristo como pa­
quele momento, tentou convencer Cristo de drão quando encorajou aqueles de sua época
que Ele poderia vencer sem sofrimento: Tudo a suportarem o sofrimento assim como Jesus
isto te darei se, prostrado, m e adorares (Mt o fizera:
4.9). Contudo, Jesus rejeitou a oferta do dia­
bo e determinou-se a seguir o caminho que Porque para isto sois chamados, pois tam­
Deus havia posto diante dele. bém Cristo padeceu p or nós, deixando-nos
Jesus se tornou igual a nós também no que o exemplo, para que sigais as suas pisadas.
tange ao sofrimento que enfrentou, o qual foi 1 Pedro 2.21
emocional, espiritual e físico, uma vez que
lemos que Ele padeceu fome (Mt 4.2), sede Seguindo essa mesma linha de pensamen­
(Jo 4.6-15; 19.28,29), cansaço (M c 4.35-41; Mt to, o autor de Hebreus se refere ao nosso en­
8.23-27; Jo 4.6), entre outras coisas. N o en­ corajamento em oração, dizendo:
tanto, o maior exemplo de Seu sofrimento foi
a dor e a angústia que Ele suportou na cruz, Porque, na verdade, ele não tomou os an­
diante das quais até mesmo Sua alma enfra­ jos, mas tomou a descendência de Abraão.
queceu (L c 22.39-46; comparar com Mt Pelo que convinha que, em tudo, fosse se­
26.36-46; M c 14.32-42). melhante aos irmãos, para ser misericor­
Cristo, por meio da encarnação, conheceu dioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é
todas as vicissitudes da vida: provações, ale­ de Deus, para expiar os pecados do povo.
grias, sofrimento, perdas, ganhos, tentações, Porque, naquilo que ele mesmo, sendo ten­
dores. Ele sentiu todas elas e, por isso, com ­ tado, padeceu, pode socorrer aos que são
preendeu-as, tornando-se, assim, um mode­ tentados.
lo para nós, a fim de que, ao passarmos por Hebreus 2.16-18
P or que C r is t o se t o r n o u h o m e m ?

abemos que a teologia cristã tem como a única pessoa capaz de realizar essa obra
foco explicar quem é Cristo e o que p or nós:
significa ter fé nele, mas isso não é tão
simples quanto parece. Por um lado, a Essa foi a coisa mais profunda e mais decisiva
afirmação mais incrível sobre Jesus é que Ele é que pudemos descobrir sobre Jesus, e, ao res­
tanto homem como Deus. Por outro, as doutri­ pondermos às perguntas que este tema suscita,
nas de Cristo passam rápida e inevitavelmente tomamos por base a experiência. Há um senti­
pelo ministério dele, sendo impossível, portan­ do no qual Cristo nos confronta como recon-
to, falar de modo significativo sobre a identida­ ciliador. Ele está fazendo a vontade de Deus
de do Filho de Deus sem também mencionar o em nosso benefício, e nós só podemos ser me­
que Ele fez e a importância disso para nós. ros expectadores. Vemos nele o julgamento e a
Por que Jesus se tornou homem? A res­ misericórdia do Senhor em relação a nossos
posta a essa pergunta, com o veremos, é que pecados. Sua presença e obra na terra são um
Ele se fez carne a fim de morrer por aqueles dom e uma visitação divina. Ele é o presente de
que creriam nele. Em bora essa justificativa Deus para a humanidade, não a oferta da hu­
nos remeta à obra de Cristo, podendo, por­ manidade para o Altíssimo.
tanto, ser enquadrada na seção deste livro que O Senhor se dá para nós em Cristo, por isso
aborda o tema de Seu ministério, é pertinente devemos a Ele tudo o que somos. Por outro
estudá-la aqui também, pois esta se relaciona lado, essa vida divina é concedida a nós por
intimamente com quem Ele é. meio de uma vida e uma obra verdadeiramente
Em outras palavras, a pergunta “O que humanas. A presença e a obra de Jesus no mun­
Jesus fez?” exige uma explicação de Sua natu­ do, mesmo a de levar sobre si o pecado, não nos
reza singular como Deus-homem. Podería­ impelem a definir humano e divino em contras­
mos afirmar que a natureza de Cristo dá signi­ te um com o outro: não há sugestão de incon­
ficado à Sua obra, que, centrada na justificação, gruência entre eles. Todavia, os dois estão lá, e o
é o único fundamento adequado para uma fato de que ambos estão presentes permite-nos,
doutrina a Seu respeito. por um lado, levantar o questionamento da rela­
James Denney, professor da United Free ção de Jesus com Deus, e, por outro, dele com
Church College, em Glasgow, na Escócia, os homens. ( D e n n e y , 1964, p. 175)
discutiu esse assunto por volta da virada do
século. N a verdade, precisamos de uma jus­ Assim, o presente capítulo trata da obra
tificação, e, com o Denney escreveu, C risto é do Filho de Deus, em especial a explicação da
encarnação. Só depois disso, ficaremos livres entrando no mundo, diz: Sacrifício e ofer­
para pesquisarmos sobre o ministério de ta não quiseste, mas corpo m e preparaste;
Cristo de modo mais abrangente. holocaustos e oblações pelo pecado não te
agradaram. Então, disse: Eis aqui venho
O MOTIVO DA ENCARNAÇÃO_________________ (no princípio do livro está escrito de mim),
Anselmo da Cantuária, falecido em 1109, para fazer, ó Deus, a tua vontade.
proporcionou, em seus estudos, uma clássica Hebreus 10.4-7
resposta ao questionamento acerca da necessida­
de de Jesus ter se tomado homem. A obra de arte Ainda neste texto, Jesus disse que veio pa­
teológica, intitulada Cur Deus Homo? [traduzi­ ra fazer a vontade de Deus, sendo necessário
da, literalmente, como Por que Deus-homem? que esta seja entendida como a provisão de
ou Por que Deus se tomou hom em f], trata da um sacrifício superior: N a qual vontade te­
questão da encarnação. A resposta é uma decla­ mos sido santificados pela oblação do corpo de
ração muito bem elaborada da justificação. Jesus Cristo, feita uma vez (Hb 10.10).
Anselmo respondeu que o verbo de Deus Encontramos a mesma ênfase em outras
se tornou humano porque somente alguém passagens bíblicas, bem como no nome Jesus
simultaneamente divino e humano poderia, (que significa Jeová salva) anunciado pelo an­
de fato, realizar a salvação. N o entanto, isso jo à Maria: E lheporás o nome de JE S U S, por­
não quer dizer que, segundo ele, não haja ou­ que ele salvará o seu povo dos seus pecados
tros motivos para a encarnação. (Mt 1.21b).
Sabemos que a vida humana, apesar de va­ O próprio Cristo falou de Seus sofrimen­
liosa no que diz respeito à criação, foi banalizada tos vindouros (Mc 8.31; 9.31), relacionando o
pelo pecado. A encarnação de Cristo revela, por­ sucesso de Sua missão à crucificação: E eu,
tanto, o valor fixado por Deus a nós, e indica que quando fo r levantado da terra, todos atrairei
Ele não nos abandonou, pois Ele nos ama, valo- a mim (Jo 12.32).
rizando-nos mesmo em nosso estado decaído. Em muitas passagens no Evangelho de
Além disso, o fato de o Senhor ter-se feito João, fala-se da crucificação como a hora cru­
homem colabora para duas outras coisas: 1) cial para a qual o Senhor veio a terra (Jo 2.4;
mostra-nos que Ele é capaz de entender-nos e 7.30; 8.20; 12.23,27; 13.1; 17.1).
de ter compaixão de nós, o que é um motivo Além disso, a morte de Jesus é também
para achegarmo-nos a Ele em oração (como tema do Antigo Testamento, primeiro em re­
sugerido no capítulo anterior); 2) fornece-nos lação ao pleno significado dos sacrifícios (o
um exemplo de com o uma pessoa deve viver significado no cerne da Lei) e, depois, acerca
neste mundo. das profecias, que se concentravam cada vez
Pedro se referiu à crucificação nos seguin­ mais na promessa do Redentor que viria.
tes termos: Porque para isto sois chamados, Exemplos disso podem ser encontrados
pois também Cristo padeceu p o r nós, deixan- em Isaías 53, bem com o em outros textos do
do-nos o exemplo, para que sigais as suas pisa­ Antigo Testamento, que abordam o sofri­
das (1 Pe 2.21). Contudo, a justificação é o mento do Libertador que estava por vir. Em
real motivo para a encarnação, com o afirmou Gálatas, o apóstolo Paulo ensinou que, mes­
o autor de Hebreus: mo Abraão, que viveu antes da Lei e dos P ro ­
fetas, foi justificado pela fé, crendo nas pro­
Porque é impossível que o sangue dos tou­ messas de Deus feitas a ele e à sua posteridade,
ros e dos bodes tire pecados. Pelo que, que é Cristo (G1 3.8,16).
Cristo ensinou aos desanimados discípu­ em si. Além disso, sofremos os efeitos do
los em Emaús que o Antigo Testamento pre­ pecado em tamanho grau que nosso arbítrio
disse Sua morte e ressurreição: ficou com prometido, sendo-nos, p or isso,
impossível escolher agradar ao Senhor, bem
E ele lhes disse: Ó néscios e tardos de cora­ com o agradar-lhe de fato. Assim, se precisa­
ção para crer tudo o que os profetas disse­ mos ser salvos, apenas Deus, que tem tanto a
ram! Porventura, não convinha que o vontade com o o poder de resgatar, pode sal­
Cristo padecesse essas coisas e entrasse na var-nos.
sua glória? E, começando por Moisés e por A segunda resposta de Anselmo foi que,
todos os profetas, explicava-lhes o que dele apesar da aparente contradição, a salvação
se achava em todas as Escrituras. também deve ser realizada pela humanidade,
L.ucas 24.25-27 uma vez que agimos de maneira equivocada
com o Criador, devendo, por causa disso,
À luz desses textos e de muitos outros, é consertar nossos erros. Diante dessa situa­
necessário dizer que a justificação de Cristo ção, a salvação só pode ser realizada por
não é apenas a razão para a encarnação, mas aquele que é, ao mesmo tempo, divino e hu­
também a explicação de Sua dupla natureza e mano: Cristo. Sobre este assunto, Eugene R.
o ponto fundamental da história do mundo e Fairweather destacou:
da Bíblia.
A não realização da restauração da natureza
A SALVAÇÃO PO R INTERM ÉDIO DO humana teria sido um equívoco [...] e esta não
D e u s - h o m e m ______________ ___________________
poderia ter sido feita a não ser que um ser hu­
Por que a doutrina da justificação deve ser mano pagasse o que era devido ao Senhor por
tema central nas Escrituras? Por que deve exis­ causa do pecado. Contudo, a dívida era tão
tir um sacrifício? Ou, supondo que a justifica­ grande, que, embora ela fosse exclusivamente
ção seja necessária, por que Jesus, o Deus-ho- nossa, apenas o Senhor seria capaz de pagá-la.
mem, teve de ser responsável por provê-la? Com isso, fez-se necessário que Cristo assu­
Calvino afirmou, em suas Institutas, que misse a condição humana, a fim de que, sendo
não devemos questionar a maneira escolhida humano e divino, pudesse pagar o que nenhu­
por Deus para justificar-nos, visto que seria ma pessoa comum poderia [...]. A vida de Jesus
impertinente de nossa parte buscar alternativas foi tão sublime, tão preciosa, que acabou sendo
distintas, mas, como ele e Anselmo reconhece­ suficiente para pagar o que era devido pelos
ram, essa não é uma justificativa aceitável. Será pecados do mundo inteiro, e infinitamente
possível indagar, sem impertinência, por que a mais. ( F a i r w e a t h e r , 1956, p. 176)
salvação teve de ser conquistada por meio da
crucificação e da ressurreição de Cristo?1 Para evitar interpretações equivocadas, é
Anselmo (e, depois, Calvino) deu duas preciso analisar a explicação de Anselmo so­
respostas. A primeira é que a salvação teve bre a encarnação sob três pontos de vista
de ser realizada p or Deus, pois ninguém principais. E m primeiro lugar, Deus inicia e
mais poderia realizá-la. Com certeza, nós, efetua a ação. Se isso for esquecido, será fácil
seres humanos, não conseguiríamos colocá- dizer que Ele não participou do processo de
-la em prática, visto que nossa rebelião contra justificação, sendo responsável apenas por
a Lei e os decretos justos do Senhor foi res­ cobrar um preço abstrato para satisfação
ponsável p or criar a necessidade da salvação própria.
Sob essa perspectiva, o Senhor parece de­ Se, de fato, o pecado pode ser perdoado, isso
sinteressado, legalista e cruel, quando, na deveria ser feito de acordo com a santa Lei de
verdade, Sua natureza é caracterizada pelo Deus, mas tal vindicação seria extremamente
amor. Foi por amor que, em Cristo, o próprio custosa. A questão é: custosa para quem? Não
Deus satisfez Sua justiça. Então, não restam para o pecador perdoado, pois não há preço
dúvidas de que, para evitar mal-entendidos, a para o perdão que lhe fora dado, visto que este
encarnação e a justificação devem ser consi­ valor está muito além do alcance humano, e o
deradas juntas. Senhor ama dar e não vender.
E m segundo lugar, embora a propiciação Sabendo disso, o próprio Deus determinou-
esteja relacionada ao ato de aplacar a ira de -se a pagar um preço altíssimo por meio de
Deus, como veremos no estudo sobre esse um sacrifício tremendo ao ponto de anular
conceito, registrado no capítulo 13 desta obra, de maneira absoluta qualquer que fosse a gra­
Anselmo não sugeriu, em sua explicação, a vidade da condenação do pecado. Ao mesmo
existência de ninguém que o tenha feito. C on­ tempo, o amor que o impeliu a pagar esse pre­
tudo, não é o homem que aplaca a ira divina, e ço seria capaz de maravilhar até os anjos,
sim o próprio Deus, a fim de que Seu amor bem como de levar-nos, como pecadores re­
possa envolver e salvar o pecador plenamente. dimidos, a uma gratidão em forma de louvor
Em terceiro lugar, a justificação não é uma sem igual.
mera substituição, na qual uma vítima ino­ N o Calvário, esse preço foi pago por Cristo,
cente toma o lugar de outra pessoa que deve­ que ofereceu a si mesmo como sacrifício vivo,
ria ser punida. Em vez disso, trata-se da subs­ a fim de levar nossos pecados e nossas maldi­
tituição em seu sentido mais profundo, visto ções. Ele não apenas tomou o lugar dos culpa­
que Aquele que tomou o lugar do ser humano dos, mas também foi representante deles.
com o objetivo de satisfazer a justiça divina é, Jesus Cristo, uma das três pessoas da Trindade,
na verdade, o próprio Filho de Deus, que ti­ por intermédio de quem, do início da criação,
nha se tornado homem. Dessa maneira, Cris­ o Pai se revelou ao homem (Jo 1.18), tomou a
to é nosso representante. natureza humana sobre si tornando-se, assim,
Para que se torne compreensível, a encar­ nosso representante. Ele se ofereceu como sa­
nação deve ser analisada junto à justificação. crifício em nosso lugar, pagando por nossos
Além disso, essa conexão elimina as objeções pecados em Seu corpo, no madeiro. Ele sofreu
mais comuns ao sacrifício de Jesus como meio não apenas uma angústia física terrível, mas
de salvação. também o inimaginável horror espiritual de
U m escritor resumiu o assunto da seguin­ assemelhar-se ao pecado ao qual Ele era infini­
te maneira: tamente oposto.
Tornando-se maldição em nosso lugar, assim
Deus não é apenas perfeitamente santo, mas é a permaneceu tempo suficiente para que, por
fonte e o padrão da santidade: Ele é a origem e um momento, até mesmo Sua perfeita comu­
o pilar de sustentação da ordem moral do uni­ nhão com o Pai fosse quebrada. Assim, ao
verso, tendo, portanto, de ser justo. O Juiz de dispor-se a sofrer tudo isso, o Senhor procla­
toda a terra deve fazer o que é certo. Logo, era mou Sua infinita abominação pelo pecado, a
impossível, pelas necessidades do Seu próprio fim de que, nele, pudéssemos ser perdoados
ser, que Ele lidasse com o pecado de maneira com justiça.
suave, comprometendo, assim, Suas declara­ O amor do Senhor encontrou Seu perfeito
ções de santidade. cumprimento porque, para que pudéssemos
ser salvos da morte eterna, Ele não fugiu nem notícia é que, em Jesus, nossos pecados já
mesmo do pior de todos os sacrifícios. Somen­ foram punidos (a ressurreição é uma prova
te assim seria possível que Jesus nos justificasse, disso), visto que Ele, nosso representante, so­
porque, como Aquele que ditou a Lei e tomou freu o castigo por nós, a fim de que não tivés­
para si o castigo dos pecados da rebelde raça semos de passar por isso nunca mais. Graças
humana, Ele mesmo sofreu a penalidade da Lei ao sacrifício sublime do Filho de Deus, todos
quebrada. (G u ille ba u d , 1947, p. 130,185) os que creem nele podem aguardar ansiosa­
mente pelo céu.
A IMPORTÂNCIA DA CRUZ____________________ Além disso, assim como no caso da encar­
Podemos tirar várias conclusões da expli­ nação, devemos estudar os demais temas bí­
cação acerca da encarnação. A primeira delas blicos dentro desse mesmo contexto. A emu­
é que, de acordo com as Escrituras, Jerusalém lação da vida de Cristo e Seus ensinamentos
[por causa do Calvário], e não Belém, foi o são possíveis apenas para aqueles que, por
centro do cristianismo. Em alguns círculos intermédio dele, entram em um novo relacio­
cristãos, tornou-se popular a ideia de que a namento com o Pai.
encarnação de Cristo seja o aspecto central da A ressurreição não é só uma vitória so­
fé cristã, visto que foi por meio dela que Deus bre a m orte, mas é também uma prova de
se identificou com o homem, sendo a justifi­ que a justificação foi uma propiciação satis­
cação uma conseqüência dela. fatória aos olhos do Senhor (Rm 4.25), que,
N o entanto, de acordo com o ensinamen­ ao redimir os pecados, aboliu a m orte, co ­
to bíblico, o Senhor exigiu que fôssemos sal­ nhecida biblicamente com o resultado [ou
vos por intermédio de Cristo, que, como vi­ salário] do pecado.
mos, era tão humano com o divino. Portanto, Assim, qualquer evangelho que fale de
“o significado crucial do berço de Belém resi­ Cristo considerando apenas a encarnação, dei­
de na seqüência de passos que levaram o F i­ xando de lado a justificação, ou que trate do
lho de Deus à cruz do Calvário, não sendo amor de Deus sem ressaltar que Ele deu Seu
possível compreender esse fato até que o veja­ único Filho como resgate por nossos peca­
mos em seu c o n te x to ”(PACKER, 1973, p. 51). dos, na cruz, é falso. O único evangelho ver­
Assim, analisar a encarnação sem levar em dadeiro é aquele que prega um único media­
conta a cruz pode conduzir-nos a um falso dor (1 Tm 2.5,6), que deu a si mesmo por nós.
sentimentalismo, bem com o à negação do Por fim, assim com o não pode haver evan­
horror e da magnitude do pecado. gelho sem a justificação, também não pode
A segunda conclusão que tiramos é que, se haver vida cristã sem ela, visto que, se ela não
a crucificação de Cristo é o verdadeiro pro­ existisse, o tema da encarnação, facilmente,
pósito da encarnação, então não há evange­ seria um tipo de deificação do ser humano,
lho sem cruz. Assim, o nascimento e a vida levando-o à arrogância e autopromoção. Com
de Jesus, por si só, não podem ser vistos co ­ ela, a verdadeira mensagem da vida de Cristo
mo evangelho; nem mesmo a ressurreição, - e, por conseguinte, da vida do cristão - é a
por mais importante que seja, pode ser inter­ humildade e o autossacrifício pelas necessida­
pretada com o tal. des dos outros.
As boas-novas dizem respeito não somen­ A vida cristã não é diferente para aqueles
te ao Deus que se tornou homem para que, ao que passam fome e sede, ou têm outras ca­
derrotar a morte, pudesse revelar-nos um rências. Ela não é caracterizada pela abun­
modo de vida mais adequado. Antes, a boa dância de uma vida de classe média - com
casas, carros, roupas, viagens, educação, bo­ amor de vós se fe z pobre, para que,
as igrejas, Bíblias, ensino bíblico, amigos e pela sua pobreza, enriquecêsseis.
conhecidos cristãos. 2 Coríntios 8.9
N a verdade, precisamos ter consciência de
que, às vezes, para que possamos atender às Essa é também uma declaração da justifi­
necessidades do próximo, devemos sacrificar cação e da vida cristã. De fato, ela apareceu no
muitos de nossos interesses, a fim de nos capítulo em que Paulo estava falando sobre a
identificarmos com eles e, assim, proporcio- obrigação dos cristãos de Corinto de ofertar
nar-lhes, cada vez mais, a abundância de que recursos próprios em benefício dos menos
desfrutamos. afortunados que moravam na Judeia.
Paulo escreveu sobre a encarnação: Viveremos plenamente para Cristo quan­
do estivermos dispostos a sacrificar nossas
Porque já sabeis a graça de nosso Se­ vontades, se necessário, a fim de que outros
nhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por possam ser ajudados.

N otas

1 Um dos pontos mais importantes na obra de Anselmo está nesta área: a justificação da busca pela razão de certas
verdades reveladas. Sua expressão para isso é fides quaerens intellectum (a f é em busca da compreensão). Isso é o
objeto de um precioso estudo por BARTH, Karl. Anselmo: Fides Quaerens Intellectum [Anselmo: a fé em busca da
compreensão]. Richmond: John Knox Press, 1958, p. XX.
Pa r t e

4
A obra de Cristo

Jesus, o Nazareno, que foi um profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de
todo o povo.
Lucas 24.19b

Pelo que convinha que, em tudo, fõsse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e
fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo.
Hebreus 2.17

E na veste e na sua coxa tem escrito este nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.
Apocalipse 19.16

Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus,
ao qual Deus propôs para propicíação pela f no seu sangue, para demonstrar a sua
justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus.
Romanos 3. 24,25

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo
aquele que nele ciê não pereça, mas tenha a vida eterna.
João 3.16

Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos
pecados, segundo as Escrituras, e que Jôi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, se­
gundo as Escrituras, e que Jôi visto por Cejãs e depois pelos doze. Depois, Jôi visto, uma
vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a m abr parte, mas alguns já
dormem também. Depois, Jôi visto por Tiago, depois, por todos os apóstolos e, por der­
radeiro de todos, me apareceu também a mim, como a um abortivo.
1 Coríntios 15.3-8
P r o f e t a , Sa c e r d o t e e R ei

esde a Reforma, tem sido co- e fiel sumo sacerdote naquilo que é de
| I/ / mum nos círculos cristãos falar Deus, para expiar os pecados do povo.
J/ sobre a obra de Cristo sob três
categorias gerais: profeta, sacer­ Semelhantemente, Apocalipse 19.16 de­
dote e rei. Estas se referem a Seu papel como clara: E na veste e na sua coxa tem escrito este
mestre, salvador e soberano sobre o universo e nome, R e i d o s r e i s e S e n h o r d o s s e n h o r e s .
sobre a Igreja. A noção de ofício tríplice de Cristo tam­
Alguns têm reclamado do fato de que es­ bém se aplica bem às necessidades espirituais
ses papéis não são sempre tão distintos, nem humanas. Um a dessas é a necessidade de co ­
no próprio ministério de Cristo, nem nos ofí­ nhecimento; não conhecemos a Deus de m o­
cios do Antigo Testamento nas quais eles se do natural, nem entendemos as coisas espiri­
baseiam. Tanto sacerdotes como profetas são tuais sem uma iluminação divina. Jesus vai
considerados mestres. Muitos reis receberam ao encontro de nossas necessidades ao reve­
a revelação inspirada de Deus, bem como os lar-nos Deus. Ele é nosso mestre-profeta.
profetas. N o entanto, a divisão tríplice co­ Faz isso por intermédio de sua própria pes­
mum da obra de Cristo encontra um bom soa, na qual o Pai é completamente revelado;
respaldo nas Escrituras. por meio da Palavra de Deus escrita, presen­
Cristo é reconhecido como sendo um te que nos foi dado; e pela particular inspira­
profeta em Lucas 24.19. Nessa passagem, Je­ ção do Espírito Santo.
sus está interrogando os discípulos de Emaús, N ós também precisamos de salvação. N ão
perguntando o que havia acontecido durante apenas desconhecemos Deus e as coisas espi­
os últimos dias turbulentos em Jerusalém. rituais — somos também pecadores. Rebela-
Eles responderam que aqueles eventos esta- mo-nos contra Deus e, como ovelhas, desvia-
vam relacionados com Jesus, o Nazareno, que mo-nos por nossos próprios caminhos. Jesus
fo i um profeta poderoso em obras e palavras satisfaz essa necessidade como nosso sacer­
diante de D eus e de todo o povo. dote. Ele atua como sacerdote em dois níveis:
Declara-se que Jesus é um sacerdote em primeiro, oferece a si mesmo como sacrifício,
todo o livro de Hebreus como, por exemplo, proporcionando, por meio disso, a justifica­
em Hebreus 2.17: ção perfeita pelo nosso pecado; segundo, in­
tercede por nós ao lado direito do Pai no céu,
Pelo que convinha que, em tudo, fosse se­ garantindo assim nosso direito de sermos
melhante aos irmãos, para ser misericordioso ouvidos.
Finalmente, precisamos de disciplina, assim, contribuído para a formação do Anti­
orientação e preceitos espirituais. N ossa go Testamento. Começando por Elias e Eli-
conversão não nos torna autônomos. N ão seu, o grande movimento profético foi lança­
temos o direito de guiar a nós mesmos, nem do, trazendo à vista nomes como Isaías,
conseguimos ter êxito nessa tarefa. Cristo Jeremias, Ezequiel, Daniel e os chamados
satisfaz essa necessidade por Seu domínio profetas menores. Em uma ocasião, é relatado
justo e am oroso sobre nós na Igreja. Ele é que Moisés disse: Tomara que todo o povo do
nosso mestre, nosso rei. E também o justo S E N H O R fosse profeta (N m 11.29b).
juiz desse mundo. Consequentemente, o fu­ Contudo, no que se refere aos estudos a
turo triunfo de Cristo, bem com o Seu domí­ respeito do papel de profeta, há uma consci­
nio sobre o mundo inteiro, também faz parte ência cada vez maior de que nenhum profeta
desse aspecto. humano está adequado à nossa necessidade.
Charles Hodge disse: Portanto, há uma expectativa cada vez maior
pela vinda de um “grande profeta”.
Somos iluminados no conhecimento da verda­ A primeira afirmação clara acerca dessa
de; somos reconciliados a Deus pela morte sa- expectativa está em Deuteronômio 18, que
crificial de Seu Filho; e somos libertos do po­ mostra que Deus enviaria um profeta como
der de Satanás e introduzidos no Reino de Moisés, para o qual as pessoas deveriam aten­
Deus; tudo isso mostra que nosso Redentor é tar. O próprio Moisés faz essa declaração: O
para nós, de uma só vez, profeta, sacerdote e S E N H O R , teu Deus, te despertará um profe­
rei. Isso não é, portanto, simplesmente uma ta do meio de ti, de teus irmãos, como eu; a ele
classificação conveniente do conteúdo de Sua ouvireis (D t 18.15).
missão e obra, mas entra em Sua própria natu­ Depois, a declaração é confirmada nas
reza, e deve ser retido em nossa teologia se va­ próprias palavras de Deus: Eis que lhes susci­
mos tomar a verdade tal como está revelada na tarei um profeta do meio de seus irmãos, como
Palavra de Deus. ( H o dg e, 1960, p. 461)1 tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e
ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar (Dt
Portanto, embora nossa discussão sobre a 18.18).
obra de Cristo necessariamente esteja além Numa leitura superficial, é possível inter­
do que essas três categorias sugerem, será, pretar esse versículo como uma referência a
contudo, de grande valor mantê-las em mente alguma figura humana subsequente, tal como
enquanto as desenvolvemos. Isaías ou um dos outros profetas maiores. P o ­
deria, até mesmo, aplicar-se àquele profeta
O L ogos d e D e u s : P r o f e t a _______________
especial que foi o precursor do Messias (Ml
Quando falamos sobre a função profética 4.5; Jo 1.25). Entretanto, no N ovo Testamen­
de Cristo voltamos a uma linha de pensamen­ to, a referência em Deuteronômio é aplicada
to do Antigo Testamento particularmente ri­ particularmente a Jesus, como em um dos
ca. Abraão, pai do povo judeu, foi chamado sermões de Pedro (A t 3.22), e na defesa de
de profeta (Gn 20.7). Moisés foi, segundo a Estêvão diante do Sinédrio (At 7.37).
Bíblia, o maior de todos os profetas (Dt Outras passagens desenvolvem o mesmo
34.10). Saul e alguns de seus mensageiros pro­ tema. Em muitas ocasiões, as pessoas que tes­
fetizaram (1 Sm 10.11; 19.20). Davi e Salomão temunhavam um feito admirável de Cristo
eram profetas no sentido de que recebiam respondiam identificando-o como um profe­
partes da revelação inspirada por Deus, tendo, ta ou como o profeta que deveria ser esperado
nos últimos dias (Mt 21.46; L c 7.16; Jo 6.14). que Seus seguidores passariam por sofrimen­
Os discípulos a caminho de Emaús o identifi­ tos não simplesmente por causa da verdade,
caram como tal (L c 24.19). Em uma ocasião ou por alguma outra causa nobre, mas por
Jesus disse, em referência a si mesmo: E Jesus Sua causa (M t 5.11). Mais adiante, Ele diz:
lhes dizia: Não há profeta sem honra, senão Não cuideis que vim destruir a lei ou os profe­
na sua terra, entre os seus parentes e na sua tas; não vim ab-rogar, mas cumprir (M t 5.17).
casa (Mc 6.4). Em outras palavras, Ele se identificava co­
De uma perspectiva teológica, a mensa­ mo o Messias sobre o qual o Antigo Testa­
gem mais importante é, provavelmente, a in­ mento havia sido escrito. N a seção final,
trodução ao livro de Hebreus: Ele adverte contra qualquer coisa que pu­
desse desviar a atenção de si mesmo, levan­
Havendo Deus, antigamente, falado, m ui­ do, assim, a pessoa envolvida a julgamento,
tas vezes e de muitas maneiras, aos pais, e conclui:
pelos profetas, a nós falou-nos, nestes últi­
mos dias, pelo Filho, a quem constituiu Todo aquele, pois, que escuta estas minhas
herdeiro de tudo, p o r quem fe z também o palavras e as pratica, assemelhá-lo-ei ao
mundo. hom em prudente, que edificou a sua casa
Hebreus 1.1,2 sobre a rocha. E desceu a chuva, e corre­
ram rios, e assopraram ventos, e combate­
U m profeta é alguém que fala por outro. ram aquela casa, e não caiu, p orque estava
Nesses versículos, Jesus é colocado como al­ edificada sobre a rocha.
guém que, assim como os profetas do Antigo Mateus 7.24,25
Testamento, fala por Deus. Ele é, portanto,
alguém que fala com autoridade. Essas afirmações, e outras com o essas -
A questão da autoridade ficou particular­ espalhadas por todos os Evangelhos - , ime­
mente evidente para os ouvintes de Cristo. diatamente distinguem Jesus de todos os ou­
Ao final do Sermão do Monte, ficamos sa­ tros mestres religiosos. Com o John Stott
bendo que, quando Jesus terminou de falar, a observou: “Eles se isentavam deles mesmos;
multidão se admirou da sua doutrina, por­ Ele se colocava como centro do ensinamento.
quanto os ensinava com autoridade e não co­ Eles tiravam o foco de si mesmos dizendo:
mo os escribas (Mt 7.28,29). Poderíamos pen­ ‘Essa é a verdade, como eu a entendo’; Jesus
sar que elas deveriam ter ficado impressionadas dizia: ‘E u sou o caminho, sigam-me’ ”(S t o t t ,
com o conteúdo de Suas palavras, ou com a 1958, p. 22).
necessidade de arrependimento, ou algo as­ Quando começou a escrever seu Evange­
sim. Porém, nos é dito que as pessoas faziam lho, o quarto evangelista, João, estava aparen­
o contraste entre Cristo e os escribas, que temente consciente desse aspecto do ensino
eram os maiores mestres da época, e concluí­ de Cristo. Nas páginas de abertura, ele usa
am que Ele estava ensinando com uma auto­ uma palavra em referência a Jesus que sugeria,
ridade que os escribas não possuíam. tanto a judeus como a gregos, que o próprio
Um a segunda característica importante no Cristo era o ponto central da revelação de
ensino de Jesus é o que podemos chamar de Deus aos homens. A palavra é logos, que sig­
característica egocêntrica. É sobre Ele mes­ nifica palavra ou verbo, embora em um senti­
mo. N o Sermão do Monte, bem no início de do mais completo do que aquele que conhe­
Suas palavras sobre perseguição, Jesus afirmou cemos. Isso ocorre no versículo 1, no qual
João diz: N o princípio, era o Verbo, e o Verbo Deus disse: Assim será a palavra que sair da
estava com Deus, e o Verbo era Deus, bem minha boca; ela não voltará para mim vazia;
como no 14: E o Verbo se fe z carne e habitou antes, fará o que m e apraz e prosperará na­
entre nós [...], cheio de graça e de verdade. quilo para que a enviei (Is 55.11).
O que esse termo teria significado para Por causa disso, os judeus estavam mais
um judeu contemporâneo de João que lesse preparados do que estamos para a ideia de
seu Evangelho? Os primeiros versículos de que a Palavra de Deus poderia ser, de algum
seu livro, incluindo o termo logos, o teriam modo, vista ou tocada e, diante disso, não se­
feito pensar no trecho do Antigo Testamento ria totalmente estranho para eles entenderem
que nos diz que, no começo, Deus falou e, o que o autor de Hebreus disse ao escrever
como resultado, todas as coisas vieram a exis­ para leitores judeus de modo geral: A nós,
tir. Em outras palavras, Jesus seria imediata­ [Deus] falou-nos, nestes últimos dias, pelo Fi­
mente associado ao poder criativo de Deus, lho (H b 1.1b)
bem como à Sua autorrevelação na criação. O que significava a palavra logos para um
Podemos sentir um pouco como isso fun­ grego ou para outro leitor gentio? Para os
ciona ao imaginar-nos lendo um livro que gregos, a resposta é encontrada não na reli­
começa com uma referência ao curso dos gião, mas na filosofia. H á quase 2.600 anos,
acontecimentos humanos e que contenha, nos no século 6 a.C., um filósofo chamado H erá-
primeiros parágrafos, as expressões evidentes clito viveu em Efeso. Ele era o homem que
p o r si mesmas e direitos inalienáveis. Clara­ afirmou ser impossível banhar-se nas águas
mente, o autor estaria tentando remeter-nos à do mesmo rio duas vezes. Ele quis dizer que
Declaração de Independência dos Estados tudo na vida é um fluxo. Assim, embora vo­
Unidos e aos princípios de fundação da R e­ cê entre no rio uma vez, saia dele, e depois
pública Americana.3 entre numa segunda vez, no momento que
Entretanto, isso não é tudo que essas pala­ você deu o segundo passo o rio já fluiu e é
vras significariam para um leitor judeu. Para um rio diferente.
eles, o significado expresso pelo vocábulo Para Heráclito e para os filósofos que o
palavra é mais profundo do que para nós, vis­ seguiam, a vida parecia com isso, mas eles
to que, na maneira de pensar dos judeus, uma questionavam: se é assim, como é que tudo
palavra era algo concreto, algo mais próximo que existe não está num estado de caos perpé­
do que chamaríamos de um evento ou um ato. tuo? Heráclito respondia que a vida não é um
Dizemos, “meras palavras de nada va­ caos porque a mudança que vemos não é ale­
lem”. As crianças dizem: “Pode falar, eu não atória - é uma mudança ordenada. Isso quer
ligo”. Porém, na realidade, as palavras ferem, dizer que deve haver uma razão ou um apala­
e os judeus estavam indubitavelmente mais vra divina que controla isso. Isso é o logos, a
próximos da verdade quando consideravam palavra que João utiliza no verso de abertura
que uma palavra dita era uma ação realizada. de seu Evangelho.
De acordo com eles, as palavras não deveriam Entretanto, o logos também significa mais
ser usadas levianamente. que isso para H eráclito. U m a vez tendo
Além disso, existem implicações teológi­ descoberto que o princípio controlador da
cas nisso. O que acontece quando Deus fala? matéria era o logos de Deus, aplicar esse
U m a coisa é instantaneamente realizada, co ­ conceito também a todos os eventos da his­
mo podemos ver nos seguintes versículos: E tória, bem com o à ordem mental que gover­
disse Deus: H aja luz. E houve luz (Gn 1.3). na os seres humanos seria apenas um pequeno
passo para ele. Para H eráclito, o logos se meio das Escrituras e, assim, provê nossa sal­
tornou nada menos do que a mente de Deus vação e santificação.
controlando tudo.
O M EDIADOR DE D e US: SACERDOTE________
Quando João veio a escrever seu Evange­
lho, a era de Heráclito já tinha ficado para trás A segunda das três maiores divisões da
há 700 anos. Entretanto, suas ideias haviam obra de Cristo é Seu sacerdócio, tema cuida­
sido tão fundamentais para a formação do dosamente preparado no Antigo Testamento
pensamento grego que haviam sobrevivido e desenvolvido com considerável esmero no
não apenas em sua filosofia, mas também na livro de Hebreus. U m sacerdote é um homem
filosofia de Platão e Sócrates, dos estoicos, e designado para agir por outros em coisas per­
de outros que haviam se baseado nela. Além tinentes a Deus, isto é, ele é um mediador.
disso, elas eram discutidas por muitas pesso­ Em Cristo, essa função sacerdotal ou me­
as comuns. diadora é satisfeita de duas formas: primeiro,
Os gregos sabiam sobre o logos. Para eles, ao oferecer-se como sacrifício pelo pecado
o logos era a mente criativa e controladora de (algo que os profetas do Antigo Testamento
Deus; ela mantinha o universo em funciona­ não poderiam fazer) e, segundo, ao interceder
mento. Portanto, foi num lampejo de gênio por Seu povo no céu. O N ovo Testamento
criativo que João lançou mão dessa palavra - representa essa última atividade com Cristo
significativa tanto para os gregos com o para o insistindo na suficiência de Seu sacrifício co­
povo judeu: “O uçam bem, gregos, essa coisa mo base sobre a qual Suas orações e as nossas
que tem ocupado seu pensamento filosófico e devem ser respondidas.
sobre a qual vocês têm escrito por séculos - o O fato de que Jesus é, em si mesmo, sacri­
logos de Deus, essa palavra, esse poder con­ fício por nossos pecados deve tornar claro que
trolador do universo e da mente humana - Seu sacerdócio é diferente e superior a todas as
veio agora ao mundo em forma de homem, e funções sacerdotais do Antigo Testamento.
nós o vimos, cheio de graça e verdade”. Entretanto, Cristo não é superior apenas sob
Platão, como sabemos, uma vez virou-se esse aspecto.
para aquele pequeno grupo de filósofos e alu­ Para começar, de acordo com o sistema
nos que haviam se reunido em torno dele du­ sacerdotal de Israel no Antigo Testamento,
rante a Época de O uro em Atenas e disse: era exigido dos sacerdotes que oferecessem
“Pode ser que algum dia venha de Deus uma um sacrifício não apenas por aqueles a quem
Palavra, um logos, que revelará todos os mis­ representavam, mas também por eles mes­
térios e tornará tudo claro.”Agora João está mos, já que eram pecadores. P or exemplo,
dizendo: “Sim, Platão, o logos já veio; agora antes que o sumo sacerdote entrasse no Santo
Deus foi perfeitamente revelado a nós”4. dos Santos no dia da Propiciação, o que era
Esse é o ministério profético de Cristo. feito uma vez por ano, ele primeiro tinha que
Tem autoridade, e é envolvido em Sua p ró­ oferecer um novilho em holocausto pelo seu
pria pessoa de tal modo que, quando olha­ pecado e pelo de sua casa (Lv 16.6). Só depois
mos para Jesus, vemos não apenas um ho­ disso é que poderia prosseguir com as ceri­
mem, mas o Deus-homem que, dessa forma, mônias das ofertas e do bode expiatório, cujo
revela-nos Deus. E m nosso tempo, Jesus sangue tinha de ser aspergido sobre o propi-
desempenha esse ministério por intermédio ciatório dentro do Santo dos Santos.
de Seu Santo Espírito, que comunica a pes­ Novamente, os sacrifícios que os sacerdo­
soa de Cristo à nossa mente e coração por tes de Israel ofereciam eram inadequados.
Eles ensinavam o caminho para a salvação e bezerros, mas p o r seu próprio sangue, en­
através da morte de uma vítima inocente. N o trou uma vez no santuário, havendo efe­
entanto, o sangue de ovelhas e bodes não p o­ tuado uma eterna redenção. Porque, se o
deria levar os pecados, como o Antigo Testa­ sangue dos touros e bodes e a cinza de uma
mento e o N ovo Testamento reconhecem novilha, esparzida sobre os imundos, os
(Mq 6.6,7; Hb 10.4-7). santificam, quanto ã purificação da carne,
Além disso, os sacrifícios dos sacerdotes quanto mais o sangue de Cristo, que, pelo
terrenos eram incompletos, o que é atestado Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo
pelo fato de serem oferecidos muitas vezes. imaculado a Deus, purificará a vossa cons­
Em Jerusalém, por exemplo, o fogo do altar ciência das obras mortas, para servirdes ao
maior nunca se extinguia; e, em um sábado im­ D eus vivo ?
portante, como na Páscoa, literalmente cente­ Hebreus 9.11-14
nas de milhares de cordeiros eram oferecidos.
Em contraste com esse sacerdócio terre­ Finalmente, diferente dos sacrifícios dos
no, o sacrifício de Jesus fo i feito p or alguém sacerdotes do Antigo Testamento, que ti­
que era perfeito em si mesmo e que, portanto, nham que ser repetidos diariamente, o sacrifí­
não tinha necessidade de que uma propicia- cio de Jesus foi completo e eterno - evidência
ção fosse feita para Ele. Com o disse o autor que justifica o fato de Ele estar, hoje, assenta­
de Hebreus: do ao lado direito de Deus. N o templo judai­
co, não havia cadeiras, significando que a
Porque nos convinha tal sumo sacerdote, obra dos sacerdotes nunca estava acabada.
santo, inocente, imaculado, separado dos
pecadores e feito mais sublime do que os Mas este, havendo oferecido um único sa­
céus, que não necessitasse, como os sumos crifício pelos pecados, está assentado para
sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, sempre à destra de Deus, daqui em diante
primeiramente, p or seus próprios pecados esperando até que os seus inimigos sejam
e, depois, pelos do povo; porque isso fe z ele, postos p or escabelo de seus pés. Porque,
uma vez, oferecendo-se a si mesmo. com uma só oblação, aperfeiçoou para
Hebreus 7.26,27 sempre os que são santificados.
Hebreus 10.12-14
Segundo, sendo Ele próprio perfeito e, si­
multaneamente, o sacrifício, entende-se que o Qualquer ensino sobre sacerdotes e sacri­
sacrifício feito por Cristo era, em si mesmo, per­ fícios hoje é difícil para a maioria das pessoas
feito. Portanto, Ele poderia, na verdade, pagar o entender, pois não temos sacrifícios na maior
preço pelo pecado e removê-lo, de uma maneira parte do mundo civilizado e não entende­
que os sacrifícios em Israel não poderiam. Eles mos sua terminologia. N ão era muito fácil
eram uma sombra das coisas que estavam por de entender na antiguidade também. O au­
vir, mas não eram a realidade. A morte de Cristo tor de Hebreus, na verdade, reconhece isso
foi a real justificação e, somente com base nela, em um comentário intercalado: D o qual
Deus declara o pecador justificado. O autor de muito temos qu e dizer, de difícil interpreta­
Hebreus reforça esse ponto: ção, porquanto vos fizestes negligentes para
ouvir (H b 5.11).
Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos Por outro lado, as instruções elaboradas
bens futuros, [...] nem por sangue de bodes para a realização dos sacrifícios foram dadas
para ensinar tanto a natureza séria do pecado Disse também o Senhor: Simão, Simão, eis
como o modo pelo qual Deus providenciaria que Satanás vos pediu para vos cirandar
um meio para lidar com ele. Os sacrifícios como trigo. Mas eu roguei p or ti, para que
ensinavam duas lições. Primeiro, o pecado a tua f é não desfaleça; e tu, quando te con-
significa morte. É uma lição do julgamento de verteres, confirma teus irmãos.
Deus. Significa que o pecado é sério. A alma Lucas 22.31,32
que pecar, essa m orrerá (E z 18.4b). Segundo,
temos a mensagem da graça. A importância Sabemos, pelo desenrolar da história, que
do sacrifício é que, pela graça de Deus, um a intercessão de Cristo prevaleceu. Mais tar­
substituto inocente seria oferecido no lugar de, naquela noite, embora Pedro houvesse
do pecador. O bode ou o cordeiro não seria negado o Senhor em três ocasiões diferentes,
esse substituto, mas poderia apontar para Ele. a última vez com xingamentos e imprecações,
Jesus, entretanto, foi e é, para todos aqueles sua fé não falhou.
que o aceitarem como Salvador, o sacrifício N a verdade, quando o que Pedro fizera
único, perfeito e autossuficiente pelo pecado, tornou-se claro para ele com o cantar do galo,
com base no qual Deus considera o pecador o remorso o dominou, ele saiu, e chorou
justificado. Esse aspecto da obra de Cristo amargamente. Foi para um Pedro grande­
será considerado de modo mais completo nos mente humilhado que o Senhor veio mais
capítulos sobre propiciação e redenção. tarde, com um recomissionamento para o ser­
Um a segunda maneira pela qual Jesus viço (Jo 21.15-19).
cumpre Seu ofício sacerdotal ou mediador é O utro exemplo da intercessão de Cristo
ao interceder por nós hoje. Essa não é uma no N ovo Testamento é Sua oração pela Sua
obra suplementar que se adiciona ao sacrifí­ Igreja (Jo 17). Jesus não ora para que os discí­
cio dele mesmo na cruz, mas sim uma obra pulos se tornem ricos ou para que sejam ele­
seqüencial baseada nesse sacrifício. Temos vados a posições de respeito e poder no impé­
vários exemplos da intercessão de Cristo por rio Romano, ou mesmo para que sejam
outros no N ovo Testamento. poupados de perseguição e de sofrimento por
U m exemplo interessante é Sua interces­ causa de seu testemunho.
são por Pedro, contada após o fato. A história N a verdade, Sua oração é para que eles pu­
é que Satanás chegou até Deus em uma oca­ dessem tornar-se o tipo de homens e mulheres
sião e deu sua opinião sobre Pedro, querendo, que Ele desejava que fossem; isto é, homens e
na verdade, dizer: “Eu não sei o que Seu Filho mulheres em quem as marcas da Igreja fossem
espera desse fraco chamado Pedro. Se você evidentes: alegria, santidade, verdade, missão,
apenas me permitir atingi-lo, ele vai se espa­ unidade e amor. As preocupações de Cristo
lhar com o pó na ventania”. com eles (e conosco) são espirituais.
Dessa mesma maneira, Deus concedeu a U m a palavra maravilhosa é usada para
Satanás permissão para tocar em Jó (Jó 1.12; designar essa função mediadora do Senhor
2.6). Mas Jesus orou por Pedro, pedindo que Jesus Cristo, duplamente maravilhosa por­
a experiência pudesse fortalecê-lo mais do que também é usada para se referir ao ministé­
que destruí-lo. Ele pediu que o pó pudesse rio terreno do Espírito Santo em nosso favor.
ser soprado ao longe para que mais do grão N a língua grega, a palavra é parakletos. Em
verdadeiro, que Ele havia semeado ali, pu­ português, ela é traduzida como consolador
desse tornar-se visível. Suas próprias pala­ (embora não seja a melhor tradução), conse­
vras para Pedro foram: lheiro ou advogado. Ela é usada em referência
ao Espírito Santo nos discursos finais de Cris­ de algum modo, ter ousadia se a resposta às
to, nos quais Ele fala de outro consolador (Jo nossas orações dependesse ou da força com
14.16; 14.26; 15.26; 16.7). É usada em relação que oramos ou da correção dos pedidos em
ao próprio Jesus (1 Jo 2.1). si? Nossas orações são fracas, como Paulo
O sentido real da palavra vem de sua nuan- confessa, e, muitas vezes, oramos de maneira
ce legal ou forense. Literalmente, parakletos errada. N o entanto, somos ousados, pois te­
vem de duas palavras gregas separadas: para, mos o Espírito Santo para fortalecer os pedi­
que significa ao lado de (como observamos nas dos, e o Senhor Jesus Cristo para interpretá-
palavras parábola, paradoxo, paralelo, entre -los da maneira certa.
outras), e kletos, que significa chamado (ela
também é usada na palavra grega para Igreja, O R e in o de D eu s: R e i ______________________

ekklesia, que significa os chamados). O terceiro aspecto da obra de Cristo é o


U m parakleto é, portanto, chamado para reinado. Diferente dos dois outros ofícios -
auxiliar alguém lado a lado, em outras pala­ que têm uma base limitada, explícita e textual
vras, um advogado. E interessante notar que - há um extenso material bíblico sobre o rei­
esse é o significado do vocábulo advogado nado de Cristo.
que, composto por duas palavras, ad, que sig­ Primeiro, existe o imperioso tema da so­
nifica para ou em direção a, e vocare, que é berania de Deus sobre Sua criação. U m a vez
chamar. Logo, um advogado é alguém cha­ que Jesus é Deus, isso claramente influencia Seu
mado para ajudar outra pessoa. próprio governo ou soberania. H á profecias
A ilustração, então, é de algo que podería­ messiânicas específicas sobre o reinado majes­
mos chamar de “escritório celestial de advo­ toso de Cristo, como Deus prometeu ao Rei
gados”, do qual somos clientes. H á uma filial Davi: Porém a tua casa e o teu reino serão firma­
no céu, presidida pelo Senhor Jesus Cristo, e dos para sempre diante de ti; teu trono será fir­
uma filial terrena, dirigida pelo Espírito San­ me para sempre (2 Sm 7.16). Mais tarde, quando
to. Cada uma delas defende as nossas causas. a casa de Davi estava em evidente declínio, o
E tarefa do Espírito nos levar a orar e intensi­ profeta Isaías intensificou as promessas e apon­
ficar essa oração a um ponto em que nós mes­ tou para o Messias que ainda estava por vir.
mos não conseguimos.
Paulo escreveu: Porque um menino nos nasceu, um filho se
nos deu; e o principado está sobre os seus
E da mesma maneira também o Espírito ombros; e o seu nom e será Maravilhoso
ajuda as nossas fraquezas; porque não sa­ Conselheiro, D eus Forte, Pai da Eternida­
bemos o que havemos de p ed ir como con­ de, Príncipe da Paz. D o incremento deste
vém, mas o mesmo Espírito intercede por principado e da paz, não haverá fim , sobre
nós com gemidos inexprimíveis. o trono de D avi e no seu reino, para o fir­
Romanos 8.26 m ar e o fortificar em juízo e em justiça,
desde agora e para sempre; o zelo do SE ­
Semelhantemente, é o ministério do Se­ N H O R dos Exércitos fará isto.
nhor no céu interpretar nossas orações de mo­ Isaías 9.6,7
do correto, e atestar a eficácia de Seu sacrifício
como base de nossa aproximação de Deus. H á muitos salmos sobre o tema (por exem­
A conseqüência disso é que podemos ter plo, nos Salmos 45; 72; 110). Em Miquéias 5.2,
grande ousadia na oração. Com o poderíamos, dito do local de nascimento desse futuro rei:
E tu, Belém Efrata, posto que pequena en­ faremos para lidar com a afirmação do pró­
tre milhares de Judá, de ti m e sairá o que prio Cristo de que o Reino de Deus está entre
será Senhor em Israel, e cujas origens são vós (L c 17.21)? Ele é espiritual?
desde os tempos antigos, desde os dias da Se é, como podemos entender as profecias
eternidade. explícitas sobre a continuação do trono de
Davi ou mesmo das promessas de justiça e
Daniel contém uma visão daquele a quem paz que fariam parte do Reino do Messias?
foi dado o domínio, e a honra, e o reino, para Observamos, p or exemplo, que a falta de
que todos os povos, nações e línguas o servis­ justiça e paz no mundo é uma razão dada pela
sem; o seu domínio é um domínio eterno, que comunidade judaica de hoje para justificar
não passará, e o seu reino, o único que não será sua recusa a crer que Jesus de Nazaré seja seu
destruído (Dn 7.14). verdadeiro Messias. Podemos eliminar esses
O nascimento de Jesus foi anunciado nes­ elementos da nossa compreensão do governo
sas categorias e, quando iniciou Seu ministé­ de Cristo? O u limitamos o Reinado de Jesus
rio terreno, Ele mesmo tocou nesses temas. apenas à Igreja? A resposta para cada uma
O anjo que anunciou Sua chegada à Maria dessas questões é complexa, mas apenas fa­
disse: zendo essas perguntas e começando a buscar
por respostas na Bíblia é que chegamos gra­
Este será grande e será chamado Filho do dualmente a entender o conceito do reinado
Altíssimo; e o Senhor D eus lhe dará o tro­ de Cristo.
no de Davi, seu pai, e reinará eternamente Um a vez, perguntaram-me se o Reino de
na casa de Jacó, e o seu Reino não terá fim. Deus era passado, presente ou futuro. O ar-
Lucas 1.32,33 guidor tinha em mente o debate sobre o as­
sunto que estava em voga em círculos acadê­
Mais tarde, João Batista falou da iminên­ micos teológicos durante alguns anos, en­
cia do Reino de Deus por meio da vinda de volvendo nomes com o T. W. Manson e C. H .
Cristo. U m pouco depois, o próprio Jesus Dodd, da Inglaterra, Rudolf Bultmann e
começou Seu ministério com a surpreendente Martin Dibelius, da Alemanha, e Albert
proclamação: Arrependei-vos, porque é che­ Schweitzer.
gado o Reino dos céus (M t 4.17b). Respondi com um resumo do debate e,
N o final do N ovo Testamento, encontra­ depois, com a afirmação de que a visão bíbli­
mos a culminância desse tema, mostrando o ca, mesmo nesses três termos, não poderia ser
Senhor assentado sobre um trono, Seus ini­ expressa adequadamente. De certa forma, o
migos sujeitando-se a Ele e um novo nome Reino certamente já chegou, pois Deus sem­
lhe sendo dado: E na veste e na sua coxa tem pre reinou sobre as pessoas e a história. Mas,
escrito este nom e: R e i d o s r e i s e S e n h o r d o s ao mesmo tempo, também é presente e futu­
s e n h o r e s (Ap 19.16). ro. Assim, Deus governa hoje e continuará a
Contudo, temos um problema aqui. Se reinar. Quanto mais se olha para as declara­
esse tema é tão dominante quanto parece, e se ções da Bíblia sobre o Reino, mais sentimos
Jesus realmente é o Rei dos reis e Senhor dos que ele transcende qualquer um desses con­
senhores, como é que o mundo mudou tão ceitos temporais.
pouco e por que Seu Reino é tão pouco reco­ Talvez a coisa mais importante a ser dita
nhecido? Esse é o futuro? Essa seria uma ma­ sobre o Reino de Deus é que ele é o Reino de
neira de lidar com o problema, mas com o Deus. Isso significa que ele está muito além
dos reinos de homens e é infinitamente supe­ glória, e a magnificência [...] Mas, quando
rior a eles. o seu coração se exaltou e o seu espírito se
Estudamos as páginas da história e vemos endureceu em soberba, fo i derribado do
os reinos deste mundo ascendendo e declinan­ seu trono real, e passou dele a sua glória. E
do ao longo dos séculos. Historiadores nos di­ foi tirado dentre os filhos dos homens, e o
zem que o mundo conheceu três grandes civili­ seu coração fo i feito semelhante ao dos
zações, todas elas perduraram apenas por um animais, e a sua morada fo i com os jum en ­
tempo e, depois, desapareceram sem cerimônia. tos monteses; fizeram -no comer erva como
Em um momento, o Egito era uma pode­ os bois, e pelo orvalho do céu fo i molhado
rosa potência no mundo, mas hoje está fraco. o seu corpo, até qu e conheceu que Deus, o
E incapaz até de lutar com o diminuto Estado Altíssimo, tem domínio sobre os reinos
de Israel. A Babilônia era poderosa. Hoje, ela dos homens e a quem qu er constitui sobre
se foi, e seu território é dividido. A Síria, que eles. E tu, seu filho Belsazar, não hum i-
já foi forte, hoje é uma curiosidade arqueoló­ Ihaste o teu coração, ainda que soubeste
gica. Grécia e Roma caíram. Além disso, sa­ de tudo isso.
bemos que até mesmo os Estados Unidos da Daniel 5.18, 20-22
América e a União Soviética, embora hoje no
pináculo do poder mundial, não conseguirão Naquela noite, Belsazar foi m orto, e Da-
escapar da lei inexorável de Deus para a histó­ rio reinou em seu lugar.
ria: A justiça exalta as nações, mas o pecado é Esse é o curso dos reinos humanos. Deus
o opróbrio dos povos (Pv 14.34). O orgulho permite que um indivíduo ou grupo seja le­
pode fazer com que cada uma delas caia. vantado acima dos seus com poder, o triunfo
O curso normal dos reinos deste mundo é deles traz orgulho, e Deus os destitui. Os po­
descrito com grande impacto no livro de D a­ deres humanos ascendem e caem, porém, so­
niel. Belsazar, rei da Babilônia, havia ofereci­ bre toda essa agitação da história humana,
do uma festa no decorrer da qual desonrou as Deus reina. Ele é soberano sobre a história
taças tiradas do templo de Deus, em Jerusa­ humana, mesmo sobre domínios que estão
lém. N o meio daquela festa, escritos aparece­ em rebelião contra Ele. Esse aspecto do Reino
ram na parede do palácio, e Belsazar ficou de D eus traz conforto para aqueles que, de
aterrorizado. Os escritos diziam: outro modo, estariam angustiados com os in-
quietantes eventos mundiais. Jesus disse: Não
Esta, pois, é a escritura que se escreveu: andeis cuidadosos quanto à vossa vida (Mt
M EN E, M EN E, T E Q U E L e PARSIM. Es­ 6.25a), acrescentando que, independente de
ta é a interpretação daquilo: M E N E : Con­ guerras e de rumores de guerras, Seus segui­
tou Deus o teu reino e o acabou. T E Q U E L : dores não deveriam assustar-se (M t 24.6).
Pesado foste na balança e foste achado em U m segundo fator importante sobre o go­
falta. PERES: Dividido foi o teu reino e verno de Cristo é Sua dimensão presente. Je­
deu-se aos medos e aos persas. sus primeiro exerce Seu governo sobre uma
Daniel 5.25-28 alma individualmente, ao trazê-la à fé nele
mesmo e, depois, direcionando-a; segundo,
Daniel disse ao rei: ao governar e dirigir Sua Igreja, para que os
princípios do Reino possam ser vistos em
O rei! Deus, o Altíssimo, deu a Nabucodo- meio aos que creem, para, então, influencia­
nosor, teu pai, o reino, e a grandeza, e a rem o mundo descrente.
Quando oramos: “Venha o Teu Reino”, outras ainda caíram entre espinhos e foram
como fazemos no Pai N osso, é esse governo sufocadas por eles; algumas, porém, caíram em
presente (e não simplesmente uma vinda fu­ solo bom, onde produziram, em alguns casos,
tura) que temos em mente. Paulo define o centenas de grãos, 60 por 1, ou 30 por 1.
Reino de Deus como uma realidade do tempo Depois, Jesus explicou a parábola, mos­
presente: Porque o Reino de D eus não é comi­ trando que a semente era a Palavra de Deus,
da nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no que teria resultados diferentes na vida das
Espírito Santo (Rm 14.17). pessoas que a ouvissem. Alguns corações se­
Infelizmente, alguns partiram de uma riam tão duros que não a aceitariam de jeito
consciência do domínio de Cristo sobre Sua nenhum, e os servos de Satanás logo as rouba­
Igreja e sobre o mundo, que está constante­ riam. Outros a receberiam como uma novida­
mente em expansão, para chegar à errônea de, mas logo perderiam interesse, particular­
conclusão de que, visto que o Reino de Deus mente diante da perseguição. O terceiro
chega aonde quer que pessoas creiam em grupo seria formado por todos que permitem
Cristo e respondam ao evangelho, este conti­ que a Palavra seja sufocada por preocupações
nuará, inevitavelmente, expandindo-se até mundanas e por seu deleite nas riquezas. So­
que todo ou quase todo o mundo creia. mente o quarto grupo seria composto por
Essa visão era popular no século 19. Hoje, aqueles em que o evangelho criaria raiz e da­
a realidade de duas guerras mundiais, de uma ria frutos.
guerra fria e do reconhecido declínio da influ­ A parábola significa que apenas parte da
ência do cristianismo no mundo ocidental ti­ pregação da mensagem sobre o Reino de
rou, de muitos cristãos, o entusiasmo por esse Deus dará fruto, acabando de vez com a ideia
tipo de raciocínio. de que a proclamação do evangelho será cada
E surpreendente que tal linha de pensa­ vez mais eficaz e, inevitavelmente, trará um
mento tenha até mesmo sido seguida. O Se­ triunfo total da Igreja, à medida que a história
nhor advertiu contra isso nas parábolas sobre avança.
o Reino (Mt 13), ensinando que grande parte A segunda parábola reforça o ponto ainda
do mundo nunca se converteria, que os filhos mais claramente. E a história do joio e do tri­
do diabo estariam presentes até o fim, mesmo go. Jesus disse que um homem saiu a semear
dentro da igreja, que Seu domínio viria em grãos, mas, após ter feito isso, um inimigo
totalidade apenas no momento final, e que, veio e semeou o joio. Os dois tipos de planta
então, esse reino seria estabelecido somente cresceram juntos, o trigo verdadeiro e o joio
pelo Seu poder, apesar da animosidade amar­ que parecia com o trigo, mas que seria im­
ga e contínua. prestável como comida.
H á sete parábolas nesse capítulo de Mateus, N a história, os servos queriam arrancar o
começando com a do semeador que saiu a se­ joio, mas o dono lhes disse para não fazê-lo,
mear, e terminando com a da rede. Elas falam para que não arrancassem parte do trigo tam­
dos últimos 19 séculos da história da Igreja. bém. Em vez disso, eles deveriam deixar am­
A primeira parábola é a do semeador. Je­ bos crescerem juntos até a colheita, quando
sus disse que um homem saiu a semear. Algu­ os grãos de trigo seriam armazenados nos
mas das sementes caíram em uma superfície celeiros, e o joio seria queimado.
dura, onde foram devoradas por pássaros; Quando Jesus ficou sozinho com os discí­
outras caíram em solo superficial e brotaram pulos, Ele explicou que o campo era o mundo,
rápido, apenas para serem ressecadas pelo sol; o trigo representava todos os que pertenciam a
Ele, e o joio, os filhos do diabo. Isso significa toda a Judéia e Samaria e até aos confins da
que sempre haveria no mundo aqueles que terra (v. 7 ,8)6.
são os verdadeiros filhos de Deus e aqueles
que são filhos do diabo. Isso seria verdade I m it a d o r e s de C r i s t o ______________________

por toda a história da Igreja. Além disso, Para nós, a obra do Reino de Deus recai
uma vez que alguns filhos do diabo imita­ na última dessas declarações. Somos testemu­
riam tanto os filhos de Deus, ninguém deve­ nhas de Cristo. Temos de levar a mensagem
ria separar os dois nesse mundo, para que al­ de Seu poder por nossas cidades, estados, na­
guns cristãos não perecessem com os outros. ções e pelo mundo.
O ponto principal da parábola é que essas Quando fazemos isso, percebemos que,
condições insatisfatórias permanecerão até o por meio da autoridade que recebemos de
final dos tempos. C risto, estamos especialmente equipados
As outras parábolas trazem argumentos para nossa tarefa. Ele é nosso profeta, sacer­
semelhantes; isto é, a expansão do Reino de dote e rei - e Ele nos fez profetas, sacerdotes
Deus será acompanhada pela influência do e reis.
diabo e sempre será imperfeita. Deve ficar Somos profetas no sentido de que também
evidente que, diante da realidade do Reino de somos porta-vozes de Deus neste mundo.
Deus como a vemos hoje, ainda está por vir N os dias de Moisés, esse era apenas um
um momento em que o domínio do Senhor desejo acalentado: Tomara que todo o povo
Jesus Cristo será plenamente reconhecido. do S E N H O R fosse profeta (N m 11.29).
Isso é o terceiro ponto importante que deve Mas, em nossos dias, com o resultado do
ser estabelecido acerca do reinado de Cristo. derramamento do Espírito Santo sobre a
Jesus disse aos Seus discípulos que haverá Igreja no Pentecostes, ele se realizou. Dessa
um Reino espiritual por toda a era da Igreja. forma, com o Pedro afirmou, as palavras do
Entretanto, Ele ensinou que haverá um reino profeta Joel em relação aos últimos dias fo­
literal e futuro também. E m uma parábola, ram cumpridas.
Ele se comparou a um nobre que viajou para
um país distante para receber um reino e de­ E nos últimos dias acontecerá, diz Deus,
pois voltou. Nesse meio tempo, Ele deixou que do m eu Espírito derramarei sobre to­
talentos nas mãos de Seus servos, ordenando da a carne; e os vossos filhos e as vossas fi­
que fossem fiéis e que estivessem prontos lhas profetizarão, os vossos jovens terão
para dar conta de tudo quando Ele voltasse visões, e os vossos velhos sonharão sonhos;
(L c 19.11-27). e também do m eu Espírito derramarei so­
Em outra ocasião, após a ressurreição, os bre os meus servos e minhas servas, naque­
discípulos perguntaram a Jesus: Senhor, res- les dias, e profetizarão.
taurarás tu neste tempo o reino a Israelf (At Atos 2 .1 7 ,1 8 .
1.6b). Ele respondeu: Não vos pertence saber
os tempos ou as estações que o Pai estabeleceu C om o profetas, falamos sobre a Palavra
pelo seu próprio poder. [Em outras palavras, de Deus a nossos contemporâneos. Somos
vocês estão certos em relação ao Reino, mas também sacerdotes. É verdade, nunca mais
não é da conta de vocês saber os tempos do haverá outro sacerdócio com o o do Antigo
Pai.] Mas recebereis a virtude do Espírito Testamento - Cristo o aperfeiçoou para sem­
Santo, qu e há de vir sobre vós; e ser-me-eis pre. Contudo, de certa forma, todo o povo
testemunhas tanto em Jerusalém como em de Deus é sacerdote, visto que todos têm
acesso a Deus igualmente, com base no sa­ Finalmente, há um sentido pelo qual tam­
crifício de C risto, sendo chamados para bém somos reis em Cristo. Em Apocalipse, os
oferecerem-se a Deus em autoconsagração, santos de Deus são mencionados da seguinte
louvor e serviço. forma: [Tu] os fizeste reis e sacerdotes; e eles
Pedro falou disso explicitamente, lem­ reinarão sobre a terra (Ap 5.10). Com o vamos
brando-nos de que somos sacerdócio santo, reinar? N ão vamos reinar uns sobre os outros,
para oferecermos sacrifícios espirituais, agra­ pois não é assim que Jesus exerce Seu poder
dáveis a Deus, p or Jesus Cristo (1 Pe 2.5b). sobre nós. Em vez disso, como diz o hino:
Paulo provavelmente tinha essa ideia em
mente quando escreveu aos Romanos: Rogo- Não com o tilintar das espadas
-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, Nem com o rufar de tambores
que apresenteis o vosso corpo em sacrifício vi­ Mas com atos de amor e misericórdia
vo, santo e agradável a Deus, que é o vosso Chega o Reino dos céus
culto racional (Rm 12.1). Também devemos
exercer nosso sacerdócio em oração interces- N osso reinado é expresso, não em privilé­
sora uns pelos outros e pelo mundo. gios, mas em responsabilidade.

N otas

1 Martinho Lutero foi provavelmente o primeiro a ensinar explicitamente que Cristo era Profeta, Sacerdote e Rei, mas
ele nunca se referiu a isso como um tríplice ofício. Essa distinção pertence a João Calvino que, com seu incrível dom
para sistematização, desenvolve o termo completamente no volume II das Institutas (cap. 15). A partir desse ponto,
ele é visto frequentemente em escritos protestantes, particularmente naqueles dos puritanos americanos e ingleses.
A Confissão de Fé de Westminster menciona o tríplice ofício de Jesus no capítulo De Cristo o Mediador. O
Breve Catecismo pergunta de que modo Ele exerce esses ofícios, e responde: “Cristo exerce as funções de profeta,
revelando-nos, pela Sua Palavra e pelo Seu Espírito, a vontade de Deus para a nossa salvação [...] Cristo exerce as
funções de sacerdote, oferecendo-se uma vez em sacrifício para satisfazer a justiça divina e reconciliar-nos com
Deus, fazendo contínua intercessão por nós. Cristo exerce as funções de rei, sujeitando-nos a si mesmo, governan­
do-nos e protegendo-nos, contendo e subjugando todos os Seus e os nossos inimigos” (Perguntas 24,25,26).
3 Expressões extraídas da Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, que é bem conhecida de
todos os norteamericanos.
4 Discuti esse conceito de logos de modo mais aprofundado tanto em The Gospel ofJohn [O Evangelho de João]. Vol.
I. Michigan: Zondervan, 1975, p. 37-42 e em Witness and Revelation in the Gospel ofJohn [Testemunho e revelação
no Evangelho de João]. Michigan: Zondervan, 1970, p. 159-163.
6 Uma quantidade de material sobre o Reino de Deus foi tomada emprestada de minha obra The Sermon of the Mount
[O Sermão do Monte] p. 205-211.
A p a z ig u a n d o a ir a d e D eus

ividir os ofícios do Senhor Jesus resposta for sim, como pode ser que a morte
Cristo nas categorias de Profeta, de um homem, por mais significativa que seja,
Sacerdote e Rei é, aparentemen­ possa desviar o furor divino de nós?
te, uma forma vantajosa de dar Essas são perguntas que precisamos ter
conta de Seu ministério em um capítulo inteli­ em mente quando começamos a analisar a
gível. A desvantagem é que isso não mostra de questão da morte de Cristo. É também rele­
maneira adequada como os vários ofícios se vante perguntar: “o que exatamente Sua mor­
relacionam uns com os outros nem indica qual te conquistou? E como conquistou?”
deles é o mais importante. Para responder essas perguntas examina­
De acordo com a Bíblia, o propósito de remos, neste capítulo, a ideia da propiciação
Jesus era morrer em nosso lugar (Mc 10.45), o e, no próximo, a da redenção.
que nos leva a uma discussão mais profunda
sobre o significado de Seu sacrifício. Quando a P r o p ic ia ç ã o : o p r ó p r io D eu s
aplacan do Sua i r a __________________________
questão em análise é a morte de Cristo, torna-
-se ainda mais difícil, para as pessoas da socie­ A propiciação é um conceito pouco en­
dade atual, aceitar o que foi feito por Ele na tendido, que tem a ver com sacrifícios, visto
cruz como aspecto central de Seu ministério. que se refere ao que Jesus conquistou junto a
Os conceitos bíblicos centrais para a com ­ Deus com Sua morte. A redenção, por sua
preensão desse tema são propiciação e reden­ vez, está ligada ao que Cristo conquistou em
ção, mas cada um deles é, além de difícil, ofen­ relação a nós.
sivo para muitos. A propiciação se relaciona ao Ao redimir-nos, o Cordeiro nos libertou
sacrifício, por meio do qual a ira de Deus con­ da escravidão do pecado. P or outro lado, o
tra o pecado é aplacada. A redenção, por sua foco da propiciação é Deus, de modo que
vez, refere-se à libertação de um escravo. podemos dizer: “P or meio de Sua morte, Je ­
É fácil acreditar que Deus nos salva pa­ sus aplacou a ira do Pai contra o pecado e,
gando um preço por nossa redenção? Isso assim, tornou possível ao Senhor ser propí­
não nos remete às ideias medievais que retra­ cio ao Seu p ovo”.
tavam Cristo como preço do resgate pago Isso requer, porém, uma explicação. Em
pelo Pai ao diabo? E certo afirmar que o con­ primeiro lugar, precisamos observar que o
ceito de propiciação está fora de moda? Pode­ conceito da propiciação pressupõe o conceito
mos realmente acreditar que a ira influencia, da ira divina. Se o pecado não provoca a ira de
de algum modo, a questão da salvação? Se a Deus, não há necessidade de propiciá-lo, o
que faz com que o significado da morte de pagão e o cristão, visto que, biblicamente, o
Cristo deva, portanto, ser expresso em outras Senhor não é caprichoso nem se ira facilmen­
categorias. te, não sendo, portanto, um Deus a quem de­
Esse ponto chamaria a atenção de muitos vemos propiciar, a fim de mantermo-nos sob
pregadores modernos que argumentariam ser Sua boa graça. Essa visão é totalmente oposta
precisamente por essa razão que o termo não à posição cristã, já que, de acordo com ela, o
deve ser usado ou, se for, deve receber outro Pai é visto como um Deus de graça e amor.
significado. Entretanto, por mais solidários que possa­
Alguém poderia dizer: “Conseguimos en­ mos ser com as preocupações desses acadêmi­
tender, como a ideia da propiciação seria ade­ cos, não podemos ignorar a amplitude da
quada ao paganismo, visto que, de acordo abrangência dessa questão.
com essa linha de pensamento, considerava- Primeiro, não podemos nos atrever a es­
-se que Deus era caprichoso, ofendia-se com quecer do que a Bíblia afirma sobre a justa ira
facilidade e, portanto, ficava com raiva fre­ divina contra o pecado, de acordo com a qual
quentemente. Mas esse não é o retrato bíblico este será punido ou em Cristo ou na pessoa
do Senhor. De acordo com a revelação cristã, do pecador. Podemos sentir, devido a nossos
Ele não está com raiva. Em vez disso, é amo­ preconceitos culturais particulares, que a ira e
roso e cheio de graça. N ão é o Pai que está o amor do Senhor são incompatíveis. Porém,
separado de nós por causa do nosso pecado, a Bíblia ensina que Deus é ira e amor ao mes­
mas, na verdade, somos nós que estamos se­ mo tempo.
parados dele. Assim, não é Ele que deve ser Além disso, Sua ira não é apenas um pe­
propiciado, mas nós mesmos”. queno e insignificante elemento que, de algu­
Os que fazem esse tipo de argumentação ma forma, está junto ao Seu muito mais signi­
seguem uma das duas linhas de pensamento: ficativo e incrível amor. N a verdade, a ira
ou rejeitam completamente a ideia de propi­ divina é o maior elemento que pode ser ob­
ciação, considerando sua presença na Bíblia servado nas Escrituras, desde o julgamento de
como um resquício pagão de uma maneira Deus contra o pecado no jardim do Éden até
imperfeita de pensar sobre Deus, ou então os cataclísmicos julgamentos finais registra­
interpretam o significado da palavra grega pa­ dos em Apocalipse (esse assunto já foi estuda­
ra propiciação não como a propiciação de do de modo mais abrangente no capítulo 7).
Cristo da ira divina, mas sim com o um enco­ Segundo, embora a palavra propiciação se­
brimento ou expiação de nossa culpa pelo Seu ja usada em escritos bíblicos, ela não tem a
sacrifício. Em outras palavras, eles conside­ mesma conotação que assume nos escritos
ram a obra voltada diretamente ao homem em pagãos. Em rituais pagãos, o sacrifício era o
vez de em direção a Deus. meio pelo qual as pessoas acalmavam uma di­
A influência do falecido C . H . Dodd, de vindade ofendida. N o cristianismo, nunca são
Cambridge, Inglaterra, acadêmico especia­ as pessoas que tomam a iniciativa ou fazem o
lista nesse conceito, fez com que a palavra sacrifício, mas o próprio Deus que, graças ao
propiciação fosse traduzida com o expiação Seu grande amor pelos pecadores, providen­
nos textos relevantes da versão R evised ciou o caminho pelo qual Sua ira contra o
Standard Version da Bíblia (Rm 3.25; Hb pecado pudesse ser desviada. Além disso,
2.17; 1 Jo 2.2; 4.10).1 Ele mesmo é o caminho - em Jesus. Essa é a
Devemos apreciar a obra daqueles que fi­ verdadeira explicação do fato do Senhor
zeram distinção entre o conceito de propiciação nunca ser o objeto explícito da propiciação
nos escritos bíblicos. Ele não é mencionado Porque todos pecaram e destituídos estão
como o objeto dela porque é, também, Seu da glória de Deus, sendo justificados gra­
sujeito, função muito mais importante. Em tuitamente pela sua graça, pela redenção
outras palavras, o próprio Deus aplaca Sua ira que há em Cristo Jesus, ao qual D eus pro­
contra o pecado para que Seu amor possa re­ pôs para propiciação pela f é no seu sangue,
ceber e salvar os pecadores. para demonstrar a sua justiça pela remis­
A ideia da propiciação é mais claramente são dos pecados dantes cometidos, sob a
observada no sistema sacrificial do Antigo paciência de Deus; para demonstração da
Testamento, já que, por meio do mesmo, sua justiça neste tempo presente, para que
Deus ensinou o caminho pelo qual os peca­ ele seja justo e justificador daquele que
dores poderiam aproximar-se dele. tem f é em Jesus.
O pecado implica a morte, como foi assi­
nalado anteriormente. Contudo, os sacrifí­ C om o a propiciação deve ser interpretada
cios ensinam que há uma maneira de escapar na afirmação de Paulo sobre a natureza da
dela e de aproximar-se de Deus. O utro pode obra de Cristo na justificação: no sentido de
morrer no lugar do pecador. Isso pode pare­ apaziguar a ira de Deus contra o pecado, ou
cer assustador, até mesmo imoral, como al­ como o encobrimento da culpa, significado
guns tem injustamente afirmado, mas é isso que se reflete em algumas traduções, dentre as
que o sistema sacrificial ensina. quais se encontra a RSV (Revised Standard
Desse modo, o indivíduo israelita era ins­ Version)}
truído a realizar sacrifícios toda vez que se Se não houvesse nenhuma referência a não
aproximava de Deus. A família deveria matar ser essa passagem, talvez ficássemos sem res­
e consumir um animal em observância anual à posta. Porém, temos um contexto inteiro na
Páscoa, e a nação deveria ser representada anu­ seção de abertura da carta de Paulo aos R o­
almente pelo sumo sacerdote no Dia da Expia- manos, que, bem argumentada, exerce influ­
ção, quando o sangue da oferta seria aspergido ência sobre a natureza da obra de Cristo de­
sobre o propiciatório da arca da aliança dentro clarada aqui. O começo desse contexto está
do Santo dos Santos do templo judaico. Ao em Romanos 1.18, texto por meio do qual o
final desse processo, Jesus surgiu como a ofer­ apóstolo introduz seu argumento formal com
ta que tiraria o pecado do mundo (Jo 1.29). a afirmação de que do céu se manifesta a ira
A progressão é essa: um sacrifício por uma de D eus sobre [...] homens que detêm a ver­
pessoa, por uma família, por uma nação, pelo dade em injustiça.
mundo. O caminho para a presença de Deus A passagem continua afirmando que rece­
está, agora, aberto a qualquer um que queira bemos um conhecimento de Deus na criação,
vir ao Senhor, fato simbolizado, na morte de mas, deliberadamente, afastamo-nos dele, a
Cristo, pelo rasgar do véu que separava o fim de rejeitar o Senhor e de estabelecer um
Santo dos Santos do resto do templo. falso deus. Isso é impiedade e injustiça.
É por causa disso que a ira divina é dirigi­
Q ua tro t exto s d o N ovo T esta m en to da a eles. N o restante do capítulo, Paulo mos­
Apenas quatro textos do N ovo Testamen­ trou como isso funciona. Deus decretou que,
to usam, de fato, o termo propiciação, embora se eles não o recebessem, deveriam sofrer as
a ideia de sacrifício à qual ela é ligada seja do­ conseqüências de seu próprio viver e pensar
minante em quase toda a Bíblia. A passagem aviltantes. Assim, eles se entregariam a uma
crítica está em Romanos 3.23-26: mentira (a fim de que suas mentes se tomassem
obscurecidas) e a um viver depravado, tendo justiça pela remissão dos pecados dantes
como resultado a inveja, o homicídio, as con­ cometidos, sob a paciência de Deus.
tendas, o engano, a malícia, a fofoca, a calú­ Romanos 3.24,25
nia, o ódio e todo o tipo de maldade.
N o segundo capítulo, Paulo deixou de la­ Isso significa que a ira divina direcionada
do a discussão sobre o modo pelo qual a ira a nós por causa do nosso pecado foi apazi­
divina é resolvida, a fim de começar a analisar guada pela ação do Senhor por intermédio da
a extensão da mesma. Ele sabe que somos fre­ morte de Cristo.
quentemente muito rápidos para acusar ou­
tros embora não deixemos de dar desculpas O sangue — isto é, a morte sacrificial — de
para nós mesmos. Assim, surge a pergunta: Jesus Cristo aplacou a ira de Deus contra nós e
estaria alguém isento da ira de Deus? A res­ assegurou-nos de que Seu tratamento para co­
posta é não. Portanto, tendo mostrado como nosco será sempre propício e favorável. Daqui
esta afeta o mundo pagão (no capítulo 1 de por diante, em lugar de mostrar-se contra nós,
Romanos), Paulo ressaltou, neste segundo Ele será por nós, em nossa vida e experiência.
capítulo, que as pessoas ditas morais e religio­ O que então indica a expressão a propiciação
sas também são afetadas pelas conseqüências [,..~]pelo Seu sangue? Ela expressa, no contexto
do pecado. da argumentação de Paulo, precisamente este
Indivíduos com boa moral são afetados pensamento: que por intermédio de Sua morte
porque, independente de qual seja a imagina­ sacrificial por nossos pecados, Cristo acalmou a
da capacidade moral que cada um julga ter, ira de Deus. (P a c k e r , 1973, p. 172-3)
todos estão longe de satisfazer o alto padrão
de Deus. Para piorar, há os que se vangloriam A passagem mostra que a ira do Senhor,
de sua religiosidade e não se arrependem, ig­ ao contrário da raiva caprichosa, presunçosa
norando que a graça e o perdão de Deus ser­ e, atualmente, irrelevante dos deuses pagãos,
vem para levá-los ao arrependimento (Rm é, na verdade, uma oposição inflexível e terrí­
2.4), e deixando de reconhecer que suas valio­ vel do Altíssimo a tudo que se opõe à santida­
sas práticas limpam apenas o exterior de sua de. Ela é dirigida a todos nós, pois todos so­
vida, enquanto deixam intocada a grave cor­ mos impuros. A o mesmo tempo, a passagem
rupção interior (Rm 2.28,29). mostra como o Pai, por Seu grande amor, que
A conclusão de Paulo, no capítulo 3, foi também é uma parte fundamental de Sua na­
de que todos estamos debaixo da ira de Deus, tureza, agiu pessoalmente para propiciar Sua
porque todos pecamos. Todavia, nesse ponto, ira e, assim, salvar a humanidade.
a justiça e a graça do Senhor são reveladas, A segunda passagem do N ovo Testamen­
visto que, na pessoa de Seu Filho Jesus Cris­ to que usa a palavra propiciação está na Carta
to, o Pai providenciou um meio pelo qual os aos Hebreus. Ela não tem a mesma ênfase que
que creem nele possam ser salvos. o texto em Romanos, pois nele Paulo falou
Em bora todos tenham pecado, explicitamente da obra de Cristo em propi­
ciar a ira de Deus, enquanto que, em Hebreus,
[Nós, que estamos em Cristo, fomos] jus­ o autor estava mais preocupado com o modo
tificados gratuitamente pela sua graça, p e ­ pelo qual a propiciação é feita, a saber, com o
la redenção que há em Cristo Jesus, ao tipo de natureza que Cristo precisava ter, a
qual D eus propôs para propiciação pela fim de realizar a propiciação. Seu argumento
f é no seu sangue, para dem onstrar a sua é que Jesus se tornou um com a humanidade,
a fim de representá-la como fiel sumo Sacer­ enviou seu Filho para propiciação pelos
dote: Pelo que convinha que, em tudo, fosse nossos pecados.
semelhante aos irmãos, para ser misericordio­ 1 João 2.1,2; 4.10
so efiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus,
para expiar os pecados do povo (Hb 2.17). Qual é a preocupação central desse texto?
Apesar de não mencioná-la explicitamen­ Mais uma vez, nenhum fala de maneira explí­
te, esse texto não diz nada contrário à ideia da cita sobre a ira de Deus, mas, no primeiro
propiciação da ira de Deus contra o pecado e, versículo, o dilema humano é transmitido, no
de fato, podemos até mesmo afirmar que o mínimo, indiretamente, como acontece em
autor, ainda que indiretamente, chega a suge­ Hebreus.
ri-la. P or exemplo, o texto se refere a Cristo Nesse caso, sugere-se a necessidade de
como Sacerdote misericordioso. propiciação por meio da referência a Jesus
Ter misericórdia significa mostrar favor a como nosso advogado. P or que precisamos
alguém que não merece. Então, fica implícito de um advogado ou ajudador se, na verdade,
que, se aqueles para os quais Jesus é Sacerdote não estamos em posição de dificuldade diante
não merecem misericórdia, o que claramente do Senhor? A razão, sem dúvida, é que esta­
merecem é a ira de Deus, a qual, entretanto, mos com um sério problema.
foi desviada deles pelo Seu sacrifício. João destacou desde os versículos prece­
O versículo se referee a Cristo com o Sa-
dentes (1 Jo 1.5-10) que somos pecadores e,
' cerdote naquilo que é de D eus (literalmente, portanto, estamos condenados e precisamos
em referência às coisas que são pertinentes ao de um advogado. Nesse contexto, é compre­
Pai). Então, uma obra mais direcionada ao ensível que o autor escolhesse falar sobre o
Senhor do que à humanidade é proeminente. papel sacerdotal de desviar a ira divina, desta-
P or fim, a passagem também sugere o sis­ cando-o com o base sólida por meio da qual
tema sacrificial antigo. A referência do autor podemos nos aproximar de Deus e ter certeza
a um misericordioso sumo Sacerdote é explica­ de Seu favor.
da, posteriormente, nas categorias do sacer­ O utra indicação do que João tinha em
dócio de Aarão e Melquisedeque. Jesus é su­ mente é sua afirmação de que a morte de Jesus
perior a esses profetas anteriores porque não fo i apenas por nossos pecados, mas pelos
oferece o sacrifício perfeito e, portanto, final pecados de todo o mundo (1 Jo 2.2b). É prová­
e totalmente inclusivo. vel que o apóstolo estivesse pensando no fato
Os dois últimos usos de propiciação no de que, no judaísmo, o sacrifício propiciató-
N ovo Testamento estão na Primeira Carta de rio oferecido pelo sumo sacerdote no Dia da
João: Expiação servia apenas para judeus. N o en­
tanto, desde a morte de Jesus, o sacrifício pas­
Meus filhinhos, estas coisas vos escre­ sou a valer para gentios e judeus da mesma
vo para que não pequeis; e, se alguém forma.
pecar, temos um Advogado para com o A menção final (1 Jo 4.10) não esclarece o
Pai, Jesus Cristo, o Justo. E ele é a pro­ significado da propiciação, mas o associa com
piciação pelos nossos pecados e não so­ a ideia do amor de Deus, suprindo-nos, dessa
m ente pelos nossos, mas também pelos forma, com “um desses retumbantes parado­
de todo o mundo. [...] Nisto está a cari­ xos que significam tanto para a compreensão
dade: não em que nós tenhamos ama­ da visão cristã de sacrifício” ( M o r r i s , 1956,
do a Deus, mas em que ele nos amou e p. 179).
Assim, a morte de Cristo é uma propicia­ Se estamos estudando o assunto em seqü­
ção genuína da ira divina, mas, paradoxal­ ência lógica, os primeiros atributos de Deus
mente, é o amor do Pai que faz a propiciação. devem ser aqueles que o apresentam como
Chegamos, então, ao coração do evange­ Criador e sustentador de Seu mundo: autoe-
lho. N o ato da propiciação descobrimos as xistência, autossuficiência, eternidade, sobe­
grandes boas novas de que aquele que é nosso rania, santidade e onisciência. Depois deles,
Criador, mas de quem nos desviamos em pe­ vem o atributo revelado pela queda e rebelião
cado, é, ao mesmo tempo, nosso Redentor. da raça humana: a ira. Só depois é que pode­
Packer resumiu essa questão da seguinte mos adequadamente falar sobre Seu amor.
forma: Deus era amor mesmo antes da queda e,
no que diz respeito a esse assunto, desde toda
A descrição básica da morte salvadora de Cris­ a eternidade, mas a medida completa desse
to na Bíblia é como uma propiciação, isto é, amor é vista apenas na oferta de Cristo por
como aquilo que aplaca a ira de Deus contra nós, sendo nós ainda pecadores (Rm 5.8).
nós, ocultando de Seus olhos nossos pecados. Assim, além de aumentar nossa apreciação
A ira do Senhor é Sua justiça reagindo contra a pelo amor do Pai, a questão da propiciação
injustiça; ela mostra, em si, a justiça punitiva. lembra-nos que, em primeiro lugar, Deus ver­
Jesus Cristo, porém, protege-nos do pesadelo dadeiramente se ira contra o pecado, com a
da expectativa da justiça punitiva ao tornar-se mesma intensidade que ama o pecador. Den­
nosso substituto, em obediência à vontade de tro desse quadro, o amor do Senhor não é
Seu Pai, recebendo em nosso lugar o salário do apenas um sentimento indulgente de boa
nosso pecado. Desse modo, a justiça foi feita e vontade como, geralmente, é o amor humano.
os pecados de todos que serão perdoados foram É , na verdade, um amor intenso, exigente e
julgados e punidos na pessoa de Jesus, o Filho. santo, que está disposto a pagar o maior pre­
É nessa base que o perdão é oferecido a nós, pe­ ço, a fim de salvar um amado Seu.
cadores. O amor redentor e a justiça punitiva Segundo, o sacrifício de Cristo esclarece
juntaram as mãos, por assim dizer, no Calvário, um pouco a natureza do dilema humano. Se a
pois lá Deus se mostrou justo e justificador dos vinda de Jesus é uma declaração aberta do fa­
que creem em Jesus. (P a c k e r , 1973, p. 178,179) vor de Deus à humanidade, demonstração
pela qual o Altíssimo busca capturar a aten­
E s c l a r e c im e n t o so b r e o u tra s verd ad es ção e conquistar o amor dos Seus, então nossa
A doutrina do sacrifício de Cristo, conce­ condição enquanto estamos alienados dele
bida com o a verdadeira propiciação da ira não é séria. Sob essa lógica, Deus nos ama,
divina contra o pecado, esclarece de maneira não importa o que tenhamos feito, e podemos
valiosa outras doutrinas. Fecharemos esse ca­ supor que as coisas vão acabar bem, indepen­
pítulo analisando algumas delas. dente do que tenhamos ou não escolhido em
Primeiro, a natureza do sacrifício de Jesus relação a Cristo. N ão temos de lidar, portan­
dá um novo enfoque aos atributos de Deus. to, com a ira.
Em muitos círculos teológicos contemporâ­ Entretanto, se a morte de Cristo é a propi­
neos, é habitual enfatizar o amor do Pai em ciação da ira divina, então a situação humana
detrimento de Seus outros atributos. N ão é bem diferente. A ira é real, e podemos ter a
devemos minimizá-lo, mas devemos lembrar expectativa de sentir toda a intensidade dela a
que, biblicamente, o amor não é o único atri­ não ser que também tornemo-nos participan­
buto do Senhor. tes na salvação do Cordeiro.
A cruz significa, entre outras coisas, que mas também espiritualmente, ficando, assim,
nossa situação é desesperadora a ponto de separado de Deus e, dessa forma, carregando a
não haver lugar para a esperança a não ser ne­ ira do Pai contra o pecado em nosso lugar. A
la. Somos, como Paulo disse, mortos em ofen­ qualidade única de Sua morte foi que, no Cal­
sas e pecados, prisioneiros do príncipe das po- vário, Ele experimentou o horror da ira do
testades do ar e, p or natureza, filhos da ira, Senhor enquanto fazia a propiciação.
como os outros também (Ef 2.1-3). Essas ver­ Q uarto, a verdadeira natureza do evange­
dades são ensinadas para que homens e mu­ lho também emerge nessa compreensão da
lheres possam voltar-se para o Salvador, ainda morte de Jesus. O evangelho não é apenas
que por causa de um assustador sentimento uma nova possibilidade de conquistar alegria
de perigo espiritual. e plenitude nesta vida, como alguns parecem
Terceiro, há também um esclarecimento sugerir. N ão é uma solução para o que, ante­
sobre a pessoa e o ministério de Jesus Cristo. riormente, eram problemas difíceis e frus­
Sua natureza divina e humana é revelada ao trantes. É , na realidade, algo muito mais pro­
longo das linhas desenvolvidas no capítulo 11 fundo do que já foi feito, algo relacionado a
deste livro. Só com o alguém que é, ao mesmo Deus, com base no que (e somente com base
tempo, Deus e homem é que Jesus pode fazer no que) as outras bênçãos da salvação se se­
a propiciação. Seu ministério é esclarecido guem. Packer afirmou:
porque somente essa missão faz com que os
fatos registrados sobre Ele nos Evangelhos O evangelho realmente traz soluções para es­
façam sentido. ses problemas, mas o faz ao primeiro resolver
Para dar um exemplo, observamos que, [...] o mais profundo de todos os dilemas hu­
mesmo nas situações mais perigosas que en­ manos , aquele do homem em relação ao Seu
controu - a hostilidade do povo em fúria, a criador; e, a não ser que tornemos claro que a
tentação de Satanás, as tentativas dos líderes solução para esses problemas anteriores depen­
de Israel de apanhá-lo - Jesus estava sempre de da resolução desse último, estaremos inter­
em controle total e evidente. Contudo, com a pretando mal a mensagem e tornando-nos falsas
proximidade de Sua morte, lemos em cada testemunhas de Deus”. (P a c k e r , 1973, p. 179)
um dos Evangelhos que Ele começou a sentir-
-se entristecido e grandemente angustiado (Mt Finalmente, a natureza da morte de Cristo
26.37,38; Mc 14.33,34; L c 22.44; Jo 12.27), e como propiciação também tem influência so­
três deles (Mateus, Marcos e Lucas) registra­ bre a ética cristã. Paulo destacou:
ram que Cristo orou fervorosamente no
Getsêmani para que o cálice que estava prestes Porque o amor de Cristo nos constrange,
a beber pudesse ser afastado dele. julgando nós assim: que, se um m orreu por
Qual seria esse cálice? Seria a morte física? todos, logo, todos morreram. E ele morreu
Se fosse, Jesus teria menos coragem do que Só­ p o r todos, para que os que vivem não vi­
crates, que enfrentou o fim da vida com auto­ vam mais para si, mas para aquele que por
controle, morrendo, calmamente, enquanto eles m orreu e ressuscitou.
falava sobre a imortalidade. A única explicação 2 Coríntios 5.14,15
além da que mostra Jesus como um covarde
cuja fé falhou foi que Sua morte foi bem dife­ O u ainda, para referir-se a um texto que
rente da do filósofo ateniense ou de nossa pró­ mais propriamente introduz o tema do próxi­
pria. Ele estava para morrer não apenas física, mo capítulo:
Ou não sabeis que [...] não sois de vós mes­ A única, maior e mais importante base
mos? Porque fostes comprados por bom adequada para a ética cristã é o fato de que o
preço; glorificai, pois, a D eus no vosso cor­ Senhor nos amou de tal maneira que enviou
po e no vosso espírito, os quais pertencem a Seu Filho para carregar Sua justa ira contra o
Deus. pecado em nosso lugar. N ós o amamos por
1 Coríntios 6.19,20 causa de Seu grande amor por nós, e, por isso,
desejamos servi-lo.

N ota

1 A argumentação básica de Dodd é que não existe uma chamada ira de Deus ocasionada pelo pecado humano. Por­
tanto, uma vez que não há ira, o significado de propiciação estaria incorreto no Novo Testamento, embora a palavra
que se traduz por ele (hilasmos, hilasterion) possa também conter a ideia de propiciação da religião pagã. Ele crê que
a Bíblia aborda apenas a necessidade de abandonar o pecado e que, portanto, expiação fornece uma tradução melhor.
In teg r a lm en te pago

s palavras redenção e Redentor es­ Deixem que as nossas almas sejam uma oferta
tão entre as mais preciosas do vo­ Ao nome de nosso Redentor.
cabulário cristão, embora não se­ Ao orarmos pela graça indulgente,
jam as mais usadas quando falamos Através do nome de nosso Redentor.
do ministério de Cristo, visto que é mais co­ Filho todo-poderoso, Verbo encarnado,
mum referirmo-nos a Ele como Salvador e, Nosso Profeta, Pastor, Redentor, Senhor.
muitas vezes, como Senhor. Mas essas palavras Oh, milhares de vozes cantam
falam-nos diretamente sobre o que Jesus Cris­ Louvores ao meu Redentor.
to fez para a nossa salvação e qual foi o custo Ao glorioso nome de nosso Redentor
para que Ele o fizesse. Levanta-se a sagrada canção.
N o início deste século, B. B. Warfield fez Todos aclamam o Redentor,
um discurso para os alunos novos no qual cha­ Porque Ele morreu por mim.
mava a atenção para o fato de o título Redentor Guia-nos até onde nosso bebê Redentor re­
transmitir uma revelação profunda. Ele escre­ pousa.
veu assim: Meu precioso Redentor e meu Senhor.
Toda glória, louvor e honra
A palavra Redentor não apenas expressa que A Ti, Redentor, Rei.
recebemos a salvação de Jesus, mas também Nosso bendito Redentor, antes de respirar
reflete nossa apreciação pelo preço que lhe Seu delicado e último adeus.
custou alcançá-la para nós. Denomina, espe­
cificamente, o Cristo da cruz. Sempre que a Warfield citou pelo menos o dobro do nú­
pronunciamos, visualizamos a cruz diante de mero de hinos, e, então, fez a mesma coisa
nossos olhos, e nosso coração é inundado com os que usam a palavra resgate, que, como
com a preciosa lembrança de que não apenas ressaltou, é um sinônimo bem próximo de
Cristo nos deu a salvação, mas de que Ele redenção.
pagou um alto preço por ela ( W a r f i e l d , É provável que, nos dias atuais, essas pa­
1970, p. 325)'. lavras sejam menos apreciadas do que anti­
gamente. Entretanto, isso se deve ao fato de
Warfield comprovou sua afirmação por serem menos com preendidas, não signifi­
meio de uma extensa série de citações de hi­ cando que a ideia p or trás delas seja menos
nos da igreja nas quais a palavra redentor atrativa aos cristãos. Além disso, mesmo
aparece: que admitamos que tais term os tenham
perdido um pouco de seu apelo popular, Nesse diagrama, Deus é o iniciador de
eles são mais adequados do que outras pala­ uma ação: a justificação. Jesus é o iniciador de
vras que descrevem o que foi feito por nós duas ações: propiciação, direcionada ao Pai, e
na salvação. redenção, direcionada ao Seu povo. N ós, que
não iniciamos nada, recebemos tanto a justifi­
O TRIÂNGULO DA SALVAÇÃO_________________ cação com o a redenção. Entretanto, o objeti­
Vemos esse triângulo quando considera­ vo da ilustração é que percebamos que, entre
mos as três principais palavras relacionadas as três palavras chave, apenas redenção des­
ao que acontece na salvação: propiciação, jus­ creve o que o Salvador faz por nós na salva­
tificação e redenção. Cada uma delas aparece ção. Ele nos redime! Então, é natural que essa
nos versículos chave que introduzem o sacri­ palavra (ou a ideia representada por ela) seja
fício de Cristo na apresentação de Paulo em mais preciosa.
Romanos 3.24,25a: O vocábulo grego que serve de base para o
principal grupo de palavras significando redi­
Sendo justificados gratuitamente pela sua mir, Redentor e redenção é lyô, que significa
graça, mediante a redenção que há em liberar ou alargar. Ele era usado em relação a
Cristo Jesus, ao qual D eus propôs como roupas folgadas ou armaduras soltas. Q uan­
propiciação, pela fé , no seu sangue. do aplicado aos seres humanos, significava a
liberação de obrigações ou contrato, com o,
Podemos facilmente observar essa relação por exemplo, a libertação de um prisioneiro.
no triângulo mostrado na figura 1. A propi­ Às vezes era usado com o significado de li­
ciação é representada pela seta que conecta bertar alguém pelo pagam ento de um valor
Cristo a Deus. Essa seta aponta para cima de resgate.
porque Jesus propiciou o Pai por meio de Sua Deste último uso, desenvolveu-se o subs­
morte em nosso favor. tantivo lutron, que se refere ao meio pelo qual
A linha que conecta o Senhor aos cristãos a redenção do prisioneiro era consumada.
é a. justificação. A seta aponta para baixo por­ Significava o valor do resgate em si. Daí,
que a justificação refere-se a algo que Deus desenvolveu-se um novo verbo, lutroõ, que,
faz por nós. Somos justificados pela graça, diferente do primeiro, luõ - que era apenas
cuja base é o sacrifício de Cristo. um term o geral para liberar e, ocasional­
N o terceiro lado e base do triângulo, a se­ mente, significava resgatar - , parecia signifi­
ta que conecta Jesus a nós é a redenção. Esta car liberar pelo pagam ento de um preço.
aponta para nós porque a redenção é algo que Desse, lutrõsis (redenção, liberação), apoluõ
Jesus faz pelo Seu povo, redimindo-nos e li- (liberar, libertar, divorciar, perdoar) e ou­
bertando-nos. tros termos foram derivados. C om o os pri­
sioneiros geralmente eram escravos, essas
palavras também tinham relação com o ato
de com prar um escravo com a intenção de
libertá-lo.
Até então tudo parece claro, já que, quan­
do usada em relação à missão de Cristo, a
palavra redenção nos remete, obviamente, ao
que Jesus fez para nos libertar do pecado.
Mas aqui alguns problemas aparecem.
D a mesma forma que alguns estudiosos se Em Romanos 8.23, por sua vez, está escrito:
opuseram ao verdadeiro significado de propi­
ciação, argumentando que a ideia de aplacar a E não só ela, mas nós mesmos, qu e temos
ira divina não é adequada à natureza do Deus as primícias do Espírito, também gememos
cristão, alguns têm se oposto também ao sig­ em nós mesmos, esperando a adoção, a sa­
nificado básico de redenção. ber, a redenção do nosso corpo.
A ideia de libertação faz sentido para tais
pessoas, mas o conceito de um valor de resga­ Em Efésios 4.30 lemos: E não entristeçais
te é completamente errado. “Com o Deus p o ­ o Espírito Santo de Deus, no qual estais sela­
de determinar um preço para a salvação?”, dos para o dia da redenção.
perguntam. “Se Jesus teve de pagar o preço de O que pode ser dito em relação a essa ob­
Sua morte para a nossa libertação, não signifi­ jeção? Um a resposta imediata é que os discí­
ca, então, que Deus está, na verdade, venden­ pulos de Emaús obviamente compreenderam
do Seus favores, e que a salvação já não é mais mal o tipo de redenção que Jesus veio trazer.
pela graça?” O utra é que, assim com o no caso da propi­
A o desenvolver essa objeção, tem-se ten­ ciação, o preço da nossa redenção final, na
tado interpretar de forma diferente a palavra verdade, não é um preço pago por outra pes­
redenção, a qual, por via de regra, é entendida soa a Deus, mas um preço que Ele paga a si
como libertação, mas sem as implicações de mesmo. É o Senhor pagando a nossa conta
um resgate. para que a salvação nos deixe verdadeira­
Parte desse trabalho foi feito por acadêmi­ mente livres. U m a terceira possibilidade é
cos alemães em cujo idioma a palavra reden­ que exista um consenso defendendo nossa
ção (erloesung, mas não loskaufung) significa redenção final com o uma libertação do mun­
apenas livramento. Acadêmicos cujo idioma do pecaminoso.
materno é o inglês também apontam para o Alcançar uma resposta satisfatória, no en­
fato de que a palavra redenção não necessaria­ tanto, requer uma pesquisa apurada acerca de
mente remete à ideia de preço remissor. Por dados lexicais. Existem quatro áreas de estudo.
exemplo, os discípulos a caminho de Emaús Em primeiro lugar, as ideias de redenção
desabafaram a respeito de suas expectativas no N ovo Testamento são condicionadas ne­
frustradas de encontrar em Jesus o messias que cessariamente pelos modelos do Antigo Tes­
esperavam: E nós esperávamos que fosse ele o tamento.
que remisse Israel (Lc 24.21a). N ão estava ne­ N o Antigo Testamento, a ideia ou o valor
cessariamente implícita, então, a ideia de resga­ de um resgate é muito importante. Aqui, três
te pelo pecado ou mesmo nada espiritual. Eles palavras são particularmente significantes. A
apenas queriam dizer que o que esperavam era primeira é gaal (libertar) ou goel (geralmen­
que Jesus fosse quem os livraria de Roma. te traduzida com o resgatador do mesmo san­
Tais filósofos também assinalaram versí­ gu e), que se refere à obrigação imposta a um
culos sobre uma redenção final de nosso cor­ parente de ajudar algum membro de sua fa­
po. Em Lucas 21.28 é dito: mília a preservar a honra ou os bens. Por
exemplo, se um homem perdesse sua p ro ­
Ora, quando essas coisas começarem a priedade p or causa de dívidas, com o foi o
acontecer, olhai para cima e levantai a vos­ caso do marido de N oem i, segundo o livro
sa cabeça, porque a vossa redenção está de Rute, era obrigação do resgatador do
próxima. mesmo sangue (nesse caso, Boaz) recom prar
a propriedade, restabelecendo-a, com isso, ao chamado ao preço de siclos, na condição de
nome da família. Essa obrigação se estendia que ele seja liberto” ( M o r r i s , 1956 p. 22)2.
também à compra de alguém da família que Em terceiro lugar, as passagens mais im­
fosse levado cativo, a fim de libertá-lo da portantes do N ovo Testamento, aquelas que
escravidão (Lv 25.47-55). usam o vocabulário da redenção com o a mis­
A segunda palavra é padah. Ela significa são de Cristo, quase sempre enfatizam o pre­
resgatar pagando um preço, com o na reden­ ço pago por nossa libertação.
ção do primogênito que, de outra forma, per­ Em Mateus 20.28, por exemplo, é dito: O
tenceria ao Senhor (Ex 13.11-14; N m Filho do H om em não veio para ser servido,
18.15,16). A o contrário de gaal, a redenção a mas para servir e para dar a sua vida em resga­
que se refere é voluntária, e não obrigatória, te de muitos. Aqui, o valor da redenção é esta­
como no caso de um parente. belecido pelo próprio Senhor: é a Sua vida.
A terceira palavra é kopher, que significa E m Tito 2.14 está escrito que Jesus se deu
valor de resgate. Suponha, por exemplo, que a si mesmo p or nós, para nos rem ir de toda
um touro tenha chifrado alguém até a morte. iniqüidade e purificar para si um povo seu
Este era um crime pelo qual o touro ou, em especial, zeloso de boas obras. O uso da ter­
caso de negligência, seu dono poderia ser minologia sacrificial nesse versículo (iniqüi­
morto. Ele teria de pagar com a vida por dade t purificar) indica que o autor não esta­
aquele que teve a vida tirada. Mas poderia, va pensando na dádiva de C risto dando a si
também, redimir-se por meio de kopher, o mesmo apenas com o um presente em vida,
que significa que poderia fixar um preço de­ com o numa missão, mas, mais exatamente,
terminado pelos parentes daquele que foi com o um presente de si mesmo na morte.
m orto, colocando esse valor no lugar do con­ Então, novamente, o preço da vida de Jesus é
fisco da vida da vítima (Ê x 21.28-32). importante.
Essas três palavras, cada uma com suas Finalmente, em 1 Pedro 1.18,19, é empre­
conotações e leis, indicam que a ideia de gada uma linguagem mais clara:
redenção pelo pagam ento de um valor não
só era com um , com o também era um prin­ Sabendo que não fo i com coisas corruptí­
cípio fundamental na vida social e religiosa veis, como prata ou ouro, que fostes resga­
de Israel. A menos que possa ser com prova­ tados da vossa vã maneira de viver que, por
do de outra maneira, a redenção, e não a tradição, recebestes dos vossos pais, mas
ideia mais limitada de libertação, é que de­ com o precioso sangue de Cristo, como de
veria ser a concepção fundamental do N ovo um cordeiro imaculado e incontaminado.
Testamento.
E m segundo lugar, na época do N ovo Tes­ Em cada uma dessas passagens (e em ou­
tamento, as palavras para redenção também tras), a redenção é alcançada pelo pagamento
eram usadas, no grego secular, com a conota­ do maior dos preços, ou seja, a morte ou o
ção de pagamento de um valor de resgate, em sangue de Jesus Cristo, o Filho de Deus.
grande parte referindo-se à redenção de pri­ A quarta linha de sustentação para o signi­
sioneiros de guerra ou de escravos. Nesse ficado tradicional de redenção é que as pala­
caso, o valor era tão importante que era de­ vras mais comuns, aquelas que estivemos es­
terminado até mesmo em requerimentos pa­ tudando, não são as únicas referentes à
drões de alforria. P or exemplo, “_________ redenção que aparecem no N ovo Testamento.
vendeu ao Pythian Apollo um escravo macho Pelo contrário, existem duas outras, cada uma
delas também envolvendo a ideia de libertação um estado melhor e, então, somos culpados,
pelo pagamento de um valor. daí nossa necessidade de um Salvador. N a
Esse conceito é inerente ao próprio signi­ verdade, nossa culpa é tão grande e tão imen­
ficado das palavras. A primeira é agorazõ. sa nossa queda que nenhum outro, a não ser
Significa comprar, e aparece em versículos Deus, pode salvar-nos.
como 1 Coríntios 6.19,20; 7.22,23; 2 Pedro A segunda maior doutrina relacionada à
2.1; Apocalipse 5.9,10. Todos os textos se re­ ideia bíblica de redenção é a Queda, como já
ferem aos escolhidos de Deus sendo compra­ foi sugerido. Existe um paralelo entre as for­
dos por meio da morte de Cristo. mas pelas quais uma pessoa poderia tornar-se
A segunda palavra é exagorazõ, derivada escrava antigamente e como, na Bíblia, alguém
da palavra anterior, e significa comprar os di­ pode ser considerado escravo do pecado.
reitos. Com o ambas são bem próximas da N a Antiguidade, existiam três maneiras
palavra agora, que significa mercado ou lugar pelas quais alguém poderia ser levado cativo
de negócios, esses termos, na verdade, signifi­ em escravidão. Primeiro, a pessoa poderia
cam comprar os direitos do mercado, de forma nascer nessa condição. O u seja, se o pai ou a
que aquele que foi comprado nunca mais re­ mãe de alguém fosse escravo, aquela pessoa
torne para lá. também seria. Segundo, por meio de conquis­
ta. Assim, se uma cidade ou estado vencesse
R e s g a t a r : a l f o r r i a r _______________________ uma guerra contra outra cidade ou estado, os
O estudo lexical de resgatar não nos dá habitantes derrotados poderiam ser levados
um significado teológico amplo. De qualquer em cativeiro. Terceiro, por causa de suas dívi­
forma, voltamo-nos agora para as três doutri­ das. Se devessem mais do que pudessem pa­
nas cruciais inerentes a ele. gar, era possível que fossem vendidos como
A primeira doutrina diz respeito ao estado escravos para quitar a dívida.
original do homem que não tinha pecado. Essas formas de tornar-se escravo corres­
Nesse estado, o primeiro homem e a primeira pondem às várias maneiras relatadas na Bíblia
mulher eram livres, com uma liberdade p ró­ sobre com o o pecado aprisiona o indivíduo.
pria dos seres criados. Eles estavam em co ­ N a Antiguidade, era possível nascer escravo.
munhão com Deus. D a mesma forma, está escrito que todos, des­
Redenção significa que devemos ser com ­ de Adão, nasceram no pecado. Davi escreveu:
prados e levados de volta ao estado no qual Eis que em iniqüidade fu i form ado, e em p e­
estávamos antes disso. Aqui, é claro, o cristia­ cado me concebeu minha mãe (SI 51.5).
nismo contraria a opinião dominante do ho­ Davi não quis dizer que a mãe dele estava
mem em nossos dias: a de que ele está galgan­ vivendo em pecado quando o concebeu ou
do gradualmente seu caminho, a partir de um que havia algo errado em relação ao ato da
começo menos perfeito ou até mesmo impes­ concepção em si. Ele quis dizer que nunca
soal. A popularidade dessa visão contempo­ houve um momento em sua existência em que
rânea reside na ausência de culpa pelo pecado estivesse livre do pecado, visto que herdou
cometido, que nos leva a crer que a humani­ essa natureza pecaminosa de seus pais, assim
dade é para ser louvada sendo, na verdade, como eles a herdaram dos pais deles.
salvadora de si mesma. Além disso, um indivíduo poderia tornar-
Por outro lado, a visão bíblica acerca do -se escravo ao ser conquistado, e a Bíblia se
significado da palavra redenção, assim como refere às pessoas dominadas pelo pecado. D a­
de outros termos, é que, de fato, decaímos de vi escreveu sobre pecados intencionais e orou
para que estes não tivessem domínio sobre ele amaria. E assim que o Pai nos ama, mesmo
(SI 19.13). quando fugimos dele e o desonramos. Oséias
A última possibilidade, de tornar-se escra­ descreveu sua incumbência com as seguintes
vo por causa de dívidas, é sugerida por Roma­ palavras:
nos 6.23a, texto no qual está escrito que o sa­
lário do pecado é a morte. A expressão não O princípio da palavra do S E N H O R por
significa que o pecado é recompensado, a não Oséias; disse, pois, o S E N H O R a Oséias:
ser de forma irônica, mas sim que este é uma Vai, toma uma m ulher de prostituições e
dívida que apenas a morte do pecador pode filhos de prostituição; porque a terra se
pagar. Os conceitos de um estado original prostituiu, desviando-se do S E N H O R . E
perfeito e uma subsequente queda são impor­ foi-se e tomou a Gomer, filha de Dihlaim,
tantes para a ideia expressa pela palavra re­ e ela concebeu e lhe deu um filho.
denção, mas ainda não representam a ideia Oséias 1.2,3
principal.
O cerne da questão está na terceira doutri­ Existem lições significativas nos primeiros
na chave relacionada à redenção. Em bora te­ estágios desse drama, tanto nos nomes dos
nhamos caído em desesperadora escravidão filhos nascidos de Oséias e Gômer como no
por causa do pecado, e sejamos controlados cuidado dele para com sua esposa mesmo de­
por ele, como um tirano cruel, Cristo com ­ pois que ela o havia deixado. Entretanto, o
prou nossa libertação por intermédio de Seu clímax acontece quando Gômer se torna es­
sangue. Ele pagou o preço para que pudésse­ crava, provavelmente por causa de dívidas.
mos ser livres. Oséias recebeu ordem de comprá-la de volta
Talvez a mais rica ilustração bíblica sobre como demonstração da maneira pela qual
a salvação (e, principalmente, sobre o signifi­ Deus, que é fiel, ama e salva Seu povo.
cado de redenção) seja a história de Oséias. N a Antiguidade, os escravos sempre eram
Oséias era um profeta menor - menor no que vendidos nus, e com Gômer não deve ter sido
diz respeito à duração de seu ministério, não diferente, já que ela foi leiloada na cidade ca­
à importância deste - cujos escritos são base­ pital. Aparentemente, Gômer tinha sido uma
ados na história de seu casamento. linda mulher, e ainda era bonita, mesmo em
D o ponto de vista humano, o casamento seu estado arruinado. Então, quando o leilão
de Oséias foi infeliz, já que sua esposa provou começou, as ofertas foram altas, e os homens
ser infiel a ele. Entretanto, do ponto de vista da cidade deram lances pelo corpo da escrava.
divino, foi especial. Deus tinha dito a Oséias “D oze peças de prata”, alguém disse.
que o casamento funcionaria daquele jeito, “Treze”, disse Oséias. “Q uatorze.” “Quin­
mas que, apesar disso, ele deveria mantê-lo pa­ ze”, replicou Oséias. Os que deram os lances
ra, assim, ilustrar o amor do Pai por nós. O mais baixos retiraram-se, mas alguém acres­
Senhor amava o povo que tinha separado para centou: “Quinze peças de prata e um ômer de
si ainda quando ele era infiel, cometendo adul­ cevada”. “Quinze peças de prata e um ômer e
tério espiritual com o mundo e seus valores. meio de cevada”, bradou Oséias.
O casamento era para ser uma represen­ O leiloeiro deve ter olhado em volta, espe­
tação. Oséias representaria o papel de Deus, rando um lance mais alto, e, como não teve
enquanto sua esposa assumiria com o per­ nenhum, disse: “Vendido para Oséias por
sonagem a nação de Israel. Ela seria infiel quinze peças de prata e um ômer e meio de
e, quanto mais infiel fosse, mais Oséias a cevada”.
A partir daquele momento, Oséias passou entrou no leilão e comprou-nos de volta. Ele
a ter uma esposa. Ele poderia tê-la matado se deu como lance Seu próprio sangue. N ão
quisesse. Poderia ter feito um espetáculo pú­ existe lance maior do que este. N ós passamos
blico da forma que tivesse escolhido. Mas, em a ser dele. Ele nos vestiu novamente, não com
vez disso, colocou suas roupas de volta sobre os trapos de nossa velha iniqüidade, mas com
ela, conduziu-a pelo caminho do anonimato vestes novas de justiça, e disse-nos: Tu ficarás
no meio da multidão, e exigiu amor da parte comigo muitos dias; não te prostituirás, nem
dela, prometendo, simultaneamente, o mes­ serás de outro hom em ; assim quero eu ser
mo de si. Aqui, vemos com o ele expressou também para ti (Os 3.3).
isso:
L i v r e p a r a s e r v i r ___________________________

E o S E N H O R m e disse: Vai outra vez, A redenção tem duas conseqüências. Pri­


ama uma mulher, amada de seu amigo e meiro, significa que somos livres. P or mais
adúltera, como o S E N H O R ama os filhos paradoxal que possa parecer, ser comprado
de Israel, embora eles olhem para outros por Jesus é ser liberto - liberto da culpa e da
deuses e am em os bolos de uvas. E a com­ tirania, bem como do poder do pecado. Paulo
p rei para mim p or quinze peças de prata, e falou dessa liberdade no clímax de Gálatas,
um ôm er de cevada, e meio ôm er de ceva­ desafiando aqueles a quem estava escrevendo:
da; e lhe disse: Tu ficarás comigo muitos Estai, pois, firm es na liberdade com que Cristo
dias; não te prostituirás, nem serás de ou­ nos libertou e não torneis a meter-vos debaixo
tro hom em ; assim quero eu ser também do jugo da servidão (G1 5.1).
para ti. N o entanto, esse é um tipo especial de li­
Oséias 3.1-3 berdade. N ão significa que estamos livres pa­
ra fazer qualquer coisa que desejarmos, para
Oséias tinha o direito de exigir o que ela, pecar com impunidade ou, uma vez mais,
anteriormente, não estava disposta a dar. E n ­ voltarmos a ficar sujeitos à rebelião e à injus­
tretanto, ao exigir, ele prometeu amor de si tiça. Fom os libertos para servir a Deus. Fica­
mesmo. O ponto principal da história é que mos livres para querer o bem. Fom os libertos
Deus ama a todos os que são Seus verdadeiros para que pudéssemos obedecer e amar a Jesus.
filhos espirituais. Com o Paulo escreveu:
Esse é o real significado da redenção:
comprar alguém e libertá-lo da escravidão. Se Ou não sabeis que o nosso corpo é o templo
compreendermos a história de Oséias, enten­ do Espírito Santo, que habita em vós, p ro­
deremos que somos com o um escravo vendi­ veniente de Deus, e qu e não sois de vós
do no pedestal do leilão do pecado. Fomos mesmos? Porque fostes comprados por
criados para ter comunhão íntima com o Pai e bom preço; glorificai, pois, a D eus no vosso
para sermos livres, mas desgraçamo-nos por corpo e no vosso espírito, os quais perten­
causa da infidelidade. Primeiro flertamos e, cem a Deus.
depois, adulteramos com este mundo peca­ 1 Coríntios 6.19,20
minoso e com seus valores.
O mundo tem dado lances altos pela nossa A redenção é algo glorioso. Só de pensar
alma, oferecendo sexo, dinheiro, fama, poder sobre ela, nosso coração deveria aquecer-se e
e todos os outros itens que por ele trafegam. deveríamos louvar Àquele que deu a si mes­
Mas Jesus, nosso noivo fiel que nos ama, mo para que pudéssemos ser livres. Mas não é
apenas isso. Também é nossa responsabilida­ estar dispostos, ansiosos e determinados a ser-
de alcançarmos o mais alto nível de com pro­ vi-lo. Ele morreu por nós por causa de Seu
metimento. Assim como Jesus deu a si mesmo grande amor. Esse maravilhoso amor exige
por nós, devemos ofertar-nos a Ele. Devemos minha alma, minha vida, m eu tudo.

N otas

1 Esse discurso, realizado em Miller Chapei na data de 17 de setembro de 1915, foi o primeiro do ano, sendo citado
pela primeira vez no The Princeton Theological R eview [O Jornal Teológico de Princeton], XIV, 1916, p. 177-201.
2 Leon. The A postolicPreachingoftbe Cross [A apostólica pregação da cruz]. Michigan: Eerdmans, 1956, p. 22.
M o r r is ,
Esse e outros exemplos são retirados do Lightfrom the Ancient East [Luz do Leste Ancestral], de Adolf Deissman.
A GRANDEZA DO AMOR DE DEUS

-■f Jlários anos antes de sua morte, o da ira divina contra nós por causa de nosso
j ? teólogo suíço Karl Barth1 foi aos pecado; e quarto, a redenção.
Estados Unidos para ministrar Se não tivermos essa seqüência bem esta­
uma série de palestras. Numa de belecida em nossa mente, seremos incapazes
suas impressionantes apresentações, um estu­ de apreciar (ou até mesmo admirar) o amor
dante o surpreendeu com uma pergunta bem do Pai como deveríamos. Em vez disso, pare-
complexa: “Dr. Barth, qual o maior pensamen­ ce-nos apenas razoável que Ele nos ame.
to que já passou pela sua mente?”. O idoso “Afinal de contas, somos tão adoráveis”, pen­
professor parou por um longo instante en­ samos. N o entanto, quando nos achamos
quanto, obviamente, pensava numa resposta. diante de nossa transgressão da justa Lei divi­
Então, disse com muita simplicidade: “Jesus na e debaixo da ira do Altíssimo, torna-se
me ama! Isso eu sei, pois a Bíblia assim o diz”. verdadeiramente extraordinário descobrir
Se o amor do Pai é o que há de mais gran­ que, apesar de tudo, Deus nos ama.
dioso no universo, por que deixamos para Paulo enfatizou isso em Romanos: Mas
discutir esse assunto somente agora? P or que D eus prova o seu amor para conosco em que
não começamos por ele e, então, colocamos Cristo morreu p or nós, sendo nós ainda peca­
as outras características divinas em perspecti­ dores (Rm 5.8). Tal afirmação justifica outro
va? Por que estamos discutindo isso no se­ motivo pelo qual decidimos não estudar a
gundo livro deste volume, em vez de no pri­ questão do amor divino em capítulos anterio­
meiro, que trata mais particularmente dos res: o amor do Pai só é entendido de maneira
atributos do Senhor? plena por meio da cruz de Jesus Cristo.
A resposta é que, embora o amor de Deus As manifestações do amor do Senhor na
seja, sem dúvida, importante e grandioso, não criação e na providência são um tanto ambí­
conseguimos compreendê-lo e apreciá-lo de guas: vivenciamos a destruição de terremotos
verdade em nosso estado decaído, até que co ­ terríveis, mas também nos maravilhamos com
nheçamos algumas outras coisas sobre o Se­ lindos pores do sol; enquanto alguns sofrem
nhor e sobre nós mesmos. de doenças incuráveis e cruéis como o câncer,
A seqüência por meio da qual esses fatos outros são perfeitamente saudáveis. Apenas
nos são apresentados é fundamental para a na cruz Deus mostra Seu amor de maneira
compreensão dos fundamentos da fé cristã: completa e sem ambigüidade.
primeiro, a nossa criação à imagem de Deus; Por essa razão, é difícil encontrar um ver­
segundo, nosso pecado; terceiro, a revelação sículo no N ovo Testamento que mencione o
amor divino sem referir-se também, no mes­ redenção - ou seja, somente quando com ­
mo texto ou no contexto imediato, ao presen­ preendemos o significado do sacrifício de
te que Ele nos deu, Seu Filho no Calvário. Jesus na cruz.
Vejamos alguns exemplos. O amor de Deus não se origina lá, mas
Em João 3.16 está escrito: muito antes, sendo, portanto, mais grandioso
que cada um desses assuntos subsequentes. Se
Porque D eus amou o m undo de tal m anei­ não conseguirmos enxergar isso, correremos
ra que deu o seu Filho unigênito, para que o risco de imaginar que o Senhor sempre este­
todo aquele que nele crê não pereça, mas ve irado conosco e, somente depois da morte
tenha a vida eterna. de Cristo, Sua ira se transformou em amor.
Isso é errado e distorce o significado da cruz.
Paulo declarou, em Gálatas 2.20: Encontramos o amor do Senhor em tudo:
na criação, na morte de Cristo e até mesmo na
Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não Sua ira contra o pecado, embora isso seja difí­
mais eu, mas Cristo vive em m im; e a vida cil de compreender. C om o Ele pode amar-
que agora vivo na carne vivo-a na f é do -nos com tanta intensidade e ainda assim estar
Filho de Deus, o qual me amou e se entre­ irado conosco?
gou a si mesmo p or mim. Agostinho disse que Deus nos odiava por
não sermos o que Ele próprio tinha criado
Lemos em 1 João 4.10 (ARA) o seguinte: ( S c h a a f , 1887, p. 41), embora, apesar disso,
amasse o que tinha feito e o que faria conosco
Nisto consiste o amor: não em que nós te­ novamente. Fom os reconciliados com o Pai
nhamos amado a Deus, mas em que ele não porque a morte de Cristo tenha alterado,
nos amou e enviou o seu Filho como propi­ de alguma forma, a atitude dele para conosco,
ciação pelos nossos pecados. mas porque Seu amor levou-o a enviar Cris­
to, a fim de estabelecer a maneira pela qual o
Em Apocalipse 1.5 é dito que Jesus nos pecado, que nos separa dele, pudesse ser re­
ama e nos libertou dos nossos pecados por movido para sempre.
meio do seu sangue. C. S. Lewis captou essa ideia de forma or­
Essas citações mantêm juntos o amor de ganizada no final de Os Quatro Amores:
Deus e a cruz de Cristo. E mais, elas estão
entre os mais importantes textos acerca de Não devemos partir do misticismo, do amor
ambos os assuntos. da criatura por Deus ou das maravilhosas ante­
Apenas depois de entendermos o signifi­ visões da fruição de Deus concedidas a alguns
cado da cruz podemos apreciar o amor por em sua vida na terra. Nós partimos do verda­
trás dele. Percebendo isso, Agostinho uma deiro ponto de partida — do amor como ener­
vez comparou a cruz com um púlpito a partir gia divina. [...] Em Deus, não há necessidade a
do qual Cristo pregava Seu amor ao mundo. ser preenchida, mas somente abundância que­
rendo doar-se. Deus, que não precisa de nada,
A m o r : m o t iv a ç ã o d e D e u s _________________ faz existir por amor criaturas inteiramente su­
Devemos ser cuidadosos quando dizemos pérfluas para poder amá-las e aperfeiçoá-las.
que só podemos apreciar o amor divino em Ele cria o universo já prevendo — ou devería­
sua plenitude depois de entendermos as mos dizer “vendo” ? Para Deus, não existe o
doutrinas da criação, do pecado, da ira e da tempo — as moscas zumbindo ao redor da
cruz, as costas esfoladas sendo pressionadas grande jantar ou algo parecido. Ele é mestre
contra o mastro, os cravos atravessando os em atenuações. Então, quando afirma que
nervos principais, a contínua sufocação inci­ Seu amor é grande, quer dizer, de fato, que
piente à medida que o corpo vai desfalecendo, este é estupendo ao ponto de exceder todo o
a contínua tortura das costas e dos braços entendimento humano (Ef 3.19).
quando é içado para poder respirar. Se me per­ Alguém captou essa ideia em um cartão
mitem uma metáfora biológica, Deus é um que continha impressa a passagem de João
“hospedeiro” que cria deliberadamente seus 3.16. O versículo foi organizado de uma for­
próprios parasitas — que nos faz existir para ma que evidenciou a grandeza de cada parte
que possamos explorá-lo e “tirar vantagem” dele. Ficou assim:
dele. (L ew is , 2005, p. 175-176)
D eus.................................. o maior amante
A ira interferiu em nosso relacionamento amou de tal maneira.... o maior grau
com Deus, escondendo Seu amor de nós, o m undo........................... a maior companhia
mas, quando removida, descobrimos o quan­ que d e u ............................ o maior ato
to o Senhor nos ama desde a eternidade, e o Seu Filho unigênito... o maior presente
somos, portanto, atraídos a Ele. para, que todo aquele .. a maior oportunidade
que nele crer...................a maior simplicidade
G rande a m o r __________________________________ não pereça,...................... a maior promessa
O que podemos dizer sobre o amor de m as.................................... a maior diferença
Deus pelas Suas criaturas, que o levou não tenha.................................a maior certeza
somente a criá-las e redimi-las, mas também a a vida etern a ..................o maior bem
preservá-las para uma eternidade de comu­
nhão com Ele? Sem dúvida, nada do que dis­ Para completar, acima do texto havia o tí­
séssemos poderia esgotar a totalidade da di­ tulo: Cristo, o maior Presente.
mensão desse amor. O amor do Senhor é Uma maneira ainda melhor de compreen­
sempre infinitamente mais profundo do que der a dimensão do amor de Deus é constatar
nossa capacidade de entendê-lo e expressá-lo. que, diante de sua exclusividade e grandeza,
A Bíblia trata desse assunto de maneira não havia palavra no vocabulário grego capaz
simples. U m a das coisas básicas que destaca é de expressá-lo, o que levou os autores bíbli­
a intensidade do amor de Deus por nós (Ef cos a inventar, ou, no mínimo, a elevar a ní­
2.4). Em João 3.16, há uma indicação acerca veis inteiramente novos uma palavra unica­
da grandeza do amor divino, implícita no mente para isso.
fragmento de tal maneira, em porque Deus A língua grega é rica em palavras para
amou o mundo de tal maneira que deu o seu amor. A primeira delas era storgê, que se
Filho unigênito, para que todo aquele que ne­ refere à afeição em geral, principalmente em
le crê não pereça, mas tenha a vida eterna. relação à família. U m equivalente mais p ró­
Isso significa que o Pai amou o mundo de xim o em português seria carinho. Os gre­
forma tão grandiosa que enviou Seu único gos diriam: “Eu amo [tenho carinho pelos]
Filho para morrer em nosso lugar. meus filhos”.
É claro que, ao referir-se à dimensão de Seu A segunda das palavras gregas é philia, de
amor, Deus não usa a mesma noção de grande­ onde obtemos as palavras filantropia e Fila­
za que usamos ao dizer que algo relativamente délfia. Ela se refere à amizade. Jesus usou essa
normal é grande - um grande concerto, um palavra quando disse que qualquer pessoa
que amasse mais os pais do que a Ele não seria Paulo captou essa ideia quando orou para
digna dele (Mt 10.37). que aqueles a quem estava escrevendo pu­
A terceira é eros, que nos remete ao amor dessem compreender, com todos os santos,
sensual, a partir da qual se originou a palavra [...] a largura, e o comprimento, e a altura, e
erótica. Em bora esse tipo de amor seja abor­ a profundidade e conhecer o am or de Cristo,
dado pelos escritores bíblicos de maneira po­ que excede todo entendim ento, para que
sitiva, o termo eros tinha uma conotação de­ [fossem] cheios de toda a plenitude de D eus
gradante na época em que foi escrito o N ovo (Ef 3.18,19).
Testamento2, sendo abolido desses escritos de Analisando logicamente, as palavras do
modo a não aparecer nem uma só vez. apóstolo são contraditórias, visto que ele
Apesar de toda essa variedade, os respon­ orou para que os cristãos pudessem conhecer
sáveis pela tradução dos textos bíblicos do o incognoscível. Essa foi a maneira encontra­
hebraico para o grego não consideraram ne­ da por Paulo para enfatizar seu desejo de que
nhuma dessas palavras adequadas para trans­ eles se aprofundassem mais no conhecimento
mitir os verdadeiros conceitos acerca do amor do infinito amor de Deus.
de Deus. Usaram, portanto, outro termo, sem C om o podemos compreender esse amor
fortes associações, e o fizeram de forma prati­ ilimitado? Podemos conhecê-lo, mas apenas
camente exclusiva. P or quase não ter sido em parte. Temos sido tocados por ele, mas sua
usado anteriormente, eles foram capazes de plenitude continuará sempre fora do alcance
introduzi-lo com uma característica inteira­ do nosso entendimento, assim como o infini­
mente nova, para que, com o tempo, esse ter­ to do universo se estende para além do que o
mo passasse a expressar apenas a versão de olho humano pode enxergar.
amor que desejavam: agapê. H á um hino que coloca esse aspecto do
Em bora inicialmente um pouco vaga, essa amor de Deus numa linguagem memorável.
nova palavra grega conseguiu cumprir o obje­ Inicialmente escrito por F. M. Lehman, teve
tivo de seus criadores. Deus ama de maneira sua estrofe final (que é, talvez, a melhor de
justa e santa? Sim. Esse amor é agapê. O amor todas) acrescentada mais tarde, depois de ter
do Pai é generoso, soberano e eterno? Sim, sido encontrada registrada na parede do
isso também. Em Jeremias 31.3, Deus falou: quarto de um asilo, escrita por um homem
Com amor eterno te amei; também com amá­ considerado insano, mas que, obviamente,
vel benignidade te atraí. Esse amor é agapê. conheceu o amor de Deus.
Assim, agapê se tornou a palavra suprema
para falar sobre o amor do Senhor, inicial­ O amor de Deus é muito superior
mente revelado por Ele pelo judaísmo e, en­ Ao que a língua ou a caneta pode expressar;
tão, revelado, em sua plenitude, em Jesus Ele ultrapassa a mais alta estrela,
Cristo, por meio do cristianismo bíblico. E chega ao mais profundo inferno.

A m o r i n e s g o t á v e l ____________________________
A culpa curvou-se com cuidado,
Em segundo lugar, a Bíblia ensina que o Deus deu Seu Filho para vencer:
amor de Deus é infinito. Isso não é a mesma Seus filhos errantes Ele reconciliou,
coisa que dizer que ele é grande: a caracterís­ E resgatou do pecado.
tica diferenciada dele é sua capacidade de não
se extinguir. Ele não pode ser esgotado, nem Oh, como o amor de Deus é rico e puro!
mesmo completamente compreendido. Como é sem medida e forte!
Durará para sempre - compare ao Filho do homem. Segundo, ao
A canção dos anjos e dos santos. oferecer Jesus, Deus ofereceu a si mesmo, e
não existe nada maior que pudesse ser ofere­
Poderíamos encher o oceano com tinta? cido por alguém do que isso.
E poderia o céu ser como um pergaminho? Certa vez, um sacerdote estava conversan­
Poderiam todos os caules da terra ser penas de do com um casal que enfrentava dificuldades
escrever, no casamento. Havia muita amargura e dor
E todo homem um escriba por ocupação, entre eles, além de uma aguda falta de com ­
Para escrever acerca do amor de Deus? preensão. A certa altura da conversa, o marido
Se assim fosse, os oceanos secariam; disse com visível irritação: “Tenho dado tudo a
O pergaminho não poderia conter sua totali­ você”, afirmou, referindo-se à esposa. “Dei a
dade, você uma casa nova, um carro novo e todas as
Ainda que esticado de céu a céu. roupas que pudesse usar. Dei a você...”. E a
lista continuou. Quando ele terminou, a espo­
Essa é a canção de todos aqueles que, por sa disse com tristeza: “Tudo isso é verdade,
intermédio de Jesus Cristo, conheceram o in­ João. Você me deu tudo, exceto a si mesmo”.
finito amor do Pai. N ão podemos dar nada a ninguém mais
valoroso que nossa própria vida. Qualquer
A d á d iv a d o a m o r ____________________________ outro presente se torna relativamente insigni­
Em terceiro lugar, Deus também nos fala ficante diante deste. Deus deu a si mesmo em
que Seu amor é uma dádiva. Esse é o ponto Jesus.
principal de João 3.16: D eus amou o m undo
de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito. A m o r so bera n o _______________________________

A natureza do amor de Deus é dar e, quando Em quarto lugar, o amor de Deus é sobe­
Ele nos dá algo, não é apenas uma ninharia, rano. Por ser Senhor, Ele não deve satisfação
mas o melhor. a ninguém, sendo livre para amar a quem es­
Em Os Quatro Amores, C. S. Lewis dife­ colher. Assim, Ele declara: A m ei Jacó, e abor-
rencia o amor-dádiva do amor-necessidade, reci Esaú (Rm 9.13) e, em relação a Israel, diz:
indicando que é o primeiro, amor-dádiva,
que caracteriza o amor do Senhor: O S E N H O R não tomou p ra z er em vós,
nem vos escolheu, p orque a vossa multi­
O amor divino é o amor-Doação. O Pai entre­ dão era mais do qu e a de todos os outros
ga ao Filho tudo o que Ele tem. O Filho se en­ povos, pois vós éreis menos em núm ero do
trega ao Pai e se entrega ao mundo e ao Pai pelo que todos os povos, mas p orque o S E ­
mundo, e com isso também resgata o mundo N H O R vos amava; e, para guardar o ju ­
(nele mesmo) para o Pai. ( L e w i s , 2005, p. 2) ramento que jurara a vossos pais, o S E ­
N H O R vos tirou com mão forte e vos
Em nenhum outro lugar pode-se enxergar resgatou da casa da servidão, da mão de
melhor esse fato do que na dádiva de Jesus Faraó, rei do Egito.
para a nossa salvação. Deuteronômio 7.7,8
O amor-dádiva do Senhor pode ser visto
na morte de Jesus de duas maneiras. Em pri­ Se Deus é soberano em Seu amor, significa
meiro lugar, Cristo é o melhor que o Pai tinha que este não pode ser influenciado por nada
para dar, porque não existe ninguém que se que se refira à criatura. Sendo assim, isso
eqüivale a dizer que a razão do amor do Senhor uma boa vontade comum direcionada a um
se encerra nele mesmo: Ele ama a quem quer. grupo visto como um todo e, portanto, a nin­
Podemos perceber isso claramente nos guém em particular. Trata-se de um amor que
textos citados no parágrafo anterior. N o caso escolhe os indivíduos e abençoa-os de manei­
de Jacó e Esaú, não é que Jacó fosse mais cati­ ra específica e abundante.
vante e, por isso, Deus o tenha amado mais do O propósito do amor de Deus que, segun­
que a seu irmão. O Senhor decidiu amar Jacó do Efésios 1.4, foi definido antes da criação
como uma expressão simples e pura de Sua do mundo envolve, primeiro, a escolha da­
soberana vontade, e deixou isso claro ao fazer queles a quem Ele abençoaria e, depois, a in­
essa escolha antes que os gêmeos nascessem, dicação dos benefícios a serem concedidos,
antes que tivessem a chance de fazer qualquer bem como o meio pelo qual estes seriam ob­
coisa boa ou má. tidos e aproveitados.
De forma parecida, o versículo em Deutero­ Assim, de acordo com J. I. Packer:
nômio nega com veemência que Deus tenha
amado a nação de Israel por causa de uma carac­ O exercício individual do amor de Deus em
terística particular dela, como poder ou tama­ relação aos pecadores no tempo é a execução
nho territorial (ela não era grande como a maio­ de um propósito para abençoar aqueles mes­
ria das nações). Mais exatamente, o texto afirma mos pecadores que Ele formou na eternidade.
que o Senhor a amou porque decidiu amá-la. (P a c k e r , 1973, p . 112-113)
Para a maioria das pessoas, esse não é um
ensinamento popular, mas é a única maneira A m o r etern o __________________________________

de garantir coerentemente que Deus seja, de O quinto e último ponto de vista a respei
fato, Deus. Suponha o contrário: imagine que to do amor de Deus é que ele é eterno. Assim
o amor divino fosse regulado por alguma coi­ como as suas origens encontram-se no passa­
sa além da soberania do Senhor. Nesse caso, do da eternidade, o seu fim será encontrado
Ele seria, também, regulado por essa outra na eternidade futura. Em outras palavras, não
coisa (seja lá o que fosse) e, assim, ficaria de­ existe fim. Paulo escreveu:
baixo da autoridade dela, o que é impossível
se Ele ainda for Deus. Q uem nos separará do am or de Cristo? A
Nas Escrituras, somente a vontade eleita tribulação, ou a angústia, ou a persegui­
do Pai justifica Seu amor. A razão apresentada ção, ou a fom e, ou a nudez, ou o perigo, ou
para as escolhas de Deus acerca disso é que: a espada? Como está escrito: Por amor de
ti somos entregues á morte todo o dia: fo ­
[Ele] nos predestinou para filhos de adoção mos reputados como ovelhas para o mata­
p o r Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o douro. Mas em todas estas coisas somos
beneplácito de sua vontade, para louvor e mais do que vencedores, p or aquele que
glória da sua graça, pela qual nos fe z agra­ nos amou. Porque estou certo de que nem
dáveis a si no Amado. a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os
Efésios 1.5,6 principados, nem as potestades, nem o p re­
sente, nem o porvir, nem a altura, nem a
H á um segundo princípio relacionado à profundidade, nem alguma outra criatura
soberania divina que é igualmente importante. nos poderá separar do amor de Deus, que
Deus não ama só o coletivo, mas também o está em Cristo Jesus, nosso Senhor!
indivíduo. O amor do Senhor não é [apenas] Romanos 8.35-39
N a lista de Paulo, existem duas classes de Ainda há mais uma questão. A o chegar ao
ameaças potenciais para o relacionamento do final de sua declaração sobre o eterno e vito­
cristão com o Pai, e ele nega a eficácia de am­ rioso amor divino, Paulo atinge o clímax de
bas. A primeira classe diz respeito aos nossos sua epístola. Ele fala do amor de Deus que
inimigos naturais neste mundo imperfeito e está em Cristo Jesus, o que nos leva de volta
incrédulo: pobreza, fome, desastres naturais e ao ponto de onde começamos: o amor do Pai
perseguidores. Segundo ele, estes não podem refletido na cruz. E preciso levar em conta
separar-nos do amor do Senhor. que, se quisermos conhecer verdadeiramente
À medida que analisamos a lista e a compa­ esse amor [e não apenas ouvir falar dele], não
ramos com as experiências do apóstolo como basta apenas olhar para Cristo; devemos estar
ministro do evangelho, percebemos que suas nele, desenvolvendo, assim, um relaciona­
palavras não são ditas sem motivo. O próprio mento pessoal com o Filho pela fé.
Paulo resistiu a esses inimigos (2 C o 6.5-10; Então, a questão é: será que, de fato, o co­
11.24-33). Mesmo assim, nada o separou do nhecemos e acreditamos que o grande amor
amor de Deus, que é eterno. N em nos separará, de Deus é direcionado a nós por meio da fé
se tivermos de submeter-nos a tal sofrimento. no sacrifício de Cristo? Somos mesmo dele?
A segunda classe de inimigos é sobrenatu­ Jesus é realmente nosso Senhor e Salvador
ral ou, com o preferimos dizer, é, justamente, pessoal?
a própria natureza das coisas. Nesses versícu­ N ão existe outra maneira de conhecer o
los, Paulo listou morte, vida, anjos, demônios amor do Pai: essa é a única forma de vivenciá-
e qualquer outra coisa que pudesse ser enqua­ -lo. Tudo depende de nosso comprometi­
drada nessa categoria. Elas podem separar-nos mento com Cristo. Deus decretou que apenas
do amor de Deus? Paulo respondeu que não em Seu Filho pode ser conhecido Seu grande,
podem , pois o Senhor é maior do que qual­ inesgotável, gratuito, soberano e eterno amor
quer uma delas. por nós, pecadores.

N o tas

1 Karl Barth (1886—1968) foi um teólogo cristão protestante, pastor da Igreja Reformada, e um dos líderes da teolo­
gia dialética e da neo-ortodoxia protestante. Nasceu na Basiléia e foi criado em Berna, Suíça. De 1911 a 1921, foi
pastor da aldeia de Safenwil, no cantão de Aargau. Lecionou teologia em Bonn, Alemanha, mas, em 1935, recusou-se
a apoiar Adolf Hitler e teve de deixar o país, retornando à Basiléia. Tornou-se um dos líderes da Igreja Confessante,
grupo oposto ao Movimento Cristão Alemão. Foi o principal redator da Declaração Teológica de Barmen.
Originalmente treinado na Teologia Protestante Liberal, desapontou-se com ela devido aos males e horrores da
Primeira Guerra Mundial. Em algum momento de sua carreira teológica, migrou da teologia puramente dialética e
passou a utilizar a analogia da fé. Para ele, a analogia seria a única forma viável de falar de Deus.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Barth)

2 O am or eros aqui corresponde exatamente ao am or erótico, sensual, ao desejo sexual sem afeto e compromisso
conjugal.
A DOUTRINA FUNDAMENTAL DA RESSURREIÇÃO

que é mais importante para a teo- não foram fortes o suficiente para continua­
j/ logia cristã: a morte de Jesus Cris- rem crendo em Sua identidade como Messias
í( / to ou Sua ressurreição? N ão há depois de testemunharem a prisão e a morte
k -./ resposta para essa pergunta. Em ­ dele. Todavia, três dias depois da ressurrei­
bora a principal missão de Jesus tenha sido ção, eles tiveram a fé fortalecida, e saíram para
morrer pelos pecados da humanidade, não anunciar o evangelho do Salvador que havia
podemos desconsiderar a importância históri­ vencido a morte.
ca da ressurreição como evidência para as afir­ A morte e a ressurreição de Jesus foram o
mações que Ele fizera a respeito de Sua identi­ cerne da mensagem de Seus seguidores. Ele já
dade como Messias e Filho de Deus. Foi tinha revelado aos discípulos o que acontece­
apenas por causa da ressurreição que o evange­ ria na noite da ressurreição, a fim de prepará-
lho da cruz pôde ser entendido e, então, pre­ -los por meio da Palavra:
servado e transmitido ao longo dos séculos, até
que chegasse a nós. Então, abriu-lhes o entendimento para
A importância da ressurreição é percebida com preenderem as Escrituras. E disse-lhes:
desde os primeiros momentos da era cristã. Assim está escrito, e assim convinha que o
De certa forma, os discípulos sempre creram Cristo padecesse e, ao terceiro dia, ressusci­
em Jesus como o Cristo. U m exemplo dessa tasse dos mortos; e, em seu nome, se p re­
imatura, mas genuína, fé foi o testemunho de gasse o arrependimento e a remissão dos
Pedro: Tu és o Cristo, o Filho do D eus vivo pecados, em todas as nações, começando
(Mt 16.16b). Entretanto, a fé dos seguidores p o r Jerusalém. E dessas coisas sois vós tes­
de Jesus foi profundamente abalada pela cru­ temunhas.
cificação, ao ponto de fazer com que eles* Lucas 24.45-48
imediatamente depois da morte do Cordeiro,
abandonassem tudo e retornassem para o lu­ Mais tarde, Paulo descreveu a natureza
gar de onde tinham vindo. simples da pregação apostólica, dizendo que
O mesmo Pedro que, no Evangelho dehavia transmitido aos coríntios apenas o que
Mateus, havia afirmado com total segurança ele próprio havia recebido:
que Jesus era o Cristo acabou negando-o três
vezes na noite em que Ele foi preso, ainda an­ Porque prim eiramente vos entreguei o que
tes da crucificação. Em bora tivessem acredi­ também recebi: que Cristo morreu por
tado na pregação de Jesus, Seus discípulos nossos pecados, segundo as Escrituras, e
que foi sepultado, e que ressuscitou ao ter­ como falsas testemunhas de Deus, pois
ceiro dia, segundo as Escrituras, e que foi testificamos de Deus, que ressuscitou a
visto por Cefas e depois pelos doze. Depois, Cristo, ao qual, porém , não ressuscitou,
foi visto, uma vez, por mais de quinhentos se, na verdade, os mortos não ressuscitam.
irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, Porque, se os mortos não ressuscitam,
mas alguns já dormem também. Depois, foi também Cristo não ressuscitou. E, se
visto por Tiago, depois, por todos os apósto­ Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé , e
los e, p o r derradeiro de todos, me apareceu ainda perm aneceis nos vossos pecados. E
também a mim, como a um abortivo. tam bém os que dorm iram em Cristo es­
1 Coríntios 15.3-8 tão perdidos.
1 Coríntios 15.14-18
E m Atos 2.27, Pedro afirmou que Davi
fizera, no versículo 10 do Salmo 16, menção à O s e l o s o b r e a e x is t ê n c ia d e D eu s

ressurreição de Cristo: Pois não deixarás a Q ue outras doutrinas são sustentadas


minha alma no inferno, nem permitirás que o pela veracidade da ressurreição? A primeira
teu Santo veja corrupção. é a de que existe um Deus e a de que somen­
Outros pregadores do N ovo Testamento te o Deus da Bíblia é o verdadeiro. Mas será
fizeram a mesma coisa. D e acordo com muitos que existe mesmo um Criador? Se existe,
estudiosos contemporâneos das primeiras pre­ que tipo de Deus Ele é? Essas são as primei­
gações, a morte e a ressurreição de Cristo sem­ ras e mais importantes perguntas que qual­
pre estiveram no centro da mensagem anun­ quer mestre religioso deve responder. E n ­
ciada pelos apóstolos (D o d d , The Apostolic tretanto, a diversidade de opiniões entre os
Preaching and its Developments, p.x). teólogos é muito grande. C om o podemos
A ressurreição provou que Jesus Cristo é ter certeza de quais teorias estão corretas, se
quem Ele alegou ser e que cumpriu o que ale­ é que alguma está? Somente a ressurreição
gou ter vindo a terra para realizar. O evange­ de Jesus C risto, p or si só, proporciona-nos
lista Reuben A. Torrey disse: “A ressurreição essa segurança.
de Jesus Cristo é o Gibraltar das evidências
cristãs, o Waterloo da infidelidade”. Ela é a Todo efeito deve ter uma causa adequada. No
base histórica sobre a qual todas as demais caso da ressurreição de Cristo, essa única causa
doutrinas cristãs estão edificadas e diante da é o Deus da Bíblia. Como qualquer pessoa co-
qual todas as dúvidas devem fracassar. nhecedora da história da vida de Jesus sabe,
Se é mesmo possível mostrar que Jesus de nosso Senhor andou por toda a terra procla­
Nazaré ressuscitou dentre os mortos, como mando o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, como
alegam as Escrituras, então a fé cristã se baseia gostava de declarar, o Deus tanto do Antigo
sobre um fundamento sólido. Se essa doutrina Testamento como do Novo. Ele disse que os
se sustentar, as outras também se sustentarão. homens o levariam à morte por meio da cruci­
Por outro lado, se não estiver bem fundamenta­ ficação, e deu muitos detalhes sobre a forma
da, as outras acabarão perdendo credibilidade. como tudo aconteceria. Além disso, Jesus disse
Dessa forma, o apóstolo Paulo escreveu: que, depois que Seu corpo ficasse enterrado
durante três dias e três noites, Seu Pai, o Deus
E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a de Abraão, de Isaque e de Jacó, o Senhor da
nossa pregação, e tam bém é vã a vossa fé. Bíblia, o Deus tanto do Antigo como do Novo
E assim somos ta m bém considerados Testamento, levantaria Ele dentre os mortos.
Essa foi uma declaração e tanto. Jesus, apa­ Aprendemos nas aulas de álgebra do ensi­
rentemente, referia-se a algo impossível. D u­ no médio que, para chegar à resposta final, os
rante séculos, homens chegaram e partiram, alunos com mais experiência no processo de
viveram e morreram e, no que diz respeito ao resolução das equações nem sempre precisa­
conhecimento humano, que é alicerçado so­ vam ater-se a cada etapa delas. Por exemplo,
bre observações e experiências claras, esse foi para chegar ao resultado da equação 2a - 10 =
o fim deles. Mas esse homem, Jesus, não hesi­ 10, um aluno inexperiente poderia seguir pelo
ta em declarar que Sua experiência irá de en­ caminho mais trabalhoso (2a - 10 = 10; 2a =
contro às uniformes experiências de longos e 10+10; 2a = 20; a = 10), enquanto um estudan­
longos séculos. te familiarizado com os termos poderia ver,
Isso foi, sem dúvida, uma prova da existência de imediato, que, se 2a - 10 = 10, então a = 10,
do Deus que Ele pregava, pois este havia passa­ não sendo necessário, para tal, resolver os
do no teste, fazendo exatamente o que havia passos intermediários.
dito que faria, mesmo parecendo, a princípio, Isso é parecido com o que Paulo fez nos
que aquilo era irrealizável. Deste modo, o fato primeiros versículos de Romanos. Ele argu­
de Jesus ter sido milagrosamente trazido de mentou que a ressurreição de Cristo foi sufi­
volta da morte torna evidente que o Deus que ciente para provar Sua divindade. Contudo,
fez isso existe de fato, sendo, assim, o verdadei­ se tivesse de explicar sua lógica em detalhes,
ro Deus. ( T o r r e y , 1965, p. 70-71) ele diria algo assim:

O SELO SOBRE A DIVINDADE DE C r ISTO


1. Jesus declarou ser o Filho de Deus
A ressurreição de Cristo estabelece tam­ de uma maneira especial. Ele argu­
bém a doutrina da divindade de nosso Senhor. mentou que Deus era Seu Pai (Jo
Quando viveu sobre a terra, Jesus declarou 5.18) e disse que este o tinha envia­
não apenas que Deus o traria de volta da mor­ do ao mundo para salvar a humani­
te três dias depois da crucificação, mas tam­ dade. Afirmou que, quando partisse
bém que Ele era igual a Deus. daqui, retornaria para a presença do
Se estivesse errado quanto a isso, Sua ale­ Altíssimo (Jo 16.28). C risto declarou
gação seria ou um delírio de um homem per­ que quem quer que o tivesse visto
turbado ou blasfêmia. P or outro lado, se Je­ tinha visto o Pai (Jo 14.9). Todas es­
sus estivesse certo, a ressurreição seria a tas eram declarações de divindade, e,
maneira de Deus confirmar aquela declara­ por causa delas, os líderes religiosos
ção. Ele a confirmou? Jesus se levantou den­ o mataram.
tre os m ortos? Sim, levantou. Portanto, a
2. Só há duas possibilidades: tais decla­
ressurreição é o selo de Deus sobre a declara­
rações ou eram falsas, ou verdadeiras.
ção de Cristo acerca de Sua divindade.
Jesus não podia ser Deus apenas em
Paulo, que sabia que Jesus tinha ressusci­
parte. Ou Ele é quem dizia ser ou é
tado, afirmou que Cristo é o declarado Filho
um mentiroso.
de D eus em poder, segundo o Espírito de san­
tificação, pela ressurreição dos mortos (Rm 3. Se as declarações de Jesus eram falsas,
1.4). Ele deixou de fora muitos argumentos eram também enganosas e blasfemas.
que incluiria se dependesse, aqui, apenas da 4. Se eram blasfemas, não é possível
lógica humana para nos convencer a crer no que Deus pudesse honrar quem as
que pregava. declarou.
5. Mas Deus honrou a Jesus, ressusci­ do H om em não veio para ser servido, mas
tando-o dentre os mortos. Deus jus­ para servir e para dar a sua vida em resgate de
tificou as declarações dele. muitos (M t 20.28). N o tempo apropriado, a
6. Por essa razão, Jesus é o unigênito Fi­ hora de Sua crucificação chegou, e Jesus mor­
lho de Deus. reu. O sacrifício foi oferecido, a expiação foi
feita. Mas como os seres humanos saberiam
Tal análise não é feita apenas com base no se Deus realmente havia aceitado a oferta de
texto de Romanos 1.4, visto que essa evidên­ Cristo?
cia aparece em outras partes da Bíblia. Paulo Suponhamos que o próprio Jesus tivesse
simplesmente reproduziu esse ensinamento. pecado, mesmo enquanto estivesse pendura­
O próprio Jesus usou esse argumento do na cruz. Nesse caso, o Cordeiro não seria
quando, para justificar Seu caráter divino, ape­ sem mancha ou mácula, e a expiação não teria
lou para o sinal do profeta fonas. Ele demons­ sido perfeita. Deus aceitaria o sacrifício?
trou uma autoridade única em Seus ensina­ Durante três dias a pergunta permaneceu
mentos e milagres, mas muitos dos que sem resposta. Então, o momento da ressur­
ouviram não acreditaram. Quando os gover­ reição chegou. A mão de Deus alcançou a fria
nantes pediram provas que corroborassem tumba da Judeia, e o corpo de Cristo foi vivi-
Suas afirmações, Jesus respondeu que o único ficado. Ele ressuscitou. A pedra foi retirada.
sinal dado seria aquele do profeta Jonas, pois Jesus foi [é] exaltado à direita do Pai. Por
como Jonas esteve três dias e três noites no ven­ meio desses atos, sabemos que Deus aceitou o
tre da baleia, assim estará o Filho do H om em sacrifício perfeito de Seu Filho pelo pecado.
três dias e três noites no seio da terra (Mt 12.40).
Depois que isso acontecesse, Cristo res­ Quando Jesus morreu, Ele o fez como meu
suscitaria, e Sua autoridade única seria justifi­ representante, e eu morri com Ele; quando res­
cada. D a mesma forma, no dia de Pentecostes suscitou, foi como meu representante, e eu
e em outros sermões registrados em Atos, os ressuscitei com Ele; quando ascendeu ao céu e
primeiros discípulos usavam a ressurreição tomou Seu lugar à direita do Pai na glória, tam­
para provar a divindade de Cristo. bém o fez como meu representante, e eu ascen­
di com Ele, estando, portanto, em Cristo, sen­
O s e l o s o b r e a j u s t i f i c a ç ã o ______________ tado com Deus nos céus. Eu olho para a cruz
A ressurreição de Jesus estabeleceu a dou­ de Cristo e sei que a expiação pelos meus peca­
trina de que todos que acreditam em Cristo dos foi feita; vejo o sepulcro aberto e o Senhor
são justificados de todo pecado. ressuscitado, e sei que o sacrifício dele foi acei­
Paulo ensinou a mesma coisa em Roma­ to. Já não existe mais nenhum pecado em mim,
nos: Jesus, nosso Senhor, o qual por nossos peca­ não importa quantos ou quão grandes fossem
dos foi entregue e ressuscitou para nossa justifi­ as minhas transgressões. ( T o r r e y , 1904-1906,
cação (Rm 4.24b,25). Em outras palavras, Jesus p. 107,108)
morreu por causa de nossas transgressões e
ressuscitou para que fôssemos justificados. A O SELO SOBRE A SANTIFICAÇÃO_____________

ressurreição é a declaração de Deus de que Ele Os ensinos bíblicos afirmam que, de acor­
aceitou o sacrifício de Jesus Cristo pelo pecado do com os padrões de Deus, é impossível en­
humano. contrar bondade no ser humano, e isso pode
Quando Jesus estava na terra, Ele decla­ ser aplicado corretamente tanto aos descren­
rou que expiaria os nossos pecados: O Filho tes com o aos cristãos. Entretanto, também
nos é dito que, por meio de Cristo, podemos juntos. Ao chegarem a um lugar particular­
viver uma vida agradável a Deus. A ressurrei­ mente difícil, o turista que estava mais embai­
ção de Jesus corrobora isso. xo escorregou e tombou de lado.
C om base em nossos próprios padrões, O puxão repentino na corda carregou
podemos considerar nossas ações como atos também o guia que estava mais embaixo, bem
de bondade. Existem extraordinários huma­ como o outro turista, deixando, assim, os três
nitários e filantropos entre os descrentes. homens pendurados sobre o vertiginoso pre­
Contudo, ninguém pode fazer o bem quan­ cipício. Entretanto, o guia que estava na lide­
do medido pelo padrão de Deus, já que tudo rança, ao sentir o primeiro puxão na corda,
o que fazemos é corrom pido pelo nosso to ­ cravou seu machado no gelo, prendeu o pé e
que pecaminoso. N ão pode existir vitória segurou-se fortemente. O primeiro turista
humana sobre o pecado. Porém , se Jesus está recuperou, então, o equilíbrio; logo depois, o
vivo, então podemos viver por meio dele, o outro guia recuperou o dele, e, em seguida, o
que torna possível, assim, a existência da outro turista também. Assim, continuaram a
santidade genuína. subir em segurança.
Isso acontece pela sobreexcelente grande­ O mesmo aconteceu conosco. Enquanto a
za do seu poder sobre nós, os que cremos, se­ humanidade escalava os penhascos gelados da
gundo a operação da força do seu poder, que vida, o primeiro Adão perdeu o equilíbrio e
manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos precipitou-se sobre o abismo, levando consi­
mortos (Ef 1.19,20). go uma pessoa após a outra, até que toda a
Paulo também escreveu: espécie humana ficou em perigo mortal. Mas
.o último Adão, Jesus, manteve-se firme. Ele
D e sorte que fom os sepultados com ele pelo se segurou fortemente. Desse modo, todos
batismo na morte; para que, como Cristo aqueles que estão ligados a Cristo por meio
ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, de uma fé viva estão seguros, e podem recu­
assim andemos nós também em novidade perar o equilíbrio.
de vida.
Romanos 6.4 O SELO SOBRE A VIDA ETERNA_______________

Além de tudo o que já foi dito, a ressurrei­


Isso significa que todos os que creem em ção de Jesus prova também que a morte não é
Jesus estão ligados a Ele de forma tal que, se o fim, visto que esta foi, de fato, derrotada
permitirem, Cristo passará a viver neles. P o ­ por todos aqueles que, pela fé, estão unidos
demos ser fracos e absolutamente impotentes, ao Senhor.
incapazes de resistir às tentações, mesmo que Quando estava aqui na terra, Cristo disse
por um momento. Mas Ele é forte e pode aos Seus seguidores: E, se eu fo r e vos prepa­
ajudar-nos e livrar-nos sempre que preciso. rar lugar, virei outra vez e vos levarei para
Assim, não precisamos mais tentar alcançar mim mesmo, para que, onde eu estiver, este-
vitórias apenas por meio de nossa própria jais vós também (Jo 14.3). Isso pressupõe a
força, visto que tudo depende do poder do ressurreição dos próprios discípulos.
Senhor. E desse poder que precisamos. D a mesma forma, o apóstolo Paulo es­
Torrey contou uma história para ilustrar creveu: Porque, se cremos qu e Jesus m orreu
esse ponto. Q uatro homens foram escalar o e ressuscitou, assim tam bém aos qu e em J e ­
lado mais difícil da montanha Matterhorn. sus dorm em D eus os tornará a trazer com
Dois guias e dois turistas estavam amarrados ele (1 Ts 4.14). Os que creem em Cristo estão
unidos a Ele pela fé de tal maneira que, se Je­ quando começou a deteriorar-se, prejudican­
sus ressuscitou dos mortos, Seus seguidores do, assim, a saúde da família.
também deverão fazer o mesmo. N ós, que Em seguida, os restos mortais foram cre­
nos unimos ao Cordeiro na morte, estaremos mados, e a exibição do crematório foi tão tris­
unidos a Ele também na ressurreição. te que algumas cenas foram captadas pelos
Nesse ponto, devemos destacar duas ver­ jornais e apresentadas à nação. Ingersoll tinha
dades. A primeira é que, fora da ressurreição usado seu notável intelecto para negar a res­
de Jesus C risto, não há certeza de vida após surreição, mas, quando a morte chegou, não
a m orte. A segunda, p or sua vez, é que, com havia nenhuma esperança. Sua partida foi re­
base na ressurreição dele, o cristão pode ter cebida pelos parentes e amigos com o uma
perfeita segurança de sua vida eterna com tragédia sem compensação.
Deus. N o mesmo ano, o famoso evangelista
Os escritos filosóficos têm muitos argu­ Dwight L. M oody se despediu da vida, mas
mentos para a imortalidade, mas, na melhor sua morte foi triunfante tanto para ele como
das hipóteses, oferecem apenas especulações para sua família. Moody estava definhando ha­
sobre o tema. U m filósofo definiu a doutrina via algum tempo, e a família permanecia com
da imortalidade com o uma vela que brilha ele, em turnos. N a manhã em que morreu, seu
sem muito vigor no fim de um túnel escuro. filho, que estava de pé ao lado do leito, ouviu-
O utro a descreveu como uma estrela tenue- -o exclamar: “A terra está se afastando, o céu
mente brilhante na mais escura das noites. está se abrindo; Deus está chamando”.
Essa é a [volúvel] esperança filosófica da N o livro Philippians: A n Expositional
imortalidade, que não transmite segurança. É Commentary [Filipenses: um comentário ex-
uma possibilidade, mas não uma certeza. A positivo], encontramos mais detalhes desse
única evidência segura de nossa ressurreição momento:
é a ressurreição do próprio Jesus, que disse:
A inda um pouco, e o m undo não m e verá “Você está sonhando, pai” - disse o filho.
mais, mas vós m e vereis; porque eu vivo, e Moody respondeu: “Não, Will, não é um so­
vós vivereis (Jo 14.19). E ela que faz toda a nho. Estou dentro dos portões. Vejo as faces
diferença. das crianças”. Por um instante pareceu que
N o ano de 1899, dois homens famosos Moody estivesse se restabelecendo, mas ele co­
morreram nos Estados Unidos. U m foi um meçou a escapulir novamente. Ele disse: “Isso
descrente que tinha feito carreira menospre­ é a morte? Não é ruim; não existe vale. É uma
zando a Bíblia e argumentando contra as felicidade. É glorioso”. A esta altura, sua filha
doutrinas cristãs. O outro era um cristão. estava presente e começou a orar pela recupe­
O Coronel Robert G. Ingersoll, em cujo ração do pai. Ao perceber, Moody disse: “Não,
nome foram realizadas, na Universidade de não Emma, não ore por isso. Deus está cha­
Harvard, as famosas séries de palestras Ingersoll mando. Esse é o dia da minha coroação, e te­
sobre imortalidade, era o descrente. Ele se foi de nho esperado ansiosamente por isso”. Logo
repente, sendo sua morte um choque absoluto depois, Moody foi recebido no céu. N o funeral,
para sua família. a família e os amigos se reuniram para um culto
O corpo do coronel foi mantido dentro jubiloso. Eles conversaram. Cantaram hinos.
de sua casa durante vários dias porque a espo­ Ouviram a Palavra proclamando: Onde está, ó
sa dele não podia suportar a ideia de separar- morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a
-se do marido. O cadáver só foi removido tua vitória? Ora, o aguilhão da morte é o pecado,
e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus, e parabenizamo-nos porque vimos o fim da­
que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cris­ quele inseto. Um a raposa invade o galinheiro
to (1 Co 15.55-57). (B o ic e , 1971, p. 256-57) e nós atiramos nela. M orto, o animal já não
nos ameaça. Quando nosso inimigo morre,
A morte de Moody fez parte daquela vitória. nós o descartamos de nossa mente.
N ão quero sugerir que a morte de cada Assim foi com Jesus Cristo. Ele veio ao
cristão seja igualmente gloriosa. Nem todos mundo fazendo o bem, mas as pessoas se
sentem a força dessas doutrinas no momento de ofenderam tanto com Sua santidade que ten­
voltarem para casa. Mas muitos sentem. A mor­ taram encontrar alguma coisa pela qual pu­
te pode ser vitoriosa para o cristão. N ão há es­ dessem acusá-lo. Ele alegava ser o Filho de
perança à parte da ressurreição de nosso Senhor. Deus; então, acusaram-no de blasfêmia. Jesus
falou dos pecados do povo e afirmou que ha­
O SELO SOBRE O JULGAMENTO______________ veria um dia em que Ele julgaria toda a huma­
P or fim, a ressurreição de Jesus Cristo nidade; eles o odiaram por causa disso.
também é a garantia de um julgamento final Finalmente, Seus acusadores conseguiram
sobre aqueles que rejeitam o evangelho. N o matá-lo. Podemos imaginar o júbilo em Jeru­
areópago, Paulo proclamou que Deus estabe­ salém no dia da grande festa depois da cruci­
leceu um dia em que com justiça há de julgar ficação. Aqueles que tinham desprezado Je ­
o mundo, por meio do varão que destinou; e sus se parabenizaram por ter acabado com
disso deu certeza a todos, ressuscitando-o dos Ele. Estavam seguros, pois nunca mais preci­
mortos (A t 17.31). sariam suportar Sua arrogância novamente.
Cristo, quando estava na terra, falou sobre Então, veio a ressurreição e, por meio desse
um julgamento final, alegando que Ele seria o ato, Deus declarou que a morte nunca seria o
Juiz. O fato de Deus tê-lo ressuscitado dentre fim de Cristo, porque Ele é a própria vida. O
os mortos é prova da veracidade de Sua alega­ mal está no mundo, mas nada que se oponha
ção. É uma garantia de que o dia do julga­ a Deus triunfará no final. O pecado foi puni­
mento está chegando. do na cruz, mas Jesus triunfou sobre a morte
Os seres humanos imaginam que a morte é na ressurreição. Foi necessário que Cristo
o fim de todas as coisas, principalmente quan­ padecesse, mas Ele se manifestou, para ani­
do esta atinge seus inimigos. U m mosquito quilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo [...]
nos pica e ficamos irritados; nós o golpeamos vindo, depois disso, o juízo (Hb 9.26,27).
V e r ific a n d o a r e s s u r r e iç ã o

/ l e todas as afirmações do capítulo an- provas da ressurreição (At 1.3). Queremos


' terior a respeito da ressurreição de analisar seis delas neste capítulo.
Jesus forem verdadeiras, podemos
dizer, sem dúvida, que o mundo ja­ As NARRATIVAS DA RESSURREIÇÃO___________
mais ouviu notícias melhores do que essas. As narrativas sobre a ressurreição são a
Mas perguntamos: “E possível acreditar em primeira evidência importante de que Jesus
notícias tão boas assim?”. Essa questão con­ Cristo, de fato, venceu a morte. Existem qua­
duz a uma investigação mais minuciosa sobre tro delas, uma em cada Evangelho. Em bora
as evidências da ressurreição. mais ou menos independentes, elas são har­
Alguns teólogos modernos sustentam a te­ moniosas, o que sugere sua credibilidade co ­
oria de que não temos nenhuma necessidade mo documentos históricos.
de buscar evidências históricas para provar a O caráter independente das descrições é
veracidade seja da ressurreição de Jesus ou de evidente devido às consideráveis variações de
qualquer outra questão relacionada à crença detalhes apresentadas por cada autor. Essa
cristã. Para eles, essas coisas deveriam ser au­ sobreposição de informações é natural sim­
tenticadas apenas pela lógica da fé. plesmente porque, na época em que os Evan­
Por um lado, isso não deixa de ser verda­ gelhos estavam sendo escritos, diversos rela­
de. Os cristãos sabem que sua fé não se baseia tos acerca desse acontecimento circulavam
na habilidade de provar ou não a exatidão do em toda a Igreja cristã. Pode ser que, por
que é narrado na Bíblia, mas sim na atividade meio de uma linguagem aparentemente idên­
sobrenatural do Espírito Santo, que é o res­ tica, um relato ou outro tenha sido feito por
ponsável por levá-los a crer. pessoas diferentes. Contudo, tornou-se ób­
Entretanto, muitas pessoas alcançam a fé vio que os quatro autores não se reuniram
por meio de várias evidências acerca da res­ nem conspiraram para inventar a história da
surreição, sobre as quais se assentam a subs­ ressurreição de Cristo.
tância e a forma da crença cristã. Sem consi- Se tivessem sentado juntos para escrever
derá-las, nossas experiências em relação a um relato fictício acerca da vitória de Jesus
Cristo poderiam ser místicas ou mesmo com ­ sobre a morte, planejando, então, os detalhes
pletamente erradas. de sua história, haveria muito mais concor­
Independente do que afirmem, temos to ­ dância de opinião do que as que encontramos,
do o direito de investigar as evidências, visto não existindo, portanto, as muitas e aparen­
que a própria Bíblia fala de muitas e infalíveis tes contradições entre os Evangelhos. Ainda
assim, se a história não fosse verdadeira e eles, N a verdade, um texto complementa os
separadamente, tivessem inventado seus rela­ outros. Marcos e Lucas, por exemplo, expli­
tos, seria impossível encontrar a concordân­ cam quem era a outra Maria que Mateus ha­
cia essencial que há entre os textos. Em outras via mencionado. Quando colocamos todos os
palavras, a natureza das narrativas é o que relatos juntos, descobrimos que, naquela pri­
esperaríamos de quatro relatos individuais e meira manhã de Páscoa, quando ainda estava
distintos, produzidos por testemunhas ocula­ escuro, pelo menos cinco mulheres se dirigi­
res, tratando do mesmo tema. ram para o túmulo: Maria Madalena (que é
Aqui estão dois exemplos do que, até en­ mencionada por cada um dos escritores), Ma­
tão, foi afirmado. Primeiro, existe a variedade ria, a mãe de Tiago, Salomé, Joana e pelo me­
de declarações sobre o momento em que as nos outra mulher, ainda sem nome, a qual se
mulheres chegaram ao túmulo. Mateus disse encaixa na referência de Lucas à outra mulher,
que foi no fim do sábado, quando já desponta­ que inclui Salomé.
va o prim eiro dia da semana (Mt 28.1). Mar­ O propósito da viagem dessas mulheres
cos, por sua vez, afirmou que foi no primeiro era ungir o corpo de Cristo. Elas já sabiam da
dia da semana [...], de manhã cedo, ao nascer dificuldade que enfrentariam, já que o túmulo
do sol (Mc 16.2). Lucas contou que foi no pri­ havia sido selado com uma grande pedra, e
meiro dia da semana, muito de madrugada elas não tinham a menor ideia de como remo­
(Lc 24.1), enquanto João ressaltou que era de vê-la. À medida que caminhavam, o dia co­
madrugada, sendo ainda escuro (Jo 20.1). Se meçou a clarear, até que, finalmente, puderam
estivessem fazendo seus relatos juntos, esse aproximar-se do túmulo, vendo, então, que a
seria o tipo de informação que os autores te­ pedra tinha sido removida.
riam padronizado. Em bora a remoção da pedra facilitasse a
Ao contrário do que parece, não existe realização do propósito daquelas mulheres,
uma contradição de verdade. Por um lado, elas ficaram preocupadas, sem saber o que
embora João tenha dito que estava ainda es­ fazer, visto que não estavam esperando por
curo, não necessariamente devemos entender isso. Segundo relatam, elas enviaram Maria
que estava um breu. Ao lermos a próxima Madalena de volta, com a missão de contar o
frase, percebemos que ele contou que Maria novo acontecimento a Pedro e João, fato que
Madalena viu a pedra tirada do sepulcro. o próprio João registra, embora não mencio­
Aparentemente, as mulheres partiram quan­ ne a presença da outra mulher (Jo 20.2). E n ­
do ainda estava escuro, mas chegaram ao jar­ quanto esperavam o retorno de Maria Mada­
dim quando o dia estava clareando. lena, o dia ficou mais claro e, encorajadas pela
U m segundo exemplo dessa variação de alvorada, as mulheres seguiram em frente.
detalhes é a listagem das mulheres que fize­ Viram, então, o anjo que lhes revelou a res­
ram a primeira visita ao jardim. Mateus disse surreição de Jesus, enviando-as, depois, à ci­
que eram duas Marias, Maria Madalena e a dade, a fim de informar os outros discípulos
outra Maria (Mt 28.1). Marcos, por sua vez, acerca do que havia acontecido (Mt 28.5-7;
escreveu: Maria Madalena, Salomé e Maria, Mc 16.5-7; L c 24.4-7).
mãe de Tiago (Mc 16.1). Lucas referiu-se a Nesse meio tempo, Maria Madalena encon­
Maria Madalena, e Joana, e Maria, mãe de trou Pedro e João, que, imediatamente, deixa-
Tiago, e as outras que com elas estavam (Lc ram-na para trás, correndo para o túmulo. João
24.10), enquanto João mencionou apenas registrou ter visto os panos que envolveram o
Maria Madalena (Jo 20.1). corpo de Jesus jogados no chão, recordando
ter sido este o momento em que, pessoalmen­ disso, Mateus escreveu que, quando Jesus
te, creu na ressurreição do Senhor (Jo 20.3-9). apareceu às demais mulheres, provavelmente
Por fim, Maria Madalena retornou ao túmu­ poucos minutos depois de Sua aparição a Ma­
lo, tornando-se a primeira a ver Jesus ressur- ria, elas abraçaram os seus pés e o adoraram
reto (Jo 20.11-18; compare com Mc 16.9). (Mt 28.9).
N o mesmo dia, Jesus apareceu também Em toda a história da Igreja cristã, nin­
às outras mulheres, quando elas estavam re­ guém explicou, de maneira totalmente con­
tornando do túmulo, bem com o a Pedro, aos vincente, essa anormalidade. Contudo, apesar
discípulos a caminho de Emaús e aos outros disso, esses fatos não foram excluídos dos
que estavam reunidos naquela noite, em Je ­ Evangelhos simplesmente porque, indepen­
rusalém. dente de qualquer coisa, os autores estavam
Dois outros fatores também sugerem a compromissados com a verdade.
precisão histórica dos Evangelhos. O primei­ Por fim, a simplicidade dos relatos, evi­
ro é que os textos deixam alguns problemas denciada na exatidão dos mesmos, é mais
para o leitor que teriam sido eliminados se uma prova de sua veracidade. Se fôssemos
estes fossem fictícios. P or exemplo, os auto­ escrever sobre a ressurreição de Cristo e Su­
res não tentaram esconder o problema reinci­ as aparições após esta, será que resistiría­
dente de os discípulos nem sempre terem re­ mos à vontade de descrever o processo em
conhecido Jesus em Suas aparições depois da detalhes: a descida do anjo, a rem oção da
crucificação. Maria não o reconheceu no jar­ pedra, ou o aparecimento do Senhor dentro
dim (Jo 20.14). Os discípulos a caminho de dos recantos do túm ulo? Poderíamos resis­
Emaús não sabiam quem Ele era (L c 24.16). tir ao desejo de contar com o Ele apareceu a
Mesmo um tempo depois, quando Cristo Pilatos e o confundiu? O u com o apareceu a
apareceu a muitos dos discípulos na Galileia, Caifás e aos outros membros do Sinédrio
nos foi dito que alguns duvidaram (Mt 28.17). judaico?
Se o objetivo dos autores era persuadir o lei­ Os vários evangelhos apócrifos (o evange­
tor, incluir tais detalhes foi uma decisão tola. lho segundo Hebreus, o evangelho de Pedro,
O cético, ao ler tais relatos, dirá: “E óbvio que os Atos de Pilatos e outros) contêm esses ele­
os discípulos não reconheceram Jesus imedia­ mentos. Ainda assim, os autores dos Evange­
tamente porque, na verdade, tratava-se de ou­ lhos não incluíram nenhum deles, quer pelo
tra pessoa. Apenas os ingênuos creram, porque fato de não terem realmente acontecido, quer
quiseram acreditar. Eles se autoiludiram”. por não os terem testemunhado. Os Evange­
Independente do que possa ser dito para lhos não descrevem a ressurreição porque, na
reforçar esse argumento, o ponto é que tais verdade, ninguém realmente a testemunhou.
problemas permaneceram na narrativa por­ Os livros teriam, sem dúvida, vendido mais,
que foi assim que, de fato, as coisas acontece­ mas todos os discípulos chegaram ao túmulo
ram. Consequentemente, eles servem, no mí­ depois que Jesus já tinha ressuscitado.
nimo, como forte evidência da honestidade
dos autores dos relatos. O TÚMULO VAZIO_____________________________

O utro exemplo de declarações que, mes­ Um a segunda grande evidência para a res­
mo comprometedoras, não foram retiradas surreição de Jesus Cristo é o túmulo vazio.
dos textos bíblicos é o pedido de Cristo para Seria possível dizer que Ele não ressuscitou,
que Maria não o detivesse porque Ele ainda mas dificilmente daria para negar que o tú­
não tinha subido para o Pai (Jo 20.17). Apesar mulo estava vazio. Os discípulos começaram
a pregar sobre a ressurreição logo após a Mas quem? Certamente não foram os discí­
crucificação e o enterro de Cristo, num m o­ pulos, já que, se o tivessem feito, não esta-
mento em que aqueles a quem eles pregavam riam, mais tarde, dispostos a morrer pelo que
podiam, simplesmente, caminhar até o túmu­ saberiam ser uma invenção.
lo e ver se o corpo do Senhor ainda estava lá Também não faria sentido que as autorida­
ou não. des romanas e judaicas tivessem levado o cor­
O túmulo vazio tem sido um argumento po. Poderíamos imaginar que elas pudessem
tão formidável para provar a ressurreição de tê-lo removido, inicialmente, para guardá-lo de
Jesus que suscitou, nos incrédulos, a necessi­ maneira mais apropriada, pelas mesmas razões
dade de inventar uma série de teorias para que selaram o túmulo e afixaram um aviso:
desacreditá-lo. Um a delas é afirmar que as
mulheres, e depois os discípulos, em vez de Lem bram o-nos de que aquele enganador,
seguirem para o túmulo de Cristo, foram para vivendo ainda, disse: Depois de três dias,
outro lugar. E concebível que, na escuridão, ressuscitarei. Manda, pois, que o sepulcro
as mulheres pudessem ter cometido esse erro. seja guardado com segurança até ao tercei­
Mas, como já vimos, não estava totalmente ro dia; não se dê o caso que os seus discípu­
escuro e, além disso, elas tinham ido lá mais los vão de noite, e o furtem , e digam ao
cedo, estando, dessa forma, familiarizadas povo: Ressuscitou dos mortos; e assim o
com o ambiente. Sem mencionar que não é último erro será pior do que o primeiro.
possível supor que João, Pedro e, então, to ­ Mateus 27.63,64
dos os outros discípulos pudessem cometer o
mesmo erro. Se tivesse acontecido assim, as autoridades
O utra teoria é a chamada teoria do desfa- certamente teriam apresentado o corpo de
lecimento. De acordo com esse ponto de vis­ Jesus mais tarde, quando os discípulos come­
ta, Jesus não morreu na cruz, mas apenas çaram sua pregação, visto que, por odiarem o
desfaleceu, tendo sido dado com o morto e, evangelho, fizeram tudo o que podiam para
então, enterrado vivo. N o frio da tumba, Ele conter sua disseminação. Prenderam os após­
acordou, moveu a pedra e saiu para aparecer tolos, fizeram ameaças e até mataram alguns
como se tivesse ressuscitado. deles.
Entretanto, essa explicação apresenta inú­ Nada disso teria sido necessário se os que
meros problemas. Para começar, é difícil acre­ estavam no poder, na época, pudessem ter
ditar que um guarda romano, incumbido de apresentado o corpo de Cristo depois dos três
uma execução, pudesse ser enganado dessa dias de prazo que Ele dera para ressuscitar. A
maneira; ou que a lança que perfurou o lado razão óbvia pela qual não o fizeram foi que
de Cristo não o tivesse matado, mesmo estan­ não podiam fazê-lo. O túmulo estava vazio.
do Ele desfalecido; ou, ainda, que Jesus, fraco, O corpo não estava mais lá.
quase morrendo, pudesse ter força suficiente
para remover a pedra e dominar os guardas Um t ú m u l o q u a s e v a z io ___________________

romanos. Além disso, seria preciso supor De acordo com João, o túmulo não estava
que C risto, nessas condições, pudesse con­ completamente vazio. O corpo de Jesus não
vencer Seus discípulos de que tivesse venci­ estava lá, mas as faixas que o envolviam fica­
do a morte. ram para trás. A narrativa sugere que existia
P or fim, existem as teorias de que alguém algo tão extraordinário a respeito delas que
roubou ou simplesmente removeu o corpo. João, ao vê-las, creu na ressurreição de Jesus.

SOS
Toda sociedade tem seus rituais distintos ele logo começou a falar. Então, as faixas não
de sepultamento, com o acontecia também cobriam o seu rosto. Invólucros separados
nas culturas antigas. N o Egito, os corpos para a cabeça e o corpo também foram usados
eram embalsamados. N a Itália e na Grécia, no sepultamento de Lázaro (Jo 11.44).
geralmente, eram cremados. N a Palestina, José de Arimateia e Nicodemos devem ter
eles eram eníaixados com faixas de linho, fe­ sepultado o corpo de Jesus de forma parecida.
chadas com especiarias desidratadas, e eram Este havia sido removido da cruz antes do
colocados em decúbito dorsal, sem caixão, início do Sábado judaico, sendo lavado e, en­
em tumbas cortadas direto na rocha das mon­ tão, envolvido com faixas de linho, além de 34
tanhas da Judeia e da Galileia. Muitas dessas quilos de especiarias desidratadas. Um a delas,
tumbas ainda existem, e podem ser vistas por aloés, era uma madeira em pó, fina como areia,
qualquer pessoa que visite a região. com uma fragrância aromática; a outra, mirra,
O utro aspecto antigo do enterro judaico é era uma goma perfumada que seria cuidadosa­
de interesse especial para a compreensão do mente misturada ao pó.
relato de João sobre a ressurreição de Jesus. O corpo de Jesus foi, dessa forma, envol­
Em um livro chamado The Risen Master vido pelas faixas, mas Sua cabeça, Seu pescoço
[O Mestre ressurreto], H enry Latham desta­ e a parte superior dos ombros foram deixados
cou um aspecto singular dos sepultamentos descobertos. U m lenço de linho foi, então,
no Oriente, que notou quando esteve em colocado sobre a parte superior de Sua cabe­
Constantinopla, durante o século passado. ça, como um turbante. O corpo, por sua vez,
Ele disse que os funerais lá eram diferentes foi colocado dentro do túmulo, no qual per­
em vários aspectos, dependendo do status so­ maneceu até certa hora, entre sábado à noite e
cial e econômico da vítima, mas eram idênti­ domingo pela manhã.
cos em relação a uma questão. O que teríamos visto se estivéssemos lá na
Latham percebeu que os corpos eram en­ hora que Jesus ressuscitou? Será que o tería­
volvidos com faixas de linho de maneira que mos visto movimentar-se, abrir os olhos,
apenas o rosto, o pescoço e a parte superior sentar-se e começar a lutar para livrar-se das
dos ombros ficassem de fora. A parte supe­ faixas? Devemos lembrar que seria difícil li­
rior da cabeça era coberta por um lenço torci­ vrar-se de todas. Seria isso que veríamos? De
do como um turbante. jeito nenhum. Se tivesse sido dessa forma, te­
Diante da lentidão com que mudam os ríamos presenciado uma ressuscitação, e não
métodos de sepultamento, principalmente no uma ressurreição. Teria sido a mesma coisa
Oriente, Latham concluiu que é possível que que se recuperar de um desmaio. Jesus teria
Jesus tenha sido sepultado desse jeito. ressuscitado em um corpo natural no lugar de
Lucas disse que, quando Jesus estava um corpo espiritual, mas não foi isso o que
aproximando-se da vila de Naim, ainda no aconteceu.
início de Seu ministério, Ele encontrou uma Se estivéssemos presentes na tumba, no
procissão de funeral saindo da cidade. O filho momento da ressurreição, teríamos notado
único de uma viúva havia morrido. que o corpo de Jesus desapareceu de repente.
A narrativa contou que, quando Jesus res­ John Stott disse que “o corpo ‘evaporou’,
suscitou esse jovem dentre os mortos, duas sendo transformado em algo novo, diferente
coisas aconteceram. Primeiro, o rapaz se sen­ e maravilhoso” (S t o t t , 1958, p. 52).
tou, o que indica que ele estava deitado de Latham mencionou que o corpo de Cristo
costas no esquife sem a “tampa”. E , segundo, tinha sido “transfigurado”, “passando para
uma fase como a que passaram Moisés e Elias, sim dobrado à parte (Jo 20.7 n v i ), e, de ma­
no monte” ( L a t h a m , 1 9 0 1 , p. 3 6 ,5 4 ) . P or is­ neira ainda mais impressionante, tinha manti­
so, teríamos visto, apenas, que Ele já não esta­ do o formato circular.
va mais lá. Poderíamos dizer que estava torcido sobre
O que teria acontecido então? Devido à si mesmo, havendo, entre ele e as faixas que
remoção do corpo e ao peso das especiarias, tinham envolvido o corpo de Cristo, um es­
as faixas de linho teriam se soltado, ficando paço considerável, segundo nos mostrou a
no lugar onde o corpo de Jesus tinha estado, e narrativa:
o lenço, que estava em volta da cabeça do
Mestre, poderia muito bem ter mantido seu Chegou, pois, Simão Pedro, que o seguia, e
formato côncavo, ficando separado das ou­ entrou no sepulcro, e viu no chão os lençóis
tras faixas pelo espaço antes ocupado pelo e que o lenço que tinha estado sobre a sua
pescoço e pelos ombros do Senhor. cabeça não estava com os lençóis, mas en­
Foi essa cena que João e Pedro viram rolado, num lugar à parte.
quando entraram no sepulcro, o que corres­ João 20.6,7
ponde, exatamente, ao relato das testemunhas
oculares. João foi o primeiro a chegar ao sepul­ Por fim, João entrou também no sepulcro
cro aberto, nas primeiras horas da manhã, e, e, quando viu o que Pedro tinha visto, ele
embora não tenha entrado logo de imediato, creu. Em quê João creu? Ele poderia ter ex­
viu as faixas e os lençóis caídos lá. Alguma coi­ plicado assim: “N ão está vendo, Pedro, que
sa acerca disso atraiu a atenção do apóstolo. ninguém removeu o corpo ou desarrumou as
E m primeiro lugar, o fato de os panos es­ faixas? Elas estão dispostas exatamente como
tarem na tumba já era, por si só, significativo. Nicodemos e José de Arimateia as deixaram,
João enfatizou, na frase grega, a localização na véspera do Sábado. Mesmo assim, o corpo
deles, que poderíamos traduzir como: E, desapareceu. N ão foi roubado. N ão foi re­
abaixando-se, viu no chão os lençóis; todavia, movido. E evidente que passou através das
não entrou (Jo 20.5). Além disso, o tecido es­ faixas, deixando-as do jeito com o as vemos
tava intacto. agora. Jesus deve ter ressuscitado”.
A palavra que João usou (keim ena) apare­ John Stott afirmou que “a disposição da­
cia, também, nos papiros gregos para referir- quelas faixas provou a realidade e indicou a
-se a coisas que foram cuidadosamente colo­ natureza da ressurreição” (S t o t t , 1958, p. 53).
cadas em ordem. Por exemplo, em um papiro
que fazia menção a documentos legais estava As APARIÇÕES DEPO IS DA RESSURREIÇÃO
escrito: “ainda não obtive os documentos, U m a quarta evidência para a ressurreição
mas eles estão ordenados, sendo conferidos”. é o fato óbvio de que Jesus foi visto pelos dis­
O utro se refere a roupas que estão lá [organi­ cípulos. De acordo com os vários relatos, Ele
zadas], até segunda ordem. João, sem dúvida, apareceu primeiro a Maria Madalena, e, então, a
notou que não houve nenhuma desordem no outra mulher que estava retornando da tumba.
túmulo. Mais tarde, apareceu a Pedro, aos discípulos a
Quando Pedro chegou e entrou no sepul­ caminho de Emaús e aos dez que estavam reu­
cro, certamente viu o que João tinha visto, nidos no cenáculo.
mas o que lhe chamou a atenção foi outra coi­ Um a semana depois, voltou a aparecer,
sa. O lenço que tinha envolvido a cabeça de dessa vez aos 11 discípulos, incluindo To-
Jesus não estava com os outros panos, mas mé, a Tiago e mais de 500 irmãos de uma vez
(1 C o 15.6), bem com o a um grupo de dis­ U m deles, chamado Cleopas, foi identificado
cípulos que estava pescando no lago da Ga- (L c 24.18).
lileia, àqueles que testemunharam a ascen­ Se esse é o mesmo Clopas mencionado
são realizada no monte das Oliveiras, p ró ­ em João 19.25, podemos afirmar saber que o
ximo de Jerusalém, e, p or último, a Paulo, nome da esposa dele era Maria, e que ela
que alegou ter visto C risto na estrada para estava em Jerusalém, havendo sido teste­
Dam asco. munha da crucificação com as outras mu­
Durante os dias que se seguiram à ressur­ lheres, sendo provável que tenha voltado
reição, todas essas pessoas passaram do deses­ para Emaús com ele na primeira manhã de
pero debilitante e vazio a uma convicção fir­ Páscoa.
me e alegre. Nada explica isso, a não ser o fato A importância dessa identificação reside
de que elas tenham, verdadeiramente, visto no fato de que Maria, e, talvez, o próprio Cle­
Jesus. opas, tendo testemunhado a crucificação, não
Ao longo do último século, um conhecido poderia ter nenhuma dúvida acerca da morte
crítico do evangelho, Ernest Renan, escre­ de Jesus. Ela havia visto os pregos atravessan­
veu que a crença na ressurreição de Cristo do as mãos de Cristo, bem como a cruz ergui­
surgiu a partir da paixão de uma mulher alu­ da. Ela viu o sangue. Por fim, ela viu a lança
cinada, querendo dizer que Maria Madalena, perfurando o lado de Jesus. Depois disso,
por estar apaixonada por Jesus, iludiu-se Maria certamente voltou para onde estava
pensando que o tivesse visto vivo quando, hospedada.
na verdade, tinha visto apenas o jardineiro. Com a chegada da Páscoa, ela e o marido,
Isso é ridículo. como bons judeus, seguiram suas tradições,
A última pessoa no mundo que Maria (ou esperando, com tristeza, a hora de voltar para
qualquer um dos outros) esperava ver era Je­ casa. Eles esperaram do dia da crucificação
sus. A única razão pela qual ela havia ido ao até o dia da ressurreição porque, provavel­
túmulo fora para ungir o corpo dele. Além mente, as mesmas restrições do Sábado que
disso, mesmo se ela tivesse se iludido a respei­ impediram as mulheres de ir ao sepulcro para
to da ressurreição, não existe evidência algu­ ungir o corpo de Cristo também os impedi­
ma de que os discípulos pudessem ter seguido ram de regressar para Emaús.
a mesma rota, ou que pudessem prever qual­ N a manhã de domingo, Maria, possivel­
quer coisa do tipo. mente, encontrava-se entre as mulheres que
Muitos se desesperaram. Alguns, como os haviam ido à tumba para ungir o corpo do
discípulos a caminho de Emaús, estavam dis­ Senhor. Se tiver sido assim, podemos dizer
persos. Tomé, por exemplo, estava firme em que ela viu os anjos, voltou para contar a
sua descrença. Mesmo assim, poucos dias Cleopas e, então, para surpresa de muitos,
após a alegada ressurreição do Senhor, todos continuou, junto ao marido, a preparar sua
estavam convencidos do que previamente ti­ volta a Emaús. N em lhes passou pela cabeça
nham julgado impossível, saindo para contar buscar evidências da ressurreição corporal
o que acontecera, e persistindo em suas con­ de Cristo!
vicções, mesmo em face de ameaças, perse­ Além disso, durante o tempo em que Cle­
guição e morte. opas e Maria estavam preparando-se para
U m exemplo claro do poder de conven­ partir, Pedro e João foram até o sepulcro e
cimento da aparição de Jesus é o que aconte­ entraram na tumba, sendo este o momento
ceu com os discípulos a caminho de Emaús. em que João creu na ressurreição de Cristo,

âOf
mesmo não tendo entendido tudo o que ela reais aparições do Senhor ressuscitado, o cris­
significava. Os discípulos retornaram, conta­ tianismo passa a ser compreensível, oferecen­
ram o fato a Cleopas, a Maria e aos outros do uma certeza de esperança para todos.
que tinham visto Jesus, e, então, Cleopas e
Maria voltaram a fazer as malas, partindo, em Os DISCÍPULOS TRANSFORMADOS___________

seguida, para Emaús. Um a quinta evidência para a ressurreição


Será que esse humilde casal palestino resulta do que acabou de ser dito: o caráter
creu na ressurreição de C risto? Certamente transformado dos discípulos.
que não. Será que passaram a crer, com o aca­ Tomemos Pedro com o exemplo. Antes da
baram fazendo, por causa de pensamentos ressurreição, ele estava em Jerusalém, em si­
fantasiosos ou p or causa de alucinações? lêncio, seguindo de perto o grupo de prisio­
N ão. Eles estavam tão tristes com a m orte neiros. Naquela noite, negou Jesus três vezes.
de Jesus, tão miseráveis, tão preocupados Mais tarde, estava em Jerusalém, temeroso,
com a realidade da crucificação, que não trancado com os demais discípulos. Mas tudo
separaram nem 20 ou 30 minutos para in­ é alterado após a ressurreição. Em seguida,
vestigar, pessoalmentt, as notícias sobre a Pedro começou a pregar corajosamente, co­
ressurreição. mo podemos perceber em seu primeiro ser­
H á quem defenda a teoria de que eles não mão, no dia de Pentecostes:
devem ter ouvido as notícias, e de que essa
história estava sendo, em parte, inventada. A Varões israelitas, escutai estas palavras: A
dúvida foi respondida pelas palavras de Cleo­ Jesus Nazareno, varão aprovado p o r Deus
pas. Quando Jesus apareceu a eles na estrada, entre vós com maravilhas, prodígios e si­
perguntando-lhes o motivo de sua tristeza, nais, que D eus p or ele fe z no meio de vós,
Cleopas, após falar sobre a crucificação, como vós mesmos bem sabeis; a este que
acrescentou: vos foi entregue pelo determinado conse­
lho e presciência de Deus, tomando-o vós,
Algumas das m ulheres entre nós nos de­ o crucificastes e matastes pelas mãos de in­
ram um susto hoje. Foram de m anhã bem justos; ao qual D eus ressuscitou, soltas as
cedo ao sepulcro e não acharam o corpo ânsias da morte, pois não era possível que
dele. Voltaram e nos contaram que tinham fosse retido p o r ela.
tido uma visão de anjos, que disseram que Atos 2.22-24
ele está vivo. Alguns dos nossos compa­
nheiros foram ao sepulcro e encontraram Poucos capítulos adiante, ainda em Atos,
tudo exatamente como as m ulheres tinham nós encontramos Pedro diante do Sinédrio
dito, mas não o viram. judaico dizendo: Julgai vós se é justo, diante
Lucas 24.22-24 n v i de Deus, ouvir-vos antes a vós do que a Deus;
porque não podemos deixar de falar do que
O que explica a crença na ressurreição de temos visto e ouvido (At 4.19,20).
Cristo por parte dos discípulos? Nada, a não Torrey afirmou:
ser a ressurreição propriamente dita. Se não
conseguimos explicar a crença dos discípulos, Algo extraordinário deve ter acontecido para
passamos a ser confrontados com o maior explicar uma transformação moral tão radical
enigma da história. Contudo, se a explicamos e surpreendente como essa [de Pedro]. Nada
com respaldo na verdadeira ressurreição e nas menos do que o fato de ele com provar a
ressurreição, de ter visto o Senhor ressuscitado, real em relação ao evangelho de Cristo. P ro­
explicaria isso. ( T o r r e y , 1904-1906, p. 92) vavelmente, acreditava em algumas coisas de
maneira intelectual, mas não permitia que elas
O utro exemplo foi Tiago, irmão de Jesus. entrassem em seu coração.
Em um determinado momento, nenhum dos Em suas reflexões acerca da ressurreição,
irmãos de Jesus acreditava nele (Jo 7.5). Jesus esse pastor disse que, à medida que lutava pa­
uma vez declarou: N ão há profeta sem h on ­ ra entender os relatos e as perguntas que ator­
ra, a não ser na sua pátria e na sua casa (Mt mentavam sua mente, descobriu, em primeiro
13.57). Mas, tempos depois, Tiago também lugar, uma estranha felicidade e uma especial
passou a crer (com pare A t 1.14). O que tranqüilidade, o que lhe indicou que, embora
causou essa mudança? Sem dúvida, ele só ainda sem respostas, pelo menos ele estava no
pôde libertar-se da incredulidade ao ver Je ­ caminho certo.
sus ressurreto, com o está registrado em 1 Conforme estudava, começou a compre­
Coríntios 15.7. ender a importância da questão. Ele entendeu
que, se Jesus ressuscitou dentre os mortos,
O NOVO DIA DA ADORAÇÃO CRISTÃ_________ tudo o mais registrado sobre Ele no N ovo
A última evidência para a ressurreição de Testamento é realmente verdadeiro, não ha­
Jesus C risto, muitas vezes esquecida, é a vendo, portanto, nenhuma razão boa o sufi­
mudança do dia regular de culto cristão do ciente para rejeitá-lo. Por outro lado, con­
Sabbath judaico (Sábado) para o domingo, cluiu que, se Jesus não tivesse ressuscitado, o
primeiro dia da semana. Poderia qualquer melhor a fazer seria largar o ministério.
coisa ser mais rígida na tradição religiosa do Diante de sua conclusão, ele decidiu bus­
que separar o sétimo dia para adoração, como car respostas: leu livros, visitou o seminário
praticado no judaísmo? Dificilmente. onde havia estudado, conversou com seus
A santificação do sétimo dia, na Lei de professores e, no final dessa busca, disse que
Moisés, tinha sido praticada durante séculos. ficou convencido de que Jesus, de fato, havia
Mesmo assim, desde o início, vemos os cris­ ressuscitado como a Bíblia declara, afirman­
tãos, embora judeus, rejeitando o Sábado co­ do que todas as outras doutrinas de fé são
mo seu dia de adoração para, em vez disso, sustentadas por esse fato.
adorar no domingo. Curiosamente, ele chegou a essa conclu­
O que pode explicar isso? N ão existe ne­ são várias semanas antes da Páscoa daquele
nhuma profecia que justifique esse feito, bem ano e, quando esta chegou, levantou-se na
como nenhuma declaração de um conselho igreja para proclamar sua fé pessoal nessas
da Igreja primitiva. A única causa apropriada coisas. Mais tarde, membros da sua congrega­
para tal é a ressurreição de Jesus Cristo, acon­ ção disseram que eles nunca tinham ouvido
tecimento importante ao ponto de produzir, uma pregação assim antes, e vários acredita­
imediatamente, as mudanças mais profundas, ram em Cristo como resultado do que havia
não apenas no caráter moral dos primeiros sido pregado.
cristãos, mas nos seus hábitos de vida e nas Assim aconteceu com muitas pessoas: ju­
suas formas de adoração também. ristas com o Frank Morison, Gilbert West,
Certa vez, conversando com um pastor Edward Clark e J. N . D. Anderson; eruditos
acerca de sua vida espiritual, começamos a fa­ com o James Orr, Michael Ramsey, Arnold H.
lar de ressurreição. Ele confessou que, ao ter­ M. Lunn, Wolfhart Pannenburg e Michael
minar o seminário, não tinha uma convicção Green.
G r e e n d is s e q u e “ a s e v id ê n c ia s e m f a v o r históricos pudessem tê-la criado” ( R a m s e y ,
d e s s e f a t o e x t r a o r d in á r i o s ã o i m p r e s s io n a n - 1 9 4 5 , p. 1 9 ).
t e s ” (G R E E N , 1 9 6 8 , p . 1 0 9 ) . Jesus ressuscitou dentre os m ortos? Se a
Ramsey escreveu: “Essa doutrina era tão resposta for sim, então, Ele é o Filho de Deus
nova e estranha às expectativas dos homens e nosso Salvador. Cabe a nós crermos nele e
que parece difícil duvidar que somente eventos segui-lo.
E l e a sc en d eu ao c éu

/
sempre difícil medir a própria ma- N o Evangelho de João lemos que Jesus
S turidade espiritual, mas podemos perguntou aos discípulos: Q ue seria, pois, se
x '"'l avaliá-la, de maneira geral, por meio vísseis subir o Filho do H om em para onde pri­
da imagem dominante que temos de meiro estava? (Jo 6.62).
Cristo. Por exemplo, algumas pessoas pensam Para Maria Madalena, Ele disse: Não me
em Jesus apenas no que diz respeito à Sua en­ detenhas, porque ainda não subi para meu
carnação. Elas têm em mente a imagem de um Pai, mas vai para meus irmãos e dize-lhes que
Cristo ainda bebê, deitado numa manjedoura. eu subo para m eu Pai e vosso Pai, m eu D eus e
Embora o Senhor, ao encarnar, tenha passado vosso D eus (Jo 20.17).
pelo estágio de bebê, Ele se tornou homem, E m A tos, o m omento em que C risto su­
devendo, na fase adulta, ser lembrado como tal. biu ao céu foi recontado com detalhes cir­
Outros têm sempre em mente a imagem cunstanciais: E , quando dizia isto, vendo-o
de Jesus crucificado. Isto se deve à importân­ eles, fo i elevado às alturas, e um a nuvem o
cia de Seu sacrifício no Calvário, visto que Ele recebeu, ocultando-o a seus olhos (A t 1.9).
nasceu para morrer em nosso lugar: O Filho O mesmo relato é encontrado no exten­
do H om em não veio para ser servido, mas pa­ so final do Evangelho de M arcos (16.19), e
ra servir e para dar a sua vida em resgate de em Lucas 24.51.
muitos (M t 20.28). Mais adiante, nas epístolas, a ascensão foi
Entretanto, esse retrato mental não é bom o chamada de plenitude da obra de Cristo:
suficiente. Jesus não está mais morto. E preciso
Q uem os condenará? Pois é Cristo quem
que pensemos nele como o Cristo ressurreto,
morreu ou, antes, quem ressuscitou dentre
pois é este, e não o morto na cruz, que fala pa­
os mortos, o qual está à direita de Deus, e
cificamente com Seus discípulos, comissionan-
também intercede p or nós.
do-os com a tarefa de evangelizar o mundo.
Romanos 8.34
Tendo falado sobre a ressurreição, é narra­
da, na Bíblia, a ascensão de Cristo ao céu, Portanto, se já ressuscitastes com Cristo,
onde, agora, Ele está assentado à direita do buscai as coisas que são de cima, onde
Pai, presidindo sobre Sua Igreja e aguardando Cristo está assentado à destra de Deus.
o dia no qual voltará, em poder e grande gló­ Colossenses 3.1
ria, para julgar os vivos e os mortos.
N o N ovo Testamento há muitas referên­ Em Hebreus, encontramos diversos m o­
cias à ascensão de Cristo. mentos em que esse tema, bem como a atual
posição de Cristo no céu, foram mencionados Contudo, ao reconhecermos esse simbo­
(Hb 1.3; 6.20; 8.1; 9.12,24; 10.12; 12.2; 13.20). lismo, não pretendemos cometer o erro de
Em 1 Timóteo, por sua vez, a ascensão foi supor que o céu não seja, portanto, um lugar
colocada dentro da perspectiva completa da de verdade, com uma localização talvez tão
obra de Cristo: real como a de N ova Iorque ou a de Londres,
por exemplo. Os explícitos ensinamentos de
E, sem dúvida alguma, grande é o mistério Cristo, bem como Sua ascensão, destinam-se
da piedade: A quele que se manifestou em a ensinar essa realidade.
carne fo i justificado em espírito, visto dos Algumas pessoas afirmam que, como
anjos, pregado aos gentios, crido no mundo Deus é espírito, ou seja, sem forma corporal,
e recebido acima, na glória, o céu deve ser entendido apenas como algo
1 Timóteo 3.16 espiritual. Todavia, essa suposta imaterialida-
de, segundo a qual o céu estaria em todos os
O fato de esse tema ser mencionado com lugares e em lugar nenhum, não condiz com o
tanta frequência no N ovo Testamento é uma que está escrito na Bíblia. Reconhecemos as
indicação clara da relevância da ascensão de limitações de falar sobre algo completamente
Cristo, mas não explica o que a torna impor­ além de nossa experiência atual, mas, ao mes­
tante ou como ela está relacionada a nós. mo tempo, notamos que, embora Deus Pai
N o entanto, também encontramos, nesses não tenha uma forma concreta e visível, a se­
versículos, o significado da ascensão em três gunda pessoa da Trindade teve.
principais áreas, as quais estão dispostas, de [U m dia, ao vir a terra] Jesus se tornou
maneira sucinta, no conhecido Credo dos homem e [mesmo após Sua glorificação]
apóstolos: “Ele subiu ao céu e assentou-se à continuará com Sua humanidade por toda a
direita do Pai todo-poderoso, de onde há de eternidade.
vir para julgar os vivos e os m ortos”. Embora bem diferente do que estamos
acostumados, nós também teremos um corpo
A sc en sã o a o c é u ____________________________
glorificado após a nossa ressurreição. Esse
A primeira ideia sugerida pela ascensão de corpo será com o o corpo ressurreto de Cris­
Jesus é a de que o céu é um lugar real, embora to, capaz de atravessar portas fechadas, por
isso não signifique que seja possível descrevê- exemplo. Ainda assim, será um corpo de ver­
-lo adequadamente, mesmo com a ajuda de dade e, independente das características mis­
vários símbolos bíblicos. teriosas que assuma, deverá ocupar um espa­
Em Apocalipse, por exemplo, está escrito ço. O céu é o lugar para onde irão os salvos.
que os salvos viverão numa cidade de alicer­ A segunda ideia sugerida é a que conecta a
ces sólidos, com ruas de ouro, na qual a luz ascensão de Cristo à Sua obra atual, como Ele
nunca deixará de brilhar. Contudo, o céu não próprio ensinou. U m aspecto desta é o envio
é necessariamente uma cidade, sendo essa lin­ do Espírito Santo, que deveríamos compreen­
guagem, muitas vezes, simbólica. der não apenas como algo ocorrido no passa­
A palavra cidade nos remete ao conceito do, no Dia de Pentecostes, mas também como
de um lugar ao qual pertencemos, um lar. A uma ação contínua que visa cumprir o propó­
menção aos alicerces transmite a ideia de per­ sito do Senhor neste mundo. Disse Jesus: Vos
manência. O ouro nos remete àquilo que é convém que eu vá, porque, se eu não for, o
precioso, e luz lembra a presença eterna e pra­ Consolador não virá a vós; mas, se eu for, en-
zerosa de Deus. viar-vo-lo-ei (Jo 16.7).
O utro aspecto relevante é a intercessão de segundo lugar, Seu trabalho como mediador.
Cristo em favor de Seu povo, responsável por ( H o d g e , 1960, p. 635)

ressaltar Seu caráter intercessor como Sumo


Sacerdote celestial. N o segundo capítulo de sua carta aos Fili­
Além disso, pensar na atual obra de Cristo penses, apesar de Paulo não ter usado espe­
nos faz lembrar de Sua promessa aos discípu­ cificamente a frase assentado à direita do
los, segundo a qual Ele estava indo para junto Todo-poderoso, também podemos inferir a
do Pai a fim de preparar um lugar para eles honra dada por Deus a Jesus, bem com o o
(Jo 14.2,3). Apesar de não sabermos o que Je­ motivo pelo qual Ele foi honrado, visto que,
sus está fazendo a esse respeito, visto que não de acordo com o texto, C risto, apesar de ser
podemos visualizar o que acontece no céu, igual a Deus, esvaziou-se a si mesmo, tor-
sabemos que, de alguma forma, Ele está pre­ nando-se obediente até a morte para nossa
parando um lugar na eternidade para nós. Is­ salvação:
so nos assegura o interesse atual do Senhor
para conosco, bem com o Sua atividade em Pelo que também D eus o exaltou sobera­
nosso favor. namente e lhe deu um nom e que é sobre
todo o nome, para que ao nome de Jesus se
A s s e n t a d o à d i r e i t a ________________________ dobre todo joelho dos que estão nos céus, e
Além da afirmação de que Jesus ascendeu na terra, e debaixo da terra, e toda língua
ao céu, também é dito, no Credo apostólico, confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para
que Ele está assentado à direita de Deus Pai glória de D eus Pai.
todo-poderoso. Originado a partir da tradi­ Filipenses 2.9-11
ção monárquica, segundo a qual somente pes­
soas favorecidas pelo rei poderiam sentar-se A posição de Cristo à direita do Pai refe­
ao lado deste, o assentar-se de Cristo ao lado re-se também à atual autoridade do Senhor
de Deus reflete não apenas a honra dada a Ele, sobre o mundo e a Igreja, tema sobre o qual
mas também Seu papel no governo do Pai. Ele falou após Sua ressurreição e antes de Sua
A honra atribuída a Jesus é claramente ascensão:
mencionada em muitos lugares na Bíblia, co ­
mo podemos ler em Hebreus 1.3: É -m e dado todo o p od er no céu e na terra.
Portanto, ide, ensinai todas as nações, bati-
O qual, sendo o resplendor da sua glória, e zando-as em nome do Pai, e do Filho, e do
a expressa imagem da sua pessoa, e susten­ Espírito Santo; ensinando-as a guardar
tando todas as coisas pela palavra do seu todas as coisas que eu vos tenho mandado;
poder, havendo feito p o r si mesmo a purifi­ e eis que eu estou convosco todos os dias,
cação dos nossos pecados, assentou-se à até à consumação dos séculos. A m ém !
destra da Majestade, nas alturas. Mateus 28.18-20

Segundo Charles Hodge: E impossível medir a extensão do poder


de Cristo, pois Deus não afirma que lhe deu
O motivo da exaltação de Cristo é duplo: em alguma, mas toda autoridade. Além disso,
primeiro lugar, a posse de atributos pelos quais para evitar que, erroneamente, nós a minimi­
Ele foi honrado por Deus, qualificando-se para zemos, é ressaltado que Cristo tem todo o
exercer o domínio absoluto e universal; e, em pod er no céu e na terra.
A afirmação anterior poderia significar empenhados no serviço de Cristo, não deve­
apenas que Seus feitos na terra seriam reco­ remos ter medo de Satanás ou de qualquer
nhecidos no céu também. Se assim fosse, esta outra pessoa.
seria uma boa declaração da divindade de Em segundo lugar, Jesus afirma que tem
Cristo, já que essa autoridade é a mesma de autoridade sobre tudo na terra. Essa declara­
Deus. Entretanto, é provável que a declaração ção nos conduz a várias conclusões. U m a de­
de Cristo seja ainda mais profunda. las é que Cristo tem autoridade sobre nós,
Em primeiro lugar, devemos lembrar que, Seus seguidores. Se verdadeiramente somos
quando lemos na Bíblia termos com o poderes povo de Deus, devemos confessar a Ele nossa
ou autoridades celestiais, o texto geralmente condição pecadora, reconhecendo que Seu
está relacionado a poderes espirituais ou po­ Filho é o divino Salvador. Precisamos, tam ­
deres demoníacos. O mesmo acontece nas bém, aceitar o sacrifício de Cristo por nós,
passagens que abordam o tema da vitória de comprometendo-nos a segui-lo com o Senhor.
Cristo por meio de Sua morte e ressurreição: Afirmar que Jesus é nosso Senhor e Salva­
dor sem reconhecer Sua autoridade sobre ca­
Porque não temos que lutar contra carne e da área da nossa vida é hipocrisia. Certamen­
sangue, mas, sim, contra os principados, te, existem outras autoridades legítimas sobre
contra as potestades, contra os príncipes nós que, embora menos importantes que
das trevas deste século, contra as hostes es­ Cristo, também devem ser respeitadas, entre
pirituais da maldade, nos lugares celestiais. elas a autoridade dos pais sobre os filhos, dos
Efésios 6.12 ministros na igreja e dos governantes. Mas
Jesus é o Rei dos reis e Senhor dos senhores, e
De modo semelhante, os versículos situa­ Sua autoridade é soberana.
dos no início da mesma carta falam da gran­ A autoridade de Cristo também é sobre os
deza do poder de Deus: que ainda não são cristãos. Ela se estende a
todas as nações às quais Ele nos envia a anun­
Q ue manifestou em Cristo, ressuscitando- ciar o evangelho (M t 28.19).
-o dos mortos e pondo-o à sua direita nos P or outro lado, isso significa que a obedi­
céus, acima de todo principado, e poder, e ência ao nosso Senhor deve tornar-se uma
potestade, e domínio, e de todo nome que prática mundial. Ninguém está fora da esfera
se nomeia, não só neste século, mas tam­ de Sua autoridade, nem isento das Suas ordens.
bém no vindouro. Contudo, a autoridade de Cristo não deixa de
Efésios 1.20,21 ser uma demonstração de Sua capacidade de
fazer com que nossos esforços frutifiquem, já
Quando colocamos a declaração de C ris­ que, quando os cristãos utilizam Sua autorida­
to, registrada no capítulo 28 do Evangelho de de, passam a crer no Senhor e a segui-lo.
Mateus, no contexto das afirmações feitas em John Stott comentou sobre isso em um de
Efésios, percebemos que a autoridade dada a seus livros:
Jesus não se limita a uma simples confirmação
de Seu poder terreno no céu. Trata-se de uma A base fundamental de todo projeto missioná­
autoridade superior a todas as demais, sejam rio cristão é a autoridade universal de Jesus,
elas de natureza espiritual ou de qualquer outra, válida tanto no céu como na terra. Se ela esti­
o que fica provado por meio de Sua ressurrei­ vesse limitada a terra, se Cristo fosse apenas
ção. P or conseguinte, enquanto estivermos um dos muitos estudiosos religiosos, um dos

S /S
muitos profetas judeus ou uma das muitas en­ continuasse existindo indefinida e incontro-
carnações divinas, não teríamos qualquer res­ lavelmente, como parece que tem permitido
paldo para apresentá-lo às nações como Senhor até hoje.
e Salvador do mundo. Em alguns momentos, o pecado, de certa
Por outro lado, se a autoridade de Jesus esti­ forma, é punido neste mundo, pois ele tem
vesse limitada ao céu, se Ele tivesse sido res­ seus mecanismos de autodestruição embuti­
ponsável pela queda decisiva dos principados dos. Mas, para sermos honestos, não são raras
e das potestades, ainda poderíamos anunciá- as ocasiões em que boas pessoas sofrem e
-lo às nações, mas nunca seriamos capazes de malfeitores escapam ilesos das conseqüências
abrir-lhes os olhos e convertê-las das trevas de seus erros.
para a luz, do poder de Satanás para Deus. Em bora a maldade seja ocasionalmente
Somente pelo fato de ser atribuída a Cristo punida, é inegável o fato de que, neste m undo,
toda a autoridade sobre a terra é que deve­ as pessoas nem sempre são devidamente re­
mos levar o evangelho a todas as nações. E, compensadas por suas ações, sejam elas boas
só porque toda a autoridade no céu é também ou más. Assim, se não houver um julgamento
Sua, temos qualquer esperança de sucesso. final no qual as injustiças desta vida sejam
(S t o t t , 1967, p. 46) corrigidas, não podemos considerar que Deus
seja, de fato, justo. N ão existe justiça em nada
Pa r a j u l g a r o s v iv o s e o s m o r t o s _______
fora dele.
Por fim, no que tange à visão que temos a C ontudo, de acordo com os ensinamen­
respeito de Cristo, devemos ter em mente a tos bíblicos, existe justiça e, por isso, haverá
última imagem mencionada no Credo apos­ um julgamento. Sem dúvida, pensar o con­
tólico: a que mostra Jesus vindo do céu para ceito de justiça divino é assustador. N o que
julgar os vivos e os mortos. se refere à justiça, o sistema de Deus é muito
O tema do julgamento divino não é muito mais complexo que o oferecimento de re­
agradável aos cristãos, fato que se torna evi­ compensa por alguma boa ação ou de puni­
dente diante da reação de grande parte deles ção por alguma má ação em particular. Se­
quando confrontados com a realidade da ira gundo a Bíblia:
de Deus. Podemos falar sobre o amor, a gra­
ça, a misericórdia, o cuidado, a compaixão e Não há um justo, nem um sequer. Não há
a força do Senhor. Podemos dizer que Ele é ninguém que entenda; não há ninguém
a resposta para todo e qualquer problema que busque a Deus. Todos se extraviaram
que tivermos, e que é suficiente para socor- e juntam ente se fizeram inúteis. Não há
rer-nos em todas as emergências. Entretanto, quem faça o bem, não há nem um só.
falar sobre Deus como justo Juiz e de Jesus Romanos 3.10-12
Cristo com o Advogado é tão ofensivo para a
nossa cultura que muitos deixam essa doutri­ O julgamento de Deus recai, de maneira
na de lado. muito justa, diretamente sobre nós. O que
Com o poderíamos ignorar o fato de que, devemos fazer, então? C om o nos posiciona­
um dia, o poderoso e santo Deus do universo remos diante de Cristo quando esse momen­
julgará nossos pecados? Se isso não aconte­ to chegar?
cesse, o nome do Senhor seria desonrado. N o livro de Atos, há uma linda citação a
N ão poderíamos falar sobre um Deus santo, respeito da postura que os cristãos fiéis po­
justo e soberano se Ele permitisse que o pecado derão adotar diante de Deus quando forem
julgados: os que creram e obedeceram a C ris­ Se o que buscamos é força, ela reside no Seu
to o encontrarão, milagrosamente, não como domínio; se pureza, na Sua concepção. Se gen­
Juiz, mas como Redentor. tileza, ela aparece em Seu nascimento, porque,
E por meio do testemunho de Estêvão que por meio deste, Ele foi feito como nós em to­
podemos conhecer essa visão de Cristo. Ele dos os aspectos (Hb 2.17), a fim de que pudes­
foi um pregador comum em Jerusalém que, se aprender a sentir nossas dores (cf. Hb 5.2).
por seu afinco e dedicação, conquistou o ódio Se o que buscamos é redenção, ela reside na
das autoridades ao ponto de estas o apedreja­ Sua paixão; se absolvição, na Sua condenação;
rem até à morte. N o entanto, antes de morrer, se remissão da maldição, em Sua cruz (G13.13).
o Senhor concedeu a ele uma visão do Cristo Se satisfação, no Seu sacrifício; se purificação,
celestial, não sentado no trono do juízo à di­ no Seu sangue; se reconciliação, em Sua descida
reita do Pai, mas de pé, ao lado de Deus, ao inferno; se mortificação da carne, em Seu
dando-lhe as boas-vindas na glória. túmulo; se novidade de vida, na Sua ressurrei­
O testemunho de Estêvão foi este: Eis que ção; se imortalidade, na mesma; se a herança do
vejo os céus abertos e o Filho do H om em , que Reino celestial, na Sua entrada no céu; se pro­
está em p é à mão direita de D eus (At 7.56). teção, se segurança, se oferta abundante de to­
Ao morrer, ele repetia suas próprias ora­ das as bênçãos, em Seu Reino; se expectativa
ções ao Senhor: Senhor Jesus, recebe o meu tranqüila do juízo, no poder concedido a Ele
espírito (v. 59) e Senhor, não lhes imputes este para julgar. ( C a l v i n o , 1960, p. 527-28)
pecado (v. 60).
Resumo este capítulo dizendo que Jesus é Diante da obra e da pessoa de Cristo, não é
a fonte na qual todo bem espiritual pode ser preciso buscar por bênçãos espirituais em qual­
encontrado. E como Calvino escreveu: quer outro lugar. E sábio confiar apenas nele.

S /ó
O D ESPER TA R PARA DEUS
Pa r t e

1
O Espírito de Deus

Tu crês que há um só Deus? Fazes bem; também os demônios o ciêem e estremecem.


Tiago 2.19

Mas, quando vier aquele Espírito da verdade, ele vos guiará em toda a verdade, porque
não falará de si mesmo, mas diú tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o que há de vir.
Ek me glorifican, porque há de receber do que é meu e vo-b há de anunciar.
João 16.13,14

já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida
que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a
si mesmo por mim.
Gálatas 2.20
O CRISTIANISMO PESSOAL

(O i
^ec====p=3 oda religião tem conteúdo intelec- Experience [As variedades da experiência reli­

. ! /( tual que seu seguidor presumida- giosa], de William James. Esse estudo clássico
0 mente busca saber. Com relação a da psicologia da religião tenta refletir uma vas­
isso, os cristãos enfrentam dois ta experiência, bem como proporcionar uma
perigos específicos ao aprofundarem-se nas análise imparcial. Quando as pessoas leem esse
doutrinas cristãs. livro, ou qualquer outro do gênero, podem
Por um lado, há o subjetivismo. O ensino achar erroneamente que não são cristãs, sim­
cristão envolve a natureza de Deus e como plesmente por nada tão intenso ter aconteci­
Ele nos salvou por meio da morte de Jesus do em sua vida.
Cristo. Contudo, por isso ser profundo e to ­ H á também outro grande perigo: uma fé
cante, em vez de os cristãos se esforçarem cristã totalmente objetiva. Muitos têm muito
para entender sua fé racionalmente, tentam conhecimento bíblico e consentem com a ver­
dar ênfase aos seus sentimentos e às suas expe­ dade da Palavra de Deus, mas, mesmo assim,
riências, muitas vezes ao ponto de tentarem, não mudam. H á fé, mas esta pode ser à que
até mesmo, desvincular estes tanto da obra de Tiago se referiu quando disse: Tu crês que há
Deus na história como das claras proposições um só Deus? Fazes bem ; também os demônios
bíblicas. Quando as experiências que buscam o crêem e estremecem (Tg 2.19). Esse perigo se
não ocorrem ou são diferentes do esperado, faz presente entre os cristãos conservadores.
eles tentam basear-se em sentimentos espiri­ Harold O. J. Brown, em The Conservative
tuais por Deus, lançando mão da autossuges- Option [A opção conservadora], alerta:
tão, das circunstâncias ou das maquinações do
diabo, que, segundo a Bíblia, pode até transfi­ Insistir como, com certa razão, nós o fazemos
gurar-se em anjo de luz (2 C o 11.14). quando se trata da natureza objetiva da expia-
Essa ênfase nem sempre é tão extrema as­ ção e de sua aplicação ao ser humano para a
sim. Às vezes, é meramente uma suposição, salvação gera o risco de dimensionar, no tempo
frequentemente impensada a fundo, de que e no espaço em que estamos inseridos, doutri­
experiências religiosas sejam necessárias para nas que são puramente históricas e judiciais.
que haja a salvação de uma alma. Isso é o que Não podemos esquecer que estamos em um
sugerem, por exemplo, certos tipos de encon­ processo de santificação em que o Espírito
tros de avivamento. Santo, que vai moldando nossa vida, deve con­
Podemos ter essa impressão também por tinuar em nosso meio. ( G u n d r y e J o h n s o n ,
meio de livros como The Varieties o f Religious 1976, p. 356)
Com o podemos evitar esses perigos? C o ­ devemos, de alguma forma, usufruir leva à auto-
mo solucionaremos o problema da coexistên­ exaltação e à autossuficiência. Quem pensa isso
cia de uma revelação objetiva de Deus na sobre o Espírito Santo e que, ao mesmo tempo,
história e de uma apropriação dessa salvação? imagina que o recebeu enche-se de “orgulho
Se dependesse de nós, não haveria respos­ espiritual”, como se pertencesse a uma ordem
ta a essa pergunta. Todavia, a Bíblia diz que superior de cristãos, e diz: “Sou uma pessoa do
Deus tem uma solução. Assim com o o Pai Espírito Santo!”. Porém, se virmos o Espírito
enviou Seu Filho para realizar a obra objetiva Santo como uma pessoa divina de infinita ma­
e histórica da expiação para nos salvar, Ele jestade, glória, santidade e poder, que se humi­
também enviou o Espírito Santo para aplicar lhou vindo fazer morada em nosso coração, to­
essa salvação a nós. mando e usando nossa vida, Ele nos porá no pó
Esse ato não foi único e indivisível, mas da terra e lá nos manterá. Não há coisa mais
envolve uma série de atos e processos: o cha­ humilhante que uma pessoa de divina majestade
mado de Deus, a regeneração, a justificação, a vir habitar em meu coração, dispondo-se a fazer
adoção, a santificação e a glorificação. Em uso até mesmo de mim. ( T o r r e y , 1970, p. 8,9)
cada caso, o Espírito Santo aplica a obra de
Cristo a nós. Essa distinção é ilustrada nas páginas do
A terceira seção deste livro lida com esses N ovo Testamento. Por um lado, há o caso do
processos, ou seja, com a obra do Espírito mágico Simão, cuja história pode ser lida em
Santo de Deus. C om o Calvino aporta na ter­ Atos 8.9-24. Simão era um cidadão de Sama-
ceira maior seção de Institutes o f the Christian ria, onde Filipe, um dos primeiros diáconos,
Religion [Institutas da religião cristã], essa tinha pregado o evangelho. Aparentemente,
obra implica: “a forma como recebemos a gra­ Simão creu em Cristo e foi salvo, tendo em
ça de Cristo, os benefícios que recebemos e os vista o que foi relatado:
efeitos disso” ( C a l v in o , 1960, p. 537).
E creu até o próprio Simão; e, sendo bati­
U m a p e s s o a o u u m p o d e r ?________________ zado, ficou, de contínuo, com Filipe e, ven­
Esse tema deve ser discutido tomando-se do os sinais e as grandes maravilhas que se
como base a natureza do Espírito Santo. A faziam, estava atônito.
primeira pergunta é: “Seria Ele uma pessoa Atos 8.13
cuja obra é salvar-nos e santificar-nos, ou um
poder que devemos usar a nosso favor?”. Se o Entretanto, Simão sabia pouquíssimo acer­
considerarmos um poder misterioso, podere­ ca do cristianismo. Logo, quando viu os mila­
mos perguntar-nos: “C om o posso ter mais do gres realizados, ficou maravilhado. Achou até
Espírito Santo?”. Se o considerarmos uma que o Espírito Santo era um poder que podia
pessoa, a pergunta mudará: “C om o o Espíri­ ser comprado. Mais tarde, quando Pedro e
to Santo pode ter mais de mim?”. O primeiro João foram inspecionar a obra em Samaria, fo­
pensamento não é bíblico, e o segundo, por ram usados por Deus para batizar no Espírito
sua vez, é neotestamentário. Santo. Simão ofereceu dinheiro aos discípulos
Sobre isso, Reuben A. Torrey observou o para que pudesse ter o mesmo poder (At 8.19).
seguinte: Pedro respondeu:

O conceito que sustenta que o Espírito Santo é O teu dinheiro seja contigo para perdição,
um poder ou uma influência divina da qual pois cuidaste que o dom de D eus se alcança
p or dinheiro. Tu não tens parte nem sorte exatamente isso o que é dito a respeito do
nesta palavra, porque o teu coração não é Espírito Santo.
reto diante de Deus. Arrepende-te, pois, Em João 14.16-18, Jesus disse:
dessa tua iniqüidade e ora a Deus, para
que, porventura, te seja perdoado o pensa­ E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro
mento do teu coração. Consolador, para que fique convosco para
Atos 8.20-22 sempre, o Espírito da verdade, que o m un­
do não pode receber, porque não o vê, nem
Podemos encontrar um exemplo contras­ o conhece; mas vós o conheceis, porque ha­
tante no início da obra missionária que envol­ bita convosco e estará em vós. Não vos
veu Paulo e Barnabé, quando, servindo eles ao deixarei órfãos; voltarei para vós.
Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo:
Apartai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a Se o Espírito fosse apenas um poder, essa
que os tenho chamado (A t 13.2). N o primeiro promessa seria apenas uma compensação de
exemplo, um indivíduo quis usar a Deus. N o Jesus: “Eu vou embora, mas deixarei algo pa­
segundo, Deus usou dois indivíduos. ra compensar Minha ausência”. Todavia, o
N o entanto, é possível questionar: “N ão Espírito não é apenas um poder, mas uma
existem passagens e, até mesmo, seções intei­ pessoa divina, que tem personalidade e co­
ras da Bíblia em que a personalidade distinta nhece nossas necessidades. Ele é provido tan­
do Espírito Santo não está evidente?”. Esse é to de sentimentos, pois se identifica conosco
o caso do Antigo Testamento, no qual são em nossos problemas, como de vontade pró­
mencionados certos indivíduos a quem o Es­ pria, visto que decide consolar-nos em cum­
pírito do S E N H O R [Deus] revestiu (Jz 6.34; primento à promessa do Senhor.
2 C r 24.20), da mesma forma que, frequente­ As evidências do N ovo Testamento para a
mente, o Espírito de Deus é entendido como personalidade do Espírito Santo podem ser
em Gênesis 1.2b: E o Espírito de D eus se mo­ agrupadas nas seguintes categorias:
via sobre a face das águas.
Essas passagens dão a entender que o E s­ 1. As ações do Espírito Santo. U m exem­
pírito Santo tem uma personalidade distinta. plo de ação do Espírito é a última passagem
Entretanto, devemos admitir que, no Antigo bíblica citada, em que Ele deve consolar os
Testamento, há pouco espaço para os que de­ cristãos. O utro está em João 16.8, e refere-se
fendiam a ideia de que o Espírito Santo fosse à missão deste de convencer o pecador do p e ­
uma pessoa da Trindade divina. cado, e da justiça, e do juízo.
N o N ovo Testamento, por sua vez, o E s­
pírito Santo é revelado, de fato, como uma 2. A missão do Espírito Santo, diferente
pessoa da Trindade, totalmente equiparado da do Pai e do Filho. Jesus não deixa dúvidas
ao Pai e ao Filho, mas diferente deles. Porém, quanto a essa missão em Seu último discurso:
como vimos no Livro I desta obra, isso não Mas, quando vier o Consolador, que eu da
implica a existência de três deuses. H á três parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito
pessoas, mas, de uma forma que vai além de da verdade, que procede do Pai, testificará de
nossa plena compreensão, essas três formam mim (Jo 15.26).
um só Deus.
U m a pessoa é definida por seu conheci­ 3. A posição e o poder do Espírito Santo,
mento, seus sentimentos e sua vontade, e é iguais aos do Pai e do Filho. As várias maneiras
pelas quais os autores do N ovo Testamento dos milagres, da profecia, do discernimento
se referem à Trindade evidenciam essa igual­ de espíritos, de línguas e de interpretação de
dade entre a Trindade. E m Mateus 28.19, Je­ línguas, Paulo disse: Mas um só e o mesmo
sus disse aos Seus discípulos: Espírito opera todas essas coisas, repartindo
particularmente a cada um como quer.
Portanto, ide, ensinai todas as nações, bati­ Os dons do Espírito Santo se distinguem
zando-as em nom e do Pai, e do Filho, e do do próprio, o que implica o fato de Ele não ser
Espírito Santo. apenas um poder por trás desses notáveis dons.
Estes são seis argumentos que mostram
Em 2 Coríntios 13.13, Paulo fez a seguinte que o Espírito Santo é uma pessoa. Contudo,
oração: o problema para muitos de nós não é bem a
doutrina do Espírito, mas o que decidimos
A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor crer a respeito dela. Teoricamente, muitos
de Deus, e a comunhão do Espírito Santo creem que Ele é a terceira pessoa da Trindade.
sejam com vós todos. A m ém ! Mas será que realmente pensamos nele dessa
forma? Será que pensamos nele de qualquer
Pedro falou a respeito daqueles que foram outra forma?
eleitos segundo a presciência de D eus Pai, em
santificação do Espírito, para a obediência e O E s p ír it o é D e u s ?_________________________

aspersão do sangue de Jesus Cristo (1 Pe 1.2). H á algo que também precisa ser estudado.
Judas, por sua vez, recomendou que fôs­ Insistimos no fato de o Espírito Santo ser uma
semos edificados na fé cristã, orando no Es­ pessoa divina. Pois bem, Ele é divino no senti­
pírito Santo, e nos mantivéssemos na carida­ do de ser de Deus ou de ser o próprio D eus?
de de Deus, esperando a misericórdia de Um a das mais claras indicações da plena
nosso Senhor Jesus Cristo, para a vida eterna divindade do Espírito Santo está nas palavras
Qd 1.20,21). de Jesus, quando Ele prometeu enviá-lo aos
Seus discípulos como outro Consolador (Jo
4. As menções ao Espírito Santo. N o ba­ 14.16). Essa palavra outro em grego (texto
tismo de Jesus, o Espírito Santo desceu sobre original) pode ser traduzida de duas manei­
ele em form a corpórea, como uma pom ba; e ras: allos, que significa outro como o primeiro,
ouviu-se uma voz do céu, que dizia: Tu és ou heteros, que significa totalmente diferente.
m eu Filho amado; em ti m e tenho comprazido Com o é a palavra allos, e não a heteros,
(Lc 3.22). que aparece no texto, Jesus quis afirmar que
N o dia de Pentecostes, foram vistas por mandaria aos discípulos uma pessoa igual a
eles línguas repartidas, como que de fogo, as Ele, ou seja, plenamente divina. Quem foi o
quais pousaram sobre cada um deles (At 2.3). primeiro Consolador? Jesus, pois fortaleceu e
aconselhou os discípulos durante os anos de
5. O pecado contra o Espírito Santo. Isso Seu ministério entre eles. Como Jesus iria dei­
implica uma ofensa contra Sua pessoa (Mt xá-los, em Seu lugar ficaria um Consolador,
12.31,32). igual a Ele, outra pessoa divina que, dessa vez,
estaria no interior de quem estivesse em Cristo.
6 . Os dons do Espírito Santo. Em 1 C o ­ Essa não é a única prova dessa importante
ríntios 12.11, depois de enumerar os dons da doutrina. A divindade do Espírito Santo pode
sabedoria, do conhecimento, da fé, da cura, ser evidenciada nas seguintes categorias:
1. As qualidades divinas do Espírito San­ p o r nós f Então, disse eu: eis-me aqui, en-
to. O próprio termo Espírito Santo já via-me a mim.
fala por si, pois o termo Santo designa
a essência da natureza de Deus. Ele é Em Atos 28.25b, por sua vez, essa passa­
o Pai Santo (Jo 17.11) e Jesus é o Cris­ gem de Isaías é citada:
to, o Filho de D eus (Jo 6.69), o Santo
de D eus (Mc 1.24). O Espírito Santo é Bem falou o Espírito Santo a nossos pais
também onisciente (Jo 16.12,13; 1 Co pelo profeta Isaías.
2.10,11), onipotente (L c 1.35) e oni­
presente (Sl 139.7-10). Já tentei mostrar como é importante sa­
bermos, na prática, por que o Espírito Santo é
2. As obras de Deus atribuídas ao Espí­ uma pessoa. Agora, pergunto: E importante
rito Santo. O Espírito participou da sabermos que Ele é também Deus? Sim, pois
obra da criação (Jó 33.4) e inspirou se soubermos disso e, constantemente, reco­
homens santos de Deus para que es­ nhecermos Sua divindade, seremos capazes
crevessem a Bíblia (2 Pe 1.21). Além de confiar em Sua obra.
disso, Ele promove o novo nascimen­ J. I. Packer, em Knowing G od [Conhecen­
to, o que veremos mais a fundo no do a Deus], pergunta:
próximo capítulo (Jo 3.6), bem como
a ressurreição (Rm 8.11). Será que honramos o Espírito Santo, reco­
nhecendo e confiando em Sua obra, ou o me­
3. A igualdade do Espírito Santo com o nosprezamos, ignoramos e desonramos -
Deus Pai e o Deus Filho. As bênçãos não só a Ele, mas também ao Senhor que o
e as fórmulas acima citadas são exem­ enviou? Será que reconhecemos por meio da
plos disso. fé a autoridade da Bíblia - do profético An­
tigo Testamento e do apostólico Novo Testa­
4. O nome de Deus associado ao Espí­ mento que Ele inspirou? Será que lemos e
rito indiretamente. O exemplo mais ouvimos com a reverência e a receptividade
claro disso está em Atos 5.3,4, texto que são devidas à Palavra de Deus? Se não,
segundo o qual Pedro disse a Ananias: desonramos o Espírito Santo. Será que apli­
camos a autoridade da Bíblia em nossa vida e
Ananias, p o r qu e encheu Satanás o teu vivemos por ela, sem nos importarmos com
coração, para que mentisses ao Espírito o que os outros dizem contra, reconhecendo
Santo e retivesses parte do preço da her­ que a Palavra de Deus é a verdade e que o
d ad e? [...] Não mentiste aos homens, mas Senhor irá cumprir tudo o que prometeu ne­
a Deus. la? Se não, desonramos o Espírito Santo, que
nos deu a Bíblia. Será que nos lembramos de
Outros exemplos são as passagens do An­ que o testemunho do Espírito Santo autenti­
tigo Testamento citadas no N ovo nas quais ca o nosso? Será que olhamos para Ele? Será
Deus ou o Espírito está afirmando algo. Em que confiamos nele como Paulo, que renegou
Isaías 6.8, por exemplo, está escrito: a inteligência humana? Se não, desonramos o
Espírito Santo. Será que podemos duvidar de
Depois disso, ouvi a voz do Senhor, que que a “improdutividade” da vida da Igreja
dizia: A quem enviarei, e quem há de ir que se tem hoje seja juízo de Deus sobre nós
em função de desonrarmos o Espírito Santo? A personalidade e a divindade do Espírito
Nesse caso, que esperança podemos ter diante Santo são ensinos práticos, pois é pela ação desse
desse juízo, se não aprendermos a honrar o ser divino que o evangelho da salvação de Jesus
Espírito em nosso pensar, em nosso orar e em Cristo pode alcançar-nos e transformar nossa
nossa prática? (P a c k e r , 1973, p. 63) vida. Ele é o segredo da religião vital e verdadeira.
A obra do E s pír it o Sa n t o

o conhecermos alguém, geralmen­ humana. Qual seria a principal obra do Espí­


te perguntamos: “Quem é você?” e rito Santo?
“O que você faz?”; a pessoa, então, Alguns afirmam que é a santificação dos
responde algo como: “Sou Fulano, cristãos ou a inspiração da composição da Bí­
sou professor”. O u ainda: “Sou Sicrano, traba­ blia, enquanto outros destacam Seu papel na
lho para uma companhia aérea”. Pois bem, concessão dos dons espirituais à Igreja ou na
podemos fazer as mesmas perguntas acerca do indução de não cristãos à aceitação de Cristo.
Espírito Santo. Entretanto, apesar de o Espírito Santo fazer
N o capítulo anterior, vimos que o Espíri­ tudo isso, essas não são as melhores respostas
to Santo é uma pessoa divina com os mesmos para a pergunta, visto que a mais adequada
atributos do Pai e do Filho. Neste capítulo, definição de Sua obra encontra-se em João
precisamos analisar o que Ele faz. 16.13,14, bem como em passagens relaciona­
das a ela, com o podemos ler abaixo, nas pala­
G l o r if ic a r a C r i s t o _______________________ vras do próprio Cristo:
Ao questionarmos a função do Espírito San­
to, percebemos que não é fácil definir o que Ele Mas, quando vier aquele Espírito da ver­
realmente faz, pois, se Ele é Deus, então faz tudo dade, ele vos guiará em toda a verdade,
o que o Pai e o Filho fazem. Assim, repito o que porque não falará de si mesmo, mas dirá
afirmei no Livro I, ao sugerir o modo como de­ tudo o que tiver ouvido e vos anunciará o
vemos lidar com a doutrina da Trindade. que há de vir. Ele m e glorificará, porque
Podemos dizer que o Espírito Santo: (1) há de receber do que é m eu e vo-lo há de
participou da criação do universo (Gn 1.2); anunciar.
(2) inspirou a composição da Bíblia (2 Pe
1.21); (3) direcionou o ministério terreno do Em João 15.26, o Senhor declara:
Senhor Jesus Cristo (Lc 4.18); (4) dá vida es­
piritual ao povo de Deus (Jo 3.6); e (5) chama Mas, quando vier o Consolador, que eu da
e guia a Igreja (A t 13.2; 16.6,7; 20.28). parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espí­
Contudo, em várias partes da Bíblia, a rito da verdade, que procede do Pai, testi­
obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo é ficará de mim.
registrada de maneira individual. Por exem­
plo: o Pai participa mais da obra da criação, e A principal obra do Espírito Santo é levar-
o Filho participa mais da redenção da espécie -nos a glorificar a Cristo. Todas as outras
obras giram em torno dessa. Ora, se Ele não para nossa salvação e para o crescimento da
fala de si mesmo, mas de Jesus, podemos con­ Igreja, se perdesse.
cluir que qualquer ênfase dada à pessoa e à Com o esses homens, em grande parte pes­
obra do Espírito que não aponte para Cristo cadores analfabetos, poderiam ser os agentes
não pode ser vinda do Espírito de Deus. N a por meio dos quais nos seria transmitido o
verdade, é obra de outro espírito, o do anticris­ N ovo Testamento? O que garante a confiabili­
to, cuja obra é fazer com que a humanidade dade da fonte dos relatos da vida deles, bem
tire o foco de sua atenção de Jesus (1 Jo 4.2,3). como dos ensinos de Jesus? N ão é possível que
Apesar de Sua importância, o Espírito eles tenham registrado alguns fatos de forma
Santo não deve tomar o lugar de Cristo em incorreta, ou confundido alguma verdade?
nossa vida. A terceira pessoa da Trindade está A resposta a essas especulações é que, no
em ação onde quer que Jesus esteja sendo exal­ que tange ao registro dos fatos na Bíblia, os
tado e, nessa medida, podemos reconhecer a discípulos não cometeram erro algum, pois
presença do Consolador, sendo-lhe gratos. foram guiados pelo Espírito Santo. Alguns
dos eventos e ensinos registrados por eles se
E n s in a n d o so bre C r i s t o __________________
basearam em coisas que viram e ouviram, e
É possível questionar: de que maneira o que lhes foi relembrado pelo Espírito, sendo
Espírito Santo glorifica, especificamente, o tais relatos tão válidos quanto os do Antigo
Senhor Jesus C risto? Ele o faz de quatro Testamento.
formas. Segundo Pedro:
Primeiro, usando a Bíblia para ensinar so­
bre Jesus. O N ovo Testamento diz que o E s­ Porque a profecia nunca fo i produzida por
pírito Santo já fazia isso antes de Cristo vir ao vontade de hom em algum, mas os homens
mundo, por meio da inspiração do Antigo santos de D eus falaram inspirados pelo Es­
Testamento, mas a obra dele não parou ali. pírito Santo.
N o N ovo Testamento, além de haver rela­ 2 Pedro 1.21
tos sobre as ações de Jesus, há também a ex­
plicação de Seus motivos para agir da forma O Espírito Santo glorificou muito a Jesus
como agiu. A obra de Jesus serviu para in­ quando preparou o caminho para a vinda
fluenciar Seus discípulos, fato que é enfatiza­ dele por meio da inspiração do Antigo Tes­
do nas últimas conversas do Senhor com eles tamento, o qual se responsabilizou por reve­
(v e rjo 15.26; 16.12,13a). lar às pessoas que tipo de coisas deveriam
Os discípulos de Cristo sabiam que, no esperar, bem com o por quanto tempo espe­
período veterotestamentário, o Espírito San­ rariam. Assim, Ele preservou a história da
to havia se manifestado a certos profetas, reis vinda do C ordeiro, proporcionando, por
e outros líderes, a fim de falar por meio deles. meio dos livros do N ovo Testamento, a in­
Muitos podem até ter entendido que a mensa­ terpretação dela.
gem central do Antigo Testamento era apenas Essas passagens não somente sustentam
a promessa divina do envio de um Redentor; que uma nova revelação está a caminho, mas
contudo, mais adiante, os discípulos de Jesus sugerem a natureza dessa revelação.
entenderam que o mesmo Espírito não so­
mente se manifestaria a eles como também 1. Primeiro, a revelação é histórica.
passaria a estar neles, para que nada a respeito Em João 16.13, Jesus prometeu que o E s­
da obra ou dos ensinos de Cristo, necessários pírito Santo guiaria os discípulos em toda
verdade concernente a Ele. E m João 14.26, a Jesus declarou:
historicidade é ainda mais clara:
Ele m e glorificará, porque há de receber do
Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que é m eu e vo-lo há de anunciar.
que o Pai enviará em m eu nome, vos ensi­ João 16.14
nará todas as coisas e vos fará lem brar de
tudo quanto vos tenho dito. Mas aquele Consolador, o Espírito Santo,
João 14.26 que o Pai enviará em m eu nome, vos ensi­
nará todas as coisas e vos fará lem brar de
O s discípulos estavam sujeitos ao esqueci­ tudo quanto vos tenho dito.
mento de certos acontecimentos. Sendo as­ João 14.26
sim, o Espírito Santo lhes traria à memória os
eventos ligados à vida, morte e ressurreição Os resultados disso estão nas epístolas, a
de Jesus Cristo. O registro disso está nos começar por Romanos, texto no qual a dou­
Evangelhos e no livro de Atos. trina cristã é desenvolvida de maneira plena.
A natureza histórica do cristianismo tem As outras epístolas lidam com problemas es­
seu início de maneira dramática, diferente de pecíficos das igrejas, bem com o problemas
qualquer outra religião, mitologia ou filoso­ teológicos e de liderança ( l e 2 T m ; T t ; l , 2 e
fia. O s seres humanos veem a religião como 3 Jo; 1 e 2 Pe; e Jd).
um conjunto de ideias. A salvação, por sua Deus agiu na história, permitindo-nos co ­
vez, é vista como algo alcançável por meio do nhecer o porquê de Suas ações. Cristo veio ao
aprendizado de certas coisas ou de determi­ mundo para que o Pai pudesse revelar-se a
nadas atitudes. Convenhamos: o cristianismo nós. Agora, sabemos que Ele é amor e justiça
se traduz em ideias, mas estas se baseiam no por causa do Filho, e que tem compaixão, mi­
que Deus fez. Este é o fator determinante. sericórdia e muitos outros atributos também
A base histórica também exclui o cristia­ graças a Cristo. Jesus morreu, mas Sua morte
nismo do evolucionismo religioso, segundo o teve muitas implicações, as quais nos são ex­
qual as ideias primitivas acerca de Deus, até plicadas pela Bíblia.
então sustentadas pela Igreja, amadurecem à
medida que seu conhecimento sobre Ele au­ 3. Terceiro e último, a revelação de Deus
menta. Com o isso, em tese, aconteceria até é profética.
hoje, seria possível que deixássemos de crer em Jesus disse: Mas, quando vier aquele Espí­
certas coisas concernentes ao Pai, passando a rito da verdade, ele vos [...] anunciará o que
crer em outras que achássemos mais válidas. há de vir (Jo 16.13).
Contrário a isso, Jesus ensinou que, longe O resultado disso se vê ao longo de quase
de ser dispensável, a obra do Senhor na histó­ todo o N ovo Testamento: Mateus 24, Mateus
ria é a base de Sua revelação ao ser humano, o 25, Marcos 13, Romanos 11,1 Coríntios 15, e,
que pode evidenciar-se na cruz de Cristo, na particularmente, Apocalipse.
qual Deus não somente ensinou uma ideia, As profecias indicam que as operações
mas fez algo: expiou o pecado, revelou Seu de Deus ao longo da história, ainda reais
amor e mostrou Seu juízo. nos nossos dias, não acontecem de maneira
estática. L ogo, o presente não pode ser igual
2. Segundo, a revelação de Deus é dou­ ao passado ou ao futuro. O Senhor está fa­
trinária. zendo coisas sem igual com as pessoas,
colocando um plano em prática, de forma N ingu ém p od e vir a mim, se o Pai, que me
que cada um exerça um papel fundamental enviou, o não trouxer (Jo 6.44).
na sociedade. O que fazer então? O Espírito Santo é que
Todo esse trabalho culminará no dia do põe fim à cegueira espiritual para que alguém
retorno do Senhor, quando Deus levará para possa não apenas ver a verdade, mas com ­
si Seu povo e demonstrará a todos que o ca­ preender o que vê. Então, o próprio Espírito
minho dele é o único caminho para a vida. leva a pessoa a depositar sua fé em Cristo,
Diante de tudo isso, podemos concluir sendo Ele, portanto, responsável pela exis­
que o Espírito Santo nos deu a Bíblia para tência de todos os cristãos na terra. O u seja,
que Jesus fosse glorificado na história, na o Espírito Santo nos leva à salvação e glorifi-
doutrina e na profecia. ca a Cristo.

L evan do pesso a s a C r i s t o _________________ R e p r o d u z in d o o c a r á t e r d e C r is t o

A segunda maneira de o Espírito Santo O Espírito Santo glorifica a Jesus repro­


glorificar Jesus é levando homens e mulheres duzindo Seu caráter nos cristãos. Ele o faz de
a Ele, por meio da fé. Discorro sobre isso em três maneiras: levando os cristãos a vencerem
detalhes na seção deste livro intitulada Como a si mesmos e ao pecado; intercedendo por
D eus salva os pecadores. O que cabe dizer eles em oração e ensinando-os a orar; e reve­
aqui é que, sem a atuação do Espírito Santo, lando a vontade de Deus para a vida deles,
ninguém pode chegar a Cristo. possibilitando que a cumpram. Esses ministé­
Depois de afirmar que enviaria o Espírito rios combinados formam o fruto do Espírito,
Santo aos Seus discípulos para com eles estar que é a vida de Cristo em nós. Paulo falou a
para sempre, Jesus acrescentou: respeito desse fruto em Gálatas 5.22,23:

O Espírito da verdade, que o mundo não Mas o fruto do Espírito é: caridade, gozo,
pode receber, porque não o vê, nem o co­ paz, longanimidade, benignidade, bonda­
nhece; mas vós o conheceis, porque habita de, fé , mansidão, temperança. Contra es­
convosco e estará em vós. sas coisas não há lei.
João 14.17
Essas são as virtudes que formam, no mais
João chama de o mundo os homens e mu­ alto grau, o caráter de Jesus, devendo, por is­
lheres que não têm parte com Cristo. N ão so, formar também o caráter de todo cristão.
sendo por meio da obra do Espírito Santo, Comentaristas bíblicos sempre destacam o
ninguém pode ter acesso a Jesus, nem ver, co ­ fato de elas originarem apenas um fruto (sin­
nhecer ou receber coisas espirituais, visto que gular), e não frutos, sendo este o que precisa
é o Espírito quem dá visão espiritual. Com o estar evidente em todos nós.
Jesus destacou: N a verdade, na verdade te E importante diferenciar o fruto dos dons
digo que aquele que não nascer de novo não do Espírito, os quais serão analisados em de­
pode v er o Reino de D eus (Jo 3.3). talhes na última parte deste volume. Isto foi,
Sem a ação do Espírito Santo, ninguém basicamente, o que Paulo revelou: Mas um só
pode conhecer as coisas espirituais, pois es­ e o mesmo Espírito opera todas essas coisas,
tas se discernem espiritualmente (1 C o 2.14). repartindo particularmente a cada um como
Ninguém pode receber o Espírito Santo ou qu er (1 C o 12.11). Logo, independente de
Cristo, pois, com o também afirmou Jesus: que função ministerial seja exercida, seja ela a
de líder, pastor, evangelista, ou qualquer ou­ esta reinar no lar (1 C o 7.12-16), entre judeus e
tra, todo cristão deve ter o fruto do Espírito. gentios (Ef 2.14-17), na Igreja (Ef 4.3; Cl 3.15)
A virtude cristã mais importante é o amor e nos relacionamentos do cristão (Hb 12.14).
[em algumas traduções aparece como carida­ A longanimidade ou paciência se refere a
de], visto que Deus é am or (1 Jo 4.8 n t l h ). suportar os outros, mesmo quando provado.
Podemos confirmar isso também nas palavras Deus é o maior exemplo de paciência, haja
de Paulo: Portanto, agora existem estas três vista que inúmeras vezes teve [e ainda tem]
coisas: a fé , a esperança e o amor. Porém a misericórdia dos rebeldes. Esse é um dos m o­
maior delas é o amor (1 C o 13.13 n t l h ). tivos pelos quais devemos voltar-nos a Ele em
O amor de Deus é virtuoso, pois é imere­ arrependimento por causa de nossos pecados
cido (Rm 5.8), grande (Ef 2.4), transformador (J1 2.13; 2 Pe 3.9).
(Rm 5.3-5), e imutável (Rm 8.35-39). Foi com A benignidade ou gentileza é a atitude que
base nele que o Senhor enviou Cristo para o Senhor adota quando interage com as pes­
morrer por nossos pecados. Com o cristãos, soas. Por direito, Ele poderia exigir nossa ime­
temos o Espírito Santo habitando em nós, diata e total conformidade com Sua vontade,
sendo, portanto, nosso dever demonstrar esse sendo rígido no processo. Entretanto, Deus
grande amor à humanidade: Nisto todos co­ não é rígido, visto que se relaciona conosco
nhecerão que sois meus discípulos, se vos como um pai deve relacionar-se com um filho.
amardes uns aos outros (Jo 13.35).
O gozo é comum aos cristãos. Mas este Quando Israel era menino, eu o amei; e do
difere da alegria que depende das circunstân­ Egito chamei a m eu filho. Mas, como os
cias, as quais, se forem desfavoráveis, ela dei­ chamavam, assim se iam da sua face; sacri­
xa de existir. O gozo, por sua vez, baseia-se ficavam a baalins e queimavam incenso às
no conhecimento que alguém tem acerca de imagens de escultura. Todavia, eu ensinei
Deus e do que Ele fez por nós, em Cristo. a andar a Efraim ; tomei-os pelos seus bra­
Antes de ser preso e crucificado, Jesus fa­ ços, mas não conheceram que eu os curava.
lou a Seus discípulos sobre o gozo: Tenho-vos Atraí-os com cordas humanas, com cordas
dito isso para que a minha alegria permaneça de amor; e fu i para eles como os que tiram
em vós, e a vossa alegria seja completa (Jo o jugo de sobre as suas queixadas; e lhes
15.11). O mesmo tema é abordado nos capí­ dei mantimento.
tulos 14, 15 e, talvez, 16 do Evangelho de Oséias 11.1-4
João, tendo aparecido, também, em João
17.13: Mas, agora, vou para ti e digo isto no Esse deve ser nosso modelo. Devemos
mundo, para que tenham a minha alegria mostrar benignidade aos outros assim como
completa em si mesmos. Deus nos mostra.
P or conhecermos a ação de Deus a nosso
favor, podemos, como cristãos, alegrarmo- Irmãos, se algum hom em chegar a ser sur­
-nos mesmo em meio ao sofrimento, aprisio- preendido nalguma ofensa, vós, que sois
namento ou qualquer outra calamidade. espirituais, encaminhai o tal com espírito
A paz é o presente do Senhor à humanida­ de mansidão, olhando por ti mesmo, para
de, obtida por meio da cruz de Cristo. Antes que não sejas também tentado. Levai as
da cruz, éramos inimigos do Altíssimo. Ago­ cargas uns dos outros e assim cumprireis a
ra, devemos mostrar os efeitos dessa paz em lei de Cristo.
todas as circunstâncias (Fp 4.6,7), devendo
A bondade é com o a benignidade, mas fruto, a tira; e limpa toda aquela que dá
revela-se principalmente em situações em que fruto, para que dê mais fruto. [ ...] Estai
não há merecimento. Tem a ver com genero­ em mim, e eu, em vós; como a vara de si
sidade. mesma não pode dar fruto, se não estiver
A fé , nesse contexto, caracteriza a dignida­ na videira, assim também vós, se não esti-
de ou a confiabilidade. Uma parte do caráter verdes em mim. E u sou a videira, vós, as
do próprio Deus está em jogo aqui. Servos fiéis varas; quem está em mim, e eu nele, este
de Cristo morrem por Ele, em vez de negá-lo; dá muito fruto, p orque sem mim nada po-
sofrem, mas mantêm seu título de cristãos. As­ dereis fazer.
sim é também Jesus, fiel testemunha (Ap 1.5), e João 15.1,2,4,5
Deus Pai, que sempre age em favor de Seus fi­
lhos (1 C o 1.9; 10.13; 1 Ts 5.24; 2 Ts 3.3). Para ser frutífera, a vara deve estar na vi­
A mansidão é vista naqueles que têm tanto deira, viva, e não morta. N o âmbito espiritu­
autocontrole que se iram somente quando al, isso significa que primeiro o indivíduo
realmente devem (contra o pecado, por exem­ deve ser cristão, pois, sem Cristo, somente as
plo). Este foi o caso de Moisés. A respeito obras da carne podem manifestar-se:
dele, está escrito: E era o varão Moisés mui
manso, mais do que todos os homens que ha­ Porque as obras da carne são manifestas, as
via sobre a terra (N m 12.3). quais são: prostituição, impureza, lascívia,
A última manifestação do fruto do Espíri­ idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias,
to é a temperança, que mortifica os desejos da emulações, iras, pelejas, dissensões, here­
carne e que está intimamente ligada à castida­ sias, invejas, homicídios, bebedices, gluto-
de, tanto da mente como do corpo. narias e coisas semelhantes a estas.
William Barclay, em Flesh and Spirit: A n Gálatas 5.19-21 a
Examination o f Galatians 5.19-23 [Carne e
espírito: uma análise de Gálatas 5.19-23], ob­ O fruto do Espírito só pode manifestar-se
serva que essa qualidade é a que vem àquele quando a vida de Cristo, por meio do Espíri­
que aceita a Cristo em seu coração, capacitan­ to Santo, flui no cristão.
do-o a viver no mundo sem deixar suas vestes O utro fato importante é que a videira de­
serem contaminadas por ele. ve ser podada. Isto é o que lemos nos versícu­
Todavia, o fato de essas nove virtudes se­ los iniciais de João 15, nos quais Deus é cha­
rem inerentes ao Espírito que habita e atua mado de lavrador, significando que Ele cuida
naqueles que aceitam a Jesus como Senhor de nós, expondo-nos ao sol de Sua presença,
nem sempre significa que todo cristão irá, au­ enriquecendo nosso solo e livrando-nos da
tomaticamente, possuí-las. E por isso que seca espiritual. Se desejarmos ser frutíferos,
somos exortados a andar em espírito, para deveremos estar ligados ao Senhor por meio
não ceder à concupiscência da carne (G 15.16). da oração, alimentando-nos de Sua Palavra e
O que diferencia um cristão frutífero de permanecendo sempre próximos a outros
um infrutífero é sua proximidade em relação a cristãos.
Cristo, bem como sua dependência dele. Jesus Muitas vezes, a poda é desagradável e, até,
ensinou isso na parábola da videira e das varas: sofrida, pois coisas que valorizamos podem
ser tiradas de nós. Contudo, o propósito dela
Eu sou a videira verdadeira, e m eu Pai é o é o que faz toda a diferença na vida de todo
lavrador. Toda vara em mim que não dá cristão: a frutificação.
O Espírito Santo chama homens e mulheres
para missões específicas, mas vai com eles à mis­
Outra maneira de o Espírito Santo glorifi­
são. E evidente que Ele não tem o mesmo cha­
car a Jesus é guiando Seus seguidores no ser­
mado para todos. Deve ser por isso que não há
viço cristão, sustentando-os. Com o indicam
na Bíblia detalhes acerca do modo pelo qual os
alguns capítulos anteriores, isso foi o que
discípulos de Jesus, em Antioquia, vieram a sa­
aconteceu com os discípulos: o Espírito os
ber que o Espírito Santo havia designado Bar­
guiava de acordo com a vontade de Cristo, e
nabé e Saulo para uma obra missionária.
Sua postura não é diferente com os cristãos
N o entanto, não é porque o Espírito cha­
atuais.
ma que não devemos buscar Sua direção. Em
Antioquia, Ele falou aos discípulos que ado­
E, servindo eles ao Senhor ejejuando, disse ravam e jejuavam ao Senhor, levando Sua
o Espírito Santo: Apartai-me a Barnabé e obra a sério, dando tudo de si. E assim que
a, Saulo para a obra a que os tenho chama­ devemos proceder também.
do. Então, jejuando, e orando, e pondo Entretanto, antes de ponderar a vida cris­
sobre eles as mãos, os despediram. E assim tã, consideremos o processo de tornar-se um
estes, enviados pelo Espírito Santo, desce­ cristão. Melhor ainda, antes disto, por que
ram a Selêucia e dali navegaram para não analisamos a mais complicada doutrina
Chipre. bíblica acerca da união do cristão com Cristo,
Atos 13.2-4 por meio da obra do Espírito Santo?

SSS
A u n iã o c o m C r is t o

união com Cristo por meio do Es­ Santo de aplicar os benefícios da expiação de
pírito Santo não é um assunto peri­ Jesus ao cristão.
férico na teologia bíblica e, apesar
de amplamente negligenciado, é U n iã o p a s s a d a , p r e s e n t e e f u t u r a _______

um conceito chave para a compreensão dos Assim como a maioria dos ensinos neotes-
ensinamentos do Senhor, como pretendemos tamentários, as sementes dessa doutrina estão
mostrar neste capítulo. nas palavras de Jesus, registradas nas Escritu­
De acordo com o comentarista bíblico Ja­ ras quase sempre por meio de metáforas, en­
mes S. Stewart, esse tema é “o coração da reli­ tre elas a da videira e a das varas, a saber:
gião de Paulo” (S t e w a r t , p. 147), sendo, por­
tanto, muito importante para o mesmo. Estai em mim, e eu, em vós; como a vara
John Murray, por sua vez, afirmou que “a de si mesma não pode dar fruto, se não es­
união com Cristo é a verdade central de toda a tiver na videira, assim também vós, se não
doutrina da salvação” (M u r r a y , 1955, p. 170). estiverdes em mim. E u sou a videira, vós,
Seguindo a mesma linha de pensamento, as varas; quem está em mim, e eu nele, este
Calvino [em As Institutas] explicou a ques­ dá muito fruto, p orque sem m im nada po-
tão dizendo que somente essa união garante dereis fazer.
a veracidade do título de Salvador atribuído João 15.4,5
a Jesus.
A. W. Pink, comentarista que talvez seja o Em outra ocasião, Jesus se comparou a um
mais enfático de todos, declarou que a união pão que deve ser comido e à água da vida, que
espiritual é a questão mais importante, pro­ deve ser bebida:
funda e abençoada de todas as contidas nas
Sagradas Escrituras, embora, infelizmente, E Jesus lhes disse: E u sou o pão da vida;
seja a mais negligenciada (Pink, 1971, p. 7). aquele que vem a m im não terá fo m e; e
N a realidade, a própria expressão união quem crê em mim nunca terá sede.
espiritual é desconhecida por muitos cristãos. João 6.35
Quando empregada, seu significado muda
tanto que esta acaba reduzindo-se a um frag­ Jesus respondeu e disse-lhe: Se tu conhe-
mento da verdade que representa. ceras o dom de D eus e quem é o que te
Esse tema é, sem dúvida, indispensável diz: D á -m e de beber, tu lhe pedirias, e ele
para a compreensão da tarefa do Espírito te daria água viva. Disse-lhe a m ulher:
Senhor, tu não tens com que a tirar, e o po­ O apóstolo em questão ensinou que, em
ço é fu n do ; onde, pois, tens a água vivai Es Cristo, fomos eleitos antes da fundação do
tu maior do que Jacó, o nosso pai, que nos mundo (E f 1.4); fomos, também, chamados
deu o poço, bebendo ele próprio dele, e os (1 C o 7.22) e vivificados por Ele (Ef 2.5); jus­
seus filhos, e o seu gado ? Jesus respondeu tificados (G1 2.17) e santificados nele (1 C o
e disse-lhe: Q ualquer que b eb er desta 1.2); criados nele para as boas obras (Ef 2.10) e
água tornará a ter sede, mas aquele que enriquecidos nele, em toda a palavra e em todo
b eb er da água que eu lhe d er nunca terá o conhecimento (1 C o 1.5), bem como ressus­
sede, p orque a água que eu lhe d er se fará citados com Ele na Sua ressurreição (Rm 6.5).
nele uma fon te de água a jorrar para a Paulo sustentou ainda que, em Cristo,
vida eterna. encontram os redenção (Rm 3.24), vida eter­
João 4.10-14 na (Rm 6.23), justiça (1 C o 1.30), sabedoria
(1 C o 4.10), liberdade da Lei (G1 2.4) e todas
O mesmo está implícito no fato de que, ao as bênçãos espirituais (Ef 1.3). Baseando-se
recebermos ou rejeitarmos os seguidores de nisso, ele testemunhou o seguinte:
Cristo, estamos, igualmente, recebendo ou
rejeitando a Jesus: Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não
mais eu, mas Cristo vive em m im; e a vida
Q uem vos ouve a vós a mim m e ouve; e que agora vivo na carne vivo-a na f é do
quem vos rejeita a vós a m im m e rejeita; e Filho de Deus, o qual m e amou e se entre­
quem a mim m e rejeita rejeita aquele que gou a si mesmo p or mim.
me enviou. Gálatas 2.20
Lucas 10.16
Diante de tudo o que foi exposto, é possí­
N a oração de Jesus registrada em João 17, vel afirmar que a união com Cristo é um con­
essa união foi discutida explicitamente: ceito muito amplo, responsável por tratar não
somente de nossa experiência com Jesus no
Eu não rogo somente por estes, mas tam­ presente, mas também no passado e no futuro.
bém p or aqueles que, pela sua palavra, hão Em primeiro lugar, devemos considerar
de crer em m im; para que todos sejam um, que a fonte da salvação tem sua origem na
como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti; eleição realizada por Deus Pai, antes da fun­
que também eles sejam um em nós, para dação do mundo, por meio de Cristo:
que o m undo creia que tu m e enviaste.
[...] E u neles, e tu em mim, para que eles Bendito o D eus e Pai de nosso Senhor Jesus
sejam perfeitos em unidade, e para que o Cristo, o qual nos abençoou com todas as
m undo conheça que tu m e enviaste a mim bênçãos espirituais nos lugares celestiais
e que tens amado a eles como m e tens em Cristo, como também nos elegeu nele
amado a mim. antes da fundação do mundo, para que
João 17.20,21,23 fôssemos santos e irrepreensíveis diante
dele em caridade.
N os escritos de Paulo, essa doutrina foi Efésios 1.3,4
desenvolvida e enfatizada. Ele usou a expres­
são em Cristo e seus equivalentes 164 vezes Mesmo que não compreendamos o signi­
em suas epístolas. ficado dessa eleição divina em sua totalidade,
é possível entender que os propósitos do Se­ Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtu­
nhor para nossa vida envolvem a salvação, a de do Altíssimo te cobrirá com a sua som­
qual foi planejada desde o princípio. bra; pelo que também o Santo, que de ti há
Donald G. Barnhouse afirmou que a pri­ de nascer, será chamado Filho de Deus.
meira obra do Espírito Santo em nosso favor Lucas 1.35
foi eleger-nos membros do Corpo de Cristo
(B a r n h o u s e , 1958, p. 35). N ão nos tornamos seres divinos, como
Em Seus decretos eternos, Deus decidiu algumas religiões orientais creem, mas o E s­
que, dentre a multidão de filhos de Adão, pírito Santo passa a habitar em nós, para que
muitos se tornariam Seus filhos, os quais vi­ possamos ser chamados filhos e filhas de Deus.
riam a ter natureza divina, sendo feitos à ima­ Por termos nos identificado com Jesus no mo­
gem do Senhor Jesus Cristo. Estes, mediante mento de Sua morte na cruz, a redenção e a
a plenitude do Espírito que preenche tudo em remissão do pecado nos foram asseguradas.
todos, iriam tornar-se, por meio do novo nas­ Com o Paulo afirmou:
cimento, família de Deus e membros do C or­
po de Cristo. Ou não sabeis que todos quantos fomos
Em segundo lugar, no presente, estamos batizados em Jesus Cristo fom os batizados
unidos com Jesus em nosso novo nascimen­ na sua morte f
to. Ele falou sobre isso com N icodem os, di­ Romanos 6.3
zendo:
Em quem temos a redenção pelo seu sangue.
N a verdade, na verdade te digo que aque­ Efésios 1.7a
le que não nascer da água e do Espírito não
pode entrar no Reino de Deus. Quando Jesus foi crucificado, todos os
João 3.5. que, pela fé, uniram-se espiritualmente a Ele
também o foram. O Pai permitiu que o Filho
P or essa razão, Paulo disse: Assim que, se morresse em nosso lugar. Se somos um com
alguém está em Cristo, nova criatura é (2 C o Cristo, devemos identificar-nos com Ele em
5.17a). Sua morte, a fim de que, por meio de Seu sa­
A vinda de Jesus ao mundo aponta para o crifício, possamos ser libertos da escravidão
nosso novo nascimento. Quando Maria en­ do pecado.
gravidou, a vida imaculada e santa do Deus H á um hino, composto por H enry G.
Filho foi colocada em seu corpo material, Spafford, que expressa bem essa questão:
sujeito à corrupção pelo pecado. Assim, du­
rante a gestação, podemos dizer que a cor­ Meu pecado, oh, que glorioso pensamento!
ruptibilidade humana foi revestida da santi­ Meu pecado, não em parte, mas por completo
dade divina de Jesus, coexistindo no interior Foi pregado na cruz e não está mais comigo
da virgem. Glorie a Deus, Glorie a Deus, ó, minh’alma!
De forma semelhante, quando o Espírito
Santo faz morada em nosso coração, experi­ A união espiritual com Cristo nos garante
mentamos a vida divina em nós. Podemos até que somos um com Ele não só em Sua morte,
apresentar a Deus o mesmo questionamento mas também em Sua vida.
de Maria: Como se fará isso (L c 1.34)? Mas a N o sexto capítulo de Romanos, Paulo de­
resposta está nas palavras do anjo: clarou:

SSó'
D e sorte que fom os sepultados com ele pelo iguais a Ele. Essa união é a garantia da nossa
batismo na morte; para que, como Cristo salvação, devendo, portanto, ser eterna, para
ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, que sempre estejamos com Jesus (1 Jo 3.2).
assim andemos nós também em novidade Segundo Murray:
de vida. Porque, se fom os plantados junta­
m ente com ele na semelhança da sua mor­ A união com Cristo tem origem na eleição do
te, também o seremos na da sua ressurrei­ Deus Pai antes da fundação do mundo e tem
ção; sabendo isto: que o nosso velho sua fruição na glorificação dos filhos do Altís­
hom em fo i com ele crucificado, para que o simo. A perspectiva do povo de Deus não se
corpo do pecado seja desfeito, a fim de que limita a tempo e espaço. Seu limite é a eterni­
não sirvamos mais ao pecado. Porque dade. Ela tem dois focos: o amor do Deus Pai
aquele que está morto está justificado do que o levou a eleger-nos e a glorificação com
pecado. Ora, se já morremos com Cristo, Cristo na manifestação de Sua glória. O pri­
cremos que também com ele viveremos; meiro não tem princípio e o segundo não tem
sabendo que, havendo Cristo ressuscitado fim. ( M u r r a y , 1955, p. 164)
dos mortos, já não morre; a morte não
mais terá domínio sobre ele. Pois, quanto a Sem Cristo, encontramo-nos em um esta­
ter morrido, de uma vez m orreu para o do de profundo caos. Por outro lado, com Ele
pecado; mas, quanto a viver, vive para tudo é diferente, visto que Deus transforma a
Deus. Assim tam bém vós considerai-vos calamidade em paz e alegria incomparáveis.
como mortos para o pecado, mas vivos pa­
ra Deus, em Cristo Jesus, nosso Senhor. M i s t é r i o s d a u n iã o c o m C r i s t o _________

Romanos 6.4-11 Neste momento, você pode estar pensan­


do: “Mas com o posso unir-me com Cristo?
P or meio da crucificação, o poder do pe­ Em que sentido devo morrer com Ele? Essas
cado foi quebrado e fomos libertos para obe­ afirmações teológicas são incompreensíveis
decer a Deus e crescer em santidade. Nele te­ para mim”.
mos assegurada nossa ressurreição final e Esses são questionamentos válidos, pois
nossa glorificação: não é fácil entender tais conceitos, mas isso
não nos exime do dever de buscar entendê-
Porque, se fom os plantados juntam ente -los, pois, como afirmou o filósofo e teólogo
com ele na semelhança da sua morte, tam­ Anselmo, conhecido na Idade Média por seus
bém o seremos na da sua ressurreição. famosos argumentos ontológicos acerca da
Romanos 6.5 existência de Deus, fides quaerens intellectum
[a fé deve buscar o entendimento].
E, se nós somos filhos, somos, logo, herdei­ Quando privilegiamos essa ideologia, des­
ros também, herdeiros de D eus e co-her- cobrimos que, na Bíblia, há muitas respostas
deiros de Cristo; se é certo que com ele para perguntas com o essas, especialmente por
padecemos, para que também com ele se­ meio de metáforas.
jamos glorificados.
Romanos 8.17 1. Tomemos, por exemplo, a metáfora ex­
pressa pela união matrimonial, registrada em
O fato de estarmos unidos com Cristo im­ Efésios 5. Após comparar Cristo ao noivo e a
plica que devemos esforçar-nos para sermos Igreja à noiva, Paulo concluiu: Grande é este
mistério; digo-o, porém , a respeito de Cristo e necessidade de unirmo-nos espiritualmente a
da igreja (Ef 5.32). Cristo para sermos salvos, pois, por meio
O que garante o sucesso de um casamen­ dessa união, reconhecemos que nosso Noivo
to? Obviamente, o amor e a harmonia da fiel pagou o preço pelos pecados dos quais
união de dois pensamentos, de duas almas e éramos devedores.
de duas vontades. C om o seres humanos, em­ O casamento também provoca mudanças
bora devêssemos, nem sempre priorizamos psicológicas e sociais. Maria sabe que agora é
esse tipo de união em nossa relação conjugal. uma mulher casada, precisando, portanto,
Entretanto, esse é o modelo ideal que aprender a ver-se e a agir como tal. Ela reco­
aponta para nosso relacionamento com Jesus, nhece que necessita adotar uma nova postura
graças ao qual se torna possível que obedeça­ com relação aos outros homens, e entende que
mos ao maior mandamento dele: Amarás o terá de acostumar-se, inclusive, à companhia
Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de de novos amigos, bem como terá de adaptar
toda a tua alma, e de todo o teu pensamento seus sonhos ao seu novo relacionamento. Da
(Mt 22.37). mesma forma, quando nos unimos com Cris­
Em bora nem sempre tenhamos sucesso no to, nossos velhos relacionamentos mudam, e
cumprimento desse princípio divino, este é o Ele se torna o centro de nossa vida e existência.
alvo para o qual o Espírito Santo nos conduz.
Contudo, esse conceito de união não se limita 2. A segunda metáfora de nossa união com
apenas ao contexto do casamento, podendo, Jesus é a do corpo. Em Efésios 1.22,23, lemos:
portanto, ser concebido também fora dele.
A singularidade pertinente ao caráter da E [o Deus Pai] sujeitou todas as coisas a
união matrimonial deve-se, sobretudo, ao no­ seus pés [de Cristo] e, sobre todas as coisas,
vo conjunto de relacionamentos que ele cria. o constituiu como cabeça da igreja, que é o
O casamento geralmente traz mudança ao no­ seu corpo, a plenitude daquele que cumpre
me da mulher [quando ela adota o sobrenome tudo em todos.
do marido]. Digamos que uma mulher se cha­
me Mary Tower. Após se casar com um ho­ Em Colossenses 1.18a, Paulo diz que Je ­
mem chamado Jim Schultz, ela deixa o cartório sus é a cabeça do corpo da igreja.
como M ary Tower Schultz ou simplesmente O desenvolvimento dessa ideia se encon­
Mary Schultz. Nesse caso, ela se torna um com tra em 1 Coríntios 12.12-27:
seu marido por meio do casamento. Da mesma
forma, quem se entrega a Cristo e identifica-se Porque, assim como o corpo é um e tem
com Ele em Sua morte [recebe a vida espiritual muitos membros, e todos os membros, sen­
que Ele dá] passa de pecador a justo [uma pes­ do muitos, são um só corpo, assim é Cristo
soa justificada por Cristo diante de Deus]. também. Pois todos nós fom os batizados
Essa transformação traz algumas mudan­ em um Espírito, form ando um corpo, qu er
ças legais. Se a Maria de nosso exemplo tives­ judeus, qu er gregos, qu er servos, qu er li­
se um bem antes do casamento, ela poderia vres, e todos temos bebido de um Espírito.
tê-lo vendido antes de casar-se, contando [...] Ora, vós sois o corpo de Cristo e seus
apenas com sua própria assinatura no docu­ membros em particular.
mento. Após o casamento, porém, ela não po­
de mais fazer isso, pois passa a estar ligada le­ Essa ilustração indica, em primeiro lugar,
galmente ao seu marido. Esse fato nos remete à que nossa união com Cristo implica nossa
união uns com os outros, como corpo espiri­ Traçando um paralelo com isso, Jesus afir­
tual. C om o lemos nos versículos anteriores, a mou:
união é imprescindível.
E m segundo lugar, a afirmação que aponta Todo aquele, pois, que escuta estas minhas
Jesus como Cabeça [do corpo místico que palavras e as pratica, assemelhá-lo-ei ao
compõe a Igreja] denota Seu senhorio. Todos hom em prudente, que edificou a sua casa
nós somos membros do Corpo de Cristo, sobre a rocha.
mas o corpo pertence a Ele, que, como Cabe­ Mateus 7.24
ça, é o único responsável por determinar o
funcionamento apropriado desse corpo. De acordo com a mesma linha de pensa­
E m terceiro lugar, essa ilustração mostra a mento, Paulo nos chamou de edifício de Deus:
união da Cabeça com o Corpo como uma
união viva e crescente, alcançada não por meio Porque nós somos cooperadores de Deus;
da afiliação a uma instituição religiosa, mesmo vós sois lavoura de D eus e edifício de Deus.
que esta seja uma igreja verdadeira, mas sim [...] Porque ninguém pode p ôr outro fu n ­
quando o próprio Jesus passa [por intermédio damento, além do que já está posto, o qual
do Espírito] a viver num indivíduo. é Jesus Cristo. E, se alguém sobre este fu n ­
A ilustração da videira e das varas (Jo damento form ar um edifício de ouro, pra­
15.1-17) demonstra que a união de alguém ta, pedras preciosas, madeira, feno, palha,
com Cristo tem um objetivo: a frutificação, a obra de cada um se manifestará; na ver­
por meio da qual podemos ser úteis a Deus dade, o Dia a declarará, porque pelo fogo
neste mundo. será descoberta; e o fogo provará qual seja
Atente para o fato de que essa frutificação a obra de cada um. Se a obra que alguém
é alcançada pelo poder de Jesus, e não por edificou nessa parte permanecer, esse rece­
qualquer esforço nosso, pois, como Ele disse: berá galardão. Se a obra de alguém se
Sem mim nada podereis fa z er (Jo 15.5). Além queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será
disso, devemos ter em mente que Cristo é salvo, todavia como pelo fogo.
quem nos poda, preparando-nos para Sua 1 Coríntios 3.9,11-15
obra, a fim de que sejamos frutíferos da forma
como Ele deseja. Em cada um desses casos, a ideia central é a
mesma: a importância de nossa permanência
3. A última metáfora referente a esse tema em Cristo, que, por ser o fundamento de tudo,
fala sobre um templo espiritual composto por é imutável. Tudo o que for edificado sobre Ele
muitas pedras, sendo Cristo o fundamento será permanente como Ele é. Sendo assim,
sobre o qual todas as demais estão edificadas: quem for de Jesus não perecerá, mas resistirá.

Edificados sobre o fundam ento dos apósto­ O b a t is m o c o m o E s p ír it o S a n t o ________

los e dos profetas, de que Jesus Cristo é a C om o se dá o batismo com o Espírito


principal pedra da esquina; no qual todo o Santo? Vimos que a união com Cristo, fonte
edifício, bem ajustado, cresce para templo permanente do poder divino nos cristãos, por
santo no Senhor, no qual também vós ju n ­ ser um relacionamento vivo, traz mudanças.
tamente sois edificados para morada de Mas como passamos da condenação para a
D eus no Espírito. salvação e, assim, tornamo-nos filhos e filhas
de Deus? Com o deixamos nossa condição de
seres espiritualmente mortos, sem poder ou A té que se derrame sobre nós o Espírito lá
força, para assumirmos o novo caráter de se­ do alto; então, o deserto se tornará em
res vivos e fortes? Com o nós, que viemos do campo fértil, e o campo fértil será reputado
pó da terra e tornaremos ao pó (Gn 3.19), po­ por um bosque.
deremos viver eternamente? A resposta é: por Isaías 32.15
meio do Espírito Santo, que, ao vir habitar em
nós e unir-nos a Cristo, faz com que a vida di­ Porque derramarei água sobre o sedento e
vina flua em nós para a vida eterna (Jo 4.14). rios, sobre a terra seca; derramarei o meu
É isso o que eu e a maioria dos calvinistas Espírito sobre a tua posteridade e a minha
entendemos por batismo com o Espírito Santo bênção, sobre os teus descendentes.
(Mt 3 .11)1. E , embora hoje em dia esse conceito Isaías 44.3
se refira a experiências ligadas ao dom de falar
em línguas, ao de profecias e outros, discutirei, E há de ser que, depois, derramarei o meu
em detalhes, esses dons - incluindo o de línguas Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e
- no quarto e último livro deste volume. vossas filhas profetizarão, os vossos velhos
O uso do termo batismo com o Espírito terão sonhos, os vossos jovens terão visões.
Santo é impreciso, não sendo considerado Joel 2.28
[pela teologia calvinista e as derivadas] uma
segunda obra da graça divina. Essa impreci­ O diferencial das passagens acima é sua
são no uso do termo, porém, não diminui a conexão com o ministério de Jesus. Logo, em
importância das obras da graça de Deus na determinados textos bíblicos, com o é o caso
vida dos cristãos, que, sem dúvida, devem es­ do terceiro capítulo de Mateus, há o registro
tar, constantemente, buscando as coisas refe­ de João Batista dizendo:
rentes ao Espírito:
E eu, em verdade, vos batizo com água, pa­
Digo, porém : A ndai em Espírito e não ra o arrependimento; mas aquele que vem
cumprireis a concupiscência da carne. após mim é mais poderoso do que eu; não
Gálatas 5.16 sou digno de levar as suas sandálias; ele vos
batizará com o Espírito Santo e com fogo.
E não vos embriagueis com vinho, em que Mateus 3.11
há contenda, mas enchei-vos do Espírito.
Efésios 5.18 Em outro momento, Jesus disse a Seus
discípulos que, no Dia de Pentecostes, eles
O batismo com o Espírito Santo é uma deveriam esperar pela vinda do Espírito San­
questão muito abrangente, que nos revela, to em Jerusalém:
entre outras coisas, a maneira pela qual o cris­
tão verdadeiro identifica-se com o membro Porque, na verdade, João batizou com
do Corpo de Cristo. Para melhor entender­ água, mas vós sereis batizados com o Espí­
mos isso, devemos examinar as passagens ne- rito Santo, não muito depois destes dias.
otestamentárias nas quais esse batismo ocor­ Atos 1.5
re. Algumas delas têm natureza profética, e
apontam para o derramamento do Espírito de N o texto original, em grego, Jesus foi cha­
Deus sobre Seu povo, de acordo com o Anti­ mado de Batista ou A quele que batiza, por
go Testamento: batizar com o Espírito Santo com o João
batizava com água. Observe a seguinte passa­ todos os cristãos. Ainda nesse mesmo texto
gem registrada em Atos: está escrito que todos nós fomos batizados [...]
e todos temos bebido de um Espírito, e isto, ao
E lem brei-m e do dito do Senhor, quando meu ver, significa que o batismo no Espírito
disse: João certamente batizou com água, Santo não é uma experiência secundária e es­
mas vós sereis batizados com o Espírito pecial reservada a poucos, mas sim aquela que
Santo. nos define como cristãos. É por meio deste, e
Atos 11.16 também da fé em Jesus, que o Espírito p ro­
move nossa identificação com Cristo e com
Essa referência é significativa por mostrar Seu C orpo espiritual, que é a Igreja, unindo-
que, para Deus, tanto judeus com o gentios -nos, assim, à família de Deus.
podiam ser batizados com o Espírito Santo. John R. W. Stott resumiu esse fato da se­
Em outras palavras, não deveria haver duas guinte forma:
classes de cristãos na Igreja, mas uma só.
Seguindo essa mesma linha de pensamen­ O dom ou o batismo do Espírito é uma das
to, podemos dizer que é em 1 Coríntios 12.13 bênçãos da nova aliança de caráter universal,
que encontramos a mais importante de todas ou seja, acessível a todos, visto que é a bênção
as referências acerca desse tema. Essa impor­ inicial dessa nova era. O Senhor Jesus, Media­
tância se deve à sua didática, visto que o cará­ dor dessa nova aliança, é responsável por conce­
ter informativo, e não descritivo, dessa passa­ der não somente as bênçãos referentes a ela, mas
gem acaba colaborando para que ela contenha também o perdão de pecados e o dom do Espí­
a doutrina que serve de base para o entendi­ rito a todos que se aliam a Ele. Além disso, o
mento de todas as demais: batismo com água seria um sinal externo do
perdão de pecados e do batismo com o Espírito.
Pois todos nós fom os batizados em um Es­ Enquanto o primeiro é considerado o rito inicial
pírito, form ando um corpo, qu er judeus, do cristianismo, o segundo é visto como a pri­
qu er gregos, qu er servos, qu er livres, e to­ meira experiência cristã. (Sto t t , 1964, p. 28)
dos temos bebido de um Espírito.
Dito isso, será que, com base no relato da
Primeiro, note com o a unidade entre os vinda do Espírito Santo no Dia de Pentecos-
cristãos é enfatizada aqui. A Igreja em Corin- tes, devemos considerar a busca pelo dom de
to havia permitido que seu anseio por diver­ falar em línguas, bem como por qualquer ou­
sos dons espirituais a dividisse. Paulo, porém, tro dom, essencial à vida cristã?
escreveu que, na verdade, em vez de separa­ Essa questão requer muita atenção. Se o
rem-se, eles deveriam unir-se. Seu principal batismo no Espírito Santo for, de fato, a p ri­
argumento é que todos haviam sido batizados meira experiência cristã, com o afirmou Stott,
por um mesmo Espírito, unindo-se a um só e se falar em línguas ou fazer uso de qualquer
Corpo, o de Cristo. Assim, essa passagem outro dom similar for algo necessário para
serve a todos os que erroneamente usam a provar a efetividade desse batismo, então se­
questão do batismo no Espírito Santo com o ria possível afirmar que quem nunca teve essa
intuito de dividir os cristãos, destruindo a co ­ experiência não foi verdadeiramente salvo?
munhão que entre eles deve haver. N ão. Poucos chegam a essa drástica conclu­
E m segundo lugar, é preciso atentar para o são, pois a maioria das pessoas crê que a sal­
fato de essa experiência estar disponível a vação depende apenas da fé de que o Senhor
Jesus Cristo é o Salvador, não sendo impres­ operadores de milagres? Têm todos o dom
cindível, portanto, a manifestação do dom de de curar? Falam todos diversas línguas?
línguas ou de qualquer outro semelhante a ele. Interpretam todos?
Por outro lado, embora não haja respaldo 1 Coríntios 12.29,30
bíblico para que o batismo com o Espírito
seja considerado uma segunda obra da graça Segui a caridade e procurai com zelo os
divina, não deixa de ter sentido relacioná-lo à dons espirituais, mas principalmente o de
experiência do Pentecostes. Se observarmos profetizar. Porque o que fala língua estra­
as passagens bíblicas que tratam explicita­ nha não fala aos homens, senão a Deus;
mente dos dons e do batismo, descobriremos porque ninguém o entende, e em espírito
que o exercício do dom de línguas não foi ti­ fala de mistérios. Mas o que profetiza fala
do como algo negativo, pelo contrário: aos homens para edificação, exortação e
consolação. O que fala língua estranha
Portanto, irmãos, procurai, com zelo, pro­ edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza
fetizar e não proibais falar línguas. edifica a igreja. E eu quero que todos vós
1 Coríntios 14.39 faleis línguas estranhas; mas muito mais
que profetizeis, porque o que profetiza é
Ora, há diversidade de dons, mas o Espíri­ maior do que o que fala línguas estranhas,
to é o mesmo. E há diversidade de ministé­ a não ser que também interprete, para que
rios, mas o Senhor é o mesmo. E há diver­ a igreja receba edificação.
sidade de operações, mas é o mesmo Deus 1 Coríntios 14.1-5
que opera tudo em todos. Mas a manifes­
tação do Espírito é dada a cada um para o Os vários dons citados na primeira carta
que fo r útil. Porque a um, pelo Espírito, é de Paulo aos coríntios dão a entender que o
dada a palavra da sabedoria; e a outro, dom de línguas - mencionado por último -
pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; tem, relativamente, menos importância que
e a outro, pelo mesmo Espírito, a fé ; e a os demais dons.
outro, pelo mesmo Espírito, os dons de Por que então Lucas teria enfatizado esse
curar; e a outro, a operação de maravilhas; dom em seu relato acerca do Pentecostes? Se­
e a outro, a profecia; e a outro, o dom de ria suficiente dizer que ele o fez apenas para
discernir os espíritos; e a outro, a variedade que se cumprisse a profecia em Joel 2.28 ?
de línguas; e a outro, a interpretação das Se buscarmos no Evangelho de Lucas um
línguas. Mas um só e o mesmo Espírito significado teológico para justificar a ênfase
opera todas essas coisas, repartindo parti­ dada pelo escritor ao dom de línguas, tendo
cularmente a cada um como quer. em vista que ele foi um historiador e cronista,
1 Coríntios 12.4-11 veremos que a maior ênfase foi no resultado
do Dia de Pentecostes: a proclamação do
Contudo, apesar de todos os cristãos te­ evangelho e a resposta a essa proclamação,
rem pelo menos um dom, nem por isso não que foi muito além da manifestação do dom
foram encorajados a buscar o dom de línguas de línguas2.
mais que os demais: Charles E . Hummel dedicou-se a tentar
preencher as lacunas entre as teologias pente-
Porventura, são todos apóstolos? São todos costais e as não pentecostais. Em um de seus
profetas? São todos doutores? São todos livros, ele negou a distinção que fiz entre as
passagens descritivas e as didáticas. Mesmo as­ Santo, a fim de que possa vivenciar essa experi­
sim, quando abordou a questão da ênfase teo­ ência da graça divina que se expressa no teste­
lógica de Lucas, focou não somente a experiên­ munho de Cristo.
cia do dom de línguas, mas a propagação do Contudo, não existe sequer um texto no
evangelho: “De acordo com a pregação de Lu­ N ovo Testamento obrigando os cristãos a fa­
cas, o batismo no Espírito para os discípulos de lar em línguas com o evidência do batismo
Jesus foi um fortalecimento para um testemu­ como o Espírito, haja vista que a salvação
nho profético” (H u m m e l , 1978, p. 182). operada por Cristo não depende da manifes­
A conclusão é que o batismo no Espírito tação de dom algum para ser validada. Entre­
Santo é algo que está disponível a todo cris­ tanto, o batismo no Espírito, bem como nos­
tão. Além de ser selado com o Espírito, o sa união com Cristo, são fontes básicas a
cristão deve também dar lugar ao Espírito partir das quais toda bênção espiritual flui.

N ota

1 O autor deste comentário, cuja linha é calvinista, defende a ideia de que o batismo com o Espírito Santo ocorre no
momento em que uma pessoa se converte e vai se deixando dominar por Ele, e não pela sua carnalidade. Essa ideia
não é contrária ao que é ensinado pelo pentecostalismo. A diferença reside no fato de que a interpretação pentecos-
tal identifica dois momentos na obra do Espírito: um inicial, quando o Espírito Santo passa a habitar no cristão e o
sela para a redenção; e um posterior, quando o Espírito reveste o cristão de poder e dons em prol da pregação do
evangelho e de um testemunho mais impactante e eficaz. As duas interpretações [a pentecostal e a calvinista] estão
corretas do ponto de vista bíblico, uma vez que ambas consideram a ação poderosa e regeneradora do Espírito, bem
como a capacitação para o ministério.
2 O dom de línguas, na verdade, possibilitou que os partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, e Ju -
déia, e Capadócia, e Ponto, e Ásia, e Frigia, e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos
(tanto judeus como prosélitos), e cretenses, e árabes, presentes em Jerusalém para a Festa do Pentecostes pudessem
ouvir em seu própio idioma sobre as grandezas de Deus (At 2.9-11).
Pa r t e

2
Como Deus salva os pecadores

Jesus respondeu e disse-lhe: Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de
novo não pode ver o Reino de Deus.
João 3.3

Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus. Não
vem das obras, para que ninguém seglorie.
Efésios 2.8,9

Mas, àquele que não pratica, porém crê naquele que Justifica o ímpio, a sua fé lhe é im­
putada como justiça.
Romanos 4.5

Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que
o gerou também ama ao que dele é nascido. Nisto conhecemos que amamos os filhos de
Deus: quando amamos a Deus eguardamos os seus mandamentos.
1 João 5.1,2

Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus, esses são filhos de Deus. Porque
não recebestes o espírito de escravidão, para, outra vez, estardes em temor, mas recebestes
o espírito de adoção de filhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.
Romanos 8.14,15

Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como eu
do mundo não sou. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.
O NOVO NASCIMENTO

nascimento de um bebê é algo tre­ O QUE SUCEDE À SALVAÇÃO?_________________


mendo, pois emociona o pai, a A regeneração é importante, mas não po­
mãe e até os médicos e as enfer­ de ser vista como um fim, e sim como um
meiras envolvidos no parto, visto meio de salvação.
que, apesar de acostumados, eles nunca deixam John M urray afirmou em um de seus li­
de maravilhar-se com esse milagre da vida. vros que, da mesma maneira que Deus fez a
N a maioria das vezes, quando pessoas fa­ terra cheia de coisas boas para satisfazer o ser
mosas têm filhos, a notícia é relatada nos jor­ humano, Ele nos abençoou com a salvação:
nais, nas revistas e na televisão. Entretanto,
nenhum desses casos pode comparar-se ao Essa superabundância se evidencia no eterno
nascimento sobrenatural do Filho de Deus. princípio de Deus a respeito da salvação. Ela
Em bora o mundo hodierno não tenha de­ aparece na conquista histórica da redenção hu­
monstrado interesse pelo evento, haja vista mana por meio da obra de Cristo, que foi úni­
que poucos se importaram com a chegada de ca, e também na aplicação contínua e progres­
C risto a terra, houve celebração dos anjos siva da redenção, até alcançar a consumação
no céu. na liberdade da glória dos filhos de Deus.
Da mesma forma, poucos valorizam hoje (M urra y , 1955, p. 79)
o chamado novo nascimento do ser humano,
que se dá após alguém reconhecer sua condi­ As palavras contínua e progressiva indi­
ção com o pecador, arrepender-se e aceitar a cam que o novo nascimento, apesar de fun­
Jesus como seu Senhor e Salvador, passando, damental, é apenas um dos passos de um
assim, a ser conhecido como nova criatura. processo de salvação que desemboca na eter­
N o entanto, Jesus assinalou que há alegria nidade.
diante dos anjos de D eus por um pecador que Apesar da conquista de nossa salvação pe­
se arrepende (Tc 15.10). la morte de Jesus ter sido única, sua aplicação
O novo nascimento é uma “ressurreição envolve uma série de atos chamados de ordo
espiritual”, a passagem de alguém que se en­ salutis ou passos da salvação [de Deus].
contrava m orto em delitos e pecados para Quais seriam esses passos? U m dos mais
uma nova e abundante vida. E quando wm fi­ óbvios é a escolha determinante de uma pes­
lho da ira se torna um filho do Pai celestial. soa por Deus realizada antes do novo nasci­
O termo teológico para esse novo nasci­ mento [a eleição], que pode ser lida em passa­
mento é regeneração. gens com o João 1.12,13, segundo a qual todos
aqueles que são feitos filhos de D eus [...] não a esses também justificou; e aos que justifi­
nasceram do sangue, nem da vontade da car­ cou, a esses também glorifcou.
ne, nem da vontade do varão, mas de Deus.
Em Tiago 1.18, essa ideia é ratificada: Se­ Nessa passagem, a onisciência e a presci-
gundo a sua vontade, ele [Deus] nos gerou ência de Deus respondem pela eleição/pre­
pela palavra da verdade, para que fôssemos destinação de alguém que é chamado e justifi­
como primícias das suas criaturas. cado por Cristo, sendo posteriormente glori-
H á também outros processos que envol­ ficado com o ápice da obra de redenção.
vem o novo nascimento. Em João 3.3b, le­ Tomando como base o ensino de Paulo,
mos: A quele que não nascer de novo não pode podemos dizer que a justificação pressupõe a
v er o Reino de Deus. Mais adiante, João 3.5 fé: Sendo, pois, justificados pela fé , temos paz
completou essa afirmação dizendo: A quele com D eus p or nosso Senhor Jesus Cristo (Rm
que não nascer da água e do Espírito não pode 5.1). Logo, é possível afirmar que a fé vem
entrar no Reino de Deus. antes da justificação, mas é acrescida depois
N ão podemos deixar de mencionar que o da regeneração. A santificação se sucede à
novo nascimento precede a entrada no Reino justificação e antecede a glorificação.
de Deus. Em 1 João 3.9, é dito: Q ualquer que Portanto, identificamos como elementos
é nascido de D eus não comete pecado; porque presentes no novo nascimento a onisciência de
a sua semente perm anece nele; e não pode p e­ Deus, a eleição/predestinação, Seu chamado a
car, porque é nascido de Deus. nós, a regeneração, a fé e o arrependimento, a
João não quis dizer, com isso, que somos justificação, a santificação e a glorificação.
perfeitos. Antes, sustentou que os cristãos Esses passos poderiam ser subdivididos e,
também pecam eventualmente. Se o negar­ até, combinados, sem alterar seu sentido ori­
mos, estaremos enganando-nos ou mentin­ ginal. Contudo, essa é a seqüência da salvação
do: Se dissermos qu e não temos pecado, en- apresentada na Bíblia, a qual nos ajuda a en­
ganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade tender o processo por meio do qual Deus nos
em nós (1 Jo 1.8). salva.
Dessa forma, João se referia à santificação, Antes de qualquer outra coisa está a eter­
que, sendo sucessora da regeneração, é o cres­ na soberania do Senhor, que lhe dá o direito
cimento progressivo em santidade de qual­ de livre escolha em todos os aspectos da vida
quer que tenha se tornado filho de Deus. [respeitando, é claro, o nosso livre-arbítrio].
Em Romanos 8.28-30, são mencionadas a Quanto à nossa experiência pessoal, o primei­
justificação e a glorificação no processo de ro passo é nossa regeneração espiritual.
salvação:
A in i c i a t i v a d i v i n a _________________________

E sabemos que todas as coisas contribuem O renascimento é uma metáfora do passo


juntam ente para o bem daqueles que inicial da salvação usada por Jesus para nos
amam a Deus, daqueles que são chamados mostrar a necessidade de um novo começo.
p or seu decreto. Porque os que dantes co­ Mas Ele não disse que precisamos renascer
nheceu, também os predestinou para se­ fisicamente, pois, como afirmou Nicodemos,
rem conformes à imagem de seu Filho, a isso não faria sentido:
fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos. E aos que predestinou, a Disse-lhe Nicodemos: Como pode um ho­
esses também chamou; e aos que chamou, m em nascer, sendo velho? Porventura,
pode tornar a entrar no ventre de sua mãe Foi para pessoas como essas, que se vanglo­
e nascer? [...] Nicodemos respondeu e dis­ riavam de suas origens, que Paulo escreveu
se-lhe: Como pode ser isso ? Filipenses 3.4-7:
João 3.4,9
Se algum outro cuida que pode confiar na
De fato, precisamos renascer espiritual­ carne, ainda mais eu: circuncidado ao oita­
mente para ter um novo começo, pois, com vo dia, da linhagem de Israel, da tribo de
nossos pecados, arruinamos o início que tive­ Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a
mos no Éden, com Adão. E essencial que lei, fu i fariseu, segundo o zelo, perseguidor
possamos dizer: As coisas velhas já passaram; da igreja; segundo a justiça que há na lei,
eis que tudo se fe z novo (2 C o 5.17). irrepreensível. Mas o que para mim era
A regeneração é obra de Deus, e não do ganho reputei-o perda por Cristo.
ser humano pecador. Assim com o um bebê
não pode nascer por vontade própria, visto Abraão recebera promessas de que Deus
que a concepção dele depende da fecundação estaria com ele e com seus descendentes,
de um óvulo por um espermatozoide, o re­ abençoando-os para sempre. Por conseguin­
nascimento espiritual se inicia pela vontade te, isso fez com que estes pensassem que sua
do nosso Pai celestial, fugindo, assim, de nos­ justificação estaria garantida somente com
sa alçada. base nessa herança genética e religiosa. Ante
N a primeira referência ao novo nascimen­ essa visão equivocada, Jesus explicou que
to no Evangelho de João podemos ler o se­ Deus está interessado em um relacionamento
guinte: espiritual, e, por causa da corrupção de suas
ações, aqueles que recusavam o Messias e
Mas a todos quantos o receberam deu-lhes mentiam acerca dele seriam considerados fi­
o poder de serem feitos filhos de Deus: aos lhos do maligno:
que crêem no seu nome, os quais não nasce­
ram do sangue, nem da vontade da carne, [Disse-lhes Jesus:] Vós tendes por pai ao
nem da vontade do varão, mas de Deus. diabo e quereis satisfazer os desejos de vos­
João 1.12,13 so pai; ele fo i homicida desde o princípio e
não se firm ou na verdade, porque não há
Nessa passagem, o apóstolo João ressal­ verdade nele; quando ele profere mentira,
tou que ninguém renasce espiritualmente por fala do que lhe é próprio, porque é menti­
vontade da carne, humana. Os que não nasce­ roso e pai da mentira.
ram do sangue, nem da vontade da carne, João 8.44
nem da vontade do varão, mas de Deus, são
os regenerados espiritualmente. Da mesma forma, muitos hoje se acham
H á quem considere aqueles que perten­ justos por terem nascido num lar ou país cris­
cem a uma linhagem de família rica como pes­ tãos. Todavia, a linhagem humana não garan­
soas de sangue nobre. Assim, no tempo de te a salvação de ninguém.
Jesus, milhares de judeus se consideravam A declaração de João de que o renasci­
justos perante Deus simplesmente porque mento não depende da vontade da carne (Jo
eram descendentes de Abraão: Somos descen­ 1.12,13) é mais difícil de interpretar. Agosti­
dência de Abraão, e nunca servimos a nin­ nho, assim como eu, compreendeu essa cita­
guém ; como dizes tu: Sereis livres? (Jo 8.33). ção da seguinte forma: a expressão não do
sangue seria uma referência ao nascimento do Altíssimo. Apesar de Deus não interferir
humano, sendo a frase não da vontade da, car­ em nosso livre-arbítrio no que se refere à de­
ne uma alusão à tarefa da mulher na reprodu­ cisão de crer em Jesus como nosso Salvador,
ção, enquanto a não da vontade do varão nos Ele gera em nós a fé para a salvação, visto que
remeteria à responsabilidade do homem nesse o próprio Senhor tomou a iniciativa de plan­
processo. tar Sua vida divina em nós.
Para Lutero, vontade da carne diz respeito
ao ato da adoção; para Frederick Godet, à ima­ O v e n t o e a á g u a ___________________________

ginação sexual; e para Calvino, à força de von­ A metáfora do novo nascimento também
tade. N o N ovo Testamento, a palavra carne se nos ajuda a entender o que acontece quando
refere ao nosso apetite natural, nossos desejos Deus toma a iniciativa da salvação.
sexuais e emocionais. Logo, aproximamo-nos Nicodemos foi a Cristo para tratar acerca
da forma como João articulou seu pensamento da realidade espiritual, mas Jesus respondeu
ao dizermos que ninguém pode tornar-se filho às indagações dele dizendo que ninguém po­
de Deus por meio de sentimentos ou emoções. de entender as coisas do Espírito sem nascer
H oje, muitos pensam que são cristãos de novo: N a verdade, na verdade te digo que
simplesmente porque se emocionam durante aquele que não nascer de novo não pode v er o
as reuniões na igreja ou porque, alguma vez, Reino de D eus (Jo 3.3).
já choraram após um culto evangélico. É cer­ A palavra traduzida como de novo é
to que a emoção pode acompanhar uma expe­ anõthen, que também significa do alto. O que
riência genuína de renascimento, mas este não Jesus queria que Nicodemos entendesse era
é produzido por aquela. que, para alcançar a compreensão das coisas
O terceiro term o, nem da vontade do de Deus, o líder religioso, primeiro, deveria
varão, é mais fácil de entender. Ninguém ser transformado pela graça:
pode tornar-se um filho de Deus por vonta­
de própria. Disse-lhe Nicodemos: Como pode um ho­
Nesta vida biológica, podemos interferir m em nascer, sendo velho? Porventura,
no crescimento de alguém, mas não podemos pode tornar a entrar no ventre de sua mãe
determinar o novo nascimento dessa maneira. e nascer? Jesus respondeu: N a verdade, na
E possível que alguém com poucos bens, verdade te digo que aquele que não nascer
poucos valores, pouca educação e poucos ta­ da água e do Espírito não pode entrar no
lentos, ao empenhar-se com dedicação, estu­ Reino de Deus. [ ...] O vento assopra onde
dando à noite e trabalhando em um emprego quer, e ouves a sua voz, mas não sabes
melhor, consiga até mesmo enriquecer um dia, donde vem , nem para onde vai; assim é
talvez entrando para a política para se tornar todo aquele que é nascido do Espírito.
um parlamentar e, quem sabe, até o próximo João 3.4,5,8
presidente. Sem dúvida, a história dessa pessoa
seria um exemplo de superação, de esforço e de Tendo identificado a fonte da regeneração
sorte. Mas nada a tornaria filho natural de pais espiritual, Jesus, então, falou sobre como ela
que não fossem os biológicos. ocorre. Mas o que significa nascer da água e do
D e modo semelhante, nada pode torná- Espírito ? E por que Jesus menciona o vento ?
-la um filho de Deus se o próprio Senhor Existem várias explicações para isso. Um a
não realizar esse novo nascimento. Somente delas sustenta que água representa o nasci­
pela graça divina podemos tornar-nos filhos mento físico, sob o argumento de que essa

SÓO
água mencionada estaria, de alguma forma, do alto, é difícil entender o sentido de João
relacionada ao líquido amniótico que protege 3.4-8 desta maneira, pois, em todo o N ovo
o bebê no útero da mãe. Essa teoria sustenta Testamento, a purificação e o poder do alto
também que a menção ao vento (spiritus) im­ aparecem como posteriores ao novo nasci­
plica uma referência ao Espírito Santo. mento, ao contrário do que acontece na pas­
De acordo com essa visão, Jesus quis dizer sagem em questão, na qual os termos água e
que a salvação de uma pessoa depende, pri­ vento são retratados como formas pelas quais
meiro, de seu nascimento físico e, depois, do este nascimento se dá. Além disso, nem a pu­
espiritual, o que é bastante lógico, visto que, rificação nem o poder têm relação com a me­
para nascer do Espírito e ser salva, é necessário táfora do nascimento.
que a pessoa esteja viva fisicamente. Contudo, Kenneth S. Wuest propôs uma quarta ex­
não parece ter sido este o argumento de Jesus. plicação para essa passagem, baseado no uso
Em primeiro lugar, o termo água não foi da água como referência ao Espírito Santo,
usado com esse sentido em nenhuma outra que, em geral, é bem comum no N ovo Testa­
parte da Bíblia, pois essa é uma visão moder­ mento (W u e s t , 1966, p. 55-57).
na acerca do assunto. Além disso, essa refe­ Em João 4, por exemplo, Jesus disse à mu­
rência à necessidade do nascimento físico pa­ lher de Samaria:
rece óbvia demais para ter sido feita por Jesus,
sendo difícil crer que Ele tenha desperdiçado A quele que b eber da água que eu lhe der
palavras dessa maneira. nunca terá sede, p orque a água que eu lhe
Em terceiro lugar, a palavra água não po­ der se fará nele uma fonte de água a jorrar
deria referir-se ao nascimento físico, pois, para a vida eterna.
como vimos em João 1.13, este não tem parte João 4.14
com a regeneração: Os quais não nasceram do
sangue, nem da vontade da carne, nem da Mais adiante, em João 7.37,38, a mensa­
vontade do varão, mas de Deus. gem de Jesus soa idêntica:
O utra interpretação dessa ideia seria que
essa água se trata da que é utilizada no batis­ E, no último dia, o grande dia da festa, J e ­
mo cristão, mas esse capítulo não trata de ba­ sus pôs-se em p é e clamou, dizendo: Se al­
tismo. N a verdade, é ensinado na Bíblia que guém tem sede, que venha a mim e beba.
ninguém pode ser salvo por meio de ritos re­ Q uem crê em mim, como diz a Escritura,
ligiosos (1 Sm 16.7; Rm 2.28,29; G1 2.15,16; rios de água viva correrão do seu ventre.
5.1-6). O batismo é, portanto, um importante
sinal de algo que já aconteceu, mas não um Ao que o apóstolo João acrescentou uma
meio pelo qual somos regenerados. explicação:
William Barclay, por sua vez, interpretou
os termos água e vento metaforicamente, E isso disse ele do Espírito, que haviam de
considerando a água um símbolo de purifica­ receber os que nele cressem; porque o Espí­
ção, e o vento, de poder, o que implica, então, rito Santo ainda não fora dado, p o r ainda
o fato de a pessoa dever ser purificada e cheia Jesus não ter sido glorifcado.
de poder ( B a r c l a y , 1956, p. 119). João 7.39
Apesar de os pecadores terem de purifi-
car-se de seus pecados e de, com o cristãos, Wuest também mencionou passagens no
sermos donos do privilégio de receber poder livro de Isaías que corroboram essa teoria:

Sâ/
[Disse Deus:] Porque derramarei água so­ da verdade, para que fôssemos como primícias
bre o sedento e rios, sobre a terra seca; der­ das suas criaturas.
ramarei o m eu Espírito sobre a tua posteri­ Quando analisamos as palavras de Cristo
dade e a minha bênção, sobre os teus a Nicodemos à luz dessas passagens, pode­
descendentes. mos ver Deus como Criador e Pai de Seus fi­
Isaías 44.3 lhos, e Sua Palavra como algo inspirado pelo
Espírito Santo, a qual funciona como meio
O vós todos os que tendes sede, vinde às pelo qual a nova vida espiritual pode ser pro­
águas, e vós que não tendes dinheiro, vin­ porcionada a nós.
de, comprai e comei; sim, vinde e comprai, Em outras palavras, quando, em João 3.5,
sem dinheiro e sem preço, vinho e leite. Jesus usou metaforicamente a água e o vento,
Isaías 55.1 o primeiro elemento estava relacionado à Pa­
lavra de Deus; o segundo, ao Espírito Santo.
E provável que ambas as passagens fos­ Jesus quis ensinar que, quando a Palavra é
sem do conhecimento de Nicodemos. Se es­ compartilhada, ensinada, pregada ou feita co ­
sa for a interpretação correta, da água e do nhecida de qualquer outra forma, o Espírito
Espírito serão termos redundantes, sendo o Santo a usa para trazer nova vida espiritual a
papel da conjunção aditiva e meramente en­ quem Deus estiver salvando. É por isso que
fático. C ontudo, embora a explicação de está escrito na Bíblia que aprouve a D eus sal­
Wuest seja boa, sempre esperei mais dessa var os crentes pela loucura da pregação (1 Co
passagem. 1.21; Rm 10.14,15).
Além de metáfora para o Espírito, a água é
também usada na Bíblia para se referir à Pala­ A c o n c e p ç ã o e s p i r i t u a l ___________________

vra de Deus. Em Efésios 5.26 está escrito que H á mais uma passagem bíblica que aborda
Cristo amou a Igreja e se deu por ela para a o novo nascimento de maneira mais clara:
santificar, purificando-a com a lavagem da
água, pela palavra. Sendo de novo gerados, não de semente
Em 1 João 5.8, o autor do quarto Evange­ corruptível, mas da incorruptível, pela pa­
lho disse que três são os que testificam na ter­ lavra de Deus, viva e que perm anece para
ra: o Espírito, e a água, e o sangue. Com o ele sempre.
começou a falar de algo que testifica o fato de 1 Pedro 1.23
a salvação estar em Cristo, o Espírito deve
referir-se ao testemunho divino no indivíduo; Nesse capítulo de 1 Pedro, o apóstolo afir­
o sangue, ao testemunho histórico da morte mou que só passamos a fazer parte da família
de Cristo; e a água, às Escrituras. de Deus por meio da morte de Cristo e da fé:
A mesma ideia está em João 15.3, onde
Jesus disse: Vós já estais limpos pela palavra Sabendo que não foi com coisas corruptí­
que vos tenho falado. veis, como prata ou ouro, que fostes resga­
Outra passagem bíblica importante é a tados da vossa vã maneira de viver que,
que, mesmo sem utilizar a palavra água meta­ p or tradição, recebestes dos vossos pais,
foricamente, cita a Palavra de Deus como o mas com o precioso sangue de Cristo, como
canal por meio do qual o novo nascimento de um cordeiro imaculado e incontamina-
acontece. Trata-se de Tiago 1.18: Segundo a do. [...] E por ele credes em Deus, que o
sua vontade, ele [Deus] nos gerou pela palavra ressuscitou dos mortos e lhe deu glória,
para que a vossa f é e esperança estivessem nós, visto que ela é dom de D eus (Ef 2.8).
em Deus. Depois, Ele manda a semente da Sua Palavra,
1 Pedro 1.18,19,21 que contém vida divina, para penetrar o
“óvulo da fé”. O resultado é a concepção da
A o afirmar que a Palavra de Deus exerce nova criatura, o ser regenerado.
uma ação fecundativa semelhante à do esper- Sendo assim, uma nova vida espiritual
matozoide, Pedro enfatizou que Deus é nos­ vem à existência, uma vida que tem sua ori­
so Pai. A Vulgata Latina deixa isso mais claro gem em Deus, sem nenhuma ligação com
que outras versões da Bíblia, pois a palavra nosso pecado. E por essa razão que agora po­
usada na passagem é sêmen. demos dizer: Se alguém está em Cristo, nova
Coloquemos os ensinos e as metáforas criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que
dessas passagens lado a lado. Deus primeiro tudo se fe z novo (2 C o 5.17).
planta em nosso coração o que podemos cha­ Jamais somos os mesmos depois que o E s­
mar de “óvulo da fé salvadora”, pois está es­ pírito Santo entra e implanta a vida de Deus
crito na Bíblia que nem mesmo a fé parte de em nós.
FÉ E ARREPENDIM ENTO

renascimento é a primeira forma Quando se trata de dinheiro, então, nem


pela qual a salvação de Deus nos se fala. N o mínimo, exigimos garantia. Isso
toca, mas, na matemática do Se­ acontece porque, apesar de cada parte envol­
nhor, a regeneração é inseparável vida querer acreditar na boa-fé do outro, to­
do que a sucede. Respeitando a seqüência es­ dos sabem que nem sempre as pessoas podem
tabelecida no capítulo anterior, estudaremos ser confiáveis, daí a necessidade de contratos
aqui sobre a fé e seu companheiro, o arrepen­ formais. É fácil, portanto, entender por que
dimento. há momentos em que titubeamos naquilo que
A fé é indispensável para que alcancemos afirmamos crer.
a salvação. Em Hebreus 11.6 está escrito que C om frequência, a fé é tida como algo
não é possível agradar a Deus sem ela. subjetivo. Essa é a fé religiosa, diferente da
Em Efésios 2.8,9, lemos: Pela graça sois verdade objetiva da revelação de Deus. Anos
salvos, p o r meio da f é ; e isso não vem de vós; é atrás, em uma longa discussão sobre religião,
dom de Deus. Não vem das obras, para que um jovem me disse que era cristão. Ao longo
ninguém se glorie. da conversa, descobri que ele não cria na ple­
Em João 3.16, que usou a forma verbal na divindade de Cristo, apenas sustentava que
crer, em vez de o substantivo fé , podemos ler Ele era filho de Deus da mesma forma como
algo parecido: Porque D eus amou o m undo todos nós somos. O rapaz não cria na ressur­
de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, reição, nem que Jesus havia morrido por nos­
para que todo aquele que nele crê não pereça, sos pecados e menos ainda que houvesse, no
mas tenha a vida eterna. N ovo Testamento, um relato preciso da vida
e do ministério de Cristo. Em outras palavras,
O QUE A FÉ NÃO É____________________________ ele não reconhecia Jesus como o Senhor de
Consideremos o que a fé não é. Existe mui­ sua vida.
ta confusão acerca desse tema simplesmente N o momento em que argumentei com es­
porque usamos a palavra f é de maneira equivo­ se jovem que todas as crenças que ele renega­
cada. Por exemplo, temos o costume de usar a va eram, na verdade, fundamentais para a de­
expressão agir de boa-fé, mas, no que tange às finição do cristianismo, ele disse que, mesmo
coisas mais importantes da vida, raramente assim, cria no fundo de seu coração que era
confiamos nas pessoas, fato que demonstramos cristão. Para ele, fé era sua forma de ver a vi­
ao exigir, diante de uma negociação, ações, con­ da, a qual estava profundamente ligada aos
tratos e outros tipos de garantia por escrito. seus sentimentos.
U m substituto bem comum para a fé é a intimamente ligada à fé que tem em seu em­
credulidade, a qual se define como a atitude prego e àquela que tem em Deus, sendo irre­
de alguém que aceita algo como verdadeiro, levantes, portanto, os objetos nos quais estas
mesmo não havendo provas, simplesmente são depositadas.
por desejar que esse algo seja real. Rumores John R. W. Stott explicou melhor o pro­
de curas milagrosas para doenças incuráveis, blema que essa visão equivocada pode causar:
às vezes, encorajam esse tipo de comporta­
mento. Entretanto, ao contrário do que mui­ Ele [Peale] recomenda em sua “fórmula de des­
tos creem, isso não condiz com a visão bíblica preocupação” que a primeira coisa que faça­
a respeito da fé. mos de manhã, ao acordar, seja dizer três vezes
O utro substituto é o otimismo, que con­ e em voz alta: “Eu creio”. Entretanto, não diz
siste em uma atitude mental positiva por meio em que exatamente devemos colocar, de forma
da qual a realização do que acreditamos tor­ tão confiante e insistente, a nossa fé. As últimas
na-se possível. U m exemplo disso são os re­ palavras de seu livro são simplesmente “creia e
presentantes de vendas que, por crerem com tenha sucesso”. Mas crer em que ou em quem?
tanta veemência que são bons em sua função, Segundo a opinião do Dr. Peale, fé é sinônimo
obtêm sucesso nela. de autoconfiança e de um otimismo sem fun­
N orm an Vincent Peale popularizou essa damento. ( S t o t t , 1972, p. 35,36)
ideia em um de seus livros que se tornou um
campeão de vendas: The Power o f Positive É claro que uma atitude mental positiva
Thinking [O poder do pensamento positivo]. tem seu valor, visto que pode ajudar-nos a vi­
Nele, o autor sugeriu que pegássemos algu­ ver melhor, mas esse não é o sentido bíblico
mas passagens bíblicas acerca da fé no N ovo da fé. Contra distorções assim devemos res­
Testamento e as memorizássemos, permitin­ ponder que a verdadeira fé não se baseia em
do que elas se enraizassem em nosso incons­ atitudes ou sentimentos pessoais, mas sim em
ciente e nos fizessem crer realmente em Deus Deus, que, sendo eterno e imutável, transmite-
e em nós mesmos. Se memorizarmos passa­ nos toda a confiança necessária para que nos­
gens como as citadas abaixo, poderemos rea­ sa fé se torne estável.
lizar o que antes pensávamos ser impossível:
FÉ: a e s c r i t u r a ______________________________

Se tu podes crer; tudo é possível ao que crê. Em Hebreus lemos que a f é é a certeza de
Marcos 9.23 coisas que se esperam, a convicção de fatos que
se não vêem (Hb 11.1 a r a ). Algumas pessoas
Se tiverdes f é como um grão de mostarda, sustentam que, embora ideal, essa definição
direis a este monte: Passa daqui para acolá de fé é intangível. N o entanto, na Bíblia é en­
— e há de passar; e nada vos será impossível. sinado o oposto.
Mateus 17.20b A o contrário do que sugerem algumas tra­
duções dos textos bíblicos, a palavra certeza
Peale concluiu dizendo o seguinte: “Você não substitui, nesse versículo, o termo evi­
irá até onde sua fé em si mesmo, em seu em­ dência. O valor que aporta, nesse caso, asse­
prego e em Deus permitirem, e esse será seu melha-se, de certa forma, ao da escritura de
limite” (P e a l e , 1952, p. 99). uma propriedade.
Aparentemente, segundo o ponto de vista Apesar de nenhum de nós já ter tomado
do autor, a fé que ele tem em si mesmo estaria posse da herança que nos foi dada por meio

Sóó
de Cristo, a fé é a escritura que nos garante Igualmente, sempre que compramos um
que a receberemos, visto que é a prova das ingresso para assistir a um evento esportivo,
coisas que ainda não se veem plenamente. temos fé que o evento acontecerá conforme
Se essa fosse uma escritura assinada por anunciado e que o ingresso nos garantirá a
seres humanos, ainda teríamos dúvidas acerca entrada no mesmo.
da mesma, mas, como se trata de algo que Em outras palavras, João quis dizer que,
vem de Deus, podemos confiar que Ele cum­ se podemos confiar em seres humanos, mes­
prirá Sua Palavra, pois o Senhor está acima de mo sabendo que todos são falhos, muito mais
qualquer suspeita. podemos confiar em Deus!
Servimos ao Deus da verdade. Logo, tudo
o que Ele declara é digno de confiança. Ele é A c i ê n c i a d a f é ______________________________

infalível, e, por isso, podemos confiar nele Calvino afirmou em As Institutas que a fé
sem pestanejar. Ele também é onipotente, e bíblica deve ser racional, e não irracional, e
nada pode frustrar o cumprimento de Sua que seu objeto deve ser Cristo. Disse ainda
vontade. Além disso, o Senhor é fiel: se Ele que esse racionalismo vem da Palavra de
promete algo, cumpre. Deus, sustentando que a fé deve envolver cer­
A coisa mais sensata que podemos fazer teza na Palavra:
na vida é obedecer à ordem que Deus nos deu
de crer em C risto, visto que Ele é o único Possuiremos uma definição correta de fé quan­
digno de nossa inteira confiança. Isso foi o do obtivermos certo conhecimento da bene­
que João quis dizer quando escreveu: Se re­ volência de Deus para conosco, fundamenta­
cebemos o testemunho dos homens, o teste­ do na verdade de Sua promessa em Cristo,
m unho de D eus é maior; porque o testemu­ revelada a nossa mente e selada em nosso co­
nho de D eus é este, que de seu Filho testificou ração por meio do Espírito Santo. ( C a l v i n o ,
(1 Jo 5.9). 1960, p. 551)
João comparou a confiança que deposita­
mos uns nos outros com a maneira como de­ Esse conhecimento, dado a nós pelo Espí­
vemos confiar em Deus. A verdade é que, rito Santo, envolve a identidade de Jesus (a
mesmo sabendo que não há sequer uma pes­ segunda pessoa da Trindade, nascido da vir­
soa totalmente confiável no mundo, confia­ gem Maria, feito homem, oferecido por nos­
mos nos outros todos os dias. sas transgressões e ressuscitado para nossa
Quando dirigimos sobre uma ponte, mes­ justificação), nossa identidade (pecadores que
mo não conhecendo ninguém que tenha tra­ precisam de um Salvador) e muito mais.
balhado na construção e na aprovação dela, Em João 16.8-11, Jesus declarou:
temos fé que a mesma se manterá firme, acre­
ditamos que o engenheiro que a projetou e a E, quando ele [o Espírito Santo] vier, con­
equipe que a ergueu fizeram um bom traba­ vencerá o mundo do pecado, e da justiça, e
lho e não duvidamos da precisão dos órgãos do juízo: do pecado, porque não crêem em
que garantem sua segurança. mim; da justiça, porque vou para m eu Pai,
D a mesma forma, quando pegamos um e não me vereis mais; e do juízo, porque já
ônibus, temos fé que ele nos levará em segu­ o príncipe deste mundo está julgado.
rança ao nosso destino, que o motorista é
qualificado para a função e que ele fará o iti­ O Espírito Santo convence o mundo do
nerário certo, sem desviar-se. pecado porque o mundo não crê em Jesus.

Sóf
Segundo Leon Morris, isso pode significar Ao responder a essa pergunta, Pedro ga­
que: nhou mais de três mil almas para Cristo. A
resposta dele foi excepcional, mas não por
Ele convence o mundo de suas ideias errôneas causa de seu brilhantismo ou de sua eloqüên­
acerca do pecado porque o mundo não crê; [...] cia. Se ele tivesse pregado esse sermão um dia
Ele convence o mundo de seu pecado porque, antes, nada teria acontecido, ninguém teria
sem essa convicção, não é possível ter fé; [...] crido e ele e os demais apóstolos teriam sido
ou Ele convence o mundo do pecado da incre­ motivo de piada.
dulidade. ( M o r r i s , 1971, p. 698) Contudo, o Espírito Santo veio no Pente­
costes e convenceu o povo de seu pecado. E
Qualquer uma dessas opções é plausível. por isso que eles compungiram-se em seu co­
Aliás, era costume de João buscar transmitir ração e perguntaram a Pedro e aos demais
mais de uma ideia em seus textos. Entretanto, apóstolos: Q ue faremos, varões irmãosf (At
se o tema dessa passagem for a convicção que 2.37). Com o a fé brotou em seu coração, o
visa à salvação, então a segunda interpretação arrependimento veio em seguida e, assim, as
seria a melhor, visto que o pecado coloca o pessoas quiseram ser libertas do pecado.
ego das pessoas no centro de sua vida, levan- N em todos creram que não podemos con­
do-as, assim, a desprezar a fé. Entender isso é vencer a nós mesmos ou aos outros do peca­
essencial para garantir que não percamos a do. Isso foi o tema central da controvérsia
salvação. entre Agostinho e Pelágio, e, mais tarde, entre
A terceira interpretação mostra o Espírito Armínio e os seguidores de Calvino.
Santo como um “prom otor” que atribui ao Embora Pelágio e Armínio não tenham
mundo o veredito de culpado, enquanto a negado que a salvação se dá pela graça divina,
segunda adiciona que Ele leva essa culpa à eles não acreditavam que tudo podia ser atri­
consciência humana para que nós, perturba­ buído a ela, ou seja, não podiam crer que cada
dos com o pecado, busquemos a libertação passo dado em direção a Deus dependesse,
do mesmo. primeiro, de que Ele nos convencesse de nos­
P or exemplo, no Dia de Pentecostes, os sos pecados e nos atraísse a si.
discípulos se juntaram para esperar a vinda do Pelágio disse que nossa vontade é livre e
Espírito Santo. Quando Ele veio, eles foram que sempre podemos, portanto, escolher ou
às ruas de Jerusalém e Pedro pregou que Sua rejeitar qualquer coisa. Assim, ele defendia
vinda havia sido o cumprimento da profecia que, embora o evangelho nos fosse oferecido
de Joel, cujo objetivo era chamar homens e pela graça de Deus, a maior responsável por
mulheres à salvação em Cristo. O apóstolo, nossa salvação ou condenação era nossa p ró­
então, pregou sobre Jesus, e concluiu seu ser­ pria vontade. C ontudo, Pelágio não enten­
mão dizendo: dia que, sem o Espírito Santo, tornava-se
impossível para o ser humano compreender
Saiba, pois, com certeza} toda a casa de Is­ o evangelho, reconhecer seus pecados e arre­
rael que a esse Jesus, a quem vós crucificas- pender-se deles.
tes, D eus o fe z Senhor e Cristo. Ouvindo Depois que Jesus subiu para junto do Pai
eles isto, compungiram-se em seu coração e (Jo 16.10), o Espírito Santo foi incumbido de
perguntaram a Pedro e aos demais apósto­ convencer as pessoas da justiça. Em outras
los: Q ue faremos, varões irmãos ? palavras, Ele assumiu a tarefa de revelar ao
Atos 2.36,37 homem em quem [Cristo] a justiça divina
pode ser encontrada, visto que a justiça huma­ Resta entornar dentro do coração o que a men­
na não é suficiente para garantir a nossa salva­ te absorveu, pois a Palavra de Deus não é rece­
ção. Com o sabemos, somos salvos por Cristo, bida pela fé quando ela fica apenas na mente.
que já não está entre nós, mas à direita do Pai. Somente quando se enraíza no fundo do cora­
Por fim, o Espírito nos convence do juízo, ção é que ela se torna uma defesa invencível para
visto que quem governa este mundo já está suportar e eliminar toda e qualquer tentação.
condenado (Jo 12.31), fato comprovado no [...] Da mesma forma, o Espírito sela em nosso
julgamento de Satanás por meio do poder do coração as promessas que já estão em nossa men­
sacrifício de Jesus na cruz. te e atua como uma garantia que as confirma e
Ninguém quer crer no juízo, pois é mais estabelece-as. ( C a l v in o , 1960, p. 583-584)
conveniente pensar que podemos fazer o que
bem entendermos sem enfrentarmos as conse­ Em outro trecho dessa obra, ele ressaltou
qüências de nossas decisões. O que nos enco­ que a fé está intimamente ligada à devoção.
raja a pensar assim é o fato de que, na maioria Por fim, a fé é também confiança, com ­
das vezes, Deus não nos julga imediatamente promisso. Deixamos de confiar em nós mes­
após nossas ações, o que nos dá a falsa impres­ mos para passar a confiar em Deus completa­
são de que o mal fica sempre impune. mente. Percebemos o valor e o amor infinito
Cultivar esse tipo de pensamento é, sem de Cristo, que se deu para nos salvar, e com-
dúvida, um equívoco. Deus evita julgar os prometemo-nos com Ele.
pecadores de maneira imediata porque é mi­ O casamento ilustra bem esse princípio,
sericordioso, mas isso não será assim por toda visto que nele culmina um processo de
a eternidade. O julgamento do Senhor no que aprendizado, de sensibilidade e de com pro­
se refere a Satanás é prova disso. metimento.
Pedro defendeu o mesmo ponto. Após Dentro dessa analogia, podemos compa­
mostrar que Deus julgou certos anjos, bem rar as primeiras fases de um namoro ao primei­
como o mundo nos tempos de N oé e as cida­ ro elemento da fé: a identificação. Nessa fase, o
des de Sodoma e Gomorra, ele afirmou: As­ casal dá um passo fundamental: o de conhecer-
sim, sabe o Senhor livrar da tentação os piedo­ -se, a fim de descobrir se o outro se qualifica
sos e reservar os injustos para o Dia de Juízo, como um bom cônjuge. Assim, por exemplo,
para serem castigados (2 Pe 2.9). se um dos dois descobrir que o outro não é dig­
no de confiança, haverá problema mais tarde.
O AMOR E O COMPROMETIMENTO__________ A segunda fase, por sua vez, é comparada
Sabemos o quanto é importante buscar ao segundo elemento da fé: a emoção, que
entender o cristianismo de forma racional, corresponde à paixão, sendo também funda­
mas isso não basta, pois o inimigo, bem mais mental. E por causa dessa emoção que um
ortodoxo do que nós, também sabe disso. L o ­ homem e uma mulher dizem sim um ao ou­
go, é necessário que a fé racional seja balance­ tro, prometendo conviver e amar-se em qual­
ada com um pouco de emoção, como a des­ quer circunstância. Da mesma forma, com-
crita por John Wesley em Aldersgate, quando prometemo-nos com Cristo, tanto nesta vida
disse que seu coração havia sido estranha­ como por toda a eternidade.
m ente acalentado.
Ainda tratando do mesmo tema, Calvino A f é d e A b r a ã o ____________________________

enfatizou a importância da influência das A fé não para aqui. Com o resultado do


emoções, além do intelecto: novo nascimento, ela não desaparece, mas se
faz presente ao longo da vida inteira, fortale­ dando glória a Deus; e estando certíssimo
cendo-se e revelando cada vez mais a nature­ de que o que ele tinha prometido também
za de seu objeto. era poderoso para o fazer.
Quando o Senhor ordenou que Abraão Romanos 4.20,21
deixasse sua parentela e fosse para uma terra
que lhe seria dada por herança, ele obedeceu, Ou seja, a fé de Abraão venceu a dúvida em
[...] e saiu, sem saber para onde ia (Hb 11.8). meio a todo o sofrimento emocional e à aparen­
Isto é fé: nada mais que a crença no poder de te contradição ante a tudo o que se cria antes:
Deus de cumprir o que lhe prometera.
Contudo, também podemos ler em H e­ Pela fé , ofereceu Abraão a Isaque, quando
breus: Pela fé , habitou na terra da promessa, fo i provado, sim, aquele que recebera as
como em terra alheia, morando em cabanas promessas ofereceu o seu unigênito. Sendo-
com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mes­ -Ihe dito: Em Isaque será chamada a tua
ma promessa (Hb 11.9). A fé de Abraão foi descendência, considerou que D eus era
maior aqui, pois ele confiou em Deus apesar poderoso para até dos mortos o ressuscitar.
da fome, do perigo e da demora do cumpri­ E daí também, em figura, ele o recobrou.
mento da promessa. Hebreus 11.17-19
Mais adiante, lemos sobre a imensa fé por
meio da qual Sara e Abraão puderam gerar C om o vimos, não havia limites para a fé
um filho, apesar da infertilidade e da idade já de Abraão, visto que ele creu que Deus podia,
avançada, fato que colaborou para que o até mesmo, ressuscitar seu filho.
Deus da promessa ficasse conhecido também Da mesma maneira, a fé cresce em nós.
como o Deus de milagres. Em referência a Você pode ter pouca ou muita fé, mas o im­
essa fé, Paulo escreveu: portante é confiar em Deus e em Cristo. O
Senhor não falha. Quanto mais você o conhe­
E não duvidou da promessa de Deus por ce, mais sua fé é fortalecida, assim como foi
incredulidade, mas fo i fortificado na fé, com a de Abraão.
J u s t if ic a ç ã o p e l a f é : a e s s ê n c ia d a salvação

'ãrtinho Lutero, que, devido às resposta do Senhor para a mais básica de to ­


suas considerações acerca da jus­ das as perguntas referentes à religião: como
tificação, deu início à Reforma pode uma pessoa justificar-se diante de Deus?
Protestante no século 16, escre­ Segundo a Bíblia, não podemos justificar a
veu o seguinte: nós mesmos. Esta é a doutrina do pecado.
Rebelamo-nos contra Deus e, se estamos
Quando nosso conhecimento sobre a justifica­ contra Ele, não há justificação para nós. So­
ção foi questionado, tudo o mais o foi também. mos todos transgressores e destituídos [esta­
[...] A justificação é a essência que dá origem a mos] da glória de D eus (Rm 3.23).
todas as outras doutrinas. Ela gera, nutre, edi- De acordo com a doutrina da justificação,
fica, preserva e defende a Igreja de Deus e, sem somente por intermédio da obra de Cristo,
ela, a Igreja do Senhor não pode existir. [...] Ela recebida pela fé, é possível que nos justifique­
está acima de qualquer outra doutrina. (P la ss, mos diante de Deus:
1959, p. 702-4, 715)
A justiça de D eus pela f é em Jesus Cristo
João Calvino, que seguiu Lutero no início para todos e sobre todos os que crêem ; [...]
do desenvolvimento da Reforma, defendia o sendo justificados gratuitam ente pela sua
mesmo que ele, referindo-se à justificação co ­ graça, pela redenção que há em Cristo
mo a essência da religião. Jesus.
Thomas Watson, por sua vez, fez a seguin­ Romanos 3.22-24
te observação:
Concluímos, pois, que o hom em é justifica­
A justificação é a essência e o pilar do cristia­ do pela fé , sem as obras da lei.
nismo, e os erros cometidos no que tange a esse Romanos 3.28
tema são muito perigosos. É como um defeito
em uma fundação. A justificação de Cristo é a Mas, àquele que não pratica, porém crê
fonte de água viva. Deixar o veneno das falsas naquele que justifica o ímpio, a sua f é lhe é
doutrinas contaminar essa fonte é uma atitude imputada como justiça.
condenável. (W a tso n , 1970, p. 226) Romanos 4.5

Essas declarações não são exageradas, mas C om o podemos ver, a justificação é obra
sim realistas, pois a justificação pela fé é a divina. Sabendo disso, Paulo afirmou: E Deus
quem os justifica. Q uem os condenará? (Rm mais santos. Entretanto, a justificação não
8.33b,34a). tem relação direta com a transformação de
caráter. O fato de um juiz absolver alguém
O VEREDITO ACERCA DO QUE D E U S FEZ não significa que este seja inocente. N a verda­
Dois pontos merecem destaque: o primeiro de, a opinião do juiz não implica nenhuma
é que, de acordo com a citação de Romanos, é mudança no réu, visto que sua declaração
Deus que nos justifica, e não nós mesmos. acerca da inocência do mesmo se refere ape­
Acerca desse tema, John Murray declarou: nas ao seu ponto de vista pessoal no que tange
à acusação que foi feita, e não ao caráter do
A justificação não é uma desculpa para os erros acusado em si.
humanos, nem um recurso autodefensivo. Se­ Assim, embora haja controvérsias quanto
quer é a confissão ou o sentimento que a confis­ ao uso do termo justificação com conotação
são traz. A justificação não é um exercício reli­ legal nas Escrituras, encontramos muitas ra­
gioso em que nos envolvemos, por melhor ou zões para entendê-lo dessa maneira:
mais nobre que este seja, e, se quisermos enten-
dê-la e apropriar-nos de sua graça, devemos vol­ 1 .0 Antigo Testamento se refere ao Senhor
tar nosso pensamento à obra de Deus, que busca como o Deus da Lei. De acordo com a mentali­
justificar o ímpio. (M u r r a y , 1955, p. 118) dade hebraica, esse título o distingue dos deuses
das nações vizinhas. Além disso, segundo essa
A imagem do triângulo da salvação apre­ visão, Ele é também o Deus do juízo, pojs em
sentada em uma discussão sobre expiação/ um universo governado por um Senhor sobera­
propiciação e redenção no Livro II desta obra no e moral o mal deve ser punido.
ajuda-nos a entender melhor esse princípio. Isso foi o que Abraão deu a entender
Expiação/propiciação, redenção e justifica­ quando o Senhor lhe falou acerca da destrui­
ção são palavras essenciais para a compreen­ ção que viria sobre Sodoma: Não faria justiça
são da morte de Cristo, e são elas que, ao co­ o Ju iz de toda a terra? (Gn 18.25b). Nesse
nectar Jesus, o Pai e os cristãos, formam o texto, no qual é retratado o início da história
triângulo anteriormente mencionado. de Israel, Deus é considerado um juiz. Em
Somos alvos da redenção e da justificação passagens posteriores, esse pensamento já se
e, portanto, não contribuímos em nada para mostra mais elaborado:
nossa própria salvação. Esta é dada a nós por
Cristo, por meio da realização de duas obras: O S E N H O R se levanta para pleitear e sai
a expiação/propiciação e a redenção. Deus, a julgar os povos. O S E N H O R vem em
por Sua vez, realiza a propiciação quando Je­ juízo contra os anciãos do seu povo e con­
sus aplaca Sua ira, iniciando, assim, a justifi­ tra os seus príncipes; é que fostes vós que
cação, por meio da qual os pecados dos ím­ consumistes esta vinha; o espólio do pobre
pios são perdoados. está em vossas casas.
O utro ponto que merece destaque é que a Isaías 3.13,14
justificação é apresentada a nós como um
pronunciamento legal, e não como algo que Mas o S E N H O R está assentado perpetua­
apenas nos tom a imediatamente mais santos. m ente; já preparou o seu tribunal para jul­
É claro que, quando Deus nos justifica e gar. Ele mesmo julgará o m undo com
realmente assume o controle de nossa vida, o justiça; julgará os povos com retidão.
processo natural é que nos tornemos cada vez Salmo 9.7,8
Com o podemos notar, a justificação está O apóstolo não quis dizer com isso que o
sempre ligada ao juízo: Senhor devia ser justificado, pois Ele é e
sempre será santo e justo. A intenção de
Não entres em juízo com o teu servo, por­ Paulo era ressaltar que, ao longo do nosso
que à tua vista não se achará justo nenhum processo de justificação, as palavras de Deus
vivente. são responsáveis por m ostrar-nos o quanto
Salmo 143.2 Ele é justo.
As passagens que traçam um paralelo com
Perto está o que m e justifica; quem conten­ essa são:
derá comigo ?
Isaías 50.8a Todo o povo que o ouviu e até os publica-
nos reconheceram a justiça de Deus, tendo
A mesma ideia aparece quando, em Deu- sido batizados com o batismo de João.
teronômio 25.1, é destacado o tema do juízo Lucas 7.29
humano:
Evidentem ente, grande é o mistério da
Q uando houver contenda entre alguns, e piedade: A quele que fo i manifestado na
vierem a juízo para que os juizes os jul­ carne fo i justificado em espírito, contem­
guem , ao justo justificarão e ao injusto con­ plado p or anjos, pregado entre os gentios,
denarão. crido no mundo, recebido na glória.
1 Timóteo 3.16
2. A justificação é contrastada com a con­
denação: 4. Da mesma maneira, existem trechos na
Bíblia que sustentam que algumas pessoas
O que justifica o ímpio e o que condena o acreditam ser capazes de justificar e salvar a si
justo abomináveis são para o S E N H O R , próprias. Entretanto, ao lermos essas passa­
tanto um como o outro. gens, percebemos que isso não é possível:
Provérbios 17.15
E disse-lhes: Vós sois os que vos justificais a
Tendo em vista que condenar alguém tam­ vós mesmos diante dos homens, mas Deus
bém não significa torná-lo ímpio, justificar uma conhece o vosso coração, porque o que en­
pessoa não pode significar que ela imediata­ tre os homens é elevado perante D eus é
mente se tornará justa. Ambos os termos se re­ abominação.
ferem a um decreto ou a uma declaração oficial. Lucas 16.15

3. O termo justificar é usado em diversas E eis que se levantou um certo doutor da


passagens bíblicas para se referir ao processo lei, tentando-o e dizendo: Mestre, que fa ­
de justificação. Por exemplo, em Romanos rei para herdar a vida eterna? E ele lhe
3.4, Paulo citou o Salmo 51.4, dizendo: disse: Q ue está escrito na lei? Como lês? E,
respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor,
Sempre seja D eus verdadeiro, e todo ho­ teu Deus, de todo o teu coração, e de toda
m em mentiroso, como está escrito: Para a tua alma, e de todas as tuas forças, e de
que sejas justificado em tuas palavras e todo o teu entendimento e ao teu próximo
venças quando fores julgado. como a ti mesmo. [...] Ele, porém, querendo
t
justificar-se a si mesmo, disse a Jesus: E j assim, a justiça de Cristo a nós. Logo, não
quem é o meu próximo? precisamos mais pagar por nossos pecados, a
Lucas 10.25-27,29 despeito de o salário do pecado ser a morte, o
dom gratuito de D eus é a vida eterna, por
Ambas as passagens tratam de juízo. N o Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6.23).
primeiro exemplo, embora os réus tenham Paulo desenvolveu esse pensamento em
tentado provar que eram justos, ficou claro Romanos 3.21-26:
que não o eram. Semelhantemente, no segun­
do exemplo, foi vã a tentativa do jovem de Mas, agora, se manifestou, sem a lei, a jus­
demonstrar que sua conduta correta era um tiça de Deus, tendo o testemunho da Lei e
indício de sua perfeição moral. dos Profetas, isto é, a justiça de D eus pela
H á outros textos que tratam do mesmo as­ f é em Jesus Cristo para todos e sobre todos
sunto, mas de maneira metafórica. De certa os que crêem; porque não há diferença.
forma, a ideia de juízo está sempre presente na Porque todos pecaram e destituídos estão
Bíblia. A respeito disso, Leon Morris afirmou: da glória de Deus, sendo justificados gra­
tuitamente pela sua graça, pela redenção
O caso em questão em nada se difere do que que há em Cristo Jesus, ao qual D eus pro­
acontece com os verbos julgar e absolver, que, pôs para propiciação pela f é no seu sangue,
embora sejam termos legais, podem ser usados para demonstrar a sua justiça pela remis­
fora do contexto jurídico sem sofrer alteração são dos pecados dantes cometidos, sob a
de sentido. Esse também é o caso do vocábulo paciência de Deus; para demonstração da
dikaioõ [justificar], que, mesmo sendo um ver­ sua justiça neste tempo presente, para que
bo essencialmente forense, é usado na Bíblia ele seja justo e justificador daquele que
com o sentido de sentença de absolvição. tem f é em Jesus.
( M o r r i s , 1956, p . 260)
H á alguns anos, um grupo de ateístas dis­
A JUSTIFICAÇÃO DE D EU S____________________ tribuiu um folheto contendo meia dúzia de
O juízo divino é feito sempre em nome da exemplos de pecados cometidos por persona­
verdade e da equidade. Sendo ímpios, como o gens do Antigo Testamento.
Senhor pode justificar-nos? Se fôssemos de­ U m deles foi Abraão que, apesar de ter se
clarar inocente um culpado, nosso ato seria disposto a sacrificar a honra de sua esposa pa­
uma afronta tanto a Deus como ao homem. ra salvar sua própria vida, foi chamado, por
N o entanto, isso é o que Deus faz. Com o Ele Deus, de amigo (2 C r 20.7; Is 41.8).
pode fazer isso? Jacó também foi usado como exemplo pa­
A doutrina cristã prega a justificação pela ra validar as dúvidas dos ateus em relação ao
fé. Com o vimos, justificar significa declarar caráter do Senhor. Eles não entendiam por
justo, mas não tornar justo, ou seja, a justifica­ que alguém que trapaceou e mentiu poderia
ção não necessariamente implica a santifica­ ser usado como referência para exemplificar a
ção imediata de alguém. Entretanto, quando fidelidade do Pai, fato comprovado pela rele­
Deus declara que o cristão é justo, Ele o justi­ vância dada a ele por meio da expressão Deus
fica não por causa de suas próprias obras, mas de Jacó (Êx 3.6,15,16; 4.5; Mt 22.32; Mc 12.26;
por meio do sacrifício de Jesus. L c 20.37; A t 3.13; 7.32).
O Pai aceitou o sacrifício de Seu Filho co­ Os mesmos questionamentos eram levan­
mo pagamento por nossas dívidas, imputando, tados com relação a Moisés, que cometeu um
assassinato, vivendo por um tempo como um Segundo o que está escrito em Romanos
fugitivo da lei egípcia, e Davi, que, apesar de 1.18-32, a primeira categoria é composta por
ter cometido adultério, seguido de assassina­ pessoas que chamamos de hedonistas:
to, foi chamado de homem segundo o cora­
ção de Deus (1 Sm 2.35; 13.14). Porque do céu se manifesta a ira de Deus
Assim, por meio desse material, o grande sobre toda impiedade e injustiça dos ho­
problema levantado pelos ateístas era o fato mens que detêm a verdade em injustiça;
de não entenderem que tipo de Deus aceita­ porquanto o que de D eus se pode conhecer
ria ter Abraão com o amigo, ou ainda, que neles se manifesta, porque D eus lho mani­
tipo de Deus se agradaria de um homem co ­ festou. Porque as suas coisas invisíveis, des­
mo Davi? de a criação do mundo, tanto o seu eterno
N a verdade, esse folheto apontava fatos p od er como a sua divindade, se entendem
que o próprio Senhor já havia reconhecido. e claramente se vêem pelas coisas que estão
Ele, apesar de justo e santo, por séculos re­ criadas, para que eles fiquem inescusáveis;
cusou-se a condenar a humanidade, pas­ porquanto, tendo conhecido a Deus, não o
sando a justificar homens e mulheres com o glorificaram como Deus, nem lhe deram
esses. graças; antes, em seus discursos se desvane­
Paulo esclareceu, com precisão, essa situa­ ceram, e o seu coração insensato se obscu-
ção em Romanos: receu. Dizendo-se sábios, tornaram-se
loucos. E mudaram a glória do D eus incor­
Ao qual D eus propôs para propiciação pela ruptível em semelhança da imagem de
f é no seu sangue, para demonstrar a sua homem corruptível, e de aves, e de quadrú­
justiça pela remissão dos pecados dantes pedes, e de répteis. Pelo que também Deus
cometidos, sob a paciência de Deus. os entregou às concupiscências do seu cora­
Romanos 3.25 ção, à imundícia, para desonrarem o seu
corpo entre si; pois mudaram a verdade de
Isso torna o Senhor injusto? N ão, pois, D eus em mentira e honraram e serviram
por meio da morte de Cristo, o nome e os mais a criatura do que o Criador, que é
propósitos de Deus foram vindicados. Graças bendito eternamente. A m ém ! Pelo que
ao sacrifício de Jesus, o Senhor justificou (e Deus os abandonou às paixões infames.
continua justificando) os ímpios. Porque até as suas mulheres m udaram o
uso natural, no contrário à natureza. E,
A sa lv a ç ã o d e C r i s t o é í m p a r ____________
semelhantemente, também os varões, dei­
É trágico quando as pessoas não aceitam a xando o uso natural da mulher, se inflama­
salvação que é oferecida gratuitamente em ram em sua sensualidade uns para com os
Cristo, para, em vez disso, tentarem, à sua outros, varão com varão, cometendo tor­
maneira, salvar a si mesmas. peza e recebendo em si mesmos a recom­
C om o sugeri na discussão sobre a expia- pensa que convinha ao seu erro. E, como
ção/propiciação, que se encontra no capítulo eles se não importaram de ter conhecimen­
13 do Livro II desta obra, nos dois capítulos to de Deus, assim D eus os entregou a um
que precedem os versículos-chave de Rom a­ sentimento perverso, para fazerem coisas
nos 3, Paulo classificou as pessoas em três que não convém; estando cheios de toda ini­
categorias, a fim de mostrar que todos preci­ qüidade, prostituição, malícia, avareza, mal­
sam de Jesus. dade; cheios de inveja, homicídio, contenda,
engano, malignidade; sendo m urm urado- um segundo as suas obras, a saber: a vida
res, detratores, aborrecedores de Deus, eterna aos que, com perseverança em f a ­
injuriadores, soberbos, presunçosos, in­ z er bem , procuram glória, e honra, e in-
ventores de males, desobedientes ao pai e corrupção; mas indignação e ira aos que
à m ãe; néscios, infiéis nos contratos, sem são contenciosos e desobedientes à verda­
afeição natural, irreconciliãveis, sem mi­ de e obedientes à iniqüidade; tribulação e
sericórdia; os quais, conhecendo a justiça angústia sobre toda alma do hom em que
de D eus (que são dignos de morte os que fa z o mal, prim eiram ente do ju d eu e tam­
tais coisas praticam), não somente as fa ­ bém do grego; glória, porém , e honra epaz
zem , mas tam bém consentem aos que as a qualquer que fa z o bem, prim eiramente
fazem . ao judeu e também ao grego; porque, para
com Deus, não há acepção de pessoas. Por­
Os hedonistas são pessoas cujos únicos que todos os que sem lei pecaram sem lei
padrões de conduta são os que criam para si. também perecerão; e todos os que sob a lei
Ou seja, são os que vivem para si mesmos, pecaram pela lei serão julgados. Porque os
buscando o prazer em tudo o que fazem. Pau­ que ouvem a lei não são justos diante de
lo disse que pessoas assim precisam do evan­ Deus, mas os que praticam a lei hão de ser
gelho, pois seu estilo de vida as conduz à justificados. Porque, quando os gentios,
condenação de Deus. que não têm lei, fazem naturalmente as
Elas podem ser justas aos próprios olhos, coisas que são da lei, não tendo eles lei, pa­
mas essa não é a justificação que conta. H á uma ra si mesmos são lei, os quais mostram a
lei moral estabelecida pelo Senhor, assim como obra da lei escrita no seu coração, testifi­
um Juiz moral. Se essas pessoas não forem jus­ cando juntam ente a sua consciência e os
tificadas pela fé em Jesus Cristo, se perderão. seus pensamentos, qu er acusando-os, qu er
A segunda categoria, considerada em R o­ defendendo-os, no dia em que D eus há de
manos 2.1-16, comporta aqueles que vivem julgar os segredos dos homens, p o r Jesus
uma vida eticamente superior: Cristo, segundo o m eu evangelho.

Portanto, és inescusável quando julgas, ó Diferente dos hedonistas, legalistas se­


homem, quem qu er que sejas, porque te guem padrões de moral mais elevados, o que
condenas a ti mesmo naquilo em que jul­ acaba fazendo com que eles não acreditem
gas a outro; pois tu, que julgas, fazes o que, para alcançarem a salvação de Deus, pre­
mesmo. E bem sabemos que o juízo de cisam arrepender-se de seus pecados.
D eus é segundo a verdade sobre os que tais Paulo discordou dessa teoria por dois m o­
coisas fazem . E tu, ó homem, que julgas os tivos. Primeiro, por mais altos que sejam os
que fazem tais coisas, cuidas que, fazendo- padrões dessas pessoas, eles passam longe dos
-as tu, escaparás ao juízo de D eus? Ou padrões do Senhor, visto que Ele exige uma
desprezas tu as riquezas da sua benignida­ perfeição que vai muito além de nossa imagi­
de, e paciência, e longanimidade, ignoran­ nação. N a verdade, de acordo com os crité­
do que a benignidade de D eus te leva ao rios divinos acerca da santidade, todos seriam
arrependim ento? Mas, segundo a tua du­ reprovados.
reza e teu coração impenitente, entesouras Em segundo lugar, os legalistas são repro­
ira para ti no dia da ira e da manifestação vados em seus próprios padrões. Veja o que
do juízo de Deus, o qual recompensará cada Paulo disse:

S fâ
Portanto, és inescusável quando julgas, ó não te ensinas a ti mesmo? Tu, que pregas
homem, quem qu er que sejas, porque te que não se deve furtar, furtas? Tu, que di-
condenas a ti mesmo naquilo em que jul­ zes que não se deve adulterar, adúlteras ?
gas a outro; pois tu, que julgas, fazes o Tu, que abominas os ídolos, cometes sacri­
mesmo. légio f Tu, que te glorias na lei, desonras a
Romanos 2.1 Deus pela transgressão da lei? Porque, co­
mo está escrito, o nome de D eus é blasfe­
Qual é o seu padrão ético? Você pode di­ mado entre os gentios p or causa de vós.
zer: “Meu padrão é o Sermão do Monte (Mt Porque a circuncisão é, na verdade, pro­
5 .1 —7.29)”. Bem, será que é mesmo? Se ana­ veitosa, se tu guardares a lei; mas, se tu és
lisarmos a fundo constataremos que é huma­ transgressor da lei, a tua circuncisão se tor­
namente impossível seguir esse sermão como na em incircuncisão. Se, pois, a incircunci-
padrão de ética. U m exemplo disso é encon­ são guardar os preceitos da lei, porventura,
trado na declaração de Jesus, que, mesmo sa­ a incircuncisão não será reputada como
bendo que ninguém é perfeito, disse: Sede circuncisão? E a incircuncisão que p o r na­
vós, pois, perfeitos, como éperfeito o vosso Pai, tureza o é, se cumpre a lei, não te julgará,
que está nos céus (Mt 5.48). porventura, a ti, que pela letra e circunci­
Da mesma forma, se você disser que seu são és transgressor da lei? Porque não é
padrão ético se baseia nos Dez Mandamentos judeu o que o é exteriormente, nem é cir­
(E x 20.2-17), também já está condenado, pois cuncisão a que o é exteriormente na carne.
não adora a Deus com o deveria, não observa Mas é judeu o que o én o interior, e circun­
o sábado e cobiça as coisas dos outros. cisão, a que é do coração, no espírito, não
Apelar para a ética de Mateus 7.12 seria na letra, cujo louvor não provém dos ho­
igualmente condenável, visto que ninguém, mens, mas de Deus.
de fato, faz aos outros o que gostaria que lhe
fizessem. Até mesmo o menor de todos os N o contexto da experiência de Paulo, es­
padrões, o da honestidade, não pode ser men­ ses eram os judeus, cujo padrão ético era a Lei
cionado, já que nem sempre somos honestos de Deus. Eles se vangloriavam de sua ascen­
como deveríamos ser. dência, depositando sua confiança no cum­
Portanto, precisamos deixar esse pensa­ primento de preceitos religiosos. Defendiam
mento de que somos justos diante de Deus e que, por serem batizados, participarem da
de que merecemos ir para o céu, pois todos ceia e darem dízimos e ofertas, eram justos
necessitam ser justificados pelo Senhor. diante do Senhor.
A terceira categoria, citada em Romanos O apóstolo afirmou que essas pessoas pre­
2.17-29, é a das pessoas religiosas: cisavam do evangelho, pois defendiam teorias
totalmente inadequadas aos olhos do Senhor.
Eis que tu, que tens p or sobrenome judeu, A salvação é garantida somente por meio de
e repousas na lei, e te glorias em Deus; e Cristo e da aplicação da justiça que vem de
sabes a sua vontade, e aprovas as coisas Deus, e não do homem, por meio de um pro­
excelentes, sendo instruído por lei; e confias cesso de transformação interna.
que és guia dos cegos, luz dos que estão em O que o Pai vê quando olha para você?
trevas, instruidor dos néscios, mestre de Obras e religiosidade vãs ou Sua própria jus­
crianças, que tens a form a da ciência e da tiça, que, com base na soberania dele, age em
verdade na lei; tu, pois, que ensinas a outro, sua conduta?
Considere a conversão de Paulo. Ele não Paulo também havia adquirido vantagens
era um hedonista. Longe disso. Era uma pes­ para si. Segundo consta, foi fariseu (Fp 3.5),
soa religiosa e legalista, que confiava em sua ou seja, fez parte da seita religiosa mais zelosa
própria força para alcançar a salvação. Veja o quanto à Lei. E importante destacar que ele
que ele disse em Filipenses 3.4-8: não se contentava em apenas participar da sei­
ta, mas dedicava-se de maneira zelosa e dili­
A inda que também podia confiar na carne; gente a ela, o que se constata pela sua persegui­
se algum outro cuida que pode confiar na ção implacável à Igreja primitiva (At 8.1-3).
carne, ainda mais eu: circuncidado ao oita­ Sob o ponto de vista humano, esses eram
vo dia, da linhagem de Israel, da tribo de atributos bem consideráveis. Contudo, quan­
Benjamim, hebreu de hebreus; segundo a do Jesus se revelou a ele na estrada de Damas­
lei, fu i fariseu, segundo o zelo, perseguidor co, como podemos ler no capítulo nove de
da igreja; segundo a justiça que há na lei, Atos, Paulo entendeu que, sob o ponto de
irrepreensível. Mas o que para mim era ga­ vista de Deus, seus atos de justiça não passa­
nho reputei-o perda por Cristo. E, na ver­ vam de trapos de imundícia (Is 64.6).
dade, tenho também por perda todas as Antes, ele dizia que era, segundo a justiça
coisas, pela excelência do conhecimento de que há na lei, irrepreensível (Fp 3.6b). N o en­
Cristo Jesus, meu Senhor; pelo qual sofri a tanto, depois de seu encontro com Jesus, pas­
perda de todas estas coisas e as considero co­ sou a dizer: Cristo Jesus veio ao mundo, para
mo esterco, para que possa ganhar a Cristo. salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal
(1 Tm 1.15). Assim, tudo o que havia acumula­
Antes de conhecer a Cristo, para Paulo, a do de ativos eram, na verdade, passivos que o
salvação dependia apenas do esforço e das mantinham longe de Cristo. Em outras pala­
obras dele. Isso, para o apóstolo, não era pro­ vras, a partir de então, em sua coluna de ativos,
blema, pois havia muitos atributos a seu fa­ passou a vigorar apenas Jesus Cristo.
vor, tanto herdados como adquiridos. Entre Essa verdade maravilhosa foi incorporada
os herdados, estavam: o fato de ter nascido a muitos hinos, incluindo o de Augustus M.
em berço judaico; ter sido circuncidado de Toplady:
acordo com a Lei, no oitavo dia de vida. Ele Rocha Eterna
era, portanto, um “bom judeu”. Além de nas- í 3.
cido de pais judeus, sendo hebreu de hebreus Nada trago a Ti, Senhor!
(Fp 3.5), ele era um israelita, membro do po­ ‘Spero só em Teu amor!
vo escolhido de Deus, pertencente à tribo de Todo indigno e imundo sou,
Benjamim, e um observador da Lei. Eis, sem Ti, perdido estou!
Após a morte de Salomão, o reino de Israel N o Teu sangue, ó Salvador,
foi dividido em Reino do N orte e do Sul. Ben­ Lava um pobre pecador.
jamim foi a única tribo que permaneceu com (Tradução: João Gomes da Rocha)
Judá no Reino do Sul. As dez tribos do norte
apostataram da fé e ergueram para si altares Concluímos, portanto, que Deus declara
nos quais sacrifícios de sangue eram ofereci­ nossos pecados pagos no Calvário e imputa a
dos violando, assim, o que está escrito em nós a justiça de Cristo somente quando nós,
Levítico 17. Contudo, a tribo de Benjamim e nascidos de novo, deixamos nossas obras, que
Judá haviam permanecido leais a Deus, e Pau­ só podem levar à perdição, para, então, pela
lo pertencia a uma destas duas tribos. fé, abraçarmos Jesus como Salvador.

s6y
A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ E O PAPEL DAS OBRAS

capítulo anterior observou que a fé, para eles, as obras são essenciais à justifica­
justificação é obra de Deus, total­ ção no sentido de que Deus nos justifica em
mente independente do que qual­ parte, produzindo boas obras em nós, para
quer indivíduo possa fazer. Isto é, sermos justificados pela fé e por boas obras.
ela não depende de boas obras nem de qual­ N ós, os protestantes, respondemos — ou de­
quer forma de melhoria ou de esforço por par­ veríamos responder — que somos justifica­
te do ser humano. dos somente pela fé em Cristo, e que as obras
O argumento usado para sustentar essa devem, necessariamente, existir, se fomos ver­
posição foi o da perspectiva de alguém que dadeiramente justificados.
ainda não é cristão. N o entanto, temos de A diferença pode ser representada em du­
pensar na questão sob o olhar de quem já creu as fórmulas:
em Cristo e foi justificado. A teologia católica declara: fé + obras =
A justificação se dá pela graça de Deus, justificação.
por meio da fé, não de obras. Já a protestante afirma: fé = justificação +
obras.
Porque pela graça sois salvos, p or meio da Calvino apresentou a visão protestante da
fé ; e isso não vem de vós; é dom de Deus. relação entre fé, justificação e obras quando
Não vem das obras, para que ninguém se disse:
glorie.
Efésios 2.8,9 Por que então somos justificados pela fé? Por­
que pela fé entendemos a justiça de Cristo,
Então, as obras não mais têm vez no cris­ pela qual nos reconciliamos com Deus. Não
tianismo hoje? Em caso afirmativo, o cristia­ poderíamos entendê-la sem entender também
nismo pode estar promovendo uma conduta a santificação, pois Ele para nós foi feito por
imoral. P or outro lado, se elas ainda têm vez, Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e re­
será que o sacrifício de Cristo pode não ter denção (1 Co 1.30). Por conseguinte, Cristo
sido o bastante para salvar-nos? não justifica pessoa alguma que também não se
Esse é o ponto em que a teologia da Igreja santifica. Esses benefícios se unem por meio de
Católica e a da Igreja Protestante discordam um laço eterno e indissolúvel, para que aqueles
mais radicalmente. Em bora muitos católicos que Ele ilumina por Sua sabedoria sejam redi­
concordem com os protestantes que a justifi­ midos. Aqueles que Ele redime são justifica­
cação se dá pela graça de Deus, por meio da dos, bem como aqueles que Ele justifica são
santificados. [...] Logo, fica claro que somos esse não é o papel da salvação. Deus justifica,
justificados não sem obras ou por meio de mas isso não é tudo o que Ele faz; Ele tam­
obras, pois, ao tomarmos nossa cruz e seguir­ bém regenera. N ão há justificação sem rege­
mos a Jesus, que nos justifica, a santificação é neração, assim como não há regeneração sem
tida como justiça. (C a lv in o , 1960, p. 798) justificação.
A regeneração é o termo teológico para o
O PAPEL DAS OBRAS___________________________ novo nascimento a que Jesus aludiu na con­
Em Efésios 2.8-10, lemos o ensino de Pau­ versa com Nicodemos: Necessário vos é nas­
lo, o grande defensor da justificação pela fé: cer de novo (Jo 3.7b). Jesus estava dizendo
que Nicodemos precisava de um novo come­
Porque pela graça sois salvos, p or meio da ço, como resultado da nova vida de Deus sen­
fé ; e isso não vem de vós; é dom de Deus. do dada a ele. Foi disso que Paulo falou nesse
Não vem das obras, para que ninguém se mesmo capítulo de Efésios, quando descre­
glorie. Porque somos feitura sua, criados veu com o D eus [...], estando nós ainda mortos
em Cristo Jesus para as boas obras, as quais em nossas ofensas, nos vivificou juntam ente
D eus preparou para que andássemos nelas. com Cristo (Ef 2.4,5).
Foi também o que Paulo indicou no versí­
Mais de um comentarista bíblico obser­ culo 10, pois essa passagem diz não somente
vou que há uma repetição da palavra obras que Deus nos manda praticar boas obras, mas
nos versículos 9 e 10. A primeira menção é também que fomos criados [...] para as boas
negativa; ela diz que, por sermos salvos pela obras, as quais Deus preparou para que an­
graça, por meio da fé, não somos salvos por dássemos nelas. Logo, se fomos criados pelo
obras — ou então seria possível que uma pes­ Altíssimo especificamente para realizar as
soa já salva se vangloriasse diante de quem boas obras, nós o faremos — sendo salvos
não pratica as mesmas obras e, portanto, não ou não.
é salvo. Em minha opinião, apesar de sua impor­
Esse versículo repudia a ideia de as obras tância, esse é um dos ensinos mais negligen­
nos favorecerem, de algum modo, para a nos­ ciados da Bíblia hoje, pelo menos nos Esta­
sa justificação. Quando pensamos assim, de­ dos Unidos. N o início deste capítulo, con­
positamos a nossa confiança em obras, e não trastei a teologia protestante com a católica
na obra completa do sacrifício de Cristo na tradicional, mostrando com o os protestantes
cruz. N a verdade, não podemos ser salvos de ensinam que fé = justificação + obras — o
graça em graça e pelas obras ao mesmo tempo. que defendo —, enquanto os católicos ensi­
Por outro lado, Paulo, logo após rejeitar a nam que fé + obras = justificação.
eficácia das obras na justificação, retoma o D iscordo da teologia católica, mas o que
tema, dizendo que fomos criados em Cristo dizer de uma teologia que predom ina hoje
Jesus para as boas obras, as quais D eus prepa­ que não deixa espaço para as boas obras?
rou para que andássemos nelas (Ef 2.10). Ou O que dizer de um ensinamento que exalta
seja, a ausência de boas obras evidencia a não a justificação, mas negligencia a santifica­
justificação do indivíduo. ção e o perdão, além de não evidenciar uma
Isso é uma contradição? De maneira ne­ mudança de vida? O que Jesus diria de tal
nhuma! E meramente uma forma de dizer teologia?
que, apesar de a justificação descrever um im­ Quando estudamos os ensinos de Cristo,
portante aspecto do que significa ser salvo, logo vemos que Ele insistia na mudança de
comportamento. Ele ensinava que a salvação que são justificados pela fé e confessam que
se dá pela Sua obra na cruz. Porque o Filho do não têm com o que contribuir para sua justi­
H om em também não veio para ser servido, ficação, não tiverem uma conduta melhor que
mas para servir e dar a sua vida em resgate de a das pessoas que se acham as mais pias (que
muitos (Mc 10.45). acham que são salvas pelas obras), não entra­
Porém, Jesus ainda declarou: rão no Reino de Deus, pois não são cristãos
verdadeiros”.
E dizia a todos: Se alguém qu er vir após Isso, para John H . Gerstner, foi o que ele
mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia chamou de apologética embutida, pois nin­
a sua cruz, e siga-me. guém, além de Deus, poderia criar uma reli­
Lucas 9.23 gião assim.

E por que me chamais Senhor, Senhor, e Ao encontrar uma pessoa que tem princípios
não fazeis o que eu digof Q ualquer que morais e boa conduta em alta estima, tenha cer­
vem a mim, e ouve as minhas palavras, e teza de que ela acha que pode justificar-se pelas
as observa, eu vos mostrarei a quem é se­ obras. Por outro lado, ao encontrar uma pes­
melhante. E semelhante ao hom em que soa que exalta a graça divina, que sabe o quão
edificou uma casa, e cavou, e abriu bem inútil é tentar justificar a si mesma e que não se
fundo, epôs os alicerces sobre rocha; e, vin­ contém ao falar sobre o sangue de Jesus e a sal­
do a enchente, bateu com ímpeto a corren­ vação plena e gratuita que Ele traz, ela não de­
te naquela casa e não a pôde abalar, por­ ve fazer o mínimo esforço para realizar boas
que estava fundada sobre rocha. Mas o obras. A primeira cai no erro da autossalvação;
que ouve e não pratica é semelhante ao já a segunda, no do antinomianismo [doutrina
hom em que edificou uma casa sobre terra, que nega ou diminui a importância da Lei de
sem alicerces, na qual bateu com ímpeto a Deus na vida do cristão]. Contudo, a religião
corrente, e logo caiu; e foi grande a ruína cristã, enquanto prega a graça pura e simples­
daquela casa. mente e exclui o mérito de qualquer contribui­
Lucas 6.46-49 ção de nossa parte, ao mesmo tempo requer de
nós as mais exigentes condutas. [...] Você não
A Seus discípulos falou: A quele queperse- pode, em momento algum, dizer algo diferente
verar até ao fim será salvo (Mt 10.22b). E aos disto: “Nada trago a Ti, Senhor! / ‘Spero só em
judeus de Seus dias: Porque vos digo que, se a Teu amor!”. Só podemos ser justificados pela
vossa justiça não exceder a dos escribas e fari­ fé. Portanto, se verdadeiramente esperarmos
seus, de modo nenhum entrareis no Reino dos no amor de Deus, abundaremos nas obras do
céus (M t 5.20). Senhor e viveremos um excelente padrão de
Essas passagens ensinam que o salvo deve conduta. ( G e r s t n e r , 1977, p. 43-44)
realizar boas obras até morrer. Ademais, esses,
textos deixam claro que nosso papel não é só E D e u s q u e m t r a b a l h a ____________________

demonstrar um comportamento genuina­ Isso pode parecer confuso ou, até mesmo,
mente transformado e realizar boas obras, contraditório, mas torna-se claro ao perce­
mas que nossas boas obras devem exceder as bermos que as boas obras que os cristãos são
boas obras dos outros. chamados — ou melhor, ordenados — a rea­
Eu parafrasearia Mateus 5.20 dizendo: “Se lizar são resultantes da obra de Deus neles.
vocês, que se dizem cristãos, que professam P or isso, em Efésios 2.10a, Paulo apresentou
sua exigência por boas obras: Porque somos muito mais os que recebem a abundância
feitura sua. da graça e do dom da justiça reinarão em
Por isso, o apóstolo também afirmou em vida por um só, Jesus Cristo. Pois assim co­
Filipenses: mo por uma só ofensa veio o juízo sobre
todos os homens para condenação, assim
D e sorte que, meus amados, assim como também por um só ato de justiça veio a gra­
sempre obedecestes, não só na minha p re­ ça sobre todos os homens para justificação
sença, mas muito mais agora na minha de vida. Porque, como, pela desobediência
ausência, assim também operai a vossa sal­ de um só homem, muitos foram feitos peca­
vação com temor e tremor; porque D eus é dores, assim, pela obediência de um, muitos
o que opera em vós tanto o qu erer como o serão feitos justos. Veio, porém, a lei para
efetuar, segundo a sua boa vontade. que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado
Filipenses 2.12,13 abundou, superabundou a graça; para que,
assim como o pecado reinou na morte, tam­
É por Deus operar em nós que tanto o nos­ bém a graça reinasse pela justiça para a vi­
so querer como o nosso efetuar lhe agradam. da eterna, por Jesus Cristo, nosso Senhor.
E m Efésios 2.10a, Paulo disse: Porque so­
mos [...] criados em Cristo Jesus para as boas Quando Deus criou o primeiro homem,
obras. Sem dúvida, ao fazer tal declaração, este era perfeitamente preparado para reali­
Paulo tinha em mente o contraste entre a no­ zar todo tipo de boa obra. N o entanto, Adão
va criatura em Cristo e a velha criatura em caiu em pecado, e, a partir de então, sob a
Adão, que deixou claro em Romanos 5.12-21: perspectiva de Deus, o melhor das boas obras
de Adão, bem como o das de seus descenden­
Pelo que, como p o r um hom em entrou o tes, não passa de boas obras, pois contamina-
pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, mo-nos com o pecado.
assim também a morte passou a todos os Isso significa que nossas obras não fluem
homens, por isso que todos pecaram. Por­ de um amor puro a Deus, mas, em vez disso,
que até a lei estava o pecado no mundo, de um desejo de melhorarmos nossa reputa­
mas o pecado não é imputado não haven­ ção ou posição. Todavia, a partir da recriação
do lei. No entanto, a morte reinou desde do homem, quando este se une a Jesus Cristo,
Adão até Moisés, até sobre aqueles que Ele traz à existência algo que não existia e
não pecaram à semelhança da transgressão que, agora, tem novas e animadoras possibili­
de Adão, o qual é afigura daquele que ha­ dades. Antes, quem não tinha Cristo, como
via de vir. Mas não é assim o dom gratuito disse Agostinho, non posse non peccare (não
como a ofensa; porque, se, pela ofensa de podia deixar de pecar). Agora, quem tem
um, m orreram muitos, muito mais a graça Cristo posse non peccare (pode deixar de pe­
de D eus e o dom pela graça, que é de um só car), e, também, realizar boas obras.
homem, Jesus Cristo, abundou sobre mui­ Nessa recriação espiritual, Deus nos con­
tos. E não foi assim o dom como a ofensa, cede novos sentidos. Antes, víamos com nos­
por um só que pecou; porque o juízo veio sos olhos físicos — éramos cegos espiritual­
de uma só ofensa, na verdade, para conde­ mente. Agora, vemos com olhos espirituais
nação, mas o dom gratuito veio de muitas — e tudo parece novo.
ofensas para justificação. Porque, se, pela A princípio, éramos surdos espiritual­
ofensa de um só, a morte reinou por esse, mente. Ouvíamos a Palavra de Deus, mas ela
não o fizestes a mim. E irão estes para o E a vida eterna é esta: que conheçam a ti só
tormento eterno, mas os justos, para a vida por único D eus verdadeiro e a Jesus Cristo,
eterna. a quem enviaste.
Mateus 25.31-46 João 17.3

U m a d o u t r i n a p r á t i c a ____________________ Quem conhece o Pai e Seu Filho, Jesus,


O ensino do papel e da necessidade das tem a vida eterna e espera pela volta deste, is­
boas obras na vida do cristão tem um sem- to é, persevera até o fim, usando os talentos
-número de conseqüências práticas. divinos da melhor forma que puder, e é fonte
Em primeiro lugar, faz jus a inúmeras pas­ de bênção para o faminto, o sedento, o desa­
sagens bíblicas, particularmente às do Mestre brigado, o nu, o enfermo e o cativo.
ensinando que enfatizam a realização das bo­ Em segundo lugar, o entendimento do que
as obras e parecem sugerir uma salvação base­ Deus faz ao produzir boas obras por meio da
ada nelas. vida transformada de cristãos glorifica a Deus
A última passagem citada (Mt 25.31-46) é por Sua graça e sabedoria.
um exemplo, assim com o as duas outras pará­ O Dr. Paul Brand, chefe de um centro de
bolas do mesmo capítulo. N a primeira, as reabilitação de um hospital público em Carville,
cinco virgens loucas são excluídas da festa de Louisiana, Estados Unidos, escreveu um livro
casamento simplesmente por terem deixado intitulado Fearfully and Wonderfully Made
de vigiar a fim de que não lhes faltasse azeite [Feito de maneira terrível e maravilhosa], no
para suas lâmpadas. E, tardando o esposo, tos- qual examina os intrigantes mecanismos do
quenejaram todas e adormeceram (Mt 25.5). corpo humano e admira-se com a grandeza do
Aquelas virgens conheciam o N oivo e espera­ Deus que pode criar tais maravilhas.
vam por Ele, mas não foram salvas porque Ele discorre sobre nossas células, nossos
negligenciaram o azeite. ossos, nossa pele e as complexidades dos m o­
N a segunda parábola, o terceiro servo não vimentos do corpo humano. Sua descrição
obteve o favor de seu mestre por ter falhado nos leva a maravilharmo-nos com ele. N o
na administração do único talento que lhe entanto, eu diria que muito mais maravilhoso
fora concedido. Ele não o roubou; em vez do que o corpo humano é a recriação do ho­
disso, guardou-o, enterrando-o e devolven­ mem por Deus — homem esse que, antes, era
do-o a seu mestre quando este retornou de espiritualmente m orto e, portanto, incapaz de
uma viagem. Mesmo assim, o servo foi rejei­ satisfazer o Senhor de qualquer maneira, e
tado: Lançai, pois, o servo inútil nas trevas que, agora, como resultado da própria obra
exteriores; ali, haverá pranto e ranger de divina, pode ser bom e fazer boas obras.
dentes (M t 25.30). Em terceiro lugar, o entendimento da obra
N a terceira parábola, as ovelhas são sepa­ de Deus em quem Ele conduz à fé em Cristo
radas dos bodes em função de suas obras. e faz realizar boas obras mostra quem real­
Essas e outras narrativas contadas por mente nasceu de novo. A mente humana é
Jesus parecem ensinar que o homem é salvo extremamente sutil e, devido ao pecado, per­
em função de sua perseverança, previdên­ versa. Se as virgens loucas da história de Ma­
cia, precaução ou beneficência. C ontudo, teus 5 pensassem que o N oivo iria admiti-las
por meio delas, Jesus mostra as conseqüên­ ao bater à porta; se o terceiro servo do mesmo
cias de crer nele com o Salvador. P or isso, capítulo pensasse que seu mestre iria considerar
Ele declara: o não investimento de seu talento aceitável; e
se os bodes ainda do mesmo capítulo não ti­ A resposta é simples: deve haver uma dife­
vessem ciência de sua falha em cuidar dos rença em nossa vida. Tornamo-nos novas
necessitados, como poderíamos ter certeza de criaturas intelectual, moral e relacionalmente.
que somos salvos? E aí que entra o próximo capítulo.
As PROVAÇÕES

v\ ualquer um que já tenha trabalha para servir aos outros e a Deus. Contudo, co­
| // do com recém-convertidos ao cris- mo será possível servirmos aos outros se não
,' tianismo sabe que, frequentemen- tivermos certeza de nossa própria salvação?
-v - > te, surgem dúvidas depois que a N a época em que Martinho Lutero lutou
pessoa aceita Cristo. com essa questão, ele era um monge que não
A experiência inicial do cristão é a de saía do monastério. Depois, quando soube
grande alegria. C om o se encontrava perdido que havia sido salvo por meio da morte de
nas trevas do pecado e da ignorância, ele passa Cristo e justificado por Deus, deixou o mos­
a estar na luz de Deus. Antes, encontrava-se teiro a fim de implementar a Reforma Protes­
distante do Senhor; agora, está perto dele. tante. Nesse sentido, como podemos lançar-
Entretanto, com o passar do tempo, o novo -nos para Deus estando trancados em um
na fé se pergunta se algo realmente mudou, se monastério de dúvidas ?
ele é realmente uma nova criatura, ainda que
pareça ser a mesma pessoa de antes. Ele é ten­ G a r a n t i a p a r a o c r i s t ã o __________________

tado do mesmo modo, ou pior; continua ten­ Toda a primeira epístola de João foi escrita
do os mesmos problemas de caráter e parece para responder a essa questão. As igrejas para
já não sentir mais a grande alegria de outrora. as quais João estava escrevendo haviam rece­
Nesse momento, o cristão em geral se ques­ bido um ensino apostólico, mas, antes de sua
tiona se é possível saber se foi salvo de verda­ primeira epístola ser escrita, membros de cer­
de ou não. Normalmente, ele faz a seguinte tas congregações estavam saindo do seio da
pergunta: “Com o posso ter certeza de que fui Igreja para fundar uma nova sociedade.
justificado?”.
O mesmo questionamento incomoda cris­ Saíram de nós, mas não eram de nós; por­
tãos mais antigos. Ele pode surgir ao longo de que, se fossem de nós, ficariam conosco;
sua vida espiritual como resultado de um p ro­ mas isto épara que se manifestasse que não
blema de saúde, de uma crise na carreira, da são todos de nós.
perda de alguém por meio da morte ou do 1 João 2.19
pecado, da depressão resultante de uma des­
sas crises etc. Sem dúvida, esses ex-membros sustenta­
Esse questionamento é preocupante, pois vam que suas próprias crenças eram superio­
pode afetar tremendamente a vida do cristão. res às dos cristãos. Pouco se sabe sobre essa
Com o seguidores de Cristo, somos chamados deserção. Obviamente, não mais do que o que
João mencionou a respeito em sua epístola. cristãos a fim de mostrar-lhes como podem
Todavia, certamente já era uma forma prema­ ter certeza de que foram regenerados.
tura do que hoje se chama gnosticismo.
Os gnósticos se consideram os detentores Estas coisas vos escrevi, para que saibais
da verdade. N a realidade, isso é o que signifi­ que tendes a vida eterna e para qu e creiais
ca gnóstico. Os que fazem parte desse grupo no nom e do Filho de Deus. Mas qualquer
insistem que a salvação se dá, principalmente, que guarda a sua palavra, o am or de
por meio do conhecimento, isto é, de uma D eus está nele verdadeiram ente aperfei­
iniciação em um conhecimento místico e su­ çoado; nisto conhecemos que estamos n e­
perior. Geralmente, o gnosticismo deprecia a le. Pais, escrevo-vos, p orque conhecestes
boa conduta moral, e seus adeptos dizem aquele que é desde o princípio. Jovens,
que não têm pecado, que nunca pecaram e/ escrevo-vos, porque vencestes o maligno.
ou que podem ter comunhão com Deus E u vos escrevi, filhos, p orque conhecestes
mesmo pecando. o Pai. E vós tendes a unção do Santo e sa-
Os gnósticos também creem que a maté­ beis tudo. Não vos escrevi porque não
ria, em essência, é má, mas que o espírito é soubésseis a verdade, mas porque a sabeis,
bom, e que é impossível haver união entre e p orque nenhum a mentira vem da ver­
as duas coisas, p or isso a depreciação da boa dade. Amados, agora somos filhos de
conduta moral. Para eles, a salvação se dá Deus, e ainda não é manifesto o qu e ha­
no espírito, que é bom. Isso produziu uma vemos de ser. Mas sabemos que, quando
religião filosófica à parte da história. Segun­ ele se manifestar, seremos semelhantes a
do os gnósticos, a encarnação do Filho de ele; p orque assim como é o veremos. Nós
Deus não aconteceu, pois seria impossível, sabemos que passamos da morte para a
uma vez que, se a matéria é má, Deus nunca vida, p orque amamos os irmãos; quem
poderia ter tomado uma forma humana. A não ama a seu irmão perm anece na mor­
encarnação deveria ter-se dado apenas na te. E nisto conhecemos qu e somos da ver­
aparência. dade e diante dele asseguraremos nosso
A princípio, muitos cristãos se confundi­ coração; E aquele que guarda os seus
ram com esse ensinamento; afinal, os novos m andamentos nele está, e ele nele. E nisto
mestres pareciam ser brilhantes. Estavam eles conhecemos que ele está em nós: pelo Es­
certos? Deviam as velhas práticas ser abando­ pírito que nos tem dado. Filhinhos, sois de
nadas? Será mesmo que a crença antiga dos D eus e já os tendes vencido, p orque maior
cristãos servia apenas para prepará-los para é o que está em vós do qu e o qu e está no
esse “cristianismo superior e mais autêntico”? m undo. Nisto conhecemos que estamos
João respondeu a essas perguntas, primei­ nele, e ele em nós, pois que nos deu do seu
ro, por meio de uma afirmação categórica de Espírito. Nisto conhecemos que amamos
que os cristãos podem e devem saber que têm os filhos de D eus: quando amamos a D eus
a vida eterna, e, segundo, por meio de uma e guardamos os seus mandamentos. Sabe­
apresentação de três testes práticos para re­ mos que todo aquele que é nascido de
solver a questão. D eus não peca; mas o qu e de D eus é gera­
do conserva-se a si mesmo, e o maligno
O CONHECIMENTO DO CRISTÃO_____________ não lhe toca. Sabemos que somos de D eus
Em sua primeira epístola, João disse, de e que todo o m undo está no maligno. E
maneira clara, que se propunha a escrever aos sabemos qu e já o Filho de D eus é vindo e
nos deu entendim ento para conhecermos de todas? Deus nos assegurou que, se crer-
o que é verdadeiro; e no qu e é verdadeiro mos em Jesus como o nosso Salvador, sere­
estamos, isto é, em seu Filho Jesus Cristo. mos justificados”.
Este é o verdadeiro D eus e a vida eterna. Segundo, podemos ter certeza no que
1 João 5.13; 2.5,13,20,21; 3.2,14,19,24; concerne a questões espirituais porque os que
creem em Deus estão convictos de que é con­
4.4,13; 5.2,18-20
fiável Aquele em quem eles depositam sua fé.
O mundo atual tem em grande estima o Os reformadores chamam essa obra do Espí­
conhecimento e a confiança que ele pode pro­ rito de Deus de testimonium Spiritus Sancti
porcionar. N o entanto, o conhecimento exce­ internum. Por outro lado, os que não creem
deu a capacidade humana de absorvê-lo, salvo no Altíssimo o fazem mentiroso. Neste caso,
em áreas bem específicas. Nessas circunstân­ a abominável natureza da incredulidade se
cias, pode alguém verdadeiramente ter co ­ evidencia.
nhecimento? Pode haver certeza? João disse
que pode haver, sim, certezas no que diz res­ A incredulidade não é um infortúnio digno de
peito a questões espirituais. pena, mas um pecado digno de lástima. É peca­
Primeiro, porque Deus prometeu justifi­ do, pois contradiz a Palavra do Deus verdadeiro
cação e vida eterna a todo aquele que crer em e lhe atribui a falsidade. ( S t o t t , 1964, p. 182)
Seu Filho. Podemos ter essa certeza, pois p o­
demos confiar em Deus. Se você tem dúvidas com relação à sua
João sustentou esse ponto, comparando o própria salvação, saiba que nem toda incredu­
testemunho dos homens com o de Deus. lidade é pecado. Por exemplo, crer em Cristo
e na Palavra de Deus e achar que Jesus pode
Se recebemos o testemunho dos homens, o voltar, mas não nos salvar, seria pecado. P o ­
testemunho de D eus é maior; porque o tes­ rém, a fé que salva não é mera aprovação inte­
temunho de D eus é este, que de seu Filho lectual a certas doutrinas; ela envolve com ­
testificou. Q uem crê no Filho de D eus em prometimento e confiança.
si mesmo tem o testemunho; quem em Deus H á pessoas que creem em Cristo de certa
não crê mentiroso o fez, porquanto não cr eu forma, mas não sabem se o fazem da maneira
no testemunho que Deus de seu Filho deu. adequada. Elas se perguntam: “Creio real­
E o testemunho é este: que Deus nos deu a mente em Cristo? Deixei mesmo de buscar a
vida eterna; e esta vida está em seu Filho. salvação por conta própria e abracei a justifi­
Q uem tem o Filho tem a vida; quem não cação de Jesus? Fui justificado de verdade?”.
tem o Filho de Deus não tem a vida. Em resposta a essas questões, João ofere­
1 João 5.9-12 ceu os três testes que mencionei. Eles se repe­
tem de diversas maneiras ao longo da epístola,
Obviamente, João tentou, nessa passa­ como o teste doutrinário (que avalia a crença
gem, deixar o assunto o mais claro possível, em Jesus Cristo), o moral (que avalia a justiça
afinal todos nós aceitamos o testemunho dos ou a obediência) e o social (que avalia o amor).
homens quando, por exemplo, assinamos um
contrato ou um cheque, ou compramos uma O TESTE DOUTRINÁRIO_______________________

passagem, pois ele tem valor legal. É como se Um a característica de nosso tempo, apon­
João estivesse dizendo: “Por que não acredi­ tada com frequência por cristãos apologistas
tar em Deus, cuja Palavra é a mais confiável contemporâneos, é que as pessoas não mais
creem estritamente na verdade, mas usam o de nós, mas não eram de nós; porque, se
termo com certa conotação coloquial, refe- fossem de nós, ficariam conosco; mas isto é
rindo-se a ele como o antônimo de falsidade. para que se manifestasse que não são todos
N ão é esse o sentido que muitos no século de nós. E vós tendes a unção do Santo e
20 deram ao usar esse termo, mas o de algo sabeis tudo. Não vos escrevi porque não
absoluta e eternamente verdadeiro. Hoje, essa soubésseis a verdade, mas porque a sabeis,
palavra é usada de maneira relativizada, ou e porque nenhum a mentira vem da verda­
seja, o que é verdade para uns pode não o ser de. Q uem é o mentiroso, senão aquele que
para outros, ou o que é verdade hoje pode nega que Jesus é o Cristo f E o anticristo
não o ser amanhã. Isso resulta em uma grande esse mesmo que nega o Pai e o Filho. Qual­
incerteza, bem como em um sentido de falta quer que nega o Filho também não tem o
de direção. Pai; e aquele que confessa o Filho tem tam­
O cristianismo segue dentro de um con­ bém o Pai. Portanto, o que desde o princí­
junto de pressuposições completamente dife­ pio ouvistes perm aneça em vós. Se em vós
rente. Nesse primeiro teste da presença da perm anecer o que desde o princípio ouvis­
nova vida, o doutrinário, as pessoas começam tes, também permanecereis no Filho e no
a ver os fatos de maneira distinta; antes, duvi­ Pai. E esta é a promessa que ele nos fe z : a
davam da existência da própria verdade. Ago­ vida eterna. Estas coisas vos escrevi acerca
ra, veem que Deus é verdadeiro, que Cristo é dos que vos enganam. E a unção que vós
a verdade e que a Bíblia contém proposições recebestes dele fica em vós, e não tendes ne­
reais. E claro que elas não entendem tudo, cessidade de que alguém vos ensine; mas,
mas realmente enxergam os acontecimentos como a sua unção vos ensina todas as coisas,
de outro modo. e é verdadeira, e não é mentira, como ela
Certo escritor afirmou: vos ensinou, assim nele permanecereis.
1 João 2.18-27
Todo homem em quem essa obra divina ocor­
reu experimenta novas visões da verdade divi­ Depois, ele retomou o assunto:
na. A alma vê nelas coisas nunca vistas. Ela
discerne na verdade de Deus uma beleza e ex­ Amados, não creiais em todo espírito, mas
celência das quais não tínhamos ideia. Seja qual provai se os espíritos são de D eus, p orque
for a diversidade na clareza da visão de cada já muitos falsos profetas se têm levantado
pessoa ou na verdade particular trazidas à me­ no m undo. Nisto conhecereis o Espírito
mória, todos concordam com isto: que há uma de D eus: todo espírito qu e confessa que
nova percepção da verdade, [...] uma realidade Jesus Cristo veio em carne é de D eus; e
abençoada, e muitas testemunhas de sã consci­ todo espírito que não confessa qu e Jesus
ência e veracidade inquestionável, prontas a Cristo veio em carne não é de D eus; mas
testemunhar disso. ( A l e x a n d e r , 1967, p. 64) este é o espírito do anticristo, do qual já
ouvistes que há de vir, e eis que está já no
João desenvolveu o teste doutrinário: mundo. Filhinhos, sois de D eus e já os
tendes vencido, p orq ue maior é o que está
Filhinhos, é já a última hora; e, como ou- em vós do que o qu e está no m undo. Do
vistes que vem o anticristo, também agora m undo são; p or isso, falam do m undo, e o
muitos se têm feito anticristos; p or onde m undo os ouve. Nós somos de D eus;
conhecemos que é já a última hora. Saíram aquele qu e conhece a D eus ouve-nos;
aquele que não é de Deus não nos ouve. que mencionei deram o título de Cristo ao Fi­
Nisto conhecemos nós o espírito da verda­ lho de Deus, apesar de considerarem-no um
de e o espírito do erro. mero homem. Outros, como Ário, seguiram o
1 João 4.1-6 mesmo raciocínio, pois o adornavam com o
nome de Deus, mas não criam em Sua divinda­
Naturalmente, João enfatizou os erros de eterna. Marciano o tinha como um fantas­
dos gnósticos, principalmente o de negarem o ma. Sabélio, como o próprio Deus. Todavia,
fato de Jesus ser o Cristo. Porém, ele mostrou todas essas pessoas negaram o Filho de Deus,
que esse erro pode ser cometido por qualquer haja vista que nenhuma delas verdadeiramente
um. O apóstolo o chamou de mentira, e quem reconhecia o Cristo bíblico, mas adulteravam a
a abraça recebe o título de mentiroso. Q uem é verdade sobre Ele, fazendo dele um ídolo, em
o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus vez de o Cristo. [...]
é o Cristo? E o anticristo esse mesmo que nega Agora, vemos que o Cristo é negado sempre
o Pai e o Filho (1 Jo 2.22). que as coisas que pertencem a Ele são tiradas
Quando João afirmou que Jesus é o Cristo, dele. E como Cristo é o fim da Lei e do evan­
ele não quis dizer meramente que Jesus é o gelho e tem nele mesmo todos os tesouros da
Messias pelo qual o Antigo Testamento espe­ sabedoria e do conhecimento, Ele é também o
rava. Se Ele o fosse, dificilmente os gnósticos alvo do ataque de todos os hereges. Logo, o
se oporiam ao evangelho. apóstolo tem bons motivos para chamar de os
João também apresentou Jesus como o maiores mentirosos os que lutam contra Cris­
Filho de Deus, bem como falou sobre conhe­ to, pois toda a verdade nos é revelada nele.
cer o Filho no Pai e o Pai no Filho. Em outras ( C a l v in o , 1961, p . 259-260)
palavras, ele professou que Cristo foi total­
mente Deus — Deus encarnou como Jesus. Confessar que Jesus é o Cristo é declarar
Os gnósticos, por outro lado, criam que o o C risto bíblico. N egar esse Cristo, da for­
Cristo divino, concebido como um enviado ma que for, é uma heresia, com terríveis con­
por um Deus superior, veio a um homem cha­ seqüências.
mado Jesus, enquanto este se batizava, e dei­ Em primeiro lugar, negar o Filho é negar o
xou-o antes de ser crucificado. Pai. Por esse motivo, os falsos mestres fin­
Esse tipo de pensamento não difere de al­ giam estar adorando ao mesmo Deus que os
gumas formas bíblicas de entendimento que cristãos. E ra com o se dissessem: “Só discor­
opõem o que chamamos de o Jesus histórico damos de vocês com relação ao que creem
ao Cristo da fé. sobre Jesus”. Porém , João disse que isso é
Essa confissão básica do apóstolo João impossível. Se Jesus é Deus, negar Jesus é
também inclui tudo o que o Pai falara acerca negar Deus.
de Jesus na Bíblia. Em segundo lugar, negar o Filho é negar a
Calvino disse: presença de Deus na vida de alguém ou não
ter parte com Ele. João usou a expressão ter o
Concordo com os antigos, os quais pensavam Pai. Q ualquer que nega o Filho também não
que aqui há uma referência a Cerinto e Carpó- tem o Pai; e aquele que confessa o Filho tem
crates. Contudo, a negação a Cristo vai muito também o Pai (1 Jo 2.23).
mais além, pois não basta confessar que Jesus é N a linguagem bíblica, isso eqüivale a di­
o Cristo, mas reconhecê-lo como o Pai nos zer que tais pessoas não foram regeneradas e
oferece no evangelho. As duas personalidades que estão sob a condenação divina. Já aqueles
que confessam Cristo encontram o Pai e são A quele que diz: E u conheço-o e não guar­
justificados por Ele. da os seus mandamentos é mentiroso, e
nele não está a verdade. Mas qualquer que
O t e s t e m o r a l _______________________________
guarda a sua palavra, o am or de Deus está
O teste moral, que faz alusão a outro pon­ nele verdadeiramente aperfeiçoado; nisto
to da mesma epístola, é este: conhecemos que estamos nele.
1 João 2.4,5
E nisto sabemos que o conhecemos: se
guardarmos os seus mandamentos. A quele Nessa passagem, João apresentou dois tipos
que diz: E u conheço-o e não guarda os seus de homem: o que diz conhecer Deus, mas não
mandamentos é mentiroso, e nele não está guarda Seus mandamentos, e o que obedece a
a verdade. Mas qualquer que guarda a sua Deus por amor a Ele. João usou palavras muito
palavra, o amor de D eus está nele verda­ ásperas para o primeiro tipo de pessoa. Ele o
deiramente aperfeiçoado; nisto conhece­ chamou de mentiroso, pois não é nem engana­
mos que estamos nele. A quele que diz que do por alguém nem confundido por algum fa­
está nele também deve andar como ele to, mas professa nele não está a verdade. Ele
andou. Q ualquer que comete o pecado pode também estar dando-nos um conselho:
também comete iniqüidade, porque o p e­ que não busquemos a verdade nele. Nesse caso,
cado é iniqüidade. E bem sabeis que ele se a expressão se aplica aos falsos mestres (de
manifestou para tirar os nossos pecados; e quem os verdadeiros seguidores de Deus de­
nele não há pecado. Q ualquer que perm a­ vem afastar-se) dos dias de João e dos nossos.
nece nele não peca; qualquer que peca não A verdade deve ser buscada não em quem
o viu nem o conheceu. Filhinhos, ninguém tem apenas qualificações intelectuais, mas em
vos engane. Q uem pratica justiça é justo, quem mostra ter conhecimento espiritual e
assim como ele é justo. Q uem comete o p e­ uma conduta justa.
cado é do diabo, porque o diabo peca desde O segundo tipo de homem, aquele que
o princípio. Para isto o Filho de D eus se obedece a Deus por amor, tem o amor divino
manifestou: para desfazer as obras do dia­ aperfeiçoado nele. Apesar de não fazer gran­
bo. Q ualquer que é nascido de D eus não des afirmações de que conhece Deus — como
comete pecado; porque a sua semente p er­ os gnósticos faziam —, ele conhece o Senhor,
manece nele; e não pode pecar, porque é segundo João.
nascido de Deus. Nisto são manifestos os H á alguns anos, quando a moralidade es­
filhos de D eus e os filhos do diabo: qual­ tava em seu auge, alguns teólogos se encontra­
qu er que não pratica a justiça e não ama a ram no Seminário Teológico de Princeton para
seu irmão não é de Deus. discutir o assunto. A maioria se pôs a favor do
1 João 2.3-6; 3.4-10 mesmo; por isso, a discussão se centralizou no
valor da liberdade de todas as regras e regula­
Para entendermos de modo simples, aque­ mentações, salvo algumas exceções.
les que conhecerem Deus viverão de maneira Lá, foi decidido que a única regra aceitável
cada vez mais justa. Isso não significa que não seria o amor. Tudo vindo do amor seria per­
pecarão, mas que seguirão em uma direção mitido, desde que isso não machucasse pessoa
marcada pela justiça divina. Quando isso não alguma. Nesse debate, um padre católico não
ocorre, esses indivíduos não são filhos de dizia uma palavra. A o pedirem sua opinião,
Deus. ele disse: “Vocês não concordam que o único
A S PROVAÇÕES

fator limitador em qualquer decisão ética é o te há de trairf Vendo Pedro a este, disse a
amor? Jesus disse: Se m e amardes, guardareis Jesus: Senhor, e deste que será? Disse-lhe
os meus mandamentos (Jo 14.15)”. Jesus: Se eu quero que ele fique até que eu
Dizemos ser cristãos? A quele que diz que venha, que te importa a ti? Segue-m e tu.
está nele também deve andar como ele andou João 21.20-22
(1 Jo 2.6). Somos chamados a imitar a condu­
ta do Senhor Jesus. Andar com o Cristo an­ N ão houve escapatória para a chamada ao
dou é viver não por regras, mas pelo exemplo. discipulado pessoal de Pedro.
E segui-lo, ser Seu discípulo. U m discípulo O discípulo que anda como. Cristo andou
pessoal, ativo e caro. é também ativo, pois o Senhor é ativo. Quem
Pessoal porque tal tarefa não pode ser de­ é inativo é deixado para trás.
legada a terceiros. Devemos encontrar-nos em Por último, tal discípulo é caro, pois o ca­
Cristo, como Pedro, após a ressurreição de minho em que Jesus andou, apesar de levar à
Jesus. Observe o que ocorreu naquela ocasião: vitória, primeiro leva à crucificação; ele só
pode ser percorrido por aqueles que m orre­
Mas tudo isso vos farão por causa do m eu ram para si mesmos e agora levam a cruz de
nome, porque não conhecem aquele que Cristo para segui-lo. Esses, seja nos dias de
m e enviou. Se eu não viera, nem lhes hou­ João, seja nos de hoje, terão sempre confiança
vera falado, não teriam pecado, mas, ago­ diante de Deus e certeza de que o conhecem.
ra, não têm desculpa do seu pecado. A qu e­ C. H . Dodd, ex-professor de N ovo Tes­
le que me aborrece aborrece também a tamento na Universidade de Cambridge,
m eu Pai. Se eu, entre eles, não fizesse tais declarou em As epístolas Joaninas:
obras, quais nenhum outro têm feito, não
teriam pecado; mas, agora, viram-nas e Nessa passagem, nosso autor não apenas refuta
m e aborreceram a mim e a m eu Pai. Mas é tendências perigosas na Igreja de seus dias, co­
para que se cumpra a palavra que está escri­ mo discute um problema de relevância eterna,
ta na sua lei: Aborreceram -me sem causa. o da validade da experiência religiosa. Pode­
Mas, quando vier o Consolador, que eu da mos achar que temos ciência de Deus ou união
parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espí­ com Ele, mas como podemos saber que tal ex­
rito da verdade, que procede do Pai, testifi­ periência corresponde à realidade? Clareza ou
cará de mim. E vós também testificareis, poder na experiência em si não garantem sua
pois estivestes comigo desde o princípio. validade — assim como um sonho que pareceu
João 21.15-17 algo real em uma noite de sono não passa de
um sonho. Se, entretanto, aceitarmos a revela­
Depois que Pedro se irritou com o fato de ção de Deus em Cristo, deveremos, então, crer
Jesus questioná-lo três vezes, ele quis colocar que qualquer experiência com Deus — o que é
o foco de Cristo sobre Seu discípulo mais válido — tem qualidade ética definida pelo que
amado, que, aparentemente, podia ser visto conhecemos de Cristo, o que carrega em si
ao longe. Veja, então, o que aconteceu: uma fidelidade renovada ao Seu ensino e exem­
plo. O autor não quer dizer que somente aque­
E Pedro, voltando-se, viu que o seguia les que obedecem perfeitamente a Cristo e se­
aquele discípulo a quem Jesus amava, e guem Seu exemplo têm uma experiência com
que na ceia se recostara também sobre o Deus. Isso seria afirmar uma ausência de pecado
seu peito, e que dissera: Senhor, quem é que na vida do cristão em um sentido de que ele o
repudiou. Se a experiência não incluir uma mis­ o princípio tivestes. Este mandamento an­
tura de afeição e vontade com relação aos prin­ tigo é a palavra que desde o princípio ou­
cípios morais do evangelho, não se trata de uma vistes. Outra vez vos escrevo um m anda­
experiência com Deus. (D o d d , 1946, p. 32) mento novo, que é verdadeiro nele e em
vós; porque vão passando as trevas, e já a
Claro que há mais a ser dito, mas não so­ verdadeira luz alumia. A quele que diz
bre o teste da experiência. O teste que prova que está na luz e aborrece a seu irmão até
se conhecemos ou não a Deus é o da justiça. agora está em trevas. A quele que ama a
seu irmão está na luz, e nele não há escân­
O TESTE SOCIAL_______________________________
dalo. Mas aquele que aborrece a seu irmão
Em meio a Seus últimos discursos — ante­ está em trevas, e anda em trevas, e não
riores à crucificação —, Jesus nos deu um sabe para onde deva ir; porque as trevas
novo mandamento: amar. lhe cegaram os olhos.
1 João 2.7-11
Um novo mandamento vos dou: Q ue vos
ameis uns aos outros; como eu vos amei a E o apóstolo repetiu essa ideia:
vós, que também vós uns aos outros vos
ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus Porque a mensagem que ouvistes desde o
discípulos, se vos amardes uns aos outros. princípio é esta: que nos amemos uns aos
João 13.34,35 outros; não segundo Caim, que era do M a­
ligno e assassinou a seu irmão; e p or que o
O amor é a marca pela qual o mundo pode assassinou? Porque as suas obras eram
saber que os cristãos são verdadeiramente más, e as de seu irmão, justas. Irmãos, não
cristãos. vos maravilheis se o m undo vos odeia. Nós
Em 1 João, o mandamento é repetido, mas sabemos que já passamos da morte para a
com uma diferença: é pelo amor que os cris­ vida, porque amamos os irmãos; aquele
tãos (assim com o o mundo) saberão que são que não ama perm anece na morte. Todo
cristãos. aquele que odeia a seu irmão é assassino;
ora, vós sabeis que todo assassino não tem
Mas qualquer que guarda a sua palavra, o a vida eterna perm anente em si. Nisto co­
am or de D eus está nele verdadeiramente nhecemos o amor: que Cristo deu a sua
aperfeiçoado; nisto conhecemos que esta- vida p o r nós; e devemos dar nossa vida
. mos nele. pelos irmãos. Ora, aquele que possuir re­
1 João 2.5 cursos deste mundo, e vir a seu irmão pa­
decer necessidade, e fechar-lhe o seu cora­
Quando os cristãos começarem a amar, ção, como pode perm anecer nele o amor de
principalmente a demonstrar amor a todos D eus? Filhinhos, não amemos de palavra,
por quem Cristo morreu, poderão ter certeza nem de língua, mas de fato e de verdade.
de que conhecem a Deus. 1 João 3.11-18 ARA
João falou desse teste na seguinte passa­
gem bíblica: Amados, amemo-nos uns aos outros, por­
que o am or procede de Deus; e todo aquele
Irmãos, não vos escrevo mandamento no­ que ama é nascido de D eus e conhece a
vo, mas o mandamento antigo, que desde Deus. A quele que não ama não conhece a
Deus, pois D eus é amor. Nisto se manifes­ A quele que ama a seu irmão está na luz, e
tou o amor de D eus em nós: em haver nele não há escândalo.
D eus enviado o seu Filho unigênito ao
m undo, para vivermos por meio dele. Nis­ Assim como no teste moral, essa passa­
to consiste o amor: não em que nós tenha­ gem contém dois grupos específicos de pes­
mos amado a Deus, mas em que ele nos soas: o das que dizem estar na luz e aborre­
amou e enviou o seu Filho como propicia- cem (odeiam) seu irmão e o das que mostram
ção pelos nossos pecados. Amados, se D eus que estão na luz por amarem seu irmão.
de tal maneira nos amou, devemos nós O primeiro grupo está nas trevas. Com
também amar uns aos outros. N inguém certeza, nesse ponto, João está fazendo men­
jamais viu a Deus; se amarmos uns aos ou­ ção dos gnósticos, que se diziam “os ilumina­
tros, D eus perm anece em nós, e o seu amor dos”, mas o mesmo se dá com relação a todos
é, em nós, aperfeiçoado. Nisto conhecemos que professam ter sido regenerados, embora
que permanecemos nele, e ele, em nós: em não apresentem mudanças.
que nos deu do seu Espírito. E nós temos Em essência, Paulo fez a mesma declaração:
visto e testemunhamos que o Pai enviou o
seu Filho como Salvador do mundo. A q u e­ Ainda que eu tenha o dom de profetizar e
le que confessar que Jesus é o Filho de conheça todos os mistérios e toda a ciência;
Deus, Deus perm anece nele, e ele, em ainda que eu tenha tamanha fé , aponto de
Deus. E nós conhecemos e cremos no amor transportar montes, se não tiver amor, na­
que Deus tem por nós. D eus é amor, e da serei.
aquele que perm anece no am or perm anece 1 Coríntios 13.2 ara

em Deus, e Deus, nele. Nisto é em nós


aperfeiçoado o amor, para que, no Dia do Quanto ao segundo grupo, João disse que
Juízo, mantenhamos confiança; pois, se­ nele não há escândalo em sua conduta (1 Jo 2.10).
gundo ele é, tam bém nós somos neste Essa ideia pode ser aplicada àqueles que não so­
mundo. N o amor não existe medo; antes, o mente andam na luz, mas também não fazem
perfeito amor lança fora o medo. Ora, o qualquer outra pessoa ser motivo de escândalo.
medo produz tormento; logo, aquele que A ideia também pode ser aplicada àqueles
teme não é aperfeiçoado no amor. Nós que andam na luz e não tropeçam. O contex­
amamos porque ele nos amou primeiro. Se to praticamente exige essa segunda ideia, pois
alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu a questão dessas passagens não é o que acon­
irmão, é mentiroso; pois aquele que não tece aos outros, mas o efeito do amor e do
ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar ódio nos próprios indivíduos.
a Deus, a quem não vê. Ora, temos, da par­ O equivalente negativo disso ocorre em
te dele, este mandamento: que aquele que 1 João 2.11:
ama a D eus ame também a seu irmão.
1 João 4.7-21 ara Mas aquele que aborrece a seu irmão está
em trevas, e anda em trevas, e não sabe
O resumo do teste de João está em 1 João para onde deva ir; porque as trevas lhe ce­
2.9,10: garam os olhos.

A quele que diz que está na luz e aborrece Esse versículo apresenta o verbo andar, o
a seu irmão até agora está em trevas. qual pode ser aplicado à vida de amor. Ele
sugere passos práticos. O amor não é certo não sugere que devemos esperar até que os
sentimento benigno ou um sorriso, mas uma outros se arrependam para perdoar-lhes. So­
atitude que determina o que fazemos. É im­ mos chamados a ter um espírito perdoador
possível falar do amor cristão sem falar de assim que os outros nos ofendem. Podemos
ações decorrentes do mesmo, assim como não até dizer que o outro está errado, mas, mes­
se pode falar do amor divino sem mencionar mo dizendo isso, devemos liberar o perdão.
a criação, a revelação do Antigo Testamento, (S c h a e f fe r , 1970, p. 145)
a vinda de Cristo, a cruz e o derramamento
do Espírito Santo. João, conhecido como um dos filhos do
O que ocorreria se aqueles que professam trovão (Mc 3.17), já quis clamar por fogo do
a vida de Cristo amassem uns aos outros ver­ céu para queimar aqueles que rejeitaram Jesus.
dadeiramente? Francis Schaeffer sugeriu vá­
rios fatos. Primeiro, quando um cristão falha E os discípulos Tiago e João, vendo isso,
no amor a outro cristão e age de modo errado disseram: Senhor, queres que digamos que
com relação a essa pessoa, deve ir até ela e desça fogo do céu e os consuma, como Elias
desculpar-se. Esse gesto expressa amor e res­ também fe z ?
taura a singularidade que Jesus disse que flui­ Lucas 9.54
ria do amor cristão ao próximo. Além disso,
atesta seu cristianismo diante do mundo. Porém, ao conhecer mais de Deus, o após­
Segundo, quando alguém nos machuca, tolo clamou por amor.
devemos mostrar nosso amor, perdoando- Terceiro, devemos mostrar amor ainda
-lhe. Isso é difícil, especialmente quando esse que o preço seja caro. O amor custou ao sa-
alguém não se desculpa. maritano da parábola de Cristo tempo e di­
Schaeffer disse: nheiro (L c 10.30-37); ao pastor custou deixar
suas 99 ovelhas no aprisco para ir atrás de
Temos de reconhecer continuamente que não uma que se perdeu (M t 18.12-14; L c 15.4-7);
praticamos o perdão como deveríamos. Toda­ e, a Maria de Betània, uma libra de ungüento
via, nossa oração é: “Perdoa as nossas dívidas e de nardo puro, de muito preço (Jo 12.3-8).
as nossas ofensas como perdoamos as dos ou­ O amor custa caro a quem o pratica, mas o
tros!”. Devemos ter um espírito perdoador an­ que se compra com ele é de valor ainda maior.
tes mesmo de os outros mostrarem arrependi­ Ele é uma prova da presença da vida de Deus
mento por seus erros. A oração do Pai-Nosso a nós, cristãos, e ao mundo, que nos observa.
C A P ÍT U LO
<L.

U m a n o va f a m íl ia

I as primeiras páginas de A Placefor algo, a algum lugar ou a alguém. ( T o u r n i e r ,


/II j You [Um lugar para você], o notá- 1968, p. 12)
j %j vel psicólogo suíço Paul Tournier
t fala de um jovem que ele aconse­ N o nível espiritual, entretanto, o proble­
lhara, o qual crescera em um lar religioso, mas ma é detectado na alienação a Deus que senti­
infeliz. mos como resultado da Queda e de nossos
Esse rapaz vivenciou o divórcio dos pais, próprios pecados.
o que acarretou sintomas psicológicos preju­ Agostinho foi feliz ao dizer:
diciais, como um acentuado senso de fracasso.
Primeiro, por não ter conseguido reconciliar Tu nos form aste para Ti. [...] E nosso coração
seus pais; segundo, por não ter obtido um bom não descansará até encontrar descanço em Ti.
desempenho em seus estudos; e, terceiro, por (O a tes , 1948, p. 3)
não ter sido capaz de estabelecer-se e alcançar
sucesso em nenhuma área da vida. Quando, Deus lidou com esse grande problema da
então, conheceu Tournier, em uma de suas alienação por meio da adoção, levando certa
conversas, concluiu que estava sempre à pro­ pessoa de uma (ou nenhuma) família para a
cura do lugar certo. Sua família. As vezes, a adoção divina é consi­
A necessidade de um lugar certo é comum derada um mero aspecto da justificação ou
a todos. apenas outra maneira de dizer o que acontece
na regeneração, mas a adoção divina é muito
A criança que cresce harmonicamente em um mais que esses outros atos da obra do Senhor.
lar saudável encontra “boas-vindas” em qual­ John M urray distinguiu a adoção da justi­
quer lugar. Uma vara atravessada entre duas ficação e da regeneração, quando disse:
cadeiras já pode ser considerada um lar. Na
vida adulta, onde quer que vá, ela poderá fa­ A justificação divina significa nossa aceitação
zer dali seu lar, sem esforço algum. Para ela, a por Deus como justos e a concessão da vida
questão não será procurar, mas escolher um eterna. A regeneração é a renovação de nosso
lar. [...] Já quando a criança cresce em uma coração diante de Deus. Contudo, essas bên­
família que não a faz pertencer a ela, procura çãos em si, por mais preciosas que sejam, não
em todo lugar por outro lar, e nunca consegue indicam o que é conferido no ato da adoção.
estabelecer-se em local algum. A criança passa Por meio da adoção, os redimidos se tornam
a carregar em si a incapacidade de pertencer a filhos do Todo-poderoso, com direito a todos
os privilégios da família de Deus. (M u r r a y , e não a uma atitude ou disposição que não
1955, p. 132) nos possibilita reconhecer esse relaciona­
mento e cultivá-lo.
Somente a adoção divina sugere o novo 3. Quando Deus nos adota, recebemos o Es­
relacionamento familiar, o qual obtemos por pírito de adoção por meio do qual pode­
Cristo, e aponta para os privilégios desse rela­ mos reconhecer nossa família e exercitar
cionamento. os privilégios de pertencermos a ela. E,
porque sois filhos, Deus enviou aos nossos
Porque todos os qu e são guiados pelo Es­ corações o Espírito de seu Filho, que clama:
pírito de Deus, esses são filhos de Deus. Aba, Pai (G1 4.6). Compare com Roma­
Porque não recebestes o espírito de escra­ nos 8.15,16.
vidão, para, outra vez, estardes em te­ O espírito de adoção (Rm 8.15) é a conse­
mor, mas recebestes o espírito de adoção qüência; ele, em si, não constitui a adoção
de filhos, pelo qual clamamos: A ba, Pai. divina. Há uma relação de muita proximi­
O mesmo Espírito testifica com o nosso dade entre a adoção e a regeneração.
espírito qu e somos filhos de Deus. E, se (M u r r a y , 1955, p. 132-133)
nós somos filhos, somos, logo, herdeiros
também , herdeiros de D eus e co-herdei- A relação é explicada pela maneira como,
ros de Cristo; se é certo que com ele p a d e­ no passado, um pai adotava seu próprio filho
cemos, para que tam bém com ele sejamos oficialmente como seu representante legal e
glorificados. herdeiro. Esse era um momento muito im­
Romanos 8.14-17 portante na vida de um judeu, grego ou roma­
no. Antes, o filho era filho por meio de seu
Essa passagem fala da adoção divina como nascimento. Depois, ele se tornava filho legal,
uma obra separada do Espírito de Deus, por passando da dependência de seu responsável
meio da qual: (1) somos libertos da escravi­ para a idade adulta.
dão do pecado e do medo; (2) temos certeza Apesar de, na vida cristã, a regeneração e a
de nosso relacionamento com Deus; e (3) adoção acontecerem simultaneamente, a ado­
tornamo-nos herdeiros de Deus com Cristo. ção enfatiza o novo status de cristão, enquan­
Murray também afirmou: to a regeneração, o da novidade de vida.

1. Apesar de a adoção divina ser algo distin­ Novos RELACIONAMENTOS__________________

to, ela nunca se dará separada da justifica­ Talvez eu não me tenha expressado bem
ção e da regeneração. Quem for justifica­ utilizando o term o novo status. A adoção
do será sempre considerado filho de Deus. envolve, na verdade, novos relacionam en­
E todos que receberam o direito de tor- tos, tanto com Deus com o com os irmãos
narem-se filhos de Deus não nasceram do na fé.
sangue, nem da vontade da carne, nem da O novo relacionamento com o Altíssimo
vontade do varão, mas de Deus (Jo 1.13). não se dá automaticamente. Tendo nos justi­
2. A adoção divina é, assim como a justifica­ ficado, Ele poderia ter-nos deixado com um
ção, um ato judicial. Em outras palavras, status bem inferior e com bem menos privilé­
é a concessão de um status, não a geração gios. Contudo, em vez disso, adotou-nos em
em nós de uma nova natureza ou persona­ Sua própria família, dando-nos o status e os
lidade. Diz respeito a um relacionamento, privilégios de filhos e filhas dele. A bondade
de Deus foi tão grande com esse ato de ado­ ele fo i homicida desde o princípio e não se
ção que somos tentados a dispensá-lo. Por firm ou na verdade, porque não há verda­
isso, o Todo-poderoso buscou selar essas ver­ de nele; quando ele profere mentira, fala
dades em nosso coração. do que lhe é próprio, p orque é mentiroso e
C om o disse Paulo: pai da mentira.
João 8.32,33,37,39,42-44
Mas, como está escrito: As coisas que o olho
não viu, e o ouvido não ouviu, e não subi­ Nesse diálogo com os judeus, Jesus pôs
ram ao coração do hom em são as que D eus um fim à errônea doutrina de que Deus é Pai
preparou para os que o amam. Mas D eus de todos e de que todos são Seus filhos.
no-las revelou pelo seu Espírito; porque o Todavia, não é apenas um novo relaciona­
Espírito penetra todas as coisas, ainda as mento (com Deus) o que nós, cristãos, ganha­
profundezas de Deus. mos com a adoção divina. Também adquiri­
1 Coríntios 2.9,10 mos um relacionamento com outras pessoas
(nossos irmãos e irmãs em Cristo), o que re­
H á certo sentido nos ditos populares “Deus quer que as amemos e que, com elas, traba­
é Pai” e “Eu também sou filho de Deus”, pois lhemos, pois isso condiz com nossos novos
Ele criou todas as coisas e é Ele quem sustenta laços de família.
nossa vida dia a dia. Porque nele vivemos, e nos Antes, não pertencíamos à família de
movemos, e existimos, como também alguns Deus. Ao contrário, cada um de nós vivia sua
dos vossos poetas disseram: Pois somos também própria vida, opondo-se e, às vezes, mostran­
sua geração (At 17.28). do hostilidade aos outros. Agora, somos dife­
Por essa razão, somos chamados de gera­ rentes. Assim que já não sois estrangeiros, nem
ção de D eus (A t 17.29). Contudo, Jesus decla­ forasteiros, mas concidadãos dos Santos e da
rou que alguns que se consideravam filhos de família de Deus (Ef 2.19).
Deus eram, na verdade, filhos do diabo. As atitudes que devem fluir desses novos
relacionamentos nem sempre se dão natural
E conhecereis a verdade, e a verdade vos ou facilmente. Justamente por esse motivo,
libertará. Responderam-lhe: Somos des­ precisamos tom ar posse dessa realidade e
cendência de Abraão, e nunca servimos a esforçar-nos para termos bons relaciona­
ninguém ; como dizes tu: Sereis livres? Bem mentos.
sei que sois descendência de Abraão; con­ John White assim descreveu essa tarefa:
tudo, procurais matar-me, porque a minha
palavra não entra em vós. Responderam e Vocês foram purificados pelo mesmo sangue e
disseram-lhe: Nosso pai é Abraão. Jesus regenerados pelo mesmo Espírito. São cida­
disse-lhes: Se fósseis filhos de Abraão, fa- dãos da mesma cidade, servos do mesmo Mes­
ríeis as obras de Abraão. Disse-lhes, pois, tre, leitores das mesmas Escrituras e adorado­
Jesus: Se D eus fosse o vosso Pai, certamen­ res do mesmo Deus. A mesma presença habita
te, me amaríeis, pois que eu saí e vim de silenciosamente em vocês. Logo, vocês têm
Deus; não vim de mim mesmo, mas ele me compromissos uns com os outros. Vocês são
enviou. Por que não entendeis a minha irmãos em Cristo. Gostando ou não, vocês
linguagem ? Por não poderdes ouvir a mi­ pertencem a Ele. Vocês têm responsabilidades
nha palavra. Vós tendes p or pai ao diabo e com relação um ao outro que devem ser cum­
quereis satisfazer os desejos de vosso pai; pridas com amor. Enquanto vocês morarem
neste mundo, serão devedores uns dos outros. pode murchar, guardada nos céus para vós.
Seus irmãos podem ter feito muito ou pouco 1 Pedro 1.3,4
por vocês, mas Cristo fez tudo por vocês. E
Ele ordena que essa eterna dívida de vocês seja E Paulo descreveu o Espírito Santo como
transferida a seus novos irmãos. (W h it e , 1976, o p enhor da nossa herança, para redenção da
p. 129-130) possessão de D eus (Ef 1.14).
A oração é o maior privilégio da adoção
Fazer parte da família de Deus não signifi­ divina que podemos desfrutar agora. P or ou­
ca que seremos insensíveis às falhas humanas. tro lado, ela é descrita como uma conseqüên­
N a verdade, deveremos ser sensíveis a elas se cia de nossa justificação.
quisermos eliminá-las e melhorar a qualidade
de nossos novos relacionamentos familiares. Sendo, pois, justificados pela fé , temos paz
N ão poderemos, entretanto, ser ultrassensí- com D eus por nosso Senhor Jesus Cristo;
veis às faltas de nossos irmãos e irmãs em pelo qual também temos entrada pela f é a
Cristo; tampouco deveremos criticá-los dire­ esta graça, na qual estamos firmes; e nos
tamente. O h! Quão bom e quão suave é que gloriamos na esperança da glória de Deus.
os irmãos vivam em união! (Sl 133.1). Romanos 5.1,2
Devemos ser comprometidos uns com os
outros, com a devida lealdade familiar, esfor­ O termo entrada, nesse caso, significa
çando-nos para que ajudemos uns aos outros acesso a Deus e baseia-se em nossa adoção.
a levar uma vida cristã. Temos também de Em função dela, podemos aproximar-nos do
orar uns pelos outros e servir uns aos outros. Altíssimo como um filho pode aproximar-se
Orai uns pelos outros (Tg 5.16b). Servi-vos de seu pai.
uns aos outros pela caridade (G1 5.13b).
Porque não recebestes o espírito de escravi­
P r iv il é g io s d e f a m í l i a _____________________
dão, para, outra vez, estardes em temor,
Nossos novos relacionamentos nos dão mas recebestes o espírito de adoção de fi­
novos privilégios. Alguns destes agora, nesta lhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai. O
vida, e outros depois, no céu. Os do céu são mesmo Espírito testifica com o nosso espíri­
descritos na Bíblia como nossa herança. N a to que somos filhos de Deus.
Sagrada Escritura não é dito exatamente que Romanos 8.15,16
privilégios serão os vindouros, apenas que
envolvem vida e bênçãos celestiais. Nossa he­ Somente pelo testemunho do Espírito San­
rança é definida com o riquezas da glória (Ef to em nós podemos ter certeza de que Deus é
1.18), galardão pelo serviço a Cristo (Cl 3.24) nosso Pai e de que Ele realmente ouve nossas
e herança eterna (H b 9.15). orações.
Pedro declarou o seguinte: Podemos chamar o nosso Deus de Pai,
pois Jesus disse: Portanto, vós orareis assim:
Bendito seja o D eus e Pai de nosso Senhor Pai nosso, que estás nos céus (M t 6.9a).
Jesus Cristo, que, segundo a sua grande Nenhum judeu havia chamado Deus de
misericórdia, nos gerou de novo para uma Pai nosso no Antigo Testamento. De fato, esse
viva esperança, pela ressurreição de Jesus modo de orar era inédito, original para a época
Cristo dentre os mortos, para uma herança de Cristo. Isso foi documentado pelo estudio­
incorruptível, incontaminável e que se não so alemão Ernst Lohmeyer no livro chamado
Pai-nosso, e pelo contemporâneo estudioso não desviarás. Deveras, como a m ulher se
da Bíblia Joaquim Jeremias em um ensaio in­ aparta aleivosamente do seu companheiro,
titulado A ba e um livreto chamado A oração assim aleivosamente te houveste comigo, ó
do Pai-nosso. casa de Israel, diz o S E N H O R .
De acordo com esses estudiosos, três coi­ Jeremias 3.19,20
sas são indiscutíveis: (1) Jesus foi o primeiro a
referir-se a Deus assim; (2) Jesus sempre orou N o tempo de Jesus, a distância entre as
tratando Deus dessa forma; e (3) Jesus autori­ pessoas e o Altíssimo parecia ser grande. Os
zou Seus discípulos a tratarem Deus do mes­ nomes de Deus eram constantemente citados
mo modo. em discursos públicos e orações, mas essa
É fato que o termo Pai para designar Deus tendência foi completamente derrubada por
é tão antigo quanto a religião. Homero escre­ Jesus, que sempre chamou Deus de Pai, e esse
veu acerca de um “Pai-Zeus que governa sobre fato deve ter impressionado de maneira extra­
os deuses e os mortais”. Aristóteles disse que ordinária Seus discípulos.
Homero estava certo em dizer que o governo O s quatro Evangelhos relatam que C ris­
do pai sobre seus filhos é como o do rei sobre to chamou Deus de Pai até mesmo em Suas
seus súditos. orações.
Nesse contexto, a palavra Pai significa Se­
nhor. E interessante notar, no entanto, que esse N aquele tempo, respondendo Jesus, disse:
termo é usado aqui como impessoal. N o pen­ Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da
samento grego, Deus era chamado de Pai no terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e
mesmo sentido que um rei o era. instruídos e as revelaste aos pequeninos.
O Antigo Testamento usa a palavra Pai Mateus 11.25
como uma designação à relação entre Deus e
Israel, mas, ainda assim, o uso é impessoal e E, indo um pouco adiante, prostrou-se so­
não é freqüente. N a verdade, ocorre 14 vezes bre o seu rosto, orando e dizendo: M eu
em todo o Antigo Testamento. Israel é cha­ Pai, se é possível, passa de mim este cálice;
mado assim pelo Senhor: m eu filho, m eu pri­ todavia, não seja como eu quero, mas co­
mogênito (E x 4.22). mo tu queres. E, indo segunda vez, orou,
Davi declarou: Como um pai se compade­ dizendo: M eu Pai, se este cálice não pode
ce de seus filhos, assim o S E N H O R se compa­ passar de mim sem eu o beber, faça-se a
dece daqueles que o temem (Sl 103.13). tua vontade.
Isaías disse: Mas, agora, ó S E N H O R , tu és Mateus 26.39,42
o nosso Pai; nós, o barro, e tu, o nosso oleiro; e
todos nós, obra das tuas mãos (Is 64.8). E disse: Aba, Pai, todas as coisas te são
Porém, em nenhuma dessas passagens um possíveis; afasta de m im este cálice; não
israelita chama Deus de Pai. A maioria delas seja, porém , o que eu quero, mas o que tu
diz que Israel não veio a ter o status de família. queres.
Jeremias afirmou: Marcos 14.36

Mas eu dizia: Como te porei entre os fi­ E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não
lhos e te darei a terra desejável, a exce­ sabem o que fazem . E, repartindo as suas
lente herança dos exércitos das nações? E vestes, lançaram sortes.
eu disse: Pai m e chamarás e de m im te
Tiraram, pois, a pedra. E Jesus, levantando Em todas as outras vezes, Jesus corajosa­
os olhos para o céu, disse: Pai, graças te mente assumiu com Deus um relacionamento
dou, p o r m e haveres ouvido. que muitos achavam desrespeitoso ou blasfemo.
João 11.41 Isso é muito importante para nossas ora­
ções: Cristo era o Filho de Deus em um sen­
Agora, a minha alma está perturbada; e tido único, assim como Deus era Seu Pai tam­
que direi eu? Pai, salva-me desta hora; bém em um sentido único. Ele orava a Deus
mas para isso vim a esta hora. com o Seu Filho único. Agora, revela que
João 12.27 todo aquele que nele crê tem essa mesma
relação com o Senhor — todo aquele cujos
Jesus falou essas coisas e, levantando os pecados foram perdoados por Seu sacrifício
olhos ao céu, disse: Pai, é chegada a hora; vicário. Todo o que nele crê pode ir a Deus
glorifica a teu Filho, para que tam bém o com o Seu filho.
teu Filho te glorifique a ti, e, agora, glori- Além disso, quando chamou Deus de Pai,
fica-m e tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com Jesus usou a palavra aramaica aba. Isso foi tão
aquela glória qu e tinha contigo antes que impactante para Seus discípulos que eles fize­
o m undo existisse. E eu já não estou mais ram menção do mesmo vocábulo, mesmo es­
no m undo; mas eles estão no m undo, e eu crevendo em grego.
vou para ti. Pai santo, guarda em teu no­ Marcos o utilizou em seu relato da oração
m e aqueles que m e deste, para qu e sejam de Cristo no Getsêmani: E disse: Aba, Pai,
um, assim como nós. Para qu e todos se­ todas as coisas te são possíveis; afasta de mim
jam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e este cálice; não seja, porém , o que eu quero,
eu, em ti; que tam bém eles sejam um em mas o que tu queres (Mc 14.36).
nós, para que o m undo creia qu e tu me E Paulo empregou a mesma palavra nas
enviaste. Pai, aqueles qu e m e deste quero passagens a que nos referimos:
que, onde eu estiver, tam bém eles este­
jam comigo, para que vejam a minha Porque não recebestes o espírito de escravi­
glória qu e m e deste; p orque tu m e hás dão, para, outra vez, estardes em temor,
amado antes da criação do m undo. Pai mas recebestes o espírito de adoção de fi­
justo, o m undo não te conheceu; mas eu te lhos, pelo qual clamamos: Aba, Pai.
conheci, e estes conheceram que tu m e en­ Romanos 8.15
viaste a mim.
João 17.1,5,11,21,24,25 E, porque sois filhos, D eus enviou aos nos­
sos corações o Espírito de seu Filho, que
A única exceção tem um porquê: é o cla­ clama: Aba, Pai.
m or da cruz. Deus meu, Deus meu, por que Gálatas 4.6
m e desamparaste? (Mt 27.46b).
Essa oração adveio dos lábios de Cristo O que aba significa exatamente? Crisós­
no momento em que Ele foi feito pecado pela tomo, Teodoro de Mopsuéstia e Teodoreto de
humanidade e em que o relacionamento que Ciro, cristãos da Igreja primitiva vindos de
tinha com Seu Pai parece ter sido temporaria­ Antioquia (onde o aramaico era a primeira
mente quebrado. À quele que não conheceu língua), testificam unànimemente que aba era
pecado, o fe z pecado p or nós; para que, nele, como uma criança chamava seu pai ( J e r e ­
fôssemos feitos justiça de D eus (2 C o 5.21). m ia s , 1964, p . 19).
O Talmude é outra testemunha, pois afirma Se Deus for nosso Pai, cuidará de nós e
que em geral aba e ima (papai e mamãe, respecti­ nos abençoará abundantemente, pois assim
vamente) eram as primeiras palavras aprendidas como a lei dos Estados Unidos da América
pelas crianças. Isso é o que aba quer dizer, papai. diz que os pais devem cuidar de seus filhos, a
N o pensamento judaico, uma oração que Lei de Deus também declara o mesmo.
chama Deus de papai não somente seria im­
própria, mas também o pior dos desrespeitos. Eis aqui estou pronto para, pela terceira
Contudo, era como Jesus tratava Deus. Quan­ vez, ir ter convosco e não vos serei pesado;
do Cristo instruiu Seus discípulos a fazerem o pois que não busco o que é vosso, mas,
mesmo, estava propondo algo inédito. sim, a vós; porque não devem os filhos en-
tesourar para os pais, mas os pais, para os
C o n f ia n ç a e m n o s s o P a i __________________ filhos.
Isso nos dá certeza diante de Deus. Ao 2 Coríntios 12.14
aproximarmo-nos do Altíssimo, sendo ensi­
nados e levados a fazê-lo pelo Seu próprio Isso é verdade tanto no plano material co ­
Espírito, sabemos que estamos em um rela­ mo no espiritual.
cionamento seguro. Jesus disse:
Deus é nosso Pai? Em caso afirmativo, Ele
nos ajudará em nossa caminhada, mostrando- Por isso, vos digo: não andeis cuidadosos
-nos como andar espiritualmente e levantan- quanto à vossa vida, pelo que haveis de
do-nos quando cairmos. comer ou pelo que haveis de beber; nem
quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de
Todavia, eu ensinei a andar a Efraim; to­ vestir. Não é a vida mais do que o manti­
mei-os pelos seus braços, mas não conhece­ mento, e o corpo, mais do que a vestimenta?
ram que eu os curava. Atraí-os com cordas Mateus 6.25
humanas, com cordas de amor; e fu i para
eles como os que tiram o jugo de sobre as Deus, sendo nosso Pai, irá adiante de nós,
suas queixadas; e lhes dei mantimento. apontando o caminho para a vida.
Como te deixaria, ó Efraim ? Como te en­ Paulo fez essa declaração ao afirmar: Sede,
tregaria, ó Israel? Como te faria como A d- pois, imitadores de Deus, como filhos amados
m á? Pôr-te-ia como Zeboim ? Está muda­ (Ef 5.1).
do em mim o m eu coração, todos os meus Deus, como nosso Pai, garante-nos que
pesares juntam ente estão acesos. pertencemos a Ele eternamente e que, en­
Oséias 11.3,4,8 quanto formos guiados, ensinados e instruí­
dos para as tarefas da vida, nada interferirá em
U m Deus assim nos livra de cairmos e Seu propósito para nós em Cristo. Devemos,
apresenta-nos irrepreensíveis, com alegria, portanto, anelar por vê-lo e ser como Ele,
perante a sua glória (Jd 1.24). pois o veremos como Ele é.
O CAMINHO QUE LEVA PARA O ALTO

^
m dos primeiros sinais da obra perfeitos em nossos pensamentos e nossa
;
salvadora de Deus na vida de um conduta. É aí que entra a santificação. Paulo
^
indivíduo é a insatisfação com o era ciente disso quando fez a seguinte decla­
pecado e a busca pela santidade. ração por escrito aos filipenses:
Contudo, nem a insatisfação nem a busca se
assemelham à santidade em si, a qual é o alvo Não que já a tenha alcançado ou que seja
que devemos perseguir. perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo
Se não entendermos a santidade bíblica, para o que fu i também preso p o r Cristo
poderemos imaginar que atingimos a perfei­ Jesus.
ção, tornando-nos, assim, complacentes com Filipenses 3.12
a vida cristã. Quando a compreendemos, en­
contramo-nos forçados a ter de depender do Três versículos depois, ele disse: Pelo que
poder do Espírito Santo em nós. todos quantos já somos perfeitos sintamos isto
A santificação, palavra apropriada para es­ mesmo (Fp 3.15a).
se aspecto da obra do Espírito no cristão, des­ Apesar de Paulo saber que seu histórico já
creve duas áreas de crescimento: (1) a separa­ havia sido esquecido por Deus pela obra de
ção para Deus e Seus propósitos, pois o Cristo e que ele já havia alcançado certa ma­
significado de santidade sugere uma separa­ turidade espiritual, o apóstolo também era
ção para Deus; e (2) a conduta que agrada a ciente da necessidade de crescer em santidade
Ele, que é a que imita a de Jesus. C om o tem­ e amor para atingir a estatura de Cristo.
po, passamos a pensar e agir como Cristo Todo cristão passa por essa experiência.
pensaria e agiria. Quando cremos em Jesus como nosso Salva­
Portanto, o alvo da santidade tem seu pa­ dor, a maioria de nós se alegra e dá graças a
drão moral em conformidade com a vontade Deus pela salvação. Sentimos que tudo mu­
e a mentalidade de Deus. Santificação é um dou. Somos libertos do pecado e feitos novas
desejo de crescer no caráter de Cristo. criaturas em Cristo. Todavia, ainda temos
nossas inclinações carnais, precisando melho­
P e r f e it o s , m a s se n d o a p e r f e iç o a d o s
rar nosso caráter e nossa conduta. Antes, tí­
Mesmo tendo sido regenerados e justifica­ nhamos maus hábitos. Agora, somos salvos.
dos aos olhos de Deus, continuamos sendo Porém, muitos desses maus costumes perma­
pecadores. Contudo, apesar de justificados necem por um tempo, enquanto somos trata­
diante do Senhor, estamos longe de sermos dos por Deus.
Podemos, então, duvidar da realidade da Sendo filhos de Deus, devemos ser como
salvação? N ão, pois o próprio fato de sermos Ele em santidade, assim como em outros as­
agora cientes dessas imperfeições comprova pectos de Seu caráter.
que a obra transformadora de Deus já se insta­ O texto de Romanos 7.15,21-23 é um
lou. Em vez de duvidar, devemos perceber que exemplo clássico do conflito existente na vida
entramos em uma nova vida, que em muito do cristão quando o pecado está presente (a
precisa ser mudada. À medida que Deus opera, segunda declaração de Murray).
ocorre uma crescente insatisfação com o peca­
do e uma crescente fome pela justiça divina. Porque o que faço, não o aprovo, pois o que
A santificação é um processo contínuo. quero, isso não faço; mas o que aborreço, isso
N o entanto, isso não significa que é menos faço. Acho, então, esta lei em mim: que, quando
importante ou dispensável. É tão importante quero fa zer o bem, o mal está comigo. Porque,
e necessária na salvação quanto a regeneração, segundo o homem interior; tenho prazer na lei
a justificação e a adoção. de Deus. Mas vejo nos meus membros outra lei
John Murray enfatizou a importância da que batalha contra a lei do meu entendimento
santificação com três declarações: (1) todo pe­ e me prende debaixo da lei do pecado que está
cado no cristão contradiz a santidade de Deus; nos meus membros (Rm 7.15,21-23).
(2) a presença do pecado na vida do cristão É inútil afirmar que esse conflito não é nor­
envolve conflito em seu coração; e (3) apesar mal. Quando há pecado na vida de quem tem
de o pecado ser passível ao cristão salvo, ele o Espírito de Deus, há uma contradição no
não o domina (M u r r a y , 1955, p. 144-145). coração da pessoa. Com efeito, quanto mais
A primeira declaração se baseia nas se­ santificada a pessoa for, mais conformada es­
guintes passagens: tará à imagem de seu Salvador e mais deverá
afastar-se do que não for santo. Quanto mais
Mas, como é santo aquele que vos chamou, profunda a apreensão da majestade de Deus,
sede vós também santos em toda a vossa maior a intensidade de seu amor por Deus,
maneira de viver, porquanto escrito está: mais persistente o seu desejo pelo chamado de
Sede santos, porque eu sou santo. Deus em Cristo Jesus, mais consciente ela se­
1 Pedro 1.15,16 rá da gravidade do pecado que permanece e
mais aguda será sua repulsa pelo pecado.
Porque tudo o que há no mundo, a concu- Quanto mais próxima ela estiver do Deus
piscência da carne, a concupiscência dos santo, mais pesará sua condição de pecadora,
olhos e a soberba da vida, não é do Pai, e dirá: Miserável homem que eu sou! (Rm
mas do mundo. 7.24). Não foi esse o efeito em todo o povo de
1 João 2.16 Deus em Isaías 6.5, ao aproximar-se da revela­
ção da santidade de Deus? Então, disse eu: ai
Amados, agora somos filhos de Deus, e de mim, que vou perecendo! Porque eu sou
ainda não é manifesto o que havemos de um homem de lábios impuros e habito no meio
ser. Mas sabemos que, quando ele se mani­ de um povo de impuros lábios; e os meus olhos
festar, seremos semelhantes a ele; porque viram o rei, o SE N H O R dos Exércitos! Como
assim como é o veremos. E qualquer que disse Jó, com o ouvir dos meus ouvidos ouvi,
nele tem esta esperança purifica-se a si mas agora te vêem os meus olhos. Por isso, me
mesmo, como também ele é puro. abomino e me arrependo no pó e na cinza (Jó
1 João 3.2,3 42.5,6). ( M u r r a y , 1955, p . 145)
O terceiro ponto de M urray é ensinado Senhor, somos transformados de glória
em Romanos 8.2-4: em glória, na mesma imagem, como pelo
Espírito do Senhor.
Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo
Jesus, m e livrou da lei do pecado e da mor­ Essas passagens falam de esvaziarmo-nos
te. Porquanto, o que era impossível à lei, e deixarmos Deus realizar a obra da santifica­
visto como estava enferm a pela carne, ção em nós.
Deus, enviando o seu Filho em semelhança Todavia, existem outras passagens que fa­
da carne do pecado, pelo pecado condenou lam do nosso papel na santificação, como: D i­
o pecado na carne, para que a justiça da lei go, porém : A ndai em Espírito e não cumprireis
se cumprisse em nós, que não andamos se­ a concupiscência da carne (G1 5.16).
gundo a carne, mas segundo o Espírito.
Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos
A santificação é importante sob a pers­ amados; revesti-vos de toda a armadura
pectiva de nossa própria realização como de Deus, para que possais estar firm es con­
cristãos. Porém , sua importância se eviden­ tra as astutas ciladas do diabo.
cia ainda mais quando vista sob essas três Efésios 5.1; 6.11
declarações de Murray. Se fôssemos dizer
que se tornar mais santo é desnecessário e Essas passagens tratam da nossa obrigação
que permaneceríamos no pecado, estaríamos de usar esses “meios da graça divina” que nos
declarando que Deus não é santo, que o pe­ são disponíveis.
cado não envolve uma contradição e um Devemos, então, esvaziar-nos no sentido
conflito em nós e que o Altíssimo não tem de deixar de lado o estudo da Bíblia, a oração,
vitória alguma para nós. Assim, estaríamos a comunhão com outros cristãos e a adoração
negando as Escrituras e chamando Deus de a Deus, para crescer na vida cristã? De manei­
mentiroso. ra nenhuma! Assim, iríamos estagnar na vida
N a verdade, devemos deixar o pecado e cristã e distanciar-nos do evangelho.
buscar a ajuda, a força e o encorajamento de Também estaremos errados se pensarmos
Deus para levarmos a vida de santidade de que fazer uso desses meios nos permite alcan­
que precisamos desesperadamente. çar nossa própria santificação automatica­
O que estou dizendo pode suscitar uma per­ mente. O entendimento correto seria uma
gunta bem complexa: Quem realiza a santifica­ combinação dos dois: Deus operando em nós
ção? Esse é um trabalho para o Espírito Santo. sendo diligentes e obedientes.
Lemos em 1 Tessalonicenses 5.23: Se já houve um momento de parar e ape­
nas se alegrar nas maravilhas do que Deus faz
E o mesmo Deus de paz vos santifique em em Cristo, ou seja, assistir passivamente à
tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo ação divina, este foi após o verdadeiro hino de
sejam plenamente conservados irrepreensíveis adoração a Jesus encontrado em Filipenses
para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. 2.5-11.

E em 2 Coríntios 3.18: D e sorte que haja em vós o mesmo senti­


mento que houve tam bém em Cristo J e ­
Mas todos nós, com cara descoberta, re­ sus, que, sendo em form a de Deus, não
fletindo, como um espelho, a glória do teve p o r usurpação ser igual a Deus. Mas
aniquilou-se a si mesmo, tomando a fo r­ temperança, a paciência, e à paciência, a
ma de servo, fazendo-se semelhante aos piedade, e à piedade, o am or fraternal, e
hom ens; e, achado na form a de hom em , ao am or fraternal, a caridade.
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente 2 Pedro 1.3,5-7
até à morte e morte de cruz. Pelo qu e
tam bém D eus o exaltou soberanamente e John White disse:
lhe deu um nom e que é sobre todo o no­
me, para que ao nom e de Jesus se dobre Que ninguém se engane: sem o Espírito de
todo joelho dos que estão nos céus, e na Deus em nós, nossos esforços são em vão. N a­
terra, e debaixo da terra, e toda língua da bom pode vir da corrupção e da pecamino-
confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para sidade de nosso coração. Todavia, fomos redi­
glória de D eus Pai. midos, santificados e separados para o uso de
Deus. Que concordemos, então, com Deus
Contudo, Paulo não nos permite isso, haja nisso [...]. Que assumamos toda a armadura de
vista o que declarou: Deus e declaremos, por meio de força miracu­
losa, guerra a todo o mal que está em nós e à
D e sorte que, meus amados, assim como nossa volta. (W h i t e , 1976, p. 194)
sempre obedecestes, não só na minha p re­
sença, mas muito mais agora na minha Isso não é uma opção. Somos comissiona­
ausência, assim também operai a vossa sal­ dos por Deus, e é quando obedecemos a Ele
vação com temor e tremor; porque D eus é que ficamos mais cientes do poder do Espíri­
o que opera em vós tanto o querer como o to Santo que está em nós. N ão podemos espe­
efetuar, segundo a sua boa vontade. rar crescer espiritualmente, se não gozarmos
Filipenses 2.12,13 da comida e da bebida que o Altíssimo coloca
à nossa disposição.
O apóstolo não disse: “Trabalhem para a
sua própria salvação!”. Entretanto, é como se M e io s p a r a a l c a n ç a r as b ê n ç ã o s d e
dissesse: “Com o vocês são salvos, Deus já en­ D e u s ___________________________________________

trou em sua vida na pessoa e no poder de Seu A próxima parte deste livro discutirá os
Espírito, e está atuando em vocês, transfor- principais meios pelos quais podemos alcan­
mando-os à imagem do Senhor Jesus Cristo. çar as bênçãos de Deus: a oração, o estudo da
Vocês devem, agora, trabalhar com afinco Bíblia e o serviço cristão. Todavia, existem
para expressar a plenitude dessa grande rea­ também outros meios, pelo menos sete, e vale
lidade em sua conduta. Dessa forma, Deus a pena considerá-los:
operará”.
Pedro afirmou o mesmo: 1. Confiança. Já tocamos neste assunto no
capítulo sobre como podemos saber se fomos
Visto como o seu divino poder nos deu tu­ justificados. Ela é importante, pois pode aju-
do o que diz respeito á vida e piedade, pelo dar-nos a crescer na vida cristã.
conhecimento daquele que nos chamou Lutero discutiu esse tema da seguinte forma:
p o r sua glória e virtude, e vós também,
pondo nisto mesmo toda a diligência, Um coração duvidoso, que não crê firmemente
acrescentai à vossa f é a virtude, e ã virtu­ que receberá algo, não o receberá, tendo em
de, a ciência, e à ciência, a temperança, e à vista que Deus não pode dar coisa alguma nesse
caso. Tal coração é como um vaso que um 3. Estudo da Bíblia. A Sagrada Escritura é
homem segura movendo-o de um lado para o uma fonte de crescimento na vida cristã. Ela
outro. E impossível derramar algo nesse va­ proporciona confiança e conhecimento. C on ­
so, por mais que a pessoa queira. Deus quer tudo, esse meio de receber bênçãos é mais que
dar-nos o que desejamos, mas lá estamos, isso. Pelo estudo bíblico, buscamos conhecer
como um pedinte insensato, movendo nosso Deus pessoalmente. N a Bíblia, Ele revela a si
chapéu para cá e para lá, e querendo que al­ próprio e a Sua vontade para nós.
guma coisa seja colocada nele. ( P l a s s , 1959, C om o disse Jesus em oração: Santifica-os
p. 429) na verdade; a tua palavra é a verdade (Jo
17.17).
Confiar é o item primordial na santifica­ Davi escreveu:
ção, pois se trata de tomar posse da Palavra de
Deus e de saber entender que Ele já começou Bem-aventurado o varão que não anda
a obra da salvação em nós. Crendo no Senhor segundo o conselho dos ímpios, nem se de­
até aqui, podemos crer nele em outras ques­ tém no caminho dos pecadores, nem se as­
tões. Se estivermos confiantes de que, verda­ senta na roda dos escarnecedores. Antes,
deiramente, começamos nossa jornada, pode­ tem o seu prazer na lei do S E N H O R , e na
remos lidar com ela como deveríamos. sua lei medita de dia e de noite.
Salmo 1.1,2
2. Conhecimento. Saber de tudo não é es­
sencial para a santificação. Saber o mínimo, O salmista meditava na Lei de Deus de dia
entretanto, ajuda. e de noite? Ele precisava fazer isso, afinal ti­
Certo escritor disse: “Assim como a con­ nha imensas responsabilidades junto à nação
fiança é um fundamento prático [...], o conhe­ (como segurança, administração, justiça etc.).
cimento de nossa posição em Cristo é a estra­ Por essa razão, era levado a meditar na Lei de
da que leva à santidade” ( B a r n h o u s e , 1951, Deus constantemente.
p. 37). Quem agir da mesma forma será como a
O que os cristãos devem conhecer para árvore plantada junto a ribeiros de águas, a
crescer na vida cristã? A pessoa do Espírito qual dá o seu fruto na estação própria, e cujas
Santo e Sua obra; a iniciativa de Deus de folhas não caem, e tudo quanto fizer prospera­
conduzir-nos à fé em Cristo; o ministério do rá (SI 1.3).
Espírito de unir-nos a C risto, do qual vem Se alguém quiser realmente conhecer
nosso novo status diante de Deus; nosso Deus e a vontade dele para sua vida, o cami­
acesso ao Pai por meio da oração; e nossa nho principal deverá ser o estudo da Palavra.
segurança em Cristo (veja os primeiros capí­
tulos deste livro). 4. Oração e adoração. O estudo da Bíblia
Se você conhecer seu novo status, poderá é a maneira pela qual Deus fala a nós. Para
tomar posse de certos privilégios. Se souber haver um diálogo com Ele, portanto, precisa­
que o Altíssimo ouve suas orações, poderá mos falar com Ele. E aí que entram a oração e
ficar na dependência do Espírito Santo para a adoração.
orar e ter suas orações interpretadas. Se tiver Diferentes entre si, a adoração e a oração
segurança em Cristo, poderá até tropeçar ou estão intimamente ligadas. O rar é falar com o
cair, mas saberá que nada arrebatará você da Altíssimo por meio da adoração, da confis­
mão de Jesus. são, da ação de graças ou da intercessão. A
adoração é um ato de louvor. Pode dar-se por ser gratos pela comunhão que temos com eles
meio de canções e/ou da exposição da Palavra na Igreja.
de Deus. Por conseguinte, a adoração inclui Quando a Igreja do primeiro século se
oração e meditação. reunia em Jerusalém, seus membros perseve-
Tanto a oração como a adoração se ba­ ravam na doutrina dos apóstolos, e na comu­
seiam em nosso conhecimento de Deus por nhão, e no partir do pão, e nas orações (At
meio das Escrituras. A adoração, para ser em 2.42). A comunhão está em igualdade com
espírito e em verdade, como Jesus disse (Jo outro meio de receber as bênçãos divinas.
4.24), deve fundamentar-se nas verdades con­
cernentes ao Senhor, as quais são reveladas na 6. Serviço. Para que a vida cristã não seja
Bíblia. egoísta nem introvertida, deve haver serviço a
Ambas são, essencialmente, um encontro Deus e aos outros, por meio do evangelismo, da
com Deus, não um mero ato religioso. generosidade e de outros atos de compaixão.
Reuben A. Torrey falou a respeito da difi­ O livro de Atos trata disso explicitamente:
culdade que teve em relação à oração e sobre
como isso mudou. Todos os que criam estavam juntos e ti­
nham tudo em comum. Vendiam suas pro­
Um dia, percebi o que verdadeiramente a ora­ priedades e fazendas e repartiam com to­
ção significa. A oração é como uma audiência dos, segundo cada um tinha necessidade.
com Deus. É entrar em Sua presença e pedir e Atos 2.44,45
receber coisas dele. A percepção desse fato
transformou minha vida de oração. Antes, Isso não significa que eles vendiam tudo o
minha oração era como um dever, muitas ve­ que tinham, muito menos que todos os cris­
zes, fastidioso. Agora, um dos meus mais esti­ tãos devem fazê-lo. Com o o texto diz que
mados privilégios. Antes, meu pensamento aqueles irmãos partiam o pão em casa (At
era: “Quanto tempo devo passar orando?”. 2.46), provavelmente alguns não vendiam su­
Agora: “Quanto tempo posso passar orando as propriedades. Isso quer dizer que eram
sem prejudicar outros privilégios e deveres?”. extremamente generosos com o que possuí­
(T o r r e y , 1955, p. 77) am, que se preocupavam com as necessidades
uns dos outros.
O mesmo pode ser dito da adoração. Hoje, nosso papel deve ser compartilhar
Quanto tempo devo passar adorando a Deus nossos bens materiais, assim com o nosso
sem prejudicar os outros deveres que Ele me tempo, encorajando e ensinando os outros,
concedeu? evangelizando ou contribuindo com nossos
talentos ou habilidades para o crescimento da
5. C o m unhão. P or meio desse gesto, Igreja de Cristo.
expressamos o novo relacionamento com
outros cristãos, que discutimos no capítulo 9. 7. O retorno de Cristo. U m tipo de enco­
P or vezes, os cristãos pensam que o impor­ rajamento e crescimento na vida cristã é o re­
tante é o relacionamento com Deus, não com torno de Cristo, nossa bem-aventurada espe­
os homens. rança (Tt 2.13).
Pura ilusão. Todos nós devemos reconhe­
cer nossa necessidade dos outros, bem como Amados, agora somos filhos de Deus, e
os dons que eles têm. Além disso, precisamos ainda não é manifesto o que havemos de
ser. Mas sabemos que, quando ele se mani­ influenciado pelo pensamento do retorno
festar, seremos semelhantes a ele; porque de nosso Senhor p or sequer uma hora”.
assim como é o veremos. E qualquer que Nesse caso, a expectativa de encontrar-se
nele tem esta esperança purifica-se a si com o Senhor face a face foi uma das maio­
mesmo, como também ele é puro. res motivações por trás de seus programas
1 João 3.2,3 sociais.
Com o podemos purificar-nos? N ão o po­
Se somos cristãos, sabemos que Deus con­ demos. N o entanto, Deus o fará, se usarmos
tinuará Sua obra conosco até o dia em que esses meios para obter Suas bênçãos.
formos como Jesus (Fp 1.6), por meio da O poeta inglês Robert Herrick escreveu o
morte ou da Sua segunda vinda. Sabemos que seguinte sobre nossa purificação:
seremos como Cristo: puros, aperfeiçoados
no amor e virtuosos. Senhor, confesso que só Tu podes
João afirmou que, se crermos nisso, tenta­ purificar este coração,
remos ser como Ele o máximo que pudermos. Os oceanos podem ser a água, e a terra, o sabão,
Isso deve afetar todos os aspectos de nossa contudo, se Teu sangue não me lavar, esperança
vida pessoal: nossas orações, nossas escolhas não haverá.
profissionais, nossa ética, nosso uso do tem­
po livre e nossas preocupações sociais. N ão sendo pela graça de Deus, não há es­
O grande reform ador social inglês Lord perança para ninguém. Porém, Ele nos conce­
Shaftesbury, um cristão maduro, disse perto de os meios que nos possibilitam crescer na
do fim de sua vida: “N ão creio que, nos úl­ graça, no amor e no conhecimento do nosso
timos 40 anos, vivi ciente de que não era Senhor e Salvador Jesus Cristo.
A vida do cristão

Então, disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si
mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-me.
Mateus 16.24

Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou e não tomeis a meter-vos de­
baixo do jugo da servidão.
Gálatas 5.1

E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso enten­
dimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
Romanos 12.2

Não estejais inquietos por coisa alguma; antes, as vossas petições sejam em tudo conhe­
cidas diante de Deus, pela oração e súplicas, com ação de graças. E a paz de Deus, que
excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em
Cristo Jesus.
Filipenses 4.6,7

Bem-aventurado o varão que não anda segundo o conselho dos ímpios, nem se detém no
caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escamecedores. Antes, tem o seu
prazer na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite.
Salmo 1.1,2

Porque somos feitura sua, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus
preparou para que andássemos nelas.
Efésios 2.10
A brace a cruz

1) e os executivos da Avenida Madison, Que os anos de tua vida sejam agradáveis.


em Manhattan, Nova Iorque, Estados Que teus lindos sonhos se realizem.
Unidos, estivessem interessados em E que, em tudo o que planejas e praticas,
atrair pessoas para a vida cristã, enfa­ Bênçãos venham sobre ti.
tizariam seus aspectos positivos e gratificantes. Que tua vida tenha muito sucesso
Falariam do cristianismo como uma forma de E que traga muitas surpresas positivas!
plenitude de vida e felicidade. Que a memória de dias alegres
Isso porque nós, que vivemos no Ociden­ Apenas prove que mais dias assim virão. (A u­
te, infelizmente somos tão condicionados a tor desconhecido)
esse tipo de pensamento (mais especificamen­
te a esse modelo de evangelismo cristão ou Contudo, se formos honestos com a Pala­
marketing cristão) que nos chocamos quando vra de Deus, falaremos como Jesus:
aprendemos que o maior princípio do cristia­
nismo é negativo1. N ão é do tipo: “Venha a
Cristo, e todos os seus problemas desaparece­ Se alguém vier a mim e não aborrecer a
rão !”, mas, como o próprio Senhor declarou: seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos,
e irmãs, e ainda tam bém a sua própria vi­
Se alguém quiser vir após mim, renuncie- da, não pode ser m eu discípulo. E qual­
s e a si mesmo, tome sobre si a sua cruz e qu er que não levar a sua cruz e não vier
siga-me; porque aquele que quiser salvar a após mim não pode ser m eu discípulo. As­
sua vida perdê-la-á, e quem p erd er a sua sim, pois, qualquer de vós que não renun­
vida p o r amor de mim achá-la-á. Pois que cia a tudo quanto tem não pode ser m eu
aproveita ao hom em ganhar o m undo in­ discípulo.
teiro, se p erd er a sua alma ? Ou que dará o Lucas 14.26,27,33
hom em em recompensa da sua alm a?
Mateus 16.24-26 N a verdade, na verdade vos digo que, se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer,
Se eu estivesse escrevendo acerca do cris­ fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto.
tianismo da maneira como nossa cultura o vê, Q uem ama a sua vida perdê-la-á, e quem,
comporia um poema exatamente com o este, neste mundo, aborrece a sua vida, guardá-
encontrado na parede de uma sala de espera -la-á para a vida eterna.
no campus de uma universidade cristã:
Bem-aventurados os pobres de espírito, sacrifício vivo, santo e agradável a Deus,
porque deles é o Reino dos céus; bem-aven- que é o vosso culto racional.
turados os que choram, porque eles serão
consolados; bem-aventurados os mansos, Sobre esse assunto, Calvino - em seus co­
porque eles herdarão a terra; bem-aventu- mentários acerca de Romanos 12.1,2 - fez um
rados os que sofrem perseguição por causa dos apelos mais fortes em As Institutas\
da justiça, porque deles é o Reino dos céus;
bem-aventurados sois vós quando vos inju­ Portanto, se não somos de nós mesmos (1 Co
riarem, eperseguirem, e, mentindo, disserem 6.19), mas do Senhor, fica claro qual erro deve­
todo o mal contra vós, por minha causa. mos evitar e para onde devemos direcionar to­
Mateus 5.3-5,10,11 dos os atos de nossa vida. Não somos de nós
mesmos. Que nem nossa razão nem nossa von­
N ão há como negar a presença de hipér- tade interfiram em nossos planos ou nossas
bole semítica nas passagens bíblicas anterio­ ações! Não somos de nós mesmos. Que não
res. Aquele que nos mandou amar uns aos busquemos o que convém à nossa carne! Não
outros não está defendendo o cultivo de uma somos de nós mesmos. Na medida do possível,
animosidade literal para com os membros de que nos esqueçamos de nós mesmos e de tudo
nossa própria família apenas. o que for nosso! Somos de Deus. Por conse­
guinte, vivamos e morramos para Ele! Somos de
E m verdade vos digo que ninguém há, que Deus. Que Sua sabedoria e vontade governem
tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, nossas ações! Somos de Deus. Que todas as áre­
ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou as de nossa vida se empenhem em buscá-lo (Rm
campos, p o r amor de mim e do evangelho, 14.8)! Como é feliz a pessoa que, ao saber que
que não receba cem vezes tanto, já neste não pertence a si mesma, submete-se à vontade
tempo, em casas, e irmãos, e irmãs, e mães, de Deus! O fim de quem busca seus próprios
e filhos, e campos, com perseguições, e, no interesses é a destruição; já o de quem busca os
século futuro, a vida eterna. de Deus, a salvação. ( C a l v in o , 1960, p. 690)
Marcos 10.29,30
A ideia da morte em Jesus é repetida em
Finalmente algo positivo sobre o evange­ outras passagens nos Evangelhos2. Logo, vale
lho! N o entanto, repare o final do último ver­ considerar suas três etapas [da nossa mortifi­
sículo, que fala de recompensas, mas com cação]: (1) devemos negar a nós mesmos; (2)
perseguiçõesl precisamos levar a cruz de Cristo; e (3) temos
A questão não é lutar até a morte ou re­ de seguir Jesus.
nunciar a tudo. A o contrário, morrer e re­
nunciar a todas as coisas é o princípio da vida N e g a n d o a n ó s m e s m o s ____________________

com Deus! A abnegação - ou renúncia - do próprio


Em Romanos 12.1, Paulo aludiu a essa ego não pode ser considerada algo difícil para
verdade ao apresentar o autossacrifício como o cristão entender, pois isso é o que significa
o princípio da vida cristã em seu tratamento ser cristão. Ser de Cristo significa agradar a
mais formal: Deus, não mediante os nossos próprios méri­
tos ou esforços, mas aceitando, pela fé, o que
Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de o Altíssimo fez por intermédio de Jesus para
Deus, qu e apresenteis o vosso corpo em nos salvar.
Ninguém pode salvar a si mesmo. Por is­ ele. N a realidade, devemos renunciar a tudo
so, devemos rejeitar nossos próprios esforços aquilo que estiver entre Cristo e nós, seja al­
e receber a salvação divina gratuitamente. guma outra pessoa (o cônjuge, os filhos), um
A vida cristã é, portanto, somente uma negócio, uma ambição, a fama, o poder.
questão de confiar no Caminho que já havía­ Caso você queira conferir se há algo to ­
mos iniciado. Porém, isso não é fácil. Esse mando o lugar que deveria ser de Deus em
princípio é tão desfavorável que o cristão seu coração, observe os demais mandamentos
sempre tende a viver por seus próprios pa­ a seguir.
drões humanos, tendo em vista nossa nature­ Em Deuteronôm io 5.17, lemos: Não ma­
za e a cultura em que estamos inseridos. tarás. Devemos dizer não a qualquer desejo
de matar ou de acabar com a reputação de
Sempre fomos cercados por pessoas que não di­ alguém.
zem não a coisa alguma, vivemos num mundo Em Deuteronômio 5.18, está escrito: Não
onde tudo é julgado pelo tamanho, pela grandeza adulterarás. Temos de dizer não a todo desejo
e/ou pelo sucesso. Agora, de repente, aprende­ de possuir o cônjuge alheio.
mos que, na vida cristã, deve existir o não às coi­ Em Deuteronômio 5.19, é dito: E n ãofur-
sas e o não a si mesmo? Complicado! Se isso não tarás. E preciso que digamos não a qualquer
estiver soando difícil, é capaz de você não estar anseio de possuir um bem de alguém.
entendendo a questão. (S c h a e f f e r , 1971, p. 19) Se não dissermos não a essas vontades pe­
caminosas, não poderemos afirmar que esta­
Experimentar a morte e a renúncia implica mos vivendo a novidade de vida em Cristo.
estarmos dispostos a dizer não a qualquer coi­
sa que for contrária à vontade divina para nós, D e sorte que fom os sepultados com ele pelo
ou seja, a tudo o que fo r contrário à Bíblia. batismo na morte; para que, como Cristo
Jesus nos livrou da condenação na Lei de ressuscitou dos mortos pela glória do Pai,
Deus. Agora, não é mais um conjunto de re­ assim andemos nós também em novidade
gras que pode justificar-nos. Contudo, deve­ de vida.
mos, ainda assim, obedecer às Escrituras, pois Romanos 6.4
elas revelam a natureza do Altíssimo e mos-
tram-nos coisas em nossa vida às quais, por Para experimentarmos a mortificação e a
meio do poder divino em nós, devemos dizer renúncia, deveremos também dizer não a tu­
não para continuarmos em Cristo. do o que não for da vontade de Deus para
O primeiro dos Dez Mandamentos é um nós. Isso vai além do que falamos quando
exemplo do que é dizer não a tudo aquilo que tratamos da Lei. N em tudo permitido na Pa­
possa tirar Deus de Seu devido lugar em nos­ lavra do Senhor é da Sua vontade para o nos­
so viver: Não terás outros deuses diante de so viver.
mim (D t 5.7). Por exemplo, não há coisa alguma errada
Esses outros deuses podem ser tanto um com o casamento. N a verdade, o casamento
ídolo como o dinheiro. Recursos financeiros, foi algo estabelecido por Deus e tem a Sua
pessoas ou coisas, nada pode tomar o lugar de bênção. Contudo, pode não ser da vontade
Deus em nossa vida. divina para você casar com determinada pes­
De fato, é possível ser rico e seguir Jesus. soa em particular. Nesse caso, é preciso dizer
O problema é quando o dinheiro se torna um não a isso consciente e deliberadamente. O
deus. Então, temos de dizer não ao amor a mesmo se dá quanto a uma profissão, à nossa
ideia acerca de nós mesmos etc. E difícil? Sim, fazia de mim um prisioneiro. Esta era é a lei do
até mesmo para a pessoa mais santa. pecado, manifestada na força do hábito, pela
Atente para a luta pela qual passou Agos­ qual a mente é levada e feita cativa de tudo lon­
tinho: ge de nossa vontade própria — merecidamen-
te, é claro, caí no hábito por conta própria.
A nova vontade que havia brotado em mim e Como eu poderia libertar-me dessa condição?
me feito desejar a liberdade para adorar e rego- Só Tu, meu Deus, por meio de Jesus Cristo, o
zijar-me em Ti, Senhor, a única alegria verda­ meu Senhor, poderia ter me libertado. (W i r t ,
deira, ainda não era forte o bastante para tomar 1971, p. 108,109)
o lugar da antiga vontade, que se enraizara com
o tempo. Logo, houve em mim um conflito de Essas palavras de Agostinho revelam o
vontades — uma carnal e uma espiritual —, conflito de desejos que há no interior do cris­
que partiu meu coração em pedaços. tão, bem com o a dificuldade que é render-se à
Por experiência própria, sei exatamente o que vontade divina. Por outro lado, nelas há uma
Paulo quis dizer com a carne cobiça contra o declaração da bênção de negar a si mesmo em
Espírito, e o Espírito, contra a carne (G1 5.17). nome de Cristo.
Felizmente, eu estava mais no Espírito que na Como propôs Thomas à Kempis, em Imita-
carne. Quando fazia coisas que eu sabia serem tion o f Christ [Imitando Cristo], devemos orar:
erradas, eu não agia segundo a minha vontade.
Assim, por vezes, eu me encontrava em um Ó Senhor, conheces o melhor. Portanto, faze
lugar onde não gostaria de estar. Mas eu costu­ como quiseres. Dá-me o que quiseres, o quan­
mava desculpar-me dizendo que não sabia, ao to quiseres e quando quiseres. Age de maneira
certo, o que era a verdade e o que não era. En­ que Teu nome seja honrado. Põe-me onde qui­
tão, continuava seguindo os caminhos do seres e lida comigo da maneira que bem enten-
mundo, em vez de servir-te. deres. [...] O que poderá ser ruim para mim, se
Agora, entretanto, eu estava certo quanto à Tu estiveres presente? E melhor ser pobre e ter
verdade, mas, apesar disso, recusava-me a ser­ a Ti que ser rico sem ter a Ti. E melhor ser um
vir-te. Eu tinha mais medo de livrar-me de mi­ peregrino contigo que possuir o céu sem Ti.
nhas frustrações do que de frustrar-me! Por Onde estiveres, ali estará o céu. Onde não esti­
conseguinte, apesar de pressionado pelas veres, ali estarão a morte e o inferno. ( K e m p i s ,
opressões do mundo, eu não me preocupava. 1958, p. 125,213)
Quando pensava em Ti, procurava não ver o
quão real Tu és. Eu ficava sem ação quando Tu Com o, então, saber se estamos dizendo
me dizias: Desperta, ó tu que dormes, e levan- não a tudo o que não for da vontade de Deus
ta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá para nós? Quando não estivermos mais recla­
(Ef 5.14). Tu usavas todos os meios para me mando. Se agirmos como os israelitas, que
transmitir a verdade das Tuas palavras! Às ve­ murmuraram no deserto, não estaremos devi­
zes, eu me sentia tão culpado que não podia damente dando as costas ao Egito. Estamos
responder outra coisa, senão: “Sim, Senhor, já prontos [para fazer a vontade de Deus] quan­
vou! Não precisas insistir!”. Todavia, esse já do paramos de fazer queixas.
não era bem u m /i, mas um quando der.
Em meu interior, eu tinha prazer na Tua Lei, L evan do a cruz d e C r i s t o ________________

mas percebia que havia em mim outra lei, que A segunda expressão do princípio de m or­
lutava contra aquela que eu aprovava e que tificação e da renúncia é a própria morte em
si; aquela a que Jesus se referiu ao dizer que que, naquele instante, se Jacó pudesse ir em­
devemos tomar nossa cruz para servi-lo. Para bora, ele o faria. Contudo, a situação estava
entendermos isso, precisamos, primeiro, ob­ tão difícil com Labão que, àquela altura, recu­
servar o sentido desse tomarmos a nossa cruz ar era algo fora de cogitação. Agora, Jacó só
(Mt 10.38). poderia seguir adiante. Sendo assim, disse a
Hoje, quando as pessoas falam de levar ou seus servos que fossem bem à frente dele, a
suportar sua cruz, o que têm em mente é al­ fim de descobrirem que reação Esaú poderia
gum tipo de problema, como, por exemplo, esboçar.
certa doença, algum vício do cônjuge, um lo­ Logo aqueles mensageiros se depararam
cal de trabalho não muito agradável etc. N o com Esaú seguido por 400 homens. Então,
entanto, isso não é o que Cristo quer dizer voltaram dizendo a Jacó: Fomos a teu irmão
com tomarmos a nossa cruz. Esaú; e também ele vem a encontrar-te, e
N a época de Jesus, a cruz simbolizava a quatrocentos varões com ele (Gn 32.6).
morte porque era um meio de execução. L o ­ Se Jacó já tinha motivos para temer, agora,
go, o que Ele estava dizendo é que devería­ então, com essa notícia, sua situação piorava
mos morrer para nós mesmos. Trata-se de al­ ainda mais. O que deveria fazer? Jacó olhou à
go mais forte que uma simples renúncia. Ele sua volta e, engenhosamente, decidiu presen­
falou que devemos renunciar ao nosso eu tear o irmão com seus bens.
voluntária e continuamente. Acreditando que, de alguma forma, pode­
Tomarmos a nossa cruz seria algo mais ria quebrantar o coração de Esaú, Jacó enviou
forte que uma simples renúncia, haja vista ao irmão um rebanho de 200 cabras, 20 bo­
que é possível negarmos a nós mesmos diver­ des, 200 ovelhas, 20 carneiros, 30 camelas, 40
sas vontades, sem, contudo, renunciarmos ao vacas, 10 novilhos, 20 jumentas e 10 jumenti-
nosso eu. nhos (Gn 32.14,15) pela mão de três servos,
E possível estar entre a indecisão de Agos­ recomendando-lhes: “Quando Esaú vir vocês
tinho e a entrega total de Kempis. Com fre­ e lhes perguntar: ‘De quem vocês são servos?
quência, fazemos com o Jacó (Gn 32). Ele re­ Aonde estão indo? Quem é o dono desses ani­
gressou à Terra Prometida após 20 anos mais?’, digam: ‘Pertencem a teu servo Jacó. São
trabalhando para seu tio Labão. Jacó havia um presente dele para ti, senhor Esaú. Jacó
enganado seu irmão Esaú. Assim, teve de fu­ vem logo atrás de nós!’” (cf. Gn 32.17-20).
gir para a casa de seu tio, situada no outro la­ [Ao repartir o rebanho em três grupos e
do do deserto, porque Esaú havia jurado ma­ enviá-lo pela mão de três servos] E provável
tá-lo. P or isso, grande era o temor de Jacó. que Jacó tenha pensado: “Se Esaú não ficar
N o entanto, depois de duas décadas, este satisfeito com o primeiro presente, é melhor
acabou esquecendo-se de tal ameaça. que eu lhe dê também outros animais!”. As­
Vinte anos depois, ao aproximar-se cada sim, todos os bens de Jacó foram oferecidos ao
vez mais da terra de onde fugira e em que seu irmão na forma de uma extensa passeata.
Esaú ainda habitava, Jacó foi, de novo, toma­ Ao encontrarem Esaú, os servos de Jacó
do de pavor. Naquele momento, começou a deviam apenas dizer: “Isto é um presente do
lembrar-se das ameaças feitas por seu irmão. teu servo Jacó para ti, senhor E saú!”.
Cada passo que dava na direção deste torna­ Em certo momento, Jacó se viu sem bem
va-se mais e mais árduo. algum. Ao perceber que lhe restavam, ainda,
A o chegar ao vau de Jaboque, Jacó olhou suas esposas e seus filhos, deve ter pensado:
para o lugar onde sabia que Esaú vivia. Creio “Também terei de dá-los a Esaú?”. [Temendo
perder toda a família, Jacó] enviou na frente norteadores do discipulado da vida cristã, que
Léia, a esposa por quem tinha menor apreço, precisam ser adotados durante todo o nosso
e os filhos que teve com ela. Já Raquel, aquela viver.
de quem mais gostava, foi enviada depois Mas, em termos práticos, como renunciar a
com os dois filhos do casal. P or último, atrás nossos planos e interesses? H á somente uma
de todos eles, iria Jacó. forma de isso acontecer: seguindo Cristo, fixan­
Isso remete ao que fazemos quando o Al­ do nosso olhar nele, que é o maior exemplo de
tíssimo se aproxima de nós, e nós o tememos. renúncia. O Mestre disse não inclusive à Sua
Então, pensamos: “Para acalmá-lo, darei a Ele glória celestial para se tornar um homem de car­
meu dinheiro!”. Porém, embora não entenda­ ne e osso e morrer para nos salvar (Fp 2.5-11).
mos o porquê disso, Deus parece não se satis­ O autor de Hebreus, logo após redigir
fazer apenas com nossos recursos financeiros. aquele maravilhoso texto sobre os heróis da
Propomos: “Darei a Ele o meu tempo! Vou fé, escreveu:
servi-lo na igreja! Lecionarei na escola bíblica
dominical”. Além disso, entregamos a Ele a Portanto, nós também, pois, que estamos ro­
nossa família, mas não o nosso próprio ser. deados de uma tão grande nuvem de teste­
Então, quando nos encontramos nus perante munhas, deixemos todo embaraço e o pecado
os Seus olhos, o Senhor envia o Seu anjo, a que tão de perto nos rodeia e corramos, com
fim de que “lute” conosco e, com isso, apren­ paciência, a carreira que nos está proposta,
damos a submeter-nos a Ele. olhando para Jesus, autor e consumador da
O único problema dessa ilustração é que, fé, o qual, pelo gozo que lhe estava proposto,
nesse caso, morrer para si mesmo e levar a suportou a cruz, desprezando a afronta, e
cruz parece um simples ato de rendição, quan­ assentou-se à destra do trono de Deus.
do, na verdade, trata-se de todo um processo Hebreus 12.1,2
de obediência e disciplina diária, durante o
qual pode haver momentos de crise e de deci­ Jesus também nos transmitiu esse ensina­
sões importantes. Entretanto, a batalha não é mento. N ota-se isso quando estudamos minu­
ganha nesse ponto, uma vez que nossas escolhas ciosamente as passagens acerca da morte e re­
devem ser seguidas de decisões diárias pelo não núncia em que Ele tratava de si mesmo, de Seu
à nossa própria vontade e o sim à de Deus. sofrimento e de Sua morte de cruz. Marcos 10
Isso é indicado pelo texto original grego é o exemplo mais claro disso. Nele Jesus ensina
em Mateus 16.24, que faz uso do verbo no sobre o discipulado, indicando que Seus discí­
tempo presente. U m a melhor tradução da pulos deviam: (1) apegar-se à revelação das Es­
passagem bíblica seria: “[Sempre] tome sobre crituras (v. 1-12); (2) aproximar-se de Deus com
si a sua cruz e siga-me”. a fé simples de uma criança (v. 13-16); e (3) saber
que bens frequentemente formam uma verda­
O DISCIPULADO DIÁRIO_____________________ ; deira barreira para o discipulado (v. 17-31).
Esse assunto leva-nos ao próximo ponto: o Nesta última passagem, Ele introduziu a ques­
discipulado. Quando Jesus falou que devería­ tão da perda da família e de bens, que pode
mos renunciar a nós mesmos e tomar a nossa ocorrer quando seguimos Jesus e Seu evange­
própria cruz, Ele, obviamente, não afirmou lho. Eis a passagem subsequente:
que deveríamos ser crucificados no sentido li­
teral. O que está em jogo nessas duas ordenan­ E iam no caminho, subindo para Jerusa­
ças [tomar a cruz e segui-lo] são os princípios lém ; e Jesu s ia adiante deles. E eles
maravilhavam-se e seguiam-no atemori­ Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não
zados. E, tornando a tomar consigo os do­ mais eu, mas Cristo vive em m im; e a vida
ze, começou a dizer-lhes as coisas que lhe que agora vivo na carne vivo-a na f é do
deviam sobrevir, dizendo: Eis que nós su­ Filho de Deus, o qual m e amou e se entre­
bimos a Jerusalém, e o Filho do H om em gou a si mesmo p o r mim.
será entregue aos príncipes dos sacerdotes e Gálatas 2.20
aos escribas, e o condenarão à morte, e o
entregarão aos gentios, e o escarnecerão, e N a ordem bíblica, a m orte é sempre se­
açoitarão, e cuspirão nele, e o matarão; guida de vida; e é para conquistar essa vida
mas, ao terceiro dia, ressuscitará. que devemos estar dispostos a m orrer [para
Marcos 10.32-34 nós mesmos e nossa vontade]. E quando
deixamos de viver para nós mesmos e abri­
C om essa instrução, Jesus pediu a devoção mos mão daquilo que achamos precioso e
completa de Seus seguidores. Seus seguidores indispensável a nós que encontram os a ver­
devem renunciar a tudo pela causa do evange­ dadeira felicidade: a de adotar a vida cristã,
lho. Porém, Cristo não pediu algo que Ele livre de qualquer obsessão que outrora cos­
mesmo não faria, mas Ele próprio deu o tumava aprisionar-nos de alguma forma.
exemplo do que deveria ser feito com a vida. Essa é a maior diferença entre uma vida cris­
O Mestre também falou acerca de Sua res­ tã feliz e vitoriosa e uma infeliz e fracassada: a
surreição e ensinou que o caminho para a morte e a ressurreição. Cristãos infelizes po­
morte e a renúncia, apesar de doloroso, leva a dem ter morrido e renascido em Cristo, tor-
uma vida abundante. Sobre essa questão, nando-se, assim, novas criaturas em Jesus. N o
Paulo escreveu: entanto, certamente nunca experimentaram a
vida abundante que Ele nos disponibiliza.
Porque, se fom os plantados juntam ente Cristãos felizes são os que encontraram satisfa­
com ele na semelhança da sua morte, tam­ ção em tudo o que Deus lhes dá e que disseram
bém o seremos na da sua ressurreição. não a tudo o que pudesse afastá-los de uma
Romanos 6.5 nova vida abençoada na presença de Deus.

N otas

1 O autor fala de marketing negativo referindo-se ao convite de Jesus: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si
mesmo, tome sobre si a sua cruz e siga-me.
2 Sobre essa ideia, veja Mateus 10.34-39; Marcos 8.34-38; 10.21,29-31; Lucas 9.23-25; 14.26,27,33; João 12.24-26.
Outros escritores do Novo Testamento também evocam essa ideia em seus escritos, como Paulo em Romanos 6.3-
11; Gálatas 2.20; 6.14 e o autor de Hebreus, em Hebreus 12.1,2.
L ib er d a d e, l ib e r d a d e !

I/*% ° último capítulo, vimos o aparen- Altíssimo e gratos a Ele. A dificuldade que
/1 / te paradoxo no âmago da vida cris- muitos enfrentam é o fato de quererem ser o
/ 1/ tã: morrer para si mesmo, para vi- que não são e o que nunca poderão ser. Quem
f ver para o Altíssimo. Pois bem, deseja isso está condenado à frustração.
existe também outra aparente contradição: A liberdade pode ser definida com o “a ha­
devemos tomar-nos servos de Cristo, a fim de bilidade da realização do maior objetivo de
sermos verdadeiramente livres. alguém” ( N i c o l e , 1976, p. 23). Hoje, pelo me­
Contudo, não há paradoxos nas Escritu­ nos em nossa cultura, a liberdade é tida como
ras. Ainda que a doutrina da Trindade seja autonomia. Todavia, ninguém pode ter uma
considerada paradoxal, ela não o é. Deus, sen­ autonomia total, pois vivemos em um univer­
do um, manifesta-se em três pessoas distintas. so criado e mantido por um Deus soberano.
Da mesma forma, quando falamos que preci­
samos ser servos de Jesus para sermos livres, 1. A busca pelo enriquecimento pode ser
isso quer dizer que podemos ser servos em uma tentativa de alcançar a liberdade fora dos
um sentido e livres em outro; livres para ser­ padrões de Deus ou, até mesmo, dentro,
mos tudo o que Deus quer que sejamos. quando se espera dele riqueza. Essa busca, a
A liberdade cristã é como a desfrutada por qual é provavelmente o maior objetivo no
alguém em relação a seu cônjuge. Apesar de Ocidente, está tornando-se uma realidade ca­
serem duas pessoas distintas, os cônjuges es­ da vez mais comum também no Oriente.
tão ligados um ao outro, são um casal, e como A maioria das pessoas que buscam enri­
tal nenhum dos dois é livre para ter relações quecimento negaria que seu interesse é ape­
amorosas com qualquer outra pessoa, a não nas o dinheiro ou que ela é materialista, se
ser um com o outro. Ambos estão livres do questionada. N o entanto, grande parte delas
medo da rejeição em função de seu com pro­ considera a autonomia financeira a verdadeira
misso pessoal um com o outro. E , é claro, liberdade. Por sinal, muitos buscam essa au­
continuam livres para amar os outros com tonomia para irem aonde querem e realiza­
qualquer outro tipo de amor [que não seja o rem seus desejos quando tiverem vontade.
conjugal], como o fraternal, por exemplo. Ninguém quer ater-se à rotina de um empre­
go ou de uma determinada causa por motivos
A BUSCA DA LIBERDADE______________________ financeiros.
A chave para a liberdade é sermos o que Os cristãos não têm nada contra quem lu­
fomos criados para ser: servos obedientes ao ta por boas condições de vida; afinal, a miséria
não é boa para ninguém. Mas engana-se quem os outros fizeram ou assumiram no passado,
pensa que muito dinheiro traz liberdade, pois principalmente quando se trata de ética.
essa é uma questão de mente e de alma. A ri­ Contudo, a lei não é anulada pelo simples
queza pode, quando muito, mudar para me­ fato de discordarmos dela. Tampouco nossa
lhor nosso estilo de vida. Entretanto, muitas consciência. Isso só seria possível se fôssemos
vezes, a riqueza é justamente o fator que apri­ nosso próprio criador, ou seja, autônomos e
siona as pessoas, principalmente quando lhes responsáveis apenas por nós mesmos. Porém,
proporciona o medo de serem roubadas. não somos nossos próprios criadores nem au­
tônomos ou totalmente independentes.
2. A busca pelo descompromisso é outra Todos nós temos de prestar contas a al­
tentativa de encontrar a liberdade fora dos guém — nossos pais, nosso chefe, nossos lí­
padrões divinos. Muitos casais vivem juntos deres, nosso governo, a Deus etc. Logo, a so­
sem serem casados, pois querem continuar lução não está ná rejeição do passado e de
sendo “livres” para poderem separar-se quan­ seus padrões, mas na liberdade da mente e
do bem entenderem. num propósito que nos permita reter o que o
Já li, em um adesivo automotivo, a seguin­ passado tem de melhor, adaptando-o à con­
te frase: “Ser feliz é ser solteiro”. N os Estados duta que devemos ter diante do Senhor e dos
Unidos, muitos chegam ao ponto de declarar, homens.
em entrevistas de emprego, que não ficarão
na empresa por mais tempo que o período 4. A rejeição de toda autoridade é outra
probatório para não ficarem presos a ela. grande tentativa, nos dias atuais, de buscar a
A questão é que a liberdade só é liberdade liberdade fora dos padrões divinos. Funda­
quando posta em prática. Quem não se com ­ mentalmente, isso é uma rejeição a Deus, pois
promete não faz, na verdade, coisa alguma. O as autoridades humanas vêm dele (Rm 13.1,2).
comprometimento com alguém ou alguma Muitos buscam ser sua própria autoridade.
coisa é o que traz liberdade. A filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche1,
N o cristianismo, um compromisso com por exemplo, prega a total autonomia do indi­
Cristo traz, por exemplo, libertação do peca­ víduo. Todavia, a insanidade desse filósofo,
do, da alienação, da culpa, da vaidade e da no fim da sua vida, testemunhou a futilidade
morte, por meio da ressurreição. Mas aten­ de sua ideologia.
ção: os cristãos não são livres para pecar, e sim Qualquer tentativa de estabelecer uma li­
para servir a Deus. N ão são livres para odiar, berdade fora dos padrões divinos está fadada
mas para amar. Os cristãos são livres para se­ ao fracasso, haja vista que fica dependente da
guirem o caminho que Deus tem para eles. capacidade humana, a qual não é suficiente.
Reinhold Niebuhr, num ensaio intitulado
3. A rejeição do passado é outra tentativa A individualidade cultural na m odernidade
de buscar a liberdade. Hoje em dia, os pa­ [no livro A natureza e o destino do hom em ],
drões morais, bem como quaisquer outros analisou esse fracasso expondo a destruição
modelos do passado, estão sendo rejeitados da liberdade individual - que diz advir do
simplesmente por serem considerados obso­ cristianismo - por meio de três filosofias: o
letos. Em outras palavras, tudo o que for no­ naturalismo, o idealismo e o romantismo.
vo está sendo considerado melhor que tudo o Para esse autor, o naturalismo fracassou
que for antigo. Isso se dá porque ninguém na liberdade individual, pois inferiorizou o
mais quer prender-se por qualquer coisa que ser humano, equiparando-o a uma máquina.
O idealismo, por sua vez, apesar de apontar N a verdade, perdemos nossa capacidade de
para a capacidade superior, espiritual e racional obedecermos-lhes; assim, perdemos nossa
do homem, encontrou-a apenas em um “espí­ liberdade.
rito” ou “eu universal”, em que a pessoa se
perde. N o romantismo, o eu é tudo. Entretan­ Desde a queda de Adão e Eva no paraíso, toda
to, no fim das contas, poucos como Nietzsche a humanidade foi acometida de uma terrível
foram forçados a voltar atrás e a deixar a pre­ rebeldia, corrupção e escravidão. Isso quer di­
tensão da autoglorificação individual. zer que, mesmo por vezes desejando agir cor­
Niebuhr resumiu essas vãs tentativas para retamente, somos constantemente prejudica­
estabelecer a liberdade fora dos padrões divi­ dos. Então, dizemos a nós mesmos: Miserável
nos da seguinte forma: homem que eu sou! Quem me livrará do corpo
desta morte? (Rm 7.24). “Como conquistar
O fato é que os valores universais da história minha libertação? Sem liberdade, meu destino
- tanto os parciais e únicos como os suposta­ é a morte!” ( N i c o l e , 1976, p. 27,28)
mente universais - podem ser apreciados ou
julgados em termos de fé religiosa, o que revela O evangelho da graça divina em Jesus
que o centro e a fonte da vida são históricos, Cristo diz que podemos ser libertos a fim de
mas vão muito além da história. Esse é o Deus cumprirmos o destino para o qual Deus criou
que é tanto o Criador como o Juiz revelado na cada um de nós.
Bíblia. [...] Sem as pressuposições da fé cristã, o Primeiro, o evangelho nos livra da con­
indivíduo ou é nada, ou torna-se tudo. Na fé denação eterna por meio da Lei de Deus,
cristã, a insignificância do ser humano como dando-nos, assim, liberdade de consciência
criatura, inserida em um tempo e um espaço, ( C a l v in o , 1960, p. 310). A liberdade deve
passa a ter significância por meio da misericór­ começar a partir daí. Qualquer outro tipo de
dia e do poder do Deus que sustenta a vida hu­ liberdade é vão se não formos libertos dessa
mana. Contudo, sua relevância como um espíri­ condenação. Essa liberdade pode ser obtida
to livre é tida como subordinada à soberania por meio da fé em Cristo Jesus, que morreu
divina. A inclinação humana para abusar de sua em nosso lugar e, dessa forma, sofreu a con­
liberdade, superestimar seu poder e sua impor­ denação que merecíamos.
tância e tornar-se “tudo” é entendida como o Ao olharmos para nós mesmos, devemos
pecado original. Em função do envolvimento admitir, como no artigo IV da Confissão da
do homem com esse tipo de pecado, seu destino Evangelical Free Church [Igreja evangélica li­
é ter seu primeiro encontro pessoal com Deus vre] de Genebra, Suíça, em 1848: “Todo homem
como Juiz, que humilhará o orgulhoso e reduzi­ nasce pecador, incapaz de fazer o bem aos olhos
rá sua vaidade a nada. ( N i e b u h r , 1949, p. 91,92) de Deus, inclinado para o mal, e é digno de con­
denação e morte, se julgado justamente”.
T r ê s l i b e r d a d e s _____________________________
Todavia, ao olharmos para Cristo, vemos
O que Deus diz sobre liberdade? Que, se nossa libertação da sentença que merecemos,
não for por intermédio da graça divina revela­ pois Ele morreu pelo perdão dos nossos peca­
da em Cristo Jesus, não podemos ser livres. dos, pagando toda a pena exigida pela Lei di­
O próprio Cristo disse: Todo aquele que vina para punir nossas transgressões. Assim,
comete pecado é servo do pecado (Jo 8.34b). A deu-nos condições de pertencermos ao Altís­
liberdade se dá pela obediência às Leis de simo, como se nunca nos houvéssemos envol­
Deus. Infelizmente, desobedecemos a elas. vido com o pecado.
A Lei de Deus não mais é uma ameaça a A passagem de Gálatas 5 leva a uma dis­
nós. E fato que, eventualmente, infringimo- cussão da vida do Espírito, que resulta da
-la, mas Jesus já reverteu essa situação. Agora, justificação. Sendo libertos da condenação
podemos entrar na presença do Todo-pode- pela Lei e tendo agora uma nova natureza, os
roso sem culpa alguma. cristãos são libertos de seus antigos desejos e
Essa liberdade impressionou muito o rebeldias. Então, podem obedecer só a Deus.
apóstolo Paulo. Antes de Cristo em sua vida, Quando Jesus falou aos judeus sobre a
Paulo acreditava obedecer piamente à Lei de fonte e a natureza de Seus ensinos, muitos
Deus, que era muito dura de ser cumprida creram nele, mas de maneira vaga. Ao consta­
(Fp 3.6), mas, aos olhos de Deus, o apóstolo tar isso, Cristo os encorajou a permanecerem
não era justo, como achava ser (A t 26.14). O com Ele para continuarem aprendendo dele,
que fazer? Foi por meio do evangelho de dizendo: Se vós perm anecerdes na minha pa­
Cristo que Paulo descobriu um meio de al­ lavra, verdadeiramente, sereis meus discípulos
cançar a justiça divina que não advinha do e conhecereis a verdade, e a verdade vos liber­
cumprimento da Lei, conforme ele aponta em tará (Jo 8.31b,32).
Romanos 8.1-4: Essa declaração enfureceu alguns ouvintes
- talvez, incrédulos - , apesar de o texto não
Portanto, agora, nenhum a condenação há dizer isso de maneira clara. P or essa razão,
para os que estão em Cristo Jesus, que não eles responderam: Somos descendência de
andam segundo a carne, mas segundo o Abraão, e nunca servimos a ninguém ; como
espírito. Porque a lei do Espírito de vida, dizes tu: Sereis livres? (Jo 8.33).
em Cristo Jesus, m e livrou da lei do pecado C om o podemos constatar, isso lhes pare­
e da morte. Porquanto, o que era impossível cia ridículo. Por anos, os judeus foram escra­
à lei, visto como estava enferma pela carne, vos no Egito. Durante o período dos juizes,
Deus, enviando o seu Filho em semelhança houve, pelo menos, sete ocasiões em que a
da carne do pecado, pelo pecado condenou o nação esteve sob o domínio de estrangeiros.
pecado na carne, para que a justiça da lei se Só o cativeiro babilônico durou 70 anos. Du­
cumprisse em nós, que não andamos segun­ rante esse diálogo com Jesus, sob os olhos dos
do a carne, mas segundo o Espírito. soldados romanos, os judeus levavam em seus
bolsos moedas que exibiam o governante ro­
Da mesma forma, em Gálatas 5.1, após mano da Palestina. E foi justamente a percep­
uma tremenda defesa da justificação pela fé, ção de todo esse contexto que os fez sensíveis
Paulo aconselha: Estai, pois, firm es na liber­ ao tema da liberdade.
dade com que Cristo nos libertou e não torneis Jesus não tentou mostrar quão iludidos eles
a meter-vos debaixo do jugo da servidão. estavam em suas próprias ideias acerca da liber­
Ambas as passagens bíblicas levam à liber­ dade política. Em vez disso, Cristo respondeu:
dade de obediência. Cada uma é parte de um
argumento que trata não somente da liberta­ E m verdade, em verdade vos digo que to­
ção da condenação segundo a Lei, mas tam­ do aquele que comete pecado é servo do
bém de outro tipo de liberdade. Romanos 8 pecado. Ora, o servo não fica para sempre
sucede um capítulo que relata detalhadamente em casa; o Filho fica para sempre. Se, pois,
a luta pessoal de Paulo ao deparar-se com os o Filho vos libertar, verdadeiram ente,
desejos de sua nova natureza e os desejos pe­ sereis livres.
caminosos de sua velha natureza.
A liberdade decorre da nova natureza in­ A terceira área da liberdade cristã tem re­
terior de quem está em Cristo. Consequente­ lação com as outras duas: a liberdade de co­
mente, agora este deseja fazer o que agrada a nhecimento.
Deus - não por força da Lei, mas pelo simples P or meio do (re)conhecimento de nosso
desejo de agradar ao Altíssimo. Porventura, a pecado e do (re)conhecimento da pessoa de
Lei perdeu seu valor? Muito pelo contrário, Deus e do que fez em Cristo para a nossa sal­
ela nos mostra o que agrada ao Senhor. vação, somos salvos da condenação pela Lei e
A importância explica diversos questiona­ iniciados na vida cristã.
mentos, como, por exemplo: o que fazer aos Tendo conhecido o Altíssimo da maneira
domingos, quais profissões são as mais indi­ como Ele se revela em Jesus, surte em nós o
cadas para um cristão, fumar ou não fumar, desejo de continuarmos aprendendo sobre
consumir bebidas alcoólicas ou não, jogar ou Ele. Além disso, damos início a um cresci­
não, assistir a determinado filme ou não, etc. mento na verdadeira liberdade que o conheci­
Porém, a Bíblia não tem resposta a todas essas mento divino nos propicia. E conhecereis a
perguntas específicas. Se buscarmos esclareci­ verdade, e a verdade vos libertará (Jo 8.32).
mentos para cada questionamento que tiver­ Para uma pessoa sem estudo, o mercado
mos, perderemos a liberdade à que Jesus nos de trabalho está de portas fechadas, e ela se­
concede direito. quer pode ser capaz de encontrar um trabalho
Com o observou Calvino: rentável. Sendo analfabeta, então, nem se fala.
Alguém assim arrumará, no máximo, um tra­
Com efeito, quando as consciências uma vez se balho braçal com o meio de subsistência. Por
enrodilham em laço, entram em um longo e conseguinte, talvez não tenha acesso à arte,
inextricável labirinto de onde já não é fácil por exemplo, pois sua cultura será insuficien­
mostrar a saída. te para entender muito de música, dramatur­
Se alguém começa a duvidar se porventura lhe gia, obras de arte etc.
é lícito usar linho nos lençóis, camisas, lenços, Da mesma forma, quem não conhece os
guardanapos, depois não estará seguro se pode ensinos da Palavra do Senhor não pode de­
usar cânhamo, e, por fim, começará inclusive a senvolver-se espiritualmente. Essa pessoa irá
duvidar se é lícito usar estopa — pois consigo ater-se a enganos acerca da natureza divina,
revolverá se porventura pode jantar sem guar­ superstições e preconceitos. Apenas quem
danapos ou se pode prescindir de lenços. busca conhecer e amar a Sagrada Escritura
Se a alguém parecer ilícito alimento um pouco pode crescer em liberdade.
mais refinado, por fim, nem pão ordinário e C erta vez, alguns cristãos em H ong
iguarias comuns comerá tranqüilo diante de Kong conversaram com uma senhora de 80
Deus, enquanto vem à mente que pode susten­ anos de idade que havia acabado de ser li­
tar o corpo com víveres ainda mais baratos. berta de um cativeiro chinês. Ela era cristã,
Se nutre escrúpulos de beber vinho mais suave, mas seu discurso era carregado de palavras
nem vinho estragado beberá com boa paz de comunistas.
consciência e, por fim, nem ousará tocar em Perguntaram a ela: “Quando a senhora
água mais doce e mais limpa que outras. Final­ voltou à China, teve liberdade para juntar-se
mente, chegará a tal ponto que, como se diz, a outros cristãos com o propósito de adorar a
julgará ser ilícito caminhar por sobre uma pa­ D eus?”. Ela respondeu: “N ão, desde que fo­
lha atravessada no caminho. ( C a l v i n o , 1960, mos libertos, ninguém pôde reunir-se para
p. 839) realizar cultos ao Senhor”. Questionaram-na:
“E quanto a reunir-se em grupos pequenos finalizou: “Também não podemos ler a Bí­
apenas para discutir a fé cristã?”. Ela retru­ blia”.
cou: “Depois de nossa libertação, qualquer Com o vemos, a liberdade não consiste em
reunião de cristãos foi proibida”. Insistiram palavras, mas na realidade que o cristianismo
eles: “E liberdade para ler sua Bíblia?”. Ela traz.

N ota

1 Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 1844, numa família luterana. Apesar disso, rejeitou a fé cristã. Crítico da
cultura ocidental, das religiões e da moral judaico-cristã, ele é, juntamente com Marx e Freud, um dos autores mais
controversos na história da filosofia moderna, devido aos paradoxos e desconstruções dos conceitos de realidade ou
verdade como nós ainda hoje os entendemos.
Friedrich Nietzsche quis ser o grande “desmascarador” de todos os preconceitos e ilusões do gênero humano. A
moral tradicional, principalmente a esboçada por Kant, a religião e a política não eram para Nietzsche nada mais
que máscaras que esconderiam uma realidade inquietante e ameaçadora, cuja visão seria difícil de suportar. (Fonte:
wikipedia)
C o n h ecen d o a vontade de D eus

I /'*®|ão há’ questionamentos mais co- perfeitos sintamos isto mesmo-, e, se sentis al­
, /muns entre os cristãos do que os gum a coisa doutra maneira, também Deus
/ 1/ seguintes: “Qual o plano divino vo-lo revelará.
r para minha vida? Com o vou ter Encontramos esse tema nos Salmos mui­
conhecimento dele? Com o posso ter certeza tas vezes, particularmente nos de Davi, que
de que eu sei qual é?”. Essas dúvidas surgem necessitava muito da orientação de Deus. N o
naturalmente para os filhos de Deus e, ainda Salmo 25.4,5, por exemplo, o autor pediu:
que não surgissem, elas nos seriam impostas
pelo ensino bíblico de que o Senhor quer que Faze-me saber os teus caminhos, SE N H O R ;
saibamos Sua vontade e que a aceitemos com ensina-me as tuas veredas. Guia-me na tua
gratidão. verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da
Essa é a conclusão de Romanos 12.1,2, minha salvação; por ti estou esperando todo
versículos que já lemos muitas vezes em ou­ o dia.
tros contextos:
Depois, declarou:
Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de
Deus, que apresenteis o vosso corpo em sa­ Bom e reto é o S E N H O R ; pelo que ensi­
crifício vivo, santo e agradável a Deus, nará o caminho aos pecadores. Guiará os
que é o vosso culto racional. E não vos con­ mansos retamente; e aos mansos ensinará o
form eis com este mundo, mas transformai- seu caminho.
-vos pela renovação do vosso entendim en­ Salmo 25.8,9
to, para que experimenteis qual seja a boa,
agradável e perfeita vontade de Deus. Da mesma forma, o autor do Salmo 16.7a
afirmou: Louvarei ao S E N H O R que me
Devemos negar a nós mesmos e amadure­ aconselhou. E , no Salmo 73, Asafe disse: To­
cer no caráter cristão por meio de uma trans­ davia, estou de contínuo contigo; tu m e segu-
formação interior, para que possamos enten­ raste pela mão direita. Guiar-me-ás com o teu
der a perfeita vontade de Deus para nossa vida. conselho (SI 73.23,24a).
Em Filipenses 3.15, após Paulo ter falado Esses versículos não significam que nós
sobre o objetivo da vida cristã e seu próprio sempre conseguiremos compreender tudo
desejo de prosseguir nessa direção, ele tam­ na vida cristã. Eles sequer significam que, de
bém escreveu: Pelo que todos quantos já somos algum modo, poderemos enxergar adiante.
Contudo, certamente podemos entender que Seus conselhos, buscamos conhecer o que
Deus tem um plano para nós e que promete lhe apraz.
levar-nos até ele, revelando os passos necessá­ Se buscamos conhecer o que agrada ao Se­
rios para que o alcancemos à medida que ca­ nhor, muito pode ser aprendido, pois Ele já o
minhamos. tem revelado a nós.
Sobre este assunto, R. C. Sproul afirmou:
As VONTADES DE DeUS____________________ “Deus deseja nossa justiça e nossa obediência.
É preciso esclarecer uma coisa antes de E a Lei de Deus claramente reflete algo sobre
continuarmos. Quando falamos sobre conhe­ Sua vontade de forma perceptível, no sentido
cer a vontade de Deus, comumente pensamos de Sua disposição” (S p r o u l , 1977, p. 106,107).
naquela que Ele não promete revelar e geral­
mente não revela. O Senhor não revela Seus A n o ssa v o n ta d e e a d e D e u s _____________

propósitos secretos ou escondidos (D t 29.29). Mas com o vou saber o que agrada a Deus
O que Ele, de fato, revela é o tipo de vida e de em circunstâncias específicas da minha vida?
caráter que lhe agradam. C om o vou saber se devo seguir uma carreira
Portanto, já vimos que há diferentes senti­ acadêmica ou de negócios? Com quem devo
dos atribuídos à palavra vontade. N a Bíblia, casar-me? De qual igreja devo fazer parte?
temos a vontade soberana e eficaz do Senhor. Com o devo gastar meu tempo? N o trabalho?
Esta vai além do nosso entendimento. N a Em atividades cristãs? Em diversão e relaxa­
verdade, ela provê a origem de todas as coisas mento? De que maneira devo gastar meu di­
e ordena-as. nheiro?
A vontade de Deus é absoluta e ilimitada, H á inúmeras questões parecidas que nos
sendo determinada apenas por Ele mesmo. O confrontam, e, embora algumas delas possam
Altíssimo não precisa consultar ninguém para ter a ver com os propósitos secretos de Deus,
formular Seus planos, e não necessita da ajuda nem todas elas têm. Excluindo revelações so­
de ninguém para executá-los. Sua vontade é brenaturais da vontade divina, as quais o Pai,
soberana e invariável. Devido à Sua onipotên­ às vezes, concede, mas com as quais Ele não
cia, Deus não precisa adaptar-se às circuns­ nos encoraja a contar, há três princípios que
tâncias, que, constantemente, modificam-se. devemos seguir.
Esse é o sentido de João 6,40a, texto no qual O primeiro é uma precondição que pode,
Jesus disse: Porquanto a vontade daquele que com frequência, resolver um problema ins­
me enviou é esta: que todo aquele que vê o tantaneamente: devemos estar dispostos a fa­
Filho e crê nele tenha a vida eterna. zer a vontade do Senhor mesmo antes de sa­
A vontade divina nas Escrituras está re­ ber qual ela é.
lacionada, também, à disposição de Deus Em João 7.17, Jesus afirmou: Se alguém
ou ao que lhe agrada. Quando, na oração quiser fa z er a vontade dele [de Deus], pela
do Pai-N osso, pedimos ao Pai que seja feita mesma doutrina, conhecerá se ela é de Deus
a vontade dele (Mt 6.10), na verdade, esta­ ou se eu falo de mim mesmo. Aqui, Ele está
mos pedindo para que o que lhe agrada pos­ combatendo a falsificação de Sua doutrina,
sa ser cada vez mais realizado em nossa vida e que havia sido desafiada pelos líderes judeus.
na de outros. Contudo, ao responder isso, Cristo ensinou
Assim, a questão é: quando falamos so­ um princípio mais abrangente segundo o qual
bre nosso desejo de conhecer a vontade do conhecer a vontade do Pai consiste muito
Senhor, pedimos a Ele o conhecimento de mais em estar disposto a fazê-la.
A dificuldade que a maioria de nós en­ problemas semelhantes. Após conversar­
contra é que, apesar do que professamos, na mos, independente de tê-las levado a conside­
verdade, queremos fazer a nossa própria rar relevantes passagens das Sagradas Escritu­
vontade. E , ao buscar orientação, esperamos ras, todas sempre fazem objeções. Segundo
que Deus se convença da nossa maneira de elas, os versículos em questão não se aplicam
pensar. à sua situação, ou não são razoáveis, ou não
Eis um exemplo de um homem que era um podem ser obedecidos, ou algo assim. Em ge­
líder importante em sua igreja. Ele me disse ral, isso simboliza que a dificuldade não é sa­
que estava muito preocupado com a área pro­ ber o que Deus deseja, e, sim, o fato de não
fissional que estava seguindo, e que, apesar de querermos obedecer-lhe.
sentir-se seguro em fazer o que estava fazendo, C om o podemos estar dispostos a fazer a
não tinha certeza de ter escolhido corretamen­ vontade do Senhor? Primeiro, precisamos re­
te o local para fazê-lo, visto que, mesmo ainda conhecer nossa falta de disposição. Depois,
sem oferta de trabalho em outro estado, sentia buscar desafios por meio dos quais somos
desejo de mudar de região. transformados de dentro para fora pela reno­
Certa ocasião, abaixando-se ao lado de vação de nossa mente, para que possamos
sua mesa, ele se ajoelhou e, de maneira muito experimentar qual seja a [...] vontade de Deus
específica, orou mais ou menos assim: “Q ue­ (Rm 12.2).
rido Deus, estou com muitas dúvidas em rela­ A oração é um desses desafios, pois, me­
ção a isso. N ão sei o que fazer. O que eu real­ diante tal ato, fazemos uma pausa no corre-
mente preciso é de um sinal vindo de ti. -corre do nosso cotidiano, pensamos em
Necessito que alguém do estado em que estou Deus e em Seus caminhos, examinamos nossa
interessado me telefone e me ofereça uma vida sob essa luz e, depois, pedimos perdão
oportunidade de trabalho”. ao Senhor por pecados antigos, recorrendo à
Enquanto ele ainda estava de joelhos, o Sua orientação para o futuro.
telefone ao seu lado tocou. Era uma ligação O convívio cristão é outro desafio. Preci­
interurbana, e a pessoa do outro lado da linha samos do apoio, do interesse e da correção
ofereceu-lhe um emprego precisamente no amorosa de outros, e o mais importante: ne­
estado pelo qual ele estava orando. U m sinal cessitamos de um programa regular de estudo
claro? Talvez. Contudo, ele não aceitou a da Bíblia.
oferta, tendo ficado onde estava, e até hoje ele O segundo princípio para conhecer a von­
diz: “Talvez eu devesse ter tomado outra ati­ tade do Senhor é essencial. Ele revelou isso
tude quando tive aquela chance”. em Sua Palavra. O plano secreto de Deus, que
N ão estou dizendo que meu amigo deve­ envolve elementos sobre nossa vida e nossa
ria ter aceitado o novo trabalho, mas aquela futura profissão, não está revelado em lugar
pode ter sido a maneira de Deus de mostrar- algum, nem nas Escrituras Sagradas. Assim,
-lhe que sua dificuldade de saber a vontade do ninguém pode usar a Bíblia, de maneira mági­
Pai era que ele não queria realmente fazê-la, a ca, para ver se deve casar-se com João ou An­
despeito de suas orações ou das respostas que tônio, Aline ou Maria. Entretanto, o que o
recebesse. N a maioria dos casos, nossa difi­ Altíssimo deseja aparece muito claramente
culdade de entender a vontade do Senhor re­ em Sua Palavra.
side nesse ponto. N a Bíblia, nossas opções são limitadas.
Quando aconselho pessoas sobre esse Pode não estar escrito nela o nome da pessoa
assunto, constantem ente me deparo com com quem devemos casar-nos, mas, certamente,
está escrito que não devemos m orar com nos­ servindo á vista, como para agradar aos
so futuro cônjuge antes do casamento, pois o homens, mas como servos de Cristo, fa z en ­
Senhor condena a fornicação. do de coração a vontade de Deus.
De igual maneira, pode não estar escrito
na Palavra de Deus se devemos ser médicos Essa orientação serve, em especial, para
ou advogados, porém está claro que não po­ aqueles que têm um chefe temperamental ou
demos ser ladrões nem prostitutas, nem nos é um professor difícil de lidar. Segundo a B í­
lícito realizar qualquer trabalho que prejudi­ blia, a vontade de Deus é que evitemos falar
que os outros. dele ou dela, esforçando-nos para ser o me­
Também encontramos na Bíblia orienta­ lhor naquilo que fazemos. Devemos fazer is­
ções com base nas quais podemos agir. Uma so não apenas quando nosso chefe estiver
está declarada nos versículos anteriormente observando-nos, mas também [e principal­
mencionados: Romanos 12.1,2. Neles, lemos mente] quando ele não estiver. Devemos rea­
que o Pai deseja nossa santificação. Qualquer lizar nossas tarefas como se estivéssemos tra­
coisa que contribua para nossa santificação é balhando para Deus, e não para os homens.
um aspecto da vontade divina para nós, assim Em outros versículos, aprendemos que
como qualquer coisa que a impeça não faz par­ devemos fazer uma análise sóbria de nossos
te do plano de Deus para nós. Acima de tudo, dons, a fim de descobrirmos de que maneira
o Altíssimo está interessado em que nos torne­ poderíamos servir melhor, além de buscar a
mos como Jesus Cristo: Porque esta é a vonta­ orientação de nossos irmãos na igreja. É as­
de de Deus, a vossa santificação (1 Ts 4.3a). sim que, frequentemente, descobrimos o cha­
E m Colossenses 3.23, conhecemos a von­ mado para nossa vocação (At 13.1-3).
tade do Pai para nossa vida profissional: E,
tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o cora­ S it u a ç õ e s q u e s t i o n á v e i s __________________

ção, como ao Senhor e não aos homens Esse N ão podemos negar que, em certos aspec­
princípio se aplica, particularmente, a estudan­ tos da vida, não há clareza com relação à for­
tes ou àqueles cuja carreira esteja começando. ma como devemos agir. Posso trabalhar em
Certa vez, um membro de minha igreja uma empresa que produz material bélico?
comentou que, de maneira muito freqüente, Posso tomar bebidas alcoólicas? Posso in­
jovens cristãos interpretam as dificuldades gressar na política? E errado um cristão tor-
que enfrentam em seu trabalho ou seus estu­ nar-se ator?
dos com o um indicativo de que não estão Para responder essas perguntas, precisa­
cumprindo a vontade de Deus para sua vida, mos começar pela graça. Em Romanos 6.14
quando, na verdade, elas provavelmente são lemos: Porque o pecado não terá domínio so­
indicações divinas de que eles devem esfor­ bre vós, pois não estais debaixo da lei, mas
çar-se mais. Nesse versículo, lemos que o A l­ debaixo da graça. Esse versículo está inserido
tíssimo deseja que façamos com excelência em um contexto de vida santa. Logo, o cami­
tudo o que nos vem às mãos. nho para a santidade nunca será encontrado
U m a direção que está muito relacionada a organizando um corpo de cristãos para deter­
isso se encontra em Efésios 6.5,6: minar se devemos, ou não, ir ao cinema, inge­
rir vinho, jogar cartas, ir à guerra ou coisas do
Vós, servos, obedecei a vosso senhor segun­ gênero. Devemos sempre lembrar que o Se­
do a carne, com temor e tremor, na sinceri­ nhor nos disse: não estais debaixo da lei, mas
dade de vosso coração, como a Cristo, não debaixo da graça.
Estar livre da Lei significa ter liberdade bebida, sexo, drogas, carros, casas, ações ou
para fazer o que bem entender? Devemos pe­ qualquer outra coisa (1 C o 6.12).
car para que a graça superabunde? Claro que Mais adiante, ainda na mesma carta, Paulo
não! Pelo contrário: Mas, agora, libertados do nos revelou uma segunda razão pela qual nem
pecado e feitos servos de Deus, tendes o vosso todas as coisas convêm: a liberdade de um cris­
fruto para santificação, e p o r fim a vida eterna tão pode ferir o crescimento espiritual de ou­
(Rm 6.22). N a verdade, viver pela graça leva à tro. Ele afirmou: Todas as coisas m e são lícitas,
santidade, por causa do nosso desejo de agra­ mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas
dar Àquele que nos salvou. m e são lícitas, mas nem todas as coisas edificam
Para determinar a vontade do Senhor em (1 C o 10.23). Nos versículos posteriores, le-
questões duvidosas, devemos compreender mos que ele está pensando no bem-estar e no
que, embora todas as coisas sejam permitidas crescimento de seus irmãos em Cristo.
para cristãos - porque não estamos debaixo da Levar esse versículo ao extremo significa­
Lei, mas debaixo da graça - , ainda assim nem ria moldar seus padrões de conduta a partir
todas as coisas convêm. Isso é verdade. Como do que outros cristãos dizem ou pensam. Se
Paulo nos advertiu, não devemos permitir que fizermos isso, passaremos a ser hipócritas,
a situação nos domine: Todas as coisas m e são esquizofrênicos ou malucos. Contudo, o ver­
lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas sículo, na verdade, significa que há situações
as coisas me são lícitas, mas eu não m e deixarei em que teremos de evitar certas coisas, embo­
dominar p or nenhuma (1 C o 6.12). ra elas não sejam erradas em si mesmas, a fim
Paulo sabia que Deus não o havia liberta­ de não prejudicarmos os outros.
do do pecado para que, então, ele fosse domi­ Suponha que você tenha evangelizado
nado por coisas sem importância. A pergunta uma amiga sua que tem enfrentado muita di­
a ser feita é: “Estou usando as coisas ou as ficuldade para superar uma disposição a co ­
coisas estão usando-me?”. meter pecados na área sexual. Apesar de ter se
Vejamos a comida, o primeiro dos exem­ convertido, ela continua atraída por esses de­
plos de Paulo (1 C o 6.13,14). N ada pode ser sejos carnais.
tão obviamente bom para uma pessoa do que De acordo com esse texto bíblico, Deus
comida: ela é necessária para fortalecer o cor­ ensina, por exemplo, que é melhor você não a
po e também a saúde mental. Entretanto, é levar para assistir a filmes com nenhum apelo
possível que uma pessoa fique viciada em co­ sexual. Além disso, é até melhor que você mes­
mida a ponto de comprometer sua saúde, sen­ ma não vá, pois ela poderia ser prejudicada
do necessário, portanto, que certos hábitos pela sua liberdade.
alimentares sejam evitados. O utra coisa: devemos ser consistentes em
O segundo exemplo do apóstolo refere-se nossa abstinência por um longo período, a
ao sexo (1 C o 7.5-20). A vida sexual é um pre­ fim de não parecermos hipócritas. Paulo es­
sente de Deus. Dentro dos limites do casa­ creveu: Pelo que, se o manjar escandalizar a
mento, é algo que fortalece o lar e é também m eu irmão, nunca mais comerei carne, para
uma expressão de união íntima. Mas ela tam­ que m eu irmão não se escandalize (1 C o 8.13).
bém pode tornar-se destrutiva, visto que po­ Essa consideração foi feita pelo mesmo após­
de controlar a pessoa em vez de a pessoa tolo que defendeu, de modo bem-sucedido, a
controlá-la. causa da liberdade cristã em relação à Lei pe­
A Bíblia ensina que os cristãos nunca se rante os apóstolos de Jerusalém (At 15.1-29;
devem deixar dominar por nada, seja comida, G 12.1-10).
Sem dúvida, é muito difícil observar o N a primeira parte do texto está escrito: O
efeito que nossa conduta pode ter em outros que também aprendestes, e recebestes, e ou­
cristãos. N o entanto, ao decidirmos como li­ vistes, e vistes em mim, isso fazei. Até aí, p o­
dar com assuntos questionáveis, devemos es­ deríamos pensar que a presença de Deus está
colher a melhor opção possível. Isso está de­ atrelada ao autor.
clarado, de maneira nítida, em Filipenses 4.8: N a verdade, com o, p or causa da sintaxe
grega, Paulo repetiu a expressão tudo o que
Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é ver­ é por todo o versículo oito e, depois, no ver­
dadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que sículo nove, ela apareceu atrelada ao ante­
é justo, tudo o que é puro, tudo o que é rior, podemos entender que a promessa é:
amável, tudo o que é de boa fam a, se há Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verda­
alguma virtude, e se há algum louvor, nis­ deiro, tudo o que é honesto, tudo o que é
so pensai. justo, tudo o que ép u ro , tudo o que é am ável
[...] nisso pensai. [...] e o D eus de paz será
Embora nem todos os comentaristas e teó­ convosco.
logos assinalem, nesse versículo Paulo cita ba­ Assim, quando buscarmos as melhores
sicamente as virtudes exaltadas pelos filósofos virtudes, tanto diante de Deus como dos ho­
e moralistas gregos. Ao mencioná-las, Paulo mens, o Deus de paz estará conosco, e pode­
estava, na verdade, admitindo uma moralidade remos ter a confiança de que, enquanto prio­
aceita pela sociedade da sua época. Sua inten­ rizarmos agradar-lhe, Ele vai abençoar-nos e
ção era afirmar que, embora a busca do melhor guiar-nos.
pelos cristãos inclua coisas espirituais, ela não
implica a exclusão dos melhores valores que o O lh a n d o para J e s u s ________________________

mundo também aceita como corretos. Isso nos leva ao terceiro dos três princípios
As coisas que são honradas pelas melhores mencionados anteriormente neste capítulo.
pessoas em todas as partes também são dignas C om o já vimos, o primeiro é que deve­
de serem cultivadas pelos cristãos. Assim, os mos estar dispostos a fazer a vontade de
cristãos podem amar tudo o que é verdadeiro, Deus antes mesmo de saber qual ela é, e o
honesto, justo, puro, amável e de boa reputa­ segundo aponta para o fato de que devemos
ção, onde quer que encontre tais atributos. buscar essa orientação nas Escrituras. O ter­
Podemos alegrar-nos no melhor da arte e ceiro, por sua vez, é o princípio que se ba­
da boa literatura. Podemos emocionar-nos ao seia na importância de estar em comunhão
som de ótima música. Podemos deleitar-nos com o Senhor todos os dias, e mesmo de
com uma bela arquitetura. Podemos também hora em hora.
agradecer a Deus por dar às pessoas, mesmo N o Salmo 32.8, o Senhor nos ensina isso,
em seu estado decaído, a habilidade de criar ao dizer: Instruir-te-ei e ensinar-te-ei o cami­
tanta beleza. nho que deves seguir; guiar-te-ei com os meus
Tenha confiança na promessa da presença olhos. Se Ele vai guiar-nos com Seus olhos,
do Senhor que acompanha as palavras de primeiro precisará chamar nossa atenção, o
Paulo. Ele frequentemente escrevia de modo que significa que devemos olhar para Ele re­
paternal e foi assim que o fez nesse texto. O gularmente durante o dia.
resultado disso é que a primeira metade do Sem dúvida, devemos realmente ansiar pe­
versículo nove distorceu, parcialmente, o sig­ la comunhão com Aquele que sabe o que de­
nificado da sentença. vemos e como devemos fazer. Precisamos de
mais do que um mero manual de instruções. mesmo” (W h i t e , 1976, p. 154). O que Deus
John White disse: “Você deve buscar orienta­ realmente nos deu é um guia. Devemos, portan­
ção, mas Deus deseja dar-lhe algo melhor: Ele to, ficar junto dele e seguir Sua direção.
Falando com D eus

*%. or meio do estudo bíblico, Deus 5. Porque a oração é o elemento mais impor­
f fala conosco, e, por meio da ora- tante do ministério atual de Jesus, já que Ele
/ ção, falamos com Ele. Ambos os agora intercede por nós (Hb 7.25).
atos são necessários para desenvol­ 6 . Porque a oração é o meio pelo qual Deus nos
ver um relacionamento pessoal que seja genuí­ concede Sua misericórdia e graça, a fim de
no como uma conversa entre duas pessoas. ajudar-nos na hora da necessidade.
Entretanto, a oração é ainda mais do que 7. Porque a oração é o meio de obter a plenitu­
um bate-papo. E um privilégio. Ao colocar- de da alegria divina.
mo-nos no centro da vontade do Senhor da 8. 'Porque a oração, com ações de graça, é o
melhor maneira que sabemos, aproximamo- meio de obter livramento da ansiedade e, no
-nos dele com o crianças se aproximam de lugar dela, ter acesso à paz que excede todo
seus pais, e pedimos o que precisamos, sa­ entendimento.
bendo que seremos atendidos. Assim, a ora­ 9. Porque a oração é o método indicado para
ção é uma resposta à promessa de Cristo: E obter a plenitude do Espírito Santo.
tudo quanto pedirdes em m eu nome, eu o 10. Porque a oração é o meio pelo qual nos man­
farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. temos vigilantes e atentos à volta de Cristo.
Se pedirdes alguma coisa em m eu nom e, eu o 11. Porque a oração é usada por Deus para
fa re i (Jo 14.13,14). promover nosso crescimento espiritual, dar
Reuben A. Torrey, em um de seus livros, poder a nossas obras, levar outros à fé em Cris­
fez uma lista de 11 razões pelas quais a oração to e trazer outras bênçãos para Sua Igreja.
é importante: (T o r r e y , 1900, p. 7 -3 1)1

O PROBLEMA DA ORAÇÃO____________________
1. Porque o diabo existe, e a oração é o meio
indicado por Deus para resistir a ele. Apesar da importância óbvia da oração, a
2. Porque a oração é a maneira pela qual obte­ maioria das pessoas não a entende com muita
mos do Senhor o que precisamos dele. clareza. O problema pode ser originado no
3. Porque os apóstolos, que devemos ter como fato de que poucos cristãos conhecem bem a
modelo, consideravam a oração como a coisa Deus, visto que, se nenhum de nós o conhece
mais importante. plenamente, a oração é, pelo menos em parte,
4. Porque a oração ocupava um lugar proemi­ confusa.
nente e tinha um papel crucial na vida terrena Será ela responsável por mudar as coisas
de nosso Senhor. ou as pessoas? Deus muda de ideia por causa
de uma oração de fé? A o orarmos, fazemos fraqueza. Contudo, entendemos que mesmo
com que o Senhor aja ou Ele age em nós para o cristão mais zeloso tem dificuldades.
que oremos ? O que significa orar sem cessar? Calvino cria na providência divina, mas,
Quem pode orar? C om o se deve fazê-lo? Em em seu capítulo sobre a oração, que precede o
qualquer segmento do povo de Deus, muitas que aborda a questão da eleição, ele refutou
dessas questões recebem respostas diferentes os que diziam que Deus se incomoda com
e, às vezes, até mesmo contraditórias. nossas orações “supérfluas” ( C a l v i n o , 1960,
N ão são apenas as pessoas comuns que p. 853). Em vez disso, o autor comentou so­
têm dificuldade com a oração. Isso também bre a necessidade de “desenterrarmos, pela
acontece com os teólogos. oração, os tesouros que Deus tem para
Certa vez, no decorrer de seus longos e in­ nós”(CALViNO, 1960, p. 851).
fluentes ministérios, George Whitefield, o cal- Fomos ensinados a reconhecer, pela fé,
vinista, e John Wesley, o evangelista arminiano, que tudo quanto nos é necessário e nos falta
pregaram juntos. Após dirigirem vários cultos está em Deus e em nosso Senhor Jesus Cristo,
durante o dia, retornavam, toda noite, exaustos em quem, de fato, o Pai quis que habitasse
ao quarto que dividiam em uma pensão. toda a plenitude de Sua liberalidade [Jo 1.16;
U m a noite, depois de um dia particular­ Cl 1.19], a fim de que dele, como de uma fon­
mente extenuante, os dois chegaram e prepa­ te inesgotável, todos bebamos, buscando, em
raram-se para dormir. Quando se apronta­ súplicas, tudo o que aprendemos nele residir.
ram, cada um se ajoelhou ao lado de sua cama De outra sorte, embora conheçamos a
para orar. Whitefield orou assim: “Senhor, Deus como Senhor e Administrador de todas
agradecemos a ti por todos aqueles com os as coisas boas, não devemos pedir-lhe nada
quais falamos neste dia e regozijamo-nos para proveito exclusivamente pessoal, como
porque a vida e o destino deles estão inteira­ no caso das pessoas que enterram e escondem
mente em tuas mãos. H onra nossos esforços embaixo da terra o tesouro que lhes foi reve­
de acordo com a Tua perfeita vontade. lado com o propósito de edificar a muitos
Amém”. Dito isso, deitou-se na cama. ( C a l v i n o , 1960, p. 850).
Wesley, que mal tinha começado a invocar Contudo, embora orar seja o mesmo que
a Deus em sua oração nesse curto espaço de desenterrar os tesouros de Deus, esse não é
tempo, levantou os olhos e perguntou-lhe: um modo básico de receber coisas dele, pois o
“Sr. Whitefield, é até aí que seu calvinismo o tesouro mencionado por Calvino inclui as ri­
leva?”. Em seguida, abaixou a cabeça outra quezas da graça e da glória que estão em Cris­
vez e continuou a orar. to Jesus.
Whitefield ficou na cama e dormiu. Cerca
de duas horas depois, ele acordou e lá estava A oração é a D e u s _________________________

Wesley, ainda de joelhos, ao lado da cama. Ele Muitas de nossas dificuldades referentes à
levantou, foi até onde Wesley estava ajoelha­ oração podem ser removidas ao esclarecer­
do e tocou-o, constatando que o mesmo esta­ mos a quem estamos orando e o que foi feito
va dormindo. Whitefield, então, questionou- para tornar a oração possível. Esse foi o pon­
-o: “Sr. Wesley, é até aí que seu arminianismo to de partida do ensino de nosso Senhor so­
o leva?”. bre o tema em questão.
Essa história não serve para dizer que cal- N o Sermão do Monte, Ele ressaltou que a
vinistas ou arminianos inevitavelmente fa­ única oração válida é aquela dirigida cons­
lham ao orar apenas em decorrência de alguma ciente e explicitamente a Deus Pai:
E, quando orares, não sejas como os hipó­ que entramos na presença de Deus e estamos
critas, pois se comprazem em orar em p é orando a Ele. (T o r r ey , 1955, p. 76)
nas sinagogas e às esquinas das ruas, para
serem vistos pelos homens. E m verdade A oração está relacionada com o cresci­
vos digo que já receberam o seu galardão. mento espiritual de cada pessoa. À medida
Mas tu, quando orares, entra no teu apo­ que a alma amadurece, a vida de oração se
sento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai, aprofunda, e vice-versa. Quando as crianças
que vê o que está oculto; e teu Pai, que vê começam a orar, por exemplo, frequentemen­
o que está oculto, te recompensará. te só fazem petições: “Papai do céu, agora
Mateus 6.5,6 vou dormir, guarda o meu sono”; “Papai do
céu, abençoa o papai e a mamãe e ajuda-me a
Jesus não estava pregando contra o valor e ser uma boa menina. Am ém ”.
a prática de orar em público, pois Ele mesmo U m pouco depois, quando crescem, elas
orava assim (Jo 11.41,42). N a verdade, Ele se são ensinadas a agradecer ao Pai pelas coisas:
preocupava com a nossa tendência de orar “Papai do céu, obrigada pela comida, pelas
não para Deus, mas para nós mesmos, ou para minhas brincadeiras e por todas as coisas bo­
os outros. A oração deve ser feita com a cons­ as...”. A o longo dos anos, a criança é levada a
ciência de que o Senhor está sempre mais considerar as necessidades dos outros, pen­
pronto a responder-nos do que nós a orarmos sando e louvando ao Senhor.
a Ele. O mesmo deve acontecer na vida de cada
Muitos pensam que todas as orações são filho de Deus: devemos sair do estágio no
oferecidas a Deus, mas não é assim. Talvez qual nossas orações se centralizam apenas em
fosse possível até argumentar que, entre mil nós mesmos, para passar a pensar nos outros
orações, nenhuma é realmente direcionada ao e, depois, no Senhor, crescendo e amadure­
Senhor. cendo na fé.
N o mundo, de modo geral, milhões de Existe um hino de Frederick W. Faber
orações são oferecidas a ídolos e deuses fal­ que, assemelhando-se a uma grande oração,
sos. N o catolicismo, muitas são oferecidas menciona a plena capacidade espiritual que só
aos santos. N o protestantismo, há pessoas será viável no céu:
que se preocupam tanto com a eloqüência de
suas orações que se esquecem de que o obje­ Meu Deus, como és maravilhoso,
tivo delas é aproximar-nos de Deus, e não Tua Majestade como refulge!
impressionar a congregação. Quão belo é Teu trono de misericórdia
Será que minhas orações me levam à pre­ N o profundo da luz abrasadora!
sença de Deus? Quando oro, estou, na verda­
de, importando-me muito mais com meus Ó, como temo ao Senhor, Deus vivo,
amigos, minha vida atarefada e meus interes­ Com sentimentos mais profundos e ternos
ses pessoais do que com a necessidade de E louvo-te com trêmula esperança,
aproximar-me do Senhor? Sobre esse dilema, E lágrimas de penitência
Torrey afirmou:
Contudo, posso amar-te, ó, Senhor
Nós nunca devemos proferir uma sílaba de Poderoso como és,
oração, seja em público ou em particular, até Pois desceste para pedir
que estejamos definitivamente conscientes de O amor de meu pobre coração
Pai de Jesus, recompensa do amor! H á um acrônimo para a oração, que mui­
Que êxtase será tos têm achado útil: ACTS. A letra A significa
Prostrar-me diante de Teu trono para ali ficar, adoramos; C quer dizer confessamos', T, te
E pôr-me a olhar e a fitar a Ti agradecemos, e S, suplicamos. Conhecer a
Deus verdadeiramente implica que teremos
Nessas palavras finais, Faber parece ter-se de confessar nossos pecados, agradecer a Ele
apaixonado por Deus, visto que quer apenas por Seu perdão e por todas as outras bênçãos,
ficar com seu Amado e fitar os olhos nele. e interceder uns pelos outros.
Essa dinâmica da oração - de nós mesmos
para os outros e, depois, para o próprio Deus Por in t e r m é d io d e J esu s C r i s t o _________

- não para nele, mas, inevitavelmente, volta Eu oro, mas com o isso é possível? Uma
do Pai para nossas necessidades e as dos ou­ vez que Deus é santo, com o eu, um ser huma­
tros. Ela é gerada por um renovado reconhe­ no pecaminoso, posso aproximar-me dele? A
cimento de nossas transgressões e de nossa resposta é que a verdadeira oração é oferecida
fraqueza, que sempre vivenciamos quando ao Pai com base na morte de Jesus Cristo.
olhamos para o santo e onipotente Senhor, o O autor do livro de Hebreus colocou a
qual nos leva à confissão do pecado. Nossa questão da seguinte forma: Tendo, pois, irmãos,
preocupação com os outros é nutrida pela ousadia para entrar no Santuário, pelo sangue
descoberta de que, em Sua graça, Deus se im­ de Jesus, cheguemo-nos com verdadeiro cora­
porta com eles da mesma forma que se im­ ção, em inteira certeza de f é (Hb 10.19,22a).
porta conosco, e isso nos leva à intercessão. Jesus ensinou a mesma coisa quando disse:
Essa ideia é sugerida nas palavras do Pai- E u sou. o caminho, e a verdade, e a vida. N in­
-N osso. A oração começa com o deve ser, guém vem ao Pai senão p or mim (Jo 14.6). Se
com Deus e Seus interesses. Somo ensinados tivéssemos de aproximar-nos de Deus com
a orar da seguinte forma: Portanto, vós ora- base em nosso mérito, Ele nos rejeitaria. Se
reis assim: Pai nosso, que estás nos céus, san­ não fosse por Jesus, o Senhor nunca ouviria
tificado seja o teu nome. Venha o teu Reino. oração de ser humano nenhum. Entretanto,
Seja feita a tua vontade, tanto na terra como podemos ser purificados a Seus olhos por
no céu (M t 6.9,10). meio da fé em Seu Filho, cujo sacrifício torna
Essa é uma oração para a honra de Deus. possível nossa aproximação dele.
Mas, pouco depois de os pedidos serem esbo­ Isso significa, é claro, que a oração é só
çados, a oração continua: O pão nosso de cada para aqueles que creem em Jesus, não servin­
dia dá-nos hoje. Perdoa-nos as nossas dívidas, do para os pagãos nem para os ateus. Também
assim como nós perdoamos aos nossos devedo­ não é privilégio de pessoas idôneas que consi­
res. E não nos induzas á tentação, mas livra- deram Cristo apenas um modelo de homem
-nos do mal (Mt 6.11-13a). comum ( C a l v in o , 1960, p. 876).
Em contraste com a primeira parte da ora­ Em bora Deus normalmente não atenda à
ção, essas são preocupações humanas ou oração dos que não creem em Seu Filho como
mundanas. Além disso, os pronomes não es­ Salvador, também é verdade que Ele não es­
tão no singular {eu, m im ou m eu), mas no cuta aquelas oferecidas por muitos cristãos,
plural {nosso, nos, nossas, nós). A o contemplar quando eles se apegam a algum pecado. Por
o Senhor em nossa adoração, vamos, sem dú­ isso Davi disse: Se eu atender à iniqüidade no
vida, voltar-nos para orar pelos nossos seme­ m eu coração, o Senhor não m e ouvirá (SI
lhantes. 66.18). E Isaías escreveu:
Eis que a mão do S E N H O R não está en­ Esse fato é sugerido pela palavra grega
colhida, para que não possa salvar; nem o prosagõgê, que, no versículo anterior, é tra­
seu ouvido, agravado, para não p od er ou­ duzida com o acesso, e que, literalmente, sig­
vir. Mas as vossas iniqüidades fazem divi­ nifica apresentação. O Espírito Santo nos
são entre vós e o vosso Deus, e os vossos apresenta a Deus, tornando-o real para nós
pecados encobrem o seu rosto de vós, para enquanto nos instrui sobre com o devemos
que vos não ouça. orar:
Isaías 59.1,2
E da mesma maneira também o Espírito
Esses versículos descrevem sua vida de ajuda as nossas fraquezas; p orque não sa­
oração? Então, você deve confessar seu peca­ bemos o que havemos de p ed ir como con­
do aberta e francamente, sabendo que Deus é vém , mas o mesmo Espírito intercede por
fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos nós com gemidos inexprimíveis. E aquele
purificar de toda injustiça (1 Jo 1.9). que examina os corações sabe qual é a in­
Se eu fui desonesto com um amigo, é difí­ tenção do Espírito; e é ele que segundo
cil falar sobre qualquer coisa com ele. Posso D eus intercede pelos santos.
conseguir forçar a barra falando sobre o cli­ Romanos 8.26,27
ma, meu trabalho, ou nossas famílias, mas
não vou puxar assuntos pessoais. Apenas Alguma vez, ao orar, você teve a sensação
quando a poeira assentar, depois que o per­ de que Deus estava longe? Se isso já lhe acon­
dão tiver sido pedido e concedido, poderei, teceu, pode ser que seu pecado e desobediência
outra vez, abrir-me com meu amigo. estejam afetando sua comunhão com Ele. Con­
O mesmo acontece em nosso relacionamen­ tudo, essa interferência pode ocorrer apenas
to com Deus. Se o pecado me afasta do Senhor, porque outras coisas têm ocupado sua mente,
então Ele é como um estranho e, embora eu ou preocupações têm obscurecido o entendi­
creia em Jesus, minha oração flui de maneira mento que você deve ter da presença divina.
lenta. Em vez disso, devo confessar meu pecado O que você deve fazer nesse caso? O rar de
e aprender a passar tempo a sós com meu Pai novo em outro momento? Certamente, não,
celestial. Quando faço isso, minha oração tor- pois é possível que esse seja o momento em
na-se tão íntima quanto as conversas que tenho, que você mais precisa interceder. Pare um
em comunhão, com meus amigos íntimos. pouco e peça ao Pai que, por intermédio do
Espírito Santo, Ele se torne real para você,
No E s p í r i t o S a n t o _________________________ levando-o à Sua presença.
A oração é o meio pelo qual desenvolve­ Muitos cristãos consideram que seus mais
mos comunhão com Deus por intermédio do maravilhosos momentos de oração são aque­
Senhor Jesus Cristo e do Espírito Santo. Em les nos quais eles começam sem um senso
Efésios 2.18, é dito: Porque, p o r ele, ambos claro da presença de Deus, mas chegam a ela
temos acesso ao Pai em um mesmo Espírito. mediante a intercessão.
Assim, orar é chegar até o Pai mediante a
fé em Seu Filho e a intercessão do Espírito S e ja p e it a a T ua v o n t a d e __________________

Santo. Isso significa que é o agir do Espírito Quando nos aproximamos de Deus como
que nos leva à presença do Senhor, fazendo devemos, podemos ter ousadia na oração, co ­
com que, por meio da oração, o contato com mo Wesley, Whitefield, Calvino, Torrey e
Ele se torne mais íntimo. outros grandes guerreiros da oração tiveram.
Isso foi o que Deus nos encorajou a fazer diziam “se for da Tua vontade”, pois não es­
no versículo citado no início deste capítulo: E tavam esperando uma resposta do alto.
tudo quanto pedirdes em m eu nome, eu o f a ­ Enquanto intercediam, Pedro chegou à
rei (Jo 14.13a). porta e bateu. Um a criada foi ver quem era e
N ão quer dizer que podemos pedir ao Se­ ficou tão perplexa que voltou para o grupo de
nhor qualquer coisa tola ou pecaminosa e rece­ oração sem deixar o apóstolo entrar. Eles, por
bê-la. Pedir algo em nome de Jesus significa que sua vez, saíram-se pior do que ela, pois, quan­
nosso desejo deve estar de acordo com a vonta­ do souberam que era Pedro, disseram-lhe:
de dele. Quando agimos dessa forma, podemos Estás fora de ti. A história continuou:
ficar confiantes de que seremos atendidos.
Entretanto, para ser fiel a esse texto, é preci­ Mas ela afirmava que assim era. E diziam:
so dizer que há cristãos que atribuem um senti­ E o seu anjo. Mas Pedro perseverava em
do equivocado à noção de vontade de Deus, bater, e, quando abriram, viram-no e se
visto que a usam para justificar seus próprios espantaram. E, acenando-lhes ele com a
pecados. Muitos oram com tão pouca confian­ mão para que se calassem, contou-lhes co­
ça que Deus lhes responderá que, em cada uma mo o Senhor o tirara da prisão e disse:
de suas petições, constantemente, dizem “Se Anunciai isto a Tiago e aos irmãos. E, sain­
for da sua vontade”, como se soubessem, de do, partiu para outro lugar.
antemão, que as coisas que eles estão pedindo Atos 12.15-17
não acontecerão. Grande parte dessas pessoas
fica muito surpresa quando o Senhor, de fato, Muitas de nossas orações são como as des­
responde a alguma de suas orações. ses cristãos. E m grande parte de nossas igre­
Quando Herodes Antipas governava a jas, a intercessão se tornou uma obrigação, e os
Palestina, o apóstolo Pedro estava preso em filhos de Deus passaram a orar sem expectativa
Jerusalém. Os cristãos estavam preocupados. da resposta divina. Que pena que é assim!
Pedro já havia sido preso antes e libertado, Em contraste, Jesus ensinou que podemos
mas Herodes tinha acabado de matar Tiago, o viver e orar de acordo com a vontade de Deus,
irmão de João, sendo muito possível que ele sendo ousados ao ponto de dizer: “Seja feita a
decidisse executar Pedro também. Tua vontade”. Podemos pedir com confiança,
Diante dessa situação, os cristãos começa­ sabendo que os desígnios do Senhor irão
ram a orar. À medida que oravam em uma cumprír-se em nossa vida e nossa igreja.
área de Jerusalém - na casa de Maria, mãe de Foi a compreensão de estar no centro da
João Marcos - , Deus operava em outra parte vontade de Deus que deu a Lutero sua grande
da cidade, libertando Pedro da prisão. Os ousadia em oração. Em 1540, o grande amigo
portões foram abertos, e um anjo guiou o e assistente de Lutero, Frederick Micônio, fi­
apóstolo até as ruas da cidade, enquanto os cou doente e tinha a expectativa de morrer em
moradores ainda estavam dormindo. pouco tempo. Em seu leito de morte, ele fez
N ão sabemos o que estava passando pela um esforço para escrever um bilhete de des­
cabeça dos cristãos na casa de Maria. E possí­ pedida para Lutero. Este recebeu o bilhete e,
vel que estivessem orando para que o Senhor no mesmo instante, enviou-lhe uma resposta:
confortasse o coração de Pedro, ou impedisse
a decisão de Herodes, ou ainda, o que é mais Eu ordeno que, em nome de Deus, você viva,
provável, para que Deus livrasse o apóstolo porque eu ainda preciso de você na Reforma da
da prisão. Contudo, tenho certeza de que eles Igreja. [...] O Senhor não me permitirá ouvir que
estás morto, mas lhe permitirá sobreviver. Por de Lutero chegou, em curto espaço de tempo,
isso, eu oro; essa é a minha vontade, e que minha ele reviveu, recuperando-se completamente e
vontade seja feita, porque busco glorificar o no­ vivendo mais seis anos.
me de Deus. ( H a l l e s b y , 1960, p. 131-132) N ós nunca somos tão ousados em oração
como quando olhamos na face de Deus e di­
Essas palavras podem parecer-nos prepo­ zemos: “Pai, não oro por mim sobre isso e não
tentes, visto que vivemos em uma época de quero que seja feita a minha vontade. Quero
mais cautela, mas, sem dúvida, elas vieram de que Teu nome seja glorificado. Glorifica-o
Deus. Isso porque, embora Micônio já tivesse nessa situação, na minha vida, e faze-o de tal
perdido a habilidade de falar quando a carta forma que todos saberão que veio de Ti”2.

N otas

1 Um livro mais abrangente de Torrey é The Power o f Prayer [O poder da oração]. Mas aqueles que desejam um es­
tudo sobre oração além do que este capítulo fornece devem ler Prayer and the M odem Man [A oração e o homem
moderno], de Jacques Ellul; Prayer [A oração], de Hallesby; With Christ in the School o f Prayer [Na escola da oração
com Cristo], de Andrew Murray; e As Institutas, de Calvino.
2 Escrevi sobre oração de maneira mais extensa em vários outros livros. Veja Phillipians: An Expositional Commentary
[Filipenses: um comentário expositivo]; Is Prayer a Problem? [A oração é um problema?]; The Sermon o f the Mount
[O Sermão do Monte]; e H ow to Live the Christian Life [Como viver a vida cristã].
D eus f a l a n d o c o n o s c o

erta vez, Dwight L. M oody disse: Toda Escritura divinamente inspirada é


“Quando oramos, falamos com proveitosa para ensinar, para redargüir,
Deus. Ao estudarmos a Bíblia, Ele para corrigir, para instruir em justiça, para
fala conosco, e é melhor que o dei­ que o hom em de D eus seja perfeito e p er­
xemos falar mais” ( T o r r e y , 1975, p. 49). feitam ente instruído para toda boa obra.
As Escrituras Sagradas ressaltam a impor­ 2 Timóteo 3.16,17
tância do estudo bíblico, o qual, segundo o
primeiro Salmo de Davi, é fonte essencial de O mau u so das E s c r it u r a s Sa g ra d a s

bênçãos na vida religiosa: Infelizmente, os seres humanos sempre


dão um jeito de usar os dons de Deus da ma­
Bem-aventurado o varão que não anda neira errada.
segundo o conselho dos ímpios, nem se de­ O bispo John C. Ryle, de Liverpool, disse:
tém no caminho dos pecadores, nem se as­
senta na roda dos escarnecedores. Antes, A cristandade como um todo negligenciou a
tem o seu prazer na lei do S E N H O R , e na Bíblia e abusou dela. N a minha época, apesar
sua lei medita de dia e de noite. Pois será de ter havido mais vendas de Bíblias do que em
como a árvore plantada junto a ribeiros de qualquer período da história do cristianismo,
águas, a qual dá o seu fruto na estação pró­ muitos, senão a maioria dos que a possuíam,
pria, e cujas folhas não caem, e tudo quan­ simplesmente não a liam. ( R y l e , 1959, p. 70)
to fizer prosperará.
Salmo 1.1-3 Entretanto, isso não é característica exclu­
siva da sociedade inglesa que viveu na segun­
N o Salmo 119, o autor se referiu ao estu­ da metade do século 19, visto que também se
do da Bíblia como o segredo de uma vida san­ aplica aos nossos dias. Temos bilhões de Bí­
ta: Como purificará o jovem o seu caminho? blias em um considerável número de tradu­
Observando-o conforme a tua palavra. Es­ ções, mas, mesmo assim, são raras as pessoas
condi a tua palavra no m eu coração, para eu que, de fato, leem a Palavra de Deus. A maio­
não pecar contra ti (SI 119.9,11). ria, em vez disso, permite que outras ativida­
N o N ovo Testamento, Paulo falou da lei­ des preencham a vida delas e enfraqueçam-
tura bíblica com o a chave necessária para -lhes a alma.
que o cristão se equipe para as batalhas espi­ H á outros momentos em que a Bíblia é
rituais: utilizada erroneamente. É equivocado de
nossa parte, por exemplo, considerá-la como aguce nosso interesse, pouco faz para, de fato,
um fim em si mesma e, assim, impedir que ela aprofundar-nos nos princípios da Palavra de
cumpra seu propósito principal: levar-nos a Deus e produzir obediência a eles. Assim, as
um conhecimento de Deus por meio da fé em pequenas variações entre diferentes textos se
Jesus Cristo. Às vezes, isso acontece nos tornam mais interessantes do que o ensino de­
meios acadêmico e teológico. les, o que relega ao segundo plano a obediência
O movimento que defendia uma visão a Cristo e o desejo de conhecê-lo melhor.
histórica de Jesus, ocorrido no século 19, é Acredito que não haja necessidade de ou­
um exemplo. Essa corrente foi uma tentativa tra tradução contemporânea para o nosso
que, por um século, teve com o alvo desmere­ idioma. Já existe uma infinidade delas à nossa
cer o Jesus do N ovo Testamento, considerado disposição, de acordo com as nossas prefe­
um produto da fé da Igreja primitiva, substi- rências. Creio que muito do nosso interesse
tuindo-o por um Jesus histórico verdadeiro, atual por traduções tenha suas origens nas
destituído de todos os elementos sobrenatu­ editoras, que estimulam isso com um propó­
rais “não comprovados cientificamente”. sito comercial. Os esforços despendidos ao
Esse esforço foi notável, mas não produ­ produzir tais versões seriam muito melhor
ziu nada duradouro. P or não conseguirem ser utilizados se gastos em traduzir a Bíblia para
levados pela Bíblia ao Jesus genuíno do N ovo o idioma de homens e mulheres que nunca
Testamento, os eruditos produziram apenas viram qualquer versão das Escrituras.
um Cristo à imagem deles. À luz desses problemas, a exortação de
Os racionalistas descobriram que o C ar­ Jesus para os judeus de Sua época é bem rele­
pinteiro de Nazaré foi um grande professor vante. Ele disse: Examinais as Escrituras, por­
de ética. Os socialistas o viram como um re­ que vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são
volucionário. Radicais, como o jovem hege- elas que de mim testificam. E não quereis vir a
liano Bruno Bauer, negaram até mesmo a mim para terdes vida (Jo 5.39,40).
existência de Cristo. Ninguém poderia criticar os judeus pelo
P or fim, Albert Schweitzer pôs fim a essa seu meticuloso estudo das Escrituras Sagra­
busca com sua crítica avassaladora em The das. Os escribas, cujo trabalho era copiar os
Quest o f the Historical Jesus [A busca pelo pergaminhos, sujeitavam as páginas da Bíblia
Jesus histórico]1. A Academia transformou os ao escrutínio mais detalhado. Eles davam
Evangelhos em algo com um fim em si mes­ atenção a cada sílaba e até mesmo contavam
mo, e a Bíblia, em vez de ser um livro crido e as palavras e as letras para que soubessem
obedecido, havia se tornado para eles um ma­ quais vinham no meio da página e quantas
terial a ser avaliado e manipulado. letras determinada página deveria ter.
Vemos algo semelhante no uso das tradu­ De certa forma, devemos ser gratos por
ções pelos evangélicos. N ão podemos negar esse cuidado, já que o resultado é a precisão
que elas sejam necessárias, já que poucos cris­ dos textos de nosso atual Antigo Testamento.
tãos sabem grego e hebraico, as línguas origi­ Contudo, na maioria dos casos, a relação do
nais da Bíblia, o que faz com que uma boa, escriba com a Palavra de Deus era apenas co-
precisa e moderna tradução seja de grande valia piá-la. Assim, aqueles que usavam seus tex­
em qualquer programa sério de estudo bíblico. tos, possuindo a mesma mentalidade, deti-
Entretanto, às vezes, há uma preocupação nham-se nos menores detalhes, mas deixavam
tão exagerada com a “melhor”, “mais recen­ escapar a mensagem da Bíblia. As palavras
te” ou “mais moderna” tradução que, embora eram precisas,, porém qual é o valor delas se
desconsiderarmos seus ensinamentos? Qual é seus defeitos. Somente a Bíblia é absolutamente
o valor das letras se elas não são gravadas em perfeita. D o começo ao fim, ela é a Palavra de
um coração obediente? Deus. ( R y l e , 1959, p. 71)
Muitos que estão lendo este livro têm um
alto grau de conhecimento bíblico. Conhe­ Contudo, as Escrituras não contêm infor­
cem o nome dos 12 apóstolos, das cidades que mações distantes, impessoais, que despencaram
Paulo visitou e talvez até dos reis hebreus. N o do “espaço sideral”. O Deus vivo continua a
entanto, deixam passar o que as Escrituras falar com Seu povo por meio delas. Assim,
têm a ensinar sobre pecado (o seu pecado), chegamo-nos à Bíblia de modo devocional, co­
justificação (a sua justificação), a vida cristã (a mo se ela fosse um lugar santo onde encontra­
sua vida cristã) e obediência (a sua obediên­ mos o Senhor e temos comunhão com Ele.
cia). Deus fala nas Escrituras por intermédio
do Espírito Santo. E por isso que retomamos
E stu d a n d o a B íb l ia ________________________ essa questão no terceiro livro deste volume,
A importância da Bíblia advém de sua pró­ em vez de tê-la esgotado no primeiro, no qual
pria essência, visto que ela é a Palavra de Deus. analisei o papel do Espírito Santo, principal­
Dizer que ela é inspirada por Deus (2 Tm 3.16) mente na inspiração da Bíblia. Neste capítulo,
torna-a completamente diferente de qualquer por sua vez, discuto Seu papel de ensinar o
outro livro jamais escrito. Embora as Escritu­ que Ele inspirou.
ras Sagradas sejam também um produto hu­ Paulo escreveu em 1 Coríntios que, com
mano, o Senhor ensinou aos escritores o que base em nossa sabedoria, não temos a capaci­
dizer e guiou-os em seus textos. O resultado? dade de compreender verdades espirituais,
Exatamente o que o Altíssimo desejou que mesmo quando elas estão registradas na Pala­
fosse escrito. vra de Deus. Mas o Espírito da verdade fala
Quando lemos o texto bíblico, não nos conosco mediante as páginas dela para trazer
deparamos com os pensamentos de homens e entendimento:
mulheres com o nós, que poderiam ou não ser
verdadeiros, mas sim com a Palavra de Deus Mas, como está escrito: As coisas que o olho
revelada a nós. Justamente por isso, não po­ não viu, e o ouvido não ouviu, e não subi­
demos ser indiferentes a ela. Sobre isso, Ryle ram ao coração do hom em são as que Deus
escreveu: preparou para os que o amam. Mas Deus
no-las revelou pelo seu Espírito; p orque o
Quando você lê [a Bíblia], não está lendo as Espírito penetra todas as coisas, ainda as
obras autodidatas de homens falhos como vo­ profundezas de Deus. Porque qual dos ho­
cê, mas as palavras do Deus eterno. Quando mens sabe as coisas do homem, senão o es­
você a ouve, não está ouvindo opiniões vaci­ pírito do homem, que nele está? Assim
lantes de mortais efêmeros, mas sim a imutável também ninguém sabe as coisas de Deus,
opinião do Rei dos reis. Os homens que foram senão o Espírito de Deus. Mas nós não re­
incumbidos de escrever a Bíblia não falaram cebemos o espírito do mundo, mas o Espí­
deles mesmos. Falaram à medida que foram rito que provém de Deus, para que pudés­
inspirados pelo Espírito Santo (2 Pe 1.21). To­ semos conhecer o que nos é dado
dos os outros livros do mundo, por mais que gratuitamente por Deus. As quais também
sejam bons e úteis, são mais ou menos imperfei­ falamos, não com palavras de sabedoria
tos. Quanto mais você olha para eles, mais vê humana, mas com as que o Espírito Santo
ensina, comparando as coisas espirituais que são novos na fé ou que têm um horário
com as espirituais. apertado, esse tempo pode ser mais curto,
1 Coríntios 2.9-13 chegando a ser de 10 a 15 minutos. Indepen­
dente da duração desse momento de estudo,
Qual é a maneira correta de estudar o tex­ o importante é que ele seja fixo em nossa
to sagrado? Existem aqueles que confessam rotina, estabelecido em um determinado pe­
que a Bíblia é a Palavra do Senhor e querem ríodo do dia.
conhecer o Deus vivo em suas páginas, mas, Quando deve ser? Isso também é variável.
talvez, não saibam muito bem com o fazer is­ Muitos descobriram que o melhor período
so. Abaixo, seguem cinco respostas para essa para dedicar-se a essa tarefa é o início do dia.
importante questão: Sobre isso, Torrey escreveu:

1. Estude a Bíblia todos os dias (At 17.11). Sempre que possível, o melhor horário para
Apesar de ser possível que nos voltemos para esse estudo é logo após acordarmos. O pior é
a Bíblia mais do que uma vez ao dia, há tam­ deixar que essa seja a última atividade da noite.
bém ocasiões em que preocupações legítimas É claro que é bom passar um pouco de tempo
consomem o tempo diário que, normalmente, lendo a Bíblia antes de recolhermo-nos, para
passaríamos estudando. Contudo, devemos que a voz de Deus seja a última que ouvimos,
disciplinar-nos para incluir um período diário mas a maior parte de nosso estudo bíblico deve
de estudo bíblico em nossa rotina, assim co ­ ser feita em uma hora que nossa mente esteja
mo nos disciplinamos para ter um horário mais alerta e disposta. Qualquer que seja o ho­
regular de dormir, escovar os dentes, fazer as rário separado para o estudo bíblico, ele deve
refeições e assim por diante. ser consagrado a esse propósito. ( T o r r e y ,
N a verdade, essa comparação com os ho­ 1975, p. 50)
rários regulares de refeições é muito adequa­
da, já que estamos falando de necessidades 2. Estude a Bíblia sistematicamente. Algu­
vitais para que nosso corpo fique saudável e mas pessoas leem a Bíblia de maneira aleató­
possamos exercer um bom trabalho. Às ve­ ria e, embora muitos adotem essa postura no
zes, embora não seja o ideal, pulamos uma que tange à maioria de suas atividades, ela é
refeição, e isso nos enfraquece. D a mesma bastante prejudicial, visto que leva a uma falta
forma, precisamos sempre nos alimentar da de harmonia e profundidade, característica
Palavra de Deus se queremos ficar espiritual­ dos cristãos de hoje. Muito melhor é realizar
mente fortes e manter-nos assim. um estudo regular e disciplinado de certos li­
O que acontece quando negligenciamos vros da Bíblia ou mesmo dela com o um todo.
esse estudo bíblico diário? Tornamo-nos in­ Cristãos com pouco tempo de convertidos
diferentes a Deus e relaxados com as coisas poderiam começar por um dos Evangelhos,
espirituais. Ficamos vulneráveis à tentação, e talvez o Evangelho de João ou de Marcos. De­
o pecado pode, com facilidade, enredar-nos. pois disso, eles poderiam prosseguir com Atos,
O horário regular que separamos para Efésios, Gálatas, Romanos ou um livro do An­
dedicar-nos a conhecer a Bíblia pode ser lon­ tigo Testamento, como Gênesis. É sempre vá­
go, em especial para aqueles que são maduros lido também ler e meditar nos Salmos.
na fé e para quem tem tempo para um estudo Certos procedimentos devem ser seguidos
assim, os quais talvez necessitem de uma ou durante o estudo. Primeiro, o livro em si deve
duas horas para tal. Entretanto, para aqueles ser lido cuidadosamente umas quatro ou cinco
vezes; talvez uma dessas vezes em voz alta. A encontrar versículos importantes de acordo
cada vez, algo novo irá surpreendê-lo. com seus temas.
Segundo, divida o livro em partes princi­ Suponhamos que você estivesse estudan­
pais, assim como dividimos os livros moder­ do Romanos 3.21-26 e quisesse aprender mais
nos em capítulos (não necessariamente os sobre a importante palavra justiça, com a qual
mesmos capítulos como aparecem na Bíblia), a passagem começa. U m versículo chave é o
subseções e parágrafos. Nesse estágio, o obje­ 10.3, no qual a justiça de Deus é distinguida
tivo é descobrir que versículos formam um da nossa. Também, Romanos 1.17 diz que ela
todo, que assuntos são cobertos e qual é a se­ se torna conhecida no evangelho. A o todo,
qüência do assunto. essa palavra é usada 35 vezes somente nessa
Terceiro, esses elementos devem relacio- carta, e esses usos, em sua maioria, esclarecem
nar-se uns com os outros. Quais são as partes uns aos outros.
ou assuntos principais? Quais são introdutó­ Nesse ponto, você também pode observar
rios? Quais são digressões? E quanto às apli­ o uso dessa palavra em outros livros da Bíblia,
cações? Nesse ponto, o leitor já estará elabo­ talvez usando o sistema de referências cruza­
rando um esboço para o livro e deverá estar das que algumas Bíblias oferecem. Você tam­
apto a responder perguntas como: “O que bém pode usar o dicionário. Alguns, de maior
aprendemos com a leitura desse livro? Para tamanho, contêm as derivações das palavras,
quem foi escrito? P or que foi escrito?”. o que também esclarece seus significados.
Se você estiver estudando Romanos, por Normalmente, só depois de um sistema de
exemplo, deve estar apto a dizer: “Este livro estudo bíblico pessoal e indutivo como esse
foi escrito para a Igreja em Roma, mas também os comentários de outros sobre o texto de­
para as de todos os lugares e de todas as épo­ vem ser considerados. Quando estes forem
cas. Nele, Paulo afirmou que a humanidade usados, bons comentários acerca de livros in­
está perdida no pecado e que a resposta a esse dividuais da Bíblia serão geralmente mais
pecado é a justiça de Deus revelada em Jesus úteis do que os mais restritos em um único
Cristo. Seu propósito é explicar o evangelho. volume sobre todo o Antigo Testamento e
U m propósito menor seria alertar os romanos também acerca do N ovo.
sobre o desejo de Paulo de visitá-los a caminho
de seu futuro ministério na Espanha”. 3. Estude a Bíblia de modo abrangente.
Assim, já é possível prosseguir com um Paralelamente a um estudo sério e profundo
estudo mais detalhado das seções individuais. de um livro ou de parte das Escrituras, deve
Qual é o propósito principal de cada seção? haver uma tentativa de tornar-se familiariza­
O que é dito nelas? P or que é dito? Para do com a Bíblia como um todo. Isso significa
quem? Quais são as conclusões que se seguem que a devemos ler de modo abrangente.
a partir delas? É útil, nesse estudo, prestar É verdade, muitas partes da Bíblia não são
atenção a pequenos conectivos como: mas, atrativas para nós de imediato. Isso é natural.
porque, então, e, já que e portanto. Mas, se nunca tentarmos familiarizar-nos
P or fim, você pode estudar as palavras- com elas, limitaremos nosso crescimento e
-chave, observando outras passagens do mes­ poderemos até deformar nossa compreensão.
mo livro nas quais elas aparecem. Você pode Foi por isso que Paulo disse a Timóteo: Toda
encontrá-las por meio de sua leitura ou usando Escritura divinamente inspirada é proveitosa
listagens com o as que aparecem nas páginas para ensinar, para redargüir, para corrigir, pa­
finais de muitas Bíblias, nas quais podemos ra instruir em justiça (2 Tm 3.16).
O testemunho de Ryle a esse respeito é o 5. Estude a Bíblia em obediência. Inicial­
seguinte: mente, sugeri algumas questões que devem
ser consideradas se queremos compreender
Começar a estudar a Bíblia pelo Antigo e pelo determinada passagem das Escrituras. Entre­
Novo Testamento ao mesmo tempo, lendo cada tanto, naquela lista, deixei de fora algumas
um até o fim e, depois, começando de novo é, de das perguntas mais importantes. C om o esta
longe, o melhor plano de estudo bíblico. Apesar passagem e seu ensino se aplicam a mim? Ela
de essa ser uma questão de preferência individu­ me instrui sobre alguma coisa que eu devo ou
al, posso dizer que esse tem sido meu plano há não fazer? O que ela me diz acerca da vontade
quase 40 anos, e nunca encontrei sequer uma de Deus e de com o posso agradá-lo mais,
razão para alterá-lo. ( R y l e , 1959, p. 96) servindo-lhe melhor?
Tiago tinha isso em mente quando ins­
4. Estude a Bíblia em espírito de oração. truiu aqueles para quem ele estava escreven­
A oração é o remédio contra a tendência que do: E sede cumpridores da palavra e não so­
alguns têm de estudar a Bíblia p or estudar, a m ente ouvintes, enganando-vos com falsos
qual foi discutida anteriormente neste capí­ discursos (Tg 1.22).
tulo. P or meio dela, podemos evitar o mero Deus exige obediência. Se Ele nos instrui,
formalismo dos escribas. N o estudo bíblico é para que lhe obedeçamos e cresçamos. O
verdadeiro, primeiro pedimos que o Espíri­ que devemos fazer?
to Santo abra nossa mente para que com pre­
endamos a verdade e, assim, possamos obe­ Cultive uma obediência imediata, exata, sem
decer-lhe à medida que Ele a aplica à nossa questionamentos e alegre em todo o manda­
vida. mento que ficar evidente pelo contexto que se
O autor do Salmo 119 demonstrou uma aplica a você. Fique atento às novas ordens de
atitude correta quando escreveu: Faze bem ao seu Rei. As bênçãos estão na direção da obedi­
teu servo, para que viva e observe a tua pala­ ência a essas ordens. O s mandamentos de Deus
vra. Desvenda os meus olhos, para que veja as são, na verdade, placas que sinalizam a estrada
maravilhas da tua lei (SI 119.17,18). que leva ao sucesso, às bênçãos e à glória eter­
O que uma oração como essa pode fazer? na. ( T o r r e y , 1975, p. 60)
Ela nos toma conscientes de que estamos, de
fato, encontrando-nos com Deus em nossa lei­ Se não estivermos dispostos a obedecer a
tura, e não meramente cumprindo um ritual Deus, não vamos nem mesmo entender o que
religioso prescrito. lemos 0 o 7.17), e o estudo bíblico irá tornar-se
Após orarmos, precisamos pensar: “Ago­ pesaroso, opressivo e sem sentido. N ós ire­
ra, Deus vai falar com igo”, e, assim, devemos mos, até mesmo, afastar-nos do Senhor e aca­
ler a Palavra para ouvir o que Ele dirá. E pro­ baremos criticando Sua Palavra. Ficaremos
vável que não haja nada que possa tornar o suscetíveis a teorias críticas que a menospre­
estudo bíblico mais emocionante do que isso, zam. Contudo, se estivermos dispostos a obe­
visto que nada é melhor do que saber que, decer, o Pai irá ajudar-nos a entender Sua ver­
enquanto lemos, o Senhor está falando co ­ dade, levando-nos a [pregar a] outros também.
nosco pessoalmente, ensinando-nos Seus Diante de tudo isso, foi afirmado:
princípios. Isso faz do estudo bíblico e da
oração que o acompanha um momento de O estudo sério da Bíblia não consiste mera­
comunhão pessoal com Ele. mente em aprofundar-se na Palavra, mas exige
uma tradução dela para a nossa vida e o mun­ então, compreenderemos o caminho para as
do. Temos de ser epístolas [vivas] de Deus, li­ verdadeiras bênçãos espirituais e seremos
das para todos os homens. [...] Se levarmos bem-sucedidos em tudo o que fizermos para
nosso estudo bíblico a sério, a ponto de obede­ nosso Senhor Jesus Cristo. ( B o i c e e K e i p e r ,
cer ao Senhor em qualquer circunstância, 1977, p. 29)

N ota

1 O movimento que defendia o Jesus histórico é discutido de modo mais detalhado nas páginas 81 e 82 do primeiro
livro desta obra. Recentemente, tem havido um renovado interesse na busca pelo Jesus histórico, mas, dessa vez, em
um tom muito mais sensato. Ver BO ICE, James M. N ew Vistas in Historical Jesus Research [Novas perspectivas
sobre a pesquisa do Jesus histórico], p. 3-6.
A busca pelo Jesus histórico iniciou-se com o trabalho de Hermann Samuel Reimarus. Jesus histórico é uma
tentativa de reconstrução da figura de Jesus de Nazaré feita pelos historiadores pelo método histórico. Exegetas
usam a alta crítica para analisar os textos evangélicos, principal fonte para a biografia de Jesus, com textos fontes não
canônicos para reconstruir o contexto histórico do primeiro século. Esse método não inclui axiomas teológicos ou
religiosos, nem pressupõe a infalibilidade bíblica. Embora as reconstruções variem, elas geralmente concordam so­
bre estes pontos básicos: Jesus foi um judeu que atraiu um pequeno grupo de galileus e, após um período de minis­
tério, foi crucificado pelos romanos na Palestina durante a governo de Pôncio Pilatos.
Por outro lado, para certos pesquisadores que exigem fontes de confirmação independentes, a virtual ausência de
referências arqueológicas e históricas a Jesus fora dos relatos místicos é consistente com a hipótese de que Jesus
possa ter sido apenas um personagem construído mitologicamente, e não um personagem histórico real.
A investigação histórica das fontes cristãs sobre Jesus exige a aplicação de métodos críticos que permitam discer­
nir as tradições que remontam ao Jesus histórico daquelas que constituem adições posteriores, vindas das comuni­
dades cristãs. Durante a segunda metade do século 19, a principal contribuição dos historiadores cristãos foi a
crítica literária dos Evangelhos. Os principais critérios para a interpretação de fontes cristãs são: o da dissimilarida-
de, o da plausibilidade histórica, o de múltiplos atestados, o critério textual e o lingüístico e a análise do objetivo do
autor. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jesus_hist%C3%B3rico)
Se r v i n d o

erta vez, um jovem me escreveu para Se você quiser ser um cristão feliz, firme e po­
pedir conselhos sobre como perma­ deroso em oração, comece de uma vez a traba­
necer fiel a Deus durante seus anos de lhar para o Mestre e nunca deixe que se passe
faculdade. Ele estava no primeiro ano um dia sem que você faça um trabalho especí­
da Universidade de Harvard, para a qual havia fico para Ele. ( T o r r e y , 1975, p. 83)
ido, tendo saído do meio-oeste norte-americano.
Ele estava preocupado que as pressões dos estu­ F u g in d o d a o b r i g a ç ã o ____________________

dos e o ponto de vista dominantemente secular Apesar de Efésios 2.10 aparecer no final
em muitas áreas pudessem enfraquecer sua fé. de uma série de versículos bastante conheci­
A esse respeito, três coisas vieram à minha dos que explicam como somos salvos pela
mente. Assim, respondi que ele organizasse seu graça de Deus por meio da fé, e não das obras,
horário de modo a conter três elementos: (1) nessa passagem também foi afirmado que so­
um período diário de estudo bíblico e oração; mos feitura sua, criados em Cristo Jesus para
(2) comunhão regular e adoração com outros as boas obras, as quais D eus preparou \orde­
cristãos, os dois com colegas de faculdade (tal­ nou,, segundo a versão bíblica inglesa King
vez em um estudo bíblico no dormitório ou em James] para que andássemos nelas.
algum outro encontro cristão de universitários) Deus tem um propósito para cada cristão,
e em um culto semanal na igreja; e (3) alguma e as boas obras fazem parte desse plano. C on­
forma regular de serviço a outros. tudo, nossa insensibilidade em relação aos
Disse ainda que esse último ponto poderia planos divinos e nossa preguiça são tão gran­
assumir várias formas: uma doação para não des, que nós sempre tentamos escapar dessa
cristãos, um projeto de tutoria para os menos obrigação.
favorecidos ou um trabalho de assistência so­ Alguns tentam fugir disso por meio da
cial, por exemplo. Somente dedicando-nos a teologia. Eles ressaltam a justificação pela
esse tipo de atividades é que conseguimos graça mediante a fé, separadamente das obras,
desviar o foco de nós mesmos para os outros a tal ponto que nossa obrigação de fazer as
e seus problemas, segundo fomos biblica- boas obras desaparece.
mente aconselhados a fazer, se quisermos ser P or exemplo, um dos mais meticulosos
discípulos de Cristo (Fp 2.4) estudos atuais sobre o segundo capítulo de
Se negligenciarmos tais obras, é inevitável Efésios consiste em uma análise de 400 páginas,
que fiquemos empobrecidos. dentre as quais 24 são dedicadas à análise dos
De acordo com Reuben A. Torrey: versículos de 8 a 10. Mas essa expressão-chave,
que lida com o mandamento de fazer boas de grande porte, o que, então, faz com que
obras, dispõe apenas de um parágrafo de ex­ elas, erroneamente, negligenciem o impacto
posição. positivo que suas ações com o indivíduos po­
Embora a justificação pela fé e não por dem ter.
obras seja um ensino bíblico fundamental, Para termos uma vida cristã e um ministé­
como vimos no capítulo sete deste Livro III, rio saudáveis, é preciso, além de boa teologia,
isso não significa que, se alguém está justifica­ recorrer à oração, ao estudo bíblico e a outros
do, inexista lugar para boas obras. Isso está elementos. E necessário estabelecer e dar su­
claro na própria Bíblia, em Efésios 2.8-10, porte a programas de ação social que sejam,
porque a palavra obras aparece duas vezes: de fato, eficientes. Contudo, é importante
primeiro, com o aquilo que Deus amaldiçoa e, entender que eles não substituem o ato de fa­
depois, como o que Ele abençoa. zer boas obras de maneira individual.
N o versículo 9, foi-nos ensinado que a Depois da vida e do ministério do próprio
salvação não vem das obras, para que nin­ Jesus, os cristãos devem ser a melhor coisa
guém se glorie. N o entanto, logo depois, Pau­ que já apareceu no mundo. Devemos ser fon­
lo falou não das obras de nossa própria natu­ te constante de bondade, de unidade, de amor
reza, mas das que Deus indicou que fossem e de serviço, a fim de que o mundo possa ser
feitas por aqueles que estão justificados. abençoado e muitos possam ser alcançados e
Algumas pessoas, por entenderem essas salvos pelo amor de Cristo.
obras apenas como algo espiritual que, como O Senhor m ostrou essa necessidade no
cristãos, devemos fazer - orar, ler a Palavra, Sermão do M onte, quando cham ou Seus
evangelizar - , buscam desculpas para fugir da seguidores de sal da terra e luz do mundo
responsabilidade de trabalhar para o Senhor (M t 5.13,14). O sal é bom , e a luz, valoriza­
iia terra. da. Assim, Ele ordenou: “Deixe que seu sal
Em bora esses aspectos da vida cristã sejam seja provado, e sua luz, vista”. Façam os isso
de grande valor, eles não são as boas obras das para que o mundo veja as nossas boas obras
quais Paulo falava, visto que, se ele estivesse e glorifique o nosso Pai, que está nos céus
pensando em evangelismo, por exemplo, teria (M t 5.16).
dito que Deus ordenou que evangelizássemos.
A terceira desculpa que certos cristãos dão A c o m p a ix ã o d e C r is t o ____________________

para não obedecer à ordenança de Efésios Quando Jesus pregava, Ele o fazia com
2.10 é de natureza organizacional. É comum excelência. Tendemos a focalizar Seu ensino
enfatizar a importância de programas e pla­ e maravilharmo-nos com ele, como as pesso­
nos sociais no meio evangélico, mas, por mais as também faziam naquela época (Mt
estranho que possa parecer, essa ênfase, que é 7.28,29). Entretanto, quando lemos os Evan­
muito necessária e tem sido menosprezada gelhos tendo em mente o tema das boas
atualmente, pode, na verdade, reprimir a rea­ obras, ficamos imediatamente impressiona­
lização de boas obras. dos com a grandeza do ministério de Cristo
A justificativa para essa afirmação é sim­ em fazer o bem.
ples. Diante da magnitude dos problemas que Esse foi o tom com o qual Jesus, ao ler o
a sociedade enfrenta, as pessoas, impressiona­ pergaminho de Isaías na sinagoga em Nazaré,
das, concluem que a única maneira adequada começou Seu ministério. Haviam pedido a
por meio da qual é possível ajudar uns aos Ele que participasse do culto, lendo uma lição
outros é apelar para um esforço organizacional para o dia. Então, Ele se voltou para a parte
da profecia de Isaías relacionada à vinda do do servo do sumo sacerdote que tinha ido
Messias: prendê-lo no jardim do Getsêmani, o qual
havia sido atacado por Pedro em uma tentati­
O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que va impensada deste de proteger Jesus (Lc
me ungiu para evangelizar os pobres, en­ 22.50,51).
viou-me a curar os quebrantados do cora­ Assim, Cristo, ao lembrar-nos de que
ção, a apregoar liberdade aos cativos, a dar Deus fa z que o seu sol se levante sobre maus e
vista aos cegos, a pôr em liberdade os opri­ bons e a chuva desça sobre justos e injustos
midos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. (Mt 5.45b), ensinou-nos que devemos fazer o
Lucas 4.18,19 bem até aos nossos inimigos.
N a parábola do bom samaritano, apren­
Isso leva-nos a pensar em um ministério demos que devemos ser bondosos até com
espiritual, pois pessoas foram libertas do pe­ aqueles que são culturalmente desprezados
cado pela verdade. Mas, como o restante do (Lc 10.30-37).
capítulo indica, o assunto não se limita so­ Jesus não realizou apenas milagres. Se isso
mente a esse aspecto. A segunda metade do fosse verdade, poderíamos concluir que boas
capítulo quatro de Lucas registra o início dos obras estão além da nossa capacidade. Aparen­
milagres de Cristo: a expulsão de demônios e temente, o Senhor e Seus discípulos manti­
a cura da sogra de Pedro. Depois, lemos: E, ao nham um fundo do qual retiravam contribui­
pôr-do-sol, todos os que tinham enfermos de ções para ajudar aos necessitados (Jo 13.29).
várias doenças lhos traziam; e, impondo as Cristo também encorajava outros a serem
mãos sobre cada um deles, os curava (Lc 4.40). bondosos com seus semelhantes. N em mes­
Da mesma forma, quando, na prisão, João mo uma viúva pobre podia passar despercebi­
Batista começou a duvidar sobre a identidade da a Seus olhos. Ele notou quando ela, como
de Jesus como Messias, ele enviou discípulos oferta, colocou duas moedinhas na arca do
para questioná-lo acerca disso. Cristo, então, tesouro do templo.
referiu-se a essa mesma passagem e orientou
João a considerar a cura dos cegos, dos aleija­ Esta pobre viúva depositou mais do que
dos, dos surdos e dos leprosos, obras que Ele todos os que depositaram na arca do te­
tinha realizado em cumprimento à profecia. souro; p orque todos ali depositaram do
Contudo, Jesus não fez tais milagres com qu e lhes sobejava, mas esta, da sua p obre­
o principal objetivo de levar as pessoas a cre- za, depositou tudo o que tinha, todo o seu
rem nele, pois, na verdade, era movido pela sustento.
compaixão que tinha daqueles que estavam Marcos 12.43,44
doentes, famintos ou necessitados. [Mas esses
milagres eram um sinal de que Ele era o Mes­ O Senhor também apreciou a generosidade
sias, profetizado em Isaías 61.] de Maria, da cidade de Betânia, a qual que­
N em todos os que Ele curou creram, pelo brou um frasco de um unguento muito caro
menos não nos foi dito nas Escrituras que tal para ungir Seus pés pouco antes de Sua prisão
coisa aconteceu. N em todos ficaram ao Seu e crucificação. Judas foi contra aquela de­
lado, nem mesmo os amigos. Mas Jesus, sen­ monstração de amor, mas Ele respondeu-lhes:
do tão misericordioso, preocupava-se até
mesmo com os que o perseguiam. Exemplo Deixai-a, para que a molestais? Ela fez -
disso foi o fato de Ele ter restituído a orelha -m e boa obra. Porque sempre tendes os
pobres convosco e podeis fazer-lhes bem, diáconos, com o eram chamados, era cuidar
quando quiserdes; mas a m im nem sempre dos doentes e dos pobres, e distribuir bens
m e tendes. para eles de acordo com suas necessidades (At
Marcos 14.6,7 6.1-6). Estêvão, o primeiro mártir cristão, es­
tava entre eles.
Da mesma forma, quando Zaqueu se con­ Em um capítulo posterior de Atos, falou-
verteu e prometeu dar metade de seus bens aos -se de D orcas, que estava cheia de boas
pobres, restituindo, quatro vezes mais, a qual­ obras e esmolas que fazia (A t 9.36). Quando
quer um que ele tivesse roubado, Jesus respon­ ela m orreu, houve grande lamentação, e to ­
deu: Hoje, veio a salvação a esta casa (Lc 19.9). das as viúvas a quem ela havia ajudado vie­
[A salvação operou a mudança em Zaqueu.] ram chorando e mostrando as túnicas e ves­
tes que Dorcas fizera quando estava com elas
O s a l d a t e r r a ______________________________ (A t 9.39).
Os irmãos das comunidades cristãs primi­ Mediante a autoridade espiritual que Deus
tivas chamavam a atenção por serem genero­ lhe dera, Pedro se voltou para Dorcas e disse:
sos e preocupados uns com os outros e com Tabita, levanta-te (A t 9.40), e ela ressuscitou.
os pobres. Depois que, por meio do sermão O utra pessoa conhecida por suas boas
de Pedro no Pentecostes, cerca de três mil obras foi Simão, o curtidor, o que morava em
pessoas foram salvas, ficamos sabendo que Jope (At 9.43). Ele deixou sua casa disponível
todos os que criam estavam juntos e tinham para Pedro quando este estava na cidade.
tudo em comum. Vendiam suas propriedades N o capítulo 10, Cornélio, um centurião
e fazendas e repartiam com todos, segundo romano, é elogiado como alguém que fazia
cada um tinha necessidade (A t 2.44,45). muitas esmolas ao povo e, de contínuo, orava
Depois que a Igreja cresceu ainda mais, a Deus, mesmo antes de sua conversão (At
está registrado que: 10.2).
Fom os apresentados também à Maria, a
Não havia, pois, entre eles necessitado al­ mãe de João Marcos, que disponibilizava sua
gum ; porque todos os que possuíam herda­ casa para encontros cristãos; nesse caso, ela
des ou casas, vendendo-as, traziam o preço cedeu seu lar a uma reunião de oração que
do que fora vendido e o depositavam aos durou a noite inteira (At 12.12).
pés dos apóstolos. E repartia-se a cada um, E muito comum ler, no livro de Atos, refe­
segundo a necessidade que cada um tinha. rências a donativos que eram levados para
Atos 4.34,35 ajudar os pobres. Em uma ocasião, isso foi
feito em resposta a uma fome em Jerusalém
Essa venda de bens e posse de todas as coi­ (At 11.27-30). Em outra, foi uma oferta das
sas em comunhão não subverte o direito à igrejas gentias aos pobres da mesma região (At
propriedade privada, o qual é reconhecido em 24.17; compare com 1 C o 16.1-4; 2 C o 8.1-9).
Atos 5.4, mas, de qualquer forma, aquela era Aparentemente, a tendência à caridade da
uma igreja generosa. Outras o eram de ma­ Igreja primitiva continuou no período dos
neira diferente. apologistas, pois eles com frequência aponta­
N o capítulo seis de Atos, foi narrada a es­ vam para a bondade dos cristãos com o parte
colha dos primeiros obreiros da igreja, além de sua defesa da fé.
dos apóstolos que haviam sido escolhidos e O filósofo ateniense Aristides escreveu
comissionados por Cristo. As tarefas daqueles sobre esses cristãos a Adriano:
Eles não cometem adultério ou imoralidade; hospitais e orfanatos. O status dos menos
eles não dão falso testemunho nem fraudam, favorecidos melhorou. O progresso nem
nem cobiçam o que não é deles. Eles honram o sempre foi constante, porém a direção geral
pai e a mãe, e fazem o bem àqueles que são seus era essa.
próximos. Sempre que são juizes, julgam com As mesmas preocupações eram evidentes
equidade. Eles não adoram ídolos feitos à ima­ durante a Reforma e o movimento missioná­
gem de homens. O que quer que eles não dese­ rio moderno. Este estabeleceu hospitais e es­
jam que os outros façam com eles, por sua vez, colas, literalmente, pelo mundo. Mesmo hoje,
não o fazem, e eles não comem a comida sacri­ muitos líderes em quase todas as nações inde­
ficada a ídolos. Eles exortam aqueles que os pendentes da África reconhecem ter recebido
oprimem e os tornam amigos. Eles fazem o treinamento inicial e motivação para servir a
bem a seus inimigos. Suas esposas, ó rei, são seus países em escolas de missões.
puras como virgens, e suas filhas são recatadas. E hoje? A situação está confusa por causa
Seus homens se abstêm de todo contato sexual da proliferação de serviços governamentais.
ilegítimo e da impureza. Todos esperam a re­ Previdência, assistência médica, seguro-de-
compensa que está por vir no mundo vindouro semprego e vários outros programas sociais
[...]. Eles amam uns aos outros; as necessidades repetem o que muitos cristãos faziam no pas­
das viúvas não são ignoradas, e eles resgatam os sado, podendo até ser considerados melhores
órfãos da pessoa que lhes inflige violência. em recursos totais, mas não sendo necessaria­
Aquele que tem dá a quem não tem, sem mur­ mente superiores em compaixão ou em cui­
múrio nem vangloria. dado individual. Contudo, há muitas oportu­
Quando os cristãos encontram um estrangeiro, nidades para aqueles que estão atentos à
eles o trazem para suas casas e se regozijam necessidade das boas obras.
com ele como um verdadeiro irmão. Eles não Grupos de cristãos, tais com o os que pro­
chamam de irmãos aqueles que são ligados movem encontros semanais para estudos bí­
apenas por laços de sangue, mas aqueles que blicos nos lares, são particularmente eficien­
são irmãos no Espírito e em Deus. Quando um tes. Tenho visto grupos com o esses em minha
dos pobres falece, cada um ajuda no sepulta- igreja ajudarem pessoas a mudar-se de um apar­
mento de acordo com sua possibilidade. Se eles tamento para outro ou para um lar de idosos.
ficam sabendo que alguém do seu grupo está Alguns se revezam para passar a noite em
aprisionado ou oprimido por causa do nome do um lar onde há alguém doente ou que precisa
Messias, eles proveem suas necessidades, e, se é de cuidado. Eles têm arrecadado alimentos
possível redimi-lo, eles o libertam. Se encon­ para os necessitados, incluindo alguns traba­
tram pobreza em seu meio e eles não têm comi­ lhadores cristãos da periferia, bem como rou­
da sobrando, jejuam por dois ou três dias para pas. Têm também doado sangue, limpado
que os necessitados possam ser supridos em to­ apartamentos, transportado doentes para
das as suas necessidades. (W i r t , 1968, p. 29,30) hospitais e outras coisas semelhantes. Muitos,
simplesmente, trabalham duro em seus em­
Quando o cristianismo abriu seu caminho pregos por meio dos quais outros são benefi­
no mundo romano, o impacto de sua compai­ ciados.
xão foi sentido. Os esportes cruéis da arena A o longo da história, diversos cristãos
foram revistos. Leis tramitaram para proteger têm assumido mesmo seu papel de sal da ter­
escravos, prisioneiros e mulheres. A explora­ ra, precisamente da maneira que seu Senhor
ção de crianças foi proibida. Foram fundados tinha previsto quando os instruiu a fazer
boas obras. Todavia, isso não tem sido sem­ tive fom e, e destes-me de comer; tive sede,
pre assim. e destes-me de beber; era estrangeiro, e
Para ser sincero, nós, em nossa geração, hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me;
estamos muito aquém de atitudes como as adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e
que citei. Os cristãos não são mais conheci­ fostes ver-me.
dos como aqueles que fazem o bem aos ou­ Mateus 25.34-36
tros. Alguns de nós raramente fazemos qual­
quer coisa particularmente boa para alguém. Agradamos a Jesus por meio de nossa de­
E mais fácil servirmos a nós mesmos, é claro. dicação aos irmãos e, se o alegramos dessa
Mas não devemos pensar dessa forma. maneira, também o fazemos com o próximo.
Em primeiro lugar, a presença de boas Por fim, Deus é glorificado pelas nossas
obras na vida cristã é uma evidência da salva­ boas obras. Somente por intermédio dele e de
ção. N ós pensamos de forma diferente da que Sua graça podemos fazê-las. Alguns podem
pensávamos antes de nossa conversão e bus­ perguntar: “Se a justificação não é pelas
camos servir aos outros de uma maneira que, obras, que valor elas têm? E por que a Bíblia,
no passado, nunca teria passado por nossa às vezes, fala de ‘recompensas’ pelas boas
mente. Nisso, temos a evidência de que so­ obras se elas não são um m érito?”. A estes,
mos novas criaturas em Cristo. Calvino respondeu:
N o capítulo oito, eu disse que uma expres­
são de amor prática para outros é uma prova Não há dúvida de que tudo que há de louvável
da nova vida apresentada pelo apóstolo João: nas obras deve-se à graça de Deus e que nenhu­
Nós sabemos que passamos da morte para a ma gota há que devamos atribuir a nós mes­
vida, porque amamos os irmãos (1 Jo 3.14a). mos. Se deveras e seriamente reconhecemos
Em segundo lugar, fazer boas obras é um isso, desvanece-se não apenas toda e qualquer
meio de crescer na vida cristã. Se desejamos confiança de mérito, mas ainda a própria no­
isso, devemos servir aos outros fielmente. O ção. Afirmo que não dividimos, como fazem
que acontece se não o fizermos? N ós nos tor­ os sofistas, o louvor das boas obras entre Deus
naremos introvertidos, egoístas, insensíveis e e o homem; pelo contrário, nós o conservamos
mesquinhos. Quando fazemos o bem aos ou­ todo, inteiro e isento ao Senhor. Ao homem,
tros, nossos horizontes se ampliam, cresce­ apenas atribuímos isto: que, com sua impure­
mos espiritualmente e tornamo-nos mais e za, polui e contamina essas mesmas coisas que
mais parecidos com Jesus. eram boas, pois nada procede do homem, por
Por fim, boas obras são uma bênção para mais perfeito que seja, que não seja maculado.
aqueles que servem. E difícil colocarmo-nos Portanto, convoque o Senhor a juízo acerca do
no lugar dos outros, principalmente quando que há de melhor nas obras humanas: por certo
eles são necessitados, e nós estamos bem de que nelas reconhecerá Sua justiça; do homem,
vida. Entretanto, o que nos ajuda nesse aspec­ porém, a ignomínia e o opróbrio. Consequen­
to é lembrar-nos de que servir aos nossos se­ temente, as boas obras agradam a Deus, e não
melhantes é servir ao nosso Senhor: são infrutíferas a seus autores; mais ainda: rece­
bem os mais amplos benefícios do Senhor à
Então, dirá o R ei aos que estiverem à sua guisa de galardão, não porque assim mereçam,
direita: Vinde, benditos de m eu Pai, possuí mas porque de si mesma a benignidade divina
p o r herança o Reino que vos está prepara­ lhes atribui esse valor. ( C a l v i n o , 1960, p.
do desde a fundação do m undo; porque 790,791)
Se nosso maior propósito é glorificar a valorizar o ato de fazer boas obras, visto
Deus e regozijar-nos nele, com o sugere o que este é um dos meios para atingirmos es­
Catecismo B reve de Westminster, devemos sa meta.
Pa r t e

4
O trabalho de Deus

E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam
a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto. Porque os que dantes conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele
seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também cha­
mou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses tam­
bém gloríficou.
Romanos 8.28-30

Tendo por certo isto mesmo: que aquele que em ws começou a boa obra a aperfeiçoará até
ao Dia de jesus Cristo.
Filipenses 1.6

Do SENHOR vem a salvação.


Jonas 2.9
C hamados po r D eus

ressaltado com frequência que Cal- ele não queria fazer: a evangelização de Níni-
vino não discutiu a doutrina da elei­ ve. Deus perseverou com Jonas, apesar das
ção, pela qual ele é conhecido, no tentativas rebeldes do profeta de fugir.
início de sua obra As Institutas, Em bora a chamada de Jonas tenha sido
mas, sim, no final do volume três, isto é, após para um ministério particular, e não para a
cerca de três quartos da obra. salvação [o tema discutido aqui], o princípio
Calvino não começou com uma precon- é o mesmo, pois nada pode acontecer espiri­
cepção rígida de como Deus deve ter traba­ tualmente na vida de uma pessoa até que
lhado para salvar a humanidade. Em vez dis­ Deus, com base em Sua decisão, chame a pes­
so, ele começou por um estudo teológico, soa para Ele.
ensinando o que Deus de fato fez. Só depois Seria tolice um pregador chegar a um en­
disso, voltou-se para analisar o assunto em terro e encorajar os cadáveres a levar uma vi­
sua perspectiva mais completa: de que a sal­ da reta. Para que as palavras pudessem fazer
vação começa na eternidade, na decisão de algum efeito, os cadáveres teriam de reviver.
Deus de salvar um povo para si mesmo, a Só assim poderiam responder. D a mesma for­
qual continua sendo manifesta pela perseve­ ma, o chamado para o discipulado deve co ­
rança final de Deus com Seus santos. meçar com o ato de Deus ao ressuscitar espi­
Vou seguir o mesmo procedimento neste ritualmente uma pessoa. A escolha a ser feita
capítulo e no próximo. não está em quem está espiritualmente morto,
mas em Deus somente, que tem a capacidade
O D e u s q u e t o m a a i n i c i a t i v a ___________ de dar vida.
N o livro de Jonas, no final da grande ora­ Isso é o que significa novo nascimento.
ção de livramento do profeta, temos a frase: do Antes da conversão, diz o Senhor que estáva-
S E N H O R vem a salvação (Jn 2.9). Essa frase é mos mortos em nossos pecados e ofensas.
simples e profunda. A origem, o fim e, com Estávamos vivos física e intelectualmente,
efeito, a única fonte de salvação possível é mas não espiritualmente. N ão conseguíamos
Deus. A salvação começa com Deus nos esco­ responder a estímulos espirituais.
lhendo, ou seja, antes de nossa escolha por Ele, A Palavra de Deus fala dos mistérios ocul­
e ela nos conduz a uma bem-sucedida conclu­ tos em Deus desde os séculos (Ef 3.9; 5.12).
são, pois o Altíssimo persevera por nós. Porém, o Senhor nos toca. Ele suscita vida
O caso de Jonas é um exemplo perfeito. O onde havia morte. N ós cremos em Jesus Cris­
Eterno o elegeu para fazer um trabalho que to e começamos a entender a Bíblia. Isso é o
que significa ser chamado por Deus, e isso A Bíblia continua o relato: Então, Sam uel
precisa acontecer antes que possa haver um tomou o vaso do azeite e ungiu-o no meio
discipulado verdadeiro. Jesus disse: Não me dos seus irmãos; e, desde aquele dia em
escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a diante, o Espírito do S E N H O R se apoderou
vós, e vos nomeei, para que vades e deis fruto, de D a vi (1 Sm 1 6 .10-13). Foi Deus quem
e o vosso fruto perm aneça (Jo 15.16a). chamou Davi.
Abraão foi chamado. Ele não escolheu N o N ovo Testamento, o Senhor já havia
Deus. Aparentemente, ele estava muito satis­ escolhido João Batista antes mesmo de ele
feito vivendo próximo ao vale de um rio da nascer.
Mesopotâmia em uma cultura pagã. Mas Deus Jesus chamou Seus discípulos quando ain­
o chamou e enviou à Palestina. da eram pescadores.
Moisés foi escolhido por Deus mesmo an­ O Senhor chamou Paulo quando ele ainda
tes de ser um bebê flutuando no rio N ilo em perseguia os cristãos.
uma cesta. Deus disse: “Livrarei meu povo do Em todos os casos, o chamado divino foi
Egito e farei isso por intermédio de Moisés. primordial, e, por sua vez, baseado na decisão
Vou protegê-lo do faraó. Darei a ele o melhor do próprio Deus de salvar e usar as pessoas.
treinamento e a melhor educação, e, depois,
eu o enviarei ao faraó para ordenar que liberte O p r o p ó s it o d e D e u s ______________________

meu povo”. N ão são apenas os exemplos que nos aju­


O mesmo se deu com Davi. Deus pôs um dam a entender o chamado de Deus. Temos
selo no futuro rei enquanto Davi ainda estava também o ensino específico das Escrituras
no campo, protegendo algumas ovelhas. O Sagradas. U m a passagem-chave, de fato uma
Altíssimo enviou o profeta Samuel à casa de das passagens mais importantes, é Romanos
Jessé para ungir um de seus filhos com o futu­ 8.28-30, na qual a eleição e o chamado de
ro rei, mas, quando Samuel chegou, estava Deus são colocados em uma seqüência de
faltando Davi. O pai chamou todos os seus ações expressa cuidadosamente.
filhos, menos Davi. Eles estavam lá em ordem.
Samuel olhou para os rapazes e pensou E sabemos que todas as coisas contribuem
que o filho mais velho daria um bom rei. Seu juntam ente para o bem daqueles que
nome era Eliabe. Mas, antes que Samuel pu­ amam a Deus, daqueles que são chamados
desse ungi-lo, o Senhor disse que não era ele. por seu decreto. Porque os que dantes co­
Depois, cogitou-se Abinadabe, que também nheceu, também os predestinou para se­
não seria o futuro monarca. Em seguida, Sa- rem conformes à imagem de seu Filho, a
má, e daí por diante, até que todos os sete fi­ fim de que ele seja o primogênito entre
lhos de Jessé foram apresentados. muitos irmãos. E aos que predestinou, a
Samuel disse: O S E N H O R não tem es­ esses também chamou; e aos que chamou,
colhido estes. Depois, perguntou a Jessé: a esses também justificou; e aos que justifi­
A cabaram -se os jov en st Jessé lhe respon­ cou, a esses também glorificou.
deu: A inda falta o m enor, e eis qu e apascen­
ta as ovelhas. Samuel lhe disse: Envia e Esses versículos não contêm todos os pas­
m anda-o chamar, porquanto não nos assen­ sos que poderiam ser listados no tocante à
taremos em roda da mesa até qu e ele venha maneira com o Deus lida com uma pessoa.
aqui. Q uando Davi chegou, o Senhor disse: Nada se diz sobre a regeneração, a adoção ou
Levanta-te e unge-o, p orq ue este mesmo é. a santificação. Contudo, embora seja uma lista
truncada, é uma lista ordenada que mostra Seus distinguidos favores (At 13.48) e, portan­
uma seqüência própria dos atos de Deus. to, escolheu conferir-lhes o dom da fé. ( P in k ,
N a Parte 2 deste livro, analisei a aplicação p. 20)
da salvação pelo Espírito Santo. Porém, essa é
apenas a segunda metade do trabalho divino. O debate pode ser encerrado ao respon­
Um a decisão anterior do Altíssimo precede dermos à seguinte pergunta: O que a palavra
nosso despertar e nosso crescimento espiritu­ presciência significa nas Escrituras? Se digo
al. Isso está expresso nas palavras seu decreto, que tive uma presciência, quero dizer que ti­
dantes conheceu e predestinou. O próximo nha informações, de antemão, sobre alguma
termo na seqüência, chamou, é o ponto no coisa que estava prestes a acontecer. De posse
qual Sua decisão eterna torna-se a experiência disso, eu poderia tomar alguma providência
do indivíduo. em particular. Porém, Deus não é uma criatura
O termo geral é decreto, um propósito temporal como nós. Ele vê o fim antes do iní­
eterno expresso primeiro em conhecimento cio, e a razão pela qual o Senhor vê as coisas
anterior e predestinação (v. 29), e, depois, em como são é porque Ele é eterno. Toda a histó­
seguimento a isso, em chamado, justificação e ria está diante de Seus olhos.
glorificação. O restante da passagem mostra Também devemos observar que o verbo
que a obra de Deus, com certeza, será com ­ conhecer é usado no Antigo Testamento e no
pletada, pois nada nos poderá separar do amor N ovo para significar olhar para alguém com
de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Se­ fav or ou, até mesmo, amar.
nhor! (v. 39).
O uso da expressão dantes conheceu levou Então, disse o S E N H O R a Moisés: Farei
alguns a argumentarem que a eleição é basea­ também isto, que tens dito; porquanto
da em uma presciência, no sentido de que achaste graça aos meus olhos; e te conheço
Deus previu que certas pessoas seriam mais p o r nome.
receptivas ao evangelho do que outras e, por­ Êxodo 33.17
tanto, não resistiriam ao Espírito Santo. C o ­
mo conseqüência, Ele as predestinou a entre- D e todas as famílias da terra a vós somen­
garem-se à salvação. Contudo, a passagem de te conheci; portanto, todas as vossas injus­
Romanos não começa com a ideia de uma tiças visitarei sobre vós.
presciência, mas, sim, de uma afirmação do Amós 3.2
propósito de Deus em salvar.
Arthur W. Pink disse: E, então, lhes direi abertam ente: Nunca
vos conheci; apartai-vos de mim, vós que
[Esse pensamento] defende que há algo bom praticais a iniqüidade.
em alguns homens; tira a independência de Mateus 7.23
Deus, pois faz com que Seus decretos se
apoiem naquilo que Ele descobre na criatura. E u sou o bom Pastor, e conheço as minhas
Vira completamente ao avesso as coisas, por­ ovelhas, e das minhas sou conhecido.
quanto, ao dizer que Deus previu que certos João 10.14
pecadores creriam em Cristo e, por isso, pre-
destinou-os para a salvação, é o inverso da ver­ Mas, se alguém ama a Deus, esse é conhe­
dade. As Escrituras afirmam que Deus, em Sua cido dele.
soberania, escolheu alguns para serem alvo de
O fundam ento de D eus fica firm e, tendo que Deus conheceu previamente os atos de
este selo: O Senhor conhece os que são seus, certas pessoas, a saber, o seu arrependimento e
e qualquer que profere o nom e de Cristo a sua fé, e que, devido a esses atos, Ele as elegeu
aparte-se da iniqüidade. para a salvação? A resposta é: absolutamente
2 Timóteo 2.19 nenhuma. As Escrituras nunca falam de arre­
pendimento e fé como tendo sido previstos ou
A palavra presciência em si nunca é usada conhecidos previamente por Deus. Na verda­
em referência a eventos ou ações, isto é, co ­ de, Ele sabia, desde toda a eternidade, que cer­
mo um conhecimento antecipado do que al­ tas pessoas se arrependeriam e creriam; entre­
guém faria ou poderia fazer, porém sempre a tanto, não é a isso que as Escrituras se referem
pessoas cuja vida é afetada por essa presciên­ como objeto da presciência de Deus [...]. Deus
cia mais do que da maneira contrária. conhece de antemão o que será porque Ele de­
À parte de Romanos 8, há apenas três pas­ cretou o que há de ser. Portanto, afirmar que
sagens nas Escrituras em que a ideia de pres­ Deus elege pessoas porque as conhece previa­
ciência é utilizada, e todas envolvem a ideia de mente é inverter a ordem das Escrituras; é pôr
eleição. “o carro na frente dos bois”. A verdade é esta:
A primeira é Atos 2.23: A este que vos foi Ele as conhece antecipadamente porque as ele­
entregue pelo determinado conselho e presciên­ geu. ( P i n k , s.d., p. 24)
cia de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e
O CHAMADO DE D E U S_______________________
matastes pelas mãos de injustos. Neste versículo,
vemos que a ênfase recai não sobre a presciência, O propósito eterno eletivo de Deus —
mas sobre o fato de que o Pai tinha determinado salvar para si mesmo um povo escolhido den­
um plano do qual resultaria a nossa salvação e a tre todas as nações — não fica no passado. Ele
eleição de Jesus para implementar esse plano. também tem uma expressão no presente, co ­
Romanos 11.2 é a segunda passagem: Deus mo descrito em Romanos 8.30: E aos que p re­
não rejeitou o seu povo, que antes conheceu. destinou, a esses também chamou.
Novamente, o que é declarado objeto da Em teologia, o chamado de Deus é geral­
presciência de Deus é um povo, não as ações mente nomeado com o um chamado efetivo,
dele. Apesar do que aparenta ser o caso em para distingui-lo de um chamado humano,
alguns exemplos, nenhum dos que foram elei­ que poderia ou não ser efetivo.
tos por Deus irá perder-se. A situação nesse caso é paralela à que en­
O terceiro texto é 1 Pedro 1.2: Eleitos se­ volve a palavra presciência. Em nível humano,
gundo a presciência de D eus Pai, em santifica­ significa conhecimento antecipado, enquanto,
ção do Espírito. Esses eleitos são os estrangei­ em relação a Deus, para o qual referências de
ros dispersos, mencionados no versículo ante­ tempo não funcionam, quer dizer favor eleti­
rior. Deus elegeu esses para a salvação. vo ou escolha.
É a mesma coisa em Romanos 8.28-30, Semelhantemente, um chamado, em nível
Pessoas são conhecidas previamente, e o re­ humano, pode tornar alguma coisa possível,
sultado é o seu chamado efetivo, a sua justifi­ mas, na verdade, não a realiza.
cação e a sua glorificação. Em contraste, no caso do Senhor, é reali­
Pink argumentou: zada.
Tomemos, por exemplo, uma intimação
Ora, em vista dessas passagens (e não há outras para comparecer a um tribunal. Um a intima­
mais), que base bíblica há para alguém dizer ção é um tipo de chamado; é uma convocação.
Ela tem a autoridade da lei e o poder do Estado chamado apressa/aviva aqueles que foram
endossando-a. Contudo, mesmo esse chama­ escolhidos por Deus para ser Seu povo. E que
do extremamente sério não tem, na verdade, o ninguém deixe de ser apressado/avivado! C o ­
poder de levar a pessoa intimada ao tribunal. mo disse Jesus: As minhas ovelhas ouvem a
Ela pode esconder-se, fugir à ação da justiça, minha voz, e eu conheço-as, e elas m e seguem
fugir do país ou, da mesma forma, opor-se à (Jo 10.27).
ação judicial. N ão é assim com Deus. N o caso
divino, o chamado verdadeiramente efetua a O S BENEFÍCIOS DA DOUTRINA_______________

resposta daquele que foi intimado. Algumas pessoas creem que a eleição é
Muitos versículos mostram esse significa­ uma doutrina inútil ou, até mesmo, pernicio­
do da palavra, mas nenhum de forma tão clara sa. Dizem que ela encoraja a irresponsabilida­
quanto Romanos 8. de e o pecado. N a verdade, ela não faz nada
John M urray escreveu: disso. As pessoas são responsáveis diante de
Deus pelo que fazem, a despeito de Deus tê-las
Nada encerra o argumento para o tema do cha­ escolhido para a salvação ou não. Elas não são
mado mais claramente do que Romanos 8.28- julgadas pelo Senhor por deixarem de fazer
30, em que se afirma que o chamado está de aquilo que não conseguem fazer, mas por dei­
acordo com o propósito de Deus e encontra-se xarem de fazer o bem que podem fazer e por
no centro da indestrutível cadeia de eventos fazerem o mal. Deus proíbe tal conduta e esta­
que teve seu início na presciência divina e sua beleceu leis de causa e efeito para impedi-la
consumação na glorificação. Isso significa, (Rm 1.24-32). A eleição não afeta esses fatos.
simplesmente, dizer que o chamado efetivo Olhando de modo positivo, há muitos be­
assegura perseverança porque é baseado na se­ nefícios para os cristãos. Primeiro, a eleição
gurança do propósito e da graça de Deus. elimina o ato de gabar-se com certo status.
(M u r r a y , 1 9 5 5 , p . 9 1 ) N ão cristãos ou aqueles que não entendem a
eleição frequentemente supõem o contrário, e
Aqueles que foram escolhidos por Deus e aqueles que creem na eleição, às vezes, pare­
atraídos à fé em Cristo pelo poder de Seus cem presunçosos. Mas isso é uma caricatura.
chamados são aqueles chamados para serem Deus nos diz, explicitamente, que escolheu
de Jesus Cristo (Rm 1.6). São chamados para salvar um povo para si mesmo pela graça, to ­
serem santos (Rm 1.7), isto é, separados para talmente à parte de qualquer mérito ou recep­
Deus. Eles devem viver em santidade. Esse é tividade nele, precisamente para que o orgu­
o ponto da advertência de Paulo aos cristãos lho fosse eliminado.
em Efeso: Rogo-vos, pois, eu, o preso do Se­
nhor, que andeis como é digno da vocação Porque pela graça sois salvos, p o r meio
com que fostes chamados (Ef 4.1). da f é ; e isso não vem de vós; é dom de
Lázaro estava m orto antes de Cristo cha­ Deus. N ão vem das obras, para qu e nin­
má-lo do túmulo. Ele estava inatingível a gu ém se glorie.
qualquer chamado. Se eu e você estivéssemos Efésios 2.8,9
presentes, poderíamos ter gritado, de modo
persuasivo e eloqüente, mas, mesmo assim, A salvação é pela graça, para que a glória
Lázaro não teria respondido. Quando Jesus o seja de Deus.
chamou, foi diferente. Seu chamado tem o Segundo, essa doutrina encoraja o amor
poder de ressuscitar. Da mesma forma, Seu a Deus. Se tivéssemos uma participação na
salvação, nosso amor a Deus seria diminuído meios pelos quais Ele chama, e a Bíblia, expli­
por causa disso. Se o mérito é do Senhor, citamente, diz-nos que a proclamação do
nosso amor por Ele deve ser ilimitado. N ós evangelho pelos cristãos é um desses meios
não o buscamos; Ele nos buscou. Quando (1 C o 1.21; Rm 1.16,17).
nos buscou, fugimos. Quando veio na pes­ Ademais, é somente isso que nos dá espe­
soa de Seu Filho, nós o matamos. Contudo, rança de sucesso quando proclamamos o
mesmo assim, Ele veio; ainda assim, elegeu evangelho. Se o coração é tão duro e tão con­
um grande número de rebeldes recalcitran- tra Deus e Seus caminhos como a Bíblia de­
tes para a salvação. clara ser, e se Deus não elege essa pessoa, que
esperança podemos ter em compartilhar a fé?
Mas D eus prova o seu amor para conosco Se Deus não chama efetivamente, nós, com
em que Cristo m orreu p o r nós, sendo nós certeza, não podemos fazê-lo. Entretanto, se
ainda pecadores. Ele tem realizado tal obra no mundo, pode­
Romanos 5.8 mos ir de modo ousado, sabendo que todos os
que o Eterno decidiu salvar irão a Ele.
Por fim, a doutrina da eleição traz também N ós não sabemos quem eles são. A única
este benefício: encoraja-nos ao evangelismo. forma de conhecer um eleito é mediante a res­
Em geral se pensa o oposto. Se Deus só vai posta dele ao evangelho e a maneira com o se
salvar algumas pessoas, então vai salvá-las, e comporta no dia-a-dia da vida cristã que se
não há finalidade em ter alguma coisa a ver segue ao chamado. Mas nós podemos chamá-
com isso. Porém, não é dessa forma que fun­ -los com intrepidez, sabendo que aqueles que
ciona. A eleição de Deus não exclui o uso de são chamados certamente virão.
O PO D ER PROTETOR DE D E U S

Há dois pontos em religião em que o ensino da E representa a eleição, a doutrina analisa­


Bíblia é muito claro e distinto. Um deles é o da no capítulo anterior. Significa que a salva­
perigo amedrontador dos ímpios; o outro é a ção começa com Deus nos escolhendo, e não
perfeita segurança dos justos. Um é a felicida­ o contrário.
de daqueles que são convertidos; o outro é a P representa propiciação, a doutrina de
penúria daqueles que não se converteram. que a m orte de C risto foi uma propiciação
Um é a bênção de estar a caminho do céu; o real pelos pecados específicos de Seu povo,
outro, a tristeza de ir para o inferno. ( R y l e , resultando em que este se torna verdadeira­
1977, p. 476) mente salvo. N ão foi pura e simplesmente
uma propiciação geral que torna a salvação
Essas palavras do bispo Ryle, da Inglater­ possível, mas que, na verdade, não salva
ra, introduzem o assunto da perseverança de ninguém.
Deus em relação aos Seus santos e une este G representa a graça irresistível, a doutri­
capítulo ao último. A doutrina da perseveran­ na a que nos referimos no capítulo anterior
ça significa que o Pai, que começou um bom como chamado efetivo.
trabalho ao eleger e depois chamar um indiví­ P representa a perseverança dos santos.
duo à salvação, de acordo com Seu bom pro­ Esta perseverança [em seguir o Senhor] é o
pósito, certamente guardará esse propósito que [junto aos elementos anteriores], assegu­
até que a pessoa eleita e chamada seja levada ra que nenhum dos que foram chamados por
para o lar celestial e desfrute das bênçãos que Deus e redimidos pelo Senhor Jesus Cristo
estão preparadas para ela. irão perder-se. Um a vez que Deus está no iní­
A perseverança é o quinto dos cinco pon­ cio e no meio de Seu plano de salvação, Ele
tos defendidos pelo calvinismo; está ligada também está no fim.
aos outros pontos e extrai sua força deles. Essas doutrinas não foram inventadas
Esses pontos são, às vezes, expressos pela por Calvino nem são características apenas
sigla DEPGP, embora as palavras sugeridas de seu pensamento durante o período da R e­
por essas letras não sejam necessariamente a forma. Elas são verdades bíblicas ensinadas
melhor expressão das doutrinas. por Jesus e confirmadas por Paulo, Pedro e
D representa a depravação total, a doutri­ todos os outros escritores do Antigo e do
na de que os não regenerados jamais poderão N ovo Testamento.
fazer alguma coisa para satisfazer os padrões Agostinho as defendia contra as negações
de justiça de Deus. de Pelágio. Lutero cria nelas. Zuínglio também.
Eles acreditavam na mesma coisa que Calvi- Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou,
no, a qual, mais tarde, ele sistematizou em sua porque não são do mundo, assim como eu
obra As Institutas. não sou do mundo. Não peço que os tires do
Os puritanos eram calvinistas; foi por in­ mundo, mas que os livres do mal.
termédio deles e de seus ensinamentos que am­ João 17.11,14,15
bas, Inglaterra e Escócia, experimentaram os
maiores e mais difundidos avivamentos nacio­ Essas palavras tem um tom de tristeza no
nais que o mundo jamais viu posteriormente. contexto do Evangelho de João, pois o malig­
Seguindo essa linha, temos os herdeiros de no estava, naquele momento, entrando em
John Knox: Thomas Cartwright, Richard Judas, e o “mundo” ia condenar Cristo à
Sibbes, Richard Baxter, M atthew Henry, morte antes que amanhecesse. Esse era o am­
John Owen, entre outros. N os Estados U ni­ biente fatal onde os discípulos seriam deixa­
dos, outros foram influenciados por homens dos. Abandonados à própria sorte, eles pere­
como Jonathan Edwards, C otton Mather e, ceriam. Mas Cristo orou por eles. Em bora o
mais tarde, George Whitefield. perigo fosse grande, eles foram guardados
E m épocas mais recentes, o movimento pelo poder de Deus.
missionário moderno recebeu, praticamente, Segundo, a perseverança não significa que
toda a sua orientação e todo o seu ímpeto da­ os cristãos estão livres de cair em pecado só
queles dentro da tradição calvinista. A lista porque são cristãos. Poderíamos raciocinar
inclui William Carey, John Ryland, Henry assim com base na oração de Cristo em João
Martyn, Robert Moffat, David Livingstone, 17, mas isso seria errado, pois aqueles por
John G. Paton, John R. M ott, entre outros. quem Ele ora certamente pecam, embora não
Para todos esses, as doutrinas da graça não pequem de modo a afastar-se do Mestre para
eram um apêndice do pensamento cristão, sempre.
mas, na verdade, ideias centrais, ardorosas e O Senhor disse a Pedro, por exemplo, que
formadoras de seus esforços proclamadores e ele pecaria a ponto de negá-lo, e que o faria
missionários. três vezes seguidas: Simão, Simão, eis que Sa­
tanás vos pediu para vos cirandar como trigo
O QUE NÃO É PERSEVERANÇA________________ (Jo 13.38). Porém, Cristo acrescentou: Mas eu
Antes de examinarmos o ensino bíblico roguei por ti, para que a tua f é não desfaleça;
relativo à perseverança, consideraremos o e tu, quando te converteres, confirma teus ir­
que essa doutrina não é. Primeiro, a perseve­ mãos (L c 22.31,32).
rança não significa que os cristãos estão livres Nesse incidente, Jesus previu a negação de
de perigos espirituais só porque são cristãos. Pedro, mas também anteviu sua recuperação.
Pelo contrário, o risco que correm é ainda Ele assegurou Pedro acerca de Sua intercessão
maior, pois o mundo e o diabo serão seus para que a fé de Seu discípulo não fracassasse.
opositores ativos. N oé ficou bêbado. Abraão mentiu duas
Observe a oração de Cristo pelos Seus vezes sobre sua esposa, Sara, dizendo que ela
discípulos antes da crucificação: era sua irmã, pondo, assim, em risco a honra
dela para salvar a própria pele. L ó escolheu
E eu já não estou mais no m undo; mas eles Sodoma. Jacó enganou seu irmão, Esaú, e en­
estão no mundo, e eu vou para ti. Pai san­ ganou seu pai, Isaque. Davi caiu em adultério
to, guarda em teu nome aqueles que me com Bate-Seba e, depois, tentou encobrir is­
deste, para que sejam um, assim como nós. so, fazendo com que Urias fosse morto.
N o Getsêmani, os discípulos abandona­ eliminada; embora as virgens prudentes tenham
ram Jesus para se proteger. Paulo e Barnabé descansado, suas lâmpadas não foram totalmen­
brigaram por causa de João Marcos e tiveram te apagadas. (W atson , 1970, p. 279,280)
de separar-se. Paulo insistiu em voltar para
Jerusalém com a oferta dos gentios, mesmo A perseverança significa que, uma vez que
quando o próprio Senhor apareceu a ele e o alguém entra para a família de Deus, estará
proibiu de fazê-lo. sempre nessa família.
Todos eles pecaram. Contudo, não se per­ A Bíblia é clara ao afirmar que Deus cui­
deram. N a verdade, não há uma única histó­ dará para que aqueles que foram justificados
ria, em toda a Bíblia, de alguém que foi um não se percam. Davi escreveu no Salmo 138.8:
verdadeiro filho de Deus que se tenha perdi­
do. Muitos foram dominados pelo pecado, O S E N H O R aperfeiçoará o que me con­
mas nenhum pereceu. cerne; a tua benignidade, ó S E N H O R , é
Terceiro, a perseverança não significa que para sempre; não desampares as obras das
aqueles que meramente professam Cristo, tuas mãos.
sem ter nascido de novo, estejam seguros.
Advertências específicas são dadas àqueles O autor de Hebreus (10.14) declarou: Por­
que ouvem o evangelho e parecem ter fé em que, com uma só oblação, aperfeiçoou para
Cristo, mas que não são verdadeiramente sal­ sempre os que são santificados.
vos. Por exemplo, Jesus disse: Se vós perm a- Paulo escreveu:
necerdes na minha palavra, verdadeiramente,
sereis meus discípulos (Jo 8.31). E m tudo somos atribulados, mas não an­
Isso parece m ostrar que a perseverança gustiados; perplexos, mas não desanima­
por parte do cristão é a prova cabal de que dos; perseguidos, mas não desamparados;
ele é ou não nascido de novo. N osso Se­ abatidos, mas não destruídos; sabendo que
nhor disse: A q u ele qu e p ersev era r até ao o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressus­
fim será salvo (M t 10.22). Pedro escreveu: citará também p o r Jesus e nos apresentará
Portanto, irmãos, p rocurai fa z e r cada v ez convosco.
mais firm e a vossa vocação e eleição (2 Pe 2 Coríntios 4.8,9,14
1.10). É possível estar bem próxim o de co i­
sas cristãs e, mesmo assim, não ser de fato A perseverança pode ser observada pelas
regenerado. imagens que a Bíblia aplica aos cristãos: árvo­
res cujas folhas não caem (SI 1.3); cedros do
A qu ele q u e guarda I s r a e l _______________ Líbano que florescem a cada ano como se-
A perseverança na graça, na verdade, sig­ quoias da Califórnia (SI 92.12); uma casa
nifica, com o Thomas Watson apontou: construída sobre a rocha (Mt 7.24); o monte
Sião, que não pode ser movido (Sl 125.1).
A herança celestial está guardada para os san­ O Antigo Testamento fala especificamen­
tos, e eles são guardados para a herança [...]. te do poder de Deus para guardar-nos. N o
Embora os santos possam chegar àquele mo­ Salmo 121.3-8, o Senhor é comparado a uma
mento em que nada têm a não ser um pouco de sentinela divina, cuja preocupação é zelar so­
fé, não ficam sem fé. Embora a graça possa es­ bre Seu povo durante sua vida terrena. Soma­
tar sendo puxada lá de baixo, ela não está seca; dos, o verbo guardar e o substantivo guarda
embora a graça possa estar abatida, não está são usados seis vezes nesse contexto.
Não deixará vacilar o teu p é; aquele que te N aquele dia, haverá uma vinha de vinho
guarda não tosquenejará. Eis que não tos- tinto; cantai-lhe. Eu, o S E N H O R , a guar­
quenejará nem dormirá o guarda de Isra­ do e, a cada momento, a regarei; para que
el. O S E N H O R é quem te guarda; o SE­ ninguém lhe faça dano, de noite e de dia a
N H O R é a tua sombra à tua direita. O sol guardarei.
não te molestará de dia, nem a lua, de
noite. O S E N H O R te guardará de todo Jesus se aproveitou dessas imagens em Seu
mal; ele guardará a tua alma. O S E ­ ensino. Ele comparou Seu Pai e a si mesmo às
N H O R guardará a tua entrada e a tua figuras de vigia, pastor e senhor de terras, pa­
saída, desde agora e para sempre. ra encorajar Seus discípulos. O perigo era
muito grande exterior e interiormente. Os
Outra passagem importante é Ezequiel discípulos possuíam uma velha natureza, que,
34.11-16. Deus falara contra aqueles que ha­ com certeza, iria arrastá-los para o pecado
viam sido pastores em Israel que, como Ele várias vezes. Porém, Cristo proclamou que
diz, não haviam feito seu trabalho. Eles deve­ havia U m que era maior até mesmo do que o
riam ter zelado pelas ovelhas, mas abandona- perigo, e que iria preservá-los assim com o ha­
ram-nas. Agora, disse Deus, farei o que aque­ via preservado e guardado Israel.
les líderes infiéis não fizeram.
Q u a tro t e x t o s- ch ave pa ra a
SEGURANÇA DO CRISTÃO_____________________
Porque assim diz o Senhor JE O V Á : Eis
que eu, eu mesmo, procurarei as minhas N o N ovo Testamento, há quatro grandes
ovelhas e as buscarei. Como o pastor busca textos que, mais do que quaisquer outros, en­
o seu rebanho, no dia em que está no meio sinam sobre a segurança do cristão. Dois fo­
das suas ovelhas dispersas, assim buscarei ram proferidos por Jesus. Dois partiram de
as minhas ovelhas; e as farei voltar de to­ Paulo.
dos os lugares por onde andam espalhadas O primeiro é João 6.37-40:
no dia de nuvens e de escuridão. E as tira­
rei dos povos, e as farei vir dos diversos Tudo o que o Pai me dá virá a mim; e o
países, e as trarei à sua terra, e as apascen­ que vem a mim de maneira nenhum a o
tarei nos montes de Israel, junto às corren­ lançarei fora. Porque eu desci do céu não
tes e em todas as habitações da terra. Em para fa z e r a minha vontade, mas a vonta­
bons pastos as apascentarei, e nos altos de daquele que m e enviou. E a vontade do
montes de Israel será a sua malhada; ali, se Pai, que m e enviou, é esta: que nenhum de
deitarão numa boa malhada e pastarão em todos aqueles que m e deu se perca, mas
pastos gordos nos montes de Israel. Eu que o ressuscite no último Dia. Porquanto
apascentarei as minhas ovelhas, e eu as fa ­ a vontade daquele que m e enviou é esta:
rei repousar, diz o Senhor JE O V Á . A per­ que todo aquele que vê o Filho e crê nele
dida buscarei, e a desgarrada tornarei a tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no
trazer, e a quebrada ligarei, e a enferm a último Dia.
fortalecerei; mas a gorda e a forte destrui­
rei; apascentá-las-ei com juízo. Tendo declarado que todos os que foram
dados a Ele pelo Pai irão, de fato, até Ele, o
Em Isaías 27.2,3, Deus é comparado ao Senhor continuou a ressaltar que guardará
vigia de uma vinha: aqueles que efetivamente fizerem isso. Em
grego, essa frase contém uma negativa dupla fora do lado de trás. Depois, com um golpe
que poderia ser traduzida assim: E o que vem de seu martelo, ele empurra a ponta do prego
a mim eu nunca,, nunca lançarei fora. lateralmente, incrustando-o na madeira. Isso
Se a passagem parasse nesse ponto, seria é chamado de fazer o rebite. Essa atitude tor­
possível argumentar que a negativa dupla re­ na o encaixe um pouco mais justo porque o
fere-se apenas ao fato de Cristo receber aque­ prego não consegue sair da posição.
le que vai a Ele inicialmente — o qual Ele Foi o que Jesus fez nesses versículos. Ele
nunca, nunca rejeitará —, porém essa pessoa estava tão interessado em fazer com que a
pode, não obstante, decidir abandonar Cristo doutrina se fixasse na mente dos discípulos
por sua própria iniciativa. que empurrou não somente um prego, mas
Com o Jesus deixou claro nos versos se­ dois, e fez o rebite em ambos.
guintes, todos os que foram dados a Ele pelo Primeiro, Cristo ensinou que aqueles que
Pai e que, portanto, vão a Ele e são recebidos são dele receberam a vida eterna. Dou-lhes a
por Ele serão ressuscitados no último dia. Jesus vida eterna. Esse é o “prego”. Só isso já fixa a
não perderá nada daquilo que Deus lhe deu. verdade, pois a vida eterna é a que nunca se
O segundo grande texto sobre perseve­ pode perder. Se ela pudesse ser perdida após
rança é João 10.27-30, que segue a mesma alguns anos ou mesmo após muitos anos, não
estrutura dos versículos de João 6. Mas, nes­ seria eterna. Entretanto, Jesus sabia que mui­
se caso, o Senhor está respondendo a um tos tentariam minimizá-la. P or isso, Ele disse:
pedido de Seus ouvintes para falar de modo E nunca hão de perecer. Esse é o “rebite” pelo
mais claro. qual a doutrina da perseverança se fixa.
É óbvio que a dificuldade não estava no U m prego, embora bastante apertado,
que Jesus falava, e, sim, no entendimento da­ nem sempre faz uma boa junção. Assim, Jesus
quelas pessoas. Entretanto, Ele respondeu: prosseguiu, empurrando um segundo prego
As minhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu para fazer o rebite com ele também. Seu se­
conheço-as, e elas m e seguem ; e dou-lhes a gundo prego: N inguém as arrebatará das mi­
vida eterna, e nunca hão de perecer, e nin­ nhas mãos. O rebite: M eu Pai, que mas deu, é
guém as arrebatará das minhas mãos (v. maior do que todos; e ninguém pode arreba­
27,28). Eis a eleição, o chamado efetivo e a tá-las das mãos de m eu Pai (v. 29).
perseverança! Podemos imaginar-nos semelhantes a uma
Alguém poderia dizer: “Eu sei que nin­ moeda presa em Seus dedos. Essa é uma posi­
guém jamais nos arrebatará das mãos de C ris­ ção segura para qualquer objeto, mas, espe­
to, mas suponha que escolhamos desviar-nos cialmente, para nós, considerando as mãos
por nossa própria conta”. Jesus disse: “Eles que nos seguram. Porém, Jesus acrescenta
nunca perecerão”. “N unca?”, poderíamos que a mão de Deus está sobre a dele. Estamos
perguntar-lhe. “N unca”, Cristo responderia. seguros por duas mãos, ou seja, duplamente
“Eles jamais perecerão, e ninguém os arreba­ seguros. Se nos sentirmos inseguros, podere­
tará de minhas mãos.” mos lembrar que, mesmo quando somos se­
Em alguns momentos, pensei que o que gurados dessa forma, o Pai e o Filho ainda
Jesus fez ao proferir essas palavras fosse se­ terão duas mãos livres para nos defender.
melhante ao que um carpinteiro frequente­ O terceiro texto importante sobre perse­
mente faz. Às vezes, em carpintaria bruta, um verança foi escrito por Paulo. Trata-se de R o­
carpinteiro empurra um prego longo por lâ­ manos 8.33-39. É uma continuação dos versí­
minas mais finas até que a ponta fique para culos estudados no capítulo anterior e parte
da mesma seqüência dos atos de Deus para a Esse padecimento é real. Ele deve ser es­
salvação que eles introduzem. perado, como Paulo indicou em sua citação
do Salmo 44.22 em Romanos 8.36. Mas o so­
Quem. intentará acusação contra os esco­ frimento não triunfará. Ele não nos pode se­
lhidos de D eus f E D eus quem os justifica. parar do amor de Deus.
Q uem 05 condenará f Pois é Cristo quem A terceira causa potencial da separação do
morreu ou, antes, quem ressuscitou dentre amor de Deus é a existência de poderes sobre­
os mortos, o qual está à direita de Deus, e naturais (v. 38,39), mas Paulo disse que nem
também intercede p o r nós. Q uem nos se­ mesmo esses triunfarão. Paulo conhecia a ex­
parará do amor de Cristo? A tribulação, tensão da maldade espiritual neste mundo, e
ou a angústia, ou a perseguição, ou a fom e, ele mesmo havia lutado contra isso.
ou a nudez, ou o perigo, ou a espada ? Co­ O apóstolo escreveu em Efésios 6.12:
mo está escrito: Por am or de ti somos en­
tregues á morte todo o dia: fom os reputa­ Porque não temos que lutar contra carne e
dos como ovelhas para o matadouro. Mas sangue, mas, sim, contra os principados,
em todas estas coisas somos mais do que contra as potestades, contra os príncipes
vencedores, p or aquele que nos amou. Por­ das trevas deste século, contra as hostes es­
que estou certo de que nem a morte, nem a pirituais da maldade, nos lugares celestiais.
vida, nem os anjos, nem os principados,
nem as potestades, nem o presente, nem o Porém, por mais assustadoras que tais for­
porvir, nem a altura, nem a profundidade, ças possam parecer, elas não podem triunfar
nem alguma outra criatura nos poderá se­ sobre nós, porque Jesus foi vitorioso sobre elas.
parar do amor de Deus, que está em Cristo Aos colossenses, Paulo escreveu: E, des­
Jesus, nosso Senhor! pojando os principados e potestades, os expôs
publicamente e deles triunfou em si [Cristo]
Paulo listou três causas possíveis de sepa­ mesmo (Cl 2.15).
ração do amor de Deus nesses versos, mas, O texto final é Filipenses 1.6: Tendo p or
depois, ele as pôs de lado. certo isto mesmo: que aquele que em vós co­
Primeiro, o pecado (v. 33,34). Os cristãos meçou a boa obra a aperfeiçoará até ao Dia
sabem que, embora sejam justificados por de Jesus Cristo.
Deus, ainda são pecadores e erram diariamente Isso é uma afirmação condensada de um
por meio de pensamentos, palavras e atos. “E princípio declarado, de modo mais extenso,
daí?”, perguntou Paulo. “Cristo morreu pelo em outros lugares: Deus termina o que Ele
pecado. Portanto, aos olhos de Deus, o pecado começa. Contudo, também sugere outro pen­
se foi para sempre.” E supondo que alguém samento. Literalmente, o grego diz que Deus
nos acuse? “Deus é o Juiz”, Paulo respondeu. irá continuar aperfeiçoando seu trabalho até o
Os cristãos já foram absolvidos diante do júri Dia de Cristo. Dito de forma mais direta, Ele
da Suprema Corte, e ninguém está autorizado fará isso quer queiramos, quer não.
a reabrir esse caso. O versículo fala de uma boa obra que
Segundo, nos versos 35 a 37, Paulo falou Deus completará. Que boa obra é essa? Ela
de sofrimento externo (tribulação, fome, nu­ não está bem explicitada em Filipenses 1.6,
dez, perigo) e interno (a angústia da alma co­ mas em Romanos 8.29: Porque os que dantes
nhecida por aqueles que enfrentam persegui­ conheceu, também os predestinou para serem
ção por causa de seu testemunho). conformes á imagem de seu Filho.
Isso é algo que vai acontecer somente no Por vezes, achamos desanimador o ato de
céu? N ão. O plano de Deus é que vivamos evangelizar. As pessoas não querem o evange­
isso hoje. E m Filipenses 1.6 está escrito que o lho. Elas odeiam o Deus que o deu. Ainda
Pai não desistirá de Seus esforços para tornar- assim, insistiremos nisso, sabendo que o mes­
-nos semelhantes a Cristo, mesmo em caso de mo Deus que é capaz de guardar-nos é capaz
não querermos que Ele o faça. Cristo é o San­ também de salvar outros deste mundo.
to de Deus; assim, esse plano envolve nosso Nossa família é uma área de responsabili­
crescimento em santidade. dade especial. Muitas vezes, ficamos deprimi­
Sabemos que pecamos como cristãos. O dos quando um filho, uma filha, um irmão,
que acontece quando pecamos? O Eterno nos uma irmã ou nosso cônjuge não trilha os cami­
ignora? Poderíamos desejar que Ele o fizesse nhos de Deus. Em dadas ocasiões, a situação
porque nós, às vezes, ainda que por um mo­ parece perdida. Mas o Senhor não permite
mento, gostamos do pecado. Porém, Deus não que fiquemos desesperançados. Ele não de­
permite que continuemos em nosso caminho sistirá nem renunciará. Deus é o nosso Guar­
erroneamente. Ele nos disciplina quanto a isso. da fiel. C om Ele, todas as coisas são possíveis.
O Senhor nos persuade e, às vezes, até Vivemos em uma época que é tão fraca
permite que sejamos infelizes para que possa­ em proclam ar a doutrina de C risto que mes­
mos sair do caminho de destruição e voltar mo muitos cristãos não conseguem ver por
para a estrada que Ele mapeou para nós. Deus que tais verdades devem ser pregadas, ou
pode até permitir que um cristão passe por com o eles podem ser usados pelo Senhor
muitos percalços, se isso for necessário para para salvar os pecadores. Isso nem sempre
tirá-lo do pecado e conduzi-lo de volta à co­ foi assim.
munhão. O Eterno usou a doutrina da perseverança
Por isso, a doutrina da perseverança não é para salvar Charles Spurgeon, um dos maio­
o ensinamento perigoso que alguns imagi­ res pregadores que já existiram. Quando ele
nam. “A perseverança pode ser verdadeira”, tinha apenas 15 anos, observou como amigos
diz alguém, “mas, com certeza, ensiná-la é seus que tinham começado bem a vida destru-
perigoso. íram-se ao cair em vícios terríveis.
Se as pessoas crerem que nada pode arre- Spurgeon tinha medo de que ele mesmo
batá-las da mão de Deus, com certeza irão pudesse sucumbir. “Quaisquer boas resolu­
sentir-se à vontade para pecar. Essa doutrina ções que eu possa tom ar”, ele pensou, “a pro­
nos encoraja a viver de qualquer jeito”. babilidade é que não servirão para nada quan­
O conhecimento da grandeza do amor di­ do a tentação me atacar. Serei como aqueles
vino que persevera por nós, na verdade, tende de quem se diz: ‘Eles veem o anzol de Satanás
a manter-nos fiéis. Conhecer tal amor é dese­ e, mesmo assim, não conseguem deixar de dar
jar, acima de qualquer outra coisa, não fazer uma mordidinha na isca’. Eu me desgraçarei e
nada contra Ele. me perderei”.
Além disso, o conhecimento da perseve­ Isso foi quando ele ouviu que Cristo guar­
rança divina ensina-nos a também perseverar. daria da queda os Seus santos. Esse fato teve
N osso trabalho é frequentemente desestimu- um encanto particular para ele, que se viu di­
lante. Em geral, vemos poucos resultados. zendo: “E u me voltarei para Jesus e receberei
Mas nos manteremos nele porque o Pai no-lo dele um novo coração e um espírito reto. A s­
deu, e precisamos ser como Ele, cumprindo sim, ficarei seguro contra aquelas tentações
fielmente essa responsabilidade. em que os outros caíram. Serei preservado
por E le”. Foi essa verdade, somada a outras, ou possibilidades. É um evangelho certo. É o
que conduziu Spurgeon ao Salvador. anúncio de nossa completa ruína no pecado,
O cristianismo não tem um fundamento va­ mas, também, do remédio perfeito de Deus
cilante. N ão é uma mensagem de porcentagens em Cristo.
L iv r o c

D eu s e a h is t ó r ia
Tempo e história

O que era desde o princípio, o que vimos com os rwssos olhos, o que temos contemplado,
e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida (porque a vida foi manifestada, e nós a
vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai e nos fõi
manifestada), o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais
comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo.
1 João 1.1-3

Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome.
Venha o teu Reino. Seja fêita a tua vontade, tanto na terra como no céu.
Mateus 6.9,10

Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob
a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos.
Gálatas 4.4,5
O QUE ESTÁ ERRADO COMIGO?

s f x ^ a rg a re th Halsey é uma autora H á muitas desvantagens nessa visão de


/ § / ã que escreve para a revista ameri- mundo egocêntrica. Um a delas é a tendência
§ / ã / cana Newsweek. Seu artigo, inti- do indivíduo de manipular os outros, visando
r tulado What's wrong with me, sua própria gratificação, atitude que prejudi­
me, m e? [O que está errado comigo, comigo, ca tanto o manipulador como sua vítima.
comigo?], é um ponto de partida excelente pa­ O típico macho egoísta, enaltecido pela
ra o início do quarto e último livro desta obra. filosofia da revista Playboy, é um exemplo.
Com o Halsey sinalizou, nossa geração tem Ele usa as mulheres da mesma forma como
sido classificada, de maneira muito apropriada, usa seus carros, eletroeletrônicos e suas rou­
como a geração do eu e do m eu, sendo nosso pas, e tem o mesmo objetivo: realçar sua au-
passado recente conhecido como “a década do toimagem e aumentar seu prazer. Da mesma
novo narcisismo”. O ponto de vista das pes­ forma, podemos observar uma tendência para
soas cujas atitudes serviram para atribuir-nos a manipulação em alguns segmentos do m o­
estes vergonhosos rótulos é o seguinte: vimento pela liberação das mulheres, o cha­
mado feminismo, muito embora, em teoria,
Dentro de cada ser humano, por mais insignifi­ ele se oponha ao conceito da Playboy.
cante que ele seja, existe uma personalidade glo­ Em um artigo publicado na revista H arper’s,
riosa, talentosa e irresistivelmente cativante [que] a editora-assistente, Sally Helgesen, falou da
será revelada em todo o seu esplendor, se o indiví­ visão que deveria permear a meta de vida fe­
duo, renunciando a virtudes como gentileza, coo- minina: “Comer, dormir, fazer amor, assistir à
perativismo e consideração com o próximo, pas­ TV, ouvir música, sair, voltar para casa, ler,
sar a dar vazão a tudo o que tem vontade de fazer. falar ao telefone, escrever, conversar, traba­
{Newsweek, 17 de abril de 1978, p. 25) lhar, cantar - tudo quando tiver vontade”
(H a rper’s, maio de 1978, p. 23,24), observan­
Essa filosofia de vida, apesar de bastante do que esta não difere tanto da visão de mundo
equivocada, implica que as pessoas tenham, da revista Playboy, sendo, portanto, tema de
no mínimo, enormes oportunidades para sa­ exploração comercial também. Ainda sobre
tisfazerem a si mesmas. Mas, na prática, o re­ isso, ela acrescentou:
sultado não tem sido esse. Mesmo com uma
autogratificação quase ilimitada e uma ex­ Esse credo imaginativo, no qual os princípios de
pressividade sem qualquer inibição, o culto ao um hedonismo interminável são capitalizados
eu tem produzido uma legião de insatisfeitos. para os propósitos de uma cultura consumista, é
respaldado por todo tipo de justificativa sagaz, não é algo que encontramos, mas sim algo
e garante que o adepto, ao pensar primeiro nas construído por meio de escolhas, trabalho
próprias necessidades, estará beneficiando, de duro e comprometimento com os outros.
algum modo, a espécie humana em longo pra­ Nesse ponto, o cristianismo aparece como
zo. (Harper’s, maio de 1978, p. 23,24) suporte essencial para sua tese, embora ela a
defenda em termos ainda mais fortes, visto
Um a segunda desvantagem do “culto ao que concordaria que, no interior do coração
eu ” é a frustração. A sensação de satisfação do indivíduo, há uma porção de “impulsos
não provém de uma tolerância sem limites ou primitivos desgovernados”.
de uma busca irrefreável de prazer. Se as pes­ Entretanto, a situação é ainda pior. De
soas pensam que deveria ser dessa maneira, acordo com a Bíblia, o coração é endurecido
tornam-se inevitavelmente frustradas ou, até (M t 13.15), soberbo (L c 1.51), duro e impe-
mesmo, rancorosas quando as situações não nitente (Rm 2.5), além de cheio de concupis-
funcionam com o elas previam. O resultado é cência e imundície (Rm 1.24). Acima de tudo
a deformação da personalidade ou uma ten­ isso, o ser humano está em rebeldia contra
dência irracional de culpar os outros, quer Deus (M t 15.8), e, por isso, Jesus estava cer­
seja o marido, a esposa, a política, o estado, o to quando disse que a m aior parte da malda­
meio-ambiente ou até Deus. de do mundo vem de nosso coração (Mt
15.18,19). Daí a necessidade que temos de,
A p r o c u r a p e l a i d e n t i d a d e ______________
mediante a obra do Filho de Deus, ganhar
Em seu artigo na Newsweek, Halsey um novo coração.
apontou uma série de falhas na visão de mun­ O cristianismo também corrobora que es­
do autocentrada. Primeiro, ela argumentou que sa identidade tem de ser desenvolvida. É ver­
a teoria básica de que “dentro de cada ser huma­ dade que ele trata daquela que nos é dada pela
no existe uma personalidade gloriosa, talentosa revelação e pela redenção, já que somos novas
e irresistivelmente cativante” (Newsweek, 17 de criaturas de Deus levadas para Sua família por
abril de 1978, p. 25) é falsa. Embora possam ser meio da obra de Cristo. N o entanto, o Senhor
encontrados elementos cativantes em todas as também menciona em Seus ensinamentos
pessoas, a realidade da natureza humana é que uma identidade desenvolvida pelos salvos por
uma porção de impulsos primitivos desgover­ Cristo que vivenciam, pela ação do Espírito
nados é responsável por estragar nosso proces­ de Deus em seus corações, um íntimo conhe­
so de autodescoberta. cimento de Jesus e de Seu caráter. Isso é o que
Quando as pessoas dizem que não sabem a teologia cristã chama de santificação.1
quem são, na verdade, estão querendo ex­ N ão obstante, a doutrina cristã está acima
pressar que não estão contentes com o que de qualquer análise meramente secular, pois
descobriram a respeito de si mesmas. Um a aborda temas referentes à Igreja e à história
vez que ainda não sabem como se libertar de com o resposta mais ampla e eficaz ao dilema
si mesmas, ou com o mudar, elas simplesmen­ humano. O homem possui muitas necessida­
te viram as costas para as facetas desagradá­ des: conhecer a Deus, obter a salvação, adqui­
veis de seu ser. rir entendimento e poder para vencer as ten­
Segundo, Halsey afirmou que “uma pro­ dências pecaminosas e debilitantes de sua
cura pela identidade está predestinada ao fra­ natureza. Contudo, ele precisa relacionar-se
casso” (Newsweek, 17 de abril de 1978, p. no nível mais alto, ter propósito e pertencer à
25), pela simples razão de que identidade história.
A busca contem porânea de satisfação do encontrada nos clubes é um exemplo, assim
eu conduz a duas grandes agonias: o isola­ como a interação frenética que se vê nas boa­
mento (com seu sentimento de solidão exis­ tes. Esses aglomerados se tornaram populares
tencial) e a falta de sentido da vida. De porque substituem a proximidade da comu­
acordo com a Bíblia, Deus lidou com a p ri­ nhão verdadeira e, de certa forma, ajudam os
meira agonia criando [primeiro a família indivíduos a esquecerem-se da trágica perda
natural e depois a espiritual] a Igreja, à qual de identidade que os leva a tais lugares.
os que creem em C risto passam a pertencer H á quatro tipos de perda de identidade
assim que o aceitam com o Senhor e Salva­ comuns hoje em dia: a da família, da nacio­
dor, e, com a segunda, pela incorporação nal, da religiosa e da pessoal. Cada uma delas
dos cristãos no fluxo significativo da histó­ é suprimida na Igreja, embora outras insti­
ria bíblica. tuições de apoio, das quais deveríamos ideal­
mente desfrutar, não estejam cumprindo seu
C o m u n h ã o ___________________________________
papel.
A comunhão com o Senhor ocasiona, ine­ A Igreja foi estabelecida na terra para
vitavelmente, a comunhão com outros cristãos vários propósitos: adoração, serviço, disse­
dentro do Corpo de Cristo. O apóstolo João minação planejada do evangelho, dentre
assinalou isso nos versículos de abertura de sua outros. Além desses propósitos óbvios, ou­
primeira carta: tra finalidade primordial dela é a união dos
seguidores de C risto em uma comunidade
O que vimos e ouvimos, isso vos anuncia­ visível. Assim, nada que pertença por direi­
mos, para que também tenhais comunhão to ao relacionamento de um indivíduo com
conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e Deus é colocado à parte por esse fato. A o
com seu Filho Jesus Cristo. contrário, o relacionamento com Ele, na
1 João 1.3 verdade, tem de ser desenvolvido e expan­
dido pelos relacionamentos com outros
Nesse contexto, há dois tipos de com u­ cristãos.
nhão: com Deus e com os cristãos. Entretan­ James Bannerman, que no século 19 escre­
to, nada nesse versículo indica que uma pos­ veu um estudo sobre a Igreja como produto
sa ser vivida sem a outra, visto que, na das palestras para seus alunos de teologia na
verdade, as duas são uma só. Ter comunhão Escócia, declarou:
com os cristãos é entrar em comunhão com
o Pai. Ter comunhão com o Pai é ter com u­ Há alguma coisa na natureza essencial do ho­
nhão com as pessoas por quem Cristo tam­ mem que tom a a união e a comunhão com
bém morreu, ou seja, é ser uma parte da fa­ outros homens absolutamente necessária para
mília divina. desenvolver, como um todo, as aptidões e os
Todos precisam entender isso. Quando o poderes de seu ser. Essa característica da natu­
Altíssimo criou uma companhia para Adão, reza do homem tem-se tornado proveitosa na
justificou Sua ação ao dizer: Não é bom que o economia da graça de forma que, sob o poder
homem esteja só (Gn 2.18). Isso explica as ra­ da associação, os cristãos não são apenas uni­
zões de Deus para o casamento, mas refere-se dades na dispensação do Senhor, mas irmãos
também à totalidade da vida. também no gozo da comunhão de uns com os
O isolamento não é bom; as pessoas ne­ outros, coletivamente, assim como no gozo
cessitam unir-se a outras. A camaradagem da comunhão de cada um com seu Salvador.
De acordo com a ordenação de Deus, somos vida de qualquer. Enquanto a história situa
mais cristãos quando estamos em comunhão os cristãos no tempo - no século 21, por
com nossos semelhantes do que quando esta­ exemplo, em vez de no período da Igreja pri­
mos sozinhos, e desfrutamos mais dos privilé­ mitiva ou na era da Reforma - a Igreja ajuda
gios espirituais ao compartilhá-los com os ir­ a localizá-los no espaço, uma vez que, se­
mãos do que quando estamos usufruindo gundo o método pelo qual os autores do N o ­
deles sozinhos. vo Testamento referem-se às igrejas, os cris­
A bênção prometida para dois ou três reunidos tãos eram classificados com o membros da
em nome de Jesus, por exemplo, é superior Igreja de Deus em Jerusalém, Roma, Colosso
àquela prometida ao adorador solitário, assim ou Antioqia.
como foi garantida uma resposta mais abun­ A religião bíblica é histórica, e o Deus da
dante e graciosa à oração quando cristãos, mes­ Bíblia é, sem dúvida, o Deus da história. Esse
mo que poucos, “concordem ao pedir qualquer fator, mais do que qualquer outro, destaca o
coisa a Deus”, em vez de pedirem separada­ judaísmo e o cristianismo das religiões dentre
mente e sozinhos. as quais eles floresceram.
A Igreja cristã foi instituída no mundo para N os tempos do Antigo Testamento, prati­
estabelecer os benefícios superiores de um camente todas as religiões dos povos que cir­
cristianismo coletivo sobre um individual, eri­ cundavam os hebreus adoravam a natureza,
gindo e sustentando a comunhão dos santos. pois identificavam o deus ou os deuses mais
Em sua união com Cristo, o Cabeça, cada cris­ altos com o sol, os ventos, as chuvas, as esta­
tão é enxertado em Seu Corpo e partilha dos ções. Em alguns casos, como no culto a Baal,
mesmos privilégios com outros cristãos, pas­ que foi uma ameaça constante à fé israelita ao
sando a ser um com seus irmãos no mesmo longo da história da nação, essas identifica­
Espírito, na mesma fé, no mesmo batismo, nas ções produziram um culto à fertilidade, sendo
mesmas esperanças, na mesma graça, na mesma instituída, em certos períodos, a adoração até
salvação. mesmo dos órgãos reprodutivos humanos.
Os vínculos dessa união espiritual fortalece­ O mesmo acontecia no Egito. E m todos
rão sua prática individual, a compreensão os casos, o fluxo da religião era cíclico. A
desses laços potencializará suas afeições, e adoração ocorria de uma fase da lua até a se­
seu estímulo, a partir de então, dilatará sua fé guinte, ou de uma colheita até a próxima, e a
e sua esperança como indivíduo. N a comu­ história não tinha profundo significado.
nhão da Igreja e no contexto sagrado de suas N o caso do cristianismo, a situação é dife­
influências, o cristão se encontra em um sen­ rente. Repare como Deus chamou Abraão:
tido mais elevado de seguidor de Jesus do que
se estivesse separado deles. ( B a n n e r m a n , Ora, o S E N H O R disse a Abrão: Sai-te da
1 9 7 4 , p . 9 1 ,9 2 ) tua terra, e da tua parentela, e da casa de
teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E
U m a i d e n t i d a d e h i s t ó r i c a ________________
far-te-ei uma grande nação, e abençoar-
A resposta de Deus para o isolamento hu­ -te-ei, e engrandecerei o teu nome, e tu
mano e a falta de sentido da vida não é so­ serás uma bênção. E abençoarei os que te
mente a Igreja, por meio da qual o indivíduo abençoarem e amaldiçoarei os que te
ingressa na comunhão com outros de uma amaldiçoarem; e em ti serão benditas to­
mesma fé, passando a fazer parte do fluxo da das as famílias da terra.
história bíblica, o que atribui propósito à
Nesse chamado, dois aspectos podem ser O aparecimento de Jesus de Nazaré não
destacados. Primeiro, ele foi pronunciado co ­ só trouxe esse período de promessa e expec­
mo uma promessa ou um compromisso de tativa para um clímax, mas também inaugu­
Deus com Abraão, e não com o algo solicita­ rou uma nova fase que flui de Sua obra de
do por este. Segundo, esse chamado devia ser redenção. Tal acontecimento foi a interven­
completado na história. ção decisiva de Deus na história, dando-lhe
Quando lemos a narrativa bíblica que se­ significado conclusivo e base para julgamen­
gue esta passagem, percebemos que a consu­ to por ela.
mação histórica aconteceu em um período O idioma grego possui muitos termos pa­
considerável de tempo. Abraão deixou sua ra a palavra tempo: hêmera (dia), hõra (hora),
terra natal, e o Senhor o conduziu a uma terra kairos (estação), chronos (tempo), aiõn (ida­
nova. N o entanto, a nação que tinha de des­ de), dentre outros. Contudo, a palavra mais
cender dele só veio à existência após sua mor­ importante é kairos, usada várias vezes para
te; para ser mais específico, muitas gerações referir-se à vinda de Cristo, Sua morte e res­
depois. Quanto ao cumprimento pleno da surreição, bem com o aos momentos-chave
bênção, ele só aconteceu com a aparição do que cercaram tal vinda.
Messias no início da Era cristã. O impacto dessa palavra é mais conheci­
O utro marco importante na religião his­ do em contraste com o term o chronos. N o
tórica do Antigo Testamento foi a libertação entanto, kairos e chronos se referem igual­
dos descendentes de Abraão do Egito, uma mente a tempo, e quase sempre são traduzi­
grande nação na época. Nesse episódio, Deus das com o tal em nossas Bíblias. Chronos,
alterou o curso normal da natureza, da vida porém, diz respeito apenas ao fluxo do tem­
animal e dos corpos celestiais para trazer juí­ po, a sucessão de acontecimentos. Temos
zo ao faraó e obrigá-lo a deixar o povo ir em­ essa ideia manifesta na palavra cronologia.
bora (Ê x 5.1). Kairos, p or sua vez, faz menção a um m o­
P or causa da libertação, Israel foi levado mento no tempo especialmente significativo
a adorar a Deus e a obedecer aos mandamen­ ou favorável. Ele pode ser usado de maneira
tos dados pelo Senhor (Ê x 20.1-17). O pacto secular, com o constatamos nas palavras do
feito com Abraão foi reiterado, mas com um rei Félix a Paulo: E m tendo oportunidade, te
equilíbrio de bênçãos e maldições, depen­ chamarei (A t 24.25).
dendo da obediência ou da desobediência do N o entanto, kairos é um term o mais
povo (D t 11.27,28). apropriado para referências ao apareci­
Durante o reinado de Davi, foi feita a pro­ mento de C risto. Desse m odo, Pedro es­
messa de que viria um homem para governar creveu acerca da indagação dos profetas do
Israel para sempre (2 Sm 7.12-16). A ntigo Testamento sobre qu e tempo ou que
E m cada um desses marcos no relaciona­ ocasião de témpo o Espírito de Cristo, que
mento de Deus com Seu povo, o elemento estava neles, indicava, anteriorm ente testi­
histórico é dominante. O Senhor intervém na ficando os sofrimentos qu e a Cristo haviam
história e a governa de maneira que as promes­ de vir e a glória qu e se lhes havia de seguir
sas feitas ao Seu povo possam ser cumpridas. O (1 Pe 1.11).
curso da história segue de acordo com esse Jesus se referiu à Sua Paixão como Seu
sistema de pensamento e, por causa disso, tem kairos: O m eu tempo está próximo (Mt 26.18).
sentido para os indivíduos que, pela graça de N o Evangelho de João, o mesmo resulta­
Deus, foram capturados. do é obtido pela referência de Cristo à hora
de Sua morte e glorificação (Jo 2.4; 7.30; 8.20; N o entanto, a comunhão que nos faz cres­
12.23; 13.1; 16.32; 17.1). cer acontece quando nos tornamos parte de
Cristo é um personagem histórico, cuja um corpo em movimento, o qual deseja pôr
vida e os ensinamentos podem ser pesquisa­ em prática as diretrizes de Deus para nosso
dos por meio das técnicas acadêmicas nor­ tempo e lugar, sabendo que os resultados se­
mais. Se essa verdade for perdida, o cristianis­ rão significativos.
mo estará perdido, por isso este é e deve ser Alguns anos depois do fim da Segunda
histórico. Logo, a vida do Mestre é histórica. Guerra Mundial, um historiador inglês, Herbert
O significado de toda a história é des­ Butterfield, escreveu um livro sobre a visão
vendado na própria vida do Senhor Jesus. histórica cristã. Nele, tentou colocar os acon­
N ossa escolha entre com prom eterm o-nos tecimentos do passado recente em perspecti­
com Ele ou rejeitá-lo, bem com o fazermos va, estimulando os cristãos a seguir uma con­
parte de Sua história ou refutá-la, decide duta ética e com sentido:
nosso futuro.
Essa linha de pensamento nos traz de vol­ Sempre tem sido compreendido na tradição
ta ao dilema de homens e mulheres contem­ principal do cristianismo que, se o Verbo se
porâneos. Temos visto que as duas carências fez carne, a matéria nunca pode ser vista co­
mais sentidas em nossa época - a de identida­ mo má em si mesma. De maneira similar, se
de e a de significado - são suprimidas pela determinado período, como este nosso, con­
incorporação do cristão na Igreja e na história tém tanta coisa estranha, ainda assim não é
bíblica. Mas, nesse ponto, devemos dizer que para ser execrado nem considerado um mo­
apenas por meio da fé em Jesus Cristo e do mento de pura inutilidade. Ao contrário, ca­
comprometimento com Ele, essa supressão da instante do tempo torna-se mais impor­
acontece. tante do que nunca - cada instante é
É verdade que a Igreja é a resposta para a escatológico ou, como chegou a ser coloca­
solidão em seu nível mais profundo, visto do, aquele ponto em um “conto de fadas”
que ela é o C orpo de Cristo (1 C o 12.27; E f quando o relógio está bem próximo das ba­
1.23; Cl 1.18), e Ele, Jesus, é a única Porta daladas da meia-noite.
pela qual podemos ingressar nessa com u­ Nessa visão, não pode haver o caso de uma
nhão com Deus (Jo 10.7-10). ausência de Deus, deixando a humanidade
A solução para a falta de sentido para a ao sabor da própria sorte, em uma cegueira
vida é mergulhar no fluxo da história com universal sombria e absoluta. É uma história
significado, encontrando resposta para nos­ real - e não o pesadelo de um louco ou um
sos questionamentos em Jesus Cristo, haja amontoado de sonhos frágeis - que está sen­
vista que o caminho para ela é somente por do encenada no palco da história humana.
intermédio dele. Uma batalha real entre o bem e o mal está
em curso, os acontecimentos têm importân­
A i m p o r t â n c i a d o p r e s e n t e ______________ cia, e alguma coisa está sendo alcançada in­
Sem a Igreja, somos relegados a uma reli­ dependente de nosso sucesso ou fracasso
gião de puro individualismo, na qual cada aparente. ( B u t t e r f i e l d , 1950, p. 121)
pessoa faz o que acha certo aos seus próprios
olhos. Sem uma visão bíblica da história, so­ Essa é uma percepção que todos os que
mos relegados a uma religião de amor nebu­ creem em Jesus [e não somente um historia­
loso e comunhão sentimental. dor cristão] deveriam partilhar.
Concluo este capítulo com mais uma pala­ vós, qu e agora chorais, p o rq u e haveis
vra bíblica para tempo-. agora (nun). Ela nos de rir.
mostra que o kairos em que vivemos é de Lucas 6.21
eterna importância:
Eis aqui agora o tempo aceitável, eis aqui
Vós que, em outro tempo, não éreis povo,
agora o dia da salvação.
mas, agora, sois povo de Deus; que não tí-
2 Coríntios 6.2
nheis alcançado misericórdia, mas, agora,
alcançastes misericórdia.
Se a vida de Cristo teve importância no
1 Pedro 2.10
fluxo da história, então, pela graça de Deus e
Bem-aventurados vós, que agora tendes pela união com Cristo, nossa vida e nosso
fom e, porque sereis fartos. Bem-aventurados agora também têm importância.

N ota

1 Esses passos correspondem às doutrinas desenvolvidas nos três primeiros livros desta obra: 1) O conhecimento de
Deus e o conhecimento de nós mesmos como pecadores necessitados de um Salvador; 2) o conhecimento de Cristo
como Salvador; e 3) o conhecimento do Espírito Santo e Sua obra de ajustar em nós a salvação conquistada por Jesus,
tanto no momento inicial da nossa fé como em toda a nossa vida como cristãos.
A MARCHA DO TEMPO

urante a Segunda Guerra Mun­ uma sucessão de movimentos descontrolados


dial, e por alguns anos antes e e desconexos, e isso é assustador.
depois dela, uma série de cine A história está em marcha realmente? Se
jornais populares era exibida ela está, em que ritmo? A única maneira de
semanalmente na maioria dos cinemas ameri­ responder a essas perguntas é voltar ao come­
canos. Produzida pela rede de comunicações ço e indagar de onde veio a visão moderna do
Tim e-Life, era chamada A marcha do tempo. progresso histórico e sobre que fundamentos
C om uma marcha musical ao fundo, a voz de ela foi construída. Temos de começar com a
um locutor entusiasmado e assertivo narrava percepção antiga da história, a qual a visão
cenas de diversas partes do mundo, impres­ moderna veio substituir.
sionando os espectadores com tudo o que pa­
recia estar acontecendo naquela época “mo­ U m a v is ã o c í c l i c a d a h i s t ó r i a ___________

derna e acelerada”. Em bora os gregos concentrem a visão an­


O título da série dizia tudo. O tempo real­ tiga da história, é dito, de vez em quando, que
mente parecia estar marchando e, talvez, até eles não estavam interessados na história. E s­
correndo. E ra uma idade de progresso. E n ­ se não é um comentário que faz justiça a uma
tão, embora houvesse com frequência más civilização que produziu historiadores como
notícias — sobre reveses militares, por exem­ H eródoto, o qual foi cronista da ascensão da
plo —, poucos duvidavam que o tempo, por Grécia, e como Tucídides, que relatou seu de­
fim, cuidaria de arranjar as coisas, e que o clínio. Porém, há mais de um elemento de
progresso era inevitável. verdade naquela avaliação negativa, apesar
É impressionante com o os tempos muda­ dessas figuras eminentes.
ram! Hoje, as pessoas não estão tão seguras O interesse dos gregos na história, tendo
de que o progresso seja inevitável (embora sido direcionado apenas para a sua própria
tudo evidencie um grande avanço). Progresso raça e a procedência de seu exclusivo ponto
exige movimentos planejados ou direciona­ de vista sobre a vida, não foi universal. E n ­
dos, e isso requer tanto um Projetista como quanto os gregos se consideravam gigantes
um projeto. Atualmente, as pessoas não estão para além do período bárbaro que os antece­
tão seguras de que um Projetista ou um pro­ deu, eles não pensavam nisso com o um está­
jeto existam. A visão otimista e progressista gio em algum movimento incessante e ascen­
da história de uma idade clássica deu lugar a dente da espécie humana. Em vez disso,
uma visão que enxerga a história como apenas enxergavam sua época com o um pico que,
inevitavelmente, daria lugar a períodos mais 2. N ão possuíam interesse real no futuro.
pobres novamente.
A visão grega do tempo era cíclica, e isso 3. N ada d e n o v o d e v ia s e r e s p e r a d o n a h is ­
significa que havia, sem dúvida, mudança na “N ada d e n o v o a c o n t e c e
t ó r i a . E p i c u r o d is s e :
história, mas que retornava constantemente n o u n iv e r s o , s e v o c ê c o n s i d e r a r o t e m p o p a s ­
ao ponto de partida, assim com o os planetas s a d o i n f i n i t o ” (O A T E S, 1940, p . 50).
ou as estações do ano. Marcus Aurelius, um filósofo estoico ro ­
N ações se elevaram ao poder no passado mano, afirmou a mesma coisa:
e, então, experimentaram a queda. Elas se er­
gueriam novamente, mas os cidadãos daquelas A alma racional [...] atravessa todo o univer­
nações não foram “a lugar nenhum” durante so, e o vácuo em torno, examina sua forma,
seu apogeu, nem outros cidadãos progrediram expande-se para o tempo infinito, e abraça e
com seu declínio. O sentido era o ciclo em si compreende a renovação periódica de todas as
mesmo, e a única salvação para uma pessoa coisas. Ela compreende que aqueles que vêm
capturada em um círculo como esse era tentar depois de nós não verão nada de novo, nem os
escapar dele. que vieram antes de nós viram mais coisas,
Desde quando a história foi entendida, mas, de certa maneira, aquele que tem 4 0
os gregos não teriam tido problema em anos, se tiver algum entendimento, poderá
adotar o pregão da roda da fortuna cantado ver, pela virtude da uniformidade que preva­
pelo menestrel: “Girando, girando e giran­ lece, todas as coisas passadas e as vindouras.
do, ela segue, e onde ela vai parar ninguém (O a tes, 1940, p . 571)
percebe”.
A visão clássica dos gregos envolvia cinco 4. A servidão humana ao tempo por meio
proposições: da existência terrena é uma maldição.

1. N ão tinham interesse no passado, no 5. Salvação é libertação daquele ciclo eter­


sen tid o de e stu d á-lo p ara co n h e ce r as no e circular e, portanto, do próprio tempo.
razões pelas quais as coisas são com o Platão conferiu uma expressão clássica a
são. Pode ser verdade, sustenta R. G. esse pensamento:
Collingwood, que H eródoto tenha sido
uma exceção nesse p on to, mas a visão d o ­ A alma é arrastada pelo corpo para a região do
minante era que, se o passado tinha algum mutável, e vaga confusamente; o mundo gira
interesse, ele era apenas com o uma ilustra­ em torno dela, e ela é como um bêbado
ção das características do pensamento e quando está sob a sua influência [...]. Mas,
comportamento humanos também visíveis quando retorna a si mesma, a alma reflete;
no presente ( C o l l i n g w o o d , 1976, p. 28-31). então, passa para o domínio da pureza, para
a região da eternidade, da imortalidade e da
A mente grega tendia a estreitar-se e endurecer imutabilidade, que são seus semelhantes.
em sua tendência anti-histórica. O gênio de He­ Com eles, vive para sempre [...] e, estando
ródoto conseguiu triunfar sobre essa tendência, em comunhão com o imutável, é imutável.
mas, depois dele, a busca por objetos de conhe­ ( J o w e t t , s.d., p. 2 1 7 , 2 1 8 )
cimento eternos e imutáveis ofuscou gradual­
mente a consciência histórica. ( C o l l in g w o o d , Podemos resumir ao dizer que, para os
1976, p. 29) gregos, os acontecimentos históricos eram
circulares, e a salvação consistia em ser livre filosofia de pensadores como Descartes (1596-
da história mediante o pensamento racional. 1650) e Spinoza (1632-1677) —, o mérito do
conhecimento, percebido pelos gregos, e a
H i s t ó r i a c o m o p r o g r e s s o ________________
ideia de um fluxo da história derivada do cris­
Seria difícil mostrar, mesmo em um ensaio tianismo foram unificados em uma crença de
muito longo, com o e em que ponto a visão progresso científico e social inevitável.
clássica da história se transformou na noção Essa visão desabrochou no despertar da
moderna de progresso histórico. E suficiente ciência do século 18 e no surgimento da in­
afirmar que o cristianismo teve um papel dústria do século 19— a chamada Revolução
grande e exclusivo nessa transformação. Industrial. N o final desse período, quando
O cristianismo trouxe à tona a sua doutri­ Charles Darwin (1809-1882) introduziu a
na de um Deus o qual se revelou na história, ideia de uma progressão evolutiva dos seres
que é o ponto do capítulo anterior. O Senhor vivos, o triunfo desse novo paradigma pare­
não era alguém frívolo, meio-humano, meio- ceu completo.
-divino, com o os deuses e as deusas do pan­ Gordon H . Clark resume a questão ao de­
teão grego, tampouco o rígido e imutável monstrar que essa percepção madura e derra­
Primeiro Motor dos filósofos gregos. Esse deira da história como progresso envolvia
Deus amou Seu povo, sofreu por ele e moveu três doutrinas básicas:
céus e terra pela libertação dele.
O utro ingrediente que o cristianismo re­ 1. Progresso é um processo natural e
velou foi sua visão do ser humano não como deve ter estado sempre em operação.
uma alma divina aprisionada em um corpo 2. O progresso deve ocorrer em todas as
mau e perecível (como acreditavam os gregos), áreas para haver melhora social, moral
mas como um ser tricotômico com corpo, alma e filosófica assim como avanço cien­
e espírito, criado à imagem de Deus. tífico.
Cada dimensão do ser humano é impor­ 3. Se o progresso é concebido como
tante e valiosa. Salvação passa a ser concebida, uma lei natural, então ele deve ser ne­
portanto, não como salvação da alma e do cessário e inevitável.
espírito apenas, mas também do corpo, por
meio de uma histórica ressurreição final. Esses pontos injetaram muito otimismo
Finalmente, o cristianismo introduziu no século 19 e no princípio do século 20.
uma elevada consciência moral, a qual falava Passou-se a crer que, embora haja, por vezes,
de um equilíbrio entre recompensas e puni­ regressões na história devido a erros de ava­
ções no Juízo Final. liação, faz parte da natureza humana desejar
Essas doutrinas foram aos poucos am­ progresso, e esse anseio inato, com o qualquer
pliando seu espaço. Durante a Idade Média, o outra lei “natural”, triunfará no final. As cau­
cristianismo sofreu influência do platonismo sas desse progresso seriam o acúmulo de co­
e do pensamento de Aristóteles para produzir nhecimento, o planejamento político e social
uma doutrina sobre o mundo vindouro, que, e a evolução biológica ( C l a r k , 1967, p. 46-49).
com frequência, obscurecia os proveitos his­ Entretanto, cada uma dessas três causas é
tóricos do cristianismo. vista cada vez mais nos dias de hoje com o ina­
Mas, no final dos séculos 16 e 17— pri­ dequada para sustentar esse otimismo. O
meiro, por meio do cientificismo de Francis avanço do conhecimento científico é obvia­
Bacon (1561-1626), e, depois, p or meio da mente inadequado pela razão de que nada na
tarefa científica determina como as descober­ melhor e diferente, a nossa imaginação é para
tas da ciência devem ser utilizadas. ser desenvolvida até um nível hoje inimaginá­
A ciência pode produzir energia atômica, vel, e todos os velhos conceitos que foram úteis
mas ela pode ser utilizada para construir ar­ em suas épocas devem ser substituídos por
mas nucleares de destruição em massa, assim conceitos novos e melhores, não significa que a
como para construir usinas que produzam teoria do progresso deva ser também descarta­
energia pacífica visando ao bem das coletivi­ da como uma ideia dos séculos 18 e 19, a qual
dades — e mesmo essas usinas não são consi­ serviu, sem dúvida, para aquela época, mas,
deradas por todos com o algo certo. Pode-se para hoje, é antiquada e falsa? Poderia ser que
produzir uma variedade infinita de coisas pa­ a melhor prova contemporânea de progresso
ra o mercado consumidor voraz, mas é ques­ seja uma descrença crescente no “progresso” ?
tionável se essa multiplicação significa pro­ (C la rk , 1967, p. 53)
gresso ou se é apenas o caso de almas sendo
sufocadas pelas suas posses. Sem dúvida, o valor desses argumentos
Mais uma vez, acredita-se no planejamen­ varia, mas seu peso acumulado é tão grande
to social, porém a que esse empenho todo nos que a visão otimista da história com o o pro­
leva? E questionável se o planejamento políti­ gresso que dominou o século 19 pode hoje ser
co e social realmente funciona. avaliada com o em frangalhos. Ela foi despe­
Em nossos dias, os grandes problemas pa­ daçada por duas guerras mundiais, incontá­
recem estar além das soluções propostas para veis batalhas regionais e suas atrocidades.
lidar com eles — inflação, inquietação mun­ Qualquer guerra deve ser designada como
dial, crime, violência irracional, para citar uma anormalidade, mesmo aquela “para tor­
apenas alguns. N o entanto, mesmo que seja nar o mundo mais seguro”. Contudo, uma
verdade que o planejamento seja eficaz, ainda seqüência de guerras e outros horrores exi­
assim não há garantia de que ele estará a servi­ gem uma explicação mais detalhada.
ço dos verdadeiros “fins progressistas”. Nas Temos de afirmar que a visão moderna de
mãos de governantes perversos, por exemplo, progresso histórico está inteiramente equivo­
projetos e planejamentos poderiam ser usados cada? Devemos concluir que a história não
para humilhar e escravizar um povo. tem significado no final das contas? Precisa­
Finalmente, desde que a teoria da evolu­ mos voltar ao escapismo histórico dos gregos
ção foi implantada, a arrogância daqueles que e de outros povos antigos?
presumem ser a espécie humana a síntese do Creio que isso não seja necessário. N a
progresso biológico parece ridícula em vista verdade, é preciso um retorno à visão bíblica
da nossa capacidade para eliminar a humani­ da história, na qual Deus, não os seres huma­
dade da face do planeta. nos, está no controle. Sua vontade, em vez da
E m sua abordagem desses temas, Clark faz vontade humana ou de algum princípio histó­
outra observação astuta, ao perguntar se uma rico abstrato, está sendo feita. Os cristãos ex­
filosofia do progresso não implica, em última pressam confiança nisso e desejam isso quando
análise, sua própria rejeição. Ele pergunta: oram -.Venha o teu Reino. Seja feita a tua von­
tade, tanto na terra como no céu (Mt 6.10).
Se o progresso é a lei da história, a nossa baga­
gem moral e intelectual é superior àquela da U m a v is ã o c r i s t ã d a h i s t ó r i a ____________

antiguidade, a nossa sociedade e as nossas Essas frases da oração do Pai-N osso mos­
ideias vão crescer na direção de alguma coisa tram vários componentes de uma visão cristã
da história: uma meta (o Reino de Deus); uma A necessidade de um espaço universal pa­
luta (o reconhecimento de que esse Reino não ra a história tem sido enfatizada apenas recen­
vem naturalmente, nem a vontade do Senhor temente pelos historiadores seculares. Vamos
é cumprida naturalmente, sem oposição); a lembrar as histórias de Oswald Spengler e
responsabilidade humana (de orar e trabalhar Arnold Toynbee.
para o estabelecimento desse Reino). O que é novo nesses autores é o desejo de­
N o entanto, uma melhor maneira de tra­ les explícito de escrever uma história universal
çar uma visão cristã da história está nas ex­ da espécie humana. Nesse ponto, Spengler, em
clusivas doutrinas bíblicas que a sustentam: sua obra de dois volumes The D ecline o f the
criação, providência, revelação, redenção e West [O declínio do Ocidente], é um crítico
julgamento. Quando aplicadas à história, tais de seus predecessores. Ele os acusa de terem
doutrinas ensinam que há uma história da es­ sido provincianos ao pensarem que a Europa
pécie humana abrangente e universal; Deus é o centro mais importante da história sim­
controla a história, e, por causa disso, ela tem plesmente porque viveram lá.
um padrão ou uma meta; Deus age de modo Os historiadores criticados por Spengler
redentor na história, e homens e mulheres são ignoraram outros povos e outras regiões.
responsáveis pelo que fazem ou deixam de Mais sério do que esse provincianismo, entre­
fazer no curso dela. tanto, é o erro de interpretação para o qual
isso conduz. Ao restringirem suas preocupa­
1. O primeiro ensinamento é a doutrinações à Europa, pode ser possível divisar o tipo
bíblica da criação: o mundo não é eterno, mas de visão progressista da história que os histo­
veio a existir como uma expressão da vontade riadores dos séculos passados produziram.
de Deus e por meio de Seus atos explícitos. O Mas, quando se olha para além da Europa
mundo natural é enxergado com o pano de e da Ásia, e de outras regiões esquecidas do
fundo do mundo dos homens e mulheres mundo, pode-se enxergar de imediato que
(Gn 1). Isto é, a espécie humana não é uma história não é um processo linear ascendente,
parte menor ou acidental de uma ordem eter­ mas, em vez disso, um fenômeno no qual as
na das coisas, mas, em vez disso, é uma por­ culturas nascem, crescem com vigor, deterio­
ção valiosa e específica da criação, para a qual ram e morrem.
as outras partes vieram à existência. C om base nessa analogia, Spengler previu
A humanidade veio de um casal original, o declínio do Ocidente (por sinal, o título de
Adão e Eva, e é, portanto, uma só, a despeito seu livro). Essa predição rendeu a ele grande
das divisões subsequentes em grupos étni­ reconhecimento.
cos e nacionais. O propósito da história Toynbee é mais otimista que Spengler,
deve envolver todos esses grupos, e não além de menos ambicioso. Sua obra, original­
simplesmente os ocidentais ou outros “p o ­ mente em 12 volumes, é chamada Um estudo
vos favorecidos”. da História, que ele definiu com o uma mera
O mundo antigo não teve uma filosofia interpretação entre muitas, e não com o a in­
como essa em lugar nenhum, nem existe algo terpretação da história para todos os tempos.
semelhante hoje, a não ser pelos conceitos deri­ Em bora diferente na abordagem, o objeto
vados do cristianismo. Os gregos não tiveram de estudo é o mesmo de Spengler— abarcar
uma visão universal na qual todos os seres toda a história dentro de uma moldura ampla.
humanos de todas as raças fizessem parte de A o fazer isso, Toynbee com partim entou 34
um grande quadro. civilizações, incluindo 13 independentes,
15 satélites e seis subdesenvolvidas. Cada uma porque Deus nos revelou essas coisas por
é caracterizada por uma ideia dominante. meio das Sagradas Escrituras.
Aqui se encontra um dado interessante.
Em bora tanto Spengler com o Toynbee pare­ 2. Tal raciocínio conduz naturalmente à
çam alertar para o fato de que a espécie hu­ doutrina cristã da revelação, mas, antes de
mana seja uma e que a história da espécie considerarmos esse ponto, é necessário dar
deveria, portanto, ser uma história universal, uma olhada na doutrina da providência, que
suas histórias são bastante diferentes. Chega segue a da criação. A Bíblia revela que, tendo
a impressionar com o são poucas as sobre­ criado o mundo, Deus não o abandonou co ­
posições entre elas. O que está errado? Isso mo se fosse um grande relógio que Ele hou­
significa que o desejo por uma história uni­ vesse construído e tivesse de funcionar sozi­
versal está no lugar errado ou que nenhuma nho. A o contrário, Deus dirige o desenrolar
das duas histórias existe realmente? N ão da história mediante Seus decretos eternos, e,
necessariamente. às vezes, intervém sobrenaturalmente tanto
A divergência entre dois historiadores im­ na natureza com o na história para adequá-las.
portantes como Spengler e Toynbee significa, A doutrina da providência divina coloca a
na verdade, que é muito difícil para uma men­ visão cristã da história em patamares comple­
te humana dar conta de uma matéria de tama­ tamente diferentes do naturalismo. O natura­
nhas proporções. Isso pode ser colocado de lista acredita que existem certas leis inalterá­
maneira ainda mais contundente. veis para a história, pelas quais é possível
N a medida em que a escrita da história prever o que virá.
envolve uma seleção e interpretação de fatos, Spengler é um exemplo dessa visão, pois
e a seleção é sempre feita, pelo menos em par­ utilizou leis de nascimento, crescimento, de­
te, com base na experiência subjetiva e no clínio e morte para prognosticar a queda da
julgamento do intérprete, é impossível escre­ civilização ocidental. U m exemplo ainda
ver uma história puramente objetiva. As in­ melhor é Karl M arx (1 8 1 8 -1 8 8 3 ), o qual re­
terpretações históricas dessa abrangência, ou duziu as leis da história a fatores materialis­
mesmo de uma abrangência mais limitada, tas e econômicos.
sempre vão diferir entre si. Marx foi influenciado pela dialética de
A única maneira de solucionar esse p ro ­ Hegel, mas garantiu que já tinha a concepção
blema é recebermos uma interpretação vin­ dialética em sua mente. O que ele quis dizer
da diretamente da história exterior a nós— de foi que Hegel fez do espírito de racionalidade
um Ser que entende a história com perfei­ o fator determinante no eterno fluxo da tese
ção, mas está acima e além dela, e não é, para a antítese e, daí, para a síntese, enquanto
portanto, afetado pelas distorções e pelos ele, ao contrário, fundamentou na natureza
prejulgamentos a que estão sujeitos os que até mesmo aquelas forças racionais.
vivem e trabalham na história. A única ma­ A visão de M arx foi inspirada p or outro
neira de ter uma visão objetiva e universal pensador alemão, Ludwig Feuerbach (1 8 0 4 -
dela é ela ser providenciada p or Deus, o 1872), que ensinou pelo uso de um trocadi­
Deus da história. lho na língua alemã que d er Mensch ist was
O cristianismo sustenta que Deus reali­ er isst (o homem é o que ele come). De acor­
zou isso. Quando falamos de uma doutrina do com essa visão filosófica, os fatores mate­
da criação e suas implicações para uma visão rialistas e econômicos são tudo, o que resul­
universal da história, nós o fazemos apenas ta no fato de que a luta de classes, a ação
revolucionária e, por fim, a sociedade sem primeira vez e transmitiu-lhe a promessa, mas
classes são produtos inevitáveis. tinha 100 anos quando viu seu filho nascer.
Os cristãos não estão presos a esse determi­ Da mesma forma, José viveu muitos anos
nismo. De acordo com a Bíblia, Deus tem um na escravidão e, mais tarde, na prisão, antes de
plano na história, e ela está seguindo esse pro­ ser exaltado à posição de segundo no governo
pósito. N o entanto, isso não significa que a do Egito.
operação desse plano é mecânica. Nesse pon­ Moisés tinha 40 anos quando escolheu
to, é claro, penetramos em um dos grandes identificar-se com o destino de seu povo, em
mistérios da fé cristã: o relacionamento entre vez de permanecer com a realeza do Egito.
os decretos eternos, ou vontade de Deus, e as Contudo, ele teve de fugir do Egito, e só 40
vontades humanas, que lhes são contrárias. anos depois, finalmente, foi chamado por
N ão podemos afirmar sempre com preci­ Deus para retornar com a ordem divina a fa­
são de que forma esse relacionamento funcio­ raó: “Deixe meu povo ir!”.
na, mas podemos declarar que cada uma das Em cada um desses casos, o Senhor usou os
partes é real, e o fluxo da história está, portan­ anos difíceis para moldar o tipo de caráter que
to, condicionado, pelo menos parcialmente, à Ele precisava ver em Seus servos, para que fos­
obediência ou à rebelião contra Deus. sem chamados à grande responsabilidade.
A conseqüência mais importante desse fa­ Além do mais, uma vez que tal comporta­
tor humano, no que diz respeito ao plano de mento e caráter só podem advir da comunhão
Deus na história, é que esse plano não se en­ profunda com Ele, Deus deu a solução para
caixa no que consideramos uma regularidade que fôssemos inevitavelmente levados a Ele
matemática. H á períodos de acontecimentos por meio da oração e de outras formas de co ­
espirituais muito rápidos e existem aqueles munhão. Assim, oramos pela vinda do Seu
em que as promessas do Senhor parecem estar Reino e clamamos pela manifestação de Sua
atrasadas. A libertação de Israel, em contraste vontade em todas as áreas de nossa vida.
com os 400 anos anteriores de cativeiro, é um
exemplo. C om o indivíduos, Deus parece, às 3. O utro ensinamento que tem grande
vezes, estar agindo com muita velocidade em proeminência em uma visão cristã da história
nossa vida. E m outros momentos, sentimos é a doutrina da revelação, a qual está relacio­
um avanço muito lento. nada às duas primeiras. Sabemos, somente
P or causa da nossa atração por agendas pela revelação dada a nós, que este mundo foi
apertadas e ritmo acelerado neste século, esse criado por Deus e é dirigido por Ele de acor­
tipo de ambigüidade, geralmente, deixa-nos do com o Seu plano perfeito.
frustrados. Entretanto, passa a fazer sentido A revelação tem tanto um aspecto geral e
quando percebemos que o propósito divino objetivo como um subjetivo. Isto é, há uma
na história não é construir prédios (nem mes­ revelação do plano total de Deus na Escritu­
mo igrejas) com mais rapidez do que to d o , ra, começando com a criação da espécie hu­
mundo, ou fazer os trens e aviões cumprirem mana, prosseguindo com a queda, o chamado
seus horários, mas, sim, aprimorar o caráter e de um povo especial por intermédio do qual
o comportamento do Seu povo. um Redentor viria, a aparição e a obra de Je­
Isso deve ter acontecido com Abraão du­ sus, o estabelecimento da Igreja e a promessa
rante os 25 anos que ele esperou pelo nasci­ do retorno final de Cristo.
mento de Isaque, o filho da promessa. Abraão Tudo isso é o quadro objetivo para uma
tinha 75 anos quando Deus apareceu a ele pela visão cristã da história. Contudo, a revelação
possui também um caráter subjetivo. Quan­ E sabemos que todas as coisas contribuem
do lemos a Bíblia, o Senhor também nos fala juntam ente para o bem daqueles que
com o objetivo de chamar cada um para par­ amam a Deus, daqueles que são chamados
ticipar desse quadro mediante a fé em Jesus e p o r seu decreto.
a obediência a Ele. Romanos 8.28
Jesus é o ponto culminante da história.
N ós nos tornamos uma parte da obra de Deus O governo de Deus na história é verda­
nessa história e servimos ao projeto divino deiro, quer os homens e mulheres reconhe­
para a história apenas quando entramos em çam isso, quer não. Eles não podem quebrar o
um relacionamento com Aquele que está no domínio de Deus. C om sua rebeldia, podem
comando das operações. apenas quebrar a si mesmos com o um ferro
A ideia bíblica mais importante nesse indefeso diante de uma bigorna.
ponto é o Reino de Deus, discutido extensa­ A dimensão pessoal do Reino é vista na
mente no livro dois desta obra. obra de Deus para tirar uma pessoa do estado
O Reino de Deus tem três dimensões, de rebelião e oposição ao Seu governo e colo-
com cada uma produzindo uma visão cristã cá-la no estado de alegre participação nele. O
do que está acontecendo na história. Um a de­ Senhor faz isso pelo novo nascimento. O Rei­
las é a que poderíamos chamar de domínio no é enxergado, então, na ação de Deus no
geral ou soberano de Deus. interior do indivíduo para moldá-lo cada vez
mais aos padrões do Seu Reino e usar o teste­
Deus, o Altíssimo, tem domínio sobre os munho de cada cristão para levar esse Reino a
reinos dos homens e a quem qu er constitui outras pessoas.
sobre eles. Quando oramos: “Venha o teu R eino!”,
Daniel 5.21c estamos clamando pela manifestação do go­
verno de Deus na vida das pessoas hoje (e não
E louvei, e glorifiquei ao que vive para
meramente por uma futura vinda de Cristo).
sempre, cujo domínio é um domínio sem-
Finalmente, haverá, sim, uma manifestação
piterno, e cujo reino é de geração em g e­
futura desse Reino, quando Jesus voltar para
ração. E todos os moradores da terra são
julgar os vivos e os mortos.
reputados em nada; e, segundo a sua von­
A Bíblia é uma revelação: (1) do governo e
tade, ele opera com o exército do céu e os
da direção total de Deus na história; (2) de
moradores da terra; não há quem possa
uma realidade presente na qual o Espírito
estorvar a sua mão e lhe diga: Q ue fazes?
Santo tem conduzido muitos indivíduos para,
Daniel 4.34b,35
voluntariamente, moldarem-se às metas do
O S E N H O R desfaz o conselho das nações; Reino de Deus; (3) da promessa de que o Rei­
quebranta os intentos dos povos. O conselho no será, um dia, consumado no julgamento de
do SEN H O R permanece para sempre; os in­ pecadores e no eterno e glorioso reinado de
tentos do seu coração, de geração em geração. Cristo. Dentro dessa moldura, aqueles que
Salmo 33.10,11 creem em Jesus têm uma responsabilidade
dupla: viver para Ele e ser Suas testemunhas
E u form o a luz e crio as trevas; eu faço a por todo o mundo.
paz e crio o mal; eu, o S E N H O R , faço to­
das essas coisas. 4. A doutrina da redenção introduz dois
conceitos que já haviam sido mencionados,
mas não suficientemente discutidos: o pecado com violência. Mas, ao mesmo tempo, eles se
e a atuação exclusiva de Deus em Cristo para comportam como os americanos comuns em
salvar o pecador. sua incapacidade de colocar o mal em sua
O primeiro tema (pecado) explica porque perspectiva histórica. Para esses jovens, o mal
nenhuma concepção naturalista ou não ética não é um componente irredutível do homem,
da história pode ser adequada. Aqueles que um fato inevitável da vida, mas é alguma coisa
aceitam as pressões para se conformar com o cometida pelas gerações mais velhas, atribuí­
entendimento moderno e progressista da his­ do a uma classe social particular ou ao “siste­
tória são mais vulneráveis nesse ponto, uma ma”, e erradicável por meio do amor e da re­
vez que o progresso que eles previram não é volução [...]. My Lai é um símbolo da
puro progresso, e, em certos casos, é questio­ violência que treme sob a superfície da vida
nável o que eles apoiam e consideram como americana; onde mais e de que maneira ela
progresso. explodirá? Quanta injustiça e corrupção dis­
O problema não é que os assim chamados torcem a realidade da democracia que os Esta­
elementos progressistas não estejam presentes. dos Unidos oferecem ao mundo? {Time, 5 de
Eles estão. N o entanto, uma trágica falha hu­ dezembro de 1969, p. 27)
mana — que a teologia cristã chama de peca­
do original — desfigura esses elementos de Alguns anos depois, a revista de uma uni­
progresso, direcionando-os muitas vezes para versidade americana fez a mesma observação
fins destrutivos ao invés de construtivos. em relação a um livro do teólogo H arvey
N a sociedade hipócrita de hoje, acredita- C ox, da Universidade de Harvard, no qual ele
-se que esse elemento destrutivo está no âma­ convidava os leitores a terem uma fé otimista
go das instituições e, por isso, pode ser elimi­ no “mundo interior” da imaginação humana.
nado pela revolução ou pelas reformas sociais. A revista objetou:
Contudo, o problema é muito mais profundo
que isso: ele está na natureza dos homens e Três gerações de escritores americanos testifi­
das mulheres e, logo, somente pode ser trata­ caram que a crueldade, o vício e, sem dúvida, a
do por Deus, para quem todas as coisas — insanidade excessiva de nossa sociedade são
mesmo uma reconstrução da natureza huma­ coisas que procedem exatamente de nosso “in­
na — são possíveis. terior”; que nossas instituições não foram ge­
N os dias de hoje, alguns pensadores secu­ radas na lua, mas são projeções, de fato, das
lares já se inclinam para reconhecer o que a estruturas encontradas nos poços profundos
revista Time chamou certa vez de “um lado da nossa imaginação. ( L u c i d , 1974, p. 7)
obscuro” na natureza humana. Em seu ensaio
Sobre o mal: o fato inevitável, escrito logo Os cristãos corroboram essa análise. Esse
após o massacre de M y Lai, em um dos episó­ é o problema da história, da queda original no
dios mais sangrentos da guerra do Vietnã, a Éden até os tempos modernos. Mas qual é a
Time desejou ir além do aspecto imediato da solução? Se Deus não agisse na história, não
tragédia ao tentar explicar o mal na natureza haveria solução, existiria apenas uma luta
humana. O articulista escreveu: contínua contra o mal, em que o pessimismo
ou o escapismo teria prevalecido.
Os jovens radicais de hoje [final da década de Contudo, Deus age. Ele atua decisiva­
1960] são dolorosamente sensíveis a estes e mente, não somente para dirigir a história ou
outros erros de sua sociedade, e os denunciam prover um sistema no qual os piores pecados
sejam inevitavelmente julgados, mas para re­ ele conta os 360 dias anteriores ao seu próximo
dimir aqueles que são responsáveis pelo mal. aniversário e avalia-os como um período sem
Ele o faz pela obra de Jesus Cristo. graça e monótono, apenas para ser sofrido em
A Bíblia declara que Deus estava em Cris­ prol daquilo a que vai conduzir [o próximo
to reconciliando consigo o mundo, não lhes aniversário], Se quisermos uma analogia com a
imputando os seus pecados, e pôs em nós a pa­ história, devemos pensar em alguma coisa co­
lavra da reconciliação (2 C o 5.19). N a medida mo uma sinfonia de Beethoven — o clímax
em que Cristo governa sobre a história, não dela não é guardado para o fim, a plenitude da
pode haver pessimismo para a pessoa que crê sinfonia não é uma mera preparação para uma
nele e no valor de Seu sacrifício. beleza que só será atingida no último compasso.
Embora, em certo sentido, o final possa estar
5. Porém nem todos serão redimidos. Essa contido na arquitetura do todo, em outro, cada
é uma afirmação dura, mas está em conformi­ momento da sinfonia tem sua própria justifica­
dade com os ensinamentos da Palavra de tiva, cada nota está em seu contexto particular—
Deus. Portanto, para tornar a visão cristã da tão valiosa quanto qualquer outra nota—, cada
história completa, deve ser acrescentada às estágio do seu desenvolvimento tem seu signifi-
doutrinas já examinadas — criação, providên­ cante imediato, independente de qualquer de­
cia, revelação e redenção — a do Juízo Final de senvolvimento que aconteça [...]. Logo, estare­
Deus. Os cristãos expressam sua crença nessa mos contemplando a nossa história sob a luz
doutrina no Credo apostólico: “De onde [isto apropriada se dissermos que cada geração — na
é, do céu] Ele [Cristo] virá, para julgar os vivos verdade, cada indivíduo — existe para a glória
e os m ortos”. de Deus. ( B u t t e r f i e l d , 1950, p. 67)
A o afirmar que Cristo irá julgar os mortos
e também os vivos, esse credo está dizendo, A g l ó r ia d e D e u s ___________________________

em última análise, que o sentido da história N ão há exemplo melhor para nós do que o
não é encontrado apenas no fim dela— como exemplo de nosso Senhor. Cristo veio a terra
se todas as coisas tivessem sido construídas não para fazer a própria vontade, mas a do
para um momento final de consumação, no Pai, que o enviou (Jo 5.30; 6.38).
qual alguns serão julgados capazes ou incapa­ E u glorifiquei-te na terra, tendo consu­
zes para a glória. O sentido da história, em mado a obra que m e deste a fa z e r (Jo 17.4).
vez disso, é encontrado em qualquer momen­ D e que form a a obra de C risto traz glória
to, por mais banal que seja, onde houver es­ para Deus? Revelando claramente o p ró ­
colhas a serem feitas por qualquer indivíduo, prio Deus. Glorificar o Senhor significa
seja ele quem for, não importando de onde confirm ar as qualidades dele e torná-las co ­
venha ou o quão importante pareça ser. nhecidas. As qualidades de Deus são vistas
Retornamos, então, à ideia levantada no em sua plenitude na cruz de C risto. Lá,
final do capítulo anterior— o momento mais mais do que em qualquer outro lugar, a so­
importante da história é sempre o agora. C i­ berania, a justiça, a retidão, a sabedoria e o
tarei Butterfield de novo, o qual aborda esse amor de Deus são revelados abundante e
ponto com uma analogia interessante: irrefutavelmente.
Vemos a soberania do Altíssimo na ma­
A história não é como um trem, cujo único neira com o a morte de Jesus foi planejada,
propósito é chegar ao seu destino, nem como a prometida, e, por fim, aconteceu, sem o míni­
concepção que meu filho caçula tem dela quando mo desvio das profecias do Antigo Testamento
nem ajustes para se adaptar a quaisquer cir­ na cruz tomamos conhecimento de que, sem
cunstâncias imprevistas. dúvida alguma, Deus nos ama da mesma for­
Constatamos a justiça de Deus no pecado ma como ama Jesus. Porque D eus amou o
sendo verdadeiramente punido. Sem a cruz, o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
Senhor poderia ter perdoado nossos pecados unigênito, para que todo aquele que nele crê
gratuitamente (para falar segundo uma perspec­ não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16).
tiva humana), mas não teria sido justo. Somente Em Sua morte, Jesus revelou amplamente
na morte de Cristo a justiça foi cumprida. essas qualidades divinas. Por conseguinte,
Observamos a retidão de Deus no reco­ Sua obediência à vontade do Pai ao morrer
nhecimento do fato de que apenas Jesus, o naquela cruz glorificou o Pai por completo.
reto e perfeito, poderia pagar a pena do peca­ N ão podemos glorificar o Senhor com o Jesus
do humano. fez — perfeitamente ou por expiação substi­
Vemos a sabedoria divina no planejamen­ tutiva —, mas podemos honrá-lo, esforçan­
to e ordenamento de tão grande salvação. E, do-nos para realizar Seus propósitos para nós
por fim, contemplamos o Seu amor. Apenas mediante a obediência.
C r is t o , o c en t r o da h is t ó r ia

início de seu importante livro, não é tanto a época em que esses costumes se
Cbrist and Time [Cristo e o tem­ originaram, mas o testemunho que eles deram
po], Oscar Cullmann, professor de no coração dos cristãos de que Jesus é o cen­
N ovo Testamento e cristianismo tro da história.
primitivo na Universidade da Basiléia (Suíça), U m historiador secular pode avaliar que a
chama a atenção para o fato de que, no mundo vinda de Jesus foi um acontecimento funda­
ocidental, não calculamos o tempo levando em mental por causa de sua influência evidente
consideração uma série de movimentos contí­ na história. Porém a convicção cristã, simbo­
nuos— somente para frente, iniciando em al­ lizada pela divisão do tempo no Ocidente, vai
gum ponto fixo —, mas, sim, partindo de um além desse reconhecimento pragmático. C o ­
centro de onde o tempo é calculado tanto para mo afirma Cullmann:
frente como para trás.
O calendário judaico começa de onde O historiador moderno pode muito bem en­
ele entende ser a data da criação do mundo e contrar confirmações, provadas historicamen­
move-se sempre em frente a partir desse pon­ te, de que o aparecimento de Jesus de Nazaré é
to. N ós, ao contrário, começamos com o nas­ um momento decisivo na história. Mas a afir­
cimento de Jesus de Nazaré e, então, numera­ mação teológica que está na base da cronologia
mos as datas em duas direções: para frente, cristã vai muito além da confirmação da grande
em uma ascendente sucessão de anos, a qual influência do cristianismo nas mudanças histó­
identificamos como a.D. (anno Domini, no ricas. Ela declara expressamente que, a partir
ano do [nosso] Senhor, para marcar o tempo desse ponto intermediário, toda a história é
depois de Cristo, ou d.C.), e para trás, em para ser entendida e julgada. ( C u l l m a n n ,
uma regressão aos anos, identificada como 1950, p. 19)
a.C. (antes de Cristo).
Esse sistema não passou a existir todo de O cristianismo afirma que fora de Cristo
uma vez. O costume de datar para frente, a não há como determinar do que se trata a his­
partir do nascimento de Cristo, foi introduzi­ tória como um todo, nem é possível avaliar
do no ano 525 (a.D.) por um abade romano com legitimidade os acontecimentos históri­
chamado Dionysius Exiguus e teve seu uso cos, de modo que um possa ser considerado
difundido durante a Idade Média. O costume melhor ou mais significativo do que outro.
de datar para antes do nascimento de Cristo C om Cristo, entretanto, tudo o que é essen­
surgiu apenas no século 18. O ponto instigante cial para um exame histórico verdadeiro é
providenciado. Afirmamos isso pela nossa mundo se tornou efetivamente um só, e os
divisão do tempo em duas grandes metades missionários do evangelho encontraram as
da história. portas das nações abertas quando viajaram
por toda a terra para proclamar a mensagem
A PLENITUDE DOS TEMPOS___________________ de Cristo.
Tal divisão de tempo não é declarada ex­ Segunda resposta, também importante: a
plicitamente na Bíblia, mas é assinalada com o herança das civilizações greco-romanas. Os
fato de as Escrituras estarem agrupadas em gregos haviam deixado sua língua com o a lín­
dois Testamentos: o Antigo, que encaminha os gua geral de negócios do mundo [assim como
acontecimentos para o tempo do ministério o inglês é hoje]. O grego era falado em todos
terreno de Jesus, e o Novo, onde é contada a os lugares e foi, portanto, o idioma em que a
vida de Cristo e os eventos relacionados a ela. fé cristã foi comunicada. O N ovo Testamento
A carta de Paulo aos gálatas ressalta o está escrito em grego, e não em hebraico, ara-
tempo específico em que Cristo veio e parti­ maico ou latim.
cipou de modo efetivo da história humana. O Roma trouxe paz ao mundo (npax roma­
apóstolo usou a expressão plenitude dos tem­ na) e interconectou o mundo construindo um
pos para aludir a esse momento: magnífico complexo de estradas, algumas
ainda existentes em regiões da Itália, França,
Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus Suíça, Inglaterra e outros países. Por essas estra­
enviou seu Filho, nascido de mulher, nasci­ das (e pelos mares), sob a proteção das legiões
do sob a lei, para remir os que estavam romanas, o apóstolo Paulo e seus companhei­
debaixo da lei, a fim de recebermos a ado­ ros de viagem levaram as boas-novas do evan­
ção de filhos. gelho à Ásia Menor, à Grécia e a Roma.
Gálatas 4.4,5 Terceira resposta: a expansão do evange­
lho foi preparada pela dispersão (diáspora)
Essa expressão se refere primordialmente dos judeus por todo o Império. Pelo fato de
aos eventos históricos, logo o seu significado terem ajudado o imperador Júlio César du­
no que diz respeito a Cristo deve, em primeiro rante um momento delicado pelo qual este
lugar, ser examinado historicamente. O que fez passou na campanha do Egito, os judeus ti­
a época em que Jesus veio em carne, o primeiro nham privilégios especiais para praticarem
século de nossa era, ser tão significativo? Mui­ sua religião e estavam presentes em toda parte
tas respostas costumam ser dadas para isso. com suas sinagogas, lendo as Escrituras e ex­
Primeira: seria impossível imaginar a rápi­ pressando a consciência de Deus. A Igreja
da expansão do cristianismo no mundo, caso primitiva floresceu sob as asas do judaísmo, e
Jesus tivesse nascido antes dos períodos de foi no interior das sinagogas que surgiram os
Alexandre, o Grande, e do Império Romano. primeiros convertidos ao cristianismo.
Antes do nascimento de Cristo, o mundo es­ Q uarta: a preparação histórica para a
tava dividido em nações e religiões hostis vinda de Cristo, o fracasso da filosofia em
umas às outras— barreiras insuperáveis para fornecer respostas verdadeiras às grandes
a obra missionária. questões da vida, bem como o aviltamento
Entretanto, com a aproximação da época por que passaram os vários sistemas religio­
de Cristo, essas barreiras foram sendo que­ sos da época. Era um tempo de tanta deca­
bradas, de modo que, quando Jesus surgiu, dência moral e depravação que até mesmo os
havia uma unificação global significativa. O pagãos se indignavam com o que viam.
Isso tudo significa que o tempo de Jesus o tornou completo por meio daquilo que Ele
foi o ponto central da história. Os séculos fez em Cristo. O tempo de Cristo traz à luz
primitivos da espécie humana foram uma um relacionamento com a história como em
preparação para esse tempo. Podem ter sido nenhuma outra ocasião antes ou depois.
significativos em outros aspectos também Devemos focalizar três momentos prin­
—e, sem dúvida, foram —, mas a perspectiva cipais da vida de Jesus: o inaugural, a encar­
bíblica é que tudo isso estava conduzindo a nação; o central, a crucificação; e o culmi­
Cristo. Emil Brunner assim se referiu a tal nante, a ressurreição. Cada um deles é uma
preparação: parte incomparável da vida de C risto, por
meio da qual a história deve ser compreendi­
Platão e Alexandre Magno, Cícero e Júlio Cé­ da e julgada.
sar serviram a Deus ao abrirem caminho para A essência da encarnação é que, por ela,
Cristo. É significativo que o Evangelho de Lu­ Jesus conquistou a salvação e estabeleceu Seu
cas comece com o episódio do censo realizado governo na história e para além dela. O meio
por decreto do imperador Augusto, e que o pelo qual isso foi obtido historicamente foi
Evangelho de Mateus comece com a história o nascimento virginal. A concepção de Jesus
dos magos do Oriente, que deixaram suas ter­ sem a fecundação de um pai humano sempre
ras para seguir a estrela a qual os levava à Pales­ confundiu a mente incrédula não somente
tina e à corte de Herodes [...]. Há muito tempo, fora da Igreja, mas também dentro dela, e
no começo dos começos, Deus havia prepara­ tem sido negada na tentativa de reduzir Je ­
do Aquele que Ele enviaria para a salvação do sus ao nível de um mero homem com algu­
mundo, na plenitude dos tempos, como alguém mas sensibilidades espirituais não muito
que, de acordo com Sua natureza humana, bro­ bem definidas.
tasse da história e encarnasse na história como A encarnação, porém, é mais do que isso.
algo que não se explicasse por si mesmo. Ela é a “invasão” de Deus na história por in­
(B r u n n e r , 1952, p. 237,238) termédio daquele que é, ao mesmo tempo,
completamente Deus e completamente ho­
D a mesma maneira, a história bíblica, ago­ mem. Trata-se de um fato sobrenatural e mi­
ra, desabrocha de Cristo mediante o desdo­ raculoso, o qual a doutrina do nascimento
bramento de Sua obra e do derramamento de virginal de Jesus explica e preserva.
Seu Espírito, com o mostra o N ovo Testa­ O nascimento virginal é uma questão
mento. histórica brilhantemente trabalhada por J.
Gresham Machen em The Virgin Birth o f
O TEMPO COMO PLENITUDE_________________ Christ [O nascimento virginal de Cristo], um
Falar da plenitude dos tempos com o a pre­ livro que ninguém até hoje refutou ou mes­
paração na história para a vinda de Jesus é mo tentou responder. Machen defende o
apenas uma parte do significado dessa expres­ nascimento virginal pelo estudo consistente
são, porém o acontecimento não é necessaria­ dos documentos originais (nos quais ele de­
mente a parte mais importante. monstra a sua credibilidade) e por uma críti­
E verdade que os eventos da história sob a ca ousada de todas as teorias contrárias a es­
direção e soberania de Deus foram prepara­ sa doutrina.
dos para Cristo, e, nesse sentido, o tempo de A pessoa que desejar investigar esse lado
Sua vinda foi o mais propício. Contudo, o do tema deve começar a ler imediatamente a
tempo foi também pleno, porque o Altíssimo obra de Machen. O que o autor não discute,
mas que é de grande significado para a visão Podemos observar o mesmo no cântico
cristã da história, é a importância da doutrina Benedictus, do sacerdote Zacarias (Lc 1.68-80).
do nascimento virginal para a própria histó­
ria, porém as narrativas bíblicas fazem isso- Bendito o Senhor, D eus de Israel, porque
por si mesmas. visitou e remiu o seu povo! E nos levantou
Vejamos o hino de Maria após a anuncia­ uma salvação poderosa na casa de Davi,
ção do nascimento de Cristo e sua visita sub­ seu servo, como falou pela boca dos seus
sequente a Isabel, que estava grávida de João santos profetas, desde o princípio do m un­
Batista (L c 1.46-55). Ele é conhecido como do, para nos livrar dos nossos inimigos e
Magnificat, palavra de abertura do hino em das mãos de todos os que nos aborrecem e
latim. para manifestar misericórdia a nossos pais,
e para lembrar-se do seu santo concerto e
A minha alma engrandece ao Senhor, e o do juramento que jurou a Abraão, nosso
m eu espírito se alegra em Deus, m eu Sal­ pai, de conceder-nos que, libertados das
vador, porque atentou na humildade de mãos de nossos inimigos, o servíssemos sem
Sua serva; pois eis que, desde agora, todas temor, em santidade e justiça perante ele,
as gerações m e chamarão bem-aventura- todos os dias da nossa vida. E tu, ó menino,
da. Porque m e fe z grandes coisas o Pode­ serás chamado profeta do Altíssimo, por­
roso; e Santo é o Seu nome. E a Sua miseri­ que hás de ir ante a face do Senhor, a p re­
córdia é de geração em geração sobre os parar os seus caminhos, para dar ao seu
que o temem. Com o Seu braço, agiu valo­ povo conhecimento da salvação, na remis­
rosamente, dissipou os soberbos no pensa­ são dos seus pecados, pelas entranhas da
mento de seu coração, depôs dos tronos os misericórdia do nosso Deus, com que o
poderosos e elevou os humildes; encheu de oriente do alto nos visitou, para alumiar os
bens os famintos, despediu vazios os ricos, que estão assentados em trevas e sombra
e auxiliou a Israel, Seu servo, recordando- de morte, a fim de dirigir os nossos pés pelo
s e da Sua misericórdia (como falou a nos­ caminho da paz. E o menino crescia, e se
sos pais) para com Abraão e sua posterida­ robustecia em espírito, e esteve nos deser­
de, para sempre. tos até ao dia em que havia de mostrar-se
a Israel.
O poder desse hino provém daquele con­
ceito sobre a “invasão” de Deus na história Com o primeira ilustração, esse hino se
humana, ao qual me referi. Maria estava des­ refere ao nascimento de João Batista, o profe­
crevendo nada menos que a total subversão ta do Altíssimo, que deveria ir ante a face do
da condição da história como nós a conhece­ Senhor. N o entanto, ele vai além da obra do
mos, na qual o poderoso, geralmente, triunfa, anunciador das boas-novas de Deus para Is­
e o pobre passa fome. rael com a vinda de Cristo. Nesse hino, assim
Os poderosos, agora, seriam derrubados, como no Magnificat, o foco está na interven­
e os pobres, exaltados. Os ricos seriam despe­ ção do Senhor na história com conseqüências
didos de mãos vazias, e os famintos, alimenta­ históricas inevitáveis.
dos. Isso é seria feito de acordo com as pro­ Rousas J. Rushdoony, que abordou os as­
messas de Deus a Abraão e a outros patriarcas pectos históricos da encarnação em um ensaio
da nação judaica. [A encarnação] foi um intitulado O nascimento virginal e a história,
evento decisivo na história. escreveu:
Antes de Jesus Cristo, o mover da história estava O Filho do H o m em será entregue nas
confuso e em trevas. Os peregrinos da história ti­ mãos dos homens e matá-lo-ão; e, morto,
nham medo de movimentar-se; eles não podiam ele ressuscitará ao terceiro dia.
mexer-se porque não encontravam direção no Marcos 9.31
escuro [...]. Agora, com a plenitude da revelação,
o povo de Deus caminha com Ele na luz de Cris­ O Filho de Deus vinculou o êxito de Sua
to. De acordo com o Benedictus, o grande movi­ missão à Sua crucificação. E eu, quando fo r le­
mento do homem para frente na história come­ vantado da terra, todos atrairei a mim (Jo
çou em Cristo e com Cristo [...]. Cada aspecto da 12.32). Ele falou sobre a crucificação como a
narrativa do nascimento não é somente histórico, hora decisiva para a qual Ele veio (Jo 2.4; 12.23-
mas também direcionado para a plenitude do 27; 17.1; comparar com 7.30; 8.20; 13.1). Ao re­
processo histórico. ( R u s h d o o n y , 1969, p. 110) latar esses acontecimentos, Mateus dedica 2/5
de seu Evangelho à semana final em Jerusalém;
O segundo momento importante na vida Marcos, 3/5; Lucas, 1/3; e João, quase a metade.
de Jesus é a crucificação, que, com o uma par­ Da mesma forma, a crucificação é um tema
te desse foco da história, detém a centralidade do Antigo Testamento: os sacrifícios dados a
máxima. Ela é o motivo de ter acontecido a Israel por Deus com propósitos pedagógicos
encarnação, e é o acontecimento sobre o qual prefiguraram o sofrimento de Cristo. Os pro­
a ressurreição se apoia. fetas o anunciaram com extrema clareza. Jesus,
A cruz é o ponto culminante do N ovo provavelmente, referiu-se a essas duas linhas
Testamento. Cada um dos Evangelhos dedica de testemunho quando pregou para os abati­
uma parte consideravelmente extensa de sua dos discípulos a caminho de Emaús o que o
narrativa aos eventos da semana final de Jesus Antigo Testamento previu sobre Sua morte.
em Jerusalém, culminando com Sua crucifica­
ção e ressurreição— e não é exagero afirmar E ele lhes disse: O néscios e tardos de cora­
que a cruz tem grande relevância na vida e no ção para crer tudo o que os profetas disse­
ministério de Jesus. ram ! Porventura, não convinha que o
Até o nome Jesus, dado por José ao Filho Cristo padecesse essas coisas e entrasse na
de Deus, seguindo a orientação do anjo, sua glória ? E, começando por Moisés e por
aponta para a morte de Cristo no Calvário. O todos os profetas, explicava-lhes o que dele
anjo explicou a escolha do nome dizendo: E se achava em todas as Escrituras.
ela dará à luz um filho, e lhe porás o nom e de Lucas 24.25-27
JE S U S, porque ele salvará o seu povo dos seus
pecados (M t 1.21). Em vista dessa ênfase bíblica, não é sur­
Jesus também falou do sofrimento que es­ preendente que a centralidade da cruz de
tava por vir: Cristo tenha sido reconhecida pelos cristãos
de todas as épocas, mesmo antes de o impera­
E começou a ensinar-lhes que importava dor Constantino ter feito da cruz o emblema
que o Filho do H o m em padecesse muito, e universal da cristandade. “A cruz é vista co ­
que fosse rejeitado pelos anciãos, e pelos mo o foco da fé cristã. Sem a cruz, a Bíblia
príncipes dos sacerdotes, e pelos escribas, e não teria sentido, e o evangelho seria uma es­
que fosse morto, mas que, depois de três perança vazia” ( B o i c e , 1971, p. 144).
dias, ressuscitaria. Mesmo quem conhece pouco a Bíblia de­
ve saber que a crucificação de C risto é o
elemento central dela. A Escritura Sagrada solução de Deus para o problema humano. E
conta a história da queda do homem, deixando- qual é o nosso problema? O pecado, o qual se
lhe a esperança de um Redentor. O remédio expressa em três vertentes principais: 1) leva a
perfeito de Deus para esse mal é Cristo. A pessoa a ser ignorante em relação ao Altíssimo;
cruz é a solução de Deus para o problema do 2) aliena-a de Deus; e 3) enfraquece-a para que
pecado. não consiga viver para o Senhor, mesmo que
Contudo, há ainda mais aspectos sobre a ela já o conheça e seja reconciliada com Ele.
centralidade da cruz. Se ela é a solução para o A encarnação de Jesus é a resposta de
pecado— e a única—, então ela confronta ca­ Deus para a primeira vertente do pecado.
da indivíduo com uma crise para a qual ele Em bora Ele se tenha revelado também na E s­
deve dar uma resposta, e, de acordo com sua critura, é acima de tudo em Jesus Cristo que
decisão, ele viverá ou morrerá. O povo nos vemos o Senhor e o conhecemos.
tempos do Antigo Testamento ou aguardava A solução de Deus para o segundo aspec­
o Messias como o Salvador prometido por to do problema é a crucificação. Nela, Ele
Deus, ou não. Da mesma forma, ou enxerga­ providenciou uma expiação para o pecado,
mos na cruz o que o Altíssimo fez para que pela qual toda a culpa é removida, e nós, que
alcançássemos a salvação, ou ignoramos tal estávamos separados do Senhor, somos leva­
fato. N osso futuro depende da nossa escolha. dos de volta à comunhão com Ele pelo sangue
O terceiro momento decisivo na vida dede Jesus (Ef 2.13).
Cristo é a ressurreição. Ela é importante em A resposta de Deus para o terceiro aspec­
dois sentidos. Primeiro, ela é fundamental his­ to do problema é a ressurreição. Ela não é
toricamente, pois, por causa dela, a Igreja de apenas a prova da divindade de Jesus e do va­
Cristo veio a existir (e, com ela, o cristianismo). lor de Sua morte para os pecadores, mas tam­
Sem uma ressurreição verdadeira na história, os bém a promessa e o penhor de uma nova vida,
primeiros discípulos teriam dispersado, com cheia de poder, para todos os que creem em
seus sonhos frustrados. Eles teriam dito como Jesus. Pode ser dito da ressurreição, assim co ­
os discípulos a caminho de Emaús: mo da encarnação, que uma nova virtude veio
ao mundo, e este nunca mais será o mesmo
E nós esperávamos que fosse ele o que re­ por causa dela.
misse Israel; mas, agora, com tudo isso, éjá A importância da ressurreição foi detalha­
hoje o terceiro dia desde que essas coisas da no Livro II, no qual foi dito que ela com ­
aconteceram. prova que:
Lucas 24.21
1. existe um Deus, e Ele, o Deus da Bí­
Pelo fato de Jesus ter aparecido de novo blia, é o verdadeiro Deus;
para os discípulos depois da ressurreição, eles 2. Jesus de N azaré é o Filho unigênito
se reagruparam com o uma comunidade, con­ de Deus;
vencidos da mensagem que deveriam anun­ 3. todos aqueles que creem em Jesus são
ciar e ungidos com o Seu testemunho, mesmo justificados de todo pecado;
diante da perseguição e da morte. Nessa gui­ 4. os cristãos podem desfrutar de uma
nada histórica, a ressurreição foi o ponto cul­ vida agradável a Deus;
minante e decisivo. 5. a morte não é o fim desta vida;
Segundo, a ressurreição é imprescindível 6. haverá um Juízo Final sobre todos os
para cada indivíduo, uma vez que é parte da que rejeitam o evangelho.
Então, no meio da história, simbolizada eleição do povo de Israel acontece com refe­
pela divisão a.C. e a.D. (ou d.C .), situa-se o rência a Cristo e atinge seu ponto máximo na
acontecimento principal: vida e obra de Cris­ obra do Encarnado [...].
to. A história preparou o campo para isso, foi O papel de Cristo como Mediador prossegue
mudada por isso e passou a ser compreendida em Sua Igreja, que, sem dúvida, constitui Seu
(e julgada) a partir desse evento. A maior de Corpo terreno. Por essa mediação, Cristo
todas as decisões humanas passou a ser a ma­ exerce senhorio conferido a Ele por Deus so­
neira como cada um de nós responde ao cha­ bre o céu e a terra, embora, no momento, seja
mado de Jesus. invisível e possa ser visto apenas pela fé (Mt
28.18; Fp 2.9ss). Desse modo, Cristo é o Me­
Sen h o r d a h i s t ó r i a ________________________ diador que promoverá a conclusão do plano de
Algo mais deve ser dito antes de deixar­ redenção. Essa é a razão de Sua volta a terra
mos esse tema. Em bora falemos de Cristo — a nova criação no final da história, relacio­
como o foco da história, tal afirmação não é nada ao completo plano de redenção, está vin­
para ser entendida como se estivéssemos de­ culada àquela redenção dos homens, cujo Me­
clarando que Ele apenas apareceu nela e que diador é Jesus Cristo.
fora daquele breve intervalo de tempo Ele e a Com base em Sua obra, o poder de ressurrei­
história estão separados. ção do Espírito Santo transformará todas as
Pelo contrário, dizemos que Aquele que coisas, incluindo nosso corpo mortal. Além
surgiu na história é também o Senhor dela. disso, virão à existência um novo céu e uma
Ele pode ser visto desde os primórdios, está nova terra, onde o pecado e a morte não mais
atualmente dirigindo a história para executar existirão. Somente então, o papel de Cristo
Seus sábios objetivos, e voltará no fim da his­ como Mediador estará concluído. Quando
tória com o o seu Juiz. Em outras palavras, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então,
Ele é Aquele pelo qual o Pai desenvolve Seu também o mesmo Filho se sujeitará àquele que
relacionamento com a história (com o vimos todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja
no capítulo anterior). tudo em todos (1 Co 15.28). Apenas nesse
Cullmann resume essa evidência bíblica ponto, a linha da história que começou com a
da seguinte forma: criação alcançará seu final. ( C u l l m a n n , s.d.,
p. 108,109)
Mesmo o tempo anterior à criação é enxergado
inteiramente a partir de Cristo. É o tempo no Em bora Cristo seja o foco da história, Ele
qual, no conselho de Deus, Cristo já está pre- está acima e, ao mesmo tempo, no controle
ordenado como Mediador antes da fundação dela. Assim sendo, Ele é a própria história e o
do mundo (Jo 17.24; lPe 1.20). Ele é, então, o sentido dela. Portanto, devemos fazer parte
Mediador na própria Criação (Jo 1.1; Hb 1.2 e, conscientemente dessa história por meio da fé
especialmente, v.lOss; IC o 8.6; Cl 1.16) [...]. A em Jesus.
Pa r t e

2
A Igreja de Deus

A mim, o mínimo de todos os santos, me foi dada estagraça de anunciar entre osgentios,
por meio do evangelho, as riquezas incompreensíveis de Cristo e demonstrara todos qual
seja a dispensação do mistério, que, desde os séculos, esteve oculto em Deus, que tudo
criou; para que, agora, pela igreja, a multifõrme sabedoria de Deus seja conhecida dos
principados e potestades nos céus.
Efésios 3.8-10

Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade.


João 4.24

Fazei isto em memória de mim.


1 Coríntios 11.24

E ele mesmo deu m s para apóstobs, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e
outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra
do ministério, para edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade
da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura
completa de Cristo.
Efésios 4.11-13
A I g r e ja de C r is t o

e a vida, morte e ressurreição de Jesus principados e as potestades — a frase se refere


Cristo é o foco da história, então a aos poderes espirituais como os anjos e os de­
Igreja de Cristo, Seu Corpo, é tam­ mônios — estão contemplando a Igreja para
bém um ponto importante, mas não conhecer a sabedoria e o plano de Deus reve­
no mesmo sentido. A obra de Cristo é o fun­ lados a ela [e por meio dela].
damento da Igreja, mas Ele, e não a Igreja, é o E com o se a Igreja fosse um palco onde o
ponto no qual a história tem de ser compre­ Senhor estivesse apresentando a grande peça
endida e julgada. N o entanto, a obra de Cris­ da redenção; uma novela da vida real, na qual
to continua na Igreja, onde a plenitude do é mostrado como aqueles que se rebelaram
mistério de Deus na redenção é revelada no contra Ele e contaminaram-se são, agora,
meio de Seu povo. conduzidos a uma reconciliação com Ele, tor­
U m texto dos escritos de Paulo diz: nando-se agentes de restauração e cura.
Àqueles que são membros do C orpo de
A mim, o mínimo de todos os santos, me Cristo é dado o privilégio de tornar-se o que
fo i dada esta graça de anunciar entre os Ralph Keiper chama de “sinais ratificadores
gentios, p or meio do evangelho, as rique­ da graça de Deus”. Keiper acrescenta:
zas incompreensíveis de Cristo e demons­
trar a todos qual seja a dispensação do A vontade divina para você e eu é que sejamos
mistério, que, desde os séculos, esteve ocul­ instrumentos de Sua sabedoria, a fim de mos­
to em Deus, que tudo criou; para que, ago­ trar que, verdadeiramente, somos a obra supe­
ra, pela igreja, a multiforme sabedoria de rior de Sua criação e para que os homens pos­
D eus seja conhecida dos principados e po­ sam contemplar-nos como a obra-prima de
testades nos céus. Deus [...]. Fomos redimidos e experimentamos
Efésios 3.8-10 tão grande salvação que, em um mundo peca­
dor e corrupto, podemos tornar-nos filhos de
Qualquer leitor do N ovo Testamento en­ Deus sem ressalvas. Além disso, temos condi­
tenderá que a Igreja é importante nesta era, da ções de demonstrar, por meio da nossa vida, a
mesma forma que os pactos de Deus com Is­ maravilhosa salvação de que falamos, como se
rael foram fundamentais no período do Anti­ fôssemos um livro ilustrado, o qual poderá
go Testamento. Mas o texto de Efésios diz conduzir o povo ao Livro escrito. Por este, as
mais: a multiforme sabedoria de D eus está pessoas conhecerão, mediante o Espírito Santo,
sendo manifestada na Igreja ainda hoje, e os o Livro Vivo, que é Jesus. ( K e i p e r , 1975, p. 10)
Por causa da importância crucial da Igreja solene do Senhor para abençoá-los — para ser
para desvendar o plano redentor de Deus, nossa seu Deus, e eles serem Seu povo.
atenção, agora, deve focalizar-se nessa realida­ Podemos observar uma ilustração desses
de. Estudaremos a natureza, as marcas, a vida, elementos no chamado de Abraão, com quem
a organização e as responsabilidades da Igreja. a congregação do Antigo Testamento come­
çou. Somos informados de que o Senhor apa­
O LEGADO DO A N TIG O TESTAMENTO receu a Abraão dizendo:
A Igreja é criação de Gristo e remonta à
época de Jesus de Nazaré, porém ela tem raí­ Ora, o S E N H O R disse a Abrão: Sai-te da
zes no Antigo Testamento e não pode ser bem tua terra, e da tua parentela, e da casa de
compreendida sem essa base no passado. Isso teu pai, para a terra que eu te mostrarei. E
é teologicamente verdadeiro, porque o con­ far-te-ei uma grande nação, e abençoar-
ceito de povo de Deus, obviamente, já existia -te-ei, e engrandecerei o teu nome, e tu
no período do Antigo Testamento, assim co ­ serás uma bênção.
mo no N ovo. Gênesis 12.1,2
E verdadeiro também no aspecto lingüísti­
co, que, uma vez que a palavra grega para igreja Nessa narrativa, a iniciativa foi toda de
(ekklesia) aparece muitas vezes em relação a Is­ Deus, uma vez que foi Ele quem procurou e
rael na tradução grega do Antigo Testamento (a chamou Abraão, e não o contrário.
chamada Septuaginta), ela se tornou conhecida De novo, vemos o começo da promessa
dos escritores do Novo Testamento. As passa­ ou do pacto:
gens em que ekklesia aparece podem, suposta­
mente, ter exercido uma influência no pensa­ Então, disse a Abrão: Saibas, decerto, que
mento dos escritores do N ovo Testamento. peregrina será a tua semente em terra que
N a Septuaginta, o termo ekklesia, geral­ não é sua; e servi-los-á e afligi-la-ão quatro­
mente, traduz o termo hebraico qhl, que, as­ centos anos. Mas também eu julgarei a gente
sim como a palavra grega, refere-se àqueles à qual servirão, e depois sairão com grande
que são chamados ou congregados por Deus fazenda. Naquele mesmo dia, fez o SE­
como Sua possessão especial. N H O R um concerto com Abrão, dizendo: À
Isso diz respeito às primeiras aparições tua semente tenho dado esta terra, desde o
dessa palavra: com a frase no dia da congrega­ rio do Egito até ao grande rio Eufrates.
ção (D t 9.10b; 10.4; 18.16), o termo faz men­ Gênesis 15.13,14,18
ção à nação de Israel congregada no monte
Sinai. Esse é também seu significado no Sal­ Quanto a mim, eis o m eu concerto contigo
mo 22, no qual o termo congregação volta a é, e serás o pai de uma multidão de nações.
aparecer (v. 22,25), bem como é a ideia que E estabelecerei o m eu concerto entre mim
está por trás da referência de Estêvão à con­ e ti e a tua semente depois de ti em suas
gregação em seu sermão no livro de Atos: gerações, p or concerto perpétuo, para te ser
Este é o que esteve entre a congregação no a ti p or D eus e à tua semente depois de ti.
deserto, com o anjo que lhe falava no monte E te darei a t i e à tua semente depois de ti
Sinai, e com nossos pais (At 7.38a). a terra de tuas peregrinações, toda a terra
Nessas passagens e em outras, o elemen- de Canaã em perpétua possessão, e ser-
to-chave é o chamado de Deus, seguido da -Ihes-ei o seu Deus.
resposta dos que são convocados e do pacto
A resposta de Abraão foi crer em Deus A l ic e r ç a d o s e m C r i s t o ___________________

(Gn 15.6) e adorá-lo (Gn 12.8). Cada um desses elementos do Antigo Tes­
Percebemos o mesmo modelo no relacio­ tamento está presente no entendimento da
namento de Deus com Isaque, o filho de Igreja contido no N ovo Testamento, mas ela
Abraão, e com Jacó, seu neto. Mais tarde, possui características as quais não podem ser
houve um chamado especial para os descen­ corretamente aplicadas à congregação do A n­
dentes do patriarca, quando eram escravos no tigo Testamento e, portanto, apresentam-se
Egito. Naquela ocasião, Deus disse a Moisés: como algo novo. A Igreja: (1) está alicerçada
no Senhor Jesus, (2) é chamada à existência
E disse o S E N H O R : Tenho visto atenta­ pelo Espírito Santo e (3) deve conter pessoas
m ente a aflição do m eu povo, que está no de todas as raças, que, por meio dela, torna-
Egito, e tenho ouvido o seu clamor p or ram-se novas criaturas à vista de Deus.
cama dos seus exatores, porque conheci as A primeira referência à Igreja no N ovo
suas dores. Portanto, desci para livrá-lo da Testamento torna claro o primeiro desses
mão dos egípcios e para fazê-lo subir da­ pontos: o único Fundamento sobre o qual a
quela terra a uma terra boa e larga, a uma Igreja pode estar é o seu Mestre, Jesus Cristo.
terra que mana leite e mel; ao lugar do O texto de Mateus 16.18 é, provavelmente, o
cananeu, e do heteu, e do amorreu, e do mais conhecido, que trata da Igreja.
ferezeu , e do heveu, e do jebuseu. Jesus havia deixado a região perigosa da
Êxodo 3.7,8 Galileia para ir a Cesareia de Filipe, onde co ­
meça a perguntar a Seus discípulos qual é a
Finalmente, encontramos uma chamada e opinião do povo sobre Ele. Q uem dizem os
promessa a Israel, seguidas do cativeiro babi- homens ser o Filho do H om em ?, Jesus per­
lônico: guntou. Os discípulos responderam: Uns,
João Batista; outros, Elias, e outros, Jeremias
Portanto, eis que dias vêm , diz o SE­ ou um dos profetas. O Mestre prosseguiu: E
N H O R , em que nunca mais se dirá: Vive vós, quem diz eis que eu sou? Pedro respon­
o S E N H O R , que fe z subir os filhos de Is­ deu pelos demais: Tu és o Cristo, o Filho do
rael da terra do Egito. Mas: Vive o SE­ D eus vivo (Mt 16.13-16). Nesse ponto, Jesus
N H O R , que fe z subir os filhos de Israel da começa a falar da Igreja e dos sofrimentos que
terra do Norte e de todas as terras para precederiam a sua fundação.
onde os tinha lançado; porque eu os farei
voltar à sua terra, que dei a seus pais. Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas,
Jeremias 16.14,15 porque não fo i carne e sangue quem to re­
velou, mas m eu Pai, que está nos céus. Pois
Em cada uma dessas passagens, há a cria­ também eu te digo que tu és Pedro e sobre
ção de uma ekklesia— uma congregação da­ esta pedra edificarei a minha igreja, e as
queles que são chamados para se tornar um portas do inferno não prevalecerão contra
povo especial para D eus, longe de um rela­ ela. E eu te darei as chaves do Reino dos
cionam ento normal com o mundo. Esse céus, e tudo o que ligares na terra será liga­
chamado é seguido de promessas especiais e do nos céus, e tudo o que desligares na ter­
tem com o resposta a fé, a adoração, o amor ra será desligado nos céus. Então, m an­
e a obediência da parte dos que aceitam o dou aos seus discípulos qu e a ninguém
Senhor. dissessem qu e ele era o Cristo. D esde
então, começou Jesus a mostrar aos seus grupo que havia julgado e condenado Jesus—
discípulos que convinha ir a Jerusalém, e para dar-lhe explicações. Pedro usou a oca­
padecer muito dos anciãos, e dos principais sião para testemunhar do Filho de Deus e fa­
dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e lar de Seu poder, pelo qual um paralítico
ressuscitar ao terceiro dia. acabara de ser curado. Então, Pedro prosse­
Mateus 16.17-21 guiu em clara referência a Jesus.

Essa passagem apresenta vários pontos E le é a p edra que fo i rejeitada p o r vós, os


importantes. Primeiro, a ênfase na confissão edificadores, a qual fo i posta p or cabeça de
de Pedro, que focava a pessoa de Cristo, e não esquina. E em nenhum outro há salvação,
o próprio Pedro. Jesus disse que essa compre­ porque também debaixo do céu nenhum
ensão tinha sido dada a Ele por uma revelação outro nom e há, dado entre os homens, pelo
especial do Pai. qual devamos ser salvos.
A Igreja Católica construiu sua doutrina Atos 4.11,12
da supremacia do papa com base nesse trecho
da Bíblia, alegando que Jesus fundara a Igreja N ós temos essa mesma perspectiva na pri­
sobre o alicerce de Pedro e seus sucessores. meira epístola de Pedro, em que ele compa­
N a verdade, o grego, que é a base desses ver­ rou Jesus a uma pedra principal de esquina,
sículos, apresenta um jogo de palavras entre sobre a qual nós, as pedras lavradas, podemos
as formas masculina e feminina da palavra ser fixadas. Eis suas palavras:
petros, significando pedra ou rochedo. Isso
mostra que o verdadeiro alicerce da Igreja de­ E, chegando-vos para ele, a pedra viva,
ve ser Jesus. reprovada, na verdade, pelos homens, mas
O nome Pedro (petros, a forma masculina) para com D eus eleita e preciosa, vós tam­
significa pedra, mas poderia ser uma pedra bém, como pedras vivas, sois edificados
grande ou pequena, ou até mesmo um seixo casa espiritual e sacerdócio santo, para
ou cascalho. A forma feminina, petra, por sua oferecerdes sacrifícios espirituais, agradá­
vez, significa rochedo, como a pedra que for­ veis a Deus, p o r Jesus Cristo. Pelo que
ma uma montanha. Então, a passagem bíblica tam bém na Escritura se contém: Eis que
realmente quer dizer: “Você, Pedro, é uma ponho em Sião a p edra principal da esqui­
pedra pequena, sólido em sua confissão, mas na, eleita e preciosa; e quem nela crer não
facilmente removível. Eu, ao contrário, sou o será confundido.
rochedo que atravesso as eras. Sobre este ali­ 1 Pedro 2.4-6
cerce sólido, para o qual a sua confissão apon­
ta [Eu, o Cristo] edificarei a minha Igreja”. U m segundo ponto importante dessa pri­
Em seus escritos futuros no N ovo Testa­ meira menção da Igreja no N ovo Testamento
mento, Pedro jamais aventou que ele fosse o é a sua ênfase na obra de Cristo. Pedro apon­
alicerce da Igreja. N o entanto, esse apóstolo tou para a pessoa de Jesus, confessando que
se referiu a Jesus como o Alicerce, evocando a Ele era o Cristo, o Filho do D eus vivo. Entre­
imagem de Cristo, a qual, sem dúvida, o havia tanto, depois de confirmar que isso estava
impressionado e ele guardara no coração. correto, Jesus disse que Sua obra inicial como
N ão muito depois da ressurreição de Jesus, Messias (Cristo) não seria exatamente o que
Pedro e João, por estarem pregando, foram os discípulos esperavam dele. Seria uma obra
presos por ordem do Sinédrio— o mesmo de sofrimento e morte.
Desde então, começou Jesus a mostrar aos estas, e elas ouvirão a minha voz, e haverá
seus discípulos que convinha ir a Jerusa­ um rebanho e um Pastor.
lém, e padecer muito dos anciãos, e dos João 10.16
principais dos sacerdotes, e dos escrihas, e
ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia. Devemos entender o que Jesus disse nesse
Mateus 16.21 versículo, uma vez que ele tem sido usado de
maneira imprópria. O problema pode ter co ­
Pedro não compreendeu a obra de Jesus meçado com Jerônimo e a Vulgata Latina.
de imediato, por isso considerou esse sacrifí­ Nessa tradução da Bíblia, Jerônimo falhou na
cio desnecessário e chegou a repreender Je ­ distinção entre um aprisco (mencionado na
sus: Senhor, tem compaixão de ti; de modo primeira parte do versículo) e um rebanho
nenhum te acontecerá isso (v. 22). N o entan­ (citado depois), pois são duas palavras intei­
to, o Mestre considerava Seu sofrimento tão ramente diferentes em grego.
necessário que Ele enxergou as palavras de Pelo fato de Jerônim o tê-las tratado co ­
Pedro com o tentação satânica. E m vez de mo iguais, muitas das nossas traduções o se­
responder a Pedro, Jesus repreendeu o p ró ­ guiram. E certo que o erro já foi corrigido
prio diabo: Para trás de m im, Satanás, que em várias versões. N a tradução de Jerônim o,
m e serves de escândalo; p o rq u e não com ­ Jesus parecia estar dizendo que há apenas
p reen d es as coisas qu e são de D eus, mas só uma organização, e a dedução óbvia era que
as qu e são dos hom ens (v. 23). não poderia haver salvação fora daquela de­
Então, a primeira coisa que devemos dizer terminada igreja da época. Essa interpretação
sobre a Igreja é que a pessoa e a obra de C ris­ foi oficializada pelo ensino católico romano,
to são os seus alicerces—a Igreja está edifica- mas está fundamentada em uma tradução
da sobre Jesus. Ela é a reunião do C orpo equivocada.
daqueles cujos pecados foram expiados me­ A Igreja da qual Jesus fala não é uma orga­
diante a morte do Filho do Deus eterno. nização humana (embora, certamente, ela te­
Qualquer congregação, não importa o nha partes estruturadas), mas, sim, a reunião
nome que receba, fundada sobre outro ali­ daqueles que o têm com o Pastor. Desse m o­
cerce não constitui a Igreja. Por outro lado, do, a unidade vem não por forçar todas as
todos os que estão unidos pela fé em Jesus ovelhas a congregarem-se em uma única e
Cristo são Sua Igreja, independente de sua grande organização, mas pelo fato de que to ­
origem denominacional. dos ouviram Jesus e deixaram os antigos vín­
Esse conceito tem uma aplicação impor­ culos, a fim de segui-lo.
tante: a Igreja de Cristo é uma Igreja e deve A questão é: nós realmente confessamos tal
ser vista dessa forma pelo mundo afora. Jesus unidade com os nossos atos? Acredito que,
ensinou isso aos Seus contemporâreos judeus, muitas vezes, não. O equívoco da Igreja Cató­
por meio de uma imagem extraída da vida ru­ lica está em supor que o Espírito Santo traba­
ral: comparando-se a um pastor e equiparan- lha somente nos limites eclesiásticos—isso é
do Sua Igreja a ovelhas. Cristo morreria por um erro. N o entanto, ainda que se expresse
elas e, então, chamaria as ovelhas de muitos de forma diferente, essa falha também se en­
rebanhos para segui-lo. contra no seio do protestantismo.
O problema não é tanto o fato de existi­
Ainda tenho outras ovelhas que não são rem muitas denominações no meio protes­
deste aprisco; também m e convém agregar tante. Afinal, as pessoas são diferentes, e é
compreensível que haja diversas organiza­ independente de denominação, seja ela batista,
ções, com variados formatos de culto e orien­ presbiteriana, episcopal, metodista, pentecos-
tação teológica, que expressem tais diferen­ tal, neopentecostal, dentre outras. Isso não
ças. Insistir no fato de que deve existir significa que cada um de nós deve achar, a
somente uma denominação protestante (co­ partir de agora, que os outros cristãos estão
mo fazem alguns) é um engano parecido com completamente certos nos assuntos relativos
o católico. à Igreja ou à doutrina. N a verdade precisa­
O problema real é que os cristãos de de­ mos aprender com o Corpo de Cristo e rece­
terminada denominação se recusam a coope­ ber ajuda dele por intermédio de irmãos e ir­
rar com os de outra, alegando que estes estão mãs de outras igrejas.
contaminados pelos seus vínculos, que se en­
contram em desobediência ao Senhor por 4. P or causa do amor que mantém unida a
permanecerem naquela doutrina ou, até mes­ Igreja verdadeira, nós também temos a obri­
mo, que não são cristãos de verdade. Atitudes gação de demonstrar esse amor-unidade de
como essa, além de impedir o avanço do evan­ forma tangível, além e acima de projetos e
gelho no mundo de hoje, constituem pecado, “tons”denominacionais. Fazer isso é a base
e não experimentaremos um grande avivamen- indispensável para nossa missão. Nisto todos
to se os cristãos não se arrependerem desse conhecerão que sois meus discípulos, se vos
pecado e pedirem a Deus que os purifique. amardes uns aos outros (João 13.35).
O que concluímos sobre a Igreja com base
nas passagens bíblicas citadas e em outras? C a p a c it a d o s pelo E s p ír it o _______________

Podemos afirmar: U m a segunda característica exclusiva da


Igreja do N ovo Testamento é que ela foi ge­
1. H á uma Igreja à qual pertencem todos rada e recebeu o poder do Espírito Santo.
os que confessam Jesus como Senhor e Salva­ Em bora o Senhor Jesus seja o alicerce da
dor. Todos os cristãos são um com outros Igreja, esta não veio à existência imediata­
cristãos e devem reconhecer isso como verda­ mente após a Sua m orte, ressurreição e as­
de, muito embora os “outros cristãos” este­ censão, mas, sim, no Dia de Pentecostes,
jam em erro ou neguem doutrinas importan­ quando o Espírito Santo desceu sobre os
tes, que consideramos certas. discípulos com poder e provocou muitas
conversões na primeira pregação pública so­
2. N a Bíblia, não há nada que nos mostre bre Cristo.
que deveria haver —ou mesmo que devería­ O Senhor preparou os discípulos para es­
mos desejar —uma única denominação a qual sa vinda do Espírito Santo ao ordenar que
abarcasse todos. E m vez disso, temos de espe­ eles ficassem em Jerusalém até aquele m o­
rar que Deus chame à fé pessoas no interior mento. Só depois deviam partir com o Suas
das várias denominações e as conduza ao ser­ testemunhas.
viço cristão dentro da sua e das outras igrejas.
N ão ousemos afirmar que outro cristão está Mas recebereis a virtude do Espírito Santo,
fora da vontade de Deus só porque ele ou ela que há de v ir sobre vós; e ser-me-eis teste­
está congregando em outro lugar. munhas tanto em Jerusalém como em to­
da a Ju déia e Samaria e até aos confins da
3. O s filhos de Deus precisam uns dos ou­ terra.
tros e devem aprender uns com os outros,
O Espírito Santo faz três coisas pela Igreja Mas todos nós, com cara descoberta, refle­
em todas as épocas e em todos os lugares. Pri­ tindo, como um espelho, a glória do Se­
meira, como o versículo citado declara, Ele nhor, somos transformados de glória em
deu virtude, ou poder, a ela para cumprir o glória, na mesma imagem, como pelo Espí­
mandado de Cristo e ser eficiente ao cumpri- rito do Senhor.
-lo. Esse é o combustível da missão dada por 2 Coríntios 3.18
Cristo. Ele estava dizendo aos discípulos que
deviam ser Suas testemunhas por todo o Terceira, por intermédio do Espírito San­
mundo, começando por Jerusalém, porém to, o Cristo ressurreto está com Seu povo
não seriam capazes de fazer isso antes de o para encorajá-lo e direcioná-lo durante esta
Espírito Santo descer sobre eles para enchê- dispensação. O Senhor falou disso antes mes­
-los com palavras de poder. mo de Sua crucificação:
Quando Pedro pregou durante o Pente-
costes, três mil pessoas creram no evangelho. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro
Então, elas ingressaram na comunhão da Consolador, para que fique convosco para
Igreja eperseveravam na doutrina dos apósto­ sempre, o Espírito da verdade, que o m un­
los, e na comunhão, e no partir do pão, e nas do não pode receber, porque não o vê, nem
orações (At 2.42). N a pregação seguinte de o conhece; mas vós o conheceis, porque ha­
Pedro, quase cinco mil creram (A t 4.4). Foi bita convosco e estará em vós.
uma resposta fenomenal para qualquer época João 14.16,17
ou lugar do cristianismo, mas, particularmen­
te, para uma cidade que, pouco tempo antes, P or causa da vinda do Espírito Santo, Je­
havia rejeitado Jesus. sus pôde dizer: E eis que eu estou convosco
Somente dois meses antes, tinham ferido todos os dias, até 'a consumação dos séculos
e matado o Filho de Deus, mas, por ocasião (Mt 28.20b), e: D eixo-vos a paz, a minha paz
da pregação de Pedro, converteram-se a Je­ vos dou; não vo-la dou como o m undo a dá.
sus em números estrondosos. O que fez a N ão se turbe o vosso coração, nem se atem o­
diferença? rize (Jo 14.27).
C om certeza, não foi simplesmente aquela A Igreja de Cristo existe para ser uma rea­
pregação, ou teríamos de concluir que Pedro lidade espiritual na qual os diferentes dons do
era um pregador melhor do que Jesus. A dife­ Espírito Santo sejam vistos. Essa realidade
rença foi que o Espírito Santo falou por inter­ deveria vigorar na Igreja organizada ou visí­
médio de Pedro e mudou o coração de seus vel. Esta não é idêntica à Igreja espiritual e,
ouvintes. O mesmo acontece hoje. N ós pre­ muitas vezes, falha em mostrar tais dons. N o
gamos a respeito de Cristo e testemunhamos entanto, os dons deveriam ser vistos onde
dele, mas não podemos mudar o interior das quer que cristãos verdadeiros se reunissem
pessoas; apenas o Espírito Santo pode fazê-lo, em nome de Jesus— o mundo deveria poder
e Ele faz isso. reconhecer que há alguma virtude espiritual
Segunda, o Espírito Santo foi enviado pa­ envolvendo os cristãos.
ra desenvolver o caráter do Senhor Jesus Francis Schaeffer escreveu:
Cristo em Seu povo. N ão somos iguais a Ele
naturalmente, mas devemos tornar-nos como Estas são as coisas que o mundo deveria ver
Ele quando o Espírito de Cristo nos transfor­ quando olha para a Igreja —algo que ele não
mar em Sua imagem. consegue explicar [...]. A Igreja do Senhor Jesus
Cristo deveria estar funcionando momento a As barreiras estreitas do sistema antigo caí­
momento em um plano sobrenatural. Esta é a ram por terra, e, no dom do Espírito para to­
Igreja vivendo pela fé, e não na infidelidade. dos os crentes, assim como na comunhão do
Esta é a Igreja vivendo, na prática, sob a lide­ Espírito extensiva a todos, está posta a fun­
rança de Cristo, em vez de pensar em Cristo dação de uma Igreja não mais confinada a
como alguém distante, empenhado na constru­ uma nação como antes, no tempo da Lei, mas
ção da Igreja invisível, enquanto nós construí­ universal e sem fronteiras. ( B a n n e r m a n ,
mos o que está à mão com a nossa própria sa­ 1974, p . 42,43)
bedoria e nosso poder. ( S c h a e f f e r , 1971, p.
172,174) A união de pessoas dentro da Igreja é pro­
porcionada por Deus, mas é algo que tem de
I n c l u in d o t o d o s ___________________________ ser alcançado historicamente. A Igreja deve
Um a terceira característica especial da cultivar irmandade, um sentido de unidade
Igreja foi mencionada no trecho sobre o ali­ familiar, entre aqueles a quem o evangelho
cerce da Igreja, mas não foi desenvolvida a alcança.
contento. Trata-se de sua natureza universal, Muitas barreiras para essa união existiam
na qual povos de todas as culturas são reuni­ na Igreja primitiva. Havia as de raça (os gregos
dos em comunhão, e todas as barreiras nacio­ desprezando os romanos, os romanos desde­
nais, raciais e outras são derrubadas. nhando os gregos); as de nacionalidade (os ca­
Bannerman escreve sobre isso: tivos se rebelando contra a escravidão romana);
e as de gênero, língua e cultura— as mesmas
A Igreja invisível de Cristo, na qual congregam que existem hoje entre o povo de Deus. En­
todos os crentes verdadeiros ao redor do mun­ tretanto, todas elas foram derrubadas quando
do, é universal, ou, em outras palavras, não os que foram chamados para a fé em Cristo
confinada a determinado lugar ou a pessoas. começaram a enxergar a sua unidade nele.
Nesse aspecto, ela contrasta com o sistema cen­
tralizado e local da Igreja na dispensação judai­ Porque ele é a nossa paz, o qual de ambos
ca, na medida em que, quando a Igreja judaica os povos fe z um; e, derribando a parede de
constituiu uma sociedade de adoradores de separação que estava no meio.
Deus, esta era local, não universal. Ela tinha seu Efésios 2.14
centro em Jerusalém e sua circunferência nos
limites geográficos da Judeia. Para os coríntios, Paulo escreveu: [Deus]
Há um contraste marcante entre tudo isso e a nos reconciliou consigo mesmo p o r Jesus
Igreja cristã do evangelho de Jesus. Agora, já Cristo e nos deu o ministério da reconciliação
não há um lugar central para o culto religioso (2 C o 5.18).
do povo de Deus — nenhum lugar santo para Em seu comentário sobre o Evangelho de
onde devamos dirigir-nos para a adoração, ou, João, William Barclay conta um episódio da
mesmo à distância, devamos voltar nosso rosto vida de Egerton Young, o primeiro missioná­
para orar. Nem em Jerusalém, nem no templo, rio enviado a uma tribo indígena do Canadá.
os homens e mulheres são obrigados a adorar o Young foi até os índios com a mensagem de
Pai. Onde quer que haja, nesta vasta terra, um amor de um Deus Pai, e eles a receberam co­
verdadeiro adorador, lá está um templo verda­ mo uma nova revelação. Quando aquele mis­
deiro de Deus, e lá Deus pode ser adorado em sionário concluiu sua mensagem, um velho
espírito e em verdade. cacique disse:
“Quando você falou do Grande Espírito Nada vai abolir a diferença entre as nações,
[Criador] agora mesmo, ouvi você falar: pois elas sempre existirão com suas diferenças.
‘Nosso Pai’ ?” “Sim” — respondeu o missio­ Da mesma forma, nada vai abolir as denomi­
nário. “Nós o conhecemos como Pai porque nações. Contudo, a despeito disso tudo —ra­
Deus é revelado a nós como Pai por intermé­ ças, nações e denominações —, pode haver
dio de Jesus C risto.”“Isso é muito novo e uma unidade visível e real entre aqueles que
agradável para mim”— disse o cacique. “N ós confessam o Senhor Jesus Cristo como Pastor.
nunca pensamos no Grande Espírito como Dr. Martyn Lloyd-Jones diz em seu estudo
Pai. N ós o ouvimos no trovão; nós o vemos do segundo capítulo de Efésios:
nos relâmpagos, nas tempestades, nas nevas-
cas, e ficamos com medo. Mas, quando você Somos todos igualmente pecadores... Somos to­
nos diz que o Grande Espírito é nosso Pai, dos igualmente perdidos... Chegamos ao único e
isso é muito belo para nós.” O cacique, en­ mesmo Salvador... Temos a mesma salvação... Te­
tão, fez uma pausa e logo voltou a perguntar: mos o mesmo Espírito Santo... Temos o mesmo
“Missionário, você disse mesmo que o Gran­ Pai... Temos até mesmo as mesmas provações... E,
de Espírito é seu Psi?”. “Sim, eu disse” — finalmente, marchamos todos juntos para o mes­
respondeu, mais uma vez, Young. “E você mo lar eterno. ( L l o y d - J o n e s , 1972, p. 282-288)
disse que Ele é o Pai dos índios?” “Sim, ele é
o Pai dos índios.” “Então” — deduziu o caci­ Somente um conhecimento profundo do
que —“você e eu somos irmãos”. ( B a r c l a y , amor de Jesus Cristo nos manterá juntos e
1 9 5 6 , p . 7 4 ,7 5 ) unidos.
AS MARCAS DA IGREJA

Igreja está alicerçada em Jesus tenham a minha alegria completa em si mes­


Cristo e foi chamada à existência mos (Jo 17.13).
pelo Espírito Santo, portanto ela O fato de a maioria de nós não pensar na
deve ser como Cristo e possuir, ao alegria com o a primeira marca que a Igreja
menos, algumas de Suas características. Essa deve ter é, provavelmente, um sinal de que
afirmação não é apenas uma conclusão do enxergamos a alegria com o uma virtude se­
raciocínio, mas está claramente ensinada na cundária e de com o nos afastamos do mode­
Bíblia. Encontram os o apóstolo João dizen­ lo da Igreja primitiva. A Igreja dos apóstolos
do: Q ual ele é, somos nós tam bém neste e dos primeiros cristãos era uma comunida­
m undo (1 Jo 4.17). de alegre.
O que isso significa? O que deveria carac­ Vemos essa alegria de imediato quando
terizar a Igreja? A resposta mais abrangente é começamos a estudar esse tema no N ovo Tes­
encontrada na oração sacerdotal de Jesus em tamento. N a língua grega, o verbo que signi­
João 17. O Mestre orou para que a Igreja fos­ fica alegrar-se ou estar alegre é chairein e é
se marcada por seis características: alegria encontrado 72 vezes no N ovo Testamento. O
(v.13), santidade (v.14-16), verdade (v.17), substantivo que significa alegria é chara e está
missão (v.18), unidade (v.21-23) e amor (v.26). presente 60 vezes.
Sua vida foi marcada por cada uma dessas vir­ À medida que estudamos essas aplicações,
tudes. Essas marcas da Igreja são tão impor­ percebemos que alegria não é um conceito
tantes que nós deveríamos estudar cada uma formal, encontrado apenas nas passagens al­
delas cuidadosamente, antes de prosseguir tamente teológicas. Em vez disso, as palavras
para outros aspectos que também são parte da que falam de alegria aparecem na maioria das
vida e do ministério da Igreja. vezes, simplesmente, com o uma saudação do
tipo: “A alegria esteja com você!”.
U m p o v o a l e g r e _____________________________ Para ser exato, chairein não está sempre
E interessante que a primeira marca da restrita à fala dos cristãos, mas é usada, por
Igreja mencionada por Jesus seja a alegria. exemplo, na carta dirigida a Félix, a respeito
Muitos de nós não a mencionaríamos em pri­ de Paulo, enviada pelo oficial romano Cláu­
meiro lugar. N ós reputaríamos como mais dio Lísias (A t 23.26). N o entanto, na boca
importantes o amor, a santidade ou a sã dou­ dos cristãos, esse termo, obviamente, signifi­
trina. Entretanto, Jesus disse: Mas, agora, cava muito mais do que quando era usado
vou para ti e digo isto no m undo, para que pelos pagãos.
Observamos, por exemplo, que o anjo o imparcialidade, no dia-a-dia, talvez não des­
qual anunciou o nascimento de Jesus aos pas­ cubra uma alegria tão visível.
tores de Belém disse: Imaginamos a alegria como alguma coisa
que deveria caracterizar a Igreja no plano ideal,
Não temais, porque eis aqui vos trago no­ e será a sua marca, sem dúvida, naquele dia,
vas de grande alegria, que será para todo o quando estaremos todos reunidos em torno
povo, pois, na cidade de Davi, vos nasceu do trono da graça, para dar glórias a Deus.
hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. Mas, e aqui? P or aqui, muitas vezes, depara-
Lucas 2.10,11 m o-nos com olhares amargos, rostos nostál­
gicos e outras expressões de miséria interior.
A palavra, nesse contexto, significava
muito mais do que saudações. Mais tarde, Um p o v o s e p a r a d o __________________________

Jesus declarou: Tenho-vos dito isso para qu e Uma segunda marca da Igreja é a santida­
a m inha alegria perm aneça em vós, e a vos­ de, a virtude de Deus mais mencionada nas
sa alegria seja completa (Jo 15.11). Todas páginas da Bíblia. A santidade, portanto, de­
as palavras ditas p or Jesus foram grandes veria caracterizar a Igreja de Deus. Devemos
prom essas. ser uma nação santa (1 Pe 2.9) e devemos
Os escritos de Paulo contêm muitos usos esforçar-nos pela santificação, sem a qual
dessa palavra. Em Filipenses, o apóstolo, de­ ninguém verá o Senhor (Hb 12.14). Jesus
sejando transmitir uma mensagem final a seus mencionou essa marca da Igreja quando Ele
amigos, escreveu: Regozijai-vos [alegrai-vos], orou para que Deus a guardasse do mal.
sempre, no Senhor; outra vez digo: regozijai-
-vos [alegrai-vos](4.4). Não peço que os tires do mundo, mas que
C om o Barclay assinala ao discutir esse os livres do mal. Não são do mundo, como
termo: eu do mundo não sou. Santifica-os na ver­
dade; a tua palavra é a verdade.
Essa última saudação, alegrai-vos!, ressoa João 17.15-17
triunfantemente pelas páginas do Novo Testa­
mento [...]. Não há qualidade na vida cristã que Algumas pessoas têm classificado santi­
não exale alegria; não há circunstância nem dade como um padrão de comportamento
ocasião que não possa ser iluminada pela ale­ determinado culturalmente, e santos como
gria. Uma vida sem regozijo não é cristã, pois aqueles que não fumam, não bebem, não jo­
alegria é um ingrediente fundamental na recei­ gam nem fazem inúmeras coisas. N o entanto,
ta para um viver cristão saudável. ( B a r c l a y , essa abordagem contém um grande mal­
1962, p . 77-78) entendido, pois indica que santidade em um
indivíduo cristão pode resultar da abstinência
A Igreja atual é alegre? Os cristãos de hoje de muitas práticas, embora, talvez, a essência
são alegres? Precisamos ter certeza de que to ­ da santidade não esteja presente.
dos nós somos muito mais alegres do que se­ Logo, insistir nesse viés comportamental
riamos se não fôssemos cristãos, ou que há para os membros da igreja não é garantia de
lugares onde a alegria é particularmente ma­ promover a santidade. N a verdade, estimula
nifesta. A alegria é muito evidente nos novos o legalismo e, em casos extremos, um falso
convertidos, por exemplo; porém, na maioria cristianismo, segundo o qual homens e mu­
das igrejas, se alguém prestar atenção com lheres se sentem justificados diante de Deus
com base em alguns comportamentos supos­ O conceito bíblico de santidade fica mais
tamente bons e éticos. claro quando levamos em conta algumas pa­
O apóstolo Paulo descobriu que isso era lavras relacionadas a ele, tais como santo e
verdade naquele Israel de seus dias, mas Jesus santificar. Jesus usou a segunda na oração de
já havia detectado isso antes dele. Paulo dis- João 17. U m santo não é alguém que atingiu
tinguiu claramente entre aquele tipo de santi­ certo nível de bondade (embora seja o que a
dade e a verdadeira, que vem de Deus e está maioria das pessoas acha), mas, sim, alguém
sempre voltada para Ele. O Senhor disse de que foi separado por Deus.
Israel: N a Bíblia, porém, a palavra não está res­
trita a uma categoria especial de cristãos, tam­
Porquanto, não conhecendo a justiça de pouco a uma classe estabelecida pela ação
D eus e procurando estabelecer a sua pró­ oficial de algum corpo eclesiástico. Em vez
pria justiça, não se sujeitaram à justiça de disso, o termo é usado para falar de todos os
Deus. cristãos (Rm 1.7; 1 C o 1.2; 2 C o 1.1; E f 1.1;
Romanos 10.3 Fp 1.1, entre outras passagens). Os santos são
os chamados que edificam a Igreja de Deus.
Israel tinha imaginado que santidade era O mesmo sentido está presente quando a
algo que pudesse ser classificado. Ou seja, Bíblia trata da santificação de objetos (como
quando olhamos em volta, vemos alguns que está escrito em Êxodo 40). Moisés foi instruí­
consideramos inferiores na escala da bondade do a santificar o altar e purificá-lo com água
humana, como, por exemplo, os criminosos, consagrada no interior do tabernáculo, ou
pervertidos, mentirosos, obsessivos, entre seja, tornar aqueles objetos santos. O capítulo
outros. N ós atribuímos a esses uma classifica­ não fala de alguma mudança intrínseca na
ção muito baixa no ranking da santidade. natureza dos objetos, uma vez que eles não se
U m pouco acima estão as pessoas comuns tornaram mais justos. O texto simplesmente
da sociedade; depois, aparecem aquelas muito ressalta que foram separados para uso espe­
boas, que recebem uma pontuação alta. Aci­ cial do Senhor.
ma delas, porém, com a nota 100 está Deus, Em João 17, Jesus orou: E p o r eles m esan-
uma vez que a santidade dele é perfeita. De tifico a m im mesmo, para que também eles
acordo com esse sistema de enfocar esse atri­ sejam santificados na verdade (v. 19). O versí­
buto, a santidade de Deus, sendo perfeita, é culo não quer dizer que Jesus estava tornan­
transmitida em graus maiores ou menores a do-se mais justo, até porque Ele já era justo.
cada um de nós, seres humanos. Devemos E m vez disso, o texto mostra que Jesus esta­
agradar a Ele (alguns diriam “conquistar o va separando-se para uma tarefa especial:
céu”), portanto, ao tentarmos ser santos. trazer salvação às pessoas p or meio de Sua
Isso era o que fazia Israel no tempo de Je­ morte. Se santidade for para ser entendida de
sus e Paulo, e é o que quase todos na Igreja de alguma maneira, ela deve ser entendida nessa
hoje fazem naturalmente. N o entanto, isso perspectiva.
não condiz com o conceito bíblico de santi­ Se santidade, portanto, tem a ver com se­
dade. De acordo com a Bíblia, ela tem a ver, paração e consagração, e os cristãos já são
no nível de Deus, com transcendência e, em santos pela virtude de serem colocados à par­
nosso nível, com uma resposta fundamental a te por Deus, por que Jesus orou pela nossa
Ele, a qual podemos chamar de compromisso santificação? P or que clamar por aquilo que
ou dedicação. já temos? A resposta é que, embora tenhamos
sido separados pelo Senhor, muitas vezes, fa­ Como podemos viver nesse tipo de mundo —
lhamos em viver à altura desse chamado. tocá-lo e escutá-lo, vê-lo com nossos olhos e
ouvi-lo pelos nossos ouvidos dia e noite — e
Um p o v o e n r a i z a d o n a v e r d a d e _________ não ser conformados à sua imagem e imprensa­
Qual é o remédio? A pergunta nos con­ dos em sua forma? A resposta é que devemos
duz à terceira marca da Igreja: a verdade. So­ conhecer a verdade. Devemos conhecer o
mos levados à verdade porque tanto a alegria mundo (e a vida) da maneira como Deus o vê,
cristã com o a santidade dependem quase que da maneira como o mundo realmente é. Deve­
inteiramente de quanto temos entendimento mos conhecê-lo tão clara e poderosamente
da Palavra de Deus, ou seja, de quanto e com que, mesmo quando estivermos expostos às
que qualidade conhecemos e praticamos os mentiras sedutoras, possamos condená-las co­
princípios da revelação escrita de Deus. mo mentiras e saber que elas são um engano.
Jesus disse: Tenho-vos dito isso para qu e a (S t e d m a n , 1975, p. 147-148)
minha alegria perm aneça em vós, e a vossa
alegria seja completa (Jo 15.11). Mas, agora, Stedman está dizendo que os cristãos de­
vou para ti e digo isto no mundo, para que veriam ser os maiores realistas entre todos,
tenham a minha alegria completa em si mes­ porque seu realismo provém da verdade de
mos (Jo 17.13). E novamente: Santifica-os na Deus, Aquele que, pela própria natureza, de­
verdade; a tua palavra é a verdade (Jo 17.17). ve conduzi-los à maior alegria e santificação.
Um a grande evidência, a qual percebemos
mais e mais à medida que crescemos na vida Um p o v o m i s s i o n á r i o ______________________

cristã, é que praticamente tudo o que Deus Até esse ponto, a oração de Jesus em João
faz no mundo hoje é pelo Espírito Santo, por 17 esteve tratando de assuntos que dizem res­
meio de Sua Palavra escrita. Essa é a verdade peito à Igreja ou a cada cristão. Estudamos a
da santificação. Um a vez que santificação sig­ alegria, a santidade e a verdade. N o entanto,
nifica ser separado para o uso de Deus, nosso por mais que essas virtudes sejam importan­
texto está dizendo que a única maneira de isso tes e possam ser alcançadas, em certa medida,
acontecer conosco é pela apropriação da ver­ na vida presente, não é necessária muita refle­
dade divina registrada na Bíblia. xão para descobrir que todas três seriam atin­
Quanto mais distante estiver a verdade, gidas mais rapidamente se pudéssemos ser
mais o mundo viverá na ilusão. As visões do transportados para o céu.
mundo são um problema inevitável para nós, N ós temos alegria aqui; mas o que ela é, se
a não ser que tenhamos uma maneira correta comparada àquele júbilo que teremos quan­
de conter e, de fato, destruir sua influência. do, por fim, enxergarmos a fonte de toda a
Ray Stedman aborda esse problema quando nossa alegria face a face? A Bíblia testifica
escreve: sobre isso quando fala da bem-aventurança
dos santos redimidos, que terão todas as suas
O mundo vive pelo que acredita ser verdade; lágrimas enxugadas (Ap 7.17; 21.4).
por valores e padrões que não valem a pena, Nesta vida, experimentamos, sem dúvida,
mas que o mundo tem em alta conta. Jesus dis­ alguma santificação, mas, no mundo vindou­
se: Vós sois os que vos justijicais a vós mesmos ro, seremos completamente semelhantes a
diante dos homens, mas Deus conhece o vosso Jesus (1 Jo 3.2). Nesta vida, somos capazes de
coração, porque o que entre os homens é eleva­ assimilar alguns aspectos da verdade de Deus.
do perante Deus é abominação (Lc 16.15) [...]. Porque, agora, vemos p or espelho em enigma;
mas, então, veremos face a face; agora, conhe­ finalmente, morrer e ser sepultado por um
ço em parte, mas, então, conhecerei como coveiro cristão em um cemitério consagrado.
também sou conhecido (1 C o 13.12). Ora, se Um a subcultura cristã? Sem dúvida. Mas isso
tudo isso é verdade, por que não deveríamos não foi certamente o que Jesus quis dizer
partir para o céu imediatamente? A resposta quando falou sobre os Seus seguidores esta­
está na quarta marca da Igreja. rem “no mundo”.
A Igreja não existe apenas para ficar entre O que significa estar no mundo como um
quatro paredes, alegrando-se nos cultos, san- cristão? E claro que não quer dizer ser como
tificando-se para Jesus e lendo a Bíblia para o mundo, porque as marcas de Cristo na Igre­
encontrar a verdade. Ela existe também para ja existem para tom á-la diferente. Também
contemplar o mundo com amor e enxergar não significa abandonar a comunhão cristã ou
nele o objeto de sua missão. as nossas convicções básicas. Quer dizer que
Jesus disse: Assim como tu [Deus] m e en- devemos conhecer não cristãos, aproximar-
viaste ao mundo, também eu os enviei ao -nos deles e participar de sua vida de maneira
mundo. E p o r eles m e santifico a mim mesmo, que possamos influenciá-los com o evange­
para que também eles sejam santificados na lho, em vez de a vida deles contaminar-nos
verdade (Jo 17.18,19). com seus pontos de vista.
A primeira coisa que chama a atenção U m jovem pastor na Guatemala saiu do
nesses versículos é onde a nossa missão tem seminário direto para uma igreja em uma área
de ser realizada. A palavra missão vem do montanhosa conhecida como Cabrican. Era
verbo em latim que significa m andar ou des­ um lugar que todos rejeitavam. Cabrican fica­
pachar. Mas, quando perguntamos “a quem va em uma altitude de 2.700 metros e era qua­
(ou aonde) somos mandados?”, a resposta é: se sempre úmida e fria. A igreja para a qual foi
“ao m undo”. mandado era pequena, com apenas 28 mem­
Essa resposta é, provavelmente, a explica­ bros, incluindo dois presbíteros e dois diáco-
ção do motivo pelo qual a Igreja evangélica na nos. Esses cristãos se congregavam quase to­
América, por exemplo, não é a Igreja missio­ das as noites da semana, mas a igreja não
nária que ela alega ser. N ão é que a Igreja crescia. N ão havia envolvimento com a co­
evangélica não apoie missões estrangeiras — munidade.
ela apoia. O problema não está nisso, mas no Em um de seus primeiros sermões, aquele
abandono que o povo evangélico fez da cul­ pastor, Bernardo Calderón, disse: “Eu sei que
tura. Muitos parecem ter medo da cultura e, Deus não está satisfeito com o que estamos
por isso, tentam manter-se o máximo possível fazendo”.
afastados do mundo, com o se isso fosse a re­ Então, ele desafiou o povo com o seguinte
ceita para não serem contaminados por ele. projeto: primeiro, acabaram com os muitos
Os evangélicos criaram a própria subcul- encontros internos da igreja, mantendo ape­
tura. E possível, hoje em dia, ser nascido em nas a escola bíblica de domingo. N o lugar das
um lar cristão, crescer em uma família evan­ reuniões abolidas, foram criados cultos nos
gélica, só ter amigos da igreja, freqüentar es­ lares. N a segunda-feira à noite, reuniam-se
colas e faculdades cristãs, ler livros cristãos, em uma casa de determinada área de Cabri­
freqüentar um clube cristão (mais conhecido can, e todos se faziam presentes. A caminho do
como igreja), assistir a filmes evangélicos, ter culto, eles convidavam todos os que encontra­
um emprego em um lugar administrado por vam, até mesmo os pedestres. Um a vez que os
cristãos, ser atendido por médicos cristãos e, cristãos saíam de setores diferentes da cidade e
passavam por trajetos variados, conseguiam E u não rogo somente p or estes, mas tam­
cobrir uma boa área convidando as pessoas. bém p or aqueles que, pela sua palavra, hão
N a terça-feira, a igreja se reunia em outra de crer em m im; para que todos sejam um,
região. Para isso, os 28 membros tinham de como tu, ó Pai, o és em mim, e eu, em ti;
passar por outras ruas, e moradores diferen­ que também eles sejam um em nós, para
tes seriam convidados. O mesmo aconteceu que o mundo creia que tu m e enviaste. E eu
na quarta, na quinta-feira e nos demais dias da dei-lhes a glória que a mim m e deste, para
semana, quando a igreja, literalmente, deixava que sejam um, como nós somos um. E u ne­
suas quatro paredes para ir ao encontro do les, e tu em mim, para que eles sejam perfei­
mundo com o convite do evangelho. tos em unidade, epara que o mundo conhe­
O resultado? E m quatro anos, a igreja do ça que tu me enviaste a mim e que tens
pastor Bernardo tinha 800 membros. N o ano amado a eles como m e tens amado a mim.
seguinte ao início do desafio, uma filial foi João 17.20-23
aberta, e, hoje, há seis grandes igrejas daquela
denominação nas imediações de Cabrican, Que tipo de unidade deve ser essa? Se for
duas das quais com cerca de mil membros. para ser organizacional, nossos esforços para
Há, inclusive, uma cooperativa agrícola, por alcançá-la e expressá-la terão de ser feitos em
meio da qual os membros da igreja adquirem determinada direção. Contudo, se falarmos
terra para os necessitados, além de comprar e de uma unidade mais subjetiva, nossos esfor­
vender o que é produzido pelos próprios ir­ ços tomarão rumos diferentes.
mãos. Toda a região foi avivada e revitalizada. Algo que a Igreja não precisa ser é uma
A segunda coisa que os versículos 18 e 19 grande unidade organizacional. Quaisquer
de João 17 ressaltam é a respeito do caráter que sejam as vantagens ou desvantagens de­
daqueles que realizarão essa missão, ou seja, correntes dessa grandiosa unidade organiza­
de nosso caráter com o povo cristão. Somos cional, ela, em si mesma, não produz os resul­
chamados para ser com o Cristo no mundo. tados pelos quais Jesus orou, nem resolve os
Jesus comparou os discípulos a si mesmo, outros problemas da Igreja. Já foi tentado e
tanto no fato de terem sido enviados ao mun­ achado em falta.
do pelo Pai e santificados como em terem si­ N a Igreja dos primeiros tempos, havia
do separados para a obra. Ele disse: muito crescimento e pouca unidade organiza­
cional. Mais tarde, quando a Igreja recebeu
Assim como tu m e enviaste ao mundo, honras governamentais sob o império de
também eu os enviei ao mundo. E p o r eles Constantino e seus sucessores, a Igreja visível
m e santifico a mim mesmo, para que tam­ centralizou-se cada vez mais, até que, durante
bém eles sejam santificados na verdade. a Idade Média, houve apenas uma corporação
João 17.18,19 eclesiástica alcançando toda a Europa. Por
onde quer que alguém fosse — norte, sul, les­
Temos de assumir a nossa missão assim te ou oeste —, havia apenas uma Igreja com o
como Jesus assumiu a dele. Precisamos ser papa no topo.
como Aquele a quem estamos representando. P or acaso foi uma grande época? Havia
uma unidade de fé profunda? Aquela Igreja
Um p o v o u n i d o ______________________________
era forte? Tinha uma moral impecável? Aca­
Um a quinta marca da Igreja é a unidade. so, os homens e as mulheres da época ren­
Jesus disse: diam-se em massa, confessando Jesus Cristo

âOó
como seu Salvador e Senhor? Acontecia exa­ tipo de unidade é essa? É aquela semelhante à
tamente o contrário. que existe na Trindade.
O grande pregador inglês Spurgeon escre­ Jesus falou sobre ela desta forma:
veu sobre isso:
Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o
O mundo foi convencido de que Deus não ti­ és em mim, e eu, em ti; que também eles
nha nada a ver com aquela coisa opressiva, tira­ sejam um em nós, para que o m undo creia
na, supersticiosa e ignorante que se chamava que tu m e enviaste. E u neles, e tu em mim,
cristianismo; e os cidadãos pensantes torna­ para que eles sejam perfeitos em unidade, e
ram-se infiéis, e era a coisa mais difícil do mun­ para que o mundo conheça que tu m e en­
do encontrar um cristão genuíno inteligente viaste a m im e que tens amado a eles como
em qualquer lugar. ( S p u r g e o n , 1970, p. 2) m e tens amado a mim.
João 17.21,23
Certamente, há algo a ser valorizado a res­
peito de algumas formas de unidade externa e A Igreja precisa ter uma unidade espiritual
visível em algumas situações. Mas é certo, que envolva a orientação básica, as aspirações
igualmente, que esse tipo de unidade não é e a vontade dos que participam dela.
aquele de que mais precisamos, nem foi por
ele que o Senhor orou. Ora, há diversidade de dons, mas o Espíri­
O utro tipo de unidade de que não neces­ to é o mesmo. E há diversidade de ministé­
sitamos é a uniform idade— um tipo de igre­ rios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversi­
ja que torna todo mundo igual. Esse é um dade de operações, mas é o mesmo Deus
erro bem comum na Igreja evangélica. Se a que opera tudo em todos.
Igreja liberal, em sua maior parte, empenha- 1 Coríntios 12.4-6
-se na unidade organizacional —por meio de
variados concílios de igrejas e fortalecimen­ Isso não quer dizer que todos os cristãos
to das denominações —, a Igreja evangélica verdadeiros vivam essa unidade como deve­
parece esforçar-se para que seus membros riam. De outro modo, por que Jesus teria de
tenham um padrão idêntico de aparência e orar por isso? Com o outras marcas da Igreja,
comportamento. a unidade não é somente algo dado a ela, mas
Jesus não estava à procura disso. A o con­ também algo pelo qual o corpo de cristãos
trário, deveria haver diversidade entre os cris­ genuínos deveria empenhar-se.
tãos—de personalidade, métodos de evange-
lismo e trabalho cristão. Um p o v o a m o r o s o __________________________

A uniformidade é tão estúpida quanto Por último, chegamos ao amor, a maior de


uma fileira de pacotes de biscoito em uma todas as marcas da Igreja de Cristo. Esse amor
prateleira do mercado. A variedade é esti­ dá sentido às outras marcas, e, sem ele, a Igre­
mulante, e nós comprovamos isso na diver­ ja não pode ser o que Deus quer que ela seja.
sidade da criação e na variedade das ações de Tendo escrito sobre o amor e tendo-o coloca­
Deus. do no contexto de fé, esperança e amor, o
N o entanto, se a unidade pela qual Jesus apóstolo Paulo concluiu: Porém o maior des­
orou em João 17 não é de caráter organizacio­ tes é o amor (1 C o 13.13 a r a ).
nal, e também não é aquela falsa unidade, a C om o mesmo pensamento em mente, Je ­
qual tem como modelo a uniformidade, que sus—em Sua oração sacerdotal, em João 17,
tendo falado de alegria, santidade, verdade, por Deus Pai conduz? À alegria, porque nos
missão e unidade como qualidades essenciais regozijamos nele e no que Ele fez por nós.
da Igreja— concluiu com uma ênfase especial A que o amor por Jesus conduz? À santi­
no amor. Vemos, então, mais uma vez, o novo dade, porque sabemos que o veremos um dia
mandamento de João 13.34,35: e seremos como Ele: E qualquer que nele tem
esta esperança purifica-se a si mesmo, como
Um novo mandamento vos dou: Q ue vos também ele ép u ro (1 Jo 3.3).
ameis uns aos outros; como eu vos amei a A que o amor pela Palavra de Deus con­
vós, que também vós uns aos outros vos duz? À verdade. Se amarmos a Palavra, nós
ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus iremos estudá-la com afinco e, inevitavel­
discípulos, se vos amardes uns aos outros. mente, cresceremos em um entendimento
maior da verdade divina.
Jesus disse que fez conhecido o nome de A que o amor pelo mundo conduz? À
Deus aos Seus discípulos, para que o amor missão. Temos uma mensagem para levar ao
com que m e tens amado esteja neles, e eu neles mundo.
esteja (Jo 17.26). A que o nosso amor pelos irmãos e irmãs
Compreenderemos a proeminência do cristãos conduz? À unidade, porque, pelo
amor se o enxergarmos em relação a outras amor, discernimos que estamos atados uns
características da Igreja. O que acontece aos outros naquele feixe de vida que o próprio
quando você retira o amor de cada uma delas? Senhor criou dentro da comunidade cristã.
Imagine tirar o amor da alegria. O que existi­ C om o todas as coisas divinas, o amor che­
rá? Hedonismo, uma vida extravagante, com ga até nós somente por revelação. Nas pági­
prazeres, mas sem a alegria santificada que se nas do Antigo Testamento, o Altíssimo reve­
acha apenas no relacionamento com Jesus. lou a si mesmo como um Deus de amor. N ós
Retire o amor da santidade. O que encon­ constatamos que Ele colocou Seu amor sobre
trará? Justiça própria, o tipo de autoexaltação Israel, embora não existisse nada que fizesse
que caracterizava os fariseus da época de aquele povo merecer tal amor.
Cristo. Pelos padrões daquele tempo, os fari­ N os ensinamentos de Jesus, o Altíssimo é
seus tinham uma vida muito santa, mas não revelado com o um Deus de amor. Cristo o
amavam o próximo e foram rápidos para ani­ chama de Pai, indicando que o amor de Deus
quilar Jesus quando este questionou os pa­ é um amor de pai. A melhor e mais completa
drões deles. revelação de amor está no sacrifício de Jesus
Retire o amor da verdade, e existirá uma Cristo na cruz.
ortodoxia rígida, o tipo de doutrina correta,
mas que não ganha ninguém para Cristo. Porque D eus amou o mundo de tal manei­
Retire o amor da missão, e haverá imperia­ ra que deu o seu Filho unigênito, para que
lismo e colonialismo em vestes eclesiásticas. todo aquele que nele crê não pereça, mas
Retire o amor da unidade, e, em breve, ha­ tenha a vida eterna.
verá tirania. Esta germina em uma igreja rigi­ João 3.16
damente hierárquica, onde não há compaixão
pelas pessoas nem desejo de envolvê-las no N unca houve nem haverá uma demons­
processo de tomada de decisões. tração maior do amor de Deus. Então, se você
Agora, inclua o amor, e o que encontrará? não crer na cruz nem conseguir ver esse amor
Todas as outras marcas da Igreja. A que o amor na vida e na obra de Cristo, jamais encontrará
o Deus amoroso em parte alguma. Nesse caso, Somente em Jesus encontramos a verdadeira
Ele será um Deus silencioso para você. O uni­ natureza de Deus e aprendemos que essas e
verso será vazio, e a história não terá sentido. outras coisas têm sentido.1

N ota

1 Para um estudo mais completo sobre as seis marcas da Igreja, leia o livro The Gospel o f John [O Evangelho de João],
vol. 4, 1978, p. 395-445, 463-471, de minha autoria, da qual o material neste capítulo foi extraído.
C omo a d o r a r a D eus

Os cristãos acreditam que a verdadeira adora­ teatro e vem sendo aplicada, com triste sabedo­
ção é a atividade mais nobre e elevada, a qual ria, ao tipo de culto público que, hoje, passa
uma pessoa é capaz de realizar pela graça de entre nós por adoração. (T o zer , 1948, p. 9)
Deus. (Stott , 1970, p. 160)
U m a pessoa pode defender que, apesar de
Essas palavras são de John Stott e encon­ tudo, tais programações de louvor têm seu lu­
tram eco no coração de todos aqueles que gar na atividade da igreja, e que possuir entendi­
conhecem o Senhor e desejam servir a Ele. mento correto sobre Deus é o básico. Tozer
Contudo, muito do que se vê hoje em diaco- concordaria com a segunda afirmação (talvez,
mo adoração não é adoração. até com a primeira), mas, ao afirmar isso, não
Talvez alguém pergunte: “O que é adora­ evitamos o problema. Por acaso a adoração que
ção? Quem pode adorar? Onde se pode fazer vemos hoje com frequência nas igrejas realmen­
isso? C om o alguém pode adorar?” Muitos te é do tipo que agrada a Deus? Ela é genuína?
que desejam adorar com sinceridade não sa­ A única maneira de responder a essas perguntas
bem como proceder. é estudarmos o que a Bíblia diz sobre o assunto.
A.W. Tozer, um pastor e escritor da gera­
ção passada, analisou os problemas que ele O s PRINCÍPIOS BÍBLICOS DA ADORAÇÃO
via nas igrejas: Vamos começar apresentando alguns ensi­
namentos básicos da Bíblia sobre adoração e,
Graças às nossas sociedades bíblicas e a outras então, passar a discutir suas formas e nature­
agências eficazes de disseminação da Palavra, zas essenciais.
existem, hoje, milhões de pessoas que possuem
“entendimentos corretos”, provavelmente, 1. Deus deseja adoração. Observamos isso
mais do que em qualquer outra época da histó­ nas palavras de Jesus à mulher samaritana. Ela
ria da Igreja. N o entanto, fico imaginando se indagou o Mestre sobre o lugar certo para
houve algum tempo antes em que a verdadeira adorar, mas Ele dirigiu os pensamentos dela à
adoração espiritual esteve mais em baixa do natureza da adoração, em vez de focalizar o
que nos dias de hoje. local da adoração, dizendo que Deus deseja
Para uma grande parte da Igreja, a arte de ado­ esta adoração:
rar perdeu-se inteiramente, e, no seu lugar,
instalou-se aquela coisa estranha chamada pro­ Mas a hora vem, e agora é, em que os ver­
gramação. Essa palavra tem sua origem no dadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e em verdade, porque o Pai procu­ 3. A adoração a Deus é uma marca da fé
ra a tais que assim o adorem. salvadora. Paulo escreveu sobre isso em Fili-
João 4.23 penses 3.3: Porque a circuncisão somos nós,
que servimos a Deus no Espírito, e nos gloria­
De maneira similar, quando Jesus foi ten­ mos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne.
tado por Satanás no deserto a receber todas as Esse versículo fala de três marcas da fé. A
riquezas deste mundo se tão somente se cur­ última, não confiamos na carne, é obviamente
vasse em adoração ao diabo, o Filho de Deus importante, pois é um sinal de entrega ao
respondeu citando Deuteronômio 6.13: O evangelho verdadeiro. A segunda — nos glo­
S E N H O R , teu Deus, temerás, e a ele servirás, riamos em Jesus Cristo [ou nos alegramos na
e pelo seu nome jurarás. vida que temos em união com Cristo Jesus
( n t l h ) ] — também é uma marca da fé e da
Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Se­ Igreja, como indicado em João 17 (já estudado
nhor, teu Deus, adorarás e só a ele servirás. no capítulo anterior) e também em Gálatas 5.
Mateus 4.10 N o entanto, quem pensaria naturalmente
em adoração como uma característica da fé
Em Apocalipse 19.10, um anjo diz sim­ salvadora? Poucas pessoas. Paulo, porém, in­
plesmente: Adora a Deus. cluiu-a aqui com outros conceitos básicos.

2. Somente Deus deve ser adorado. A 4. Adoração é uma atividade coletiva. Isso
verdade está explícita na resposta de C risto não significa que não possamos adorar a Deus
a Satanás. Ela é também a essência do pri­ na intimidade de nosso quarto, até porque o
meiro e do segundo mandamento do D ecá- Senhor recomendou privacidade no que diz
logo: respeito à oração:

Não terás outros deuses diante de mim. Mas tu, quando orares, entra no teu apo­
Não farás para ti imagem de escultura, sento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai,
nem alguma semelhança do que há em ci­ que v ê o que está oculto; e teu Pai, que vê
ma nos céus, nem em baixo na terra, nem o que está oculto, te recompensará.
nas águas debaixo da terra. Não te encur- Mateus 6.6
varás a elas nem as servirás; porque eu, o
S E N H O R , teu Deus, sou D eus zeloso, que Adoração, porém, em sua expressão mais
visito a maldade dos pais nos filhos até à plena, deve envolver a coletividade do povo
terceira e quarta geração daqueles que me de Deus.
aborrecem. Isso está registrado na Escritura desde
Êxodo 20.3-5 Gênesis 4.26: E a Sete mesmo também nasceu
um filho; e chamou o seu nom e Enos; então, se
O Deus que entregou esses mandamen­ começou a invocar o nome do S E N H O R —
tos é o Deus que se revelou em Jesus Cristo, até Apocalipse 5.13,14:
Seu Filho. Portanto, a única adoração verda­
deira e aceitável é aquela dirigida a Ele. Se E ouvi a toda criatura que está no céu, e
não for assim, não será adoração verdadeira, na terra, e debaixo da terra, e qu e está no
por mais que o ritual seja grandioso e im­ mar, e a todas as coisas qu e neles há, di­
pressionante. zer: Ao que está assentado sobre o trono

S/O
e ao Cordeiro sejam dadas ações de gra­ O profeta Isaías, por sua vez, escreveu:
ças, e honra, e glória, e p o d er para todo o
sempre. E os quatro animais diziam: D e que m e serve a m im a multidão de vos­
A m ém ! E os vinte e quatro anciãos pros- sos sacrifícios, diz o S E N H O R ? Já estou
traram-se e adoraram ao qu e vive para farto dos holocaustos de carneiros e da
todo o sempre. gordura de animais nédios; e não folgo
Apocalipse 5.13,14 com o sangue de bezerros, nem de cordei­
ros, nem de bodes. Q uando vindes para
5. D eus não aceita qualquer adoração. Je ­ comparecerdes perante mim, quem re­
sus deixou isso claro, em Seus dias,aos fari­ qu ereu isso de vossas mãos, que viésseis
seus. pisar os meus átrios?Não tragais mais
ofertas debalde; o incenso é para mim
E ele, respondendo, disse-lhes: Bem p ro ­ abominação, e tam bém as Festas da Lua
fetizou Isaías acerca de vós, hipócritas, N ova, e os sábados, e a convocação das
como está escrito: Este povo honra-me com congregações; não posso suportar iniqüi­
os lábios, mas o seu coração está longe de dade, nem mesmo o ajuntamento solene.
mim. E m vão, porém , m e honram, ensi­ As vossas Festas da Lua Nova, e as vossas
nando doutrinas que são mandamentos de solenidades, as aborrece a minha alma; já
homens. m e são pesadas; já estou cansado de as so-
Marcos 7.6,7 frer.Pelo que, quando estendeis as mãos,
escondo de vós os olhos; sim, quando mul-
Cristo ensinou que o Altíssimo deseja tiplicais as vossas orações, não as ouço,
adoração, mas nem tudo o que se faz para p orque as vossas mãos estão cheias de san­
Deus é aceito por Ele com o adoração. A ado­ gue.Lavai-vos, purificai-vos, tirai a mal­
ração verdadeira deve vir do coração, e não dade de vossos atos de diante dos meus
apenas se manifestar no exterior. olhos e cessai de fa z e r m al.Aprendei a fa ­
Vale a pena registrar que, nas páginas da z er o bem ; praticai o que é reto; ajudai o
Bíblia, o Senhor fala mais sobre a adoração que oprimido; fa z ei justiça ao órfão; tratai da
Ele não aceita do que sobre a que lhe agrada. causa das viúvas.
O profeta Amós foi usado por Deus ao Isaías 1.11-17
dizer:
Davi também meditou sobre o assunto em
Aborreço, desprezo as vossas festas, e as um salmo:
vossas assembléias solenes não m e dão ne­
nhum prazer. E, ainda que m e ofereçais Porque te não comprazes em sacrifícios,
holocaustos e ofertas de manjares, não me senão eu os daria; tu não te deleitas em ho­
agradarei delas, nem atentarei para as locaustos. Os sacrifícios para Deus são o es­
ofertas pacíficas de vossos animais gordos. pírito quebrantado; a um coração quebran-
Afasta de m im o estrépito dos teus cânti­ tado e contrito não desprezarás, ó Deus.
cos; p orque não ouvirei as melodias dos Salmo 51.16,17/
teus instrumentos. Corra, porém , o juízo
como as águas, e a justiça, como o ribeiro O Senhor deseja e ordena adoração, mas,
impetuoso. ainda que ela seja uma marca importante e
essencial do povo de Deus, nem tudo o que se
apresenta como adoração agrada a Deus e é Q uem é este R ei da Glória? O S E N H O R
aceito por Ele. forte e poderoso, o S E N H O R poderoso na
guerra. Q uem é este Rei da Glória? O SE­
V aloração de D e u s ________________________
N H O R dos Exércitos; ele é o Rei da Glória
O que é adoração verdadeira? De que for­
ma podemos saber se a nossa adoração real­ Nesse ponto, podemos observar o efeito
mente está agradando a Deus ? de tomar as palavras na Bíblia e aplicá-las a
Parte da resposta está na raiz da palavra Deus, pois, se uma pessoa tem uma opinião
adoração. Se tivéssemos vivido na Inglater­ favorável sobre Ele, significa que ela está apta
ra nos dias da form ação do inglês moderno, para ter um parecer favorável sobre as carac­
entre o período de G eoffrey Chaucer e terísticas dele. O Senhor é soberano, santo,
William Shakespeare, não teríamos usado onisciente, justo, fiel, amoroso, imutável;
sequer o termo adoração. Em vez disso, tería­ portanto, Ele é glorificado quando é reconhe­
mos dito valoração, porque, ao adorarmos o cido por tudo o que é.
Senhor, atribuímos a Ele o devido valor. A ótima palavra anglo-saxônica worth
N o aspecto lingüístico, adoração a Deus (valor) podia muito bem ter sido usada para
é o mesmo que louvar o Altíssimo ou glori­ expressar a essência da glória na língua ingle­
ficar Seu nome. Vamos, então, pesquisar o sa, se a palavra francesa gloire não tivesse che­
que significa glorificar a Deus. gado antes. Mas, uma vez que o termo francês
N os primórdios da língua grega, quando o fez primeiro, geralmente falamos sobre glo­
H om ero e H eródoto escreviam, havia um rificar o Senhor, em vez de valorizá-lo, o
verbo grego —dokeo— do qual o substantivo que seria mais apropriado. Ainda assim, a
grego doxa (que significa glória) derivava. E s­ ideia permanece no term o adoração. A dora­
se verbo, originalmente, significava aparentar mos a Deus apenas quando o glorificamos,
ou parecer. Em conseqüência, o substantivo reconhecemos e confessamos Suas qualida­
que derivou dele significava opinião, que é a des perfeitas.
maneira com o alguma coisa aparenta ou pare­
ce ao observador. E m e s p í r i t o e e m v e r d a d e _________________

Desse significado obtivemos as palavras Tal definição de adoração não nos obriga,
ortodoxo, heterodoxo e paradoxo, significando entretanto, a pensar apenas em termos de
opinião correta, opinião incorreta (ou outra convicções ortodoxas. Estas são importantes
opinião) e opinião contrária (ou conflitante). — devemos adorar o Deus verdadeiro, e não
O dicionário teológico editado por outro —, mas não representam tudo o que diz
Gerhard Kittel dedica várias páginas à histó­ respeito à adoração.
ria sobre a origem dessas palavras. Nas vezes U m ingrediente que deve também estar
em que o verbo dokeo era usado apenas para presente em nossa resposta Àquele que esta­
emitir uma boa opinião sobre alguma pes­ mos adorando é adorar em espírito e em verda­
soa, o substantivo, que caminhava com o de, como Jesus ensinou em João 4.24. Verda­
verbo em concordância, expressava louvor e deiros adoradores devem adorar em verdade
honra a alguém de quem se tinha uma boa porque verdade tem a ver com a natureza de
opinião. Deus. Eles devem adorar em espírito, pois só
Os reis possuíam glória porque mereciam podem responder a isso espiritualmente.
o louvor de seus súditos. Alguns leitores da Bíblia têm sido confun­
O Salmo 24.8,10 nos fala do Rei da glória: didos no entendimento desse versículo pela
suposição de que, quando Jesus falou em es­ não se chegar a uma consciência genuína de
pírito, Ele se referia ao Espírito Santo, que­ Deus para que o louvor verdadeiro aconteça.
rendo dizer que somente por meio do Espíri­ A adoração verdadeira acontece somente
to Santo a adoração é possível. De certa quando aquela parte dos seres humanos, o
maneira, é assim mesmo. N ada espiritual é seu espírito, conectada à natureza divina
possível sem a atuação do Espírito de Deus. (Deus é Espírito) encontra-se de verdade com
N o entanto, esse não é o sentido de João 4.24. o Senhor e entrega-se em louvor a Ele pelo
Nesse contexto, Jesus fala de espírito de Seu amor e poder, pela Sua sabedoria, beleza,
forma geral (sem o artigo definido), e não do verdade, santidade, compaixão, misericórdia,
Espírito Santo. graça e outras virtudes.
O Mestre ensinou que, na era inaugurada Sobre essa questão, William Barclay es­
por Ele, o lugar de adoração não importa. Um creveu:
homem ou uma mulher não estariam adoran­
do pelo simples fato de estarem no lugar certo A verdadeira e genuína adoração é quando o ho­
ou cumprindo certos procedimentos. O que mem, por meio de seu espírito, atinge a intimida­
Cristo quis dizer é que o adorador teria de em­ de e a amizade com Deus. Adoração genuína e
penhar seu espírito nesse ato, o qual poderia verdadeira não é ir a determinado lugar; não é
acontecer em qualquer lugar. fazer parte de rituais ou liturgia; não é levar ofer­
Muitas pessoas adoram externamente. tas ao altar. Verdadeira adoração é quando o es­
Elas só consideram o fato de estarem adoran­ pírito, essa parte imortal e invisível do homem,
do se estiverem no lugar certo, fazendo as fala com o Senhor e encontra-se com o Deus
coisas certas, no momento certo. A mulher que é imortal e invisível. ( B a r c l a y , 1956, p. 54)
samaritana também pensava dessa forma e
estava em dúvida se a adoração correta devia Adorar a Deus em espírito tem levantado
ser em Jerusalém ou no monte Gerizim. também a questão dos vários tipos de liturgia
N os dias de hoje, isso se refere às pessoas utilizados nas igrejas cristãs. Isso significa
as quais imaginam que adoraram a Deus por­ que, com a exceção dos elementos litúrgicos
que estiveram na igreja no domingo, canta­ que sugerem doutrina errada, nenhuma litur­
ram diversos louvores, ou ficaram de joelhos. gia em si mesma é melhor ou pior que a outra.
Jesus disse que esses costumes, por si mesmos, Para uma determinada igreja, um tipo de cul­
não são adoração. Podem ser, no máximo, um to pode ser mais eficaz do que outro.
veículo para a adoração verdadeira, mas, em Entretanto, as decisões sobre os modelos
alguns casos, até podem impedi-la. N o entan­ de culto mais eficazes deveriam ocorrer não
to, é certo que, em si, essas práticas não são por descobrir-se que a congregação gosta de
adoração. N ão devemos confundir adoração músicas mais expansivas ou das reflexivas, de
com os nossos costumes de domingo na igreja. respostas barulhentas ou silenciosas —se a
D a mesma forma, não devemos confundir preferência é pela liturgia anglicana, batista,
adoração com sentimento. Pode ser o caso, e presbiteriana, metodista, pentecostal ou lute­
é freqüente, que as emoções aflorem durante rana —, mas, sim, se o culto está sendo eficaz
a adoração verdadeira. Às vezes, as lágrimas no sentido de transferir a atenção dos partici­
escorrem dos olhos ou a alegria transborda pantes para Deus.
do coração. Mas é possível que tais reações Ao refletir sobre esse tema, fui imensamen­
aconteçam sem que haja adoração. É possível te ajudado por C. S. Lewis. Com o membro da
ser tocado por uma música ou pela oratória, e Igreja da Inglaterra, Lewis ficou familiarizado

Ó/S
com várias formas do que nós, geralmente, adorador. N ão podemos fingir que estamos
chamamos de culto litúrgico. Apesar disso, adorando, mas, sim, adorar verdadeiramente,
ele não defendia uma liturgia rígida; defendia apresentando nosso coração com o livro aber­
apenas o que chamava de uniformidade, ter­ to diante de Deus.
mo que usou em contraponto à novidade no Segunda, temos de adorar o Senhor com
culto de adoração, que, segundo ele, na me­ base na revelação bíblica. O versículo ante­
lhor das hipóteses, atrai a atenção para a pró­ rior prossegue condenando aqueles que subs­
pria novidade, e na pior das hipóteses, para a tituíram as verdades da Escritura por manda­
pessoa que está dirigindo o louvor. mentos de homens. Jesus disse ao Pai: A tua
Lewis escreveu: palavra é a verdade (Jo 17.17). Se pretende­
mos adorar em verdade, a nossa adoração
Enquanto ainda tem de se esforçar para contar deve estar em acordo com os princípios e as
os passos, você não está dançando, mas apenas recomendações da Bíblia.
aprendendo a dançar. Um bom calçado é aque­ Um a pregação genuína expõe com fideli­
le que você não repara nele. Uma boa leitura se dade a Escritura. Seu propósito é direcionar a
torna possível quando você não precisa cons­ atenção dos fiéis para a verdade de Deus e
cientemente perceber seus olhos, ou a luz, ou o encorajá-los a conformar suas vidas de acor­
texto impresso, nem mesmo a própria escrita. do com ela.
O culto perfeito seria aquele que nós quase não A Confissão de Fé de Westminster fala da
percebêssemos que estamos nele; que a nossa “leitura das Escrituras com santo temor, a sã
atenção estivesse completamente em Deus. pregação da Palavra e a consciente atenção a
( L e w is , 1964, p. 4) ela, em obediência a Deus com entendimento,
fé e reverência, o cântico de salmos com gra­
Devemos orar para que Deus transforme tidão no coração...” como partes do “culto
qualquer modelo de culto, onde Ele realmen­ comum” oferecido a Deus (cap. 21.5).
te seja o foco das atenções. N o entanto, isso Quando a Reforma Protestante aconteceu
não significa que todos os ingredientes do no século 16 com Martinho Lutero, houve
momento de louvor na igreja sejam desprezí­ uma reabilitação imediata da Palavra de Deus
veis ou desnecessários. nos cultos. As doutrinas e os princípios da
A o definir adoração como em verdade, Palavra, que tinham sido postos de lado pelo
Jesus tinha no coração pelo menos três coisas. cerimonial vazio da Igreja medieval, voltaram
Primeira, devemos aproximar-nos de Deus à proeminência.
verdadeiramente, ou seja, honestamente ou de Calvino, particularmente, aprofundou es­
todo coração. Jesus se referiu assim ao povo de sa nova prioridade dos cristãos pela Palavra,
Sua época: mandando que os altares, os quais eram o cen­
tro da missa latina, fossem removidos e um
Este povo honra-me com os lábios, mas o púlpito para sustentar somente a Bíblia fosse
seu coração está longe de mim. E m vão, colocado no centro do local de adoração.
porém , m e honram, ensinando doutrinas Cada detalhe da nova arquitetura p ro ­
que são mandamentos de homens. testante conduzia os adoradores para o L i­
Marcos 7.6b,7 vro que continha, com exclusividade, o ca­
minho da salvação, assim com o os princípios
De acordo com Cristo, não existe adora­ sobre os quais a Igreja do Deus vivo devia
ção se não houver honestidade de coração no ser governada.
Terceira, aproximar-nos de Deus em ver­ quando confessamos nossos pecados e entra­
dade significa fazer isso cristocentricamente. mos em comunhão com Ele. A mesa do pão
Jesus disse aos discípulos: E u sou o cami­ sagrado, que estava no interior do Santo L u ­
nho, e a verdade, e a vida. N inguém vem ao gar, fala de Jesus conjo o pão da vida. O casti­
Pai senão por mim (Jo 14.6). Esse é um ponto çal de sete troncos revela Jesus como a luz do
difícil para muitos aceitarem, e, por ser difícil, mundo.
Deus se esmerou em toda a Bíblia para ensinar O altar do incenso é uma figura da oração.
que esse é o único caminho para se chegar a Ele. Por trás dele estava um grande véu que sepa­
N o Antigo Testamento, Deus deu a Moi­ rava o Santo Lugar do Santo dos Santos. O
sés instruções claras para edificar o taberná- véu estava rasgado em duas partes, represen­
culo [que mais tarde daria origem ao templo]. tando o momento da morte de Jesus, para
Mas o que era o tabernáculo? Ele não era demonstrar que Sua morte era o cumprimen­
um monumento de grande beleza e durabili­ to de todas aquelas figuras e a base de nossa
dade, não tinha vitrais decorados nem arcos; aproximação com o Deus Todo-Poderoso.
ao contrário, era feito de pedaços de madeira Finalmente, dentro do Santo dos Santos ha­
e peles de animais. Cada parte, porém, tinha via a Arca da aliança com seu lugar de perdão,
um significado. O tabernáculo ensinava o ca­ sobre o qual, uma vez por ano, no Dia da Ex-
minho de Deus. piação, o sumo sacerdote depositava o sangue
Observe seu altar de sacrifício, sua pia de de um cordeiro. Lá, simbolizado pelo espaço
cobre com água consagrada para purificação, acima do lugar de perdão, estava a presença de
o Santo Lugar e o Santo dos Santos. Deus, diante da qual podemos agora chegar
O altar representa a cruz de Cristo, que por causa da morte de Cristo em nosso lugar.
ensina que sem o derramamento de sangue N ão há outro caminho para chegar a
não há remissão de pecados (Hebreus 9.22) e Deus. Aproximar-se do Senhor por intermé­
dirige a atenção para o Cordeiro de Deus que dio de Jesus Cristo é fazer isso em verdade,
viria para tirar os pecados do mundo. porque Ele é a verdade. Devemos ir pelo ca­
A pia de cobre com a água consagrada é minho de Deus, e não por qualquer caminho
uma imagem da limpeza que Jesus providencia inventado pelo homem.
Sím b o l o s e s el o s d a salvação

capítulo anterior mencionou um Um sinal exterior pelo qual Deus sela em nos­
trecho da Confissão de Fé de sas consciências as promessas de Sua boa von­
^ Westminster, o qual falava sobre tade dirigidas a nós com a finalidade de susten­
a leitura das Escrituras e a sã p re­ tar a nossa fé; e nós, em retorno, confirmamos
gação com o partes do culto cristão comum. A a nossa consagração diante do Senhor, dos seus
Confissão prossegue tratando de outras áreas anjos e dos homens. ( C a l v i n o , 1960, p. 1172)
da adoração, dentre as quais estão “a devida
Q u a tr o e l e m e n t o s d e u m sa c r a m en to
administração e digna recepção dos sacra­
mentos” (cap. 21, 5b). De que maneira a Bíblia apresenta as dife­
Tem havido muitos debates na Igreja a renças entre determinadas práticas e os sacra­
respeito das ordenanças - a sua quantidade, mentos da Igreja, tais como a leitura das E s­
por exemplo, e se uma forma particular de crituras ou as orações, os quais não são
ministração deles é necessária para a existên­ sacramentais? O que constitui um sacramen­
cia de uma Igreja verdadeira. E m grau maior to? Entendo que há quatro elementos:
ou menor, entretanto, quase todos os cris­
tãos admitem que há ordenanças instituídas 1. Os sacramentos são ordenanças divinas
por Jesus, os quais devem ter seu lugar na instituídas pelo próprio Jesus. Nesse sentido, eles
adoração ou no culto comum do povo de são similares às outras ordenanças que também
Deus. fazem parte da devoção da Igreja, como a ora­
A palavra sacramento [ou ordenança] (as­ ção, por exemplo. Jesus nos recomendou orar.
sim como a palavra Trindade) não é encontra­ Os sacramentos, porém, diferem das coisas que
da na Bíblia. Esse termo ingressou na Teolo­ podemos fazer, mas que não são ordenanças.
gia por meio da Vulgata Latina, onde é Nós cantamos quando estamos reunidos e
costumeiramente usado para traduzir o vocá­ temos precedentes para isso, inclusive o exem­
bulo grego mysterion. Sacramento identifica plo de Jesus e Seus discípulos (Mc 14.26). N o
aquelas ordenanças (práticas) às quais o Se­ entanto, cantar hinos de louvor não é especifi­
nhor conferiu significância especial. camente um mandado pelo Senhor e, por isso,
Peter Lombard (1100— 1160) se referiu ao entra na categoria daquelas práticas permissí-
sacramento como “um sinal de uma coisa sa­ veis e, até mesmo, boas, mas não obrigatórias.
grada” ( F a ijr w e a t h e r , 1956, p. 338.) Os sacramentos ou ordenanças, sim, são
João Calvino, em Sua obra, As Institutas, obrigatórios: a Ceia do Senhor foi instituída
disse que um sacramento é: por Jesus na noite em que Ele foi traído, e o
batismo foi estabelecido pouco antes de Sua nossa posse, mas fomos comprados por um
subida aos céus. preço e, agora, pertencemos a Jesus.
Essa verdade foi um grande estímulo para
2. Os sacramentos são ordenanças em que Martinho Lutero, que passou por muitas tenta­
elementos materiais são utilizados como sím­ ções sem dúvida por causa do estresse de estar na
bolos visíveis da bênção de Deus. liderança da Reforma durante 28 anos. Nesses
N o batismo, o símbolo é a água. N a Ceia do períodos de crise, ele chegou a questionar a pró­
Senhor, há dois símbolos: o pão, que significa o pria Reforma, questionou sua fé e, até mesmo, o
corpo do Senhor Jesus Cristo partido por nós, e valor da obra do Senhor Jesus em seu favor.
o vinho, que simboliza Seu sangue derramado. Conta-se que, nesses dias maus, Lutero ti­
Essa característica é importante na com ­ nha sempre escritas em giz sobre sua mesa as
preensão da natureza de um sacramento, pois seguintes palavras: Baptizatus sum! (Eu fui
ela separa o batismo e a Santa Ceia das ou­ batizado!). Isso lhe dava confiança no fato de
tras práticas, as quais são boas, mas não sa­ que ele realmente era de Cristo e tinha-se iden­
cramentais, uma vez que não utilizam um tificado com Ele em Sua morte e ressurreição.
elemento material com o símbolo.
O elemento material diferencia o sacra­ 3. Os sacramentos ou ordenanças são veí­
mento da realidade que ele representa. U m culos de graça para alguém que os comparti­
símbolo é um objeto visível que aponta para lha com retidão.
uma realidade diferente [espiritual] e mais Ao afirmar isso, precisamos ser cuidado­
significante do que ele próprio. sos para assinalar que não estamos atribuindo
Um a placa onde está escrito Nova Iorque algum poder mágico ao batismo ou à cerimô­
aponta para N ova Iorque. U m cartaz onde se nia da Santa Ceia, como se a graça - a exem­
lê Beba Coca-Cola atrai a nossa atenção para plo da Medicina - fosse automaticamente
essa bebida. De forma análoga, o sacramento dispensada junto com os elementos materiais.
do batismo aponta para a nossa identificação Esse equívoco, o qual diz respeito tanto ao
com Cristo em Sua morte. A Ceia do Senhor sacramento quanto à graça, levou ao abuso
remete para a realidade de nossa comunhão dos sacramentos pela Igreja Católica e che­
com Ele. N o caso dos sacramentos, o símbolo gou a alcançar alguns grupos emergentes da
é secundário, exterior e visível. A realidade é Reforma. Nesses casos, o sacramento tomou
primária, interior e invisível. o lugar da fé como meio de salvação.
E bom ressaltar, no entanto, que nem o Dizer que os sacramentos não são mági­
batismo nem a Ceia do Senhor fazem de al­ cos ou mecânicos, entretanto, não quer dizer
guém um cristão ou mantêm alguém como que não tenham valor. Deus escolheu usá-los
tal. N a verdade, não nos tornamos cristãos para encorajar e fortalecer a fé dos crentes. As­
sendo batizados, nem permanecemos cristãos sim sendo, os sacramentos não só pressupõem
ao participarmos da comunhão periodica­ o reconhecimento da graça do Senhor por al­
mente. Esses símbolos simplesmente indicam guém que compartilha deles, mas também for­
alguma coisa que aconteceu ou está ocorren­ talecem a fé ao lembrarem ao cristão o que
do interna e invisivelmente. significam e a fidelidade de quem os instituiu.
U m símbolo indica propriedade, e os sa­ John M urray escreveu sobre isso:
cramentos ou ordenanças fazem isso também,
particularmente o batismo. Este mostra ao Batismo é um veículo de graça e “transfere”
mundo e a nós mesmos que não temos mais a bênção, porque é uma autenticação da graça de
Deus para nós. Ao aceitarmos essa autentica­ e eis que eu estou convosco todos os dias,
ção, descansamos na fidelidade de Deus, da­ até à consumação dos séculos. A m ém !
mos testemunho da Sua graça e, com isso, Mateus 28.18-20
fortalecemos a nossa fé [...]. Na Ceia do Se­
nhor, esse significado é aumentado e cultiva­ Está claro, por esses versículos, que o ba­
do, muito especialmente, na comunhão com tismo é um “sacramento iniciatório”, perten­
Cristo e na participação da virtude que pro­ cente à tarefa de fazer discípulos. O texto bí­
cede de Seu corpo e sangue. A Ceia do Se­ blico fala da autoridade ou do senhorio de
nhor representa esse mistério sendo continu­ Cristo e da pessoa batizada como alguém que
amente elaborado. Nós partilhamos do corpo reconhece Jesus e o professa.
e do sangue de Cristo por meio dessa orde­ Algumas dificuldades apareceram no trato
nança. Dessa forma, enxergamos que a ênfase desse tema, como demonstra a controvérsia
recai sobre a fidelidade de Deus, e a eficácia que o cerca1. U m bom início para nossos pro­
reside na resposta que damos a essa fidelidade. pósitos atuais pode ser o reconhecimento de
(M u r r a y , 1977, p . 367-368) que há duas palavras intimamente relaciona­
das a batismo no N ovo Testamento, as quais
4. Os sacramentos são selos, autenticações não têm necessariamente o mesmo significa­
ou confirmações da graça que eles significam. do. A primeira, bapto, significa mergulhar ou
Em nossos dias, o uso de selos é cada vez imergir. A segunda, baptizo, pode até signifi­
menos freqüente, mas os exemplos que temos car imergir, mas ela aparece também com vá­
sustentam essa ideia. rios outros sentidos que levam a um entendi­
O selo dos Estados Unidos da América mento adequado do que as passagens que
aparece em um passaporte. Ele é estampado trazem essa palavra querem expressar.
no papel de forma que o documento não pos­ N a Bíblia, baptizo tem sido geralmente
sa ser falsificado, validando o passaporte e transliterada para apresentar o termo batis­
mostrando que seu possuidor é um cidadão mo. Quando uma palavra é traduzida, com
dos Estados Unidos. frequência, pode indicar uma multiplicidade
Outros documentos são autenticados por de significados. Assim, se o termo baptizo ti­
um tabelião público, cujo selo é a confirma­ vesse uma tradução fácil, uma palavra óbvia
ção do juramento feito. teria sido usada para traduzi-la. Se baptizo
Esses sacramentos [a Ceia e o batismo] são significasse apenas imergir, então imergir se­
o selo de Deus sobre o atestado de que somos ria o vocábulo utilizado. Falaríamos de “João,
Seus filhos e estamos em comunhão com Ele. o Imersor” ou recitaríamos: Ide, e fazei discí­
pulos de todas as nações, “imergindo-os” em
B a t i s m o _______________________________________
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. N o
O primeiro dos dois sacramentos [ou or­ entanto esse não é o caso. Devemos, portanto,
denanças] instituídos por Jesus é o batismo. ir além do significado literal da palavra batis­
mo, como imersão, para alcançarmos um senti­
E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: do metafórico mais importante do termo.
É-m e dado todo o poder no céu e na terra. Sobre isso obtemos ajuda da literatura
Portanto, ide, ensinai todas as nações, bati- grega clássica. Os gregos usaram a palavra
zando-as em nome do Pai, e do Filho, e do baptizo desde o ano 400 a.C. até o segundo
Espírito Santo; ensinando-as a guardar século depois de Cristo. Em seus escritos, es­
todas as coisas que eu vos tenho mandado; se termo sempre apontava para uma mudança1

cT/cP
o u , como podemos apropriadamente dizer, U m exemplo desses textos é o em Marcos
uma mudança de identidade por algum meio. 16.16: Q uem crer e fo r batizado [baptizo] se­
Dessa forma, para dar alguns exemplos, rá salvo. As pessoas têm lido esse trecho e
ela pode referir-se a uma mudança ocorrida tirado a falsa conclusão de que, a não ser que
pela imersão de um objeto em um líquido, uma pessoa seja batizada (ou imersa) na água,
como no caso da roupa tingida; por se beber ela poderá ser salva. Deveríamos saber que tal
muito vinho e ficar bêbado, ou por um exces­ conclusão é equivocada por causa do ensina­
so de esforço e outras causas. mento do restante das Escrituras sobre a ma­
De todos os textos que podem ser citados neira como alguém é salvo: exclusivamente
da antiguidade, o que nos dá mais clareza sobre pela graça mediante a fé em Cristo. Se batismo
esse tema é um do médico e poeta grego Nican- fosse exigência para salvação, então o malfeitor
der, o qual viveu em tom o de 200 a.C. Em uma crucificado ao lado de Jesus estaria em apuros.
receita para fazer conserva, ele usou ambas as Somente quando abandonamos a ideia de
palavras. Nicander disse que o vegetal deveria, que o versículo 16 de Marcos 16 refere-se à
primeiro, ser mergulhado (bapto) em água fer- imersão água e começamos a pensar na iden­
vente e, só então, batizado {baptizo) na solução tificação do crente com Cristo, a declaração
de vinagre. Ambos tinham a ver com imergir o de Jesus sobre o batismo torna-se clara. R eco­
vegetal na solução. Mas o primeiro ato era tem­ nhecemos, então, que o Filho de Deus estava
porário, enquanto o outro, a operação de bati­ convidando os homens para uma crença ra­
zar o vegetal, produzia uma mudança perma­ cional nele, seguida de um compromisso pes­
nente. Poderíamos dizer que o batismo tinha soal: “Quem crer em mim e está identificado
identificado o vegetal com a salmoura.2 comigo será salvo”.
Esse sentido da palavra está claro em mui­ Então, Marcos 16.16 está em paralelo teo­
tos textos, tanto do Antigo com o do N ovo lógico com João 1.12:
Testamento. Por isso, em Isaías 21.4, em uma
tradução literal da Septuaginta, lemos: “O Mas a todos quantos o receberam deu-lhes
meu coração me turba, a desordem me bati­ o p od er de serem feitos filhos de Deus: aos
za”. O escritor foi mudado de um estado de que crêem no seu nome.
confiança tranqüila em Deus para um estado
de temor ao experimentar grande perversida­ Também com Apocalipse 3.20:
de e saber que terríveis juízos se seguiriam.
Semelhantemente, Gálatas 3.27 diz: Por­ Eis que estou aporta e bato; se alguém ou­
que todos quantos fostes batizados em Cristo v ir a minha voz e abrir a porta, entrarei
já vos revestistes de Cristo — os cristãos na em sua casa e com ele cearei, e ele, comigo.
Galácia haviam sido identificados com Jesus.
O fato de a palavra baptizo poder ser usa­ Todos os três textos (Mc 16.16; Jo 1.12; Ap
da metaforicamente não significa que ela deva 3.20) ensinam que deve haver por parte do in­
ser utilizada dessa maneira em passagens bí­ divíduo que crê uma identificação com Jesus.
blicas que tratem do sacramento do batismo. O utra passagem bíblica iluminada pelo
Isso quer dizer, na realidade, que tais passa­ significado m etafórico da palavra baptizo é
gens requerem, acima de tudo, um significado 1 Coríntios 10.1,2:
metafórico, porque somente um entendimen­
to do batismo como identificação com Cristo Ora, irmãos, não quero que ignoreis que
dá sentido a elas. nossos pais estiveram todos debaixo da

â/ J
nuvem ; e todos passaram pelo mar, e todos Primeiro, quando Jesus morreu na cruz, e
foram batizados em Moisés, na nuvem e Deus nos enxergou como tendo morrido com
no mar. Ele no que diz respeito ao nosso pecado. O Pai
levou o Filho à morte e, uma vez que todos os
Esse trecho da carta de Paulo é especial­ que creem estavam unidos a Ele pelo Espírito
mente relevante para o entendimento do ba­ Santo, desde antes da fundação do mundo eles
tismo, uma vez que Israel não esteve submer­ também foram levados à morte. O pecado de­
so nem no mar nem na nuvem. A nuvem les foi castigado, e podem agora entrar na pre­
estava atrás deles, separando-os dos egípcios sença de Deus como Seu povo justificado.
perseguidores. Os egípcios, sim, é que foram Segundo, há um prisma no qual a nossa
submersos no mar e se afogaram. O sentido união com Cristo em Sua morte refere-se à
nesse texto é uma mudança de identidade. nossa vida aqui e agora. Paulo declarou que
Antes de cruzarem o mar Vermelho, os he- os cristãos devem considerar-se mortos para
breus estavam em rebelião contra Moisés [e o pecado, mas vivos para Deus por intermé­
Deus, a quem ele representava]. A atitude ori­ dio de Jesus (Rm 6.11). P or meio de nossa
ginal deles mudou para uma atitude de obedi­ identificação com Cristo em Sua morte, o po­
ência e júbilo depois da travessia do mar3. der do pecado sobre nós é destruído, e fica­
mos livres para servir a Deus.
B a t iz a d o s em C r is t o _______________________ Também estamos identificados com Cris­
O estudo da palavra batismo aponta para to em Sua ressurreição, conforme declarou
o significado primário de batismo como um Paulo: Porque, se fom os plantados juntam ente
símbolo de nossa união com Cristo, por meio com ele na semelhança da sua morte, também
da obra do Espírito Santo. Dessa forma, en­ o seremos na da sua ressurreição (Rm 6.5). A s­
contramos muitas referências sobre ser bati­ sim, como no caso de nossa união com Cristo
zado com o ou pelo Espírito Santo, ou ser em Sua morte, essa identificação significa du­
batizado em Jesus ou em nom e de Jesus. as coisas: (1) a nossa ressurreição futura: —
Em que aspectos somos identificados com Porque, assim como todos m orrem em Adão,
Cristo no batismo? E m todos eles — em Seu assim também todos serão vivificados em
nascimento, Sua morte e ressurreição —, mas, Cristo (1 Coríntios 15.22); e (2) novidade de
primordialmente, em Sua morte e ressurreição. vida agora (o tema principal de Romanos 6).
Paulo falou sobre nossa identificação com N a carta aos Filipenses, Paulo escreveu a
Cristo em Sua morte quando escreveu: respeito de seu desejo de conhecê-lo [a Jesus],
e a virtude da sua ressurreição (Fp 3.10). O
O u não sabeis que todos quantos fomos apóstolo queria vivenciar o santo p od er da
batizados em Jesus Cristo fom os batizados ressurreição de Jesus Cristo enquanto se dedi­
na sua morte ? D e sorte que fom os sepulta­ cava ao serviço do Mestre.
dos com ele pelo batismo na morte; para Batismo é o nosso símbolo e o selo dessa
que, como Cristo ressuscitou dos mortos identificação com Cristo; portanto, um ates­
pela glória do Pai, assim andemos nós tam­ tado de nossa real segurança como povo de
bém em novidade de vida Deus (Ef 4.30).
Romanos 6.3,4 O livro de Ezequiel contém uma profecia
que se refere ao trato de Deus com Israel no
Somos batizados na morte de Cristo de fim da história. Seis homens entram em Jerusa­
dois modos. lém para pronunciar juízo sobre os habitantes,
mas, antes de eles adentrarem a cidade, um morte do Senhor, até que venha. Portan­
homem vestido de linho, com um tinteiro de to, qualquer que com er este pão ou b eber
escrivão à sua cinta, aparece para marcar com o cálice do Senhor, indignam ente, será
um sinal as testas dos homens que suspiram e culpado do corpo e do sangue do Senhor.
que gem em por causa de todas as abominações Examine-se, pois, o hom em a si mesmo, e
que se cometem no meio dela [Jerusalém] (Ez assim coma deste pão, e beba deste cálice.
9.4). E aos outros foi dito: Matai velhos, e jo­ 1 Coríntios 11.23-28
vens, e virgens, e meninos, e mulheres, até
exterminá-los; mas a todo o hom em que tiver A Ceia do Senhor possui, assim como o
o sinal não vos chegueis (v. 6). batismo, todos os elementos de um sacra­
Todos aqueles que creem no Senhor Jesus mento, porém se distingue do batismo, já que
são identificados pelo Espírito Santo de Deus este é um rito iniciatório (o qual testifica a
como de Cristo — cristãos — e estão seguros identificação primária com Cristo, sem a qual
nessa identidade. ninguém pode ser um cristão). A Santa Ceia é
A Bíblia diz: Todavia, o fundam ento de um sacramento contínuo, instituído para ser
D eus fica firm e, tendo este selo: O Senhor co­ observado repetidas vezes (todas as vezes que
nhece os que são seus, e qualquer que profere comerdes e beberdes) durante toda a caminhada
o nom e de Cristo aparte-se da iniqüidade cristã. Essa característica da santa ceia é vista em
(2 Tm 2.19). seu significado passado, presente e futuro.
O significado memorial da Ceia do Senhor
A C e i a d o S e n h o r __________________________ fica claro pelo termo em memória. A última
O segundo dos sacramentos protestantes é a Ceia do Senhor com os discípulos remete à Sua
Ceia do Senhor [ou Santa Ceia], que Jesus insti­ morte. Recordamos, em primeiro lugar, a Sua
tuiu na noite anterior à Sua crucificação. Essa expiação substitutiva: o pão repartido repre­
cerimônia está registrada em cada um dos evan­ senta o corpo do Senhor partido por nós, e o
gelhos sinóticos (Mt 26.17-30; Mc 14.12-26; Lc vinho, Seu sangue derramado em nosso favor.
22.7-23), mas o relato melhor e mais completo A expiação tem a ver com o requisito da
está em 1 Coríntios 11, em uma passagem em nossa reconciliação com Deus, e o termo subs­
que Paulo tentava corrigir alguns abusos envol­ titutiva indica que tal reconciliação foi obtida
vendo a Ceia, os quais aconteciam na igreja dos pela morte de outra pessoa em nosso lugar.
coríntios. A importante passagem nos diz: P or que Jesus morreu? A Bíblia ensina
que todos os que nasceram são pecadores,
Porque eu recebi do Senhor o que também por terem desobedecido à Lei de Deus:
vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite
em que fo i traído, tomou o pão; e, tendo Como está escrito: Não há um justo, nem um
dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; sequer. Não há ninguém que entenda; não
isto é o m eu corpo que é partido p or vós; há ninguém que busque a Deus. Todos se
fazei isto em memória de mim. Semelhan­ extraviaram e juntamente se fizeram inúteis.
temente também, depois de cear, tomou o Não há quem faça o bem, não há nem um só.
cálice, dizendo: Este cálice é o Novo Testa­ Romanos 3.10-12.
mento no m eu sangue; fa zei isto, todas as
vezes que beberdes, em memória de mim. Ela afirma também que a alma que pecar,
Porque, todas as vezes que comerdes este essa m orrerá (E z 18.4) e o salário do pecado é
pão e beberdes este cálice, anunciais a a morte (Rm 6.23).
Essa morte substitutiva não é simples­ Em vez disso, Deus, primeiro, repreendeu o
mente física, mas também espiritual. pecado e, em seguida, realizou um sacrifício.
M orte é separação. A morte física significa Com o resultado, Adão e Eva foram vestidos
que a alma e o espírito estão separados do com peles de animais sacrificados. Foi a pri­
corpo, e a espiritual, que a alma e o espírito meira morte executada por Deus e testemu­
estão separados de Deus. Merecemos tal se­ nhada por alguém.
paração como conseqüência do nosso peca­ Quando Adão e Eva viram aquilo, devem
do, mas Jesus se tornou nosso substituto ao ter ficado horrorizados. N o entanto, mesmo
entregar-se à morte física e espiritual em nos­ quando eles se assustaram com o sacrifício,
so lugar. devem ter também ficado maravilhados, pois
Um a ilustração desse princípio é encontra­ o que o Altíssimo estava mostrando era que,
da nos primeiros capítulos de Gênesis. Adão e embora eles merecessem morrer, era possível
Eva pecaram e experimentaram o terror de­ que alguém, no caso dois animais, morresse
pois disso, mas Deus lhes havia advertido: no lugar deles. Os animais pagaram o preço
de seus pecados, e eles foram vestidos com as
E ordenou o S E N H O R D eus ao bomem, peles desses animais com o uma lembrança
dizendo: D e toda árvore do jardim come- daquele fato.
rás livremente, mas da arv ore d^Oi c%encia Esse é o significado da substituição: a mor­
do bem e do mal, dela não comerás; por­ te de alguém em benefício de outro. Contu­
que, no dia em que dela comeres, certa­ do, devemos dizer também, com o a Bíblia
m ente morrerás. ensina que a morte de animais nunca poderia
Gênesis 2.16,17 livrar da penalidade do pecado (Hb 10.4).
Aquele acontecimento no Éden foi apenas um
A essa altura, Adão e Eva, provavelmente, símbolo de como o pecado seria definitiva­
não tinham uma ideia muito clara do que fos­ mente removido. N a verdade, o sacrifício efi­
se a morte, mas sabiam que era algo sério. Por caz foi realizado por Jesus Cristo, e nós reme­
isso, quando pecaram pela desobediência e moramos esse acontecimento na santa ceia.
ouviram Deus aproximando-se deles no jar­ N ós também recordamos de alguma coisa
dim, tentaram esconder-se. que Jesus sugeriu quando falou do vinho co ­
N o entanto, ninguém pode esconder-se de mo o sangue do Novo Testamento (Mc 14.24)
Deus. O Senhor os encontrou, mandou que e do Novo Testamento no m eu sangue [de Je­
saíssem do esconderijo e começou a tratar sus] (1 C o 11.25) e olhamos para aquela vitó­
com as transgressões deles. ria, sobre a qual Deus estabeleceu uma nova
O que deveríamos esperar como resultado aliança de salvação com Seu povo redimido.
dessa confrontação? Aqui está o Deus o qual Um a aliança [ou testamento] é uma pro­
disse aos nossos primeiros pais que, no dia em messa confirmada por um juramento ou uma
que pecassem, eles morreriam. Adão e Eva assinatura. Logo, quando Jesus falou da taça
caíram em pecado. como celebração de uma nova aliança, Ele
Em uma situação com o essa, poderíamos apontava para as promessas de salvação que
esperar a execução imediata da sentença. Se Deus fez a nós sobre o fundamento da morte
Deus os mandasse para a morte naquele m o­ do Seu Cordeiro. Essa salvação chega a nós
mento, tanto física com o espiritual, afastan­ somente pela graça.
do-os de Sua presença para sempre, teria sido A Ceia do Senhor tem um significado p re­
justo. Entretanto, não foi o que aconteceu. sente. Em primeiro lugar, o sacramento é uma
cerimônia na qual tomamos parte repetida­ A terceira é a visão de João Calvino e ou­
mente, sempre nos lembrando da morte do tros reformadores, segundo a qual Cristo está
Senhor até que Ele volte. Em segundo, é uma presente no culto de comunhão, mas apenas
ocasião para examinarmos nossa vida sob a espiritualmente, e não fisicamente. Calvino
luz de nossa de fé na morte de Cristo. Paulo chamou isso de a presença real, para indicar
recomendou: que uma presença espiritual é, sob todos os
aspectos, tão real quanto uma física.
Examine-se, pois, o hom em a si mesmo, e O que pensar dessas três teorias? De iní­
assim coma deste pão, e beba deste cálice. cio, devemos dizer que não pode haver que-
Porque o que come e bebe indignamente relas com a teoria memorial, uma vez que é
come e bebe para sua própria condenação, verdadeira até onde termina. A única questão
não discernindo o corpo do Senhor. é se há mais do que uma simples lembrança
1 Coríntios 11.28,29 no sacramento da ceia.
A divisão verdadeira está entre a visão da
N o âmago do significado presente da San­ maioria dos reformadores e a doutrina cató­
ta Ceia, está a nossa comunhão com Cristo, lica. Aqueles que acreditam em uma presença
por isso o termo culto de comunhão. Q uan­ física e literal (e Lutero era um, ainda que não
do se propõe a participar desse culto, o cris­ aceitasse a teoria da transubstanciação), ar­
tão o faz para se encontrar com Cristo e ter gumentam a partir de uma interpretação lite­
comunhão com Ele, a Seu convite. O exame ral das palavras de Jesus: Tomai, comei, isto é
acontece porque é hipocrisia fingir que se o m eu corpo. (M c 14.22b).
está em comunhão com o Santo, enquanto, Entretanto, isso não resolve a questão,
na verdade, alimentam-se pecados conscien­ porque expressões com o essas aparecem na
tes no coração. Bíblia frequentemente, com significados ob­
A maneira pela qual Jesus está presente na viamente figurativos ou representativos. P or
comunhão é uma questão que tem dividido a exemplo: as sete vacas formosas [gordas] são
Igreja cristã. H á três teorias acerca disso. sete anos (Gn 41.26a); tu és a cabeça de ouro
Primeira, Jesus não está presente de verda­ (Dn 2.38c); o campo é o m undo (M t 13.38a);
de — pelo menos, não mais do que Ele está a pedra era Cristo (1 C o 10.4c); e os sete cas­
presente todo o tempo em tudo. Para os que tiçais, que viste, são as sete igrejas (Ap 1.20c);
sustentam essa visão, a Ceia do Senhor tem E u sou a p o rta das ovelhas (Jo 10.7); E u sou
apenas um caráter memorial; é apenas uma a videira verdadeira (Jo 15.1a)4.
lembrança da morte de Cristo. O fato de Jesus estar usando linguagem
A segunda é a visão da Igreja Católica. figurativa [na Ceia], e não realizando um mila­
N ela, o corpo e o sangue de Jesus estariam gre de transubstanciação, deveria estar eviden­
literalmente presentes sob a aparência de te porque Seu corpo estava ali, presente, com
pão e vinho. Antes da missa, os elementos Seus discípulos quando Ele falou aquelas pala­
seriam simplesmente pão e vinho, mas, du­ vras. Hoje, Seu corpo ressuscitado está no céu.
rante a cerimônia, pela consagração, eles Um a razão para enxergar a presença de
seriam transformados. Em bora os fiéis per­ Cristo no sacramento como espiritual é que
cebam apenas o pão e o vinho, eles, na ver­ esse é o sentido que todas as outras promessas
dade, mastigariam e beberiam o corpo e o da presença dele conosco devem assumir nes­
sangue de Jesus. Esse “milagre” foi chama­ te tempo da Igreja.
do de transubstanciação. Bannerman escreveu sobre isso:
Promessas deste quilate — Eis que estou con- verdadeiramente é comida, e o m eu san­
vosco todos os dias até a consumação do século; gue verdadeiramente é bebida.
Onde dois ou três estiverem reunidos em meu João 6.53-55
nome, lá eu estarei; Eis que estou aporta e bato;
se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Se queremos sinônimos para comer e be­
entrarei em sua casa e com ele cearei, e ele, co­ ber, nós os encontramos em João 6 em con­
migo — e outras como essas dão-nos muita ceitos tão diferentes quanto crer (v. 29,35,47),
base para afirmar que Cristo, mediante Seu vir (v. 35), v er (v. 40), ouvir e aprender de (v.
Espírito, está presente em suas ordenanças para 45). Todos indicam uma resposta a Jesus. Os
a fé do crente, ministrando bênção espiritual e termos com er e beber enfatizam que, pela fé,
graça. Mas não há nada que nos levaria a esta­ esse alimento tem de ser tão real quanto se
belecer uma diferença ou distinção entre a pre­ alimentar literalmente.
sença de Cristo na Ceia e a presença dele em O terceiro significado da Santa Ceia é futu­
Suas outras ordenanças, a não ser como a ma­ ro. Paulo disse: Porque, todas as vezes que co­
neira dessa presença é considerada. merdes este pão e beberdes este cálice, anunciais
A eficácia da presença do Salvador pode ser a morte do Senhor, até que venha (1 C o 11.26).
diferente na maneira de transmitir mais ou me­ O Senhor havia sugerido a mesma coisa
nos a graça salvadora, de acordo com a nature­ quando falou aos discípulos que comiam a
za da ordenança, e o nível da fé do cristão. Po­ última refeição com Ele: E m verdade vos digo
rém o modo como tal presença é comunicada é que não beberei mais do fruto da vide, até
sempre o mesmo, acontecendo por meio do àquele Dia em que o b eber novo, no Reino de
Espírito de Cristo, para a edificação da fé do D eus (Mc 14.25).
crente. ( B a n n e r m a n , Vol. 2,1960, p. 158-159) Falamos da presença real de Jesus no culto
como nós a conhecemos atualmente, desejamos
Alguns versículos bem conhecidos de dar uma resposta amorosa a Ele e servir-lhe. N o
João 6 também falam da fé em Jesus e de um entanto, admitimos prontamente que, por ve­
alimento espiritual nele, embora não tratem zes, isso é difícil para nós e que temos a sensação
literalmente da Ceia do Senhor, já que o sa­ de que o Senhor não está presente. Seja por cau­
cramento não havia sido ainda instituído. sa do pecado, da fadiga ou simplesmente da
falta de fé, Cristo parece estar longe.
Jesus, pois, lhes disse: N a verdade, na ver­ Embora continuemos na vida cristã, parti­
dade vos digo que, se não comerdes a carne cipando dos cultos, ansiamos por aquele dia em
do Filho do H om em e não beberdes o seu que o veremos face a face e seremos semelhantes
sangue, não tereis vida em vós mesmos. a Ele (1 Jo3.2). O culto de santa ceia é uma lem­
Q uem come a minha carne e bebe o meu brança deste dia. É o anúncio das grandes bodas
sangue tem a vida eterna, e e u o ressuscita­ do Cordeiro, o encorajamento para a fé e o estí­
rei no último Dia. Porque a minha carne mulo para um nível mais elevado de santidade.
N otas

1 Nem todas essas dificuldades são tratadas neste capítulo. Muitas delas dizem respeito a outras áreas da teologia,
como, por exemplo, a validade do batismo infantil. Para quem desejar mais informações sobre o assunto, há muitas
boas obras a respeito. Uma das mais importantes sobre batismo é o livro The teaching o f the Church regarding
baptism [O ensino da Igreja sobre o batismo], de Karl Barth, que corrobora muitas doutrinas reformadas sobre
batismo, mas é contra o batismo infantil. Pouco depois da publicação do livro de Barth, um de seus colegas na
Universidade da Basiléia, Oscar Cullman, escreveu o livro Baptism in the N ew Testament [Batismo no Novo Testa­
mento], discordando de Barth. Joachim Jeremias escreveu uma obra-prima chamada Infant baptism in the early fou r
centuries [O batismo infantil nos primeiros quatro séculos], confrontado por Kurt Aland em D id the early Church
baptize infants? [A Igreja primitiva batizava crianças?]. A resposta de Jeremias a Aland está em The origins o f infant
baptism [As origens do batismo infantil]. Duas outras obras boas sobre o tema são: The biblical basis f o r infant
baptism [A base bíblica para o batismo infantil], de Dwight Hervey Small, e Baptism in the N ew Testament [Batismo
no Novo Testamento], de G. R. Beasley-Murray. Este último tem uma bibliografia de 234 itens.
2 Ver o artigo sobre bapto, baptizo, de Oepke, em K i t t e l , Gerhard (ed.). Theological Dictionary o f the N ew Testa­
ment [Dicionário Teológico do Novo Testamento]. Michigan: Eedermans, 1964.
3 Para uma discussão semelhante dessas e outras passagens ver Adams, Jay E. Meaning & M ode o f Baptism [Significa­
do e modo do batismo]. New Jersey: Presbiterian and Reformed Pub. Co., 1975.

4 Para uma discussão desses e outros textos, leia A Igreja de Cristo, de Bannerman, vol. 2, p. 147-52.
D ons e s p ir it u a is

ma das marcas da Igreja é a uni­ importância para o funcionamento adequado


dade. Essa marca é inerente à do Corpo de Cristo no mundo.
própria definição de igreja. Essa dupla ênfase, sobre a unidade e a di­
A Igreja é: (1) alicerçada no versidade, aparece em pontos importantes
Senhor Jesus C risto; (2) chamada à existência dos escritos no N ovo Testamento. Por exem­
pelo Espírito Santo; e (3) composta de diver­ plo, em Efésios, um bom número de passa­
sas pessoas que se tornam um único povo em gens fala com ardor de nossa unidade.
Jesus Cristo.
Se a Igreja está alicerçada em Jesus Cristo, H á um só corpo e um só Espírito, como
ela tem um alicerce, o Senhor, e uma teologia também fostes chamados em uma só espe­
centrada nele. Se ela veio à existência pelo E s­ rança da vossa vocação; um só Senhor,
pírito Santo, a experiência básica do povo de uma só fé , um só batismo; um só D eus e
Deus é a mesma. Pai de todos, o qual é sobre todos, e por
[Do ponto de vista humano] Os cristãos todos, e em todos.
têm procedências diferentes, porém são cha­ Efésios 4.4-6
mados a um relacionamento com Deus pela
obra de regeneração, justificação e adoção. Se Todavia, tão logo Paulo articula essa ver­
eles se tornaram um novo povo, eles foram dade, ele começa a falar de diversidade na área
obviamente destacados do mundo com o um dos dons.
povo separado e santo.
Um a pessoa que se torna cristã observa Mas a graça foi dada a cada um de nós se­
essa unidade. Antes, a pessoa vivia por sua gundo a medida do dom de Cristo [ . . . ] £ ele
conta. Agora, em Cristo, isso mudou. Com o mesmo deu uns para apóstolos, e outros para
Paulo disse aos efésios: Assim que já não sois profetas, e outros para evangelistas, e outros
estrangeiros, nem forasteiros, mas concida­ para pastores e doutores, querendo o aper­
dãos dos Santos e da família de D eus (Ef 2.19). feiçoamento dos santos, para a obra do mi­
N ão é preciso ser membro de uma igreja nistério, para edificação do corpo de Cristo.
local por muito tempo para que as diferenças Efésios 4.7,11,12
dentro dela apareçam. Algumas são em de­
corrência do pecado e, portanto, inaceitáveis. Nos versículos seguintes, Paulo ilustra esse
Outras são diferenças naturais, verdadeiros ponto, falando de um C orpo que, embora se­
presentes de Deus para a Igreja, e de grande ja único, tem muitos membros em operação.
E m 1 Coríntios, os exemplos de unidade e T odo s têm um dom _________________________
diversidade estão misturados: Ora, há diver­ Dons espirituais têm sido muito discuti­
sidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E dos nas igrejas ultimamente. Algumas déca­
há diversidade de ministérios, mas o Senhor das atrás, havia pouca discussão sobre esse
é o mesmo. E há diversidade de operações, tema.
mas é o mesmo D eus que opera tudo em to­ R ay C. Stedman, pastor de uma igreja em
dos (1 C o 12.4-6). Paio Alto, Califórnia, define dom espiritual
Depois de listar nove dons, o apóstolo como “uma capacidade para o ministério que
conclui: Mas um só e o mesmo Espírito opera é dada a todos os cristãos verdadeiros, sem
todas essas coisas, repartindo particularmente exceção; algo que a pessoa não tinha antes de
a cada um como qu er (1 C o 12.11). tornar-se cristã” (S t e d m a n , 1972, p. 39).
Um a ênfase parecida é encontrada na carta Essa definição merece ser examinada em
de Paulo aos Romanos: detalhes. Primeiro, ela define dom espiritual
como uma graça concedida por Deus ao cris­
Porque assim como em um corpo temos tão, com o o termo dom espiritual sugere.
muitos membros, e nem todos os membros N o N ovo Testamento, a palavra que é
têm a mesma operação, assim nós, que so­ com frequência usada para definir dom é cha-
mos muitos, somos um só corpo em Cristo, risma, ou charismata no plural. A palavra
mas individualmente somos membros uns carismático se origina do substantivo grego
dos outros. charis, que significa graça.
Romanos 12.4,5 Um a vez que graça é um favor imerecido
de Deus, a ênfase é que esses dons espirituais
Esses versículos ensinam que a unidade e a são distribuídos por Deus ao Seu bel-prazer.
diversidade são necessárias para a saúde da U m cristão recebe determinado dom, ou­
Igreja. Sem a unidade, o relacionamento com tro cristão recebe um dom diferente, e alguns
Jesus, por meio da operação do Espírito de recebem mais de um dom. Paulo enfatizou isso
Deus, simplesmente não há Igreja. Permanece­ no versículo já citado: Mas um só e o mesmo
mos em nossos pecados. Por outro lado, sem Espírito opera todas essas coisas, repartindo par­
diversidade, a Igreja não pode ser saudável, e ticularmente a cada um como quer (1 Co 12.11).
com certeza não funcionará de forma adequa­ O segundo ponto é que, ao dizer que um
da; será como um corpo sem braços ou pernas. dom espiritual é alguma coisa que os cristãos
Até aqui, tudo que foi dito sobre a Igreja não tinham antes de tornarem-se cristãos,
pode ser visto como estando na área da uni­ Stedman diferenciou o dom espiritual daquilo
dade: a definição de Igreja, suas marcas, a na­ que chamaríamos de talento natural. Talentos
tureza de sua adoração, os sacramentos. Essas naturais também são dádivas de Deus. Somos
coisas são as experiências de todos que for­ ensinados que toda boa dádiva e todo dom
mam o povo de Deus. perfeito vêm do alto (Tg 1.17). A diferença é
Agora, vamos analisar as áreas da diversi­ que os talentos são concedido a cristãos e a
dade. Primeiro, vamos focalizar os dons espi­ não cristãos.
rituais, incluindo o papel dos líderes ao ajudar E verdade também que um cristão pode
os outros a descobrir e desenvolver esses exercitar um dom espiritual utilizando um
dons. Segundo, focalizaremos os ministérios talento natural, com o alguém que exercita o
da Igreja, e como eles se ajustam no quadro dom de ajudar por meio de um talento para
mais amplo. carpintaria, a gastronomia, as finanças ou coisa
similar, ou alguém que exercita o dom de exor­ U m terceiro ponto da definição de dons
tação [os profetas cumprem o papel de exor­ espirituais do pastor Ray C. Stedman é que to­
tar] por meio de uma habilidade natural para dos os cristãos recebem pelo menos um dom.
se aproximar das pessoas. O texto de 1 Corín- Paulo disse: Mas a manifestação do Espíri­
tios 12 fundamenta isso: to é dada a cada um para o que fo r útil (1 Co
12.7). Pedro, por sua vez, escreveu: Cada um
N a Igreja, D eus pôs tudo no lugar certo: administre aos outros o dom como o recebeu,
em primeiro lugar, os apóstolos; em segun­ como bons despenseiros da multiforme graça
do, os profetas; e, em terceiro, os mestres. de D eus (l Pe 4.10). O fracasso em enxergar
E m seguida pôs os que fazem milagres; essa verdade levou na história da Igreja ao
depois os que têm o dom de curar, ou de que John Stott chamou de domínio clerical
ajudar, ou de liderar, ou de falar em lín­ sobre a laicidade.
guas estranhas. Isso desenvolveu dentro da Igreja e por va­
1 Coríntios 12.28 (N T L H ) riadas razões um tipo de divisão entre o clero e
os leigos na qual os clérigos deviam liderar e
N o entanto, dons espirituais não são ta­ executar o trabalho do ministério cristão, en­
lentos. Os dons espirituais são dados por quanto o povo (que não pertence ao clero, daí
Deus para fins espirituais, e apenas para cris­ o significado da palavra laicidade) devia seguir
tãos. Eles são entregues para o aperfeiçoa­ com submissão e, é claro, dar dinheiro para
mento dos santos, para a obra do ministério, sustentar o clero e seu trabalho.
para edificação do corpo de Cristo (Ef 4.12). Com o um exemplo desse ponto de vista,
U m exemplo da relação entre um dom es­ John Stott mencionou uma encíclica papal de
piritual e um talento é encontrado no Antigo 1906 intitulada Vehem enter Nos: “O único
Testamento no caso de Bezalel, um dos artífi­ direito das massas é o de deixar-se guiar, e de
ces que trabalharam na confecção dos objetos seguir seus pastores como um rebanho sub­
de arte do tabernáculo judaico. O Senhor dis­ misso” (S t o t t , 1969, p. 9).
se deste homem: A Igreja, como povo de Deus, não deve
ser assim. Onde essa visão prevalece, a Igreja
E o enchi do Espírito de Deus, de habilida­ e seu ministério sofrem com a perda do exer­
de, de inteligência e de conhecimento, em cício dos dons dados aos leigos. Dons são
todo artifício, para elaborar desenhos e para serem usados no serviço ao próximo. Os
trabalhar em ouro, em prata, em bronze, leigos servem à Igreja e ao mundo. O s pasto­
para lapidação de pedras de engaste, para res devem servir aos leigos, porém, com par­
entalho de madeira, para toda sorte de ticularidade, ajudando-os a desenvolverem e
lavores. usarem esses dons. Com o disse Stott:
Êxodo 31.3-5 (ARA)
Os pastores não devem separar-se dos membros
Bezalel tinha um talento natural de artífi­ da igreja como se estes fossem uma classe de cris­
ce, mas recebeu também o dom espiritual de tãos diferenciada; os pastores são ministros do
conhecimento ou inteligência, que o dirigiu povo porque eles próprios pertencem ao povo ao
para o caminho onde seus talentos naturais qual são chamados a servir (St o tt , 1969, p. 47).
deveriam ser usados. P or causa do dom espi­
ritual, ele foi capaz de produzir objetos con­ Esses três pontos sobre a natureza dos
sagrados para o tabernáculo. dons espirituais nos mostram como eles são
importantes. Os dons são importantes teolo­ contêm nove dons, embora estes não sejam os
gicamente, porque nos levam a um entendi­ mesmos nas duas listas. Ao todo, podem ser 19
mento mais completo da graça de Deus. Eles dons mencionados, mas este não é um número
são importantes pessoal e experimentalmen­ absoluto: palavras diferentes podem ser usa­
te, porque têm influência direta sobre o servi­ das, de modo concebível, para descrever os
ço que o cristão presta ao Senhor, assim como mesmos dons ou dons parecidos, e pode ainda
sobre outros serviços dentro da Igreja. Eles haver dons que não foram mencionados.
são importantes institucionalmente, pois mos­
tram como os pastores e os leigos deveriam 1. Apóstolos e profetas. Os primeiros nas
relacionar-se uns com os outros. listas de Efésios 4.11 e 1 Coríntios 12.28-30
são os dons ministeriais de apóstolos e profe­
O QUE SÃO OS DONS?
tas. Alguns que têm escrito sobre os dons
Os dons do Espírito estão listados em tentam mostrar que tanto apóstolos como
quatro capítulos separados do N ovo Testa­ profetas estão presentes hoje na Igreja. Eles
mento, um desses capítulos em dois lugares assinalam que a palavra apóstolo não diz res­
diferentes. Isso totaliza cinco listas sobre os peito apenas àqueles porta-vozes cheios de
dons (Ef 4.11; 1 C o 12.8-10; 1 C o 12.23-30; autoridade comissionados diretamente por
Rm 12.6-8; e 1 Pe 4.11). Jesus; ela pode referir-se também a qualquer
Essas listas variam no que diz respeito aos um que é enviado com o uma testemunha, em
dons listados. A mais curta é a em 1 Pedro particular para estabelecer igrejas. Da mesma
4.11, que contém apenas dois dons: a fala e a forma, profeta não se refere apenas a alguém
administração. As listas em 1 Coríntios 12 que recebe sempre uma palavra inspirada de

Efésios 4.11 1 Coríntios 12.8-10 1 Coríntios 12.28-30 Romanos 12.6-8 1 Pedro 4.11
Apóstolos Apóstolos
Profetas Profetas Profecia
Ministério Administrar
Evangelistas
Sabedoria
Conhecimento
Pastores
Mestres Mestres Ensino Falar
Exortar

Cura Cur,i::
Operação de maravilhas Operação de maravilhas
[Profecial
Discernimento de espíritos
Contribuir
Socorro Ajuda

Misericórdia
Governos
Línguas Línguas
Interpretação de línguas Interpretação de línguas
* Em í Coríntios 12.28-30, operaçao de maravilhas está, na verdade, listada antes de cura. Quadro 2.
Deus [como no AT], e sim a alguém que fala The Holy Spirit [O Espírito Santo], Graham
com ousadia em Seu nome (1 C o 14). observa que a única pessoa em toda a Bíblia
Esses pontos têm sido bem defendidos, que foi, na verdade, chamada de evangelista é
porém, a meu ver, não é este o uso das palavras Filipe, e ele era um diácono. De forma pessoal,
nas duas listas mencionadas (Ef 4.11; 1 C o posso afirmar que conheci muitos que rece­
12.28-30). Nessas listas, tanto apóstolos como beram esse dom, e nenhum destes era um mi­
profetas devem ser tomados no sentido mais nistro ordenado; eram pessoas que gostavam
técnico. Nesses textos, apóstolo se refere àque­ de falar de Jesus, e eficientes na tarefa de co­
las testemunhas que foram especificamente municar a salvação às pessoas.
comissionadas por Jesus para estabelecer a
Igreja sobre uma base adequada, e profetas se 3. Pastores, mestres e o dom de exortação.
referem àqueles que receberam a mensagem de Pastorear, ensinar e exortar foram colocados
Deus e a registraram nas páginas do que cha­ em uma mesma categoria porque muitas ve­
mamos Antigo e N ovo Testamento. zes caminham juntos e podem ser considera­
Nesse sentido, hoje, não temos mais após­ dos apenas um dom.
tolos ou profetas. O que não quer dizer que Em Efésios 4.11, as palavras pastores e
estejamos desprovidos dos benefícios desses mestres podem até ser unidas devido à nature­
dons de Deus para a comunidade cristã. za do estilo grego nessa frase, de forma que
poderíamos falar do dom ministerial de
2. Evangelistas. A segunda categoria de “pastor-m estre”: Foi ele quem “deu dons às
dons contém apenas um item. Obviamente, pessoas”. E le escolheu alguns para serem
esse dom ministerial não se extinguiu. U m apóstolos, outros para profetas, outros para
evangelista é alguém que tem capacidade es­ evangelistas e ainda outros para pastores e
pecial para comunicar o evangelho da salva­ mestres da Igreja (E f 4.11 n t l h ).
ção por intermédio de Jesus Cristo. Pastor se refere a alguém que tem uma su­
A existência de tal dom não significa que pervisão pastoral sobre outros. O termo está
aqueles que não o receberam estão eximidos baseado na ideia de pastoreio e remonta ao
da obrigação de falar de Jesus aos outros. Pelo modelo de Jesus, que descreveu a si mesmo
contrário, essa é uma tarefa comum a todos. como o bom Pastor (Jo 10.11), e que é reco­
A Grande Comissão1 o declara. N o entanto, nhecido com o o grande Pastor (H b 13.20) e o
existem os que são, em especial, chamados Sumo Pastor das ovelhas (1 Pe 5.4).
para esse ministério. Com o no caso dos evangelistas, muitos
O evangelista não tem de ser uma pessoa têm uma chamada pastoral, mas não foram
muito inteligente ou muito letrada. É verdade ordenados. P or exemplo, há anciãos, diáco-
que os evangelistas devem conhecer bem a nos e professores de escola bíblica que têm
mensagem que pregam. Eles devem estar ap­ obrigações envolvendo supervisão espiritual,
tos a responder às perguntas sobre ela. P o ­ ou seja, possuem o dom ministerial de pasto­
rém, seu dom primordial está em ser capaz de rear, porém não o executam com o pastores
comunicar a base do evangelho de forma clara ordenados.
e eficiente. A palavra mestre se explica em si mesma.
O ministério de um evangelista não está É um dom importante e pode ser um dos
limitado àqueles que são com o Billy Graham. mais necessários no atual momento da Igreja.
(É um dom até mais freqüente nos leigos.) Vemos a importância do dom de ensinar
Em seu estudo dos dons espirituais no livro quando reconhecemos que essa é uma ideia
chave na versão de Mateus da G rande Comis­ conhecimento espiritual, baseado num cuida­
são. Jesus disse: Portanto, ide, ensinai todas as doso estudo da Bíblia, e sabedoria para apli­
nações, batizando-as em nome do Pai, e do cá-lo de forma adequada.
Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a
guardar todas as coisas que eu vos tenho m an­ 4. Fé. A palavra f é é uma das mais impor­
dado (M t 28.19,20). Aqueles que são trazidos tantes no vocabulário cristão. Ela tem utiliza­
para a fé em Cristo devem ser discipulados ções variadas. Ela pode referir-se à fé salvado­
por meio do ensino. ra (Ef 2.8); ao conteúdo do evangelho (Rm
E m Romanos 12.8, a exortação vem após 10.8; A t 6.7; 13.8; 14.22); pode significar fide­
o ensino. Além da instrução na Palavra, o dis­ lidade (G1 5.22); e pode referir-se à confiança
cípulo precisa ser encorajado a prosseguir nas em Deus na adversidade (Ef 6.16).
coisas que aprendeu. De novo, esta é uma res­ N a lista de dons em 1 Coríntios 12.8-10,
ponsabilidade pastoral. Quando Paulo utili­ fé se refere provavelmente à capacidade de
zou a palavra exortar em Romanos, ele pode, antever alguma coisa que Deus prometeu e
de fato, ter tido em mente os pastores, já que agir como se isso já estivesse presente. Sted-
a palavra pastor não aparece em outra passa­ man afirmou que fé, nesse sentido, é o que
gem no texto. hoje nós em potencial chamaríamos de visão:
O utra lista dos dons deveria ser conside­ “E a capacidade de ver algo que precisa ser fei­
rada neste ponto, uma vez que ela projeta luz to, e crer que Deus o fará, muito embora aqui­
sobre os dons nesta categoria. Em 1 Coríntios lo pareça impossível” (S t e d m a n , 1972, p.43).
12.8,9, Paulo não mencionou qualquer dos Acredito que a f é em 1 Coríntios 12.8-10
dons já considerados que aparecem primeiro pode ser melhor explicada pelos escritos de
nas outras passagens paulinas: apóstolos, p ro­ Champlin:
fetas, evangelistas, pastores e mestres em
Efésios 4.11; apóstolos, profetas e mestres Às vezes a fé aparece como uma capacidade
em 1 Coríntios 12.28-30; profecia, ministério, espiritual. Nessa categoria podemos classificar
ensino e exortação em Romanos 12.6-8. Em o dom da fé. Trata-se de um poder especial,
vez disso, ele mencionou o dom de sabedoria alicerçado sobre uma confiança incomum em
e conhecimento ou ciência. É provável que Cristo: é uma das manifestações do Espírito
nessas passagens o apóstolo estivesse substi­ Santo. Pode realizar grandes obras espirituais.
tuindo estes dois itens por sua lista mais lon­ (Champlin, 2002, p. 616.).
ga. Sabedoria e conhecimento são dons em
particular associados com os ministérios Os heróis da fé listados em Hebreus 11
evangelístico, pastoral e de ensino. tinham esse dom. Em cada um dos casos, a
Esse fato é útil para se tentar determinar se vida deles demonstrou a certeza de coisas que
Deus deu a um indivíduo o dom ministerial de se esperam, a convicção de fatos que se não
evangelista, pastor ou mestre, tema este que vêem (H b 11.1 a r a ).
estudaremos em profundidade mais adiante. Abel, a quem havia sido prometida salva­
Podemos perguntar: “Essa determinada ção por meio da semente da mulher que es­
pessoa tem sabedoria espiritual? Tem o dom magaria a cabeça de Satanás, testificou sua fé
do conhecim ento}” O ponto é útil também naquela realidade futura pela obediência a
por indicar as áreas em que se pode orar de respeito do sacrifício de sangue.
forma eficaz por nossos pastores. Podemos Enoque creu em Deus e viveu uma vida
orar para que Deus dê a eles verdadeiro justa.
N oé recebeu a palavra de Deus sobre uma qual os cristãos estão divididos, uma vez que
destruição futura dos incrédulos e agiu sobre os dons de curas e de milagres podiam ser ma­
esta convicção ao construir a arca na qual ele nifestados pelos apóstolos, profetas, evange­
e sua família foram salvos. listas, associados ao dom da fé.
Abraão teve fé por toda a sua vida. Ele H á quem defenda [baseado em fatos] que
deixou sua terra natal por uma terra que não os dons de curas e de milagres ainda existam,
podia ver, enfrentou provações na terra da porém, manifestem-se com pouca frequência.
promessa, mudou de nome como um símbolo Em nenhum fragmento, Paulo indica que
de sua fé na capacidade de Deus para dar-lhe as curas, os milagres ou as línguas cessariam.
um filho quando ele e Sara já haviam passado Além do que, relatos de curas e outros mila­
da idade para conceber, não hesitou em ofere­ gres existem em todos os períodos da história
cer Isaque como sacrifício sobre o altar no da Igreja. Sendo assim, não ousamos limitar
Monte Moriá - tudo porque acreditavam que Deus, declarando que hoje Ele não possa dis­
Deus era capaz de cumprir o que prometia, tribuir dons de curas e milagres. Ele pode.
comparar com Romanos 4.21. P or outro lado, mesmo que hoje tenhamos o
Depois de mencionar essas pessoas e ou­ direito de esperar curas e receber um milagre,
tros exemplos de fé extraordinária, como a de é legítimo dizermos que esses dons não se
Isaque, Jacó, José, Moisés, Raabe, Gideão, manifestam tão frequentemente com o na
Baraque, Sansão, Jefté, Davi e Samuel, o autor época da Igreja primitiva.
da carta aos Hebreus declarou: Todos estes
m orreram na fé , sem terem recebido as pro­ 6. Capacidade para discernir espíritos. O
messas, mas, vendo-as de longe, e crendo nelas dom de discernir os espíritos é mencionado
(Hb 11.13). em apenas um lugar nas várias listas de dons.
Isaque Watts se referiu a essas pessoas na Apesar disso, é de suma importância. Ele se
estrofe de seu hino Sou eu um soldado da cruz? relaciona com o dom de profecia e o de mestre.
Em 1 Coríntios 12.10, o discernimento de
Os santos, nesta guerra gloriosa espíritos aparece depois da referência à pro­
Vencerão, mesmo com a morte fecia, o que nos faz pensar que Paulo estava
Eles veem a vitória dadivosa referindo-se à capacidade de discernimento
E a agarram com seus olhos. para distinguir se uma pessoa que fala em
nome de Deus está, na verdade, inspirada
5. Curas e milagres. Os dons de curas epelo Espírito Santo, ou se está falando em
milagres são referidos em dois trechos dife­ sua própria força natural, ou inspirada por
rentes de 1 Coríntios 12 e, com certeza, estão algum demônio. P or outro lado, o discerni­
relacionados. Essa conjunção de dons é im­ mento de espíritos pode referir-se simples­
portante na interpretação da natureza dos mente a capacidade de discernir a verdade ou
dons de curar. Em bora a palavra cura (na ver­ o engano da instrução de um mestre religio­
dade, curas, no plural) possa referir-se aos so (ver 1 João 4.1-6).
vários tipos de curas - emocional ou física; Pedro exerceu esse dom quando enxergou
cura por meios naturais ou miraculosos - a o engano em Ananias e Safira: Ananias, por
utilização da palavra nestes versículos se refe­ que encheu Satanás o teu coração, para que
re com exclusividade aos meios miraculosos. mentisses ao Espírito Santo? [...] Por que é
A questão que se impõe é com o esses dons que entre vós vos concertastes para tentar o
existem nos dias de hoje, um assunto sobre o Espírito do Senhor? (At 5.3,9).
Hoje, algumas pessoas são, com facilida­ delegar tarefas e supervisionar para que todas
de, enredadas por qualquer novidade. Outras as incumbências sejam cumpridas. Por outro
não. Essas últimas podem ter o dom de dis­ lado, há ocasiões quando os dons necessários e
cernir os espíritos. A Igreja deve identificar as pessoas certas não parecem estar presentes.
essas pessoas e solicitar seu julgamento nos Então, aparece alguém que enxerga como o
casos em que o discernimento verdadeiro for trabalho poderia ser feito e o faz com as con­
preciso. dições disponíveis.
Neste ponto, precisamos evitar dois er­
7. Ajudadores. A referência aos ajudado- ros. U m é o erro de sermos super espirituais,
res, que têm o dom de socorro, em 1 Corín­ desconfiando da administração com o se fos­
tios 12.28, está amplificada em Romanos se coisa da carne, imaginando que Deus tra­
12.7,8 pelos dons de contribuir (financeira­ balhe de outro modo. As pessoas que pensam
mente), presidir, exercer misericórdia e ainda dessa maneira, ou são intimidadas pelos que
prestar serviço ao próximo. veem as coisas dessa forma, quase sempre fa­
Poderíamos acrescentar muito mais coi­ lham ao exercer a liderança que Deus deu
sas. Alguns indivíduos expressam esse dom para elas.
ao fazer o trabalho necessário para manter O outro erro está em pensar que o que é
uma casa, um negócio ou uma igreja funcio­ feito na área da liderança é sempre da parte de
nando de forma exemplar. Eles percebem o Deus, ou que Ele só está operando quando tal
que precisa ser feito e fazem. Alguns cuidam liderança está presente. Isto também não é
dos mais velhos, fazem compras, cuidam da verdade. As pessoas precisam reconhecer a
casa, são acompanhantes em consultas médi­ diferença entre o dom de administração e a
cas, em visitas a amigos e na ida e volta aos mera personalidade forte, força de vontade,
cultos na igreja. ou uma mentalidade agressiva.
Outros ajudam os pobres, assistem os do­ O Senhor é quem dá esse dom assim como
entes enviando alimentos ou tomando provi­ todos os outros. Todavia, ele não atropela sen­
dências, tais como o pagamento de contas timentos nem pressiona obstinadamente como
entre outras necessidades. O que diferencia o um rolo compressor para atingir sua meta.
seu trabalho do serviço que é prestado pelos
não cristãos é que ele é feito em nome de Je­ 9. Línguas e a interpretação de línguas.
sus Cristo e para Sua glória. Nenhum dos dons mencionados em qualquer
Pedro encorajou aqueles que servem a fa­ parte do N ovo Testamento tem sido tão con­
zê-lo segundo o p od er que D eus dá, para que troverso com o o dom de línguas e o dom que
em tudo D eus seja glorificado p or Jesus Cristo o acompanha de interpretação.
(1 Pe 4.11). Algumas pessoas têm insistido que o dom
de línguas significa estar apto a falar de modo
8. Administradores. Algumas versões da que outras pessoas ouçam em suas próprias
Bíblia chamam este dom de governos, porém línguas nativas. Esse tipo de manifestação
ele se refere, na realidade, à liderança ou dire­ aconteceu no Dia de Pentecostes (At 2.1-11),
ção administrativa. A maioria de nós conhece porém, não parece ter sido idêntica ao dom de
situações quando há, é óbvio, trabalho a ser línguas manifestado em Corinto. N a Igreja
feito e muitas pessoas disponíveis para isto. em C orinto, os intérpretes eram necessários
N o entanto, o trabalho não é realizado por­ porque os ouvintes não estavam escutando
que não há alguém por perto para comandar, em suas próprias línguas nativas.
Outras pessoas falam do exercício das lín­ falam em línguas. Sacerdotes budistas e xinto-
guas com o sendo a capacidade para falar em ístas muitas vezes falam em línguas quando
línguas celestiais, ou seja, em algum idioma estão em transe. O fenômeno existe em vá­
não conhecido pelos homens. rios contextos místicos da América do Sul,
Outras, ainda, negam que ambas as possi­ índia e Austrália. De forma que falar em lín­
bilidades existam hoje em dia. Essas pessoas guas, em si, não é uma prova da presença do
dizem que o que se passa por falar em línguas Espírito Santo. [Daí a necessidade do dom
é ou um fenômeno psicológico autoinduzido, de discernir espíritos.]
ou ação de demônios2. U m segundo princípio que Paulo esta­
A única maneira para prosseguir é se limi­ beleceu é que há muitos valiosos e diferen­
tar ao que está dito no único trecho da Bíblia tes dons do Espírito Santo, e que o dom de
que trata do fenômeno. línguas é apenas um deles. Ele disse isto em
Este trecho da Escritura é 1 Coríntios 12 e 1 Coríntios 12.4-11, afirmando que há muitas
14, no qual Paulo estabeleceu os seguintes necessidades diferentes na igreja e que é prer­
pontos. Primeiro, o dom de línguas existe, rogativa do Espírito Santo suprir estas neces­
mas pode ser falsificado, ou seja, há um dom sidades ao distribuir os dons necessários entre
genuíno, porém, há manifestação deste dom as pessoas que Ele chamou para a obra nas
por outros espíritos, seja o espírito de Satanás áreas específicas.
ou o espírito da própria pessoa. A ênfase de Paulo estava no fato de que
Paulo estava falando a respeito disso quan­ era pelo único e mesmo Espírito que os dons
do lembrou aos coríntios que, antes da conver­ eram dados (1 C o 12.8-11). Se o Espírito Santo
são deles, estavam escravizados por ídolos concede um dom para cada cristão e para Seus
mudos; e alertou-os de que era necessário pro­ propósitos, nós não podemos orgulhar-nos
var os espíritos com base na sua confissão ou de nosso dom particular. O fato de Paulo mi­
falta de confissão de Jesus Cristo como Senhor: nimizar mais tarde o dom de línguas indica
que o orgulho era um perigo real para aqueles
Portanto, vos quero fa z e r com preender na Igreja em Corinto que tinham este dom.
que ninguém que fala pelo Espírito de N o terceiro ponto, Paulo afirmou que os
D eus diz: Jesus é anátema! E ninguém po­ dons do Espírito são para um propósito: a
de dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo edificação e unidade da Igreja (1 C o 12.12-
Espírito Santo. 27). A princípio, estes são dois propósitos
1 Coríntios 12.3 diferentes, entretanto, Paulo trata a ambos
tendo em perspectiva a imagem do corpo para
E provável que, antes da conversão deles a o qual cada parte contribui. Ele enfatizou
Jesus, os cristãos de Corinto tinham sido en­ que: (1) H á muitos m embros do corpo (v. 12);
ganados pelos discursos carismáticos dos sa­ (2) todos são necessários (v. 22); e (3) não deve
cerdotes pagãos, e nessa ocasião, estivessem haver divisão no Corpo de Cristo (v. 25). A s­
sendo enganados por alguns que garantiam sim, se um exercício particular do dom de
falar no poder do Espírito Santo, sem, de fato, línguas não promover crescimento, ou pior,
terem sido revestidos por Ele. levar à discórdia, ou o dom não é de Deus, ou
Vale a pena registrar que em muitas partes está sendo usado fora dos propósitos de Deus
do mundo, a glossolalia, o termo técnico para para ele.
falar em línguas, é bem conhecida ainda hoje Em quarto lugar, Paulo sinalizou, talvez
em círculos não cristãos. Grupos unitaristas neste caso para humilhar aqueles que estavam
gabando-se de seu dom de línguas, que, se os Nestes versículos, Paulo demonstrou pre­
dons fossem para ser classificados por ordem ocupação para que não se extinguisse a voz
de importância, as línguas sempre viriam no genuína do Espírito e, ao mesmo tempo, ten­
final da lista (1 C o 12.28-1 C o l4.12). tou assegurar que esta mesma voz do Espírito
Enxergamos isto de várias maneiras. Sem­ fosse ouvida no culto. O Espírito Santo não
pre que Paulo listou os dons, línguas e inter­ poderia ser ouvido se todos estivessem gri­
pretação de línguas sempre vieram por últi­ tando ou orando em alta voz ao mesmo tem­
mo. Isso está mais evidente em 1 Coríntios po, supostamente sob a influência dele.
12.28, onde o discípulo, na verdade, enume­ O segundo perigo é o de um cristianismo
rou os dons: E a uns pôs D eus na igreja, pri­ insatisfatório, que Paulo combatia insistindo
meiramente, apóstolos, em segundo lugar, pro­ na interpretação.
fetas, em terceiro, doutores, depois, milagres, Naquela época, assim como agora, o cris­
depois, dons de curar, socorros, governos, va­ tianismo estava ameaçado por um paradigma
riedades de línguas (1 C o 12.28). que colocava a experiência como elemento
O utra forma que Paulo encontrou para principal do culto. O conteúdo era secundá­
abordar este ponto foi chamando atenção pa­ rio. A parte emocional era tudo. Contudo,
ra a importância do amor. Sua preocupação Paulo condenava isso.
com o amor era tão grande que ele interrom­ N a realidade, o apóstolo não desejava
peu sua discussão sobre os problemas dos suprimir qualquer resposta emocional váli­
dons para escrever em detalhes sobre o amor, da à verdade do cristianismo, e nós também
no capítulo 13 de 1 Coríntios. não.
P or fim, o apóstolo concluiu que, se al­ H á e sempre deve haver emoção na cami­
gum dom era para ser buscado, este era o dom nhada cristã. Todavia, não pode ser permitido
de profecia, pelo qual, nesta passagem, ele que a emoção se torne a base da fé. A revela­
identificou como a capacidade de pregar e en­ ção objetiva de Deus na história e nas Escri­
sinar a Palavra com clareza (1 C o l4.1). E m ­ turas é a base do cristianismo. Se a experiência
bora ele também falasse em línguas, ele prefe­ for mais valorizada que a revelação, isto leva­
riria falar cinco palavras numa linguagem rá a uma distorção do verdadeiro cristianismo
inteligível do que dez mil numa língua desco­ e a excessos perigosos.
nhecida (1 C o l4.9). N os dias de hoje, observamos isso e não
O quinto princípio de Paulo é que o dom apenas no que se refere às línguas. Vemos um
de línguas é cheio de perigos e só deve ser exer­ tipo de cristianismo emocional, quase sem
cido com alguns cuidados (1 C o 14.13-38). O conteúdo algum, no qual a experiência indivi­
primeiro perigo é a desordem. Paulo enxerga­ dual é tudo. Seguindo o exemplo de Paulo,
va a desordem como uma desgraça; a obra de devemos enfatizar o conteúdo.
Deus não deveria ser feita de forma tumultua­ Francis Schaeffer escreveu sobre isso:
da. Aqui, ele estabeleceu diretrizes. Primeiro
não permitir a ninguém falar na igreja no mes­ Devemos enfatizar que a base de nossa fé não é
mo momento em que outra pessoa estivesse nem a experiência nem a emoção, mas a verda­
falando; as pessoas deveriam falar uma de cada de como Deus a revelou na forma verbalizada
vez. Segundo, não permitir que todos falem no e intencional da Escritura e que nós em primei­
culto, porém, no máximo, dois ou três. Tercei­ ro lugar recebemos pelo pensamento - embo­
ro não permitir que até mesmo estes dois ou ra, é claro, o ser humano por inteiro deva agir
três falem em línguas sem que haja intérprete. sobre ela. (FRANCIS, 1972, p. 24)
John Stott abordou esse mesmo ponto Segundo, devemos orar. Este não é um as­
atacando o que ele chamou de cristianismo sunto para ser tratado com negligência ou que
sem cérebro (S t o t t , 1972, p. 10). possamos sentir-nos livres para confiar em
Um a questão final deve ser observada na nosso próprio julgamento. N ão conhecemos
abordagem da questão das línguas por Paulo. o nosso coração. P or isso, podemos cobiçar
Em que pese os perigos deste dom, nenhum algum dom que exalte nosso sentimento de
cristão deve ser impedido de exercê-lo. autoimportância, que não esteja no coração
O apóstolo disse, especificamente: Por­ de Deus.
tanto, irmãos, procurai, com zelo, profetizar Podemos, também, resistir ao dom que ele
e não proibais falar línguas (1 C o 14.39). tem para nós. A única maneira de superar esse
Se falar em línguas não é seu dom, você dilema é levar o assunto até o Senhor com se­
não deve cobiçá-lo - pelo menos, não desejá- riedade, orar com fervor, como Ele nos ensina
-lo mais do que qualquer outro dom, você na sua Palavra, pedindo que Ele nos mostre o
deve procurar o dom de profecia. N o entan­ dom que realmente Ele tem para nos dar.
to, por outro lado, se outra pessoa recebeu o Terceiro, seremos beneficiados se fizer­
dom de línguas, não cabe a você nem a nin­ mos uma avaliação honesta de nossas pró­
guém proibir seu exercício. Isto causaria o prias forças e capacidades espirituais. Se não
empobrecimento da igreja.3 fizermos isto tendo por base um estudo mi­
nucioso da Palavra de Deus e uma vida de
E n con tran do seu d o m ____________________ oração, seremos desviados da rota. N o entan­
Neste ponto alguém pode estar pensando: to, se buscarmos em primeiro lugar a sabedo­
“Eu reconheço a importância dos dons espi­ ria e a vontade de Deus, poderemos exami-
rituais e estou consciente do que eles são. To­ nar-nos e enxergar por intermédio de olhos
davia, não sei com o me encaixar nesse qua­ espirituais.
dro. C om o posso descobrir quais são os meus Podemos perguntar: “O que eu gosto de
dons?” Eis uma boa pergunta. fazer?” Isto não é um guia seguro para qual
Primeiro, podemos começar estudando o seja ou quais sejam os nossos dons, porém,
que a Bíblia tem a dizer sobre dons espiritu­ pode ser uma indicação. A direção de Deus é
ais. A Bíblia é a primeira provisão de Deus sempre voltada para aquilo que Ele preparou
para nosso crescimento espiritual e santifica­ para nós e em vista disso, consideramos com
ção. Deus nos fala na Bíblia. naturalidade agradável e prazerosa.
Sem o conhecim ento do que a Palavra de Stedman escreveu sobre isso:
Deus nos ensina de form a explícita nesta
área, podemos ser conduzidos, com facili­ Em algum momento, esta ideia encontrou gua­
dade, a experiências que não são a Sua von­ rida nos círculos cristãos insinuando que o que
tade para nossa vida. Podem os até com eçar Deus quer para você é sempre desagradável;
a pensar sobre os dons espirituais em ter­ que os cristãos devem sempre fazer escolhas
mos seculares. entre fazer o que querem e ser felizes, e fazer o
Quando estudamos o que a Bíblia ensi­ que Deus quer e ser completamente infelizes.
na, devemos ser cuidadosos para discernir Nada pode ser mais desprovido de verdade. O
qual é o propósito de Deus ao nos dar dons exercício de um dom espiritual é sempre uma
espirituais. É para o crescim ento do C orpo experiência agradável e feliz, embora, algumas
e não para simples crescim ento ou satisfa­ vezes, a ocasião em que ele é exercido possa ser
ção pessoal. amarga. (S t e d m a n , 1972, p. 54)

ââó'
O utra pergunta que podemos fazer é: Você pode também desejar a sabedoria de
“Em que eu sou bom ?” Se você deseja ocupar outros cristãos. A igreja nem sempre funciona
certo ministério na igreja, contudo está sem­ como deve, no entanto onde ela funciona de
pre fracassando e sentindo-se frustrado, é forma apropriada uma das coisas que deveria
quase certo que você está operando na área acontecer é que as pessoas com dom de p er­
errada e tem avaliado seus dons com equívo­ cepção ou sabedoria deviam ser capazes de
co. Se Deus está abençoando seu trabalho, se sentir quais são os seus dons e colocá-los à
você vê frutos em seus esforços, é provável disposição das necessidades de sua congrega­
que você esteja na trilha certa e deveria inves­ ção. Os outros são quase sempre mais objeti­
tir nisso com mais vigor. À medida que sua vos a respeito de nós do que conseguimos
destreza no exercício deste dom se desenvol­ sê-lo. Devemos cultivar a capacidade de ouvir
ve, você perceberá que os resultados ficam a estes outros membros da família de Deus e
cada vez melhores. seguir sua orientação.

N otas

1 Mateus 28.19,20 descreve o que passou a ser chamado de Grande Comissão: Portanto, ide, ensinai todas as nações,
batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-as a guardar todas as coisas que eu vos tenho
mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém!. Jesus deu esse comando
aos apóstolos pouco antes de ascender aos céus. Esse comando praticamente resume o que Jesus esperava que os
apóstolos e todos os Seus seguidores fizessem em Sua ausência.

2 Uma suposta base textual para o argumento de que um dia haverá cessação das línguas está em 1 Coríntios 13.8: O
am or jam ais acaba; mas, havendo profecias serão aniquiladas; havendo línguas cessarão; havendo ciência desapare­
cerá. No entanto, ler este versículo como se as línguas tivessem de cessar após a era apostólica é interpretá-lo mal. Se
o versículo quisesse dizer isto, então a ciência também deveria ter cessado; o que não é o caso. Na verdade, o versí­
culo foca o tempo da volta de Cristo e alerta que as experiências limitadas do presente passarão quando formos
feitos a semelhança dele. Mas, quando vier o que é perfeito, então, o que é em parte será aniquilado (v.10).
3 Alguns dos conteúdos sobre línguas foram adaptados de minha obra The Gospel o f John [O evangelho de João], vol.
4, p. 195-200.
C a p a c it a n d o os san to s

o início do capítulo anterior, assi­ de Cristo, até que todos cheguemos à uni­
nalei que dentro da unidade da dade da f é e ao conhecimento do Filho de
Igreja existem duas áreas onde en­ Deus, a varão perfeito, à medida da esta­
contramos diferenças e distinções: tura completa de Cristo.
dons espirituais e função da Igreja. Vamos tra­ Efésios 4.11-13
tar agora deste segundo ponto. Quero primei­
ro abordá-lo de forma indireta, examinando Esses versículos são tão relevantes para
não apenas quais são essas funções e quem está entender a natureza do ministério de todos os
qualificado para exercê-las — o que veremos cristãos que os seguintes questionamentos
no próximo capítulo —, mas qual é o propósi­ devem ser feitos: a quem eles se referem?
to das várias funções, em particular do mestre Quais as pessoas escolhidas para exercê-lo?
ou pastor. P or que devem exercê-lo? Com o devem exer-
A razão para uma abordagem indireta é cê-lo? Quando ou por quanto tempo o traba­
que devemos superar um mal-entendido gene­ lho em questão deve ser realizado?
ralizado de que o trabalho da Igreja é para ser
feito por pastores e clérigos. Nessa visão es­ D u a s f u n ç õ e s ________________________________

treita, o papel dos leigos é, na melhor das hipó­ As duas primeiras perguntas caminham
teses, obedecer às ordens, enquanto os profis­ juntas. Os versículos mencionam tanto aque­
sionais ordenados comandam tudo. Nada les que chamaríamos de clérigos — apóstolos,
pode estar mais distante do padrão bíblico. profetas, evangelistas, pastores, mestres, pres­
O N ovo Testamento deixa claro que abíteros ou anciãos —, e veremos isso mais
obra do ministério é para ser feita por todos adiante — como os demais cristãos, os santos.
os cristãos. O dever do presbítero, do diáco- A função dos primeiros é equipar e capacitar
no e dos demais trabalhadores da igreja é pre­ os últimos para fazer a obra da Igreja.
parar outros cristãos para essa tarefa. Esse é o Todos os cristãos devem ser ativos no tra­
significado dos versículos: balho do ministério da Igreja de alguma for­
ma capacitando os outros, fazendo a obra,
E ele mesmo deu uns para apóstolos, e ou­ edificando o C orpo de Cristo. Cada um de
tros para profetas, e outros para evangelis­ nós tem um dom, e ele deve ser usado. Todos
tas, e outros parapastores e doutores, que­ devem trabalhar na obra do Senhor. A dife­
rendo o aperfeiçoamento dos santos, para a rença entre o pastor e os demais membros da
obra do ministério, para edificação do corpo igreja é apenas na função exercida no Corpo,
e não uma diferença de status, santidade, do­ não tem precedente no N ovo Testamento”
mínio ou prestígio. ( T r u e b l o o d , 1967, p. 39). Existem pastores
N os últimos anos, temos observado uma que se distinguem dos demais cristãos, entre­
nova disposição em muitos círculos evangéli­ tanto a diferença é apenas no que tange aos
cos no sentido de acolher essa verdade, da dons espirituais e ao serviço. N ão se trata de
mesma forma que muitos também têm reco­ ministério versus não ministério. E , acima de
nhecido a importância dos dons espirituais. tudo, não é uma questão de sacerdotes de um
N o entanto, não foi sempre assim. Os anos lado e aqueles que podem servir apenas em
que sucederam à Igreja primitiva foram ca­ funções menores do outro.
racterizados por falsos padrões de ministério Existem razões históricas para o cresci­
que fugiam à realidade bíblica, ainda que, em mento do clericalismo, porém essas razões
escala menor, sempre tenha havido igrejas e em si mesmas não são o todo e nem mesmo o
ministérios atuando com propriedade. mais significante. Enxergamos isso quando
John Stott ressalta que três falsas respostas indagamos por que tal crescimento aconte­
têm sido dadas à questão do relacionamento ceu. Ele aconteceu por uma questão de inter­
do clero com os cristãos (S t o t t , 1 9 6 9 , p. 2 8 - pretação bíblica, ou outros fatores contribuí­
A primeira ele chamou de clericalismo, a
4 2 ). ram, talvez até mesmo distorceram a in­
visão de que o trabalho da igreja é para ser feito terpretação.
por aqueles que são pagos para isso; o papel dos Algumas causas do clericalismo estão no
membros é, na melhor das hipóteses, apoiar fi­ profundo da constituição humana. H á pessoas
nanceiramente as iniciativas dos líderes. que sempre querem estar no centro do espe­
De acordo com a história, essa visão falsa táculo para dominar outras. Essa tendência
surgiu como resultado do desenvolvimento pode levar ao abuso ou à tirania. U m exemplo
da ideia de sacerdócio na antiga Igreja Católi­ no N ovo Testamento foi Diótrefes, que pro­
ca. Naquela época, o ministério profissional curava ter entre eles o primado (3 Jo 1.9). U m
da Igreja tinha como modelo o sistema sacer­ alerta contra esse padrão de conduta é encon­
dotal do Antigo Testamento, com a missa trado numa passagem do Novo Testamento
ocupando o lugar dos sacrifícios de sangue. contendo instruções aos presbíteros da Igreja:
Apenas os padres estavam autorizados a rezar
a missa, e isso delineava uma distinção falsa e Apascentai o rebanho de D eus que está
debilitante entre o clero e os leigos. entre vós, tendo cuidado dele, não p or fo r­
Os que são a favor dessa visão de Igreja ça, mas voluntariamente; nem p o r torpe
dizem que ela remonta ao tempo dos apósto­ ganância, mas de ânimo pronto; nem como
los, porém essa teoria tem se mostrado falsa. tendo domínio sobre a herança de Deus,
C om o está descrito no N ovo Testamento, a mas servindo de exemplo ao rebanho.
Igreja primitiva usava com frequência a pala­ 1 Pedro 5.2,3
vra sacerdote ou sacerdócio para se referir a
todos os cristãos que exerciam essa função. O Todavia, o exemplo mais determinante de
N ovo Testamento nunca usou a palavra hie- conduta é o Senhor Jesus Cristo, que, embora
reus, que significa clérigo. sendo o Senhor de toda a criação, fez-se servo
C om o assinalou Robert Barclay no século lavando os pés de Seus discípulos.
17, e Elton Trueblood enfatizou na atualida­ Um a segunda razão para o crescimento do
de: “A distância que se convencionou na m o­ clericalismo é a tendência dos leigos de omi­
dernidade entre clérigos e leigos simplesmente tir-se e “deixar que o pastor faça”. Stott citou
um texto de Sir. John Lawrence: “O que real­ ministério, por mais que seja saudável, não
mente os leigos querem? Eles querem um permite uma conclusão desse tipo. Com o
prédio que se pareça com uma igreja; pastores Trueblood sustenta:
bem-vestidos; cultos do modo como estão
acostumados; e não ser incomodados” (S t o t t , Os cristãos primitivos foram longe demais até
1969, p. 30). Os leigos se esquivam das res­ perceberem que tinham caído numa armadilha,
ponsabilidades e tarefas dadas a eles por até perceberem que, se o ideal do sacerdócio
Deus, e os sacerdotes profissionais tomam universal é para ser o mais aproximado possí­
posse delas para prejuízo da igreja. vel, devem existir algumas pessoas trabalhando
Um a segunda falsa resposta para o rela­ para que esse objetivo altamente desejável tor­
cionamento do clero com os membros é o ne-se possível. ( T r u e b l o o d , 1967, p. 40)
anticlericalismo. Se o pastor despreza os mem­
bros ou reputa-os com o dispensáveis no mi­ U m terceiro falso modelo de relaciona­
nistério, não é surpresa que os membros, às mento entre o pastorado profissional e os
vezes, retornem a deferência querendo ver-se leigos é o que Stott chama de dualismo. A
livres dos pastores. ideia é que os pastores e os membros estejam
Isso não é sempre ruim. Podemos imagi­ cada um na sua esfera, e ninguém invada o
nar situações em que a igreja se torna tão do­ território do outro.
minada por um sacerdote perverso que é ne­ U m exemplo disso é o sistema tradicional
cessário uma limpeza geral. Isso já aconteceu católico, onde o status de leigo e o status de
na história. Podemos pensar em algumas áre­ sacerdote estão claramente delineados. Esse
as do trabalho da igreja que são melhor exe­ dualismo também está presente nas formas
cutadas por pessoas leigas; os clérigos não são mais contemporâneas do protestantismo. Em
necessários nelas. Todavia, isso credencia o tais sistemas, o sentido de todos como parte
anticlericalismo como a instância normal do de um só C orpo, servindo lado a lado, já eva­
povo cristão. porou. A igreja está dividida, e o terreno está
Onde a igreja desejar ser bíblica ela deve fértil para rivalidades e competições.
reconhecer não apenas que os dons de ensino O relacionamento correto entre clérigo e
e de liderança são dados a alguns para o bem- leigos tem de fundamentar-se no ato de ser­
-estar da congregação, mas também que há vir. De acordo com Efésios, o clero deve ca­
um vasto ensinamento bíblico sobre a neces­ nalizar sua energia para capacitar os santos.
sidade de tal liderança. Ele deve cuidar dos santos e treiná-los para
O apóstolo Paulo constituiu presbíteros que sejam o que devem ser e fazer a obra con­
em todas as igrejas que fundou e incumbiu-os fiada a eles — que é o trabalho principal e es­
da responsabilidade de treinar as pessoas para sencial da igreja no que se refere tanto ao
o ministério (At 14.23). Nas epístolas pasto­ mundo como ao próprio corpo da Igreja. Je­
rais, o estabelecimento de tais líderes é especi­ sus foi o exemplo desse modelo de serviço:
ficamente mandado (Tt 1.5), e as qualificações Porque o Filho do H om em não veio para ser
dessa liderança são transmitidas (1 Tm 3.1-13; servido, mas para servir e dar a sua vida em
Tt 1.5-9). resgate de muitos (Mc 10.45).
Aqueles que entenderam a ideia de minis­
tério como pertencendo à totalidade da igreja A CAPACITAÇÃO DOS SANTOS________________

omeçaram a imaginar se havia lugar para os Pastores e mestres devem servir à comuni­
érigos. N o entanto, esse entendimento do dade cristã, portanto os santos devem ser
capacitados para fazer o trabalho da igreja em também serviço espiritual no sentido de que
duas áreas: a obra do ministério e a edificação aqueles que estão cativos do pecado sejam li­
do Corpo de Cristo. bertos pela verdade da Palavra de Deus (Jo
A diferença entre a obra do ministério e a 8.32), e aqueles que estão cegos espiritualmen­
edificação do Corpo de Cristo é a diferença te venham a enxergar (comparar com Jo 9).
entre serviço no mundo e serviço no interior Terceiro, há um ministério de misericórdia
da comunidade cristã. É importante estabele­ para com aqueles que estão oprimidos, o cha­
cer a primeira delas porque a igreja sempre mado ministério de libertação.
corre o risco de esquecê-la. C om o acontece E quarto, há a proclamação da esperança
com as famílias, a igreja se torna tão preocu­ para um mundo que praticamente já a perdeu
pada consigo mesma que esquece que está no de vista. E um ministério da certeza de que este
mundo para servir ao mundo. Ela deve minis­ é o tempo da graça de Deus e que Ele está rece­
trar ao mundo com o Jesus ministrou. bendo aqueles que se convertem do pecado
E m seu livro Body Life [Vida no corpo], para a fé em Seu Filho, o Senhor Jesus Cristo.
Ray Stedman dedicou-se à descrição de Jesus Cada uma dessas formas de ministério
em Seu ministério no mundo, a partir de Sua evangélico pode ser vista espiritualmente,
leitura da Escritura na sinagoga de Nazaré, mas não devemos perder de vista o fato de
no começo de Seu ministério. Jesus leu o tre­ que elas envolvem também um serviço físico
cho do livro de Isaías onde está escrito: real no mundo.
Stedman escreveu:
O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que
me ungiu para evangelizar os pobres, en- Não devemos nunca esquecer a história de
viou-me a curar os quebrantados do cora­ nosso Senhor sobre as ovelhas e os bodes, e a
ção, a apregoar liberdade aos cativos, a dar base de Seu julgamento. O ponto crucial da
vista aos cegos, a pôr em liberdade os opri­ história é que os cristãos não devem esquivar-
midos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. -se das atividades que os projetam nas feridas
Lucas 4.18,19 do mundo. O faminto deve ser alimentado, o
nu deve ser vestido, o doente, visitado, e os
N o caso de Jesus, algumas dessas ações prisioneiros, consolados. Temos de colocar
profetizadas envolvem atividades naturais e nossos dons em movimento. Não ousemos es­
algumas sobrenaturais — curar os cegos, por condê-los no chão como aquele servo infiel fez
exemplo —, porém, com o Stedman assinalou, na parábola dos talentos, contada por Jesus,
há um sentido em que aqueles que são de pois iremos encontrá-lo algum dia para o acer­
Cristo devam fazer cada uma delas. to de contas. (S t e d m a n , 1972, p. 105)
Primeiro, há um trabalho de evangelis-
mo, descrito com o pregar as boas-novas aos Os cristãos podem praticar essas formas
pobres. de ministério em muitas situações: em casa,
Segundo, há um serviço ministerial, no no trabalho, voluntariamente e até mesmo por
qual os cativos são libertos, e os cegos, cura­ projetos da igreja voltados para a população.
dos. Esse serviço pode ser literal; o nosso O ponto importante é que os cristãos as prati­
equivalente seria o trabalho entre os prisio­ quem como parte de seu chamado do alto.
neiros e as formas variadas de serviço médico, A segunda finalidade para a qual os cris­
como o trabalho do Dr. Victor Rambo na tãos devem ser capacitados é a edificação do
índia entre os deficientes visuais. Pode haver Corpo de Cristo. Esse é o setor do ministério
voltado para a igreja. Ele inclui afazeres como ou seja, por toda a era da Igreja até a Sua vol­
ensinar às crianças, descobrir e desenvolver ta. A resposta a outras perguntas é pelo ensi­
os dons espirituais de todos os membros da no e pregação da Palavra de Deus, na lingua­
igreja, carregar o fardo, orar, encorajar e aju­ gem bíblica descrita também como alimentar
dar uns aos outros a crescer no conhecimento as ovelhas.
e no amor de Jesus. O trabalho do pastor-mestre é similar ao
O objetivo é a maturidade cristã, não ape­ trabalho de um pastor no apascentamento de
nas para o indivíduo, embora isso seja um suas ovelhas. A ideia é apresentada no Anti­
degrau necessário para um propósito maior, go Testamento (SI 77.20), porém é mais pre­
mas para toda a igreja. Paulo colocou deste dominante no N ovo Testamento. Está base­
modo: A té que todos cheguemos á unidade da ada nas palavras especiais de Jesus na Sua
f é e ao conhecimento do Filho de Deus, a va­ instrução a Pedro: Apascenta as minhas ove­
rão perfeito, à medida da estatura completa lhas (Jo 21.15-17).
de Cristo (Ef 4.13). As ovelhas são chamadas de ovelhas de
A saúde da Igreja está relacionada a essa Jesus. Elas lhe pertencem primeiro por cria­
primeira esfera de serviço, uma vez que uma ção, Ele as fez, e segundo p or redenção. A n ­
Igreja enferma não pode ministrar ao mundo tes, o Senhor havia dito: E u sou o bom Pas­
com eficiência. O que impede a Igreja de ser a tor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas
influência boa e divina que Jesus desejou que (Jo 10.11). Se o rebanho fosse nosso, seja
ela fosse é a desunião, que é um dos fatores. com o pastores, presbíteros, ou mesmo com o
U m a igreja que gasta todas as suas ener­ pais, poderíamos fazer dele o que quisésse­
gias com disputas entre si dificilmente poderá mos, ou o que achássemos melhor. C ontudo,
ter alguma utilidade lá fora. se as ovelhas são de Jesus, devemos fazer co ­
O utra causa do fracasso é a ignorância. Se mo Ele quer, prestando conta dessa respon­
a igreja não entende os assuntos do cotidiano sabilidade a Ele.
e seus problemas, tampouco as soluções ofe­ Aqueles que têm o dom de pastor ou mes­
recidas pelo evangelho, ela não pode ajudar o tre — pregadores, obreiros, professores de
mundo, ainda que não esteja dividida interna­ escola dominical, líderes de jovens — devem
mente e seu desejo seja ajudar. alimentar os que foram confiados aos seus
A igreja pode também ser paralisada pela cuidados. Eles devem fazê-lo ensinando, com ­
imaturidade. Pode ser derrotada pelo pecado. partilhando e comunicando a Palavra de Deus
Cada uma dessas deficiências pode arruinar a por qualquer outro meio. O dever dos que
eficácia da igreja. capacitam é ensinar a Bíblia.
O segredo para alcançarmos a maturidade Poucos irmãos não têm nenhuma respon­
que Paulo descreveu com o ideal é cada cristão sabilidade sobre alguém na igreja. Em algum
ajudar o outro. Isso não é dever apenas do sentido somos todos pastores. Todavia, preci­
pastor. samos alimentar-nos da Palavra, pois a tarefa
de ensinar o evangelho não é particularmente
C omo CAPACITAR____________________________ dos pastores e presbíteros da igreja.
Pastores, mestres e evangelistas devem ca­ A maioria dos pregadores tem muitas
pacitar os santos para a obra — até que todos funções. Eles administram a igreja, aconse­
cheguemos à unidade da f é e ao conhecimento lham, visitam e fazem muitas outras coisas
do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida em seu dia-a-dia. N o entanto, assim com o a
da estatura completa de Cristo (Ef 4.13) —, primeira responsabilidade de um carpinteiro
é construir, e a de um pintor, pintar, a primei­ externas e deixam escapar, dessa forma, a cau­
ra responsabilidade dos pastores é ensinar a sa interna ou fundamental do declínio da pre­
Palavra de Deus. gação. N a verdade, o declínio momentâneo
H oje essa área está em declínio, tanto no na pregação e no ensino da Palavra de Deus
que diz respeito ao ensino como à pregação vem de um declínio anterior na crença da Bí­
em geral, e isso por várias razões. Primeiro, a blia como a Palavra de Deus autorizada e
atenção tem sido transferida da pregação para inerrante por parte dos teólogos, professores
outros aspectos necessários do ministério de seminários e dos pastores que são forma­
pastoral, coisas com o aconselhamento, litur­ dos por eles. É uma perda de confiança na
gia, dinâmicas de pequenos grupos e preocu­ existência de uma Palavra inspirada por Deus.
pações variadas. Nesse ponto, as questões da inerrância e
Tudo isso é importante. Tudo faz parte do da autoridade caminham juntas. N ão é que
trabalho do pastor. Todavia, ele não pode des­ aqueles que abandonam a inerrância como
viar sua atenção da responsabilidade básica, uma premissa para abordar a Escritura re­
que é ensinar a Palavra de Deus. Além disso, nunciam de forma obrigatória à crença na
esses itens não estão em oposição. Quando a autoridade da Bíblia. Ao contrário, eles falam
Palavra de Deus é bem pregada, tudo o mais é da autoridade da Palavra mais efusivamente
beneficiado. quando deixam de lado a posição inerrante.
U m exemplo disso é a era dos puritanos1. Contudo, abandonando a convicção de
Os pregadores nesse período ficaram conhe­ que a Bíblia é sem erros no todo e em suas
cidos por seus consistentes sermões expositi- partes, esses acadêmicos e pregadores, inevi­
vos. Seu conteúdo era tão profundo que pou­ tavelmente, abordam a Escritura Sagrada de
ca gente hoje em dia sequer consegue lê-los. maneira diferente daqueles que creem na
Contudo, outros aspectos do ministério puri­ inerrância, não importando o que possa ser
tano não eram negligenciados. Os cultos de dito verbalmente.
adoração eram marcados por um sentimento N a obra dos desertores da inerrância, a Bí­
poderoso da presença de Deus, e os que pre­ blia é utilizada sob a luz que ela possa refletir
gavam e lideravam as celebrações estavam no mundo, conforme a interpretação do pastor,
envolvidos intensamente com os problemas, e não como uma revelação obrigatória e predo­
as tentações, e com o crescimento dos que minante que nos orienta sobre o que pensar a
Deus havia colocado sob seus cuidados. respeito do mundo e da vida, e até formula as
U m a segunda razão para o declínio na perguntas que devemos fazer (B o ice , 1978).2
pregação é a desconfiança atual em relação ao Logo, o trabalho de capacitação é para ser
discurso evangélico. As pessoas temem ser ma­ feito não apenas pela verbalização da Palavra
nipuladas e têm antipatia. U m a vez que o obje­ de Deus, mas também pela prática, pelo
tivo da pregação é “mexer”[emocionalmente] exemplo. Ao definir Sua obra, Jesus disse: E,
com as pessoas, e não simplesmente instruí- quando fele mesmo] tira para fora as suas
-las, ela pode ser confundida com manipula­ ovelhas, vai adiante delas, e as ovelhas o se­
ção, e alguns se esquivam dela. guem (Jo 10.4). Jesus estabeleceu o modelo
O problema com essas explicações é que, que os pastores devem seguir, assim como
embora elas contenham um elemento de ver­ aqueles cuja tarefa é capacitar e equipar o po­
dade, estão baseadas em questões ou situações vo cristão.
N otas

1 O puritanismo designa uma concepção da fé cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes
radicais depois da Reforma. A Revolução Puritana foi um movimento surgido na Inglaterra no século XVI, de
confissão calvinista, que rejeitava tanto a Igreja Romana como a Igreja Anglicana. O puritanismo não conseguiu
substituir as estruturas de plausibilidade que o anglicanismo ofereceu à nação inglesa. As estruturas sociais anglica­
nas permaneceram. Apenas para uma pequena e influente minoria esta situação não era satisfatória, e esse grupo era
o dos puritanos, que travaram vigorosas e infrutíferas batalhas com o governo político-religioso da Inglaterra. Em
todos esses eventos, o apoio de Calvino foi influente na tentativa de levar sua doutrina a uma nação cujos laços com
Roma haviam sido cortados apenas pela vaidade de um Rei.
A doutrina calvinista é hoje largamente professada entre os fiéis anglicanos, e nela sobraram apenas traços da li­
turgia do catolicismo. Muitos dos puritanos fugiram para países como os EUA, onde introduziram o Presbiterianis-
mo oriundo da reforma calvinista da Igreja da Escócia. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Puritanismo)

2 Tomei emprestado um trecho desta palavra aos pastores de um capítulo de meu livro The Foundation o f Biblical
Authority [A base da autoridade bíblica]. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1978.
G estão da ig r e ja

jí /'“'jjossa primeira abordagem sobre as têm empregados, e quanto maior o número


/% í atribuições da igreja mostrou que o de empregados, mais importante a pessoa é
/ \ í primeiro propósito dessas atribui- considerada.
f ções é servir ao povo de Deus. Tudo Jesus veio para reverter tudo isso. Ele vi­
mais está relacionado com isso. Quando esse rou tudo de cabeça para baixo, fazendo do
fim não é percebido, os problemas aparecem. primeiro o último e do último o primeiro.
Em seu livro O ne People [Um povo], John Aos olhos de Deus, grandeza consiste não no
Stott relata uma máxima da Igreja Católica número de pessoas que nos servem, mas no
que pode ser verdadeira também em muitas número de pessoas a que servimos. Quanto
igrejas protestantes de hoje: “Os bispos estão maior o número, melhor é o cristão. Fuller
a serviço dos padres, os padres estão a serviço escreveu:
dos leigos, os leigos são reis com um proble­
ma de serviço” (S t o t t , 1969, p. 43). Se Jesus não tivesse tomado a forma de servo,
Muitas igrejas têm essa anomalia, seja por se o Senhor da glória não tivesse se humilhado
não entenderem os princípios bíblicos de li­ a si mesmo e se tornado obediente até a morte,
derança e gestão, seja pelo empenho da parte e morte de cruz, os padrões do mundo não te­
de alguns, principalmente do clero, para evitá- riam sido desafiados.
los. É estranho que seja assim, pois o básico
para a vida cristã, seja entre líderes ou cristãos Todavia, ao ter feito essas coisas, Jesus
comuns, é o serviço. Ser cristão é ministrar, e mudou o padrão. Agora, “Ele é o diácono,
isso significa servir. nosso exemplo definitivo, e, consumando es­
U m artigo sobre o ministério dos diáco- sa incumbência de Deus, Ele investiu de po­
nos de George C. Fuller começa com uma der o Seu povo, Seu Corpo sobre a terra, para
ênfase no serviço diaconal ou ministério de cumprir seu ministério ( F u l l e r , 1978, p. 9).
serviço de cada crente em Jesus Cristo. Fuller N a Igreja de Deus todos são diáconos,
ressalta que o mundo mede a grandeza por pastores ou servos em benefício do mundo e
quanto uma determinada pessoa é servida. da edificação do Corpo de Cristo.
N o mundo dos negócios, as pessoas impor­
tantes são as que estão no topo da pirâmide Um m i n i s t é r i o d e s e r v i ç o _________________

organizacional. Q uanto maior é a institui­ Embora o dever de todos os cristãos seja


ção, mais importante é o seu dirigente. Nos servir ao mundo e uns aos outros, incumbên­
assuntos pessoais, os grandes são aqueles que cias especiais de serviço são dadas a alguns
capacitados para as tarefas. Para ser específico Primeiro, deve haver uma divisão de res­
com relação às atribuições destacadas no N o ­ ponsabilidades. É verdade que todos os cris­
vo Testamento, pastores ou bispos devem tãos devem servir uns aos outros e ao mundo,
exercer o serviço ensinando e incentivando os no entanto ninguém consegue preencher esse
outros a servirem, e os diáconos devem lide­ requisito de todas as maneiras.
rar esse ministério. Nesse caso, os apóstolos simplesmente
É importante começar com o ministério não tinham com o conciliar a pesada respon­
diaconal. A palavra diácono significa servo, e sabilidade de oração e ensino com a atenção
o papel do servo é visto com nitidez nesse ofí­ aos necessitados da Igreja. Então, alguns ho­
cio. Pelo que podemos perceber no N ovo mens foram escolhidos pelos membros e en­
Testamento, ele foi o primeiro ministério ins­ tre os membros para essa terceira tarefa, para
tituído pelos apóstolos na Igreja. Os apósto­ que os apóstolos dedicassem seu tempo à ora­
los haviam sido escolhidos pelo próprio Jesus ção e ao ensino.
e estavam presentes desde o início, entretanto Segundo, deve haver uma pluralidade de
o diaconato foi o primeiro ofício instituído. liderança. A Igreja não nomeou só uma pes­
O registro da implantação desse ministério é soa para essa obra, mas várias. De fato, não há
encontrado em Atos 6.1-6: referência em parte alguma no N ovo Testa­
mento da escalação de apenas um ancião ou
Ora, naqueles dias, crescendo o núm ero um diácono em qualquer obra. Tendemos a
dos discípulos, houve uma murmuração apontar um líder; a sabedoria de Deus é
dos gregos contra os hebreus, porque as su­ maior do que a nossa nesse ponto. A o sepa­
as viúvas eram desprezadas no ministério rar várias pessoas para esse trabalho conjun­
cotidiano. E os doze, convocando a multi­ to, a Igreja, por direção de Deus, proporcio­
dão dos discípulos, disseram: Não é razoá­ nou encorajamento mútuo entre aqueles que
vel que nós deixemos a palavra de D eus e dividiram a obra, assim com o diminuiu a
sirvamos às mesas. Escolhei, pois, irmãos, chance de aparecer orgulho e tirania na exe­
dentre vós, sete varões de boa reputação, cução da tarefa.
cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos Terceiro, há uma preocupação com quali­
quais constituamos sobre este importante ficações espirituais. Os apóstolos não pedi­
negócio. Mas nós perseveraremos na ora­ ram aos cristãos para levar em conta se os es­
ção e no ministério da palavra. E este pare­ colhidos tinham ou não riquezas pessoais
cer contentou a toda a multidão, e elege­ para contribuir do próprio bolso para o mi­
ram Estêvão, hom em cheio de f é e do nistério de coleta financeira da Igreja. N in­
Espírito Santo, e Filipe, e Prócoro, e Nica- guém perguntou se os membros escolhidos
nor, e Timão, e Pármenas e Nicolau, prosé- tinham posses, influência ou poder secular.
lito de Antioquia; e os apresentaram ante Esses fatores não foram levados em conta na
os apóstolos, e estes, orando, lhes impuse­ escolha. O que foi pedido que fizessem foi
ram as mãos. separar homens de boa reputação e cheios do
Espírito Santo e de sabedoria.
Em bora sucinto, esse relato da escolha Encontramos essa ênfase em todas as pas­
dos primeiros diáconos ensina princípios sagens bíblicas que falam de qualificações
fundamentais de liderança da igreja e contém para o ministério da Igreja. As qualificações
dados particulares sobre a natureza do minis­ para presbíteros estão mencionadas em 1 Ti­
tério diaconal. H á quatro princípios claros. móteo 3.1-7, Tito 1.5-9 e 1 Pedro 5.1-4. N o
que concerne aos diáconos, o trecho mais im­ que sem dúvida acalmou as reclamações e
portante é 1 Timóteo 3.8-13: promoveu a unidade.

D a mesma sorte os diáconos sejam hones­ Um m in is t é r io d e m is e r ic ó r d ia __________

tos, não de língua dobre, não dados a mui­ A passagem do livro de Atos é importante
to vinho, não cobiçosos de torpe ganância, não apenas pelo que ela ensina sobre os prin­
guardando o mistério da f é em uma pura cípios sadios de liderança na igreja, em parti­
consciência. E também estes sejam prim ei­ cular quando estes se referem aos diáconos. E
ro provados, depois sirvam, se forem irre­ importante por conter também ensinamentos
preensíveis. D a mesma sorte as mulheres sobre a natureza do ministério diaconal.
sejam honestas, não maldizentes, sóbrias e N o entanto, devemos ser cautelosos nesse
fiéis em tudo. Os diáconos sejam maridos ponto. N a medida em que se trata de uma
de uma m ulher e governem bem seus fi­ passagem histórica, que discute um problema
lhos e suas próprias casas. Porque os que específico na Igreja primitiva, ainda que ela
servirem bem como diáconos adquirirão ilustre o que indubitavelmente seja uma fun­
para si uma boa posição e muita confiança ção diaconal verdadeira, não tem a intenção
na f é que há em Cristo Jesus. de limitar o ministério dos diáconos àquela
única responsabilidade.
Algumas dessas qualificações são as mes­ Começando com esse trecho emblemático
mas para os bispos ou pastores, mas outras do livro de Atos, entretanto levando em con­
são diferentes. U m bispo ou um pastor, por ta também a natureza da liderança em si mes­
exemplo, deve ser apto para ensinar (1 Tm ma e o significado da palavra diácono, pode­
3.2; Tt 1.9), o que não é dito sobre os diáco­ mos afirmar que há pelo menos três áreas de
nos. Por outro lado, os diáconos não devem responsabilidade nesse ministério, que são
ter língua dobre, o que não é mencionado para responsabilidades da função diaconal.
os bispos e pastores. Um a vez que os diáconos A primeira é o que Fuller chama de “mi­
estão envolvidos na vida cotidiana de muitos nistério de misericórdia” ( F u l l e r , 1978, p. 10)
cristãos, eles devem manter a língua sob con­ — o serviço aos necessitados, obviamente aos
trole até mais do que outros. Do contrário, se de dentro da igreja, como as viúvas, porém
multiplicariam as fofocas, os mal-entendidos, também aos necessitados de fora, até porque
os sentimentos de mágoa e de ciúme. essa é uma responsabilidade de todo cristão.
Q uarto, os líderes devem ser eleitos pelo H á uma divisão entre as atribuições dos diá­
povo a que eles servem. E m Atos 6, somos conos nesse ponto, se a responsabilidade as-
informados com o os cristãos escolheram os sistencial dos diáconos é só com os membros
primeiros diáconos: sete varões de boa repu­ de sua própria congregação ou com as outras
tação, cheios do Espírito Santo e de sabedo­ pessoas também.
ria. Os diáconos não foram escolhidos pelos O que mostrar aos que acham que sua
apóstolos. responsabilidade é somente em relação aos
Além do mais, o povo acertou na escolha. irmãos da fé? E claro que devemos reconhe­
Repare que a reclamação anterior sobre a ges­ cer que o conceito que essa visão expressa é
tão dos fundos da Igreja veio dos cristãos gre­ válido: cristãos devem cuidar de cristãos. N ão
gos, os helenistas, e os que foram escolhidos fazer nem isso seria uma desgraça.
eram aparentemente de origem grega, a julgar Podemos concordar que se os recursos
pelos seus nomes — uma jogada perspicaz, são limitados, a obra de misericórdia deveria
começar com aqueles que fazem parte de nos­ Os problemas de nossas cidades precisam de
sa família espiritual. Paulo afirma isso quando estudo, reflexão e oração [...] A desaprovação
instrui os gálatas: Então, enquanto temos que muitos têm em relação ao posicionamento
tempo, façamos o bem a todos, mas principal­ e à postura de muitas denominações a respeito
m ente aos domésticos da f é (G 16.10). de diversos assuntos políticos não deve impe­
Contudo, isso não é tudo o que os diáco­ dir-nos de buscar sabedoria para contribuir de
nos têm de fazer. São eles que devem liderar a forma positiva para a solução dos problemas
igreja em seu ministério para o mundo, as­ do mundo quando está em jogo a sobrevivên­
sim com o para os que pertencem à comuni­ cia de seres humanos. N o mínimo, o quadro de
dade cristã. Sem dúvida, devem ser estabele­ diáconos deve ter autoridade para patrocinar
cidas prioridades. Nenhum grupo de cristãos um fundo de assistência aos famintos, para não
pode dar conta de todas as carências que se ter de depender apenas das ofertas rotineiras da
apresentam. igreja. ( F u l l e r , 1978, p. 19)
Todavia, se os diáconos devem mostrar o
caminho no serviço da igreja, eles devem Além das finanças, os diáconos devem or­
mostrar que a compaixão é estimulada pelas ganizar um ministério de visitação aos presos,
necessidades onde quer que elas apareçam, e serviços de apoio aos idosos ou visitas a hospi­
não apenas entre o nosso povo. tais e asilos. Nas grandes cidades, a maioria dos
Aqui, temos o exemplo do Senhor Jesus asilos para pobres ou idosos nunca recebe visita.
Cristo, que, embora tenha mostrado uma O utra área de responsabilidade é o evan-
preocupação especial com Israel, não deixou gelismo. Isso é conseqüência natural do “mi­
de realizar ações de misericórdia entre a po­ nistério de misericórdia”, naquelas oportuni­
pulação de gentios da Galileia (Mt 14.13-21; dades de compartilhar o evangelho que surgem
15.32-39), entre os gentios de Tiro e Sidom nas situações de ajuda material. Vários exem­
(Mc 7.24-30) e também de Decápolis (Lc plos bíblicos nos levam a acreditar nisso.
8.26-39). Filipe, um dos diáconos da lista dos sete, é
Se os diáconos ministrarem apenas aos ne­ chamado o evangelista (At 21.8). Deus o usou
cessitados da igreja local, já será uma coisa para levar o evangelho aos samaritanos (At
boa e, sem dúvida, estimulará outros mem­ 8.5) e, mais tarde, a um etíope ligado à nobre­
bros da igreja a arregaçarem as mangas. N o za (A t 8.26-40). Filipe tinha um dom para
entanto, se entenderem a sua atribuição como evangelismo transcultural.
algo mais amplo, o ministério poderá ser ain­ O utro diácono da lista, Estêvão, pregou
da mais eficaz. Fuller escreve: com grande poder diante do Sinédrio judeu, o
mesmo grupo que havia condenado Jesus.
Um quadro de diáconos funcionando de forma Sua pregação foi tão verdadeira que eles o
adequada dará atenção solidária à vizinhança mataram. Estêvão acabou sendo o primeiro
na qual ele é chamado por Deus para atuar. Ele mártir da Igreja. N ão é pouca honra estar na
desenvolverá também um projeto para capaci­ linha sucessória de tamanhos exemplos de
tar outros membros da igreja para esse ministé­ unção e heroísmo.
rio. Assim como os apóstolos, que mesmo de­ Terceiro, os diáconos têm obrigação de
pois da escolha dos sete continuaram a treinar outras pessoas. A responsabilidade de
ministrar sobre os necessitados, nós não deve­ um pastor é ensinar, como veremos no próxi­
ríamos declinar desse privilégio dado aos cris­ mo tópico; todavia, este não é um chamado
tãos e que só precisa de um direcionamento. de todos os cristãos. Todos são chamados para
as ações de misericórdia e evangelismo, e os com fo m e e te demos de com erf O u com
diáconos, nessas áreas, têm obrigação não sede e te demos de b eb er? E, quando te
somente de treinar, mas também de liderar vimos estrangeiro e te hospedamos? Ou nu
toda a família de Deus. e te vestimost E, quando te vimos enfermo
Isso acontece, por exemplo, quando um ou na prisão e fomos ver-te ? E, responden­
diácono leva com ele alguém que não é diáco- do o Rei, lhes dirá: E m verdade vos digo
no para uma ação de misericórdia e evangelis­ que, quando o fizestes a um destes meus
mo. Contudo, é recomendável que isso se dê pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
por meio de um treinamento formal em clas­ Mateus 25.34-40
ses de adultos ou seminários.
Diáconos que tenham o dom de adminis­ S u p e r v is ã o e e n s i n o ________________________

tração podem organizar a igreja para ações Os diáconos, entretanto, não são os úni­
mais abrangentes, tais como evangelizar um cos separados para servir ao povo de Deus na
bairro, ter voz ativa nas decisões políticas da igreja local. Eles devem liderar no serviço prá­
cidade, prestar serviços nas prisões, nos asilos tico e externo. Os bispos e pastores, por sua
ou hospitais. vez, devem servir pela sua supervisão da igreja
Fuller afirma que onde isso acontece: 1. os e pelo ministério de ensino. Um a vez que essas
cristãos ficam entusiasmados com o nunca; pessoas têm a responsabilidade principal da
2 . eles cumprem corretamente o serviço dado igreja, uma atenção maior deve ser dada às suas
por Cristo; 3. a hipocrisia é removida das ora­ qualificações para o ministério.
ções intercessoras dos cristãos; e 4. as pessoas Atos 20.28 é um texto-chave. Ele aparece na
são ajudadas. E, sobretudo, estão demons­ metade do relato do último encontro do após­
trando a realidade da presença de Deus em tolo Paulo com os pastores da Igreja em Efeso,
sua vida. com quem ele havia passado sete anos, antes,
N ão devemos esquecer que na parábola em seu ministério. Naquele momento, Paulo
do nosso Senhor Jesus Cristo sobre as ovelhas estava a caminho de Jerusalém para o que veio
e os bodes, contada pouco antes de Sua prisão e a ser sua última estadia na cidade santa, e ele
crucificação, são assinaladas a presença e a au­ havia chamado os pastores para um último en­
sência do serviço genuíno prestado aos necessi­ contro na cidade de Mileto. Ele usou o evento
tados, que marcam a presença ou a ausência de para instruir aqueles homens e para alertá-los
um relacionamento salvador com Ele. O que sobre as suas responsabilidades, assim como
foi feito aos outros foi enxergado e recompen­ sobre os perigos que viriam. Paulo disse:
sado como um serviço para o próprio Senhor.
Olhai, pois, por vós e p o r todo o rebanho
Então, dirá o R ei aos que estiverem à sua sobre que o Espírito Santo vos constituiu
direita: Vinde, benditos de m eu Pai, possuí bispos, para apascentardes a igreja de Deus,
p or herança o Reino qu e vos está prepara­ que ele resgatou com seu próprio sangue.
do desde a fundação do m undo; porque Atos 20.28
tive fom e, e destes-me de comer; tive sede,
e destes-me de beber; era estrangeiro, e Esse versículo é importante principal­
hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; mente por causa de seu delineamento das
adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e duas principais áreas de responsabilidade do
fostes ver-me. Então, os justos lhe respon­ pastorado: a supervisão ou liderança espiritu­
derão, dizendo: Senhor, quando te vimos al e o ensino.
Supervisão espiritual é um dos significa­ apascentai o rebanho de D eus que está
dos de episkopos, traduzido com o supervi­ entre vós, tendo cuidado dele, não p o r
sor, que algumas vezes é traduzido como força, mas voluntariam ente; n em p o r
bispo. O termo aparece em 1 Timóteo 3.1, torpe ganância, mas de ânimo pronto;
onde Paulo começa a listar as qualificações nem como tendo domínio sobre a heran­
para aqueles que serão eleitos para essa fun­ ça de D eus, mas servindo de exem plo ao
ção. Se alguém deseja o episcopado [bispa­ rebanho. E, quando aparecer o Sumo
do], excelente obra deseja. A mesma palavra Pastor, alcançareis a incorruptível coroa
aparece em Tito 1.7: Porque convém que o de glória.
bispo seja irrepreensível. 1 Pedro 5.1-4
Nessas passagens e em outras, a palavra
episkopos é usada com o um termo descritivo Os pastores devem levar a sério a admo-
para pastor e, portanto, é para ser considerada estação de Pedro, e, quando o fizerem, ela os
como um sinônimo de pastor. Ou seja, bispo levará a envolver-se com profundidade na vida
não era necessariamente um cargo mais alto daqueles que estão sob seus cuidados. Eles
na Igreja de Jesus Cristo que teria autoridade devem preocupar-se com a saúde espiritual e
sobre o clero local, porém, em vez disso, uma com o crescimento dessas pessoas. E , às ve­
função específica do ofício de pastor1, que é a zes, também devem preocupar-se com a disci­
supervisão espiritual. plina do rebanho.
A função de supervisão é derivada da pró­ Nas igrejas nas quais a função de pastor é
pria palavra episkopos. Bispo, por sua vez, é levada a sério, o corpo de pastores é escolhido
uma simples pronúncia anglicana do termo para formar uma corte na igreja.
em grego, contudo a palavra em si significa N o entanto, a dificuldade nas igrejas é que
protetor. Epi, o prefixo, significa sobre. Skopos as pessoas que presidem sobre outras muitas
é protetor. Logo, episkopos refere-se a alguém vezes acreditam que isso é tudo o que os pas­
que está exercendo proteção/supervisão sobre tores devem fazer.
outras pessoas. U m pastor tem responsabilida­ Com o Lawrence R. Eyres assinala num
des de proteção e supervisão. Os pastores de­ estudo precioso sobre a responsabilidade dos
vem preocupar-se com o bem-estar dos outros. pastores:
O termo episkopos aparece muitas vezes
no contexto da imagem pastoral. A função de Eles esquecem que os pastores, como subpas-
um pastor espiritual é comparável à de um tores de Cristo, devem também ministrar aos
pastor de ovelhas. santos; eles devem andar e, às vezes, correr pa­
Em Atos 20.28 Paulo se refere à igreja co­ ra alcançar as ovelhas desgarradas de Cristo; e
mo um rebanho e relembra aos pastores de eles devem ajoelhar diariamente para apresen­
Éfeso que eles têm a responsabilidade de ali­ tar seu rebanho diante do trono da graça em
mentá-lo. De forma semelhante, Pedro ins­ oração! ( E y r e s , 1975, p. 14)
truiu os pastores de uma igreja para a qual ele
escreveu: A segunda responsabilidade dos pastores
é ensinar. A estrutura de Atos 20.28 deixa
Aos presbíteros que estão entre vós, adm o­ claro que o ministério de supervisão é para
esto eu, que sou também presbítero com ser exercido principalmente por meio do en­
eles, e testemunha das aflições de Cristo, e sino. E m outras palavras, a direção que foi
participante da glória que se há de revelar: dada a eles não é uma forma de autocracia,

óóO
de autoridade absoluta pela qual os pastores Q u a l i f i c a ç õ e s e s p i r i t u a i s ________________

se sentam e decidem o que deve ser feito, As qualificações para pastores são dadas
quem deve fazer, quem não deve fazer, e em dois trechos das cartas pastorais de Paulo.
quem deve ser disciplinado. Em vez disso, é O primeiro é 1 Timóteo 3.1-7 e contém 14 des­
uma supervisão na qual a autoridade está co ­ ses requisitos. O segundo trecho, Tito 1.5-9,
locada sobre as bases do ensino da Palavra inclui a maioria desses e mais seis. A o todo,
de Deus. são 20 itens. Eles podem ser considerados nas
Isso significa que todos os pastores devem seguintes categorias:
estar preparados para ensinar publicamente a
grandes platéias. Todavia, todos os pastores 1. U m pastor deve ser irrepreensível (1 Tm
devem conhecer as Escrituras e ter a capaci­ 3.2; T t 1.6,7). Esse item vem em primeiro lu­
dade de trazê-las à luz para atuar sobre qual­ gar em ambas as listas de qualificações de
quer problema encontrado na vida daqueles Paulo e com certeza merece permanecer onde
que estão sob os seus cuidados. está, tendo em vista que sintetiza tudo o que
N os dias de Seu ministério terreno, Jesus vem depois. Isso tem a ver com a reputação
exerceu Sua autoridade dessa forma. Certo de uma pessoa. Porque os pastores têm o pos­
autor escreveu sobre isso: to de maior responsabilidade na igreja e re-
presentam-na perante o mundo, eles devem
Ele não se limitou a uma sala de aula; ao ser isentos de reprovação e de culpa, para que
contrário, ensinava em qualquer lugar onde a causa de Cristo não seja difamada.
via pessoas necessitadas — nos campos, nas
casas, na sinagoga, junto a um poço, nos ter­ 2. U m pastor deve ser marido de uma
raços, num barco no meio do lago, no alto m ulher (1 Tm 3.2; T t 1.6) e ter seus filhos em
de um monte, e até pregado numa cruz en­ sujeição (1 Tm 3.4; T t 1.6). Foi necessário es­
tre dois criminosos. Algumas vezes, as pes­ tabelecer a primeira dessas qualificações nu­
soas iam a Ele; outras, Ele ia até as pessoas. ma cultura em que um homem com frequên­
Às vezes, Ele pregava e ensinava, e às vezes cia tinha mais de uma esposa ou várias
fazia perguntas. Gostava muito de contar amantes. Contudo, ela está também vinculada
histórias. Ele transformava Suas palavras a uma educação correta dos filhos.
em imagens ao mencionar as aves no céu, a Paulo estava afirmando que os pastores
água no poço, o semeador no campo ou a devem ser líderes íntegros e bons governantes
lida do povo. Ele nunca era estereotipado, de sua própria casa, caso desejem ser conside­
nem bruto, nem usava palavras frívolas. Ele rados aptos para o ministério e despenseiros
sempre ia direto às necessidades, envolven­ da casa de Deus. O apóstolo disse: porque, se
do Seus ouvintes intelectual e emocional­ alguém não sabe governar a sua própria casa,
mente, penetrando sempre nos recônditos terá cuidado da igreja de D eus? (1 Tm 3.5).
mais profundos da personalidade deles. Je­ Em minha opinião, deduz-se dessa segun­
sus era sem dúvida o grande Mestre! ( G e t z , da citação que os pastores na igreja deveriam
1974, p. 124) ser homens, e não mulheres. Isso não é neces­
sariamente verdadeiro a respeito dos diáco­
O modelo de ensino de Jesus pode ser um nos, embora a qualificação marido de uma
exemplo para todos os pastores que deseja­ m ulher seja aplicada também a eles. A frase
rem cum prir esse importante aspecto de seu mostra que Paulo pensava nos diáconos como
chamado. homens quando ele escreveu esse requisito,

Só/
entretanto não é a mesma coisa que afirmar A pessoa hospitaleira é alguém cujo coração
que uma mulher não pode ser diaconisa. F e- está aberto sem hesitação para o solitário, o
be, mencionada em Romanos 16.1 com o rejeitado, o estranho [...] Hospitalidade éuma
diakonov, pode ser um exemplo de mulher questão de fé, a fé sem a qual ninguém pode
diaconisa. agradar a Deus. ( E y r e s , 1975, p. 30)
P or outro lado, embora Paulo não diga
5. U m pastor deve ser apto para ensinar
que uma mulher não pode ser uma diaconi­
(1 Tm 3.2). Essa exigência é feita aos pasto­
sa, ele parece declarar que uma mulher não
res, mas não aos diáconos; ela é indispensá­
pode exercer a função de pastor. P or exem­
vel para o ministério pastoral, e já foi discu­
plo, em 1 Timóteo 2.12, as duas responsabi­
tida antes neste capítulo.
lidades principais de um pastor são mencio­
nadas especificamente: N ão perm ito, porém , 6. U m pastor deve também ser marcado
que a m ulher ensine, nem use de autoridade pelas seguintes características: Não dado ao
sobre o marido. vinho, não espancador, não cobiçoso de torpe
ganância, mas moderado, não contencioso,
3. U m pastor deve ser sóbrio (1 Tm 3.2; não avarento (1 Tm 3.3). Não soberbo, nem
T t 1.8), sensível (1 Tm 3.2; T t 1.8) e honesto iracundo (Tt 1.7).
(1 Tm 3.2). Essas palavras podem ser tom a­ Esses oito itens estão relacionados e têm a
das com o expressões de uma atitude madura ver com a maneira como uma pessoa se rela­
e equilibrada diante do mundo. ciona com as outras. Líderes da igreja não de­
vem ter falhas de caráter que possam machucar
4. U m pastor deve ser hospitaleiro (1 Tm ou escandalizar seu próximo e causar proble­
3.2; T t 1.8). Hospitalidade não costuma ser ma à Igreja. Deve ser dito que essas são as ca­
levada em conta com o uma qualidade para racterísticas que correspondem de forma nega­
liderança na igreja; no entanto, exatamente tiva aos traços considerados positivos no item 3.
por essa razão, devemos dedicar uma atenção Um a afirmação semelhante do que é exigi­
especial a ela. A hospitalidade é uma virtude do nessa área é a lista de Paulo sobre o fruto
enfatizada por todo o N ovo Testamento: Se­ do Espírito contida em Gálatas 5.22,23 ( a r a ):
gui a hospitalidade (Rm 12.13). Não vos es­ Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz,
queçais da hospitalidade (Hb 13.2). Sendo longanimidade, benignidade, bondade, fideli­
hospitaleiros uns para os outros, sem m urm u- dade, mansidão, domínio próprio.
rações (1 Pe 4.9).
Devemos observar também a severidade 7. U m pastor não deve ser um neófito
com a qual a falta de hospitalidade é julgada. (1 Tm 3.6). Isso se refere à maturidade espiri­
Diótrefes, sobre quem o apóstolo João escre­ tual, não à idade. O encarregado de liderar a
veu, é um exemplo. Foi dito dele que não re­ igreja não deve ser novato ou novo converti­
cebe os irmãos, e impede os que querem rece- do. Isso parece óbvio. N o entanto, dificil­
bê-los, e os lança fora da igreja (3 Jo 1.10). mente uma recomendação dessa lista pode ser
João considerou as suas obras más e prome­ mais necessária para a igreja nos dias de hoje.
teu torná-las públicas quando lá estivesse. Contudo, parece que estamos no caminho in­
Hospitalidade não é simplesmente abrir a verso. Em vez de esperarmos os novos conver­
porta de casa para receber quem precisa. O tidos amadurecerem, nossa tendência é em­
que importa de verdade é a atitude do cora­ purrá-los para a linha de frente, dando a eles
ção. Com o escreveu Eyres: responsabilidade e visibilidade, acreditando
que isso os fará crescer. Todavia, Paulo disse nas questões de relacionamentos. Ser santo
que isso pode fazer os novatos na fé se enso- se refere à consagração e à piedade. Essas
berbecerem e caírem nos laços do diabo. virtudes são desenvolvidas num caminhar
Os cristãos precisam ser provados para próxim o de Deus.
crescer na fé, e isso leva tempo. Gene Getz
escreveu a respeito: 10. P or fim, um pastor deve reter firm e a
fiel palavra que é conforme a doutrina, para
A preocupação de Paulo é que um novo con­ que seja poderoso, tanto para admoestar com
vertido não tenha tido tempo de desenvolver a sã doutrina como para convencer os contra-
as virtudes de um homem de Deus maduro. dizentes (Tt 1.9). Capacidade para defender
Ele pode ter muita experiência nos negócios, com rapidez a verdade de Deus quando esta
pode ser muito capacitado em alguma profis­ estiver sob fogo cruzado é fundamental. U m
são. Ou pode ser um músico, artista ou espor­ pastor não deve ser abalado por teorias secu­
tista de grande talento. Mas não teve a opor­ lares conflitantes ou por desvios da verdade
tunidade ainda, nem tempo, de cultivar uma dentro da igreja. Esses ventos de impiedade
boa reputação, de ser testado moral e etica­ sopram em todas as eras e aparecerão com
mente. (G et z , 1974, p. 210) mais frequência e intensidade à medida que se
aproxima a volta de Jesus. Paulo escreveu:
N ão há benefício algum, tanto para o no­
vo cristão como para a igreja, em colocar um Sabe, porém , isto: que nos últimos dias so­
iniciante na fé num lugar de visibilidade como brevirão tempos trabalhosos; porque ha­
o pastorado. verá homens amantes de si mesmos, ava­
rentos, presunçosos, soberbos, blasfemos,
8. U m pastor deve ter bom testemunho desobedientes a pais e mães, ingratos, pro­
dos que estão de fora (1 Tm 3.7). Algumas ve­ fanos, sem afeto natural, irreconciliáveis,
zes, os cristãos olham para os chamados ím­ caluniadores, incontinentes, cruéis, sem
pios com tanto desprezo que até consideram am or para com os bons, traidores, obstina­
suas opiniões sem importância. Contudo, os dos, orgulhosos, mais amigos dos deleites
não cristãos, com certeza, são capazes de en­ do que amigos de Deus, tendo aparência
xergar quando a conduta do cristão está de piedade, mas negando a eficácia dela.
aquém do que ele professa. Um a vez que os 2 Timóteo 3.1-5
pastores representam a igreja diante do mun­
do, eles devem ser irrepreensíveis. Muitas Paulo alertou Timóteo para que evitasse
passagens do N ovo Testamento falam dessa essas pessoas e para que permanecesse naqui­
meta em relação aos cristãos em geral (1 C o lo que aprendeu em Cristo Jesus.
10.31-33; Cl 4.5,6; 1 Ts 4.11,12; 1 Pe 2.12). Quando eu e os pastores da Décima Igreja
Presbiteriana na Filadélfia, a minha igreja,
9. U m pastor deve ser amigo do bem , mo­ encontramo-nos para rever essas qualifica­
derado, justo, santo e temperante (Tt 1.8). C a­ ções, achamos a lista branda. Todavia, também
da um desses termos é autoexplicativo, e al­ a achamos estimulante. Percebemos que Pau­
guns parecem falar de quase a mesma coisa que lo não forneceu essas qualificações para de­
nos mostra 1 Timóteo 3.1-7. Dois termos, sencorajar ninguém para o ministério pastoral
moderado e temperante, têm a ver com do­ — ao contrário, ele incentivou os cristãos a
mínio próprio. Ser justo se refere à justiça desejarem esse ministério (1 Tm 3.1).

óóê
Afinal, por mais paradoxal que pareça, um daquele que m e enviou (Jo 6.38). E ele disse
bom líder é alguém que é um bom seguidor, sobre o Pai: E u faço sempre o que lhe agrada
um seguidor de Cristo. Quando veio a esta (Jo 8.29). Ser um líder é ser um seguidor pró­
terra, Jesus disse: Porque eu desci do céu não ximo do Senhor Jesus Cristo, que, por sua
para fa z er a minha vontade, mas a vontade vez, segue o Pai.

N ota

1 Isso não quer dizer que a existência de bispos como um cargo especial em certos ramos da Igreja cristã seja necessa­
riamente errado, no entanto apenas que a existência disso não tem respaldo no uso da palavra no Novo Testamento.
Uma denominação poderá querer examinar cuidadosa e criticamente cada aspecto de sua estrutura para que não se
ausente das instruções específicas dos apóstolos como registradas no Novo Testamento. Ela poderá perguntar em
que medida essa prática é uma extensão adequada do que é encontrado lá e se é compatível com a Palavra. Todavia,
o fato de uma igreja adicionar estruturas não encontradas no Novo Testamento não é um erro em si mesmo, uma vez
que situações diferentes em períodos diferentes da história da Igreja levem, por vezes, a soluções diferentes e até
altamente inovadoras. Pode ser alegado que o ofício de bispo preencha o papel administrativo antes executado pelos
apóstolos, e assim sirva de forma adequada ao propósito de manter as igrejas locais unidas.
A v id a n o C orpo

o início da Parte 2, listei três carac­ uma só família, ou, como observou Paulo,
terísticas que diferenciam a Igreja eram um só corpo em Cristo.
de qualquer outra instituição, seja
no período do Antigo, seja no do Porque ele [Jesus Cristo] é a nossa paz, o
N ovo Testamento. São elas: 1. ter sido funda­ qual de ambos os povos fe z um ; e, derri-
mentada em Jesus Cristo; 2. ter sido chamada à bando a parede de separação que estava
existência pelo Espírito Santo; e 3. abrigar pes­ no meio, na sua carne, desfez a inimizade,
soas de culturas diversas que se tornam, a par­ isto é, a lei dos mandamentos, que consistia
tir daí, um novo povo sob as vistas de Deus. em ordenanças, para criar em si mesmo dos
Os primeiros quatro capítulos desta seção dois um novo homem, fazendo a paz.
estudaram a primeira característica. Os pró­ Efésios 2.14,15
ximos três capítulos vão tratar da segunda,
porém a última característica deve ser consi­ Assim que já não sois estrangeiros, nem
derada agora mesmo. forasteiros, mas concidadãos dos Santos e
A Igreja, desde os seus primórdios, foi da família de Deus.
formada por povos diferentes. Isso, sem dú­ Efésios 2.19
vida, causou impacto nas pessoas que obser­
vavam aquilo tudo de fora. O mundo antigo Mais adiante, na mesma carta, o apóstolo
era dividido por nações, povos e religiões. coloca essa ideia em prol de uma meta:
Todavia, no cristianismo, desde o com eço,
partos, medos, elamitas e os qu e habitavam Mas, seguindo a verdade em amor, cresça­
na Mesopotâmia, e Judéia, e Capadócia, e mos em tudo naquele que é a cabeça, Cris­
Ponto, e Asia, e Frigia, e Panfília, Egito, e to, de quem todo o corpo, bem ajustado e
partes da Líbia, e cretenses e árabes entraram consolidado pelo auxílio de toda junta, se­
na Igreja com o iguais e experimentaram uma gundo a justa operação de cada parte, efe­
vida de comunhão juntos, com o um só povo tua o seu próprio aumento para a edifica­
(At 2.9-11). ção de si mesmo em amor.
E não era apenas uma união organizacio­ Efésios 4.15,16 ( a r a )
nal. Era bem mais que isso. Os membros da
Igreja estavam conscientes de serem novas V id a e m c o m u n h ã o _________________________

criaturas em Cristo. Barreiras que antes os Vida em comunhão continua sendo uma
dividiam haviam sido quebradas. Eles eram meta da Igreja de Cristo, embora ela seja muito
menos alcançada do que no início da Igreja. A ao fato de que todos somos pecadores. Eu
palavra grega para comunhão é koinonia, que, me refiro de forma específica ao pecado não
por sua vez, está baseada no substantivo gre­ confessado, que, em primeiro lugar, destrói a
go koinos, que significa comum. Ele diz res­ comunhão do cristão com Deus e, em segui­
peito às coisas que pessoas compartilham. da, destrói a comunhão com os outros cris­
U m sócio ou parceiro é um koinonos. A tãos. O apóstolo João falou de uma com u­
língua grega da época de Jesus e dos apóstolos nhão em duas vias, com Deus e de uns com
era chamada Koiné porque ela era falada por os outros:
muitos povos diferentes. Então, a comunhão
ou koinonia da igreja está baseada no que te­ O que vimos e ouvimos, isso vos anuncia­
mos em comum. mos, para que também tenhais comunhão
Em muitas igrejas seria difícil reconhe­ conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e
cer que os cristãos têm alguma coisa em co ­ com seu Filho Jesus Cristo.
mum, a não ser que se reúnem para adorar 1 João 1.3
num determinado horário aos domingos.
F ora isso, sua vida caminha em direções di­ Em seguida, o apóstolo mostra como essa
ferentes. Os cristãos não oram uns pelos comunhão pode ser rompida:
outros e não ajudam uns aos outros. Muitas
vezes, sequer se conhecem, ainda que fre­ Se dissermos que temos comunhão com ele
qüentem a mesma igreja. e andarmos em trevas, mentimos e não
Com o mostra Ray Stedman: praticamos a verdade. Mas, se andarmos na
luz, como ele na luz está, temos comunhão
O que está terrivelmente faltando é a experiên­ uns com os outros, e o sangue de Jesus Cris­
cia da vida no Corpo; aquela comunhão calo­ to, seu Filho, nos purifica de todo pecado.
rosa de cristão com cristão que o Novo Testa­ 1 João 1.6,7
mento chama de koinonia, e que era uma parte
essencial do cristianismo primitivo. (S t e d m a n , O pecado levanta uma barreira entre nós e
1972, p. 107) Deus. Se isso acontecer, a solução será confes­
sar o pecado, limpar o coração e restaurar a
E possível que muitas coisas estejam erra­ comunhão primeiro com Deus, depois com
das. Primeiro, pode ser o caso de que os que os outros.
têm participado dos cultos da igreja não se­ A falta de comunhão pode ser resultado
jam realmente cristãos. Eles podem ter um também da maneira como a igreja está organi­
“pedigree” cristão. Seus pais podem ter sido zada. Ela pode ser formal demais, pode ser
cristãos. Contudo, eles próprios não o são, e tão grande que as pessoas não conseguem
por não o serem, de verdade, não é de espan­ conhecer-se. John Stott reconheceu esse pro­
tar que a verdadeira comunhão cristã esteja blema na sua igreja relativamente grande em
faltando. A comunhão cristã genuína implica Londres. Ele escreveu:
muitas coisas, entretanto, no seu âmago, é
uma experiência comum da graça de Deus em Há sempre alguma coisa não natural e sub-
Jesus Cristo. Se uma pessoa não é cristã de -humana nas multidões. Multidões tendem a
verdade, não compartilha disso. ser aglomerados, em vez de congregações —
U m segundo problema pode ser o pecado aglomerados de pessoas que não se conhecem.
na vida dos cristãos envolvidos. N ão me refiro Quanto maiores eles são, menos os indivíduos
que fazem parte deles se conhecem e relacio­ têm sido a atividade mais estimulante e eficaz
nam-se uns com os outros. Sem dúvida, as mul­ da igreja.
tidões podem, na verdade, perpetuar o isola­ Por fim, começamos a dividir a igreja por
mento, em vez de curá-lo. (S t o t t , 1969, p. 70) afinidade profissional. H á grupos de artistas,
músicos, tem um coral e uma orquestra de
O problema da grandeza pode ser comba­ câmara, estudantes da área médica e enfer­
tido de várias maneiras. Primeiro, dividindo a meiras, e aspirantes ao ministério junto com
igreja em duas ou mais igrejas. Isso ocorre jovens pastores.
algumas vezes e deveria ser feito com mais A experiência de nossa igreja é semelhante
frequência. Todavia, uma divisão é difícil de à da A li Souls, de Londres. Stott escreveu so­
executar e nem sempre é desejável. Com cer­ bre o que aconteceu na A li Souls:
teza seria lamentável se todas as grandes igre­
jas se dividissem em unidades menores, já que O valor do pequeno grupo é que ele pode tor-
grandes igrejas podem conseguir coisas que nar-se um a comunidade de pessoas que se rela­
igrejas menores não podem. Elas podem lan­ cionam ; e nele os benefícios da afinidade pes­
çar projetos pioneiros, por exemplo. Sob o soal não se perdem, nem seu desafio é evitado
“guarda-chuva” de uma igreja grande, outras [ ...] N ão considero um exagero afirmar que os
igrejas menores podem dar certo. chamados pequenos grupos, família cristã ou
O utro jeito de promover comunhão nu­ grupos de com unhão são indispensáveis para
ma grande congregação é subdividir a igreja nosso crescim ento na direção da maturidade
em grupos pequenos de comunhão. Essa foi a espiritual. (S t o t t , 1969, p. 70,73)
solução que consideramos a mais eficiente na
Décima Igreja Presbiteriana da Filadélfia. U n s a o s o u t r o s _____________________________

Tentamos fazer três coisas de uma só vez. Pri­ Form ar pequenas igrejas ou pequenos
meiro, tentamos dividir a congregação de grupos não resolve o problema da falta de co­
acordo com a idade dos membros. Desta for­ munhão cristã. Devemos voltar-nos para o
ma, temos uma escola dominical muito seto- ensinamento bíblico específico sobre esse as­
rizada, e nos níveis mais altos criamos grupos sunto. Os muitos versículos que usam as pa­
para estudantes universitários, estudantes de lavras uns aos outros nos ensinam como os
pós-graduação, jovens casais, outras turmas nossos relacionamentos com os outros deve­
de adultos, e encontros variados para os riam ser.
membros idosos. Em segundo lugar, tenta­
mos dividir a congregação geograficamente. 1. Devemos am ar uns aos outros. Esta de­
A Décima Igreja ocupa uma área m etro­ manda é enfatizada na maioria das vezes, e,
politana grande e dispersa. Alguns membros em certo sentido, inclui tudo mais que pode
têm de dirigir 30 ou 40 quilômetros para che­ ser mencionado. Encontramos isso em João
gar lá. Reuniões nos dias de semana são invi­ 13, onde Jesus deu Seu novo mandamento:
áveis para a maioria. Portanto, estabelecemos
mais de 60 regiões de estudos bíblicos, onde Um novo mandamento vos dou: Q ue vos
as pessoas podem encontrar-se durante a se­ ameis uns aos outros; como eu vos amei a
mana com os membros de seu bairro. Elas se vós, que também vós uns aos outros vos
encontram para estudar a Bíblia, trocar expe­ ameis. Nisto todos conhecerão que sois meus
riências e orar juntas. Esses grupos têm uma discípulos, se vos amardes uns aos outros.
estrutura minúscula, porém, apesar disso, João 13.34,35
Ele é repetido duas vezes nesse Evangelho: Nosso amor deve romper as barreiras ra­
ciais e culturais. Francis Schaeffer escreveu:
O m eu mandamento é este: Q ue vos ameis
uns aos outros, assim como eu vos amei. Na Igreja de Antioquia, os cristãos incluíam
João 15.12 judeus e gentios e, em termos de classes sociais,
abrigavam desde o irmão adotivo de Herodes
Isto vos m ando: qu e vos ameis uns aos até escravos; e os autênticos e soberbos cris­
outros. tãos gregos, os gentios da Macedônia, de­
João 15.17 monstraram uma comovente preocupação ao
abrirem seus bolsos para ajudar financeira­
Em Romanos, Paulo disse: mente os cristãos judeus de Jerusalém. O
amor prático e visível entre os verdadeiros
A ninguém devais coisa algum a, a não cristãos que o mundo tem direito de observar
ser o am or com qu e vos ameis uns aos ou­ em nossos dias deveria expressar-se sem re­
tros; porq ue qu em ama aos outros cum ­ servas para além das nacionalidades, línguas,
priu a lei. fronteiras, idade, cor da pele, dos níveis de
Romanos 13.8 educação, situação financeira, do sotaque, da
linhagem, classe social, do vestuário, cabelo
Paulo mencionou como ele orava pelos curto ou comprido, andar calçado ou descal­
tessalonicenses: ço, das diferenças culturais, ou mesmo da
adoração mais ousada ou mais tradicional.
E o Senhor vos faça crescer e aum entar no ( S c h a e f f e r , 1970, p . 140)
amor uns para com os outros e para com
todos, como também nós para convosco. A expressão de comunhão ao longo de to­
1 Tessalonicenses 3.12 ( a r a ) da essa diversidade é tão importante que Jesus
a considerou como um sinal pelo qual o mun­
E escreveu: do conheceria que somos, efetivamente, Seus
discípulos.
Vós mesmos estais instruídos p o r D eus que
vos ameis uns aos outros. 2. Devemos servir uns aos outros. Paulo
1 Tessalonicenses 4.9 disse que o serviço é um desdobramento do
amor. Porque vós, irmãos, fostes chamados à
Em 1 João, o mandamento para amar uns liberdade; porém não useis da liberdade para
aos outros aparece cinco vezes (3.11,23; 4.7, dar ocasião ã carne; sede, antes, servos uns dos
11,12), e aparece de novo em 2 João 1.5. outros, pelo amor (G1 5.13 a r a ).
Esse am or não deve ser um simples sen­ N osso exemplo é Jesus, que demonstrou o
tim ento, menos ainda uma declaração ape­ caráter de amor do servo ao despojar-se de
nas com palavras. Ele deve ser p o r obra e Seus trajes, vestir a roupa de um servo, e abai-
em verdade, com o Jo ão afirma em 1 João xar-se para lavar os pés poeirentos de cada um
3.18. Deve ser exercitado em assuntos da de Seus discípulos. Porque eu vos dei o exem ­
vida prática com o oferecer dinheiro e ou­ plo, para que, como eu vos fiz, façais vós tam­
tros bens materiais aos irmãos e irmãs da bém (Jo 13.15).
igreja que estiverem passando necessidades A comunhão do Senhor Jesus Cristo com
(1 Jo 3.17). Seus discípulos expressa na cerim ônia de
lava-pés demonstra que devemos ser servos crescimento natural da aceitação e da con­
em tempo integral, ou seja, em todos os luga­ fiança no ambiente de um pequeno grupo.
res e de todas as maneiras. E cabe aos diáco-
nos dirigir esse serviço. Com o pequenos gru­ 4. Devemos perdoar uns aos outros. São
pos, podemos servir juntos ao apoiar uma muitos os textos no N ovo Testamento que
atividade cristã na região da cidade onde nos demonstram essa orientação imprescindível
reunimos, ajudando em projetos especiais da da verdadeira koinonia. A razão disso é que
igreja, visitando os enfermos, fazendo rodízio erramos com muita frequência, ou somos ví­
para ajudar os idosos carentes, ajudando na timas de erros, e por isso devemos perdoar e
mudança de membros da igreja, e em situa­ ser perdoados:
ções semelhantes.
Depois de falar de alguns desses projetos e Toda amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e
de como foram conduzidos em sua igreja, blasfêmias, e toda malícia seja tirada de
Stott escreveu: “Certamente, sem algum ser­ entre vós. Antes, sede uns para com os ou­
viço ou mobilização de ordem prática, a co ­ tros benignos, misericordiosos, perdoando-
munhão de qualquer grupo cristão está muti­ -vos uns aos outros, como também Deus
lada” (Stott , 1969, p. 87). vos perdoou em Cristo.
Efésios 4.31,32
3. Devemos levar o fardo uns dos outros.
Paulo escreveu aos gálatas: Levai as cargas E também:
uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cris­
to (G 16.2). É demonstração de amor aliviar o Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus,
peso que está sobrecarregando nosso irmão santos e amados, de entranhas de miseri­
cristão. Pequenos grupos são importantes córdia, de benignidade, humildade, m an­
porque podem fazer isso de forma efetiva. sidão, longanimidade, suportando-vos uns
Podemos levar as cargas uns dos outros quan­ aos outros e perdoando-vos uns aos outros,
do há um relacionamento efetivo entre os ir­ se algum tiver queixa contra outro; assim
mãos que nos permite saber quais são suas como Cristo vos perdoou, assim fazei vós
necessidades. também.
É claro que muitos problemas podem Colossenses 3.12,13
emergir nesse ponto, um dos quais a nossa re­
lutância natural em compartilhar nossos p ro­ E ainda:
blemas e confessar o que de fato nos está pre­
ocupando. Se tivermos dificuldades na escola Rogo-vos, pois, eu, o preso do Senhor, que
ou no trabalho, ou em casa com nossos filhos, andeis como é digno da vocação com que
hesitaremos em revelar porque, se tudo ali fostes chamados, com toda a humildade e
der errado, ficaremos vulneráveis. Ficamos mansidão, com longanimidade, suportan­
preocupados com o que os outros vão pensar. do-vos uns aos outros em amor, procuran­
Se tivermos dificuldades conjugais, aí é do guardar a unidade do Espírito pelo
que não vamos admitir mesmo! Engolimos vínculo da paz.
tudo até que os problemas cheguem a uma Efésios 4.1-3
situação insolúvel. N o entanto, como cris­
tãos, devemos aprender a compartilhar nos­ Aprendemos com esses versículos que em­
sos problemas. A maneira mais fácil é pelo bora a Igreja primitiva tivesse um alto grau de

ÓÓJ
comunhão verdadeira, tinha também momen­ sobre isso é dita a alguém da igreja, preferindo-se
tos conturbados, nos quais a amargura e a ira cultivar a imagem de uma família cristã ideal,
tomavam conta, e a paz da Igreja ficava amea­ sem problemas, e que de forma alguma precisa
çada. Os cristãos tinham de aprender a ser pa­ de ajuda.
cientes uns com os outros e perdoar as faltas. Para tornar as coisas ainda piores, esse tipo de
conspiração do silêncio é festejado como a ati­
5. Devemos confessar nossos pecados uns tude cristã correta, e a hipocrisia que ele apre­
aos outros. C om o exortou Tiago em sua carta senta aos outros e aos próprios membros da fa­
pastoral: Confessai as vossas culpas uns aos mília é considerada como parte do testemunho
outros e orai uns pelos outros, para que sareis; da família para o mundo. Como seria saudável
a oração feita p o r um justo pode muito em se um dos membros dessa família, de preferên­
seus efeitos (Tg 5.16). cia o pai, admitisse com honestidade num en­
Em oposição à doutrina de confissão da contro de irmãos que sua família está passando
Igreja Católica, na qual a confissão é feita a por dificuldades de relacionamento, e que preci­
um padre e a absolvição ou remissão dos pe­ sa muito de orações e conselhos para atravessar
cados é recebida dele, os protestantes estabe­ tal zona de turbulência. O membro da família
leceram que o modelo bíblico correto é a descobriria de imediato pelo menos duas coisas:
confissão a Deus e uns aos outros. U m cristão 1. que todos os outros cristãos na reunião se
pode confessar seus pecados a Deus e a um identificaram com o seu problema e que passa­
irmão e estar seguro de que Deus o perdoou e ram a admirá-lo mais do que nunca por causa
justificou-o por intermédio de Cristo. de sua honestidade e franqueza; e 2. que um
Essa doutrina reformada do sacerdócio baú de conselhos úteis estava abrindo-se para
universal de todos os cristãos é um conceito ele, da parte dos que passaram por lutas seme­
muito importante. N o entanto, a confissão lhantes e que aprenderam preciosas lições com
desse tipo é mais teórica do que prática em elas. Além disso, as orações dos cristãos de sua
nosso meio. A dura realidade é que a maioria igreja desejosos de ajudá-lo a carregar seu far­
dos evangélicos passa pela vida sem ter con­ do liberariam grande poder espiritual sobre a
fessado coisa alguma a ninguém. Pelo nosso situação, fazendo com que os membros da fa­
discurso, as pessoas de fora devem pensar que mília pudessem enxergar com muito mais cla­
nunca pecamos e nunca temos problemas. reza as questões a serem resolvidas e pudessem
C om o isso é diferente da verdadeira co ­ suportar com paciência e amor as fraquezas
munhão! Veja o que escreveu Ray Stedman: dos outros. (S t e d m a n , 1972, p. 110-111)

C ostum a-se ir ao extrem o para passar a ima­ O apóstolo Tiago almejou esse resultado.
gem de cristão perfeito, uma vez que m uitos de Ao encorajar-nos a confessar nossos pecados
nós acreditam que serão rejeitados se admiti­ uns aos outros, ele vinculou o ato à oração, e
rem seus erros e falhas. Mas, nada pode ser prometeu que haveria poder derramado: Con­
mais destrutivo para a com unhão cristã do que fessai as vossas culpas uns aos outros e orai uns
a prática, m uito com um hoje em dia, de fingir pelos outros, para que sareis; a oração feita por
que não se tem problemas. É muitas vezes ver­ um justo pode muito em seus efeitos (Tg 5.16).
dadeiro que os lares cristãos estão cheios de
brigas, discussões, explosões de raiva, e até 6. Devemos instruir uns aos outros. Se não
agressões físicas de um m em bro da família conhecermos a Palavra de Deus e não andarmos
contra o outro, e, no entanto, nenhuma palavra em comunhão com Ele, não poderemos fazer
isso. N o entanto, se conhecermos a Escritura e filtradas pela ideia branda de comunhão que a
estivermos próximos de Deus, será verdadeiro maioria de nós ainda tem. Comunhão é algu­
para nós o que Paulo disse dos cristãos de Roma: ma coisa como sentarmos juntos em volta de
uma lareira num dia muito frio. Esse conceito
E u próprio, meus irmãos, certo estou, a res­ deixa de lado uma coisa importante: a nature­
peito de vós, que vós mesmos estais cheios za radical da verdadeira comunhão bíblica.
de bondade, cheios de todo o conhecimen­ Longe de ser branda e passiva, ela é, na verda­
to, podendo admoestar-vos uns aos outros. de, uma coisa ativa e flamejante.
Romanos 15.14 U m a descrição maravilhosa disso aparece
no último capítulo do estudo da Igreja de
Em uma comunhão de pequeno grupo Elton Trueblood chamado The Incendiary
aprendemos com os irmãos. Fellowship [A comunhão explosiva]. Ele mos­
tra que no Antigo Testamento a palavra fogo
7. P or fim, devemos consolar uns aos ou­tinha conotações de julgamento, entretanto no
tros. Paulo falou disso aos cristãos de Tessalô- N ovo Testamento ela se tornou um símbolo
nica, onde tinha havido alguns óbitos entre da natureza contagiante e expansiva do evan­
eles. Surgira uma discussão sobre a doutrina gelho de Jesus e da comunhão da Igreja.
da segunda vinda de Cristo, e Paulo lhes es­ João Batista afirmou que, quando Jesus
creveu para explicar que a nova vinda de viesse, Ele batizaria com fogo (L c 3.16). Jesus
Cristo afetaria tanto eles como os que já ha­ falou dos discípulos sendo salgados com fogo
viam morrido. Jesus voltaria, e aqueles que (Mc 9.49). N o Pentecostes, os discípulos vi­
tivessem morrido em Cristo ressuscitariam ram línguas repartidas, como que de fogo, as
primeiro em seu novo corpo à semelhança quais pousaram sobre cada um deles (A t 2.3).
dele. Revestidos de seu corpo ressurreto, eles Trueblood lembra que uma coisa é certa
se uniriam aos irmãos cristãos ainda vivos. sobre a comunhão da Igreja primitiva: ela
Portanto, consolai-vos uns aos outros com es­ era intensa. Aqueles que foram batizados
tas palavras (1 Ts 4.18). com fogo p or Jesus e que mantiveram a cha­
ma pelo contato próxim o entre si de forma
O fo g o de D e u s _____________________________ literal incendiaram o mundo ( T r u e b l o o d ,
U m ponto final. Sempre que falamos de 1967, p. 100-121). Veremos isso em nossos
comunhão, por mais que tentemos ser práti­ dias quando a vida no Corpo se tornar uma
cos e objetivos, nossas palavras são sempre realidade.

âf/
A G rande C omissão

/•
impossível discutir a responsabili­ vocação especial, mas testemunhar de Cristo
dade dos cristãos na comunhão da não cabe só a estes: é dever de todo cristão.
igreja sem esclarecer também que A aceitação dessa responsabilidade foi um
parte de sua atividade deve ser dire­ fator decisivo na expansão impressionante da
cionada para o mundo. Gene Getz observa is­ Igreja primitiva. N ão foram somente Paulo e
so em sua referência à saúde e vitalidade da outros líderes que levaram o evangelho aos
Igreja: confins mais longínquos do mundo romano.
Pelo contrário, muitos líderes da Igreja não
Os cristãos precisam de três elementos vitais eram particularmente zelosos com o esforço
para se tornarem cristãos maduros. Eles preci­ missionário. Todavia, os convertidos comuns,
sam de um bom ensino bíblico que lhes dê se­ onde estivessem, anunciavam o Senhor.
gurança espiritual e teológica; eles precisam de O historiador Edward Gibbon, simpati­
relacionamentos profundos e gratificantes tan­ zante do cristianismo, mostrou que o evange­
to uns com os outros como com Jesus Cristo; e lho já havia alcançado o litoral da índia por
precisam ver pessoas indo a Jesus como resul­ volta do ano 49, e as fronteiras da China em
tado do testemunho individual e coletivo para torno de 61 d.C.
o mundo não cristão. ( G e t z , 1 9 7 4 , p. 8 0 ) Tertuliano1, escrevendo por volta do ano
200, declarou aos seus contemporâneos ro­
A Igreja não existe para a satisfação dos manos:
interesses de seus membros. Estamos no
mundo para prestar testemunho da graça de Praticamente nascemos ontem, e já ocupamos
Deus em Cristo. Somos [...] a geração eleita, todos os lugares no meio de vocês — cidades,
o sacerdócio real, a nação santa, o povo adqui­ ilhas, fortalezas, vilas, mercados, campinas, tri­
rido, para que [anunciemos] as virtudes da­ bos, empresas, palácios, senado, fórum. Não
quele que [nos] chamou das trevas para a sua deixamos nada para vocês, a não ser os templos
maravilhosa luz (1 Pe 2.9). dos seus deuses. ( R o b e r t s e D o n a ld so n ,
O equívoco mais comum que os cristãos 1963, p. 45)
cometem nesse ponto é admitir a importância
da Grande Comissão, porém atribuí-la ape­ Com o esse fenômeno ocorreu? Gibbon
nas ao trabalho dos que são especificamente escreveu que na Igreja primitiva “tornou-se a
preparados para ela: os missionários. Alguns tarefa mais sagrada de um novo convertido di­
são chamados à obra missionária como uma fundir entre seus amigos e parentes a bênção
inestimável que havia recebido” ( G ib b o n , Em Lucas, a ênfase está no cumprimento
s/d, p. 388). da profecia:
Adolf Von Harnack2, um grande historia­
dor cristão, declarou: Então, abriu-lhes o entendimento para
com preenderem as Escrituras. E disse-lhes:
Os missionários mais numerosos e bem-suce- Assim está escrito, e assim convinha que o
didos da religião cristã não foram os mestres, Cristo padecesse e, ao terceiro dia, ressusci­
mas os cristãos comuns, por causa de sua leal­ tasse dos mortos; e, em seu nome, se p re­
dade e coragem [...] Era característica dessa gasse o arrependimento e a remissão dos
religião que todos que confessassem a fé se pecados, em todas as nações, começando
dedicassem ao serviço de sua propagação [...] p o r Jerusalém.
Não podemos hesitar em crer que a grande Lucas 24.45-47
missão do cristianismo foi, na realidade, su­
prida por meio dos missionários informais. N o relato de João, Jesus colocou o plano
(H a rn a ck , 1 9 6 1 , p. 3 6 6 -3 6 8 ) de Deus no contexto de Sua própria missão
dada pelo Pai: Assim como o Pai m e enviou,
Missionários informais. Isto é o que todos também eu vos envio a vós (Jo 20.21).
os cristãos, em toda parte, devem ser. Em Atos, o mandamento está vinculado a
um projeto para evangelização do mundo:
O id e d o S e n h o r ____________________________ Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que
Os cristãos deveriair; deixar seu conforto, há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas
arriscar sua vida, para levar o evangelho de tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e
Jesus Cristo às pessoas que muitas vezes os Samaria e até aos confins da terra (At 1.8).
odeiam e ridicularizam, assim com o o fazem A declaração mais conhecida da diretriz
com sua mensagem. H á muitas razões para pessoal de Jesus Cristo a todos os Seus segui­
isso, porém a principal é o fato de que os se­ dores está em Mateus, onde a ênfase recai so­
guidores de Cristo não estão livres para de­ bre a autoridade de Cristo:
terminar suas prioridades. Foi-nos mandado
evangelizar. E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo:
Esse mandamento, conhecido como a E -m e dado todo o p od er no céu e na terra.
Grande Comissão, é encontrado cinco vezes Portanto, ide, ensinai todas as nações, bati-
no N ovo Testamento: uma vez em Mateus, zando-as em nom e do Pai, e do Filho, e do
Marcos, Lucas e João, e uma vez no capítulo Espírito Santo; ensinando-as a guardar
de abertura do livro de Atos. N ão é possível todas as coisas que eu vos tenho mandado;
minimizar a importância de um mandamento e eis que eu estou convosco todos os dias,
mencionado nesses quatro Evangelhos. até à consumação dos séculos.
E m cada inserção, a ênfase da Comissão Mateus 28.18-20
da Igreja é um pouco diferente, o que nos
convida a estudá-la e refletir sobre ela sob di­ O Dr. R. C. Sproul, im portante teólogo
ferentes ângulos. Em Marcos, a ênfase é no americano, participou, quando ainda era es­
Juízo Final. E disse-lhes: Id e p or todo o m un­ tudante, de um curso de H istória da Igreja
do, pregai o evangelho a toda criatura. Q uem dado pelo professor John Gerstner. E m de­
crer e fo r batizado será salvo; mas quem não terminada aula, o professor discorreu sobre
crer será condenado (Mc 16.15,16). a predestinação e, como era de seu costume,
com eçou a fazer perguntas aos alunos. eles, de forma que pelo poder das Escrituras e
Sproul estava sentado no final de um gran­ do Espírito Santo eles se convertam de seus
de sem icírculo. G erstner com eçou pela ou ­ pecados e entreguem-se a Cristo, passando a
tra ponta. segui-lo com o seu Senhor.
Ele disse: “Respondam-me agora: Se a Evangelismo é a primeira e óbvia tarefa
predestinação é verdadeira, por que devería­ nessa Comissão. Por outro lado, sem o que
mos fazer evangelismo?”. O primeiro aluno vem depois dele, o evangelismo perde muito
simplesmente respondeu: “N ão sei”. O pro­ de seu sentido.
fessor se dirigiu ao próximo na roda, que dis­ Jesus foi em frente para dizer, em segundo
se: “D errubou-m e!”. O próximo seminarista lugar, que aqueles que são seus devem condu­
respondeu: “Estou contente que o senhor te­ zir seus convertidos ao ponto de serem publi­
nha levantado essa questão, porque sempre camente batizados em nom e do Pai, do Filho,
tentei encontrar essa resposta”. e do Espírito Santo. Isso não significa que,
O professor foi percorrendo todo o semi­ num instante, deve ser providenciada uma ce­
círculo, indagando aos seus alunos um por rimônia de batismo. N ão é por aí. A o contrá­
um. Sproul estava encolhido em seu canto se rio, ele deve significar duas coisas:
sentindo com o um personagem dos diálogos Primeiro, o total comprometimento de
de Platão. Cheio de temor, ele também aguar­ coração com Jesus como Salvador e Senhor
dava a sublime resposta para o impenetrável deve tornar-se público. Batismo é um ato pú­
mistério daquela pergunta. blico. E uma declaração diante de outros cris­
P or fim, Gerstner chegou até ele e per­ tãos e do mundo de que a pessoa que está
guntou: “Bem , Sr. Sproul, imagino que o se­ sendo batizada pretende seguir Jesus.
nhor tenha a nossa resposta. Se a predestina­ Segundo, o novo cristão está agora se
ção é verdadeira, por que deveríamos fazer unindo à Igreja, o C orpo visível de Jesus
evangelismo?”. Cristo. Se houve uma conversão real, ele vai
Ele lembra que deslizou em sua cadeira e querer estar identificado com outros cristãos.
começou a desculpar-se: “Bem, professor Por fim, Jesus instruiu os que levam à
Gerstner, sei que isso não é o que o senhor está frente a Sua Comissão para que ensinem aos
querendo, e sei que deve estar procurando algu­ outros tudo que Ele lhes tem ensinado. Uma
ma resposta intelectual e profunda que não es­ vida inteira de aprendizado segue a conversão
tou preparado para dar. Contudo, ocorre-me e a adesão à Igreja.
um pequeno ponto que acho que deveríamos A obra missionária completa é anunciar o
observar aqui: Deus nos manda evangelizar”. evangelho, ganhar homens e mulheres para
O professor abriu um largo sorriso e dis­ Cristo, trazê-los para a comunhão da igreja e,
se: “Exato, Sr. Sproul. Deus nos manda evan­ então, cuidar para que se tornem discípulos
gelizar”. E prosseguiu irônico: “E o que po­ aprendendo as verdades das Escrituras.
deria ser mais insignificante do que o fato de Quando obedecemos ao Senhor nesse as­
o Senhor da glória, o Salvador de sua alma, o sunto, somos encorajados por duas coisas:
Senhor Deus onipotente, tê-lo mandado toda autoridade foi dada a Jesus, e Ele prome­
evangelizar?” (S p r o u l , 1977, p. 127-128). teu que estará conosco todos os dias até a
Jesus não apenas nos manda evangelizar, consumação dos séculos. Olha que é uma
Ele nos diz também com o fazê-lo. Primeiro, promessa e tanto!
devemos fa z er discípulos de todas as nações. Recordamos a passagem no começo do
Temos a obrigação de pregar o evangelho a Evangelho de Mateus onde o recém-nascido
Jesus recebeu Seu nome. Eis que a virgem injustiça (Rm 1.18). E m Apocalipse 20.11-15,
conceberá e dará á luz um filho, e ele será cha­ ficamos sabendo do julgamento do grande
mado pelo nom e de E M A N U E L . (E M A ­ trono branco. Naquele julgamento todos te­
N U E L traduzido é: D eus conosco) (Mt 1.23). rão de prestar contas, e os que não tiverem
Somos informados de que o grande Deus do seu nome escrito no Livro da Vida estarão
universo se tornou Deus conosco por meio da perdidos para sempre.
encarnação. É uma grande notícia. Nada é tão importante para qualquer indi­
C ontudo, no capítulo final do livro, so­ víduo quanto escapar da ira de Deus, quer a
mos informados de que Deus não apenas pessoa tenha conhecimento dessa necessida­
esteve conosco durante os 33 anos de Sua de, quer não. Em bora as pessoas fora de
vida na terra; por causa de Sua ressurreição, Cristo possam não ter consciência do perigo
Ele está conosco para sempre, em todos os que correm , não há desculpa para que os
lugares, e da mesma forma. O todo-podero- cristãos desconheçam isso. A consciência
so Jesus Cristo estará conosco para nos dessa necessidade terrível deve impulsionar
abençoar quando sairmos para anunciar Seu todos nós que encontramos a graça de Deus
evangelho. em Cristo a falar do evangelho da maneira
mais sábia, mais relevante e mais ampla que
A ir a d e D e u s ________________________________ pudermos.
Um a segunda motivação para a empreita­
da missionária é a necessidade dos homens e O amor de C r is t o __________________________

das mulheres. Todos estão perdidos sem Cris­ Por fim, o amor do Senhor Jesus Cristo
to. A maior necessidade do mundo é escapar deveria ser uma forte motivação missionária.
do terrível Juízo da ira de Deus que paira sobre Paulo escreveu:
a humanidade. A opinião pública em nossos
dias é contra essa ideia. N o entanto, a Bíblia Porque o amor de Cristo nos constrange,
ensina isso de forma clara, e os cristãos devem julgando nós assim: que, se um m orreu por
agir segundo a Palavra de Deus. todos, logo, todos morreram. E ele morreu
Paulo escreveu aos efésios que antes de p o r todos, para que os que vivem não vi­
sua conversão eles estavam sem Cristo, sepa­ vam mais para si, mas para aquele que por
rados da comunidade de Israel e estranhos aos eles m orreu e ressuscitou.
concertos da promessa, não tendo esperança e 2 Coríntios 5.14,15
sem D eus no m undo (Ef 2.12).
Jeremias descreveu o povo com o ovelhas Esses versículos não estão referindo-se ao
perdidas (Jr 50.6). Jesus contou parábolas nosso amor por Jesus, embora isso, talvez,
sobre perdas: uma ovelha, uma moeda, e possa ser também um incentivo para a mis­
um filho (L c 15). Jo ão, p or sua vez, escre­ são. Referem-se, entretanto, ao amor de Cris­
veu: Q uem crê nele não é condenado; mas to operando por meio daqueles que fazem
quem não crê já está condenado, porquanto parte de Seu povo. Ele ama o mundo por nos­
não crê no nom e do unigênito Filho de D eus so intermédio, e o Seu amor deveria constran-
(Jo 3.18). ger-nos a identificar e encontrar aqueles que
O ensinamento de Paulo no livro de R o­ precisam do evangelho.
manos começa assim: Porque do céu se mani­ Eis aqui duas histórias por meio das quais
festa a ira de D eus sobre toda impiedade e podemos avaliar a presença ou a ausência do
injustiça dos homens que detêm a verdade em amor de Cristo pelos outros em nossa vida.
Durante meus anos na Basiléia, fazendo Ele disse que estava na América do Sul
faculdade, conheci Sheila. Ela tivera uma his­ para uma série de encontros evangelísticos e,
tória conturbada na Inglaterra e chegou à Su­ após um deles, uma mulher se aproximou e
íça ainda jovem na esperança de encontrar disse: “Quero saber se o senhor teria algum
uma vida melhor. A moça era muito solitária. tempo para conversar com uma moça que tra­
Carente de afeto, ela se uniu a um homem rei à reunião de amanhã à noite. Ela foi para
sem casar que a engravidou e depois a aban­ N ova Iorque, alguns anos atrás, com muita
donou com um bebê para cuidar. N o momen­ esperança, achando que a América era a terra
to em que a encontrei, a criança estava com das oportunidades. Mas, em vez de tudo dar
quatro anos de idade, e Sheila parecia sempre certo, ela passou por tempos terríveis naquela
desconfiada com as pessoas, além de ser mui­ cidade. Foi abusada por um homem atrás do
to hostil à igreja e ao cristianismo. outro. Todos a trataram muito mal. Agora,
Com o tempo, pelo testemunho da comu­ ela voltou ao nosso país muito amarga e com
nidade de língua inglesa, ela se tornou uma muita resistência ao cristianismo”. O evange­
cristã, e na época em que eu estava deixando a lista disse que falaria com a moça.
Suíça para retornar à América Sheila estava N a noite seguinte, a jovem estava lá.
imigrando para o Canadá. Minha esposa e eu Vangioni con tou que nunca tinha cruzado
nos correspondemos com ela por cerca de seis com olhos tão duros ou ouvido uma voz
meses após a sua chegada ao Canadá, e tive­ tão agressiva. P o r fim, vendo que não esta­
mos a impressão de que ela não estava encai­ va progredindo na conversa com ela, ele
xando-se em nenhum dos grupos cristãos de perguntou: “Você permite que eu ore por
seu bairro. Decidimos visitá-la, e descobri­ você?” “O re, se quiser. Contudo, não pregue
mos que era verdade. para mim e não espere que eu ouça” — foi a
Então, começamos a falar sobre ela a vá­ resposta.
rias pessoas cristãs que conhecíamos e passa­ O evangelista começou a orar, e, à medida
mos a conhecer na cidade. Havia um leve in­ que orava, ele foi entristecendo-se. Alguma
teresse da parte delas, porém amor não. Elas coisa na tragédia daquela vida fez com que
nos diziam: “Ah, sim. H á uma igreja muito lágrimas escorressem pelo seu rosto. Até que
boa por aqui”. E davam-nos o nome. Algu­ ele parou. N ão havia mais nada a acrescentar.
mas vezes, era uma Igreja Presbiteriana, ou­ Ele disse: “Tudo bem, pode ir”.
tras vezes uma Igreja Batista, e assim por N o entanto, a jovem não foi. Tocada por
diante. Todavia, em nenhuma das conversas aquela manifestação de amor, ela respondeu:
alguém disse: “Dê-me o nome e o endereço “N ão, eu não vou. Você pode pregar para
dela. Vou aparecer e convidá-la para ir comi­ mim agora. Nenhum homem tinha chorado
go ao culto no domingo de manhã”. por mim antes”.
Por fim, sentindo-se muito infeliz, ela trocou Precisamos perguntar se alguma vez fo­
aquela cidade por outra e, mais uma vez, envol­ mos tocados de verdade por alguém que está
veu-se com más companhias. Até que, depois de perdido e sem consciência do amor de Cristo.
muito esforço, perdemos contato com ela. Dizemos “Temos uma igreja maravilhosa.
A segunda história é mais otimista. Foi Você iria até lá?”, ou saímos do nosso com o­
contada no Congresso de Berlim sobre Evan­ dismo para conhecer e comunicar-se com essa
gelismo em 1966 pelo Reverendo Fernando pessoa?
Vangioni, que hoje trabalha na Associação Deveríamos ser capazes de dizer como
Billy Graham. Paulo:
Porque, se enlouquecemos, é para Deus; e, Cristo, como se D eus p or nós rogasse. Ro­
se conservamos o juízo, é para vós. D e sor­ gamos-vos, pois, da parte de Cristo que
te que somos embaixadores da parte de vos reconcilieis com Deus.
2 Coríntios 5.13,20

N otas

1 Tertuliano foi um dos mais importantes e originais escritores latinos. Formou-se como jurista e exerceu advocacia
em Roma. Converteu-se ao cristianismo e estabeleceu-se em Cartago, pondo a sua erudição a serviço da fé.
2 Adolf Von Harnack foi um teólogo alemão, além de historiador do cristianismo.
Pa r t e

3
Uma história de duas cidades

Falou o rei e disse: Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei para a casa real, com
a fõrça do meu poder e para glória da minha magnificência?
Daniel 4.30

Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos; porque haverá
homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedien­
tes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afêto natural, itreconciliáveis, caluníadotts,
incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos,
mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo apatência de piedade, mas negan­
do a eficácia dela. Destes afãsta-te.
2 Timóteo 3.1-5

E vi um novo céu e uma nova terra. Porquejá o primeiro céu e a primeira terra passaram,
e o marjá não existe. E eu, João, vi a Santa Cidade, a novaJerusalém, que de Deus descia
do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido.
Apocalipse 21.1,2

Respondeu Jesus: Nenhum poder terías contra mim, se de cima te não fosse dado; mas
aquele que me entregou a ti maior pecado tem.
João 19.11
A CIDADE SECULAR

o ano 410 d.C., um rei visigodo A obra tem 22 livros ou capítulos. Os dez
chamado Alarico montou um cer­ primeiros respondem à acusação dos pagãos,
co contra Roma e a saqueou. A ca­ mostrando que a adoração aos antigos deuses
pital do Império Romano já havia não protegeu Rom a nem outras cidades ou
sido sitiada pelos bárbaros, mas esse saque dos culturas, no passado, pois muitos fracassos,
visigodos foi política e psicologicamente de­ militares e de outras ordens, aconteceram an­
vastador para ela. Roma era, até então, a “dona tes da queda do Império Romano. N a verda­
do mundo”, e seu domínio se manteve por mais de, a adoração a divindades pagãs lançou R o­
de mil anos. Entretanto, quando seu império ma à prática de vícios pelos quais aqueles
caiu, os cidadãos dela (que mal puderam assimi­ deuses eram conhecidos, portanto ela caiu em
lar o impacto da tragédia) procuraram alguém, decorrência de sua própria corrupção.
ou alguma coisa, em que botar a culpa. N os 12 livros restantes, Agostinho desen­
N ão demorou muito para a culpa cair so­ volveu sua própria filosofia da história, mos­
bre os cristãos, como já havia acontecido 400 trando que desde a primeira rebelião dos anjos
anos antes por causa de problemas menos sé­ caídos contra Deus “duas cidades foram for­
rios. Os pagãos atribuíram a queda de Roma madas por dois amores: a terrena, pelo amor
ao enfraquecimento do culto aos antigos deu­ do eu, e a celestial, pelo amor de Deus e para
ses, os quais a protegiam e faziam dela um desprezo do eu” ( S c h a f f , 1977, p. 282,283).
grande império. Eles disseram que a causa de Em sua obra, Agostinho usou a palavra
tudo isso era o cristianismo. cidade para se referir a duas sociedades. Um a
Por providência de Deus, havia um ho­ delas é a Igreja, formada pelos escolhidos de
mem particularmente equipado para os con­ Deus e destinada a governar o mundo. A ou­
flitos daquela era: Agostinho de Hipona (no tra é a sociedade terrena com suas maiores
norte da África). Em 412 d.C ., ele iniciou representantes: a cultura da Babilônia nos
uma sábia e inspirada defesa do cristianismo tempos antigos e Rom a num passado recente
chamada A Cidade de Deus, que se tornou, da vida de Agostinho. A cidade terrena está
talvez, a sua obra literária mais conhecida de­ destinada a passar, a ficar para trás. N a segun­
pois de Confissões. Agostinho dedicou muito da parte de sua obra, o brilhante filósofo de
tempo a esse trabalho, terminando somente Hipona traça as origens, a história e o destino
em 426 d.C. Desde então, os acadêmicos têm final das duas sociedades.
reconhecido sua obra como a primeira filoso­ N em todo mundo concordou com a inter­
fia verdadeira da história. pretação que Agostinho fez da história, é claro.
Os pensadores seculares não concordaram, e amaldiçoou a serpente, lançando Sua palavra
até alguns cristãos resistiram a partes dela. de decreto e profecia.
N o entanto, a tese central de A Cidade de N ós vemos aqui três grupos de antago­
D eus teve enorme influência na época da R e­ nistas: a serpente e a mulher, a serpente e os
forma, fornecendo as bases para a doutrina descendentes da mulher. Além destes, vemos
dos dois reinos de Lutero e Calvino. Ela pre­ o próprio Satanás e o último descendente da
cisa influenciar novamente nossa geração, mulher, Jesus C risto. A vitória da semente
pois a linha que separa o sagrado do secular divina da mulher, o Senhor Jesus, já está
tornou-se muito tênue em nossos dias. Os garantida.
cristãos precisam recapitular o que significa Se Gênesis 3.15 fosse o único texto a ser
ser um filho de Deus: Para que sejais irrepre­ analisado, ainda poderíamos encontrar um
ensíveis e sinceros, filhos de D eus inculpáveis segundo contraste entre a Serpente e a huma­
no meio duma geração corrompida e perversa, nidade. Mas esse não é o caso, como demons­
entre a qual resplandeceis como astros no tram os demais capítulos de Gênesis. E verda­
mundo (Fp 2.15). de que há um antagonismo entre Satanás e os
cristãos, mas também há um conflito entre
D u a s c i d a d e s _________________________________
os anjos e os demônios, entre os cristãos e os
Nunca houve tamanha ênfase no secular que se recusam a crer. Os capítulos 4 e 5 de
como nos últimos tempos. Até o cristianismo Gênesis m ostram que o antagonismo especí­
tem sofrido um processo de secularização. fico de Gênesis 3.15 está entre os homens e
Alguém poderia indagar se a doutrina das du­ mulheres que são de Deus e os que não são
as cidades continua válida. N ão é da Igreja a de Deus.
tarefa de estar no mundo para ministrar aos A primeira ilustração dessa oposição é o
homens? As preocupações do mundo não de­ conflito entre Caim e Abel. Caim foi o pri­
vem ser dos cristãos também? meiro filho de Adão e Eva. Ele nasceu depois
A resposta para essas duas perguntas é da Queda e recebeu um nome que em hebrai­
sim. A Igreja existe para ministrar à humani­ co significa propriedade ou, de forma colo­
dade e compartilhar as inquietações dela. Mas quial, aqui está ele. Adão e Eva ouviram a
isso não é tudo. Em bora a Igreja esteja no promessa de Deus a respeito de um homem
mundo, ela não é do mundo. Em bora ela te­ que esmagaria a cabeça da serpente, portanto,
nha preocupações, estas não lhe pertencem. quando Caim nasceu, seus pais podem ter
A coisa mais importante a ser dita sobre as achado que ele era o tal. A medida que os fa­
duas cidades (terrena e celestial) é que a dife­ tos evoluíram, Caim, em vez de salvador,
rença entre elas pode ser encontrada em toda tornou-se um criminoso. Ele ficou com ciú­
a Bíblia. me porque Deus aceitou a oferta de Abel, seu
A primeira diferença está nas palavras de irmão, e não aceitou a sua, por isso decidiu
Deus à serpente depois da tentação e Queda matá-lo.
de Adão e Eva em Gênesis 3.15: E porei ini­ O motivo do ciúme de Caim é muito im­
mizade entre ti e a m ulher e entre a tua se­ portante, pois se refere aos meios de aproxi-
mente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e mar-se de Deus. Caim levou uma oferta do
tu lhe ferir ás o calcanhar. campo, resultado de seu próprio trabalho.
A serpente, que estava em rebelião contra Abel sacrificou e ofereceu um cordeiro como
Deus, levou o homem e a mulher a rebela­ substituto inocente que levaria a sua culpa.
rem-se também. Deus, então, julgou-os e N ão sabemos exatamente o entendimento
que Abel tinha a respeito dos meios adequa­ matei um varão, p o r m e ferir, e um jovem,
dos de aproximar-se de Deus por meio do p or m e pisar. Porque sete vezes Caim será
sacrifício (que antecipava o definitivo, e único vingado; mas Lam eque, setenta vezes sete.
realmente eficaz, sacrifício de Cristo). Porém, Gênesis 4.23,24
sabemos que ele é louvado na carta aos H e-
breus por ter feito o que fez: Pela fé, A bel Em sua abordagem sobre esse episódio,
ofereceu a D eus maior sacrifício do que Caim, Francis Schaeffer escreveu: “Aqui está a cul­
pelo qual alcançou testemunho de que era jus­ tura humanista sem Deus. E o egoísmo e o
to, dando D eus testemunho dos seus dons, e, orgulho centrados no homem; essa cultura
por ela, depois de morto, ainda fala (Hb 11.4). perdeu a visão não somente de Deus, mas do
O ponto fundamental é que Abel se apro­ homem como alguém que deve amar o seu
ximou de Deus da maneira correta, mas Caim irmão” ( S c h a e f f e r , 1972, p. 114).
não. Nesses dois irmãos, vemos o primeiro Em Gênesis 5, a linhagem divina de Sete é
exemplo das duas humanidades, ou seja, um introduzida na história da humanidade. Ele
irmão representando os que são de Deus e o ocupou o lugar de Abel, e sua descendência
outro representando os que não são de Deus. continuou por intermédio de N oé e sua famí­
A postura desses dois indivíduos produziu lia, os únicos sobreviventes do dilúvio. Os
duas culturas diferentes. nomes nessa genealogia são: Sete, Enos, Cai-
Caim foi levado a vagar pela terra, e seus nã, Maalalel, Jarede, Enoque, Metusalém, L a­
descendentes foram listados no livro de Gê­ meque e N oé. Dois desses são mencionados
nesis: Enoque, cuja cidade recebeu seu nome em Hebreus 11: Enoque, que alcançou teste­
(Gn 4.17); Irade, o filho de Enoque; Meujael; munho de que agradara a D eus (v. 5), e N oé,
e, finalmente, Metusael, o pai de Lameque. que divinamente avisado das coisas que ainda
Este recebeu menção especial em Gênesis. não se viam, temeu, e, para salvação da sua
Sua história é uma ilustração do que estava família, preparou a arca, pela qual condenou o
acontecendo na linhagem dos que andavam mundo, e fo i feito herdeiro da justiça que é
no caminho de Caim (Jd 1.11). Lameque te­ segundo a f é (v. 7).
ve três filhos: Jabal, que foi o pai dos que Essas gerações podem ser traçadas por
habitam em tendas e têm gado; Jubal, o pai meio da história, com o Agostinho de H ipo­
de todos os que tocam harpa e órgão-, e Tu- na fez em A Cidade de Deus. A linhagem dos
balcaim, mestre de toda obra de cobre e de que não temem a Deus é percebida na cultura
ferro (Gn 4.20-22). do mundo. A linhagem dos que o temem,
Em bora sucintas, as descrições da descen­ por sua vez, está em Abraão e seus descen­
dência de Lameque falam de uma cultura bem dentes, nos fiéis de Israel e da Igreja.
desenvolvida, mas cruel e sem Deus. Em G ê­
nesis, lemos que Lameque se vangloriou dos B a b il ô n ia e J e r u s a l é m _____________________

assassinatos que cometeu. N a verdade, ele As duas sociedades (terrena e celestial) são
escreveu uma canção sobre seus crimes, já traçadas pela sucessão de indivíduos justos e
que suas façanhas parecem estar em forma ímpios, mas a Bíblia também estabelece um
poética. contraste por meio da comparação entre duas
cidades: Babilônia, que simboliza a sociedade
E disse Lam eque a suas m ulheres: A da e terrena e suas metas, e Jerusalém, que simbo­
Zilã, ouvi a minha voz; vós, mulheres de liza a sociedade celestial e os alvos espirituais
Lam eque, escutai o m eu dito: porque eu do povo de Deus.
Babilônia foi fundada nos tempos antigos, Judá, a fim de puni-lo pelos seus pecados.
desenvolveu-se, sitiou e conquistou a Jerusa­ Ainda assim, a rebelião desse rei iníquo foi
lém terrena e foi, por sua vez, derrubada e mais do que isso. Ela foi a rebelião de um hu­
abandonada. Jerusalém foi fundada, sitiada, manista que desejava eliminar Deus comple­
destruída pela Babilônia, mas foi reedificada. tamente. Todos poderiam pensar que, por
N o livro de Apocalipse, essas cidades são causa da destinação dos utensílios do templo,
redimensionadas como símbolos das duas aquela era uma luta entre o Senhor e os deuses
culturas. Com o numa história atual, Babilô­ da Babilônia. Porém, era uma luta entre o Se­
nia é desterrada: Caiu! Caiu a grande Babilô­ nhor e o próprio Nabucodonosor, como a
nia (Ap 18.2). Jerusalém, entretanto, é re­ história revela.
constituída com o a Santa Cidade, a nova Certa noite, o rei da Babilônia sonhou
Jerusalém, que de D eus descia do céu (Ap com uma grande imagem de ouro, prata, co­
21.2) e que permanecerá para sempre. bre, ferro e barro. A cabeça da imagem era de
A principal característica da cidade secu­ ouro, representando o reinado de N abucodo­
lar, simbolizada pela Babilônia, é seu huma­ nosor. Essa era a maneira de Deus reconhecer
nismo1 secular radical, que pode ser descrito que a Babilônia, sem dúvida, era magnífica.
como sendo do hom em , pelo hom em e para o Contudo, ela seria suplantada por outro rei­
hom em exclusivamente. Quando dizemos no, representado pelo peito e pelos braços de
que ele é do hom em , significa que o humanis­ prata da estátua; esse segundo reino também
mo secular é limitado pelo ser humano e seus seria substituído por outro, representado pe­
horizontes; que não há lugar para Deus nele. lo ventre e pelas coxas de cobre; e, logo, o
Quando dizemos que ele é pelo hom em , sig­ reino representado pelas pernas de ferro assu­
nifica que o homem é o criador dessa cidade e miria o poder, sendo substituído posterior­
dos valores dela. E quando dizemos para o mente por um reino ilustrado pelos pés de
hom em , significa que o objetivo dessa cidade ferro e barro.
é a glória da humanidade. N o fim desse período, o Reino eterno de
A Babilônia de N abucodonosor, nos Deus em Cristo virá para destronar todos os
dias do profeta Daniel, é a ilustração bíblica outros, crescendo e enchendo a terra. Nessa
mais clara desses elementos. Ela foi o cená­ visão, Deus estava mostrando que Ele é quem
rio da batalha entre N abucodonosor, que governa a história, e que Nabucodonosor não
representava a cidade secular, e Deus, que era tão importante quanto pensava.
atuava p or intermédio de Daniel e seus ami­ N o capítulo 3 do livro de Daniel, está es­
gos. A chave do livro de Daniel está nos crito que Nabucodonosor construiu uma
versículos de abertura, onde lemos que o grande estátua de ouro. Isso parecia apenas
Senhor entregou Jeoaquim , rei de Judá, nas uma iniciativa tola de um rei vaidoso que
mãos de N abucodonosor. Depois de cercar obrigava todos os súditos a adorar uma está­
e conquistar Jerusalém, o rei da Babilônia tua com o símbolo da unidade do império.
levou uma parte dos utensílios da Casa de Entretanto, quando juntamos esse episódio
D eus, para a terra de Sinar, para a casa do ao sonho que Nabucodonosor teve com uma
seu deus (D n 1.2). estátua no capítulo 2, percebemos que a cons­
Essa foi a maneira de Nabucodonosor di­ trução da estátua de ouro, na verdade, era
zer que seus deuses eram mais fortes que Jeo ­ uma rebelião contra o decreto de Deus como
vá. E assim parecia, pois Deus permitiu que Senhor da história. O monarca estava desa­
o rei babilônico triunfasse sobre o povo de fiando a declaração de Deus.
Por meio do sonho do rei babilônico, compromissos com Deus, exortando o outro
Deus estava dizendo: “O reino da Babilônia a retornar à conduta cristã, caso estivesse
será sucedido pelos reinos de prata, de cobre, desviando-se dela.
de ferro e de barro”. Nabucodonosor, então, H oje, entretanto, a doutrina da separação
construiu uma estátua de ouro a fim de ex­ entre Igreja e Estado é usada, principalmente
pressar o que sentia: “Meu reino continuará pelos cristãos, para afirmar que a Igreja é irre­
glorioso e durará para sempre. Em meu so­ levante para o Estado - apesar da tentativa do
nho, apenas a cabeça da estátua era de ouro, Estado de aplicar sua filosofia secular à Igreja.
mas a que eu criei tem cabeça, ombros, coxas, Dessa forma, os cristãos se afastam da política
pernas e pés de ouro. Ela representará meu e desistem de informar-se sobre os assuntos
império para sempre”. O envolvimento pes­ nacionais e internacionais. C om o resultado,
soal do rei com a estátua explica sua violenta os princípios morais e espirituais são elimina­
reação quando os três judeus, Sadraque, Me- dos dos debates sobre política interna e exter­
saque e Abede-Nego, não aceitaram curvar- na, e o Estado se torna o seu próprio deus,
-se diante dela. tendo o pragmatismo3como seu chefe de ope­
Isso também exemplifica a oposição entre rações principal.
a mente secular e os cristãos de hoje. N ão se H á outro exemplo humanista na socie­
trata de uma disputa entre o Deus dos cris­ dade atual que também exclui Deus da vida
tãos e os falsos deuses, nem de um confronto das pessoas: o evolucionismo, que prevalece
entre indivíduos que acham que o seu deus é na maior parte do pensamento contem porâ­
mais poderoso. N ão é isso. Antes, trata-se da neo e estende-se p or todas as coisas. Dife­
rebelião dos homens contra Deus. Todos de­ rentes argumentos explicam a popularidade
vem curvar-se diante de Deus e prestar conta dessa teoria.
a Ele, mas muitos não querem prestar conta a Primeiro, de acordo com o pensamento
ninguém. Eles querem governar a sua própria evolucionista, tudo pode ser conhecido, tudo
vida, excluindo Deus do seu universo e limi­ é conseqüência de alguma coisa anterior, e o
tando seus horizontes ao secular. elo de causa e efeito pode ser traçado de ma­
neira indefinida. O ra, um ponto de vista co ­
Sec u la r e s a g r a d o __________________________
mo esse é muito sedutor.
N a América do século 21, o secularismo2 Segundo, a realidade tem apenas uma ex­
voltou a investir na teoria da separação entre plicação: os mais aptos sobrevivem, seja bio­
Igreja e Estado. Essa doutrina propaga que logicamente, em sua forma de governo ou em
reis ou presidentes não podem nomear auto­ sua ideologia.
ridades eclesiásticas nem mandar na Igreja, e Terceiro, a evolução elimina Deus. Essa,
que as autoridades do clero não podem no­ sem dúvida, é a razão principal para a popula­
mear reis ou presidentes, devendo funcionar ridade do evolucionismo. Se todas as coisas
separadamente. Apesar disso, sempre ficou podem ser explicadas com o uma conseqüên­
subentendido que tanto a Igreja com o o Esta­ cia natural ou um desenvolvimento de causas
do eram responsáveis diante de Deus, de cuja anteriores, então Deus pode ser seguramente
sabedoria ambos dependiam. Segundo essa banido para um reino em outro mundo ou
teoria, a Igreja e o Estado eram independen­ completamente eliminado, com o muitos, até
tes e servos de um mesmo Senhor. mesmo os que se dizem teólogos, têm feito.4
E m b ora não pudessem dirigir um ao O restante da história de Nabucodonosor
outro, cada um devia lembrar-se de seus demonstra que a cidade secular é pelo homem
e para o hom em . Certo dia, mais ou menos sete tempos sobre ti, até que conheças que
um ano após o incidente com a estátua de ou­ o Altíssimo tem domínio sobre os reinos
ro, o rei babilônico ficou impressionado ao dos homens e os dá a quem quer. N a mes­
contemplar a grandeza de sua cidade, en­ ma hora, se cumpriu a palavra sobre N a­
quanto caminhava no terraço do palácio real. bucodonosor, e fo i tirado dentre os homens
Ele acreditou ser o responsável por tanta e comia erva como os bois, e o seu corpo foi
magnificência e tomou para si a glória que molhado do orvalho do céu, até que lhe
pertencia a Deus. Ele declarou: Não é esta a cresceu pêlo, como as penas da águia, e as
grande Babilônia que eu edifiquei para a casa suas unhas, como as das aves.
real, com a força do m eu pod er e para glória Daniel 4.31-33
da minha magnificência? (Dn 4.30). Suas pa­
lavras em forma de pergunta insinuavam que Ao fazer Nabucodonosor despencar do
a cidade terrena tinha sido construída pelo pináculo de seu orgulho para o porão da insa­
homem e para a glória do homem. nidade e comportar-se como um animal do
E m certo sentido, isso era verdade. Nabu- campo, Deus estava assinalando o que acon­
codonosor realmente edificou a cidade, e por tece quando o homem toma a glória divina
meio de suas conquistas a conduziu a um está­ para si. Sem dúvida, ele se torna pior do que
gio de esplendor arquitetônico. Ele construiu os bichos, porque estes se comportam de
a grande Babilônia para a sua própria glória, acordo com sua natureza, mas o homem sem
como a sua vaidade exacerbada demonstrou. Deus pratica crueldades inconcebíveis.
Porém, seu erro foi esquecer que Deus gover­
na os assuntos humanos, e que as realizações A c id a d e d e D e u s ___________________________

de qualquer governante dependem dele. Em oposição à cidade secular está a cidade


Por acaso a vangloria de N abucodonosor de Deus, que não se trata de um reino visível
está presente na sociedade contemporânea? como os reinos deste mundo. Embora invisí­
Sem sombra de dúvida. Ela sempre esteve vel, ela não é ilusória com o o mundo acredita,
presente na cultura secular, tanto abertamente mas é verdadeiramente importante e diferente
como de forma velada. das cidades deste século, que se encontram
O homem não é o senhor das coisas. Ele em processo de desaparecimento.
não está no controle. Essa presunção é um pe­ Quando a nova Jerusalém descer do céu,
cado que Deus não tolera; por isso Ele prome­ Deus habitará com os homens nessa Santa
te derrubar a cidade secular, da mesma manei­ Cidade (Ap 21.2).
ra como agiu no caso de Nabucodonosor. Por Em sua descrição da cidade santa, João não
causa de suas conquistas políticas, o monarca viu templo algum, porque o seu templo é o Se­
da Babilônia se julgava superior a todos - tão nhor, Deus Todo-poderoso, e o Cordeiro (Ap
superior que não precisava de Deus. N o livro 21.22). Ele escreveu: Eis aqui o tabemáculo de
de Daniel, está escrito a respeito dele: Deus com os homens, pois com eles habitará, e
eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará
A inda estava a palavra na boca do rei, com eles e será o seu Deus (Ap 21.3). A cidade
quando caiu uma voz do céu: A ti se diz, ó de Deus veio à existência por intermédio dele,
rei Nabucodonosor: Passou de ti o reino. E e não pelo homem. Ela existe para a Sua glória.
serás tirado dentre os homens, e a tua mo­ Todos os homens e mulheres nascem na
rada será com os animais do campo; far-te- cidade secular. Naturalmente, ninguém nasce
-ão com er erva como os bois, e passar-se-ão na celestial, pois a cidade de Deus só pode ser

Ó /ó '
recebida por meio do novo nascimento, pela Mas, ao fim daqueles dias, eu, Nabucodo­
fé no Senhor Jesus Cristo como Salvador. Ele nosor, levantei os meus olhos ao céu, e tor­
mesmo declarou: A quele que não nascer de nou-m e a vir o m eu entendimento, e eu
novo não pode ver o Reino de D eus (Jo 3.3). bendisse o Altíssimo, e louvei, e glorifiquei
As portas dessa cidade estão abertas para ao que vive para sempre, cujo domínio é
qualquer pessoa que for a elas. U m exemplo um domínio sempiterno, e cujo reino é de
disso está no N ovo Testamento, num relato geração em geração. E todos os moradores
sobre a fé de Abraão ao esperar a cidade cons­ da terra são reputados em nada; e, segun­
truída por Deus: do a sua vontade, ele opera com o exército
do céu e os moradores da terra; não há
Pela fé , habitou na terra da promessa, co­ quem possa estorvar a sua mão e lhe diga:
mo em terra alheia, morando em cabanas Q ue fazes?
com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da Daniel 4.34,35
mesma promessa. Porque esperava a cida­
de que tem fundamentos, da qual o artífice As últimas palavras do rei da Babilônia
e construtor é Deus. foram: Agora, pois, eu, Nabucodonosor, lou­
Hebreus 11.9,10 vo, e exalço, e glorifico ao R ei dos céus; porque
todas as suas obras são verdades; e os seus ca­
Se alguém desejar fazer parte dessa cidade minhos, juízo, e pode humilhar aos que an­
divina, poderá ser estimulado pela história de dam na soberba (Dn 4.37).
Nabucodonosor, que acolheu a mensagem de Quando nos humilhamos diante de Deus,
Deus. Depois dos sete anos de punição, ele Ele nos exalta, colocando-nos no centro de
voltou a si e confessou que o Deus de Daniel Sua vontade e alegrando-nos com o cidadãos
(Dn 2.47) era o verdadeiro: dessa cidade celestial, que existirá eternamente.

N otas

1 Humanismo é a filosofia moral que coloca os humanos como primordiais, numa escala de importância. É uma
perspectiva comum a uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade, às
aspirações e capacidades humanas, particularmente à racionalidade. Embora a palavra possa ter diversos sentidos, o
significado filosófico essencial destaca-se por contraposição ao apelo ao sobrenatural ou a uma autoridade superior.
Desde o século 19, o humanismo tem sido associado ao anticlericalismo herdado dos filósofos íluministas do século
18. O termo abrange religiões não teístas organizadas, o humanismo secular e uma postura de vida humanista.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Humanismo)
2 O secularismo é uma política de separação entre religião e Estado, a partir da ideia de que os sacerdotes e as
instituições religiosas não devem ter poder político nem influenciar as leis.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Secularismo)
3 O pragmatismo constitui uma escola de filosofia, com origens nos Estados Unidos da América, caracterizada
pela descrença no fatalismo e pela certeza de que só a ação humana, movida pela inteligência e pela energia, pode
alterar os limites da condição humana. Este paradigma filosófico caracteriza-se, pois, pela ênfase dada às conse­
qüências — utilidade e sentido prático — como componentes vitais da verdade.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pragmatismo)
4 Nem todos os evolucionistas são motivados por esses três argumentos, pois existem cientistas cristãos que aceitam
uma hipótese teísta do evolucionismo. Ainda assim, mantenho que o grande apelo do ponto de vista evolucionista e
a aceitação geral que ele tem na vida contemporânea estão relacionados à exclusão de Deus dos assuntos humanos.
A IGREJA SECULAR

discussão da cidade secular leva na­ Desde então, funcionários da Igreja e teó­
turalmente ao estudo sobre a cida­ logos menos conhecidos emergiram, todos
de de Deus, tema comentado no buscando uma secularização radical. Eles es­
final do capítulo anterior. Porém, creveram sobre o tema O hom em atingiu a
antes de aprofundarmos as considerações a maioridade, ideia elaborada a partir dos escri­
respeito da cidade de Deus, precisamos lidar tos de Dietrich Bonhoeffer1. Alguns chama­
com uma visão que alcançou proeminência no ram o ponto de vista de Dietrich de cristianis­
ano de 1960 e que dominou grande parte da mo terreno.
teologia moderna.
Essa visão nega a diferença entre o sagra­ S e c u l a r iz a ç ã o c r i s t ã ______________________

do e o secular, afirmando que os dois são a O melhor representante da secularização


mesma coisa e que a vida não tem dimensão cristã é Harvey C ox2, cujo livro The Secular
sagrada. Ela diz que os cristãos não são cha­ City [A cidade secular] teve um impacto bom­
mados para serem de outro mundo, mas para bástico no mundo religioso em 1965. Embora
serem deste mundo. P or isso, devem esquecer Cox tenha repudiado algumas de suas ideias
Deus e mergulhar fundo num mundo que foi mais tarde, The Secular City ainda é o melhor
abandonado por Ele. U m bom número de, modelo dessa visão, principalmente por causa
assim chamados, teólogos cristãos e pessoas das afirmações a seguir. C ox enxerga a cidade
da alta hierarquia de muitas denominações secular como uma coisa boa, como algo a ser
cristãs dão sustentação a essa posição, tornan- reconhecido e aplaudido, em vez de negado; ele
do-a singular, e não apenas mais uma expres­ argumenta que a tradição judaico-cristã ajuda a
são da mente mundana. enxergar a secularização de forma positiva.
Os teólogos da “morte de Deus”, que al­ C ox acredita que a secularização é um
cançaram bastante notoriedade na metade da produto da tradição judaico-cristã. Ele se em-
década de 1960, foram um claro exemplo des­ basou em três registros bíblicos a fim de con­
sa maneira de entender o sagrado e o secu­ firmar esse ponto de vista. O primeiro deles
lar: Thomas J. J. Altizer, William Hamilton, foi o relato da criação. C ox acredita que o li­
Gabriel Vahanian e Paul van Buren. Também vro de Gênesis (capítulos 1 e 2) ensina o “de-
foram bastante mencionadas as posições do sencantamento da natureza”. O homem pré-
professor da Universidade de Harvard Harvey -secular vivia em um mundo onde árvores,
C ox e do bispo de Woolwich, na Inglaterra, rochas, tempestades, vales e bosques estavam
John A. T. Robinson. vivos, com maus ou bons espíritos. Em toda
parte, as pessoas pareciam confrontadas por história contemporânea da Igreja estatal bri­
forças misteriosas que precisavam ser contro­ tânica, presidida pelo arcebispo da Cantuária,
ladas, apaziguadas ou evitadas. e o uso da Bíblia na cerimônia de posse do
Em Gênesis, essa visão foi radicalmente presidente dos Estados Unidos são remanes­
subvertida. Lá, tanto Deus com o os seres hu­ centes da visão primitiva, de acordo com
manos foram distinguidos da natureza, e os C ox. Porém, são atos isolados e de pouca
homens puderam, então, considerá-la de fato substância, pois a política pode ser vista agora
natural. Agora, a natureza é apenas natureza, como inteiramente secular, exceto em alguns
e existe para ser usada. C ox chama esse “de- países do Terceiro Mundo, como o Nepal.
sencantamento do mundo natural” de “uma A aliança do Sinai foi a terceira base utili­
precondição absoluta” para o desenvolvi­ zada por C ox para fundamentar suas ideias
mento da ciência natural e para o surgimento sobre a dessacralização bíblica, também cha­
da moderna metrópole tecnológica. Ele diz mada por ele de “desconsagração de valores”.
que, nesse sentido, o relato da criação de Gê­ Para ele, os valores ou princípios morais fo­
nesis é realmente uma forma de “propaganda ram relativizados.
ateísta” (C o x, 1965, p. 23). Se perguntarmos como alguém pode fazer
A segunda base bíblica utilizada por C ox tais afirmações a respeito da aliança do Sinai,
para explicar a secularização a partir da tradi­ reconhecida como uma lei moral inquestio­
ção judaico-cristã foi o êxodo do Egito (Êx nável e absoluta, a resposta, de acordo com
12.51), que levou à secularização da política. C ox, estaria na oposição à idolatria encontra­
N a sociedade pré-secular, as pessoas governa­ da ali (Ê x 20.3). Os hebreus acreditavam no
vam por direito divino. Portanto, uma rebe­ S E N H O R , e não nos ídolos dos pagãos; por
lião contra qualquer autoridade legitimamen­ esse motivo, seus valores foram relativizados.
te constituída era uma rebelião contra o Firmado nessa, assim chamada, base bíbli­
próprio Deus ou contra um deus. ca, C ox acredita que o homem moderno em
O êxodo mudou tudo isso. A antiga visão, sua tecnologia, urbanidade e seu pragmatis­
porém, não desapareceu imediatamente, pois mo é produto da fé bíblica e divinamente diri­
o povo judeu foi tentado muitas vezes a vol­ gido por influências históricas. Esse homem
tar aos tempos sagrados da política, principal­ vive na cidade secular, banindo Deus de todos
mente aos tempos da monarquia. Segundo os seus propósitos práticos, desfrutando da li­
C ox, a partir do êxodo, aconteceu um ato de berdade conquistada por meio da tecnologia e
desobediência civil, ou rebelião, aprovada pe­ cercando-se de uma privacidade quase com­
lo Deus hebreu. Sobre isso, ele escreveu: pleta. Ele tem valores particulares, e vive como
deseja. C ox, então, convoca os cristãos a com ­
O êxodo simbolizou a libertação do homem da partilhar dessa visão de mundo ao escrever:
ordem político-religiosa, e representou uma
mudança social na história, distante dos mo­ Sem dúvida, aqueles cuja presente orientação
narcas legitimados religiosamente; um mundo para a realidade é moldada pela fé bíblica não
onde a liderança política estaria baseada na ca­ podem, em sã consciência, engrossar a lista dos
pacidade de alcançar objetivos sociais específi­ adversários da secularização. Nossa tarefa é
cos. (C ox, 1965, p. 26) alimentar o processo de secularização, para
prevenir que ele se transforme numa visão de
N a Idade Média, a luta do papa contra o mundo rígida e para esclarecer, sempre que ne­
imperador reproduziu a mesma tentação. A cessário, suas raízes na Bíblia. Além do mais,
deveríamos estar constantemente em guarda Quando eu mencionei algo sobre a volta do
contra movimentos que tentem demover e Senhor, ele acrescentou: “Vamos colocar na
reverter a liberação da secularização. (C ox, nossa cabeça que as coisas não mudarão, e
1965, p. 36) que Jesus Cristo nunca voltará”.
Esse não foi um incidente isolado. U m
C o m p l a c ê n c ia pa r a c o m a s a b e d o r ia
pastor que havia sido um importante líder no
d o m u n d o ____________________________________
movimento evangélico contou-m e que outro
Com o podemos explicar a tremenda re­ pastor ficou indignado quando ele falou so­
ceptividade do livro de C ox em seu lança­ bre um determinado tema num encontro
mento? Alguns setores da Igreja já se encon­ presbiteriano. Durante o encontro, esse pas­
travam nesse processo de secularização. Essa tor se levantou e disse: “Por que você sempre
foi a razão para a aceitação da obra de Cox. apela para a Bíblia quando discute uma ques­
Consequentemente, quando The Secular City tão? Você não sabe que ninguém acredita
surgiu, algumas pessoas o saudaram natural­ mais na Bíblia?”. E m seguida, meu amigo se
mente, pois seu livro era apenas uma justifica­ referiu ao apóstolo Paulo em seu discurso,
tiva teórica para um estilo de vida e uma visão então seu opositor rugiu: “Quero que você
política que elas já seguiam. saiba que o apóstolo Paulo não era infalível”.
Um elemento dessa secularização, que Essa rendição da Igreja ao mundo gerou
claramente precedeu C ox, foi a troca da anti­ quatro conseqüências. A primeira delas foi o
ga sabedoria (encontrada nas Escrituras) pela estado deplorável de incerteza e insegurança
sabedoria do mundo. Nas eras primitivas, o que se instalou entre os líderes cristãos. E claro
povo cristão se prostrava diante da Palavra de que isso fica camuflado, mas é expresso hones­
Deus e confessava sua própria ignorância a tamente às vezes, como nestas palavras do pro­
respeito dos assuntos espirituais. Ele admitia fessor Robin Scroggs em sua cerimônia de
sua incapacidade de entender a Bíblia sem a posse no Seminário Teológico de Chicago:
ação do Espírito Santo e reconhecia sua resis­
tência carnal aos ensinamentos de Deus. Nos Não estamos num lugar seguro. Não encontra­
tempos atuais, a sabedoria bíblica, força da mos nenhum padrão confiável do passado que
Igreja, foi posta de lado. A voz poderosa e nos diga como viver, tampouco temos um au-
restauradora de Deus, que pode ser ouvida toconhecimento seguro, erguido sobre o ali­
por meio das Escrituras, tem sido esquecida. cerce da nossa experiência imediata. Nós nos
Certa vez, enquanto participava de uma encontramos, de fato, num abismo de incerte­
série de conferências da Igreja Presbiteriana za contínua, e o que nos previne do caos é a
Unida, nos Estados Unidos, o professor de tensão entre o passado e o presente. Nada ga­
um seminário teológico começou a discordar rante que acontecerá o melhor conosco nem
de tudo o que eu falava sobre o Cristo histó­ que chegaremos ao melhor lugar. ( S c r o g g s ,
rico, levantando-se violentamente contra a 1970, p. 12,13)
minha opinião.
Eu já esperava por isso, mas as palavras A segunda conseqüência da rendição da
daquele homem contra mim foram tão agressi­ Igreja ao pensamento secular foi a sua inclina­
vas que pareceram facadas em minha mente. Ele ção para as coisas do mundo e seus valores.
disse: “Precisamos reconhecer que cada Evan­ John Macquarrie é um analista do movimento
gelho foi escrito para corrigir os outros. Então, de secularização da teologia contemporânea
é impossível falar de um Cristo histórico”. (também classificado como um teólogo secular).
Em seu livro G od and Secularity [Deus e o são o oposto daqueles que hoje estão engajados
secularismo], ele estuda a trajetória intelectual nas mais variadas operações de “relevância”.
de teólogos seculares, descrevendo alguns co­ Em outras palavras, períodos de fé não são
mo “barthianos desiludidos” ( M a c q u a r r i e , marcados pelo “diálogo”, mas pela proclama­
1967, p. 30,52). ção. Eu diria que a preocupação em relação às
O teólogo alemão KarI Barth negou que a estruturas institucionais da Igreja é vã, se não
Bíblia é a Palavra de Deus, considerando-a houver uma nova convicção e uma nova auto­
apenas um testemunho humano, e ressaltou a ridade na comunidade cristã. (The Presbyterian
transcendência ou a ocultação de Deus. Seus Journal, 20/10/1971, p. 10).
seguidores começaram a imaginar se alguma
coisa podia ser chamada verdadeiramente de C o m p l a c ê n c ia p a r a c o m a t e o l o g ia ,
A AGENDA E OS MÉTODOS MUNDANOS_______
revelação. Se alguém não pudesse estar seguro
a respeito de uma revelação, então o mundo N o terreno da secularização cristã, a Igre­
secular com suas palavras hesitantes, mas au­ ja não se rendeu apenas à sabedoria mundana,
díveis, seria o único lugar confiável. mas também à teologia, à agenda e aos méto­
A terceira conseqüência do abandono das dos do mundo. Definir a teologia mundana é
Escrituras como a sabedoria de Deus para a muito fácil. Ela sustenta que os seres huma­
Igreja foi uma dependência pragmática da nos são basicamente bons, que ninguém está
maioria para a validação de valores, metas, perdido de verdade e que crer em Jesus Cristo
objetivos e programas. Se a autoridade trans­ não é indispensável para a salvação.
cendente é jogada no lixo, as autoridades ter­ Essa rendição é comum em alguns círcu­
renas inevitavelmente ocupam o lugar das los da Igreja. Quando eu falava naquelas reu­
Escrituras. niões de presbitério, uma parte de minha pa­
A última conseqüência para a Igreja quan­ lestra tratava da perdição humana. Eu discutia
do rejeita a sabedoria de Deus é tornar-se ir­ isso com o uma motivação para a missão de
relevante (assim como o livro The Secular levar o evangelho de Jesus Cristo aos outros,
City [A cidade secular], de C ox, deve parecer porque todos estão perdidos sem Ele. Porém,
aos homens seculares). Esse resultado não é cada vez que eu enfatizava esse ponto, meus
observado apenas pelos evangélicos, mas por ouvintes ficavam irados. Alguns deixavam o
todos. recinto, outros tossiam e outros se contor­
Discursando num encontro da Igreja da ciam nas cadeiras. Quando eu terminava,
União, em Denver, no início de 1970, Peter sempre surgiam objeções.
Berger, da Universidade Rutgers, criticou a fal­ Assim, os termos teológicos que nós sem­
ta de autoridade nas igrejas, característica que pre usamos, e que a Igreja continua a usar
ressalta a irrelevância delas. Ele argumentou: (porque são parte de sua herança), estão sendo
redefinidos. As pessoas ainda falam de pecado,
Se houvesse um renascimento religioso, seus de salvação, de fé e de muitos outros temas bí­
defensores não seriam pessoas que ocultariam blicos, mas adotam uma teologia mundana.
umas às outras com o intuito de serem “rele­ Elas deixam de dar a esses temas o devido va­
vantes para o homem moderno”. As grandes lor, pois não os utilizam biblicamente.
manifestações de fé sempre foram marcadas Pecado, por exemplo, não significa rebel­
pelo aparecimento de pessoas de convic­ dia contra Deus (a quem prestaremos conta)
ções firmes, não apologéticas e, geralmen­ nem contra Sua justiça, mas, em vez disso,
te, descompromissadas. Isto é, por tipos que significa ignorância ou simplesmente um tipo
de opressão encontrado nas estruturas so­ sido excluída da agenda de prioridades dos
ciais. Um a vez que o pecado está localizado cristãos.
no sistema, e não mais no indivíduo, a manei­ Se a questão primária do mundo for a fo­
ra de vencê-lo deixa de ser por meio da morte me, esta deverá ser a nossa inquietação tam­
de Jesus Cristo e passa a ser mediante mudan­ bém; se forem os problemas dos países sub­
ças nas estruturas sociais, quer pela legislação, desenvolvidos, estes deverão ser a nossa
quer pela revolução. principal preocupação. Se for racismo, ecolo­
Nessa perspectiva, Jesus não é o Deus en­ gia, crise energética, envelhecimento, alcoo­
carnado que veio morrer para a nossa salva­ lismo, qualquer coisa divulgada nos telejor­
ção, mas é apenas um modelo de vida a ser nais, deve ocupar nosso pensamento e
seguido. N a teologia mundana, Jesus é visto tornar-se uma preocupação.
como um exemplo, e não mais com o o Salva­ Diante disso, reconhecemos um perigo
dor da humanidade. Em alguns segmentos iminente, e não queremos errar, sugerindo
dessa teologia, Ele chega a ser considerado o que Deus e a Igreja sejam indiferentes a algu­
ser mais evoluído da espécie humana, um pa­ mas áreas da vida, o que seria um dualismo
tamar que todos nós devemos atingir. absurdo, pois não podemos crer em Deus e,
A salvação é outro termo bíblico que está ao mesmo tempo, negar Sua soberania.
recebendo nova definição. Ela já não significa O problema surge quando as preocupa­
“reconciliar-se com Deus” ou mesmo “o mo­ ções terrenas ofuscam o evangelho. Se isso
ver de Deus para nos redimir em Cristo”, acontece, os cristãos abrem mão do seu papel
como diria a antiga teologia. Hoje, a salvação de transmitir algo verdadeiramente impactan-
é entendida como uma libertação das estrutu­ te que pode, sem dúvida, cooperar para a so­
ras sociais opressivas deste mundo. lução dos problemas sociais.
A palavra f é significava crer em Deus e Finalmente, a sujeição ao mundo pode ser
levar Sua Palavra a sério. Atualmente, na nova vista na Igreja por meio dos métodos utiliza­
concepção da teologia mundana, f é é ter dos por ela. Os métodos de Deus são a oração
consciência da situação que nos cerca. Essa e o poder do evangelho, ferramentas do Espí­
definição está intimamente relacionada com o rito Santo para afastar o Seu povo dos maus
marxismo3, que, por meio de sua doutrina caminhos e sarar esta terra. Esses recursos
ideológica, afirma que o comprometimento espirituais sempre foram a força da Igreja de
com suas ideias filosóficas surge quando o Cristo. Hoje, porém, eles são desprezados
indivíduo se torna consciente da opressão so­ pelas grandes denominações cristãs e pelos
cial existente, passando a lutar contra ela a zombadores que só confiam na força da polí­
partir dessa percepção. tica e do dinheiro.
O termo evangelismo também passa por H á algum tempo, deparei-me com uma
uma redefinição. Ele significava pregar o charge na revista The N ew Yorker. Dois pe­
evangelho de Jesus ao mundo perdido; agora, regrinos4 chegavam ao N ovo Mundo no
significa trabalhar para remover a injustiça. M ayflower5 quando um deles declarou: “A
Além de render-se à teologia mundana, a liberdade religiosa é o meu objetivo imedia­
Igreja se submeteu à agenda deste século. to, mas meu plano de longo prazo é ir ao
E m alguns círculos evangélicos, a expressão mercado imobiliário”. De certa forma, isso é
“agenda do mundo” tornou-se bastante popu­ o que temos visto nos dias de hoje. Os ho­
lar, evidenciando que as prioridades do Reino mens têm deixado de lado a oração e o poder
mudaram. Até a pregação do evangelho tem do evangelho por causa do compromisso com
imóveis, dinheiro, política e outras coisas que ano. Um a igreja que contava com mais de dois
vêm de fontes seculares. mil missionários passou a contar com 350.
O dramaturgo irlandês do século 19 Bernard
Shaw enxergou essa realidade com clareza ao U m d e s a f i o ___________________________________

afirmar que a religião do futuro seria a políti­ A história não acaba aqui, embora o capí­
ca. Seu ponto de vista está registrado em mui­ tulo termine, pois mostraremos que os evan­
tas de suas peças. Em Caesar and Cleopatra gélicos não estão isentos dessas críticas. Eles
[César e Cleópatra], por exemplo, o impera­ não devem, portanto, vangloriar-se. O que
dor romano Júlio César se transforma numa podemos dizer é que a situação demanda um
figura religiosa sob essa perspectiva. N a peça grande esforço por parte do povo de Deus.
M ajor Barbara [Major Bárbara], as ideias de N ão devemos surpreender-nos com o secula-
Shaw ficam ainda mais explícitas, pois Bárba­ rismo eclesiástico, já que esse fenômeno dos
ra é uma oficial do Exército de Salvação que últimos dias foi registrado na Bíblia:
se converte desse movimento religioso e so­
cial ao ativismo político. A política é a nova Sabe, porém , isto: que nos últimos dias so­
religião. Política e dinheiro. brevirão tempos trabalhosos; porque ha­
Deixe-me ilustrar de que maneira o di­ verá homens amantes de si mesmos, ava­
nheiro é equiparado à obra de Deus. Um a rentos, presunçosos, soberbos, blasfemos,
denominação publicou um pequeno folheto desobedientes a pais e mães, ingratos, p ro­
intitulado Obra de D eus no m undo de Deus. fanos, sem afeto natural, irreconciliáveis,
Pelo título, alguém poderia pensar que se tra­ caluniadores, incontinentes, cruéis, sem
tava de um relato sobre evangelismo, serviços amor para com os bons, traidores, obstina­
sociais, campo missionário, implantação de dos, orgulhosos, mais amigos dos deleites
igrejas ou coisas afins. Ao abrir o folheto, o do que amigos de Deus, tendo aparência
leitor encontrava, em negrito, as palavras: de piedade, mas negando a eficácia dela.
“As boas novas”. Tudo indicava que o texto Destes afasta-te.
tinha a ver com o evangelho. Mas quais eram 2 Timóteo 3.1-5
essas “boas novas”? As ofertas para missões
haviam aumentado pela primeira vez desde Esta é a igreja secular: Tendo aparência de
1967. E m outras palavras, a novidade era que piedade [às vezes], mas negando a eficácia dela.
a igreja estava recebendo mais dinheiro. O desafio do povo de Deus é ser o oposto dis­
O folheto ainda explicava como aquele so. Se a secular emprega a sabedoria, a teologia,
dinheiro poderia ser utilizado: “Em 1975, es­ a agenda e os métodos do mundo, a Igreja do
ses dólares poderão ampliar nosso número de Senhor Jesus Cristo deve fazer o contrário,
missionários para 24 pessoas”. Maravilhoso. empregando a sabedoria de Deus, a teologia
Porém, ao ler cuidadosamente o texto, era das Escrituras, a agenda do Reino e os méto­
possível perceber que nada havia sido concre­ dos do Espírito Santo até a volta do Senhor.
tizado de fato. Havia dinheiro suficiente para Se a Igreja proceder assim, ela conseguirá
sustentar o trabalho de missões, mas onde discernir o que realmente é bom na cultura
estavam os candidatos? N a verdade, o quadro secular, e terá ousadia suficiente para desafiar
de missionários diminuiu, decaindo a cada o que não é.
N otas

1 Dietrich Bonhoeffer foi um teólogo, pastor luterano, membro da resistência antinazista alemã e membro fundador
da Igreja Confessante, ala da Igreja evangélica contrária à política nazista.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dietrich_Bonhoeffer_

2 Harvey Cox Gallagher Jr. é um dos mais proeminentes teólogos dos Estados Unidos. Tornou-se conhecido com a
publicação de The Secular City [A cidade secular] em 1965. Cox desenvolveu a tese de que a Igreja é essencialmente
um povo de fé e ação, em vez de uma instituição. Ele argumentou que “Deus é tão presente no secular como nos
reinos de vida religiosa”. Longe de ser uma comunidade de proteção religiosa, a Igreja deve estar na vanguarda da
mudança na sociedade, celebrando a religiosidade e encontrando novas formas de expressão no mundo.
(Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Harvey_Cox)

3 O marxismo é o conjunto de ideias filosóficas, econômicas, políticas e sociais elaboradas primariamente por Karl
Marx e Friedrich Engels e desenvolvidas mais tarde por outros seguidores. Baseado na concepção materialista e
dialética da história, interpreta a vida social conforme a dinâmica da base produtiva das sociedades e das lutas de
classes daí conseqüentes. O marxismo compreende o homem como um ser social histórico e que possui a capacida­
de de trabalhar e desenvolver a produtividade do trabalho, o que diferencia os homens dos outros animais e possi­
bilita o progresso de sua emancipação da escassez da natureza, o que proporciona o desenvolvimento das
potencialidades humanas. A luta comunista resume-se à emancipação do proletariado por meio da liberação da
classe operária, para que os trabalhadores da cidade e do campo, em aliança política, rompam na raiz a propriedade
privada burguesa, transformando a base produtiva no sentido da socialização dos meios de produção para a realiza­
ção do trabalho livremente associado — o comunismo —, abolindo as classes sociais existentes e orientando a pro­
dução — sob controle social dos próprios produtores — de acordo com os interesses humanos naturais.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marxismo)

4 Peregrinos (em inglês: Pilgrim Fathers ou simplesmente Pilgrims) é o nome dado aos primeiros colonos ingleses,
que eram calvinistas e que se estabeleceram na Nova Inglaterra, região que veio a ser o embrião dos Estados Unidos
da América, em 1620. Em torno dessas famílias originais, do fervor de suas crenças e de seus valores étnicos e morais,
a nova nação foi sendo construída. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Peregrinos)

5 Mayflower (em português, literalmente flo r de maio) foi o famoso navio que, em 1620, transportou os chamados
peregrinos do porto de Southampton, Inglaterra, para o Novo Mundo.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mayflower)
C id a d e d e D eus

visão da cidade celestial em Apoca­ U m local marcado pela santidade:


lipse é a visão de uma cidade per­
feita: E eu, João, vi a Santa Cida­ E não entrará nela coisa alguma que con­
de, a nova Jerusalém , que de tamine e cometa abominação e mentira,
D eus descia do céu, adereçada como uma es­ mas só os que estão inscritos no livro da
posa ataviada para o seu marido (Ap 21.2). vida do Cordeiro.
Mas essa visão não é exatamente com o a Apocalipse 21.27
imaginada pelos homens, pois estes só fanta­
siam a respeito do que gostariam de viver ou Um a cidade onde a morte, o choro e a dor
advertem o mundo quanto ao futuro1. A vi­ não existirão:
são bíblica, entretanto, é algo que já aconte­
ceu, mas que ocorrerá de forma plena quan­ E D eus limpará de seus olhos toda lágri­
do Jesus voltar. ma, e não haverá mais morte, nem pranto,
N a teologia, essa perspectiva bíblica a res­ nem clamor, nem dor, porque já as prim ei­
peito da cidade celestial é única, sendo ex­ ras coisas são passadas.
pressa p or meio do já e do ainda não. O Apocalipse 21.4
Reino de Deus já está entre nós (L c 17.21),
no entanto ainda oramos: Venha o teu Reino A Santa Cidade descrita por João é um
(M t 6.10). lugar de constante deleite e satisfação.
E m Apocalipse, a visão da nova Jerusa­ Todas essas coisas já estão presentes em
lém também tem essa perspectiva. Quando alguma medida na comunidade cristã. Deus já
João escreveu Apocalipse, ele estava pen­ habita em Seu povo por intermédio do Espí­
sando na cidade que ainda desceria do céu, rito Santo (Jo 14.16-18). Os cristãos são mar­
um lugar caracterizado pela presença de cados por uma perceptível santidade (Jo 17.17;
Deus: 15.3). Eles sofrem, mas não como aqueles que
não têm esperança (1 Ts 4.13).
E ouvi uma grande voz do céu, qu e dizia: A descrição da perfeita cidade celestial em
Eis aqui o tabemáculo de D eus com os ho­ Apocalipse é importante para os cristãos,
mens, pois com eles habitará, e eles serão o pois ela revela o que somos hoje, o que ainda
seu povo, e o mesmo D eus estará com eles podemos ser nesta vida e o que inevitavel­
e será o seu Deus. mente seremos quando Deus completar a
boa obra que com eçou em nós.
S e c u l a r i s m o _________________________________ editor geral da revista Christianity Today
O ponto a ser discutido a respeito de qual­ [Cristianismo Hoje], escreveu:
quer manifestação atual da cidade celestial,
representada pelo povo de Deus, não é a per­ Um materialismo traiçoeiro permeia nossa so­
feição que está por vir, mas a presença do se­ ciedade; por conseqüência, os cristãos estão de­
cularismo na vida de pessoas genuinamente sejando cegamente a prosperidade, perdendo,
cristãs. entretanto, a visão da carreira que lhes está pro­
Quando falamos de secularização da Igre­ posta. (World Vision, janeiro de 1976, p. 8-10)
ja, nós queremos dizer que, em parte, as gran­
des denominações se renderam ao sistema do Horace L. Fenton Jr., diretor geral da Latin
mundo, abrindo mão da autoridade bíblica, America Mission [Missão América Latina],
da teologia, das doutrinas, e aderindo a con­ declarou:
ceitos adotados por organizações seculares,
que dependem totalmente da política e do Deveríamos cortar imediatamente todas as
dinheiro para atingir seus objetivos. despesas desnecessárias nas igrejas ocidentais,
Existe atualmente um secularismo evan­ incluindo os projetos de construção, que têm
gélico que precisa ser encarado e solucionado, sido uma obsessão para os evangélicos há muito
se os verdadeiros cristãos quiserem ser úteis tempo. A Igreja peca ao acumular tesouros na
ao mundo. Sem dúvida, nem todas as igrejas terra. (World Vision, janeiro de 1976, p. 8-10)
evangélicas renderam-se ao secularismo. Ain­
da assim, os valores do mundo têm influen­ Frank E. Gaebelein, diretor emérito da
ciado cada vez mais os cristãos, que, sem per­ The Stony Brook School [A Escola Stony
ceber, tornaram-se seculares em algumas Brook] e editor geral do The Expositor’s Bihle
áreas de sua vida. Commentary [O oomentário bíblico exposi-
O evangelho está presente, ou não seria­ tivo], comentou:
mos capazes de falar de igrejas evangélicas. A
teologia também está presente. De qualquer O desenvolvimento do materialismo nas mais
forma, os valores do mundo já começaram a ricas nações ocidentais tem prejudicado a quali­
produzir efeito; assim, podemos enxergar o dade do discipulado cristão, essencial ao cum­
secularismo na vida dos cristãos por meio do primento da missão da Igreja. (World Vision,
materialismo, dos modismos, das novidades janeiro de 1976, p. 8-10)
tecnológicas, dos métodos organizacionais
frios e calculistas e da indiferença para com as Esses líderes comentaram sobre algo que
realidades espirituais. caracteriza não apenas o nosso país ou a igre­
Muitas pessoas apontam o materialismo ja liberal, mas também os evangélicos. Esse
dos evangélicos. A revista World Vision [Vi­ apego às coisas materiais, apontado por eles,
são Mundial], por exemplo, citou alguns líde­ não se trata de uma questão filosófica, seme­
res evangélicos que haviam sido convidados a lhante ao comunismo2.
escrever sobre a civilização ocidental e a mis­ Os evangélicos não estão adotando o mate­
são da Igreja. A maioria deles, de uma forma rialismo nesse sentido, por isso alguns alegam
ou de outra, criticou o nosso materialismo. que não poderiam ser classificados de materia­
J. D . Douglas, editor do N ew Internatio­ listas. N a verdade, os cristãos têm vivido um
nal Dictionary o f the Christian Church [N o ­ materialismo prático, extremamente prejudi­
vo dicionário internacional da Igreja cristã] e cial ao avanço do evangelho em nossa geração.

Ó âó'
Os evangélicos se secularizam pela forma Todavia, pregar o evangelho com rigidez, por
fácil com que seguem os modismos do mundo. meio de pesquisas de opinião e palavras esco­
Certa vez, conversando com o Dr. Hudson lhidas de maneira minuciosa, é “secularismo
Armerding, então presidente da Faculdade evangélico”.
Wheaton, a respeito da situação do ensino A mesma coisa ocorre na maneira como
cristão, perguntei o que mais o incomodava os produtos evangélicos são vendidos ao
na cultura das nossas faculdades. próprio consumidor cristão, por meio de
Ele respondeu: “É o fato de as faculdades propagandas em revistas, malas-diretas e as­
cristãs parecerem estar sempre atrás do mun­ sim por diante. O que deve ser dito, em de­
do; ambos têm as mesmas preocupações, mas fesa disso, é que geralmente essa parece ser a
os cristãos só as demonstram um ou dois anos única forma pela qual os líderes evangélicos
mais tarde”. Ele também explicou que a guer­ conseguem despertar o interesse do povo de
ra do Vietnã, por exemplo, tornou-se uma Deus pelo Reino.
preocupação nas escolas seculares, mas, nas Nesse caso, seria apropriado avaliar os
escolas cristãs, isso só ocorreu alguns anos compromissos antes de desperdiçar dinheiro,
depois. O mesmo aconteceu em relação à sempre colocando as prioridades à frente de
ecologia e à independência feminina, quando qualquer apelo comercial, como os folhetos
se tornaram temas predominantes no meio com imagens sentimentais que costumam en­
acadêmico. O que Armerding quis dizer é viar às pessoas antes do Natal. Em outras pa­
que o mundo tem conduzido a Igreja. E o que lavras, quando você estiver orando, peça dire­
isso significa senão um processo de seculari­ ção ao Senhor para administrar com sabedoria
zação da comunidade evangélica? os recursos que Ele lhe deu.
O utra maneira de observarmos o secula- Finalmente, o secularismo instalado nas
rismo entre os evangélicos é por meio da igrejas evangélicas pode ser notado pela indi­
abordagem publicitária utilizada pelos cris­ ferença dos cristãos. Indiferença a quê? A
tãos atualmente, principalmente em certas qualquer coisa que valha a pena.
formas estilizadas de evangelismo. Precisa­ Somos indiferentes aos perdidos. Francis
mos ser cuidadosos quanto a esse assunto, R. Steele, diretor do conselho norte-america-
porque, obviamente, pregar o evangelho não no da Missão África do N orte, escreveu um
é o problema. Se por um método inovador artigo intitulado Indiferença-Envolvimento
formos capazes de reunir pessoas a fim de para a revista The Cross [A cruz], edição de
proclamar o evangelho, tal recurso, ainda outono de 1975, páginas 8, 9. N o artigo, ele
que imperfeito, será válido. Devemos reco­ apontou a indiferença como o problema nú­
nhecer, entretanto, que o secularismo tam ­ mero um para recrutar missionários e para
bém invadiu o ministério de evangelismo de conseguir apoio à obra de missões. Ele tam­
algumas igrejas. bém mencionou projetos de curto prazo que
Às vezes, os cristãos são obrigados, por têm boa receptividade, mas poucos se com ­
exemplo, a memorizar uma determinada prometem a viver integralmente para missões
apresentação estilizada da verdade cristã. E s­ por amor a Cristo, e apenas alguns ajudam a
sa estratégia pode ser útil nas mãos de alguém sustentar essas pessoas abnegadas. Isso se de­
que conheça bem o evangelho. Pensar nos ti­ ve à indiferença do povo de Deus.
pos de pergunta que as pessoas possam fazer Somos indiferentes ao sofrimento dos po­
e nas respostas que as satisfaçam pode ajudar bres. N os Estados Unidos, os cristãos ficam
muito um orador antes de sua exposição. tão isolados dos mais pobres que raramente
veem o sofrimento deles face a face. N ão sa­ mas eles não pertencem ao mundo. Seus valo­
bem o que é estar com fome e não conseguir res e prioridades não podem ser iguais aos da
pensar em outra coisa além de comida. Per­ sociedade. A Igreja verdadeira procura pro­
manecem, então, insensíveis a essa realidade. mover o Reino de Deus na terra.
Somos indiferentes às necessidades dos
nossos irmãos. Ultimamente, temos percebido A u t o r id a d e s , t e o l o g ia s e p r io r id a d e s
d i f e r e n t e s ____________________________________
que ninguém quer escutar a aflição de um ir­
mão em Cristo. N ão queremos ser incomo­ Deixe-me sugerir algumas áreas nas quais
dados por questionamentos alheios, nem es­ a nossa diferença deve ser notória. A primeira
tamos preparados para isso. Estamos preo­ área é a da autoridade bíblica. O povo de
cupados apenas com nossa própria paz e Deus deve estar certo da autoridade da Pala­
prosperidade econômica. vra de Deus. Um a evidência do secularismo
Também somos indiferentes à falta de li­ das grandes denominações é o descarte dessa
derança nas igrejas. H á muito trabalho a ser autoridade, substituída pela autoridade do
feito, mas a coisa mais difícil é encontrar pes­ consenso. H oje, as decisões são tomadas nas
soas que reconheçam essa necessidade, assu­ igrejas a partir do que 51% dos membros di­
mindo as responsabilidades da liderança, fa­ zem, e não pelo que a Bíblia ensina.
zendo o que for preciso, pela graça de Deus, e Se a Igreja deve ser distinta nessa área, en­
fielmente passando por grandes provações tão todos precisam saber que as ações dela
pessoais. N ão temos muitos cristãos com esse estão fundamentadas na Bíblia. Precisamos
comprometimento. viver pela Palavra, reconhecendo que os
Certa vez, alguém me entregou um pe­ nossos padrões procedem dela. N a teoria,
queno poema a respeito do papel do pastor, isso já acontece; na prática, porém, algumas
que dizia: “Cinzas às cinzas, pó ao pó; se as congregações, para atrair os não cristãos ou
pessoas não fizerem algo, o pastor deverá”. manter seus membros, permitem que con­
Ele, entretanto, não pode fazer tudo. Se fizer dutas adotadas pela sociedade, mas equivo­
tudo, a pregação da Palavra de Deus poderá cadas em relação aos princípios bíblicos, se­
ser negligenciada. Quando os membros de jam aceitas.
uma igreja são indiferentes a necessidades ób­ Precisamos restabelecer a autoridade bí­
vias, o pastor responde sozinho por elas, e blica em nossa vida. Sobre temas importantes,
toda a congregação sofre. Os cristãos rece­ por exemplo, não podemos simplesmente di­
bem dons, e devem estar dispostos a usá-los zer: “Bem, essa questão não me afeta particu­
para a glória de Deus. larmente”. Esse tipo de posicionamento não é
Foi feita a seguinte pergunta a alguns líde­ adequado, pois nos isenta da responsabilida­
res evangélicos: “Qual é o maior problema de de buscarmos a direção de Deus, por meio
das igrejas hoje?”. U m ministro da Associa­ da Sua Palavra, em situações nas quais não
ção Nacional de Evangélicos respondeu: estamos envolvidos pessoalmente. Temos de
“Apatia”. O utro líder disse: “A falta de disci­ estudar a Bíblia, procurando entender o que
plina”. E um terceiro, alguém envolvido no Deus deseja para Seus filhos neste tempo; do
escândalo Watergate3, respondeu: “N ão se contrário, seguiremos os passos do mundo.
preocupar o suficiente”. A história demonstra que não permanece­
Os cristãos precisam ser diferentes. Eles mos muito tempo numa posição ambígua.
estão no mundo e, em certos aspectos, aca­ N o período nazista4, a Igreja teve de escolher
bam identificando-se com os interesses dele; entre duas atitudes: ou ela cedia ao ponto de

o á ’á’
vista nazista (como fez a maioria dos cristãos), todos os seminários da Presbiteriana U n i­
ou alicerçava-se mais ainda na Palavra de Deus. da. Naquele tem po, Fuller já possuía 1.200
Aqueles que se firmaram nas Escrituras alunos.
estreitaram seus laços de comunhão e assina­ Então, onde os jovens das igrejas presbite­
ram documentos identificando-se como Igre­ rianas preparam-se para o ministério pasto­
ja Confessional5. Agiram dessa forma porque ral? De acordo com esse relatório, 38,4% de­
era impossível recorrer a quaisquer normas les evitavam os seminários da denominação,
externas quando toda a sociedade era contrá­ preferindo escolas como Trinity, Gordon-
ria aos padrões bíblicos. -Conwell, Fuller e outras. Essa escolha era
Você não pode dizer, por exemplo, que baseada na teologia distinta desses seminá­
suas atitudes estão respaldadas na psicologia, rios. Hoje, esse percentual é ainda maior.
ou na ciência, ou nas relações sociais, pois Em seu livro Why Conservative Churches
grande parte do material produzido nessas A re G row ing? [Por que as igrejas conserva­
áreas contraria a verdade bíblica. Por isso, é doras estão crescendo?], Dean Kelley afirma
necessário buscar a revelação divina. que as igrejas conservadoras sabem onde es­
Deus tem falado por meio da Bíblia? Ele tão apoiadas. Por esse motivo, as pessoas se
ainda fala? Essas perguntas devem ser feitas. voltam para elas, reconhecendo sua firmeza.
Se Deus fala, então devemos posicionar-nos, Pela mesma razão, os seminários evangélicos
temos de fazer coro à Bíblia e dizer: Sempre crescem. Esses exemplos, portanto, ilustram
seja D eus verdadeiro, e todo hom em mentiro­ o que precisamos em nossa teologia.
so (Rm 3.4). As igrejas evangélicas precisam Precisamos ensinar as doutrinas bíblicas e
resgatar esse ponto de vista sem demora. deixar de adotar a teologia produzida pela
A teologia é a segunda área na qual preci­ nossa cultura. Temos de falar da depravação
samos ser distintos. Quando isso acontece, dos homens e da rebelião contra Deus, anun­
nós conseguimos atrair aqueles que têm fome ciando que só há esperança por meio da graça
da Palavra de Deus. Nossos seminários evi­ divina. Devemos falar do amor de Deus e do
denciam isso. Seu Espírito, que habita naquele que recebeu
U m a vez, recebi o relatório de uma reu­ Jesus, dando-lhe entendimento da Palavra e
nião do Conselho de Seminários Teológicos arrancando toda a rebeldia de seu coração.
da Igreja Presbiteriana Unida na qual os re­ Precisamos falar de perseverança, pois Deus
presentantes de dois dos principais seminários sustenta aqueles a quem Ele atrai. Todas as
evangélicos, Fuller e Gordon-Conwell, estavam doutrinas bíblicas devem ser proclamadas.
presentes. Ali, foram discutidas as necessidades Temos de dizer: “Estamos apoiados na Pala­
dos seguintes seminários da Presbiteriana U ni­ vra. N ão adotaremos uma teologia baseada
da: Dubuque, Louisville, McCormick, Pitts- em falsos ensinos”.
burgh, Princeton, San Francisco e J. C. Smith. A terceira área na qual temos de ser dife­
O relatório dessa reunião mostrou que as rentes é a das prioridades. Algumas denomi­
matrículas estão em declínio nos seminários nações definem suas ações pela agenda do
da denominação onde não há uma teologia mundo. Nossas prioridades, porém, não de­
evangélica clara e convincente. Dos sete, vem ser determinadas pela sociedade, mas
Dubuque tinha a menor procura; apenas 111 pela Palavra de Deus. Essa postura não sig­
alunos. Princeton tinha 581 alunos. Em nosso nifica que iremos negligenciar as preocupa­
país, as inscrições nos cinco principais semi­ ções sociais; estas fazem parte das priorida­
nários evangélicos estão crescendo e já superam des cristãs. C ontudo, não rejeitaremos o
evangelho; proclamaremos, antes, a salvação ocorrerão. Diante disso, os cristãos devem ser
em Jesus Cristo. Essa é a nossa prioridade firmes em suas convicções, posicionando-se
máxima. contra a tendência desta geração: a crescente
N o final de sua obra The Invaded Church secularização.
[A Igreja invadida], Donald G. Bloesch dis­ Empregar bem o nosso tempo é uma prio­
cute o que os evangélicos devem fazer para ridade. Seja por meio da televisão, seja pela
transformar o mundo. Ele explica, por meio prática, o esporte é um exemplo de algo que
de alguns exemplos, que é preciso “um novo toma o tempo das pessoas quando estas são
modelo de homem”. Quando entra na ques­ desmedidas. O esporte tem se tornado a reli­
tão do racismo, o autor analisa o problema da gião da América, fazendo parte dos fins de
seguinte forma: semana de muitas pessoas. Alguns evangéli­
cos ocupam seu tempo com tantas práticas
Para o humanismo secular moderno, incluindo esportivas que as atividades cristãs são prete­
o marxismo, o veneno do racismo pode ser ridas. Essa área de nossa vida tem seguido o
eliminado pela reforma social e pela educação. rumo que desejamos? O Dr. Anthony Cam-
O cristianismo bíblico enxerga essa questão polo, professor da Eastern College na Pensil-
por um prisma diferente. O verdadeiro inimi­ vânia, considera o compromisso com os es­
go é o orgulho racial e cultural, e não a igno­ portes a maior ameaça à América hoje.
rância. Por trás desse orgulho, estão a incre­ Tempo demais é desperdiçado diante da
dulidade e a dureza de coração, as quais a televisão com programas que não edificam,
Bíblia chama de pecado original. [...] Leis são no máximo, entretêm. As estatísticas mos­
necessárias para proteger os indefesos, mas tram que o americano passa em média mais de
elas só podem conter a represa do pecado. So­ sete horas por dia em frente à TV, e esse re­
mente o evangelho remove o pecado, portan­ sultado provavelmente envolve os cristãos.
to a solução definitiva para o racismo e outros Aquele “tubo” vale todo esse tempo? N a
males sociais está no evangelismo bíblico. Bíblia, está escrito: Rem indo o tempo, por­
( B l o e s c h , 1975, p. 99) quanto os dias são maus (E f 5.16). Isso signi­
fica valorizar a vida. Os desafios desta
Quando estabelecemos nossas priorida­ geração exigirão que os cristãos administrem
des, nós devemos evidenciá-las como o alvo do melhor o seu tempo.
nosso tempo, do nosso dinheiro e das nossas E quanto aos domingos? Pessoalmente,
escolhas a respeito do que fazemos e dizemos. não acredito em leis que limitam certas ativida­
des aos domingos, como compras ou trabalho,
Novo e s t i l o d e v i d a ________________________ por razões religiosas; nem creio que seja eficaz
Precisamos ser diferentes do mundo em determinar o que as pessoas devem fazer aos
nosso estilo de vida. N ão temos nos cons­ domingos, mas os evangélicos poderiam apro­
cientizado dessa necessidade nos últimos veitar melhor suas horas dominicais.
tempos porque nossa cultura ainda mantém Ir à igreja, prestar culto a Deus e freqüen­
vestígios de um cristianismo anterior; nós te­ tar a escola bíblica são maneiras de aproveitar
mos leis em nossos livros e seguimos certas bem o domingo. Contudo, apenas uma ma­
normas de comportamento por causa da in­ nhã é o tempo que desejamos estar com os
fluência dos primeiros cristãos. irmãos em Cristo? Só podemos disponibili­
Tudo isso, porém, está desaparecendo. zar alguns minutos desse dia para aprender a
As leis estão mudando, e outras mudanças Palavra de Deus?
Tenho notado que as escolas públicas pas­ A questão é: p or que nos casamos? Seria
saram a realizar seus eventos aos domingos, o somente para nos satisfazer ou por acreditar­
que já tem produzido efeito em nossas crianças. mos que Deus instituiu a família? E claro que
As escolas têm o restante da semana ocupado. a melhor razão é a última. Cremos que Deus
Então, o que fazem quando querem criar uma propaga a Sua Palavra e os valores cristãos
nova atividade? Elas utilizam as manhãs de do­ por meio de lares evangélicos, onde o estilo
mingo, pois as crianças precisam preparar-se de vida cristão é ensinado à posteridade.
para a festa da escola, o time de futebol precisa H á uma diferença entre o casamento cris­
treinar e a orquestra precisa de tempo para en­ tão e os demais casamentos, principalmente
saiar. Os cristãos estão sendo cada vez mais quando nos referimos aos votos matrimoniais.
confrontados com essa realidade ultimamente. Certa vez, fiquei bastante curioso para sa­
Diante disso, precisamos avaliar se deter­ ber como seria esse momento em um filme
minadas atividades são mais importantes do que vi na televisão. Os votos são de proce­
que ter nossas crianças na igreja. Ainda que dência cristã, então imaginei: “Agora, os noi­
não avancemos como gostaríamos, e mesmo vos farão os votos tradicionais, pois não po­
que nossos filhos não sejam tão populares dem evitá-los! O u será que farão uma
quanto os colegas da escola, nós devemos di­ adaptação para deixar essa ocasião com uma
zer: Porém eu e a minha casa serviremos ao cara mais secular?”.
S E N H O R Gs 24.15). N o filme, os noivos prometeram que vi­
Quando fazemos isso, nós influenciamos veriam um para o outro e que cuidariam um
o mundo. Eu conheço pais cristãos que disse­ do outro. Quando pensei que diriam “Até
ram aos seus filhos: “Vocês não estão autori­ que a morte nos separe!”, eles disseram “En­
zados a fazer isso no domingo de manhã; nós quanto durar o am or!”. Em outras palavras,
vamos à igreja nesse horário”. As crianças, enquanto existisse amor, eles viveriam um
então, disseram às suas professoras: “Lamen­ para o outro; mas, se o amor acabasse, seria o
tamos, mas não poderemos participar do even­ fim do casamento. Este poderia durar um
to da escola. Nossa família vai à igreja nesse ano, um mês ou uma semana!
horário”. As professoras responderam: “N ós Esse é o ponto de vista do homem secular,
não sabíamos que alguém ainda fazia isso! Tu­ e essa concepção de casamento é expressa
do bem. Nesse caso, nós mudaremos o horá­ abertamente hoje em dia. Os cristãos, entre­
rio”. Vitórias podem ser alcançadas, mas temos tanto, devem viver o vínculo matrimonial sa­
de permanecer em nossas convicções. bendo que seus votos são para a vida inteira,
Os cristãos costumam sofrer muita pres­ pois é assim que Deus deseja.
são do mundo quando o assunto é relação Com o temos usado nosso dinheiro? O
sexual. Precisamos ser diferentes nessa área povo de Deus também deve ser diferente na
também, sobretudo em nossa concepção de maneira de empregar seu dinheiro e outros
casamento e na maneira como conduzimos recursos. Todos nós somos atingidos, por
nosso relacionamento. N ão é fácil manter um exemplo, pela inflação. Contudo, se compa­
casamento nos dias de hoje, pois tudo no rarmos nosso padrão de vida com o de muitos
mundo conspira contra isso. A preocupação povos ao redor do mundo, nós concluiremos
dominante da nossa sociedade é com a satisfa­ que somos privilegiados.
ção pessoal, e há coisas no casamento que Todos nós temos recursos para oferecer à
nem sempre são satisfatórias; gostaríamos obra do Senhor, mas temos sido fiéis? H á
que elas fossem diferentes. cristãos que não devolvem seu dízimo como
as Escrituras ensinam, sequer dedicam sua amém. Eles não gostavam de teologia bíblica,
vida ao Reino de Deus. mas sabiam que o poder de Deus é necessário
para que haja mudanças.
D e p e n d ê n c ia d e D e u s ______________________
De que forma os cristãos podem transfor­
Q uatro áreas nas quais precisamos ser di­ mar o mundo? O Senhor Jesus Cristo deu a
ferentes foram listadas até aqui. Essas áreas resposta no Sermão do Monte. Ele não disse
correspondem ao processo de secularização que iríamos controlar o mundo. Também não
delineado no último capítulo. Todavia, preci­ disse: “Elejam-se a altos postos no Império
samos mencionar um ponto importante que Romano! Consigam um imperador evangéli­
certamente chamará a atenção deste século: c o !”. É claro que isso poderia acontecer, Jesus
nossa visível dependência de Deus. não o proibiu. Contudo, Ele deixou um ensi­
Durante a reunião do Conselho de Semi­ namento: Vós sois o sal da terra [...]. Vós sois a
nários da Presbiteriana Unida que mencionei luz do mundo (Mt 5.13,14).
anteriormente, aconteceu uma coisa muito O sal não serve para nada quando perde o
reveladora. Quando eu falei sobre perdição seu sabor. Ele deixa de ser eficaz. Se nos de­
humana, houve uma terrível reação por parte nominamos cristãos, e o Espírito Santo tem
dos presentes. Ninguém queria ouvir que o trabalhado em nós, então precisamos ser
homem separado da graça de Deus está perdi­ verdadeiramente o povo de Cristo. Todos
do. Todos pareciam concordar com uma dou­ devem saber que, por Sua graça, não somos
trina diferente, e isso me assustou. os mesmos.
Eu ressaltei que a salvação só é possível Nossos valores não devem compactuar
por meio da graça de Deus. Disse a eles: “N ós com o mundo. N ão devemos comprometer-
não podemos mudar os homens; não pode­ -nos com os interesses deste século. Nossa
mos mudar o mundo. Se o mundo precisa ser teologia não precisa ser dizimada; em vez dis­
mudado, isso deve acontecer pela ação de so, os princípios da Palavra devem norteá-la.
Deus. N ós devemos orar por isso”. Dessa vez, Temos de considerar esses pontos, se deseja­
eles concordaram com as minhas palavras. mos realmente salgar o mundo.
Passei a analisar toda aquela situação e comecei Também somos luz. O objetivo da luz é
a entender a reação dos meus colegas. iluminar. E m Mateus 5.15, o Senhor disse:
Eles estavam envolvidos com as coisas so­ N em se acende a candeia e se coloca debaixo
bre as quais eu havia falado. Trabalhavam na do alqueire, mas, no velador, e dá luz a todos
área social ajudando alcoólatras, servindo às que estão na casa. Somos faróis neste mundo
comunidades e tentando melhorar a vida das em trevas, o que não muda os contornos ro­
pessoas. E o que havia acontecido? Eles em­ chosos da costa. O pecado continua a existir,
penharam suas energias na obra do Senhor, os riscos de destruição ainda ameaçam a hu­
porém não tiveram resultados. Então, quan­ manidade, mas, pela graça de Deus, nossa luz
do eu disse que a mudança tinha de ser pela pode ser um farol pronto a guiar os corações
graça de Deus, o coração deles ecoou um a um porto seguro.
N otas

1 Entre as obras que falam acerca de cidades fictícias, imaginadas pelos homens, temos A República, de Platão;
Walden, de Thoreau; Adm irável Mundo N ovo, de Huxley; 1984, de Orwell.

2 O comunismo é uma estrutura socioeconômica e uma ideologia política que pretende promover o estabelecimento
de uma sociedade igualitária, sem classes e apátrida, baseada na propriedade comum e no controle dos meios de
produção e da propriedade em geral. Karl Marx postulou que o comunismo seria a fase final na sociedade humana,
o que seria alcançado por uma revolução proletária. O “comunismo puro”, no sentido marxista, refere-se a uma
sociedade sem classes, sem Estado e livre de opressão, onde as decisões sobre o que produzir e quais políticas devem
prosseguir são tomadas democraticamente, permitindo que cada membro da sociedade possa participar do processo
decisório na esfera política e econômica da vida.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Comunismo)
3 O caso Watergate foi o escândalo político ocorrido na década de 1970 nos Estados Unidos da América que, ao vir
à tona, acabou por culminar com a renúncia do presidente americano Richard Nixon, eleito pelo partido republica­
no. Watergate de certo modo tornou-se um caso paradigmático de corrupção.
(Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Watergate)
4 Após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha foi palco de uma revolução democrática que se instaurou no país. A
primeira grande dificuldade da jovem república foi ter de assinar, em 1919, o Tratado de Versalhes, que impunha
pesadas obrigações à Alemanha. À medida que os conflitos sociais se foram intensificando, surgiram, no cenário
político alemão, partidos ultranacionalistas, radicalmente contrários ao socialismo. Curiosamente, um desses parti­
dos chamava-se Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (Partido Nazista) e era liderado por um
ex-cabo de nome Adolf Hitler. As eleições presidenciais de 1925 foram vencidas pelo velho Von Hindenburg, que,
com a ajuda do capital estrangeiro, especialmente norte-americano, conseguiu que a economia do país voltasse a
crescer lentamente. Esse crescimento, porém, perdurou somente até 1929.
Foi quando a crise econômica atingiu com tal força a Alemanha que, em 1932, já havia no país mais de seis milhões
de desempregados. Nesse contexto de crise, os milhões de desempregados, bem como muitos integrantes dos grupos
dominantes, passaram a acreditar nas promessas de Hitler de transformar a Alemanha num país rico e poderoso.
Valendo-se disso, os nazistas passaram a pressionar o presidente, e este concedeu a Hitler o cargo de chanceler
(chefe do governo). No poder, Hitler conseguiu rapidamente que o Parlamento aprovasse uma lei que lhe permitia
governar sem dar satisfação de seus atos a ninguém. Em seguida, com base nessa lei, ordenou a dissolução de todos
os partidos, com exceção do Partido Nazista. Em agosto de 1934, morreu Hindenburg, e Hitler passou a ser o pre­
sidente da Alemanha, com o título de Führer (guia, condutor).
Fortalecido, o Führer lançou mão de uma propaganda sedutora e de violência policial para implantar a mais cruel
ditadura que a humanidade já conhecera.
(Fonte: http://www.brasilescola.com/historiag/nazismo.htm)
5 A Igreja Confessante ou Igreja Confessional (Alemão: Bekennende Kirche) foi um movimento cristão minoritário
de resistência ao Partido Nazista na Alemanha. Em 1933 o Gleichschaltung forçou as Igrejas Protestantes a entrarem
para a Igreja Protestante do Reich e apoiar a ideologia Nazista. A Igreja Confessante foi criada em setembro do
mesmo ano como um grupo clandestino da resistência alemã. Em 1934 a Declaração Teológica de Barmen, escrita
primariamente por Karl Barth com o apoio de outros pastores e congregações da Igreja Confessante, foi ratificada
no Sínodo de Barmen, reafirmando que a Igreja Protestante Alemã não era um órgão do Estado, com o propósito
de reforçar o Nazismo, mas um grupo sujeito apenas a Jesus Cristo e Seu evangelho. No mesmo ano o pastor lute­
rano Martin Niemõller tomou-se líder da Igreja Confessante, motivo pelo qual seria preso, julgado e posteriormen­
te mandado para um campo de concentração. Simultaneamente a Igreja Confessante teve seus bens confiscados, bem
como a prisão de diversos de seus pastores. Da mesma forma, outras medidas tomadas pelos nazistas acarretaram o
término da Igreja. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_Confessante)
I g r e ja e E stado

xistem duas ambigüidades na rela­ Em algumas circunstâncias, o Estado é re­


ção entre a cidade celestial e a cida­ presentado pela ímpia Babilônia, cujo destino
de secular que precisam ser desta­ é a destruição (Ap 18). Todavia, por meio de
cadas. Um a é referente à Igreja Sua vitória na cruz, Cristo triunfou sobre es­
secularizada, que, embora devesse ser santa e ses poderes malignos que tentam influenciar
totalmente consagrada a Deus e ao Seu Reino, o Estado: E, despojando os principados e po­
é motivada pela autoridade, pela teologia, pe­ testades, os expôs publicamente e deles triun­
la agenda e pelos métodos do mundo, sendo fo u em si mesmo (Cl 2.15).
cristã apenas no nome. A outra ambigüidade A Bíblia nos ensina a enxergar positiva­
é referente ao Estado. Este representa um mente o Estado. Em Romanos 13.1, está es­
problema, porque, embora expresse a menta­ crito: Não há autoridade que não venha de
lidade secular, foi estabelecido por Deus para Deus; e as autoridades que há foram ordena­
promover o bem comum; portanto, merece o das por Deus. Devemos, então, obedecer aos
apoio e as orações do povo cristão. que estão investidos de autoridade, orando
Essa segunda ambigüidade está funda­ sempre pela vida deles: Admoesto-te, pois, an­
mentada nas Escrituras. Nelas, aprendemos tes de tudo, que se façam deprecações, orações,
que as autoridades foram ordenadas por intercessões e ações de graças p o r todos os ho­
Deus, tendo poder para punir os que prati­ mens, pelos reis e p or todos os que estão em
cam o mal. Às vezes, o Estado deixa de cum­ eminência (1 Tm 2.1,2a).
prir seu papel, e passa a ser dirigido por pode­ Às vezes, o Estado funciona como deve­
res demoníacos. Quanto a isso, Paulo nos ria. Em outras ocasiões, ele funciona mal, in­
advertiu a lutar contra as forças espirituais do fluenciado por forças demoníacas. E m cir­
mal, e não contra a carne e o sangue [seres cunstâncias normais, a Igreja deve ser grata
humanos]: pelo Estado, procurando obedecer-lhe e con­
siderando-o um dos “meios ou apoios exter­
Porque não temos que lutar contra carne nos pelos quais Deus nos convida para a so­
e sangue, mas, sim, contra os principa­ ciedade de Cristo e mantém-nos nela”, como
dos, contra as potestades, contra os p rín ­ fez Calvino, em As Institutas, onde o papel
cipes das trevas deste século, contra as apropriado do Estado é discutido.
hostes espirituais da m aldade, nos luga­ Contudo, a Igreja também deve estar
res celestiais. pronta para desafiar o Estado em nome de
Deus e de Sua justiça. Se for preciso, ela terá de
desobedecer ao Estado todas as vezes em que acesso a esses recursos. A revolução em causa
as leis dele conflitarem com as leis de Deus. própria ou em benefício de outros revolucio­
N em sempre é fácil determinar em qual nários está excluída como opção.
das duas situações alguém se encontra. N o Qual é a esfera de legitimidade do gover­
entanto, esse é um dos dilemas que confron­ no? Calvino a considerava como “o estabeleci­
tam o cidadão cristão. O caso daquela clássica mento da justiça civil e da moralidade social”
passagem dos Evangelhos sobre a responsabi­ ( C a l v in o , 1960, p. 1485). Ele argumentava
lidade do cristão diante do governo exempli­ que o reino espiritual de Cristo e a jurisdição
fica esse dilema: Dai, pois, a César o que é de civil são coisas distintas. Porém, essa diferen­
César e a Deus, o que é de D eus (Mt 22.21). ça não significa que todo o governo esteja
O que deu origem a esse ensinamento de corrompido; segundo Calvino, o Estado exis­
Jesus foi a pergunta feita a Ele acerca dos im­ te para “guardar e proteger a adoração exter­
postos: E lícito pagar o tributo a César ou na a Deus, defender a sã doutrina da piedade
não f (M t 22.17). A resposta de Jesus foi afir­ e o papel da Igreja, adequar nossa vida à so­
mativa, influenciando, mais tarde, a orienta­ ciedade humana, moldar nossa conduta so­
ção de Paulo aos rom ínos: D ai a cada um o cial, promover a justiça civil, reconciliar-nos
que deveis: a quem tributo, tributo; a quem uns com os outros e assegurar a paz e a tran­
imposto, imposto; a quem temor, temor; a qüilidade geral” ( C a l v in o , 1960, p. 1487).
quem honra, honra (Rm 13.7). John Murray, em um estudo sobre a rela­
Suponhamos que a lei de César [que re­ ção entre Igreja e Estado, afirmou que o papel
presenta o governo, o poder do Estado] e os do governo civil “é guardar, manter e prom o­
mandamentos de Deus discordem. Obedece­ ver justiça, ordem e paz” (M u r r a y , 1976, p.
remos a César ou ao Senhor? 253). Por outro lado, a respeito da função da
Se os nossos impostos, por exemplo, fo­ Igreja, ele escreveu:
rem usados para fins imorais (para sustentar
uma polícia violenta, financiar uma guerra A Igreja cabe a tarefa de proclamar os preceitos
injusta, oprimir os marginalizados)? Diante de Deus. Estes geram responsabilidades para
disso, qual deverá ser a nossa postura? todas as pessoas e instituições. [...] Quando o
É claro que há elementos intrigantes nessa magistrado civil ultrapassa os limites de sua
relação entre Igreja e Estado. Em um aspecto, autoridade, é incumbência da Igreja expor e
porém, o ensinamento de Jesus sobre os im­ condenar tal abuso e violação. ( M u r r a y , 1 9 7 6 ,
postos não deixa dúvidas: o Estado tem uma p. 255)
esfera de domínio legítima, e os cristãos têm o
dever de respeitar essa legitimidade, pois O que esses homens disseram, respalda­
Deus a estabeleceu. dos na Palavra de Deus, não é que simples­
Os cristãos não podem ser inteiramente mente Igreja e Estado representam duas esfe­
pragmáticos nesse ponto, e muito menos ras de autoridade separadas: a de Deus e a de
oportunistas. Eles não podem conspirar para César. Ao contrário, eles assinalaram que
derrubar um governo legitimamente consti­ Igreja e Estado estão ligados entre si e que
tuído só porque preferem outro tipo de ges­ ambos foram estabelecidos por Deus, com ­
tão ou outro governante, e menos ainda com partilhando certas áreas de preocupação e
a finalidade de assumir o poder. respondendo por outros diante de Deus.
N um a democracia, há meios legítimos pa­ U m a luz é lançada sobre essa relação
ra mudar os governantes, e os cristãos têm quando analisamos o momento em que Jesus
se apresentou a Pilatos. A situação é emble­ como autoridades, mas com César em posição
mática. Jesus, o Senhor da Igreja, estava dian­ dominante; (4) e Deus e César como autorida­
te do principal representante do governo na des, mas com Deus em posição dominante.
Palestina. A questão do julgamento era se Je ­
sus, um Rei, posicionava-se corretamente em So m en te D e u s _______________________________

relação a César. A primeira opção, somente Deus, é a que


N a primeira parte do julgamento, a con­ alguns cristãos adotaram em certos períodos
tenda por causa da realeza de Cristo foi rapi­ da história. N a Igreja primitiva, havia pessoas
damente rejeitada por Pilatos. Ele entendeu chamadas anacoretas, que se isolavam no de­
com facilidade que o Reino de Cristo não era serto, separando-se de qualquer contato so­
deste mundo (Jo 18.36), logo não ameaçava o cial e vivendo exclusivamente para Deus. Foi
legítimo governo romano. O caso, porém, dos anacoretas que surgiram os primeiros
não terminava aí. Os acusadores de Jesus in­ movimentos monásticos.
sistiam em pedir a morte dele, afirmando que Em nossos dias, observamos uma atitude
Jesus se dizia Filho de Deus (Jo 19.7). similar em alguns evangélicos. Eles acreditam
Intrigado com essa nova acusação, Pilatos que o cristão deveria ser totalmente separado
reabriu a investigação, perguntando a Jesus: da esfera secular, afastar-se da cultura, viver
D e onde és tu? (Jo 19.9). Jesus não lhe deu em comunidades separadas, fazer amizade
resposta (com o se Pilatos não fosse qualifica­ apenas com evangélicos, e trabalhar para em­
do para interrogá-lo sobre um assunto clara­ presas cristãs. Eles também acreditam que o
mente espiritual). O governador romano cristão não deveria entrar para a política nem
continuou: Não m e falas a m im ? Não sabes tu votar nas eleições. Para eles, o verdadeiro
que tenho p od er para te crucificar e tenho po­ cristão não tem vínculo algum com este mun­
d er para te soltar? (Jo 19.10). Jesus, então, do. Essa é uma maneira de dizer que a autori­
declarou: N enh um pod er terias contra mim, dade do Estado é ilegítima.
se de cima te não fosse dado; mas aquele que Jesus, porém , não pensava dessa manei­
m e entregou a ti maior pecado tem (Jo 19.11). ra. Quando disse que a autoridade (a pala­
Essa é uma declaração de suma importân­ vra grega é exousia, e não dynamis ou kra-
cia no que concerne ao papel do Estado. Ela tos, que significa autoridade) de Pilatos
demonstra que a autoridade do governo hu­ vinha de D eus, Ele legitimou aquela autori­
mano não procede de algo intrínseco a ele, dade e m ostrou, p or meio de Sua conduta
mas de Deus. É uma autoridade delegada, no julgamento, que Seus discípulos também
por isso sempre haverá a questão da respon­ deveriam reconhecê-la. Ele respeitou o go­
sabilidade dos governantes pelos pecados verno de Pilatos, respondendo-lhe com
que cometerem. cortesia. Jesus jamais insinuou que Pilatos
Para entender a relação entre Igreja e E s­ não tivesse poder para pronunciar uma sen­
tado em sua plenitude, nós precisamos anali­ tença sobre Ele.
sar a impactante declaração que Jesus fez a C om o sabemos, Pilatos julgou erronea­
Pilatos a respeito de Deus e de César, conjec- mente, mas ele tinha autoridade para dar a
turando sobre quatro opções no que diz res­ sentença. Sua autoridade vinha de Deus. Jesus
peito à autoridade legítima: (1) somente Deus nunca deu a entender que ela havia sido usur­
como autoridade, e nenhuma autoridade de pada dele. Pilatos, entretanto, estava para co ­
César; (2) somente César como autoridade, e meter o maior erro de seu governo: condenar
nenhuma autoridade de Deus; (3) Deus e César o Filho de Deus.
Precisamos enfatizar que os cristãos de­ de Pilatos foi delegada, por isso a coisa muda
vem estar sujeitos às autoridades superiores. de figura.
H á alguns limites, com o veremos. Porém, é Autoridade delegada necessariamente im­
necessário que o verdadeiro cristão seja um plica responsabilidade para com outra pessoa,
cidadão exemplar. Infelizmente, muitos des­ e a responsabilidade que não for corretamen­
respeitam as autoridades, e isso conduz a pe­ te exercida será considerada pecado contra
quenos delitos que passam despercebidos. quem a delegou. Em outras palavras, a autori­
Isso não poderia acontecer. A o contrário, dade permite o governo humano, mas, de
deveríamos ser rigorosos, por exemplo, ao certa forma, também o limita. Essa autorida­
obedecer aos sinais de trânsito, aos limites de de está ligada ao caráter moral de Deus, de
velocidade e a outras leis civis. quem ela procede.
Calvino tinha um medo justificado da H á um limite bíblico para a obediência às
anarquia1 por causa dos tumultos de sua épo­ autoridades humanas no que diz respeito à
ca. Para alertar sua geração contra a confusão pregação do evangelho. Este é um dever cris­
e a desordem, ele afirmou que devemos obe­ tão baseado em um mandamento de Jesus
diência até aos governantes perversos: Cristo:

Não devemos estar sujeitos apenas à autorida­ Portanto, ide, ensinai todas as nações, bati­
de dos príncipes que governam com retidão e zando-as em nome do Pai, e do Filho, e do
fidelidade como deveriam, mas também à au­ Espírito Santo; ensinando-as a guardar
toridade de todos que, por quaisquer meios, todas as coisas que eu vos tenho mandado;
tenham algum domínio, ainda que não execu­ e eis que eu estou convosco todos os dias,
tem uma pitada da função dos príncipes. (C a l- até à consumação dos séculos. A m ém !
v in o , 1960, p . 1512) Mateus 28.19,20

Quais seriam, então, os limites para essa N os capítulos 4 e 5 de Atos, está escrito o
submissão às autoridades estabelecidas? E se que acontece quando as autoridades se levan­
o governante for perverso? Ainda que tenha­ tam contra esse princípio. Os discípulos esta-
mos de ser zelosos, dedicando toda a obedi­ vam pregando e realizando muitos milagres, e
ência possível aos que estão em posição de isso provocou tanto rebuliço que eles foram
autoridade (quase sempre muito mais do que levados ao conselho de anciãos de Jerusalém.
gostaríamos), não podemos contrariar os Lá, Pedro e João foram interrogados. Com o
mandamentos e preceitos da Palavra de Deus o milagre que havia sido operado por Deus
nem desprezar o padrão de moralidade que por intermédio deles - a cura de um paralítico
vem dela, mesmo que a autoridade terrena dê - era tão evidente, e os líderes não podiam
uma ordem nesse sentido. negá-lo, estes decidiram que os discípulos de­
A segunda parte do ensinamento de Jesus viam ficar calados. Pedro e João, porém, res­
se aplica aqui. Depois de informar a fonte da ponderam:
autoridade de Pilatos, Jesus prosseguiu falan­
do acerca do pecado: Mas aquele que m e en­ Julgai vós se é justo, diante de Deus, ouvir-
tregou a ti maior pecado tem (Jo 19.11b). Se -vos antes a vós do que a Deus; porque não
Pilatos tivesse recebido apenas autoridade, podemos deixar de falar do que temos vis­
seria impossível falar do pecado com o algo to e ouvido.
intrínseco ao exercício do poder. A autoridade
Os apóstolos foram ameaçados, mas vol­ Alguns se insurgiram contra essas mons­
taram a pregar. Então, o capitão da guarda do truosidades. U m deles foi o pastor Martin
templo e os guardas os detiveram novamente, Niemoeller, lançado na prisão por pregar a
levando-os ao Sinédrio, onde o sumo sacer­ verdade. Sabemos que outro pastor o visitou
dote lhes disse: na prisão tentando convencê-lo a manter-se
em silêncio sobre certos assuntos e a respeitar
Não vos admoestamos nós expressamente o regime de Hitler, para ser posto em liberda­
que não ensinásseis nesse nome f E eis que de. Para concluir suas palavras, o pastor per­
enchestes Jerusalém dessa vossa doutrina e guntou a Niemoeller: “Então, por que você
quereis lançar sobre nós o sangue desse ho­ está preso?”. A resposta de Niemoeller foi: “E
mem. por que você não está preso?” (B a r n h o u s e ,
Atos 5.28 1958, p. 106,107).
A conduta de Niemoeller foi a correta. O
Pedro e os outros apóstolos, porém, repli­ pastor que o visitou, por meio de seu silên­
caram: cio e de sua omissão, estava alimentando
uma mentira e apoiando indiretamente um
Mais importa obedecer a D eus do que aos governo maligno, que matava, roubava e
homens. O Deus de nossos pais ressuscitou a destruía.
Jesus, ao qual vós matastes, suspendendo-o Em toda parte, os cristãos devem pronun­
no madeiro. Deus, com a sua destra, o ele­ ciar-se contra o racismo, a corrupção no go­
vou a Príncipe e Salvador, para dar a Israel verno e nas empresas, a imoralidade, a discri­
o arrependimento e remissão dos pecados. E minação de idosos e outros males. O s cristãos
nós somos testemunhas acerca destas pala­ devem recusar-se a participar dessas coisas,
vras, nós e também o Espírito Santo, que mesmo que recebam ordens contrárias da
Deus deu àqueles que lhe obedecem. parte do governo ou de outras autoridades.
Atos 5.29-32
So m en te C é s a r ______________________________

Esse incidente mostra que os cristãos de­ Somente César é a segunda concepção
vem priorizar a pregação do evangelho. Nada concernente à autoridade legítima. Geral­
deve interrompê-la, nem mesmo as autorida­ mente, essa é a ideia adotada pela maioria das
des deste mundo. pessoas e por alguns que se dizem cristãos. E
U m segundo limite bíblico para a obedi­ é a opção mais perigosa.
ência às autoridades humanas diz respeito à Encontramos uma declaração dessa con­
conduta e ã moral cristãs. Nenhum governo cepção de autoridade no julgamento de Jesus,
tem o direito de exigir que os cristãos ajam quando o sumo sacerdote disse a Pilatos: Não
em desacordo com os ensinamentos bíblicos. temos rei, senão o César (Jo 19.15b). Nessa
N a Alemanha, durante o nazismo, os cris­ concepção, a autoridade de Deus não é reco­
tãos foram confrontados com um Estado dia­ nhecida. Se Deus não for considerado, só res­
bólico, declaradamente anticristão, que adota­ tam soluções humanas e crueldade.
va práticas contra a humanidade. Os cidadãos Quando Deus é excluído da vida de al­
alemães eram proibidos de relacionar-se com guém, não há limites para César (Estado); e
os judeus. Os civis alemães não podiam nego­ este precisa de limites.
ciar com judeus, ajudá-los, fazer amizade N a América, reconhecemos isso secular­
com eles nem protegê-los de forma alguma. mente. Desenvolvemos um sistema de controle
e compensações no qual um segmento do go­ assim, o Estado estará respeitando o sexto
verno tem controle sobre outro. O Congres­ dos Dez Mandamentos.
so cria leis que regem todos os cidadãos, mas Quando cria leis contra roubos e arrom-
o poder judiciário pode declará-las inconsti­ bamentos, o Estado reforça o oitavo manda­
tucionais. O presidente nomeia os juizes da mento. O mesmo acontece quando estimula
Suprema Corte, mas o Congresso tem autori­ casamentos legalizados, contratos, negocia­
dade para declarar o impeachment do presi­ ções trabalhistas e coisas afins em centenas
dente. O presidente pode iniciar programas, de áreas.
mas o Congresso precisa autorizar o financia­ E m todas essas questões, queiram ou
mento deles. não, o Estado está legislando sobre m orali­
Reconhecemos a necessidade de controle, dade. O único ponto em discussão é o tipo
limites e compensações no meio secular por­ de moralidade a ser seguido. Os cristãos de­
que sabemos, por experiência, que pessoas no vem ser firmes ao recomendar que o Estado
poder nem sempre são dignas de confiança. busque a sabedoria de Deus em todos os
Se isso é verdade em relação aos assuntos hu­ assuntos.
manos tratados pelos governantes, quanto
mais verdadeiro deve ser no que concerne às CÉSA R NO CONTROLE________________________

coisas espirituais. As vozes unidas dos go­ César no controle é a terceira concepção
vernantes não podem ser definitivas. A voz relativa à autoridade legítima. Nessa opção,
de Deus e Seu juízo, sim, são definitivos. Se tanto Deus com o César exercem autoridade,
o abandonarmos, estaremos à mercê dos go­ mas a de César predomina. Essa é a escolha
vernantes. dos covardes. Se a autoridade de Deus é reco­
Quando Deus é excluído, não temos nhecida, então ela deve ser suprema.
meios seguros para guiar o governo adequa­ O s que se curvam a C ésar geralmente
damente. Precisamos de mecanismos de con­ têm medo dele. Esse foi o caso de Pilatos.
trole para impedir o governo de tornar-se Ele não queria condenar Jesus. Prim eiro,
uma lei em si mesmo, abusando do povo e ti- ele o declarou inocente. E m seguida, ele
ranizando os cidadãos. lançou mão de todos os expedientes para
Suponhamos, porém, que o governante tentar soltá-lo: enviou-o a H erodes, suge­
não seja tirano. Suponhamos que ele trabalhe riu Sua libertação, em vez da libertação de
direito. Mesmo assim, precisamos de Deus. Barrabás e mandou açoitar Jesus, exibindo-
Somente dele recebemos um sistema justo e -o depois à multidão para tentar conquistar
governantes sábios. a simpatia dela.
Hoje, nos Estados Unidos, algumas pes­ Mesmo depois de falhar em todos esses
soas estão tentando remover todos os vestí­ expedientes, Pilatos ainda tentou soltar Jesus:
gios religiosos da vida nacional. Elas dizem Desde então, Pilatos procurava soltá-lo; mas
que não é papel dos governos legislar sobre os judeus gritavam, dizendo: Se soltas este,
moralidade. Contudo, o que fará o Estado, se não és amigo do César! Q ualquer que se faz
não legislar sobre moralidade? rei é contra o César! (Jo 19.12).
Quando cria ou reforça leis contra a disse­ Se Pilatos estava disposto a evitar a sen­
minação do homicídio, o Estado não está le­ tença de morte de Jesus, então por que ele
gislando sobre moralidade? Essa é a maneira cedeu às pressões? A resposta está nessa mes­
de o Estado dizer: “N ós concordamos que a ma passagem bíblica. Os líderes judeus amea­
vida é preciosa e que é errado tirá-la”. Agindo çaram denunciá-lo a César. Pilatos, que temia
essa denúncia mais do que qualquer outra Se Pilatos não tivesse o que temer em seu
coisa, teve de ceder. modo de governar, talvez conseguisse ignorar
Pilatos é visto aqui em sua postura mais uma ameaça baseada em falsas acusações.
desprezível, mesmo assim ele é digno de pena. Contudo, sua administração não era irrepre­
Ele era o governador. Falava por César e ti­ ensível. Era bem possível que Pilatos perdesse
nha as legiões romanas a seu serviço para seu cargo e até sua vida, se tais acusações che­
cumprir o seu mandado. Ainda assim, esse gassem a Roma. (Alguns anos mais tarde, Pi­
homem, que deveria estar acima do medo, foi latos foi deposto de seu cargo pelo procônsul
enlaçado por este, tombando de joelhos no da Síria, sendo exilado na França.)
maior embate moral de sua carreira. A pior falha de Pilatos foi temer o homem.
De que Pilatos teve medo? De três coisas. Consequentemente, ele foi incapaz de fazer a
Pilatos teve medo de Cristo. Quando soube coisa certa, chegando a pronunciar uma sen­
que Jesus se dizia Filho de Deus, Pilatos ficou tença de morte contra o Filho de Deus.
ainda mais atemorizado: E Pilatos, quando
ouviu essa palavra, mais atemorizado ficou D e u s n o c o n t r o l e __________________________

(Jo 19.8). P or isso, procurava soltá-lo. D eus no controle é a quarta concepção


O que Pilatos possuía não era uma reve­ concernente à autoridade legítima. Essa é a
rência santa, que só um verdadeiro seguidor concepção correta. De acordo com ela, tanto
de Jesus possui, mas era um medo real. Tal­ Deus como César exercem autoridade, mas a
vez, ele pensasse que Jesus fosse com o um de Deus prevalece. Essa posição está funda­
dos deuses gregos ou romanos [ou se tornasse mentada nas palavras de Jesus a Pilatos: N e­
um mártir, provocando um levante]. Pilatos nhum pod er terias contra mim, se de cima te
temia que Jesus, caso fosse condenado injus­ não fosse dado (Jo 19.11).
tamente, destruísse seu destino. A partir dessas palavras de Jesus, os cris­
Pilatos também teve medo do povo. Ele tãos podem, de certa form a, desmistificar o
não gostava daquelas pessoas, é claro. As Estado, lem brando-o de que o poder deste
muitas negociações de Pilatos com os ju­ é limitado e do absurdo de certas reivindi­
deus m ostraram seu desdém e até seu ódio cações.
por eles. Porém , o governante conhecia o Jacques Ellul desmistificou o Estado em
poder daqueles líderes judeus, e temia vê- The Political Illusion [A ilusão política]. Ele
-los unidos em oposição a ele. Se não te­ considerou o ápice da insanidade as expecta­
messe os judeus, Pilatos teria soltado Jesus, tivas contemporâneas em relação ao Estado
encarregando-se de conter qualquer rebe­ com o salvador e solucionador da maior parte
lião posterior. de nossos problemas, e exortou os indivíduos
Pilatos temia o César. E tinha motivos pa­ a resistir à intrusão cada vez maior do Estado
ra isso. A personalidade de Tibério César era em sua vida.
bem conhecida, e Pilatos já experimentara O s cristãos podem também lembrar ao
outros confrontos com os judeus que não o Estado que sua responsabilidade é delegada
favoreceram. E se César desaprovasse a ma­ por Deus e que prestará contas a Ele um dia.
neira como ele conduziu esse caso? E se os Em resum o, o tem or a Deus deve ser
líderes judeus enviassem uma delegação a R o­ m aior do que o tem or às autoridades huma­
ma para denunciar a César que Pilatos se re­ nas, e isso precisa ser evidente na vida dos
cusou a agir com severidade para com um cristãos. Para isso, três requisitos são neces­
homem acusado de traição? sários.
1. Primeiro requisito: os cristãos devem 2. O segundo requisito para um efetivo
crer firmemente que Deus é soberano sobre posicionamento cristão diante das autorida­
os assuntos humanos, incluindo os assuntos des é um conhecimento profundo e abran­
de natureza pública e política. É claro que a gente da Bíblia por parte dos cristãos e das
maioria dos cristãos sabe disso, pois é um en­ instituições eclesiásticas.
sinamento bíblico. Contudo, deve ter essa Hoje em dia, há questões que podem ser
verdade gravada em seu coração, a fim de facilmente esclarecidas, enquanto outras de­
confiar em Deus quando a aflição chegar. mandam muito estudo. A confiança em Deus
N a Bíblia, lemos sobre a história de D a­ e a consciência da sabedoria dele nem sempre
niel. Ele conseguiu depositar sua confiança são suficientes. U m a pessoa pode querer fa­
em Deus, pois sabia que Ele é soberano. zer a coisa certa e confiar em Deus para obter
Quando Deus revelou o sonho de N abuco­ o resultado, mas ainda assim ela pode não sa­
donosor a Daniel, este se dirigiu a Deus nes­ ber qual é a coisa certa a ser feita. Por isso, a
tes termos: única maneira de o cristão saber o que é certo
em algumas ocasiões é ser ministrado pelo
Seja bendito o nom e de D eus para todo o Espírito Santo de Deus por meio da Bíblia.
sempre, porque dele é a sabedoria e a força; Mesmo assim, algumas coisas podem con­
ele muda os tempos e as horas; ele remove tinuar ambíguas. A questão de combater ou
os reis e estabelece os reis; ele dá sabedoria não em tempos de guerra, por exemplo, é
aos sábios e ciência aos inteligentes. uma delas; os cristãos têm se dividido sobre
Daniel 2.20,21 esse tema. O prolongamento artificial da vi­
da, a defesa jurídica de criminosos, a pena de
Além de saber disso em seu intelecto, D a­ morte, as atividades secretas do governo e
niel também o sabia por experiência, e não outros assuntos são questões para as quais
tinha medo de assumir suas convicções. nem sempre temos respostas tão claras como
Quando foi induzido a abandonar sua adora­ gostaríamos.
ção a Deus por 30 dias, sob a ameaça de ser O fato é que, sem a Bíblia, não há respos­
lançado na cova dos leões, ele resistiu às auto­ tas seguras. Esse é o ponto. N ão existem
ridades que queriam impedir a sua prática substitutos para o estudo da Palavra de Deus.
religiosa. Daniel desprezou o decreto real de Portanto, devemos esforçar-nos ao máximo
não dirigir nenhuma petição a não ser ao im­ para submeter nossa vida e nosso pensamento
perador. a ela.
Sabemos que Deus livrou Daniel dos le­ Se não fizermos isso, correremos sério pe­
ões, assim como já havia livrado da fornalha rigo. Quando Jesus lembrou a Pilatos o peca­
ardente os seus três amigos [Hananias, Misael do deste, Ele usou a palavra maior. Mas aque­
e Azarias]. Contudo, no momento em que le que m e entregou a ti maior pecado tem (Jo
assumiu sua posição contrária ao decreto, 19.11). Embora o pecado de Pilatos fosse
Daniel não sabia que receberia livramento do grande, ele estava pecando contra a sua p ró­
Senhor. A confiança de Daniel no Deus sobe­ pria consciência, já que havia reconhecido
rano, a quem até o poderoso N abucodonosor que Jesus era inocente. O pecado dos líderes
devia honra e obediência, capacitou-o a agir religiosos, todavia, era maior, pois eles esta-
daquela maneira. Daniel acreditava que Deus, vam pecando contra suas próprias leis, que
e não Nabucodonosor, tinha poder para de­ deveriam proteger Jesus, motivados pelo ódio
terminar o desfecho de sua história. e pela inveja que sentiam dele.
A comparação [entre essas concepções de ainda assim, ele sabia o que era certo naquela
autoridade] ensina que o maior perigo não situação, porém escolheu contrariar isso. Por
repousa sobre o Estado, mas sobre aqueles quê? Se não era por falta de temor a Deus ou
que estão mais perto das coisas espirituais. O por desconhecer o certo, só pode ter sido por
mundo pode pecar por ignorância, negligên­ medo de perder o seu cargo oficial.
cia ou covardia. As pessoas espirituais, po­ Com certeza, Pilatos colocava o seu cargo
rém, são inclinadas a pecar pela arrogância, político acima de tudo. Ele teve de escolher
pelo orgulho ou por um ódio real a Deus e à entre o que era certo e o que o mundo queria.
Sua verdade, mesmo quando se julgam muito Quando a questão ficou claramente delinea­
espirituais. da, ele não hesitou em escolher o mundo e
Os cristãos devem viver a verdade que suas recompensas.
professam crer. N ão basta a alguém se dizer Diferente de Pilatos, que não estava dis­
cristão. Isso não lhe confere percepção supe­ posto a negar a si mesmo, o grande escritor
rior sobre moral nem autoridade para falar mal russo Alexander Solzhenitsyn foi injustamen­
do Estado ou contrariar o governo que Deus te confinado num campo de concentração si-
estabeleceu. Podemos fazer isso somente beriano, na antiga União Soviética durante 11
quando respondemos, às vezes com sofrimen­ anos, mas sobreviveu para contar a sua histó­
to, à voz de Deus que chega a nós por meio das ria em seu livro The Gulag Archipelago [O
Escrituras. Então, somos capturados, não por arquipélago Gulag].
uma autoridade menor que a do Estado (ou Alexander viu o sofrimento com o a maio­
seja, a nossa própria), mas por uma maior: a ria das pessoas livres jamais viu. Ele sofreu a
autoridade suprema e infalível de Deus. desumanidade dos guardas soviéticos e a
crueldade de alguns prisioneiros. Viu alguns
3. O terceiro requisito para o cristão que sucumbirem, e outros se fortalecerem. Sobre
deseja saber o que é certo e realmente agir de essa experiência, ele escreveu:
acordo, mesmo quando confrontado com ar­
gumentos contrários ou por forte pressão Qual é a resposta? Como você pode manter-se
social, é estar disposto a negar a si mesmo. de pé quando está tão fraco e sensível às dores,
E bem possível cumprir os dois requisitos quando as pessoas que você ama ainda estão
já sugeridos - crer e confiar que Deus é so­ vivas, quando você está despreparado? Como
berano sobre os assuntos humanos e estudar ser mais forte do que o interrogador e escapar
a Bíblia para saber o que é certo - , e, no en­ a toda armadilha?
tanto, fracassar no momento crucial, sim­ Desde o instante em que entra na prisão, você
plesmente porque tom ar a atitude correta deve colocar o seu passado confortável para
custa caro. trás. Já no limiar do portão, você deve dizer a si
Foi nesse requisito que Pilatos falhou. mesmo: “Minha vida acabou, um pouco cedo,
N ão podemos afirmar que Pilatos cria real­ na verdade, mas não há nada a ser feito sobre
mente na soberania de Deus, mas ele cria em isso. Eu nunca voltarei à liberdade. Estou con­
algo ou em alguma forma de recompensa final. denado a morrer - agora ou um pouco mais
De outro modo, ele não teria temido quando tarde. Mais tarde, porém, será ainda mais duro.
soube que Jesus se dizia Filho de Deus. Portanto, quanto mais cedo, melhor. Já não
Também não podemos afirmar que Pilatos possuo mais nada. Para mim, aqueles que amo
conhecia os padrões de santidade do verda­ estão mortos; e para eles, morri. A partir de
deiro Deus, como revelados na Bíblia, mas, hoje, meu corpo é imprestável e estranho. Só o
meu espírito e a minha consciência continuam Alexander Solzhenitsyn proclamou uma
preciosos e importantes para mim”. grande verdade cristã. Devemos estar prepa­
Confrontado por um prisioneiro como este, o rados para renunciar a tudo, se somos discí­
interrogatório vai tremer. Apenas o homem pulos de Jesus. N o meio da batalha, temos de
que renunciou a tudo pode obter a vitória. estar dispostos a deixar todas as recompensas
(S o l z h e n it s y n , 1973, p . 130) materiais de lado.

N ota

1 Anarquismo (do grego anarkhos, que significa sem governantes) é uma filosofia política que engloba teorias, méto­
dos e ações que objetivam a eliminação total de todas as formas de governo compulsório. De um modo geral, anar­
quistas são contra qualquer tipo de ordem hierárquica que não seja livremente aceita e, assim, preconizam os tipos
de organizações libertárias. (Fonte: http://pt.•wikipedia.org/wiki/Anarquismo)

(Tos
Pa r t e

4
O fim da história

Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a
trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro; depois, nós, os
que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o
Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. Portanto, consolaí-vos uns aos
outros com estas palavras.
1 Tessalonicenses 4.16-18

E, se eu for e vos preparar lugar, virei outra vez e vos levarei para mim mesmo, para que,
onde eu estiver, estejais vós também.
João 14.3
C o m o is s o t u d o a c a b a r á ?

cristianismo é uma religião histó­ O cristianismo verdadeiro não conhece


rica. Embora este tema tenha sido essa dicotomia, já que, de acordo com a Bí­
tratado nas páginas anteriores, é blia, os acontecimentos de sua trajetória são
preciso reforçá-lo na medida em tão reais como quaisquer outros, estando, por
que nos aproximamos do fim desta obra sobre isso, também sujeitos à comprovação históri­
a doutrina cristã. ca. Assim, eles diferem dos demais apenas por­
O cristianismo não é apenas um fenôme­ que Deus atuou neles de uma maneira especial,
no histórico, até porque, de certa forma, to­ enchendo-os, por conseguinte, de significado.
das as outras religiões também o são. De Além disso, podemos dizer que o cristia­
acordo com os ensinamentos bíblicos, Deus nismo trouxe à luz uma noção inédita de movi­
atuou decisivamente na história, revelando-se mento na história, visto que a ideia de que os
em acontecimentos externos específicos regis­ acontecimentos históricos conduzem-nos a um
trados nos livros do Antigo e do N ovo Testa­ objetivo determinado simplesmente não existia
mento e ainda atuará para conduzir a humani­ antes do impacto produzido pela fé bíblica.
dade ao seu desfecho predito por Ele. O teólogo Carl F. H . H enry escreveu so­
Esse ensinamento afasta a Igreja da forma bre isso:
moderna de gnosticismo conhecida como
existencialismo. Para os existencialistas e, até O mundo antigo entendia os acontecimentos
mesmo, para os chamados teólogos existen­ humanos na relação com os processos cósmi­
ciais, os fatores históricos são irrelevantes cos ou astronômicos que ele divinizava, ou
para a fé. enxergava esses acontecimentos no contexto
Assim, a inexistência de provas concretas de ciclos repetitivos e como sendo significantes
que comprovem que Deus criou mesmo o apenas dentro de uma determinada cultura ou
mundo, ou que, por causa do pecado, real­ civilização, se é que o mundo antigo enxergava
mente houve a Queda dos seres humanos, ou como significante qualquer coisa que acontecia
ainda que Jesus tenha morrido em nosso lu­ no tempo. Prolongamentos contemporâneos
gar e ressuscitado dos mortos para nos salvar, dessas teorias podem ser vistos no materialis-
nada significa para esses teólogos. mo dialético, no relativismo cultural e na influ­
A teologia existencial trabalha em duas es­ ência da astrologia sobre os assuntos humanos.
feras de verdade separadas: uma histórica e Em contraste com os gregos, que não viam na­
comprovável e outra que está acima e além da da de permanente ou significativo na história e
história, não sendo, portanto, comprovável. para quem essa noção era totalmente estranha,
os profetas hebreus sabiam que é justamente entre os evangélicos quanto à abordagem
por meio do domínio histórico que Deus atua desses temas fica evidente quando com para­
e opera decisivamente para Seus propósitos. mos os capítulos finais da maioria dos livros
Por toda a Bíblia, vemos que o Criador consi­ de Teologia.
dera a espécie humana eternamente responsá­ Contudo, o que tende a passar desperce­
vel por cada pensamento, palavra ou ato, e que bido é que, apesar dessas diferenças, há tam­
cada geração sucessiva dirige-se para um futu­ bém uma grande concordância no meio cris­
ro, no qual o Deus não somente da criação, tão (pelo menos os cristãos evangélicos) nas
mas também da redenção e do Juízo, irá consu­ áreas consideradas mais importantes.
mar a história à luz de Sua oferta divina de Independente da interpretação de temas
salvação. ( H e n r y , 1976, p. 312) como o Milênio, a Grande Tribulação e ou­
tros problemas referentes à questão da profe­
O Deus que atuou no passado também vai cia, a maioria dos escritores define a volta de
atuar na história para consumar esta era. E n ­ Cristo, a ressurreição do corpo e o Juízo Fi­
tão, quando perguntamos “C om o tudo isso nal como elementos essenciais e decisivos da
acabará?”, não passamos, de repente, do do­ escatologia.
mínio da história para uma espécie de “terra Logo, onde quer que se encaixem os ou­
do nunca”, da utopia especulativa. Passamos, tros eventos (caso, de fato, existam), eles te­
simplesmente, para aquilo que não aconteceu rão de acomodar-se em torno desses elemen­
ainda, mas que, certamente, acontecerá, visto tos escatológicos de maior importância.
que é Deus que está por trás disso, e Ele é que
decide o que se realizará ou não. A volta d e C r i s t o __________________________

Entretanto, devemos reconhecer que os Felizmente, há concordância sobre a ques­


cristãos não estão de pleno acordo em relação tão da volta de Cristo. Sobre esse assunto,
aos detalhes dos acontecimentos futuros. Exem­ Arnold T. Olson escreveu o seguinte:
plo disso é a existência de discordância sobre a
questão do Milênio, período de mil anos duran­ Desde o primeiro dia da Igreja cristã, os evan­
te o qual Jesus reinará na terra. Alguns interpre­ gélicos têm buscado a esperança abençoada e o
tam esse fato como algo que ocorrerá em um aparecimento glorioso do grande Deus e do
período futuro específico, enquanto outros o nosso Salvador Jesus Cristo. N o entanto, pode
veem como uma espécie de simbolismo da ida­ haver discordância quanto à época e quanto
de da Igreja na qual estamos vivendo. aos acontecimentos no calendário escatológi-
Mesmo entre os que adotam a primeira co. Os cristãos podem ser pré-tribulacionistas
interpretação há divergência sobre a maneira ou pós-tribulacionistas, assim como pré ou
como esse período de futuro específico encai­ pós-milenistas; podem também estar divididos
xa-se com os demais acontecimentos. De que quanto a um renascimento literal de Israel.
forma o Milênio e a volta de Jesus se relacio­ Entretanto, todos estão de acordo que a solu­
nam com o período da Grande Tribulação, ção definitiva para os problemas deste mundo
mencionado em Daniel 9.27 e em outras pas­ está nas mãos do Rei dos reis, o qual algum dia
sagens, uma vez que esses textos se referem a conquistará para si os reinos deste mundo.
um período histórico de tribulação específi­ (O ls o n , 1971, p . 115)
co? O que dizer sobre o papel de Israel nos
acontecimentos proféticos? E acerca do Ar- A razão para essa concordância unânime é
magedom e do anticristo? A diversidade a evidência bíblica da importância da volta de
Cristo. N o N ovo Testamento, um entre cada esta questão era, justamente, o fator mais
impressionante daquela explicação.
25 versículos faz referência, direta ou indire­
tamente, à volta do Senhor, sendo a mesma Nesse texto, mesmo sendo encorajado por
mencionada 318 vezes ao longo dos 260 capí­ Jesus a ser fiel no discipulado, Pedro, com sua
tulos dessa divisão do texto sagrado. impetuosidade habitual, resolveu colocar seu
O tema ocupa um lugar proeminente nafoco no que aconteceria com João, pergun­
grande parte das profecias do Antigo Testa­ tando: [...] Senhor, e deste que será? (Jo 21.21).
mento, que, ao tratarem da Segunda Vinda de Jesus respondeu: Se eu quero que ele fique até
Cristo, abordam também Seu primeiro adven­ que eu venha, que te importa a ti? Segue-m e
to, no qual Ele morreu como substituto por tu (Jo 21.22).
nossos pecados. Em bora muitos cristãos daquela época te­
N o que tange ao N ovo Testamento, pode­ nham interpretado essa afirmação como um
mos perceber que a volta de Jesus Cristo é indicativo de que João não fosse morrer até
mencionada em todos os livros, com exceção Jesus voltar a terra, ficou claro, no texto, que
de Gálatas (escrito com um objetivo muito não foi isso que Jesus quis dizer. Sua única
específico) e dos brevíssimos Filemom e Se­ intenção era destacar que, mesmo que esse
gunda e Terceira Epístolas de João. fosse o caso, tal fato não deveria afetar o cha­
Jesus falava de Seu retorno a terra com mado de Pedro para um ministério fiel.
muita frequência. Marcos registrou o tema As cartas de Paulo também abordam bas­
das seguintes maneiras: tante a doutrina da volta de Cristo. Para os
cristãos de Tessalônica, ele escreveu:
Porquanto qualquer que, entre esta geração
adúltera e pecador a, se envergonhar de mim Porque o mesmo Senhor descerá do céu
e das minhas palavras, também o Filho do com alarido, e com voz de arcanjo, e com a
H om em se envergonhará dele, quando vier trombeta de Deus; e os que morreram em
na glória de seu Pai, com os santos anjos. Cristo ressuscitarão prim eiro; depois, nós,
Marcos 8.38 os que ficarmos vivos, seremos arrebatados
juntam ente com eles nas nuvens, a encon­
E, então, verão vir o Filho do H om em nas trar o Senhor nos ares, e assim estaremos
nuvens, com grande poder e glória. E ele sempre com o Senhor.
enviará os seus anjos e ajuntará os seus es­ 1 Tessalonicenses 4.16,17
colhidos, desde os quatro ventos, da extre­
midade da terra até a extremidade do céu. Já para os filipenses, Paulo afirmou:
Marcos 13.26,27
Mas a nossa cidade está nos céus, donde
João, por sua vez, contou-nos que as últi­ também esperamos o Salvador, o Senhor
mas palavras de Jesus aos Seus discípulos in­ Jesus Cristo, que transformará o nosso cor­
cluíam uma promessa: E, se eu fo r e vos p re­ po abatido, para ser conforme o seu corpo
parar lugar, virei outra vez e vos levarei para glorioso, segundo o seu eficaz p od er de su­
mim mesmo, para que, onde eu estiver, este- jeitar também a si todas as coisas.
jais vós também (Jo 14.3). Filipenses 3.20,21
N o último capítulo, João registrou uma
declaração de Jesus a Pedro acerca de Sua volta Pedro considerou a volta de Jesus Cristo
a terra, na qual, embora parecesse secundária, com o uma manifestação de viva esperança
(1 Pe 1.3), enquanto Paulo a chamou de bem - Se, motivados pelo preconceito, dedicar-
a ventu rad a esperança (Tt 2.13). mo-nos a observar os pecados alheios, a criti­
Em Apocalipse, João declarou com con­ car as pessoas, a desperdiçar nossos dons,
vicção: A quele que testifica estas coisas diz: deixando, assim, de viver como discípulos fi­
Certamente, cedo venho. A m ém ! Ora, vem, éis de Cristo, estaremos atestando que não
Senhor Jesus! (Ap 22.20). assimilamos corretamente os ensinamentos
Dessa forma, nesses e em muitos outros bíblicos sobre a volta de Jesus.
versículos, os cristãos da Igreja primitiva ex­ Um a segunda razão por que a volta do
pressaram sua fé na volta de Jesus, um retor­ Mestre é uma doutrina prática é o fato de que
no que era para estar intimamente ligado ao ela consola quem está sofrendo, haja vista o
período de grande iniqüidade da terra, bem exemplo da ajuda que representou para os
com o à ressurreição e transformação dos cristãos da Igreja primitiva. Podemos imagi­
corpos, ao governo terreno de Jesus glorifi- nar que, quando nossos irmãos estavam na
cado e ao Juízo Final de pessoas e nações. prisão, sofrendo suplícios e sendo atormenta­
Essas passagens bíblicas confirmam que, por dos, às vezes perto da morte, eles se concen­
causa disso, todos devemos viver em Espíri­ travam na volta de Jesus e pensavam que, tal­
to (Gl 5.16). vez em um instante e sem aviso, o Senhor
Essa é a primeira razão pela qual a volta de apareceria para levá-los para casa.
Cristo é uma doutrina prática e não apenas Da mesma forma, quando eram levados
uma válvula de escape para pensamentos ilu­ para a arena dos leões, em Roma, ou levanta­
sórios. Perto de sua morte, um grande refor­ vam os olhos nas celas para contemplar seus
mador social inglês chamado Lord Shaftesbury carrascos, muitos cristãos podem ter pensa­
deixou a seguinte frase registrada: “Eu não do: “Talvez Jesus volte neste o momento;
me lembro de, nos últimos 40 anos, ter vivido agora mesmo, diante das feras ou diante do
uma hora sequer em que eu não estivesse machado, serei chamado para me encontrar
consciente da volta do Senhor”. com Ele”.
Se, de fato, esperamos a volta do Senhor, Em bora tivessem perdido seus filhos, pa­
essa convicção deveria alterar a maneira como rentes e amigos íntimos, os cristãos da Igreja
nos relacionamos com os temas sociais. N o primitiva sentiam-se consolados por meio
pico da crise racial nos Estados Unidos, no da fé na volta de C risto. P or isso, diante do
princípio da década de 1960, duas afirmativas sofrimento, Paulo escreveu: Portanto, con­
foram escritas na parede de um restaurante na solai-vos uns aos outros com estas palavras
Geórgia. A primeira era bíblica e dizia: “Jesus (1 Ts 4.18).
está voltando!”. A segunda, logo abaixo, di­ Sobre esse assunto, Reuben Torrey, ex-
zia: “N ós nos reservamos o direito de recu- -presidente do Instituto Bíblico de Los An­
sar-nos a servir a qualquer um”. geles, certa vez declarou:
As frases tinham uma dose de humor
porque mostravam que, embora o proprietá­ Por várias vezes escrevendo àqueles que perde­
rio do restaurante aparentemente estivesse ram alguém que amavam, obedeci ao manda­
esperando pela volta de Jesus, ele apresenta­ mento de Deus e usei a verdade da volta do
va tendências à discriminação que, por sua Senhor para consolá-los. Muitos testemunha­
vez, quer fosse racial ou de qualquer outra ram, mais tarde, como essa verdade foi confor-
natureza, é incompatível com o com porta­ tadora para eles quando tudo mais parecia ter
mento cristão. falhado. ( T o r r e y , 1966, p. 15)

(r/O
A volta de Jesus é uma doutrina prática expressão agradável e fingem que o mal não
porque serve com o incentivo para que obede­ está ali”.
çamos a Deus e, em alguns momentos, serve N o caso da pessoa cujo testemunho eu
como força para que continuemos vivendo, o estava lendo, havia uma fé triunfante na figu­
que significa que ela diz respeito ao presente ra de Jesus como aquele que ressurgiu dos
e ao futuro. mortos para dar vida eterna a todos os que cre-
rem nele, mas sua confiança em Deus não ex­
R e s s u r r e iç ã o d o c o r p o ___________________ clui a consciência acerca da existência do mal.
O segundo ensinamento sobre o qual os O clima de morte naquele quarto foi transfor­
cristãos concordam de forma unânime é o da mado, mas não é sempre assim, e, frequente­
ressurreição, especificamente a que se refere mente, como no caso dos amigos da enferma,
ao corpo dos cristãos na Segunda Vinda de há uma negação de que a morte é um inimigo.
Cristo, a qual é muito importante por diver­ Negamos porque pensamos que é mais
sas razões. espiritual fingir que a morte não é real? O que
Primeiro, essa doutrina cristã reconhece posso dizer é que tentativas como essa são
que a morte é um inimigo (1 C o 15.26), tra­ infrutíferas. Tente fazer isso com o pecado.
tando-se, portanto, de alguma coisa não natu­ Diga: “pecado não é pecado”. Veja se isso é
ral e má que não estava nos planos originais mais espiritual. Finja que a homossexualidade
de Deus para a humanidade. é bacana, que os filmes pornográficos não são
E importante deixar isso claro porque algu­ tão ruins assim, que a injustiça social e o pre­
mas formas de cristianismo estimulam um falso conceito racial não existem. Se você fizer isso,
otimismo, que nega a realidade desses três perderá o foco do verdadeiro cristianismo, e
grandes males: pecado, sofrimento e morte. o mal, em pouco tempo, será tolerado.
A Ciência cristã, que, apesar do nome, na­ Se você não conseguir pensar sobre os ma­
da tem de cristianismo, leva esse ponto de les sociais desta maneira, também não conse­
vista ao extremo. Entretanto, essa tendência guirá fazer o mesmo no que diz respeito à
está presente também em círculos reconheci­ morte. Embora, por um lado, a negação possa
damente cristãos. Às vezes, nós a aplicamos a satisfazer-nos quando estamos saudáveis e no
pessoas que estão morrendo. auge da vida, ela não satisfaz quem está face a
Eu li a história de uma cristã que estava face com a morte.
em fase terminal de câncer e descreveu o que O falso otimismo não faz bem. P or outro
estava acontecendo. Ela disse: “Eu posso ver lado, a doutrina cristã da ressurreição fala da
as pessoas que me visitam por causa de um vitória sobre a morte que nos foi conquistada
espelho que há no corredor, já que a imagem pelo Senhor Jesus. Depois de escrever que a
delas se reflete lá quando elas se aproximam. morte é um inimigo, Paulo continuou falando
Muitas se detêm para colocar em seu rosto da vitória definitiva que virá:
uma expressão agradável. Então, elas entram
no quarto e falam sobre o que vai acontecer Ora,, o último inimigo que há de ser aniqui­
na igreja nas próximas semanas. Elas falam lado é a morte. [...] E, quando isto que é
também do dia em que estarei melhor e volta­ corruptível se revestir da incorruptibilida­
rei ao convívio delas. Mas todos sabem que de, e isto que é mortal se revestir da imorta­
não estarei, pois estou morrendo. Eu sei que lidade, então, cumprir-se-á a palavra que
estou morrendo, mas as pessoas não querem está escrita: Tragada fo i a morte na vitória.
conversar sobre isso. Então, elas vestem uma 1 Coríntios 15.26,54
Paulo concluiu seu discurso teológico tanto da morte como da ressurreição de Cris­
com uma declaração de fé: Mas graças a to. Algumas pessoas insinuaram que Jesus
Deus, que nos dá a vitória p o r nosso Senhor teria apenas desmaiado na cruz, para, então,
Jesus Cristo (1 C o 15.57). Que tremenda vi­ reanimar-se no túmulo, ou que as autoridades
tória! É a entrada definitiva da alma e do es­ crucificaram a pessoa errada.
pírito na presença do Senhor, a ser seguida, Embora sem fundamento, essas teorias
no próprio tempo divino, por uma ressurrei­ foram levadas a sério por muitos teólogos!
ção física. Entretanto, nos dias atuais, nem mesmo os mais
A morte envolve cada parte do nosso ser. liberais adotariam essa posição. Eles sabem que
Deus disse a Adão e Eva no jardim: Mas da Jesus realmente morreu, pois Sua morte no tri­
árvore da ciência do bem e do mal, dela não bunal de Pilatos é um fato histórico.
comerás; porque, no dia em que dela come- N o entanto, é comum perceber certa espi-
res, certamente m orrer ás (Gn 2.17). O salá­ ritualização no que tange ao tema da ressur­
rio da desobediência de ambos foi a morte reição. Quando os cineastas e diretores
em todas as dimensões: corpo, alma e espíri­ hollywoodianos tentam colocar essas coisas
to (Rm 6.23). em seus filmes, espiritualizam ao máximo a
Primeiro, eles morreram espiritualmente e ressurreição de Jesus. Certa vez, vi algo pare­
mostraram isso ao esconderem-se de Deus cido na televisão. Lá estava a morte. Ela era
(Gn 3.10), deixando que toda ira, todo ódio, bastante real. Quando o soldado romano pe­
toda cobiça, todo ciúme, toda soberba e todos gou o martelo e fincou o prego na mão de
os outros pecados começassem a fazer parte Jesus, não havia dúvida de que se tratava de
da natureza humana (Is 1.5,6). P or fim, seu ferro, carne e madeira.
corpo também morreu. A morte era descrita no filme como algo
Quando Deus nos salva, Ele o faz em es­ real, mas, quando surgiu a ressurreição, tudo
pírito, dando-nos um novo espírito no m o­ o que se podia ouvir era uma música. N ão
mento do novo nascimento. Além disso, Ele dava sequer para enxergar Jesus. As pessoas
cria uma nova alma para nós mediante o pro­ se aglomeraram radiantes, mas onde estava o
cesso de santificação. N a ressurreição, rece­ Senhor? Em decorrência disso, procurei por
beremos dele um novo corpo. A salvação que Ele e o encontrei, em uma visão fantasmagó­
o Senhor provê é completa. rica, em meio a algumas nuvens.
Podemos ter toda essa certeza por causa Se a ressurreição tivesse acontecido como
da ressurreição de Cristo, visto que, sem ela, no cinema, aposto que Tomé não teria acredi­
nossa esperança não seria mais que um pensa­ tado; nem mesmo Pedro e João creriam. Ela
mento ilusório. Ainda que Jesus tivesse mes­ não foi a mesma representada pelos diretores
mo ressuscitado, não teríamos a segurança de de cinema, mas sim algo real, e quem presen­
que nós também poderíamos ressuscitar por ciou o ocorrido teve certeza disso quando
meio dele. Assim, a ressurreição do nosso tocou no corpo de Jesus.
Messias nos garante de maneira poderosa que Jesus ressuscitou de verdade. P or isso, os
o mesmo ocorrerá conosco. cristãos se sentiram impulsionados a buscar
Ressaltamos que Jesus morreu de verdade. sua libertação do domínio do Império Rom a­
Se não o fosse, não estaríamos falando de uma no a fim de proclamar por todo o mundo a
ressurreição real. Geralmente, com base em morte e a ressurreição do Mestre. Eles prefe­
teorias elaboradas principalmente no século riram ser crucificados a negar o seu Senhor, e,
19, os incrédulos tentam negar a veracidade diante dessa realidade, podemos ter uma ideia
de com o tudo o que pregavam era realidade Não tomemos a crucificação menos monstruosa
para a Igreja primitiva. Por nossa conveniência, nosso senso estético
John Updike falou sobre isso em lingua­ Para que, despertados em hora súbita
gem contemporânea em um de seus poemas, Não sejamos confundidos pelo milagre
que se chama Sete estrofes de Páscoa: e esmagados pela negação. (U p d ik e , 1961, p. x)

Não se engane: se Ele ressurgiu, foi em Seu Um a ressurreição mítica não gera convic­
corpo ção, mas uma ressurreição verdadeira, sim.
Se a dissolução das células não tivesse
retrocedido D ia d o Ju íz o _____________________________
As moléculas não tivessem despertado A maior parte do que foi dito até este pon­
novamente to tem sido fonte de grande encorajamento
O s aminoácidos não tivessem reacendido, particularmente para os cristãos, mas há algo
A Igreja certamente seria derrotada. ainda mais importante a ser considerado. Je ­
sus está voltando. Sua vinda será uma alegria
Ele não ressurgiu como as flores para os salvos, que serão elevados para se en­
Que reaparecem a cada primavera contrar com Ele. Contudo, isso também sig­
Nem somente em Espírito, nas bocas e nifica o começo dos juízos de Deus para
Olhos embriagados dos 11 apóstolos aqueles que rejeitaram o evangelho.
Ressurgiu, sim, em carne: a nossa. Os cristãos confirmam essa verdade cada
vez que recitam os credos apostólicos. Eles
O s mesmos dedos feridos declaram que Jesus virá do céu para julgar os
O mesmo coração que morreu perfurado vivos e os mortos (1 Pe 4.5).
Encolhido - foi recomposto pelo poder de O poeta vitoriano Robert Browning es­
Seu Pai creveu: “Deus está no céu; tudo vai bem com
Força nova que se revestiu de vida. o mundo”. Mas, embora o Pai esteja no céu,
nem tudo vai bem com o mundo, e está che­
Não vamos incomodar Deus com metáforas gando o dia em que Ele se levantará para jul­
Analogias, transcendências gar as nações. Foi por essa razão que Paulo
Fazendo do grande evento uma parábola disse aos atenienses que o Senhor tem deter­
Um sinal, na crença falsa das priscas eras minado um dia em que com justiça há de jul­
Vamos, sim, cruzar a porta. gar o mundo, por meio do varão que destinou;
e disso deu certeza a todos, ressuscitando-o
A pedra foi retirada, e não era de mentira dos mortos (At 17.31).
Não era uma pedra de faz de conta, Este é um fato impactante. Ele nos revela
Mas a grande rocha da materialidade que que a história tem um fim, e que este implica
N o lento triturar do tempo irá encobrir responsabilidade. Responderemos pelo que
Para cada um nós a clara luz do dia. temos feito, e todos seremos julgados tendo
por base ou a nossa própria justiça (que nos
E se houver um anjo no túmulo condenará) ou a perfeita justiça dele, que é
Façamos dele um anjo real nosso Salvador. Mesmo assim, ainda há pes­
Pesado com balança quântica, cabelos fartos soas que se recusam a encarar a realidade e
Opaco na luz da alvorada, continuam ignorando o dia da prestação de
Vestido de linho fino, obra de nobre tecelão. contas.
Em uma pregação realizada no monte das cinco. O que recebeu dois produziu mais
Oliveiras, na metade de Sua última semana dois. Mas o que recebera apenas um talento
em Jerusalém, Jesus usou três parábolas para apresentou-se ao seu patrão com aquela
mostrar o que o Juízo Final seria para tais quantia, dizendo-lhe: Senhor, eu conhecia-te,
pessoas. que és um hom em duro, que ceifas onde não
A primeira foi a parábola das dez virgens, semeaste e ajuntas onde não espalhaste; e, ate­
que tinham sido convidadas para uma festa de morizado, escondi na terra o teu talento; aqui
casamento. Cinco eram sábias, e cinco, im­ tens o que é teu (M t 25.24,25). Decepcionado,
prudentes. As prudentes se prepararam para o patrão condenou aquele servo, tomando de
as bodas ao comprarem azeite para as suas volta o seu talento e expulsando-o para as tre­
lamparinas. As imprudentes, não. vas exteriores (Mt 25.30).
Enquanto esperavam a chegada do noivo Por fim, o Senhor contou a parábola em
durante a madrugada, todas caíram no sono. que as ovelhas são separadas dos bodes. Os
De repente, houve um grito: A í vem o esposo! bodes são os perdidos, e foram condenados
Saí-lhe ao encontro! (Mt 25.6). Elas se levan­ porque deixaram de alimentar ao Senhor
taram, mas as virgens imprudentes não ti­ quando Ele teve fome, de dar-lhe de beber
nham azeite em suas lâmpadas. Por conselho quando Ele teve sede, de recebê-lo quando
das sábias, elas saíram para comprá-lo. Entre­ era um estrangeiro, de vesti-lo quando Ele
tanto, enquanto estavam fora, o noivo che­ estava nu, de visitá-lo, quando Ele estava do­
gou, seguido do cortejo de casamento, e a ente, e de consolá-lo quando Ele estava na
porta foi fechada. prisão. Eles disseram: Senhor, quando te vi­
Mais tarde, as virgens imprudentes chega­ mos com fom e, ou com sede, ou estrangeiro,
ram e gritaram da porta: Senhor, senhor, abre- ou nu, ou enfermo, ou na prisão e não te servi­
-nos a porta! (Mt 25.11). Ele, porém, respon- mosf (M t 25.44).
deu-lhes: E m verdade vos digo que vos não Ele respondeu-lhes: E m verdade vos digo
conheço (Mt 25.12). Jesus, então, concluiu Seu que, quando a um destes pequeninos o não fi­
sermão, dizendo: Vigiai, pois, porque não sa- zestes, não o fizestes a mim (Mt 25.45). Por
beis o Dia nem a hora em que o Filho do H o ­ outro lado, Jesus recebeu aqueles que fizeram
m em há de vir (Mt 25.13). essas coisas.
A segunda parábola era sobre três empre­ Essas parábolas, embora diferentes entre
gados. O patrão, que estava prestes a sair de si nos detalhes, contêm os mesmos elementos
viagem, chamou os empregados e deu uma essenciais. Em cada caso, há um retorno súbi­
quantia a cada um: ao primeiro, cinco talen­ to do Senhor, sendo que alguns estão prepa­
tos; ao segundo, dois; ao terceiro, um - a cada rados para a Sua vinda, e outros, não. Em to­
um de acordo com sua capacidade de admi­ das elas, há recompensas e julgamentos, e os
nistrar o que recebeu. Então, ele partiu, e os que perdem as bênçãos ficam espantados com
empregados que receberam cinco e dois ta­ o desfecho.
lentos, respectivamente, investiram o dinhei­ O mesmo ocorrerá com a nossa gera­
ro, enquanto o terceiro enterrou a quantia ção. Temos mais oportunidades de apren­
recebida. der sobre Jesus em nossa época do que em
Depois de um bom tempo, o patrão retor­ qualquer outro m om ento da história. O
nou, e os empregados tiveram de prestar con­ assunto tem sido discutido em livros, revis­
tas do valor que lhes fora confiado. O homem tas, program as de rádio e TV, filmes, músi­
que recebera cinco talentos produziu outros cas e até na Internet. O chamado ecoa por
todos os lados: “Olhe para esse homem! Só Muitos, porém, prosseguem indiferentes e
Ele tem a salvação. Jesus o ama. Ele morreu serão impactados no dia do ajuste de contas.
por você. Ele ressuscitou para lhe dar vida. Hoje é o dia da graça de Deus. A sabedo­
Abandone seu pecado e receba-o com o seu ria consiste em conhecer a Jesus Cristo e este
Salvador”. crucificado (1 C o 2.2).

f/ó
F in a l m e n t e no lar

s primeiros versículos de João 14 então, a história da humanidade tem sido de


estão entre os mais queridos da peregrinação.
Bíblia. Eles falam sobre o céu, mas Pensemos em Caim, que matou seu irmão
são queridos não porque revelam e foi condenado a caminhar sem rumo. Ele
detalhes sobre as mansões celestiais ou sobre a não tinha onde repousar. Em Gênesis 11, le-
vida após a morte. Existem passagens bíblicas mos acerca de homens tentando construir
que falam do céu de maneira bem mais ampla, uma cidade na qual haveria muitas casas.
como ocorre no livro de Apocalipse, onde o céu Contudo, os homens de Babel estavam em
é descrito como uma cidade gloriosa, um país, o oposição a Deus, e Ele os rechaçou. Eles se
Reino de Deus e o paraíso. Lá, abundam tronos, tornaram uma geração de sem-teto.
muros, pedras preciosas, corais e anjos. C om a trajetória de Abraão, temos um
P or que, então, João 14 é tão popular? Tal­ elemento novo e reconfortante. Paradoxal­
vez isso se dê em decorrência da imagem aco­ mente, a primeira providência de Deus na vi­
lhedora mediante a qual o céu é retratado da de Abraão foi tirá-lo de sua pátria e de sua
nesse Evangelho. Nele, o céu é descrito como casa: U r dos caldeus era uma cidade pecami­
um lar. Precisamos de um lar. Desejamos um nosa, cheia de ídolos e adoradores de ídolos.
lar. Jesus revelou calmamente aos Seus discí­ N o entanto, em lugar daquela cidade, Deus
pulos que nós temos um. prometeu a Abraão um novo lugar: a terra
que Ele iria mostrar-lhe (Gn 12.1).
Não se turbe o vosso coração; credes em E mais ainda: o Senhor especificou as fron­
Deus, crede também em mim. N a casa de teiras e indicou o território a ser ocupado:
m eu Pai há muitas moradas; se não fosse
assim, eu vo-lo teria dito, pois vou prepa­ D esde o rio do Egito até ao grande rio Eu-
rar-vos lugar. E, se eu fo r e vos preparar frates, e o queneu, e o quenezeu, e o cad-
lugar, virei outra vez e vos levarei para moneu, e o heteu, e o ferezeu , e os refains,
mim mesmo, para que, onde eu estiver, es­ e o amorreu, e o cananeu, e o girgaseu, e o
tej ais vós também. jebuseu.
João 14.1-3 Gênesis 15.18-21

N ossa necessidade de um lar vem do fato Embora Abraão tenha sido levado até a
de termos perdido um. Tivemos um lar no terra, e os seus descendentes, mais tarde, te­
Éden, mas o pecado nos fez perdê-lo, e, desde nham-se estabelecido naquela região em
grande número, até mesmo um lugar que ma­ O s quatro animais e os 24 anciãos louva­
na leite e mel, com o a Terra Prometida, foi vam a Cristo com o seguinte cântico:
considerado inadequado.
Abraão é louvado no N ovo Testamento Digno és de tomar o livro e de abrir os seus
não porque colocou sua esperança em algum selos, porque foste morto e com o teu san­
lar terreno (por mais importante que este fos­ gue compraste para D eus homens de toda
se), mas por ter buscado uma pátria celestial. tribo, e língua, e povo, e nação; e para o
Porque [ele] esperava a cidade que tem fu n ­ nosso D eus os fizeste reis e sacerdotes; e eles
damentos, da qual o artífice e construtor é reinarão sobre a terra.
Deus (H b 11.10). Apocalipse 5.9,10
Ainda que nosso lar terreno seja necessá­
rio e significativo, ele não é permanente. N os­ Então, foi a vez de os anjos darem seu tes­
sa necessidade básica de ter um lar só é com ­ temunho:
pletamente preenchida quando o Senhor
Jesus Cristo prepara para nós uma morada no Digno é o Cordeiro, que fo i morto, de re­
céu. Agora, estamos em uma terra estranha, e ceber o poder, e riquezas, e sabedoria, e
até mesmo em.um país inimigo. Naquele dia, força, e honra, e glória, e ações de graças.
estaremos na casa do Pai e iremos sentir-nos Apocalipse 5.12
em casa. Esse é o feliz destino dos cristãos.
Por último, as criaturas se uniram ao coro
O n d e está J e s u s ?____________________________ de louvor universal:
N ão sabemos muito sobre o céu, a não ser
que é o lugar onde estaremos com Jesus. Certo Ao que está assentado sobre o trono e ao
dia, minha filha de seis anos e suas colegas con­ Cordeiro sejam dadas ações de graças, e
versavam na aula de ciências - falavam sobre honra, e glória, e poder para todo o sempre.
como o universo é grande, e do que ele é com ­ Apocalipse 5.13
posto. A discussão evoluiu para os assuntos
relativos ao céu, e as crianças começaram a per­ O céu é onde Deus está. E a Sua presença
guntar à professora onde o céu ficava naquela (e não ruas de ouro ou pedras preciosas) que
imensidão: entre as estrelas ou além delas? faz daquele local o céu.
A única resposta válida (que demos à nos­ As palavras de Jesus foram um consolo
sa filha quando ela chegou à nossa casa e con­ para os discípulos, e são preciosas para nós. Os
tou-nos sobre aquela aula) é que o céu é o local discípulos seriam privados da presença física
no qual Deus está, e foi para lá que Jesus foi a de Jesus por um tempo, mas Ele lhes disse que,
fim de preparar a morada que nos prometeu. um dia, voltariam a encontrá-lo na casa do Pai.
Esse é o ponto central de Apocalipse 5. O céu será um lar para os discípulos de Jesus
Ele fala dos quatro animais, dos 24 anciãos, porque lá estarão para sempre com Ele.
dos anjos e de milhões de milhões e milhares Dwight L. M oody costumava ilustrar esse
de milhares de criaturas de todos os lugares ponto com a história de uma menina cuja mãe
do universo (v. 11). Tais seres foram mencio­ ficou muito doente. Enquanto a mãe estava
nados não por requinte narrativo do autor, enferma, um dos vizinhos levou a menina pa­
mas porque cada um deles rendia honras e ra sua casa até que sua mãe pudesse novamen­
glórias a Cristo, e isso servia para mostrar a te cuidar dela. Mas a mãe piorou e acabou
Sua magnificência. falecendo.
Os vizinhos, então, planejaram só levar a igreja e parentes, e até aqueles que morreram
criança de volta após o enterro, e nunca con­ no Senhor bem antes de nós.
tar a ela que sua mãe havia morrido. Depois de Um a indicação bem efusiva disso, presen­
alguns dias, eles levaram a menina para casa. te no Antigo Testamento, é uma frase usada
De imediato, aquela menina foi procurar a muitas vezes em relação à morte dos patriar­
mãe. Ela percorreu todos os cômodos de sua cas: E foi congregado ao seu povo. Ela está em
residência, contudo não pôde encontrá-la. textos com o estes:
P or fim, a criança perguntou: “Onde está
a mamãe?”. Quando os vizinhos disseram E Abraão expirou e morreu em boa velhi­
que sua mãe havia partido, a menina quis vol­ ce, velho e farto de dias; e foi congregado
tar para a casa dos vizinhos. Seu antigo lar ti­ ao seu povo.
nha perdido a graça, uma vez que sua mãe não Gênesis 25.8
estava mais presente. M oody conclui: “N ão
são as pedras de jaspe nem as portas de péro­ E estes são os anos da vida de Ismael, que
las que tornarão o céu um lindo lugar, mas, viveu cento e trinta e sete anos; e ele expi­
sim, o fato de estarmos com Deus” ( M o o d y , rou, e morreu, efoi congregado ao seu povo.
1949, p. 210,211). Gênesis 25.17

R e u n i ã o ______________________________________ E Isaque expirou, e morreu, e fo i recolhi­


N o céu, também estaremos uns com os do aos seus povos, velho e farto de dias; e
outros, e esse é outro fato que torna o céu um Esaú e Jacó, seus filhos, o sepultaram.
lugar que nos causa expectação. Gênesis 35.29
Muitos salvos especulam se irão reconhe­
cer seus amigos e familiares nas mansões ce­ Acabando, pois, Jacó de dar mandamentos
lestiais. Eles não têm dúvida de que estarão no a seus filhos, encolheu os seus pés na cama,
céu: Mas temos confiança e desejamos, antes, e expirou, efo i congregado ao seu povo.
deixar este corpo, para habitar com o Senhor Gênesis 49.33
(2 C o 5.8). Ainda assim, eles ficam confusos a
respeito do que vai acontecer no mundo vin­ Arão recolhido será a seu povo, porque
douro, dizendo coisas do tipo: “Você acha que não entrará na terra que tenho dado aos
vou reconhecer o meu marido? Será que vou filhos de Israel, porquanto rebeldes fostes à
identificar minha filha também?”. minha palavra, nas águas de Meribá.
Se não pudéssemos reconhecer nossos Números 20.24
amigos e familiares, o céu perderia muito de
seu atrativo. E difícil imaginar de que forma Depois, disse o SEN H O R a Moisés: Sobe
seriamos felizes por lá se não reconhecêssemos este monte Abarim e vê a terra que tenho
nossos irmãos de caminhada e nossos entes dado aos filhos de Israel. E, havendo-a
queridos, por mais que as ruas sejam deslum­ visto, então, serás recolhido ao teu povo,
brantes, e a música dos anjos, maravilhosa. assim como foi recolhido teu irmão Arão.
Todavia, a Palavra de Deus é explícita Números 27.12,13
quanto a esse mútuo reconhecimento. Reco­
nheceremos uns aos outros. José reconhecerá Muitos estudiosos do Antigo Testamento
Sônia, e Sônia reconhecerá José. Identificare­ enxergam essas frases com o sendo apenas
mos nossos pais e filhos, amigos, irmãos da uma maneira convencional de dizer que a
pessoa morreu. Eles acreditam que elas foram lhe disseram que sim, Davi, para a surpresa de
utilizadas apenas para explicar que determi­ todos, levantou-se da posição de luto, tomou
nado indivíduo foi colocado no mesmo se­ banho, vestiu-se, comeu e reassumiu suas ta­
pulcro daqueles parentes os quais faleceram refas com o líder da nação.
antes dele. Isso, porém, não é suficientemen­ Os súditos perguntaram-lhe sobre sua
te explicativo no caso das histórias bíblicas mudança de atitude; eles não conseguiam en­
envolvidas. tender a maneira com o o rei agia. Davi expli­
Quando Abraão morreu, ele foi sepultado cou-lhes:
em uma caverna em Macpela, na terra que se
tornaria Israel. N ão era o mausoléu de seus Vivendo ainda a criança, jejuei e chorei,
antepassados. Eles haviam sido sepultados porque dizia: Q uem sabe se o S E N H O R
em U r dos caldeus, e seu pai foi enterrado em se compadecerá de mim, e viva a criança?
Harã. Mais adiante, ao lermos o relato de sua Porém, agora que é morta, p o r que jejua-
morte, é difícil não repararmos o fato de que ria eu agora f Poderei eu fazê-la mais vol­
Abraão, no versículo 8 de Gênesis 25, foi tar? E u irei a ela, porém ela não voltará
congregado ao seu povo, mas só foi sepultado para mim.
por seus filhos no versículo 9. 2 Samuel 12.22,23
Logo, a expressão congregado ao seu povo
não pode referir-se ao enterro, mas deve re- O último comentário não significa sim­
meter-se à morte em si, por meio da qual plesmente que Davi um dia morreria. O
Abraão se uniu àqueles que haviam partido ponto central da história é que Davi conso­
antes dele. O mesmo se pode dizer a respeito lou Bate-Seba e a si mesmo após a m orte da
de Moisés, que morreu nas montanhas. O li­ criança, e não haveria consolo, a não ser
vro de Deuteronômio nos conta que ninguém que Davi acreditasse que, em bora ele não
tem sabido até hoje a sua sepultura (D t 34.6b). pudesse devolver a vida ao bebê, ainda as­
O comentário de Davi, ao ser informado sim, o casal encontraria aquele filho nova­
da morte de seu filho com Bate-Seba, é igual­ mente no céu.
mente importante. Ele revela que Davi acre­ N o N ovo Testamento, achamos indica­
ditava em um reencontro, no mundo vindou­ ções suplementares dessas verdades nos acon­
ro, com os entes queridos. tecimentos do monte da transfiguração. N a­
E m 2 Samuel 12.15, lemos que Deus feriu quela ocasião, o Senhor levou três de Seus
a criança que a m ulher de Urias dera a D avi discípulos (Pedro, Tiago e João) a um monte,
(fruto do pecado). O bebê adoeceu e morreu. e lá foi transformado para mostrar a eles a Sua
Enquanto ele estava padecendo, Davi (que glória celestial.
entendeu ser o culpado por aquele sofrimento) Moisés e Elias, então, apareceram a Jesus.
orava e jejuava pelo bebê, prostrado em terra Lucas os chamou de homens (não de espíritos
de dia e de noite. Sua dor e preocupação foram desencarnados), e relatou que Pedro e os de­
tão grandes que, mais tarde, quando o neném mais supostamente os reconheceram. Pedro
finalmente morreu, os que estavam próximos disse: Mestre, bom é que nós estejamos aqui e
temeram contar a ele para que sua dor não se façamos três tendas, uma para ti, uma para
transformasse em algo insuportável. Moisés e uma para Elias, não sabendo o que
Davi, no entanto, percebeu a mudança de dizia (L c 9.33). Nesse episódio, Moisés e
atitude das pessoas ao redor dele. Ele pergun­ Elias mantiveram sua identidade e foram re­
tou: E morta a criança? (2 Sm 12.19). Quando conhecidos pelos três discípulos.
A história de Jesus sobre o rico e o mendi­ Amados, agora somos filhos de Deus, e
go Lázaro toca em um ponto semelhante. O ainda não é manifesto o que havemos de
Senhor contou como o rico foi para o inferno ser. Mas sabemos que, quando ele se mani­
e, estando em tormento, levantou seus olhos e festar, seremos semelhantes a ele; porque
viu ao longe Abraão e Lázaro, no seu seio (Lc assim como é o veremos.
16.23). Nesse relato, há um caso que envolve 1 João 3.2
reconhecimento dos que partiram, não ape­
nas como eles se mostravam nesta vida, mas P or muitos anos, cada vez que eu medita­
também como eles aparecem na futura. va nesse versículo, eu lia os verbos conjuga­
Finalmente, há palavras de Jesus em que dos na primeira pessoa do plural (nós) como
Ele fala de gentios juntando-se aos judeus se estivessem na primeira do singular (eu). Eu
cristãos em uma grande reunião no céu. Mas lia: “Serei semelhante a Ele”, o que me trazia
eu vos digo que muitos virão do O riente e do conforto. Eu imaginava que seria semelhante
Ocidente e assentar-se-ão à mesa com a Ele em santidade, e isso era maravilhoso.
Abraão, e Isaque, e Jacó, no Reino dos céus Sou imperfeito. Peco muitas vezes, e te­
(Mt 8.11). Esta é uma grande promessa. nho sempre de pedir perdão. Mas, naquele
C ontudo, não é possível, a não ser que haja dia, não terei de orar mais, dizendo: “Pai,
um reconhecimento pleno de todos os que perdoa-me”. Lá, serei sem pecado, semelhan­
m orreram quando eles se encontrarem no te a Jesus.
mundo vindouro. Imaginava também que eu seria semelhan­
Os patriarcas têm de reconhecer uns aos te a Jesus em conhecimento. N ão no conhe­
outros nesse encontro, e o mesmo deve acon­ cimento completo (pois não serei oniscien­
tecer com aqueles que morreram em C risto, te), mas no entendimento exato das coisas.
que serão reunidos a Ele desde os confins da H oje, muita coisa que eu sei está contamina­
terra. Naquele dia, ficaremos bem surpresos da pelo erro.
a respeito de quem encontraremos no céu, E, finalmente, eu imaginava que seria se­
pois muitos que nós não esperávamos que melhante a Ele em amor. É verdade que, por
estivessem salvos estarão. Ficaremos tam­ Sua graça, eu consigo amar, mas tal amor é
bém surpresos ao constatar que alguns que imperfeito. É um amor vacilante e seletivo.
nós pensávamos encontrar no céu não esta­ Naquele dia, porém, serei capaz de amar co­
rão presentes. mo Jesus ama, perfeitamente e sem hesitação.
Muitos perderam entes queridos. Se viver­ Essas verdades foram um grande consolo
mos muito, a chance de perdermos pessoas para mim, e eu tinha razão em sentir-me con­
queridas será grande. Todavia, não as perde­ fortado. Fui impactado ainda por outra ver­
mos definitivamente. Elas estão com Jesus, e dade. N ão apenas eu serei como Jesus, mas
voltaremos a encontrá-las. todos nós seremos com o Ele. C om o conse­
qüência disso, o pecado, a ignorância, a raiva,
C o m o f o m o s d e s ig n a d o s pa r a s e r
o ódio, o cansaço e a perversidade que tantas
Aprendemos que, primeiro, veremos Je­ vezes estragam os nossos relacionamentos se­
sus e, segundo, reconheceremos uns aos ou­ rão eliminados.
tros. U m terceiro ponto é que veremos uns Além disso, veremos uns aos outros re­
aos outros não como somos agora ou como compensados pelo serviço fiel prestado nesta
um dia fomos, mas como fomos designados vida, já que a Bíblia fala de coroas dadas àque­
para ser. les que têm sido fiéis. O Senhor disse: E eis
que cedo venho, e o m eu galardão está comi­ vontade de passar um bom tempo junto antes
go para dar a cada um segundo a sua obra do casamento? Se eles dissessem: “Ah, tere­
(Ap 22.12). mos muito tempo depois de casar-nos; há
H á uma maneira equivocada de pensar outras coisas que desejamos fazer no momen­
nos galardões. Se servimos unicamente pelo to ”, esse casamento não me pareceria promis­
que vamos extrair da situação, não somos mais sor. Deveríamos desejar conhecer Jesus me­
do que assalariados. Se trabalhamos em busca lhor agora, se realmente pretendemos estar
de recompensas nesta vida - dinheiro ou grati­ com Ele algum dia no céu.
ficação que os outros podem dar-nos - , não Um a segunda aplicação do conceito se dá
estamos aptos com o servos de Cristo. em nossa vida moral. Se seremos como Jesus,
Porém, há uma maneira certa de entender devemos esforçar-nos para sermos com o Ele
as recompensas. Os patriarcas e outros perso­ hoje. Havendo dito que seria semelhante a
nagens bíblicos que foram fiéis entendiam os Ele em glória, João acrescentou: E qualquer
galardões celestiais dessa maneira. Eles ti­ que nele tem esta esperança purifica-se a si
nham muitas coisas para desencorajá-los a mesmo, como também ele ép u ro (1 Jo 3.3).
prosseguir. Enfrentavam tribunais, persegui­ Por muitos invernos, depois dos compro­
ções, espancamentos, dores, situações ridícu­ missos de N atal e Ano N ovo na Décima
las, mas perseveravam, porque tinha[m] em Igreja Presbiteriana da Filadélfia, minha fa­
vista a recompensa (Hb 11.26). A visão dos mília e eu tiramos alguns dias de férias nas
galardões pode ajudar a fortalecer também a montanhas do leste da Pensilvânia. Sempre
nossa própria perseverança. que esses dias se aproximam, nós nos enche­
mos de expectativa.
A SEMELHANÇA DE JESUS____________________ Quando, por fim, chega o dia de pegar­
Para alguns, essas palavras têm muito sig­ mos a estrada, nós dirigimos durante três ho­
nificado. Eles estão velhos e doentes, e até ras até chegarmos, ao cair da tarde, às proxi­
bem próximos da morte. O pensamento de midades do enorme hotel, quando saímos do
estar com Jesus para sempre e ser semelhante carro e contemplamos a deslumbrante paisa­
a Ele é uma bênção. Para outros, no entanto, gem montanhosa. Após esse ritual, nós esta­
esse estudo não parece oportuno. cionamos o veículo e caminhamos para a por­
Eu poderia salientar que estamos todos ta do hotel.
morrendo; alguns se encontram mais perto Os porteiros, que já trabalham por lá há
disso do que outros. Eu poderia salientar até 20 ou 30 anos, recebem-nos com alegria e,
que ninguém sabe o momento de sua morte. carregando a nossa bagagem, dizem-nos:
Isso pode acontecer daqui a 30 anos, como “Bem-vindos ao lar! ”.
também pode acontecer amanhã ou mesmo Felizmente, ali não é o nosso lar. Tratar-
hoje à noite. Em vez disso, permita-me apli­ -nos dessa maneira é apenas um artifício da
car esse conceito em outras duas áreas. administração do hotel para que os hóspedes
Primeiro, se você é um cristão, e se é ver­ se sintam bem. U m dia, entretanto, iremos
dade que estará um dia com Jesus, ocupe seu para a glória, onde essas mesmas palavras se­
tempo com Ele. Faça isso por meio do estudo rão ditas pelo próprio Senhor, Aquele que
bíblico e da oração. preparou um lar para nós.
O que pensaríamos de um casal que esti­ Ele nos dirá: “Bem-vindos ao lar! ”, e nós
vesse prestes a casar-se, mas não sentisse realmente estaremos em casa para sempre.1
N ota

1 Algumas partes deste capítulo foram extraídas de uma abordagem mais completa sobre o céu presente nos capítulos
12,13 e 57 de BO ICE, James M. The Gospel o f John [O Evangelho de João], Vol. 4.
B ib l io g r a f ia

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FUNDAMENTOS DA FE CRISTA
Um manual de teologia
ao aleanee de todos

De modo sistemático, claro eobjetivo, James M. Boice proporciona uma


visão getal, abrangente e acessível sobre a teologia cristã. Tanto leigos e
recém-convertidos ao cristianismo como pastores, mestres e estudiosos
da Bíblia se beneficiarão desta excelente ferramenta, em que são analisa­
das as mais importantes doutrinas do cristianismo.
Com rigor acadêmico e um coração de pastor, Boice cuidadosamente
inicia sua abordagem com tópicos sobre a natureza de Deus, o caráter
de Sua revelação, a Queda, e a pessoa e a obra de Cristo. Em seguida,
prossegue analisando a obra do Espírito Santo na justificação e na santi­
ficação dos cristãos. O livro se encerra com discussões criteriosas sobre
eclesiologia e escatologia.
Este volume único está organizado em quatro livros, com 18 capítulos
cada, subdivididos em quatro seções. O Livro I reúne as doutrinas acer­
ca de Deus; o Livro II, acerca do pecado eda obra redentora de Cristo; o
Livro III, acerca do Espírito Santo e da redenção; e o Livro IV, acerca da
Igreja ede sua participação na história ao longo dos séculos.
A notável praticidade, meticulosidade, fundamentação teológica e o am­
plo lastro bibliográfico tornaram esta obra uma referência no assunto,
sendo recomendada por diversos estudiosos, seminários teológicos e
jornais acadêmicos nos Estados Unidos.
F ~ .....................1 JA M ES M O N T G O M E R Y B O IC E

Formado pela Academia Teológica Princeton e doutor em teologia


■L ® J j§ 9 pela Universidade de Basel na Suíca, James M. Boice pastoreou a
\ Tenth Presbyterian Church na Filadélfia, apresentou o programa
de rádio Bible Study Hour e presidiu o conselho da City Center
w *4 1 Academy. Ele escreveu inúmeros artigos para jornais e foi con-
------- ------------ * sultor na edição do Expositor’s Bible Commentary [Comentário
bíblico do expositor/exegeta]. Seus livros e comentários teológicos, além desta obra,
incluem Foundations of God’s City [Fundamentos da Cidade de Deus] e cinco
volumes da obra The Gospel ofJohn [O Evangelho de João],

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Pedidos: (21) 2187-7000

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