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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Resende, Viviane de Melo. / Regis, Jacqueline Fiuza da Silva (Orgs.)


Outras perspectivas em análise de discurso crítica
Viviane de Melo Resende / Jacqueline Fiuza da Silva Regis (Orgs.) -
Campinas, SP : Pontes Editores, 2017

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-913-8

1. Análise de discurso crítica 2. Linguística I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise de discurso crítica - 410


2. Linguística - 410
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2017 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................... 7

1 - ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA: REFLEXÕES TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS


QUASE EXCESSIVAS DE UMA ANALISTA OBSTINADA................................. 11
Viviane de Melo Resende

2 - (CON)TEXTOS DE VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA: UM ESTUDO EM ANÁLISE


DE DISCURSO CRÍTICA SOBRE O CASO MICHELE MAXIMINO ................. 53
María del Pilar Tobar Acosta

3 - QUÃO CRÍTICA É A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA?........................... 103


Margarete Jäger

4 - “VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?”: A DENORMALIZAÇÃO DO DISCURSO SOBRE


O MEDO DO PARTO.................................................................................... 131
Jacqueline Fiuza da Silva Regis

5 - O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO PARA ANÁLISE DE TEXTOS E A TEORIA


DOS DESLOCAMENTOS.............................................................................. 173
María Laura Pardo

6 - APLICANDO O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO DE ANÁLISE


LINGUÍSTICA DE TEXTOS .......................................................................... 199
Gersiney Pablo Santos

SOBRE AS AUTORAS E O AUTOR................................................................ 231


Outras perspectivas em análise de discurso crítica

APRESENTAÇÃO

É amplamente reconhecido que o marco inicial da análise


de discurso crítica tenha se dado em uma reunião acadêmica,
em 1991, em que estavam presentes Teun van Dijk, Norman
Fairclough, Gunther Kress, Theo van Leeuwen e Ruth Wodak.
De lá para cá, já se vão mais de 25 anos, mas os mesmos nomes
seguem associados às mais reconhecidas versões desse campo
heterogêneo sob o rótulo da ADC. Entre esses pesquisadores e
pesquisadora, há um holandês, dois britânicos, um australiano
e uma austríaca, mas com um aspecto em comum: a tradição de
publicação em língua inglesa.
Acreditamos que a publicação em inglês tenha sido central
para a consolidação desse grupo como o núcleo teórico e meto-
dológico da análise de discurso crítica, e temos um argumento
adicional para defender essa posição: no mesmo seminário, em
Amsterdã, também estava presente Siegfried Jäger, da escola de
análise de discurso de Duisburg, na Alemanha, mas seu nome
raramente aparece nas menções ao encontro inaugural da ADC.
Ele publica principalmente em alemão, e embora seja reconhe-
cido em seu país, seu pensamento chegou escassamente até
nós. Trazendo a questão para mais perto do contexto latino-
americano, muito também se tem publicado nesses 25 anos,
em análise de discurso crítica, em espanhol e português, mas a
política linguística da produção científica não valora da mesma
maneira o que se publica localmente, e isso devemos também à
colonialidade do saber.

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Neste livro, queremos reunir outras perspectivas em análise


de discurso crítica, deixando ecoarem outros modos de com-
preender e fazer pesquisas nesse campo. São textos teóricos e
metodológicos de mulheres que pensam os estudos críticos do
discurso a partir de outros lugares, e textos de aplicação dessas
abordagens por pesquisadoras e pesquisador que empreenderam
um esforço de ilustração dessas perspectivas com seus dados de
pesquisa. Assim, o livro se organiza intercalando três capítulos
de apresentação de teorias de discurso e métodos de análise
discursiva, assinados por pesquisadoras do Brasil, da Argentina
e da Alemanha, e três capítulos de aplicação dessas teorias e
métodos a contextos locais brasileiros. As abordagens foram
organizadas da mais teórica à mais metodológica, mas sempre
assumindo que todas elas articulam teoria e método, embora de
modos distintos.
O primeiro capítulo é de autoria de Viviane de Melo Resende,
que apresenta em seu capítulo “reflexões teóricas e epistemo-
lógicas” que considera “quase excessivas” e que visam compilar
as reflexões resultantes de sua atuação como pesquisadora do
discurso na última década. Nesse intuito, a autora retoma teorias
já amplamente recepcionadas entre nós agregando contribuições
próprias e propondo “um mapa ontológico mais complexo”, cujo
ponto de partida é o modelo de pesquisa crítico-discursiva pro-
posto por Chouliaraki e Fairclough. Considerando sua experiência
analítica e as necessidades que sentiu em suas investigações,
assim como aquelas percebidas por estudantes com quem traba-
lhou, a autora busca alcançar um mapa epistemológico mais claro,
além de expor ideias metodológicas que, oxalá, “também possam
ser úteis a outras pesquisadoras e pesquisadores dedicados aos
estudos críticos do discurso”. Essa abordagem para análise de
discurso crítica é em seguida, no segundo capítulo, aplicada
por María del Pilar Tobar Acosta, no capítulo “ (Con)textos de
violação e resistência: um estudo em análise de discurso crítica
sobre o caso Michele Maximino”. Apropriando-se do exposto no

8
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

capítulo anterior, em seu texto Acosta discute “como o discurso


operado pelo prisma da violência e, em oposição, pelo paradigma
da solidariedade, tem o potencial de tecer a realidade social”.
O segundo par de capítulos oferece um vislumbre à produ-
ção alemã, especialmente da Escola de Duisburg, em análise de
discurso crítica. Essa escola tem tradição no estudo discursivo
crítico de grandes corpora de dados, especialmente dados de
imprensa, focalizando a representação de minorias étnico-raciais
e questões de gênero. Sua principal característica é o radical
questionamento da separação entre o fazer acadêmico e a mili-
tância política. Em seu capítulo, Margarete Jäger busca explicar
essa abordagem de inspiração foucaultiana. O capítulo recebeu o
intrigante título “Quão crítica é a análise de discurso crítica?”, e
nele sua autora apresenta um “esboço da abordagem de discurso,
teórica e analítica, segundo a qual projetos empíricos tendo como
foco discursos políticos, midiáticos e cotidianos são concebidos
e levados a cabo no Instituto de Pesquisa Linguística e Social de
Duisburg (DISS)”. A aplicação da abordagem teórico-metodológica
de Jäger ficou a cargo de Jacqueline Fiuza da Silva Regis, que já
havia utilizado o trabalho da Escola de Duisburg como inspiração
em sua tese doutoral. No capítulo “‘Você tem medo de quê?’:
a denormalização do discurso sobre o medo do parto”, Regis
apresenta análises sobre a representação discursiva de questões
relacionadas ao parto e ao nascimento no Brasil, especialmente
em termos de violência obstétrica e da resistência de mulheres a
essa violência. Levantando enunciados associados ao discurso do
medo do parto, Regis percorre os conceitos centrais da aborda-
gem de Duisburg, e os desvenda para o público brasileiro, ainda
não familiarizado com essa perspectiva analítica.
Por fim, a abordagem metodológica formulada por María
Laura Pardo, reconhecida pesquisadora argentina, e sua aplicação
por Gersiney Pablo Santos fecham o livro. No quinto capítulo, in-
titulado “O método sincrônico-diacrônico para análise de textos

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e a teoria dos deslocamentos”, Pardo nos oferece uma síntese


do método para análise linguística que desenvolveu e de suas
implicações na proposição de uma teoria dos deslocamentos.
Assumindo uma postura indutiva na produção de conhecimento,
Pardo sustenta seu método como teoria básica e instrumento ca-
paz de “alcançar as representações sociais que se constroem dis-
cursivamente”. A aplicação dessa proposta teórico-metodológica
é em seguida realizada por Santos, no sexto e último capítulo
deste livro, intitulado “Aplicando o método sincrônico-diacrônico
de análise linguística de textos”. Sua tese de doutorado, co-
orientada por Laura Pardo, foi o primeiro trabalho defendido no
Brasil com o suporte do método sincrônico-diacrônico, e assim
Santos nos mostra os caminhos desse exercício analítico, utili-
zando dados de sua pesquisa junto ao Movimento Nacional da
População em Situação de Rua.
Nossa expectativa com esta obra é trazer à tona abordagens
não canônicas de análise de discurso crítica, destacando suas
potencialidades por meio de sua aplicação a dados situados. As-
sim, as perspectivas teóricas e metodológicas são construídas de
forma mais abstrata por suas autoras, de modo a situar cuidado-
samente os conceitos e as teorias que as embasam, estabelecendo
diálogos com abordagens já conhecidas do público brasileiro,
para em seguida serem postas em marcha, quando aplicadas a
dados e contextos também cuidadosamente situados. Já sabemos
que a análise de discurso crítica é um campo heterogêneo; agora
veremos a heterogeneidade em outras direções.

Viviane Resende e Jacqueline Regis


Em agosto de 2017, o mês em que Nina veio ao mundo.

10
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA:


REFLEXÕES TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS
QUASE EXCESSIVAS DE UMA ANALISTA OBSTINADA

Viviane de Melo Resende

INTRODUÇÃO: POR ONDE VAMOS

Neste capítulo, apresento algumas reflexões teóricas e epis-


temológicas – que necessariamente levam também a reflexões
metodológicas – decorrentes de meus projetos de pesquisa da
última década, mas que ainda não haviam sido organizadas na
forma de um texto único.
Parto, na primeira seção, de referenciais teóricos já legiti-
mados acerca do funcionamento da sociedade (Bhaskar, Harvey),
da linguagem (Halliday) e da linguagem na sociedade (Fairclou-
ch). Sem a pretensão de negá-los – como já escrevi em Resende
(2013) –, espero trazer, na segunda seção deste capítulo, alguma
contribuição para um delineamento do funcionamento social da
linguagem, construindo um mapa ontológico mais complexo,
embora, creio, mais claro. Para isso, lanço mão das muito profí-
cuas parcerias com Viviane Vieira (que antes assinava RAMALHO;
RESENDE e RAMALHO, 2013; RAMALHO e RESENDE, 2011; VIEIRA
e RESENDE, 2016), com Pilar Acosta (ACOSTA e RESENDE, 2014)
e com Elaine Mateus (MATEUS e RESENDE, 2015).

11
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Em seguida, na terceira seção, retomo o modelo episte-


mológico básico para pesquisas em análise de discurso críti-
ca desenvolvido por Chouliaraki e Fairclough (1999) e tento
reelaborá-lo, conforme minhas necessidades me apontaram em
pesquisas já realizadas e conforme acredito ter sido também
a necessidade de muitas e muitos estudantes na dura apren-
dizagem da ADC. Meu esforço de reelaboração vai na direção
do reconhecimento da necessidade de maior clareza em um
mapa epistemológico e também de ênfase na recursividade
fundamental entre seus ciclos.
Como decorrência necessária desses conjuntos de reflexões,
também apresento algumas ideias metodológicas que me têm
sido úteis em meu exercício analítico, na esperança de que tam-
bém possam ser úteis a outras pesquisadoras e pesquisadores
dedicados aos estudos críticos do discurso.

1. FUNCIONAMENTO SOCIAL DA LINGUAGEM: DOS PONTOS DE
PARTIDA

A análise discursiva crítica sustenta-se como aparato


para a explanação de problemas sociais particulares quando
defende que a linguagem mantém um tipo especial de relação
com outros elementos sociais (FAIRCLOUGH, 2001), já que os
textos que formulamos – parte fundamental dos modos como
agimos na sociedade – não apenas são efeitos das situações
sociais imediatas em que ocorrem, mas também têm efeitos
sobre elas. Mais que isso, relacionam-se também a conjunturas
sociais mais amplas, porque a vida social é um sistema aberto
em que redes de práticas particulares configuram conjuntu-
ras, e as práticas em articulação se influenciam mutuamente
(HARVEY, 1992).

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Aspecto básico desse entendimento é a presença da lingua-


gem, em maior ou menor medida, em todas as práticas sociais.
A participação da linguagem em diferentes práticas pode dar-se
de maneira direta, na configuração mesma das práticas, ou na
forma de reflexividade sobre as práticas, como já sustentam
Chouliaraki e Fairclough (1999). Aí se constrói uma ontologia
da linguagem na sociedade segundo a qual a ação discursiva
é parte indissociável dos modos de ação institucionalizados e
situados no tempo e no espaço. Se a vida social constitui-se
de práticas – como defende David Harvey (1992) –, essas prá-
ticas incluem, no rol de suas potencialidades, a ação discursiva
também socialmente regulada (RAMALHO e RESENDE, 2011;
VIEIRA e RESENDE, 2016). David Harvey teorizou as práticas
sociais como compostas de momentos em relações de relati-
va estabilidade – formas de atividade, pessoas (com crenças,
valores, desejos, histórias), relações sociais e institucionais,
tecnologias, tempos e espaços, linguagem e outras formas de
semiose –, sustentando que esses momentos da prática social
se entrecruzam em relações de interiorização.
Chouliaraki e Fairclough (1999) tomaram essa teoria so-
cial como base para uma recontextualização teórica relativa
ao papel da linguagem na configuração das práticas sociais,
sugerindo as práticas sociais como compostas de quatro mo-
mentos em articulação – discurso, fenômeno mental (incluindo
crenças, valores, desejos e ideologias), atividade material,
relações sociais – e, com base no funcionalismo de Halliday
(1994), detalharam os momentos internos do aparato semió-
tico das práticas:

13
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 1: Os momentos da prática social segundo Chouliaraki e Fairclough (1999).

Fonte: baseado em Resende (2012, p. 105).

A proposição de Fairclough dos três significados do discurso


– acional, representacional e identificacional – e dos elementos
a eles associados – respectivamente gêneros, discursos e estilos
– como momentos internos do momento discursivo de práticas
sociais decorre da reconfiguração das metafunções da linguagem
delineadas por Halliday na linguística sistêmica funcional. Já sa-
bemos que, no caso da versão de ADC proposta nos trabalhos de
Fairclough, muitas categorias analíticas são oriundas da linguística
sistêmica funcional, e não se deve minimizar a influência teórica
desse aparato linguístico para a formulação mesma da teoria do
funcionamento social da linguagem. Para além da questão das
categorias linguísticas utilizadas como ferramentas de análise,
a compreensão da organização da linguagem e de sua natureza
funcionalmente complexa alimenta-se do pensamento de Halliday
– e isso implica, como já ressaltamos em Alexandre e Resende
(2015), que a articulação entre a análise de discurso crítica e a
linguística sistêmica funcional não é apenas metodológica, mas
também teórica.

14
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

A pedra basilar que sustenta o argumento em torno da re-


levância dos estudos críticos do discurso – isto é, do estudo de
problemas sociais com foco em seu aparato semiótico – é que
o uso situado da linguagem, ao produzir textos, que são parte
do resultado de eventos sociais, têm efeitos causais, gerando
mudanças em nosso conhecimento sobre o mundo e, consequen-
temente, em nossas crenças e atitudes a respeito desse mundo
(FAIRCLOUGH, 2003). Uma vez que a relação entre estrutura e
ação social é transformacional (BHASKAR, 1998), essas mudanças
não são previsíveis, e seu estudo científico não diz respeito à
busca por regularidades.
A percepção da relação entre estrutura e ação como trans-
formacional nessa versão de ADC é caudatária do realismo crí-
tico, desenvolvido por Bhaskar. De acordo com a compreensão
crítico-realista da vida social, entendem-se estruturas sociais
como configurações prévias à ação, que dotam a ação de recursos,
mas também a constrangem, ou seja, constroem potencialidades
entre as quais se selecionam aquelas que serão materializadas
em eventos concretos; e as ações, portanto, embora sejam go-
vernadas por estruturas sempre previamente dadas, carregam
o potencial de transformação das configurações estruturais, ao
longo do tempo. Isso significa dizer algo muito mais simples do
que parece: que em nossa ação no mundo somos socialmente
constrangidos/as – devemos nos movimentar no quadro de po-
tencialidades dadas por um contingenciamento estruturante que
à vez potencia e constrange o que podemos fazer/dizer, e como –,
mas sem determinismos, já que nos movimentamos num quadro
de relativa liberdade para agir criativamente no quadro das poten-
cialidades que governam nossa ação no mundo (ARCHER, 2000).
Embora haja constrangimentos sociais definidos nas estru-
turas e práticas sociais, os atores sociais são dotados de liberda-
de relativa, e assim podem estabelecer relações inovadoras na
(inter)ação, exercendo sua criatividade e modificando práticas

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

estabelecidas. É isso o que significa dizer que a vida social é um


sistema aberto, que embora estruturado permanece passível de
transformação por meio da ação situada. Esses são os argumentos
que sustentam o Modelo Transformacional da Atividade Social
(MTAS), ilustrado na Figura 2:

Figura 2: Modelo Transformacional da Atividade Social. Baseado


em Bhaskar (1998, p. 217).

Fonte: em Resende (2009, p. 27).

Acreditar na possibilidade de estabelecimento de relações


inovadoras em nossa ação no mundo não é o mesmo que celebrar
uma liberdade absoluta. Dizer que a liberdade é relativa significa
reconhecer a existência também de pressões pela manutenção
de configurações estruturantes, o que se associa à noção de
poder como controle. Discutir poder como controle exige uma
apreensão do funcionamento da linguagem na sociedade, e esse
argumento, já vimos, sustenta a relevância dos estudos críticos
do discurso. Sobre isso, podemos lançar mão dos escritos de van
Dijk (2001), que chama atenção para o fato de que grupos sociais
particulares são detentores de maior poder quando são aptos a
controlar ações de outros grupos, isto é, quando são capazes
de definir as bases relativas para a ação social, por exemplo
controlando instituições do aparato de governança ou, muito
especialmente, controlando instituições desenhadas para carregar
discursos em formas genéricas de grande dispersão no espaço e
no tempo, como é o caso dos meios massivos de comunicação
(PARDO ABRIL, 2008).

16
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Mas apesar dessas instituições que pressionam na direção da


manutenção de estados de coisas, sabemos que as coisas mudam.
Se isso ocorre é porque, assim como há pressões por manuten-
ção, há também pressões por mudança. A dinâmica da mudança
social na luta sobre configurações de estabilidade relativa inclui,
de forma central, os discursos sobre o que “as coisas” são, assim
como os discursos sobre como são feitas, como devem ser com-
preendidas e avaliadas, e mais que isso: há ainda o fato de que
é também por meio da linguagem que agimos sobre “as coisas”,
e que esses modos discursivos de ação não são sem importân-
cia – é por tudo isso que a investigação de problemas sociais
não pode prescindir do discurso. Isso pode parecer evidente, e
tem sido tomado como dado nos estudos sociais desde a virada
discursiva, mas a relevância da relação interna entre linguagem
e sociedade ainda tem sido palco de disputa no campo dos es-
tudos linguísticos.
Temos de lembrar que o discurso é também socialmente
estruturado, e isso nos resguarda de uma compreensão simplista
sobre o poder da linguagem. Nossa liberdade (inclusive de dizer,
de escrever, de replicar, e até de compreender) é sempre relativa,
porque precisamos nos movimentar em quadros estruturantes
que precedem nossa ação no mundo. Considerando que estrutu-
ras sociais sempre antecedem ações, inclusive ações discursivas,
então as estruturas com as quais lidamos no momento de nossa
ação no mundo são “conformadas por ações de outros atores que
[nos] antecederam”. Pensando nisso, propus (RESENDE, 2009, p.
28) “uma relação temporal (em termos de sincronia/diacronia)
entre os dois elementos da recursividade estrutura/agência”, que
sintetizei na seguinte figura:

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 3 – Relação sincrônica/ diacrônica entre estrutura e ação.

Fonte: em Resende (2009, p. 28).

De novo, isso é menos complicado do que parece, mesmo


estando longe de ser banal. Significa dizer que nossa ação é
regulada por mecanismos que à vez constrangem e permitem
nossas ações (potencialmente transformadoras dos mesmos
mecanismos); mecanismos que são resultado de ações que an-
tecedem as nossas, e de que nos apropriamos. Para Mateus e
Resende (2015, p. 440),

a relação entre prática objetivada – isto é, aquela que


se apresenta para os indivíduos e grupos como me-
canismos estruturais que possibilitam-constrangem
suas ações – e prática objetivante – ou seja, ação
humana que reproduz e transforma a sociedade –
não é linear. De fato, a historicidade se realiza em
movimentos cíclicos que, no entanto, nunca retornam
ao mesmo ponto e tampouco da mesma forma. Tam-
bém nunca são inteiramente diferentes do anterior,
mantendo traços da prática objetivada, ainda que em
circunstâncias radicalmente transformadas.

Foi por isso que propusemos outra representação imagé-


tica dessa síntese dos movimentos históricos da recursividade
estrutura/ agência:

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 4: Movimentos históricos de reprodução e transformação social.

Fonte: em Mateus e Resende (2015, p. 440).

Em nosso artigo “O sistema posição-prática como categoria


epistemológica: contribuições para a Análise de Discurso Crítica”,
explicamos a figura, sugerindo que o movimento espiral repre-
senta “os fios [que] se entrecruzam na conformação de práticas
objetivadas que constituem redes de possibilidades e constran-
gimentos para a ação humana que, por sua vez, reconfigura o
tecido social numa perspectiva de transformação-permanência”
(MATEUS e RESENDE, 2015, p. 440). As estruturas (E1, E2, e as-
sim por diante) foram posicionadas nos diferentes tempos, na
parte de cima da figura, para sinalizar seu caráter abstrato de
potencialidades que podem ser alçadas sincronicamente ao nível
realizado (por meio da ação). O nível do realizado, da ação (A1, A2,
e assim por diante), é representado abaixo, no plano do evento
concreto. Explicamos ainda:

As linhas descendentes indicam que, em sincronia,


as estruturas proveem recursos e constrangimentos
para a ação situada; assim é que essas linhas ligam
estrutura e ação sempre em um mesmo tempo
(E1-A1, E2-A2, ...). As linhas ascendentes pontilhadas

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

indicam, por outro lado, a relação diacrônica, isto é,


as possibilidades de transformação-reprodução de
estruturas pela ação situada, mas sempre em tempos
diferentes: a ação em A1 resulta na estrutura em E2, e
assim sucessivamente. O modelo é transformacional
por compreender essa assimetria entre as estruturas
que governam a ação, sempre prévias e conformadas
em ações anteriores, e a própria ação que governam.
Por isso temos que a ação em A1 é estruturada por E1,
mas carrega o potencial de transformar E1 em E2. Por
fim, destacamos que nossa linha tracejada não tem
um início definido, o que ilustra nossa incapacidade
de localizar, como num mito de Eva, um ‘ponto zero’.
(MATEUS e RESENDE, 2015, p. 440).

Sei que tudo isso é complexo, mas não se pretende hermé-


tico. Então, o que significa em termos analíticos? Mais imediata-
mente, significa que análises discursivas críticas devem atentar
para a estruturação da ação e para a ação estruturada, ou seja, para
a ordem de discurso e para a interação, como já disseram Chou-
liaraki e Fairclough (1999). Mas implica também que uma onto-
logia assim complexa do funcionamento da sociedade conforme
Harvey e Bhaskar e do funcionamento da linguagem na sociedade
conforme Halliday e Fairclough exige uma epistemologia também
complexa, perspectiva que já tenho pontuado por exemplo, em
Resende (2009). Nos textos, que são rastro e resultado de nossa
ação discursiva em eventos, materializamos gêneros – modos
de ação discursiva – e discursos – modos de representação do
mundo por meio dos quais reconstruímos discursivamente nossa
experiência no mundo, e nos identificamos no mundo (estilos)
(FAIRCLOUGH, 2003). Os textos que produzimos e com que
lidamos em nossas experiências de socialização são resultado
das conjunturas e situações sociais em que se engendram, das
práticas de que participam, das convenções semióticas, mas tam-
bém têm efeitos sobre essas articulações, sempre temporárias,
de elementos sociais e discursivos.

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

2. POR UM REFINAMENTO DO MAPA ONTOLÓGICO: DOS CAMINHOS


PERCORRIDOS

Nos últimos anos, dando aulas e escrevendo sobre ADC,


tenho refletido sobre um mapa ontológico coerente com as pro-
postas teóricas da ADC, e capaz de trazer mais clareza ao aparato
epistemológico que precisamos engendrar a fim de planejar,
também coerentemente, os desenhos metodológicos de nossas
pesquisas. Amadurecidas várias ideias, e assumidas as corres-
pondentes dívidas com colegas e estudantes da Universidade
de Brasília, sugiro representar essa teorização da linguagem na
sociedade no mapa ontológico que apresentarei adiante. Trata-
se de um mapa ontológico que não coincide com a proposta de
Chouliaraki e Fairclough (1999) nem com o Modelo Transformacio-
nal da Atividade Social proposto por Bhaskar (1998): uma reflexão
que, embora baseada nas propostas citadas, as recontextualiza
em um mapa ontológico distinto.
Há muito que explicar sobre as motivações e implicações
das alterações propostas nos modelos que me servem de base.
Em primeiro lugar, é preciso explicar que, além das noções e
conceitos fundadores já citados de Harvey, Bhaskar, Chouliaraki
e Fairclough – e de suas modificações anteriores em trabalhos
meus com Viviane Vieira e com Elaine Mateus –, o mapa ontoló-
gico que proponho adiante também tira proveito da perspectiva
estratificada da realidade social proposta no realismo crítico
(BHASKAR, 1998), e que já discuti também em Resende (2009). O
realismo crítico diferencia-se de uma abordagem realista ingênua
pela proposição de uma ontologia estratificada do mundo social,
segundo a qual existem três estratos da realidade: o potencial, o
realizado e o empírico. Assim:

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 5: Estratificação da realidade no RC.

Fonte: em Vieira e Resende (2016, p. 33), adaptado de Bhaskar (1998, p. 41).

O estrato do potencial inclui tudo o que existe e que, por-


tanto, é ontologicamente real – todas as coisas do mundo e suas
estruturas e mecanismos, suas naturezas, suas predisposições. O
importante aqui é reconhecer a existência ontológica de objetos
e estruturas mesmo que não sejam empiricamente acessíveis
para nós em um momento dado, mesmo quando não temos
sequer conhecimento de sua existência ou compreensão de sua
natureza (SAYER, 2000). Em outras palavras, reconhecer que algo
abstrato, como estruturas das quais só temos conhecimento por
seus efeitos em eventos, é ontologicamente real em sua potência,
com propriedades também reais, mesmo que desconhecidas ou
inacessíveis para nossa intelecção. Tão importante quanto: há
interesse pelo que existe de fato, mas também pelo que existe
como potencialidade, mesmo que, para além de não nos ser
acessível intelectualmente, não se realize em um dado momento.
Ou seja, o potencial inclui os eventos realizados e as experiên-
cias empíricas, mas também inclui o que existe apenas como
potência, mesmo que não se torne realizado (por contingências
contextuais) ou não nos seja empiricamente dado. O segundo
estrato, o do realizado, refere-se aos eventos que se realizam
de fato, como resultado das potências existentes, no estrato do
potencial, cotejadas com as contingências sociais e históricas.
Trata-se do estrato da realidade referente à realização, à mate-
rialização, à concretização do potencial em evento. O empírico,
por fim, define-se como domínio da experiência sensível e da
observação, daquilo que conseguimos captar – graças a nossos

22
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sentidos e aos eventos de que participamos ou de que somos


testemunhas – dos efeitos das estruturas, das potencialidades e
das realizações.
Em Vieira e Resende (2016, p. 34, grifos no original), exem-
plificamos com base na linguagem:

podemos associar o sistema semiótico (a potenciali-


dade para significar) com o domínio do potencial e,
por outro lado, os sentidos de textos com o domínio
do realizado (o significado). O realizado é o domínio
dos eventos que passam ou não por nossa experiên-
cia. O empírico, por sua vez, é o domínio das expe-
riências efetivas, a parte do potencial e do realizado
que é experienciada por atores sociais específicos.
Neste caso, o exemplo seriam os textos (orais, escri-
tos, visuais, multimodais) com que de fato tivemos
contato em nossa vida.

Segundo Fairclough, Jessop & Sayer (2002), o potencial e o


realizado são dimensões ontológicas, são estratos referentes ao
ser; enquanto o empírico é uma dimensão epistemológica, do
conhecer. Em realismo crítico, entende-se que nossa capacidade
de observar (empírico) o que se realiza em eventos (realizado)
não esgota o que poderia existir (potencial) ou de fato existe
(realizado), o que significa dizer que o empírico não corresponde
nem ao potencial nem ao realizado, pois “a realidade é constituída
não apenas de experiências e do curso de eventos realizados, mas
também de estruturas, poderes, mecanismos e tendências – de
aspectos da realidade que geram e facilitam eventos realizados
que nós podemos (ou não) experienciar” (BHASKAR e LAWSON,
1998, p. 5). Essa distinção entre os estratos ontológicos (poten-
cial, realizado) e epistemológico (empírico) pode ser ilustrado
na figura a seguir:

23
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 6: Estratos ontológicos (potencial, realizado) e epistemológico


(empírico) em RC.

Fonte: em Acosta e Resende (2014, p. 129).

Assim, nos termos de nosso mapa ontológico na Figura 7, a


seguir, distinguir entre potencial e realizado significa “reivindicar
um status de realidade para as estruturas sociais – que embora
não sejam diretamente observáveis podem ser conhecidas por
seus efeitos em eventos”(RESENDE, 2009, p. 21), mas também
significa ter clareza entre o que se propõe como potência e o
que se pretende investigar como efeito dessa potencialidade;
e muito especialmente: o que se considera como possibilidade
empírica de acesso aos elementos ontológicos que se pretende
focalizar em uma investigação:

24
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 7: Mapa ontológico do funcionamento social da linguagem.

Fonte: elaboração própria, inédito.

Nessa Figura 7, tudo o que diz respeito às estruturas e às


práticas sociais que organizam essas estruturas em relação aos
campos da atividade humana – ou às esferas da atividade humana,
como preferiu Bakhtin (1997) – está considerado no estrato no po-
tencial, já que se trata de ordenações que existem como potência
e que só se realizam, conforme as contingências contextuais, no
evento materializado. Por isso os eventos são compreendidos no
estrato do realizado, do que dessa potencialidade se realizou em
um dado espaço-tempo. As práticas sociais definem-se na inter-

25
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

relação de seus elementos constituintes, e os eventos realizados


também se constituem de elementos, mas esses dois conjuntos
não se confundem: os elementos constituintes da prática são
elementos de potência, e os elementos do evento são realizações
dessa potência, tal como os próprios eventos são realização da
potência prevista na prática que realizam.
Destaco as estruturas sociais de classe, gênero, sexualidade,
raça, etnia, instituições, semiose (sem pretender ser exaustiva),
enfatizando o caráter abstrato, de maior permanência (embora
nunca permanência trans-histórica, haja vista, por exemplo, as
modificações em estruturas de gênero e as pressões que intentam
reduzir essas modificações ao longo da história, em tensão com
as forças que as promovem), e enfatizando, sobretudo, sua ampla
penetração numa variedade de práticas. Isso quer dizer que, en-
quanto a noção de prática social diz respeito a potencialidades já
situadas em campos ou esferas da atividade humana, a noção de
estrutura é mais ainda abstrata, já que uma estrutura como a de
classe (ou gênero, sexualidade, raça, etnia, instituições, semiose)
transcende as práticas situadas, invade os diferentes campos,
exerce sua influência nas mais diversas esferas.
Por exemplo, imagine uma situação de sala de aula, digamos
de aula expositiva. Qualquer aula expositiva concreta será, claro,
um evento realizado (materializando, reificando e transforman-
do potencialidades da prática, incluindo o gênero discursivo).
Mas esse evento (qualquer evento) nunca se realiza sem recor-
rer ao potencial da prática, que informa as possibilidades e os
constrangimentos para a realização da aula. No potencial da
prática específica, estão previstos certos materiais (sala de aula,
com quadro, carteiras, livros, tecnologias), certas posições (de
docentes, de discentes), certas relações sociais (entre membros
da comunidade escolar/acadêmica), certos espaços (disposições
espaciais particulares) e tempos (de duração, para execução de
tarefas específicas), certos usos da linguagem (potencial semiótico

26
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

organizado para a prática em questão: suportes, gêneros, discur-


sos e estilos associados à prática). E toda essa potencialidade da
prática é atravessada por potenciais estruturantes ainda mais abs-
tratos – por exemplo, imagine os modos como a potência dessa
prática, que conhecemos bem, é atravessada por classe social
(estamos falando de uma escola de periferia?), por gênero (não
é a mesma coisa ser uma professora ou um professor; há impli-
cações de gênero nas relações sociais), por instituições (trata-se
de uma aula expositiva na universidade, ou no ensino médio, ou
na igreja, ou num curso livre?), inclusive a instituição da família.
É claro que essas estruturas operam sempre em entrecruzamen-
tos, interseccionalidades que complexificam a tarefa de análise.
Não se trata, aqui, de pretender que nossos empreendi-
mentos investigativos em análise de discurso crítica sejam uma
complexa análise de estruturas e suas implicações práticas, mas
certamente não podemos nos furtar a discutir e buscar compre-
ender como esses elementos estruturantes incidem nos contextos
investigados, atuando sobre o potencial da prática – inclusive
seu potencial semiótico –, que é depois realizado em eventos
que deixam textos como parte de seus resultados – um acesso
empírico privilegiado para a explanação dos problemas sociais
que nos interessa investigar pela via do discurso. Também é claro
que um projeto de investigação precisará selecionar sobre quais
elementos desse mapa (e outros possíveis elementos não pre-
vistos nesse mapa, mas necessários para um projeto específico)
incidirá a análise. O que estou sugerindo é que cada pesquisador/a
deveria, ainda na fase inicial do desenho do projeto de pesquisa,
construir o mapa ontológico de sua investigação – uma decor-
rência do contexto investigado e das questões da pesquisa – e
considerar seriamente as implicações epistemológicas dessas
escolhas, antes de traçar o percurso metodológico que preten-
da trilhar. Essa seleção deve ser dirigida, portanto, pelo que se
pretende conhecer do problema e pelas questões de pesquisa
que resultam daí.

27
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Por exemplo, pode me interessar mapear traços de estruturas


de classe e gênero nas relações sociais entre atores específicos
em uma prática particular (um problema acional), ou de repre-
sentações de classe e gênero em textos que são produzidos em
um contexto específico (um problema representacional). Nesses
casos, poderei considerar um mapa ontológico que inclua as ca-
tegorias de classe, gênero e semiose (já que se trata de pesquisa
discursiva), além da instituição específica (ou instituições) que
engendra(m) o problema, e suas implicações sobre o potencial da
prática (ordens de discurso, posições objetivas, relações sociais,
por exemplo), conforme os traços (portas de acesso empírico)
deixados em eventos realizando o potencial dessa prática. É
muito importante, considerando ainda esse exemplo, reconhecer
as profundas diferenças epistemológicas que decorrem de um
problema acional ou representacional. Essas diferenças acarretam
implicações sobre as possibilidades de desenho metodológico
de um e outro estudo, e o reconhecimento disso é fundamental
para que se coletem ou se gerem dados adequados às perguntas
da pesquisa. Dependendo das perguntas que se quer responder,
selecionam-se as fontes e os métodos por meio dos quais se
pretende gerar ou coletar dados para a investigação, tendo em
vista as componentes ontológicas que se pretenda acessar e seus
possíveis rastros de realização como portas de acesso empírico.
Quero agora, antes de encerrar esta seção, discutir dife-
renças entre os elementos da prática e os elementos do evento.
Esse detalhe teórico pode parecer banal, mas não é. Trata-se do
reconhecimento do mesmo tipo de distinção que existe entre
discurso e texto, e entre gênero e texto. Em minha experiência
como pesquisadora e professora em estudos críticos do discur-
so, tenho percebido muita confusão no uso desses dois pares. É
muito frequente a utilização do termo discurso para referir tex-
to, e o mesmo acontece com o termo gênero. Tenho defendido
a necessidade de precisão conceitual no que se refere a esses
termos centrais em ADC, porque vejo que o mau uso dos termos

28
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

é sempre decorrente de incompreensão dessas nuanças concei-


tuais, que são fundamentais ao empreendimento investigativo.
Segundo Fairclough (2003), gêneros, discursos e estilos são
os principais elementos das ordens do discurso, aqui propostas
como o elemento discursivo do potencial das práticas. Portanto,
são conceitos abstratos que não se confundem com os textos,
aqui propostos como portas de acesso empírico aos eventos re-
alizados. Nessa perspectiva, discursos são modos situados para a
representação de eventos e práticas, que são materializados em
textos, mas não são textos. Do mesmo modo, gêneros discursi-
vos são modos relativamente estáveis de agir discursivamente,
mas que não se confundem com os textos concretos que mate-
rializam os diferentes gêneros. Todo texto recorre ao potencial
semiótico de algum gênero ou mescla de gêneros, e todo gênero
só se materializa em textos realizados em eventos: os potenciais
genéricos/ discursivos e os textos empíricos estão em relação
transformacional, mas não se confundem (RESENDE, 2017).
Assim como as práticas sociais são compreendidas na inter-
relação de seus elementos constituintes – ação material (formas
de atividade previstas no potencial da prática, incluindo o uso
de materiais e tecnologias); posições objetivas, com as relações
sociais e institucionais a elas articuladas; tempos e espaços como
potencialidades organizacionais das práticas em seus ambientes
institucionais; linguagem e outras formas de semiose, incluindo
os modos de articulação previstos entre as modalidades semió-
ticas potencialmente articuladas e as tecnologias discursivas em
jogo –, também os eventos realizados constituem-se de elemen-
tos. Como vimos, a diferença é que os elementos constituintes
da prática são elementos de potência, e os elementos do evento
realizado são concretizações dessa potência. Por isso, é preciso
distinguir entre: ordens de discurso (com gêneros-suportes e
discursos-estilos correspondentes) e textos realizando esse po-
tencial; posições objetivas e posições encarnadas, subjetivamente

29
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

preenchidas por pessoas assumindo posições; relações sociais


potenciais e relações sociais entre pessoas participando concre-
tamente em eventos sociais; materiais potenciais e dispositivos
efetivados na ação material; espaço-tempo potencial e espaço-
tempo realizado.
Essa distinção teórica essencial também apela à necessidade
de se refletir sobre as condições de possibilidade em relações de
emergência. Nos termos de Hodge (2015), é preciso “considerar
a porosidade entre os níveis teorizados como uma necessidade
para a coerência teórica”. Entendo que essa porosidade deve
ser considerada tanto entre os níveis dos estratos linguísticos
(fonética, fonologia, lexicogramática, semântica), quanto entre
os níveis dos estratos sociais (estruturas, práticas, eventos), e o
lugar intermediário das ordens de discurso – entre o semiótico
e o social – indica o papel decisivo dos estudos discursivos na
compreensão profunda de problemas sociais.
No mapa ontológico apresentado na Figura 7, preferi chamar
o momento discursivo das práticas – a que Fairclough chama
Discurso, na acepção mais abstrata do termo (conforme ele
explica em 2003) – mais diretamente de Ordens de Discurso. A
motivação para isso é dupla. Por um lado, observo que teorica-
mente há correspondência entre essa acepção de discurso como
o aparato discursivo da prática social e o conceito de ordem
de discurso conforme se define em análise de discurso crítica:
ora, se discurso nessa acepção refere-se ao uso da linguagem
em relação a práticas específicas, e se toda prática social inclui
uma ordenação do aparato semiótico estruturante dos usos da
linguagem na prática, então não há necessidade de se manter
a flutuação conceitual aqui – e isso traz a vantagem de evitar a
duplicidade de sentido para o termo discurso, que tanta confusão
causa na compreensão inicial da teoria. Por outro lado, trazer o
conceito de ordem de discurso para o centro do mapa ontológico
é teoricamente adequado, já que o foco na estruturação social do

30
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

potencial semiótico assim o indica. As relações transformacionais


entre ordens de discurso e textos nos garantem o foco simultâneo
na ordenação social do potencial semiótico das práticas e em sua
apropriação (reificação/transformação) na interação efetivamente
realizada nos eventos discursivos.
As ordens de discurso controlam/possibilitam a ação discur-
siva em relação a campos particulares da atividade humana, e os
textos resultam dessa ordenação. Essa dinâmica deve ser o foco
analítico central nos estudos críticos do discurso. Em sua confe-
rência no congresso da Associação Latino-Americana de Estudos
do Discurso em 2015, Hodge sustentou, em uma crítica explícita
que fez à linguística sistêmica funcional, que “toda linguística que
não tenha o significado como centro é focalizada em estrutura”,
por isso em ADC são centrais os conceitos de gêneros, discursos
e estilos, que, transitando entre o linguístico e o social, permitem
o foco no significado. Para Fairclough (2003), esses três elemen-
tos são constituintes das ordens de discurso, e eu concordo com
ele. Mas preferi, no mapa ontológico apresentado na Figura 7,
reordená-los em apenas dois (discurso-estilo e gênero-suporte),
enfatizando, por um lado, a estreita relação entre identificação
e representação, e, por outro, a relevância do suporte também
como elemento estruturante do potencial semiótico acional.
Sobre discursos e estilos, em sua estreita relação, pode-
mos pensar em uma força centrípeta e uma força centrífuga na
construção discursiva da identidade: uma força centrípeta, isto
é, voltada para dentro, atuando na construção do ‘eu’ com base
em múltiplos significados, ou seja, nos discursos com que nos
identificamos, e uma força centrífuga, para fora, atuando na dis-
persão do ‘eu’ em várias direções, em movimentos semióticos
texturizados. O balanço entre essas forças exige um esforço de
coesão e coerência, na construção do que se aspira ser, e isso
deixa traços que podem ser analisados em textos. É evidente
que a questão da identidade não se restringe ao discurso, e

31
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sustentar que identidades sejam simplesmente discursivas seria


minimizar a complexidade dos processos identificacionais. Por
isso, prefiro manter discursos e estilos teoricamente ligados, para
manter em foco que a identificação discursiva não se confunde
com a identidade como conceito mais amplo, e que, quando se
trata de discutir identificação em análise de discurso, o que está
em questão é a análise do quanto nos vinculamos, em textos, a
discursos particulares. Isso não minimiza o papel do discurso na
construção de identidades, mas torna mais claro o conceito, mui-
tas vezes vago, de estilos. Concordo com Orlandi (2015) quando
afirma, a respeito de identificação discursiva, que “o sujeito se
diz narrando-se”, demarcando seu pertencimento a espaços de
interpretação, vinculando-se a discursos e modos interpretativos
específicos.
Quanto ao segundo elemento interno das ordens de dis-
curso como formuladas no mapa ontológico que aqui discuto,
escolho falar em gêneros-suportes assim articulados para enfa-
tizar a relevância da noção de suporte, especialmente quando
consideradas as tecnologias discursivas, e a vinculação de todo
gênero discursivos aos suportes particulares que possibilitam sua
dispersão materializada em textos. Creio que esse conceito tem
sido negligenciado em análise de discurso crítica e acredito ser
necessário corrigir isso. A questão já foi discutida em Acosta e
Resende (2014, p. 134), quando sustentamos que

suportes discursivos são veículos, espaços físicos ou


virtuais, sobre os quais os textos ocorrem, potencial-
mente ou como realização [nos suportes realizados].
No entanto, a relação entre textos e suportes não é
direta: há outros elementos que subjazem aos even-
tos discursivos, centralmente os gêneros, em seus
diferentes níveis de abstração.
Pela perspectiva social do discurso, entende-se que
os suportes são, também, espaços sociais, no sentido
de que são socialmente construídos, responden-

32
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

do a interesses e propósitos particulares, e assim


funcionam nas práticas sociais. Estão associados ao
significado acional do discurso, pois internalizam e
expressam, de maneira relativamente estável, a ação
de atores sociais em práticas sociais específicas. As-
sim, quando tomados como potencialidades, estão
no mesmo enquadre dos gêneros, como elementos
constituintes das OD [ordens de discurso].

Assim como todo texto necessariamente materializa gêne-


ros, discursos e estilos, a realização de textos só é possível por
meio de suportes (revistas, jornais, programas de televisão, sites,
conversas etc.) que os materializam, que funcionam como o lócus
de realização de gêneros em textos. Do mesmo modo como os
gêneros associam-se a práticas específicas – e é isso o que sus-
tenta o conceito de gênero discursivo como elemento das ordens
de discurso –, os suportes também se vinculam a práticas sociais
e a ordens de discurso particulares (como a ordem de discurso da
mídia, por exemplo). A questão a ressaltar aqui é que os supor-
tes materializados também respondem a ordenações potenciais
previstas na prática como suporte potencial: uma revista é como
é, organiza-se como se organiza, vincula textos materializando
gêneros específicos como o faz, não por acaso, mas respon-
dendo a ordenações semióticas pré-existentes como potência.
Em Acosta e Resende (2014, p. 136), ainda argumentamos que
“[e]ssas potencialidades (suportes e gêneros) só se materializam
em eventos discursivos realizados, ou seja, do plano do concreto,
que sempre realizam/ reificam/ modificam potencial previsto nas
práticas. As práticas, por seu caráter aglutinante, organizam o
potencial discursivo e ensejam a atividade discursiva”.
A distinção entre ordens de discurso (com seus elementos
constituintes) e textos, então, é da mesma ordem da distinção
entre práticas e eventos. Para discutir as demais distinções entre
os elementos da prática e os elementos do evento, retomo o po-
tencial explanatório de van Leeuwen (2008), mas com a ressalva

33
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de que esse autor trata os elementos da prática em termos de sua


recontextualização em textos, e eu aqui, por ora, estou falando
desses elementos em sua natureza ontológica como parte das
práticas – é claro que a representação também é parte de toda
prática, em seu elemento semiótico, mas há uma distinção es-
sencial entre a prática e a representação da prática: “isso parece
óbvio, mas mesmo assim a diferença é frequentemente ignorada”
(VAN LEEUWEN, 2008, p. 6). Quanto aos elementos que discuto
aqui, estamos tratando outra distinção essencial: entre a previsão
no potencial da prática e sua realização efetiva em eventos, ou
seja, como as condições estruturantes da ação são efetivamente
materializadas em eventos.
Assim como o potencial semiótico é socialmente estrutu-
rado para sua realização em textos, há outras potencialidades
conformadoras de práticas sociais e materializadas de maneiras
mais ou menos criativas em eventos, e sempre em relação entre
si, incluindo relações com o potencial semiótico. Na Figura 7,
propus outros quatro elementos, tanto para o nível potencial das
práticas quanto para o nível realizado dos eventos. Obviamente se
trata de uma proposição aberta, que me pareceu útil e suficiente
em minhas pesquisas, mas que deve ser modificada, refinada,
recortada, ampliada conforme as necessidades de cada projeto.
Elementos de potência e realização, respectivamente, que se
têm mostrado centrais são as posições objetivas e posições encar-
nadas, isto é, subjetivamente preenchidas por pessoas realizando
práticas particulares em eventos. As posições são tão importantes
na definição das práticas que em seu modelo ontológico Bhaskar
define a entidade organizacional intermediária entre estrutura
e ação como ‘sistema posição-prática’, referindo-se a “posições
(lugares, funções, regras, tarefas, deveres, direitos etc.) ocupadas
(preenchidas, assumidas, desempenhadas etc.) por indivíduos”
nos eventos que realizam (BHASKAR, 1998, p. 221). Toda prática
social prevê (como potência) um conjunto de participantes em

34
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

certas posições e condições de elegibilidade para pessoas reali-


zarem o potencial da prática em eventos, “qualificações que os/
as participantes devem ter para serem elegíveis para assumir um
papel em uma prática social particular” (VAN LEEUWEN, 2008,
p. 10). Essas condições de elegibilidade para participantes en-
carnarem as posições objetivas previstas incluem uma série de
requisitos, variáveis de uma prática a outra em sua natureza e
em seu rigor. São requisitos de pertencimento a classe, gênero,
raça, etnia, especialidade profissional, faixa etária, vestimenta,
modo de apresentação física etc., em composições variadas de
requisitos mais ou menos rigorosos a depender da prática. O caso
é que as posições são objetivamente dadas, com seus requisitos
particulares, no potencial da prática, mas quando encarnadas,
subjetivadas em eventos, realizadas por pessoas reais em suas
atividades concretas, sempre sofrem alterações próprias da subje-
tividade. Ademais, posições podem sofrer hibridismos conforme
as práticas se alteram pelas contingências contextuais, como já
discuti em Resende (2008), e sua encarnação pode ser mais ou
menos criativa.
É claro que o potencial das posições objetivas nas práticas
também inclui certas relações sociais potenciais no interior de
uma posição específica (ou seja, entre pares) e entre as diferentes
posições objetivas relacionadas. Essas relações sociais potenciais
também serão mais ou menos modificadas quando realizadas em
relações sociais entre pessoas concretamente agindo no mundo.
Hierarquias previstas podem ser realizadas de maneiras mais ou
menos acomodadas; relações afetivas entre pessoas reais po-
dem alterar relações sociais objetivamente dadas no potencial
da prática, e creio que alterações em relações sociais previstas
configuram uma forma importante de mudança social.
Para Van Leeuwen (2008, p. 8), o “centro de toda prática é um
conjunto de ações performatizadas em uma sequência, que pode
ser mais ou menos fixada e que pode ou não permitir escolhas,

35
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ou seja, alternativas em relação a um maior ou menor número


de ações de alguns/mas ou de todos/as os/as participantes”. Em
termos da ação material prevista no potencial da prática, em sua
relação transformacional com a realização efetiva de eventos,
então, pode-se dizer também que “diferentes práticas envolvem
diferentes graus de liberdade, diferentes margens para resistência
– e diferentes modos de forçar conformidade” (p. 9). Isso inclui
as performances esperadas dos/as participantes e os materiais e
tecnologias necessários para a realização da prática em evento.
Práticas sociais também incluem tempos e espaços (e rela-
ções entre tempos e espaços) mais ou menos definidos, e “os
constrangimentos temporais [e espaciais] em práticas sociais
variam em seu rigor, mas nunca estão totalmente ausentes” (VAN
LEEUWEN, 2008, p. 11). O potencial de toda prática inclui, então,
temporalidades como horários, durações, variáveis níveis de to-
lerância a alterações nessa previsão e condições de elegibilidade
para os locais em que as práticas podem ser realizadas. Assim
como os demais elementos de potência da prática, também es-
paço-temporalidades são afetadas por contingências contextuais.
Dois aspectos relacionais são importantes para reter aqui,
antes de passarmos à próxima seção. O primeiro diz respeito ao
que já foi dito acerca da natureza transformacional da relação
entre os elementos da prática e os elementos do evento. Trata-
se de conceitos transformacionalmente articulados – ou seja,
em relação de emergência –, profundamente conectados, mas
fundamentalmente distintos: estão sempre associados e nunca
se confundem. O segundo refere-se à relação interna, de mútua
dependência, entre os elementos em cada nível. Assim como
toda prática é definida pela relação interna potencial entre seus
elementos (como já disseram Chouliaraki e Fairclough), também
os eventos se definem na relação entre os elementos de sua reali-
zação, e cada elemento realizado impacta sobre a realização dos
demais. Por exemplo, se há alteração significativa nas posições

36
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

objetivas da prática quando encarnadas no evento, serão igual-


mente alteradas as relações sociais, com impacto sobre os usos
de linguagens e assim por diante. E a recorrência em eventos
poderá, na relação transformacional e em diacronia, alterar o
próprio potencial previsto na prática.
Na próxima seção, volto atenção para implicações episte-
mológicas do que foi discutido até aqui.

3. MAPA EPISTEMOLÓGICO E IMPLICAÇÕES METODOLÓGICAS:


DAS TRILHAS DE CADA PROJETO

Em ADC, procura-se estabelecer um quadro analítico capaz


de mapear conexões entre relações de poder e recursos discur-
sivos acessíveis a pessoas ou grupos sociais, materializados em
eventos discursivos. Na versão de Chouliaraki & Fairclough (1999),
baseada na crítica explanatória de Bhaskar (1998), o objetivo é
refletir sobre a mudança social contemporânea e sobre possibi-
lidades de práticas emancipatórias. Nesta seção, meu objetivo
será propor outro mapa, distinto do de Chouliaraki e Fairclough,
mas baseado nele. Por isso, começo por explicar, ainda que breve-
mente, as ‘fases’ do enquadre proposto pela autora e pelo autor.
Nesse enquadre, pesquisas em ADC partem da percepção de
um problema – na atividade decorrente de uma prática particular,
em seu aparato semiótico (ação discursiva) ou na reflexividade
sobre uma dada prática (representação discursiva). Sobre os
problemas que movem analistas de discurso, van Dijk (1993,
p. 252) explica que “são problemas ‘reais’, os problemas sérios
que ameaçam a vida ou o bem-estar de muitas pessoas, e não os
problemas disciplinares, por vezes insignificantes, de descrição
de estruturas discursivas”.
Definido o problema social da pesquisa, a segunda ‘fase’
desse enquadre é a identificação de obstáculos para que o pro-
blema seja superado, ou seja, de aspectos da prática social que

37
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sustentam o problema verificado, que constituem obstáculo para


sua superação. Para Chouliaraki e Fairclough (1999), há três tipos
de análise que atuam juntos nessa ‘fase’: a análise da conjuntura –
da configuração da rede práticas sociais associadas ao problema
ou das quais ele decorre; a análise da prática particular – como
o discurso se articula a outros momentos na prática específica
que se focaliza; a análise de discurso – das relações da instância
discursiva analisada com ordens de discurso e das maneiras como
textos ‘trabalham’ os recursos disponíveis na interação.
A terceira ‘fase’ do enquadre epistemológico é a compre-
ensão da função do problema na prática. O objetivo, segundo a
autora e o autor, é verificar a que interesses os aspectos proble-
máticos da prática particular focalizada servem. Ora, se há um
problema, e se ele se mantém, então esse problema deve ser
funcional em algum aspecto – a pressão por sua manutenção
deve servir a interesses específicos.
Em seguida, focalizam-se os possíveis modos de ultrapassar
os obstáculos. Com base na crítica explanatória do realismo críti-
co, aqui interessam as possibilidades de mudança e superação dos
problemas identificados. O argumento é que a linguística pode
atuar criticamente na melhor compreensão de questões sociais
problemáticas: engajada nos conflitos sociais da atualidade, pode
ser socialmente pertinente, não só no desvelamento de relações
de dominação, mas também na discussão de alternativas viáveis
para a superação dessas relações problemáticas (RAJAGOPALAN,
2003).
A reflexão sobre a análise deve ser uma constante em todo
o empreendimento da pesquisa, o que inclui a clareza sobre os
posicionamentos explícitos com que o/a analista decide engajar-
se (FAIRCLOUGH, 2010). Chamei esses ‘momentos do enquadre’ de
‘fases’ porque não devem ser consideradas etapas subsequentes
e claramente distintas; ao contrário, implicam-se mutuamente
e não são tão claramente ordenadas. Por exemplo, dificilmente

38
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

se define um problema de pesquisa sem referência à conjuntura


que o engendra, e dificilmente se descreve essa conjuntura sem
referência à prática particular ou ao funcionamento do discurso
nessa prática. Assim também a reflexão sobre a análise não deve
ser tomada como uma ‘etapa’ final no enquadre, mas como uma
exigência transversal de todo o empreendimento, como assinalou
Fairclough em texto posterior ao de apresentação do enquadre
(FAIRCLOUGH, 2010). Ao escolher uma metáfora química – fase –
em lugar de uma metáfora física – etapa –, enfatizo o fato de as
atividades propostas para o quadro epistemológico básico dessa
versão de ADC não serem estanques, mas passíveis de mistura
e dissolução.
O enquadre de Chouliaraki e Fairclough (1999), inspirado
na crítica explanatória proposta por Bhaskar (1998) no realismo
crítico, tem sido assim ilustrado:

Quadro 1: ‘Fases’ do enquadre epistemológico de Chouliaraki e Fairclough (1999).

Fonte: em Resende e Ramalho (2006, p. 37).

Embora seja amplamente conhecido, esse enquadre episte-


mológico nem sempre tem sido bem compreendido. O problema
mais recorrente é se tomar o enquadre, de natureza epistemoló-
gica, como um modelo metodológico. Não se trata, entretanto,
de um modelo analítico – como foi o tridimensional proposto em

39
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Fairclough (2001), por exemplo –, mas de um enquadramento para


todo o empreendimento da investigação, desde o estágio inicial
da definição do problema de pesquisa, até as análises de dados
e a crítica explanatória que se quer lograr por meio da análise
discursiva associada a outros tipos de análise. O objetivo é a ex-
planação do problema social, com base no momento discursivo
da prática investigada, o que é possível graças à articulação entre
o enquadre epistemológico e os conceitos teóricos em que se
baseia, e as análises obtidas no entrecruzamento de conjuntura,
prática particular, objetos discursivos, categorias analíticas sis-
tematicamente aplicadas.
Obviamente, um mapa ontológico da linguagem na socieda-
de, complexo como o que vimos na primeira seção deste capítulo,
não pode ser explorado em pesquisas apenas mediante a análise
de textos. Por isso, o mapa epistemológico deve ser igualmen-
te complexo, e retrabalhado para atender às necessidades dos
projetos de pesquisa em suas especificidades, de acordo com as
componentes ontológicas que se pretenda acessar e os objetivos/
problemas/ questões de cada pesquisa. A complexidade, nesse
caso, é o que permite a crítica explanatória com base no discurso.
Por isso, assim como o mapa ontológico deve ser redesenhado
para cada projeto particular, também o desenho epistemológico
tem de ser próprio de cada projeto, a fim de lograr coerência
entre essas importantes decisões que se tomam no trajeto de cada
pesquisa, e mais bem informar as decisões metodológicas que
lhe sucedem. Com isso não quero dizer que não se possa ganhar
da experiência de outros/as pesquisadores/as e suas abordagens.
Claro que sim, podemos e devemos tirar proveito das experiências
anteriores – e é por isso que tenho defendido, junto aos grupos
de pesquisa que tenho coordenado, a necessidade de capítulos
metodológicos detalhados e de tipo predominantemente narra-
tivo: capítulos assim podem ser úteis não só para a autorreflexão
do/a pesquisador/a que (se) escreve, mas também para outros/as
que o/a venham a ler.

40
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Com isso em mente – tendo enfatizado que não se trata de


propor um mapa válido para qualquer situação de pesquisa –,
passo a discutir o que entendo ser um refinamento do modelo
cujas linhas gerais acabo de apresentar. O mapa que proponho
assume-se, de maneira mais clara, como um conjunto de fases
para um empreendimento de pesquisa, de modo nenhum poden-
do ser confundido com etapas metodológicas. Isso porque inclui
reflexões sobre as necessárias decisões ontológicas, epistemoló-
gicas e metodológicas. Vejamos:

Quadro 2 – Mapa epistemológico para ADC baseado em decisões ontológicas,


epistemológicas e metodológicas.

I. Reflexões preliminares
1. Definição do problema social a ser investigado
2. Compreensão macro do problema: revisão bibliográfica/ parcerias interdisciplinares
3. Reflexão sobre as múltiplas possibilidades de acercamento do problema
4. Construção das perguntas da pesquisa

II. Organização da pesquisa


5. Levantamento de dados possíveis para o acercamento escolhido
6. Definição de estratégias coerentes para geração/ coleta de dados
7. Reflexão epistemológica sobre os dados gerados/coletados: possibilidades e
limites
8. Reconstrução do mapa ontológico com base na reflexão epistemológica

III. Análise discursiva


9. Decisão sobre necessidade ou não de utilização de ferramentas computacionais
ou métodos complementares para a macroanálise
10. Seleção de textos do feixe discursivo/ Segmentação de excertos conforme
movimentos retóricos
11. Definição de categorias analíticas com base nos dados
12. Análise textual fina do corpus ou de parte selecionada do corpus

IV. Recursividade
13. Retorno à compreensão do problema à luz do discursivo
14. Restituição social dos resultados OU volta a 5 OU volta a 6

Fonte: elaboração própria, inédito

41
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Como se nota, trata-se de uma proposta para pesquisas em


ADC, considerando conjuntos de decisões de natureza ontológica,
epistemológica e metodológica. O mapa é dividido em quatro
ciclos gerais – reflexões preliminares, organização da pesquisa,
análise discursiva e recursividade – com suas orientações inter-
nas. Os ciclos propostos e suas orientações podem e devem ser
repensados para cada projeto particular, mas com o cuidado de
respeitar a necessária precedência das questões ontológicas em
relação às epistemológicas e metodológicas, como já expliquei
em outra ocasião (RESENDE, 2009).
No ciclo inicial, realizam-se as reflexões preliminares sem as
quais não se desenha um anteprojeto de pesquisa. A definição
do problema da pesquisa é a primeira coisa a fazer – sem um
problema claramente definido, não se podem tomar as decisões
subsequentes com segurança, por isso a definição, embora pareça
óbvia, é repisada como tão importante. Muitas vezes, a definição
do problema pode ser por si só um desafio, e a compreensão
macro do problema pode exigir muita pesquisa bibliográfica e/
ou parceria interdisciplinar. É importante valorizar essa fase do
esforço investigativo, mesmo quando temos a impressão de não
sair do lugar, de que a pesquisa sequer começou.
Dado o caráter interdisciplinar da ADC, nesse momento em
geral sentimos necessidade de realizar leituras para além do
discurso e de conversar com pesquisadores/as de outras áreas;
em alguns casos, pode ser mesmo fundamental ouvir colegas de
outras áreas ou assistir a cursos em outras especialidades, para
mais bem compreender a natureza do problema que se pretende
investigar – isso pode evitar desde abordagens ingênuas até as
sobreanálises de dados. Com sorte, às vezes conseguimos a ade-
são de colegas para a configuração de equipe multidisciplinar em
grupo de pesquisa, o que enseja novas possibilidades e também
carrega outros desafios. A situação ideal seria a composição de
equipe multidisciplinar capaz de um acercamento mais robusto

42
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

do problema de pesquisa, mas sabemos que isso nem sempre é


possível.
Somente depois de delineado com clareza o problema da
pesquisa e suas nuanças, é possível definir como o problema
será abordado: há sempre muitas facetas, e é preciso decidir. É
este o momento fundamental de delimitação das questões da
pesquisa. Aqui, nos perguntamos: considerado este problema e o
foco com que decidi acercar-me dele, quais são as perguntas que
gostaria/ seria capaz de responder neste estudo? É importante
fazer-se perguntas que sejam passíveis de respostas baseadas
no momento discursivo da prática (ou seja, perguntas que faça
sentido responder pela via do discurso) e que sejam passíveis de
investigação considerados os limites práticos (tempo, recursos e
possibilidades de acesso) da pesquisa.
Definido o problema, o foco para sua abordagem e as
questões da pesquisa, passamos à organização da pesquisa,
quando devem ser enfrentadas decisões de caráter ontológico e
epistemológico. Em primeiro lugar, é preciso se perguntar quais
componentes ontológicas do mapa do funcionamento social da
linguagem se pretendem acessar, e então considerar a questão
fundamental sobre quais corpos de dados seriam capazes de for-
necer subsídios para que se respondam as questões da pesquisa.
Essa é uma reflexão epistemológica inescapável, se pretendemos
garantir a coerência entre o que queremos conhecer e os modos
como pretendemos lograr esse objetivo. Por exemplo, se minhas
perguntas de pesquisa orbitam os modos de estruturação de
uma determinada instituição, não bastará perguntar às pessoas
que ocupam posições nessa instituição como elas pensam que
essa instituição se estrutura. Porque um desenho de pesquisa
baseado apenas em entrevistas sobre o funcionamento da ins-
tituição fornecerá dados úteis para apreender o que as pessoas
entrevistadas pensam, ou dizem pensar, sobre a instituição, mas
não sobre seu funcionamento efetivo. Outras técnicas de coleta

43
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e geração de dados precisarão, então, ser empregadas – ou, no


sentido contrário, as perguntas de pesquisa precisarão ser ajus-
tadas para o que os dados podem ensinar.
Então, as orientações desse segundo ciclo do mapa referem-
se à reflexão sobre os elementos do mapa ontológico que se quer
acessar e sobre como será possível responder às questões de
pesquisa que se pretende esmiuçar. O levantamento dos dados
possíveis para o acercamento do problema também deve incluir
reflexão robusta sobre suas possibilidades e seus limites. Com
base nessa reflexão epistemológica, será possível reduzir o mapa
ontológico para focalização apenas dos elementos pertinentes à
investigação, redesenhando-o.
O terceiro ciclo é voltado para decisões metodológicas re-
lativas à composição do corpus ou dos corpora de pesquisa e sua
exploração. Trata-se da análise discursiva dos dados, em termos
estruturais, voltados para a ordenação social do discurso, e em
termos interacionais, voltados para a atualização desse potencial
discursivo nos eventos particulares que se escolheu focalizar,
como sugeriram Chouliaraki e Fairclough (1999). Isso significa
que a análise deve estar atenta para como os potenciais dos
gêneros-suportes e dos discursos-estilos particulares em jogo no
campo discursivo investigado possibilitam e restringem a signi-
ficação nos textos tomados como dados, e também para como
esses textos provocam mudanças nesses potenciais de suportes,
gêneros, discursos e estilos e suas imbricações.
A organização dos dados é fundamental para uma análise
ser bem-sucedida. Os modos para essa organização dependem
de fatores específicos a cada projeto de pesquisa, como volume
e natureza dos dados. Por um lado, quando se trabalha com um
extenso volume de dados é preciso desenvolver estratégias para
lidar com isso – algumas vezes o uso de ferramentas computacio-
nais pode ser desejável. Por outro lado, quando se trabalha com
dados de diferentes naturezas, é preciso atentar para o critério

44
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de homogeneidade na composição de cada corpus, o que pode


indicar a necessidade de composição de vários corpora, geral-
mente abordando diferentes questões de pesquisa. Nesse caso,
será necessária reflexão acerca de como esses corpora trabalham
juntos numa abordagem multidimensional (RESENDE, 2008).
Quando se realiza macroanálise com muitos dados, deve-se
ter em mente que a microanálise exigirá seleção de exemplares
do feixe discursivo (JÄGER, 2017), já que a minúcia da análise
discursiva crítica não pode ser aplicada adequadamente a corpora
extensos – nesses casos, será preciso, então, definir critérios para
a seleção de textos exemplares. É preciso decidir se será mais
adequado selecionar textos exemplares para análise fina integral
– isto é, selecionar alguns textos para que a análise detalhada
incida sobre os textos completos – ou se será preferível colecio-
nar excertos mais curtos de variadas fontes para a análise fina.
As duas decisões carregam vantagens e limites, então a decisão
deve ser consciente.
Em ambos os casos – e seja a análise mais estruturada ou
mais sequencial (RESENDE, 2008) – um desafio adicional é a
segmentação do texto em excertos analíticos que possam ser
apresentados e discutidos na redação dos resultados analíticos.
Geralmente, quando dão seus primeiros passos nos exercícios de
análise, estudantes tendem a segmentar seus dados em trechos
demasiado curtos, descontextualizados, que assim carregam
pouco potencial para a análise discursiva crítica. Em minha ex-
periência, tenho considerado muito útil a noção de movimentos
retóricos para a segmentação inicial dos textos, prévia à aplica-
ção de categorias analíticas. A atenção ao material textual a ser
analisado em termos de seus ‘fazeres discursivos’ permite não
só uma segmentação mais adequada em excertos analíticos, mas
também uma reflexão inicial importante a respeito dos dados.
Ainda nesse terceiro ciclo, é preciso escolher as categorias
analíticas que dirigirão as análises discursivas finas, e já sabemos

45
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que as categorias não devem ser escolhidas a priori, mas em de-


corrência das necessidades apontadas nos dados, já que nossos
problemas de pesquisa são de ordem social e não linguística – a
linguística nos serve de ferramenta fundamental para a investi-
gação de problemas sociais, o que só é possível graças à centra-
lidade do discurso no funcionamento da sociedade. Como já foi
enfatizado por Magalhães (2015), não devemos impor categorias
analíticas aos dados, e não deve haver pretensão de aplicar aos
dados todas as categorias analíticas do mapa metodológico es-
colhido, já que o texto demanda certos tipos de análise. É claro
que no caso das perguntas de pesquisa teoricamente motivadas
algumas categorias analíticas podem-se mostrar centrais já de
saída, sendo depois complementadas por outras categorias de-
mandadas pelos dados.
Para análises discursivas críticas, tem sido produtivo utilizar
ferramentas analíticas desenvolvidas na linguística sistêmica fun-
cional, especialmente aquelas descritas por Halliday (2004), Van
Leeuwen (2008), Martin e White (2005). Mas há outros modelos,
por exemplo os desenvolvidos por Laura Pardo (2011, 2017), da
Universidade de Buenos Aires, Neyla Pardo Abril (2007, 2017), da
Universidade Nacional da Colômbia, Margarete Jäger (2017), do
Instituto de Pesquisa Linguística e Social de Duisburg.
Ganhar autonomia na análise discursiva de textos é um de-
safio para a maior parte das estudantes e dos estudantes que se
aventuram nos estudos críticos do discurso. Em geral, o olhar
analítico precisa ser desenvolvido em laboratórios de análise
discursiva, no contato com outras pesquisadoras e pesquisadores
no desafio da escavação de textos. Também por isso o esforço de
investigação em análise de discurso crítica não deve ser solitário,
mas solidário, em grupos que exercitam, discutem e desenvolvem
ferramentas e técnicas apropriadas aos projetos em andamento.
Por fim, a recursividade do mapa salienta a porosidade entre
seus ciclos. Realizadas as análises, seus resultados devem ser

46
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

capazes de lançar nova luz sobre o problema, isto é, as análises


devem ter potencial explanatório que contribua para a melhor
compreensão do problema social discursivamente investigado.
Do mesmo modo, uma vez que se trata de ciência crítica, a
capacidade explanatória do problema deve contribuir para sua
superação ou mitigação, o que se pode lograr por meio da resti-
tuição social dos resultados da pesquisa, do compartilhamento
das interpretações e explanações decorrentes da pesquisa no
contexto investigado. Se isso não é possível quando se chega ao
fim das análises, temos o indicativo da necessidade de retornar
ao segundo ciclo e revisar as fontes e métodos, possivelmente
incluindo novos dados e retomando o ciclo analítico até que se
chegue a resultados pertinentes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: NEM SEMPRE O CAMINHO É TÃO


TRANQUILO

Neste capítulo, argumentei que, uma vez que em análise de


discurso crítica se procura estabelecer um quadro analítico capaz
de mapear conexões entre relações de poder e recursos discursi-
vos acessíveis a pessoas ou grupos sociais, e materializados em
eventos discursivos, então essa postura científica – uma proposta
ontologicamente complexa do funcionamento da sociedade e
da linguagem na sociedade – exige uma epistemologia também
complexa, o que requer um rigoroso planejamento de pesquisa.
Verdade seja dita: nos caminhos da pesquisa, nem sempre as
coisas se dão de modo tão ordenado. Quando se labuta em ciên-
cia crítica, há projetos de pesquisa que não são cuidadosamente
desenhados em gabinete para posterior busca por fomento e
execução: há casos que se nos apresentam e não podemos furtar-
nos a debater. É verdade que tenho discutido a necessidade de
planejamento epistemológico cuidadoso de projetos em ADC, e
é também verdade que falei justamente sobre isso neste texto.
Então devo esclarecer: dizer que nosso compromisso social

47
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

nos leva por vezes a projetos que não se formatam da maneira


usual – quando em nossa posição de cientistas constituímos o
problema em objeto, para a partir daí nos fazermos perguntas
a seu respeito – não é o mesmo que negligenciar a necessidade
de reflexão epistemológica sobre eles, mesmo quando a con-
tingência que se apresenta nos obriga a conduzir essa reflexão
ao mesmo tempo em que nos conduzimos na própria pesquisa,
conforme as possibilidades que temos diante de nós.
A verdade é que há projetos que escolhemos, e há projetos
que nos acolhem. Dos primeiros, desenhamos planejamentos cui-
dadosos em gabinete, traçando seus mapas, compondo equipe,
escolhendo recortes; os segundos são mais exigentes: neles, os
problemas de pesquisa mostram-se irrecusáveis, absorvendo-nos
e acordando aquela ânsia por compreender e colaborar que nos
faz cientistas críticos/as.
Concordo com Clara Keating (2015): nos estudos críticos do
discurso, não podemos ser apenas especialistas em linguagem;
precisamos nos esforçar em outras direções. O “desafio da tran-
disciplinaridade”, diz Keating, “é antes de tudo um desafio de
tradução”. Há que se falar de modo a ser compreendido/a por
qualquer um que venha de qualquer lugar de fala. E sem perder
profundidade. Esse é o grande desafio. Ainda mais porque, no
tipo de pesquisa que abraço, precisamos estabelecer parcerias
de dois tipos: com especialistas de outras disciplinas e com a
militância de movimentos sociais. Daí um desafio adicional:
“conquistar os movimentos sociais apesar de uma história de
soberba e indiferença” por parte da academia (MORENO, 2014).
Pertencendo a uma academia soberba, que quando se atreve a
estreitar laços com os movimentos sociais insiste em ver-se acima,
como conquistar e realizar parceria efetiva? É preciso entender
de uma vez por todas que nunca se trata de ‘dar voz’ (expressão
máxima da soberba acadêmica!), mas sempre de ouvir e de ser
capaz de entrar em diálogo aberto, com disposição para aprender.

48
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Para chegar aos tais “resultados pertinentes” com que finalizei a


última seção deste texto, há que se superar a divisão improdutiva
entre trabalho acadêmico e ação social. Estou convencida disso.

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51
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

(CON)TEXTOS DE VIOLAÇÃO E RESISTÊNCIA: UM


ESTUDO EM ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA SOBRE O
CASO MICHELE MAXIMINO

María del Pilar Tobar Acosta

INTRODUÇÃO

Em nossa sociedade, um mesmo dado da realidade, pode
ser interpretado de inúmeras maneiras, sendo que concorrem
e co-ocorrem um sem fim de versões elaboradas por diferentes
grupos e atores sociais. No entanto, as pessoas não dispõem de
aparatos sociais equivalentes, não participam das mesmas trocas
sociais, não detêm os mesmos micropoderes. Assim, ao falarmos
sobre um mesmo recorte do mundo social, entramos em disputas
(mesmo sem nos darmos conta) de que significados prevalecerão.
Essas disputas, quando postas em jogo num palco de profundas
assimetrias, podem ter efeitos perversos sobre a realidade social,
seja direta ou indiretamente.
O que chamo, aqui, de “Caso Michele Maximino” é o conjunto
de eventos em textos – que instanciam formas de representar,
agir e identificar(-se) (n)o mundo – que abordam aspectos da
história de vida de Michele Fernanda Maximino, mãe de duas
crianças, casada com Ederval Trajano, professor de história do
município de Quipapá, pernambucana, técnica de enfermagem,
focalizando o seu feito de ser a maior doadora de leite do Brasil

53
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e de ter pleiteado o título de maior doadora de leite do mundo


(tendo quebrado o recorde de doação de leite humano com a
marca de 417 litros em 11 meses, em meados de 2013). Esse caso,
tal como recortado para fins de análise discursiva, composto de
inúmeras visões de mundo convergindo sobre a vida de Maximi-
no e de sua família, evidencia como disputas sobre a atribuição
de significados, movimento que estrutura (também) a realidade
social, podem dar-se no plano discursivo.
Os textos, como “rastro e resultado de nossa ação discursiva
em eventos” (RESENDE, 2017, neste volume) sociais, instanciam a
construção de cadeias de significação que informam sobre o en-
quadramento de estruturas sociais e, por conseguinte, estruturam
espaços para performance. Nessa perspectiva, ao falarmos sobre
alguém – uma mulher, como Michele Maximino, por exemplo – ou
sobre alguma prática determinada – a amamentação e a doação
de leite materno, por exemplo –, contribuímos para o conjunto
de significados que modulam os potenciais de atuação (seja em
práticas globalmente observadas ou em sua materialização discur-
siva) frente à pessoa representada – Michele Maximino – ou, de
forma generalizante, a quem pode realizar tais práticas – qualquer
mulher que amamente ou doe leite materno.1
Ao acessar esse “rastro” passível de ser analisado por meio
dos construtos teóricos e metodológicos da análise de discurso
crítica (ADC), podemos mapear efeitos causais de estruturas
e práticas sociais que são abstratas e (portanto) intransitivas
a nossa experiência direta, mas transitivas em seus efeitos e
potencialidades. Desse modo, pretendo, aqui, analisar como o
discurso operado pelo prisma da violência e, em oposição, pelo
paradigma da solidariedade, tem o potencial de tecer a realidade

1 O termo modular/modulação foi selecionado a partir de suas distintas acepções, em especial


da física acústica e da música, para, aqui, referir o processo de interação e reiteração que
potencialmente pode ser estabelecido entre atividade discursiva e práticas sociais. É dizer,
compreendo que, ao contribuir para o conjunto de significados sobre determinado aspecto
da realidade, operamos sobre os potenciais de realização de outros eventos discursivos (para
mais, ver ACOSTA, 2017, no prelo).

54
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

social. O presente capítulo dialoga com reflexões teóricas ofe-


recidas pela vertente latino-americana de ADC, e, em especial,
pelo trabalho de Viviane de Melo Resende (2008, 2009a, 2009b,
2011), estabelecendo uma relação intertextual direta com o
ensaio que apresenta neste livro – “Análise de discurso crítica:
reflexões teóricas e epistemológicas quase excessivas de uma
analista obstinada” –, por meio da aplicação de desdobramentos
e refinamentos por ela propostos.
Cabe observar que este texto é fruto de uma pesquisa pi-
loto realizada entre 2012 e 2014, a partir da qual se constituiu
minha investigação de doutoramento, ambas sob orientação da
Professora Resende. Essa pesquisa visou analisar como a violên-
cia –estruturante de práticas sociais hegemônicas/hegemonistas
– encontrava resistência – como estrutura para práticas sociais
contra-hegemônicas. Essa oposição bastante simplista não busca
delimitar como se dão práticas tão complexas, mas serviu como
delineamento epistemológico para iniciar um desenho de inves-
tigação sobre a luta por direitos de minorias históricas. Assim,
apresento uma abordagem prática sobre dados oriundos de
diferentes textos ligados a um mesmo caso – o recorde mundial
de doação de leite, alcançado por Michele Maximino –, visando
articular diferentes epistemologias e opções metodológicas
para analisar aspectos intertextuais que possibilitem identificar
relações de saber, poder e ética (FOUCAULT, 2003), e contribuir
para a superação de formas de violência contra minorias sociais.

1. DESENHO DE INVESTIGAÇÃO E PRÁTICA ANALÍTICA:


COMPLEXIDADE EPISTEMOLÓGICA E DESAFIO METODOLÓGICO

A primeira seção deste capítulo é dedicada à reflexão teórico-


metodológica, como, de praxe, em textos acadêmicos. No entan-
to, por se tratar de um capítulo que visa explicitar a prática de
pesquisa em ADC, meu foco é centralmente metodológico, sendo

55
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que a revisão teórica ora apresentada entrelaça-se ao esforço de


descrição de meus passos para a construção da análise dos textos
“Quadro do programa Agora é Tarde”, de autoria de Danilo Gentili
e Marcelo Mansfield, e “Reaças se ofendem ao serem chamados
de reaças”, de autoria de Dolores Aronovich.
A primeira pergunta a se fazer, quando se está no início
de um projeto de investigação, é sobre qual prática social se
deseja estudar. Por ser campo interdisciplinar de caráter crítico,
e, consequentemente, engajado, alinhando-se à perspectiva
transformacional da atividade social do Realismo Crítico, a ADC
abre espaço para pesquisas sobre temas sociais sensíveis e, para
além da descrição de problemas sociais, estrutura-se como campo
propositivo, usando a tecnologia científica para contribuir efeti-
vamente com a sociedade, em especial com grupos minoritários
em termos de poder. As práticas sociais que estudamos, são, pois,
via de regra, práticas que apresentam problemas sociais para cuja
superação desejamos contribuir.
Desse modo, retomando o caminho que percorri para estru-
turar a análise ora apresentada, posso indicar que meu ponto de
partida foi a violência, como forma estruturante de diferentes prá-
ticas sociais, ao mesmo tempo em que sempre me moveu estudar
como se constituíam práticas de resistência que visavam superar
arranjos assimétricos de poder na sociedade. Não obstante, tanto
violência quanto resistência são formas de ação bastante abstratas
e, portanto, transversais a inúmeras práticas; assim, tive de redeli-
mitar o foco sobre práticas situadas. Nessa etapa, o ciberativismo
emergiu como um segundo interesse de pesquisa e somou-se a
meus questionamentos, o que permitiu adensar as reflexões que
estava construindo. Como, então, era possível resistir por meio da
atividade discursiva em ambientes virtuais?
A partir dessa questão inicial, delimitei três eixos nortea-
dores da pesquisa piloto por meio de questões de pesquisa de
caráter mais abstrato e abrangente:

56
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

1. Como, por meio da atividade discursiva, práticas de violação


de direitos são legitimadas?

2. Como, por meio da atividade discursiva, práticas de resistência


são estruturadas?

3. Há um embate direto entre atividades discursivas originadas


no cerne de práticas sociais diferentes?

No caso dos dados que foram processados no presente


estudo, é necessário observar que não dão conta de responder
de maneira isolada a essas questões, mas permitem identificar
algumas formas de realização que, associadas a outros dados
de diferentes tipos (documentais e etnográficos) possibilitariam
analisar aspectos de práticas articuladas com a resistência à
violência. Para fazer a transição entre os eixos de pesquisa e as
análises em si, uma etapa possível é a elaboração de questões
de análise, como será debatido na sequência.
Os trabalhos de investigação em ADC, muitas vezes, en-
contram amparo no diálogo com técnicas de etnografia, pois,
como premissa, adotamos a constante autorreflexão sobre
nosso trabalho; assim vamos aprimorando nossas questões, a
partir do adensamento do estudo.2 Nesse sentido, o mergulho
em campo nos permite coletar informações mais precisas sobre
outras instâncias das práticas sociais, como, por exemplo, que
relações sociais existem, como se dão determinadas dinâmicas
no processo de ação social, entre outros. Desse modo, nossos
questionamentos, que constituem ferramentas de investigação,
por fazerem a passagem da teoria à prática de pesquisa, podem
2 Cabe observar que, em ADC, optamos pela perspectiva da estruturação de questões de pes-
quisa que norteiam nossa investigação. Entendemos que há uma limitação severa imposta
pelo paradigma da formulação de hipóteses que apenas poderiam ser refutadas ou validadas
ao cabo de um estudo, sendo que as perguntas de investigação nos permitem moldar nossas
técnicas e tecnologias para adequarem-se ao que encontramos em campo. Muito se tem
defendido essa forma de fazer ciência, e sobre isso eu sugeriria a leitura de Resende (2008),
bem como de Pardo (2015).

57
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ser robustecidos por meio da imersão em campo. Como, no caso


desta investigação, interessava-me estudar como a resistência se
dá por práticas realizadas por meio de interações à distância, foi
necessário iniciar o mapeamento de práticas sociais de cibera-
tivismo por meio de técnicas de etnografia virtual (HINE, 2004,
2008; POLIANOV, 2013).
Identifiquei diferentes espaços sociais virtuais em que
discursos de oposição a práticas hegemônicas circulavam, tais
como páginas e perfis em redes sociais (pelo maior número de
usuários/as, e consequente maior fluxo de informações, centrei
fogos sobre o Twitter e o Facebook). A partir desse mapeamento,
pude destacar diferentes espaços midiáticos alternativos, como
portais e blogues (“Portal Geledés”, “Revista Fórum”, “Blogueiras
Negras”, “Maria Frô”, “Escreva, Lola, Escreva” etc.).3 A fim de es-
tudar como estratégias de resistência em rede se consolidavam,
mesmo em face de pressões sociais severas, selecionei o caso
Michele Maximino para realizar a análise sobre que se estrutura
este capítulo. A justificativa por tal escolha se dá pela prototi-
picidade do caso que apresenta a violação dos direitos de uma
mulher por um ator social que dispõe de grande poder simbólico
e pela maneira como a violência sofrida por Maximino repercutiu
nos meios de comunicação alternativos.
Nesse sentido, este capítulo, sendo ele próprio a materiali-
zação de uma prática situada de pesquisa, soma-se aos esforços
de muitos outros atores sociais na disputa sobre significados,
tendo em vista que o discurso é entendido como palco de
lutas pelo poder, pois no momento discursivo das práticas os
embates sociais se materializam. É por meio dos atos de lin-
guagem, ou seja, dos textos, que emergem os discursos como
formas particulares de representação da sociedade. Assim, os
discursos se localizam no espaço das oposições, seguindo uma
3 Respectivamente disponíveis em: < http://www.geledes.org.br/#gs.34yPMwo >, <http://
www.revistaforum.com.br/ >, < http://blogueirasnegras.org/ >, <http://www.revistaforum.
com.br/mariafro/>, <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/ >. Acesso em: 15 jan. 2017.

58
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

cadeia dialógica que põe em jogo atitudes responsivas entre


atores sociais.
Essa reflexão evidencia como a seara da ADC é metalinguís-
tica, sendo que os conceitos teóricos sobre que se assenta são
sistematicamente revitalizados pelo próprio fazer científico.
Também nessa perspectiva foi que se consolidou a seleção dos
textos a serem focalizados para, potencialmente, responder às
questões de pesquisa inicialmente estruturadas. Optei pelos tex-
tos “Quadro do programa Agora é Tarde de 3/10/2013” e “Reaças
se ofendem ao serem chamados de reaças” por serem produtos
de práticas sociais distintas, que, por conseguinte, instanciam ao
mesmo tempo em que ocupam lugares e temporalidades sociais
diferentes. Ambos representam o mesmo recorte da realidade,
mas as maneiras como o fazem são diametralmente opostas,
operando em ordens discursivas que conflitam. Na sequência,
apresento o mapeamento desses textos, conforme a ontologia
social do discurso refinada pela professora Resende.

2. CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS, CULTURA E MAPEAMENTO


ONTOLÓGICO DOS OBJETOS DE ESTUDO

Para melhor situar os objetos de análise, é necessário reto-


mar reflexões sobre o campo da cultura e da identidade, afim
de apurar a adequação do marco teórico-metodológico da ADC
aos dados que analisamos. Trata-se de um processo indutivo, em
que a teoria é redesenhada a partir das informações fornecidas
pelo campo. Neste trabalho, em um primeiro momento, parto de
uma reflexão sobre epistemologias que versam sobre a formação
identitária como cerne dos arranjos culturais, traçando um para-
lelo com a microfísica do poder (FOUCAULT, 1981) – teoria que
associa diferentes esquemas de violência ramificados nas mais
diversas práticas sociais visando a manutenção do poder – e as
cadeias discursivas articuladas na sustentação de ideologias –
entendidas como ideários estruturados para/pela sustentação e

59
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

reiteração de projetos de exploração e dominação (THOMPSON,


1995) – e, consequentemente, associadas à construção da vio-
lência simbólica.
Desse modo, antes de apresentar o mapeamento dos textos
nas práticas, volto-me a um breve diálogo com perspectivas de-
coloniais das ciências sociais (NGOENHA, 1993, 2004; SANTOS;
MENEZES, 2010). Essa reflexão é amplificada pelo conceito de
contexto de cultura e de contexto de situação (HALLIDAY, 2004;
BUTT et al., 2001) e pelo de realização discursiva (FAIRCLOU-
GH,2001; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999), a partir dos quais
busco, por meio da materialidade discursiva, compreender como
práticas de violação de direitos e de violência são realizadas
por atores sociais em cadeias contextuais de solidariedade e
resposta.
A cultura engendra e é engendrada por representações, com-
preendidas, aqui, como formas particulares de ver/compreender
o mundo. Há uma imbricação explicitada entre representação e
identificação, sendo que para identificar é necessário representar,
e o mesmo se dá na via contrária, para representar é necessário
identificar. Essa imbricação evidencia o nó cultural em que arran-
jos de representação servem de arcabouço para a ressignificação
das identidades, ao mesmo tempo em que a (não-)estabilização
identitária (HALL, 2003) oferece amplo campo para a formação
de novos arranjos representacionais.
Para Hall (2000) e Silva (2011), a identidade repousa na
diferença, por ser delimitada pelos contrários, em uma equação
bastante simples: o que eu sou se define por oposição ao que
não sou. Essa é a mesma lógica de nomeação dos elementos da
realidade por meio da linguagem humana: o que é tudo aquilo
que as demais coisas não são. Assim, novamente, os conceitos
de representação e identificação se conectam, tendo em vista
que representar também pode ser compreendido como trazer
ao presente (pela origem latina da palavra), e o modo de se

60
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

trazer ao presente algo ausente é por meio de sua nomeação/


identificação. A identidade constrói-se, assim, também discur-
sivamente, pela via da significação não só de si, mas, principal-
mente, do outro.
Na equação da afirmação pela negação, reside o germe da
desigualdade. Devo salientar que a diferença não é problemática,
e que a diferença é que nos faz poder contribuir solidariamente
para a construção de uma cultura plural, cuja pluralidade permite
a sua permanência enquanto eterna construção. No entanto, a
exacerbação das diferenças em nome de projetos de dominação
e exploração leva à construção das desigualdades, por estas os
seres humanos tornam-se desiguais entre si, ou mesmo desse-
melhantes (RESENDE, 2008), sendo impossível, pela construção
da identidade-desigualdade, ver no/a outro/a um ser diferente
em aspectos e igual em humanidade, o que seria viável pela
identidade-diferença.
Pessoas que comungam de uma cultura são solidárias no que
concerne às representações, o que cria coerência/coesão identitá-
ria entre os membros de uma determinada cultura, e que (dentre
diversos outros fatores) garante sobrevivência/manutenção dessa
cultura. Evidentemente, essa delimitação é, como não poderia
deixar de ser, reducionista, visto ser a cultura um emaranhado
complexo. Conforme Bhabha (1998, p. 241):

A cultura como estratégia de sobrevivência é tanto


transnacional como tradutória. Ela é transnacional
porque os discursos pós-coloniais contemporâneos
estão enraizados em histórias específicas de deslo-
camento cultural (...). A cultura é tradutória porque
essas histórias espaciais de deslocamento – agora
acompanhadas pelas ambições territoriais das tec-
nologias “globais” de mídia – tornam a questão de
como a cultura significa, ou o que é significado por
cultura, um assunto bastante complexo. Torna-se
crucial distinguir entre a semelhança e a similitu-

61
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de dos símbolos através de experiências culturais


diversas – a literatura, a arte, o ritual musical, a
vida, a morte – e da especificidade social de cada
uma dessas produções de sentido em sua circu-
lação como signos dentro de locais contextuais e
sistemas sociais de valor específicos. A dimensão
transnacional da transformação cultural – migra-
ção, diáspora, deslocamento, relocação – torna o
processo de tradução cultural uma forma com-
plexa de significação. O discurso natural(izado),
unificador, da “nação”, dos “povos” ou da tradição
“popular” autêntica, esses mitos incrustados da
particularidade da cultura, não pode ter referências
imediatas. A grande, embora desestabilizadora,
vantagem dessa posição é que ela nos torna
progressivamente conscientes da construção da
cultura e da invenção da tradição.

Essa perspectiva tem como escopo os estudos pós-co-


loniais e suas inquietações; apesar disso, podemos, com certa
facilidade, observar como o patriarcado está para o colonialis-
mo, com seus arranjos discursivos violentos, e como estes são
deslocados, realocados e ressiginificados em face dos processos
sociais que ocorrem. Ampliando, pois a reflexão de Bhabha
(1998), entendo que à ideia da cultura como transnacional pode
ser acrescida a instância transmissional que se configura ao
analisarmos que a cultura é prévia aos atores sociais que nela
nascem. Essa trasnmissionalidade é viabilizada (também) pela
instância discursiva
Cabe salientar que adoto a compreensão ontológica do mo-
delo transformacional da atividade social (BHASKAR, 1989), que
não é estruturalista, e, portanto, compreendo que esse complexo
cultural é relativamente permeável a mudanças passíveis de se-
rem instanciadas pela ação humana. Esta pode, então, sustentar
os arranjos tradicionais culturais por meio de sua reiteração, ou
mesmo superá-los, por meio de seu questionamento, por meio de

62
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

formas alternativas de representar/compreender o mundo social.


Evidentemente, essa superação não é feita sem constrangimentos,
tal como observa Bhabha (1998, p. 242):

É a partir desse lugar híbrido do valor cultura – o


transnacional como o tradutório [e o transmissio-
nal] – que o intelectual pós-colonial tenta elaborar
um projeto histórico e literário. Minha convicção
crescente tem sido de que os embates e negociações
de significados e valores diferenciais no interior da
textualidade “colonial”, seus discursos governamen-
tais e práticas culturais, anteciparam, avant la lettre,
muitas das problemáticas da significação e do juízo
que se tornaram correntes na teoria contemporânea
– a aporia, a ambivalência, a indeterminação, a ques-
tão do fechamento discursivo, a ameaça à agência, o
estatuto da intencionalidade, o desafio a conceitos
“totalizadores”, para citar apenas alguns exemplos.

A mudança é possível, mas encontra inúmeros obstáculos


– reação –, e nessa perspectiva, a ação de resistência deve ser
um permanente fazer. O caminho da resistência se desdobra
(também) sobre a ação discursiva, e, desse modo, o complexo de
cada arranjo – de agressão e de violência – articula-se em redes
discursivas. Essas redes (compostas por momentos de práticas
sociais – e os textos/eventos discursivos resultantes) permitem
observar como a dinâmica das práticas sociais se configura. Assim,
o interesse sobre ação-resposta-reação se justifica, na medida em
que, muito mais que uma interação discursiva, permite investigar
como as práticas sociais de repressão/manutenção são confron-
tadas pelas de resistência.
Nessa perspectiva, e tomando a teoria foucaultiana que ob-
serva a violência como parte fundamental para a manutenção do
poder, sendo o poder resultante de uma transmutação microfísica
da violência que se espraia a todas as práticas sociais em uma

63
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sociedade desigual (FOUCAULT, 2012), podemos compreender


como o binômio identidades-representações articula-se com a
ação sobre os elementos sociais. Numa cultura como a nossa,
que sofre do/pelo legado colonial, em que diferentes eixos de
sofrimento humano são reiterados sistêmica e sistematicamente,
a violência pode ser compreendida como modeladora das ativi-
dades humanas. Essa modelação pode, por sua vez, ser mapeada
pela materialidade eventos/textos.
Bhabha (1998) nos oferece contribuições para a reflexão so-
bre como a atividade discursiva viabiliza a produção/veiculação
de significados sociais e de como a relação entre a performance
individual e as estruturas sociais pode encontrar construtos no
potencial semiótico, que é de caráter social, compartilhado. Ele
propõe o conceito de tradução cultural, que podemos associar
ao mapa ontológico da atividade discursiva, formulado por
Fairclough (2001, 2003) e por Chouliaraki e Fairclough (1999).
Assim, formas de compreender o mundo – discursos –, formas
de agir sobre o mundo – gêneros – e formas de ser no mundo
– estilos – são vetores culturais que unificam um determinado
grupo social ao redor de arranjos cognitivos, performativos e
identitários.
Nessa perspectiva, quase todas as semanas, algum pro-
grama midiático, dito humorístico, seja do tipo que encadeia
sketches repetitivos, tais como Zorra Total, ou os inspirados pelas
técnicas de improvisação empregadas nos vaudevilles estaduni-
denses, tais como inúmeros stand up comedy brasileiros, trazem
algum texto (entendendo-se texto de maneira ampla, como a
concretização de um evento discursivo) que articula discursos
violentos na representação genérica de grupos sociais despri-
vilegiados, ou mesmo na representação específica de determi-
nados atores sociais pertencentes a grupos minoritários. Essas
ações, que têm lugar privilegiado nos caros e restritos espaços
midiáticos tradicionais, no entanto, não permanecem sem res-

64
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

posta. Ao contrário, hoje, com a apropriação e ressignificação de


tecnologias e espaços virtuais, vozes questionadoras do status
quo são ouvidas e contribuem para o arranjo de resistência às
práticas de violência.

3. DA PRÁTICA AO EVENTO, DA ORDEM DE DISCURSO AO TEXTO

Desse vasto escopo que se situa entre agressão e contestação,


selecionei, para o presente trabalho, um texto em que atores vincu-
lados à grande mídia – Danilo Gentili e Marcelo Mansfield – usam
a imagem da maior doadora de leite do Brasil, a pernambucana
Michele Maximino, para “fazer piada”. E a resposta articulada pela
professora Dolores Aronovich Aguero (UFC), mais conhecida como
Lola Aronovich, que mantém um blogue autônomo (sem vinculação
a qualquer instituição) desde 1998, e que conquistou espaço na
internet, em especial, em razão das redes sociais.
O primeiro texto foi veiculado no dia 3 de outubro de 2013,
pela emissora de televisão Bandeirantes, no programa Agora é
Tarde. A partir da transcrição das falas do programa, organizei
dados relativos à violência contra a mulher e, especificamente,
contra Maximino. Já o segundo, foi veiculado, no blogue Escreva,
Lola, escreva,4 no dia 31 de outubro de 2013, como postagem
intitulada “Reaças se ofendem ao serem chamados de reaças”,
em que a autora critica o referido programa, articulando uma
crítica mais abrangente sobre a postura reacionária e à mitigação
dos discursos conservadores. Assim, os dados são pertinentes à
violência e à resistência.
Retomando a figura esquemática proposta por Resende
(2009), busquei, modelar, para fins de estudo, o caso a que me
dedico neste artigo, tal como segue na Figura 1:

4 Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br>. Acesso em: 15 mar. 2017.

65
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 1: Mapeamento dos objetos de análise no estrato realizado

Fonte: elaboração própria.

Na Figura 1, busquei esquematizar o mapeamento ontológi-


co, no estrato realizado e conforme a sucessão de espaços-tem-
pos, dos objetos de análise focalizados neste artigo – o quadro
do programa “Agora é Tarde” e a postagem no blogue Escreva,
Lola, Escreva. Em cinza escuro, figura o evento, ou a culminância
de eventos originados da prática de doação de leite materno por
Maximino e sua família, a cor destaca que não se trata especi-
ficamente de um texto, mas de uma ação material que envolve
todas as facetas da prática. As outras ações são essencialmente
discursivas (são os rastros das práticas que podemos acessar ma-
terialmente), sendo que optei por representá-los com cinza claro
para quando se trata de um conjunto de textos (a divulgação do
evento, por exemplo, não se deu por um único canal, nem por um
só texto, houve uma série de matérias e reportagens em diferen-
tes veículos de comunicação, mas em que há uma predominância
de textos produzidos pela mídia hegemônica) e em branco para
destacar os textos individuais focalizados para análise.
As setas em cinza claro evidenciam a sequencialidade
temporal dos momentos em que as ações de desenrolaram. A
sobreposição dos quadros buscou representar a relação dialó-

66
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

gica entre as ações, e a seta de duas pontas expressa o caráter


explicitamente intertextual dos textos focalizados, sendo o de
Aronovich responsivo ao de Gentili/Mansfield. Essa relação expli-
citada na materialidade discursiva foi um dos fatores que me fez
selecionar ambos os textos para análise sistemática.
Ainda sobre a situação ontológica dos produtos textuais
focalizados, é necessário, localizá-los nas práticas de que se origi-
nam. Tratam-se de práticas distintas, mesmo que se entrecruzem
na convergência midiática possibilitada pela Internet. O primeiro,
quadro do programa “Agora é Tarde” do dia 3 de outubro de
2013, trata-se de um texto multimodal e multimídia em que há
o emprego de diferentes modalidades linguísticas (linguagem
imagética, linguagem corporal/facial, linguagem verbal escrita e
falada oralmente), bem como de distintas técnicas de teatro hibri-
dizadas com formas de comunicação jornalística. Cabe destacar
que o formato do programa é copiado de modelos estadunidenses
de “Late night talk show” (que, em si, poderíamos descrever como
gêneros situados), sendo que até mesmo aspectos cenográficos
e de vestuário são reproduzidos das versões originais. Isso evi-
dencia como o quadro do programa que focalizamos se situa
em uma prática social já assentada no tempo pela atualização
reiterada em diferentes lugares, até mesmo em diferentes países.
Essa prática apresenta limitações/constrangimentos para sua
realização, centralmente por implicar muitos recursos materiais/
financeiros. Assim, há um padrão objetivo para o perfil do ator
que pode ocupar posições nesse tipo de prática, o que, em uma
sociedade atravessada pelos eixos da colonialidade, do patriar-
cado e do capitalismo, deflagra a apartação social, reiterando
a divisão de pessoas em relação aos espaços. Isso é ainda mais
significativo quando se observa que se trata de um programa
de televisão, amplamente divulgado por ser da televisão aberta.
Desse modo, quem ocupa uma posição nessa prática tem o pri-
vilégio de ocupar, também, um espaço discursivo privilegiado,

67
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

a partir do qual as opções de representação de recortes da re-


alidade terão o potencial de reverberarem em inúmeras outras
produções textuais. Trata-se, pois, de um espaço de difusão de
discursos muito potente.

Figura 2: Situação do texto “Quadro do programa Agora é Tarde”


no mapa ontológico

Fonte: elaboração própria.

O programa em foco, é, pois, produto material de uma prá-


tica social explorada por empresas de comunicação, sendo uma
atualização do modelo para o contexto nacional. Ao mesmo tem-
po, a realização da prática situada do programa “Agora é Tarde”
encontrou-se prevista, sendo que havia uma agenda semanal de
exibição em que o programa foi veiculado entre 29 de junho de
2011 e 27 de março de 2015. Isso a consolidou como suporte
para textos passíveis de serem sistematicamente consumidos
por telespectadores/as da televisão aberta (especificamente do

68
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

canal Bandeirantes), o que amplifica seu potencial de construir


significados ou de pautar formas de ver o mundo a partir de um
determinado prisma ideológico.5
A prática focalizada está diretamente relacionada ao eixo de
produção comercial da indústria cultural; assim, encontra amplo
financiamento por meio da venda de espaços para publicidade,
de matérias pagas, entre outras práticas mercantis. Assim, o
volume de recursos financeiros envolvidos na realização de tal
tipo de prática evidencia a sua ligação com seguimentos sociais
detentores de poder. Não obstante, cabe frisar que Danilo Gen-
tili, Marcelo Mansfield e a TV Bandeirantes dispõem de recursos
simbólicos e materiais que lhes asseguram acesso à justiça e à
proteção de seus interesses. Isso, em última instância, pode ex-
plicar como o “direito” de expressar discursos de ódio em canais
abertos de concessão pública sobrepõe-se ao direito a ter sua
dignidade respeitada.
O mapeamento ontológico nos fornece informações que
permitem adequar as ferramentas de análise discursiva (que se-
rão mais bem descritas adiante) aos dados de que dispomos, ao
mesmo tempo em que favorecem o processo de autorreflexão
sobre o próprio trabalho de pesquisa, permitindo questionar se
nossas perguntas podem ser respondidas a partir do estudo dos
dados que selecionamos. Outro aspecto de relevância para essa
etapa de análise é que ela possibilita, ao final do trabalho, por
compreender a situação de tal texto em uma determinada prática,
extrapolar os dados situados e mapear mecanismos de produção
de significados que estariam potencialmente disponíveis nos
estratos mais abstratos da realidade social, e, assim, contribuir
para sua superação.
Passando ao segundo texto focalizado – “Reaças se ofendem
ao serem chamados de reaças”, de Aronovich –, a situação dentro

5 Para uma discussão conceitual de gêneros e suportes, sugere-se a leitura de Acosta e Resende
(2014).

69
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de uma prática de manutenção de blogues de ciberativismo suge-


re que se trata de uma prática muito mais aberta à participação
por qualquer ator social que detenha o bem simbólico de ser
letrado e o bem material de ter acesso à Internet, ainda que para
ser bem-sucedido/a como blogueiro/a outros capitais possam ser
necessários, e variáveis entre campos temáticos diversos. Eviden-
temente, a maior ou menor visibilidade do blogue dependerá de
uma série de fatores, centralmente o tipo de comunicação para
divulgação sendo feito por meio de redes sociais gratuitas, tais
como o Facebook e o Twitter.
Cabe destacar que o blogue focalizado data de 1998, perí-
odo em que esse tipo de espaço virtual – blogue – tinha maior
relevância no espectro da rede mundial de computadores. Alguns
dos blogues do começo dos anos 2000 migraram para portais de
empresas de comunicação (como o “Maria Frô”, hoje alocado no
portal da Revista Fórum) ou incorporaram ferramentas de arreca-
dação de recursos para sua manutenção, como é o caso do blogue
Escreva, Lola, Escreva. Esse tipo de financiamento encontra muita
ressonância no ambiente de militância, por ser estruturado sob
uma lógica de solidariedade. Grupos hegemônicos, entretanto,
têm ressignificado tal tipo de prática, como nas campanhas presi-
denciais de Barack Obama, que receberam doações pelo meio do
crowd funding. Ainda sobre as ferramentas de arrecadação, hoje,
no contexto político posterior ao golpe de 2016, em que houve
o cerceamento da publicidade estatal, agora restrita a veículos
da mídia latifundiária, vemos muitos veículos da mídia alternativa
abrindo canais de assinatura voluntária e contando com formas de
financiamento coletivo. Vale, assim, observar que a prática social
de resistência contra-hegemônica que analisamos configura-se a
partir de uma lógica de economia criativa e solidária.
Vejamos a Figura 3:

70
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 3: Situação do texto “Reaças se ofendem ao serem chamados de reaças”


no mapa ontológico

Fonte: elaboração própria.

Quando da conclusão deste artigo, a professora Dolores


Aronovich estava enfrentando um ataque promovido por um
grupo de masculinistas (como se autointitulam) que tentava
derrubar seu blogue do ar por meio de denúncias falsas junto
ao Google, plataforma que suporta seu blogue. Por alguns dias,
o blogue foi retirado do ar, ao que se seguiu uma campanha de
apoio da rede de leitores/as e ativistas. Houve muitas tentativas
de contatar a empresa por parte de Aronovich, até que o servi-
ço foi reestabelecido e seu blogue retornou ao ar. Em texto em
que narra o acontecimento,6 a professora questiona a falta de
proteção a blogues e sites:
6 Disponível em: < http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2017/01/vencemos-como-o-
google-devolveu-o-meu.html >. Acesso em: 14 jan. 2017.

71
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

É simples: se empresas internacionais querem ser


vistas como parceiras dos direitos humanos, se que-
rem ser reconhecidas como parte do combate ao
sexismo, à homofobia, ao racismo, à violência (e hoje
a enorme maioria das empresas quer ter essa ima-
gem), elas devem promover, não perseguir, páginas
que lutam por esses mesmos ideais. E, quando uma
empresa acata denúncias falsas vindas de mascus,
quando demora dias para responder a pedidos de
uma cambada de gente ligada a direitos humanos,
soa sim como perseguição.

A violação que observamos aqui é consequência da falta


de poder simbólico da blogueira, sendo seu blogue um canal
independente. Entretanto, é interessante observar como a ma-
nutenção de um pequeno blogue (são cerca de 4200 postagens,
5935 seguidores/as, conforme contador do blogue no dia 14
de janeiro de 2016) com a publicação de textos sobre direitos
de minorias causa efeito a ponto de gerar a perseguição que a
blogueira vem sofrendo.7
Assim, ao realizar a análise dos dois textos focalizados,
contrastamos práticas sociais de matrizes distintas, articuladas
a interesses opostos (hegemônicos e contra-hegemônicos), par-
ticipando de estruturas econômicas bastante diversas. Podemos
ver que a atividade discursiva, os suportes utilizados, os gêneros
realizados, os estilos performados, os discursos articulados têm,
potencialmente, constituições dialeticamente relacionadas com
outros momentos das práticas sociais. Entretanto, a análise mi-
nuciosa de estruturas linguístico-discursivas é o que permitirá à/
ao analista de discurso responder às suas questões de pesquisa,

7 A violência direta contra a blogueira não é novidade, sendo que, há cerca de seis anos,
Aronovich tem sido ameaçada de morte por diferentes homens articulados em redes de
violência. Em um dos casos, houve uma carta endereçada ao reitor da Universidade Federal
do Ceará, exigindo que Aronovich fosse exonerada; do contrário, a UFC seria alvo de um
atentado que visaria matar mais de trezentas pessoas. Atualmente, ela move uma série de
processos civis e criminais, objetivando seguir com sua produção e garantir minimamente
condições dignas de vida para si e sua família.

72
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

sistematizar o conhecimento oriundo de suas pesquisas, e, em


última instância contribuir com o campo.

4. TRATAMENTO DE DADOS LINGUÍSTICOS E ANÁLISE DISCURSIVA

Os dados com que trabalhamos são de caráter linguístico,


sua materialidade reside na articulação da linguagem, por isso,
podemos nos situar na divisão positivista dos campos de saber
como linguistas, sendo que nossa unidade de estudo mínima são
os textos, globalmente analisados. Assim, estaríamos no campo
da linguística textual; todavia, o tratamento que devemos confe-
rir aos dados deve atentar para a abertura do sistema semiótico
aos processos sociais, é dizer, a depuração dos dados, por meio
de procedimentos de seleção/organização (seja manualmente,
como no caso desta análise, ou eletronicamente, por meio de
softwares de análise de dados qualitativos) precisa estar direta-
mente articulada a aspectos sociais (por exemplo, distinções de
espaço-tempo, posições objetivas previstas nas práticas e como
são ocupadas subjetivamente por atores sociais, entre outros,
conforme observa Resende).
Após essa etapa de organização dos dados, podemos verificar
que tipos de dados se apresentam em cada texto, e, então, aplicar
categorias analíticas mais adequadas à sua compleição. Assim,
efetuamos a análise a partir de categorias discursivas, estrutura-
das pelo mapeamento da regularidade (mais ou menos estável) de
realizações de significados sociais na materialidade da linguagem.
Essas categorias funcionam como ferramentas metodológicas,
sendo a ponte entre teoria e prática, que viabilizam identificar,
no texto (que é um produto individual, mas socialmente constran-
gido/possibilitado), traços do potencial semiótico, que, por sua
vez, permitem compreender como as práticas sociais (portanto,
compartilhadas) se estruturam. Essa especificidade do tipo de
trabalho que desempenhamos nos situa no campo da linguística
discursiva, sendo imperativo considerar o complexo social ao

73
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

tratarmos os dados de materialidade linguística. Nossos dados,


tal como os processamos, são dados discursivos, que permitem
analisar a linguagem em uso.
A análise de discurso linguisticamente orientada vem, nes-
sa perspectiva, preencher o espaço de conhecimento entre o
processo social e sua faceta linguística, ao entender que existe
uma “correlação entre a estrutura social e a estrutura linguísti-
ca” (SILVA, 2009, p. 66). Aqui, novamente, é necessário retomar
a ontologia crítica do discurso para compreender que tipo de
categorias pode ser empregado e em que contexto. Para tanto,
a noção de ordens de discurso (OD) instrumentalizada pelos
estudos em ADC a partir de Foucault (2010 é chave no estudo
minucioso do texto. Cabe, pois, retomar o modelo transforma-
cional da atividade discursiva – MTAD.
O MTAD é uma instrumentalização do modelo transforma-
cional da atividade social – MTAS (BHASKAR, 1998) – que se vale
de três eixos de diálogo transdisciplinar – dos estudos de Fou-
cault (2008), de quem retoma o conceito de ordens de discurso;
da teoria de práticas sociais de Harvey (1996); e da Linguística
Sistêmico Funcional (LSF; HALLIDAY, 2004). As práticas, sendo
entidades organizacionais intermediárias e estando em um nível
menos abstrato que estruturas sociais, oferecem aos atores so-
ciais formatos para sua ação, conforme o MTAS. Já para o MTAD,
as entidades que oferecem um ordenamento para a realização do
potencial semiótico são as ordens de discurso, é nelas que reside
o entrecruzamento teórico a partir do qual se podem desenhar
ferramentas metodológicas.
Conforme a atualização de Fairclough, pela aproximação
com a LSF, há três significados do discurso essenciais, articulados,
cada um, a um componente ontológico das OD. Assim, temos
que: (1) o eixo do poder está relacionado ao significado acional,
que seria estruturado por meio de gêneros (abstratos e social-
mente compartilhados); (2) o eixo do saber está relacionado ao

74
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

significado representacional, que seria estruturado por meio de


discursos (abstratos e socialmente compartilhados); e (3) o eixo
da ética está relacionado ao significado identificacional, que
seria estruturado por meio de estilos (abstratos e socialmente
compartilhados). Os significados do discurso são internaliza-
dos, de maneira mais ou menos estável, por traços linguísticos
determinados. É com base nessa relativa regularidade que são
formuladas as categorias discursivas que são agrupadas em ter-
mos dos significados discursivos. Assim, para cada significado
do discurso há categorias associadas. Para compreender tanto o
funcionamento dessas categorias quanto sua própria essência,
em termos teóricos, é possível (a exemplo do trabalho sobre os
gêneros de SWALES, 1990) propor uma aproximação com o con-
ceito de prototipicidade, da linguística cognitiva. Entende-se que
esses significados estão presentes em todos os textos em maior
ou menor medida, sendo eixos de expressão na materialidade
discursiva de aspectos das práticas sociais.
Assim, a partir da compreensão ontológica dos significados
discursivos, é possível mapear formas relativamente estáveis de
realização linguística por meio de categorias analíticas teórico-
práticas. Esse denso complexo teórico é que nos permite acessar,
no texto, significados sociais. Para tanto, é mister avaliar que
categorias são mais profícuas para cada conjunto de dados, haja
vista que um mesmo dado pode informar sobre diferentes aspec-
tos dos significados discursivos, sendo possível aplicar diferentes
categorias a cada dado, mas, como bem observa Resende (neste
livro), apenas com o olhar treinado pela sistematização de várias
análises, somos capazes de aguçar nossa capacidade de adequar
as ferramentas ao material com que trabalhamos.
Retomando as questões da pesquisa piloto, ao serem con-
frontadas com os textos, puderam ser apuradas (aí reside uma
das principais características das pesquisas em ADC, que é a
plasticidade). Desse modo, ao observar, como já indiquei na seção

75
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

anterior, a reprodução bastante estável de gêneros de programa


de TV, ou ao constatarmos uma grande densidade de estruturas
avaliativas, podemos estruturar um conjunto de questões de
análise (observe que há uma hierarquia entre as questões an-
teriores, de pesquisa, que balizam todo o trabalho, e estas que
são de caráter prático e objetivo). Aqui também cabe focalizar
a co-ocorrência de diferentes categorias discursivas, por meio
de sua aplicação simultânea a um mesmo excerto analítico, e a
elaboração de questões de análise nos permite sistematizar de
forma mais aprimorada essas combinações. Vejamos algumas
questões de análise possíveis:

a. Para cada um dos textos focalizados, quanto à sua estrutura de


gênero, há hibridação ou formas não esperadas para tal contexto?

b. Ainda sobre a estrutura macro dos textos, que recursos coesi-


vos são empregados? Há alguma regularidade de realização com
estruturas que evidenciem o estilo, tal como tropos ou metáfora?

c. Quanto à imbricação estilo e discurso, há estruturas de ava-


liatividade combinadas com a representação de práticas ou de
atores sociais (sejam nomeados ou não)? Se sim, qual a maior co-
ocorrência entre avaliação e categorias de atores representados?

d. Quanto à intertextualidade nos dados analisados, existe a


citação direta de textos, trechos de textos ou mesmo a repre-
sentação de autores de textos cujos discursos articulados são
antagonizados pelo/a produtor/a?

e. Para além da construção de identificações que suscitem a


resistência, há elementos que contribuam para a proposição de
projetos alternativos?

76
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

A partir dessas questões de análise, podemos aprofundar


nossas leituras acerca das categorias cuja análise pareça ser mais
profícua (sem, claro, para tanto, excluir qualquer outra categoria
que, durante o processo de análise valha ser trabalhada).8 Para as
análises que apresento na próxima seção, foram selecionadas as
categorias analíticas discursivas, estrutura de gênero, coesão e
intertextualidade – no eixo do significado acional –, representa-
ção de atores sociais, significado de palavra – no eixo do signi-
ficado representacional –, e metáfora, avaliação, pressuposição
e tropo – no eixo do significado identificacional. Como aqui se
apresenta um recorte analítico sucinto, as questões elencadas
não serão esgotadas.

5. VIOLAÇÃO E SOLIDARIEDADE

Nesta seção, apresento uma sistematização das análises que


realizei no estudo do caso. Cabe destacar que são muito mais
extensas e detalhadas as análises construídas quando de uma
pesquisa, mas o que interessa à comunicação científica é a sín-
tese dessas análises que permita sustentar a explanação crítica.
Por essa razão, nem todos os dados trabalhados figuram aqui.
Trata-se de uma opção metodológica, tendo em vista a necessi-
dade de, a partir do trabalho empírico, retornarmos à teoria com
contribuições que possam ser empregadas alhures.
Outra opção metodológica é de como se pode apresen-
tar essa sistematização das análises, sendo possível reunir os
dados segundo a categoria aplicada, ou apresentar as análises
conforme a lógica cronológica dos textos, entre outras formas.
No caso desta seção, optei por dividir os dados conforme os
textos focalizados, bem como respeitar a sequência formulada
pelos autores e pela autora. Abordo, então, de início, o texto
8 Sugiro a leitura de Fairclough (2003); Resende (2008); Ramalho (2010); Resende e Ramalho
(2011); Acosta (2012), entre outros que apresentam glossários de categorias discursivas
relativamente fáceis de serem acessados para adensar nosso conhecimento sobre essas
ferramentas.

77
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

“Quadro de notícias comentadas do programa Agora é Tarde de


3 de outubro de 2013” e, na sequência, o texto que foi formula-
do como uma resposta a este primeiro, “Reaças se ofendem ao
serem chamados de reaças”.

6. NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E O DIREITO PRIORITÁRIO DE


GANHAR DINHEIRO

Inicialmente, centro-me sobre o texto multimodal – texto


verbal e texto imagético dinâmico construindo uma unidade
significativa – que configura o programa Agora é Tarde. Nele, em
um minuto e 34 segundos, Danilo Gentili e Marcelo Mansfield
constroem uma representação violenta de Maximino, técnica em
enfermagem da cidade de Quipapá, Pernambuco, que é a maior
doadora de leite humano do Brasil.9 Vejamos o primeiro excerto
analítico, que coincide com o que poderíamos chamar de man-
chete ou chamamento do texto televisivo:

(1) Mais um recorde brasileiro no Guiness Book, uma pernambu-


cana doou mais de trezentos, eu disse trezentos, litros de leite.

Essa fala é proferida em um quadro que simula um noticiá-


rio, estando o apresentador do Late night talk show focalizado da
cintura para cima, em plano fechado pela câmera. A performance
realizada por Gentili poderia ser associada a uma espécie de
leitura sensacionalista de manchete, como a que faziam vende-
dores de pasquins. Na sequência, ouvimos risos da plateia, vozes
masculinas (provavelmente de Mansfield aí incluída) captadas
pelos microfones abertos e a imagem corta para Mansfield que
tem na mão um copo de um líquido branco (semelhante a leite).
Ele faz que ia tomá-lo e, em seguida, faz cara de asco e guarda
o copo sob sua bancada.

9 Disponível em: <http://micheledoandoamor.org/web/>. Acesso em: 30 nov. 2013.

78
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Por si só, o texto verbal oral não traz grande carga semânti-
ca, a não ser pela seleção de “pernambucana”, que pode indicar
um preconceito de origem, sendo Gentili do sudeste brasileiro
e Maximino nordestina, e pela repetição do feito “eu disse tre-
zentos litros”. Na superfície do texto, temos uma divulgação,
aparentemente sem julgamento de valor, de um fato. No entan-
to, a sequência, arquitetada na construção do ato enunciativo
deflagra o valor pejorativo atribuído ao ato de amamentar e ao
leite humano. Nesse contexto, texto verbal e imagético estão
imbricados, sendo que não há sentido completo sem a leitura dos
dois, o que conforma o texto multimodal pleno em significado e
que instancia efeitos sociais potenciais.
É importante que, como analistas de discurso, tenhamos
em mente que o texto é fruto de uma série de escolhas feitas de
maneira mais ou menos consciente; entretanto, no caso de uma
produção televisionada, cada mínimo detalhe é pensado – ilumi-
nação, enquadramento, cenografia, entonação, sequencialidade,
até mesmo a orientação da produção para que haja palmas e risos
por parte da plateia em momentos específicos da transmissão.
Trata-se de uma composição de gênero muito sofisticada e que
envolve uma série de tecnologias discursivas.
Assim, a sequência descrita acima, potencialmente, foi pen-
sada para provocar riso nos/as telespectadores/as do programa.
Essa estruturação genérica evidencia a hibridação de diferentes
gêneros – noticiário, leitura de manchete por vendedor de pas-
quim, sketch cômico, entre outros –, exigindo dos/as produtores/
as textuais o domínio de técnicas específicas de comunicação.
Como observado, para ocupar posições objetivas potencialmente
previstas na prática desse tipo de programa, há a necessidade de
que os atores detenham um conjunto de características que lhes
possibilite um determinado perfil.
Na sequência do texto, o leite materno, bem como o ato
de amamentar, é representado por meio de escolhas lexicais

79
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

bastante marcadas pelos atores envolvidos no ato. É necessário


entender que, ao representar um elemento da realidade social,
selecionamos determinados discursos ou esquemas discursi-
vos (uma cadeia de escolhas linguístico-discursivas que são
associadas), sendo que uma escolha em um determinado ponto
instancia caminhos possíveis para a sequência do arranjo. Esses
esquemas, como vimos, engendram, igualmente, esquemas ou
arranjos identitários. Segundo Resende e Ramalho (2006), as
escolhas lexicais (mapeadas na categoria significado de palavra)
em textos podem evidenciar os discursos a que textos se filiam.
Analisar a maneira como se dá textualmente a representação de
atores sociais também tem demonstrado ser bastante produtivo,
por permitir que se identifiquem “posicionamentos ideológicos
em relação a eles, bem com a suas atividades” (SILVA, 2009, p.
67). Essa categoria foi amplamente explorada por van Leeuwen
(2008), que elaborou “uma descrição sociossemântica minuciosa
dos modos pelos quais atores sociais podem ser representados”
(RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 72).
Tendo isso em vista, focalizemos, agora, os excertos (2) e (3):

(2) Gentili – Trezentos litros. Em termos de doação de leite ela


já tá quase alcançando o Kid Bengala (risos – diferentes timbres
– e sonoplastia)
Mansfield – Qual o tamanho das teta? [sic.]
Gentili – Tem foto dela aqui.
Mansfield – Tem foto?

Na sequência do diálogo, a imagem corta para uma foto,


divulgada sem autorização, de Michele com um avental semia-
berto, touca e máscara, que, posteriormente, soubemos que foi
feita por seu marido quando sua filha caçula nasceu prematura
de sete meses.10 Ao que segue a fala de Mansfield:
10 Para compreender melhor o caso, sugere-se acessar as seguintes matérias, mencionadas
pelo professor Ederval Trajano em conversa por meio virtual: “A solidariedade vai vencer
a estupidez”, de Valéria Mendes (disponível em: <http://www.uai.com.br/app/noticia/

80
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

(3) Mansfield – Gente, isso não é uma espanhola, é uma América


Latina inteira.

Alguns risos são ouvidos e há uma virada de bateria que


remete a uma estrutura reconhecida em programas estaduniden-
ses e repetida até mesmo oralmente como uma sonoplastia que
validaria o que estaria sendo dito por ser uma “grande sacada”.
Nos excertos (3) e (4), há um encadeamento de representações
que coisificam Maximino e, de forma generalizante, reificam a
condição feminina: “doação de leite” comparada à ejaculação
do ator pornô Kid Bengala – erotização do ato de amamentar/
doar leite; o emprego de “teta” para representar/referir/nomear
os seios – animalização da pessoa representada; “isso” para
representar à Maximino pelo tropo11 metonímia – objetifica-
ção, a mulher/o ser humano deixa de ser humano para ser um
objeto retomado pelo pronome demonstrativo, e “espanhola/
América Latina inteira” – novamente erotização dos seios, ao
relacionar seu tamanho avolumado, pela amamentação, com o
potencial para a realização de uma manobra sexual conhecida
como “espanhola”.
Nesse curto trecho, é possível observar uma cadeia discursiva
em que uma escolha discursiva condiciona o rol de possibilidades
representativas. Essa cadeia segue até o fim do quadro:

saude/2015/03/02/noticias-saude,188024/a-solidariedade-vai-vencer-a-estupidez-danilo-
gentili-e-mae-record.shtml >, acesso em: 14 jan. 2017) e “Maior doadora de leite materno
do Brasil perde mais uma batalha”, de Ederval Trajano (disponível em: < http://www.prag-
matismopolitico.com.br/2014/02/maior-doadora-de-leite-materno-do-brasil-perde-batalha.
html >. Acesso em: 14 jan. 2017). Em julho de 2017, Michelle Maximino ganhou em última
instância indenização por danos materiais e morais e a obrigatoriedade de um pedido de
desculpas.
11 A respeito do tropo, Viviane Vieira observa: “O tropo, de notável interesse para a pesquisa,
refere-se ao uso figurado da linguagem voltado para ocultar, negar, obscurecer relações
assimétricas de poder. Com base nessa estratégia, sustentamos, por exemplo, a idéia de que
hibridismos discursivos em propagandas de medicamento, sobretudo no tocante a aspectos
relacionados aos gêneros do discurso, podem operar ‘metáforas acionais’ ideologicamente
orientadas para ofuscar assimetrias entre ‘peritos’ e ‘leigos’, tanto em assuntos de saúde
quanto de publicidade” (RAMALHO, 2010, p. 59).

81
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

(4) Gentili – Marcelo, temos um termo de cavalheiros usado


nesse programa, se chama ... (trecho censurado com ruído de
buzina). Põe a foto dela de novo. Ó, aí, tá ela em cima e plutão e
saturno logo abaixo. Depois dela ver que ela não ia ganhar nada
doando leite, ela resolveu vender. Olha:

Na sequência, a câmera corta para uma montagem da foto de


Maximino em uma caixa que remete às embalagens tetrapack de
leite condensado da marca “Leite moça”, em que se pode ler em
letras azuis “Leite da moça”, numa espécie de paródia. Ouvem-se
risos enquanto Gentili faz careta.
Podemos analisar que o “acordo de cavalheiros” seria relativo
a ajudar o companheiro, permitindo que ele visse novamente
a foto de uma mulher com seios grandes. Esse “acordo” entre
iguais permite que Gentili descreva os seios de Maximino como
planetas, repisando o espanto pueril com o tamanho dos seios da
lactante, o que novamente produz o efeito potencial de reificação
da representação feita, sendo a mulher desumanizada, represen-
tada por partes de seu corpo que são associados a planetas, o que
reforça a relação de fetichização estabelecida na representação.
A reificação é ainda adensada quando se representa o ato de
doação como uma jogada de marketing, pela pressuposição de
que Maximino estaria tentando “ganhar” algo. Por fim, a mulher
é exposta novamente ao ridículo, tendo sua imagem associada à
produção industrial de leite. Assim, o corpo da mulher, o ato de
produzir leite materno, o ato de doação é esvaziado de seu sen-
tido inicial, em que há o protagonismo da mulher que opta pela
solidariedade. Ao mesmo tempo em que há esse esvaziamento,
há um preenchimento de significados relacionados à mercanti-
lização do corpo feminino e das ações que, potencialmente, só
uma mulher pode realizar.
De forma esquemática, podemos representar a cadeia dis-
cursiva do quadro analisado como:

82
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 4: Cadeia discursiva de representação de Michele Maximino

Fonte: elaboração própria.

Nessa perspectiva, a cadeia discursiva que se assenta na


cultura patriarcal é compartilhada por diferentes atores sociais
– “acordo de cavalheiros” – que selecionam formas de repre-
sentar vinculadas a estratégias sociodiscursivas que têm, como
efeito potencial, a sustentação da hegemonia masculina (devo
dizer, do homem branco pertencente a uma elite econômica).
Dessa maneira, o texto configura-se respondendo a objetivos
ideológicos (arranjos simbólicos articulados a projetos de do-
minação e exploração). A cultura, aqui, é o caldeirão de onde
são selecionadas formas de representar/ver o mundo, e trata-se
de um arranjo cultural em que o seio da mulher é visto apenas
como elemento de fetiche para a satisfação do homem, sendo
que qualquer outra função sua é desvalorizada e ridicularizada,
como pode ser evidenciado na crítica feita por Maximino e que
reproduzi como epígrafe deste capítulo. Ao mesmo tempo, essa
cultura é conformada nos valores individualistas, assim, seus par-
ticipantes são incapazes de ver um ato de doação sem associá-lo
a alguma forma de lucro pessoal.
Muito além de reificar uma pessoa específica, o texto desu-
maniza a todas as mulheres que, como Michele Maximino, são
trabalhadoras, mães, cidadãs, e principalmente aquelas que saem

83
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

do modelo tradicional, por exemplo, por decidirem o que farão


de seus corpos, não evitando mostrar os seios durante o ato da
amamentação, como seria forçoso aos olhos de uma sociedade
que reifica corpos e vidas. A violência, nesse momento, articula
representação e identificação, sendo que a hegemonia ressoada
nas vozes dos autores do texto analisado é confrontada por uma
identidade alternativa de mulher/família (haja vista que o maior
parceiro de Michele Maximino é seu marido, tal como se pode
ler no site “Michele doando amor”). As construções discursivas
têm como efeito potencial a construção de uma identidade de
gênero aceitável e do expurgo da identidade de gênero que não
beneficia o status quo, que, ao contrário, o contesta.
Cabe observar que Gentili está sendo processado por esse
texto e pelas consequências desastrosas que trouxe à Michele
e à sua família. Na cidade em que vivia, Maximino passou a ser
coagida por diferentes pessoas que, inspiradas no programa,
sentiram-se autorizadas a chamá-la de “vaca”, “vaca do Gentili”,
entre outras agressões que a levaram a mudar-se de cidade. O
destaque e o prestígio das pessoas que produziram o texto ori-
ginal, bem como seu espaço na grande mídia, conferem poder
a suas práticas discursivas, sendo que o que dizem passa a ser
verdade e a violência que cometem, a legitimar qualquer outra
forma de violência contra a principal prejudicada, Michele, mas
também a qualquer outra mulher que amamente.
Nessa mesma lógica, recentemente, temos visto diversas for-
mas de cerceamento da liberdade de mães amamentarem seus/suas
filhos/as em espaços públicos, sendo que na cidade de São Paulo
espaços como o SESC e o Itaú Cultural proibiram a amamentação,
por meio do uso da força de seus vigilantes. Assim, novamente
observamos um arranjo de violência compartilhado por diferentes
atores (individuais e institucionais). Deve-se observar que tudo
relacionado à maternidade, que é um privilégio biológico da mu-
lher, – a gestação, o parto, a amamentação, entre outros aspectos

84
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

– é sempre ridicularizado pela grande mídia, sendo representadas


as gestantes como patas chocas, as parturientes como seres en-
sandecidos, o parto como algo grotesco, entre outras formas de
envilecer, reificar, diminuir o papel feminino na sociedade.
Finalmente, cabe observar que, em sua defesa, Gentili
observa apenas que tudo não passou de piada. Em sua defesa
saíram outros “humoristas”, afirmando que se trata apenas de
uma piada, que as pessoas devem levar as coisas na esportiva,
e outros argumentos que mitigam o prejuízo causado. Ao dizer
que é só uma piada, esses atores procuram escamotear o obje-
tivo lógico de sua prática: a aferição de lucros, independente do
que isso possa causar a qualquer outra pessoa. A mesma lógica
individualista que tenta infligir ao ato de doação de Maximino,
a mesma lógica que por anos legitimou o sistema escravagista,
que ainda legitima que mulheres e homens sejam diferentes no
tratamento social que lhes é conferido, por exemplo, em termos
salariais, entre diversas outras formas de dominação e exploração.

7. RESPOSTA E RESISTÊNCIA

Analisando, agora, o texto de Dolores Aronovich Aguero,


devemos partir do contexto de circulação. Estamos, agora, num
canal alternativo – blogue – que não tem vinculação institucio-
nal, sendo uma ação de caráter individual (pela forma como é
produzido), mas que, ao mesmo tempo, é alçado a uma prática
coletiva pelo intenso diálogo que a autora estabelece com suas/
seus leitoras/es (há diversas postagens feitas a partir de textos
enviados à autora, definidos como guest posts). O canal tem via-
bilidade como espaço discursivo, mesmo mantendo seu formato
original de blogue, pois a ele foram associados outros suportes
virtuais – Facebook e Twitter – que triangulam e divulgam as pos-
tagens do referido blogue em redes sociais que são, hoje, muito
mais usadas do que os blogues (cujo auge data do final da década
de 1990 e começo dos anos 2000).

85
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

No recorte analítico que ora apresento, focalizei traços


linguísticos que relacionam intertextualmente este texto ao de
Gentili/Masnfield, caracterizando-o como uma resposta contes-
tatória, bem como a representação de Maximino pela autora,
para evidenciar como se trata de duas formas diametralmente
opostas de compreender o mundo, e como, assim, articulam
discursos antagonistas. Também selecionei dados que mostram
o caminho retórico da crítica que a autora constrói, que vai da
análise situada do caso em foco para uma explanação de caráter
generalizante sobre ações mobilizadas no contexto de práticas
sociais de matriz ideológica.
Em ADC, o interesse de se mapearem as relações intertextuais/
polifônicas – a forma como as vozes são organizadas, em sua plu-
ralidade, dentro do texto, os diferentes cenários de dialogicidade,
entre outros – dá-se, pois, a presença (ou ausência) de outros tex-
tos/vozes tem efeito sobre os jogos de poder em que os textos se
engajam nas práticas sociais. É, pois, possível observar, em textos,
a legitimidade atribuída a determinadas vozes e a discursos parti-
culares – como modos situados de representação –, o que revela
o embate interdiscursivo em textos. Deixam-se ver, desse modo,
os mecanismos de dominação ou de contestação por meio de
negociações postas em jogo nos textos empiricamente analisados.
Focalizando o excerto (5), podemos observar como, desde o
título de seu texto (que funciona como uma manchete atualizada
para o suporte virtual do blogue), a autora marca sua oposição
ao modo de operação de atores sociais que ela representa pelo
termo “reaças”:

(5) Reaças se ofendem ao serem chamados de reaças

Ao selecionar a palavra “reaças”, abreviação de reacionários


(pessoas conservadoras social e politicamente), Aronovich realiza
um procedimento de representação de atores sociais pela unifi-

86
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

cação, e de imediato se posiciona numa polarização. Assim, são


unificados sob rótulo de caráter generalizante atores nomeados
como: Danilo Gentili, Marcelo Mansfield, Rafael Bastos, Lobão,
Luiz Felipe Pondé, Leandro Narloch, Olavão [Olavo de Carvalho],
junto a outros que não são nomeados ou cuja nomeação se dá por
meio de nick names (nomes usados em perfis da Internet). Trata-
se de um processo de representação mapeado por Thompson
(1995) como um dos modos de operação da ideologia, mas que,
no contexto observado, é instrumentalizado como estratégia
contra-ideológica, podendo ser associado a um modo de consti-
tuição identitária de resistência.12
A tecnologia de texto, aqui, é empregada para produzir
significados que se contrapõem a discursos ideológicos, em es-
pecial, àqueles articulados por Gentili/Mansfield. Pela unificação,
os atores representados são compreendidos como indivíduos cuja
identidade é marcada pela semelhança com outros atores que se
alinham pela sua forma de compreender o mundo, de agir sobre
o mundo e de (se) identificar aos/às demais. Essa representação
é, na sequência, reiterada quando a autora aponta que os atores
que ela critica não aceitam serem chamados daquilo que são. Ao
longo do texto, Aronovich argumenta, empregando muito o re-
curso da citação direta de textos e segmentos de textos de atores
que ela representa pelo termo reaça/ reacionário, que pessoas que
ela identifica como reacionárias não aceitam a pecha e reagem
brutalmente à crítica. Essa estratégia pode ser observada nos
posts do Twitter cujas fotos (print screens) ela anexa ao seu texto,
dos quais, a título de exemplificação, apresento apenas duas
reproduções, por não se tratar do escopo deste artigo:
12 Faço aqui uma adaptação da proposta de Castells (2001), para quem há três padrões de
identidade: legitimadora – articulada a práticas de dominação e exploração (por exemplo,
o pai que “ajuda” porque não tem a responsabilidade de cuidar da casa ou dos filhos); de
resistência – que se apresenta como forma de questionar práticas de dominação e exploração
(por exemplo, o/a estudante que ocupa uma escola num movimento de valorização da edu-
cação); de projeto – que propõe formas alternativas de ser/viver (por exemplo, professores/
as que estruturaram formas alternativas de ser docente ao construírem a Escola da Ponte).
Em Acosta (2017, no prelo) proponho expandir esses conceitos para os outros campos das
ordens de discurso.

87
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figuras 6: Postagens do Twitter que respondem ao comentário


de Aronovich sobre jovens reacionários

Fonte: Escreva, Lola, Escreva.13

O discurso perfaz uma arena de luta hegemônica, o que, no


ambiente virtual é profundamente amplificado, em especial por
meio de redes sociais em que o debate se torna mais frequente,
intenso e, muitas vezes, agressivo. Nesse sentido, o suporte que
Aronovich seleciona para produzir e divulgar seus textos é um
espaço discursivo (VAN DJIK, 2010) não hegemônico, trata-se de
uma brecha no sistema de dominação da qual a autora se vale
para responder aos discursos hegemônicos abrigados pela gran-
de mídia – o que não significa que o mesmo suporte não seja,
também, apropriado pelas grandes empresas midiáticas. Como
em outras postagens, ela passa a resenhar o texto a fim de dar
substância à sua crítica. Passo, pois, ao corpo da postagem em
foco, no excerto (6):

(6) Por onde começo? No início do mês, Danilo Gentili, no


seu programa “Agora é Tarde”, da Band, fez piada [hiperlink]
com a maior doadora de leite materno do Brasil, a técnica de
enfermagem Michele Maximino, habitante de uma cidadezinha
em Pernambuco.

Este segmento textual constitui o primeiro parágrafo do post


do dia 31 de outubro de 2013 do blogue Escreva, Lola, Escreva.
Nele, há a explicitação do caráter intertextual responsivo pela
retomada do ato discursivo de Gentili – que “fez piada” – e,
13 Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2013/10/reacas-se-ofendem-ao-
serem-chamados-de.html>. Acesso em: 31 out. 2013.

88
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

principalmente, pelo link hipertextual que redireciona o/a leitor/a


de sua página para o canal Youtube onde o vídeo do programa da
Band estava endereçado.14
Na mesma introdução, Aronovich representa por inclusão ex-
plícita e nomeação “Danilo Gentili”, que é caracterizado por uma
identificação relacional materializada discursivamente em “seu
programa”. Aqui, o pronome possessivo desempenha um papel
de marcador de pressuposto, tendo em vista que se pressupõe
que todas/os saibam quem é o ator social e de qual programa
está se tratando. Isso evidencia o poder simbólico que detém a
figura pública ao ocupar um espaço televisivo em horário nobre
numa rede nacional: todos/as deveriam conhecê-lo.
Igualmente, a autora representa por determinação, inclu-
são e nomeação “Michele Maximino”, que é caracterizada de
maneira bastante densa, sendo que, no curto trecho, temos: (1)
a perífrase “a maior doadora de leite do Brasil”, que oferece um
título à Maximino, honorificando-a; (2) o adjunto adnominal “a
técnica de enfermagem”, que configura um processo de funcio-
nalização – em que a pessoa é representada pela função que
desempenha –, e (3) a oração subordinada explicativa “habitante
de uma cidadezinha em Pernambuco”, elemento que configura
uma identificação relacional – em que o ator social é represen-
tado por meio de aspectos com os quais está relacionado. Esses
segmentos linguísticos, mesmo desempenhando papéis sintáticos
distintos, funcionam de maneira semelhante na construção do
significado representacional do texto pela valorização do ator
social representado. Esse modo de representar tem como efeito
potencial de significação a humanização de Maximino, e de opor-
se ao modo como essa mesma pessoa é representada no texto
de “Agora é Tarde”.
Seguimos para o excerto analítico (7):

14 O vídeo não figura mais nos canais oficiais, pois após ganho de causa Maximino conseguiu
que a rede Bandeirantes fosse obrigada a retirá-lo do ar.

89
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

(7) Em um minuto e meio de TV, é possível fazer muito estrago.


Pessoas na rua passaram a chamar Michele de “vaca” e “vaca do
Gentili”. Agora ela consegue retirar apenas 600 ml de leite por
dia. Antes, eram dois litros. Um de seus peitos secou. Ela está
pensando em parar de doar. Na semana passada, ela ingressou
com uma ação na Justiça contra Gentili, Mansfield, e a Band.

No trecho, a autora evidencia como a TV é um espaço discur-


sivo poderoso; põe-se em evidência os efeitos potenciais sociais
desencadeados a partir da recepção de “um minuto e meio” de
texto transmitido por meio da televisão. Isso é ainda mais grave
quando se põe em conta que esse espaço não é democrático,
ficando vedada a participação de diferentes segmentos sociais.15
Conforme apontam Michele Maximino e seu esposo Ederval
Trajano em entrevista à Valéria Mendes do portal Uai.com, eles
não eram conhecidos na cidade e, frente ao poder expresso por
Gentili e sua equipe, sua vida foi revirada:

A repercussão tomou uma proporção tão desmedida


que a família precisou se mudar de Quipapá, cidade
de 25 mil habitantes (...), para que Michele pudesse
superar o quadro de depressão da qual foi vítima
após a exibição do programa. “Recebemos o apoio de
alguns moradores, mas a minoria que criticava inco-
modava muito mais que as pessoas de bem. Muitos
fãs do Danilo Gentili telefonavam durante a madru-
gada para a nossa casa, chamando minha mulher de
vaca, ou de interesseira que queria ganhar dinheiro.
Ouvíamos coisas como ‘quero mamar’, ‘quero leite
direto da fonte’. São pessoas que gostam desse tipo
de humor que, para mim, é ofensa verbal, bullying”,
declara Ederval Trajano.16

15 Nesse particular, poderíamos retomar a delimitação teórica de van Dijk (2010) dos padrões
de acesso aos espaços discursivos.
16 Disponível em: <http://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2015/03/02/noticias-
saude,188024/a-solidariedade-vai-vencer-a-estupidez-danilo-gentili-e-mae-record.shtml>.
Acesso em: 14 jan. 2016.

90
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

As ofensas sofridas pela mulher e sua família reiteram as falas


proferidas no canal de televisão, trata-se dos mesmos discursos,
inclusive com seleções léxicas muito próximas. Por exemplo, a
escolha de Mansfield que animaliza Maximino – “teta” (excerto
3) – é reiterada por “vaca” (excerto 7) e “vaca do Gentili” (excerto
7). Acerca desta última expressão, trata-se de um recurso discur-
sivo que aprofunda ainda mais o esvaziamento da humanidade
de Maximino, e estabelece uma conexão com o apresentador,
como se ela nada fosse antes ou depois, a não ser objeto da
“piada” de Gentili. A acepção sexual por meio do processo de
erotização – em “Em termos de doação de leite ela já tá quase
alcançando o Kid Bengala” (excerto 2) e em “não é uma espanhola,
é uma América Latina inteira” (excerto 3) – também é reiterada
pela ação de pessoas que se valeram do anonimato para cometer
crimes de injúria contra Maximino, como se pode ler no trecho
da matéria de Mendes supracitado.
A partir do momento em que Maximino decide processar
Gentili e Mansfield, a violência foi intensificada como forma de
defesa às celebridades, o que configura um processo de culpabili-
zação da vítima, estratégia absolutamente frequente em casos de
violência contra a mulher. No texto em foco, Aronovich observa:

(8) Agora o que mais tem é gente chamando Michele de interes-


seira, e tratando o pobre Gentili como vítima do politicamente
correto, que não permite nem que ele ridicularize uma pessoa em
rede nacional faça humor (entenda como somos condicionados a
ficar do lado dos mais fortes contra os mais fracos). Todo mundo
sabe quem é Gentili, mas vamos falar um pouco de Michele (grifo
do original).

É possível observar, agora de forma explícita, a representação


de Michele Maximino como não tendo o mesmo poder simbó-
lico que Danilo Gentili. A autora parte do pressuposto de que
são necessárias várias informações adicionais para caracterizar

91
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Maximino, a ponto de que o/a leitor/a seja capaz de conhecê-la


e de se solidarizar com ela – “ficar do lado”. Na sequência do
texto, Aronovich emprega o procedimento da narrativização da
história de vida de Michele Maximino, descrevendo aspectos de
sua rotina na doação de leite. Veja-se o excerto (9):

(9) Ela tem dois filhos, um menino de 3 anos, e uma menina


de 1 ano e 4 meses. Michele doa leite desde que a caçula, que
ainda é amamentada por ela, tinha 7 meses. Todo dia, Michele
esterilizava os potes, fazia a coleta do leite, e, junto com o ma-
rido, dirigia 80 km para levar os potes até uma maternidade em
Caruaru – sua doação era responsável por 90% do estoque do
banco de leite daquele hospital.

A autora informa como Maximino passou a doar leite ma-


terno, sendo um ato que envolvia a família toda. Essa história foi
achatada pela representação de Gentili/Mansfield, que assumem
pressupostos de que uma mulher só doaria leite para “ganhar
alguma coisa”, e ainda apaga a família de Maximino. Caso tivesse
representado Michele por meio da identificação relacional com
sua família, isso faria com que ela não pudesse ser um alvo tão
fácil para a piada, pois potencialmente conferiria a ela um traço
de humanidade (é uma pessoa, com filhos, casada, com história
de vida etc.). De maneira oposta, ao traçar essa narrativa sobre
o ato de doação (que demandava muito esforço – “80 km” – e
tinha enorme relevância – “90% do estoque do banco de leite
daquele hospital”), Aronovich coloca a doadora em um plano
de representação discursiva positivo, reforçando sua identidade
pela avaliação valorativa de quem é essa mulher. Essa estratégia
é reiterada no excerto (10):

(10) Não sei quanto a você, mas, no meu livro, Michele é uma
heroína. Ela salvava vidas, e salva ainda, e torço para que con-
tinue salvando (você pode deixar uma mensagem de apoio pra
ela aqui) [hiperlink no original].

92
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Ao associar a ela o predicativo “uma heroína”, Aronovich


constrói uma metáfora pela qual identifica a mulher de quem fala
como um ser acima da média e, ao mesmo tempo, identifica-se
como alguém para quem o ato da doação de leite é nobre. Nesse
par, identificação e autoidentificação andam juntas, sendo ele-
mento chave para observar a lógica de solidariedade que subjaz
ao texto, pois ambas estão em pé de igualdade e há expressão
da empatia, elementos inexistentes e, até mesmo negados no
texto de Gentili/Mansfield.
Ademais, Aronovich age sobre o mundo – mobilizando o
significado acional por meio da estrutura de gênero – ao, nova-
mente, usar um hipertexto para orientar seu/sua leitor/a a deixar
uma mensagem de apoio no site “Michele doando amor”.17 O po-
tencial da leitura descontínua é atualizado, e, do texto, a autora
espera que emerjam outros, pois ao se solidarizar com Michele
os/as leitores/as do blogue poderiam criar uma rede de apoio
para ela. Essa estratégia confronta o processo de reiteração da
violência – pela rede de violação criada entre Gentili/Mansfield e
seus seguidores –, o que implica um movimento de resistência,
mas, ao mesmo tempo, abre espaço para outras formas de ser/
viver, por meio do projeto articulado à rede de solidariedade
criada por Ederval Trajano, mantenedor do site supracitado.18
A resistência como estratégia é materializada em elementos
textuais que operam a coesão do texto, o que evidencia como
um elemento associado prototipicamente à identidade pode con-
figurar aspectos do significado acional. Cabe retomar, da teoria
que nos orienta, que a coesão, para além de ser a maneira como
estruturas micro e macro textuais são articuladas, nos permite
acessar significados sociais relacionados a como são articulados

17 Disponível em: <http://micheledoandoamor.org/web/contato. Acesso em: 5 jul. 2016.


18 O esposo de Michele Maximino, Ederval Trajano, mantém um perfil no Facebook e um
Grupo Público em que divulga informações sobre doação de leite, amamentação, parto e,
principalmente, notícias sobre o processo movido contra o apresentador. Em julho de 2017,
Michelle Maximino ganhou em última instância indenização por danos materiais e morais
e a obrigatoriedade de um pedido de desculpas.

93
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

os elementos do texto por meio de ligações lógico-semânticas


(HALLIDAY, 2004; FAIRCLOUGH, 2001) que podem ser de elabora-
ção, extensão ou realce (RESENDE, 2008). Vejamos o excerto (11):

(11) Mas vivemos num mundo em que uma pessoa dessas não é
elogiada, e sim esculhambada por um programinha na TV aberta.
Tudo em nome do humor. E em nome disso, a gente sabe, vale
tudo. E ai de quem reclamar! Se você é mulher e reclama, inva-
riavelmente será chamada de mal comida sem senso de humor
e castradora da liberdade de expressão. Pois é, gente como
Gentili, pobre alma, não tem liberdade de expressão! Quem tem
vasta liberdade de expressão são as feministas, que contam com
inúmeros programas de TV e colunas nos grandes jornais pra se
expressarem!

Considerados os articuladores coesivos que permitem à


autora encadear as ideias que apresenta, temos em “Mas” uma
conjunção adversativa que traz uma ideia contrária à que foi
apresentada antes, e esse caráter é ainda mais acentuado pela
posição topicalizada do termo e por sua reiteração pela expres-
são também adversativa “e sim”, que segue sinal de pontuação e
que funciona negando a ideia de que Maximino deveria ser elo-
giada. Trata-se de um processo lógico-semântico de elaboração,
em que a produtora de texto “expande o significado expresso
em uma outra provê uma maior caracterização da informação
dada” (RESENDE, 2008, p. 164) por meio de sua exemplificação
e reafirmação.
A partir do segundo período, temos a construção da repre-
sentação da prática de “fazer humor”, ou de produzir um determi-
nado tipo de produto midiático que se vende pelo esvaziamento
e violação de minorias pelo símbolo, em um “vale tudo”. Esse
arranjo de coisas é representado pela autora como algo sendo
de domínio e conhecimento de todos/as – “a gente sabe” – o que
opera novamente uma pressuposição.

94
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Há, em seguida, a justaposição de duas estruturas que teriam


o significado básico de adição, por meio da conjunção “E”, mas
elas não são contíguas em termos lógicos, tendo em vista que a
primeira explica o “vale tudo”, e a segunda produz significados
relacionados à consequência do “vale tudo”: não reclame – “E ai
de quem reclamar!”. O vale tudo se traduz no arranjo social em
que à mulher cabe acatar tudo, ou ser ainda mais violentada. Essa
ideia é representada pelo período composto estruturado sob a
lógica da causa e da consequência – “se…, então” –, em que há
a categorização da mulher como um ser “invariavelmente” alvo
da violência.
Por fim, o trecho apresenta um tropo – ironia – em que a
autora emprega recursos de gêneros humorísticos para criticar
o fazer “humor” de Gentili/Mansfield ou qualquer outro que se
enquadre no formato representado. Essa estratégia demonstra
domínio de tecnologias de texto pela autora, sendo que ela joga
com o mesmo argumento apresentado na defesa do violador, mas
empregando uma estrutura que evidencia o seu caráter falacioso.
Desse modo, “o pobre do Gentili” é representado como agressor
e não como agredido, ao mesmo tempo em que é questionado
seu direito prioritário de expressão, que não pode ser maior do
que o direito à dignidade.
Ao final do texto, Lola Aronovich expande a crítica. Em
termos dos movimentos retóricos traçados pela autora, pode-
mos indicar que ela parte de uma crítica genérica aos “reaças”,
focaliza o caso de agressão de Michele Maximino, e, no final do
texto, expande sua crítica, antes focalizada em Gentili, a outros
atores sociais, pondo em realce a rede de violência estruturada
por diferentes práticas sociais. Veja-se o excerto (12), que realiza
uma coda na postagem, em que a autora retoma a sua reflexão
e apresenta um fechamento:

95
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

(12) Humoristas como Gentili e seu sócio numa casa de shows,


Rafinha Bastos (e tantos outros), têm um humor, como diremos,
peculiar. Eles adoram posar de transgressores [hiperlink no origi-
nal], de moderninhos, mas seus chistes são os mesmos feitos por
meninos na quinta série. Meninos que têm nojinho de meninas
e então ficam obcecados por peitos. Meninos que veem peitos
como um objeto sexual, e que quando descobrem que peitos
têm outra função, como amamentar, comparam mulheres a vacas,
chamam seios de tetas. 

Vou repetir: as piadas que esses comediantes tão originais ga-


nham tão bem pra fazer já eram contadas por seus tataravôs.
Lembra do  Rafinha rindo  [hiperlink no original] das mulheres
que amamentam em público, chamando essas mães de barangas
exibicionistas, exigindo que coloquem um pano para cobrir suas
“muchibas”, né? Essas piadas têm alvos muito bem definidos.
São sempre mulheres, homossexuais, negros, transsexuais, gente
com necessidades especiais, nordestinos, pobres... 

Nesse trecho, a autora fala de maneira genérica de outros
eventos discursivos que marcam a materialidade da violência
contra mulheres, e, perfazendo outro movimento de intertex-
tualidade, cita diretamente um caso de violência cometido por
Rafael Bastos contra mulheres que realizaram um mamaço em
um shopping de São Paulo que proibiu uma mãe de amamentar
seu filho em uma praça de alimentação. Mesmo que o/a leitor/a
não tenha conhecimento prévio do texto, a autora espera que
se domine o mesmo universo referencial, sendo que no original
são disponibilizados links que articulam, pelo hipertexto, esta
postagem a outras do mesmo blogue, em que, igualmente, há a
resenha de casos de violência e a construção de uma crítica. Isso
evidencia um padrão na realização dessa estrutura de gênero e,
em última instância, dá a ver como o embate discursivo tem de
se repetir em diferentes frentes, para, pelo acúmulo, ser capaz
de contrapor a grandiloquência dos canais da mídia oligárquica.

96
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Ao cabo do excerto, Aronovich coloca no mesmo plano gru-


pos que representam minorias sociais – “mulheres, homossexuais,
negros, transsexuais, gente com necessidades especiais, nordes-
tinos, pobres” –, representando-os como alvo da violência sim-
bólica que subsidia os programas do tipo em foco. O machismo,
a misoginia, a homofobia, o racismo, a transfobia, o capacitismo,
a xenofobia e o preconceito de classe são, igualmente, postos
num mesmo plano, sendo a violência representada como uma só,
mas com diversas facetas em práticas hegemônicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção da representação, feita no texto “Quadro do


programa Agora é Tarde”, é uma obra realizada por membros
de um mesmo grupo – homens, brancos, pertencentes a uma
elite econômica, com amplo espaço na mídia brasileira –, o que
evidencia como arranjo discursivo é realizado pelo conjunto so-
cial. Mesmo que esse arranjo se origine do patriarcado (do tipo
de patriarcado trazido pela colonização), ele é ressignificado e
atualizado nas/pelas/para as práticas sociais contemporâneas.
Trata-se de um texto que compõe, dialeticamente o “contexto
de cultura” (BUTT et. al., 2001) – cultura da violência – e o “con-
texto de situação” (HALLIDAY, 2004) – (re)informando também a
estruturação genérica de stand up comedy na sua versão brasileira.
O que chamo aqui de cultura da violência é composto por
diferentes arranjos de violência e de violação que são ressignifi-
cados no texto em foco, tais como os que se originam de práticas
que sustentam as inúmeras formas de violação – racismo, outras
formas de violência de gênero, violência de classe etc. – em que
fica evidente a substituição do ser pelo ter. Há o sistemático esva-
ziamento da humanidade de atores sociais que são representados
como não-pessoas, sendo objetificados e animalizados.

97
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

As ressignificações de práticas sociais reproduzidas a partir


de um modelo hegemônico têm ganhado cada vez mais espaço na
mídia tradicional, um exemplo disso são os inúmeros programas
de stand up comedy que trazem modelos de formas de agir (no
gênero), formas de ser (na performance e no estilo) e formas de
representar (nos discursos articulados nos textos). Esse recrudes-
cimento reacionário pode ser observado em diversos espaços so-
ciais (suportes) e pode ser explicado como uma reação intersticial
à valorização de aspectos sociais que acompanhamos no primeiro
decênio dos anos 2000, pela conquista de espaços sociais antes
herméticos para mulheres, negras/os, homossexuais, pobres.
O privilégio foi perturbado por ideias revolucionárias como
as de direitos iguais, políticas de reparação, redistribuição de
recursos, entre outros. As elites, por meio de seus porta-vozes
midiáticos, usam de diferentes artifícios discursivos para esva-
ziar os significados produzidos por pessoas articuladas a redes
de resistência e que apenas começaram a esboçar projetos para
outros pactos sociais. O vigor desproporcional da reação contra
blogues como o de Lola Aronovich permite vislumbrar a relativa
e potencial fragilidade dos mecanismos que regem a dinâmica
de práticas de dominação e exploração.
Nessa perspectiva, por meio de ações discursivas que se
opõem a práticas de caráter ideológico e de sua recepção por
parte dos/as que “reagem”, podemos realizar uma explanação
acerca de como há brechas potenciais para a ação social engajada.
O acúmulo de textos que articulem discursos contra-hegemônicos
e promovam outras formas de ser e viver no mundo tem o po-
tencial de informar as práticas e estruturas sociais e mobilizar
uma reconfiguração de elementos que estão nos estratos mais
abstratos do mapa ontológico que adotamos, assim, potencial-
mente promovendo mudanças. Estas que são, em última análise,
o maior temor de quem detém privilégios.

98
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Por fim, cabe observar que em meio ao mesmo contexto social


que se erige sobre arranjos de violência e violação, é possível resistir
(também) discursivamente. Este trabalho alinha-se aos grupos em
defesa dos direitos da(s) mulher(es), consoante à proposta crítica da
análise de discurso crítica. Devo ainda destacar que a explicitação
desse alinhamento a causas sociais é um procedimento metodoló-
gico adotado por analistas de discurso como uma das formas de
assegurar o caráter ético, explicitando a intencionalidade de nosso
labor, e abandonando a ideia positivista de imparcialidade da ciência.
Assim, em razão desse alinhamento solidário, esperamos que este
trabalho possa contribuir, como uma atividade discursiva a mais,
para a resistência a esses arranjos de opressão/reação, e que possa
se somar à rede de solidariedade que pretende projetar formas
efetivamente justas e igualitárias de se viver em sociedade.

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101
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

QUÃO CRÍTICA É A ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA?

Margarete Jäger

INTRODUÇÃO

Há algumas décadas, análises e teorias do Discurso vêm


ganhando crescente atenção no interior das ciências humanas e
sociais.1 Desde o final da década de 1980, Siegfried Jäger, junto
com seu grupo de pesquisadores/as do Instituto de Pesquisa Lin-
guística e Social de Duisburg, desenvolveu uma proposta para a
análise de discursos, que será esboçada a seguir.2 Trata-se de uma
forma de pesquisa social qualitativa, inspirada especialmente nos
escritos de Foucault e contendo sugestões sobre como se podem
analisar e interpretar discursos. Esse procedimento é conhecido
como análise de discurso crítica (ADC)3. Com essa denominação,
queremos enfatizar o potencial crítico dessa abordagem, o que
a torna especialmente adequada para problematizar e criticar
temas socialmente pungentes.4

1 Este artigo foi traduzido do original em alemão por Glauco Vaz Feijó, com revisão da tradução
por Jacqueline F. S. Regis.
2 A exposição a seguir é uma versão ampliada e revisada de Jäger e Jäger (2010).
3 Nota do tradutor: no original, KDA, que a autora diferencia de CDA, a sigla usada, também
na Alemanha, para referência à escola anglo-saxã de análise do discurso, critical discourse
analysis.
4 Resultados de alguns projetos realizados com a análise de discurso crítica podem ser con-
sultados em Jäger e Jäger (2007).

103
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Diante de uma definição assim, pode-se argumentar que até


aí não haveria nada de especial, pois as ciências e os resultados de
pesquisas, em geral, teriam esse viés crítico como ponto de partida.
É sabido que a tarefa da ciência é analisar, e com isso questionar,
práticas e modos de operar. Assim, não seria necessário enfatizar
especificamente o aspecto crítico, e uma abordagem declaradamen-
te crítica poderia ser qualificada como não objetiva. Defensores/
as da concepção tradicional de ciência defendem que trabalham
somente descritivamente e descrevem simplesmente realidades
como elas são. Contudo, esse atuar científico se dá sempre com
base em um determinado saber; realidades sociais são interpreta-
das tendo como pano de fundo um saber, cuja historicidade, cuja
genealogia, a análise de discurso crítica leva em consideração.
Portanto, o potencial crítico de uma análise de discurso assim
compreendida já resulta da compreensão de que a interpretação
da realidade sempre será pautada por um determinado saber, que,
por sua vez, também é passível de ser questionado.
A seguir, será apresentado um breve esboço da abordagem
discursivo-teórica e analítica segundo a qual projetos empíricos
são concebidos e levados a cabo no Instituto de Pesquisa Linguís-
tica e Social de Duisburg (DISS). O procedimento é apropriado
para a análise de discursos em distintos planos discursivos, seja
no plano científico, no político, no midiático ou no plano da
comunicação cotidiana. Depois de apresentar essa abordagem
analítica, será dada uma resposta à pergunta que intitula o capí-
tulo: quão crítica é a análise de discurso crítica?

1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA


(ADC)

A seguir serão apresentados os pressupostos teóricos sobre


os quais a ADC se apoia e que definem sua metodologia.5 Trata-
5 Existem outras versões de critical discourse analysis (CDA), que, no que diz respeito ao
trabalho com temas sociais conflituosos, têm alguns pontos em comum com a análise de
discurso crítica aqui apresentada, mas que de forma diferente se apoiam em ciências da

104
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

se de tentar explicar o que deve ser entendido por discurso, o


complexo de poder-saber que se vincula ao que deve ser en-
tendido por discurso, e o complexo de saber-poder ao qual os
discursos se integram e a sua relação com a realidade. Trata-se
também da questão sobre como se consegue uma relação entre
sujeito e discurso, sobretudo como os discursos contribuem para
a formação do sujeito. A relação entre discursos e sujeitos evoca
a relação entre discursos, práticas sociais e visibilidades e mate-
rialidades que emergem dessas práticas em um plano que pode
ser teoricamente apreendido. Isso é alcançado com o conceito
de dispositivo, entendido com um conceito que ultrapassa os
discursos. Finalmente, serão esboçadas duas categorias centrais
que todos os discursos – desde que relacionados às sociedades
industriais – carregam; categorias que estabilizam os discursos,
o normalismo e o simbolismo coletivo.

SOBRE O CONCEITO DE DISCURSO

No âmbito da análise de discurso crítica, discursos são enten-


didos como formas sociais de falar, que são institucionalizadas,
obedecem a certas regras (absolutamente modificáveis), e que,
por isso, são investidas de efeitos de poder porque, e na medida
em que, influenciam ações humanas (ver LINK, 1983, 1995b; M.
JÄGER, 1996; S. JÄGER, 2012). Esse conceito de discurso remonta
a Michel Foucault, que também entende discurso como o lado
linguístico de uma “prática discursiva” (FOUCAULT, 1996).
Discursos podem ser representados como imagem da na-
tureza, se os comparamos a “um rio de ‘saber’”, ou como um
“acervo de saber social” através do tempo e do espaço (JÄGER,
2012, p. 26). Essas imagens podem ressaltar a dimensão histórica
dos discursos, na medida em que discursos “fluem” do passado,
pelo presente, para o futuro e, nesse fluxo, sempre se (re)produ-
cognição, como no caso de Teun van Dijk ou, ao lado de Foucault, em abordagens teóricas
marxistas, como no caso de Norman Fairclough.

105
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

zem incessantemente. Discurso, assim entendido, diria respeito


à forma e ao conteúdo de enunciados. E sua análise responde,
grosso modo, à pergunta sobre o que é/foi, a um determinado tem-
po, dizível, como e por quem. Isso significa que, durante a análise,
também sempre se tem em mente a pergunta sobre o que não
foi ou não é dizível.
Com esse questionamento, a ADC está sempre interligada à
análise de efeitos de poder. Trata-se de dar visibilidade aos seus
meios de ação linguísticos e iconográficos, trata-se de analisar,
em seu contexto, o saber neles transportado e as formas como
se expressam.

DISCURSO, PODER E DOMINAÇÃO

Discursos, então, são considerados não somente por serem


reconhecidos como representações de práticas sociais, mas,
sobretudo, porque eles exercem efeitos de poder. E eles o fa-
zem porque são (parcialmente) institucionalizados, regulados e
acoplados a ações. Considerar as dimensões de poder contidas
em discursos é o que possibilita à sua análise trazer consigo um
potencial crítico.
Entretanto, a articulação entre discurso e poder é muito
complexa e multifacetada, pois se um discurso se define como um
campo limitado de enunciados, “de forma inversa, pode-se dizer
que outros possíveis enunciados, questionamentos, perspectivas,
problemáticas etc. são excluídos” desse mesmo discurso (LINK;
LINK-HEER, 1990, p. 90). Tais exclusões podem ser reforçadas
institucionalmente e não devem ser mal-entendidas como ma-
nipulações intencionais de determinados sujeitos.
Um exemplo da área da imigração pode tonar explícitas
essas exclusões. Se imigrantes são institucionalmente excluídos/
as do processo político ao não poderem participar de eleições,
como é o caso na Alemanha, isso tem consequências conside-

106
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ráveis para que suas perspectivas (não) sejam consideradas no


discurso político. Os interesses dessa parte da população não
são considerados nas negociações políticas, e, além disso, essa
parte da população não tem nenhum representante no parla-
mento; por isso, seus problemas específicos não são tratados.
É verdade que a exclusão institucional não torna a inclusão das
perspectivas de imigrantes completamente impossível; contudo,
para inclui-las são necessários esforços maiores. Imigrantes
podem, por exemplo, se naturalizar e conseguir o direito de
participar de eleições, o que lhes torna possível a participação
no processo político.
Devem-se diferenciar tais exclusões de manipulações, por
meio das quais alguns grupos tentam conduzir o discurso em
uma determinada direção política com a intenção de influenciar
o comportamento de indivíduos e grupos. No que diz respeito
ao discurso de imigração, tal manipulação aparece, por exemplo,
quando a criminalidade de estrangeiros é colocada no foco do
debate por determinados grupos (e mídias), sem que esse enfoque
intencional fique evidente para a sociedade como um todo. Tais
manipulações acontecem e se deixam desvelar, também com a
ajuda da análise de discurso. Contudo, a análise de discurso crítica
não para por aí, ela leva em consideração também as exclusões
e omissões estruturais.
Análises de discurso tematizam, então, poder e distribuição
de poder, mas também relações de dominação. Estas existem
quando relações de poder são bloqueadas. A diferença entre
poder e dominação se deixam explicar pelo fato de o poder en-
volver toda a sociedade, como uma rede, e de se poder dizer que
todas as pessoas de uma sociedade dispõem de poder, ainda que
seja de uma ínfima parcela. De dominação, ao contrário, pode-se
falar quando mudanças nas relações de poder são bloqueadas,
quando relações de poder são constituídas como duradouras,
por exemplo, por meio de regulamentação legal, entre outras

107
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

formas. Desta maneira, podem ser criadas sistematicamente


situações de exclusão.6
Como ‘portadores’ do saber válido vigente, os discursos
desdobram-se não somente em efeitos de poder; eles são eles
próprios um fator de poder, pois engendram comportamentos,
atitudes e outros discursos. Eles contribuem, com isso, para a
estruturação das relações de poder em uma sociedade. Nesse
ponto, passamos a palavra a Foucault:

Saber e poder, isso é apenas um esquema analítico.


E esse esquema não é composto por duas catego-
rias estranhas uma à outra – o saber de um lado e o
poder do outro [...]. Pois nada pode se afirmar como
elemento de saber, se não estiver em conformidade
com um sistema de regras e constrangimentos espe-
cíficos. [...] em sentido contrário, nada pode funcionar
como elemento de poder se não se desdobrar em
procedimentos e relações entre meios e fins, que
estejam fundados num sistema de saberes. Não se
trata, portanto, de descrever o que é saber e o que
é poder e como um oprime ou abusa do outro, mas
sim de caracterizar um nexo saber-poder, com o qual
a aceitabilidade de um sistema se deixa apreender.
(FOUCAULT, 1992, p. 32).

Em outra passagem Foucault sustenta:

o poder não é uma Instituição, [...] não é uma po-


tência de alguns poderosos. O poder é o nome que
se dá a uma complexa situação estratégica em uma
sociedade. [...] o poder vem de baixo; isto é, não há, no
princípio das relações de poder, e como matriz geral,
uma oposição binária e global entre os dominadores
e os dominados, dualidade que repercuta de cima
6 Sobre a questão do poder dos discursos, Foucault escreveu: “É a questão que determina
quase todos os meus livros: como a produção de discursos que são (pelo menos durante
certo período) carregados com um valor de verdade é vinculada, nas sociedades ocidentais,
aos vários mecanismos e instituições de poder?” (FOUCAULT, 1983, p. 8).

108
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

para baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até


as profundezas do corpo social. Deve-se antes partir
do princípio de que as correlações de força múltiplas
que se formam e atuam nos aparatos produtivos, nas
famílias, nos grupos restritos e instituições servem de
suporte a amplos efeitos de clivagem que atraves-
sam o conjunto do corpo social [...] onde há poder,
há resistência e, no entanto, ou melhor, por isso
mesmo, a resistência nunca se encontra em posição
de exterioridade em relação ao poder. (FOUCAULT,
1983, pp. 94-6).

Pode-se pensar, então, a relação entre poder e discurso de


forma que o poder seja transportado e imposto discursivamente,
visto que discursos promovem e produzem poder, e o fortalecem.
Mas Foucault chama atenção para o fato de que discursos também
podem minar e decompor o poder: “Os discursos, assim como o
silêncio, não são submetidos ao poder ou posicionados contra
ele para todo o sempre. Trata-se antes de um jogo complexo
e instável, no qual o discurso pode ser, ao mesmo tempo, um
instrumento ou um efeito de poder, mas também obstáculo, con-
traponto, ponto de resistência e de partida para uma estratégia
contrária” (FOUCAULT, 1983, p. 100). A ADC possibilita tornar
transparente o complexo jogo entre saber e poder e, eventual-
mente, subverter esse jogo.

DISCURSO E REALIDADE

A observação dos efeitos de poder de discursos nos põe


diante da pergunta sobre como se pode apreender a relação
entre discurso e realidade. Muitas vezes, admite-se que a forma
como as pessoas se comunicam entre si, o que elas pensam
e falam, refletiria, com maior ou menor precisão, a realidade
social. Partindo-se desta perspectiva, então, o discurso é enten-
dido como expressão da prática social. Mas a compreensão de

109
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

discurso que fundamenta a análise de discurso crítica se opõe


a essa concepção da relação entre discurso e realidade. Nossa
compreensão parte do princípio de que os discursos não apenas
refletem a realidade, mas desenvolvem uma “vida própria” em
relação à realidade.
Discursos não são meios essencialmente passivos de in-
formação por meio da realidade e nem materialidades de segundo
grau, não são menos materiais que a “verdadeira” realidade.
Discursos são antes materialidades plenas, entre outras tantas.
Discursos também podem ser entendidos como meios de pro-
dução social, que produzem sujeitos a partir dessa realidade
social. Essa compreensão da relação entre discurso e realidade(s)
é significativa para a análise crítico-discursiva.
Trata-se, portanto, não (somente) da interpretação de algo
já dado, ou seja, não (somente) da análise de uma atribuição de
significados post festum, e sim de uma análise da produção de
realidade que é empreendida por meio do discurso. Isso porque
os discursos proveem os modelos de ação, ou melhor, proveem
saber para a configuração da realidade. Desse saber originam-se
as estratégias usadas para solucionar problemas na sociedade e
para o desenvolvimento de perspectivas de futuro. A análise de
discurso não se ocupa, então – ou ao menos não se preocupa em
primeiro lugar –, com a questão de se os enunciados realmente
reproduzem a realidade, mas sim com quais são seus efeitos.

DISCURSO E SUJEITO

No âmbito dessa discussão, questiona-se, com razão, qual o


papel do sujeito nesse conjunto de fatores. Também no tocante
a isso, a análise de discurso crítica se filia a reflexões de Fou-
cault, que em observações sobre o sujeito (1978, p. 32) chega à
seguinte conclusão:

110
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

é necessário se libertar do sujeito constituinte, do


sujeito propriamente dito, quer dizer, alcançar uma
análise histórica que busque compreender a consti-
tuição do sujeito em seu contexto histórico. E é exa-
tamente isso que eu chamaria de genealogia, ou seja,
uma forma de história que se refira à constituição de
saberes, de discursos etc., sem ter que se referir a um
sujeito que transcenda ao campo de acontecimentos
e, com sua identidade vazia, atravesse toda a história.

Com isso está claro: uma teoria do discurso de base foucaul-


tiana não nega a existência de sujeitos. Muito pelo contrário,
ela considera a constituição do sujeito no seio da história, no
contexto sócio-histórico-discursivo. Essa teoria se opõe, contu-
do, ao subjetivismo, ao individualismo e à concepção de sujeitos
autônomos.
Os sujeitos realizam as mencionadas relações de poder,
ao pensar, planejar e interagir. E é assim que têm de se colocar,
encontrar seu lugar na sociedade. Sujeitos são então atores que
agem no escopo de uma rede vicejante de tramas e confronta-
ções discursivas. Com isso, não estão simplesmente sujeitos
aos discursos, sendo por eles completamente determinados; se
fosse assim, não haveria sujeitos e identidades distintas. Mas, ao
contrário, as condições discursivas, que implicam em distintas
condições de vida e de aprendizado, conduzem a uma diversidade
de posições subjetivas.
Em nossas análises, essas distintas posições são consideradas
ao deixarmos que diversas posições discursivas fluam na análise,
de forma a captar o campo do dizível de cada discurso. De acordo
com a formulação das perguntas da análise, categorias como ida-
de, gênero, origem social e regional, remuneração, pertencimento
religioso etc. recebem atenção na concepção da investigação.
Para a análise de discursos midiáticos, o alinhamento político
fundante das mídias é um critério importante. Sem uma atenção

111
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

aos diferentes posicionamentos políticos, o campo do dizível dos


discursos não pode ser compreendido (JÄGER, 1996, pp. 47-50).
Mas quem, perguntamos então, faz o discurso? Discursos
são constituídos por sujeitos e ao mesmo tempo constituem os
sujeitos. Assim sendo, o discurso pode ser entendido como algo
supraindividual: todos/as participam na tessitura do discurso, mas
ninguém ou nenhum grupo individualmente determina comple-
tamente ou quis exatamente o que resulta dessa participação.
Tal determinação pode contrariar àquelas/es que têm em vista a
singularidade do indivíduo.
Desde uma perspectiva linguística, é difícil acompanhar essa
ideia. Em oposição ao idealismo linguístico, deve-se partir do
pressuposto de que a língua em si não transforma a realidade.
Entretanto, se entendermos o falar humano e a língua enquanto
elementos integrados em discursos históricos, segundo os quais a
sociedade se organiza, seria mais fácil imaginar que os discursos
exercem poder, assim como o poder é exercido sobre a realidade
pela utilização de ferramentas e objetos.

DISCURSOS E DISPOSITIVOS

Quando discursos são entendidos como portadores de sa-


beres, que, por meio de sua análise, podem ser reconstruídos e
tornados passíveis de crítica, outras questões são levantadas. Uma
dessas questões seria se discursos poderiam ser equiparados às
línguas de onde eles provêm. A resposta a essa questão deve ser
negativa. Para uma análise de discurso, importa a investigação do
saber que, de certa forma, se aninha nos enunciados linguísticos.
Foucault diferencia, nesse caso, proposições e enunciados. As
proposições são compostas de certa quantidade de signos, são
eventos que não se repetem. Os enunciados, por sua vez, têm
“a peculiaridade de poderem se repetir” (FOUCAULT, 1973, p.
153). Eles remetem a um conhecimento que possibilita certas

112
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

declarações enquanto rejeita outras (JÄGER; ZIMMERMANN,


2010, p. 30). Enunciados são fruto da diversidade das limitadas
expressões ou proposições linguísticas, trata-se de conteúdos
homogêneos, os quais Foucault caracterizou como “átomos do
discurso” (FOUCAULT, 1981, p. 115ss.). Enunciados não devem,
portanto, ser compreendidos como orações, mas sim como um
denominador comum de conteúdo, que pode ser abstraído de
orações e de textos.7
Nesse processo, a relação entre enunciados e proposições é
bastante interdependente. “Enquanto enunciados dizem respeito
a um saber que possibilita algumas proposições e rechaça outras,
proposições podem se condensar em enunciados” (JÄGER; ZIM-
MERMANN, 2010, p. 30). Por exemplo, quando no discurso sobre
a imigração é mencionado de várias maneiras que ‘estrangeiros’
molestam, violentam, oprimem mulheres, trata-se então de pro-
posições que podem ser condensadas no enunciado: faz parte
da cultura (ou essência) desses grupos ser sexista e patriarcal.
Outra questão seria: o conhecimento social incide somen-
te em discursos? Também aqui a resposta deve ser negativa.
O conhecimento se aninha não somente em discursos, mas
também em ações, visibilidades e reificações. Por isso, conside-
ramos necessário distinguir entre discursos e dispositivos. Um
dispositivo, de acordo com Foucault, “constitui um contexto
de processamento de saberes, que se materializa em falar/
pensar, em fazer e em objetividades” (JÄGER, 2012, p. 73).
O que é central nisso é o fato de os dispositivos terem uma
função estratégica. Eles se constituem em situações sociais
específicas, servem para lidar com ou solucionar problemas
no âmbito dessa constelação.

7 Foucault diz: “a língua existe apenas como sistema de construção de enunciados possíveis”
(FOUCAULT, 1981, p. 124). Neste sentido, a ADC aponta para a investigação de enunciados,
e assim elenca fragmentos de discurso de igual conteúdo, separados por temas e subtemas, e
busca compreender e interpretar seus conteúdos e frequência, assim como sua configuração
formal, no sentido de conduzir uma crítica.

113
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Dessa maneira, na análise de dispositivos, devem ser levados


em conta também outros fatores. Trata-se, por um lado, da inves-
tigação do saber que está na base dos discursos que circulam nos
dispositivos; trata-se, contudo, também, da investigação do saber
que subjaz às práticas, assim como visibilidades e materialidades
delas resultantes (JÄGER, 2012).
Para a análise de complexos de saber-poder, que é o que se
almeja com uma análise de discursos, isso significa que essas
análises de discurso devem ser entendidas como parte de uma
análise de dispositivo. Ressalte-se que, nessa acepção, as aná-
lises de discurso representam a parte principal das análises de
dispositivo, pois elas podem ser obtidas também de descrições
que foram alcançadas na reconstrução do surgimento de práticas
e visibilidades.
Siegfried Jäger ilustra isso com o exemplo do dispositivo
hospitalar. Nesse espaço, práticas dominantes podem ser, por
assim dizer, discursivadas pela observação e/ou entrevistas
com profissionais da área de saúde, pacientes, visitantes,
funcionários da administração, pela análise dos livros e avisos
de comportamento dados pela administração do hospital.
A reconstrução do saber objetificado nos prédios e objetos
(aparatos médicos etc.) pode, da mesma forma, acontecer pela
observação, entrevistas com especialistas, análise da literatura
da área, da arquitetura etc.

CATEGORIAS DISCURSIVAS: NORMALISMO E SIMBOLISMO COLETIVO

Análises discursivas que se vinculam aos trabalhos de Michel


Foucault – quando relacionadas a discursos de sociedades indus-
triais do tipo ocidental – deparam-se muito rapidamente com o
complexo normalidade e normalização. A questão sobre o que é
ou não normal, o que deve valer como normal, e como isso se
define, se determina ou se mantém é fundamental para os debates

114
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

centrais de uma sociedade. Assim sendo, normalidade, normalismo


e normalização são entendidas como categorias discursivas.
Tais categorias discursivas, estabilizadoras, são complexos
semânticos que, caso fossem retirados do discurso, deixariam
uma lacuna tão grande que levariam o discurso ao colapso, ou,
como argumenta Jürgen Link, o tornariam insustentável (LINK,
1996, p. 15). Portanto, considerar essas categorias em qualquer
exercício analítico é necessário e sensato.
No que diz respeito ao normalismo, é importante atentar es-
pecialmente para seus efeitos na constituição de sujeitos. Jürgen
Link sugere que o normalismo corresponde a um tipo de cultura na
qual praticamente qualquer setor da sociedade pode ser medido
ou quantificado. Esse normalismo se desenvolveu historicamente
em diferentes impulsos desde o começo do século XIX. O primeiro
impulso se realizou com a medicina, à qual se juntaram a psiquia-
tria, e a psicologia (social). Uma segunda fase – a chamada padro-
nização – realizou-se com o desenvolvimento técnico-industrial,
ao qual se incorporaram a economia, o mercado de seguros e a
ergonomia. Pré-requisitos para o desenvolvimento dessas fases
são estatísticas, segundo as quais, com base em dados massivos
sobre a população, podem ser estabelecidos critérios graças à
técnica de cálculo de médias, valores-limite e tolerâncias. Por fim,
um terceiro impulso atingiu amplamente setores como “o social
(...), o ‘cotidiano’ e a política. Esse desenvolvimento resultou
enfim no atualmente dominante posicionamento do normalismo
na sociedade e na cultura com um todo” (LINK, 1995a, p. 25).
A função histórica do normalismo deve ser entendida pelo fato
de que ele torna possível o controle e a regulação dos dinâmicos
processos sociais. Isso está muito relacionado a crescimento e a
desenvolvimento, e, por isso mesmo, pode reverter em condições
caóticas para o conjunto da sociedade. O controle e a regulação
através do normalismo se concretizam em forma de diversas es-
tratégias, cujos efeitos de poder podem ser elucidados por meio

115
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

da ADC. Link diferencia essas estratégias em flexíveis e protonor-


malistas, cada uma delas com efeitos diferentes na constituição
dos sujeitos.
No caso de estratégias protonormalistas, estreitas fronteiras
de tolerância contra a denormalização devem ser asseguradas. Ao
contrário, uma estratégia normalista-flexível favorece zonas de to-
lerância alargadas, torna possível uma reação flexível a dinâmicas
imprevistas, ao esvaziar ou alargar as zonas de tolerância. Essas
diferentes estratégias exigem, contudo, diferentes subjetividades
nas pessoas que delas se servem. Estratégias protonormalistas
requerem um sujeito estruturado autoritariamente, enquanto
que o normalismo flexível requer a um sujeito amplamente ‘autô-
nomo’, capaz de se autoavaliar e, com isso, se regular. Enquanto
subjetividades protonormalistas não conseguem, ou conseguem
apenas com muita dificuldade, lidar com fronteiras de tolerância
flexíveis, subjetividades normalistas-flexíveis conseguem integrar
plenamente em si estratégias protonormalistas. Assim pode ser
que para uma pessoa haja uma zona de tolerância alargada em
relação a temas como “sexo” e “gênero”, enquanto que, para a
mesma pessoa, em relação ao tema imigração, predomine uma
zona de tolerância estreita. Jürgen Link parte do princípio de
que nós, nas sociedades ocidentais industrializadas hodiernas,
estamos envoltos em um normalismo flexível, que contribuiu para
a formação de subjetividades correspondentes. 8
Na realização dessas estratégias de normalização, é crucial
a questão do simbolismo coletivo, que, portanto, também é consi-
derado uma categoria discursiva.9 Nessa perspectiva, simbolismo
coletivo seria a “totalidade das alegorias, dos emblemas, com-
parações […], pars pro toto, modelos e analogias ilustrativas de
uma cultura” (JÄGER; ZIMMERMANN, 2010, p. 70).
8 O conceito de normalismo foi desenvolvido em profundidade por Jürgen Link em 1996 e
2006, mas uma introdução bastante informativa também pode ser encontrada em sua obra
de 2013, na qual ele discute os efeitos do normalismo associados às crises atuais.
9 A teoria do simbolismo coletivo foi desenvolvida e desdobrada sobretudo por Jürgen Link
– ver, por exemplo, Link (1982) e Link; Link-Heer (1994).

116
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Símbolos coletivos se aproximam muito, por exemplo, do


que George Lakoff e Mark Johnson designaram como metáforas
(LAKOFF; JOHNSON1981). Eles também partem do princípio de
que a orientação dos indivíduos em uma dada cultura aconte-
ce por meio de representações metafóricas e estereotipadas.
Diferente de Lakoff e Johnson, na ADC entende-se por simbo-
lismo coletivo o conjunto imagético de estereótipos coletivos
culturalmente definidos, do qual a metáfora é uma parte, mas
que abrange também outros elementos, como, por exemplo,
narrativas (cf. LINK; LINK-HEER, 1994, p. 44).
Símbolos coletivos realizam seus efeitos no âmbito de um
sistema tópico, válido para todas as sociedades industriais oci-
dentais:

Figura 1: Sistema tópico de símbolos coletivos para sociedades


ocidentais industriais.

Fonte: elaboração própria

117
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Esse simbolismo pode ser imaginado como uma forma cir-


cular, cujas fronteiras corresponderiam aos limites do sistema
social, pelos quais o dentro é separado do fora. E esse círculo
poderia ser divido ao meio, tanto vertical quanto horizontal-
mente, de forma a termos uma parte inferior e outra superior
do eixo vertical, marcando assim uma estrutura hierárquica. No
eixo horizontal, seriam possíveis localizações políticas, da direita
para a esquerda.10
Essa topografia básica é tornada dizível por meio de uma
série de símbolos, sendo que, para todos os discursos conflitan-
tes, os símbolos mais significativos são aqueles que se prestam
a distinguir “nós” e os “outros”. E, por meio deles, podem-se re-
alizar certas diferenciações características: enquanto o ambiente
interior (o que é de dentro, de pertencimento) é frequentemente
simbolizado, por exemplo, como um avião, um carro, um barco
ou uma casa, os símbolos dos quais se lança mão para falar do
mundo exterior (o que é de fora, de exclusão) são, por exemplo,
parasitas, invasão, inundação, peçonha etc. Entre essas duas
séries há uma diferença crucial: os símbolos que codificam o
próprio sistema sinalizam, quase sempre, o status de sujeito dos/
as representados/as, enquanto os símbolos que se referem ao
mundo exterior não o fazem. O sistema próprio é normalmente
codificado em símbolos associados à ordem e à racionalidade,
e o sistema do outro é associado a caos e imprevisibilidade. A
Figura 2, a seguir, ilustra a topografia:

10 Nota de tradução: no eixo horizontal da primeira figura aparecem siglas de partidos políticos
alemães contemporâneos. Da esquerda para a direita, observando seus posicionamentos ide-
ológicos aparecem: PDS (Partido do Socialismo Democrático); Grüne (Partido Verde), SPD
(Partido Socialdemocrata da Alemanha); CDU (União Democrática Cristã da Alemanha),
CSU (União Cristã-social da Baviera); REP’s (sigla para Partidos de Extrema Direita).

118
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 2: Sistema tópico de símbolos coletivos para sociedades


ocidentais industriais.

Fonte: elaboração própria

Ute Gerhard elaborou a seguinte narrativa em sua análise do


debate sobre asilo político na Alemanha dos anos 1990: a Alemanha
seria uma ‘ilha’ frente à ‘corrente’ de refugiados e imigrantes, uma
‘terra’ sem ‘represa’, que corre perigo se ser ‘inundada’, atingida
por ‘inundações’ gingantes. A Alemanha poderia ser comparada a
um ‘barco’ entregue a essas ‘inundações’. É uma ‘casa’, na qual as
portas ‘ficam’ abertas e na qual estranhos depositam uma ‘carga
explosiva’. Finalmente, a Alemanha poderia ser lida como um ‘cor-
po’ ameaçado por ‘doenças’, por ‘venenos’, sobretudo por ‘drogas’.
Esse mundo é como um todo, ‘um oásis de ordem’, ameaçado pelo
‘deserto do caos’ (GERHARD 1992, p. 170).
O sistema simbólico coletivo é relativamente independente
da cultura nacional e fornece um quadro dentro do qual as reali-
dades sociais nas sociedades industriais ocidentais são interpre-
tadas. Ele assume uma função de orientação e ajuda as pessoas
a se moverem em contextos complexos, ao estruturarem esses

119
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

contextos e, com isso, integrarem simbolicamente contextos e


fatos. Jürgen Link resumiu isso de forma feliz: não é preciso saber
nada detalhadamente sobre o câncer para entender “o terror é
o câncer da sociedade” (LINK, 1982, p. 11).
Por meio da utilização desse simbolismo, processos sociais
e mudanças podem ser interpretados como componentes in-
tegrantes da sociedade ou como desvios e, neste caso, como
“denormalidade”. O simbolismo ajuda a diferenciar entre des-
vio e normalidade. Ajuda também a estirar as fronteiras entre
“nós” e os “outros”. Importante é que, por meio da utilização
de símbolos coletivos e de sua lógica imagética, surgem efeitos
constitutivos de sujeitos. Além disso, esses símbolos coletivos
sugerem maneiras de agir. A análise de símbolos coletivos é, por
isso, elemento central de qualquer análise de discurso.

2. FUNDAMENTOS METODOLÓGICOS DA ANÁLISE DE DISCURSO


CRÍTICA

Discursos se apresentam inicialmente como uma multidão de


enunciados e campos de enunciados que devem ser desagregados
pela análise de discurso. Para fazer isso, encontramos em Fou-
cault algumas sugestões; contudo, ele não desenvolveu nenhum
método de análise do discurso. Com relação a isso, ele se definiu,
com uma piscadela de olhos, como um “alegre positivista”.
A análise de discurso crítica também não prescinde de tal
alegre positivismo e se esforça por uma descrição exata, mas não
para por aí. Para equalizar a multidão dos discursos, é razoável
e necessário desenvolver categorias analíticas, com as quais os
respectivos objetos de análise se deixem situar. Também dessa
forma diferentes discursos podem ser significativamente sepa-
rados uns dos outros.

A ESTRUTURA DO DISCURSO

120
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Na ADC, são feitas algumas proposições terminológicas e


pragmáticas, que servem para tornar translúcidas e, desta for-
ma, analisáveis as estruturas básicas dos discursos. Discursos
se deixam estruturar em diferentes feixes discursivos, que são
produzidos e reproduzidos em diferentes níveis de discurso.
Nós chamamos de feixes discursivos desenvolvimentos de discurso
tematicamente homogêneos, e sua análise traz “enunciados” e
sua recorrência à luz.
A determinação de feixes discursivos permite, na medida
do possível, aproximar-se de forma mais “neutra” do objeto. A
ADC intenciona examinar um tópico em toda sua amplitude de
enunciados, quer dizer, não se trata de compreender apenas de-
terminados enunciados, por exemplo, racistas ou sexistas, mas
sim de compreender o campo do dizível como um todo.
Um feixe discursivo se deixa estruturar em fragmentos de discurso.
Nós denominamos fragmentos de discurso um texto ou uma parte de
um texto que trata de um determinado tema, por exemplo o tema
‘ecologia’ (em seu sentido mais amplo). Fragmentos do discurso se
unem, por conseguinte, em feixes discursivos. Sua compreensão e
análise formam a base para a definição de enunciados.
Especialmente interessante para a análise do discurso são os
chamados acontecimentos discursivos, os eventos que influenciam
e alteram os direcionamentos e qualidades básicas do discurso.
Um exemplo notável de um acontecimento discursivo foi o aci-
dente nuclear em Chernobyl. É verdade que anteriormente já
havia ocorrido um acidente semelhante em Harrisburg, contu-
do, este acidente anterior, por algum motivo, não teve grande
repercussão. A elaboração discursiva de Chernobyl, ao contrário,
alterou fundamentalmente o discurso atômico e sobre ecologia
na então República Federal da Alemanha. Claro que existem
também pequenos acontecimentos discursivos, que se mostram
especialmente indicados para uma análise, pois por meio deles a

121
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

totalidade do campo do dizível de um discurso é remexida e se


torna passível de ser compreendida analiticamente.
Os feixes discursivos operam em diferentes níveis discursivos
(ciência(s), política, mídia, literatura, educação, cotidiano, negócios,
administração etc.). Poderíamos também nomear tais níveis dis-
cursivos como contextos sociais a partir dos quais “se fala”. Algumas
vezes eles só se deixam distinguir uns dos outros com dificuldade,
pois eles se remetem uns aos outros. Desta forma podemos falar,
por exemplo, de um nível discursivo político-midiático.
Com a ajuda desses traços estruturais, o espectro de inves-
tigação da ADC se deixa determinar com precisão. Além disso,
temos ainda – vindas do suporte teórico da relação entre sujeito
e discurso – a categoria das posições discursivas. Por posição dis-
cursiva, pode ser entendido o lugar de onde ocorre a participação
em um discurso, assim como sua avaliação por cada um e por cada
uma, ou por grupos e por instituições. A partir delas se produzem
e reproduzem os emaranhados discursivos, influenciados pelo
contexto biográfico dos/as envolvidos/as no discurso. A posição
discursiva é então o resultado do enredamento em discursos di-
versos aos quais o indivíduo foi exposto e que ele/ela processou
ao longo de sua vida rumo a uma determinada posição ideológica
e a uma determinada visão de mundo (M. JÄGER, 1996, p. 47).
Tais posições discursivas são, por um lado, resultado de aná-
lises de discurso, na medida em que elas constituem conteúdos
dentro do campo do dizível. Por outro lado, na determinação
do corpus de investigação, a análise deve levar em consideração
possíveis posições discursivas existentes. Deve-se ainda considerar
que posições discursivas no interior de um discurso dominante,
ou melhor, hegemônico, são relativamente homogêneas, o que
pode ser já compreendido como efeito do discurso hegemônico.
Posições discursivas marcadamente desviantes se deixam classi-
ficar como contra-discursos.
OS PASSOS DA ANÁLISE

122
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Embora o procedimento metódico de uma análise de dis-


curso crítica dependa, ao fim e ao cabo, do objeto concreto de
investigação, alguns princípios básicos podem ser delineados.
O primeiro passo consiste no acesso ao contexto discursi-
vo, e aqui se trata da caracterização do percurso histórico do
discurso. Esse passo é necessário porque significado e conteúdo
de um feixe discursivo só podem ser estimados a partir desse
pano de fundo.11
Segue-se com a coleta do material de análise, quer dizer, com
a criação de um expressivo corpus de investigação. Esse corpus
será submetido a uma análise estrutural que atentará, sobretudo,
para o conteúdo do material. A análise estrutural aponta para a
determinação de enunciados e de suas recorrências. Como resul-
tado, podem ser descobertos textos particularmente típicos do
discurso em questão. Esses serão, por fim, objetos de uma análise
fina, com a qual se investigará a estrutura profunda dos enuncia-
dos. Isso ocorre na medida em que a superfície do texto, assim
como os recursos linguísticos e retóricos, são sistematicamente
analisados. Nesse ponto, são utilizadas também ferramentas
linguísticas stricto sensu e são analisados, entre outros, estrutura
pronominal, pressuposições, alusões e símbolos (coletivos). A
apresentação da análise completa, uma análise sinóptica, fecha
o processo, na medida em que reflete os resultados alcançados
e os condensa em um enunciado global.

O EFEITO DO DISCURSO SOBRE A CONSCIÊNCIA INDIVIDUAL E

11 Dietrich Busse lamenta que até agora se tenha dado tão pouca atenção a esse conceito, e
define “contexto” da seguinte forma: “entendo (…) como ‘contexto’ o vasto pano de fundo
cognitivo e epistêmico que possibilita antes de tudo a compreensão de símbolos (cadeias
de símbolos) linguísticos isolados ou de um ato de comunicação” (BUSSE, 2007, p. 82).
Uma estrita teoria do contexto discursivo baseada na teoria do discurso foucaultiana ainda
não está disponível.

123
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

COLETIVA

A ADC pode ser entendida também como análise de efei-


tos. Contudo, deve-se distinguir entre efeitos discursivos e
efeitos de textos individuais. O efeito de um único texto ou de
um único fragmento discursivo é dificilmente verificável – ao
menos com o uso de uma análise de discurso. A análise de dis-
curso pode, contudo, mostrar o efeito duradouro de discursos.
Por meio da persistente recorrência de conteúdos, símbolos e
estratégias, são produzidos sólidos “núcleos de saberes”, os
quais conduzem o comportamento dos sujeitos, cuja gênese a
análise pode mostrar.
Isso levanta a questão sobre tais processos de subjetivação
serem exclusivamente determinados por discursos, sobretudo
pela ação da mídia. Isso com certeza não acontece exatamente
assim, ainda que os discursos desempenhem um papel extrema-
mente importante na constituição de sujeitos. Há na pesquisa
sobre a recepção midiática também aqueles que se deixam in-
fluenciar por Foucault e Lacan, e aceitam que o sujeito pode ter
certa margem de manobra – ainda que bastante reduzida – frente
aos discursos (midiáticos).
Além disso, deve-se considerar que o desenvolvimento
do saber dos sujeitos também depende consideravelmente
do saber pré-existente que o novo saber encontra. Também
há de se ter em conta que a mídia (de massa) propaga co-
nhecimento (em massa) ao lado do sistema educacional e de
outras instituições, de forma que estamos falando de forças
que homogeneízam o saber e, em geral, de um processo ex-
tremamente complexo, que é, do nosso ponto de vista, apenas
dificilmente esquadrinhado de fato.

3. ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA E SEU ENGAJAMENTO “POLÍTICO”

124
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Por fim, retomamos aqui a questão mencionada no início


do texto, relacionada à criticidade da análise de discurso crítica.
Vamos respondê-la em forma de teses. Trata-se, aqui também, de
refletir sobre o uso sociopolítico de análises discursivas.

1. Discursos já podem ser criticados e problematizados a partir


do momento em que são analisados e que suas contradições e
suas linhas de fuga são explicitadas: a partir do momento em
que se aceita a ideia de que o que temos diante de nós são, na
realidade, verdades temporariamente vigentes, apesar de encaradas
como sendo razoáveis, racionais e acima de qualquer dúvida.
Portanto, a ADC abarca idealmente, em toda sua abrangência, o
que é dizível, em um determinado tempo e em um determinado
espaço. Ou seja, todos os enunciados que são ou podem ser
produzidos em uma determinada sociedade a um determinado
tempo, assim como as estratégias pelas quais o campo do dizível
é expandido ou limitado, por exemplo, por meio de abnegações
e relativizações.

2. A incidência de tais expressões remete, com frequência,


também a enunciados que não são dizíveis a um determinado
tempo numa determinada sociedade. Isso significa que esses
enunciados precisam de formas especiais para que possam ser
expressos. O campo do dizível pode ser limitado ou extrapola-
do por restrições ou proibições diretas, legislação, diretrizes,
alusões, implicações, criação de tabus, mas também por normas
e convenções sociais vigentes, internalizações, regulação da
consciência etc. A demonstração da limitação ou da expansão
do campo do dizível seria então mais um importante fator de
criticidade da ADC.

3. A ADC se orienta pelo discurso entendido como um rio de


saberes que corre pelo tempo e pelo espaço. Esses saberes
aparecem essencialmente (ainda que não exclusivamente) em
texto e fala, e se compõem de palavras e frases, de forma que
tal crítica pode e deve se reportar a elas. Por exemplo, pode ser
útil reportar-se a eufemismos, formas de argumentação, alusões,

125
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

frases feitas, particularidades estilísticas etc. Esses elementos


são componentes de uma “caixa de ferramentas” analíticas, que
possui complementarmente uma abundância de outros instru-
mentos (não linguísticos).

4. Como dito, o simbolismo coletivo representa um importante


aglutinador de discursos. O reservatório de símbolos coletivos,
que todos os membros de uma sociedade conhecem, coloca à
disposição um repertório de imagens, com o qual nós construí-
mos uma imagem geral da realidade social e da paisagem política
da sociedade. Essa imagem geral subsidia as significações que
fazemos e os significados que recebemos construídos, especial-
mente pela mídia.

5. Para a ADC, crítica não significa que o discurso deforma formas


de ver a realidade ou que contém ideologias (necessariamente
falsas) – como se pode ocasionalmente observar no conceito de
crítica da ideologia em abordagens marxistas ortodoxas. Discur-
sos apresentam uma realidade própria, que não é, de nenhuma
forma, apenas ruído e fumaça, distorção e mentira em relação
à “verdadeira realidade”. Muito mais do que isso, a realidade
discursiva tem uma materialidade própria e se alimenta de dis-
cursos passados e de (outros) discursos atuais. A questão que
se coloca diz respeito a normas e valores, aos quais o/a analista
se remete, quando ele ou ela exercem a crítica.12 Esses valores
podem ser, por exemplo, os direitos humanos universais ou os
direitos fundamentais assegurados pela constituição. Em outras
palavras: quem analisa um discurso pode (e deve) tomar posição.
Aqui temos de estar cientes de que sempre nos metemos em
discursos existentes e sempre nos relacionamos apenas como
participantes no discurso e nunca podemos nos apoiar em uma
verdade objetiva sempre válida. Daí ter Foucault proposto que a
crítica se deixa exercer, sobretudo e talvez depois de tudo, sobre
as bases de uma conduta, quer dizer, de uma verdade subjetiva,
com a qual se está comprometido. A tal conduta Foucault deno-
12 Ver Link (1995), que sublinha a força formativa e constitutiva dos discursos e compreende o
Discurso (com Foucault) como “instrumento de produção material”, com o qual, sob formas
reguladas (socialmente), objetos (como, por exemplo, “loucura”, “sexo”, “normalidade” etc.),
assim como subjetividades a eles relacionadas, são produzidos. Sobre a análise de discurso
histórica, ver, por exemplo, o trabalho de Ulrich Brieler (1998), que traça em detalhes e
comenta criticamente o desenvolvimento do pensamento do historiador Michel Foucault.

126
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

mina “virtude” (FOUCAULT, 1992, p. 9) e uma forma de cultura.


Trata-se de “uma conduta moral e política, uma forma de pensar,
a qual eu nomeio: a arte de não ser governado, ou melhor, a arte
de não ser tão governado” (FOUCAULT, 1992, p. 12).13

Portanto, o/a analista que participa no discurso com sua


crítica pode se remeter às violações contra convenções (mais ou
menos) consensuais e normativas, como, por exemplo, contra
a constituição, contra o direito dos povos e contra os direitos
humanos universais, sobretudo se, em nome de sua defesa, es-
ses direitos acabam sendo violados. Ao mesmo tempo, deve-se
também, sempre, tratar de colocar em suspeita e descontruir
conceitos subjacentes. Também é importante refletir sobre as
justificativas e situações condicionadas intercultural e histori-
camente. Mas, obviamente, tal crítica se encontra, ela mesma,
dentro dos discursos e se expõe por sua vez à possibilidade da
crítica. Claro que a crítica (no discurso) deve ser, além disso,
exercida sobre estatísticas falsas, sobre tacanhas e persistentes
evidências, sobre espetacularizações, sobre supostas ausências
de alternativas, sobre reducionismos binários, sobre legitimação
de crimes, guerras, racismo, sexismo etc.
Contudo, também atrás disso está um posicionamento, uma
conduta, que infelizmente nem todos/as nós compartilhamos,
como sabemos. Tal conduta remete a uma verdade que se de-
fende aberta e honestamente como parrésia, como “coragem da
verdade” no sentido de Foucault, como adivinho, às vezes como
louco ou como artista, por exemplo, como poeta ou artista de
cabaré. O louco se remete à sua verdade, à sua visão pessoal das
coisas, que ele corajosamente defende.
Com esta tese, deve ficar claro que a ADC é, neste sentido,
também uma concepção política, pois, com o questionamento

13 Foucault se refere nessa questão de forma positiva a Kant, e repreende-o, contudo, pois ele
nos impôs “o conhecimento do conhecimento” (FOUCAULT, 1992, p. 18). Sobre governa-
bilidade, ver o trabalho de Thomas Lemke (1997).

127
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de discursos, outras linhas de pensamento podem ser mostra-


das. Por isso, ela também é capaz de desenvolver propostas
sobre como abusos dominantes podem ser colocados de lado
ou deixados para trás. Ela pode não apenas alertar contra usos
eufemísticos e sensacionalistas da língua, não apenas exercer
uma crítica linguística, mas também uma crítica da sociedade.
Em face das normas dominantes de democracia e justiça, seus
resultados podem exigir uma tomada de posição, mesmo se isto
for desconfortável e inadequado à paisagem “política”.
Nós não entendemos tal crítica como ideológica, pois o
ideólogo se remete sempre a uma verdade, nomeadamente à sua
verdade, que ele na maioria das vezes enxerga como a verdade
absoluta. O pré-requisito teórico mais importante da ADC nos
parece ser, contudo, o fato de ela insistir que ninguém detém
o monopólio da verdade, que ninguém pode com isso requerer
a legitimidade de seu poder e, assim, que ninguém está certo
para sempre. Essa é a condição básica para que acordos sensatos
possam ser fechados e, além disso, para reconhecer que o poder
não é apenas o poder de alguns poderosos. Com isso, a ADC é
um instrumento que problematiza e coloca em discussão, de um
lado, todo tipo de reducionismo positivista e, de outro lado, qual-
quer fundamentalismo. Com a ADC, a linguística pode, portanto,
contribuir para o enfrentamento dessas questões.

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130
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

“VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?”: A DENORMALIZAÇÃO


DO DISCURSO SOBRE O MEDO DO PARTO

Jacqueline Fiuza da Silva Regis

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, aplico à pesquisa que desenvolvi no âmbito


de meu doutoramento (REGIS, 2016), sobre a representação
discursiva de questões relacionadas ao parto e ao nascimento
no Brasil, a proposta de análise de discurso crítica (ADC) desen-
volvida no Instituto de Pesquisa Linguística e Social de Duisburg,
apresentada neste livro por Margarete Jäger.
Como se sabe, as pesquisas em ADC têm como ponto de
partida e motivação um problema social, e como objetivo final
contribuir de algum modo para a mitigação desse mesmo pro-
blema. No caso da pesquisa em pauta, a motivação inicial foi a
questão da violência obstétrica existente no país (AGUIAR, 2010;
FRANZON & SENA, 2012; DINIZ & CHANCHAN, 2006), onde 25%
das mulheres relatam terem sofrido violência durante o parto
por profissionais da assistência obstétrica (FUNDAÇÃO PERSEU
ABRAMO, 2010) e onde os índices de cesáreas são altíssimos.
Mais de 50% dos nascimentos no Brasil (BATALHA, 2012; BRASIL,
2012) acontecem com intervenções cirúrgicas, cuja necessidade,

131
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

ou embasamento médico-científico, é questionável, extrapolan-


do sobremaneira o limite de 15% preconizado pela Organização
Mundial da Saúde (LAUER et al., 2010). Diversos especialistas,
como, por exemplo, Souza, Amorim & Porto (2010), em seu
artigo “Condições frequentemente associadas com cesariana,
sem respaldo científico”, entretanto, ressaltam serem poucos
os possíveis benefícios de uma cesariana, cirurgia associada a
maior mortalidade materna que o parto vaginal e também a um
aumento de morbidade e mortalidade entre recém-nascidas/os.
Embora este estudo se atenha ao contexto brasileiro, a ques-
tão da violência obstétrica é internacional, atingindo mulheres
também em outros países, como, por exemplo, na Venezuela, país
pioneiro em definir legalmente a violência obstétrica.1
Também na Alemanha, país que, apesar de ainda ter um siste-
ma que conta institucionalmente com a assistência realizada por
parteiras, tem-se apresentado elevação nos índices de cesarianas
e uma grave crise na situação de trabalho das parteiras que traba-
lham como profissionais liberais, fazendo com que a qualidade na
assistência seja comprometida e a violência obstétrica aumente,
provocando protestos como o Roses Revolution, em que mulheres
noticiam, com flores deixadas nos centros de atenção obstétrica,
numa data pré-determinada, a violência sofrida (MUNDLOS, 2015).
Ainda em 1990, Marjorie Tew, versando sobre o contexto
britânico, escreveu sua história crítica da assistência obstétrica
em seu país, no livro intitulado Safer Childbirth?, no qual ques-
tiona a validade da hospitalização, da medicalização do parto
e do nascimento, considerando-se que as taxas de mortalidade
materna e neonatal não diminuíram com a retirada do parto do
ambiente domiciliar para o institucional, desde a década de 1980,

1 “Entende-se por violência obstétrica a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos


das mulheres por profissionais de saúde, o que se expressa em atendimento desumanizador,
uso abusivo de medicação e patologização dos processos naturais, trazendo consigo perda de
autonomia e de capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando
negativamente na qualidade de vida das mulheres” (VENEZUELA, 2007).

132
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

quando a sociedade britânica já considerava o nascimento como


sendo um evento médico-hospitalar, nutrindo o que ela chama
de “ilusão popular sobre os poderes dos médicos”. Marjorie
Tew, já àquela época, ressaltava que essa realidade também era
verdadeira para outras sociedades. Embora ela não mencione o
Brasil, poderia tê-lo feito, com adequação.
Como escreve a historiadora Maria Lúcia Mott (2002, p.
207), em 1945, 70,4% dos partos do maior município do Brasil,
o município de São Paulo, ainda aconteciam em casa. Segundo
essa autora (2002, p. 198),

a indicação do hospital como lugar ideal e seguro


para as mulheres darem à luz é uma recomendação
que passa a ser divulgada na literatura médica, com
mais ênfase, a partir da década de 1930. Até o final
do século XIX, os partos eram realizados quase
que exclusivamente no domicílio da parturiente [...]
assistidos na maioria das vezes por parteira leiga e
raramente por parteira diplomada. Apenas em casos
complicados, quando a parteira não conseguia resol-
ver o problema, chamava-se o médico.
[...]
Dar à luz fora de casa era uma situação anormal,
considerada apavorante e procurada apenas em
casos extremos, sobretudo por pessoas tidas como
desclassificadas socialmente.

Mas, ainda na primeira metade do século XX, aumentou


o número de médicos que acompanhavam o parto, encarado e
propagado, cada vez mais, como um evento médico e potencial-
mente perigoso. O desenvolvimento técnico da obstetrícia, da
indústria farmacêutica e a promessa de melhor atendimento à
parturiente e ao recém-nascido trouxeram consigo a crescente
hospitalização, o aumento de intervenções, a institucionalização
do chamado parto normal, na realidade um “circo de horrores”,

133
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

no qual a mulher é submetida a uma série de intervenções des-


necessárias e, em sua maioria, dolorosas. Pérez & Gérvas (1999)
denominaram “crueldade terapêutica” esse uso desnecessário
de procedimentos médicos e cirúrgicos que se realizam simples-
mente porque se tem poder para fazê-lo. Diniz & Chacham (2006)
falam de uma “obstetrícia de linha de montagem”, na qual o uso
de ocitocina sintética para acelerar o parto, o corte na vagina,
o uso do fórceps, e a manobra de Kristeller são transformados
em procedimentos de rotina – ainda que essas práticas não se
fundamentem em uma medicina baseada em evidências. Segundo
Sonia Lansky (apud BATALHA, 2012, p. 9), esse cenário faz com que
o parto prevaleça no imaginário da mulher como uma tortura da
qual seria preciso fugir, e, no imaginário do médico, a crença de
que com a cirurgia cesariana, que supostamente não implicaria em
danos, ele possa melhor controlar a natureza e organizar melhor
o ritmo de trabalho. Muito possivelmente também daí resulte
nossa posição de campeões do mundo em número de cesáreas.
Importante é ainda ressaltar que onde há violência há tam-
bém resistência, e uma reação insurgente diante desse quadro de
violência são as associações de mulheres organizadas em redes
horizontais de solidariedade, que promovem a emancipação e o
protagonismo feminino na hora da chegada de sua prole a este
mundo. Tanto grupos mais institucionalizados – como o Grupo
de Apoio à Maternidade Ativa, Amigas do Parto, Doulas do Bra-
sil, Rede pela Humanização do Parto e Nascimento e Parto do
Princípio – como também atuações de mulheres engajadas, de
maneira mais fluida, menos institucionalizada, em prol de seus
direitos sexuais e reprodutivos, também no momento do parto,
têm se destacado neste contexto.
No último caso, encontramos, por exemplo, a utilização da
Internet, com a publicação e a manutenção de blogs ou outras
ferramentas por meio das quais mulheres compartilham suas
experiências com outras mulheres, exercendo assim importante

134
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

agência nessa campanha de várias frentes por uma assistência


obstétrica digna, respeitosa e não intervencionista – o blog
“Cientista que virou mãe” ilustra exemplarmente esse movimento.
Grupos de livre associação em redes sociais virtuais, como os gru-
pos “Cesárea não, obrigada!” e “Parto Ativo Brasil”, entre muitos
outros, são exemplos do êxito dessa modalidade de resistência
coletiva, horizontal e solidária entre mulheres e pelas mulheres.
Como observa Tornquist (2002, p. 483-4), pode-se falar de
um movimento pela humanização do parto e do nascimento no
Brasil desde o final dos anos 1980. Isso significa que um

conjunto de medidas tidas, então, como humaniza-


doras busca desestimular o parto medicalizado, visto
como tecnologizado, artificial e violento, e incentivar
as práticas e intervenções biomecânicas no trabalho
de parto, consideradas como mais adequadas à
fisiologia do parto, e, portanto, menos agressivas e
mais naturais.

No Hospital Universitário de Brasília (HUB), para nomear um


trabalho essencial, que foi central para a concepção da pesquisa
de que este capítulo é recorte, vem sendo desenvolvido, desde
1998, um trabalho de extensão universitária voltado para a pro-
moção da saúde sexual e reprodutiva, coordenado pela professora
doutora, enfermeira obstetra e parteira Silvéria Maria dos Santos.
O objetivo da ação de extensão é contribuir para o resgate da
autonomia de mulheres, por meio de atividades de sensibilização
e orientação educativa, promovendo a emancipação feminina,
para que as mulheres possam se ver e serem vistas e aceitas em
toda sua complexidade e plenitude pela equipe de assistência ao
parto (cf. OLIVEIRA, 2002). Para tanto, são organizados encontros
semanais abertos à comunidade, especialmente a gestantes, nos
quais a reflexão e a orientação se desenvolvem, motivadas pelos
temas trazidos pelo público presente na roda de discussão, em

135
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

uma interação que possibilita a troca horizontal de experiências


entre todas/os as/os presentes: gestantes, acompanhantes, pro-
fessoras/es e alunas/os da área de saúde lato senso.
Essa rede de resistência pode ser encarada como um projeto
identitário coletivo, por meio do qual se busca – e alcança – uma
mudança do discurso vigente, um deslocamento hegemônico,
nos termos de Gramsci, e a constituição de outro lugar subjeti-
vo para a mulher na vivência de sua vida reprodutiva. Segundo
Castells (1999, p. 22), identidade é “o processo de construção
de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um
conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais)
prevalece(m) sobre outras fontes de significado”. Reconhecendo
que a construção da identidade sempre se dá em contextos de
poder, Castells (1999, p. 24) propõe três formas de construção
da identidade:

Identidade legitimadora: introduzida pelas institui-


ções dominantes da sociedade no intuito de expandir
e racionalizar sua dominação em relação aos atores
sociais (...); Identidade de resistência: criada por atores
que se encontram em posições/condições desvalori-
zadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação,
construindo, assim, trincheiras de resistência (...);
Identidade de projeto: quando os atores sociais,
utilizando-se de qualquer tipo de material cultural a
seu alcance, constroem uma nova identidade capaz
de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo,
de buscar a transformação da estrutura social.

Conforme esse autor, identidades de resistência levariam à


formação de comunidades ligadas à resistência coletiva a modos
específicos de opressão, experimentados pelas/os membras/os da
comunidade, mas seriam as identidades de projeto que se asso-
ciariam à formação do ator social coletivo, tornando-se recurso
para projetos de mudança social. Aplicando essas categorias ao

136
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

movimento em pauta, creio não ser bem possível traçar limites


tão claros entre as distintas atuações de tantas mulheres, a
maioria delas exercendo a maternidade paralelamente a tantos
outros papéis sociais. O que percebo é que existe a resistência
constante, mais ou menos silenciosa, mais ou menos explícita,
com momentos pontuais, ou nem tanto, em que essa resistência
se concretiza em projetos, maiores ou menores, mais ou menos
possíveis, diante das limitações de uma ‘guerra de trincheiras’.
E esses pequenos ou grandes projetos vão mudando o fluxo do
rio de conhecimento que é o discurso sobre o parir e o nascer,
enfim, sobre o ser mulher no Brasil. O projeto que funda o tra-
balho investigativo, analítico e reflexivo, aqui apresentado em
recorte, reside também não somente na busca individual pela
emancipação feminina, mas sim na solidariedade inscrita neste
empenho, que faz eco e amplifica a voz de outras tantas prota-
gonistas de sua própria emancipação e da libertação da posição
subjetiva alvo da violência de gênero de toda sorte, inclusive de
uma violência obstétrica institucionalizada e normalizada.
Feita essa contextualização, passo agora a discutir a aborda-
gem adotada na pesquisa, os caminhos percorridos para chegar
a este capítulo, que também não deixam de ser marcados pela
resistência cotidiana imposta pela tradição disciplinar, que muitas
vezes, quase sem querer, corre o risco de colocar o problema
social a serviço de uma disciplina qualquer, quando deveria sim
proporcionar a liberdade de interdisciplinaridade demandada
pelo problema em questão.

1. TRABALHO DE PARTO: OPÇÕES METODOLÓGICAS PARA CHEGAR


A ESTE CAPÍTULO

O ponto de partida teórico-metodológico de minha pesqui-


sa compreendia inicialmente a abordagem proposta na obras
Discourse in late modernity (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999) e
Analysing discourse, (FAIRCLOUGH, 2003), que propõem modos

137
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

como a linguística, enquanto disciplina, poderia contribuir, por


meio da análise textual, para o estudo crítico de questões sociais.
Fairclough (2003, p. 2), cuja proposta é chamada de análise de
discurso textualmente orientada, defende que a versão de análise
de discurso crítica (ADC) proposta nessa obra

se baseia no pressuposto de que língua é uma parte


irredutível da vida social, dialeticamente interconecta-
da com outros elementos da vida social, de forma que
a análise e a pesquisa social tem de levar em conta
a questão da língua. Isso significa que uma maneira
produtiva de se fazer pesquisa social é por meio de
um foco na linguagem, se utilizando de alguma forma
de análise do discurso. [...] e muitas vezes faz senti-
do utilizar a análise do discurso em conjunção com
outras formas de análise, por exemplo, a etnografia
ou formas de análise institucional.2

A análise textual é vista nesta abordagem como meio de


acesso aos momentos da prática social, à qual subjazem discur-
sos que se materializam em textos, tornando-se assim acessíveis
à/o pesquisador/a, que pode, por meio de sua análise, identificar
potenciais efeitos sociais desses discursos. O que mais especifica-
mente caracteriza a ADC, diferenciando-a da análise meramente
linguística, é sua proposta de transdisciplinaridade – sem a qual
não se poderia alcançar um entendimento sobre processos com-
plexos como práticas sociais – e seu declarado compromisso com
a mudança social.
A ADC é, nas palavras de van Dijk (2003, p. 352), um tipo
de análise discursiva, cujo foco principal é o estudo de como o
abuso de poder, que ameaça direitos básicos de determinado
grupos, é ordenado, reproduzido e enfrentado por meio do uso
da linguagem verbal, escrita ou falada, e não verbal num deter-

2 Todas as citações em português com referências no original são livres traduções de minha
autoria.

138
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

minado contexto social e político. Nesse campo, a/o analista se


posiciona explicitamente com sua proposta de entender, tornar
público e, sobretudo, fazer parte do movimento de resistência
e pela mudança desse quadro social abusivo.
O marco teórico da ADC, que, segundo van Dijk (2008, p.
821), “não é uma teoria ou um método, mas um movimento aca-
dêmico de estudiosos interessados na análise de problemas so-
ciais fundamentais, como a reprodução discursiva da dominação
ilegítima”, me pareceu, portanto, a porta de entrada acadêmica
mais adequada para nortear meu interesse de pesquisa.
Como parte integrante desse movimento acadêmico de
estudiosas/os interessadas/os na análise de problemas sociais
e políticos fundamentais, reconheço a escola de Duisburg, na
Alemanha, nomeadamente o Duisburger Institut für Sprach- und
Sozialforschung (DISS). Esse instituto reúne há cerca de 30 anos
pesquisadoras/es interessadas/os em problemas sociais pungentes
desde uma perspectiva analítico-discursiva crítica de base foucaul-
tiana. Durante o ano em que estive naquele país atendendo às
exigências de meu doutoramento binacional, pude me aprofundar
na abordagem dessa escola, que muito me serviu na execução de
meu projeto. Gostaria de dizer que, além das leituras realizadas,
tive o prazer de conhecer pessoalmente as/os pesquisadoras/es
do DISS, apresentando recortes de meu trabalho e discutindo
a aplicação da teoria pessoalmente com suas/seus autoras/es,
especialmente com Margarete e Siegfried Jäger, centrais para o
caminho analítico por mim adotado.
Para a consecução de meu objetivo de melhor conhecer,
entender e contribuir para mitigar as deficiências da assistência
obstétrica vigente no Brasil, também lancei mão de outras ferra-
mentas metodológicas, como observação participante, etnografia
virtual, indicações sociométricas, notas de campo, entrevistas temáticas
abertas e semi-estruturadas, investigação documental e análise textual,
no intuito de constituir uma base material significativa para um

139
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

desenvolvimento satisfatório e frutífero da investigação. Por se


tratar de uma abordagem qualitativa, optei desde o início por
trabalhar não com hipóteses, a serem testadas, ou teses, a serem
defendidas, mas sim com questões de pesquisa. Não me servi de
hipóteses, para evitar o risco de encontrar apenas o que estava
procurando e já acreditava saber de antemão. As questões de pes-
quisa que me propus não eram retóricas, não demandavam apenas
uma confirmação ou uma refutação, mas sim uma resposta ou
mais respostas, e quem sabe até mesmo novas questões como
resposta. Essas questões iniciais foram se transformando no
decurso da investigação; portanto, as questões que apresentarei
adiante são as questões que nortearam por fim a tese doutoral.
Essas questões guiaram a análise estrutural, ou macroanálise,
para a qual toda minha base material foi relevante, e a análise
fina, ou microanálise, executada sobre um corpus analítico mais
restrito selecionado em meio ao arquivo maior de componentes
discursivos acessados. Esse corpus representa a voz das mulheres,
paridas e parteiras, e se restringe a relatos de parto e cartas à/ao
obstetra. Adiante apresento com mais detalhes o corpus analítico
subjacente ao recorte aqui apresentado. Agora, vamos às ques-
tões que guiaram a minha pesquisa:

i. Como se identificam as autoras dos textos analisados com


respeito ao período pré-natal e ao momento do nascimento?

ii. Como é representada/identificada, nos textos do corpus ana-


lítico, a figura da/o profissional da assistência que a acompanha
nesse período/momento?

iii. Como são representados os contextos do pré-natal e do


nascimento nesses textos?

iv. Como se relacionam essas representações/identificações com


a conjuntura mais ampla em que elas acontecem ou das quais
elas resultam?

140
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

v. Como se (re)produz e/ou minimiza discursivamente o problema


da violência obstétrica por meio do uso da linguagem?

Para abordar essas questões durante uma das etapas da ma-


croanálise, lancei mão de um software para tratamento de dados
em pesquisas qualitativas, um dos softwares disponíveis de QDA
(qualitative data analysis software) e submeti o corpus analítico a
ferramentas analíticas disponíveis no programa. Esse corpus foi
composto por nove relatos de parto escritos entre 2008 e 2013,
alguns gerados especificamente para a pesquisa, outros coleta-
dos, com consentimento das autoras, em listas de discussão em
torno da gestação, do nascimento e da maternidade, ou ainda
coletados, enquanto documentos públicos, em blogs abertos
acessíveis na Internet.
Com o auxílio das ferramentas desse QDA, realizei um pri-
meiro passo para uma análise temática mais fina, selecionando
e agrupando excertos, ou fragmentos discursivos, nos termos de
Jäger (neste livro), que vinham, de alguma maneira, responder a
alguma das questões propostas ou, ainda, que revelaram, no feixe
discursivo em questão, temas por mim não previstos, mas que,
durante essa análise, saltaram aos olhos e pareceram relevantes.
Para este capítulo, selecionei fragmentos que indicassem
respostas para a primeira das cinco questões de pesquisa men-
cionadas, qual seja: Como se identificam as autoras de relatos de
parto com respeito ao período pré-natal e ao momento do nascimento?
Foram agrupados, então, fragmentos discursivos relacionados à
autoidentificação. É importante ressaltar que, embora o recorte
tenha focado a autoidentificação, esse fato não impede que se
explorem os fragmentos selecionados para além desses limites.
Embora, para fins analíticos, lancemos mão de recortes e de
categorias que viabilizem o trato dos textos, os fragmentos por
fim alcançados raramente serão como gavetas a guardar isola-
damente uma única resposta, um único assunto. As possíveis

141
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

respostas não ocorrem de maneira bem delimitada, exclusiva,


mas antes num emaranhado em que a mistura de significados e
de leituras possíveis é a regra. Portanto, é possível reconhecer,
na análise aqui apresentada, excertos que extrapolam os limites
da autoidentificação, contemplando, ainda que indiretamente,
outras das questões propostas. Devido aos limites deste capítulo,
apenas será apresentada a análise referente a um dos nove relatos
analisados com o auxílio do QDA.
Antes de apresentar a análise fina do relato escolhido,
comento, a seguir, as categorias analíticas que nos ajudarão a
escrutinar esse texto. Começamos pelo próprio conceito de
discurso que norteia essa análise e, em seguida, situamos os
conceitos de dispositivo, prática social, feixe discursivo, fragmento
discursivo, enunciado, posição discursiva, pressuposto, normalização,
intensificação, mitigadores e reforçadores, e modalidade.
Na abordagem de análise de discurso crítica proposta por
Margarete Jäger e demais pesquisadoras/es do Instituto de Pesqui-
sa Linguística e Social de Duisburg (DISS), o conceito de discurso
diz respeito a “formas reguladas de fala institucionalizada”, ou,
ainda, a “um fluxo de conhecimento através do tempo e do es-
paço” (JÄGER, 2012, p. 29). Margarete Jäger escreve (neste livro)
que discurso

diria respeito a forma e conteúdo de enunciados. E
sua análise responde, grosso modo, à pergunta sobre
o que é/foi, a um determinado tempo, dizível, como
e por quem. Isso significa que, durante a análise,
também sempre se tem em mente a pergunta sobre
o que não foi ou não é dizível.

A autora defende ainda, baseando-se num conceito de Fou-


cault, que discurso seria, mais especificamente, o componente
linguístico dos chamados dispositivos. Dispositivos, para além do
aspecto linguístico, seriam compostos também por visibilidades

142
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e reificações, ou seja, por práticas não discursivas (interações que


prescindem da linguagem verbal) e produções materiais, cujas
origens remetem à necessidade de dar conta estrategicamente de
questões sociais específicas. Na Figura 1, a seguir, tento ilustrar
graficamente essa proposta.

Figura 1: Dispositivo e seus componentes

Fonte: elaboração própria

Podemos tentar aqui fazer uma ponte com a abordagem de


Fairclough (2003), se entendemos que práticas sociais – “manei-
ras recorrentes, situadas temporal e espacialmente, pelas quais
agimos e interagimos no mundo” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH
1999 apud RAMALHO & RESENDE, 2011) – seriam equivalentes a
dispositivos, situados entre o potencial e o realizado socialmente
a determinado tempo, sempre contendo uma parte especifica-
mente afeta à linguagem, ou seja, ao discurso, que se concretiza e
torna acessível à/ao analista, em forma de textos, a materialização
de discursos. Essa ponte é possível desde que consideremos que
práticas sociais também correspondam a visibilidades e reifica-
ções para além do momento discursivo, ou linguístico.

143
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Em um texto de 2005, Ramalho e Resende lembram que


Harvey entende ser o discurso apenas um dos momentos da prá-
tica social, que também compreenderia “relações sociais, poder,
práticas materiais, crenças/valores/desejos, instituições/rituais”. E
que Chouliaraki e Fairclough, reformulando essa proposta, deno-
minam práticas sociais “maneiras habituais, em tempos e espaços
particulares, pelas quais pessoas aplicam recursos – materiais
ou simbólicos – para agirem juntas no mundo” (CHOULIARAKI
& FAIRCLOUGH, 1999, p. 21). Diante disso, Ramalho e Resende
(2005) escrevem que

Nessa perspectiva, o discurso é visto como um mo-


mento da prática social ao lado de outros três mo-
mentos igualmente importantes – e que, portanto,
também devem ser privilegiados na análise. Por meio
de análise de amostras discursivas historicamente
situadas pode-se perceber a internalização de outros
momentos da prática no discurso.

Embora, nessa conceituação, o foco esteja nos processos, é


inevitável admitir que consequências diretas da atividade material
seriam reificações, materializações. E se admitirmos ainda que
os fenômenos mentais sejam um pano de fundo para todos os
outros momentos e não exatamente um momento à parte, talvez
consigamos a aproximação desejada entre os conceitos de prática
social e de dispositivo, que aplicado ao estudo em pauta poderia
ser ilustrado da seguinte maneira:

144
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 3: Conceito de dispositivo exemplificado pela assistência obstétrica

Fonte: elaboração própria

Observando a Figura 3, pensemos, exemplarmente, na


assistência obstétrica hospitalar como prática social, ou como
dispositivo, que surgiu com a função estratégica de lidar com as
necessidades de mulheres durante a gestação e o parto.3 Além
dos aspectos discursivos presentes – nas histórias contadas e
ouvidas, ou escritas e lidas, sobre parto e nascimento, nos diá-
logos entre profissionais da assistência e mulheres, nos termos
técnicos encontrados na literatura de formação, entre outros
exemplos possíveis –, temos também as edificações: o prédio do
hospital ou da casa de parto onde o nascimento ocorre, o posto
de saúde onde o acompanhamento pré-natal é realizado, e, nesses
ambientes, toda a instrumentária utilizada em procedimentos
de rotina, ou não, como pasta de prontuários, jalecos brancos,
macas, suportes para soro fisiológico, fórceps, bisturis e agulhas
de sutura, só para citar alguns exemplos. E, além das edificações
e do aspecto discursivo, compõem o dispositivo também as rela-
ções sociais entre mulheres e profissionais da atenção, as relações
sociais potenciais determinadas pelas posições subjetivas das/
3 Sabemos que existem outras questões sócio históricas que levam ao surgimento de tais
instituições. Uma reflexão bastante aprofundada é encontrada, por exemplo, no trabalho de
Michel Foucault, “O Nascimento da Clínica”, de 1963. Entretanto, não nos aprofundaremos
aqui nesse assunto, pois isso extrapolaria o escopo do capítulo proposto.

145
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

os envolvidas/os, marcadas pela interseccionalidade de todos os


aspectos componentes de sua posição discursiva, conceito a que
voltarei adiante. Dito isso, cabe ressaltar que, para a análise fina,
ative-me ao componente discursivo do dispositivo afeto à prática
social do parto e do nascimento no Brasil, mais especificamente
na ação de mulheres que compartilham suas experiências em
relatos e cartas que falam do parto. Entretanto, isso não significa
que os outros componentes, vivenciados ou acessados, durante
todos os anos de pesquisa, não influenciem minhas interpretações
e os próprios textos que tomo como objetos.
Ainda no que diz respeito ao conceito de discurso, Fair-
clough (2003) diferencia entre um conceito mais abrangente de
discurso e o uso específico de um determinado discurso, ou ma-
neira específica “de representar aspectos do mundo”. A Escola
de Duisburg propõe, neste caso, a categoria de feixe discursivo.
Um feixe discursivo corresponderia a um conjunto de fragmentos
discursivos com temática comum, relativos a um mesmo discurso
(M. JÄGER, 1996; S. JÄGER, 2012). Esses fragmentos, por sua vez,
corresponderiam “a um texto ou parte de um texto que trata de
um determinado tema” (JÄGER, 2012, p. 80). Portanto, teríamos,
conforme os Jäger, o discurso como esse fluxo de saberes, vigentes
em um determinado espaço geográfico a um determinado mo-
mento histórico e referentes a um grupo social como um todo;
e os feixes discursivos seriam recortes temáticos no todo desse
discurso, acessíveis pela seleção de fragmentos discursivos, discurso
concretizado linguisticamente em textos, ou em passagens deles,
que contemplem a temática em questão. Também nesse aspecto,
pareceu-me mais confortável ter três denominações distintas e,
a meu ver, mais específicas, em lugar de lidar com uma mesma
palavra, como proposto por Fairclough (2003), para nomear duas
coisas notadamente diferentes. No intuito de prover uma visuali-
zação dessas abordagens em aproximação, apresentei o seguinte
quadro em minha tese de doutorado (REGIS, 2016):

146
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro 1: Conceitos comparados, escola britânica e escola alemã

Norman Fairclough Margarete e Siegfried Jäger


(2003) (1996, 2012, 2017, neste livro)

discurso “língua e outros tipos discurso “um fluxo de conhecimento


de semioses como ele- através do tempo e do espaço”;
mentos da vida social” “formas de falar institucionali-
zadas, sujeitas a determinadas
regras (passíveis de mudança) e
que, portanto, exercem efeitos
de poder, porque e na medida
em que determinam as ações
humanas”

discursos “diferentes maneiras feixes “recortes temáticos fechados


de representar aspec- discursivos dentro do discurso”
tos do mundo”

texto “qualquer instância de fragmento “texto ou parte de um texto


uso da língua” discursivo que trata de um determinado
tema”

enunciado “denominador comum de con-


teúdo, que pode ser abstraído
de orações e de textos”
“átomos do discurso”

Fonte: Adaptado de Regis (2016, p. 83)

Penso que também podemos imaginar a conceituação em


termos de discurso, feixe e fragmento discursivo, nos valendo da
imagem da refração da luz, sendo toda a luz que emana do sol
correspondente ao discurso como um todo (momento discursivo
da prática), e cada um de seus raios, cada feixe de luz, correspon-
dente a um feixe discursivo (discursos), feixe esse que submetido
ao prisma analítico, durante a análise estrutural, se decompõem
em enunciados diversos de um mesmo feixe.
Fragmentos representativos desses enunciados podem ser
selecionados, após uma etapa de macroanálise, a chamada análise
estrutural, para serem submetidos, enfim, como corpus analítico
stricto sensu à análise fina, à microanálise. O objetivo dessa

147
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

análise estrutural seria oferecer um apanhado estrutural de con-


teúdo, percorrendo, sem objetivar a exaustão, o arquivo pessoal
alimentado desde os anos iniciais da pesquisa, considerando as
vivências da observação participante, as entrevistas realizadas, os
textos midiáticos lidos e a produção audiovisual acessada, sem
uma atenção mais aprofundada aos aspectos especificamente
linguísticos desse arquivo, denominado, conforme a abordagem
de Duisburg, base material. Margarete Jäger afirma (neste livro)
que a análise estrutural

atentará sobretudo para o conteúdo do material. A


análise estrutural aponta para a determinação de
enunciados e de suas recorrências. Como resulta-
do, podem ser descobertos textos particularmente
típicos do discurso em questão. Esses serão então
objetos de uma análise fina, com a qual se investigará
a estrutura profunda dos enunciados.

A análise fina, ou microanálise, é definida por Margarete


Jäger (1996, p. 53) como sendo um passo analítico que “trata
tanto do conteúdo quanto da estrutura textual e abrange tanto
as estratégias de fala e argumentação assim como os meios sin-
táticos de que os participantes discursivos se servem”. E em seu
capítulo, neste livro, a autora escreve ainda que “nesse ponto,
são utilizadas também ferramentas linguísticas stricto sensu e são
analisados, entre outros, estrutura pronominal, pressuposições,
alusões e símbolos (coletivos)”.

148
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Figura 4: Proposta de visualização dos conceitos de feixe e de enunciado


discursivo propostos por Margarete

Fonte: Jäger e Siegfried Jäger (1996 e 2012)

Margarete Jäger escreve também (neste livro) que

discursos se deixam estruturar em diferentes feixes


discursivos, que são produzidos e reproduzidos
em diferentes níveis de discurso. Nós chamamos
de feixes discursivos desenvolvimentos de discurso
tematicamente homogêneos, sua análise traz à luz
“enunciados” e sua recorrência.

Ademais, defende que buscar reconhecer esses feixes discur-


sivos seria uma maneira de se perceber também algo que não se
busca, apreendendo todos os enunciados acerca de um tópico e
não somente aspectos previstos de antemão. A ideia, no estudo
em pauta, por exemplo, é buscar explicitar o feixe discursivo re-
ferente à gestação e ao parto no Brasil neste início de século. E
esse feixe se mostra em fragmentos discursivos, quer dizer, textos
ou passagens textuais relacionadas, por exemplo, ao período
pré-natal, à atenção hospitalar vivenciada ou ao atendimento
domiciliar realizado por uma parteira. O recorte textual a ser
analisado não existe a priori, cabe à analista perceber ou definir,

149
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

no decorrer do processo, o que faz sentido em seu projeto de


pesquisa específico. Graham Gibbs (2009), em seu livro sobre a
Análise de Dados Qualitativos, defende não haver separação possível
entre coleta e análise de dados nessa forma de pesquisa. Segundo
ele, a análise poderia e deveria começar em campo. Essa postura
garantiria a necessária flexibilidade e recursividade características
da pesquisa qualitativa. Resende (2008), baseando-se em Crabtree
& Miller (1992) e Mason (2006), escreve sobre esse caráter recur-
sivo da pesquisa qualitativa em ADC, cuja distinção em relação
à pesquisa quantitativa incluiria esse aspecto cíclico, o fato de a
geração/coleta e a análise de dados estarem relacionadas. Nessa
perspectiva, possíveis mudanças de rota na determinação do
recorte textual do corpus analítico, na formulação das questões
de pesquisas e de outros aspectos formais são não somente
aceitáveis, mas parte legítima e necessária do processo.
Por fim, reconhecidos e analisados os fragmentos discursivos
que compõem cada feixe, pode-se dar início à definição dos enun-
ciados que subjazem a esse feixe. A soma desses enunciados com-
põe o discurso vigente em um determinado momento histórico.
Enunciados, nessa abordagem proposta pelas/os pesquisadores/
as de Duisburg, que se afiliam aos estudos de Foucault, dizem
respeito a saberes que compõem o campo do dizível enquan-
to excluem o que seria, no tempo em questão, indizível. Nas
palavras de Jäger (neste livro), “enunciados não devem [...] ser
compreendidos como orações, mas sim como um denominador
comum de conteúdo, que pode ser abstraído de orações e de
textos”. Tanto o discurso, quanto a soma de todos os enunciados
que o compõem, estariam num plano potencial, concretizado/
concretizável em textos, cuja análise seria um caminho possível
para a evidenciação desses enunciados.
Margarete e Siegfried Jäger trabalham também com a ideia
de acontecimento discursivo. Embora todo e qualquer evento
social seja discursivo, alguns eventos reverberam com maior

150
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

intensidade, tendo, portanto, efeitos discursivos mais marcantes


e decisivos para mudanças de rotas ou reificações no fluxo de
conhecimentos e verdades históricas que são o discurso. Acon-
tecimentos discursivos, nessa perspectiva, são aqueles eventos
que têm, por exemplo, uma grande repercussão midiática e
que, por isso mesmo, têm o poder de, de maneira mais intensa,
influenciar a qualidade e a direção do feixe discursivo em que se
inserem (JÄGER, 2012, p. 82). Adiante neste capítulo retomo essa
noção de acontecimento discursivo, aplicada a minha pesquisa.
A posição discursiva também é uma categoria importante na
ADC de Duisburg. Margarete Jäger (1996, p. 47) argumenta que
essa posição diz respeito

[A]o lugar de onde se dá a participação e a avalia-


ção num discurso, por uma pessoa ou um grupo
ou instituição. [...] O resultado do envolvimento em
diversos discursos, aos quais o indivíduo foi exposto,
e, durante sua vida, processou em um determinado
posicionamento ideológico ou uma visão de mundo.

Em uma nota de rodapé, Siegfried Jäger escreve, na 6ª edição


de obra introdutória à ADC, Kritische Diskursanalyse: eine Einfürung,
sobre a posição discursiva como sendo uma categoria mais pro-
dutiva para pesquisa que a categorias tradicionais de pesquisa
sociológica como classe, idade, gênero, profissão etc. A posição
discursiva não se define previamente à análise, o que previne a
classificação de pessoas em grupos a priori, como costuma acon-
tecer quando aplicamos aquelas categorias tradicionais, frequen-
temente carregadas de pressuposições, não raro equivocadas.
Além de buscar delinear a posição discursiva para cada cola-
boradora da pesquisa, um esforço em explicitar a própria posição
discursiva, por parte da pesquisadora, é recomendável. Esse
intento confere maior transparência ao trabalho e corresponde
à assunção de que toda investigação sofre influência da posição

151
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

discursiva constitutiva da sujeita que a realiza. Para que a/o


pesquisador/a possa ser “sensível às perspectivas diferenciadas
de grupos distintos e ao conflito potencial entre a perspectiva
daqueles que estão sendo analisados e os que estão analisando”
(GIBBS, 2009, p. 23), é imperioso estar ela mesma ciente dessa
perspectiva e de que posição discursiva ela resulta. Ao explicitar
essa posição, a pesquisadora também se expõe às/aos leitoras/
es de seus trabalhos, para que também elas/eles possam seguir
com suas interpretações e tirar suas próprias conclusões de posse
dessa informação. “Nossas análises são, por natureza, interpreta-
ções, e, portanto, construções do mundo” (GIBBS, 2009, p. 23),
realizadas sob a perspectiva possível desde a posição discursiva
que nos situa.
Em meu caso, para tentar delinear essa posição, parece-me
importante relatar que desde o final de 2008, aos 32 anos, quando
de minha primeira gestação, comecei a me aproximar, estudar e
pesquisar sobre a temática. Desde então, pari duas vezes, pri-
meiro numa Casa de Partos, assistida por enfermeiros-obstetras,
e, mais tarde, em minha própria casa, assistida por uma parteira
diplomada. Posteriormente, sofri duas perdas gestacionais, am-
bas nos primeiros trimestres das gestações, quando contei com
a assistência, a orientação e o amoroso acolhimento da mesma
parteira que aparou minha segunda filha. Frequentei assiduamen-
te, durante as gestações e os puerpérios, o Grupo de Gestantes
do Hospital Universitário de Brasília, coordenado pela professora
doutora, enfermeira e parteira, Silvéria Santos, e desde então par-
ticipo, mais ou menos ativamente, em diversas listas virtuais de
discussão sobre a gestação, o parto e os desafios da maternidade.
Acompanho nas redes sociais virtuais o ativismo feminista pelos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres também na assistência
obstétrica brasileira e para o combate a toda forma de violência
contra as mulheres. A esse ativismo me afilio, também, com este
trabalho de pesquisa acadêmica e com a participação em eventos
e manifestações presenciais em prol dessa causa.

152
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

A análise fina, no plano mais propriamente linguístico, pode


contribuir entre outras coisas para elicitar uma posição discursiva.
Por exemplo, a seleção lexical pode trazer indícios de afiliação a
vertentes e perspectivas discursivas possíveis em referência a
um determinado tema. Também categorias como a de pressupos-
to, definida em Fairclough (2003) como o sentido implícito dos
textos, algo considerado pela autora de um determinado texto
como dado, conhecido e compartilhado socialmente, um ponto
de partida comum no qual se baseia a argumentação apresentada.
A utilização de pressupostos acontece em qualquer interação
linguística, pois nenhuma comunidade linguística renegocia
todos os conceitos a cada produção ou recepção textual; por
isso mesmo, esse recurso se serve sobremaneira a (re)produzir
normalidades ou normalizações, nos termos de Jäger (1996 e neste
livro). Conforme Margarete Jäger (2010, p. 101), “uma observação
sistemática dos pressupostos na análise fina dos fragmentos dis-
cursivos permite explicitar a congruência não verbalizada entre
participantes do discurso e a base desse discurso”.
Com relação aos conceitos de normalização, normalidade e
normalismo, Margarete Jäger defende (neste livro) que “a questão
sobre o que é ou não normal, o que deve valer como normal (e
como isso se define, se determina ou se mantém) é fundamental
para os debates centrais de uma sociedade”. Essas seriam cate-
gorias estabilizadoras, complexos semânticos sem os quais os
discursos não se sustentariam, e que exercem um papel essencial
na constituição dos sujeitos, pois esse normalismo possibilitaria
medir, quantificar, controlar e regular processos sociais. Um
exemplo de normalismo seria a contagem do tempo de gestação,
do número de semanas que deveriam ou poderiam “normalmen-
te” anteceder a data do nascimento, sem prejuízo para o feto
ou risco de ocorrência de sofrimento fetal. Alguns profissionais
encaram com normalidade a interrupção da gestação com uma
cesariana agendada na 39ª semana, considerando que o feto
estaria a termo, ou seja, pronto para nascer. Entretanto, sabe-se

153
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que algumas gestações podem se prolongar até a 43ª semana e


que a definição sobre qual é o tempo “normal” para a gestação
tem implicações diversas para o feto ou recém-nascido e para a
mulher. Outro exemplo seria a contagem ou definição do tempo
“normal” para a vivência do trabalho de parto. Com relação a essa
normalização do tempo, podemos lembrar o que van Leeuwen
(2008, p. 76) chama personalized time summons, determinações
que ocorrem quando a limitação do tempo que alguém tem para
realizar determinada ação ou vivenciar determinado processo é
exercida por uma terceira pessoa, que em certo contexto retém,
ou se imbui autoritariamente, do direito de “marcar o tempo”,
no caso, o tempo adequado para gestar ou parir. Em contrapar-
tida ao normalismo ou à normalização, podemos falar também
da denormalização de normalidades construídas e reproduzidas
discursivamente. Quando as mulheres deixam, por exemplo, de
dizer que “Dr. Fulano de Tal fez meu parto” e começam a declarar
desavergonhadamente “Eu pari”, elas contribuem para uma de-
normalização do padrão de protagonismo, comumente atribuído
à/ao obstetra, assumindo para si mesma o protagonismo do parir.
Devo mencionar, ainda, a intensificação, que seria, conforme
Martin e White (2005, p. 20), uma realização prosódica que “am-
plificaria o volume” da assertiva, que se realiza, por exemplo, por
meio de repetição, reforçando o peso de um elemento textual
qualquer. Laura Pardo (2011), também tratando do tom atribuído
a um determinado texto, ou de passagens dele, fala de mitigadores
e reforçadores, que poderiam tanto intensificar quanto atenuar o
tom das proposições. E a última das categorias que gostaria de
mencionar, antes de passar à análise propriamente dita, é a mo-
dalidade, que diz respeito a como, e com que intensidade (alta,
média, baixa), as autoras dos relatos se comprometem em termos
de verdade (modalidades epistêmicas) e em termos de obriga-
ção e necessidade (modalidades deônticas) com as proposições
texturizadas (FAIRCLOUGH,2003).

154
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

2. “NÃO, MEU MEDO NUNCA FOI PARIR”: ANÁLISE DO RELATO DE


CAMILA

O relato cuja análise apresento a seguir, o relato de Camila,


foi coletado do site da Casa Moara, um espaço de convivência
dedicado a mulheres grávidas e a suas famílias na cidade de São
Paulo. Camila era atendida havia muito tempo por uma médica,
mas durante a gestação não se sentiu correspondida em seu intento
de fazer todo o possível para que sua gestação tivesse seu ápice
num parto natural e resolveu mudar a equipe de assistência, que
por fim a assistiu durante o trabalho de parto, após o qual veio ao
mundo seu filho, em um parto vaginal hospitalar sem intervenções
consideradas desnecessárias. Na apresentação da análise, trarei os
fragmentos selecionados dentre aqueles que, durante a etapa da
análise estrutural realizada com o auxílio do software, identifiquei
como parte da autoidentificação da mulher com relação ao perí-
odo pré-natal e ao parto. Excertos que, embora pré-selecionados
durante a análise estrutural, não me pareceram muito produtivos
para a segunda etapa analítica, não foram escolhidos. Fazem parte
do conjunto de excertos a serem comentados a seguir fragmentos
pré-selecionados durante o primeiro momento analítico, e que
resistiram à segunda seleção imediatamente anterior ao momento
da microanálise. Quando considerado necessário para a melhor
contextualização do excerto, o fragmento também foi expandido
para abranger o cotexto. Para o caso de alguém querer ler o relato
na íntegra, o texto está disponível online4.
O relato de Camila tem início com o excerto apresentado
em (1):

1. Meu relato de parto começa muito antes de parir: quando


nos descobrimos grávidos, cada um sentiu um frio na barriga
diferente. No caso do Marcos, me pareceu carregado de felici-
dade e realização. O meu veio acompanhado por um vendaval
4 Disponível em http://www.casamoara.com.br/single-post/2013/03/22/Sempre-%C3%A9-
tempo-de-mudar-basta-ter-coragem-para-conhecer-o-novo, acesso em: 01/06/2017.

155
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

estomacal repleto de medo. Medo das mudanças, da responsa-


bilidade, de não ter trabalhado o suficiente, de me doar, de não
sentir o amor incondicional, de não saber cuidar, de não saber
ser mãe, e claro!, o medo de passar por uma cirurgia. Não, meu
medo nunca foi parir.

Nesse excerto, percebemos, já na segunda linha, um uso


linguístico denormalizador, que subverte uma “normalidade”, a
concepção tradicional da gestação como algo referente somente
à mulher; assim, Camila ressalta a figura do pai como co-prota-
gonista nesse processo que extrapola a fisiologia, envolvendo
inúmeros aspectos socioculturais que influenciam diretamente
no (bom) andamento da gestação e do nascimento.
Ao escrever “nos descobrimos grávidos”, Camila aciona
várias questões relacionadas às maneiras como discursivamente
se constituem subjetivamente os lugares da mulher e do homem
nesse processo, representações cujos efeitos na prática podem
ser, por exemplo, profissionais de saúde aceitarem e cumprirem
ou não a Lei Federal 11.108, que prevê o direito de que a mulher
tenha um/a acompanhante de sua escolha durante o pré-parto, o
parto e o pós-parto imediato. Lei cuja execução encontra muitas
vezes resistência por parte de profissionais da assistência obs-
tétrica, especialmente quando se trata de um acompanhante do
sexo masculino. Essa resistência motivou a campanha “Pai não é
visita. Pelo direito de ser acompanhante”, iniciada pelo Instituto
Papai, em parceria com o Grupo de Estudos em Gênero e Mas-
culinidades, da Universidade Federal de Pernambuco, e apoiada
veementemente por mulheres engajadas em redes nacionais de
defesa do direito humano a um parto assistido com respeito.
Na sequência do mesmo fragmento em (1), Camila menciona
quatro vezes a palavra medo, intensificando por meio de repe-
tição (MARTIN; WHITE, 2005) e mais uma vez denormalizando
o pressuposto “medo do parto”. Dos medos apresentados, num
crescendo, o maior deles é “o medo de passar por uma cirurgia”,

156
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

em contraposição direta ao medo de parir, negado duas vezes,


com “não” e “nunca”. Ao dar início a essa assertiva com um “não”,
Camila deixa evidente que supõe encontrar essa expectativa nas/
os possíveis leitoras/es de seu relato. E com o reforço de uma
dupla negativa (PARDO, 2011; MARTIN; WHITE, 2005), “não” e
“nunca”, rebate e denormaliza essa expectativa, promovendo um
desvio na rota desse fluxo discursivo, imprimindo mais peso a
outras questões relativas à maternidade e naturalizando o parto
iminente, como algo que não deveria ser assustador.
Mais adiante em seu relato, Camila menciona seu estado de
espírito durante a gestação: “feliz e saudável”. Entretanto, não
deixa de denormalizar, voltando a incluir a figura paterna como
diretamente envolvida no “próprio” parto, ao mencionar o “nosso
parto”, ao tempo em que, de certa forma, desmerece a figura da
médica ao selecionar o epíteto “a tal” para se referir a ela:

2. O tempo foi passando, eu me sentia cada dia mais feliz e sau-


dável. Passei a me questionar sobre como realmente seria nosso
parto e resolvi entender da tal médica, sempre evasiva, afinal de
contas, como é que seria o parto na visão dela.

Com o pré-natal mais avançado, e depois de concluir que


aquela médica não era a profissional considerada adequada para
acompanhá-la no propósito de trazer o filho ao mundo “de forma
mais natural”, Camila fala do prazer em estar grávida em (3):

3. Com 32 semanas e alguns amigos nos guiando, conhecemos a


nossa obstetriz e aquele que viria a ser nosso médico parteiro. A
sensação ao sair das consultas eu nunca vou esquecer… é difícil
achar palavras pra descrever, mas foi como respirar novos ares.
Pela primeira vez eu senti muito prazer em estar grávida.
Tudo fez sentido, pois minha vontade seria respeitada, afinal de
contas, alguém estava me ouvindo. Não precisou muita conversa
pra que eu entendesse o sentido da humanização, não só do
parto, mas de todo o processo até chegarmos a ele. A obstetriz

157
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

é uma fonte de energia e serenidade. O médico parteiro, um


ser humano apaixonante. Ambos amam o que fazem e fazem
com respeito.

Gabriel García Márquez escreveu um dia sobre um tempo


em que “o mundo era tão recente que muitas coisas careciam
de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo”.
Maria Bethânia canta os versos de Arnaldo Antunes, falando de um
lugar protegido e salvo, mas onde não se podia respirar. E o relato
de Camila me remeteu a esses autores, a essa citação e àquela
canção, pois sua dificuldade em “achar palavras pra descrever”
sua sensação ao se deparar com a possibilidade, tão remota no
contexto socio-histórico em que vive, de ser ouvida e de ter sua
vontade respeitada, alude à ideia de um mundo novo, cheio de
coisas ainda não nomeadas. E a metáfora biológica da respiração,
de novos ares, remete também ao pressuposto de falta de ar,
de falta de opção com que se deparam casais grávidos quando
resolvem ser protagonistas de seu parto e não apenas delegar
de olhos fechados a responsabilidade do evento e da tomada de
decisões necessárias a um/a médica/o toda/o poderosa/o, como se
estivessem “como um feto, sereno confortável, amado completo,
sem chão sem teto, sem contato com o ar”.
Reparemos ainda na segunda metade do excerto, na seleção
lexical. Camila poderia ter mencionado o “médico” ou o “par-
teiro”, mas escreve “médico parteiro”, e não “médico obstetra”,
por exemplo, termo cunhado e estabelecido, uma normalidade
vigente. Por meio de sua escolha linguística, Camila contribui para
a normalização de outro conceito, de um médico que reuniria em
si tanto os conhecimentos e a formação da medicina acadêmica,
quanto os saberes tradicionais da parteira. E o encontro com esse
ator social lhe permite, numa ruptura, num ponto de inflexão,
“pela primeira vez senti[r] muito prazer em estar grávida”, com
direito ao reforçador “muito”, algo que se distancia da metáfora
climático-fisiológica presente no fragmento em (1), “um vendaval

158
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

estomacal repleto de medo”, quando, entre outros, reinava o


“medo de passar por uma cirurgia”. Esse medo não era de fato
infundado, se considerarmos as estatísticas dos nascimentos no
Brasil, com mais de 50% dos nascimentos acontecendo por meio
de cirurgias cesarianas.
Na sequência de seu relato, com a relação de causalidade
denotada em “pois”, na primeira linha do segundo parágrafo do
fragmento em (3), Camila levanta o pressuposto de que a (des)
assistência como tem acontecido não faria sentido, por não res-
peitar a vontade da mulher, por não ouvi-la. E seguindo, Camila
reforça o movimento iniciado por sua seleção lexical e avalia a
obstetriz e o médico parteiro, concluindo o parágrafo que se inicia
com a avaliação absoluta de que “tudo fez sentido”, atribuindo
isso ao amor e ao respeito com que exercem sua profissão. Ca-
mila ressalta ainda ter entendido o “sentido da humanização”,
compondo esse campo semântico com as lexias “energia”, “se-
renidade”, “amor” e “respeito”, tudo isso associado a termos
técnicos como “obstetriz” e “médico”, ainda que “parteiro”.
Embora obstetriz apareça no dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa como sendo o mesmo que parteira, sabemos que,
discursivamente, os dois termos têm efeitos distintos. Parteiras
são, tradicionalmente, chamadas as mulheres leigas que assistem
outras mulheres durante o trabalho de parto, sem ter necessa-
riamente uma formação acadêmica ou uma escola formal. Obs-
tetrizes, por sua vez, são egressas do único curso universitário
que forma obstetrizes no Brasil, na Universidade de São Paulo.
Na página oficial do curso, lê-se, em resposta à pergunta, “O que
é obstetrícia?”, que

a Obstetrícia é a ciência que estuda a reprodução


humana. Investiga a gestação, o parto e o pós-parto
nos seus aspectos fisiológicos e patológicos. O termo
“obstetrícia” vem da palavra latina “obstetrix”, que é
derivada do verbo “obstare” (ficar ao lado). Para al-

159
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

guns, seria relativo à “mulher assistindo à parturiente”


ou “mulher que presta auxílio”.5

A obstetrícia seria, então, uma ciência, uma investigação da


reprodução humana, de seus aspectos fisiológicos e patológicos.
A palavra parteira não aparece nenhuma vez na página que res-
ponde a essa pergunta, embora saibamos que algumas pessoas
entendam que obstetrizes sejam ‘parteiras diplomadas’. Pode-
mos dizer que a obstetriz seria uma parteira “cientificada” e o
médico parteiro, um médico que além da técnica e da formação
universitária teria a sabedoria e a paciência não intervencionista
de uma parteira tradicional.
Enfim, sabemos que, discursivamente, as seleções lexicais
nunca são neutras e trazem sempre em seu bojo uma avaliação
pressuposta. Selecionar ou não a denominação parteira, selecio-
nar ou não o termo obstetriz é sempre indicativo de um certo
enunciado discursivo sobre as práticas a serem reconhecidas
e promovidas, ou não. Marjorie Tew (1990), versando sobre a
hospitalização do parto no Reino Unido e sobre a integração de
parteiras no ambiente hospitalar, lembra que ataques às habili-
dades profissionais das parteiras geraram a forte aspiração por
parte delas para que sua profissão fosse regulada. Mas, ironica-
mente, o sucesso em atingir essa meta não aconteceu sem que
fosse sacrificada a sua tradicional supremacia como provedoras
da assistência obstétrica. Com o passar do século XX, parteiras
com treinamento formal, o que poderíamos chamar obstetrizes,
substituíram parteiras tradicionais ou curiosas, mas seu papel
foi cada vez mais subordinado ao da/do médica/o obstetra,
transformando-a assim, no final das contas, de fato, em uma
enfermeira obstétrica.
Apesar de estar agora sendo acompanhada pela equipe que
desejava, o relato de Camila ainda contém bastante “medo”; ainda
5 Página do Curso de Obstetrícia da Universidade de São Paulo, disponível em <http://www.
each.usp.br/obstetricia/obstetricia.htm>, acesso em: 10 de março de 2016.

160
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que esse medo seja incluído para ser negado, ele sempre volta a
ser mencionado, como no excerto em (4), em que esse vocábulo
ocorre mais oito vezes.

4. Adiante com o pré-natal, agora respirando novos ares. Uma


pergunta sobre o parto que o médico parteiro fez nas consultas
foi: “Você tem medo de quê?” Eu ainda estava com alguns medos,
verdade. Por vezes tentei responder essa pergunta a ele, e até
inventei um medo: “Medo da pressão subir e eu passar mal no
meio do parto”, rs. Acho que ele não acreditou, mesmo assim
com um punhado de palavras rebateu o “pseudo medo”.
Não tenho medo da dor, nem da passagem do bebê, nem mais
a placenta me põe medo. Entendi que do parto é que eu não
tinha medo.

Como podemos ler, todas essas menções ao medo, repeti-


ções lexicais que reforçam e intensificam esse sentimento, são
mais uma vez realizadas para lembrar que entre todos esses
medos possíveis, na realidade “pseudomedos”, não estava o
medo de parir, mais uma vez denormalizando o senso-comum
segundo o qual o parto seria um evento temível. A clivagem “é
que” também funciona como um reforço em sua afirmativa. Aqui
percebemos um exemplo de ação contradiscursiva, assim como
escreveu Margarete Jäger (neste livro) citando Foucault:

Mas Foucault chama atenção para o fato de que
discursos também podem minar e decompor o po-
der: “Os discursos, assim como o silêncio, não são
submetidos ao poder ou posicionados contra ele para
todo o sempre. Trata-se antes de um jogo complexo
e instável, no qual o discurso pode ser, ao mesmo
tempo, um instrumento ou um efeito de poder, mas
também obstáculo, contraponto, ponto de resistência
e de partida para uma estratégia contrária. ” (FOU-
CAULT, 1983, p. 100).

161
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quando relata o momento em que a bolsa amniótica se rom-


peu, quando estava num restaurante em companhia de familiares,
que entraram em pânico, Camila escreve:

5. O tempo parou, olhei a minha volta e disse com um sorriso


largo no rosto: “Garçom, cancela o pedido, pois minha bolsa
rompeu”. Meu primo e a esposa dele ficaram em pânico, umas
senhoras que estavam no restaurante me olhavam sorrindo e
dizendo “Bom parto minha filha”.
Achei graça a bolsa ter rompido. A sensação do líquido escor-
rendo pelas pernas foi carregada de felicidade e realização.
Não tive medo. Sorri em resposta às senhoras e acalmei meus
primos. Pedi que me levassem para casa e não para o hospital
como eles sugeriram.

Mais uma vez, em (5), a seleção lexical compõe um campo


semântico denormalizador, ao associar esse rompimento da bolsa
amniótica a expressões como “um sorriso largo”, “olhavam sor-
rindo”, “achei graça”, “felicidade e realização”, “sorri”, “acalmei”.
Denormalizador do “pânico dos familiares” e da expectativa de
que a mulher nessa situação sentisse “medo”. Nessa última pas-
sagem, completando 15 ocorrências dessa palavra “medo”, que
é incluída no relato para ser desconstruída, denormalizada, há
mais um movimento de intensificação da negação do medo do
parto, medo que é representado, é incluído e reconhecido como
padrão discursivo para ser minado.
Ainda no fragmento em (5), são acionados dois dispositivos,
a “casa” e o “hospital”. Os dispositivos têm, como salienta Mar-
garete Jäger, apoiando-se em Foucault, uma função estratégica.
Segundo ela (neste livro), “eles se constituem em situações sociais
específicas, servem para lidar com ou solucionar problemas no
âmbito dessa constelação”. Embora neste trabalho o foco esteja
voltado para o discurso, ou seja, o lado linguístico do dispositi-
vo, na representação desse contraponto casa-hospital, aparece
mais uma maneira discursiva de subversão da ordem vigente, da

162
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

prática naturalizada, normalizada recentemente, de se conduzir


as mulheres em trabalho de parto para hospitais em lugar de
mantê-las em ou levá-las para casa. Pois a casa e o hospital aqui
deixam de ser espaços, passam a ser semiotizados, se empre-
nham de sentidos em relação ao tema. Note-se que tanto a casa
quanto o hospital são instituições sociais surgidas para lidar com
necessidades humanas específicas e que, no Brasil, até bem pouco
tempo, o espaço da casa também previa o parto como parte das
necessidades a serem atendidas por esse dispositivo. Mott (2002,
p. 207) afirma que em 1945, 70,4% dos partos do maior município
do Brasil, o município de São Paulo, ainda aconteciam em casa.
Lembremos aqui o acontecimento discursivo (M. JÄGER, 1996;
S. JÄGER, 2012), ocorrido em 2012, quando um vídeo de parto
domiciliar compartilhado e muito acessado na internet motivou
uma reportagem apresentada por um programa televisivo de
ampla difusão, num domingo à noite, no qual um médico de São
Paulo se pronunciou favoravelmente ao parto domiciliar. O acon-
tecimento provocou uma reação imediata do Conselho Regional
de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ), que no dia seguinte
denunciou o médico ao Conselho Regional de Medicina de São
Paulo, por ter se posicionado daquela maneira, pois o parto en-
volveria muitos riscos e deveria sim ocorrer em local equipado e
com uma equipe ‘preparada para lidar com esses riscos’.
O CREMERJ se posicionou ainda, formalmente, contrário à
realização de partos domiciliares e “publicou as resoluções 265
e 266, declarando vedadas tanto ‘a participação do médico nas
chamadas ações domiciliares relacionadas ao parto’ quanto ‘a
participação de pessoas não habilitadas e/ou de profissões não
reconhecidas na área da saúde durante e após a realização do
parto, em ambiente hospitalar’, e incluindo expressamente nessa
proibição ‘as chamadas ‘doulas’, ‘obstetrizes’, ‘parteiras’ etc.”
(REGIS, 2015, p. 4731).

163
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Uma forte contrarreação a esse posicionamento, conside-


rado arbitrário, foi a chamada Marcha do Parto em Casa, que
aconteceu no domingo seguinte com a participação de centenas
de pessoas por todo o país; um dos gritos de guerra entoados
por participantes clamava: “no hospital eu sou mãezinha, na
minha casa eu sou rainha”. Grito esse que, fazendo alusão ao
vocativo frequentemente utilizado por profissionais de saúde
ao se dirigir à mulher em trabalho de parto (ou acompanhando
filhos/as em consulta pediátrica, como observou Magalhães,
2000), denuncia o diminutivo que contribui para que a mulher
entenda que deva se pôr no devido lugar, por não estar em
sua casa. O estar em casa ou no hospital, o ser chamada de
mãezinha ou ser chamada pelo próprio nome, cada uma dessas
possibilidades tem efeitos discursivos e serve, potencialmente,
ao que Fairclough (2003, p. 208) chama inculcação, à consti-
tuição de nosso posicionamento subjetivo. Essa inculcação
pode atuar na determinação do “endereço da mulher”, como
o definiu Helmstetter (2003, p. 183), argumentando que o ser
humano não se torna ser humano já pelo nascimento ou pela
criação, mas só por meio de seu lugar na ordem simbólica, na
qual precisa ser inserido.
Um dispositivo comunica esse endereço de diversas for-
mas, tanto pelo discurso concretizado nos usos linguísticos dos
atores sociais que ali atuam, quanto naquele concretizado em
edificações, objetificações, limitações espaciais, como as que
constituem a casa e o hospital, por vezes com semelhanças, mais
na maioria das vezes com efeitos discursivos bastante distintos,
especialmente na constituição subjetiva da mulher que está em
trabalho de parto. Por isso, podemos considerar denormalizador,
também nesse fragmento, o relato de Camila e o registro de que
queria ir para casa e não para o hospital.
Sobre o momento em que chegou à casa, Camila escreve:

164
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

6. A caminho de casa as contrações começaram… não achei


graça nisso. Liguei para o Marcos e quando cheguei em casa tive
uma sensação de alívio (não nas dores) emocional. Vi que ele
preparou a casa pra mim: baixou as luzes e colocou as músicas
que escolhemos para o parto. Sentir que ele estava lá, presente
em todos os sentidos, foi a maior segurança que eu podia ter.

Em (6) lemos que, se a graça diminuiu e as dores não alivia-


ram, houve alívio emocional, e “a maior segurança que [...] podia
ter”. E essa segurança é atribuída à presença do companheiro ao
seu lado naquele momento, com a casa preparada para ela, com
o conforto de suas músicas. Todo esse cenário é o oposto do que
a maioria das mulheres vivencia em um hospital qualquer, num
ambiente estranho e sem direito a um/a acompanhante de sua
escolha, com muita luz e pouca privacidade, cujas implicações
fisiológicas podem incluir um trabalho de parto mais sofrido e
uma experiência que justifica o medo, comunicado depois de
diversas maneiras e que motiva muitas mulheres a buscar uma
saída menos amedrontadora, como, por exemplo, algo que pode
parecer, à primeira vista, bem mais tranquilo como uma cesárea
agendada.
Mais adiante em seu relato, referindo-se já à fase expulsiva,
Camila age mais uma vez denormalizando estruturas discursivas
quando menciona a vontade de fazer força, em (7).

7. Sempre imaginei como seria a tal vontade de fazer força.


Seria psicológica? Racional? Ou física? Física! Senti o corpo se
contrair por vontade própria, como um espasmo, um movimento
involuntário.

É disseminado o costume de pedir à parturiente que faça


força em algum momento do parto, possivelmente, quando
profissionais da assistência obstétrica acreditam que é chegada
a hora e que o empenho voluntário da mulher seja indispensável.
Entretanto, Camila racionaliza e expõe o que teria sido sua ex-

165
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

periência, afirmando que o movimento é involuntário. Portanto,


seria desnecessário e, por que não dizer, até contraproducente
ficar dizendo à mulher que deve fazer força, gerando uma pressão
psicológica ao responsabilizá-la por algo sobre o qual inexiste
controle.
A construção textual do relato tem um efeito quase onoma-
topeico, não no sentido fonético, mas na reprodução da onda de
movimento involuntário que se impõe em meio ao “imaginar”
como “seria” essa vontade, inicialmente com uma modalidade
epistêmica que situa essa vontade de fazer força num plano ima-
ginário, questionável, marcado tanto pela escolha lexical do verbo
imaginar, quanto pelo uso do verbo ser no futuro do pretérito e
pela interrogação. Esse imaginário é interrompido subitamente
por uma resposta curta e direta como o movimento involuntário
que se impõe, “Física!”, com ponto de exclamação, que marca o
espanto dessa volta súbita do imaginário para o concreto real de
“senti o corpo se contrair por vontade própria”. Camila parece
desenhar o movimento corpóreo e anímico com as palavras, de
maneira tão didática que faz despertar a esperança de que seja
lida, compreendida e aprendida, de que o poder da prática dis-
cursiva estabelecida possa de fato ser minada, de que palavras
desnecessárias sejam poupadas nesse momento em que a mulher
necessita silêncio e entrega ao involuntário que se lhe impõe.
E o último dos medos, o que seria a décima sexta ocorrência
da palavra, não é um medo, é um “medinho” que a invade logo
após o nascimento de seu filho, mas que também é desconstruído
de imediato:

8. Senti uma alegria tão intensa, fiquei paralisada sorrindo e


olhando pra ele. A placenta que ainda me dava um medinho…
que placenta?? Ela nasceu e eu nem vi.
Com ele no colo, voltei para a maca e por ali ficamos por muito
tempo. Eu olhando pra ele, ele dormindo e o Marcos chorando.
Foi um momento em que o tempo parou.

166
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Em (8), fragmento extraído já da parte final do relato, Camila


mina discursivamente mais um medo possível, o medo do parto da
placenta, o parto que sequer teria sido percebido. Esse momento
corresponde à fase final do parto, após o nascimento do bebê, que
tem início com as contrações, seguidas pelo período expulsão do
bebê. A placenta é um órgão gerado durante a gestação e que faz
a “interface” entre a mulher e o feto, suprindo as necessidades
fisiológicas do ser em formação, e sendo naturalmente expelido
pouco depois do parto.
Ainda nesse fragmento, temos duas menções ao tempo, “por
muito tempo” e “um momento em que o tempo parou”. Essa
possibilidade, de estar no pós-parto imediato, por muito tempo,
com o próprio bebê no colo e de gozar da sensação de que o
tempo teria parado, poderia não ser tão relevante. Entretanto,
diante de uma realidade em que muitas/os recém-nascidas/os
são separados de suas mães logo após o nascimento para serem
submetidos a procedimentos de rotina questionáveis, ou em
que mães passam horas para finalmente poderem ver o rosto de
suas/seus filhas/os pela primeira vez, muitas vezes numa espera
solitária, proclamar essa possibilidade como algo real e vivido por
ela mesma é um convite a outras mulheres para que reconheçam
essa vivência como normalidade e não se contentem com menos.
Fechando seu relato, Camila segue interpelando, por meio
do testemunho de sua vivência e de suas reflexões, mais mulhe-
res a acreditarem na experiência possível de um parto digno e
respeitoso:

9. Olho para trás e respiro aliviada todos os dias quando penso


que sempre é tempo de mudar. Que basta ter coragem para co-
nhecer o novo e mudar o ponto de vista. Que ter desconfiado
de tantas certezas me fez renascer como mulher.
Ter parido da forma que eu queria fez de mim uma mulher
realizada!

167
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Embora modalize subjetivamente em (9), conferindo subje-


tividade a suas afirmações ao dizer “penso que”, sua afirmação
denota categoricamente a totalidade do tempo no advérbio
“sempre”, confere poder absoluto à “coragem de conhecer o
novo” – que nós poderíamos na realidade dizer “retornar” ao
velho, à tradição, pois a novidade é o parto medicalizado e cheio
de intervenções, não o parto natural e fisiológico. A autora do
relato convida, por meio da utilização de uma metáfora, do “re-
nascer”, ao renascimento possível quando se desconfia de certe-
zas estabelecidas. Ao utilizar em uma mesma oração os conceitos
de desconfiança e certeza, Camila, mais uma vez, denormaliza,
contribuindo para o abalo de estruturas de um sistema no qual
mulheres vêm sendo violentadas em nome de certezas tantas
vezes questionáveis e sem fundamentação.
É importante notar, por fim, que, como em muitos dos cha-
mados apaixonados e encantados, esta representação também
traz consigo o risco de romantização e de essencialização femi-
nina. Ao vincular a realização da mulher à experiência da mater-
nidade, aqui especificamente à experiência do parto, pode-se
estar reproduzindo também mais umas dessas mesmas certezas
cuja revisão se faz necessária.

PALAVRAS FINAIS

Como já foi dito antes, ao final da análise empreendida deve-


ríamos chegar a enunciados, evidenciá-los para enfim podermos
submetê-los à crítica. Esse é um dos grandes desafios analíticos
da abordagem proposta, e a esse exercício passo a seguir.
Ressalte-se que, embora busque agora explicitar os enuncia-
dos associáveis à análise aqui apresentada, não chego até eles
somente devido a essa única análise. Sua dedução é possível
graças a toda a imersão temática evidenciada em minha posição
discursiva, à macroanálise empreendida previamente e a outras

168
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

análises finas realizadas tendo outros textos como corpus analítico


(REGIS, 2015; REGIS; RESENDE, 2015).
Um dos enunciados que podemos deduzir da análise reali-
zada é a vigência do pressuposto, da normalidade, do medo do
parto, medo ao qual a autora tenta se contrapor com seu relato,
ao tempo em que ressalta outro medo sentido, especialmente
entre as mulheres que almejam parir naturalmente, com o mínimo
de intervenções possíveis: o medo de ser submetida (desneces-
sariamente) a uma cirurgia.
Outro enunciado equivaleria à afirmação: caso você não
encontre a equipe, você provavelmente não conseguirá receber
uma assistência que respeite seu protagonismo no momento do
parto. Recorrente nos relatos analisados, esse enunciado se marca
no relato de Camila pela menção à troca de médica e pelo alívio
relatado, de quando encontrou a “equipe humanizada”. O relato
de Camila deixa entrever a diversidade possível, exemplarmente,
entre médicos (os “parteiros” e os outros). Sendo que os outros
seriam a regra e “os parteiros”, um novo ar.
Também poderíamos destacar como enunciado a busca por
uma alternativa diferente diante da assistência obstétrica atual,
uma busca que não dispensa a técnica e a formação acadêmica,
embora a deseje complementada pelas qualidades imaginadas de
uma parteira tradicional. Vemos aqui um permear entre discursos,
uma interdiscursividade, um enliçamento discursivo, para usar o
termo de Margarete Jäger (1996), que defende que os distintos
discursos e suas vertentes sempre se entrelaçam, influenciam,
sustentam, e que seria interessante observar como participan-
tes do discurso lidam com esse enliçamento, em parte também
contribuindo, ou não, para sua constituição ou reprodução. Pois
se é verdade que Camila resiste, ela não renega por completo a
medicalização vigente atualmente na assistência obstétrica.

169
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Outro enunciado: existe um anseio pela humanização da


assistência obstétrica, para que essa assistência aconteça com
serenidade, amor e respeito. E só se faz necessário falar dessa
humanização porque ela não corresponde à normalidade. Por-
tanto, entendo que, embora o relato de Camila refira-se a uma
experiência positiva, de uma assistência “humanizada”, ele todo
pressupõe a excepcionalidade dessa experiência, o que tem como
pano de fundo, como já mencionado anteriormente, os altos
índices de violência obstétrica verificáveis no país.
A disputa espacial e discursiva entre os dispositivos casa e
hospital também evidencia um enunciado: a expectativa de que
partos ocorram em ambientes hospitalares e que ao primeiro
sinal de trabalho, ou mais imediatamente, após a bolsa rota, as
mulheres devam se dirigir ao hospital. Sabe-se, contudo, que um
número crescente de mulheres, inclusive Camila em seu relato,
buscam fazer valer o direito a uma assistência de qualidade tam-
bém se preferirem parir em seu próprio lar. E com sua resistência
viva na denormalização do medo, Camila faz ecoar em nós a
pergunta: “Você tem medo de quê?”.

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172
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO PARA ANÁLISE


DE TEXTOS E A TEORIA DOS DESLOCAMENTOS

María Laura Pardo

INTRODUÇÃO

Este capítulo reúne uma breve síntese do método sincrônico-


diacrônico e a tradução do Capítulo 8 de meu livro Metodología
de la investigación lingüística: método sincrónico-diacrónico de análi-
sis lingüístico de textos (PARDO, 2011), em que desenvolvo o que
denomino “teoria dos deslocamentos”.1 O objetivo deste texto
é aprofundar o método mencionado e observar suas potenciali-
dades em outras reflexões linguísticas. Além disso, algumas no-
ções fundamentais para o uso do método são aqui esclarecidas,
como as noções de ‘rema do texto’ e de ‘nexo de valor’. Algumas
seções – e, de forma especial, a que trata do conceito de rema
do texto – foram corrigidas, e a explicação que pode ser lida em
meu livro já citado foi ampliada.
É importante destacar que este método funciona como uma
teoria básica: parte dos dados (neste caso, dados linguísticos) para
gerar teoria, indutivamente. O método sincrônico-diacrônico para
análise linguística de textos permite, mediante o mapeamento de
categorias gramaticalizadas e semântico-discursivas, reconstruir
1 Este capítulo foi traduzido do original em espanhol por Gersiney Pablo Santos. A revisão
da tradução foi feita pela própria autora, junto ao tradutor, e por Viviane de Melo Resende.

173
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

representações sociodiscursivas que se encontram no próprio


texto.
O método é eficaz tanto para a análise de discurso quanto
para a análise de discurso crítica, especialmente para esta última,
já que com sua aplicação podem-se alcançar as representações
sociais que se constroem discursivamente, sem recorrer à análise
de conteúdo e sem apresentar categorias ou conceitos a priori à
análise linguística. Assim, a análise linguística de textos com este
método mapeia não somente as categorias gramaticalizadas, mas
também aquelas que variam segundo os textos e têm um caráter
semântico-discursivo. São estas últimas as que determinam quais
representações discursivas se podem analisar em um texto em
particular.
A análise de discurso crítica, como seu nome indica, atenta
principalmente para temáticas nas quais o discurso constitui uma
ferramenta de discriminação. A análise de discurso crítica busca
mudança social por meio de ação discursiva. Em outras palavras,
nesse caso a mudança social está na mudança discursiva.
Este capítulo começa, então, com explicações sobre a ‘hierar-
quização da informação’ (noções sobre tema e rema da emissão,
e tema e rema do texto), segue com a noção de ‘nexo de valor’
para, em seguida, apresentar uma breve síntese do método sin-
crônico-diacrônico, finalizando com a teoria dos deslocamentos.
Assim, será possível ter uma visão geral do método, bem como
de algumas das teorias que o apoiam e complementam.

1. ACERCA DA HIERARQUIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO

É fundamental esclarecer, antes de começar, o que é uma


emissão para este método. Analistas de discurso, incluindo aque-
les/as que seguem uma perspectiva crítica, analisam emissões em
contextos, e não proposições lógicas como se faz em algumas
gramáticas. O termo sentence, que foi traduzido para o português

174
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

como oração, refere-se a uma proposição lógica descontextuali-


zada. Por outro lado, o termo utterance refere-se à emissão dita,
emitida em contexto. Portanto, em análise de discurso analisam-
se emissões, não orações. A definição de emissão depende de
outros conceitos, como tema e rema, que são explicados a seguir.
A informação produzida por um/a falante está sempre hie-
rarquizada, ou seja, parte da informação que ele/a, de modo
consciente ou não, quer destacar. Por outro lado, a ordem de
palavras do espanhol obriga o/a falante a ajustar a informação
a uma estrutura, no caso: Verbo, Sujeito de desinência, Objeto
(VSO). Como acontece com quase todos os elementos da língua,
a ordem e a estrutura são passíveis de serem desrespeitadas e
de alcançar, assim, inferências que permitam uma interpretação
diferente por parte do/a ouvinte ou leitor/a.
Seguindo a linha da Perspectiva Funcional da Oração (dora-
vante PFO), mas reconsiderando-a em relação à análise de textos,
podemos dizer que: 2

O tema é a parte da emissão que tem menor grau de dinamismo


comunicativo, ao passo que o rema é a parte da emissão que
tem maior grau de dinamismo comunicativo. Podemos, então,
definir uma emissão como a realização de um tema e um rema.

A PFO denomina “dinamismo comunicativo” aquilo que faz


com que a emissão seja passada adiante, com que ela progrida
na informação transmitida, que permita que do ponto de partida
da emissão seja buscado o objetivo comunicacional.
Quando ocorre uma ordem do tipo tema-rema, está caracte-
rizada a situação não marcada; isto é, a mais frequente na língua.

2 Leve-se em conta que a PFO realizou análises em proposições lógicas ou orações, isto é,
unidades nunca postas em uso, desse modo, fora de contexto. Aqui, põe-se a necessidade de
expandir as noções que essa perspectiva utiliza da oração para o texto, ou seja, ao contexto
e, obviamente, a seu uso. Para um conhecimento mais detalhado da Perspectiva Funcional
da Oração (Functional Sentence Perspective), consultar Mathesius (1939) e Firbas (1992).

175
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Ordem não marcada:


Não sublinhado: tema
Sublinhado: rema
João passeia por Brasília.

Nesta emissão, podemos destacar, também, que a zona


com maior grau de dinamismo comunicativo é a que chamamos
“foco”. Esta zona focal sempre se encontra ao final da emissão,
geralmente precedida por uma preposição (neste caso “por”) ou
por alguma forma suprassegmental (vírgula, ponto-e-vírgula). O
foco responde à ordem de palavras típica da língua e é o lugar
em que concentramos cognitivamente nossa atenção, seja para
ler ou para escutar.
Numa emissão em ordem não marcada, tema, rema e foco
aparecem assim:

tema rema
foco

Uma ordem marcada implicaria uma estratégia comunicativa.


Comparemos, por exemplo, (1) e (2):

1. O capitalismo trouxe fortes consequências econômicas e


implicações sobre a soberania da Grécia.

2. Fortes consequências econômicas e implicações sobre a so-


berania da Grécia foram trazidas pelo capitalismo.

No exemplo (1), temos a ordem não marcada, ao passo


que no exemplo (2) temos a ordem marcada, na qual o tema,
a informação com menor dinamismo comunicativo, está na
posição em que deveria estar o rema (e, assim, o rema ocupa o
lugar do tema). Tal inversão permite deixar de fora as consequ-
ências do capitalismo e, assim, manter como informação mais

176
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

dinâmica aquela que tem pouco dinamismo comunicativo – “o


capitalismo”.
Assim, se o exemplo (2) fosse tomado de um texto concreto,
por exemplo, de uma notícia, o/a leitor/a teria uma informação
não focalizada, já que a informação efetivamente dinâmica e nova
estaria na zona lida como a menos importante da emissão. Não se
trata, então, de ser menos importante, mas de ser lida como tal.
Ainda que, pela lógica, ambos os exemplos sejam iguais, eles
não o são semanticamente, tendo em vista que, conforme ob-
servado, o primeiro enfatiza as más consequências trazidas pelo
capitalismo para a Grécia, ao tempo que o exemplo (2) enfatiza
tais consequências como fruto “do capitalismo”. Em espanhol, é
possível observar que o/a falante parece querer rematizar toda a
informação, já que o sujeito gramatical aparece com pouca frequ-
ência e, quando aparece, é apenas como declinação verbal. Isso
também acontece em português, mesmo que em menor grau.
Observando o exemplo a seguir, o único elemento não sublinhado
e, por isso, temático, é o “o” que marca a declinação verbal da
primeira pessoa do singular. O que está sublinhado, entretanto,
é o rema da emissão:

Tenho vontade de ir passear em Brasília.

É por isso que se pode sustentar que as emissões em espa-


nhol (como também nesse exemplo em português) são, em geral,
elas todas, rema. Mas o destaque acontece no interior do rema,
no qual se pode reconhecer, por sua vez, uma relação similar de
tema-rema. Observando a cadeia temática-remática, quando um
tema alcança seu rema, este se tematiza para voltar a gerar um
novo rema até alcançar o objetivo comunicacional.
Vejamos o exemplo a seguir: 3
3 Em português: “O neoliberalismo [tem efeitos] [que são difíceis] [de combater a partir de
nossas economias] --- [porém não impossíveis] [de solucionar em um futuro] [que se mostra
promissor]”.

177
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

A possibilidade de a emissão guardar sucessões de temas


e remas – os quais se vão encadeando – permite observar não
apenas uma sequência de estruturas sintáticas subordinadas que
assumem a forma de uma emissão, mas também a necessidade
semântica de gerar a informação suficiente para atingir um pro-
pósito comunicativo. Nessa relação semântica, destaque-se, não
existe a subordinação, mas uma relação concatenada de temas
e remas, em que um rema se tematiza para dar lugar a um novo
rema e assim sucessivamente.

2. TEMA E REMA DO TEXTO

A premissa inicial desse tipo de análise é que tanto o tema


como o rema do texto estão na parte remática da emissão. Dado
que a parte mais remática de uma emissão é sempre a de maior
carga semântica, maior dinamismo comunicativo e maior inde-
pendência do cotexto,4 o tema do texto, assim como o rema
textual, deve situar-se neste setor, já que essas noções são as
mais hierarquizadas de todo o texto e necessitam de uma grande
força comunicativa e semântica.
A respeito da dependência cotextual (ou seja, da relação que
o tema e o rema do texto guardam com o resto das emissões), o
tema do texto terá maior dependência cotextual, já que o tema
textual será o tópico (aquilo de que se fala ou escreve) em todo
o texto. Quanto ao rema do texto, uma vez que se trata daquilo
4 O “cotexto” corresponde ao contexto textual.

178
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que o texto em seu conjunto (ou seja, todas as emissões toma-


das como um todo) busca comunicar, a informação mais nova,
o rema deve ser o mais independente do cotexto (para maiores
esclarecimentos dessas noções, consultar Pardo, 1986, 1992).
O rema do texto é estabelecido ao compararem-se todos os
remas das emissões entre si e pela determinação de qual deles
tem maior carga semântica, assim como qual é o mais indepen-
dente5 do cotexto (PARDO, 1996). O rema textual será o rema de
uma emissão cuja carga semântica e dinamismo comunicativo
sejam maiores que os dos remas restantes do texto.
Vejamos graficamente (PARDO, 2011, p. 45):

Quadro 5:

Fonte: em Pardo (2011, p. 45)

5 Dizemos que um tema ou um rema é independente do cotexto quando não há referências


diretas ou indiretas ao conteúdo dos itens lexicais que essa noção abrange.

179
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

É importante, também, definir a noção de Emissão Líder


(doravante EL). A EL é a primeira emissão que o/a falante reali-
za para iniciar seu texto; em determinado sentido, é a menos
constrangida (ou mais livre), visto que não está condicionada por
nenhuma emissão anterior. Por outro lado, a EL está projetada
e destinada a ser a mais dependente das mudanças no texto,
pois desde seu início está direcionada para o rema textual, para
o que o/a falante quer de fato dizer. A EL é a origem do texto,
que no momento dessa emissão ou da textualização ainda não
chegou a ser, caracterizando-se como tal no ato da fala ou da
escrita. O produto textual, assim, muda e se realiza no rema
do texto, quando o/a falante conseguiu dizer o que queria. O
rema do texto é o produto: faz com que a elaboração textual
gere texto.
O texto pode definir-se, portanto, como a realização de uma
EL (que, supostamente, em geral, reúne nela o tema do texto) e
das emissões que a seguem como padrão ou guia até chegar ao
rema do texto (potencialmente ativo na EL). A similitude – tanto
estrutural quanto léxica – que costuma ter o resto das emissões
mostra de forma clara como a fala está sujeita a uma memória
cognitiva finita, que usa a repetição como uma forma de reter
mais facilmente o fio condutor do texto, tanto em sua produção
quanto em sua recepção. Essa similitude entre forma, léxico e
estrutura é o que destaca o alto grau de isomorfismo ao qual
estamos sujeitos quando falamos/escrevemos.
Todas as línguas hierarquizam a informação de acordo com
sua ordem de palavras, por isso é que é possível dizer que a
linguagem é um sistema que se organiza hierarquicamente. Daí
a hierarquização da informação não ser um recurso ou uma es-
tratégia, mas um princípio da linguagem.

180
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

3. A NOÇÃO DE NEXO DE VALOR

A categoria gramaticalizada nexo de valor corresponde, em


parte, ao que, geralmente, denominou-se em diversas gramáticas
como “verbo”: em parte porque a categoria nexo de valor (dora-
vante NVx) implica muito mais do que se tem visto em diversas
correntes da Linguística e da Semiótica vinculadas a essa noção.
Os NVx podem coincidir com o item lexical “verbo” e/ou com
outro/s itens lexicais que não sejam verbos, mas que operem
completando sua função ou seu significado.
Para a Gramática de la Lengua Castellana de Bello e Cuervo
(1964), o verbo é “uma palavra que denota o atributo da propo-
sição, indicando conjuntamente o número e a pessoa do sujeito,
assim como o tempo desse atributo”. O verbo é “por excelência o
atributo em si porque todas as outras palavras das quais ele pode
fazer parte não fazem mais do que se referir a ele, explicando ou
particularizando seu significado” (BELLO e CUERVO,1964, p. 34).
Esse modo de ver o verbo é diferente do de outras gramáticas
mais tradicionais, as quais apenas tomam o verbo como o núcleo
do predicado. A despeito disso, em nenhuma delas é tratada a
relação entre (i) o/a falante que realiza a emissão e decide o que
conectar, i.e., relacionar de modo determinado, (ii) aquilo acerca
do que está falando (tema) e (iii) o que quer dizer sobre algo ou
sobre si mesmo (rema).
Em todo nexo de valor existem duas partes fundamentais:

1. A intenção do/a falante de estabelecer uma conexão (daí ser


um “nexo”).

2. A intenção de conferir um valor determinado a essa conexão


(daí ser um “nexo de valor”).

Entende-se por valor:

181
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

a. Uma avaliação, adequação (valoração) que o/a fala nte faz sobre
a conexão e sobre as partes a conectar.

b. Uma noção tanto paradigmática quanto sintagmática, no sen-


tido saussureano mais estrito do termo, enquanto se organiza em
torno de uma escala de valores relativa a outros valores (termos)
que coocorrem entre si ou que são substituíveis.

O diagrama a seguir mostra um esquema de como funciona


um nexo de valor:

Diagrama 1: Funcionamento do Nexo de Valor

Fonte: elaboração própria

Quando linguistas se detêm no estudo do verbo, em geral,


levam em consideração alguns destes tópicos: o modo, o tempo,
o aspecto. Já outras teorias compreendem, além disso, a moda-
lidade ou o que alguns chamam de Aktionsart (modo de ser da
ação) (POTTIER, 1992, 1993).

182
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Neste caso – e para esta teoria –, é fundamental ter em conta


todas as características verbais mencionadas. É fundamental ob-
servar os verbos em uso e, por conseguinte, em relação a outros
verbos coocorrentes, seja como principais ou subordinados, seja
como localizados nas emissões, ou ainda na totalidade do tex-
to. O valor de um verbo, assim como acontece com as palavras,
realiza-se em sua oposição paradigmática ou sintagmática. Além
disso, é preciso levar em consideração as substituições possíveis
e o tipo de contexto linguístico e extralinguístico em que apa-
recem. Outro ponto relevante na análise dos NVx refere-se a seu
significado. Vejamos um breve exemplo:

e1: [“A política corre o risco de degenerar-se em um ramo da


economia e em uma crônica das desventuras afetivas de dirigen-
tes e de seu círculo de amigos”]

Na emissão (e1), temos o sintagma a política e o NV1 que se


realiza com corre perigo de degenerar-se. Nesse caso, trata-se de
uma cadeia que primeiro completa o verbo correr (que, no caso, é
transitivo: correr o risco); contudo correr também cria um aspecto
para o risco, atribuindo-lhe um caráter de duração. Ainda assim,
degenerar(-se), como infinitivo, não perde seu caráter de futuro
ou de probabilidade, mas, ao contrário, modaliza a qualidade do
perigo. Desse modo, acentua-se e reforça-se a modalização que
o verbo correr porta quando se insere em uma frase como a do
exemplo: corre o risco.
Não seria estranho encontrar na gramática a definição da
frase como frase verbal com o núcleo corre com um objeto direto,
tendo em vista que correr é transitivo e que o objeto direto tem
um especificador dado pelo infinitivo. Ainda assim, o método e
a teoria discutidos aqui permitem uma análise que vai além da
gramática tradicional e, desse modo, torna-se possível considerar
o caráter verbal e o modal dessa frase, assim como seu Aktionsart.

183
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Ruiz Yamuza (2008, p. 381) discute a forma “correr o risco +


infinitivo” no verbo grego kinduveuw com o sentido semelhante
ao aqui analisado:

Uma ampliação ainda mais fundamental se desen-


volve a partir de um infinitivo, aparentemente o
segundo argumento do verbo, o objeto. O infinitivo
limita-se a demarcar no que consiste o risco e, em
certa medida, é correferencial ao predicado “arriscar-
se”. Os infinitivos são todos dinâmicos, não têm au-
tonomia temporal nem modal. As formas verbais de
kinduveuw manifestam uma tendência interessante
de apresentar-se em tempos e modos que indicam
probabilidade. Em outras palavras, nas formas de
futuro ou em subjuntivos de caráter marcadamente
probabilístico (ou de futuro).

Ainda no exemplo em (e1), o emissor, por meio do NV1 (cor-


rer o risco de degenerar-se) apresenta a possibilidade de a política
poder sustentar-se entre duas “probabilidades”: uma ramificação
da economia ou a crônica das desventuras afetivas de algum dirigente
e de seu círculo de amigos.
Desse modo, a análise dos NVx possibilita um olhar comple-
mentar ao tradicional defendido pelas gramáticas. Isso permite
também uma análise mais profunda e mais ligada ao campo se-
mântico. Para analistas de discurso, é fundamental aprofundar nos
significados e comportamentos, nesse caso dos nexos de valor, já
que eles são, de alguma forma, os elementos chave dos textos.
São os nexos de valor que dão conta, de modo muito preciso, das
formas apassivadas ou de encobrimento de atores sociais, assim
como das representações mais agentivas. A análise dos nexos de
valor, então, nos permite, entre muitas outras coisas, comparar
as representações de ações de diferentes atores/grupos sociais,
com muito maior exatidão. Sem dúvida, a categoria nexo de valor
não é só profícua, mas também complexa, e requer definições

184
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

detalhadas que vão além da análise realizada mais adiante neste


capítulo – e que, para esgotá-las, seria necessário escrever um
livro exclusivo sobre o tema (para maiores informações, estão
disponíveis vários trabalhos sobre a categoria: ver Pardo, 1992,
1996, 2001, 2008).

4. O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO PARA ANÁLISE


LINGUÍSTICA DE TEXTOS

O método sincrônico-diacrônico para análise linguística


de textos (PARDO, 2008) permite trabalhar os textos de modo
indutivo-qualitativo,6 levando em consideração as categorias que
surgem do texto e não as que o/a investigador/a poderia sugerir
aprioristicamente.7
Além disso, ele permite vincular conceitos ou categorias
de tipo social com categorias gramaticalizadas ou discursivas
(ver a seguir) que aparecem nos textos e, desse modo, explicar
conceitos sociais de acordo com formas linguísticas que funcio-
nam como recursos e estratégias de um/a ou mais falantes. Por
recurso, entende-se uma forma linguística que produz um efeito
comunicativo, por exemplo o uso do diminutivo; e uma estratégia
refere-se ao conjunto de recursos linguísticos que coocorrem com
mesmo fim comunicativo. No método que proponho, recursos
e estratégias dão base metodológica à união entre o social e o
textual.
Nesse sentido, o método funciona como uma ‘teoria básica
ou fundamentada’. Com este termo, Strauss e Corbin (2002, p.
214) referem-se a

uma teoria derivada dos dados, organizados de


modo sistemático e analisados por um processo de

6 Para noções básicas sobre metodologia qualitativa em Linguística, ver Pardo (2015b).
7 Para a edição completa do capítulo sobre o método sincrônico-diacrônico de análise linguística
de textos em português, ver Pardo (2014).

185
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

investigação. Nesse método, a reunião de dados, a


análise e a teoria que surgirá deles guardam uma
relação estreita entre si. O/A pesquisador/a não
inicia um projeto com uma teoria pré-concebida (a
menos que o propósito seja elaborar e ampliar uma
teoria existente). Ainda, começa com uma área de
estudo e permite que a teoria emerja a partir dos
dados. O mais provável é que a teoria derivada dos
dados se aproxime mais da “realidade” do que uma
teoria advinda da união de uma série de conceitos
baseados em experiência ou somente especulando
(como imagina que as coisas deveriam funcionar).
Visto que as teorias fundamentadas se baseiam nos
dados, é mais provável que gerem conhecimentos,
aumentem a compreensão e proporcionem um guia
significativo para a ação.

O método sincrônico-diacrônico para análise linguística de


textos, portanto, muito além de ser um conjunto de ferramentas
de análise e interpretação textual, implica uma série de crenças
sobre o funcionamento da linguagem e, por conseguinte, consti-
tui inclusive uma teoria. Em primeiro lugar, é importante destacar
que a teoria tem uma marca semântica. Em segundo lugar, ela
implica a revisão de certos aportes da linguística fundamentais
para sua explicação. Essa revisão está baseada na necessidade
de reconsiderar certas noções surgidas de modo apriorístico,
dedutivo, quando aplicadas a textos concretos. Entre as noções,
está a de oração, entendida, em algumas gramáticas, como
proposição lógica – a qual, ao passar para uma emissão e ainda
para um texto, obriga sua reformulação. Por sua vez, o que foi
mencionado se acentua se forem tomados em conta alguns ele-
mentos do contexto situacional e social.
A teoria e o método sincrônico-diacrônico para análise lin-
guística de textos indicam que todos os textos orais e escritos têm
um número de categorias gramaticalizadas e outras semântico-
discursivas. As categorias gramaticalizadas, em geral, são de

186
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

caráter obrigatório, independentemente do gênero discursivo


(BAKHTIN, 1988) trabalhado; as categorias semântico-discursivas,
entretanto, variam de texto para texto (veja a seguir).
Os termos ‘sincrônico’ e ‘diacrônico’, nessa teoria e nesse
método, referem-se à leitura das categorias. No caso da sincro-
nia, a leitura é linear em cada emissão (um exemplo está mais
adiante). A diacronia permite uma leitura longitudinal de cada
categoria em sua realização textual.
No quadro a seguir (retirado de PARDO, 2011, p. 106), que ilustra
uma aplicação do método sincrônico-diacrônico para análise linguística
de textos (que explicaremos em mais detalhes adiante), é possível
ler o texto analisado em sincronia, isto é, emissão por emissão (na
horizontal, pelas linhas), e também em diacronia, tomando cada
categoria ao longo de todo o texto (na vertical, pelas colunas), o que
permite ver quais itens lexicais são realizados em cada categoria.

Quadro 7: Exemplo de aplicação do MSDALT

Fonte: em PARDO, 2011, p. 106

187
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Os recursos linguísticos e as estratégias podem ser rastrea-


dos por meio do uso do método no texto todo, e não somente
no cotexto imediato da emissão. O procedimento é fundamental
na hora de interpretar cada recurso e estratégia, uma vez que
deve ser realizado sempre em relação com as outras formas e
recursos com os quais coocorrem.
Esse método, tal como observamos, comporta uma teoria
linguística. Para utilizá-lo, é necessária uma série de conheci-
mentos linguísticos, muitos deles reformulados, a fim de poder
deslocá-los de seu uso tradicional a outros nos quais a palavra em
ação é o foco e em que a unidade mínima de análise é o texto,
em sua situação comunicativa e também social.
O método tem diversos objetivos, e o primeiro deles é
possibilitar a reconstrução dos dados oriundos da codificação
em categorias (gramaticalizadas ou não) que constituem as pro-
priedades de uma representação sócio discursiva a partir dos
textos ou da representação em si mesma. O segundo objetivo é
alcançar uma teoria que funcione como uma teoria básica ou de
nível intermediário, tendo em vista que a teoria gerada a partir
do método é muito próxima aos dados linguísticos. O terceiro
objetivo é analisar certos fenômenos da língua, como, por exem-
plo, o alto grau de isomorfismo existente nos textos escritos ou
orais. Finalmente, observar como, além das limitações gramaticais
apresentadas pelos textos, existem outras atreladas à quantidade
de conceitos semânticos que um/a falante pode manipular em
um texto. Isso está ligado, em linhas gerais, à primeira emissão
que aparece narrativamente (fora da zona de orientação)8 e que
contém todas as categorias semânticas que aparecerão no texto,
à exceção daquela que constituirá seu rema (ainda que prevista).

8 O termo zona de orientação faz alusão ao esquema proposto por Labov e Waletzky (1967)
sobre as narrativas em que se reconhecem várias zonas: a zona de orientação, em que se
apresentam as personagens que participam da narração; a zona de nó, em que a temática da
narração se torna complexa, e, finalmente, a zona de descomplexização, em que se alcança
o desenlace da narração. Em alguns textos ainda aparece outro setor, denominado “coda”,
que atua como encerramento.

188
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Categorias gramaticalizadas e semântico-discursivas

As categorias gramaticalizadas são de caráter obrigatório.


Elas são as indicadas a seguir.

Falante-Protagonista (doravante F-P): corresponde a qualquer


pessoa pronominal ou qualquer referente nominal que assuma
o argumento do/a falante. Cabe esclarecer que a categoria não
aparece necessariamente na posição de sujeito gramatical ou
lógico da emissão.

Nexo de Valor 1 é o “verbo” com que o/a falante age de alguma


maneira. Este verbo marca apenas as ações do sujeito e não as
de outros atores no texto.

Ator/Atores: qualquer pessoa pronominal ou referente nominal


que toma os argumentos opostos aos que sustenta o/a falante.

Nexo de Valor 2 (ou verbo 2) com o qual o/s Ator/Atores age/m.

Tempo e Lugar: ambas dizem respeito à orientação espaço-tem-


poral, necessária e obrigatória em qualquer texto.9

Operador pragmático: costuma aparecer em todos os textos e tem


diferentes funções, desde destacar como interpretar parte da
emissão a conectar diferentes emissões ou setores na emissão,
ou como recurso para interpelar ou conseguir a cumplicidade
do/a ouvinte ou leitor/a.

Negação: esta categoria é, por assim dizer, flutuante, pois pode


aparecer negando o verbo, outras palavras ou setores de uma
emissão. A categoria não tem o mesmo grau de obrigatoriedade
das anteriores.

9 Para saber mais sobre a categoria de lugar, ver Pardo (2015a).

189
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

As categorias semântico-discursivas são textualmente variá-


veis, e tornam-se reconhecíveis em um texto por sua alta recor-
rência. Por exemplo, educação, moradia, família etc. poderiam ser
categorias semântico-discursivas abordadas em um texto dado.
A maioria das categorias semântico-discursivas (e inclusive as
gramaticalizadas) podem ser representações sociodiscursivas
em si mesmas ou fazer parte delas, atuando como suas pro-
priedades. O/A falante constrói nos textos as representações
que faz sobre o mundo, assim como faz com as propriedades
que as constituem (para uma análise mais detalhada, confrontar
(PARDO, 2011 e PARDO, 2014).

Os deslocamentos
A teoria dos deslocamentos refere-se a um estudo siste-
matizado dos movimentos realizados pelo/a falante dentro das
emissões ao mudar de uma categoria gramatical ou semântico-
discursiva para outra. Não se deve confundir com a linearidade
que, supostamente, têm os deslocamentos, uma vez que dizem
respeito à forma de escrita das línguas latinas e a sua ordem de
palavras. É relevante para a análise observar como um/a falan-
te muda de tom entre um conteúdo semântico (tópico, topoi,
argumento, ou como se chame) e outro, podendo reter em sua
conversação “lugares” de significação, bem como mover-se entre
eles de acordo com sua memória. Essa teoria tenta explicar esses
movimentos, assim como as hesitações e os erros na fala (alguns
deles considerados “atos falhos” nas teorias psicanalíticas). Desse
modo, alguns deslocamentos lineares, no início e no fim dos tex-
tos (zona de descomplexificação – aparição do rema textual e da
coda), opõem-se a movimentos na zona de complexificação. Esses
deslocamentos teriam um correlato cognitivo, já que o/a falante
precisa fazer uma série de operações para poder manejar esses
níveis de hierarquização, categorização etc., de modo a alcançar
aquilo que deseja comunicar com todo o texto.

190
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

No exemplo a seguir, as flechas indicam os deslocamentos


de uma categoria a outra. Levando em conta que o método
sincrônico-diacrônico para análise linguística de textos respeita a
ordem na qual aparecem as categorias na emissão dos/as falantes,
os deslocamentos não são um atributo criado pelo método: ao
contrário, revelam a forma como os significados se deslocam a
partir da fala, bem como cognitivamente.

5. EXEMPLO

A fim de ilustrar as noções e conceitos apresentados até aqui,


vejamos um exemplo extraído de uma entrevista:

e1 [Eu estou muito marcada, digamos, desde minha educação na re...


em um tipo de relação homem-mulher] e2 [Eu vivi digamos em um
tipo de relação homem-mulher o homem esperava que eu fizesse] e3
[Penso que inclusive a juventude tem um modo de agir diferente não
é em função do outro, mas em função e nesse jeito de cada um ser ele
mesmo a relação homem-mulher se dá muito melhor] e4 [Eu e ainda
até o dia de hoje chegar a uma relação assim] e5 [Isso me custa pra
mim estou muito marcada por um tipo de educação em que a mulher
tinha que estar observando o homem para fazer as coisas se o homem
queria sim não queria não]

191
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro 9: Quadro sincrônico-diacrônico de e4 e e5

Fonte: elaboração própria

Observemos a primeira emissão, (e1). Para a categoria gra-


maticalizada de F-P, temos o item lexical “eu”, e para o Nexo
de Valor 1, “estou”. A categoria semântico-discursiva Marca é
realizada com “muito marcada”; a de Operador pragmático com
“digamos”. A categoria de Tempo se estabelece também como
semântico-discursiva, já que a falante destaca sua educação em
relação ao tempo, em “desde minha educação”. Assim, torna-se
Tempo/ Educação: a categoria de tempo mantém seu valor de

192
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

gramaticalizada, no entanto se funcionaliza no discurso como


semântico-discursiva também.10
Seguindo o quadro, temos uma categoria denominada Pas-
so , que aparece com frequência e deve ser observada na análise.
11

Ela está colocada na emissão por um erro ou falha: “na re...”, mas
esse erro (que pode ser também uma hesitação) é o que nos per-
mite deslocá-la da coluna Tempo/ Educação, pela categoria Passo,
para a categoria semântico-discursiva Relação homem-mulher. Na
presente análise, existe uma visão funcional desses erros, uma
vez que, em muitos casos, permitem ao/à falante ter mais tempo
para poder introduzir uma categoria (quer seja gramaticalizada
ou semântico-discursiva), que, por algum motivo, acaba sendo
difícil de apresentar.
Seguindo com a emissão líder (EL), a categoria semântico-
discursiva Relação homem-mulher se realiza com “em um tipo de
relação homem-mulher”, em seguida aparece mais uma vez um
Operador pragmático.
A (e2) é uma realização da EL, tomada como modelo em dife-
rentes categorias. Na de Falante-Protagonista, temos novamente
um eu. Em Marca, não encontramos nenhuma implementação
lexical, e o texto se desloca até a categoria Tempo/ Educação para,
logo em seguida, voltar a mover-se para a categoria semântico-
discursiva Relação homem-mulher – que se repete de forma literal
e acrescenta a informação nova: “o homem esperava que”. Em
seguida, desloca-se de forma destacada para a categoria Falante-
Protagonista com o “eu” para chegar até o NV1: “fizesse”.
A (e3) contém a parte mais intrincada do discurso em seu
início, ao passo que começa nela a zona de complexificação. A
10 Para se aprofundar sobre os casos mencionados, ver Pardo (2014).
11 NT: Após conversa com a autora, optamos por traduzir a categoria como “passo” – que,
conforme explicado pela autora, teria o sentido de demonstrar uma passagem semântico-
discursiva da expressão “na re”, promovida por essa espécie de hesitação (i.e., “re” para
“relação”) –, o mais próximo possível de seu original em espanhol (“paso”), pois, de acordo
com a autora, o sentido (de “passo”) tem que ver com uma ação “como em cada movimento
feito pelo pé de uma pessoa”, em deslocamento: ou seja, literalmente, um passo.

193
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

categoria de F-P transforma-se na zona escolhida pela falante para


sofisticar o texto, por meio do recurso de mudar do pessoal para
o impessoal para voltar, por fim, ao pessoal. Nessa categoria, a
falante utiliza os termos “juventude” e “outro”, e logo, dando
início ao desenlace, um deslocamento é produzido, atravessando
a categoria de Passo (com “nesse jeito de”), a qual não alcança
a categoria Relação homem-mulher, mas leva a falante a retroce-
der (deslocar-se) para a categoria de Falante-Protagonista, para
realizá-la com “cada um” e seguindo com “ele mesmo”.
Por sua vez, a categoria NV1 se realiza, em um primeiro
momento, com “penso”: ela aparece com uma marca clara de
primeira pessoa do singular, dada na desinência verbal. Mas em
seguida o Nexo vai se despersonalizando cada vez mais, primeiro,
em terceira pessoa do singular, com “tem um modo de agir dife-
rente”, depois, em “não é”, e finalmente no infinitivo “ser”. Em
continuação, temos o deslocamento até a categoria semântico-
discursiva Relação homem-mulher (isto é, cognitivamente retoma
o tópico), e a referência não é apenas o rema da emissão: ela se
constitui no rema do texto: “cada um ser ele mesmo a relação
homem-mulher se dá muito melhor”.
Nesse caso, poderíamos quase falar de uma questão dia-
lógica, que vai do mais pessoal, passando pelo impessoal, para
chegar novamente ao pessoal. Aqui, os deslocamentos são muito
breves, pois vão da categoria de F-P à de NV1.
Em (e3), temos duas realizações para a categoria semântico-
discursiva Marca e outras duas para o Operador pragmático. A
categoria Marca poderia unir-se com a categoria Relação homem-
mulher e constituir uma só categoria, nomeada Relação homem-
mulher. Fica a critério de cada investigador/a. O mesmo acontece
com o NV1, que poderia ter sido dividido em NV1 – quando se
trata de ações do F-P – e em NV2 se for considerado que existem
algumas dessas que são de outros atores. Preferi manter apenas
a categoria NV1 para ser possível ver melhor que são modos pe-

194
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

los quais a F-P se observa e comenta sobre si mesma a partir de


uma suposta impessoalidade. O NV1 “tem uma maneira de agir
diferente” antecipa que as formas linguísticas a aparecer não são
compatíveis com a ação da falante.
A (e4) termina com a zona de desenlace: “Eu e ainda até
o dia de hoje chegar a uma relação assim”. A emissão inicia a
zona de descomplexificação: por essa razão, os deslocamentos
começam a pedir certa linearidade, isto é, que as transições en-
tre tópicos sejam menores. E a (e5) fecha o texto: “Isso é difícil
para mim” – um falso início que serve de transição, como vimos
anteriormente –, “estou muito marcada por um tipo de educação
em que a mulher tinha que estar observando o homem para fazer
as coisas se o homem queria sim não queria não”.
Estabeleci para a (e5) duas opções possíveis de construção
da análise. A primeira segue o que foi feito nas emissões anterio-
res. Então, podemos observar como os deslocamentos seguem
a ordem que a falante deu a suas categorias gramaticalizadas e
semântico-discursivas na primeira emissão (e1). Assim elas se
tornam mais suaves, pois se movem de tópico a tópico, seguindo
um percurso sem sobressaltos. Há, desse modo, um contraste
com a (e3), em que os deslocamentos são muito curtos ou muito
largos, mostrando como o texto foi sofisticado. A segunda opção
condensa quase todas as categorias na última (Relação homem-
mulher), visto que poderia ser tomada como um fechamento espa-
cial para a categoria, tendo em vista constituir o rema do texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho, foram brevemente explicadas as noções de


tema, rema, tema e rema textual, emissão líder e nexo de valor.
Também foram sintetizados os objetivos do método sincrônico-
diacrônico para análise linguística de textos, sendo abordadas as
categorias gramaticalizadas e as semântico-discursivas. Finalmen-

195
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

te, foi explicada a teoria dos deslocamentos, que se aprofunda


no método há pouco citado.
Tanto para a análise de discurso quanto para sua perspectiva
crítica, é fundamental a análise linguística dos textos tomados
como dados. Um texto deve ser analisado minuciosamente para
que se possa dar conta de como se articulam precisamente as
representações sócio discursivas, o mundo imaginário, as formas
de interação etc. entre interlocutores/as. Não se deve esquecer
que são os/as interlocutores/as que, com suas palavras, criam o
estado de coisas em que se encontra o mundo.

REFERÊNCIAS

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

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197
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

APLICANDO O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO


DE ANÁLISE LINGUÍSTICA DE TEXTOS

Gersiney Pablo Santos

INTRODUÇÃO

A extrema pobreza pode ser observada no contexto sócio-


histórico brasileiro desde há muito tempo, consequência de
questões como a escravidão no Brasil, a crescente industrialização
alimentada pelo intenso êxodo de pessoas do campo e a ocupação
de espaços urbanos antes inutilizados, questões que formaram no
país seres humanos invisibilizados e interpretados como estorvos
sociais. Estamos falando da população em situação de rua.1
Essas pessoas sofrem os efeitos da lógica da opressão
de forma direta, mas, ao mesmo tempo, indiretamente. Dire-
ta porque não dispõem dos bens simbólicos básicos para o
exercício da cidadania como a entendemos (i.e., no exercício
de seus deveres, mas também de seus direitos) e, por isso,
passam por dificuldades extremas relacionadas a necessidades
fundamentais humanas; indireta porque sofrem ataques diante
de representações ideológicas – que encontram eco na mídia
hegemônica –, cuja reprodução, comumente ligada a violência

1 Agradeço à Professora María Laura Pardo pela leitura e pelas contribuições para a realização
deste texto; a orientação referente ao Método Sincrônico-Diacrônico de Análise Linguística
de Textos foi fundamental para a segurança da análise aqui apresentada.

199
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e a desrespeitos, assenta no imaginário coletivo concepções


preconceituosas.
O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) nasceu,
no início dos anos, 2000 com intuito de combater o cenário de
forte desigualdade e exclusão, por meio da legitimação da voz
da população em situação de rua em demandas por políticas
sociais brasileiras. Pensando a mobilização social no século XXI,
o MNPR pode ser, assim, entendido como um dos “novos mo-
vimentos sociais, que lutam por questões de direitos no plano
da identidade ou igualdade” (GOHN, 2004, p. 322), tendo como
uma das suas principais propostas a superação da problemática
da situação de rua, mas de forma protagonista.
Por protagonismo, entendemos a ação dotada de reflexivi-
dade por meio do discurso (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999;
FAIRCLOUGH, 2003), implicando além da própria ação, a repre-
sentação e a identificação com projetos de mudança social. Tais
planos de intervenção na realidade (social) podem ser observados
no MNPR, tendo em vista o discurso de ruptura com as caracte-
rizações criminalizatórias e/ou fatalistas disseminadas em uma
ampla variedade de textos e ambientes institucionais.
A pesquisa “A voz da situação de rua na agenda de mudança
social no Brasil: um estudo discursivo crítico sobre o Movimento
Nacional da População de Rua (MNPR)”2 objetivou pensar meios
pelos quais se possa responder a questões fundamentais sobre
a mobilização social de pessoas em situação de rua articuladas
nesse movimento social. Ademais, é objetivo da investigação
lançar mão de estratégias analíticas que apontem como a lingua-
gem articulada à luta social em manifestações discursivas pode
ser efetiva para projetos de mudança social. Com base nisso,
entendemos que os métodos para análise linguístico-discursiva
precisam estar em sintonia com a realidade à qual são aplicados.
2 A pesquisa em questão se trata da investigação de doutorado de minha autoria – sob orientação
da Profa. Dra. Viviane de Melo Resende (Universidade de Brasília) e em coorientação com
a Profa. Dra. María Laura Pardo (Universidade de Buenos Aires).

200
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

O Método Sincrônico-Diacrônico de Análise Linguística de Textos


(MSDALT) foi construído desde uma perspectiva latino-americana,
alinhado com as propostas de reflexão acerca das profundas de-
sigualdades cristalizadas na situação de rua – face mais cruel da
extrema pobreza – em nosso contexto cultural.
Neste capítulo, apresentamos cinco seções: na primeira,
apresentamos o texto aqui analisado; em seguida, na segunda
seção, discutimos a teoria-método que embasa a análise do tex-
to, o MSDALT; na seção subsequente, procedemos à análise do
texto selecionado, baseada na proposta sincrônico-diacrônica;
na quarta seção, compartilhamos um momento de comentário,
a fim de unir os resultados do quadro analítico e nossas percep-
ções críticas; por fim, fazemos as considerações gerais sobre o
trabalho analítico.

1. DIÁLOGOS: O TEXTO ANALISADO

Tendo como proposta principal de atuação o combate à


miséria e a melhor distribuição de renda no Brasil, o mandato
de 2011 a 2014 do Governo Federal adotou o slogan “Brasil –
país rico é país sem pobreza” para representar o foco a ser dado
no primeiro período de governo da Presidenta Dilma Rousseff.
Diversas discussões e planos de ação foram desenvolvidos para
que o tema alcançasse um lugar na agenda de governança.
Um desses planos de ação diz respeito ao Projeto Apoio aos
Diálogos Setoriais UE – Brasil, que, como explica sua página oficial,
objetivou “contribuir para o progresso e o aprofundamento da
parceria estratégica e das relações bilaterais entre o Brasil e a
União Europeia por meio do apoio ao intercâmbio de conhecimen-
tos técnicos”. Iniciado em 2007, como resultado de um acordo
feito entre Brasil e União Europeia para o desenvolvimento social
e econômico, o Projeto discutiu diferentes temas, promovendo
encontros presenciais e documentos de intervenção. Segundo

201
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

fontes oficiais, a proposta principal se concentrava no esforço


desconstruir e consolidar o intercâmbio de experiências entre o
Brasil e o bloco europeu.
Como um dos primeiros resultados desses diálogos setoriais
(promovido como um evento oficial em 2013), foi publicado um
relatório que trazia a experiência observada no Brasil, na Ingla-
terra e na França relacionada à situação de rua no período de
2007 a 2013. Intitulado “Diálogos sobre a população em situação
de rua no Brasil e na Europa: experiências do Distrito Federal,
Paris e Londres”, o documento apresenta quatro capítulos, que
promovem um panorama sobre a desigualdade social, trazendo
uma descrição do processo de intercâmbio de informações, de
realidades e de pessoas, sobre o tema da situação de rua: “um
primeiro passo na troca de experiência sobre esta difícil realidade
(...) que contribua para melhorar a condição atual das pessoas de
rua nos (...) países” (BRASIL, 2013, p. 6) onde foi desenvolvida a
ação. Cada capítulo se estrutura em eixos, que vão desde a rea-
lidade brasileira até as questões pertencentes à exclusão social
na Europa – com ênfase em Paris e Londres.
O Brasil é destaque no primeiro capítulo (“População em
situação de rua: a abordagem brasileira e a experiência do Dis-
trito Federal”), o qual traz a experiência nacional com um breve
percurso histórico sobre a situação de rua, mas focando nas mu-
danças estruturais e de assistência social ocorridas nos últimos
governos, bem como na realidade do Distrito Federal, na busca
de superação da situação de rua como questão social.
É no primeiro capítulo (mais especificamente, na última
parte) que está uma seção intitulada “Movimento Nacional da
População de Rua”, que traz, em uma página e meia, a caracte-
rização e o papel do MNPR no contexto da luta pela superação
da problemática no País. A referida seção está analisada neste
capítulo sob a perspectiva do MSDALT (PARDO, 2011). O MSDALT
nos auxiliará a observar criticamente como o Governo Federal,

202
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

em parceria com nações de grande impacto socioeconômico,


localiza e identifica discursivamente um movimento social que
tem sua gênese intimamente relacionada às ausências e negli-
gências históricas.

2. SOBRE O MÉTODO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO DE ANÁLISE


LINGUÍSTICA DE TEXTOS (MSDALT)

A análise de discurso crítica (ADC) é uma abordagem enten-


dida e definida por compreender, em seu escopo de trabalho,
uma dialética entre linguagem e sociedade na complexidade de
suas manifestações no mundo social. Seguindo a tradição de
Fairclough (2003; 2010), entendemos como fundamental a com-
preensão da prática social como espaço de ação, representação
e identificação por meio do próprio discurso.
Assim sendo, cabe pensar estratégias políticas que se
harmonizem com nossas investigações calcadas nos preceitos
teórico-metodológicos da ADC. Nesse sentido, a América Latina
vem se posicionando como espaço organizado e atento para
discussões que se referem a contextos de discursos ideológicos,
nos quais questões como a anulação de direitos sociais e a pro-
blemática da pobreza se inserem como agendas de luta. Assim,
por exemplo, trabalhos de repercussão concernentes à extrema
pobreza têm sido produzidos e discutidos conjuntamente por
países como Brasil, Argentina, Colômbia, Chile e Venezuela na
Rede Latino-Americana de Análise de Discurso Crítica sobre a Po-
breza (REDLAD). O tema, um problema estrutural extremamente
urgente, tem orientado pesquisas e publicações que se alinham
à proposta da ADC.
Em uma proposta de trabalho conjunto entre Brasil e Argen-
tina, nos inteiramos do método sincrônico-diacrônico de análise
linguística de textos e o utilizamos para observar analiticamente
como se dão os movimentos argumentativos e discursivos das

203
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

representações e identificações do MNPR na seção do relatório


oficial que aqui nos serve de objeto. O método nos é interessante
por permitir, na sincronia e na diacronia das emissões textuais,
“reconstruir as representações das categorias sociais que o/a fa-
lante configura em seu discurso” (PARDO, 2011, p. 17). O MSDALT
mostra-se bastante profícuo e original, baseado em uma teoria
pensada para acessarmos, não só linguística como discursiva-
mente, as representações sociais – em nosso caso, as referentes
ao MNPR em textos ligados a sua luta. O MSDALT é um método
construído a partir de uma perspectiva ontológica da América
Latina; como explicam Resende e Marchese (2011, p. 158),

a natureza do método sincrônico-diacrônico para


análise linguística de textos não é sintático-gramati-
cal, mas predominantemente semântico-discursiva, já
que a perspectiva de análise que se propõe é “funcio-
nal ao significado e, portanto, é funcional a relações
vinculadas aos argumentos” (PARDO, 2011: 69). Isso
significa que, na análise dos textos, é mais importante
identificar propósitos comunicativos que estudar a
estrutura da língua. Assim, o método permite iden-
tificar as categorias gramaticalizadas e as categorias
semântico-discursivas presentes em textos.

Tendo em vista que o MSDALT “permite (...), por indução,


reconstruir as representações das categorias sociais que o/a
falante configura em seu discurso” (PARDO, 2014, p. 252), ele
recorre às categorias mencionadas (ou seja, gramaticalizadas e
semântico-discursivas) para tanto. Essas categorias, em geral,
são explicadas, por um lado, como de caráter obrigatório em
textos orais e escritos (gramaticalizadas), e, por outro, como
depreendidas pelo sentido nas emissões (semântico-discursivas)
(PARDO, 2011). Além disso, para a autora, as categorias gramati-
calizadas são: Falante-Protagonista, Nexo de valor 1 (ou verbo 1),
Ator/Atores, Nexo de valor 2 (ou verbo 2), Tempo, Lugar, Opera-

204
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

dor Pragmático, Negação, conforme explicado por Pardo (neste


volume). Já as categorias semântico-discursivas são entendidas
como referentes à potencialidade de sentidos que cada registro
textual porta – variando conforme o texto, bem como em suas
funções (discursivamente ativadas), sem a fixidez característica
das categorias gramaticalizadas.
Para a análise, segundo o método, o/a pesquisador/a neces-
sita proceder ao escrutínio do texto dividindo-o em emissões –
das quais indutivamente emergem as categorias abordadas. No
MSDALT, é fundamental o trabalho com emissões, pois, segmen-
tando o texto, torna-se possível a observação mais acurada de
seu propósito comunicacional. Assim, uma análise pelo método é
capaz de “apresentar um fenômeno particular. (...) Mais além dos
limites da oração, no plano textual (...), desde uma perspectiva
funcional do texto” (PARDO, 2011, p. 32). Cada emissão se baseia
em um ponto de partida que se desenvolve a fim de realizar um
propósito discursivo.
Ademais, é preciso entender como centrais os conceitos de
“tema” e de “rema” – essenciais para a aplicação e interpretação
crítica do MSDALT. Em síntese, no método, o tema é o ponto de
partida da comunicação, da informação – quando em posição
não marcada –, enquanto o rema é o caminho pelo qual a argu-
mentatividade percorre até alcançar o propósito comunicativo.
Estamos, assim, tratando da noção apresentada pelo Círculo de
Praga referente à hierarquização da informação, conceito basilar,
o qual defende que na interação comunicativa “a informação pro-
duzida (...) está hierarquizada, ou seja, há parte da informação que
o/a falante, de modo consciente ou não, quer destacar” (PARDO,
2011, p. 33). Entender como se distribuem os elementos argu-
mentativos no plano da emissão é essencial para que tratemos
de outra importante definição: a noção de foco.
Localizado no desenvolvimento da informação, ou seja, no
rema, o foco pode ser entendido como um ‘remate’ do processo

205
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de argumentação. Pardo (2011, e neste volume) apresenta a ideia


relacionando-a com a noção de ‘fundo’, pois explica que o foco
atua como um setor do argumento que contém as informações
cognitivamente escolhidas como mais importantes. Assim sen-
do, como explica a pesquisadora, ele também teria que ver com
“questões cognitivas relacionadas à capacidade de retenção da
informação apresentada na emissão” (PARDO, 2011, p. 35): o que
apontaria para seu propósito comunicacional.
O conceito de foco é necessário para observamos com
mais atenção como se estabelecem as posições argumentativas
e sua localização na construção da realidade social por meio
das emissões discursivamente conformadas. Sua importância
reside inclusive na percepção das funcionalidades argumen-
tativas do tema e do rema nas emissões: o primeiro, por sua
localização inicial (quando, em uma situação esperada, ou seja,
não marcada), traz, em geral, a informação já conhecida, e,
desse modo, em teoria, a que menos traz elementos inéditos;
por sua vez, o rema desempenha o papel de desenvolvimento
do argumento – em outras palavras, em um fluxo argumen-
tativo, o que é trazido de novo acaba por criar um espaço de
atualização comunicativa. Levando em conta sua posição (no
caso, em situação não marcada, isto é, a final), no rema, há
uma forte tendência de que o posicionamento dos elementos
linguísticos esteja ligado a uma tentativa estratégica para
retenção da informação a ser trocada.
Por fim, é na zona focal, ou seja, na posição final do rema,
que está o foco, a conclusão do argumento (PARDO, 2011). Sobre
a zona de foco, a análise puramente linguística (neste caso, de
tema e rema) não aponta exatamente qual informação é a de
maior relevância da emissão; ou seja, “o fato de que determi-
nada informação apareça em foco ou em uma suposta posição
não marcada de rema não garante que a informação seja a mais
importante (...), daí a justificativa de uma análise que supere a

206
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

estrutura sintática” (PARDO, 2011, p. 36). Destarte, muitas vezes,


o argumento mais relevante pode vir tematizado, dependendo
absolutamente da intenção comunicativa do/a falante em seu
propósito discursivo.
Após apresentar informações indispensáveis para a
compreensão de nosso trabalho no presente capítulo, pro-
cederemos, a seguir, à análise, de acordo com o MSDALT, da
terceira seção do relatório intitulada “Movimento Nacional da
População de Rua”.

3. ANÁLISE DO TEXTO “MOVIMENTO NACIONAL DA POPULAÇÃO


DE RUA”, SEGUNDO O MSDALT

Nesta seção, apresentaremos a análise sincrônico-diacrônica


da parte do documento “Diálogos sobre a população em situação
de rua no Brasil e na Europa: experiências do Distrito Federal, Pa-
ris e Londres” reservada ao MNPR. Segmentada em dez emissões,
a análise contempla o modo como o MNPR é discursivamente
identificado no relatório – o qual vai do contexto de formação do
Movimento até a discussão acerca de sua atuação na realidade da
população em situação de rua. De acordo com as prerrogativas do
MSDALT, a seguir, estão construídos quadros analíticos que ilus-
tram o trabalho de reflexão concernente à superfície linguística
e à interioridade semântico-discursiva da representação oficial.
Partamos, portanto, para o que nos diz a primeira emissão:

e1 – O Movimento Nacional da População de Rua – MNPR surgiu em


2005, após a chacina de pessoas em situação de rua em São Paulo,
e tem atuação na luta pelas garantias de direitos dessa população,
possuindo, inclusive assento no Comitê Intersetorial de Acompanha-
mento e Monitoramento da Política Nacional para a População em
situação de Rua (CIAMP RUA Nacional) e no Comitê intersetorial de
Acompanhamento e Monitoramento da Política para Inclusão Social
da População em Situação de Rua do Distrito Federal (CIAMP RUA/DF)

207
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico1: emissão 1 (e1)

Fonte: elaboração própria

Na primeira emissão, temos a apresentação do Movimento


Nacional da População de Rua, na qual há um breve acesso à
conjuntura em que foi criado e estabelecido. Desde uma pri-
meira observação, podemos localizar temas ligados à violência,
à presença do Estado e à luta por direitos em um contexto de
resistência. O MNPR ocupa a categoria de Falante-Protagonista
da emissão, e tem como ações caracterizadoras “surgir” e atuar
(na emissão, “tem atuação”) e, desde esse ponto, podemos per-
ceber que o tema ‘luta’ já se encontra designado. Tais elementos
linguísticos atribuem à primeira descrição do MNPR um caráter
de ação explicitado pelos nexos de valor, na diacronia textual,
“tem atuação” (atuar) e “possuir”. Ao mesmo tempo, o primeiro
nexo de valor, ou seja, a primeira indicação linguística de que
o Falante-Protagonista “age de alguma maneira” (PARDO, 2011,
p. 68) é “surgir”, cuja carga semântica opacifica o agente – pois
“surgir”, em um sentido primevo, pode ser considerado bastante
próximo de algo que espontaneamente “nasce”.
A partir daí, podemos observar como estão designadas as
pessoas em situação de rua, que, linguisticamente, são represen-
tadas como envolvidas com a violência, ou melhor, violentadas
(por meio da escolha lexical “chacina”) e identificadas como “po-

208
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

pulação”: as pessoas em situação de rua, por complementarem


o processo argumentativo do Falante-Protagonista, são o Ator 2
da emissão. Em (e1), podemos ainda depreender as categorias
semântico-discursivas ‘luta por direitos’ e ‘Estado’, às quais o
Falante-Protagonista relaciona a si e ao Ator 2. As categorias
mencionadas serão características de todo o texto. Ainda assim,
observamos a presença de uma emissão com valor explicativo,
de aposto, a qual, aparentemente, põe em cheque a “esponta-
neidade” que acabamos de mencionar, mas que consegue, no
texto, produzir uma relação de legitimação entre o movimento
social e o Estado (identificado por promover e compor os Co-
mitês Intersetoriais de Acompanhamento e Monitoramento da
Política Nacional para a População de Rua (CIAMP-Rua), Nacional
e do Distrito Federal), localizando as pessoas em situação de
rua (o Ator 2) como indivíduos, conforme já dito, relacionados à
violência e necessitados de proteção.
O MNPR aparece, então, relacionado a “resistência” e é
definido, como já tratado, com nexos de valor de forte carga
semântica. Introduzido pelo operador pragmático “inclusive”, o
Estado aparece como um argumento discursivo bastante forte;
aqui, atentemos para a presença desse operador (“inclusive”), o
qual, semanticamente, ativa uma ação pressuposta de que, como
prova de sua relevância e atuação, sua presença logrou entrar no
nível ‘máximo’ de poder/ representação social, ou seja, o Estado.
Na argumentatividade, os operadores, em geral, demarcam se-
manticamente “o argumento mais forte dentro de uma escala que
direciona para determinada conclusão” (CAMARGOS; BARBOSA,
2013, p. 18).
Ainda, analisando a posição remática na qual o Estado está
representado, podemos observar que, na emissão, é destacada a
relação do MNPR com o Estado em sua luta contra a violência e
por direitos, tendo em vista que, como discutimos, “em muitos
casos as posições finais são os conceitos que o/a falante quer

209
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

mostrar como mais importantes” (PARDO, 2011, p. 35) – detalhe


coerente com o gênero aqui analisado.
Partindo para a segunda emissão, vai-se além:  

e2 - O MNPR está diretamente envolvido com a criação da recém-


inaugurada Escola de Formação Permanente para o Protagonismo do
Movimento Nacional da População em Situação de Rua, concebida em
parceria com o Grupo Violes/UnB (grupo de pesquisa sobre violência,
tráfico de pessoas no contexto da exploração sexual/comercial de mu-
lheres, crianças e adolescentes), lançada em julho de 2013.   

Quadro analítico 2: emissão 2 (e2)

Fonte: elaboração própria

Em (e2), retomando o disposto sobre a hierarquização da


informação, o MNPR está mais uma vez localizado como tema e,
nessa posição, sua relação com outros atores merece destaque.
O nexo de valor ligado ao Falante-Protagonista (MNPR) traz um
exemplo de tonalização3, isto é, quando, na emissão, podemos
perceber “recursos textuais que ajudam a pôr em destaque ou
mitigar algo que se quer dizer” (PARDO, 2014, p. 253). No nexo
3 Pardo (2011; 2014) orienta que a análise da tonalização deve ser exaustiva, no entanto,
neste trabalho, a título de mencionar a categoria (ou seja, sem o aprofundamento que lhe é
necessário) faremos o comentário localizado na emissão.

210
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

de valor 1 (“está diretamente envolvido”), a tonalização é ativada


por “diretamente”, o que atua como um elemento reforçador
da ação que liga o Falante-Protagonista ao Ator 2: em outras
palavras, o MNPR, em posição não-marcada, é relacionado a uma
parceria (identificada pela categoria semântico-discursiva de
mesmo nome) de maneira bastante forte, apesar de, na emissão,
percebermos que o sentido aponta como destaque do trecho a
criação de um espaço político, ou seja, a Escola de Formação,
entendida como uma conquista.
Notemos que, na diacronia localizada depois de nexo de valor
1, existe a presença da nominalização, que opera uma opacifica-
ção do agente – “criação”, “concebida” e “lançada” – referente à
consolidação de um espaço de reflexão política; as informações
encapsuladas por esse grupo de nexos de valor com função ca-
racterizante são de grande esclarecimento semântico-discursivo,
tendo em vista sua posição cotextual, ligada à ‘conquista’ – por
meio da supressão. Ao omitir os agentes do processo acional,
a supressão pode ser tomada como um recurso “que reúne in-
formação importante acerca do grau de relevância que é dado a
determinados atores no discurso” (PARDO ABRIL, 2013, p. 166).
Assim, uma vez mais, é perceptível que o poder de agência
do Movimento é semanticamente repartido com sua parceria,
uma instituição do Estado: o MNPR está em posição de tema,
enquanto que a Universidade de Brasília, por meio dos nexos
de valor elegidos para a representação, segue rematizada. A
universidade, então, é projetada discursivamente, por seu lugar
hierárquico na emissão.

e3 - Segundo o MNPR-DF, as pessoas em situação de rua têm dificuldade


de acesso à rede de serviços do DF, principalmente no que concerne
à saúde, habitação, trabalho e renda e educação, sendo destacado o
preconceito e o descaso de muitos profissionais no atendimento.

211
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico 3: emissão 3 (e3)

Fonte: elaboração própria

Em (e3), podemos nos reportar com maior destaque à cate-


goria semântico-discursiva “Luta por direitos”. No recorte dia-
crônico, diferentemente da Escola da Formação (a EFPP-MNPR),
um direito conquistado, na emissão, temos elencados diversos
problemas que unem o Falante-Protagonista MNPR, a população
em situação de rua e o próprio Estado (em “tem dificuldade de
acesso à rede de serviços do DF, principalmente no que concerne
à saúde, habitação…”). A representação, assim, demanda a divisão
da categoria semântico-discursiva em ‘conquistados’ (em conexão
com a emissão anterior) e ‘não conquistados’, uma vez que se
tratam, ambos, de direitos referentes à população em situação
de rua. O Ator 2 é, então, ‘conectado’ aos direitos (obtidos e aos
não conquistados) pelo nexo de valor ‘ter’ (em “as pessoas em
situação de rua tem dificuldade de acesso…”).
Há um movimento discursivo de reforço nos modos de
exclusão, relacionados e apresentados nos níveis de políticas
públicas, assim como em um caráter mais subjetivo relacionado
ao tratamento direto dispensado pelos/as trabalhadores/as re-

212
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

presentantes do Estado (em “preconceito e o descaso de muitos


profissionais no atendimento”). De qualquer forma, a terceira
emissão representa e identifica o tratamento que o Estado dis-
pensaria à população em situação de rua (tanto na disponibili-
zação de serviços essenciais, quanto na acolhida por parte dos/
as servidores/as, fundamentais para que os serviços de atenção
sejam efetivamente implementados).
Nesse ponto, vale destacar o operador pragmático “principal-
mente”, o qual opera nova tonalização referente às ações oficiais:
reforçando a existência de uma realidade tão problemática que,
além de ser apontada pelo Movimento, consegue transparecer
na própria representação governamental. Ademais, na leitura
sincrônica, fica patente o sentido negativo atribuído às pessoas
em situação de rua, cujo papel as relega a uma conexão não de-
sejável, na medida em que a ação a qual as concretiza no mundo
real está linguisticamente construída por meio de ligação com os
itens lexicais de carga negativa (como “dificuldades”, “preconcei-
to” e “descaso”), estando do outro lado o Estado, contribuindo
de forma “destacada” para tal realidade.
Nas emissões que seguem, vejamos como se deslindam
algumas relações discursivas de representação e identificação.
Na quarta emissão, o relatório traz a voz de um documento pu-
blicado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social da
Universidade de Brasília: a Pesquisa sobre a População em situação
de rua do Distrito Federal, realizada em 2011:

e4 - Segundo o Projeto Renovando a Cidadania (Gatti, 2011): A maio-


ria da população adulta em situação de rua desconhece os principais
movimentos sociais ligados à sua realidade. O movimento social mais
conhecido por este grupo é o Movimento dos Sem-Terra (MST).

213
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico 4: emissão 4 (e4)

Fonte: elaboração própria

Em (e4), o papel de Falante-Protagonista muda: o Estado (por


meio de um documento de pesquisa) passa a ser projetado ao
assumir, na representação, a voz que fala sobre a população em
situação de rua. Na emissão, o MNPR não é mencionado e outro
movimento social assume o protagonismo como mobilizador
social, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
O MST assume a posição de Falante-Protagonista, tendo como
seu nexo de valor um identificador (“O movimento social mais
conhecido por este grupo é o Movimento dos Sem-Terra”), que
se destaca do nexo de valor referente ao Ator 2 (a população em
situação de rua), caracterizado pelo desconhecimento (“A maioria
da população adulta em situação de rua desconhece os principais
movimentos sociais ligados à sua realidade”). Seguindo com a
emissão 5, podemos observar novo movimento:

e5 - Este fato pode ser explicado pela grande repercussão que este
movimento social tem na mídia brasileira.

214
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico 5: emissão 5 (e5

Fonte: elaboração própria

Em (e5), deparamo-nos com o MST assumindo o papel de


Falante-Protagonista sem menção ao Ator 2 e possuindo um
nexo de valor de força semântica e caracterizado positivamente
(o fato de ter visibilidade midiática); ao passo que na emissão
seguinte, a (e6), o MNPR volta à categoria de Falante-Protagonista.
Observemos:
e6 - O Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), por sua vez,
é o mais desconhecido entre os pesquisados.

Quadro analítico 6: emissão 6 (e6)

Fonte: elaboração própria

A caracterização, entretanto, é construída de maneira não


desejável no contraponto com a população em situação de rua
– que volta a aparecer no texto, mas como “pesquisados” (em
“entre os pesquisados”), ou seja, passivizada. Na emissão 7, a
pesquisa da universidade retoma seu posto de destaque:

215
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e7 - Os dados sobre a participação nestes movimentos são ainda mais


pessimistas: em média, 82,2% não fazem parte de nenhum dos movi-
mentos citados.

Quadro analítico 7: emissão 7 (e7)

Fonte: elaboração própria

Em (e7), por meio do item lexical “dados”, outra vez, é trazida


para contraste a presença da população em situação de rua. No
sétimo excerto, há a ausência acional dos movimentos sociais e a
população em situação de rua, como Ator 2, é identificada como
(em maioria) alheia à luta social. Prestemos atenção ao fato de
o MNPR não ser abordado de modo destacado (ou positivo) nas
quatro emissões anteriormente analisadas, o que denota pontos
relevantes a serem abordados nos próximos momentos analíticos.
Sigamos, assim, com a próxima emissão:

e8 - O fato de desconhecerem e não participarem do MNPR, movimento


que os representa e luta pelos seus direitos, dificulta a identificação
destes indivíduos como grupo social, composto por cidadãos detentores
de direitos (Gatti, 2011, p. 109).

216
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico 8: emissão 8 (e8)

Fonte: elaboração própria

O MNPR volta, na emissão de número 8, à posição de Falante-


Protagonista, mas é mais uma vez a identificação da população em
situação de rua que chama a atenção tendo em vista seus nexos
de valor que remetem a desconhecimento, falta de participação e
dificuldade de identificação. Atentemos para a presença do MNPR
na emissão, recorrentemente atrelada ao desconhecimento, a
uma espécie de falta de relevância para a população que está na
situação de rua. Para reforçar que se trata de uma questão pro-
blemática, temos a contraposição do “mais conhecido” (o MST)
e do “menos conhecido” (o MNPR), reforçadores de tonalização,
e a presença de estatísticas – próprias do gênero discursivo –,
que legitimam tratar-se de uma expressiva falta de mobilização
por parte da população em situação de rua.
A emissão também nos faz perceber que, por suas ações
práticas de resistência, o MST acaba tendo destaque na mídia
nacional, o que abre espaço para uma pressuposição de que o
MNPR, em sua atuação, não. Temos também uma lógica de apa-

217
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

rências (FAIRCLOUGH, 2003) que acaba por atribuir um papel de


destaque ao MNPR e a sua necessidade de intervenção na vida da
população em situação de rua – fato observado na última oração,
em questões que remetem à exclusão das ações políticas do grupo
social que enfrenta a situação de rua (simbolizadas pelo MNPR, no
texto) –, mas que não lança luz às causas para a exclusão advinda
do “fato de desconhecerem e não participarem do MNPR”. Sem
muito se deter na explicação para o “fato”, a emissão se limita
a expressar a dificuldade de inserção da população em situação
de rua no mundo dos “detentores de direitos”
O MNPR, por outro lado, tem como nexos de valor ‘repre-
sentar’ e ‘lutar’. Há, em seguida, na emissão 9, um contínuo
que desenha um conjunto de nexos de valor de alto grau
positivo – composto por, entre outras ações materiais, for-
talecer, alcançar e possibilitar novos rumos para a população
em situação de rua:

e9 - Visto os dados coletados pela pesquisa da UnB, seriam interessantes


ações do MNPR em direção àqueles que desconhecem sua existência e
bandeiras, a fim de fortalecer o Movimento e alcançar mais membros,
ganhando legitimidade e possibilitando maior escuta às necessidades
da população em situação de rua.

218
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico 9: emissão 9 (e9)

Fonte: elaboração própria

Em (e9), atentemos para as categorias com maior ocor-


rência lexical: Falante-Protagonista e NxV1. Apesar do nexo de
valor estar claramente ligado ao MNPR, os objetivos (discursi-
vamente positivos, ou seja, “fortalecer”, “alcançar”, “ganhar
(legitimidade)” e “possibilitar”) estão atrelados ao nexo de
valor “(ser interessante) agir”, o que ativa uma pressuposição
de que tal fato não anda acontecendo; por sua vez, a propo-
sição pressuposta opera um sentido prescritivo à emissão,
ou seja, um sentido de aconselhamento, de recomendação,
o qual acaba por identificar o MNPR de modo não positivo.
Assim, na emissão, o Movimento é interpretado como ine-
ficaz em fortalecer sua própria luta e de até mesmo ouvir
adequadamente a população em situação de rua, sua razão de
existência. Podemos ver isso como uma estratégia discursiva
que reforça a necessidade do Estado no processo, uma vez

219
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

que, segundo a representação do documento, o MNPR não


estaria desenvolvendo bem seu papel. Percebemos inclusive
que a emissão recorre a nova estratégia de legitimação para
estabelecer o efeito de sentido de imprescindibilidade do Es-
tado (para um trabalho realmente efetivo do MNPR): seja por
meio da referência ao nome da Universidade de Brasília (UnB),
seja pela utilização de uma pesquisa (retexturizada como “os
dados coletados pela pesquisa da UnB”) o sentido ativado é
que ‘está comprovado que o Movimento não desempenha bem
sua função’ – ao menos, ‘sozinho ele é ineficaz, confirma a
UnB’. Seguindo, o Ator 2 segue como desconhecedor do po-
tencial descrito, o que, na emissão final, a (e10), proporciona
o estabelecimento de uma relação entre o MNPR e o Estado,
como podemos notar, a seguir:

e10 - A participação do MNPR, como representante da sociedade


civil organizada, nos comitês intersetoriais, nos conselhos distritais,
estaduais, municipais e nacional, dá visibilidade a essa população
e coloca em pauta suas reivindicações, forçando o poder público e
a sociedade civil em geral a lidar com o fenômeno da população
em situação de rua e encontrar políticas adequadas para garantia
de sua cidadania.

220
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Quadro analítico 10: emissão 10 (e10)

Fonte: elaboração própria

O movimento social é identificado como agente de mudan-


ça da realidade da situação de rua no documento representada
(dando visibilidade, colocando em pauta, lidando as autoridades
etc.). É também nesta emissão que o Estado é trazido de maneira
colaborativa, mas semanticamente essencial, uma vez que – como
ocorrido na emissão 2 – as ações realizadas pelo MNPR represen-
tadas no documento, em sua maioria, não se mostram de domínio
absoluto do movimento social, mas de como resultado de sua
participação nas esferas de governo, em um aparente destaque
da influência do Estado. A voz do documento estabelece, assim,
nova lógica argumentativa à relação entre o movimento social

221
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e o Estado, sendo que tal trabalho harmonioso com os níveis


governamentais, segundo o texto, gerará, em um momento não
especificado, ações (semanticamente) positivas texturizadas por
‘lidar’ e ‘encontrar’. O alvo das ações permanece sendo clara-
mente especificado como a população em situação de rua, cujo
representante, o MNPR, desenvolverá ações também positivas
(como ‘dar (visibilidade)’, ‘colocar em pauta’ e ‘forçar’), desde
que em consonância com as instâncias do Estado mencionadas.
Complementarmente, é possível observar que a situação
de rua é expressa no documento como um “fenômeno”, o que
nos faz retornar à discussão da constante presença do Ator 2 (o
que não constitui agência, mas abstração): no texto, a situação
de rua é colocada como um acontecimento, uma metáfora que
encontra eco na possibilidade de o MNPR conseguir ‘colocar
em pauta’ a problemática social urgente, sem que isso aponte
necessariamente para soluções mais efetivas.

4. COMENTÁRIO SINCRÔNICO-DIACRÔNICO: ANÁLISE DE FOCO

Após o exercício de análise apresentado, podemos nos de-


ter em como o MSDALT nos possibilita ter acesso a uma visão
acurada das realizações linguístico-discursivas relativas à parte
dedicada ao MNPR no documento de governo analisado. Nesta
seção, tratarei de maneira breve sobre o que a análise sincrônico-
diacrônica ofereceu para a observação crítica do texto, trazendo
luz para questões referentes à focalização.
No que diz respeito à categoria de Falante-Protagonista,
observando a diacronia da análise, podemos perceber que o
MNPR, de fato, ocupa a posição focal na maioria das emissões:
das dez, em seis delas (e1, e2, e3, e6, e8 e e10) o movimento
social tem o papel exclusivo na tomada do argumento principal,
dentro da representação do texto do governo federal. Em outros
momentos, outros participantes tomam esse papel: nas emissões

222
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

4, 5 e 7, temos a universidade e outros movimentos sociais (com


o destaque para o MST) assumindo a posição principal na defesa
argumentativa. Na emissão 9, o MNPR divide a posição de foco
com a Universidade de Brasília como Falante-Protagonista. Cabe
destacar que ocupar o lugar de Falante-Protagonista diz respeito
a portar o argumento a ser desenvolvido.
Essa percepção é relevante na medida em que, ainda na dia-
cronia, atentarmos para quem assume o papel de Ator 2 – como
vimos, as pessoas em situação de rua – e sua representação no
texto. O Ator 2 perpassa questões e termos ligados à violência,
caracterizada como contingente social, além de dados estatísti-
cos. Cruzando as duas categorias (Falante-Protagonista e Ator 2),
podemos perceber que seus respectivos nexos de valor fazem com
que a importância do MNPR seja destacada, mas a partir da inter-
pretação quantitativa (estatística) de necessidades fundamentais
das pessoas que enfrentam a problemática da situação de rua.
Desse modo, na diacronia da categoria semântico-discursiva
“Estado”, podemos perceber a pouca intervenção do governo,
sendo exaltada sua representação como órgão de cooperação –
cooperação esta apenas consolidada, segundo podemos ver na
sincronia, pela relação mútua com o MNPR. Por meio da repre-
sentação no texto do próprio governo, ficam patentes, inclusive,
os resultados acionais do Estado frente à população em situação
de rua; refiro-me, aqui, à categoria semântico-discursiva “Luta
(Direitos)”, a qual, quando destrinchada em duas subcategorias
(“conquistados” e “não conquistados”), apresenta como única
ação de sucesso a parceira da Escola de Formação Permanente
para o Protagonismo do Movimento Nacional da População em
Situação de Rua (EFPP-MNPR).
Ainda na categoria dos direitos, toda a coluna dos “não
conquistados” oferece uma verdadeira denúncia em relação aos
principais entraves para uma mudança social para a população
em situação de rua: tais empecilhos têm que ver diretamente

223
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

com o Estado, o qual, como podemos ver no texto, aparenta ne-


gligenciar direitos fundamentais de cidadania (como o acesso à
atenção pública concernente a saúde e habitação, por exemplo).
Cabe também acrescentar que a EFPP foi um projeto desenvolvido
em parceria com a Universidade de Brasília, a qual, por meio de
seus/suas pesquisadores/as, refletiu de forma mais agentiva sobre
o papel que o Estado brasileiro vinha desempenhando até então.

Analisando os focos

A seguir, observemos os focos distribuídos de acordo com


cada emissão analisada na seção 3:

Quadro analítico 11: Focos

Fonte: elaboração própria

Analisando o quadro com os focos, podemos perceber que


a categoria “Estado” (assim como a de “Tempo”), dado o grau de
recorrência (ocupando a zona focal apenas na primeira emissão),
não se apresenta como de relevância no desenho textual, na
representação desempenhada pelo documento. Continuando,
se nos voltarmos à questão dos direitos, podemos observar que

224
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

a recorrência que se destaca é “Luta por direitos” (e3 e e10), a


qual está ligada a algo não conquistado. Estabelece-se, assim, a
relação anteriormente mencionada de pouca atuação do governo
em relação às políticas de superação da situação de rua. Pode-
mos dizer que seguem iguais em número focal as categorias de
Falante-Protagonista e Ator 2 (ou seja, pessoas em situação de
rua), lembrando que a categoria de Falante-Protagonista, quando
em posição focal, não diz respeito apenas ao MNPR – do qual a
seção do documento expressamente se pôs a caracterizar –, mas
sim ao MNPR agregado a outros movimentos sociais (e7), e mais
destacadamente ao MST (em e4 e e5).
Desse modo, observamos que, desde uma perspectiva re-
presentacional, no texto, o MNPR não logrou atingir um poder
de referência, mas – tendo em vista o número de ocorrências de
focos mais destacados – assumiu uma presença diluída frente à
caracterização da pessoa em situação de rua (em uma identifi-
cação não desejável e bastante negativa, como podemos ver na
diacronia de Ator 2, na seção anterior) e sua pouca representa-
tividade na descrição do que se entende como um movimento
social consolidado.
Levando em conta que as posições de foco, em geral, definem
o que é novo, a informação a ser ressaltada para fundamentar a
argumentação, percebemos uma realização peculiar na constru-
ção discursiva da identidade do MNPR. Apesar de o documento
ser um relatório e de estar centralizado na população em situação
de rua (não sendo, por isso, uma surpresa a categoria Ator 2 estar
em posição focal mais recorrente), ao dedicar uma seção (a que
encerra o relato das ações desenvolvidas no Brasil) ao MNPR, é
esperado haver uma contextualização apropriada do que realiza
o Movimento de acordo com as políticas públicas voltadas àque-
les/as que passam pela situação de rua. O que podemos ver, no
entanto, é o posicionamento do movimento social como pouco
atuante, embasado em possibilidades eventuais de construção

225
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

e sendo propriamente efetivo quando junto de alguma ação do


governo brasileiro. Por outro lado, como foi salientado na análise,
os problemas da população em situação de rua estão representa-
dos no mesmo texto como advindos da pouca atuação do Estado.
Parece, assim, que o destaque na pessoa em situação de rua
(quando posto em comparação com o Falante-Protagonista, é a
parte remática mais focalizada) serve para traçar uma informação
já conhecida há tempos (a de que é terrível a condição social
desses atores sociais) e que a contribuição do MNPR é bastante
limitada na representação, ou quase nenhuma, pois os focos não
destacam o Movimento como instrumento fundamental para a
mudança da realidade da pessoa em situação de rua no Brasil.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos, por meio da análise realizada, que o espaço reser-


vado ao MNPR no relatório do Projeto Apoio aos Diálogos Setoriais
indica algumas questões que se detêm sobre o movimento social,
mas que dizem muito mais sobre a relação estabelecida entre
o MNPR e o Estado, ou melhor, entre o Estado e o Movimento
(nesta ordem, mais precisamente). De acordo com as emissões e
as características discursivas nelas contidas, tivemos contato com
determinados pontos que ora se mostraram algo previsíveis ao
que se espera de um movimento social, ora se mostraram pas-
síveis de questionamento (por ser retratado de modo bastante
opacificado).
Desde a emissão 1 (e1), foi-nos possível observar uma apre-
sentação do movimento social com elementos positivos, os quais
”imprimem concepções ao texto, (...) implicitamente e com alta
afinidade” (Santos; Resende, 2012, p.158) por meio dos proces-
sos linguísticos apontados. Destaquemos o uso de operadores
argumentativos de forte carga semântica. Notemos também que
a passivização e a abstração foram recorrentes. Mencionamos

226
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

tais elementos de identificação por eles terem efeito de imper-


sonalização na representação discursiva: “por meio do emprego
de traços não concretos como substituto do ator” (PARDO Abril,
2013, p. 168), não se observa (estabelecida linguisticamente) a
relação de agência concreta no mundo social, tampouco no nível
discursivo.
Em (e1) e (e2), a estratégia é operada pelos nexos de valor,
que, como destacam Resende e Marchese (2011, p. 162), por sua
natureza semântico-discursiva – mais do que puramente sintático-
gramatical – permitem, além de “realizar análises profundas de
textos” (RESENDE; Marchese, 2011, p. 162), apontar como se
caracterizam os atores sociais diretamente (e indiretamente) a
eles ligados. O documento parece se esforçar em representar
uma relação harmoniosa entre Estado e MNPR – iniciada na
primeira emissão –, chegando em alguns momentos a diluir
agências importantes (MNPR e população em situação de rua) em
uma aparente ‘harmonia de cooperação’. A posição tematizada
do movimento social também contribui para essa impressão
de forte envolvimento entre esses dois atores sociais e de uma
informação, digamos, dada: tais espaços argumentativos (os re-
mas) vêm, então, preenchidos por ações ligadas à parceria entre
MNPR e o Estado.
Aliás, é válido perceber que, como já dito, por meio da
atribuição de voz ao Movimento, o documento traz uma faceta
problemática do governo brasileiro em seu papel de promotor
das próprias políticas públicas. Percebemos, assim, que, quan-
do trazida a voz do MNPR, a representação da conjuntura e a
identificação do Estado passam a ser polêmicas e a identificação
observada da pessoa em situação de rua também acaba sendo
atingida por essa reflexão sobre a realidade da prestação de
serviços específicos.
O grupo social representado pelo Movimento (Ator 2) está
constantemente atrelado a representações acionais indesejáveis,

227
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

promovidas por meio, inclusive, dos nexos de valor relacionados


à pessoa em situação de rua. Cabe também discutir o reforço
da necessidade da visibilidade do MNPR para a situação de rua,
promovido pelo relatório: ao discutir os problemas enfrentados
pelo Movimento em especial, o documento foca na falta de
conhecimento de seu público-alvo em relação a sua existência,
mas não oferece propostas; trazendo o MST como referência, o
relatório promove uma comparação linguística e discursivamente
expressa como desigual por meio de legitimação, mas com base
em um dos mais controversos meios de representação social, a
mídia brasileira. Apesar da menção ao MST, essa aparente aber-
tura pode ser questionada, pois a representação (e consequente
identificação) promovida pelos veículos midiáticos de grande
alcance são notoriamente passíveis de atenção e crítica. Ade-
mais, não se nota um esforço para problematizar o mencionado
desconhecimento acerca do MNPR.
Podemos, em linhas gerais, apontar que o texto analisado
desenvolve uma argumentação bem estruturada, recorrendo a
diversas estratégias que desenharam a existência de um problema
(a situação de rua), as vítimas (a população em situação de rua) e
sua solução (O MNPR mais o Estado). Esta última parte da tríade
foi o centro na argumentatividade e, para sua consolidação, o
documento recorre a determinados aspectos também polêmicos
de identificação discursiva – aliás, ideológicos, sem grandes
momentos de maior reflexão. Assim, percebemos que a seção
reservada a apresentar o movimento social acabou aparentando
ser mais uma tentativa de suporte para a propaganda positiva
das ações que o governo consolida do que uma apresentação
mais completa do MNPR.
Por fim, a crítica segue no sentido de chamar a atenção ao
fato de que, para imprimir a compreensão do argumento da boa
relação entre o Estado e o Movimento, o documento recorre a
estratégicas ideológicas que reforçam o caráter generalizante e

228
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

já notório das necessidades da população em situação de rua. Ele


não dá grande espaço ao MNPR, veículo social mais apropriado
para tratar do tema, a fim de, aparentemente, desenhar um cená-
rio desejável de harmonia e compreensão entre partes – em um
provável ‘bom resultado’ social. A mobilização social desenvolvida
pelo MNPR não encontra peso no documento, pois ele demonstra
trazer um cenário de abertura para uma apresentação básica.
O plano da abstração e da falta de agência impresso no texto
analisado, no entanto, desafiam o assentimento da eficácia de
tal trabalho na vida da população em situação de rua e daqueles
que lutam por seu direito à cidadania.

REFERÊNCIAS

BRASIL (2013) Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da


República. Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na
Europa: experiências do Distrito Federal, Paris e Londres. Brasília:
SDH.
CAMARGOS, K. M.; BARBOSA, J. B. (2013). Uma análise semântica dos
operadores argumentativos em anúncios da revista Veja on-line.
Revista InterTexto, v. 6, n. 2.
CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. (1999) Discourse in Late Modernity:
Rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburg
University Press.
FAIRCLOUGH, N. (2003) Analysing discourse - textual analysis for social
research. London: Routledge.
FAIRCLOUGH, N. (2010) Critical discourse analysis: The critical study of
Language. Pearson Education ESL.
GOHN, M. G. (2004) História dos Movimentos Sociais: A construção da
Cidadania dos Brasileiros. São Paulo: Loyola.
PARDO ABRIL, N. (2013) Cómo hacer análisis crítico del discurso: una
perspectiva latinoamericana. Santiago de Chile: Frasis.
PARDO, M. L. (2014) Las representaciones socio-discursivas que sobre
los jóvenes pobres ligados al delito crean los medios televisivos en
Argentina. Romanica Olomucensia, v. 26, n. 2.
PARDO, M. L. (2011) Teoria y metodologia de la investigación lingüística:
método sincrónico-diacrónico de análisis lingüístico de textos.
Buenos Aires: Tersites.

229
Outras perspectivas em análise de discurso crítica

RESENDE, V. M.; MARCHESE, M. C. (2011) “São as pessoas pobrezitas


de espírito que agudizam a pobreza dos pobres”: análise discursiva
crítica de testemunho publicado na revista Cais – o Método
Sincrônico-Diacrônico. Cadernos de Linguagem e Sociedade, v. 12, n. 2.
SANTOS, G. P.; RESENDE, V. M. (2012) Veja o fim do arco-íris – uma
análise do artigo “A geração tolerância” e a construção de
identidades homossexuais. Calidoscópio, v. 10, n. 2.

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

SOBRE AS AUTORAS E O AUTOR

Gersiney Pablo Santos é analista de discurso, doutor em Linguística


pela Universidade de Brasília (UnB), onde participa do Núcleo de Es-
tudos de Linguagem e Sociedade (NELiS) e do Laboratório de Estudos
Críticos da UnB (LabEC/UnB).

Jacqueline Fiuza da Silva Regis é doutora em Linguística pela Universi-


dade de Brasília (UnB) em regime de cotutela com a Friedrich-Schiller-
Universität Jena, instituição onde concluiu também seu mestrado em
Ensino de Alemão como Língua Estrangeira. Atualmente é professora
voluntária da UnB, vinculada ao Núcleo de Estudos de Linguagem e
Sociedade. (NELiS/UnB) e ao Laboratório de Estudos Críticos da UnB
(LabEC/UnB)

Margarete Jäger é doutora em Linguística e Literatura pela Carl von Os-


sietzky Universität Oldenburg e, atualmente, é diretora do Instituto de
Pesquisa Linguística e Social de Duisburg (DISS). É membro do Conselho
da Fundação Rosa Luxemburgo, onde atua também como parecerista,
e membro do Centro de Informação e Documentação para o Trabalho
com o Antirracismo da Renânia do Norte Vestfália (IDA-NRW)

María del Pilar Tobar Acosta é professora no Instituto Federal de Brasí-


lia, Campus de São Sebastião. É Mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Linguística da Universidade de Brasília, onde atualmente cursa o
Doutorado em Linguística.

María Laura Pardo é doutora em Letras pela Universidade de Buenos


Aires. Pesquisadora independente do Conselho Nacional de Investiga-
ções Científicas e Tecnológicas (Conicet). Diretora do Departamento de

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Outras perspectivas em análise de discurso crítica

Linguística do CIAFIC, pertencente ao CONICET. Presidente da Asociación


Latinoamericana de Estudios del Discurso (ALED) de 2017 a 2019. Ministrou
conferências, cursos e seminários na América Latina, na América do
Norte, na Europa e na Ásia.

Viviane de Melo Resende é doutora em Linguística pela Universidade


de Brasília, onde é professora, coordenadora do Núcleo de Estudos de
Linguagem e Sociedade (NELiS/UnB) e do Laboratório de Estudos Críti-
cos do Discurso (LabEC/UnB). Pesquisadora e orientadora nos programas
de pós-graduação em Linguística e em Desenvolvimento, Sociedade e
Cooperação Internacional. Delegada da Asociación Latinoamericana de
Estudios del Discurso (ALED) no Brasil. Bolsista de pesquisa do CNPq.

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