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LUIZ CARAMASCHI

DE VOLTA DO CAOS

“Aqui sim, no meu cantinho,


vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho,
e esquecer o mundo inteiro”

Goethe

Editora Sociedade Filosófica Luiz Caramaschi


Praça Arruda, 54 - Caixa Postal 44 - 18800-000 - Piraju - SP
Fone (14) 3351.1900
2

Contra-capa

A queda do empíreo e a posterior volta do caos, sintetizada


em um poema

Epitáfio de Satã
Jaz, aqui, Satã, para todo o sempre,
Se tanto durar a rebeldia sua.
Criado foi ele pelo Eterno Pai,
Da sempiterna Substância-Amor;
Mas, como descriou-se, ele próprio,
Por arbítrio seu, eis sua sentença:
Terá de recriar-se, por si mesmo,
Em não previsto tempo; ou isto, ou
Reduzir-se-á, para sempre, a nada.
Nem ele, pois, nem os sequazes seus
Retornarão à Celestina Pátria,
Enquanto não se desvirarem todos
De dragões, transformando-se, de novo,
Nas formas belas que possuíam antes.
Mas há esta esperança aos esforçados,
Aos valentes que se negar quiserem:
Altos Numes de esferas mais sublimes,
Inflamados do sacrossanto Amor,
Varando as trevas do Orco levarão
Socorros mil a quem quiser salvar-se,
A quem, de dragão, desejar negar-se,
Reconquistando o perdido Amor.

Luiz Caramaschi

ÍNDICE
3

PRÓLOGO .................................................. 3
I O QUE É A FILOSOFIA ?....................................... 5

II QUE É A SABEDORIA ?......................................... 11

III AS CLASSES DE SABER ....................................... 17

IV CAMINHOS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO .... 23

V O MÉTODO ............................................................ 27

VI QUE OUTRO MÉTODO VIRÁ ? ............................. 37

VII A INTUIÇÃO .......................................................... 43

VIII HIERARQUIA DAS 49


INTUIÇÕES ............................
IX O EQUÍVOCO DE SCHOPENHAUER .................... 57

X ONTOLOGIA E METAFÍSICA ............................... 63

XI QUEM EXISTE ? .................................................... 78

XII A GRANDE SÍNTESE FILOSÓFICA ...................... 85

XIII OBJETOS IDEAIS – 90


ESSÊNCIAS ...........................
XIV OBJETOS REAIS – SUBSTÂNCIAS ....................... 99

XV NOSSA CIVILIZAÇÃO EM QUEDA ...................... 110

XVI ALTRUÍSMO PURO E EGOÍSMO DILATADO ..... 123

XVII INVOLUÇÃO .......................................................... 136

XVIII DOUTRINA DOS ESPÍRITOS ................................ 143

XIX TELEFINALISMO EVOLUTIVO ............................ 152


XX SUBIDA DO MENTAL AO MORAL ...................... 160
4

PRÓLOGO

De início, queremos agradecer a nímia gentileza da “Folha de Piraju” pelo seu grande
trabalho em publicar, em primeira mão, parceladamente, nosso livro anterior “Um Estudo do
Nosso Tempo”. Com este grande e meritório esforço, a “Folha” nos proporcionou a
oportunidade de darmos aos nossos concidadãos o fruto de prolongadas e profundas
lucubrações de largos anos.
Para que essa primeira publicação fosse possível, tornava-se indispensável a
colaboração da “Folha de Piraju”, com tanta proficiência criada, dirigida e mantida por um
grande cidadão pirajuense, Sr. Constantino Leman. Que ele é um grande idealista, não há
dúvida nenhuma, pois, manter um pequeno jornal carinhosamente confeccionado, e por tantos
anos, é trabalho saliente, digno de admiração. Honra é, que ninguém pode extorquir a
Constantino, o haver mantido um jornal em nossa terra até hoje, apesar de tantas
incompreensões, tantas lutas, e enormes apertos e sacrifícios financeiros, se bem que, para
sermos justo, temos de anotar que muitos colaboraram, financeiramente, quando a “Folha”
ressuscitou de suas cinzas - o antigo “O Comércio de Piraju”.
Pirajuense por adoção e por título emérito conferido pela nossa respeitável Câmara
Municipal, nosso esclarecido e digno colega de pena, Sr. Constantino, em mantendo a nossa
“Folha”, prova que ele, ao fechar os olhos para este mundo, quer deixar um legado para Piraju,
um Documento imperecível - a sua querida “Folha”.
Paralelamente ao trabalho de jornalista, aparece o escritor e historiador que é, nas
obras: “Piraju Ontem e Hoje”, “São Sebastião do Tijuco Preto” e “Cem Anos de Piraju”,
este, em fase final de impressão.
Então, nós, como entendedor do verdadeiro heroísmo de Constantino, quisemos
colaborar, se bem que com uma parcela ínfima, na confecção desse grande Documento de
Piraju, publicando nele, em primeira mão, para os nossos irmãos de terra, estes nossos livros.
A obra que irá sair, querendo Deus, traz o título “De Volta do Caos”. Nela se
desenvolvem pontos que já apareceram, em síntese, na obra anterior. Trata-se de obra inédita,
tanto como a precedente, sobretudo o capítulo “Origem das Espécies”, visto como tal
“origem” não se explicou, cabalmente, nem por Darwin, nem por Lamarck, nem pelo
Mutacionismo a partir de Hugo de Vries.
Ambos livros pretendem abrir um ciclo novo para o pensamento filosófico. A Primeira
Jornada Filosófica teve início na Grécia com a polêmica entre Heráclito e Parmênides; é o
ciclo chamado Realismo, que teve o seu termo no fim da Idade Média. Platão é um filósofo
realista, não só porque pertence a este ciclo, como também, porque seu “idealismo” é
objetivo; a realidade, para ele, se situava fora do sujeito, exterior a este, encontrando-se no
lugar celeste ou resplendente – o topos uranos. Tal “idealismo” é polarmente oposto ao de
Kant que fazia tudo brotar do sujeito, como puro subjetivismo, ao ponto de afirmar que “nós
pomos às coisas as suas essências”. Ora, Platão não admitia isto, e, para ele, como, depois,
para seu discípulo Aristóteles, as coisas é que “nos enviam as suas essências”. Tal modo de
conceber o mundo teve seu ocaso no fim da Idade Média, com os filósofos Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino. Com a verificação experimental dos erros científicos de Aristóteles, foi
posta em dúvida também a sua filosofia.
Tomando, precisamente, a dúvida por ponto de partida, na Renascença, com
Descartes, teve começo a Segunda Jornada - o Idealismo ou filosofia moderna. Kant foi o
pináculo deste ciclo, tendo sido continuado por três grandes pensadores absolutistas: Fichte,
Schelling e Hegel. Depois a filosofia caiu no ridículo, e, com Augusto Comte, ela passou à
nivelante condição de simples síntese das ciências. O positivismo achatou a filosofia, tirando-
lhe a terceira dimensão, a altura, que a fazia ocupar-se, primordialmente, com os problemas da
5

origem e fim transcendentais do mundo, do homem e das coisas. Como se não bastasse isto,
veio o pior: surgiu a doutrina científica da evolução pondo em xeque-mate todas as filosofias,
as religiões todas, todas, sem exceção, de bases criacionistas.
Os filósofos contemporâneos, não podendo, por sua vez, resolver o problema do Ser,
desgarraram-se pela senda ingrata de criar doutrinas pessimistas, niilistas, conducentes ao
Nada, sem nenhuma esperança. Nenhuma filosofia contemporânea forma um sistema
completo, pelo que estamos sem filosofia, sem norte filosófico, desde Augusto Comte, como
diz Ortega.
A nossa é a Terceira Jornada Filosófica, a da Síntese, a da Essência-Substância, a
do Ser-Amor, bem própria a nascer no Brasil do qual já se disse que é o “Coração do Mundo e
a Pátria do Evangelho”. O Brasil não só assombra o mundo inteiro com o seu desenvolvimento
econômico; assombrá-lo-á, também com sua cultura, e ainda será o líder espiritual e moral do
mundo, e nisto já se tem mostrado competente com resolver todos os seus problemas políticos
pacificamente. É aqui, então, que tinha de nascer o ciclo novo para o pensamento - a Filosofia
do Amor.
O autor
6

Capítulo I

O QUE É A FILOSOFIA ?

O homem desde os seus primórdios fez filosofia. Mas este fazer é diferente dos outros
quefazeres, porque a idéia de fazer implica ação, movimento. Ora, o fazer da filosofia é
diferente porque significa estar parado, meditando. Não se trata de um fazer físico, porém, de
um fazer mental. Enquanto o homem agia só do ponto de vista físico, material, ele fazia coisas,
não, porém, filosofia. E foi quando ele entrou em si mesmo, esteve em solidão só consigo,
quando, parado, se pôs a pensar sobre as coisas, sobre o mundo, aí é que começou a filosofar.
Por este motivo, o fazer da filosofia é diferente dos outros quefazeres, porquanto estes fazem
coisas, no passo que a filosofia, sendo um estar quedo, em meditação, fez não menos que o
próprio homem.
O homem só se fez tal, quando principiou a usar a razão, a pensar; pensar sobre o que?
Pois pensar sobre as coisas, sobre o mundo; e este pensar sobre as coisas, esta tentativa de
descobrir o que elas são, constitui a filosofia.
Deste modo, a primeira e mais natural definição da filosofia é a meditação sobre o
mundo, para achar um caminho, uma forma de atuar sobre as coisas, um modo de conduzir-se
entre elas, uma forma de conduta. Conseqüentemente, não se pode definir a filosofia antes de
tê-la feito; e foi fazendo-a, um pouco, que nos foi possível chegar à nossa mais elementar e
espontânea definição: a filosofia é a meditação sobre o mundo. Um animal, para agir, segue o
seu instinto; porém, o homem é pobríssimo de instintos naturais; como, logo, agiria sem um
pensamento antecipado? É-lhe, então, imposto o pensar, o escolher e o decidir-se por um
caminho, queira ou não queira. Esta é a razão por que já os antigos diziam do homem que é
um animal metafísico.
Aliás, todas as demais disciplinas que o homem domina, não nasceram de definições
claras, precisas; todas começaram de forma nebulosa, confundidas umas com outras, e só
quando o homem teve boa soma de conhecimentos, é que pôde delimitar os objetos das várias
ciências, isto é, definir, traçar “fines” ou limites às disciplinas.
Daqui se tira que só se sabe o que é filosofia, quando já se é filósofo; mais que qualquer
outra matéria, a filosofia precisa de vivência, e isto se define como sendo aquilo que temos em
nosso psiquismo carreado do mundo exterior, e que forma a nossa mentalidade; é a nossa
convicção pensada, vivida e sentida, e que damos como sendo o nosso conjunto-verdade. É
assim que, sem as experiências da vida, a filosofia não seria vivencial, pessoal, e sim, mero
estudo das experiências alheias condensados nos sistemas e verdades alheios. Pelos livros se
pode chegar a ser um professor de filosofia, isto é, mero repetidor do que os compêndios
dizem. O filósofo é um senhor que calcou as vivências alheias nas próprias, e agora possui um
sistema-verdade (quer dizer, que tem por verdadeiro), a lhe nortear o fazer e a conduta. Um
exemplo: os escritores paisagistas gastam páginas seguidas em seus romances para nos
descrever os sítios que fazem fundo às cenas em que se movem seus personagens. Por mais
minudentes que tais escritores sejam nas descrições, seja dos lugares, seja dos tipos humanos,
não conseguem transferir-nos vivências, e sim, somente, nos sugerem imagens e idéias. Porém,
a partir dessas imagens e dessas idéias, vamos construindo nossos quadros mentais próprios, a
partir de nossas vivências próprias. Isto se chama convivência. Se, todavia, depois, formos aos
locais em que o escritor se inspirou, ainda que ele tenha sido fiel nas descrições, tudo se nos
mostra diferente. É que antes, a linguagem literária ia-nos suscitando uma convivência, e
agora tudo são vivências, tudo, experiências pessoais, diretas, em que tomam parte não só
nossa mente, senão também os nossos sentidos, os nossos sentimentos, as nossas emoções,
tudo como coisas vividas, como vivências nossas.
É por este modo que o filósofo coordena e sistematiza não só vivências, mas também
convivências no seu conjunto-verdade, na sua convicção mais profunda que lhe norteia o
7

fazer e a conduta. Daí que todo homem é filósofo, desde que não se guie por pura fé, por pura
sugestão. Esta é a causa por que poderíamos repetir Huberto Rohden quando afirma que: “a
inteligência humana é filosófica por natureza” 1, ou então, os antigos que davam para o homem
a designação de “animal metafísico”.
No entanto, já se vê, não podemos ter todas as vivências que a vida total, o mundo, nos
propiciaria, se, a um tempo, como que onipresentes, pudéssemos estar em todos os lugares,
vivendo todos os dramas, e ainda trazendo para o presente o passado que já foi. Face a esta
impossibilidade, nós nos consolamos com reviver as experiências alheias, imaginativamente nos
colocando em seus lugares, procurando sentir o que sentiram, e a repensar o que pensaram.
Então, o filósofo não só procura sentir as próprias vivências (que são basilares), e a repensar
os próprios pensamentos, senão, também, busca convivenciar e repensar, isto é, incorpora,
quanto possível, as vivências alheias, e repensa os pensamentos dos outros. A isto também
chamamos meditação sobre o mundo, já, agora, não só sobre o nosso mundo restrito, mas
sobre os vários mundos alheios. Se como diz Ortega, cada filósofo está num mirante que se
abre para o mundo, cumpre-nos ver o mundo de todos os mirantes, enxergando-o, quanto
possível, através de todas as pupilas. Fazendo isto, verificamos que muitas vivências alheias se
assemelham às nossas, de modo que nosso conjunto-verdade se reforça e se enriquece mais do
que se contássemos apenas com as nossas vivências próprias. Neste sentido é que entendemos
o aforismo latino que diz: “primum vivere, deinde philosophari”. Só depois das experiências da
vida se torna possível o filosofar. Esta é a razão por que há gênios precoces na música, como
Mozart, nas matemáticas, como Gauss, porém, não, na filosofia.
Deste modo, não faz filosofia quem não entrar nela, quem não se dispuser a vivê-la com
toda a matilha de sentimentos egrégios, de emoções nobres, como diz Ortega do historiador,
entusiasmando-se com ela, angustiando-se, criticando-a, censurando-a, aplaudindo-a,
completando-a, chorando-a, rindo-se dela, encrespando-se contra ela, abraçando-a, estando
nela “cum ira et studio”. Tudo isto faz quem ama..., sobretudo se o amor se dirige à sabedoria.
Ora, para fazermos isto que nos coloca na posição de filósofos, precisamos entrar em
solidão temporária, retirar-nos, estar só conosco mesmo, fazer aquilo que Goethe põe nestes
versos: “Aqui sim, no meu cantinho,/ vendo rir-me o candeeiro,/ gozo o bem de estar sozinho,/
e esquecer o mundo inteiro” 2. Este é o mesmo pensamento de Montaigne quando escreve:
“Infeliz a meu juízo, quem não tem em casa um lugar de recolhimento, onde esteja só consigo,
onde possa voltar-se para si mesmo, e não para os outros, onde possa esconder-se” 3.
Se, de começo, dissemos que todo homem é filósofo, já agora começa delinear-se o
cariz do verdadeiro filósofo: é filósofo todo aquele que, para pensar, sente necessidade de
retirar-se. O homem-massa não tem esta necessidade pelo que não é filósofo, deixando-se levar
ao sabor dos acontecimentos, guiando-se por pura fé, obediente às determinações do social,
sem nunca perguntar: por que? O filósofo é o homem que quer ser autêntico, que luta por ser
si mesmo, e não o social nele.
Na medida em que formamos o nosso conjunto-verdade, ou sistema-verdade, vamos
fazendo um balanço, pondo em xeque o nosso sistema, incorporando verdades verdadeiras, e
expurgindo dele as verdades falsas tidas por verdadeiras até então, tendo em vista o princípio
que Toynbee tomou de Meredith em “O Túmulo do Amor”, que diz: “Somos traídos pelo
que há de falso em nós” 4. Então, cada vez mais nossa visão se aclara, visão que determina
nossa conduta cada vez mais reta, cada vez mais acertada, sábia. A filosofia, portanto, não é
uma coisa feita, mas em se fazendo, e só estará completa e acabada, quando formos, de fato,
senhores da verdade. Esta verdade é o sistema único que se chama sabedoria.
A filosofia, pois, busca a verdade, a sabedoria, e o homem que estiver inflamado dessa
paixão pela verdade, pela sabedoria, é um filósofo. A própria palavra filosofia quer dizer isso:
1
H. Rohden, Filosofia Universal, 1,21
2
Goethe, Fausto, Clássicos Jackson XV, 78
3
Montaigne, Clássicos Jackson, XII, 30
4
Arnold J. Toynbee, Um Estudo de História, III, 784
8

amigo da sabedoria, ou amor à sabedoria. Com isto, chegamos a uma definição mais
completa do que seja a filosofia: filosofia é a meditação sobre o mundo, sobre a verdade que
subjaz ao mundo; a posse dessa verdade é o anseio do filósofo; essa verdade é a sabedoria, e
quem a busca é seu amigo, seu amante, isto é, amigo da sabedoria.
Assentado que não podemos ter todas as vivências que a vida global nos ofereceria se
fôramos infinitos, onipresentes e dono de todo o tempo, ou seja, capazes de trazer para o
presente o passado e o futuro, o passado como memória, e o futuro como previsão do que é
possível ser previsto; frente a esta impossibilidade nossa, não nos resta outro recurso senão o
de permutar experiências. Esta permuta seria ver o mundo através dos vários filósofos,
enxergando-o de seus pontos de vista. Assim, para termos todas as vivências de dado
pensador, precisamos ler toda sua obra, colocando-nos no mirante de onde ele enxergou o
mundo. Quando, por exemplo, vemos condensada a doutrina de Hegel no enunciado: “quanto
mais geral, mais real, e quanto mais individual, menos real”, aí temos sua filosofia na máxima
concisão. No entanto, já dizia Horácio: “Esforço-me por breve, torno-me obscuro” 5. Quer
dizer que, com este simples enunciado hegeliano, não podemos viver a sua filosofia. Já se
passarmos e repassarmos por todos os seus argumentos, depois de certo tempo, aquele
enunciado, aquele condensado do grande pensador, se nos mostra cheio de conteúdo vivencial.
Dir-se-á que não temos tempo para ler todas as obras de todos os pensadores. É certo
que não dispomos desse tempo; mas há as obras de divulgação, os escorços, os compêndios
para estudantes de filosofia, em que a condensação é menos restrita, menos compacta que o
simples enunciado. E há mais isto: para as mentes filosóficas, um simples enunciado soa como
se fora uma premissa da qual se pode deduzir todo um sistema. Um simples enunciado já serve
para pôr-nos no mirante que verte para o mundo, em que, realmente, se colocou o filósofo. E
assim como Hegel chegou à sua condensação, à sua fórmula, por indução, nós podemos
deduzir o seu universo a partir de sua fórmula.
O mundo foi enxergado por Hegel, de que ponto de vista? Pois ele viu o universo do
mirante criacionista, que não do evolutivo. Do ponto de vista evolutivo, tudo se faz de baixo
para cima. Houve um tempo em que este nosso universo estava condensado numa esfera de
dez mil anos-luz de diâmetro, que era o Colosso Primitivo de Alpher, Beth e Gamow. Os
átomos, aí, em formação, eram nus. Os núcleos atômicos eram já cosmos, porém, rodeados
ainda pelo caos. Com a expansão do Colosso Primitivo, os núcleos nus ganharam calotas
eletrônicas, pelo que surgiram os átomos; estes, então, eram cosmos, todavia, rodeados pelo
caos. As formações se sucederam de baixo para cima, por este processo, e tudo o que se
organizou, esteve sempre rodeado pelo caos. O indivíduo humano, o seu ente biológico, foi
preciso formar-se primeiro, para que, a partir dele, aparecessem as formações mais altas e
complexas da sociedade, do Estado. O Estado, por conseguinte, é uma unidade em formação,
e, por isto mesmo, em parte, ainda caótico, não podendo ser mais real que os indivíduos, dado
que o Caos mais inteiro é a suprema irrealidade. Daqui se pode construir a fórmula de Hegel
pelo avesso: em todo o âmbito que a evolução abarca, quanto mais geral, menos real, e quanto
mais individual, mais real. Em nosso mundo evolutivo, o real está na razão inversa do
universal, e na razão direta do individual. Há mais ordem e harmonia, e, portanto, realidade, no
cosmo atômico e molecular, do que no organismo estatal; isto é pacífico. O cosmo sideral,
embora amplo, é simples, como se fora uma ampliação do átomo, da molécula. Não confundir
extensão espacial com generalidade.
Estaria, então, errado o enunciado hegeliano? Não está. No mundo celeste, no mundo
pleniluminoso criado por Deus, o mundo resplendente ou topos uranos de Platão, a fórmula de
Hegel se aplica, e quanto mais geral, mais real; a suprema realidade é Deus, da qual todas as
demais realidades decorrem; e dele abaixo, quanto menos geral, menos real. As conseqüências
que Hegel tirou do seu sistema, relativas ao Estado, o Estado teocrático, em que o chefe
manda por eleição divina, aplica-se lá, no topos uranos, onde é inexeqüível a democracia pela
5
Clássicos Jackson, XII, 10
9

qual a massa dos anjos menores elegeria seus chefes, e isto, simplesmente, porque o menos,
ainda que em massa, não pode eleger o mais. Um gênio sozinho pode muito mais do que os
milhões de homens medíocres que se pudessem reunir num parlamento, num conselho, porque
nada de superior será obtido pela potenciação infinita da unidade, do um, ou pela somação de
infinitos zeros. Onde não há elite, não há escolha, e um congresso cem por cento constituído
de nulos, o eleito será um nulo também. E a massa nem sempre sabe distinguir o homem
elegante (donde veio elegente, que sabe eleger ou escolher o que melhor se tem a fazer), o
homem excelente, do demagogo vulgar que não passa dum ambicioso do poder e bem falante.
No entanto, em relação a este nosso mundo evolutivo, Hegel está errado, e nada mais fez do
que recair no passado, porquanto o absolutismo estatal foi o cariz de todos os governos desde
os primórdios da civilização, e, já nos tempos modernos, Luiz XIV (“L’etat c’est moi”), o
Mikado japonês, Hitler, Mussolini, Lenin, Napoleão Bonaparte, Júlio César, Alexandre
Mágno, Anibal, Gengis-Khan encarnaram o “Espírito Absoluto” qualquer que fosse o nome
dado à suma Realidade-Deus.
Como era de esperar-se, em nosso Estado ainda em formação, a anacrônica e
primitivista doutrina de Hegel se mostrou funestíssima, porque a pretensa eleição divina elevou
Mussolini e Hitler ao poder. Tal “eleição divina” não fez mais do que permitir a subida de
verdadeiros demônios do mal ao supremo mando, como o demonstraram as obras demolidoras
de ambos, sobretudo as de Hitler. Basta o que atesta a História para provar que a doutrina de
Hegel está errada em relação a este nosso mundo invertido, egoísta e mau. No entanto, se
aplicada ao topos uranos de Platão, a filosofia hegeliana se nos mostra corretamente certa. Daí
que, conforme o dissemos, a doutrina de Hegel se aplica ao mundo criado diretamente por
Deus (criacionismo), e não , a deste nosso mundo evolutivo, imperfeito, que vem da escuridão
do Caos, em demanda da luz. O liberalismo democrático, portanto, pode não ser o melhor
regime, mas é o que melhor se adapta às condições dragontinas deste nosso mundo em
evolução.
E, pois, que temos feito até aqui, senão uma crítica a Hegel ? Então, a filosofia pode
definir-se, também, como crítica. Cada filósofo, ao erigir o seu sistema, critica os anteriores no
que supõe errado, incorporando o que tem por certo e verdadeiro. Daqui vem, conforme o diz
Ortega, que a filosofia, por um lado, é “o repositório dos erros”, e, por outro, “o tesouro dos
acertos”.
Partindo da definição mais natural e espontânea de filosofia, que é a de meditação
sobre o mundo, podemos perguntar: o que o homem procura descobrir nas coisas, no mundo,
por meio de sua meditação ? Procura descobrir o nexo, a inteligência, a essência das coisas.
A própria palavra inteligência vem de duas palavras latinas, inter (entre) e legere (ler); a
inteligência é, pois, a faculdade de ler, captar ou perceber o nexo que os sentidos não
percebem. A inteligência busca o nexo que co-está com as coisas. É a inteligibilidade das
coisas. Há, nas coisas, um princípio de conexão não só que a todas interliga, senão que
também integra suas partes. O núcleo atômico é uma unidade polarmente contrária aos
elétrons; estas unidades opostas e complementares se conectam na unidade hierarquicamente
superior - o átomo. Os átomos de polaridades elétricas contrárias ligam-se entre si, do que
resultam as moléculas, e assim por diante, tudo o que existe é uma síntese que agasalha, no seu
interior, no seu ser, unidades opostas e complementares. Assim, cada ente, qualquer que seja o
nível, se mostra diferenciado em relação à outra unidade do mesmo nível, mas oposta, com a
qual se combina, formando uma unidade maior, de espécie superior, do que as componentes.
Do homem abaixo, ou do homem acima, o princípio é o mesmo.
Como a inteligência busca o princípio, o nexo, que tudo liga e integra, a meditação
sobre o mundo se reduz à procura do nexo. A este nexo se deu o nome de Eros que é o
princípio de integração, princípio de conexão, de união. A inteligência, portanto, busca Eros, e
Eros é o Amor. Por isto é que Platão via o mundo cheio de Eros; via o universo, e tudo o que
o constitui, como que amorosamente interligado; o universo, para ele, existia graças a esse
10

congraçamento erótico. Como o objeto da inteligência é Eros, ela é de natureza erosóide,


como diz Ortega. E sendo Eros o Amor, a inteligência procura o que há de amor interligando,
unificando, integrando. Por esta razão define Ortega a filosofia como a “ciência geral do
amor”. Antes, vimos que a filosofia é o amor à sabedoria, e agora nos vem de Ortega a
definição da filosofia como a “ciência geral do amor”.
O homem ignorante olha o mundo através de suas vivências e convivências; fá-las,
depois, desfilar em suas lembranças, isto é, torna observá-las por meio de sua imaginação, ou
seja, medita sobre elas em sua quietude física, procurando entendê-las. De olhos fechados,
passa e repassa as coisas, as situações, as informações recebidas, os conhecimentos adquiridos
em sua mente conscipio, buscando a inteligência das coisas. De repente, de súbito, de
relâmpago, clareia-lhe a mente, como que de um estalo, como que de um disparo de
intelecção, e ele , heureca ! ... entende o que procura. Este clarão subitâneo, esta velocíssima
descoberta do nexo, da essência, vem prenhe, pejada, de emoção ..., da mesma de que ficou
possuído Arquimedes quando, nu, sem dar-se de si, saiu do seu banho a correr pelas ruas de
Atenas gritando: heureca ! heureca ! ... A descoberta do nexo vem como uma revelação, não
de fora, mas de dentro. A este clarão subitâneo, a esta revelação interior, os primitivos
filósofos deram o nome de Alétheia que significava na língua vulgar, descobrimento,
patentização, desnudamento, revelação, apocalipse. Ortega: “Esta situação, esta experiência
vivente do novo pensar grego, que seria o filosofar, foi maravilhosamente denominada por
Parmênides e alguns grupos alertas de seu tempo, com o nome de «alétheia»” 6.
E todo homem, sem nenhuma exceção, já teve esta experiência vital, quando procurava
entender uma coisa ou situação, e a compreendeu de um estalo, como o de Vieira, num
relâmpago, pleno de júbilo, de emoção. Mais tarde é que o vocábulo espontâneo, poético e
natural alétheia, se banalizou no modesto e prosaico termo filosofia inventado por Pitágoras.
Deste modo, da meditação sobre o mundo, vem a alétheia, a revelação racional, a
descoberta do nexo, a inteligência do que a coisa é, a essência dela, a filosofia. Mais uma vez
esta descarga de intelecção se assemelha à descarga nervosa, erótica, amorosa; aquela própria
da inteligência, e, por isto, de natureza erosóide, como refere Ortega.
Eis, pois, como a filosofia se vai definindo de modo natural, espontâneo, e isto, usando
as nossas vivências, isto é, aquelas que nos são comuns, ou comuns a todos. Não existisse este
lastro comum de vivências, os homens não se entenderiam; como todos estamos na vida, em
grande parte nossas vivências se assemelham.
Então, as várias filosofias são modos diferentes de interpretar o mundo; a causa disto é
que cada filósofo, postado no seu mirante, e a partir de suas próprias vivências, nos diz o que
o mundo lhe parece, e como há de ser a verdade segundo o seu entender. Juntando-se todas as
verdades particulares, todos os testemunhos da verdade, porque cada filósofo tem sua parcela
de razão, podemos construir a verdade inteira, global. “Dir-se-ia - escreve Ortega - que a
razão se fez estilhaços antes de começar o homem a pensar e, por isso, tem este que ir
recolhendo os fragmentos um a um e juntá-los. Simmel fala de uma “sociedade do prato
quebrado”, que existiu em fins do século passado na Alemanha” 7. Por conseguinte, a síntese
filosófica que desenvolvemos, já tem nessa “sociedade do prato quebrado”, sua precursora.
Mais: “Se os filósofos anteriores já não houvessem feito essas «experiências de pensamento»
teria que fazê-las o sucessor e, portanto, permanecer nelas e ser ele o antecessor” 8. Ainda:
“Como os problemas da filosofia são os fundamentais, não há nenhum em que não estejam já
todos. Os problemas fundamentais estão inexoravelmente ligados uns aos outros, e puxando
qualquer um saem os outros. O filósofo os vê sempre, ainda que seja sem consciência clara e à
parte de cada um. Se não se quer chamar a isto ver, diga-se que, cego, os apalpa. Daí que -
contra o que o profano acredita - as filosofias se entendem muito bem entre si: são uma

6
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 209
7
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168
8
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, l68
11

conversação de quase três milênios, um diálogo e uma disputa contínuos numa língua comum
que é a própria atitude filosófica e a presença dos mesmos bicórneos problemas” 9. “Deste
modo, a série dos filósofos aparece como um só filósofo que houvesse vivido dois mil e
quinhentos anos e durante ele houvesse «prosseguido pensando»” 10. A filosofia, deste modo,
se nos mostra como uma coisa em se fazendo; mas um dia estará completa, conferindo ao
homem a plena verdade humanamente possível. Existirão luzes verdes para todos os lados,
indicando campos ignotos do saber, somente acessíveis a outros níveis de consciência; porém,
a mente humana, enquanto humana, estará saciada, tendo realizado em ato toda a sua
potencialidade. O objetivo perseguido pelo homem é a felicidade, e o saber é, apenas um dos
caminhos para ela. Todavia, do mesmo modo como um neurônio do nosso córtex nunca
poderá vir a saber o que é o universo-homem em que ele vive, habita, e do qual depende, nós,
humanos, ainda que sapientíssimos, jamais, também conseguiremos saber o que é o Ser, o que
é Deus. No entanto, podemos falar a respeito dele, podemos dar dele o nosso testemunho,
podemos promovê-lo a Estatuto por excelência, a Fundamento primeiro, a Premissa Maior
de todas as nossas conclusões. Somente o homem que chegou a tanto, poderá chamar-se
sophos, sábio. Quanto a nós, por enquanto, contentamo-nos com apenas ser amantes ou
amigos da sabedoria, isto é, filósofos.

Capítulo II

QUE É A SABEDORIA ?
Como a descoberta da verdade se nos assemelha a uma revelação, daí, alétheia,
primitivo nome da filosofia; como tal descoberta vem pejada de sentimento, de emoção ... que
pode chegar ao êxtase, seu descobridor não se sente propenso a cuidar que sua visão é parcial,
que ele observou o mundo apenas de um mirante, que sua visão é uma perspectiva. Sua
tendência natural é considerar-se como detentor da verdade inteira, e, portanto, que seu
sistema é completo; sente-se, não como o que busca a sabedoria, como seu amante, apenas,
mas, como possuidor da inteira verdade. É assim que, antes dos gregos, a verdade que se tinha
relampagueado na mente dos pensadores, era dada como pura revelação indiscutível.
Buda teve o seu lampejo, quando meditava sob a árvore Bó, e achou que toda a verdade
consistia nisto: o mal do mundo decorre dos desejos os quais, em sendo anulados até suas
raízes mais profundas que são o desejo-de-ser, levam o homem a aniquilar-se como
individuação, dissolvendo-se sua mente individual na Consciência Cósmica ou Nirvana. Todo o
mal procede da individuação que se confirma e se reforça com o desejo-de-ser, e todo bem, da
desindividuação ou da dissolução do ser, ou ente, no Todo Universal.
9
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 170
10
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168
12

A visão de Buda levou-o à anulação e ao não-ser, e isto, pelo seu método de não
desejar nada, pelo da negação da vida. Em contraposição, a afirmação da vida conduz o
indivíduo a reforçar-se, a impor-se, a individuar-se cada vez mais. Esta afirmação de ser dá
como resultado a ampliação dos desejos que, uma vez repetidamente satisfeitos, torna-se
hábitos que tecem a teia do destino. Como a alma é uma mina inesgotável de desejos, o desejar
não cessa, e em qualquer ponto de parada sobrevém o tédio que é outra forma de sofrimento.
Assim, o homem está condenado a desejar coisas, sofrendo por não poder realizá-las todas; e
se resolve pôr um termo a tanto desejar, aí nasce o tédio que o esporeia e o faz ir por diante.
Iniciando-se, por conseguinte, uma árdua guerra contra os desejos, vencendo-os um a
um, pouco a pouco vai cessando a afirmação-de-ser, e quando o indivíduo, através de várias
reencarnações, chegar à anulação de todos os desejos, até o de viver, até o de ser, terá
chegado à sua extinção total com sua disseminação no Todo, inclusive sua mente que se
dissolve no arqui-oceano da Mente universal ou cósmica de onde saiu, quando se individuou,
e, após isto, prosseguiu no desejo impuro de continuar individuado. E se esta porção do Todo
universal não teve este desejo impuro de individuar-se, e não podia tê-lo, porque inconsciente,
segue-se, então, que tal porção foi, à revelia sua, individuada por Algo estranho a si. Daí a
ponta de revolta de Buda contra esse Algo a cuja vontade se opõe, querendo exatamente o
oposto do que o Algo quis e fez... Quando o indivíduo anelar pela morte, não só a física, mas a
da própria alma, então sobrevém a anulação do ser, e sua mente se dissolve na Mente universal
de onde foi compelida a sair, de onde foi individuada, como uma onda encapelada que se
individua do corpo aquário do oceano, para onde retorna e desaparece. Retornando, assim, ao
Todo primitivo, cessa a individuação, e, com ela, os desejos, e, com estes, todas as dores,
aflições, fadigas e males.
Não adianta Huberto Rohden nos dizer que os budistas sempre consideraram Buda
como uma “alma ébria de Deus”. O que os orientais pensam e sentem em seus desejos de
autoafirmação, isso não conta. O que conta é o que o próprio Buda disse, e é isto: “Os
perseverantes apagam-se como a lâmpada. Onde nada é, onde nada se arrebata, onde nada é
palpável está a Ilha do Nada-Além; chamo-a de Nirvana: a suprema abolição do
envelhecimento e da morte”. Esta premissa de Buda acha-se bem explicitada na obra do seu
maior discípulo ocidental Schopenhauer, no seu livro: “O Mundo como Vontade e
Representação”.
Ora bem: o que quis a Mente universal? A individuação. E que pode mais: é a vontade
individual, ou a Cósmica? É a cósmica. E como pode a mente individual, então, vencer a
Cósmica, anulando em si, o que quis e impôs a Mente universal? Aqui está a incoerência de
Buda e a de Schopenhauer. De outro modo: a Mente universal ou Cósmica quis e operou a
individuação dos entes todos. Querer o contrário, a desindividuação, é estar contra a Mente
universal, é ser anti-cósmico, anti-Deus. Lúcifer e seus consócios chegaram ao não-ser pela
inversão do amor no egoísmo. A este mesmo não-ser pretendem Buda e Schopenhauer chegar,
pelo caminho de não desejar nada, ou pelo de desejar a anulação como indivíduos. Qual,
logo, a diferença entre estes dois modos de ser contra Deus? Pois Satanás, pelo caminho de
querer tudo, de querer ser o centro para onde tudo haveria de pender. Buda e Schopenhauer
não querem nada, nem mesmo ser, que isto é estar abaixo de último. Fale, então, Ortega: “A
rigor, a rebelião do arcanjo Lusbel não o houvera sido menor se em vez de empenhar-se em ser
Deus - o que não era o seu destino - se houvesse obstinado em ser o mais ínfimo dos anjos,
que tampouco o era. (Se Lusbel tivesse sido russo, como Tolstoi, teria talvez preferido este
último estilo de rebeldia, que não é mais nem menos contra Deus que o outro tão famoso)” 11.
Cada ente, logo, para achar a sua felicidade, que é a única coisa que todos buscam, terá
de permanecer no seu posto, fazendo aquilo que o faz ser o que é, numa especialização
proveitosa para todos, que o leve a ser único em sua espécie. São Tomás tem razão: cada anjo
é uma espécie; e Huberto Rohden: “O fim do homem é revelar em sua existência individual -
11
Ortega Y Gasset, a Rebelião das Massas, 178
13

aqui ou alhures - aquele aspecto peculiar e único da divindade que só ele poderá revelar
plenamente. Pois, como todos os seres da natureza, e sobretudo todos os seres humanos, são
originais, únicos e inéditos na sua existência, seres que nunca existiram nem jamais existirão
iguais; indivíduos que não são cópias de outros anteriores, e dos quais não serão feitas cópias
posteriores - segue-se que cada indivíduo e cada personalidade tem a missão peculiar de
concretizar um determinado aspecto da divindade” 12.
Por conseguinte, é na individuação de inconfundível unicidade original que está o fim
do homem, e não na sua despersonificação tendente ao homogêneo, ao amorfismo. O fim do
homem é ser único em si mesmo, e ser o que o anjo é, e “cada anjo é uma espécie”.
Mas Buda não perdeu tempo em explicitar sua premissa, ou chegar a ela por indução;
não se ocupou em descrever suas experiências, em desenvolver seus raciocínios, em
demonstrar sua verdade. Apenas apresentou-a como sendo a verdade mesma, a sabedoria
inteira sem discussão. A doutrina de Buda não aparece como uma busca da verdade, mas como
a verdade achada, inteira, e para revelá-la aos homens, não usou argumentos, raciocínios,
razões, exposições, e sim, apresentou-a como coisa definitiva, indiscutível, na qual se devia
crer de fé.
Assim também ocorreu com Zoroastro, o homem a quem tocou inventar o diabo, pois,
para ele, o único modo de resolver o problema dos males, misérias e dores do mundo, seria
criar um anti-Deus ou Satanás. Mas não diz Zoroastro quando, por que, de que, por quem e
como tenha surgido esse formidoloso Demônio que enche o mundo de mal e dor. Apenas
apresentou sua verdade que tinha de ser aceita de fé, sem discutir. No modo de apresentar a
verdade vai a diferença entre o dogmatismo e a filosofia, entre o fautor de religião e o filósofo;
este, por isto, mais modesto, se contenta com apenas ser amigo da sabedoria, enquanto que o
outro não tem por onde senão mostrar-se como sábio.
Moisés condensou em si toda a cultura de seu tempo, como príncipe que era, valido da
casa de faraó. No entanto, quando previu que o Egito estava condenado, sem remissão, por
causa de a materialidade estar suplantando o espírito, e decidiu fazer-se guia do seu povo
escravizado, não disse nada do que aprendera com os egípcios, não declarou que sua
concepção do Deus único era um aperfeiçoamento do etéreo deus-luz de Akhenaton
(Amenotep IV), um faraó que vivera cem anos antes dele, segundo Charles Potter. Não
anunciou que seu Decálogo, o conteúdo ético de sua religião, fora calcado sobre o Código de
Hamurabi. Nem que o maná das fraldas do deserto que o povo percorrera, era natural aí, e até
hoje é colhido de uns pequenos arbustos (tamargueira). Nem que as codornizes caídas de
cansaço no arraial, não foram enviadas por Deus, mas que até hoje lá pousam de seus vôos
migratórios, depois de vencerem a distância do braço de mar que cada vez mais se alarga com
o afastamento dos continentes. Nada disto disse Moisés, e antes, levou tudo à conta de ordens
e vontade de seu Deus. Por que? Para ter a indispensável autoridade, falou em nome de Deus.
Suas experiências com explosivos no alto do Sinai, eram trovoadas, e quando, um dia,
queimou a cara, e teve de ocultá-la com um saco, veio com a explicação de que Deus lhe falara
face a face, e que desta vista de Deus, seu semblante de homem ficou resplandecente a tal
ponto, que ninguém conseguiria fitá-lo. Em vez de tirar o capuz que lhe cobria a cabeça, e
fazer esta prova magnífica do poder de Deus, apenas deu aquela descabelada versão do seu
acidente, e ficou só nisto. Foi com tais resinas explosivas que Josué pôs abaixo as muralhas de
Jericó, e, para despistar, enquanto os dinamitadores, camuflados, minavam as bases dos muros,
o povo, ao longe, ao largo, faziam voltas procissionais, tocando tambores e trombetas. A
arqueologia descobriu: as muralhas de Jericó caíram para dentro... Também com explosivos
Josué fez desbarrancar as margens do Jordão, bem acima de onde se acampava o povo de
Israel, e tendo secado temporariamente o rio dali abaixo, pôde o povo atravessá-lo a pé
enxuto. Mais verossímil é esta do explosivo, que a hipótese de terremotos para o
desmoronamento das margens do Jordão, e para a queda das muralhas de Jericó, aventada por
12
Huberto Rodhen, Filosofia Universal, 2, 75
14

quem escreveu esta parte de “O Mundo Bíblico” de Seleções... Segundo Sílvio Gesell, há duas
fórmulas de explosivos na Bíblia, bastando variar as proporções: uma é a do “azeite da santa
unção” 13, e outra, a do “incenso santo” 14. Daí a recomendação, em ambos casos, de que seria
extirpado do seio do povo aquele que fizesse uso inadequado de tais incenso e óleo santos,
haja vista os dois filhos de Arão que morreram duma explosão, quando erraram na fórmula do
incenso; mas a explicação é que apresentaram ao Senhor um “fogo estranho” (!) 15. Agora,
então, se sabe como os egípcios rebentavam pedras...
Também, diz Fritz Kahn que “os egípcios sabiam até construir aparelhos (elétricos) de
alta tensão, pois o cientista moderno que ler a Bíblia tem quase a certeza de que a “arca santa”,
da qual os sacerdotes faziam saltar “fogo”e “relâmpagos” que matavam qualquer um estranho
que se aproximasse indevidamente, fora uma instalação de alta tensão” 16. De tais raios morreu
Uzá 17 quando, para amparar a arca que se inclinara no transporte, pôs-lhe a mão. Os
condensadores se descarregaram para a terra pelo corpo de Uzá, e ele morreu. Ou do incenso,
ou destes raios elétricos morreram os sacerdotes filhos de Arão 18, já referidos.
Saradas as queimaduras, descobriu Moisés o rosto, porque aí, então, já se tinha
extinguido o resplendor divino. Ao fazer Miguel Ângelo o seu “Moisés”, talhando-o na pedra,
não teve outro meio de fazer esses raios divinos senão como duas pontas a saírem da cabeça
de Moisés; com isto Moisés saiu de chavelhos confundindo-se com Pã, com Sileno e com os
sátiros e faunos gregos..., para a confusão de algum arqueólogo, de milhares de anos futuros,
que o venha desenterrar de entre as demais ruínas desta nossa civilização...
Foi bom Moisés ter procedido desse modo? Sim, foi. De outra maneira não teria
autoridade sobre aquele povo que, além de fetichista e escravo, estava muito mal acostumado,
por causa da degradação e dos desregramentos dos egípcios. Haja vista que quiseram retornar
à idolatria egípcia e clamavam pelas paneladas que deixaram para trás no vale do Nilo.
Descendo Moisés do Sinai, em cujo cimo Deus lhe dera as Tábuas da Lei, depara-se
com seu povo na adoração do estúpido bezerro feito por Arão com as arrecadas de ouro que o
povo trouxera dos egípcios. Enfurecido, Moisés quebra as Tábuas Sagradas, e com isto obtém
duplo resultado: primeiro mostra todo o seu horror à idolatria, e manda passar pelas armas os
idólatras desnecessários e sediciosos, como escarmento para todos; só os desnecessários, sim,
porque poupou o indispensável Arão por cuja boca falava, visto que era tartamudo. Arão foi o
fautor do bezerro, e interrogado por Moisés sobre por que fez aquilo, respondeu: “lancei (o
ouro) no fogo, e saiu esse bezerro” 19. Esta desculpa mais afeiou o ato de Arão, porque, se
nega que fez o bezerro, então este se fez a si mesmo, pelo que se comprovava ser o verdadeiro
deus. Por tão feio pecado que custou a vida de tantos, Arão não é executado, porque havia
outros que podiam servir de bodes expiatórios, somente contra os quais recaiu a fúria
sanguinária de Moisés.
O outro resultado foi destruir aquelas Tábuas em que Deus escrevera, segundo disse:
por que? Ora, porque rudemente imperfeitas, impróprias a constituírem obra de Deus; com
isto, Moisés teve oportunidade de escrever, ele mesmo, outras, agora com as imperfeições
permissíveis, por serem obra de homem. Que petulância foi aquela de Moisés, de fazer em
pedaços uma obra saída da mão de Deus? E das Tábuas originais, por que não se guardaram,
como relíquias preciosíssimas, ao menos os cacos? Acaso não se podia emendá-los,
reconstituindo toda, inteira, as divinas Tábuas?, como fazem, hoje, os arqueólogos e
paleontologistas? estes com fósseis, e aqueles com cerâmicas, documentos, manuscritos e
utensílios? Mas não. Das antigas Tábuas não se falou mais, e Moisés escreveu outras, agora
13
Ex. 30, 23-24
14
Ex. 30, 34-36
15
Num. 26, 61
16
Fritz Kahn, O Átomo, 22
17
II Sam. 6, 6-7
18
Lev 10, 2
19
Ex 32, 24
15

apresentáveis a homens que ficaram só a imaginar como seriam aquelas em que Deus, tão
portentosamente, escreveu com sua própria mão.
Poder-se-ia perguntar: onde fica Deus em toda esta fantástica história? Pois fica na
mente e no coração de Moisés, porquanto foi de aí que Deus tudo comandou, propiciando
meios de civilizar a besta humana, obra que ainda não está acabada. Nós nos reverenciamos
frente à grande figura de Moisés, o gênio usado por Deus para guiar o rebanho de ignorantes,
egoístas e maus, em demanda da luz. É aí, na mente e no coração do seu ungido, que Deus
atuava, e não com prodígios exteriores, com deslumbramentos e portentosos sinais de força,
que é o que o involudo sempre procura. Akhenaton fracassara, porque era um rei. Moisés
anotou isso. “As grandes inovações nunca vêm de cima; é de baixo que, invariavelmente,
procedem”(Jung). Além disso, Akhenaton não contou com um Paulo, como teve Cristo
(Charles Potter). E sendo Moisés também um príncipe da casa de faraó, desceu do seu
pedestal, fez-se pastor do rebanho de ovelhas do seu sogro Jetro, antes de ir à sua gloriosa
missão de conduzir escravos com o título de “Libertador”, e, como tal, e em nome do seu
tonitruante Deus, triunfar sobre o poder supremo do Egito, traçando depois, com mão firme,
os primeiros rumos da nossa civilização ocidental. Pudera ter ficado com o trono do reino do
Nilo, se aplicasse nisso sua fabulosa inteligência. Mas não. É de baixo que havia de surgir,
heróico, sobranceiro, extraordinário aquele que encheria com sua figura mais de três mil anos
de história. O povo ignorante, dragontino ainda, queria sinais de força? Pois deu-os Moisés, a
mando do seu Deus interior que lhe guiava a mente, o coração e os passos. O faraó do tempo
dos prodígios de Moisés, Ramsés II (Charles Potter), não acreditava nos prodígios, porque
harto os conhecia das mesmas escolas em que estudou Moisés; mas criam-nos as massas, e isto
manietava o rei todopoderoso antes, tornado agora débil. Moisés aprendera a transformar
cajados em serpentes, e o feito de a vara de Moisés comer e engolir as dos sábios do Nilo, não
diminuiu em nada a glória destes de terem sido nisto os mestres de Moisés. Nessa batalha de
magos, os egípcios e Moisés se emparelharam, sem vitória de nenhuma parte, porque o
prodígio se cifrava em fazer cajados virarem cobras, e não, numa serpente maior comer e
engolir as outras. O Nilo transformado em sangue, já suspeitavam, os sacerdotes e o rei, tratar-
se de fenômeno natural; algo invisível e ignorado, em certa época, e sob dadas condições,
tingia de vermelhos as águas. Assim as rãs; assim os piolhos; assim os mosquitos: a história (e
a conheciam) relatava outras iguais ocorrências no passado. Mas o povo ignorava tudo isso, e
sua pressão sobre os sacerdotes e sobre o rei, fazia-os frágeis frente à portentosa figura de
Moisés que não se cansava de dizer que agia a mando e em nome de seu Deus.
Deus tinha então, e tem ainda, um trabalho a executar no mundo, e Moisés foi o seu
instrumento por cujas mãos agia, e, porque gago, Moisés falava pela boca de Arão. E falou
Arão, e Moisés escreveu a fala para a posteridade. Neste trabalho de impor o Bem ao Mal, a
Luz às Trevas, a Sabedoria à Ignorância, todos os meios e estratagemas servem, como soe
acontecer na guerra. Se tenta o Diabo imitar a luz do empíreo, por que não pode Deus fingir as
trevas suas? Os homens dragontinos pediam um sinal de força (eis as trevas!) para crer, porque
só crêem na força, e o tiveram, que, para tanto, Deus tocara Moisés com sua arqui-luminosa e
argêntea vara.
Quem quiser saber a quanto andava a ciência egípcia, veja o que fez Moisés. O que este
ostentou foi o produto melhorado com seu engenho e arte, do quanto se ensinava aos
iniciados, e só a estes. Também os sacerdotes, mestres e magos do Nilo, em relação a Moisés,
poderiam ter antecipado Nero... no que disse este de Tigélinos: “– Agasalhei uma serpente no
meu seio!”, que tal o fora Moisés, para o bem de Deus, e para a desgraça dos egípcios que se
mostraram surdos e insensíveis à voz meiga, mansa e boa de Akhenaton, o rei poeta que
morrera aos trinta anos, ralado de desgostos. Foi esta a primeira grande luz que brilhou em
meio à escuridão imensa, e foi por esta sufocada, até que surgiu Moisés, a grande luz segunda
que as trevas não puderam apagar.
16

Os tempos correram, e Moisés se firmou cada vez mais, brotando dele todos os galhos
e vergônteas que hoje frondejam, floreiam e frutificam nas instituições, na ética e nas leis. À
besta então se pôs os freios: os éticos e os legais, tornando-a no “civilizado” dos dias que hoje
correm. Onde, pois, ficou Deus em toda esta história? Pois ficou na mente e no coração de
Moisés, como idéia e como sentimento, para grandeza e glória do homem, para a glória e
grandeza da civilização. É aí que age Deus, e não, como o desejaria o involuído que pede
efeitos exteriores de força..., a força que esmaga sempre, mas nunca, jamais, convence
ninguém! Saibam-no, os que ainda hoje crêem no poder: uma idéia - Moisés o demonstrou - na
cabeça e uma pena na mão de um gênio, como o que escreveu o Pentatêuco, podem ser muito
mais fulminantes que quantas bombas de anti-matéria se possam produzir..., bombas que só
ainda em teoria são possíveis. Eis Moisés, o portentoso homem de Deus, que só pôde ser
superado pelo Maior de quantos teve o mundo, que disse no Madeiro, nas vascas da agonia:
Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!
Estes poucos exemplos bastam para demonstrar que, antes dos Helenos, os senhores da
verdade parcial não se davam como meros amigos da sabedoria, mas se punham na frente de
todos como sábios, porque, até então, o único meio de apresentar a verdade era o método da
fé, o da sugestão, visto que o povo, grosso modo, não era racional. A humanidade também
teve sua infância, e as crianças, e os hipnotizados, obedecem sempre, sem nunca pedir razões.
Grosso modo, dizíamos, porque sempre houve a raça dos discutidores, dos sofistas e dos
cépticos, estes, no sentido grego da palavra, diferente do sentido que se dá hoje a esse termo.
Estes tais, ou entendiam e auxiliavam a obra civilizatória, ou eram os sediciosos, como Datã,
Coré e Abirão, anarquistas todos, que argumentavam: se toda a congregação é santa, por que
se exalta Moisés sobre os demais? Se todos somos santos, por que haver chefes? A estes, com
suas tendas, com seus animais, com seus filhos e com suas mulheres, Moisés enterrou no
deserto, e depois escreveu com mão firme, decidida: a terra abriu-se debaixo de seus pés, os
tragou, e se fechou sobre eles...
O céptico, no sentido grego, nada se parece (diz Ortega) com o negativista de nossos
dias que não crê em nada por mero comodismo, por preguiça de pensar; esse céptico moderno,
sonolento, amodorrado, que não se prende nunca em pensamentos grandes, difere polarmente
daquele outro vivo, ativo, percuciente que se dava ao trabalho de, por meio duma cadeia de
raciocínios rigorosos, apertados, erradicar a fé de seus coevos. Assim, os cépticos e os sofistas
levaram a descrença a todos os gregos, pondo em colapso a sua religião que servira muito bem
até ali.
No entanto, como o demonstra Ortega, “estamos sempre numa crença” que nunca
discutimos, porque a somos. Religião se pode discutir, porque é objeto de razão, de estudos,
mantendo-se, por isto, exterior à nossa vida; a crença que somos, que faz a nossa vida, que,
imperativamente, nos guia a conduta e os passos, essa não podemos discutir, porque a somos,
dado que os fundamentos não se discutem, nem nas ciências, nem nas matemáticas. Quando
perdemos nossa crença, o nosso substrato profundo sobre que nos apoiamos para viver e agir,
ficamos no ar, suspensos. Um homem pode não ter religião, mas terá sempre uma crença, que,
do contrário, não pode conduzir-se, agir, viver. Alguma coisa é sua convicção profunda, e, se
a perde, vê-se obrigado a entrar em meditação, a criar pensamentos novos, a organizar nova
crença. Pois bem: os gregos tinham perdido a crença nos deuses, e aqui, começa, para eles, um
modo diferente de obter nova crença, sem ser pelos caminhos da teofania, da revelação, como
até então fora. O homem grego atingira a idade da razão, a maturidade; não se guiaria mais
pelo princípio da autoridade, pela sugestão, pela hipnose, pela fé, e sim, por racionalidade, por
persuasão. A busca de Deus, do Ser, tinha de fazer-se por via racional, e não mais com base no
princípio da autoridade; em vez de continuarem a perguntar: quem disse?, passaram a
perguntar: por que?
Todavia, o Deus que aparece no fim duma cadeia de raciocínios, não é o mesmo Deus
das religiões. A filosofia, até agora, levou o homem à concepção de um Deus-Essência-Pura,
17

Deus-Forma-Vazia-de-Conteúdo, Deus-Pura-Idealidade, no passo que o Deus das religiões


é o Deus-Substância, Deus-Vivo, atuante, que tem Querer, que tem Vontade, que se põe em
contato afetivo, amistoso, com o homem para o abençoar.
Sem apelar para a fé, seguindo sempre a linha racional, iremos ver como as duas meias-
verdades se reúnem, se irmanam, se integram na síntese, e a idéia de Deus se resplandece
como Essência e Substância a um só tempo.
18

Capítulo III

AS CLASSES DE SABER
Filósofo é todo aquele que se acha possuído do amor pela sabedoria; porém, que classe
de saber ocupa a meditação do pensador? Há muitas classes de saber, como, por exemplo, o
saber instintivo, próprio dos animais, e o saber prático, manual, habitual, reflexivo (que faz o
artesão, o oficial) próprio dos homens ocupados em rotinas. Dizemos que a Natureza é sábia,
porque a vemos resolver os seus problemas inteligentemente, sem, contudo, haver inteligência
nos seus agentes. Há certas lagartas que, quando famintas, possuem heliotropismo positivo.
Atraídas pela luz, tais lagartas começam a subir pelo tronco, pelos galhos das árvores de cujas
folhas se nutrem, indo parar nos brotos mais tenros. Saciada a fome, cessa o heliotropismo, e
as lagartas podem voltar, nos galhos, para esconderijos seguros. Acima dos tropismos situam-
se os instintos animais, e infindos problemas se resolvem por meio deles. Esta sabedoria
irracional levou os homens a criarem aforismos paradoxais quais sejam: a natureza é sábia, e
a natureza é cega... É sábia, mas cega (!)...
No entanto, acima deste saber irracional situam-se outras classes de saber, como é o
caso do saber que procuramos, e do saber que não procuramos; este saber que não buscamos
é-nos imposto pelo nosso contorno social desde o berço. Ao nascermos, achamo-nos alojados
em um mundo social, e desde pequeno os mais velhos vão-nos ensinando coisas, noções, ao
nos transmitir o domínio da língua. Vivemos, destarte, a crédito da sociedade. Nossos
pensamentos não são nossos; são o social em nós. A sociedade nos invade, nos domina,
expulsa-nos de nós mesmos, para que sejamos o que ela é. Nesta fase não somos autênticos,
não somos nós mesmos, e, parodiando o Apóstolo das gentes que disse: “Não sou eu o que
vivo, mas Cristo é que vive em mim” 20, também poderíamos afirmar: não somos nós que
vivemos, mas a sociedade é que vive em nós.
E todos os nossos conhecimentos primeiros nos vêm por esta via do social, sendo esta
teoria do conhecimento muito diferente daquela de Kant, segundo a qual tudo começava nas
intuições puras de espaço, de tempo e de causalidade.
E quando vamos para a escola, a sociedade nos acompanha nas pessoas dos mestres,
prosseguindo no seu afã de expulsar-nos de nós mesmos, para que sejamos apenas mais um
elemento da multidão. Nossos conhecimentos são livrescos, ofertando-nos uma forma de
vivência muito diversa da que nos compete ter para sermos autênticos, para sermos nós
mesmos. O conjunto-verdade da multidão passa a ser o nosso conjunto-verdade com todo o
seu acervo de verdades falsas, tidas por verdadeiras.
Outra classe de saber não procurado é o habitual que nos impõe nossa vida espontânea.
Ao nos levantarmos, de manhã, lavamos o rosto, fazemos a barba, tomamos o nosso café,
vestimo-nos, e, às vezes, até sem nos apercebermos de tudo isto, se estivermos engolfados em
preocupações grandes. Tal, a força do hábito! No entanto, os hábitos foram aprendidos, antes
de se fixarem em automatismos semelhantes ao saber instintivo. Eis, portanto, outra classe de
saber: o saber irracional dos hábitos.
Vestidas as roupas, saímos para a rua, vemos casas, gente, árvores, animais, ouvimos o
barulho do mundo, e assim, chegamos ao nosso local de trabalho. Findo o dia, à tarde,
voltamos para a casa, pomo-nos à vontade para ler o jornal, ver televisão, ouvir música,
meditar sobre o mundo.

Até aqui, vivemos nossa vida espontânea, sem problemas. Todavia, quando, em nossa
meditação sobre o mundo, nos perguntamos: o que é a árvore?, nesse ponto, a árvore passou
a ser-nos um problema, passou-nos a ser objeto de cogitação, de estudo. Enquanto não nos
fizermos nenhuma pergunta, todo o nosso saber se resumia num saber não procurado, num
20
Gal 2, 20
19

saber vivencial, espontâneo, natural, patente. No entanto, quando nos perguntamos o que é a
árvore?, nesse momento, saímos da nossa vida espontânea, maquinal, para penetrarmos em
nossa vida racional. Este saber que procuramos, esse o discutimos, num pleno exercício não só
da razão, mas da vontade; queremos saber, e, por isso, procuramos tal classe de conhecimento.
A árvore tornou-se-nos um problema; queremos saber o que ela é.
Saímos da nossa vida espontânea, dissemos, para penetrar em nossa vida racional;
contudo, não é isto verdade, porque nossa vida espontânea, levamo-la conosco para o gabinete
de estudos. Não nos apartamos jamais, nunca, dela, e quando nos propomos a questão de o
que é a árvore, imaginamos a árvore num ponto da paisagem, e toda a paisagem ao redor
dela. Deste modo, o mundo espontâneo, embora não seja um saber procurado, é o fundo ou
cenário do outro saber, o que procuramos, porque, um homem que jamais tivesse visto árvore,
bosques, florestas, estaria impedido de fazer-se a si mesmo a proposição: o que é uma árvore?
Nunca, ninguém se ocupou de perguntar sobre as coisas estranhas que existem em Vênus; não
obstante, se algum dia chegar a vê-las, sem dúvida perguntará o que são elas. O caso é como o
da laranja para os mãoseanos; se em Mãose (planeta fictício) não houver laranjeiras com suas
laranjas, um mãosito ficaria impossibilitado de saber o que são tais coisas... por lhe faltar o
complexo das vivências sobre que se apóiam os conceitos, as essências.
Já se vê, conseqüentemente, que aquele saber não procurado que o mundo a todo
instante nos oferta, é a base natural indispensável do saber que buscamos. Sem as nossas
vivências, sem nossa vida espontânea, sem isso que está aí fora, sem esse mundo físico ou da
física, não se poderia construir a metafísica, literalmente, depois da física; sem esse antes, que
é a física, não haveria o depois, que é a metafísica. Se um serafim viesse nos dizer como é seu
mundo celeste, não poderíamos entender, porque nos faltam as vivências que subjazem, que
lastreiam, que fazem fundo a esse saber.
Ora bem: como estes dois aspectos: o substancial ou físico e o essencial ou metafísico,
são inerentes a todas as coisas; como o aspecto substância, física, vivência, experiência
sensorial, vida espontânea, e o seu correlato aspecto essência, metafísica, conceito, forma,
razão, vida racional não se separam na unidade do ser-das-coisas, segue-se que a filosofia
não pode considerá-los divorciados como sempre se fez. Conquanto nossa vida espontânea nos
propicie um saber não procurado, ele é o correlativo imediato e a base do outro saber, aquele
que procuramos. E o filósofo terá de considerá-los inseparáveis, do mesmo modo como, de
uma dada coisa, é impossível separar-se a essência da substância, a forma do conteúdo, a
idealidade abstrata da coisidade concreta. Se até aqui os filósofos cuidaram que bastava
conhecer a essência para dominar o ser duma coisa, agora demonstramos que o conhecimento
da essência pura, é só meio conhecimento. E a sabedoria, de que os filósofos se dizem
amantes, não se contenta só com a essência, que tal conhecimento não será sabedoria, visto
que esta vem de sabor, de experiência sensorial.
Conseqüentemente, na conquista do saber integral, o homem se comporta sempre como
um todo de que fazem parte sua razão, de natureza essencial, e suas vivências substanciais.
Todos os cinco sentidos exteriores, e ainda supridos e ampliados por instrumentos, e mais os
outros internos, não se sabe quantos, propiciam as vivências sobre que cavalga o nosso mundo
racional. E o amigo da sabedoria, se quiser sê-lo, agirá como um todo, e não só com sua
inteligência..., porque o saber racional, além de meio-saber, ainda não existiria se não fossem
as vivências que subestão àqueles. A realidade não se põe somente como essência, senão,
também, como vivências que integram, em si, os sentidos todos, e ainda os sentimentos e as
emoções que o mundo circundante pode produzir em nós.
De tudo isto, concluímos que os filósofos andaram equivocados desde os primórdios,
uma vez que se propunham a ser amigos da sabedoria, esta derivada de sabor, de experiência,
de vivência, e no entanto, eles se perderam no cultivo da razão abstrata, do puro conhecimento
racional, pelo que deviam chamar-se epistemólogos, ou filomáticos, mas, não filósofos. Eles
desprezaram, de vez, o substancial das coisas, sob a alegação de que isso era o não-ser; pois
20

bem: se o substancial é o não-ser, o essencial é o não-existir. Certo, como é, que nenhum


conceito pode ser vazio da sua substância, quando nos referimos a uma dada coisa, nossa
definição se carrega de um conteúdo vivencial implícito, isto é, guarda consigo uma
experiência omitida no contexto da definição. Os conceitos de limão, de pimenta, vêm
associados às memórias gustativas de azedo, de ardido. O saber da definição implica num
consaber vivencial. É por isto que se torna perigoso definir, e nenhuma definição satisfaz. Esta
é a razão por que, por exemplo, a palavra algodão tem um sentido para o botânico que o
estuda, outro para o lavrador que o cultiva, outro para o tecelão que o fia e tece, outro para o
comerciante de tecidos que o vende, outro para o fabricante de colchões que só o vê em
mantas, outro para o químico que fabrica o algodão-pólvora para as balas de canhão, e o
celulóide de que são feitas as bonecas com que as meninas brincam, outro para o corretor de
bolsas. Só pelo contexto o sentido se aclara, sendo muito vasta a concepção da palavra
“algodão”, quando isolada. Daí que “todo vocábulo é ocasional” (Ortega). Até em matemática:
não se podendo definir-lhe os elementos, diz-se que são “intuições”. O ponto é uma intuição,
porque se o definirmos como sendo ele carente de dimensões, simplesmente teremos dito que
não é espacial, nem planimétrico, nem linear, pelo que não existe. Ora, as intuições são
indefiníveis. Se fosse condição básica o definir, para pensar, aí está que a matemática, a mais
exata das ciências, não podendo definir seus elementos, pensa-os, como intuições. Igualmente,
os postulados e axiomas dela não se definem, por ser intuições.
Eis, portanto, que o saber procurado emana daquele outro que não buscamos com a
razão; aí está que da física nasce a metafísica. Não esquecer, todavia, que o saber não
procurado que, à primeira vista, parece que nos foi ofertado só pelo mundo circundante, na
verdade, não nos vem só por essa via, senão, também, pela do social.
De um lado, a vida espontânea a nos ofertar vivências que são um saber não procurado,
mas que é básico. De outra parte, a vida social nos obriga, nos impõe, outra forma de saber
que, outra vez, não buscamos, e que, por isso, faz parelha ao primeiro, no que diz respeito a
ser-nos fundamental. Fundamental é o primeiro, e também basilar, o segundo. Lá, na vida
espontânea, apesar de advertidos pelas nossas mães, aprendemos a não pôr a mão no fogo,
porque queima; cá, na vida social, recebemos todas as explicações de o que o mundo é, e mais:
aprendemos a não fazer tais ou quais coisas, porque, se o fizermos, seremos prontamente
reprimidos por uma coerção social, primeiro extrínseca, porque vem do contorno, e logo mais
intrínseca, porque vem de dentro, e se chama condicionamento, educação. Aprendemos que
essa coerção nos pressiona e comprime fortemente no legal, e com menos força no ético. Essa
coerção nos obriga a aprender, não a resolver quaisquer problemas por nós mesmos, e sim,
ensina-nos a solução pronta dos problemas, do modo como, anteriormente, os resolveu, a
sociedade. Até em matemática, não se aprende a resolver problemas, mas, aprende-se a
solução pronta deles. Por este motivo, tais conhecimentos nos deixam pobríssimos daquilo que
é mais excelso em nós - a inventividade, a criatividade, o nós mesmos, o eu autêntico. Num
nível superior, ocorre-nos o mesmo que acontece no mundo animal.
O animal inferior, selvagem, no seu meio agreste, vive na alteração, como diz Ortega;
alteração vem de alter e ação, que quer dizer: o outro agindo, sendo outro, tornando-nos o
outro, que não nós mesmos; movemo-nos por impulsão alheia, por atuação do outro, em
resposta ao outro; vivemos de reação. O animal não pode atentar a si mesmo, porque precisa
estar atento ao outro, ao contorno agreste. O ambiente cheio de perigos o faz sempre voltado
para fora, para o exterior. Não pode ele entrar em si mesmo, estar só consigo em solidão para
pensar, ainda que pudesse, e ser si mesmo; por isto é alter-ado, ou seja, tornado outro e não
si.
Também o homem primitivo vivia alterado, temeroso de tudo, sempre só atento ao que
estivesse fora de si. Porém, diz Ortega, a duras penas, o homem se pôs só consigo em solidão
para pensar o mundo, para conferir os seus conhecimentos, para submeter à prova suas
verdades. Realizar isto é fazer filosofia... O grego a fez, e dela nasceram as ciências todas, a
21

tecnologia, o mundo ocidental como o vemos hoje..., mundo que está caindo, porque se
desprezou a filosofia que lhe deu origem..., unicamente a que poderá mantê-lo em pé..., com
lhe resolver os problemas, com lhe responder os reptos (Toynbee), os desafios que enfrenta.
O homem-massa, como o primitivo e o animal, também vive na alteração; o mundo
técnico que outros como ele criaram, é-lhe ameaçador; distrair-se numa rua de movimento de
veículos, é expor-se a ser atropelado e a morrer. Além disso, os demais homens são-lhe, de
alguma forma perigosos, contra os quais é preciso precatar-se. A vida que ele criou o obriga a
correr sem saber para onde, nem para quê. Até que, um dia, tal corredor para nada e para meta
nenhuma, pára, cai em si, mete-se em solidão e medita. Este estar só consigo em solidão, para
repensar o consabido e investigar o ignorado; este esforço inusitado que a massa humana não
conhece; este xeque-mate que se dá à verdade, é o que se chama filosofia. Este, o saber
procurado. E foi por este modo que toda a ciência se urdiu.
Porém, a vida é problematicidade, donde vem que o filósofo tem que prosseguir
pensando. Todos os pensadores, diz Ortega, são como se foram um único homem imortal que
houvesse estado a pensar desde o século VI a.C. até hoje; como o homem é mortal, e suas
energias extinguíveis, o único meio de prosseguir pensando, é fazê-lo em cadeia, a cadeia dos
pensadores no tempo, na história. Então, todos os filósofos começam por estudar o que os
antecessores escreveram, para prosseguir dali. Neste refazer da filosofia, cada um critica nos
predecessores o que há de errado, e incorpora-lhes os acertos. Daqui as três definições da
filosofia: a filosofia é um refazer; é o “repositório dos erros”; é “o tesouro dos acertos”,
como diz Ortega.
A filosofia, conseqüentemente, está sendo refeita, continuamente, para fazer-se. Porém,
quando Kant nega validade à metafísica, argumenta que as outras demais ciências estão aí,
como a física, a química, a astronomia, a matemática, como disciplinas acabadas e
indiscutíveis, no passo que a filosofia é um campo de dissensões irreconciliáveis. Por que
assim? Ora, porque a filosofia está ainda a fazer-se, dada a sua complexidade. Também as
ciências todas que se desmembraram uma a uma da própria filosofia, tiveram esta fase de
dissensão, e só puderam delimitar seus objetos, quando tais ciências estavam já em boa parte
feitas. Da busca da pedra filosofal e do elixir da longa vida, nasceu a química, então, com o
nome de alquimia. O alquímico não podia definir o objeto da sua ciência que se ligava à física e
ambas à filosofia. Quando, no séc. XVII, Isaac Newton expõe sua teoria da gravitação
universal, dá ao trabalho o título de Philosophiae Naturalis Principia Mathematica
(Princípios Matemáticos da Filosofia Natural), porque a física-matemática ainda estava
envolta pela filosofia. Logo, não estava delimitado o objeto da física, nem o da matemática.
Igualmente, Volta, ao dar nome à sua pilha, chamou-a de “órgão elétrico artificial”, porque já
era conhecido, desde Aristóteles, o peixe elétrico. Volta falava em termos de biologia, porque
os conceitos biológicos eram-lhe mais familiares, mais conhecidos em sua época. O
pensamento de Volta, portanto, estava vinculado à biologia.
O homem é como o bifrontal deus Jano o que tinha uma face voltada para o passado, e
outra, para o futuro, daí janeiro, que é o primeiro mês de cada ano. Podemos dizer, também,
que uma cara do homem-deus-jano se volta para o particular, e outra, para o geral; uma para
as ciências, e outra, para a filosofia. Ora, é pacífico que a visão científica do particular, embora
obtida pelas inúmeras ciências, é mais fácil, menos complexa do que a visão da totalidade. Na
fase evolutiva, as organizações se fazem do simples para o complexo, de baixo para cima, do
pequeno para o grande, do individual para o universal; e assim como, quando os átomos se
organizaram, estiveram rodeados pelo ainda caos molecular, o mesmo ocorrendo com as
moléculas, com a biologia molecular, com os seres unicelulares etc., também as ciências
particulares podem apresentar-se como prontas, acabadas, enquanto que a filosofia continua a
fazer-se, estando ela ainda no seu meio caos. Se Kant nega validade à metafísica, porque ela é
um campo de dissensões, poder-se-ia dizer também que o Estado não é válido, porque ainda
em parte caótico e injusto, ainda ocupado em executar suas variadas experiências quanto à
22

melhor forma de regime. O Estado ainda não está feito; por idêntica razão, também o não está
a metafísica. Contudo, a verdade unitária e geral tem que haver; é impossível que hajamos de
ficar, para todo o sempre, perdidos no relativo, no particular. Kant invalidou a metafísica, por
causa das dissensões dos filósofos; tivesse ele vivido antes, na história, pela mesma razão
haveria de negar valor à física, à química, à biologia etc., que também eram doutrinas
questionáveis. Um dia, a filosofia estará completa num sistema-verdade, e daí por diante será
estável como disciplina do espírito, como sabedoria, como absoluta norteadora da conduta
humana. A filosofia, ainda agora, é o caminho da sabedoria, e ainda os pensadores são
filósofos, isto é, apenas amantes da sabedoria; um dia ela será a “sophia”, a sabedoria, e os
pensadores, “sophos”, sábios.
Eis, pois, como o atesta a história, que o saber procurado nos levou à filosofia, da qual
saíram as ciências todas que, também, por isto mesmo, são saberes procurados... por aqueles
que amam tais saberes, ficando de lado a massa dos que só aprendem por imposição do social.
Da filosofia se desmembraram todas as ciências que lhe eram até pesada carga; daí que ela, em
si, não se exauriu, nem se apoucou, tornando-se até mais leve, porque livre da bagagem
embaraçante; perdeu tudo o que não era si mesma, o que não era generalidade, o que não era
preocupação do Ser que, para o filósofo, continua a fulgurar no seu ofuscante Oriente eterno,
atraindo para si todo o afeto do que se fez pensador.
Uma coisa é o saber puro e simples; outra, o saber por amor ao saber. Um saber não
amado pode ser prático, rotineiro, a serviço da vida; todavia, um saber amado modifica a
conduta do aprendiz; não é exterior como o primeiro, e sim, a própria vida; não mero
instrumental da vida, mas ela mesma. O homem-massa aprende, como o filósofo, e até pode vir
a ser professor de filosofia, mas está destituído de curiosidade pelas coisas do mundo, não tem
surpresas, não se deslumbra, nem se entusiasma com o saber; ele visa apenas uma aplicação
prática, utilitária, imediata do saber; já o homem autêntico, o filósofo, inflama-se ante o
conhecimento, emociona-se até o êxtase frente à descoberta duma porciúncula do universo,
alça-se em pensamentos grandes, quando descobre um ponto periférico no leque cujas varas se
juntam no cabo, na unidade suprema do Ser. O filósofo em nada se assemelha, a não ser pelo
físico, a esse homem espiritualmente acomodado que se deixa levar pela vida, sem destino,
amodorrado em seu viver animal. Um homem comum pode não ver nada no trabalho duma
formiga que segue, indiferente, por seu trilho, levando um grão de milho à cabeça; mas
Salomão pôde tirar dessa faina uma sentença: “Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, olha para
os seus caminhos, e sê sábio” 21. Para o medíocre, a formiga não passa de uma das coisas
corriqueiras a lhe encherem a vida espontânea, cheia de experiências inúteis, inúteis porque
vazias de saber. Porém, o filósofo, o aspirante à sabedoria, tem seus olhos sempre
deslumbrados como os da coruja de Minerva. O homem-massa não possui curiosidade; para
ele, o mundo é achatado, planimétrico, sem hierarquia, sem significação superior; sua vida é só
a espontânea, a vegetativa, a transcorrer sem criações. O filósofo, diz Ortega, não cessa de
passar e de repassar o fio já cortante de sua mente na pedra que é o enigma do Ser, em razão
do que sabe ele enxergar, em um grão-de-areia, o universo ...
Eis que temos ressaltado qual o saber buscado pela filosofia, e quais os homens que, em
verdade, se podem chamar filósofos, ainda que ocupados em trabalho humilde, como era o do
modesto polidor de lentes, mas grande pensador Espinosa.

21
Prov 6, 6
23

Capítulo IV

CAMINHOS DO PENSAMENTO FILOSÓFICO


Como vimos, há um saber que não procuramos, que nos vem da visão do mundo
espontâneo que está aí, à mão; há outro saber, também não procurado, que nos chega por via
social e nos satura desde o berço; e há o saber buscado com método, amor e entusiasmo. A
aquele saber não procurado, oriundo de nossas vivências com o mundo à mão, e com o mundo
social, Platão dava o nome de doxa, que significa a opinião vulgar. Frente a essa opinião
comum, Platão colocava a epistéme, a ciência. Para obter este saber procurado, a epistéme, a
ciência, Platão empregava um método ao qual ele dava o nome de dialética que é o
desenvolvimento racional de dado assunto. Para começar, se supõe que as coisas são isto ou
são aquilo, e a seguir, nega-se o suposto com argumentos contrários. A suposição é assim
discutida, alterada, substituída até seu ponto de máxima depuração, e por isso mesmo,
resistente a quaisquer críticas. Este saber é a epistéme ou ciência, que se opõe à opinião
vulgar, a doxa, sendo aquela epistéme, então, uma para-doxa, donde proveio a palavra
paradoxo.
Conseqüentemente, a partir de Platão, a palavra filosofia significa um saber racional,
obtido pela reflexão através da dialética. Como os filósofos só se interessavam pela epistéme,
contra a doxa ou opinião vulgar, deviam chamar-se, como já o dissemos, epistemólogos ou
filomáticos, significando filomática o exagerado amor à ciência.
Com Aristóteles este saber científico ou epistemológico já adquire volume
extraordinário, abarcando todo o conhecimento humano até então obtido. O filósofo, deste
modo, era um senhor que conhecia de tudo; era um enciclopedista, um humanista, e este modo
de encarar a filosofia veio até ao ponto em que, a partir da Renascença, as ciências especiais
começaram a desmembrar-se da mãe comum, como filhas já adultas, capazes, portanto, de
viver suas próprias vidas, com relativa independência. Relativa, dizemos, porque os
fundamentos primeiros, os primeiros princípios e os fins últimos de quaisquer ciências,
continuam a pertencer aos domínios da filosofia.
Os primeiros princípios, como já o anotou Spencer, são indemonstráveis pelas ciências
que, não obstante, se fundamentam neles. As várias geometrias, por exemplo, supõem espaços
diferentes, e só a filosofia poderá ainda ocupar-se da questão: o que é o espaço, e qual a sua
forma?
Aristóteles põe, no âmbito da filosofia, a lógica, a física, a metafísica e a ética. A lógica
é uma espécie de matemática que opera com conceitos, teses, premissas e consequências, ao
invés de com números, letras e fórmulas. É um modo correto, portanto, de obter
conhecimentos. Já a física consistia em todo o conhecimento da natureza; era o conjunto de
todo saber acerca das coisas quer brutas quer animadas. Até o que se refere à alma, à
psicologia, pertencia à esfera da física. A metafísica, como seu próprio nome o indica, é o que
está para além da física, que é tudo a respeito do Ser. É a parte mais difícil, mais controvertida,
mais discutível da filosofia. A ética se refere só ao homem, num duplo sentido de fazer e de
agir. O homem faz coisas que, diferente das obras da natureza, são só suas, como a música, a
pintura, a escultura e as demais artes, inclusive a da guerra. Cria, para si, regras de conduta,
uma vez que é político, isto é, social. Organiza-se em Estado, cria leis que são uma restrição
mais apertada do que se acha implícito na ética, mas que, para Aristóteles, tudo isto fazia parte
da ética. Portanto, a ética aristotélica englobava a estética, a política e a esfera do legal.
Esta tendência de considerar tudo sob a rubrica de filosofia, durou por toda a Idade
Média, e até nos tempos modernos ainda a filosofia aparece nos títulos de faculdades e
universidades científicas como puro adorno, pura condecoração, tal como as espadas que os
militares graduados trazem à cinta.
24

Foi no século XVII que a grande esfera de conhecimentos filosóficos começou a


fragmentar-se nas várias disciplinas particulares, as quais se fracionaram ainda mais, em
especialidades menores. Um século mais tarde, já não era possível a um homem ter todo o
conhecimento do seu tempo, como aconteceu até o século XVII. Descartes e Leibniz puderam
ser físicos, matemáticos e filósofos; de Kant, no entanto, já não se pode dizer que dominava
todo o saber de seu tempo, nem mesmo naquelas disciplinas em que eram mestres Leibniz e
Descartes. Todavia, façamos-lhe justiça: Kant adiantou-se um pouco mais de quantos o
antecederam; na velhice, ocupou-se do evolucionismo, tendo escrito a sua “Antropologia” na
qual, sem nenhum rebuço, declara, antes de Darwin, que o homem evoluiu do macaco. Valeria
a pena ter Kant respondido a esta questão: como considerar sua “Antropologia” face à sua
“Crítica da Razão Pura”?
Do velho tronco filosófico, pois, todas as demais ciências se soltaram. No entanto, a
ontologia, a metafísica, a ética, a estética, a teoria do conhecimento, essas partes
permaneceram a florir e a frutificar no velho tronco. E não se desligarão daí jamais, porque,
basta se mude a filosofia para que esses galhos apresentem novo cariz. Por que? Porque eles
não são em si ou por si mesmos, independentes do tronco. E todas as demais ciências, se bem
considerarmos, não têm vida independente da filosofia, visto como são impotentes para
explicar seus primeiros princípios. A física pode estudar os corpos, o movimento, a energia,
mas não nos dirá nada a respeito de o que é o espaço onde se movem os corpos, nem o que é a
força que os deslocam. Ela aceita o fato, porém, não o discute nem o justifica, porque isso é
tarefa da filosofia. A ciência diz: é assim; contudo, não nos explica por que o é deste modo, e
não, de outro.
As ciências, pelo visto, tornam-se como que órgãos pelos quais a filosofia enxerga o
mundo e se aprimora. Repugnava a Aristóteles, por exemplo, que Deus pudesse constituir-se
de matéria; Kant padeceu também deste escrúpulo quando supôs o espaço objetivo infinito, do
que decorria a conseqüência de ser a matéria que enche o espaço, também infinita,
confundindo-se com Deus. Mas vem a ciência, e demonstra que matéria e energia são termos
reversíveis entre si, e a experiência de todos os dias em nosso mundo tecnológico nos
comprova que as energias são transformáveis umas nas outras, donde vem que Einstein propôs
o termo energia-substância, como denominador comum para todas as energias e todas as
matérias do universo. Com isto se tornou possível a que o Ser, Deus, outrora vazio, porque
Essência pura, pura Forma, sem matéria alguma (Aristóteles), agora se enchesse de
substancialidade. E a mais alta expressão da energia-substância é o amor, daí que “Deus é
amor” 22, e “Deus é luz” 23. Ora, este passo necessário à síntese das filosofias entre si, e destas
com as religiões, nesta Terceira Jornada Filosófica, só foi possível graças ao desenvolvimento
das ciências.
Se “na natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma”, como o
enunciou Lavoisier, decorrendo deste princípio de conservação da energia-substância,
primeiro, que a energia-substância do universo é constante, e, segundo, que tudo o que existe
é o seu aspecto anterior modificado, já se pode ver quanto pode a ciência para propiciar meios
à filosofia para suas vastas e acrológicas conclusões. Mais: Kant deixa implícito na sua
“Antropologia”, e toda a ciência da evolução o comprova, o demonstra, que, de fato, “nada
existe na inteligência que não tenha estado antes nos sentidos, inclusive a própria
inteligência” que se formou aos embates da vida e pela inexorável seleção imposta pelo meio.
A inteligência nasceu e se desenvolveu com o sistema nervoso, com o cérebro, e por isto é
histórica e tem sua história biológica. Estrutura-se, deste modo, de nova forma, a teoria do
conhecimento, contrária àquela criacionista, da “Crítica da Razão Pura”, pela qual Deus teria
posto no homem as intuições puras de espaço, de tempo e de causalidade, base de todo o
saber intelectual. Não seria tudo isto possível, se a filosofia não contasse com as ciências que

22
I João 4, 7
23
I João 1, 5
25

lhe são órgãos pelos quais sente e interpreta corretamente o mundo, alterando-se, corrigindo-
se, reformando-se, refazendo-se, do mesmo modo como os seres vivos se fizeram e se
aperfeiçoaram face aos embates e experiências que o mundo lhes propiciara.
Contudo, a filosofia não é a síntese das ciências, como imaginara Augusto Comte,
porque ela tem o seu domínio próprio: antologia, metafísica, ética, estética e teoria do
conhecimento; por causa disto ela aspira a outra dimensão, a altura, e a ciência só nos pode dar
um mundo planimétrico, superficial, achatado. “A ciência (diz B. Russell) procura reunir os
fatos em feixes, mediante leis científicas; tais leis, mais do que fatos originais, são a matéria
bruta da filosofia” 24. Como as largas conclusões são da alçada da filosofia, por isto, “a ciência,
por si própria, não pode oferecer-nos quaisquer idéias morais, e é duvidoso que as idéias
morais venham a substituir as que devemos à tradição” 25. Ora, as idéias morais tradicionais
nascem da crença metafísica de que há um Deus, e de que a vida não se acaba com a morte
física. Sem esta dupla base não há moral. E a filosofia, desde os seus primórdios, se ocupou
sempre dos problemas do Ser. Pois bem: o Positivismo não conduz ao Ser; olvida-o por
completo; não dá nenhuma consolação e esperança para o homem sofredor, e sua “Religião da
Humanidade” não fez, jamais, um único adepto; “o culto dos heróis” não vale nada por não
dar consolo nem mesmo aos próprios heróis que se finam para sempre no nada, após a morte.
Ora, é nula a recompensa de apenas ter um monumento numa praça pública... Se a melhor das
vidas acaba nisto, às urtigas a vida! às favas o heroísmo! que o dom mais precioso para quem é
nobre de alma, fica sendo o não nascer, o não ser, e, se nascido, o melhor de tudo é morrer
cedo! ...
Aí está, que o vôo para o alto, isso aspira o pensador, o amante da sabedoria. Por esta
razão, a ave de Minerva que já levantou seu primeiro vôo, na Grécia, e, o segundo, a partir da
Renascença, prepara-se agora, de novo, para elevar-se ao aéreo espaço; o declínio da nossa
civilização o exige.
Após seu exaustivo estudo, Toynbee conclui que uma civilização cai, quando não pode
replicar, com sucesso, a determinado repto. Ora bem: a nossa civilização ocidental não soube
replicar ao formidável repto da Doutrina da Evolução assentado por Darwin e seus
consócios. Se nosso mundo veio do caos, e de aí saíram todos os seres vivos inclusive o
homem, então, o ato primeiro do Criador foi “criar” o caos que nega o Ser, Deus, ponto por
ponto. Partícipe, ainda, desta origem, nosso mundo é referto de misérias, de fadigas e de
dores. Mas como conciliar esse caos medonho, princípio genital de tudo, com a bondade, e
com a sabedoria de Deus? Daí que a aceitação, pura e simples, da Doutrina da Evolução, leva,
inexoravelmente, ao materialismo e ao ateísmo. Conseqüência: o mundo começa, hoje,
derrocar-se..., e não caiu de todo ainda, por causa das robustas pilastras das religiões. Todavia,
estas também estão entrando em agonia pela mesma causa. Dividido se acha o mundo, hoje,
entre os materialistas homens de ciência, todos evolucionistas, e os homens de fé que fecham
os olhos para não enxergar as verdades da Evolução. E nenhum filósofo resolveu tal cruciante
problema. Urge, pois, que a coruja de Minerva levante seu terceiro vôo, que a hora é já
crepuscular.
Esta nova idéia (“novae sed antiquae”- nova, mas antiga; “eis que faço novas todas as
coisas”) 26; esta nova idéia propiciará uma nova abertura para o Evangelho, em que Cristo-
Amor será o centro como modelo e exemplo, e não substituto segundo a interpretação
paulina, ou justificação pela fé. Fora do amor não há salvação. O amor a Deus decorrerá do
amor ao próximo como pensava S. Tiago, porque, sendo o amor energia-substância, transita
do amante para o amado, pelo que é necessário seja este algo que se possa ver, tocar e abraçar.
É por este caminho indireto e através do próximo, que se há de amar a Deus, e não,
diretamente. “As qualidades excessivas são nossas inimigas, não as sentimos, sofremo-las” 27;
24
Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 8
25
Bertrand Russell, O Elogio do Lazer, 152
26
Apoc 21, 5
27
Blaise Pascal, Clássicos Jackson, XII, 127
26

eis, pois, que a “simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha” 28. Como pode,
logo, alguém amar diretamente a Deus? O amor direto a Deus é um esforço exaustivo de abrir
os braços para o Eterno, para o Infinito, para o Inacessível, para o Inabraçável... que produz
vazio, desolação e tédio no amante...

Capítulo V

O MÉTODO
Quem faz alguma coisa, o faz de certo modo. O modo, o método de fazer, é tão
importante para a consecução do objetivo, que cada surto de progresso sempre se deveu à
descoberta de um método novo. Um animal que tente resolver dado problema, como seja, por
exemplo, sair duma prisão, segue um método a que se dá o nome de ensaio-e-erro. É o modo
das tentativas, sem ordem, sem planejamento, e da repetição de experiências em que já se
evidenciaram fracassos. Este método animal de resolver os problemas da sua vida, também é
usado pelo homem, quando este enfrenta um problema inteiramente novo. Edison, ao resolver
o problema de achar o material com que fazer o filamento de sua primeira lâmpada

28
Blaise Pascal, Clássicos Jackson, XII, 128
27

incandescente, não tinha por onde senão empregar o ensaio-e-erro, com apenas esta diferença:
não repetia, como faz o animal, as experiências fracassadas.
Todo o progresso científico iniciado no século XVII, na Renascença, se deveu ao
método novo da observação e experimentação descoberto por Galileu. Também, em filosofia,
com a verificação dos erros científicos de Aristóteles, Descartes introduziu o seu método da
dúvida que o levou à simplificação, à geometrização da natureza, e, com isto, abriu um ciclo
novo para o pensamento filosófico - o Idealismo.
A descoberta de um método novo implica, deste modo, na descoberta de novos
mundos, de conceitos novos, resultando numa ampliação da vida racional primeiro, e da
espontânea depois. O que eram outrora puras idéias, são agora máquinas que se movem, e
correm, e enchem o mundo espontâneo.
Também a filosofia nasceu de um método: o racional. E os gregos ficaram tão
entusiasmados com sua descoberta, que passaram a não entender como foi possível os homens
viverem sem ele até então. Não obstante, o método da fé servira muito bem até os gregos,
como é o caso dos hebreus que não precisavam pensar para resolver nada, porque tudo o de
que necessitavam se achava codificado no Pentateuco e demais livros do Velho Testamento.
Igualmente, na Grécia pré-filosófica, os deuses falavam pelos oráculos, e o próprio Sócrates
iniciou sua carreira de racionalidade, porque o oráculo de Delfus havia dito ser ele o homem
mais sábio de Atenas. Ora, como ele se tinha na conta de ignorante, como lhe vem o oráculo
dizer que era o mais sábio? A ser verdade o que dissera o oráculo, em que consiste o saber?
Acaso seria conhecer a própria ignorância? Como descobrir, então, se os demais homens de
Atenas também sabem que não sabem, senão, propondo-lhes questões?
Os demais homens se contentavam com as sentenças dos oráculos, e se guiavam por
pura fé. Sócrates pôs em dúvida a sentença, e foi tirá-la a limpo com a razão.
Eis a filosofia no momento mesmo de nascer, graças ao método novo de propor
questões, de perguntar. Foi, portanto, a partir de Sócrates, no século IV a.C., em Atenas, que
a filosofia tomou consciência de si mesma. Sócrates é o primeiro filósofo que abriu este
caminho para o pensamento, com seu método a que ele dava o nome de maiêutica, e que
significa perguntar.
Os filósofos pré-socráticos mileanos, no VI século a.C., fizeram afirmações... de que a
substância primordial de que tudo o mais saiu, era a água, o ar, a terra, o fogo, ou os quatro
elementos juntos. Vem Heráclito, e assenta que tudo é movimento e transformação; que tudo é
um vir-a-ser, um devir, um tornar-se, seguindo-se disto, que nada é. Contrapõe-lhe,
Parmênides, à idéia de que nada é, do não-ser, a idéia oposta do ser que é, e sempre é, sem
mudanças nem transformações, concluindo, após amadurecido desenvolvimento ideológico,
que Ser e Pensar são um e o mesmo. Já, aqui, Parmênides empregou um método: o da
contraposição, o qual Sócrates iria enxertar na sua maiêutica.
Para saber as coisas, Sócrates saía de sua casa, abordava os transeuntes, na rua, e
perguntava. As respostas suscitavam novas perguntas e novas respostas. To ti? que é isto? –
interrogava ele, e o interlocutor se obrigava a pensar no assunto para responder.
Andando pela praça, Sócrates vê Górgias, o sofista, rodeado de ouvintes; estava ele
arengando sobre a humildade. Depois de o escutar por certo tempo, entra no assunto, e diz:
– Meu amigo, tua sofistaria não me convenceu, porque não disseste o que é a
humildade. Que é ela?
E vem-lhe logo a resposta de Górgias:
– É a virtude que nos dá o sentimento da nossa pequenez.
– Pequenez em relação a quê?
– Ora, em relação a outros que sabemos serem maiores do que nós.
– E se tais outros que sabemos serem maiores que nós, tiverem consciência dessas
superioridades suas em relação a nós, como se chama essa consciência, esse sentimento de
serem maiores que nós?
28

– Esse sentimento que leva o homem a sentir-se mais que os outros, chama-se
orgulho... que se opõe à humildade.
Depois de refletir um pouco, torna Sócrates:
– Se o orgulho se opõe à humildade, e sendo a humildade virtude, que é o orgulho?
– É vício! ora essa! - respondeu Górgias imperativamente.
– Quer dizer que um mesmo homem pode sentir-se tomado de orgulho, que é um vício,
quando olha para baixo de si, e possuído de humildade, que é uma virtude, quando olha para
cima, para os altamente colocados?
– É evidente!
– Então, um mesmo homem que possui a virtude da humildade, também alberga o vício
do orgulho?
–Tem que ser assim. Não vejo modo de não possuir alguém esses contrários
sentimentos no coração.
–Se possui esses dois sentimentos adversos, o homem passa a ter dois comportamentos:
o de humildade, quando trata com os poderosos, e o orgulhoso, quando, com os mais
modestos. Um tal homem de dois pesos e duas medidas, pode ser considerado como virtuoso?
E sua submissão, seu rastejar, quando trata com os poderosos, pode ser levado à conta de
humildade, de virtude?
A este claro raciocínio, Górgias respondeu, pensativo:
– Não..., não pode ser virtuoso esse modo dúbio de proceder...
– Então, volto a perguntar: o que é a humildade?
O interrogado franziu o cenho, demonstrando forte concentração mental, e logo mais
prosseguiu:
– Bom! Aventuro-me a dizer que a humildade é o sentimento de nossa pequenez frente
aos deuses, à imensidade, ao infinito.
– Mas, se o homem sente-se pequeno face às coisas grandes, imensas, inacessíveis,
infinitas, igualmente pode sentir-se grande ao considerar tudo o que se lhe acha abaixo. Tudo o
que há no mundo, se faz de partes, indo parar no átomo que o vidente Demócrito dá como
sendo o fim da divisibilidade da matéria. E pode ser que ainda, com o andar dos tempos, se
venha a demonstrar ser tomo o átomo, ou seja, divisível... Se pudéssemos, por um pouco,
tornarmo-nos como formigas miúdas, certamente os demais homens ser-nos-iam deuses. Se,
logo, o olhar para cima nos faz humildes, quando olhamos para baixo havemos de sentir o
oposto da humildade. Conseqüentemente, humildade e orgulho fazem ponto num mesmo
homem; e como são qualidades oponentes, anulam-se, como virtude, não se podendo dizer que
é virtuoso o homem humilde, quando, mudada a situação, se faz altivo, arrogante, orgulhoso.
Ora, estar em baixo não pode, só por isto, fazer o humilde, nem, em cima, o orgulhoso. Está
certo isto?
– É... está..., – respondeu Górgias, coçando a cabeça, contrafeito.
– Então, o que é a humildade?
A isto, esbravejou Górgias, irritado:
– Acaso não tem fim esse teu interrogatório? Bem mais fácil é perguntar que responder.
Todo mundo sabe muito bem o que é a humildade, e o que é o orgulho. Mas agora, Sócrates,
no exercício gratuito desse irritante e ingrato ofício teu, tu pões em dúvida o que todos
conhecemos, e isso, com nos perguntar... o que é isto? O que é aquilo? Responde tu, então: o
que é a humildade?
– Não te apoquentes, meu amigo! Ando querendo saber o que são as coisas porque as
ignoro. Onde esteja alguém dando instruções, como tu o fazes, aí me ponho como humilde
aluno, a aprender. E visto que eu sou o aluno, e tu o mestre, tua orgulhosa irritação, ao me
interrogares sobre aquilo mesmo em que és mestre, me põe a pensar: não será, acaso, a
humildade, a consciência de nossa própria ignorância? Mas, já que vim para aprender, e acabo
29

sendo interrogado sobre aquilo mesmo que interrogo, não vejo por que continuar aqui; sigo,
então, o meu caminho...
E indo-se Sócrátes, pôs-se a pensar consigo: este homem, como eu, também não sabe o
que é a humildade; só que pensa que sabe, e tanto que estava a falar dela. Ora, eu ainda não sei
o que é a humildade; porém, me distingo dele que nem que não sabe não sabe.
Neste diálogo que imaginamos pudesse ter havido, não se chegou a solução nenhuma;
todavia, nos diálogos de Platão, também, as soluções de Sócrates nunca são satisfatoriamente
acabadas; sempre se interrompem, como a dizer que o processo de interrogar e de responder
continua, indefinidamente.
Platão aperfeiçoa a maiêutica de Sócrates na sua dialética, e é por isto que, nesta,
podemos enxergar os elementos fundamentais daquela. Conserva o sentido do método
maiêutico que consiste em considerar as opiniões face às quais apresenta as críticas. Partindo
de uma proposição, chega-se a um resultado que logo se critica, apresentando um argumento
contrário que é, por sua vez, criticado por argumentos positivos, e depois, negativos, e assim
se vai abrindo ou fechando uma espiral. A dialética é isto: uma espiral que se abre a partir de
um ponto, em processo dedutivo, ou a ele se fecha por indução. Desenvolve-se ela como uma
espiral que varre, sucessivamente, os mesmos setores do círculo, mas em lugares cada vez mais
afastados do centro, se a espiral se abre, ou em lugares cada vez mais próximos do centro, se a
espiral se fecha. É um movimento convergente a um ponto, ou divergente dele, mas nunca em
planos paralelos, superpostos, como prateleira, como era a visão aristotélica. Aristóteles
enxerga o mundo escalonado por níveis separados, estanques, independentes, e este seu modo
de ver tinha que se refletir no seu estilo clássico, seco, objetivo, frio, racional, peremptório
como um silogismo; ao contrário disto, Platão leva tudo conectado no seu cálido, sonhador,
belo, poético e convergente estilo ático. De Platão se poderia dizer o que se afirma do
Barroco: a unidade na variedade.
Unidade na variedade é o sentido fusionista de Platão, que não se encontra em
Aristóteles, pelo que é Platão, e não, Aristóteles, o pai remoto do Barroco. Embora o Barroco
tenha sua raiz próxima em Aristóteles, como este foi discípulo de Platão, quando, a este
respeito, fala Aristóteles, quem diz é Platão. E o que disse Aristóteles, ecoando Platão, é que
todo ser vivo é uma unidade formada de partes correlatas e interdependentes, um como
uni+verso, ou seja, a unidade mais a sua contraparte pluralidade. Daí que, a este modo de ver
o mundo, se deu o nome de fusionismo. Assim, “a literatura barroca aplicou a regra
aristotélica da unificação dos detalhes ou elementos isolados num organismo vivo, numa
unidade indestrutível, num conjunto orgânico, de modo que o afastamento ou mudança de
qualquer deles acarretaria a destruição do todo” 29. Desta definição nasce o barroquismo cujas
primeiras vozes são as dos jesuítas, e que domina logo os séculos XVII e XVIII, indo até
diluir-se no Gongorismo e no Rococó. Mas a dominância histórica (século XVII) deste estilo
de arte que existiu sempre, e sempre existirá, por refletir a visão fusionista do mundo, se
deveu à reação da Igreja à Reforma religiosa.
Não cause estranheza esta nossa afirmação de que Platão é o pai do barroquismo,
porque este é uma forma de estilo que reflete o modo platônico de ver o mundo. Tal como o
universo de Platão, “a alma barroca é composta desse dualismo, desse estado de tensão e
conflito, exprimindo uma gigantesca tentativa 30 de conciliação de dois pólos considerados
então inconciliáveis e opostos: razão e fé” 31. Esta é a causa por que “há no Barroco um
elemento estético que o liga ao neoplatonismo plotiano, graças ao qual a arte e a literatura
barroca revelam um fundo de esoterismo, mistério, obscuridade, dificílimo” 32. Já dizia Vieira,
do sermão, que há de ser como “estrelas, que todos as vêem, e muito poucos as medem” 33. E
29
Afrânio Coutinho e Outros, Literatura do Brasil, Vol. I, T. I, 225
30
Como esta, deste livro que o leitor tem na mão - N. do A.
31
Afrânio Coutinho e Outros, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 218
32
Afrânio Coutinho e Outros, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 240
33
Vieira, Sermões, 1, 62 - Ed. das Américas
30

da voz do pregador, diz o padre, que há de ser como “um trovão do céu que assombre e faça
tremer o mundo” 34. E justifica: porque “como o mundo se governa tanto pelos sentidos,
podem às vezes mais os brados que a razão” 35.
Eis o Barroco, o formidando estilo, qual prodigiosa maça de Hércules, que serve só
para tratar de grandes e graves temas, e decaiu, desde o momento em que foi empregado em
assuntos insignificantes, quando escritores gongóricos se puseram a descrever ninharias com
hipérboles ou figuras do infinito.
Que?!... pigmeus, de Alcides, empregando a invencível arma, para socar formigas num
pilão? Que possa o rosto de Anarda, ainda que ela representava a Mulher em geral, e não,
porventura, determinada mulher (Afrânio Coutinho), que possa tal rosto comparar-se ao Sol, é
fantasia hiperbólica e ridícula do poeta Botelho de Oliveira, que não convence ninguém.
Igualmente sucedeu quando Coelho Neto e Rui Barbosa se perderam em rebuscar frases
campanudas no já decadente Barroco formal. Para ser grande, o Barroco tem que ser
conceptista do qual Vieira é o único exemplo, escoimado dos defeitos de que o grande
pregador ou não quis ou não pôde evitar. Tal poderoso estilo, pois, não morreu, e ressurgirá
sempre, quando o imponha um correspondente grave tema. Não morreu, e “Na alma espanhola
existe (...) um Barroquismo permanente e inconsciente, que remonta à Espanha romana, como
testemunham os escritores hispano-romanos Lucano, Sêneca e Marcial” 36. Até Camões
“(Estudos recentes incluem Camões na órbita Barroca)” 37. Todos estes escritores são
barrocos, antes do Barroquismo histórico, podendo este ser rastreado até sua origem vital mais
remota em Platão que lhe é pai.
E para demonstrar esta tese, comparemos os dois estilos, o clássico-aristotélico,
continuado na Renascença, com o Barroco da pós-Reforma religiosa; tais características
anotadas por Wolfflin encontra-se no livro de Afrânio Coutinho há pouco citado,38. Ei-las:
Renascimento Barroco

1 ) linear – sentida pela mão l ) pictórica - seguida pela vista


2 ) composta em plano, de jeito a ser sentida 2 ) composta em profundidade, de jeito a ser
seguida
3 ) partes coordenadas de igual valor 3 ) partes subordinadas a um conjunto
4 ) fechada, deixando fora o observador 4 ) aberta, colocando dentro o observador
5 ) claridade absoluta 5 ) claridade relativa

Estas são as categorias oponentes entre Classicismo e Barroquismo tomadas de


Wolfflin, às quais se poderiam acrescentar outras como:

6 ) individualista 6 ) universalista
7 ) simples 7 ) complexa
8 ) absoluta 8 ) relativista
9 ) estática 9 ) dinâmica
10) formal 10) conceptiva
11) inteligência fria, racional, exata 11) inteligência imaginosa, figurativa, emotiva
12) esquema de uma prateleira, com planos 12) esquema de um leque, pirâmide, pinha de
superpostos pirâmides unidas todas pelos vértices

Tal, o que significa unidade na variedade cujo esquema planimétrico é o leque o qual
se pode abrir até formar um círculo que, elevado ao volume, dá a esfera ou pinha.
34
Vieira, Sermões, l, 75 - Ed. das Américas
35
Vieira, Sermões, 1,73 - Ed. das Américas
36
Afrânio Coutinho, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 219
37
Afrânio Coutinho, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 233
38
Afrânio Coutinho, Literatura do Brasil, Vol. I, T.I, 209
31

Deste modo Platão parte duma intuição ou idéia que logo desenvolve, e logo critica e
depura. No primeiro momento, quando se enfrenta o mistério, o desconhecido, o filósofo sente
admiração, é tomado de surpresa. Daí a afirmação de Vieira: “Dizem os filósofos que a
admiração é filha da ignorância e mãe da ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se
admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque,
admirados os homens das mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas
até as alcançar, e isto é o que se chama ciência” 39.
Esta admiração, portanto, excita as forças intelectivas que se arrojam na direção do
mistério, pela aventação da primeira hipótese que é uma intuição, uma idéia ainda nebulosa.
No segundo momento, vem a crítica para esclarecer a intuição que, com ser primeira, é
insuficiente. Estabelece-se a dialética, e a idéia cada vez mais se depura, aperfeiçoa e aclara na
direção da meta, para Platão, inatingível, porque a idéia, na sua maior pureza, não se situa
aqui, em nosso mundo, mas em outro, pleniluminoso e transcendente. O que se busca,
portanto, pela dialética, é a máxima aproximação possível da idéia, por parte de quem vive
neste nosso mundo, segundo ele, de irrealidades e sombras. A idéia absoluta paira lá nas
alturas, no mundo do Ser, completamente outro, em relação ao nosso de irrealidades; o bom
sucesso nesta empresa de se dirigir àquele, das idéias, não vai além de mera aproximação.
Pelo visto até aqui, a dialética consiste numa contraposição de argumentos a partir da
suposição básica inicial. Um pensamento não somente puxa pelo afim, como se opõe ao
pensamento contrário, de modo que, da contradição, sai uma idéia mais aclarada que
aperfeiçoa a anterior. Deste modo, da discussão travada entre oponentes, o diálogo se
desenvolve, a idéia cada vez mais se delineia na proporção em que se fecha para o geral,
unitário e central, que isto é a indução. Da maiêutica socrática saiu a dialética platônica, e
desta surgiu a lógica aristotélica. Ainda aqui, o procedimento sucessivo dos três grandes
pensadores, é como o de uma espiral que se fecha do particular mundo à mão, mundo
espontâneo, em que se situa a periférica maiêutica, para a geral e unitária lógica. Sócrates
perambulava pelas ruas à cata de opiniões, forçando a que lhe definissem e explicassem as
coisas; Platão emprega o método da contraposição de argumentos na sua dialética; Aristóteles
procura descobrir as leis desses procedimentos na sua lógica.
Isto não significa que, em Sócrates e em Platão, não houvesse a lógica; esta, neste dois
filósofos, era lógica aplicada, vivencial, implícita no discurso. Aristóteles apenas explicitou as
leis que regem o pensamento, formalizando, tirando a essência daquilo que, nos anteriores, era
in concreto, realidade atuante, substancial, vivencial. Aristóteles, portanto, fixou sua atenção
nos movimentos da razão que faz seu trânsito a partir das intuições, das suposições, passando
de uma afirmação a outra, desta à seguinte, e assim por diante. Toma por tarefa induzir as leis
desse trânsito, ou descobrir as leis que possibilitam passar de uma afirmação à seguinte; foi o
homem primeiro que se deu ao encargo de descobrir a lógica implicitada, desde sempre, no
pensamento e nas coisas.
Se, pois, para Sócrates, o método era a maiêutica, e, para Platão, a dialética, para
Aristóteles o método era a lógica como aplicação das leis do pensamento, que possibilitam
passar de uma proposição mais geral para outra menos geral, indo, cada vez mais, no rumo do
particular. Isto se chama dedução; todavia, o processo inverso que leva do particular ao geral,
a indução, também é do domínio da lógica. Este método de filosofar vingou até o fim da Idade
Média, e, durante ela, os escolásticos esgotaram todos os recursos que tal método podia dar.
A partir da Renascença, com Descartes, o método muda completamente de feição. Se
considerarmos que a maiêutica socrática foi o ponto de partida periférico duma espiral que se
fechava numa generalização cada vez maior que culminou com a lógica aristotélica no centro
do círculo varrido pela espiral, na fase inversa, a partir da Renascença, a espiral que antes se
fechou na lógica, abre-se agora, do geral, unitário e central para o particular e periférico, mas
conservando o cariz de lógica, de matematicidade. A espiral que agora se abre, não corre pelos
39
Vieira, Sermões, 15 - 151-152, Ed. das Américas
32

mesmos trilhos da anterior, que levariam, de retorno, à maiêutica, mas, mantendo o mesmo
sentido do movimento, ao abrir-se, segue outros sulcos, embora varrendo os mesmos setores
do círculo. O movimento de fechar gerado pelo impulso primeiro, dado por Sócrates, e que
vinha da periferia para o centro, prossegue, agora, abrindo-se de novo, e, com isto, dá uma
espiral de sentido inverso, como se pode verificar riscando as duas espirais numa folha de
papel.
Se a espiral primeira, a do Realismo, era indutiva, sintética, e vinha do particular e
periférico das coisas para o geral, unitário e central, agora, a outra espiral, a do Idealismo, que
se abre do centro, da idéia, é dedutiva, analítica, indo do geral e unitário, para o particular e
periférico; se a primeira espiral vinha da intuição sensível, confusa, das coisas, para a clareza
unitária da lógica, a segunda espiral que se abre, parte do claro pensamento lógico-
matemático-científico, para cobrir a área das coisas. A primeira vinha das coisas (res) para o
pensamento (essência); a segunda parte do pensamento para as coisas. A primeira espiral, logo,
se colore, vive e respira de um Realismo, no passo que a segunda ressumbra Idealismo em
todo o seu abrir-se para as coisas.
Demonstrado que a primeira espiral parte das coisas, e que a segunda chega a elas,
segue-se que Realismo e Idealismo são dois movimentos invertidos, contrários e
complementares: se, de uma parte, pusemos o eu que pensa, e, da outra, as coisas pensadas,
o movimento, no Realismo, vai das coisas pensadas para o eu que pensa, e, no Idealismo, do
eu para as coisas. O pensamento é a ponte pela qual se dá a transição das coisas para o eu, e
do eu para as coisas.
Descartes, no seu “Discurso sobre o Método”, partia do pensamento para deduzir sua
própria existência ou ser: penso, logo existo, ou penso, logo sou. Para um filósofo realista, a
sentença cartesiana seria às avessas, porque, para ele, preciso é primeiro ser ou existir, para
depois pensar; existo, logo penso, diria Aristóteles. A razão (natural) é clara e manifesta, visto
como quintilhões de entes vivos existem, vivem e agem, sem contudo ainda ter neles surgido o
pensamento. Não podem pensar, e, no entanto, sentem que existem, pelo que se defendem,
ou defendem suas existências por todos os modos que nos dá conta a biologia. Portanto, foi
preciso primeiro existir, para depois pensar; e o pensar surgiu para garantir a existência;
sem o pensamento que dá garantia de sobrevivência, não há segurança nenhuma, haja vista os
animais todos que estão a mercê do homem, só porque este pensa, e aqueles, não. E o próprio
Descartes tem um fundamento realista ao afirmar: eu sou uma coisa que pensa; primeiro ele
havia de ser uma coisa, para, depois, essa coisa que era ele, poder possuir a propriedade de
pensar. A razão natural, portanto, nos diz que o existir está antes do pensar.
Não obstante, a razão formal ou lógica também é clara, porque, quem diz: eu existo, já
se vê pensando na própria existência; esta consciência de existir já implica no pensar. Mas, o
que veio antes? o ser existente, ou o ser pensante? O existir ou o pensar? Do ponto de vista
evolutivo o existir vem antes do pensar, porque o próprio pensamento tem suas raízes mais
remotas na irritabilidade do plasma em razão do que foram possíveis os tropismos, as
impressões, as sensações, os instintos, tudo antes da consciência. Quando, por conseguinte, o
ente vivo tomou consciência de si mesmo, e pôde dizer: eu existo, já existia, de há muito,
tendo, já, sensação dessa existência, donde vem que, conquanto ainda não pudesse pensar, já
se sentia existir.
Do ponto de vista criacionista, primeiro está o pensar de Deus, para que os Filhos e o
Universo pensados pudessem ter existência. Porém, ainda segundo o criacionismo, só depois
de criados, de existirem, é que os Filhos puderam pensar. Em se referindo à Criatura, portanto,
o existir vem antes do pensar; no tocante ao Criador, na relação Criador-Criatura, o pensar de
Deus antecipou quaisquer criações, quaisquer existências.
O pensamento qual o que temos, é histórico; ele tem sua história biológica; e sabe-se
hoje, sem sombra de dúvida, que o meio, atuando sobre o ente vivo, provocou nele uma cadeia
de respostas: a formação dos órgãos dos sentidos, as vias nervosas aferentes a um centro de
33

registro e interpretação – o bulbo nervoso. Este cresceu, avolumou-se, enrolou-se para trás,
enrugou-se para caber em menor espaço, e a camada superficial (córtex) principiou a
coordenar, a inferir, a generalizar, a abstrair. O pensamento humano, pois, não é uma dádiva,
mas penosa conquista, sofrida, custosa, cuja demora se conta por seiscentos milhões de anos,
que é quando já se pôde ter registros fósseis. A vida, no entanto, se remonta a mais, indo, sua
origem, perder-se nas trevas densas, úmidas e quentes do algonquiano. Se o já primordial ente
vivo não sentisse; se o plasma que ele é, não possuísse a irritabilidade que é o início da cadeia
do sentir, não reagiria criando órgãos com que interpretar o mundo, para guiar-se nele no
duplo sentido de atacar e defender-se. Se não houvesse antes o sentir, não poderia ter surgido
o pensamento: do sentir seguiu-se o pensar... isto é sem contradita, decisivo, terminante.
No entanto, com o desenvolver da espiral idealista, aquele fundamento cartesiano eu
sou uma coisa... que pensa, se dilui, dissolve-se e desaparece através dos pensadores pós-
cartesianos, até atingir o máximo de exaustão em Kant, ficando, daí por diante, tudo suspenso
no ar. O idealismo “é uma atitude reflexiva (diz Morente) que gira sobre si mesmo, como
dizem que faz a arma denominada boomerang, que usam os selvagens da Austrália, que volta
ao ponto de partida à mão que o lança” 40. E Will Durant: “Foi nesses fagueiros dias da
metafísica alemã que Jean Paul Richter escreveu: «Deus deu aos franceses o domínio da terra;
aos ingleses, o do mar; e aos alemães, o do ar»”. Mais: "Até o grande materialista Helvecios
escreveu, paradoxalmente: «os homens, se me atrevo a dizer assim, são os criadores da
matéria»” 41. Tal, o filósofo idealista: um senhor semelhante à aranha que tira tudo de si para
fazer sua teia - empregando uma figura de Francis Bacon –, e uma teia toda especial, porque se
vai ver em que se prende ou firma, e a vemos sustida pela própria aranha, e tudo flutuando no
vazio.
Esta revolução do pensamento filosófico mudou, como era de esperar-se, a concepção
do mundo. Platão via as coisas neste nosso mundo misturadas e confusas; daí o dizer que
nosso mundo é pálido reflexo de um outro resplendente de verdades eternas. Para ele, logo,
havia dois mundos: o topos uranos de luz, e o nosso de irrealidades e sombras. Para
Descartes, este nosso mundo e o da verdade absoluta são um e o mesmo, porque encaixados
um no outro. A verdade está imanente neste mesmo nosso mundo, e não, oculto na
transcendência como o intuíra Platão. Numa primeira vista superficial, tudo se nos mostra
como escuro e confuso; mas, acurando o olhar, penetrando mais fundo, tudo se nos torna
inteligível. Assim, não são dois mundos separados e estanques, mas um só com dois aspectos
entre si embutidos, interligados, casados. Aquilo de verdade que há nas coisas, Platão chamava
de participação do transcendente; para Descartes, a verdade se acha imanente nas coisas, e
separando, pela análise, os dois aspectos, podemos enxergar o mundo das idéias de Platão
neste mesmo nosso mundo obscuro e confuso. Platão partia da intuição não declarada do seu
mundo transcendente, para andar pelo nosso mundo com sua dialética que o conduzia, de
volta, à transcendência, agora declarada. Descartes e os demais idealistas principiavam pela
análise, não das coisas, mas do eu que pensa; ou então, partem duma intuição de que
deduziam tudo, para, depois, irem conferir com aquilo que se acha imanente nas coisas.
Esta é a razão por que Espinosa, como idealista, não situava Deus fora deste mundo, e
antes, o via como fundamento das coisas. Sua frase: “Deus sustem a ponte no côncavo de sua
mão”, significava que as leis físico-matemáticas é que mantinham a ponte estendida sobre o
abismo, sendo essas leis o próprio Deus imanente nas coisas. O trabalho das ciências seria
uma constante busca desse Deus imanente que são as leis e princípios científicos que tudo
regem e sobre que tudo se alicerça. Não panteísmo; não que tudo é Deus, como,
absurdamente, se atribui a Espinosa, mas panenteísmo, ou seja, que Deus está em tudo, como
lei, como princípio, como essência. Daí que, para Espinosa, a matemática se torna uma como
ciência divina, dado que trata só de essências, ou do aspecto divino imanente nas coisas. Nesta

40
M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 165
41
Will Durant, História da Filosofia, 292-3
34

ordem de idéias, o cientista puro seria um como sacerdote a serviço desse Deus, todo o
progresso científico, uma aproximação de Deus.
E a moral? Em que havia ela de fundar-se? Não fora da natureza, num mundo
transcendental, porque, para Espinosa, não havia esse fora, essa transcendentalidade; e
dentro da natureza não há moralidade. Pois o nem dentro e nem fora da natureza é o mundo
social humano. Não é dentro, porque o homem civil, e enquanto civil, não segue as regras
naturais, e antes, por causa do império da razão, as tende negar. “Por meio da imaginação e da
razão (diz Espinosa) enfocamos a experiência; tornando-nos criadores do nosso futuro e
libertamo-nos do passado”. E não é fora da natureza, porque esse mesmo homem é um
produto dela, e se acha a ela inextricavelmente vinculado. Conseqüentemente, o bem e o mal
são conceituações só humanas, sendo relativas ao humano. A natureza é como é, sem
preocupações do bem ou do mal. Disto decorre que não há regras morais, senão as que o
próprio homem criou, para atender às necessidades suas de convivência.

Espinosa, nisto, poderia ter-se antecipado a Kant que escreveu a sua “Crítica da Razão
Prática”, em que diz haver, no homem, uma consciência moral, uma intuição do bem,
juntamente com aquelas outras intuições de espaço, de tempo e de causalidade, base de todo o
saber racional. Pois com fundamento nessa consciência moral pré-estante no homem, Kant
desenvolveu suas idéias morais. E Espinosa poderia ter-se antecipado a Kant, seguindo por
este caminho: não disse Espinosa que Deus se acha imanente nas coisas como essência delas?
Sim. Logo, está mais claramente manifesto como essência do homem, buscando, aí,
explicitar-se em condutas cada vez mais humanas e distantes do procedimento animal.
Entre os homens se podem contar alguns sábios e santos; não, todavia, entre os animais.
Segue-se, logo, que o imanentismo divino mais facilmente aflora no homem que nos
animais. O homem se mostra, então, como o metro, a medida das coisas; mas, não qualquer
homem, e sim o excelente, o santo e sábio. Contudo, como não se valeu, diretamente, deste
alicerce, teve de buscá-lo, de modo indireto, na sociedade construída pelo homem.
A natureza, no seu fatalismo mecanicista, produz, indiferentemente, Cristo e Gestas.
Estaria certo Cristo, e Gestas, errado, ou vice-versa? Do ponto de vista natural, ambos estão
certos, porque coerentes com a natureza que os produziu. “Escreverei sobre os seres humanos
(disse Espinosa) como se fossem sólidos, linhas ou planos”. Se as leis que regem os atos
humanos são tão fixas quanto as das geometria, não há liberdade, nem culpa. Sob este aspecto,
não há recompensa para a bondade do santo, nem castigo para a maldade do pecador. Porém,
do ponto de vista da sociedade, pode dizer-se que Cristo está certo, e Gestas, errado. Por que?
Porque Cristo, porque sábio, tinha suas paixões ordenadas, sob controle, no passo que Gestas
as tinha em completo caotismo. A conduta de Cristo brotava de sua sabedoria, e a maldade de
Gestas, de sua ignorância.
A moralidade é desconhecida pela natureza exterior, e, por isto, em estado natural, não
há o pecado, e cada um pode agir de modo a realizar-se, ou seja, de modo a explicitar sua
natureza íntima. Agora, no estado civil, o pecado existe, e constitui tudo aquilo que fira ao
preestabelecido pelo consenso comum como sendo bom. Por este motivo, cada cidadão fica
responsável perante o Estado pelo bem ou pelo mal que venha a praticar. Fora desta órbita
ético-legal da sociedade, não tem sentido falar de bem ou de mal. Só a sociedade pode opinar
sobre se um homem é bom ou mau; saindo-se deste ângulo para o estado natural, não existe
nem bem nem mal, porque a natureza é amoral.
Portanto, se a moral para Kant se fundamenta no próprio homem (consciência moral),
para Espinosa ela se alicerça na sociedade; e esta nasceu, segundo ele, da necessidade que os
homens têm (porque medrosos, porque fracos) de associar-se - único modo de se tornarem
corajosos e fortes. Quer dizer: Kant deixa implícito que o Criador pôs no homem a
consciência moral, do mesmo modo como gravou nele aquelas outras intuições de espaço, de
tempo e de causalidade. Para Espinosa, o Deus-na-Natureza produziu o homem fraco e
35

medroso, e esta fraqueza e temor forçaram a formação da sociedade que criou a moralidade
para subsistir. Ora, a sociedade, o Estado, impôs ao homem ordenar suas paixões, educando-
os, pressionando-os, obrigando-os à conquista da virtude e do saber. Pela inteligência, pela
razão, pelo estudo, o homem alcança o saber, e, por este, ordena as suas paixões que, no
ignorante, são desordenadas; deste modo o homem a si mesmo se melhora, e também a seu
mundo social. Quanto mais o homem tomar consciência das leis e princípios (Deus) que regem
o mundo, mais beneficamente poderá atuar no meio social. Pela razão, pelo saber, o homem se
subtrai ao império das paixões desordenadas que o escravizam em baixo, no mundo animal,
mas, com isto, ele se condiciona a um outro determinismo, um determinismo superior,
resultado de sua consciência da imutabilidade das leis eternas que são Deus. Esta é a razão por
que, segundo Espinosa, o homem não é livre: se animalizado, é escravo das paixões
conflitantes que o fazem infeliz; se superior, ordena as paixões por meio da inteligência, por
meio da razão, e se determina de novo, pelo que, de novo, não é livre. “Só somos livres
quando sabemos”? (Dewey). Errado: quando sabemos, ficamos determinados pelo que
sabemos. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Cristo). Não: conhecereis a
verdade, e ela vos condicionará numa não-liberdade, num determinismo de nível superior.
Conseqüentemente, a moral de Espinosa se confunde com a sabedoria, em
concordância com a trilogia grega Sócrates, Platão e Aristóteles; conforme os quatro
pensadores, os três gregos e o judeu, essa sabedoria só assume o aspecto de moralidade,
quando aplicada ao próprio homem e à sociedade aos quais serve, ordenando, orientando,
corrigindo. Só que os gregos fundavam a moral fora deste nosso mundo, na existência de um
Deus transcendental, no passo que Espinosa alicerça a sua na própria sociedade, como
indispensável à convivência.
Embora Espinosa acreditasse na sobrevivência da alma – “nós sentimos e
experimentamos que somos eternos” –, esta sua intuição era emotiva e não intelectual. Por isto
não se ocupou em explicar o que acontece com as almas pervertidas, com os elementos anti-
sociais que conseguiram burlar a vigilância da sociedade, da lei, neste mundo. Como ele não
acreditava em recompensas futuras, porque, como dizia, a virtude, em si mesma, é já a
recompensa que dá paz e alegria, podemos inferir que a alma do pecador, presa que é de
paixões conflitantes, é punida com isso mesmo: com a infelicidade que decorre de sua perdição
no seu próprio caos passional. Porém, se essas almas perversas se reencarnam, de novo, para
corrigir-se; ou se fazem a correção, lá, não se sabe onde deste mesmo nosso universo,
independente de seus corpos carnais; ou se ficam infernadas para todo o sempre no caotismo
de suas paixões; ou se, por fim, são eliminadas, destruídas, queimadas como a palha, isso
Espinosa não nos diz.
36

Capítulo VI

QUE OUTRO MÉTODO VIRÁ ?


Vimos que o método socrático, a maiêutica, era uma espiral que se iniciava na periferia
de um círculo, na opinião vulgar (doxa), indo para o centro, na busca da inteligência dos temas
propostos. Este movimento prossegue, em Platão, com sua dialética, até culminar, em
Aristóteles, com a lógica. Essa espiral que se fechou na unidade da idéia, sem cessar seu
movimento, abre-se, noutra espiral de sentido oposto, no idealismo cartesiano, num
movimento contrário, dedutivo, de análise, indo depois para as coisas, a fim de verificar nelas
aquilo que já alcançara o pensamento em sua pura abstração. A espiral idealista, em abertura,
em expansão, ocupou todo um período que foi o marcado pelo método dedutivo-analítico.
Continua este processo de abrir-se de um centro, nos filósofos pós-kantianos que partiram de
uma intuição que é uma idéia central, no núcleo da espiral, para deduzirem por análise tudo o
mais. Se o primeiro movimento da espiral era indutivo ou tese, e, o segundo, dedutivo ou
antítese, o terceiro movimento, como será? Que outro movimento virá a seguir?
O outro método não pode ser senão o da SÍNTESE... que englobe os dois primeiros
na unidade. Depois da tese-realismo e da sua antítese-idealismo, é chegada a hora da
SÍNTESE-REALISMO-IDEALISMO.
Para fazer esta síntese é preciso executar as duas anteriores que permaneceram em
aberto, e foram estudadas no Cap. XII - “A Grande Síntese Filosófica”. Vimos lá, que a
filosofia principiou em Mileto com os pensadores que buscavam uma substância que fosse a
primária e fundamental na ordem das coisas. Esta foi a primeira tese que culminou com
Heráclito para quem o que há é o movimento. A reação de Parmênides foi a antítese que
consistiu em fixar o Ser na imobilidade até hoje. Onde, a síntese resultante deste antigo par
dialético tese-substancialista e antítese-essencialista? Pois ficou por fazer-se.
Sem resolver esta contradição interna, o Realismo se fez tese em relação ao Idealismo
que surgiu na Renascença com o cogito de Descartes. Todavia, o Idealismo, em seu
desenvolvimento, criou também a sua contradição interna consistente de outra tese e de outra
antítese, também sem resolução. O movimento começado pelo cogito era essencialista como
no Realismo. Porém, como tudo no Idealismo partia duma intuição inicial de que tudo se
deduzia, aconteceu que essa intuição de intelectual que era, passou também a ser emotiva,
sensitiva e volitiva, entrando, por conseguinte, na órbita, outra vez, do substancial, só que
agora, de aspecto moral, e não físico, como era a substância primordial basilar buscada pelos
milesianos. Também, esta última síntese da tese-essência e da antítese-substância do
Idealismo ficou por fazer-se.
Nosso desenvolvimento sintético principiou por dar SUBSTÂNCIA ao Ser-Deus. Esta
Energia-Substância é o Amor. Esta energia-substância é a que os milesianos intuíram mas
não explicitaram, e é a de que os idealistas-substancialistas deviam partir, e nenhum o fez.
Eis, pois, que, com dar substancialidade ao Ser, esta duas primeiras sínteses ficadas
em aberto, foram concluídas. Agora, então, é que partimos para a efetuação da síntese
semifinal, a do realismo-idealismo.
A grande síntese filosófica, como se vê, tem este primeiro grande fundamento que é
a SUBSTANCIALIDADE de Deus. O segundo grande fundamento é a verdade
cientificamente demonstrada da EVOLUÇÃO... o que implica tenha havido uma fase inversa
de INVOLUÇÃO, de queda, como a vislumbrou Platão, e como a impuseram pela fé todas as
religiões, e a que referem todos os mitos. Com isto, se faz a última grande síntese, a maior de
todas: a da tese-Criacionismo com sua antítese-Evolucionismo. Isto que é absolutamente
novo para a filosofia, constitui-se no único caminho para o pensamento, donde não há fugir.
Atentemos, todavia, para a síntese-realismo-idealismo:
37

Esta será uma espiral dupla que contém, em si, os dois movimentos anteriores. Esta
espiral dupla, da síntese, terá, num movimento, o mesmo sentido da espiral do realismo, e, no
momento seguinte, o sentido da do idealismo. Em lugar do transcendentalismo realista e
imanentismo idealista, será o MONISMO FUSIONISTA que engloba os dois aspectos
anteriores na unidade. Partindo da periferia onde todas as ciências se particularizam em
especializações cada vez menores, encaminha-se também ao centro (como na maiêutica, na
dialética), não como mera síntese das ciências, como o viu o achatante positivismo, mas como
visão em globo, plena de vida e dinamismo. O Ser ou Deus, como pura essência, como forma
pura, pura idealidade abstrata, se concretiza com revestir-se da substancialidade que o faz
existente, essa na expressão mais excelsa que é o Amor. Em vez de partir da intuição
intelectual de um Ser único, absoluto, como o fizeram os idealistas pós-kantianos Fichte,
Schelling e Hegel, à ela, à intuição, se remonta, a partir da periferia, concebendo, não um Ser
vazio, ideal, abstrato, feito de pura Essência, mas um Deus cheio de Substância em que
consiste, que é a mesma, modificada, invertida, encontrável nas coisas.
Esta dupla espiral da síntese, como seu nome o indica, não se fecha da periferia para o
centro, senão que também se abre deste para as ciências e para as coisas, pelo que estará
animada de movimento, de dinamismo; será uma espiral que respira, que se fecha no Absoluto,
no centro, na unidade, e que se abre a partir dele para a multiplicidade. Sendo síntese, terá, em
si, os dois movimentos opostos, o de fechar-se para o centro realista, e o de abrir-se deste
centro unitário do idealismo. O puro Ser essencial que, desde Parmênides, ficou fixado na
imobilidade, como a borboleta na prancheta do entomologista (Garcia Morente), solta-se
agora para a vida, para o movimento, dada a natureza livre e móvel da Energia-Substância-
Amor que ele é.
E assim, temos chegado a entender como será essa espiral viva, movente, atuante, que
respira, que se abre por dedução e se fecha por indução. Se a espiral realista tinha sentido de
fechamento, e a espiral idealista possuía sentido inverso de abrir-se, de análise, de dedução,
nossa espiral da síntese contém, em si, o duplo sentido de respiro para dentro e para fora, para
a periferia e para o centro, em movimentos sucessivos e complementares. Quando, em seu
respiro, a espiral se fecha no centro, carreia para aí todo o saber científico de todas as ciências
que se filamentam em especializações cada vez menores, na periferia. Ao abrir-se, de novo,
leva às mesmas ciências um sentido de totalidade, de absoluto e de eternidade, para alegria e
gozo do experimentador que agora poderá enxergar o universo palpitando num grão de areia.
Não mais se perderá ele na relatividade porque a porciúncula vive e respira do absoluto ao qual
deve o seu ser. Já, então, o cientista enxergará a sua especialidade de um plano superior, e
quando lhe perguntarem o que está enxergando no microscópio, poderá levantar a cabeça e
responder: estou enxergando o universo!, vejo o que vê o astrônomo por sua luneta gigante;
eu e ele enxergamos como se comporta a substância em dadas condições. Tem razão Ortega:
“Para quem o pequeno nada é, não é grande o grande” 42. Tudo isto poderá dizer o observador
que olha o mundo pelo microscópio, e com muito mais proficiência poderá armar suas
hipóteses de trabalho.
Que poderosa mentalidade será a daquele que, no seu pensamento e no seu coração,
sentir tudo isto acontecer! Por isto é que esta filosofia fusionista, agora em se fazendo,
irmanará a ciência à religião; ela será um sistema aberto, não fechado como os anteriores. Os
primeiros elementos dela foram postos aqui, para que se ampliem e se tirem as conseqüências
práticas, de futuro.
E o estilo literário que se presta a um tal modo fusionista de ver o mundo, em que
entra o observador não só com sua mente, mas ele, como um todo, não pode ser outro senão o
Barroco conceptista, escoimado de todos os vícios e sutilezas que tinham o objetivo de
deslumbrar, de impressionar, de produzir efeitos, e ainda alimpado do seu aspecto funéreo,
negativo, pessimista e desprezador da vida. O gosto de amedrontar com o túmulo, com a
42
Ortega Y Gasset, Meditações do Quixote, 51
38

caveira e com a morte, tinha em vista cercear o egoísmo natural do homem, e existente em
todo ente vivo. Talvez tenha isso produzido os seus frutos, mas a renúncia vazia não cria nada,
e lança a alma na desolação. Não podemos renunciar o que temos nas mãos, a não ser tendo
em vista posse maior. “A virtude (não esquecer La Mettrie) é o egoísmo munido de óculos de
alcance”!
A atitude fusionista é medianeira entre pessimismo e otimismo; nem cantar um hino à
vida terrena, pelo pouco que ela tem de bom, nem execrá-la, inutilmente, pelo seu feio e mau
aspecto. O sábio não perde tempo nem com uma nem com outra coisa, visto como se
conscientizou de que todo o seu padecimento decorre da sua ignorância sobre como orientar
suas paixões vitais que são inextinguíveis, num sentido criativo, de bem. A renúncia não é
perda; é posse maior; ela não consiste em não desejar nada, o que levaria à inércia conducente
ao niilismo budista; antes, ela se resume em lutar por tudo aquilo que possa perdurar
eternamente. Daí que a posse do saber e da virtude não implica em renúncia vazia de tudo o
mais, mas troca do perecível e efêmero pelo que é eterno. Quando o sábio e o santo,
intimamente, desprezam poder, riqueza, glória, mundo, não o fazem por renúncia, como se
supõe, mas por egoísmo dilatado.
Não fareje que aqui estamos a pregar a fuga do convívio humano, como faziam os
anacoretas do passado. Já o dissemos: a sabedoria é a forma do amor, e este é a substância da
sabedoria. E amor não há sem convívio, sem atuação, sem obras. Fazer amigos, cultivar
amizades, também é conquista eterna, porque a vida continua após a morte física, noutras
dimensões. Ser pai e mãe, amar a esposa ao marido, e este a ela, sacrificarem-se ambos por
criar e educar os filhos, idem. Ser mestre pelo exemplo ou instrutor pela conduta, além de
propiciar a melhoria do meio social em que se está, ainda é eficaz oportunidade de experiência
para o que aspira a sabedoria. O sábio-santo não pode alienar-se, omitir-se, porque a vida é o
campo seu de lutas e de conquistas. O ignorante foge da luta quando pode, e gostaria que a
vida lhe fosse fácil, mansa, suave, sem suores e fadigas, padecendo ele, com isto, da mesma
ilusão da pomba kantiana que achava difícil romper o espaço, por causa da resistência que lhe
opunha o ar. Oh! Quão bom e quão suave seria voar no vácuo!... No entanto, é claro que sem
dificuldades não há resistências em que se apoiar para projetar-se para frente na conquista do
saber e da virtude.
Forte desta consciência, o sábio e santo intimamente se desapega da riqueza, sem,
contudo, abrir mão dela, mantendo-se de ânimo resoluto, fiel à certeza de que ela só é sua de
jus, não de fato, porque, na verdade, ela já pertence a todos os que dela se beneficiaram; e se
os que a receberem por herança forem como aquele que primeiro a administrou, então ela
continuará a ser socialmente útil; se, todavia, não estiverem à altura do excelente antecessor, a
riqueza se dissipará nas mãos de ignorantes que encontrarão nela uma fonte segura, infalível,
de alcançar as maiores desgraças. Deste modo, a riqueza é peso, responsabilidade, exigência de
trabalho, imposição de frutificá-la para o bem de todos. Riqueza individual com função social,
eis a fórmula posta em prática pelo que se fez sábio e santo. Tal, também, com o poder, e tal,
com o próprio saber, ambos para benefício coletivo, e não para satisfação exclusiva daqueles
que os possuem. Até a glória poderá ser útil, quando possa servir de incentivo a outrem, não
para conquistá-la também, que isto é fumo, é nada, mas para inspirar a resolução de seguir nas
pegadas daquele que, sem o desejar, se fez famoso.
A física emprega a palavra momento para tudo aquilo que acontece num átimo. É o
jeito de congelar o movimento numa fórmula ou num gráfico geométrico representativo de
sucessivos momentos em que atua uma força. É deste modo que ela resolve o problema de
reduzir o movimento ao parado numa sucessão de átimos de tempo. Este, o modo de ela lidar
com o que flui, com o que transcorre, com o que existe no tempo, para fixar o movimento na
imobilidade da lei, do princípio. O cinematógrafo pode dar-nos uma idéia vivência de como o
movimento se congela; os quadros representam, cada um, um átimo da cena, e todos, a cena
completa; mas só a cena se move, quando o filme anda no projetor. De igual modo, o som se
39

congela no disco fonográfico ou na fita magnética de um gravador sonoro. E há filmes com


muito mais quadros que o normal, e, em passando na tela, dão-nos o que se chama “câmara
lenta”. E o inverso também ocorre, e a “câmara rápida” serve para produzir efeitos grotescos,
hilariantes.
Aplicando: nossa filosofia faz o que faz a física, o que faz o cinematógrafo, e a vida se
fraciona em vários momentos de cenas imobilizadas. Uma cena de um filme é uma integral de
quadros, e o filme todo, uma integral de cenas; e tal como o filme, assim a vida. Aquilo que no
filme se chama um quadro, e na física, momento, na vida e na filosofia se chama situação.
Coerente com isto, diz Ortega: “Nunca foi fácil ao pensamento greco-romano conceber a
realidade como dinamismo. Não podia desprender-se do visível ou seus sucedâneos, como um
menino não entende do livro senão as ilustrações. Todos os esforços de seus filósofos
autóctones para transcender essa limitação foram vãos. Em todos os seus ensaios para
compreender, atua, mais ou menos, como paradigma, o objeto corporal, que é, para eles, a
“coisa” por excelência. Só conseguiam ver uma sociedade, um Estado onde a unidade tenha
caráter de continuidade visível; por exemplo, uma cidade.” 43. Mais: “Antes de nada é o
Estado projeto de um fazer e programa de colaboração. Chama-se às pessoas para que juntas
façam algo. O Estado não é consangüinidade, nem unidade lingüística, nem unidade territorial,
nem contigüidade de habitação. Não é nada material, inerte, dado e limitado. É puro
dinamismo - a vontade de fazer algo em comum - , e mercê a isso a idéia estatal não está por
nenhum termo físico (...). Isso é o Estado. Não uma coisa, mas um movimento” 44. “Sangue,
língua e passado comuns são princípios estáticos, fatais, rígidos, inertes; são prisões. Se a
nação consistisse nisso e em mais nada, a nação seria uma coisa situada a nossas costas, com o
que não teríamos nada que fazer. A nação seria algo que se é, mas não algo que se faz. Nem
sequer teria sentido defendê-la quando alguém a ataca” 45.
Assim como o Estado, “(...) o mundo não é um conjunto de «coisas», mas antes um
conjunto de «situações»” 46. Ora, saber orientar-se em meio a tudo o que se move, nisso se
resume a sabedoria. “Todas as coisas (diz Ortega) de que fala a ciência, seja qual for, são
abstratas, e as coisas abstratas são sempre claras. De sorte que a claridade da ciência não está
tanto na cabeça dos que a fazem como nas coisas de que falam. O essencialmente confuso,
intrincado, é a realidade vital concreta, que é sempre única. Quem seja capaz de orientar-se
com precisão nela; aquele que vislumbra sob o caos que apresenta toda situação vital a
anatomia concreta do instante; em suma, quem não se perca na vida, esse é de verdade uma
mente lúcida” 47. E “Mentes lúcidas, o que se chama mentes lúcidas, não houve propriamente
em todo o mundo antigo mais que duas: Temístocles e César; dois políticos.” 48. “César é o
exemplo máximo que conhecemos de dom para encontrar o perfil da realidade substantiva em
um momento de confusão pavorosa, em uma hora das mais caóticas que há vivido a
humanidade. E como se o destino se houvesse comprazido em sublinhar a exemplaridade, pôs
à sua direita uma magnífica cabeça de intelectual, a de Cícero, dedicada durante toda a sua
vida a confundir as coisas.” 49.
Esta rapsódia de textos orteguianos confirma nossa exposição de que toda a realidade
flui num contínuo tornar-se; mas o fenômeno que toda situação é, pode ser estudado numa
seqüência de momentos, de átimos de tempo, e, nos casos mais simples do domínio da física,
pode até ser reduzido a uma fórmula abstrata e objetivado num gráfico de função. É por
motivo deste dinamismo que o estilo barroco de Ortega é feito de espirais a se fecharem em
torno do tema central, nunca atacando ele frontalmente o problema, mas por giros, ao longe,
43
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, 27
44
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, 232-233
45
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, 243
46
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 91-92
47
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, 225
48
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, 225
49
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, 227
40

ao largo, como os israelitas na tomada de Jericó. Este modo fusionista ou barroco de ver o
mundo, leva tudo conectado, sem separar a pura idealidade da realidade substantiva, vivencial,
de sorte que o observador e o fenômeno observado ficam envolvidos na mesma realidade
vital.
Já o dissemos, e o repetimos: o Ser não pode ser alcançado só com a inteligência, e
antes, para acercar-se dele, o homem precisa agir como um todo, e não, apenas, com sua parte
racional. Por que? Porque o Ser não é Essência pura, senão, também, Substância. E vimos já
que os conceitos que temos das coisas e dos seres objetivos não são puros entes de razão, mas
possuem eles conteúdos vivenciais. Ninguém dissociaria do conceito de limão a idéia vivência
de azedo, nem de pimenta, a experiência sensorial de ardido. No entanto, porque os homens
só podem comunicar-se por conceitos, por entes de razão, visto como as vivências, as
experiências vitais de cada um não se transmitem, tendo cada um de adquirir as suas, então,
quanto possível, deve ser empreendido o esforço de reduzir a congérie do mundo a princípio
de razão.
Um alquimista medieval, perdido em meio às suas experiências caóticas, agindo só
empiricamente, por puro ensaio-e-erro, havia de concluir com o desolado Heráclito, que a
humana inteligência é impotente para penetrar no mistério das coisas, para descobrir o fio da
lei perdido na mixórdia do que nada é, por transformar-se sempre. Porém, quando, com o
andar dos tempos, o alquimista, superando-se a si mesmo, fez-se químico, o mundo da matéria
iluminou-se de relativa claridade. O mesmo aconteceu com o físico e, em parte, com o
biologista. Os movimentos dentro da matéria, e dos corpos no espaço, e dos astros no céu
foram conhecidos pelas leis que os governam.
Assim com a filosofia: armados da verdade enunciada no princípio da conservação da
energia-substância, e no de que esta é transformável, percorrendo a cadeia das
transformações, vamos encontrar a matéria-prima primordial na Energia-Substância-Amor.
Disto já tiramos que o Ser, Deus, não é Essência pura, senão que também se constitui de
Energia-Substância. A Doutrina da Evolução a partir do Caos primeiro, implica tenha
havido uma fase de queda, de Involução, que redundou naquele Caos. Armados destes dados,
verificamos que cada filósofo teve sua parcela de razão, pelo que podemos coordenar todas as
filosofias numa unidade total que englobará o substancialismo-realismo dos antigos
milesianos e atenienses, o idealismo-substancialismo dos modernos pensadores, o
involucionismo-evolucionismo, a idéia do Ser, Deus, como Essência-Substância, e
finalmente o Criacionismo-Evolucionismo. Tudo isto animado de vida e dinamismo como no
cinematógrafo. Pode ser tudo isto difícil para os não acostumados a este modo Barroco de
enxergar a Realidade, porém, assim será o futuro da filosofia a partir desta nova abertura. A
não ser deste modo, ela continuará no beco-sem-saída em que a meteu, primeiro, Augusto
Comte; depois, o intelectualismo, o cientismo, o fisicalismo, e, por último, os desesperados e
niilistas filósofos contemporâneos.
41

Capítulo VII

A INTUIÇÃO
Um conceito exige tanto mais notas elucidativas, quanto mais for conciso, quanto mais
for lacônico, reduzido; pela recíproca, será tanto mais explícito, quanto mais contiver
elementos explicativos, esclarecedores, no seu contexto. Deste modo, temos a definição
sintética e a analítica. Quando, todavia, um termo não puder ser explicitado, e se nos mostrar
como um todo irredutível a outro, aí temos uma intuição, como é a de espaço, de tempo e de
causalidade. Como o Ser não tem notas que o esclareçam, por isto é também uma intuição que
fundamenta tudo, mas que não se funda em nada. Não é porque lhe faltem notas definidoras
que, por isto, se confunde com o nada, como pensava Hegel. É certo que do Ser não se pode
predicar nada, como nada se pode predicar do nada; mas o nada é uma intuição absolutamente
vazia, enquanto do Ser não se pode dizer que seja vazio. Ora, o absolutamente cheio, cuja
plenitude transcende o Universo, portanto prenhe de significações, conquanto estas também
intuitivas, não pode confundir-se com o absolutamente vazio; a plenitude infinita não pode ser
idêntica à vacuidade extrema, só porque nem de uma nem de outra a razão encontra meios de
42

apresentar notas esclarecedoras. Em vez de declarar a falência da razão, Hegel sai-se com o
estapafúrdio de afirmar que o Ser se confunde com o nada.
O Ser é uma intuição, e uma intuição não se define, que se isto fosse possível, não
seria uma intuição, e sim, um conceito. Mas como distinguir a intuição do Ser, da intuição do
nada, se, racionalmente, ambas nos parecem vazias, por lhes faltar notas esclarecedoras?
Onde fraqueja a razão, entra a atuar o sentir. Quando a razão leva ao vazio, onde sentimos
que há a plenitude, é que ela está exorbitando de seus poderes; faz-se preciso, então, correr em
seu socorro o sentir, e a intuição emotiva nos fará ver um Ser pleno de si mesmo, cheio da
sua Substância, repleto do Amor que é. Isto vem em reforço da nossa tese segundo a qual o
homem não pode acercar-se do Ser só com sua inteligência, e sim terá de agir como um
todo... um todo de que fazem parte o consaber da experiência sensível entranhada em todo
conceito racional, a razão, a sensibilidade estética e axiológica, a vontade, os sentimentos, a
emoção e o afeto.
Haverá quem nos esteja objetando que este é um modo confuso de raciocinar; que
filosofia é metafísica, é razão, não tendo nada que fazer aqui o obscuro sentimento; que Hegel
tem razão, e o Ser, porque não pode definir-se, por isto, de fato, se confunde com o nada !
Se o Ser não pode definir-se, ou seja, se não pode ser recortado num todo maior,
segue-se que é uma intuição. Notas esclarecedoras são tentativas de recortar, de definir. E
Hegel nos diz que quando não se pode definir uma coisa, quando não se lhe pode juntar notas
elucidativas, essa coisa se confunde com o nada. Tiremos disto as consequências:
Os fundamentos das ciências todas são intuições; logo, tais fundamentos se confundem
com o nada. Os postulados da matemática, assim como os axiomas, são evidentes por si
mesmos. Não aceitemos isto, por ora, porque vamos nos fazer, neste momento, racionalistas
puros, e quem se propõe a dar razões tem de dá-las, não se lhe permitindo sair com esse
subterfúgio de postulados e de axiomas. Muitos teoremas geométricos, por exemplo: os
ângulos opostos pelo vértice, provenientes de duas linhas que se cruzam, são iguais entre si;
muitos teoremas quais este, são evidentes por si mesmos; basta olhá-los no papel, e já se
constata a evidência. No entanto, o matemático se deleita em demonstrá-los... porque há jeito
de o fazer. E vai, até que, de repente, dá com um tão claro e evidente como os anteriores,
porém, sem possibilidade de demonstração. Então, sai-se com essa escapatória de que não se
precisa demonstrar, por ser evidente por si mesmo, isto é, axiomático. Evidente por si
mesmo? nada disso: demonstre, aí, o axioma, como demonstrou outras evidências por si
mesmas, só porque demonstráveis... Se o axioma é intuitivo, e por isso não pode ser
demonstrado, sem notas esclarecedoras, se confunde com o nada, no dizer de Hegel. Como,
logo, pode a ciência mais exata de todas, a matemática, fundamentar-se no nada dos axiomas,
e pior ainda, no nada que são os postulados indemonstráveis, aos quais não se podem juntar
notas nenhumas definidoras?
O ponto geométrico é carente de dimensões? Se o é, não existe... que existir é estar no
tempo, no espaço-tempo; e se existe, tem que ser, já, um círculo de duas dimensões. Muito
menor que o ponto que o geômetra pinga numa folha de papel, é a célula, a bactéria, o vírus
que são complexíssimos mundos diminutos; isto para não descer à molécula, ao átomo, ao
próton e ao elétron. O ponto, diz o geômetra, não tem dimensões; porém, o elétron, trilhões de
vezes menor que ele, as tem, e três. O matemático não conta com outro meio para nos dizer o
que é o ponto, senão, empiricamente, pingando-o numa folha de papel; e depois nos diz que
aquilo ali (e o aponta com o dedo) é uma abstração, e que não tem dimensões. Para mostrar
o que é o ponto, usa o empirismo, grafando-o; depois afirma que essa realidade existencial,
objetiva, patente, é uma abstração, não lhe vindo à cabeça que não há idealidade abstrata de
ponto geométrico, continuando ele a ser real, como imagem subjetiva, no espírito do
observador, nunca podendo sair desse nível imagético para o do pensamento abstrato e geral.
O que pode ser imaginado, isto é, representado por figuras na imaginação, não é
abstrato. O plano das imagens é intermediário entre o mundo da abstração, e o mundo da
43

objetividade, da realidade concreta. Tal já o entendia Platão para quem “os conhecimentos
matemáticos não constituem (...) o ápice da ciência. São ainda uma forma de inteligibilidade
primeira, marcada por compromissos com o plano sensível: as entidades matemáticas são
múltiplas (faz-se um cálculo ou uma demonstração geométrica utilizando-se diversos 3 ou
vários triângulos); além disso a própria representatividade manifesta um liame do plano
matemático com a sensibilidade, a denunciar seu caráter de intermediário entre a percepção
sensível e a inteligibilidade plena. Esta só se alcança quando, além das entidades matemáticas,
chega-se à evidência puramente intelectual (noésis) das idéias. Não se trata mais de vários 3,
mas da essência mesma da «trindade», que confere sentido àqueles seus reflexos matemáticos;
não se trata mais de triângulos – de vários tipos –, mas da «triangularidade» que neles se
efetiva, sem se esgotar em nenhum deles”50. Subindo à irrepresentabilidade, de muitos
triângulos chega-se à triangularidade; de muitos cavalos, à cavalaridade; mas de ponto não se
pode subir à “punctualidade”, porque não há vários pontos geométricos dos quais se pudesse
abstrair ou generalizar no plano das essências ou idéias-conceitos unitários, irrepresentáveis,
conforme a sexta propriedade dos objetos ideais, anotada anteriormente neste mesmo livro.
Como o ponto geométrico é representável, não é abstração, e sim, realidade objetiva, objeto
real, de duas dimensões.
Como se vê, o que afirmamos não é novo. Hobbes, diz Schopenhauer, “no tratado «De
principii Geometrarum» faz ressaltar de modo assaz bizarro o empirismo absoluto de sua
tendência mental, negando as matemáticas puras propriamente ditas e sustentando com
obstinação que o ponto tem uma extensão e a linha uma largura. Ora, como não estamos em
condições de pôr-lhe sob os olhos um ponto sem extensão e uma linha sem largura, não
podemos demonstrar-lhe a aprioridade das matemáticas” 51.
Se não pode demonstrar que Hobbes está errado, como pode ter-se por certo
Schopenhauer ao sustentar a aprioridade da matemática? Se não está, Schopenhauer, em
condições de provar sua verdade, sua afirmação é gratuita, isto é, sem legitimidade no campo
da razão. E não é só Schopenhauer, mas nenhum pensador está em condições de demonstrar o
apriorismo matemático, porque se põe contra ele a razão histórica. É que o pensamento não é
um dom, uma dádiva, como o creu o criacionismo kantiano, porém custosa conquista da
Vida, conforme o prova a Evolução. Ele principiou lá embaixo pela irritabilidade do plasma
(tropismos), passando pela fase do instinto, antes de tornar-se pensamento e consciência. A
evolução do sistema nervoso guarda inextricável relação com o surgimento da consciência.
Igualmente, os órgãos dos sentidos, como todos os demais órgãos, têm sua história biológica,
e apareceram como respostas do plasma às atuações, aos embates do meio. Se a própria
inteligência surgiu a partir da irritabilidade, tornou-se sensações, impressões e imagens, antes
de atingir as generalizações do pensamento abstrato, como pode haver algo na inteligência que
não tivesse estado antes nos sentidos? Logo, as intuições sensíveis são a base de todo o saber
racional, inclusive o das matemáticas, donde vem que estas e aquele são a posteriori.
A questão se resume em saber como, por que, de que, por quem e quando surgiu na
vida o pensamento. Se ele tivera aparecido como um dom, como uma dádiva, então a
matemática seria apriorística, e tudo teria acontecido como o supusera Kant. Contrariamente,
porém, a Evolução demonstra que o pensamento surgiu de baixo, evoluiu com o sistema
nervoso, com o cérebro, donde tiramos que o pensamento é histórico, tem sua história,
primeiro biológica, e depois social, dando a conseqüência de que a matemática é a posteriori.
Prova-o o sistema numeral dígito, e se o homem fora monodátilo, se possuísse um só dedo
como prolongamento de cada braço, não como a pata do cavalo, mas dedo móvel, plástico,
rico de possibilidades criadoras, sua matemática seria binária, como a dos computadores. Nas
mãos, nos braços, nas pernas, nos pés se basearam os primeiros sistemas de medidas. Nas
mãos unidas em concha vai uma medida primitiva de capacidade - a mancheia. E ainda o povo

50
História das Grandes Idéias do Mundo Ocidental - Os Pensadores, I, 62
51
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, 126-127
44

inglês, porque conservador, tem sua polegada saída do polegar; o pé, do pé que, por fim, se
padronizou pelo pé do rei. Igualmente, o palmo vem de palma; a braça, de braço; a vara, do
primeiro varapau que deu real poder ao homem primitivo, e por isto se notabilizou no cajado
do patriarca, no báculo do bispo, na vara do juiz, no bastão do militar, no cetro do rei. A
geometria nasceu de riscos, de linhas, de figuras, de desenhos, que o homem antigo deixou
sobre as paredes das cavernas pré-históricas. Riscando na areia, na terra e na pedra, o homem
descobriu as primeiras relações geométricas. Antes de Euclides, e sem base em postulados
nenhuns, os egípcios já empregavam a geometria, e suas gigantescas pirâmides ficaram para
contar essa história. A matemática foi primeiro concreta, objetiva e prática. Sua expressão
abstrata é de ontem. Hobbes tem razão: a matemática é a posteriori; a numeração decimal
nasceu dos dez dedos; a geometria (de geo = terra; e metria = medida) surgiu de riscos feitos
sobre a terra, areia e pedra, e, aqui, o ponto, como a linha, tinham comprimento e largura, e o
continuam tendo na imaginação de onde não podem subir para o plano da abstração.
No entanto o homem cresceu em ciência, complicaram-se suas relações sociais, tomou
ele gosto pelas especulações e pesquisas abstratas, e foi preciso procurar uma base imóvel, um
padrão fixo que ficasse para sempre. De dois riscos paralelos cortados por uma secante,
oblíqua, já tinha saído a geometria. Agora, a dúvida: seria possível prolongar esses riscos retos,
paralelos, pelo espaço a fora, rumo ao infinito? Da forma do espaço iriam depender as
propriedades da reta, e, desta, as das figuras geométricas nascidas do seccionamento das retas
paralelas. Qual seria a forma do espaço? Euclides a supôs plana para todos os lados, e infinita;
mas não podia prová-lo. Então pediu, postulou (de postulare - pedir) que se lhe concedessem
traçar as retas paralelas. E sobre este postulado quinto, reestruturou toda a geometria já de há
muito existente.
Geômetras modernos demonstraram ser possível a demonstração dos teoremas
euclidianos sem o seu postulado famoso. Todavia, para isto, os geômetras hão de apoiar a
demonstração em outra base, e esta, em outra, em outra ..., até que, finalmente, terá que haver
uma intuição indemonstrável que será, ou um outro postulado, ou um axioma. E se não
procederem deste modo, cairão no círculo, na petição de princípio, isto é, uma demonstração
terá apoio no que está ainda por demonstrar. Afastar o incômodo postulado de Euclides, como
se vê, é apenas deslocar o problema que continuará idêntico ao primeiro, para outro lugar, sem
solucioná-lo.
Porém, o precedente do postulado da reta fora aberto, e sobrevieram o abuso e o
escândalo da geometria, Lobatschevski, Bolyai, Riemann, Gauss, criaram geometrias não
euclidianas, tão válidas quanto a do grego. Uma delas será a verdadeira, por corresponder à
real forma do espaço. E se o espaço for dinâmico (campo - Einstein), móvel, e o é, pois o
universo se acha hoje em expansão, em cada situação deste, haverá uma geometria que se lhe
aplique. Quem acaba tendo razão é o matemático, antes de filósofo, Bertrand Russell para
quem “a matemática é a ciência em que nunca sabemos de que coisa está falando, nem se o que
ela diz é verdadeiro”.
Os postulados da matemática e das ciências são indemonstráveis; por isso é que de
postulados diferentes puderam ser construídas geometrias diferentes. Como os postulados são
indemonstráveis; como não se lhes pode juntar notas elucidativas; como são intuições, segue-
se que tais postulados, tais intuições se confundem com o nada (Hegel), não indo além de pura
prosopopéia, de psitacismo puro. Conseqüentemente, as ciências todas, inclusive a mais exata
de todas, a matemática, nasce do psitacismo e se apóia sobre o nada. Porém, os homens crêem
nas ciências, e curvam-se, respeitosos, frente a uma demonstração matemática. E chegam a
dizer, com ar sério, circunspecto, doutoral, “que uma ciência será tanto mais verdadeira, exata,
quanto mais contiver, em si, de matemática”. Todavia, como o mesmo fundamento da
matemática é o nada, desse nada deduzimos tudo, e esse tudo fica suspenso no vácuo. Para
criar, Deus teve de empregar uma Substância que é a sua própria, visto como não pode haver
nada além de si, nem mesmo este além, porque ele é infinito.
45

E que possamos nós criar do nada, acaso não é isto superar o próprio Criador? Não! –
diz Santo Agostinho – ; não é superar, mas imitar, porque também “Deus criou o mundo do
nada”. Está, então, descoberto o mistério: o homem e o mundo são nada, porque tudo o que
existe é seu aspecto anterior modificado; e como era nada no princípio, sê-lo-á para todo
sempre, tenha o aspecto que tiver. Logo, o homem é nada; mas como ele, diz o Gênese, é
imagem e semelhança de Deus, em que ponto esse homem-nada pode assemelhar-se a Deus?
Pois não pode ser noutro que não neste: tal qual Deus, o homem-nada participa de poder
criar também a partir do nada; é por isso que ele cria suas ciências a partir de nadas ... que
são os primeiros princípios, e os postulados indemonstráveis.
No entanto, é peremptório, inquestionável, taxativo, terminante, que não se pode dar
crédito às ciências, se forem postos em dúvida os seus fundamentos; e como estes são
indemonstáveis, como são intuições, para serem indubitáveis, apesar de não racionais, hão de
ser como pontos de fé. Segue-se que a ciência nasce de um ato de fé ..., a fé nos primeiros
princípios e nos postulados. A raiz da ciência é a fé. Rir-se, pois, da fé, é rir-se dos
fundamentos das ciências; é proceder como o macaco que, porventura, zomba do rabo alheio,
olvidando o próprio sobre o qual está sentado. O homem de ciência que se ri da fé, age como
aquele que não se sente estar voando, embora esteja embarcado, e seu avião em pleno espaço.
Voa a ave, e sente o ar roçar-lhe o corpo, as penas; e essa ave é o místico; voa o homem em
seu avião, e, porque não sente o ar, cuida que não voa; e esse homem é o cientista, o
matemático. O místico sente o ar do ponto de fé na própria pele. O cientista não sente o ar do
postulado, o ar dos primeiros princípios, por causa do envolvimento da ciência, em nosso
exemplo, o corpo do avião, e, neste, sente-se seguro; ou então, se o avião oscila e ameaça cair,
por instinto, agarra-se à poltrona. Que adianta agarrar-se, firmemente, ao avião, se este está no
ar? Não tem sentido invalidar o apoio aéreo das religiões, e confiar no apoio aéreo dos
postulados das ciências, sobretudo, na mais exata de todas, a matemática.
Se a ciência se fundamenta nos primeiros princípios indemonstráveis, nos postulados,
aceitos de fé, o que vem a ser a fé? Pois ela é tudo aquilo que transcende a razão, que está para
além da inteligência. Só o que é transracional, e só isto, deve ser aceito de fé, não se lhe
permitindo a ela ingerir nos assuntos do domínio da razão. Conseqüentemente, o nada
racional (só racionalmente nada, atentemos bem) é a intuição formal, é a transracionalidade,
é a fé luminosa, não a cega, fanática, obtusa, separatista por causa de questiúnculas, mas fé
luminosa em que a mesma ciência se apóia para edificar-se. Uma vez que há a fé cega que,
como os planetas, só refletem a luz alheia, então, há essa claridade alheia que é a fé luminosa,
de luz própria, como as estrelas. Ora, a fé luminosa é a intuição, no passo que a fé cega é a
sugestão... cujo fundamento é o princípio de autoridade.
Assim como, no decurso da evolução, a fase dos instintos animais cede seu lugar à fase
racional que a suplanta, também a fase intuitiva supera a razão. O instinto é como a linha, de
uma dimensão, sem liberdade de se sair para os lados; a razão é essa linha alargada num plano,
com possibilidade de infinitos caminhos de livre escolha; a intuição é o volume consciencial
nascido, como em matemática, da movimentação do planimétrico racional. Para a consciência
linear do instinto, a razão também é um inconcebível, também é um nada, do mesmo modo
como a intuição, por sua natureza tridimensória, é um nada para a razão planimétrica. Por
isto é que Hegel confunde o Ser com o nada, porque nenhum nem outro pode receber notas
elucidativas. É que tanto o Ser como o nada estão fora da competência, da alçada da razão, e
quando esta, exorbitando os seus limites, confunde o Ser com o nada, nossa intuição emotiva
e volitiva nos determinam, peremptoriamente, o Ser como pleno, e o nada como vazio. Para
“pensar” por intuição, para intuir, o gênio se levanta no tope duma perpendicular baixada
sobre um ponto no planimétrico da razão, e, lá de cima, vê claro o que os da superfície não
podem enxergar..., a não ser depois da demonstração racional.
A razão, de começo, tardonha e dificultosa, toda feita de pensamentos concretos,
vivenciais, imagéticos, cada vez mais se abstratiza rumo à generalização total. Paralelamente a
46

isto, o pensamento se vai tornando cada vez mais veloz, até atingir a fase intuitiva pela qual a
verdade é apreendida de relâmpago, num repente. Do mesmo modo que o instinto é uma razão
retardada, ou iniciante, que levou milhões de anos “pensando” por ensaio-e-erro para fixar-se
nos automatismos dos instintos, a intuição é a mesma razão tornada relâmpago, veloz como o
raio, capaz, por isto, de percorrer, num átimo, toda uma série dialética, saltando, de súbito,
para o resultado final da generalização, ou da premissa às conseqüências.
Quando corria mundo a notícia de que Einstein ia, ainda, um dia, escrever um livro com
o título “Teoria dos Campos Unificados”, alguns repórteres vieram saber dele o que vinha a ser
isso de unificar todas as energias e todas as matérias do universo sob um denominador
comum – a energia-substância. “Einstein respondeu a todos: «Sobre esse ponto, venham ver-
me daqui a mais vinte anos». Um dos repórteres estranhou a resposta e perguntou ao pai
intelectual da bomba atômica se ele não tinha certeza sobre essa identidade das energias
cósmicas, ao que Einstein replicou: «Certeza tenho, sim, mas não posso provar»” 52.
Assim, porque a certeza vem antes da demonstração, a dificuldade de Einstein não
consistia em descobrir, mas em demonstrar sua descoberta. Essa certeza antes da prova
racional é a fé luminosa. Ora, a fé do ignorante tem outra base: funda-se ela no princípio da
autoridade, não passando ela de pura sugestão, pura hipnose.
Àquele, pois, que nos objetou dizendo que metafísica é razão, e que tudo isto que
expomos, com ser fusionista, é “irracional”, respondemos que se a metafísica é só razão, é
chegada então a hora histórica de nascer a parametafísica que se ocupe da suprarrazão,
porque a razão, sozinha, acabou por dar-se a si mesma uma rasteira, com superar os seus
limites, ou então, fez ela como a lendária cobra que se engoliu a si mesma pelo rabo. A razão é
muito boa, somente dentro de seus domínios..., tornando-se em absurdo e loucura, quando se
põe a pontificar fora dos seus limites, a exemplo do disparate de Hegel, sensível a qualquer
um, ao afirmar que o Ser e o nada se confundem. Se a razão serve para demonstrar
extravagâncias quais essa de Hegel, é tempo de apontar à razão o seu non plus ultra, coisa
que devia ter sido feita já na Grécia, acabando com a loucura da razão de Parmênides e de
Zenão de Eléa.
Não se diga, portanto, que a intuição é nada, visto que se lhe não pode juntar notas
nenhumas elucidativas, nem que tal fé luminosa é, como a outra, a sugestiva, irracional; diga-
se, isto sim, que a intuição ou tal fé é suprarracional; que, se a razão é planimétrica, a
intuição é volumétrica e abarca todo o conhecimento como num globo, não só em superfície
(razão), mas também em profundidade (terceira dimensão). Conseqüentemente, como a
metafísica, sozinha, não pode chegar ao Ser, porque a metafísica é só racional, e o Ser,
transracional, para acercar-se dele, o homem precisa fazer-se parametafísico, suprarracional,
intuitivo, agindo como um todo, e não só com sua inteligência discursiva. O porque, já o
demos: é que o Ser não é Essência pura, senão, também, Substância. Esta é a diferença entre
fé luminosa e razão, entre racionalidade e intuição.
A intuição, conseguintemente, tanto está na base das religiões, como na das ciências:
daí para frente é que os processos se mudam, porque dos postulados religiosos o místico tira
logo regras de conduta, de agir, que deságua na moral, na ética, no passo que o cientista se
ocupa com a pesquisa, com o fazer cuja última conseqüência é a técnica. A filosofia, que não é
nem ciência nem religião, fica na crista das vertentes que correm para esses dois lados, sendo a
única, logo, que pode promover a integração da ciência à fé; e se ainda não o fez, foi porque a
filosofia sempre esteve na crença de que se poderia chegar ao Ser só com a inteligência, pela
razão. Ora, como a inteligência só trabalha com abstrações, com conceitos, o fim de toda
cadeia racional ia sempre dar num Ser feito só de pura Essência. Em contrapartida, o Deus das
religiões era intuído ou sentido como Substância. Contudo, o Ser fixo na imobilidade desde
Parmênides, solta-se agora para a vida, para o movimento, com fazer-se, não só a síntese das
filosofias entre si, senão também a destas com a religião por um lado, e da filosofia com a
52
Huberto Rohden, Filosofia Universal, 2, 115
47

ciência por outro. Para isto faltava uma chave, e esta é a Evolução a qual, para ser possível,
implica tenha havido uma fase inversa involutiva pela qual a Substância organizada desceu
desta organização para o mais inteiro Caos. A chave, pois, consiste na incorporação, por parte
da filosofia, do Evolucionismo universal, e da Substancialidade do Ser.
48

Capítulo VIII

HIERARQUIA DAS INTUIÇÕES


Sócrates, para saber as coisas, saía à rua, ia à praça, a fim de achar a quem fazer
perguntas. Obtida uma resposta, Sócrates passava a discuti-la, a propor novas perguntas, a
interrogar de novo. Por este método discursivo se depurava a idéia, e o conceito aparecia com
clareza e perfeição aceitáveis. Platão fazia fundamentalmente o mesmo por meio da sua
dialética. O assunto era abordado por círculos que se iam fechando pouco a pouco, até o
remate final da definição. Estes métodos - maiêutica e dialética - se chamam discursivos ou
indiretos, visto que abordam a verdade central por partes, por progressivas aproximações,
fechando a espiral, cada vez mais, no centro. O método do Realismo, por conseguinte, é
discursivo, e vai do particular para o geral, das partes para o todo, das coisas para a idéia.
Quando, na Renascença, principiou a fase inversa, a idealista, partia-se da idéia para se
ir às coisas. A apreensão imediata da idéia que relampagueia na mente do investigador, se
chama, como já o vimos, intuição. Portanto, a intuição se opõe ao discurso; o método
intuitivo, ao indutivo, ao discursivo, ao sintético. Seguir pensando, discorrer, discursar,
expender sucessivos esforços para captar a essência, é a dialética, por sua natureza discursiva,
sintética. A intuição faz exatamente o oposto que é, de repente, de súbito, de relance, de um
estalo, apreender a essência. Com uma única visão do espírito se fixa a essência e a determina.
Daí que intuição vem de intuir que quer dizer ver. É um método direto, imediato, contrário ao
discurso que é indireto, mediato.
Como a intuição é ver, sua forma mais simples e evidente é a intuição sensível. De um
lanço de olhos, percebemos tudo ao nosso redor, homens, animais, árvores, objetos numa
intuição sensível do mundo, o que não é privilégio só dos homens, e sim, também, dos
animais. E muitos problemas se resolvem com esta simples intuição sensível que nos
evidencia, de relâmpago, sua solução. Já se fez experiência com animais para verificar quais
deles possuem, em grau maior, esta espécie de intuição. Faz-se uma cerca em ângulo reto,
deixando abertos os outros lados. Colocam-se animais de várias espécies, porcos, cães,
galinhas, etc. na parte exterior do ângulo, depois do que, se põe comida na parte interna. As
galinhas e os porcos arremessam-se à cerca, e também os cães se o vivo cheiro do alimento dá-
lhes ao faro. Fracassadas as primeiras tentativas para solucionar o problema, os outros animais
continuam tentando, enquanto os cães se afastam, e sentam-se, ao longe, para apreciar o
espetáculo. De repente, levantam-se, fazem a volta à cerca, e vão direto aos alimentos. Que
aconteceu? Pois nada além de que os cães viram a situação, e resolveram o problema de
súbito. Eis que a intuição sensível possibilita, já, a solução de problemas primários e simples.
Um polvo de certa espécie vê uma bivalva com as conchas abertas; enxerga, à distância,
uma pedra chata. Então, vai até a pedra, pega-a com um tentáculo, encaminha-se para a ostra,
e, rapidamente, mete a pedra nos lados da bivalva. A ostra, fechando as conchas, prende a
pedra, e o polvo tem pronto o seu alimento. Dir-se-á que o polvo faz tudo isso por instinto; é
exato. Mas sem a intuição sensível que lhe proporcionou a situação composta do ternário:
fome, ostra e pedra chata, o mecanismo instintivo, irracional mas sábio, não se desencadearia.
Ora, se a simples e rudimentar intuição sensível já possibilita a solução de inúmeros problemas,
não é de desprezar-se as demais intuições como método de filosofar.
Não se pode dizer que os polvos pensem, para resolver o problema de obter alimento,
usando a pedra chata que impede a bivalva de fechar as conchas; também não se pode afirmar
que pensam os caranguejos de certa espécie que, para resolver o problema de defender-se,
afugentam o inimigo, ameaçando-o com dois molhos de actínias seguros pelas pinças, tal qual
o faria o homem com dois archotes. Nem pensam os caranguejos e os polvos, nem pensa o
homem, quando um e outro resolvem seus problemas por intuição, porque, como já o vimos, a
intuição sensível é pré-racional.
49

Todavia, o homem, devido à sua complexidade mental, volitiva, emotiva, está habilitado
a ter outros tipos de intuições mais complexas. As situações aludidas atrás são físicas; no
entanto, há situações não físicas que podem ser vistas sem o auxílio dos olhos da cara. É
evidente por si mesmo, é axiomático, é intuitivo, que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo
tempo. Não é preciso demonstrar que uma laranja não é uma pera, nem que o branco não é
preto. A relação de diferença, o princípio de contradição pelo qual tudo o que existe tem o seu
contrário; o princípio de identidade pelo qual um triângulo é idêntico só a si mesmo, não
podendo ser um círculo, são intuições formais, visto que dizem respeito à essência, à forma.
Quando sentimos (e este sentir forma nossa crença profunda, radical, aquela que somos, pelo
que não a pomos como objeto de discussão); quando sentimos que o Ser por sua plenitude
infinita se opõe polarmente ao nada, este como vacuidade extrema, não adianta Hegel esfalfar-
se por provar, racionalmente, que ambos se confundem. Nossa intuição emotiva estará alerta
para desconcordar com Hegel. Quando Zenão de Eléa vem demonstrar a Diógenes que o
movimento não existe, este se põe a andar, mostrando que o problema não era de solução
racional (até então não o era), mas da alçada da intuição sensível: eis a solução, diz Diógenes,
ao tempo em que se põe a andar.
Se tudo o que existe, sem nenhuma exceção, se compõe de essência e de substância,
as intuições que têm por base a substância são sensíveis, volitivas e emotivas, e as que se
referem à essência, à forma, são formais. Os filósofos costumam chamar esta intuição formal
de intuição intelectual, o que é um contra-senso; sendo a intuição o ato de captarmos a
idealidade de algo de um golpe, e referindo o intelectual ao dialético, ao discursivo, isto é, ao
trânsito com que passamos de uma idéia a outra mais geral, segue-se que intelectual e intuitivo
são termos oponentes que se excluem, se fizerem parte de uma mesma afirmação. Assim,
intuição intelectual soa-nos como se disséssemos “madeira de ferro” para usar uma expressão
de Schopenhauer. Em vez de intuição intelectual, digamos: intuição formal.
Fora estas intuições formais, há outras, como já dissemos, com base na substância; elas
dependem do modo como pomos os objetos, ou nos pomos frente a eles. Esta posição dos
objetos depende do nosso ânimo, do nosso sentimento, frente aos objetos postos a exame por
nós. Um lógico não põe um objeto, ou não se põe frente a ele, com a mesma alma de um
artista, de um esteta, de um místico, de um volitivo. Ora, se cada um pode ver aspectos
diferentes num mesmo objeto, segue-se duas coisas: a primeira é que há vários tipos de
intuições; a segunda, que as coisas podem ser vistas de várias perspectivas, em razão de
ocuparem diferentes planos de realidade. Como o filósofo quer conhecer as coisas em sua
realidade integral, não tem por onde senão olhá-las de todas as perspectivas, de todos os
pontos de vista possíveis, tendo, delas, todas as intuições.
Nós e o mundo somos feitos juntamente no tempo e no espaço, um e outro construído
como que de camadas, como que de planos, e podemos nos situar nesses níveis de nós
mesmos, e ver o mundo a partir deles. Em todos os níveis, o que está em nós tem seu
correlato, tem sua correspondência com o que se acha fora de nós; ou, pela recíproca, todos os
níveis do mundo acham sua correlação nos níveis de que somos feitos. Por que assim? Porque
fomos plasmados juntamente com tudo o que nos cerca pelos mesmos agentes, pelas mesmas
forças da Evolução, e de uma única substância primordial.
Na superfície está o mundo espontâneo, o mundo à mão, com seu correlato em nós ...
nas impressões sensoriais, nas intuições sensíveis as quais carreiam para o nosso psiquismo
todo o mundo exterior sob a forma de imagens. Se de uma parte estamos nós, e da outra, o
mundo objetivo, todas as imagens que apreendemos dos objetos exteriores têm sua correlação
nos mesmos objetos. Deste modo, se o lugar em que nos situamos é o periférico dos sentidos,
e vivemos nossa vida espontânea, sem problemas, sem questões, sem perguntas, então, o
correlato do mundo será sua imagem refletida em nosso espírito, como uma paisagem num
lago. E há os que pensam por imagens, por corrente de imagens, que são os artistas; eles nos
fazem descrições, nos apresentam pinturas, ocupando-se sempre de objetos individuais, e não,
50

de conceitos puros que são gerais. E a imaginação pode criar quadros inexistentes, ou mudar,
alterar, melhorar os anteriormente vistos. Os inventores, por exemplo, não podem, durante
todo o trabalho da invenção, pensar por conceitos, porque a máquina que tentam construir, é
um objeto real no espírito do inventor, e tende a ser projetada para fora como realidade
objetiva. Partindo de algum princípio científico, Edison criava, sobre ele, alguma coisa em seu
mundo imagético, desenhava o seu invento, repensava-o, corrigia-o, e por fim, punha mãos à
obra, e o invento surgia no mundo exterior para dar conforto e enriquecer a vida. Uma grande
cidade, com tudo que nela existe, é como uma segunda natureza, porque foi criada, inventada,
pelos homens. E antes de lançada fora da imaginação, antes de projetada no papel, e, depois,
no mundo exterior, teve de ser construída ponto por ponto no mundo subjetivo. A simples
vista ou intuição sensível de uma peça mecânica, nos faz ver, imaginariamente, a outra peça
contrária, correlata, com a qual a primeira se encaixa e funciona. Sem as intuições sensíveis,
pois, sem as correntes de imagens em nosso mundo subjetivo, seria impossível nosso trabalho
como artista, como inventor.
O polvo que vê a ostra e a pedra chata ao redor, e pega da pedra para, com ela, impedir
o fechamento das conchas da bivalva, certamente que não resolveu o seu problema de
alimentar-se, partindo de ideações, de construções mentais imagéticas; seguiu o instinto.
Porém, o instinto teve sua gênese no ato primeiro executado pelos indivíduos; depois, o ato,
pela repetição, se fixou em hábitos, e estes, no instinto, porque os polvos, como todos os entes
vivos, são, por suas formas, por suas essências, imortais. Aquele saber instintivo nasceu por
ensaio-e-erro, para depois fixar-se como automatismo, qual os nossos hábitos que, se
fortemente fixados, aparecerão como tendências, como hábitos inatos, como instintos, noutras
existências corporais do vivente. O caminho percorrido pelo instinto em sua formação, não
pode ser senão o exposto.
Abaixo deste nível superficial, vem para o mundo e para nós a camada das essências.
Não é que as essências, as idéias abstratas, os conceitos estão primeiro em nosso espírito de
onde os projetamos fora, sobre os objetos, sobre as coisas, como pensava o Kant-moço; o
Kant-velho escreveu a sua "Antropologia" defendendo, antes de Darwin, a tese do homem
provindo do macaco, e este, de um ancestral mais remoto e inferior, até descer aos primórdios
da vida, abaixo dos seres conchíferos e moluscóides. Então, como se formaram os conceitos
em nosso espírito, senão vindos do mundo exterior, carreados pelas imagens, ou a cavaleiros
delas? Quando vemos uma laranja, intuímos sua forma esférica; a esfera não é uma criação do
nosso espírito, que, depois, transladamos para a laranja, senão que a imagem da laranja vem-
nos, já, com sua forma de esfera ao nosso psiquismo. Mas, a esfera, o círculo, o triângulo são
idéias; logo, essas idéias estão, lá, no mundo objetivo, de onde as tiramos para o nosso uso.
Admitida a Evolução, o velho Kant (não ele mesmo, quando moço, o da “Crítica da Razão
Pura”, mas o outro, o Kant-velho da “Antropologia”) teve de curvar-se a esta evidência: o
cérebro evoluiu de baixo, e, com ele, o pensamento que, logo, tem sua história biológica e é
histórico. Não há intuições, portanto, que não tivessem sua gênese na história da vida.
Conseqüentemente, nada há na inteligência que não tivesse estado antes nos sentidos,
inclusive a própria inteligência... que tem sua história remota na irritabilidade do plasma. Os
dados da ciência barram o questionar filosófico.
É, portanto, categórico, imperativo, taxativo, indiscutível que não somos seres
especiais, de modo distinto, criados por um Deus antropomórfico e exterior. Fomos criados,
em tempo próprio, e de permeio a tudo o mais, segundo os mesmos princípios e leis pré-
estantes – que estavam antes – (eis a imanência divina), e por isto somos co-participantes de
todos os níveis da realidade que se acham fora de nós. Não o bosque em si, como pretendia o
Realismo, nem o bosque em mim, como o supusera o Idealismo, mas, primeiro, ele em si;
depois, eu nele; por causa disto, ele em mim; e finalmente, nós na paisagem rodeada pelo
mundo que se integra no universo. O sujeito e o objeto são correlativos e se interatuam
formando parte do mundo.
51

O primeiro modo de pormos o mundo, ou de nos pormos frente ao mundo, é, portanto,


a intuição sensível, e aqui, já, o que está fora, como realidade exterior, objetiva, é como o que
está dentro, como imagem subjetiva, e, num e noutro caso, já composto do binômio essência e
substância.
Todavia, abaixo deste nível superficial da intuição sensível, há outra intuição, a
intuição formal. Se nos situarmos neste nível de nós mesmos e do mundo, teremos intuições
desta espécie, porque, como já o vimos, elas têm, nos objetos, sua correlação exata. É por isso
que se pode captar, diretamente, mediante um único ato do espírito, a essência, a forma, o
conceito que nos diz o que a coisa é. A própria palavra inteligência que significa apanhar ou
ler entre as coisas (ou dentro delas), o nexo que as interliga, é uma intuição formal. Pegamos,
na mão, uma pequena máquina-instrumento, uma caneta-tinteiro desconhecida para nós, ou um
isqueiro, examinamo-los detidamente, e, de repente, já, descobrimos os princípios deles de um
estalo. Descobrimos os princípios, as essências?, descobrimos aqueles nexos que tornam as
partes num todo unitário? Sim. Pois então, se trata de intuições formais.
Se nosso intento, todavia, for colocar-nos no nível do sentimento, do moral, o mundo
se nos mostrará hierarquizado numa escala de valores. Não valores econômicos que são
relativos, e valem na medida em que nos satisfazem necessidades, mas valores axiológicos,
absolutos, por exemplo, que o Estado vale mais que o indivíduo, que uma criança vale mais do
que valores materiais, que Deus está sobre todas as coisas como transcendência, e é o que, por
excelência, vale, e de quem tudo decorre, pelo que, nele, se fundamentam todos os demais
valores. Esta intuição axiológica, ou moral, ou emotiva, não nos afirma o que a coisa é, mas
o que ela vale.
Neste mesmo nível do emocional, uma outra atitude intuitiva se nos mostra, que é a
intuição volitiva ou da vontade. Deriva-se ela do querer do sujeito, com seu correlativo no
objeto. Refere-se ela à existência do objeto, à sua realidade existencial, ontológica, à afirmação
do objeto como entidade real. O mundo existe; eu existo nele; ele existe em mim; eu e ele
existimos no todo maior universal. Isto são intuições volitivas que funcionam como axiomas
que não são preciso provar. Existo, logo penso. Eis outra intuição volitiva, antes de tornar-se
no cogito cartesiano que é uma intuição formal. Se penso, diz Descartes de começo, é
porque existo, e não vice-versa, porque o pensar é ato de um sujeito, e este é o eu-existente.
Daí o dizer ele, de começo: eu sou uma coisa que pensa; primeiro afirma-se como coisa
existente, para depois essa coisa existente poder pensar. Quando Descartes avança para além
da coisa que pensa, e assenta tudo sobre o pensar puro, demonstra, com isto, que sua intuição
outrora volitiva, se tornou, agora, puramente formal: penso, logo sou. O seu ser, assim,
decorre do pensar; se não pensasse não existiria, para si, como uma pedra que não pode saber
se existe, porque não pensa. A pedra existe para mim, porque a penso; contudo ela não existe
para si, porque não possui o pensamento pelo qual tomaria consciência de si. Uma vez que é
indubitável o meu pensar, segue-se que eu existo. A primeira decorrência do pensar é a
existência do eu. Todavia, argumenta Descartes, eu não sou necessário, quer dizer, não me
basto a mim mesmo; tem que existir um Ser necessário de que dependem meu ego e meu
pensar. Esse Ser é Deus. No entanto, como proceder para que meu pensamento se refira só a
coisas verdadeiras, indubitáveis? Do Sol sei que é luminoso, amarelado, quente e circular.
Porém, amarelo, quente, luminoso são idéias obscuras que tenho do Sol. Não obstante, que ele
é circular, isso é uma idéia clara, patente, inquestionável. Posso não saber o que são as coisas;
contudo sei, indubitavelmente, que são extensas. Eis como, com base no pensamento (intuição
formal) surgiram outras intuições formais como: o Sol é circular; as coisas são extensas. Fora
isto, da premissa cartesiana brotaram, em seqüência, o eu, Deus e o extenso.
Por este caminho de formalidade pura, de pura essencialidade, Descartes geometrizou o
mundo, e nos apresentou isso como sendo a verdade. Enquanto esteve adstrito a seu nível
geométrico de coisas inanimadas, seu sistema andou relativamente bem. Entretanto, o mundo
não é feito só de coisas não vivas, e para penetrar na camada mais profunda da vida, o sistema
52

cartesiano era absolutamente incompetente. Porém, tentou-o Descartes, e saiu-lhe o


estapafúrdio de que os animais são máquinas. E quando Gassend afirmou que o homem é um
animal, La Mettrie concluiu: o homem também é uma máquina.
Como se vê, dado que cada pensador propende a situar-se num destes níveis da
realidade, cada um procura descrever e ressaltar esse nível como sendo o mais fundamental.
Daqui vêm as várias escolas filosóficas que, em verdade, são várias classes de uma só Escola.
Por causa disto diz Ortega: “– contra o que o profano acredita – as filosofias se entendem
muito bem entre si: são uma conversação de quase três milênios, um diálogo e uma disputa
contínuos numa língua comum que é a própria atitude filosófica e a presença dos mesmos
bicórneos problemas” 53. Mais: “Dir-se-ia que a razão se fez em estilhaços antes de começar o
homem a pensar e, por isso, tem este que ir recolhendo os fragmentos um a um e juntá-los.
Simmel fala de uma «sociedade do prato quebrado», que existiu em fins do século passado na
Alemanha”54. Ora bem: esta filosofia que é a Terceira Jornada (sendo a primeira a grega, e a
segunda, a renascentista), como é a da síntese, deve procurar ver o mundo de todos os níveis,
o universo, de todos os mirantes.
A intuição emotiva, como temos visto, é um modo de situar-se frente às coisas,
imbuído dum sentimento místico, como um contemplar a obra de Deus, ou sentir Deus através
de suas obras. Este embevecer-se ante as coisas, pode ser um sentimento estético se nos
ocupamos com a beleza, com a harmonia, e a linguagem para a comunicação deste sentimento
será a poesia, a pintura, a música e todos os demais recursos de que se valem as artes. E pode,
também, tal sentimento e emoção ser místico, religioso, como o de quem, reverente, contempla
as obras de Deus. O salmista que escreve: “Os céus proclamam a glória de Deus e o
firmamento anuncia a obra de suas mãos”55, e esse poeta não pode passar despercebido; ele
sente uma emoção face ao infinito, face à beleza e harmonia do universo, e esta sua intuição
emotiva bem poderia servir de premissa às suas conclusões filosóficas. Espinosa apresenta sua
moral como se fossem demonstrações de teoremas geométricos. Parece não haver intuição
emotiva nenhuma alimentando aquela massa de argumentos. Todavia, em dado momento,
Espinosa mostra onde estava o fogo que mantinha toda aquela ebulição racional, e é quando
diz, como se fora um místico: “Nós sentimos e experimentamos que somos eternos”. De igual
modo, no passado, aquecia o coração de Plotino, e o de Santo Agostinho, o mais vivo
sentimento de Deus, conforme suas obras o atestam: suas intuições eram emotivas.
Já Fichte, Schopenhauer e Nietzsche, cada um a seu modo, fazem tudo decorrer da
vontade. O eu quer ser e afirma-se a si mesmo; põe-se a si mesmo, primeiro como vontade, e,
depois, como pensamento. Os animais destituídos de pensamento sabem desejar, sabem querer.
E quando a evolução chegou ao nível do homem, e este se pôs a pensar, fê-lo porque o quis.
Se não houvesse a vontade de ser, não teria sido possível surgir o pensamento. Para ser, os
entes todos agem; e agindo, realizam-se. Neste desejar ser que leva ao agir, o ente humano
encontra resistências, depara-se com obstáculos, com dificuldades, encontra problemas que
excitam o pensamento no sentido de os resolver, e, com isto, transpõe os obstáculos, vence as
resistências, supera as dificuldades, adquire o saber. Foi assim que o homem se tornou um
decifrador de enigmas, um solucionador de problemas. No princípio, logo, era a vontade de
ser, de que nasceu a ação sem pensamento. A ação encontrou obstáculos que são problemas,
obrigando a pensar as soluções. Se não houvesse a vontade de ser, nenhum ente se abalaria à
ação; se não houvesse a ação, não haveria barreiras a transpor, nem problemas por resolver;
sem o esforço por resolver problemas, não haveria o pensamento. Logo, o pensamento decorre
da vontade, e esta nasce no eu vivo – da vida. O pensamento não tem causa em si mesmo; ele
decorre como conseqüência da premissa maior da vida, com trânsito pela premissa menor da
vontade. O pensamento existe como instrumento da vontade que quer realizar, e quer realizar

53
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 170
54
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 168
55
Salmo 19, 1
53

para realizar-se, para afirmar-se como ser. Eu, vontade, ação, obstáculos, soluções (pelo
ensaio-e-erro), pensamentos, eis o sexteto que move o mundo cuja criação, em primeiro lugar,
exigiu houvesse o Eu-Vontade do Criador.
Deus quis o mundo, e por isto, pensou-o, e não que primeiro o pensou, para depois o
querer; em pensando-o, traçou as linhas no seu pensamento, que são as leis, e estas modelaram
a substância – criou o mundo. O mundo existe por um ato do querer de Deus; e assim como
ele, as nossas realizações, inclusive a de nós mesmos, seguindo o esquema divino, decorrem do
ato de nossa vontade. Ninguém age por razões claras; age por imposição da vontade, por
sentimentos, e até contra as razões claras, de modo que, depois, se é obrigado a racionalizar as
ações, a justificar a conduta nascida do querer. Esta é a razão por que Aristóteles, antes de
Schopenhauer, chama ao homem de animal metafísico. Os outros animais apenas desejam e
agem; mas o homem deseja, age, e depois justifica seu agir com razões. Goethe procurando,
em versos, o que era no princípio, escreve: “No princípio era o Verbo... No princípio era o
Senso... No princípio era a Potência... Agora é que atinei: No princípio era a Ação.” 56. Ora,
ação não há sem vontade; portanto, no princípio era a Vontade.
Mas, o que é a vontade? Acaso é ela essência? Essência ela não é, porque não se aplica
a ela as categorias dos objetos ideais. Então, é substância? Não pode deixar de sê-lo, visto
como é corrente considerá-la como uma forma de energia moral, pelo que se fala no poder da
vontade ou na força de vontade. Se a vontade é força, é, então, energia, donde classificar-se
entre as energias-substâncias. Se a vontade pode ser forte, fraca ou nula, então há gradação
desta energia moral, semelhante ao que ocorre com as demais energias, por exemplo, com o
calor, pelo que se pode aplicar a ela o princípio de polaridade. Em rigor, o oposto da vontade é
a sua negação total, como se verifica com o calor cujo oposto é o frio. Mas o frio é apenas
menos calor, e ainda a zero grau centígrado há calor. Zero grau ainda é calor, e tanto, que
certos animais das regiões frias costumam aquecer-se na água a essa temperatura, quando a do
ar caiu para vinte, trinta, quarenta, sessenta graus negativos. Se o oposto do calor é o frio, o
contrário do querer é o não-querer.
Como já o dissemos, a intuição é como uma perpendicular baixada de um ponto a um
dado planimétrico; se esse for o da razão, nossa intuição será formal; se for outros
planimétricos, ela será volitiva, emotiva, etc. E podemos ir subindo, em altura, pela
perpendicular, atravessando os vários níveis do mundo, pois que todos eles têm
correspondência em nós. Suponhamos que o mundo é uma esfera constituída de camadas que
são os níveis. A perpendicular baixada a partir da calota periférica cortará todos os níveis rumo
ao centro, como se fora raio da esfera. Como desse centro não poderá passar, ele será o nível
do Absoluto, e que fundamenta todos os demais. Na hierarquia das intuições será esse o mais
profundo, além do qual não se poderá mais descer. Nós estamos, neste caso, descendo em
profundidade pela hierarquia dos níveis, a fim de achar aquele basilar que não se fundamenta
em nada, e fundamenta a todos os demais. Vamos supor que descemos, significando, este
descer, alcançar cada vez maior profundidade.
Neste caso, a casca do universo é o nível do mundo espontâneo, do mundo à mão, que
os nossos sentidos apreendem sem esforço, e é o da intuição sensível. Sua correspondência
em nós é o mundo das imagens refletidas em nosso psiquismo. Abaixo das imagens situa-se o
universo das essências, dos conceitos que nos dão a inteligibilidade das coisas. Abaixo deste
nível está o do querer da vontade. Descendo mais, verificamos que a mesma vontade se
sustenta sobre a vida.
Porque, se tudo tem por assento a vontade, não é qualquer vontade que alicerça tudo,
senão a vontade de viver, a vontade de ser. Ora, o adjunto restritivo “de viver” modifica o
termo vontade, e tanto que se em vez de “de viver”, fosse “de morrer”, a mesma vontade
conduziria ao aniquilamento, à morte, que não à vida. Portanto, o alicerce da vontade é a vida,
que sem vida não há querer.
56
Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV - 80
54

E só se quer viver quando, ou se é feliz, ou se tem esperança de o ser. Assim, a vida


busca nortear-se à conquista da felicidade, para o que, emprega os instrumentos que criou para
esse fim, sendo um deles a inteligência, a razão. A razão foi criada pela vida para servir a esta
na conquista do bem-estar e da felicidade, tal qual nos servimos da vista e da locomoção para
nos dirigirmos às nossas metas, aos nossos objetivos, aos nossos destinos. Todos buscamos a
felicidade, e o próprio viver é prazer. Não é só a férrea necessidade que move a vida, mas a
alegria, o gosto, o prazer. Voar é prazer, e é por isso que alguns entes quiseram voar um dia, e
hoje as aves voam. (Fritz Kahn). A vida busca o prazer, e, no sofrimento, até os animais se
amoitam, enfurnam-se, tristes, macambúzios, esperando pela morte. A alegria, o prazer, move
o mundo da vida e determina o querer. Não o querer viver a qualquer custo, senão, o querer
viver feliz, e no caso de infelicidade se interpõe a morte. Este é o sentido da vida que move a
vontade que se lança à ação que enfrenta os obstáculos que excitam o pensamento. O
pensamento soluciona os problemas vencendo os obstáculos; a ação se realiza; a vontade se
satisfaz, e a vida se expande em gozo, em alegria.
A felicidade é o estado da vida, e se o estado de felicidade se muda para o de
desventura, então, o querer viver também se muda para o querer morrer. Só a esperança
numa outra vida feliz, ou a profunda inconsciência animal podem manter vivo o ente vivo,
mesmo em estado de sofrimento extremo. O fundamento de tudo, então, não é a vontade, mas,
a vida da qual brota a mesma vontade de viver, vontade de prazer, vontade de alegria, de
felicidade. Porventura, é possível ainda descer mais rumo ao centro da esfera?, ou já o
atingimos, pelo que não há mais descer? Teríamos nós chegado ao Absoluto, à base que
alicerça tudo e não se funda em nada? Não. Ainda não é o centro; há mais descer!
Viver é prazer, e por isso os entes querem viver. E como a vida cria os entes? Acaso,
cria-os auto-suficientes, não precisando uns dos outros? E cada um bastando-se a si mesmo?
Não. Cria-os complementares para a união. Os entes todos são polarizados desde o elétron e o
núcleo atômico, até o homem e a mulher, indo ainda destes acima para as construções sociais
até o Estado. Eros, o amor, interliga tudo em unidade. Eros é o princípio de integração,
princípio ou essência cujo conteúdo ou substância é o Amor. O amor é a energia-substância
na base da vida, ou, na base da vida está o amor que, já de si, é alegria; este amor força a vida
a querer e a buscar a felicidade que não pode acontecer senão pelo interligamento, dado que a
vida cria seres opostos e complementares para a união. Ora, o oposto do amor é o egoísmo
que leva à desintegração das partes egoístas, indo a dissolução até seu termo na morte que é a
exaustão total da vida. Daí que, com o egoísmo, vem a infelicidade, a dor e a morte. O
fundamento da vida é o amor. O amor impõe à vida criar entes diferenciados, complementares
para a união ..., união que traz a felicidade que determina o querer viver. Eis a cadeia de
profundidade, vindo do centro para a periferia, de baixo para cima até a superfície: Amor -
vida - vontade - ação - obstáculo - pensamento. O amor é o fundamento primeiro que tudo
embasa, não só porque foi no estado dessa Energia-Substância primordial que Deus se deu
nos Filhos, senão que estes subsistem porque se amam, e enquanto se amam, e, impelidos pelo
amor, querem viver, querem ser. No princípio da cadeia vista atrás, há pouco, está o amor, e
no fim dela, o pensamento que tende, pelo enriquecimento contínuo, a se tornar sabedoria. O
pensamento vence os obstáculos e realiza a ação nascida da vontade de ser feliz, vontade
imposta pela vida impulsionada pelo amor. No princípio está o amor, e, no fim, a sabedoria.
Como os extremos se tocam, amor e sabedoria se confundem, sendo a sabedoria a essência do
amor, e este, a substância da sabedoria. Platão colocava no pináculo das formas
hierarquizadas, a Forma das Formas, a Forma do Bem. Mas que é o Bem? O Bem é o Amor.
Logo, a Forma do Bem é a Forma do Amor, é Eros, como princípio que é de integração...,
cujo princípio oposto é Anti-Eros ou Egoísmo.
O Ser, Deus, pois, é o Amor-Sabedoria absolutos, sendo esta a última base, o centro
da esfera cujos raios vão dar à superfície onde se situa a razão, por sua natureza superficial,
planimétrica. Basta apenas subir mais um degrau ou nível, e estaremos na casca periférica do
55

mundo espontâneo do qual temos intuições sensíveis. Descendo pela perpendicular baixada da
superfície da esfera, este raio aprofunda-se até dar no centro, sendo a deste centro, a intuição
basilar por excelência; daqui por diante não há mais descer, porque se há chegado ao
Absoluto, à máxima intuição afetiva como Amor-Sabedoria.
Tal, o raciocínio que se nos impõe, se nossa suposição for a de que o mundo é uma
esfera de conceitos hierarquizados da periferia em que se situa o relativo, para o centro onde
está o Absoluto. Tudo isto, não nos esqueçamos, com correspondência em nós que, tal qual o
mundo, nos apresentamos como um todo.
Podemos, todavia, intuir Deus como Amor..., para depois descer dele; e será que ele
criou os Filhos de sua Energia-Substância? Para criá-los, pensou-os, e seu pensamento se
tornou a lei a que as coisas estão sujeitas. Ainda assim, no começo da cadeia estará o Amor
que Quer ... dar-se nos Filhos, e por isto se lança à Ação de os criar, para o que os Pensa, e
este pensar de Deus é a lei que os plasma a eles da Substância Amor. Amor no começo e
Pensamento no fim; e como os extremos se unem em Deus, por isto, ele é Amor-Sabedoria,
que é o mesmo que Substância-Essência, sem primazia de um sobre outro aspecto, visto que
ambos pertencem ao mesmo nível hierárquico, e o segundo não pode Ser se o primeiro não
Existir.

Capítulo IX

O EQUÍVOCO DE SCHOPENHAUER

Descartes parte da intuição de que o Pensamento fundamenta tudo; para Hegel, o


alicerce primário, intuitivo, é a Razão Absoluta; para Fichte, o que há por baixo de tudo é o
Eu Absoluto; para Schelling, é a Harmonia Absoluta; para Schopenhauer, a Vontade
Absoluta é sobre que tudo se assenta. Partindo, cada filósofo idealista, da intuição fundamental
que lhe pareceu alicerçar tudo, daí erigiu o seu sistema. Deste modo, todos os filósofos
modernos tiveram sua raiz em Kant que afirmara isto: conquanto a razão seja impotente para
chegar ao Absoluto, ela aspira ao Incondicionado. Pois este Incondicionado que tudo
condiciona é o Absoluto. Logo, a razão aspira o Absoluto. Daí que todas as filosofias
absolutistas nasceram em Kant.
Não obstante, Schopenhauer faz da Vontade um Absoluto, para depois insurgir-se
contra esse Absoluto. O idealismo transcendental de Kant, portanto, é o ponto de partida para
Schopenhauer, mas o seu ponto de chegada é Buda, afastando-se Schopenhauer, nitidamente,
da escola oficial kantiana que pontificava na Alemanha, e influenciava o resto do mundo. Sua
filosofia da redenção pessimista tinha por objetivo ensinar, racionalmente, como conseguir a
negação da vontade de viver, qual o fizera Buda pelo misticismo. Porém, como Buda,
Schopenhauer também não inclui em sua doutrina o suicídio, porque como diz, o suicida não
56

nega sua existência em quaisquer condições. O suicida nega-se a viver em determinada


condição, e não, em quaisquer condições. Suicida-se porque a vida lhe nega algo que quis
muito e, ou não o pode obter, ou perdeu-o quando o tinha. A redenção só é possível quando
não se quer nada, nem mesmo viver em quaisquer condições, e se assim mesmo vive, é para
aborrecer-se da vida, consistindo isto numa como ginástica que reforça o espírito na negação,
de sorte que, se sobrar dele alguma coisa após a morte física, natural, esse algo continuará,
alhures, irredutível, no mesmo firme propósito de aniquilar-se, até chegar ao nada total.
A nenhum filósofo idealista, porém, ocorreu assentar tudo sobre o Amor que, embora
não seja o Ser pela Essência, o é pela contraparte Substância. A ninguém lembrou que este é
o fundamento precípuo, a intuição primária, basilar por excelência, sobre a qual as demais se
embasam. Tão fundamental é o amor, que Schopenhauer não pôde deixar de implicitá-lo,
quando tentava colocar a vontade por alicerce, pelo que se contradiz em toda a sua obra.
Considerando-se ele o profeta duma nova era, achava sua obra estupenda, formidável, e,
temeroso de que o tempo lhe fosse exíguo para concluí-la, rompe nestas palavras vocativas:
“Ó acaso! Soberano deste mundo do pensamento, deixa-me viver e permanecer tranqüilo
alguns anos ainda, porque eu amo a minha obra como a mãe ama seu filho. Quando ela
estiver madura e lançada à luz, então exerce o teu direito e reivindica o interesse sobre o prazo
concedido” 57.
Se a vontade é o fundamento de tudo, o que veio fazer aqui a frase: “porque eu amo a
minha obra como a mãe ama seu filho”? Schopenhauer, então, queria terminar sua obra
porque a amava? Porque a amava, só por esta causa a queria, e se a deixasse de amar,
cessada a causa da vontade, nesse ponto cessava o querer? Se o querer tem causa, o
fundamento não está no querer que é o efeito, mas na causa primeira que não decorre de
outra causa, e essa é o amor. Se a vontade fosse o alicerce primário, não se lhe poderia achar
uma causa; se a vontade fosse a causa primária, quem quisesse alguma coisa, a queria
porque sim, a queria por querer. Porém, quer porque se ama? Então a causa do querer está
no amor; ora, se o querer tem uma causa, o fundamento é a causa, e esta causa
fundamental é o amor. Logo, o amor é o alicerce primacial por excelência, e não, a vontade
que, depois, brota dele. Mais:
“A consciência profunda, mas em estado de simples sentimento, daquilo que acabamos
de elevar ao estado de noção distinta, preserva, como dissemos, o próprio ser dotado de razão
de ver a sua existência envenenada pelo pensamento da morte; é o que efetivamente lhe dá essa
coragem de viver que sustenta tudo o que vive e que o faz prosseguir galhardamente avante
como se a morte não existisse, ao menos por todo o tempo em que ele ama e procura a vida;
o que não impede, contudo, que quando a morte se lhe apresente em realidade, ou mesmo
somente na imaginação, e ele tenha de fitá-la face a face, não seja dominado pelo medo e não
procure por todos os meios salvar a própria vida” 58.
Que significa esse “ao menos por todo o tempo em que ele ama e procura a vida”?,
quando o assunto se refere a ter vontade de viver porque sim? Essa consciência profunda,
onde está sediada a vontade de viver, é a que impede seja a existência envenenada pelo
pensamento da morte; é a que dá a coragem de viver, sustenta tudo o que vive, faz
prosseguir galhardamente todo o vivente, como se a morte não existisse, “ao menos por todo
o tempo em que ele ama e procura a vida”; é ainda a tal consciência profunda que produz o
medo de morrer, fazendo o ente vivo defender sua vida por todos os meios, fazendo tremer
mesmo quando a morte se apresenta só em imaginação, quanto mais quando ela se mostra em
realidade face a face. Só que tudo isto que corre por conta da consciência profunda ou da
vontade de viver, ficou na dependência de o ente vivo amar, e por isto, procurar a vida.
Quer-se viver, porque se ama a vida. E se ela se tornar aborrecida, cheia de sofrimentos
insuportáveis, referta de grandes desilusões, então se passa a odiar a vida. O que ocorre, neste

57
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, X e XI, Prefácio. O grifo é nosso.
58
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, 37. O grifo é nosso.
57

caso, com o querer da vontade, visto ter-se invertido o sentido do amor? Mudado o amor à
vida em ódio e desprezo a ela, neste mesmo ponto, mudada a causa, o motivo da vontade, esta
se inverte de querer viver em querer morrer. Que é, logo, que está antes da vontade como
fundamento, senão o amor? Para ser a vontade a base de tudo, absoluta e autônoma, como
pretende Schopenhauer que ela seja, havia ele de ter escrito: ao menos por todo o tempo da
duração da vida que se subordina a um inexorável querer fundamental, absoluto, autônomo,
de modo que a vontade independe do amor ou do ódio que qualquer ente vivo possa ter à vida.
Como qualquer irracional, o homem seria, então, um condenado a viver a qualquer custo,
sendo-lhe o suicídio um ato absolutamente inconcebível. Mas não. Os suicídios, todos os dias,
estão aí relatados pelos jornais, como uma prova irrefutável de que a vontade de viver nasce
de um fundamento mais remoto que lhe é a causa – o amor à vida. Diz mais, o pensador
pessimista:
“Eis a vontade que se afirma. O oposto, a negação da vontade de viver tem lugar
quando o conhecimento aniquila o seu querer; os fenômenos isolados que reconhece não
agem mais sobre ela com motivos para estimulá-la; antes, na concepção das idéias que refletem
a sua própria imagem e lhe ensinam a reconhecer a essência do mundo, encontra um sedativo
que acalma e a leva a anular-se livremente a si mesma” 59 .
Se “o conhecimento aniquila o seu querer”, isto é, o querer da vontade que subestá
como fundamento, então o conhecimento pode mais que a vontade. Como, logo, é a vontade
autônoma, absoluta, se pode ser vencida, suplantada por algo que criou de si através da vida?
Neste caso, como o conhecimento pode aniquilar a vontade, mais forte é ele que ela, e na luta
entre a razão e vontade, vence a razão. Por conseguinte, é a razão a absoluta, que não, a
vontade. Como gostaria Hegel de ouvir esta conclusão! Como se vê, nesta frase, o sistema de
Schopenhauer se reduz ao de Hegel, ao da Razão Absoluta como base de tudo. Tiremos outra
conseqüência:
Se a vontade de viver depende de “motivos para estimulá-la”, e o maior dos motivos é
o amor à vida, primeiro: a vontade de viver está subordinada a motivos, pelo que não é
autônoma, nem absoluta; e segundo: como o maior dos motivos é o amor, temos que é este o
fundamento primário de tudo, e não, a vontade.
E partindo ainda da afirmação de Schopenhauer a respeito do império da razão sobre a
vontade, podemos tirar esta outra conclusão: se o conhecimento, a razão, tem poder sobre a
vontade para aniquilá-la, também, igualmente, o terá para reforçá-la, dependendo de como é
esse conhecimento. Se a fereza, maldade e dores do mundo fizeram a Schopenhauer concluir
que melhor é a extinção total que a vida, descoberto que o mundo já veio do caos, do
aniquilamento, para onde Schopenhauer pretende retornar, sua pretensão se torna como num
nadar contra a correnteza. Descoberto que o mundo é mau, perverso, porque se acha, em
parte, invertido, o caminho não será o do retorno ao aniquilamento, mas o avanço para frente
no sentido da retificação, do endireitamento. Tal conhecimento, ao invés de aniquilar a vontade
de viver, dá-lhe novo alento para prosseguir. E o próprio Schopenhauer já havia chegado a
este conhecimento quando conclui:
“As dores e as misérias são, pelo contrário, outras tantas provas em apoio, quando
consideramos o mundo como obra da nossa própria culpa, e portanto como uma coisa que não
podia ser melhor. Ao passo que na primeira hipótese (a de Deus ter criado este mundo como
ele é), a miséria do mundo se torna uma acusação amarga contra o criador e dá margem aos
sarcasmos, no segundo caso aparece como uma acusação contra o nosso ser e nossa vontade,
bem própria para nos humilhar. ( ... ). De um modo geral não há nada mais certo: é a pesada
culpa do mundo que nos causa os grandes e inúmeros sofrimentos a que somos votados; e
entendemos esta relação no sentido metafísico e não no físico e empírico. Assim a história do
pecado original reconcilia-me com o antigo testamento; é mesmo a meus olhos a única verdade
metafísica do livro, embora aí se apresente sob o véu da alegoria. Porque a nossa existência
59
Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, 40. O destaque é nosso.
58

assemelha-se perfeitamente à conseqüência de uma falta e de um desejo culpado...” 60. Pois


então? Se “nada há mais certo” que “é a pesada culpa do mundo que nos causa os grandes e
inúmeros sofrimentos a que somos votados”, era só ter prosseguido a concluir a partir dessa
premissa, e teria chegado a entender que este mundo, dadas as suas condições de egresso do
Caos, não podia ser melhor; que, se ainda está muito ruim, cumpre-nos a nós melhorá-lo; que
o jeito é tocar por diante, gemendo e chorando, sendo absurdo e loucura pretender, num
esforço contra a correnteza, retornar ao não-ser donde viemos.
Todavia, os fatos anotados por Schopenhauer a respeito do mundo são válidos, e foi da
observação aguda deles que partiu o pensador para induzir sua doutrina pessimista. Cumpre-
nos, portanto, retornar às observações de Schopenhauer, e intuir a causa remota da maldade e
fereza do mundo. Conseqüentemente, a verdade terá de consistir em uma filosofia positiva, de
afirmação, que explique por que o mundo é mau, ignorante, referto de aflições, fadigas, dores
e males. Dado que todas as dores e misérias do mundo têm sua causa remota na origem
caótica do universo, é imperiosamente necessário que se saiba como, por quem, de que, por
que e quando surgiu o Caos, e, deste, o universo. E o conhecimento disto não só imprime
novo alento à vontade de viver, como dá um sentido superior à existência.
E o Caos se originou do esfriamento, e, depois, por inverter-se o amor de parte dos
espíritos celestes diretamente criados por Deus da sua Substância-Amor; por causa da
inversão do amor, esses Filhos, de amorosos que eram, se fizeram egoístas; então tiveram de
forjar uma vã filosofia, uma estéril ciência, para justificar seu egoísmo, ou seja, seu amor
invertido. Tal falso conhecimento reforçou a inversão, a negação do amor. E como o amor
cria, integra, edifica e constrói, o egoísmo descria, desintegra, demole e destrói. De tais
destroços, no mais extremo desfazimento, se originou o Caos de que se vem reconstruindo o
universo por Evolução. Assentado com fatos e provas que há Evolução, não há outro caminho
para o pensamento, senão aceitar que tenha havido a Involução..., visto que Deus, para ser
como o supomos, não podia ter criado a sua inteira negação, o mais inteiro, medonho,
furibundo e danoso Caos.
Buda, como Schopenhauer, apresentou sua doutrina como se fora a de um Fichte pelo
avesso. O não querer, ou não desejar nada, é o caminho proposto por Buda para chegar ao
não-ser, à completa dissolução do indivíduo no todo, de sua consciência individual na
consciência cósmica ou Nirvana. Na individuação, no desejar ser, está todo o mal; por isto, o
último desejo a ser extirpado é o de querer individuar-se, o de querer afirmar-se como ser. Ora
bem; se o não desejar nada, que é uma forma de rebelião, leva ao não-ser, pela recíproca,
pelos caminhos de Fichte e de Dilthey, desejar e querer leva à individuação, ao ser.
Mas desejar o quê? Acaso o egoísta constrói quando se fecha em si mesmo e se isola,
em vez de, pela sabedoria, dilatar ou expandir seu egoísmo? O egoísta quer tomar tudo, e
crescer com o que usurpou aos outros, sem dar nada a ninguém. Aqui está o seu querer que o
destrói, em vez de fazê-lo crescer, porque suas vítimas se defendem, afastando-se, que esta é a
mais suave forma de reação. Com isto o egoísta, se o é em grau extremo, fica confinado em si
mesmo, e todo o auxílio lhe é negado. É deste modo que ele se desgasta e se exaure no não-
ser. Fichte e Dilthey achavam que a vontade cria, e que a não-vontade, isto é, a vontade de
não-ser, coerente com Buda e Schopenhauer, leva ao aniquilamento total. Pois aí está: a
vontade atuante, firme e decidida do egoísta em grau extremo, que tudo quer só para si, tende
a anulá-lo também no não-ser. A vontade de Cristo que anela o mundo redimido pelo amor,
do sofrimento e do mal, não é, qualitativamente, diferente da de todos os grandes
conquistadores egoístas que assolaram a Terra com ferro e fogo, nas suas execráveis guerras
de extermínio. A vontade não vai além de uma força-instrumento como todas as demais formas
de energia que podem, indiferentemente, ser aplicadas para o bem ou para o mal. O não
desejar nada da dupla Buda-Schopenhauer, atentemos bem, ainda é exercício ativo da vontade
que consiste em querer o aniquilamento ou o não-ser. Ainda para isto, sem a vontade
60
Artur Schopenhauer, Dores do Mundo, 12. O parêntese e o destaque são nossos.
59

desperta, atuante, ativa, nada se consegue, porque é muito mais difícil nadar contra a
correnteza, do que se abandonar a ela. Esta é a razão por que se pode afirmar dos budistas o
que Vieira escreveu dos cristãos: os budistas o são de meias, porque crêem em Buda, mas não
crêem a Buda; crêem em Buda, porque crêem nele; mas não crêem a Buda, porque não crêem
ao que ele diz, pelo que é dúbio que haja algum crente budista em condições de entrar no
Nirvana. Se crêssemos a Cristo, nosso mundo ocidental seria hoje um paraíso, e se os budistas
levassem Buda a sério, o populoso (!) oriente amarelo, de há muito, já, se tinha extinguido.
Contudo, o fundamento primário não é a vontade, mas o amor, e o que ama busca o
outro com o qual se integra numa união proveitosa para ambos. No mesmo ponto em que um,
generosamente, quer dar de si e do seu, recebe, em contrapartida, o que os outros têm, e lhe
falta. No entanto, para que esse um possa ter interesse para os outros, precisa valorizar-se,
necessita tornar-se desejável. E é por isto que ele se põe em ação de afirmar-se como indivíduo
inconfundivelmente específico, tentando atingir o fim supremo de ser único em si mesmo. Rico
de valores pessoais, atrai, para si, os de polaridade contrária com o quais se integra, formando
novas unidades, agora, sociais. Por que quer o homem ser homem, e a mulher, mulher? Não,
porque sim, mas porque o impõe o amor. A posição do outro obriga a que se oponha o eu, não
como igual, mas como diferente até à oposição, dado que só os contrários se atraem, se casam,
se integram. Então, a vontade quer o quê? Pois não outra coisa senão aquilo que impõe o
amor; e o amor impõe ser o complemento do outro para a união.
Não se quer por querer ou porque sim, a esmo, sem finalidade, sem meta; quer-se por
um motivo, e o motivo por excelência é o do amor. O amor leva em si o interesse que
movimenta a vontade que desencadeia a ação que encontra resistências que obrigam a pensar,
a conhecer. O conhecimento vence os obstáculos que impediam a ação de realizar a vontade
originada do interesse do amor. Logo, o amor cria e move tudo, sendo a vontade um elo
apenas da cadeia, ou seu instrumento de realização. Quem ama alguma coisa, põe sua vida a
serviço desse amor que pode ser a riqueza, o poder, o saber, a arte, a ciência, e ainda algum
ente humano ou divino. Quando São Paulo dizia: não sou eu o que vivo, mas Cristo que vive
em mim, afirmava que seu amor é Cristo a cujo serviço pôs sua vontade, sua vida. Sete anos
de pastor Jacó serviu a Labão, por Raquel, porque ela, seu amor, polarizou seu querer, sua
vida. E Santo Agostinho: meu amor é meu peso; por ele vou a toda parte que vou.
O objeto do amor move o amante, sendo ele, o objeto, que põe o sujeito em ação,
agora sim, esta ação encontra resistências, obstáculos, e o sujeito se ocupa em decifrá-los, em
entendê-los, transformando-se num solucionador de problemas. Daí que, com muita
propriedade, se diz, do termo filosofia, que significa amor à sabedoria; primeiro é preciso
que haja o amor no sujeito pelo objeto, para depois este objeto ser buscado.
Conseqüentemente, na raiz do saber está o amor, e a inteligência nasceu naquele que, amando
a vida, quis ser, e, para sê-lo, para afirmar-se, lutou, sofreu, angustiou-se, mil vezes perdeu o
sono, e cem mil meditou, ensaiou, esquadrinhou problemas sem conta, chorou frente ao
inevitável, sempre levando no peito a mais férrea e obstinada vontade de realizar-se..., não para
nada, mas para um fim. Iludido por imagens e fantasias, perdido, sem rumo, sem norte, sem
bússola, como Júpiter, toma nuvens por Juno; cai em si, reflete, arrepende-se, traça novos
rumos, anda, corre, tropeça, cai, levanta-se de novo, até poder um dia alcançar a finalidade do
homem que é ser sábio e santo, e santo porque sábio, e, para isto, há de gastar número sem
conta de existências corporais na matéria densa.
Se no nível periférico da nossa vida espontânea temos intuições sensíveis; se num nível
um pouco mais abaixo podemos ter intuições formais; se, aprofundando mais ao longo do
raio rumo ao centro, deparamos com as intuições volitivas, e, depois, com as emotivas,
místicas e estéticas, indo-nos ao fundamento primeiro, no centro, daremos com as intuições
afetivas, e daqui por diante, não há mais descer, porque o amor é o alicerce primordial por
excelência, que tudo embasa, cria, nutre e faz crescer. O Amor é a Substância de Deus
esparzida no Universo e individuada nos seres que, por isto mesmo, se querem, se buscam, se
60

interatuam dos elétrons e núcleos atômicos ao Universo. Deus não está imanente no Universo
só como essência das coisas, senão, também, como substância, embora (atenção a isto),
modificada, degradada e invertida por causa da Involução que aconteceu, e que agora se
reendireita por Evolução. Santo Agostinho estava certo: o Amor de Deus move o Sol; e o
estava, porque antes dele acertara Platão: o Universo está cheio de Eros e vai movido por
Eros.
Só que Platão cuidara que o nosso mundo é sombra, irrealidade, ilusão, o que,
absolutamente, não o é: nosso mundo é a realidade pelo avesso, invertida, negativa, como
uma fôrma ou negativo fotográfico. Ninguém diria que seu saldo devedor numa conta bancária
é ilusão, só porque a dívida é a negação do haver. A dívida é tão real quanto a posse; apenas
que se mostra no contrário, no negativo do possuir, inferior ao não ter nada. Não possuir é
estar a zero; ter saldo negativo é estar abaixo de zero, tendo-se de expender real esforço,
trabalho e energia para chegar a zero, isto é, ter pago a dívida. Tal qual, nosso mundo é real,
porém, em parte, abaixo de zero, tendo estado pior antes do que é hoje, quando era inteiro
Caos medonho, danoso, furibundo, formidável.
Não se infira do exposto, todavia, que somente somos, com Espinosa, panenteísta,
achando que Deus está em Tudo como essência. Não só Deus está imanente em Tudo como
essência, como pensara Espinosa, senão que Ele, também, o está como substância; e Ele não
só está manifesto nas coisas, estas formadas do unibinário essência-substância, senão,
também, que Ele paira muito acima desse Tudo com transcendentalidade inacessível para a
razão, mas intuível pela hiperconsciência, em todos os sentidos, tridimensória. Para a intuição
global (não uma, mas todas juntas), o Universo total, formado deste nosso e do Mundo
celeste, é uma formidanda esfera suspensa no seio do Oceano infinito da Energia-Substância-
Amor do qual se individuou, semelhante a uma onda encapelada que se individuou da água do
mar. Desse Oceano infinito da divina Substância, o Universo total formou-se, nutre-se, vive, e
respira. E pode ser que o Criador dos mundos tenha formado outros Universos dos quais não
podemos ter ciência, por causa de estarem fechados em suas curvaturas além das quais suas
luzes não passam, do mesmo modo como nossas luzes se acham confinadas pelos limites do
nosso Universo total. Se fôramos habitantes de um átomo, como iríamos saber da existência
do átomo vizinho que, com o habitado por nós, forma uma única molécula? Como, logo, saber
da existência das outras moléculas que são as mini-galáxias que compõem o mini-universo de
uma célula viva? Como poderia um neurônio cortical ter ciência do universo-homem?
61

Capítulo X

ONTOLOGIA E METAFÍSICA

Lavoisier afirmou que, na natureza, nada se cria e nada se perde, mas tudo se
transforma. Esta sua sentença filosófica de base heracliteana, se especificou na química por
outro enunciado ou lei: numa reação química, o peso dos reagentes é igual ao peso dos
produtos da reação. Que uma coisa se transforma em outra, isso foi a primeira observação do
homem; daí que o princípio de causalidade é o primeiro na história da vida, estando ele já na
base dos reflexos condicionados pré-instintivos, conforme Pavlov o demonstrou. A esta
associação e estímulos, o primeiro como causa do segundo, Bertrand Russell deu o nome de
“inferência fisiológica”. Abaixo dos instintos, no pleno domínio dos reflexos naturais, a vida
já sabe inferir, associando a causa ao efeito que se lhe segue. E a esta associação de estímulos
(causa - efeito) Pavlov deu o nome de reflexos condicionados.
Se um acontecimento antecipa outro em que se transforma, então, toda causa produz
um efeito que é causa de outro efeito, e assim sucessivamente; pela recíproca, toda causa é
efeito doutra causa, e assim por diante até remontar-se a uma Causa primária incausada. Tal o
exige o pensamento, e esta Causa incausada foi, sempre, a preocupação dos filósofos. Se, pois,
uma coisa se transforma em outra, deve haver uma substância primeira da qual a cadeia de
transformações começa. Como era de esperar-se, a filosofia, já nos seus balbucios, ocupou-se
em procurar a causa primária de tudo, a substância primordialmente antecedente.
Para Tales de Mileto, era a água o começo de tudo; para Anaximandro, era o
“apeiron”, uma pré-coisa indefinida; para Anaxímenes, era o ar; para Empédocles, eram
quatro os elementos básicos: ar, água, terra e fogo. Pitágoras faz exceção à regra, porque,
para ele, o princípio genital de tudo é o número, por sua natureza ideal, imaterial, abstrato.
Procurando pelo antecedente causal, Heráclito descobre que tudo é movimento,
transformação, em que nada é, num constante vir-a-ser ou tornar-se. O que existe é o
movimento. Como o movimento era então totalmente, e ainda o é em parte, inapreensível pela
razão; e como a inteligência só sabe lidar com o que é racional, Heráclito findou os seus dias
num pessimismo resignado, crente de que a humana inteligência é impotente para alcançar o
princípio das coisas. Por que? Porque as coisas são contraditórias em si mesmas em dois
momentos sucessivos, pelo que elas são isto, agora, e, daqui a pouco, já não são mais isto.
Deste princípio de contradição heracliteano da lógica natural que enuncia: na
natureza nada é idêntico a si mesmo; tudo se contradiz; deste princípio, Parmênides extraiu
o princípio oposto: na lógica formal, tudo é idêntico a si mesmo, nada se contradiz. Esta
contraposição parmenídica marca o início da filosofia propriamente dita, mas reparemos bem:
os pensadores anteriores a Parmênides, exceto Pitágoras, buscavam um princípio causal, um
começo de tudo numa substância basilar; procuravam eles quem existe em si, visto que as
demais existências eram decorrentes. Como existir vem de “ex sistere”, que significa estar no
tempo, eles procuravam algo que implicasse tempo, ainda que infinito tempo, ainda que tempo
eterno. Aqui, agora, o reparo que pedimos: a contraposição parmenídica deslocou o esforço
do pensamento da substância para a essência; do de que as coisas se constituem, do de que
são feitas, para o que elas são. Ora, o ser duma coisa não indica a sua matéria, a sua
substância, o de que ela se constitui. Procurava-se por quem existe (temporal, causal), e
Parmênides apresenta o que é, a essência, por sua natureza intemporal, incausal. Neste
instante da história do pensamento, o que se buscava, quem existe?, foi reduzido ao o que é,
e, inadvertidamente, este o que é (essência - intemporal), foi tomado como sendo quem existe
(temporal). E a inadvertência foi mais longe: foi dado como sendo realidade este o que é
puramente ideal. Se realidade vem de res = coisa, e coisa não há sem substância, como podia
ser realidade aquilo que não possuía substância? Aquilo que era essência pura? Aquilo que era
pura idealidade abstrata? Desde que Parmênides fez a transposição do real, substancial,
62

objetivo, concreto, para o ideal, subjetivo, essencial, abstrato, neste ponto, tinha-se de
substituir o termo realidade por idealidade. Mas não; baralhou-se tudo, pelo que ficou tendo
razão Cícero que disse: “Nada existe de obscuro que não se possa encontrar nos livros dos
filósofos” 61.
Neste caminho aberto por Parmênides foram achados todos os pensadores até Kant;
com este encerrou-se o ciclo parmenídico, isto é, o que intentava descobrir o fundamento
primeiro racional, o Ser que é, mas que não existe, dado que existir é estar no tempo, ser
temporal.
Se a razão, como o afirmara Kant, é impotente para chegar ao Ser fundamental,
contudo, acrescenta ele, ela aspira ao Incondicionado que tudo condiciona. Então, por isto,
foi que surgiram os filósofos absolutistas pós-kantianos interessados em, de novo, procurar o
fundamento na substância, exceto Hegel, não mais substância física (água, ar, terra, fogo),
porém, substância moral (vida, eu, emoção, sentimento, vontade).
Podemos verificar que uma espiral, partindo da periferia em que se situa o mundo
substancial dos primitivos filósofos milesianos, rapidamente se fechou no centro, no primado
racional de Parmênides. Munido deste primado, Sócrates, com sua maiêutica, principiou, na
periferia das coisas, outra espiral que passou pela dialética de Platão, indo fechar-se, de novo,
no centro, com a lógica de Aristóteles. Esta espiral respirou por todo o tempo da Idade Média.
Com o Renascimento, a espiral que se fechara no centro, na lógica aristotélica, de aí, se abriu
de novo para as coisas, a começar por Descartes e terminando por Kant. A seguir, o
fundamento racional parmenídico-aristotélico-kantiano, foi substituído, no centro da espiral,
pela substância de novo, exceto para Hegel, não mais substância física, mas substância moral,
de modo que três outras espirais se abriram: a do Eu Absoluto - Fichte; a da Harmonia
Absoluta - Schelling; e a da Vontade Absoluta - Schopenhauer, Nietzsche e Dilthey. Este é o
esquema que vamos desenvolver neste capítulo.
Os primeiros pensadores se perguntavam: quem existe? É preciso examinar as
credenciais daquilo a que se dá a qualidade de existir. Daí a idéia do em si, e do em outro,
distinção que os gregos já souberam fazer. Quem existe? Eu, as coisas, o mundo, o universo
existimos. Esta é a resposta mais natural e espontânea que ocorre a todos os não filósofos, ou
aos mesmos filósofos quando estiverem despreocupados do rigorismo, da disciplina mental, o
que vale dizer, em todas as horas do dia em que não estiverem a filosofar. Esta resposta
natural leva, do latim, o nome de res que quer dizer coisa, donde realismo. Tal resposta: eu,
as coisas, o mundo, o universo existimos, poder-se-ia chamar realismo espontâneo, natural.
Todavia, apenas esboçada esta concepção, não encontrou nenhum filósofo antigo ou moderno
que a esposasse. Basta um instante de reflexão para verificar-se que nem todas as coisas
existem, ou porque, ao serem examinadas, se desvanecem, ou porque a outras maiores se
reduzem. Ora, o existir pleno, a existência do em si, é singular, primordial, abarcando em sua
unidade todas as outras existências. Aquilo que não consiste em nada maior, e é consistido de
tudo o que se lhe acha abaixo; aquilo cujo tempo (existência) abarca todos os demais tempos
(existências menores); esse é o que, por excelência, Existe.
O realismo começou na Grécia tendo como ponto de partida o realismo espontâneo que
existiu desde o aparecimento do homem. Com isto, os gregos se fizeram fautores da filosofia.
Os demais povos, antes dos gregos, tiveram cultura, religião, sabedoria, porém, não, filosofia.
Entretanto, vai para cinqüenta anos, sobretudo a partir de Schopenhauer, que se começou a
falar em filosofias orientais, hindu e chinesa; no entanto, tais concepções da vida e do mundo,
ainda que geniais, não são expostas como o fizeram os gregos, com método, com reflexão,
deixando exposto o modo como chegaram a esta ou àquela conclusão. Os gregos acreditavam
que, com a razão, poderiam chegar ao fundamento das coisas. Antes dos gregos a sabedoria se
fazia só de vislumbres, de intuições, e paravam nisto. Quem, pois, existe? qual o Ser em si
mesmo, e não em outro? Este foi o primeiro discernimento operado pelos filósofos que
61
Will Durant, História da Filosofia, 18
63

desejavam conhecer o princípio, não só em sentido existencial de começo, mas, também, de


fundamento substancial primário.
Neste esforço de procurar o princípio, Tales, natural de Mileto, cuidou que a coisa
fundamental de tudo é a água. Para ele, tudo consiste em água, e esta não consiste em mais
nada; a água é o princípio geral a que tudo se reduz, e da qual tudo decorre ou deriva,
enquanto que ela em nada mais consiste; nada mais há abaixo (ou acima) dela, a que ela se
reduza.
Corria, então, o século VII a.C. Outros pensadores discordaram de Tales, como
Anaximandro para quem o princípio das coisas, conquanto material, não era algo determinado,
conhecido, e sim um quê denominado por ele apeiron, uma pré-coisa indefinida que nem era
água, nem terra, nem ar, nem fogo, mas o princípio genital de tudo.
Para Anaxímenes, no entanto, o fundamento de tudo era o ar.
A primeira síntese destas idéias está em Empédocles para quem as coisas se derivam,
não de um, mas de quatro elementos que eram água, ar, terra e fogo. Estes quatro elementos
de Empédocles dominaram a filosofia, estiveram presentes na física de Aristóteles cujo
prestígio se estendeu por toda a Idade Média.
Pitágoras, mais ou menos contemporâneo de Empédocles, e este próprio, foram muito
importantes para a germinação da filosofia. Foi Pitágoras o primeiro filósofo a quem ocorreu a
idéia de que as coisas não se derivam de nenhum princípio material, e sim do número. O
verdadeiro ser, o em si, não é nenhuma coisa, nem quatro, nem todas reunidas. Este
fundamento primacial não se toca, não se ouve, não se vê, não é sentido, mas intuído pela
inteligência. É ao número que todas as coisas se reduzem, visto que todas são quantitativas,
extensíveis e numéricas. Sendo um amante da música, observou Pitágoras que os sons
diferentes das cordas da lira se devem a seus comprimentos e a suas grossuras. As cordas
curtas e finas dão sons agudos, ao passo que as longas e grossas os dão graves. Daí que
qualquer corda, quando presa, produz um som cuja freqüência é a relação do seu
comprimento; se presa ao meio, se a um terço, se a um quarto, se a um quinto da extensão,
podiam dar, respectivamente, oitavas, quintas, quartas e terças sonoras. E assim como os
números governam a música, tudo o mais se rege por eles, donde se poder falar da harmonia
numérica de tudo, harmonia das esferas celestes, harmonia do universo, este que é um grande e
infindo concerto sinfônico em que cada coisa é chamada a dar sua nota. As dissonâncias na
música, nas cores, nas coisas são feiuras; as dissonâncias orgânicas são doenças; as
dissonâncias no moral são defeitos ou vícios; as dissonâncias no social são guerras, dores e
males. De um lado a harmonia, e de outro, a desarmonia, tudo são números. Deste modo,
Pitágoras foi o primeiro pensador genial que pôs as coisas materiais na dependência de algo
imaterial que é um princípio de razão numérica, geométrica, matemática.
Aqui já começa a contraposição entre ser e existir, que fincou pé na filosofia a
principiar com Parmênides. O problema se resumia em procurar quem existe, ou o que existe,
e Pitágoras não disse quem existe, mas quem é. Os números, as relações aritméticas,
algébricas, geométricas e trigonométricas não existem, porque são intemporais, mas são,
como essências. Quem seria capaz de nos dizer em que tempo começou a existir o Pi
matemático, não quando foi descoberto, mas quando principiou a ser essa relação da
circunferência pelo seu diâmetro? Isso não teve princípio ou começo no tempo, nem causa,
nem é espacial. Ora, quem pergunta quem existe?, busca uma substância que, sendo a origem
de tudo, está no tempo, é temporal, causal, espacial, etc., propriedades dos objetos reais.
Pergunta-se por uma coisa, e o interlocutor responde outra, e o ouvinte faz de conta que
entendeu a resposta. É como se alguém perguntasse: de que substância se compõe a laranja? e
o outro respondesse: a laranja é um esferóide que contém, no seu interior, dez ou onze gomos
prismóides triangulares com um dos lados semelhante ao fuso duma superfície esférica. Aqui
principiou a bifrontalidade da filosofia..., e também, a sua confusão.
64

No entanto, a filosofia começa, verdadeiramente com Heráclito e Parmênides, este,


natural de Eléa, e aquele, de Éfeso, duas cidades extremas do mundo grego, como se alguém,
como o notara Ortega, quisesse colocar toda a filosofia dentro desses dois respeitáveis
parênteses. Vivendo mais ou menos na mesma época, mas, em extremos opostos da Grécia,
Heráclito e Parmênides são dois expoentes contrários do pensamento, e esse antagonismo
passou a ser, para sempre, o bifrontal cariz da filosofia.
Parmênides, o “louco da Razão”, como o chama Ortega, levou o raciocínio lógico ao
extremo nunca dantes nem depois igualado, operando a cirurgia sumamente drástica que foi o
separar a razão da vida, e corajosamente seguiu com aquela, e só com aquela, deixando o resto
imensamente maior, mais imperioso, necessário, perdido no mais confuso caos. Se a Lógica
conduz a isto, quão insensata é a Lógica, e muito não é que Ortega chame a Parmênides, o
“louco da Razão”!
Nascido por volta do ano 520 a.C., Parmênides e Heráclito principiaram o pensar no
ano 500 a.C. Parmênides não cita nomes de pessoas amigas ou inimigas, vivas ou mortas, e
envolve os seus escritos em mitologia avoenga, já descrida, mas que terrivelmente soe persistir
nas formas literárias. Heráclito, ao contrário, fala às claras. (Ortega): “não se anda com
reparos. Pede que Homero e Arquíloco sejam chicoteados - frag.42. Chama ignorante o mestre
Hesíodo porque não sabe nem o que são noite e dia - frag. 57 - acusa Pitágoras de farsante -
frag. 129 (duvidoso) - e a ele, a Hesíodo, a Xenófanes e a Hecateu acusa-os de ocultarem com
uma mixórdia de muitas idéias, sua ignorância da única coisa que é preciso saber - frag. 40.
Vislumbra em Tales um títere com cabeça, dele dizendo: “foi o primeiro astrônomo”. Do lobo
em pelo!” 62.
Estes homens eminentes que Heráclito azorraga com o seus impropérios e insultos, já
haviam falecido, e contra os ainda vivos nada refere, não por respeito ou medo, mas por
absoluto desprezo. “Heráclito cita apenas Bias e Tales sem insulto de contrapeso. E que diz
deste é simplesmente que foi o primeiro astrônomo. Portanto, Heráclito aprecia o modo de
pensar que Tales inaugura, mas dá a entender que, em comparação com o seu próprio saber, o
de Tales e de seus continuadores é um saber especialista. e não é mais que astronomia” 63.
Nunca, ninguém, senão, mais recentemente, Nietzsche, sentiu sua imensa superioridade
em relação aos demais homens, como Heráclito. Parmênides, como não se retira em pessoa,
retirara-se no seu estilo para a longínqua e alta esfera dos deuses imortais, de onde transmite a
sua mensagem. Heráclito, que se sente um “rei” entre plebeus, uma águia entre pardais, retira-
se, ele próprio, da vida pública, pela rejeição à sua sacra magistratura. Sentindo-se como um
homem perdido numa ilha de macacos, no dizer de Schopenhauer em se referindo ao gênio, os
quais não possuem a virtude fundamental de reconhecer que o homem lhes é superior,
Heráclito considera seus concidadãos como sem remissão, não valendo a pena qualquer
esforço para salvá-los. Por causa do seu desprezo eletrocutante pelo vulgo, retira-se para um
templo solitário de Artemis, e não contente ainda, retira-se, de novo, para uma inóspita e
selvática montanha, e como um tonítruo deus, dispara seus raios sobre os mortos famosos,
porque os vivos já não eram mais que macacos. Muito mais tarde exclamaria Nietzsche: “Se
houvesse Deus, como suportaria eu não ser Deus?”.
Heráclito foi, incontestavelmente, um homem de gênio penetrante, antecipador de
inúmeros problemas filosóficos contemporâneos. Perpassando seu percuciente olhar por todas
as soluções dadas até então ao problema de quem existe, discute-as todas de maneira
agressiva. Para Tales de Mileto, o que existe é a água; para Anaxímenes é o ar; para
Anaximandro, o que existe é a pré-coisa de matéria amorfa, confusa, indefinida – o apeiron
(seria o Caos primeiro, origem do universo?); Pitágoras assenta que só o número existe, e
Empédocles não se contenta senão com quatro elementos que são água, ar, terra e fogo.

62
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 234
63
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 240
65

Entretanto, diz Heráclito, quando atentamos para as coisas dadas como basilares, que,
por isto mesmo, foram postas por fundamento, verificamos não só que se mudam, senão que
ainda se transformam, de modo que nunca são o que foram antes, nem serão depois o que são
agora. Conseqüentemente, a realidade flui. Tudo muda, tudo anda, tudo corre, tudo se
transforma, tudo é um tendo-sido e um estando-a-ser contínuo, em que as coisas, assim como
as porções d’água dos rios, passam, e não voltam mais. Nunca, deste modo, nos banhamos
duas vezes no mesmo rio. O que existe não é nada estático, parado, e sim, o fluente, o
movediço, o dinâmico. De maneira que as coisas, porque se mudam num devir constante,
nenhuma em particular, nem todas no geral, podem pretender o qualificativo de existir em si
como independente de qualquer outra causa anterior. As águas dos rios e dos mares produzem
as nuvens que dão as chuvas, e estas formam os mananciais, os rios que correm a encher os
mares. O gás carbônico do ar é retido, decomposto e fixado pelos vegetais em alimentos,
folhas e frutos, e os animais, ingerindo tais hidratos de carbono, desfazem essa fixação,
recompõem o gás carbônico, devolvendo-o à atmosfera, voltando tudo como era dantes. Se os
ciclos quais este são viciosos, reversíveis, então o que existe é a circulação da substância, seja
pelo simples movimento, seja pela transformação. Nada existe como é, senão um só momento,
fugaz aqui, mais lento ali, mas sempre um tendo-sido e um vir-a-ser. O que existe é a
mudança, pelo que a realidade está constantemente sendo o que ainda não é, e deixando de ser
o que foi. Mudança, movimento, transformação, eis a realidade que existe. Com isto Heráclito
antecipou o que, depois, se lê em Plotino, no passado, e modernamente em Bergson.
Esta constatação da realidade, por Heráclito, conferiu-lhe um ceticismo resignado, uma
crença firme de que o problema de quem existe é demasiado grande e complexo para a frágil
inteligência humana, absolutamente incapaz de descobrir o que fundamentalmente existe por
detrás ou debaixo de todo esse movimento e transformação.
Tinha já Heráclito concluído a sua obra, e neste mesmo século VI a.C., surge na
história da filosofia uma grande figura, Parmênides, grande, porque assim a considerou Platão.
Este que nunca elogia ou vitupera, que sempre é cortês e comedido ao referir-se aos outros
pensadores, pasma-se frente a Parmênides, e não pôde furtar-se de reputá-lo “o grande”.
Como os heróis de Homero, Platão sempre qualifica Parmênides com o honroso título de “o
grande”. Então, no momento em que Heráclito pôs termo à sua atuação na filosofia, aparece o
maior pensador de seu tempo, o gênio que muda por completo a face da filosofia, da
metafísica, propelindo o pensamento humano por um caminho de que não se saiu até hoje.
Dois mil e quinhentos anos são passados, e ninguém pôde desprender o Ser da imobilidade em
que o fixou Parmênides, e por isto ainda, o grande Parmênides. Este grande filho de Eléia,
deste modo, provocou a maior revolução do pensamento, e que dura até hoje, faz vinte e cinco
séculos, pois ainda não conseguimos sair dos trilhos em que nos meteu Parmênides.
Heráclito serviu de resistência sobre que se firmou Parmênides para projetar-se para a
frente e para o alto; seu pensamento nasce, cresce, multiplica-se, adquire esplendor ao
empreender sua crítica a Heráclito.
Parmênides encara a solução que deu Heráclito ao problema metafísico, e verificou que,
segundo o irascível efésio, uma coisa é e não é ao mesmo tempo, uma vez que está a fluir do
tendo-sido ao estando-a-ser. Analisando esta idéia do vir-a-ser, do devir, o grande eleata
descobre a contradição lógica de que o ser é e não é em dois tempos sucessivos. Ora, como
pode acontecer de que o que é não é? Ou é, ou não é; o que não pode ser, são as duas
afirmações juntas. Assim, a realidade heracliteana possui, entranhada, uma contradição, e isso,
diz Parmênides, é absurdo, e, por isto mesmo, ininteligível. É, pois, preciso opor ao absurdo de
Heráclito a inteligibilidade de um princípio de razão que consiste nisto: o ser é, e o não-ser
não é. Bastaria a determinação desta verdade intuitiva, axiomática, luminosa para que
Parmênides tivesse dado enorme contribuição à filosofia. No entanto, foi além, construindo
uma metafísica até então desconhecida, a do Ser que é.
66

A revolução radical provocada por Parmênides na filosofia, consiste em que,


imperceptivelmente, os filósofos passaram da interrogação quem existe?, para a quem é?
Porque existir, como já o dissemos, vem de “ex-sistere” que significa estar no tempo, ser
posto fora, no tempo. E para que algo possa ter tempo, precisa mover-se ou, pelo menos, ter
em si implícito o tempo. Quando dizemos: o Ser existe, entendemos que existe pela
Substância, porque só esta implica tempo. Ainda que este existir do Ser seja a eternidade,
ainda assim, o não-movimento do Eterno é existir, porque a eternidade implica, envolve a idéia
ou relação de tempo, e todos os demais tempos, ou breves ou longos, consistem na eternidade.
Os tempos menores consistem nos maiores, estes, em outros ainda maiores, até o limite da
eternidade, pelo que esta implica idéia ou relação temporal. Pelo lado da Essência, entretanto,
o Ser não existe, porque as essências, os objetos ideais são fixos, intemporais, conforme a
primeira propriedade de tais objetos vista anteriormente. As essências são, mas não existem,
ao passo que as substâncias existem, mas não são. A união inextricável da essência com sua
substância em todos os entes do universo, todos que consistem no Ser, faz que este e aqueles
sejam e existam. Assim, o Ser substancialmente existe, e essencialmente é. Por causa da
duplicidade de ser e existir, o verbo substantivado ser implica já existência, e é por isto que
está lá no Gênese: a luz seja, ou haja, ou exista. A luz não era antes, e agora é; não existia, e
agora existe.
Ora, os filósofos até Heráclito andavam a procura de quem existe, temporal, e o que é
temporal existe mas não-é. Se não-é, não pode ser apreendido pela razão. Daí o desalento de
Heráclito face ao fluir das coisas no tempo, ficando até hoje o problema, racionalmente, sem
solução. E Parmênides, sem resolvê-lo, torce-o; em lugar de responder à pergunta quem
existe?, responde outra que, até então, ninguém havia formulado, nem ele próprio: quem é?
Daí o dizer: o ser é, e o não-ser não é. A pergunta quem existe? dos filósofos até Heráclito,
ficou sem resposta, e a solução de Parmênides é impertinente, ou seja, não é pertinente, não
diz respeito ao problema proposto. Pois este não-ser que não-é não passa da substância que,
por sua própria constituição, por sua própria natureza, é feita de movimento e de
transformação, portanto, a que só existe. Deste modo, a filosofia passou a ser, desde estes seus
dois parênteses iniciais - Heráclito e Parmênides -, bifrontal, em virtude da dicotomia indevida
que se fez do Ser que é feito de Essência e de Substância, tomando Heráclito o partido da
Substância, e Parmênides, o da Essência.
Como essência e substância são oponentes e complementares a constituírem todos os
seres reais, todos os entes, todas as coisas, sem nenhuma exceção, o princípio da substância se
opõe ao princípio de razão. O princípio ontológico da lógica natural e que, portanto, envolve
a substância, pode ser enunciado: nada é idêntico a si mesmo em dois tempos sucessivos,
tudo se contradiz. Em oposição a isto, o princípio metafísico, e, por conseguinte, de razão ou
lógica formal enuncia: tudo é idêntico a si mesmo, nada se contradiz. Pois o princípio de
razão se refere à essência, ao Ser que é (objeto ideal, metafísico) ao passo que o princípio da
substância é o de contradição, de polaridade, e diz respeito ao ser que existe (objeto real,
ontológico). Como a filosofia, desde Parmênides, se ocupou só do ser que é, por isso esteve
adstrita apenas a meio Ser, a meia verdade. E os filósofos que se ocuparam só da substância
movediça e fluente foram principalmente dois: Heráclito e Bergson; porém, como refere
Ortega, Heráclito é imaturo, e Bergson, irracional.
Partindo do princípio de que o ser é, e o não-ser não é, Parmênides descobriu o que os
lógicos, depois, iriam chamar de princípio de identidade, pelo qual o ser é si mesmo, sempre
si mesmo, sempre idêntico a si mesmo. Em virtude deste princípio de que o ser é e o não-ser
não-é, princípio que ninguém, em sã consciência, pode negar, Parmênides já conseguiu deduzir
a primeira qualidade ou propriedade do Ser, que é a do ser único. Pois claro: não pode haver
dois Seres diferentes, porque o algo que distinguisse um do outro, seria no primeiro, mas não
seria no segundo; conseqüentemente, num ou noutro haveria uma negação de ser, pelo que ele
67

não-é. Pela recíproca, se houvesse dois seres idênticos entre si, eles não seriam dois, mas um,
visto como se coincidiriam entre si, encaixar-se-iam um no outro, com que ficariam um.
Outra propriedade é ser eterno; e fôra melhor se Parmênides dissera intemporal.
Eternidade é um tempo que não flui, sem começo nem fim. Se o Ser não fosse eterno, teria
tido princípio e teria fim; se tivera começo, teria nascido doutra coisa, e esse algo anterior
negaria o posterior em que se diferenciou; o primeiro estado negaria o segundo com quebra do
princípio de identidade; esse algo que diferenciasse o Ser anterior do posterior, seria o não-
ser, o que é absurdo. E se pudesse transformar-se em outra coisa diferente do que é, essa coisa
resultante também seria o não-ser em relação ao Ser pré-estante.
Pela mesma razão de ser único e eterno, o Ser também é imutável. Se mudasse,
quebraria o princípio de identidade pelo qual o Ser é si mesmo, fixo, sem movimento, sem
transformação, sem mudança. A mudança, a transformação, implicaria em que o ser deixe de
ser o que é, para tornar-se no que não-é. Por isto, o Ser, necessariamente, é imutável.
Depois de uno, eterno, imutável, é também infinito, quer dizer, não possui limites. Se
pudesse ser recortado num todo maior, esse todo maior seria o não-ser que estaria para além
do Ser. Por este motivo, o Ser é infinito 64 não possui “fines” ou limites; é ilimitado, infinito,
indefinível.
Poderia Parmênides ter acrescentado que o Ser é incausado, visto que não teve
antecedente nem começo, como intemporal ou eterno; que não possui em si, como Essência
que é, o princípio de contradição, pelo que não tem polaridade nem contrário, inversamente
do que ocorre com todas as demais coisas, todas polarizadas em virtude da substância. Poderia
ter afirmado que o Ser essencial, como ilimitado, indefinido, por isto é irrepresentável,
inimaginável; que não sendo mutável, que sendo fixo, é determinado, determinístico, logo,
sem liberdade; que não podendo alterar-se (de alter = outro; tornar-se outro), é impassível,
desconhece os sentimentos, sendo-lhe impossível ou gozar, ou sofrer, ou querer, ou amar.
Que, sendo fixo, não tem liberdade; e sendo impassível não tem vontade... não podendo
querer criar nada, e mesmo que crie algo sem o querer, para criar é preciso a substância, e
esta o que é? Que, sendo imaterial, não ocupa lugar no espaço, pelo que é inespacial, (em vez
de infinito) não podendo ser achada fora de nós, fora da nossa inteligência, ficando sem
projeção exterior, objetiva, concreta... por faltar-lhe a substância com que se revestir.
Apesar deste impossível que é a existência de um mundo ideal fora de nós, objetivo,
mas sem a indispensável substância, Parmênides conclui..., e esta conclusão indecorrente e
impossível, outra vez passou inadvertida, despercebida, burlando a vigilância racional dos
pensadores. Apesar de impossível a conclusão, Parmênides conclui que há dois mundos: este
nosso, em que vivemos, e o outro do Ser somente IDEAL, subjetivo, SEM SUBSTÂNCIA,
único, SEM TEMPO ou eterno, SEM ESPAÇO ou ilimitado, imóvel. Este nosso mundo
heterogêneo, vário, calidoscópico, colorido, de movimento, de transformações, de fadigas, de
ignorâncias, de males, de dores, de mortes é pura ilusão ou aparência. Vivemos iludidos como
quem supõe que o mundo é verde, ou vermelho, ou azul só porque porta óculos de vidros
dessas cores. A percepção sensível é falsa, irreal, e só o inteligível é real. Daí que há dois
mundos: o sensível e o inteligível, e esta distinção que o gênio de Eléia soube fazer, domina
toda a filosofia até o presente. Este mundo sensível que nos circunda e nos penetra por todos
os sentidos, parece real, porque está aí, à mão; todavia, quando tentamos entendê-lo, ele se
nos mostra contraditório face à lógica que simplesmente afirma: o Ser é, e o não-ser não-é.
Esse mundo que não-é, ou do não-ser, ou sensível, se opõe polarmente ao mundo inteligível
em que o Ser é, sem contradição. Incrível mundo é este do Ser puro: está fora de nós, mas
que não tem espaço; é objetivo, mas que não tem substância; existe, mas que não tem
movimento, nem tempo! E que tivéssemos, faz vinte e cinco séculos, aceito este absurdo até
hoje? que não pudéssemos ter saído desta prisão em que nos meteu Parmênides? É de

64
Tal como Parmênides usou o termo eterno em vez de intemporal, empregou o vocábulo infinito em lugar de
inespacial; o Ser, como pura idéia-sem-substância, não é espacial.
68

pasmar! ... Deste absurdo fundamental saíram todos os demais, dando, harto, razão a Cícero
que disse: “Nada existe de obscuro, que não se possa encontrar nos livros dos filósofos” 65.
A metafísica, desde Parmênides, se firma sobre esta base, o Ser que é, da qual se
levantaram aqueles pilares que são as qualidades do Ser, polarmente contrárias às do não-ser
(pluralidade, temporalidade, causalidade, mutabilidade, limitação, movimento, transformação,
polaridade), que são as mesmas dos objetos reais ou ontológicos, já citadas. Como este nosso
mundo sensível é contraditório, obscuro, ininteligível, não pode ser mais que pura ilusão e
falsidade, assim o entendia Parmênides. Este mundo falso que vemos, que tocamos com as
mãos, que sentimos, é ininteligível, incompreensível, ao passo que o outro, o inteligível, não
podemos ver, nem tocar, nem sentir, nem representar; contudo (pasmeno-nos frente à loucura
da razão!), é este o mundo real, verdadeiro, porque, sujeito às leis da lógica, sem contradição
do princípio de identidade, pode ser apreendido pela inteligência. Por este motivo, o
inteligível é o mundo real, autêntico e verdadeiro, enquanto que o outro, o da substância, é
aparencial, falso, ilusório, irreal.
Como se vê, desta primeira contraposição decorre a segunda de que sai a terceira. A
primeira consiste na pergunta quem existe?, e Parmênides, em vez de respondê-la, saiu-se com
esta afirmação impertinente de que o ser é. Ora, não foi isto, quem é?, que se perguntou,
mas quem existe? A segunda contraposição parmenídica foi chamar real a seu mundo das
essências, quando real vem de res = coisa, e nenhuma essência é coisa. O real é o que existe,
porque só aqui há o tempo, o movimento, a transformação, a coisidade. Pois,
inadvertidamente, tomou-se o puramente ideal por realidade, por coisidade. Desta segunda
inadvertência (a transposição do ideal para o plano da realidade) saiu a terceira que consistiu
na projeção do ideal para fora do indivíduo, mas isto, pasmemo-nos, sem o apoio da
substância (?!). Um mundo só de essências puras, abstratas, sem substância alguma, mas que
está alhures, fora de nós, é a mais arrematada loucura da razão, e custa crer que aceitaram
isto incontestáveis gênios! ... Primeiro: perguntava-se por quem existe? (temporal, espacial,
causal, substancial), e responde-se a pergunta: quem é? (intemporal, ideal, incausal, inespacial,
insubstancial). Segundo: este ser ideal, abstrato, subjetivo foi dado por Parmênides como
sendo a “realidade”, e, inadvertidamente, foi aceito, como tal, pelos filósofos. Terceiro: uma
vez que esta idealidade abstrata, subjetiva foi aceita como “realidade”, como “coisidade”,
como “objetividade”, então se procedeu a projeção desta falsa “realidade” para fora do
indivíduo, criando-se o mundo do Ser, colocado alhures, longe deste nosso mundo, mas,
aquele, sem substância alguma, sem espaço e sem tempo.
Como, todavia, a verdade não admite inadvertências, imprevidências, descuidos,
cochilos, e estas três contraposições passaram despercebidas, a filosofia tornou-se campo de
dissensões em que cada filósofo se supõe autorizado a tecer suas fantasias, a falar do modo
como lhe apraz, criando, cada um, um vocabulário seu, próprio, como se isto fosse
permissível. Lá vem Espinosa, e chama a essência de substância, o perfeito de completo, o
ideal de objetivo, objetivamente de subjetivamente, formalmente de objetivamente (Will
Durant), e que fique o estudioso a resolver sua charada geométrica, como se bastasse pôr uma
doutrina em linguagem matemática, para ela tornar-se verdadeira. Por que não se faz o mesmo
na física, na química e na biologia? e cada cientista não organiza seu vocabulário esdrúxulo?
Quando é que os filósofos vão organizar um vocabulário comum, coerente, sem
arbitrariedades? Se realidade vem de res = coisa, e que significa o mesmo que coisidade, real
é o sensível, e ideal, o inteligível. Ou os filósofos aceitam em dizer as coisas do modo como
elas têm de ser ditas, ou então, é fazer como Cícero que largou mão da filosofia porque,
segundo disse, “Nada há de confuso que não se possa achar nos livros dos filósofos” ! 66.
No entanto, não há quem não se curve, respeitoso, frente à genialidade de Parmênides,
visto que foi o primeiro a descobrir o princípio de identidade que esteia uma parte importante

65
Will Durant, História da Filosofia, 18
66
Will Durant, História da Filosofia, 18
69

da lógica formal, única pela qual se guia o pensamento. Por sua contraposição terceira,
projetou o Ser fora de nós, independente de nós, idêntico só a si mesmo, mas que coincide
com o que podemos racionalmente pensar dele; pois claro: esse Ser saiu da nossa intimidade,
do nosso pensamento, do mesmo modo como, mais tarde, e por outros caminhos, iriam fazer
os filósofos idealistas, a partir de Descartes. A maravilha de Parmênides foi a de que não
precisou (tal como também, os pensadores idealistas) sair de si para descobrir a autêntica
idealidade do Ser (que ele chamava realidade), e antes, pelo contrário, como se fora um
Descartes, tirou a lei basilar do Ser do seu próprio pensamento pleno de luz, imperecivelmente
belo e lógico. Os filósofos comparam-se ao bicho-da-seda que tiram o fio de si mesmos para
construírem seus casulos nos quais se fecham: depois saem as borboletas..., quando os bichos
não são cozidos. Como o Ser saiu de seu pensamento, coerentemente, as propriedades
essenciais desse Ser são idênticas às do pensar, e em bronze de vinte e cinco séculos, gravou-
se, com mão firme, esta frase rica de conteúdo metafísico: “Pensar e ser são uma e a mesma
coisa”.
O Ser, pois, ficou fixado na imobilidade, até hoje, feito só de pura Essência, carente de
substância, e só agora, com a Terceira Jornada da Filosofia, foi possível encher-lhe a forma
vazia e ideal da incriada Substância, do coeterno Amor. Um Ser só pensado, é um Ser feito só
de puro pensamento, um Ser subjetivo que só está em nós. Supô-lo fora de nós, sem
Substância alguma, é uma projeção do ideal para fora de nós no nada. Ou o Ser possui
Substância para poder situar-se fora de nós, ou é pura abstração só encontrável na nossa
inteligência, sem realidade exterior. Isto que é tão claro, evidente, peremptório, taxativo,
terminante, foi sempre o nó górdio da filosofia, porque como a Substância é não-ser,
ininteligível em si, todos sempre refugaram este ponto como faz o cavalo face a alguma coisa
que o amedronta.
Zenão de Eléia, famoso discípulo de Parmênides, muito citado em toda a filosofia
grega, partilha, por inteiro do pensamento de seu mestre, de que tira outras conseqüências.
Ocupa-se ele, sobretudo, com o movimento que considera ininteligível, ilusório, aparencial,
uma vez que é impensável, isto é, até então o era. Ora, segundo o princípio de identidade entre
ser e pensar, o que não pode ser pensado não-é; o movimento não pode ser pensado, logo,
não-é. Conseqüentemente, o movimento é outra das muitas ilusões dos nossos sentidos a que
estamos sujeitos. E para demonstrar sua tese, propunha o problema de Aquiles e a tartaruga.
Conquanto Aquiles fosse tido por homem dos pés ligeiros (ocus podas), não alcançaria a
tartaruga numa competição, desde que se desse a esta uma dianteira. No momento em que
Aquiles chegasse ao ponto de onde partiu a tartaruga, esta teria andado um pouco mais;
quando Aquiles tivesse vencido esse pouco, ela ter-se-ia adiantado mais um tanto. A distância
ir-se-ia tornando cada vez mais curta, mas nunca seria zero, porque a extensão é divisível ao
infinito. Zenão não queria afirmar que, na prática, Aquiles não ultrapassasse a tartaruga em três
pulos, e sim que esse acontecimento é ininteligível, ilusório, fantástico, irredutível à
matemática, isto é, até então, o era.
Proposto o problema a Diógenes, com o fim de demonstrar a ilusão do movimento,
esse principiou ostensivamente a andar, para provar o erro da tese de Zenão. Mas o eleata não
negava o movimento ilusório no mundo irreal do não-ser; o que afirmava era que o real é
pensável, donde ser e pensar constituírem uma e a mesma coisa; ora, o movimento contradiz
o princípio de identidade entre ser e pensar; como o movimento não podia ser pensado (até
essa época não o era), não possuía o caráter de ser. A prova de Diógenes era irracional, e, com
esta, pretendia ele refutar o argumento de Zenão. O que Zenão dizia é que o movimento não
pode ser pensado; ora, o impensável é irreal, é não-ser; logo, o movimento é ilusão. Aceita a
premissa de Parmênides de que o ser é, e não-ser não-é, de que saiu a conclusão lógica que
consiste na identidade entre ser e pensar, o argumento de Zenão, quanto ao movimento, é
apenas uma conseqüência do implícito na premissa parmenídica. Racionalmente, o argumento
de Zenão era perfeitamente válido, daí que Platão o incorpora à sua doutrina, não fazendo
70

nenhuma referência ao movimento no mundo do Ser, que é o mesmo do das Idéias-arquétipos,


visto que a idéia e ser são a mesma coisa.
Não se referiu Platão, mas não pode deixar de implicitar em sua doutrina o movimento,
a transformação, o espaço, o tempo, a substância, o não-ser. Poder-se-ia até armar uma
polêmica com Platão; eis o argumento:
Se não houvesse o movimento no topos uranos, o Demiurgo ficaria impedido de
formar as almas na cratera, de levá-las, depois, a contemplar as Formas imperecíveis do lugar
resplandecente, de conduzi-las, posteriormente, aos orbes planetários onde, após reencarnadas
e esquecidas do seu primeiro estado, iriam sofrer a atuação da Necessidade Cega, da Causa
Errante, com o fim de torná-las personificadas, diferenciadas, específicas, únicas em si mesmas.
Sem o movimento implicitado nos verbos de ação ou de movimento postos em destaque
(formar, levar, contemplar, conduzir), tudo isto seria impossível.
Sem uma substância, ainda que fluídica, ainda que etérea, ainda que espectral, não seria
possível ao Demiurgo plasmar as almas na cratera, porque elas eram obras de suas mãos e
exteriores a ele. Assim, se de uma parte ficavam as almas recém-formadas, e, da outra, o
Demiurgo fautor delas, então havia espaço objetivo entre essas entidades, e ainda, o espaço
objetivo, real, ocupado por elas. De uma parte se achava o Demiurgo, e, frente a ele, estava a
cratera (coisa) onde ele meteu a substância de que saíram as almas. De uma parte estavam as
Formas imperecíveis do lugar celeste, frente às quais foram postas as almas para contemplá-
las. Logo, as Formas imperecíveis ou Idéias-arquétipos estavam representadas, objetivadas de
algum modo, para poderem estar frente às almas, pois claro: não se pode ficar frente a Idéias
abstratas, subjetivas. Este estar em frente, em oposição a algo (objeto de objacere - jazer
contra), necessariamente, implica que esse algo é exterior às almas; logo, as Idéias, as Formas,
estavam objetivadas por representações exteriores.
Previnamos a réplica vinda de quem poderia dizer-nos que a contemplação das Formas
era puramente intelectual. A contemplação das Idéias, ainda que fosse intelectual, tinha que
ter uma fase anterior sensível, representativa, para tais Idéias se transmitirem às almas, visto
não se poder abstrair idéias do nada. As Idéias subjetivas, as Formas abstratas, tinham que
possuir suportes representativos. Como decorrência disto, da existência de representação
exterior das Idéias, ficam implícitas também as correlatas impressões sensíveis nas mesmas
almas. Contudo, há ainda um outro contra-argumento que a réplica poderia apresentar-nos:
poder-se-ia reconfirmar que a contemplação das Formas, das Idéias, era de fato só intelectual;
que tais Idéias, tais Formas se transmitiram às almas sem nenhum suporte exterior, sem
nenhum veículo sensível, mas por uma sabedoria infusa... na substância de que as almas
foram feitas na cratera do Demiurgo.
Então, por que o ato de pôr as almas frente às Formas imperecíveis? Se tais Formas,
tais Idéias-arquétipos, não possuíssem veículos nenhuns de manifestação, de exteriorização,
seriam puras abstrações, estando só na inteligência do Demiurgo. Ora, se para fazer as almas
captarem as Idéias, o Demiurgo empregou imagens, representações, frente às quais ele colocou
as almas, segue-se que, ao fazê-las na cratera, ele não infundiu nelas o conhecimento. Se essas
imagens representativas das Formas eternas ou Idéias-arquétipos, estavam frente às almas para
serem contempladas, é, então, que tais Idéias se mostravam objetivadas, exteriorizadas, o que
implica espaço e matéria (substância) para as representações, fossem estas figuras planas,
fossem formas tridimensionais. E para serem contempladas as Idéias como representações
exteriores, com o fim de, através destas, se transmitirem as Idéias-arquétipos gerais e abstratas,
fica implicitada também a existência de impressões sensíveis nas mesmas almas. Tudo, logo,
era um mundo sensível atrás do qual se ocultava o mundo inteligível, tal qual o nosso, apenas
que longinquamente distante da nossa Terra, e feito de substância etérea, fluídica, espectral,
luminosa, sublime.
No topos uranos, portanto, não só há espaço objetivo, substância, movimento, seres,
coisas, impressões sensíveis, como deduzimos, senão que nele há, também, a transformação...
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porque graças à ação-movimento do Demiurgo, uma substância que ainda não era almas, foi
metida na cratera de que saíram elas. O que ainda não era, passou a ser, isto é, transformou-
se. O ser das almas formadas saiu do não-ser da substância informe. A substância amorfa
tomou forma na cratera; o que antes não era, passou a ser o que agora é, com quebra do
princípio parmenídico de identidade. Substância, movimento, transformação, espaço, tempo,
não-ser, tudo inferimos dos textos de Platão, como existente no mundo das Idéias-arquétipos,
pelo que não só é aquele o mundo do Ser, senão também o do Existir.
Ora bem: o movimento é não-ser, porque impensável, visto que só o pensável é o ser,
segundo Zenão. E da substância que ainda não era almas, saíram estas; e quando há vir-a-ser
ou tornar-se, quebra-se o princípio de identidade conforme Parmênides. Logo, no lugar
resplandecente, também há a falsidade, a ilusão do movimento, da transformação, do vir-a-ser,
do devir, do não-ser. Conseqüentemente, o lugar celeste de Platão participa da irrealidade
vigente em nosso mundo de sombras, de falsidade, de ilusão, do não-ser, do mesmo modo que
este nosso mundo de sombras, segundo ele, participa da Realidade do mundo celeste. Esta
coparticipação do NÃO-SER pelo SER, do mundo de sombras pelo mundo pleniluminoso,
não se acha expressa em Platão, porém, ela está implícita, como o deduzimos. Deste modo,
assim como nosso mundo sensório, irreal, de sombras, participa da Realidade luminosa do
mundo do Ser, também este mundo do Ser, mundo das Idéias, longe está de ser puro (já que é
impureza o movimento, a transformação), participa, igualmente, do nosso mundo de sombras,
de irrealidades, do não-ser. Os dois mundos, o da luz e o das sombras são, reciprocamente,
coparticipantes. Luz e sombra em cima, e sombra e luz embaixo!
Parmênides afirmou que havia dois mundos: o do Ser e o do não-ser. Aquele mundo do
Ser ele chamou “Realidade” quando não passava de pura Idealidade subjetiva, porque
essencial, sem movimento, sem transformações. Todavia, não entrou em pormenores para
explicar como seria essa “Realidade” fixa, parada, não fluente, sem substância alguma, mas
miraculosamente exterior. Platão, porque entrou em pormenores, não pôde manter essa
“Realidade” parmenídica parada, senão que a fez mover-se, pelo que ela se tornou na
Realidade autêntica, heracliteana, tal qual a de nosso mundo. Há, portanto, duas Realidades: a
do topos uranos, luminosa, e a do nosso mundo, ensombrada. Qual, logo, é a diferença entre
os dois mundos, se ambos coparticipam igualmente do Ser e do não-ser? Ou o movimento e a
transformação são pensáveis, fazendo parte da Realidade, porque, implicitamente, Platão
mostrou existir no topos uranos, ou este participa da ilusão e do não-ser, tal como nosso
mundo participa da luz empírea, da luz do Ser.
Este argumento ficaria sem resposta, se fosse proposto a Platão; mas não o foi, nem o
gênio de Aristóteles se lembrou dele em sua crítica a Platão. Contudo, falta ainda o mais
importante a dizer:
Como hemos dito, se fosse proposto esse raciocínio a Platão, certamente que ele ficaria
encabulado, intrigado, porque tendo a intuição clara da verdade, estava impedido de dilucidá-
la racionalmente. No entanto, Platão estava certo, e, de fato, há os dois mundos, ou melhor, há
um só, mas que foi cindido em dois, o topos uranos e o nosso. Contudo, Platão nunca
resolveria o problema de racionalizar sua intuição, por lhe faltarem dois dados; não adianta
ser gênio: faltando um ou mais dados a um problema, ele fica sem solução. E, pois, que dados
são estes?
Nosso mundo é tão real quanto ao resplendente, apenas que, primeiro: se acha
invertido no negativo, no avesso, por efeito da Involução que precedeu a Evolução.
Segundo: o Ser não se compõe só de Essência pura, senão também da Substância que é, no
nível divino, o Amor. Como Platão não podia ter conhecimento da Evolução cientificamente
demonstrada, o que, necessariamente, implica tenha havido uma fase inversa de Involução ou
Queda; como não podia saber – primeiro: que matéria e energia são reversíveis entre si;
segundo: que quaisquer energias são transformáveis umas nas outras; terceiro: que por causa
disto Einstein propôs o termo energia-substância como denominador comum entre quaisquer
72

matérias e quaisquer energias; quarto: que, pelo princípio da conservação da substância, a vida,
que é algo, surgiu de algo anterior – o mundo dinâmico que se situa abaixo da vida; quinto:
que da vida não só surgem as energias parafísicas como a telergia ectoplásmica, como ainda
as forças morais, vontade, sentimentos; sexto: que a mais alta expressão do sentimento é o
AMOR, além do qual não há subir; que nada mais havendo acima do AMOR, este fica
absoluto, fica sendo Deus; sétimo: que sendo o AMOR Deus, foi desta ENERGIA-
SUBSTÂNCIA que ele criou o mundo celeste ou Primeira Criação; oitavo: que parte deste
mundo celeste esfriou-se de AMOR, inverteu-se no EGOÍSMO, resultando sua desintegração
e queda até o CAOS primeiro e extremo, do qual saiu nosso Universo por evolução; nono:
que nosso mundo participa do bem, da luz e do amor, na parte em que já se desinverteu, mas
que continua dominado pelo mal, pelas trevas, pelo egoísmo na sua parte ainda invertida;
décimo: que, portanto, e finalmente, não há salvação fora do AMOR. Como não sabia, então,
que o Amor é energia-substância, visto que não pode ser arrolado com as essências; por isto,
carente destes dados, Platão jamais solucionaria o problema, não lhe valendo ser o portentoso
gênio que foi.
Esta Energia-Substância, o Amor, é a Causa incausada, princípio e fim de todo o
Universo cindido em dois por motivo da Queda. Assim, se a pergunta primitiva dos filósofos
era quem existe?, a resposta será: existe a Energia-Substância de que tudo emana, e sem a
qual nada existe; e esta Energia-Substância é o Amor. Se, no entanto, a pergunta for: quem
é?, a resposta não poderá ser outra senão: o Ser é. E como este Ser implica a existência da
Substância, então ele é e existe; é pela Essência, e existe pela Substância. Todavia, se o
filósofo fizer, como Parmênides, a dicotomia do Ser, separando o aspecto Essência da sua
correlata Substância, então temos isto: a Essência é, mas não existe, ao passo que a
Substância existe, mas não é. O não-ser faz parte do Ser integral como Substância em si, e é
não-ser, por que inapreensível pela razão. O não-ser significa apenas que é um não-ser-
racional, do mesmo modo que o Ser (Essência pura) é um não-existir-substancial. Logo, o
homem não pode acercar-se do Ser só com sua inteligência, mas terá de fazê-lo com seu
coração juntamente; daí que o homem tem de agir como um todo indivisível para acercar-se
do Ser indiviso, e nesse todo que é o homem, entram sua razão e seus sentimentos, como já o
dissemos antes, e o vamos demonstrando no correr desta obra. Com a Queda, nosso mundo se
mostrou no negativo, no avesso, por isso que é egoísta (amor invertido), mau, feio,
desarmônico, referto de traições, de mentiras, de ilusões, de dores, de males, de fadigas, de
caducidade e de mortes, e tudo isto não existe no lugar resplandecente. O topos uranos e o
nosso universo compõem o Universo total, ou seja, a Criação. Quando tudo se tiver
desinvertido e retornado a seu primitivo estado, então tudo poderá ser apreendido pela razão,
isto é, poderá ser inteligido, embora a substância em si, a substância pura, continue sempre
ininteligível. Um exemplo disto temos no movimento (física) e na transformação (química),
ambos perfeitamente inteligíveis por suas essências (leis), embora, pelas substâncias, continuem
não-ser, isto é, não-racionais.
Antes de Aristóteles, não se tinha ainda descoberto a essência ou ser do movimento que
são suas leis. Nas leis, o movimento se congela numa fórmula matemática, e passa a pertencer
à esfera do fixo de Parmênides. E como procuramos reduzir tudo a leis, por isto, nossa razão,
nossa inteligência busca o imutável, o imóvel, o intransformável, o único, o inespacial e o
intemporal, nos objetos reais, pois os conceitos, as essências, possuem todas as propriedades
do Ser de Parmênides, por isso que, segundo este, ser e pensar são uma e a mesma coisa. Se,
de uma parte, estão na mesma canga o ser e o pensar, igualmente, da outra, em oposição,
fazem parelha a substância e o sentir. Desde então, temos o ser como inteligível, e a
substância do ser como sensível. Neste sentido parmenídico que ainda nos domina o
pensamento, a substância não é ser; porém, o nada também ela não é. Não é ser, mas é
subsistir, ou seja, que existe por debaixo como sustentáculo ou fundamento do ser indiviso.
Por isto é que, na maior e na melhor parte de nossa vida, e na de nós mesmos, temos de nos
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haver com o ininteligível, porém, que é sensível, que sentimos, que amamos ou aborrecemos,
que queremos com paixão, esta que nos obriga a agir, a vencer obstáculos e a conhecer. Tudo
isto dá corpo à parte mais importante de nós mesmos, que se denomina coisas da alma ou
moral. A substância do nosso moral é este complexo em si ininteligível, inapreensível pela
razão. A generalização deste nosso moral, no coletivo, deu nascimento à moral, ao consenso
comum, também substancial (vida - conduta), mas que, como tudo, tem sua ratio, sua
essência, a parte inteligível da moral é a ética ou código de preceitos e juízos morais.
A substância não é ser, porém é existência substantiva, substrução ou alicerce sobre que
se apoia o ser para tornar-se efetiva realidade, realidade objetiva, consistente; e tudo isto,
próprio da substância, a essência pura, o ser puro, não possui, pelo que fica sendo só pura
idealidade, só achada em nossa inteligência, sem realidade exterior, sem objetividade fora de
nós. Para que o ser seja e exista (cansemo-nos de o repetir), precisa revestir-se da
substancialidade, com a qual passa a ter realidade real, diferente da realidade ideal dos
gregos, ou apenas meia realidade, porque puramente ideal, subjetiva, abstrata, racional.
A substância pura sem essência alguma só foi possível existir no Caos primeiro;
todavia, no momento em que se formaram no seio do Caos mais inteiro, os primeiros cosmos
(ser) punctiformes, nessas partículas (ser) infinitesimais cessou o caos. Tais partículas, em se
diferenciando, até à oposição, em relação a outras, tornaram-se complementares dessas outras,
e, da integração delas, novas unidades maiores se formaram. A evolução vem do pequeno para
o grande, do simples para o complexo, do homogêneo para o heterogêneo. Se umas partículas
não se diferenciassem, não se tornassem negativas, opostas, complementares em relação às
outras, seria impossível a integração, a formação de unidades maiores. Só com a chave, sem a
fechadura, não se fecha uma porta. Estamos muito prevenidos contra a palavra negativo,
quando ela nem sempre representa o mal, e sim, o avesso, a oposição, o contraste. Quando
aparece o termo negativo, nós nos aquartelamos contra ele, firmes na idéia de que aí está o
mal. O saldo negativo de uma conta bancária não é um mal, pois com o dinheiro havido do
empréstimo, fizemos nossos negócios lucrativos. Porém, se malbaratamos o dinheiro, então o
mal não está no negativo da dívida, mas na má aplicação do dinheiro. Em oposição ao Ser está
o não-ser; todavia este não-ser significa apenas que não é racional. Trata-se apenas de uma
não-essência, do mesmo modo que a essência pura é uma não-substância, uma não-
existência, um inexistir. Platão, na sua velhice chegou a entender isto.
Quando é, logo, que o negativo é um mal? Apenas quando ele promove a
desintegração. A regra é perguntar: isto promove a integração? Se, a integração, então é bem;
se, a desintegração, então, mal. O egoísmo é o negativo do amor, ou o amor pelo avesso; e se
o amor integra, o egoísmo desintegra, sendo, por isto, mal. O vício é o negativo da virtude;
ora, a virtude agrega, congrega, promove a comum-união (comunhão), e o vício desagrega,
demole, desintegra; logo, a virtude é bem, e o vício, mal. A diferenciação sem a integração, é
caos, é mal; porém, a mesma diferenciação com a integração, é cosmo, harmonia, beleza, bem.
Neste sentido, o próprio mal pode ser um bem, quando sirva para excitar a reação do seu
contrário. Deste modo é que deve entender a frase de Goethe no seu “Fausto”, quando
Mefistófeles se define: “Quem sou eu? Parte da força que, empenhada no mal, o bem
promove” 67.
De igual modo, sem o negativo fotográfico, não se pode copiar o retrato em positivo;
sem a fôrma, impossível será o formado; sem o cunho negativo da prensa, não se podem fazer
moedas e medalhas; sem a matriz tipográfica negativa ou invertida, não se poderiam imprimir
livros e jornais. Assim também, se o elétron é negativo e móvel em relação ao próton positivo
e estático, um e outro é ser, porque cada um possui sua própria essência pela qual é. O
movimento é o negativo do imóvel, e Deus foi dado como fixo, imóvel, imutável; daí se
concluiu que o movimento é um não-ser, um como não-Deus, e por um pouco não se disse um
anti-Deus ou Diabo. Estamos fortemente habituados, fixados, nesta forma de raciocinar, de
67
Clássicos Jackson, XV, 85
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conceber. O movimento é não-ser, ilusão, mal? Pois no átomo, temos um exemplo em


contrário: nele, com seus movimentos velocíssimos, os elétrons enchem consigo suas órbitas,
dando rigidez e consistencialidade à matéria. Se tal movimento cessasse, a matéria se
desvaneceria com tudo o mais que se constrói dela. Para que a matéria exista, é necessário o
mover. Ora bem: se o movimento é absolutamente imprescindível, não pode consistir numa
imperfeição ou mal, e, conquanto negativo, é indispensável a que o ser real se objetive. Sem
ele, sem a substância que existe mas não é, o ser se resolveria em pura idealidade subjetiva,
abstrata. Se o movimento cessasse no átomo, tudo se reduziria a névoa, inclusive o cérebro de
Zenão que negou o movimento, pararia de pensar e de negar... Porque o movimento existe,
por isso há a matéria de que se constrói o cérebro que se ocupa em negar o movimento...
A substância que é toda movimento, se opõe ao ser ideal ou essência pura, como
antítese necessária à construção do ser real, objetivo, que, sem ela, o ser se torna pura
idealidade subjetiva, sem existência fora de nós, de nossa inteligência. Deste modo, se na
essência está a fixidez, na substância se acha o movimento. Graças à substância
febricitantemente móvel, a matéria existe; e porque ela existe, a vida pode construir um
cérebro capaz de apreender a antítese da mesma matéria que é a essência, permitindo-nos
pensar por conceitos e a ter intuições formais. Então, aconteceu o inusitado que faria a Deus
sorrir complacente da nossa ignorância, da nossa insensata lógica, insensata por ser
absolutamente irreal: acreditamos seja possível haver essências fora de nós sem substância
alguma. Pois neste impossível – quem o crera? – se resume, nada mais nada menos, que o
Deus da filosofia (!) que lucubrou, faz vinte e cinco séculos, desde Parmênides, o pensador da
Essência.
Então chegou a hora da síntese, e é esta: a Essência pura, sem substância alguma,
idealmente é, mas não existe na realidade; a substância pura, sem essência alguma,
realmente existiu no arrematado Caos, mas não é. Um extremo que é a idealidade pura ou
puro ser, temo-lo na nossa inteligência; o outro extremo que é a substância pura sem essência
alguma, o tivemos no Caos primeiro de que surgiu o universo por evolução. O ser objetivo, a
realidade real, impõe o duplo sentido de ser e de existir; o ser da essência, e o existir da
substância. Tudo o que disseram todos os filósofos está contido por esses dois parênteses
iniciais representados por Heráclito, o pensador da Substância, e Parmênides, o filósofo da
Essência, e só na união de ambos, na síntese entre tese e antítese, estará o acabado saber.
O movimento em si, por conseguinte, não é imperfeição, visto que é uma necessidade
do ser ideal para manifestar-se, para corporificar-se, para “coisificar-se” como realidade. Ele,
o movimento, é ainda o único recurso do finito para pôr-se em pontos diferentes do espaço.
Tal como o movimento, a transformação em circuito fechado, como o ciclo do elétron no
átomo, como o ciclo do carbono na vida, como o ciclo das águas nas chuvas, não é
imperfeição, mas o “respiro” ou pulsação da matéria, da vida, da natureza; assim também os
ciclos planetários, estelares, siderais são o “respiro” do Universo. Agora, a transformabilidade
evolutiva, essa implica imperfeição, porque o perfeito não evolui. A evolução é finita, e pára
no seu limite, como parou o martelo, como pararam os gametas masculinos e femininos, e
ainda os elétrons, os prótons, os átomos, as moléculas que se movem, mas não se transformam
a todo o instante, e se o fazem, é por força de circunstâncias bem conhecidas da química que
lhes incorpora as leis. Os caminhos percorridos nas mudanças possíveis, são conhecidos da
ciência, e, por conseguinte, perfeitamente inteligíveis, porque fixados em leis. Se o que é
minúsculo (átomo) fosse um vir-a-ser em circuito aberto, e não, fechado em sua constância ou
lei, como, sobre ele, e com ele, havia-se de edificar o grande e o complexo? Porém, um dia, até
o que é arqui-intrincado e complexo, e, por isto mesmo, em parte ainda caótico (a sociedade, o
Estado), terá atingido a sua perfeição, e a transformação evolutiva terá chegado a seu fim. O
movimento continuará a existir, mas a transformabilidade, no sentido de alçar-se à perfeição,
essa terá cessado. Todavia, outras transformações (exceto a evolutiva e a involutiva) e o
movimento, continuarão a existir. Ou isto, ou Deus e os espíritos celestes estariam impedidos
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de criar. Deus não pode criar, senão pelo transformar a sua Substância, porque do nada
absoluto não sai nada; e se algo sair do nada, tenha o aspecto que tiver, será nada, por causa
do princípio de conservação da substância que diz: tudo o que existe, é seu aspecto anterior
modificado; se era nada, no começo, sê-lo-á também no meio e no fim.
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Capítulo XI

QUEM EXISTE ?

Hemos visto que cada pensador colocou uma substância como alicerce das demais.
Primeiro os de Mileto com suas substâncias físicas; depois os modernos pós-kantianos com as
substâncias não físicas. Com a descoberta científica de que a matéria é condensação da energia,
daí que ambas são redutíveis entre si, então, a mesma matéria veio da energia. Qual, logo, foi a
energia primordial, remota, primária de que surgiu o Colosso Primitivo de Alpher, Bethe e
Gamow? Certamente que aquela matéria condensada no Colosso, foi o último reduto das
energias que se foram transformando umas nas outras até esse final. Como, pela transformação
das energias ascendentes, egressas do Caos primevo, constatamos uma degradação dinâmica
no passo que elas sobem de nível evolutivo, temos, então, que a energia vital decorre da
transformação de outras que lhe estão abaixo, porque, a não ser assim, a energia vital teria
surgido do nada, o que é absurdo.
Aceito que a vontade é dinamismo orientado à criação da consciência, porque a
vontade desencadeia a ação que encontra resistências que excitam o pensamento que conquista
o saber; assentado que abaixo da vida que age sobre a vontade, está o amor que impõe à
mesma vida buscar o deleite, o prazer, a alegria, a felicidade; então, como a energia
primordial é o amor, esse é o começo da cadeia que, pela degradação involutiva, pela
inversão e queda, veio dar a matéria do Colosso Primitivo, como último limite de
transformação na descida. Se no Caos e do Caos principiou a Evolução, segue-se que esse
mesmo Caos é o termo final do processo involutivo ou da queda. Se, na Evolução, o amor é a
energia-substância final além da qual não há subir, então, foi essa a Energia-Substância
primordial por excelência da qual Deus criou os Filhos que, em se invertendo e caindo, se
desintegraram nas energias que se degradaram até o Caos. Uma vez que Deus, como
Substância é o Amor, sua essência é a Sabedoria, porque, como vimos, o amor é a substância
da sabedoria, assim como esta é a essência do amor. Logo, o Ser, Deus, é a Sabedoria-Amor,
que é o mesmo que dizer Essência-Substância.
Já vimos que definir é traçar “fines” ou limites a uma coisa, ou tema, ou matéria.
Conseqüentemente, há sempre um todo maior do qual se pode recortar uma porção menor,
traçando os limites, os contornos dessa porção menor; isto é definir, e a definição é o
conceito.
Todavia, quando o que se quer definir é, já, por sua natureza, um todo que não pode
ser recortado num todo maior, então, será impossível traçar os contornos, operar a definição,
conceituar. Ora, o Ser que tudo abarca e contém, e ao qual tudo se reduz e no qual tudo
consiste, não possui algo maior no qual se possa recortar, em que possa consistir; portanto, é
impossível traçar “fines” ao Ser, defini-lo, conceituá-lo. O Ser, conseqüentemente, é uma
intuição, e, com ser infinito, não possibilita a que se pergunte: o que é o Ser? Perguntar o que
é uma coisa, é pedir a sua definição; do Ser não se pode ter uma definição. Todo fundamento
indefinível, porque não se contém, não se cifra, não consiste em um outro maior, é uma
intuição; em matemática ele se chama postulado; nas ciências, primeiros princípios; na religião,
dogmas ou pontos de fé. Deste modo, todos temos de nos haver com idéias gerais,
indefiníveis, com intuições. Por tais razões não podemos perguntar: o que é o Ser?
No entanto, à pergunta: quem é o Ser? permite uma resposta, porque agora não se
pede uma definição do Ser, mas apenas se pede que se assinale, que se fale a respeito dele.
Assinalar o ser como uma intuição, ou indicar a intuição do Ser, isso é possível. E esta
pergunta é justificável por mais uma razão: é que há vários seres que os filósofos propuseram
como sendo o Ser, e foi quando tomaram um aspecto isolado pelo todo. Para dirimir dúvidas
sobre se tal ou qual coisa seja o Ser, basta verificar se tal ou qual coisa é redutível a outra, se
consiste em outra, se é contida por outra; se o for, então o Ser não será a coisa proposta ou
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suposta, e sim, a outra à qual a primeira se cifrou. Foi o que fizemos com o amor que se acha
no começo e no fim da cadeia das reduções das energias. Por este caminho, de redução em
redução, se há de chegar ao irredutível, e este é o Ser. Um ser que não seja em si, irredutível,
só pode ser um “ser” em outro; se é em outro, e não, em si, não é o Ser. O Ser tem que
possuir, em si, todos os outros seres possíveis, e estes outros serão nele, redutíveis a ele,
consistentes nele.
E nossas vivências das coisas nos dizem que estas não só consistem em outras, ou se
reduzem a outras, senão que também existem, que estão aí, à mão. Ora, se o Ser em si não
pode estar contido por nada, e contém tudo o mais que existe, segue-se que a palavra Ser tem
o duplo sentido de existir e de consistir.
É preciso não perdermos de vista que o Ser não é feito só de Essência pura, senão,
também de Substância. Quando dizemos que o Ser existe, entendemos este existir pela
Substância, porque só esta é temporal. Ainda que este existir do Ser seja a eternidade, mesmo
assim é existir, porque a eternidade implica a idéia ou a relação de tempo. Pelo lado da
Essência pura, porém, o Ser não existe, mas é; porque as essências, os objetos ideais são
intemporais, conforme a primeira categoria de tais objetos anteriormente abordada neste livro.
A essência pura é, mas não existe; a substância pura existe mas não é. A união inextricável
de ambas faz o Ser que é e existe. O Ser substancialmente existe, e essencialmente é. Por causa
dessa duplicidade de ser e de existir, a palavra ser implica já existência, em razão do que está
no Gênese: A luz seja, ou haja, ou exista. A luz não era antes, e agora é; não existia, e agora
existe.
Como tudo o que existe e é consiste em algo maior, no mesmo passo que é consistido
de algo menor, temos que ser é idêntico a consistir. Consistir, aqui, não tem o sentido de
consistência-rigidez, mas de consistência-redutibilidade. Por isto, a palavra consistir pode
ser entendida no sentido de substância, por exemplo: o hidrogênio e o oxigênio combinados
consistem em água; como pode ser entendido no sentido de essência, como: as conseqüências
de um silogismo consistem na premissa maior dele; toda a geometria consiste no seu
postulado. Pois claro: se as conseqüências não se contivessem na premissa maior, não
poderiam de aí ser deduzidas; tal qual com a geometria que, toda quanta, é deduzida do
postulado que a engloba e a contém. Todas as coisas existem e consistem, e só o Ser existe
sem consistir, visto que não pode resumir-se ou reduzir-se a outro mais geral; e como nada há
mais geral que o Ser, então ele existe, mas não consiste. Dele abaixo, todos os demais seres
não só existem, como também consistem, se resumem, se cifram no Ser.
Aqui nossa análise nos leva a este outro resultado: tudo o que existe consiste e é
consistido, exceto o Ser que só existe, porém não consiste, e o infinitesimal que existe e
consiste, mas não é consistido. Elétrons e prótons consistem no átomo; os átomos de
polaridade contrária consistem e se resumem na molécula; molécula mais molécula dão como
produto a molécula gigante, e assim por diante, tudo o que existe consiste em algo maior, e é
consistido de partes menores, porque esta cadeia de existências e de consistências,
simultaneamente, se faz nos dois sentidos, donde podermos dizer: a molécula gigante é
consistida de moléculas simples, estas, de átomos que se compõem de elétrons e de prótons.
Há, pois, dois sentidos: o da síntese, em que as coisas consistem em outras maiores, e o
da análise pela qual todas as coisas são constituídas de outras menores. Indo-se para cima ou
para baixo na escala do ser, chega-se a um ponto em que a cadeia dos conceitos e das coisas
acaba em intuição, seja no infinitamente grande, seja na do infinitamente pequeno. Logo, a
intuição não é só para cima, quando deparamos com o termo limite irredutível a outro maior,
senão, também, em sentido inverso, quando, descendo na escala dos seres, tomamos quaisquer
deles como um todo o qual só é considerado dele abaixo numa visão de análise. Esta descida
na escala do ser leva-nos até à intuição do termo indecomponível, infinitesimal, que só consiste
em outros, mas não é consistido de mais nada. Chegado a este “átomo”, quer dizer, indivisível,
não há mais descer, e sua idéia é uma intuição. Conceituar é olhar para cima no rumo da
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generalidade; olhar para baixo na escala, no rumo do cada vez menor, não é conceituar mas
intuir.
Esta visão global de qualquer coisa, do todo que ela forma para suas partes, não tem
nada a ver com conceito ou delimitação da coisa num todo maior. Um engenheiro que examina
a ferragem duma estrutura, antes de concretar, vê, com os olhos e com a imaginação
juntamente, como tudo vai trabalhar. Aqui, nas zonas de tração acumulam-se ferros, e ali, nas
zonas de compressão, estão os vazios a serem preenchidos pelo concreto. Que nome, pois, se
há de dar a esta visão complexa que, a um tempo, é sensível ou física, intelectual ou formal, e
ainda emotiva, pelo lado estético, do belo? Pois não pode ter outro nome que intuição. Quem
define, olha do particular para o geral, no sentido da síntese; a visão intuitiva parte da coisa
como um todo, sem se ocupar de delimitá-la no todo maior a que pertence. Olhando-a, como
um todo, observa dela abaixo as partes que a constituem. Assim que a palavra intuição não
significa apenas o que, por sua natureza, é indefinível, mas também aquilo que não se quer
definir, aquilo que, conquanto definível, torna-se como se fora um todo indefinível, para uma
visão analítica de suas partes. Quando um biologista disseca uma rã, não está interessado em
saber o que é a rã, o conceito da rã, em que todo maior ela se situa, e sim, pelo contrário, quer
saber de que partes, de que órgãos ela se compõe; quer saber de que partes consiste a rã. Vê,
portanto, a rã do todo que ela é, para suas partes. Já se sua intenção fosse classificá-la entre os
seres vivos, sua visão iria no rumo do geral, da síntese: batráquio, anfíbio, vertebrado, animal,
ser vivo.
Deste modo, todas as coisas podem nos dar duas visões: a conceitual, ou sintética, ou
indutiva, é quando olhamos delas acima, no rumo de todos maiores em que elas consistem, se
encaixam ou se delimitam; e a intuitiva, ou dedutiva, ou analítica, quando as observamos
como todos isolados, e delas abaixo, para as partes componentes da estrutura, até onde nos
interesse ver, ou até onde possamos alcançar. Esta visão da estrutura, ainda que formal, é
intuitiva. O mecânico que vê um automóvel como um todo, e o faz funcionar para intuir em
que peça está o defeito, certamente que não está a quebrar a cabeça com definições. Ele não
estará interessado em saber o que a coisa é, e sim, de que partes ela é formada, constituída,
que coisas menores consistem na unidade automóvel, e como funcionam.
Só a essência, pois, não nos diz, em realidade, o que uma coisa é. A essência é só sua
pura idealidade, é apenas um objeto ideal, um ente de razão. Para plantá-la na realidade, para
sabermos o que ela é, de fato, de verdade, precisamos conhecer a sua estrutura não só formal,
não só o universo de essências menores que a compõem, que a constituem, que consistem nela,
mas ainda intuir sua substancialidade, característica que nos chegou através da vivência da
coisa. Toda coisa é, na realidade, sua essência mais sua estrutura mais sua substância; o que
ela é idealmente, e de que, realmente, se constitui. Quando aprendemos a sentir e a enxergar
as coisas neste triplo aspecto sintético, analítico e substancial, a um tempo, só então,
podemos conhecer o que elas são realmente. O conceito nos diz o que a coisa é, somente de
um modo ideal, teórico; é apenas um instrumento de que nos servimos para nos comunicar.
Mas o oco do conceito precisa estar cheio da vivência; como o conceito vai de envolto nas
vivências, donde não se poder dissociar, no conceito de limão, por exemplo, a idéia-vivência
de azedo.
Como estamos vendo, subindo-se escala acima, há de chegar-se a um ponto de redução,
em que o Ser não pode consistir-se em outro maior, porque o não há. Chegou-se ao fim da
cadeia, ao limite supremo, ao topo da escada, onde o Ser é constituído de tudo, ou tudo
consiste nele. Esse é o Ser em si, e não, em outro, porque não existirá esse outro que o
abarque e o contenha. Face a isto, o que contém é mais ser do que o contido; o contido é
menos ser que seu continente. O Ser por excelência transcende ainda como continente de
tudo, não sendo redutível a nada maior que ele.
Esta mesma escala pode ser considerada em relação ao valor axiológico que é absoluto,
diferente do valor econômico que é relativo, visto como é ou não é valor, conforme satisfaça
79

ou não satisfaça necessidades nossas. A palavra ser, como já vimos, significa existir, estar aí, à
mão, à vista, como coisa patente, inquestionável, e também significa consistir em outro maior,
no passo que é feito destas partes menores constituintes ou consistentes. Quando
perguntamos: que é o sal de cozinha?, não queremos saber se ele existe, e sim, o que ele é; de
todos os sais que existem, o sal de cozinha se delimita como um todo salino menor dentro de
um todo maior constituído de todos o seres salinos. Mas nossa visão o enxerga também dele
abaixo, não em sentido delimitativo, e sim, em sentido estrutural, sendo isto uma intuição que
vê sua composição, ou seja, enxerga os elementos que consistem nele, que a ele se reduzem.
Então, vem a resposta, primeiro: o sal de cozinha é cloreto de sódio, e não, sulfato de
magnésio, nem azotato de potássio; segundo: resulta da combinação do metalóide cloro com
o metal sódio. O mais ser segue o sentido da integração, da indução, da síntese, e não, o da
decomposição, da dedução, da análise; o integrado é mais ser que os seus elementos
integrados; o cloro e o sódio separados não são sal de cozinha; o cloreto de sódio apresenta
algo mais que são as propriedades novas que inexistem em seus elementos isolados. Por isto é
que toda a integração é um produto, e não, uma soma. Deste modo, o fator de força, enfático,
da definição é a palavra combinação ou integração. O cloreto de sódio é uma combinação,
uma síntese; é consistido de cloro e de sódio combinados, mas não consiste em nenhum deles,
nem em ambos reunidos, misturados; é consistido de cloro, de sódio e de algo mais que o
diferencia dos seus elementos componentes.
Toda esta teoria basta a explicar o que é o sal de cozinha, na sua dupla visão: a
conceitual ou de generalidade, e a intuitiva ou de estruturação? Não. Sem a vivência do sal
de cozinha, sem os efeitos dele em nossos sentidos e em nosso organismo, não saberíamos o
que ele é. Logo, no conhecimento duma coisa ninguém poderá separar seu tríplice aspecto de
conceito, intuição e vivência.
Vejamos agora o outro significado da palavra ser, que é existir. Embora, nem sempre,
as coisas sejam pessoas, permita-se-nos perguntar quem é ?, às coisas, para diferenciar da
pergunta o que é ?, feita às mesmas coisas.
Vimos já que o sal de cozinha, como tudo o mais, apresenta-se-nos no tríplice sentido:
de existir, de consistir e de experiência que temos dele. Quem é ? O sal de cozinha é, quer
dizer, existe; a luz é, ou seja, existe. Fiat lux – que a luz seja, ou haja, ou exista, visto como
não existia antes. Agora: o que é o sal de cozinha?, em que consiste?, qual, a sua essência?
Resposta: o cloreto de sódio é um sal que consiste num todo maior, ou no rol dos sais. Então,
não se pergunta por sua existência, mas, pela sua essência. Ora, uma vez que o ser, como
substantivo, implica em existir e em consistir, promove duas outras questões que são: que é
existir ? e que é consistir ?
Que é existir ? Existir é estar no tempo, como transcorrência, que é o mesmo que ser
fenômeno. As coisas não só estão aí, à mão, consistidas de outras menores e consistindo em
outras maiores, senão que são fenomênicas, transformáveis; no mesmo ponto em que possuem
espaço, possuem também tempo. Todas são fenômenos, todas têm existência, e fluem no
tempo. Existir vem de ex-sistere que significa ser posto fora, no tempo; existir é estar no
tempo, é fluir. Existir é um fenômeno, e a essência desse fenômeno é o tempo, ou o tempo é a
essência do movimento e da transformação. Consistir e existir são sentidos diferentes
atribuídos aos seres, porque, estes, no mesmo passo que são, também existem como
fenômenos, como transcorrência num tempo próprio, seu.
Então, cada coisa existe... num tempo interno seu, que é o ritmo de sua vida, da sua
ondulação, do seu mover-se interno. O ser é diretamente proporcional ao tempo, pelo que, na
hierarquia dos seres, as coisas tanto mais são, primeiro, quanto mais contenham em si outras,
quanto menos sejam contidas em outras; e segundo: quanto maior seja o seu tempo. O átomo
contém, em si, elétrons e prótons; paralelamente a este menos ser do elétron, seu tempo é
diminuto. O ano eletrônico é o tempo em que ele faz uma translação ao redor do núcleo
atômico; seu dia é uma rotação dele em torno de si mesmo, é o “spin” eletrônico.
80

Do exposto vem que mais velocidade equivale a menos ser, e, conseqüentemente,


menos tempo, visto ser a velocidade inversamente proporcional ao tempo. Pela recíproca,
mais ser significa menor velocidade, e, portanto, mais tempo. O Ser no qual tudo consiste, ou
aquele que contém em si tudo, e não consiste em nada maior, que não é contido por nada,
possui um tempo que não flui, não transcorre, não anda; um tempo que é infinito, por causa de
não existir nele o movimento, movimento que se foi diminuindo escala acima até imobilizar-se
no Ser por excelência, o que absolutamente É... em si..., e não, em outro. Esse tempo infinito
se chama eternidade; inexistindo o movimento, o tempo fica eterno. Mas o tempo é a
intelecção, a essência, a forma e/ou medida do movimento, e um movimento parado é um não
tempo; portanto, o não movimento corresponde ao não-tempo; logo, o tempo infinito, a
eternidade, é um não-tempo; é um tempo cujo movimento não flui, um tempo que é
movimento nulo, zero. E esse tempo infinito, de zero movimento, é que corresponde ao Ser
que tudo abarca, e não é contido nem consiste em nada maior. E é este existir num tempo
eterno, num tempo infinito, num tempo sem movimento, que significa o verdadeiro Existir que
é parelho ao Não-Consistir, ao Ser.
Ora, o Ser é uma intuição; correlatamente, seu tempo infinito também é uma intuição.
A eternidade e o infinito são intuições, visto que não podem ser delimitados, recortados em
todos maiores. Por conseguinte, que é existir ? Existir é uma intuição, quando se refere ao
Ser; porém, quando as existências se referem aos demais seres, elas são conceituáveis, porque
toda existência pode ser recortada na existência de todo maior, no mesmo passo que é
consistida de existências menores. As existências são medidas por seus tempos, e os tempos
menores consistem nos maiores, do mesmo modo que estes são constituídos e/ou formados
pelos tempos menores.
Partindo do estudo do movimento, podemos chegar à intuição de eternidade que é a de
um tempo infinito resultante de tornar-se nulo o movimento. Indo-se para o lado oposto,
daremos com a intuição oposta. Se o tempo é a duração do movimento, para existir o tempo, é
preciso mover; “O tempo é como a música (diz Fritz Kahn); para que exista, é preciso tocar”.
Por isso que onde não há execução, não há música, e onde não houver o movimento, não há
tempo. Se quanto menor for o movimento, maior será o tempo, pela recíproca, quanto maior
for o movimento, mais seu tempo se encurta. Quando a velocidade se fizer infinita, seu tempo
fica zero; e tempo nulo, outra vez, é não-tempo. O primeiro não-tempo resultou dum
movimento nulo, e este outro não-tempo é conseqüência de um movimento de velocidade
infinita. Estes dois não-tempos, todavia, não são idênticos, e, pelo contrário, polarmente
opostos, e ambos constituem formas extremas de existir. E isto que não alcança nossa
inteligência, alcança nossa intuição; cada um que pare, e sinta, que o exposto, embora
ininteligível, é evidente por si mesmo.
Em agosto de 1977 os jornais noticiaram a descoberta feita nos EE UU, no Laboratório
Nacional Fermi, de mais uma partícula subnuclear que foi batizada com o nome de upsilon,
pertencente a uma nova família de partículas quark. O quark, por enquanto, é considerado a
unidade da matéria, e existe cerca de duzentas espécies de tais partículas subnucleares
reunidas em quatro ou cinco famílias. Considerando que matéria e energia são termos
reversíveis entre si, corpúsculo e onda são apenas dois modos de ser da energia-substância.
Qual seria, logo, o comprimento de onda originada de um quark ? Ou, de outro modo: qual o
comprimento da onda que, frenada, enrola-se sobre si mesma transformando-se num quark?
Dado que toda a partícula é uma onda estacionária que gira sobre si mesma, qual seria o “spin”
de um quark?, ou o “spin” do upsilon que pesa dez vezes mais que um próton, segundo o
cientista Charles Brown, do Laboratório Nacional Fermi? Dado que a massa se transforma em
energia, segundo a fórmula de Einstein, E = MC2 (energia é igual a massa pelo quadrado da
velocidade da luz); qual é a quantidade de energia condensada num upsilon ?
Todavia, sem descermos tão fundo dentro da matéria, o elétron, com seu movimento
velocíssimo ao redor do núcleo atômico, fica como que onipresente em todos os pontos de sua
81

trajetória. Sua velocidade está muito longe ainda de ser infinita, e já confere rigidez e
impenetrabilidade à matéria. Se esta velocidade interna do átomo cessasse, a matéria se
desvaneceria, convertendo-se em nada. O elétron não só se move, senão que também se
transforma ao fazer sua translação ao redor do núcleo atômico; ora ele é um vórtice, ora é
onda; o remoinho eletrônico vai a abrir-se em onda, quando, de novo, se fecha no turbilhão,
dando-nos uma imagem muito diferente da antiga concepção que se dava ao átomo como
semelhante ao sistema planetário solar. Fora isto, há ainda o salto quântico que provoca uma
oscilação do meio, quando se adiciona energia ao átomo. No núcleo deste, também, os prótons
ficam a jogar uma partida de tênis cuja bola é um elétron nuclear. Quando cada próton fica
momentaneamente dono desse elétron, então se torna num nêutron.
Este ser ora corpuscular e ora onda, do elétron; este ser ora próton e ora nêutron,
conforme tenha ou não tenha um elétron nuclear como carga, fez Bertrand Russell exclamar
perplexo: “Agora, devido principalmente a dois físicos alemães Heinsenberg e Schrodinger, os
últimos vestígios do velho átomo sólido se derreteram, e a matéria se tornou tão fantástica
como qualquer coisa que se manifeste numa sessão espírita” 68. Então, é por causa desses
movimentos de rotação e de translação velocíssimos dos elétrons, que a matéria existe; é por
causa dele que a montanha parece estar ali, parada, como que eternizada no tempo. Todo esse
estar parado da montanha, todo esse não-movimento dela resulta de movimento e
transformação velocíssimos; a montanha existe imóvel, por causa do mover-se febricitante dos
elétrons nos átomos. E a transformação a que todas as coisas estão sujeitas, ainda é
conseqüência de acontecimentos ocorridos no interior da matéria. O crescimento dos seres
vivos é adição de átomos, assim como o depauperamento resulta da perda deles. Existir,
mover e transformar-se são termos que se inter-relacionam.
Quanto mais rapidamente as coisas se transformam, deixando de ser isto para serem
aquilo, tanto menor será seu tempo, e tanto menos elas são; pela contraditória, quanto menos
as coisas se transformarem, quanto mais forem constantes, tanto mais ser elas serão, até o
limite em que o Ser, sendo como que fixo, como que imóvel, como que imutável, tem seu
tempo como que eterno. O Ser existe num tempo eterno, enquanto que, lá no outro extremo
da cadeia o elétron, o quark, o upsilon se movem febricitantes, numa velocidade quase
“infinita”, donde seu tempo tender para zero. Ser e existir, pois, relacionam-se, donde se poder
afirmar: considerada sua categoria hierarquizada, o ser é proporcional ao tempo. Assim, na
categoria da matéria, a relação ser-tempo começa sua hierarquia no quark e acaba no
Universo. Na categoria vital, a escala principia no piso biologia molecular e vírus, e acaba no
mais subido representante do mundo seráfico, tendo passado pelos gênios em todas as suas
modalidades dentre os quais o artista, o sábio e o santo. Na categoria social, o homem-sócio é
o primeiro degrau da escada cujo topo se perde no seio da sociedade seráfica formada pelo
primeiro e mais alto coro - o dos serafins. As categorias também se hierarquizam segundo uma
escala de valores axiológicos, que são absolutos, escala essa diferente da dos valores
econômicos que são relativos, e estão associados à satisfação de necessidades. Além de que
mais ser é igual a mais valor, mais tempo, mais grau hierárquico, ainda, os valores morais,
por exemplo, são mais que os valores materiais. O Ser por excelência, que é Deus, está no
topo de todas as hierarquias, e é o que mais vale; e dele abaixo, escalonam-se todas as
hierarquias arrebanhadas na unidade da hierarquia-mor formada pelos valores axiológicos.
Conseqüentemente à pergunta: quem existe ?, tem esta resposta: só Deus Existe, e
todos os demais existires decorrem desse Existir supremo que é em si mesmo, e não, existir
em outro, como ocorre com tudo o mais. Logo, nem eu nem as coisas existimos, porque eu e
elas existimos em Deus, como disse São Paulo: “Em Deus vivemos, nos movemos e
existimos” 69. Assim, do mesmo modo que há o Ser em si (Deus) e o ser em outro (nós e as
coisas), também há o Existir em si, que se atribui a Deus, e há o existir em outro que somos

68
B. Russel, Delineamentos da Filosofia, 124
69
At 17, 28
82

nós, as coisas, o mundo, o universo. É falsa, pois, a posição dos filósofos realistas gregos que
respondiam a pergunta quem existe ?, dizendo: as coisas existem, e eu entre elas. Mais falsa
ainda é a colocação dos filósofos idealistas que diziam: eu existo, mas não as coisas, porque
elas não passam de representações minhas; as coisas não são mais do que minhas imagens,
minhas vivências delas; as coisas não vão além de fenômenos para mim, as aparências que eu
percebo, porém, que não sei o que são em verdadeira realidade. Não posso saber o que sejam
as coisas em si mesmas, e sim, somente, o que elas são para mim. Esta posição idealista foi
desalojada pela verdade da Evolução que mostra quando, porque e quem pôde dizer: eu
existo!
Com isto, a ontologia fica reduzida a estudar quatro questões: que é existir ?, quem
existe?, que é consistir? e quem consiste? Muitas foram as respostas dadas à pergunta: quem
existe ?, e todas constituem a parte da ontologia que estuda a teoria do ente, paralela à teoria
do ser que é o objeto da metafísica. Fechemos este capítulo, respondendo àquelas quatro
perguntas de modo conciso, resumido.
Que é existir ? – Existir é estar no tempo. Quem existe ? O Ser eterno existe em si e
por si mesmo, e tudo o mais existe nele, e a partir dele. Que é consistir ? Consistir é estar em
outro; é reduzir-se a outro. Quem consiste ? Eu, as coisas, o mundo, o universo consistimos;
só Deus não consiste ...

Capítulo XII

A GRANDE SÍNTESE FILOSÓFICA


Cada pensador antigo, milesiano, como temos visto, colocou uma substância por
alicerce das demais. Para os filósofos pré-realistas – Tales (água), Anaximandro (apeiron),
Anaxímenes (ar), Heráclito de Éfeso (fogo), Empédocles (quatro elementos) – , as substâncias
eram físicas, conseqüentemente, exteriores aos indivíduos humanos. Esta busca da substância
basilar de que nasceram as demais por transformação, foi até Heráclito para quem tudo muda
e nada é. Tudo é fogo, calor e energia em processo perene de transformação. Tudo é equilíbrio
e harmonia de tensões opostas quais a do arco e a da lira. O fogo é a energia de que tudo se
constrói, do pequeno ao grande, tudo feito de tensões internas em equilíbrio.
Cronologicamente, Pitágoras está incluído entre os pré-realistas, embora natural de
Samos. Como, para ele, todavia, o mundo não se fundamenta em nada material, nem
substancial, mas no número... por sua natureza abstrato, essencial, por isto, sua doutrina se
situa dentro do ciclo posterior inaugurado por Parmênides.
Esgotada esta fase que chamaremos tese, veio a fase seguinte a da antítese, com a
doutrina da essência pura de Parmênides. Esta fase pós-parmenídica, antitética, em relação à
tese inicial dos filósofos substancialistas, durou até o fim da Idade Média, e foi a filosofia que
se chamou Realismo. Temos, então, que a tese do Substancialismo suscitou a antítese do
83

Realismo essencialista. E a síntese, que devia seguir-se a esta tese e antítese? Ficou por
fazer-se.
Depois de vencida esta fase realista, veio, após a Renascença, a fase inversa do
Idealismo ou filosofia moderna, a partir do cogito de Descartes. Agora, se dissermos que o
Realismo grego é nova tese, o Idealismo renascentista é a antítese. A nova síntese que devia
seguir-se, também ficou por fazer-se. Mas como o Realismo greco-medieval era essencialista,
embora se desse o nome a esse essencialismo de Realismo, só porque ele teve raiz nas coisas,
res, a fase antitética do Idealismo, continuou a ser essencialista, só que se fundamentava, não
nas coisas, mas no eu que pensa. Esta forma de pensamento foi até Kant... que concluiu pela
impossibilidade de alcançarmos o Ser pela razão. Contudo, acrescenta, a inteligência busca o
Incondicionado. Por causa disto, surgiram três filósofos principais pós-kantianos – Fichte,
Schelling e Hegel - que partiram desse Incondicionado, desse Absoluto, para edificarem seus
sistemas. Alguns filósofos desta última fase se ocuparam, outra vez, da substância, como
ocorreu no pré-realismo, só que, agora, esta substância, em lugar de ser física, passou a ser
subjetiva, moral (eu, sentimento, vontade), com sede no indivíduo.
Os pensadores substancialistas milesianos até Heráclito de Éfeso, punham por
fundamento a substância física, procurando responder à pergunta: quem existe ? ou: o que
existe... fundamentalmente? Colocando-se em posição antípoda a Heráclito, Parmênides saiu-
se com o seu realismo-idealista, não respondendo à pergunta quem existe?, mas, a não
formulada: quem é ?
Como a fase moderna da filosofia (Idealismo) se opõe à antiga (realismo), tudo havia
de ser ao contrário, e Descartes começou pelas essências, pelo seu cogito, pelo eu que pensa,
em vez de pela substância, como ocorreu na pré-filosofia milesiana.
Porém, se os pensadores realistas principiaram pela substância física (ar, água, terra,
fogo), e acabaram pela essência, na fase inversa, os filósofos modernos, idealistas, iniciaram
pela essência e terminaram pela substância, agora não física, objetiva, mas moral, subjetiva
(vida, vontade, sentimentos). Como, na fase realista, a substância era física e se achava fora do
homem, na fase oposta, na idealista, a substância é moral, e se encontra dentro dele. Tudo
coerentemente invertido, como era de esperar-se de duas fases opostas e complementares: a
tese-Realismo e a antítese-Idealismo. Falta, agora, a síntese entre esta tese e sua antítese. E,
ao fazer esta Grande Síntese da filosofia, todas as demais sínteses menores, deixadas em
aberto, ficaram solucionadas.
84

Representemos o exposto num gráfico, o de n. 1, muito simples, de um círculo dividido


em cruz por dois diâmetros perpendiculares entre si, de modo a obter quatro quadrantes.
Contando-se da esquerda para a direita, no sentido dos ponteiros dos relógios, temos, no
quadrante I, os filósofos da substância de Tales a Heráclito. No quadrante II, como reação ao
substancialismo, vêm os pensadores das essências tidas como reais e exteriores ou Realismo
ideológico; tais filósofos vão, grosso modo, de Parmênides a Tomás de Aquino. No quadrante
III, surge a reação idealista, renascentista, com os filósofos, ainda das essências, de Descartes
a Kant, só que, aqui, as essências não são exteriores, como no Realismo, e sim, nascem no
indivíduo, e são subjetivas. O IV quadrante é dominado, outra vez, pelos filósofos das
substâncias, mas, agora, substâncias morais, com sede no indivíduo. O lado direito do
círculo, isto é, que se acha à direita do diâmetro vertical, fica sob o signo da Essência, e a
metade esquerda, sob o signo da Substância. Igualmente, todo o semicírculo acima do
diâmetro horizontal (quadrantes I e II) está sob o signo do Realismo em sentido grego, ao
passo que a banda inferior (quadrantes III e IV), abaixo do eixo horizontal, está sob o signo do
Idealismo iniciado na Renascença do cogito cartesiano.
Mantenhamo-nos, no gráfico I, para fazer as sínteses que ficaram em aberto.
Verificamos que o quadrante I, sob o signo do Realismo, se compõe da Substância a qual os
filósofos milesianos procuravam como alicerce de tudo, e isto foi até Heráclito. Sob o mesmo
signo, no quadrante II, estão os filósofos da Essência, de Parmênides a Tomás de Aquino. Ora
bem: como não há ser existencial, ente real, feito só de essência; como a essência pura não é
objetiva, não pode colocar-se frente ao sujeito, não existe fora de nós, e só pode estar em
nossa cabeça como pura idealidade; como, por isto, não pode haver um mundo feito só da
pura essência, pura forma, sem substância, porque a essência pura não ocupa lugar no
espaço nem está no tempo, e sem espaço e tempo não há mundo possível. Por tudo isto, em
nossa Primeira Síntese ficam integrados os quadrantes I e II (substância-essência) sob o signo
do Realismo. Esta Primeira Síntese se acha implicitada em Platão... que não pôde intuir seu
topos uranos sem os componentes espaço-tempo-substância, como já o vimos nesta obra. A
Primeira Síntese, pois, está abarcada pelo semicírculo superior do Realismo, em cujo interior
estão os quadrantes I e II.
No fim da Idade Média, sob o signo da Essência (gráfico 1), mudou-se o sentido de
conceber o mundo; em vez de, como no Realismo, partindo das coisas, dizer: as coisas nos
enviam as suas essências, em vez disto, partiu-se do eu que pensa, e se afirmou: nós é que
pomos às coisas as suas essências, estas elaboradas dentro de nós, a partir de nossos
próprios pensamentos. Em nossa Segunda Síntese, integraremos estas duas verdades que são
apenas dois momentos do processo: concepção-criação. Deus, ou o artista, ou o inventor
põem seus pensamentos (essências) nas obras que criam, como quer o Idealismo. Num
movimento inverso do nosso espírito, apreendemos, captamos, abstraímos, inteligimos,
entendemos essa idéia ou essência que está na obra, seja ela a do artista, seja a do inventor,
seja a de Deus. Eis, pois, que, nesta Segunda Síntese, ficam integrados os quadrantes II e III
sob o signo das Essências.
No Grande Livro do Universo está escrita uma Mensagem que não foi feita pelo
homem, porém, que este tenta decifrar. As várias interpretações são humanas, são criações do
homem..., mas o texto original, na muda linguagem do Ser, continua lá..., desafiando a argúcia
da inteligência. Assim como o inventor duma máquina não inventou o princípio da máquina...
que compõe a linguagem do Ser, também nenhum filósofo partiu de si somente para dar sua
tradução daquele Grande Documento – a Natureza, o Mundo, o Universo. A Grande
Mensagem, pois, está escrita na Substância sem a qual seria impossível a existência da
Mensagem do Ser.
A Terceira Síntese integra o quadrante III (essência do Idealismo) ao quadrante IV
(substâncias morais do Idealismo). Porque, como o Idealismo parte do Eu que pensa, esse Eu
não é vazio de corpo, de vida, de vontade, de emoções, de sentimentos, pelo que tinha razão
85

Descartes em dizer, de começo: “Eu sou uma coisa que pensa”. Porque a primeira condição
para o pensar está na existência de um corpo inalienável; não há pensamento sem o substrato,
sem o subestante corpo... Não há pensamento sem cérebro, seja este o nosso de matéria
densa, seja o do desencarnado, de matéria espectral. Se alguém, após a morte física, se tornar
alma pura, forma sem substância, esse tal cessou de existir em si, passando a ente de
memória na lembrança dos que ficaram. A tese da alma sem substância após a morte, da
alma sem corpo espiritual, é a mesma da que afirma: morreu, acabou !
A Quarta Síntese junge os quadrantes IV e I, sob o signo da Substância, e o que
dissemos aqui, de modo conciso, será explanado, miudamente, noutro lugar. Nosso
fundamento para esta Quarta Síntese são quatro verdades científicas que os tempos maduros
nos puseram sob os olhos:
1 - Matéria e energia são termos reversíveis entre si;
2 - Todas as energias são transformáveis umas nas outras;
3 - Decorrente destas duas verdades, Einstein propôs o termo energia-substância para
denominador comum entre todas as matérias e todas as energias do universo;
4 - A energia-substância é indestrutível, e seu princípio de conservação se enuncia: na
natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma.
Ora bem: antes não havia vida no universo; depois surgiu a vida: do que ? Não pode
ser doutra coisa senão do universo dinâmico que lhe fica abaixo, passando, a vida, a pertencer
ao conjunto denominado energia-substância. Como as energias morais (vontade, emoções,
sentimentos) nascem e se sustentam da vida, então, também se acham sobre o denominador
comum da energia-substância. Como o mais alto sentimento, nascido da vida, é o Amor; e
não havendo posto acima do Amor, ao qual ele possa subir, então, ele, sem termo de referência
acima de si, fica absoluto, fica Deus. Logo, o Amor, a Substância do Ser, é a matéria prima,
basilar, que os filósofos milesianos procuravam, de que tudo se fez, e em que tudo consiste.
Neste tudo, já se vê, estão os quatro elementos dos antigos, como também as energias morais
dos filósofos absolutistas pós-kantianos.

O gráfico 2 é o mesmo círculo visto no gráfico 1, mas desdobrado em sinuosa para


poder ser abarcado no ciclo maior da síntese - gráfico 3.
86

A Quinta Síntese integra os quatro quadrantes do círculo do gráfico 1 desdobrado no


gráfico 2. Este círculo desdobrado é abarcado pelo semicírculo maior no gráfico 3, também
desdobrado; este semicírculo está dividido ao meio, e a banda esquerda está sob o signo do
Realismo, e a banda direita, sob o signo do Idealismo. A chave que abarca, inteiro, o
semicírculo maior do Realismo-Idealismo, é a da Evolução. Ora, se a Evolução consiste em
meio ciclo, então, há um outro meio ciclo da Involução. A Quinta Síntese, portanto, é A
GRANDE SÍNTESE FILOSÓFICA que abarca, na UNIDADE TOTAL todas as demais
sínteses menores.
Para que houvesse a INVOLUÇÃO, algo teve de involuir, de desintegrar-se, de cair;
logo, atrás da INVOLUÇÃO está a CRIAÇÃO PRIMEIRA que antecipou a queda de parte do
MUNDO CELESTE, o mundo que Deus criou da sua Energia-Substância-Amor. Ora, todas
as filosofias dos quadrantes de I a IV são criacionistas, mas indebitamente, isto é, que não
deveriam ser, que não tinham razão de o ser, porque todos se referiam a um mundo em
evolução, e, exceto Platão, ninguém tratou daquele mundo celeste de onde as almas caíram
para este nosso, invertido, de sombras, de males, de dores, de mortes. Só pondo as filosofias
todas dos quadrantes de I a IV sob o signo da EVOLUÇÃO, é que elas se tornam
compreensíveis.
Herbert Spencer, embora tivesse tratado especificamente da Evolução, pusemo-lo fora
do quadro, porque, no momento em que ele ia coroar sua obra, tirando as conclusões morais
do seu sistema, antevendo que tais conclusões seriam funestíssimas, priscou tal qual cavalo
refugador, e foi buscar nos primeiros princípios as bases para suas conclusões morais. O
resultado é que tais conclusões ficaram impertinentes ao seu sistema. No entanto, veio
Nietzsche e prosseguiu de onde Spencer havia parado, e as conclusões morais nietzscheanas,
nascidas da filosofia evolucionista de Spencer, redundaram em formidoloso desastre.
Todavia, se o Evolucionismo também é antítese do Criacionismo, este, onde fica?
Situa-se a CRIAÇÃO no ciclo que antecede à INVOLUÇÃO... visto que sem aquela, esta seria
impossível.
Nenhum sistema poderia abarcar mais do que o visto no gráfico 3. Até as idades pré-
filosóficas dos fautores de religiões, pois que esses também são filósofos – filósofos-de-
máximas – até essas idades poderiam ser representadas nas sinuosas anteriores ao quadrante I.
Lá está, de fato, o criacionismo bíblico... que fala de um mundo celeste, com seus coros de
anjos, e da rebelião de parte deles, do que resultou a danosa queda de Luzbel, a desintegração
de parte do sistema divino, a aparição do medonho caos. Tal queda suscitou a redenção de
Cristo que é um Serafim, firmado e confirmado na virtude do amor, parceiro de outros
Serafins irmãos a cujos encargos ficou a redenção de outros orbes habitados do universo. Tais
Serafins que se esbraseiam no amor divino (tal quer dizer Serafim), qual o fez Cristo,
mostraram o caminho, único possível, da volta ao lugar celeste, que é o caminho do amor, da
desinversão de mau, da desviragem de dragão. Foi deste modo que todos os antigos
inteligentes do mundo solucionaram o problema da dor e do mal. Todas as grandes religiões da
Terra assentaram que, primeiro, houve um Ente Supremo do qual se derivou um segundo, um
Ente-Criado, tendo parte deste se emborcado no mal.
E também, após o quadrante IV do gráfico 3, a sinuosa prossegue rumo ao porvir, em
busca do quadrante V que é a da FILOSOFIA DO AMOR esboçada aqui, visto que o
quadrante V tem de prosseguir do IV em que os pensadores idealistas pós-kantianos
fundamentavam seus sistemas em energias morais, cujo pináculo é o amor. Só que a energia-
substância-amor escapa ao embasamento subjetivo, idealista, para recair no Realismo, não o
grego, mas o moderno, o verdadeiro, pois real é o substancial, e não o ideal.
Nossa visão, todavia, não se prende só ao quadrante V, mas à visão total abarcada pela
chave máxima: A GRANDE SÍNTESE FILOSÓFICA.
87

Capítulo XIII

OBJETOS IDEAIS - ESSÊNCIAS


Suponhamos que os terrícolas ainda vão inventar naves espaciais capazes de os
transportar a outros planetas, e que indo a Mâose 70 deparam, lá, com seres inteligentes.
Estabelecido o contato pessoal com os mâoseanos, irão fazer duas coisas: conhecer tudo o
que puderem sobre Mâose, e contar para os mâoseanos como é a Terra. Para conhecer Mâose,
os terrícolas procurarão ter toda a sorte de vivências desse planeta, transferindo, em grande
parte, as vivências e conhecimentos que já possuem aqui na Terra. Mas, ao falarem aos
mâoseanos, não poderão transferir suas próprias vivências terrestres, e tudo o que disserem
serão conceitos puros. Se o assunto for as matemáticas, e se os mâositas estiverem adiantados
nisso, não haverá problema: os terrícolas serão compreendidos de pronto. Se, todavia, o
assunto versar sobre laranjas, por exemplo, e lá em Mâose não houver esses frutos, nem
outros semelhantes, será impossível contar aos mâoseanos o que venha a ser uma laranja; por
que? Porque o conceito de laranja envolve um complexo de vivências intransferíveis.
No momento em que os terrenos pintarem numa tela um laranjal, pondo no primeiro
plano um pé de laranja florido, e um outro carregado de frutos; quando mostrarem fotografias
coloridas das várias fases de crescimento, de floração e de frutificação das laranjeiras, os
mâoseanos começarão a ter uma idéia do assunto. Poderão os terrestres apresentar fotografias
coloridas de laranjas cortadas em vários planos para mostrar seus interiores, e ainda,
fotografias ampliadas de setores em que as garrafinhas se mostram cheias do líquido
amarelado, doce e levemente ácido. Ainda assim faltarão as experiências tácteis, olfativas e
gustativas para encher o vazio do conceito.
Neste ponto, um astronauta terrestre vai à sua nave, e traz umas laranjas para os
mâoseanos chuparem, põe-lhes diante dos olhos uns galhos de laranjeiras, e os mâoseanos
esmigalham umas folhas, cheiram-nas, mastigam-nas, classificam-nas segundo os seus sistemas
botânicos, estudam-nas com o microscópio, fazem a análise química do líquido da laranja, e
descobrem tratar-se de ácido cítrico, glicose e água. Já agora os mâoseanos poderão saber o
que é uma laranja, e, por extensão de suas experiências, o que é o caldo de laranja
industrializado, engarrafado, para o consumo.
Ora, se uma coisa fosse só o seu conceito puro, sua forma, sua essência, sem o
complexo das vivências, não seria preciso tudo isto para fazer aos mâoseanos conhecerem o
que são laranjas.
Do exposto se conclui que o conceito não pode ser vazio de conteúdo, de substância,
de vivência, e que o conhecimento racional feito só de essências puras, é só meio
conhecimento. Então, já se vê, a sabedoria não pode consistir só deste meio conhecimento, ou
deste conhecimento por metade. E a própria palavra sabedoria vem de experiência sensorial,
particularmente, de saber, de sabor, de saborear, de degustar. Transmitir, portanto,
conhecimentos racionais puros, puros conceitos, sem o correlativo das vivências, é dar a
conhecer só por metade. Logo, o saber integral nos fará claramente ver, nos fará constar que
as coisas se nos mostram duplas, porque formadas de essência e de substância juntamente.
Pois a filosofia sempre nos mostrou as coisas só por suas essências, e o próprio Ser, Deus, foi
intuído como Essência pura sem matéria alguma (Aristóteles). Ora bem: se as coisas se nos
apresentam como essência e substância, sem nenhuma exceção, tanto no particular como no
geral objetivo, ou universal concreto, como é que os filósofos nos puseram o Ser como sendo
só pura essência sem substância alguma?
Peguemos, então, de novo, uma laranja, e pensemos sobre ela como o faria Descartes.
A laranja é um esferóide de cor alaranjada que contém, em seu interior, gomos prismóides
triangulares que se ajustam pelos lados maiores, fechando a circunferência, de modo a ficarem
70
Planeta fictício, cujo nome foi criado em honra a Moisés (Mâose, como é no original egípcio)
88

as arestas de ângulos mais agudos no centro. Os gomos estão plenos dumas garrafinhas
transparentes cheias de um líquido claro-amarelado, levemente ácido-açucarado de sabor e
cheiro característico. Para Descartes, esta definição é obscura, visto conter-se nela idéias claras
e obscuras juntamente. As idéias claras são as de esferóide e de prismas triangulares. Cortada a
laranja pela zona equatorial (visto que os pólos são os lugares onde se prendia o cabo e onde
esteve a flor), obteremos duas semiesferas cada uma mostrando, na face do corte, um círculo.
Este círculo está dividido em setores que são triângulos de bases curvas, unidos pelos lados e
com as arestas mais agudas reunidas no centro. Para Descartes a laranja é isso: pura geometria.
Tudo o que passar disto são idéias obscuras. A cor é alaranjada? Mas, sê-lo-á também para os
daltônicos? Todavia, dirá alguém: os daltônicos constituem minoria, que, por isto mesmo, não
fazem a regra. Logo, se fossem maioria, eles é que estariam certos, e nós, não? Quer dizer que
o certo e o errado dependem do número? A maioria, porque vence, só por isto está com a
razão? Neste caso, como Sócrates foi condenado por uma maioria, esta, por ser maioria,
estava certa? Que cor, pois, tem a laranja? por que toda esta discussão?
Esta discussão nasceu no ponto em que nos pusemos a analisar idéias obscuras. A
celeuma cresceria ainda mais face a afirmação de que o suco da laranja é de sabor acre e
adocicado, porque acre e adocicado não são conceitos mentais puros, e sim, experiências
sensoriais; acre e adocicado não são idéias-conceitos, mas, idéias-vivências. Pois a estas
idéias-vivências, Descartes dava o nome de idéias obscuras, de idéias confusas. Para ter
idéias somente claras, Descartes geometrizou o mundo e as coisas, apresentando sua
simplificação como sendo a verdade. E é? Quem afirmar, da laranja, que é um esferóide, e, do
Sol, que é um círculo, terá afirmado toda a verdade humanamente possível do Sol e da laranja?
Como, logo, resolver o problema de o que é uma laranja? de o que são as coisas?
O problema se resolve com fazer esta classificação: a laranja se nos põe como forma e
como conteúdo. A forma, a essência, o conceito é um objeto ideal, ao passo que o conteúdo,
a substância organizada na coisa que temos à nossa frente, é um objeto real, objetivo,
vivencial. O conhecimento duma coisa não pode ser só sua essência puramente formal, ideal,
senão também seu conteúdo de natureza vivencial, no que tomam parte todos os nossos
sentidos naturais e artificiais, estes, como o microscópio, o telescópio, a proveta de análise
química, o espectroscópio, a balança, o termômetro, etc. A essência pura sem o seu conteúdo
é um oco; pois é preciso encher esse oco do seu conteúdo, esse vazio da sua substância, e só aí
temos, então, o que realmente, em realidade, em objetividade, uma coisa é. Por outro lado, o
conteúdo sozinho, sem a sua essência, é caos do qual, na sua forma extrema, não poderíamos
ter nem mesmo experiências sensoriais.
Foi erro, pois, o terem suposto os filósofos que só as essências bastavam a nos
proporcionar o conhecimento; daí que seria impossível fazer os mâoseanos entenderem o que
fosse uma laranja só pela sua essência, sem lhes propiciar, também, o correlativo complexo das
vivências. Sempre se supôs que bastava a essência, o conceito, a forma para o conhecimento
duma coisa; que a inteligência, sozinha, era capaz de apreender o que uma coisa é em
realidade. Contra isto, hemos demonstrado que o homem, para conhecer, não emprega só sua
razão, senão que se usa a si mesmo como um todo em que tomam parte todos os seus
sentidos naturais, sentimentos e emoções, e ainda, para este fim, amplia aqueles mesmos
sentidos com os instrumentos que sua tecnologia produziu.
Deste modo, a idéia mais simples e espontânea da laranja, é a de esferóide. Esferóide
implica a idéia de esfera. A esfera pode ser gerada por um disco velozmente rodando sobre um
eixo que lhe passa pelo diâmetro. O círculo (disco) pode ser dividido por seus vários diâmetros
em setores, cada um dos quais é um triângulo de base curva. Então, nos perguntamos: o que é
a esfera? o que é o círculo? o triângulo? o prisma triangular? Pois todos estes são entes de
razão, objetos ideais. E a cor, o cheiro, o sabor, o peso, a materialidade da laranja, que são?
São objetos dos sentidos, objetos sensíveis, objetos reais visto que dão realidade, coisidade, à
laranja. Então, analisemos a natureza oposta e complementar de um e de outro destes objetos :
89

O círculo, o triângulo, os prismas vários, todos os objetos matemáticos tiveram começo


no tempo? Porventura houve um pretérito em que tais objetos não eram, e depois passaram a
ser? Não. A idéia de triângulo é desde sempre, e apenas foi achada ou descoberta. O triângulo
não está no tempo, não se muda, não se transforma; é fixo, constante, imutável. É intemporal.
E que é que causa o triângulo? O triângulo não tem causa, visto que não teve princípio
no tempo; e, como ele, nenhum outro objeto matemático, nem um outro objeto ideal, tem
causa. Os objetos matemáticos guardam, entre si, uma relação de natureza lógica, e não,
genética. Eles são, uns com os outros, numa implicação como a da premissa e as
conseqüências de um silogismo. Uns não causam os outros. Um triângulo pode ser construído
na lousa, com giz, e só agora sua pura idealidade pôde tornar-se realidade, existencialidade;
para isto será preciso dar-lhe individualidade, dar-lhe nome específico (isósceles, escaleno,
retângulo, etc.), tirando-o da triangularidade abstrata. Depois disto, uma vez construído na
mente com matéria psíquica, pode-se projetá-lo fora, reconstruindo-o com outras substâncias
quais sejam: lápis-papel, lousa-giz. Sem isto, ele continuaria como pura idealidade subjetiva,
sem existência real; o triângulo em geral é, mas não existe, visto como existir (de ex-sistere)
significa estar no tempo, ser posto fora, no tempo, no movimento, na transformação. Sendo o
triângulo intemporal, é, mas não existe, enquanto não o pusermos fora da nossa intimidade
subjetiva, isto é, não objetivarmos, não o construirmos, primeiro na imaginação com matéria
espectral, e depois sobre a lousa com o giz. Como ele não teve princípio nem terá fim no
tempo; como não nasce de algo anterior que lhe tenha sido causa, é incausal. O triângulo,
pois, como todos os demais objetos matemáticos, como todas as leis e princípios científicos,
como todos os objetos ideais, não tem causa. É incausal.
E acaso, o triângulo em geral ocupa lugar no espaço? Como ele é puramente ideal, por
isto mesmo não é material, não é substancial, e, com isto, não ocupa lugar, nem no espaço
objetivo que está aí fora de nós, nem no espaço subjetivo que está em nosso psiquismo, no
qual se refletem, se gravam, as imagens do nosso mundo exterior, ou onde construímos
imagens nossas a partir de idéias abstratas. É, portanto, inespacial.
Tudo o que existe na natureza, todo o criado, possui o seu contrário, e é formado de
contrários. Tudo o que existe, está no tempo, tem causa, e ocupa lugar no espaço, possui o seu
oposto, e é feito de opostos que se complementam. Ora, o triângulo abstrato, em geral, não
existe, porque não está no tempo, sendo intemporal, fixo e imutável; não é espacial, até
enquanto não o individuamos por vários nomes, e o não construímos com a matéria mental, e,
depois, sobre e com a matéria densa; não é causal, porque nada causa o triângulo.
Conseqüentemente, o triângulo em geral não tem polaridade não havendo o triângulo e o anti-
triângulo. Os objetos ideais não têm polaridade.
Como não têm polaridade, por isto mesmo não têm contrários, nem opostos, nem
avessos, nem mudanças, nem transformações, estando fora do espaço, do tempo e da
causalidade. Por estas razões, não é possível que haja algum lugar do universo, por mais
afastado que seja, em que o triângulo deixe de ser tal qual é aqui na Terra, com todas as suas
propriedades matemáticas. Por este motivo, todos os objetos matemáticos, todos os objetos
ideais, são universais.
Esta universalidade raia pelo infinito, seja ou não nosso universo infinito. Nosso
universo se supõe seja finito e curvo (Einstein); e se fora deste nosso universo houver outros,
para além da curvatura da luz, até o da anti-matéria, a matemática, lá, não poderá ser uma
anti-matemática. As matemáticas são feitas de objetos ideais, e estes são inespaciais, como já o
demonstramos, mas com validade dentro do infinito. Parmênides deu como uma das
propriedades do Ser, o infinito; mas como infinito, se o Ser puro é inextenso, imaterial,
inespacial? Então, só pode ser que a universalidade do Ser é infinita, ou seja, válida para toda a
Criação que possa existir dentro do espaço infinito, numa como onipresença. Se um homem de
matéria pudesse comunicar-se com um outro, hipotético, de anti-matéria, não haveria
dificuldade, porque ambos falariam por conceitos puros, por meio de objetos ideais que são
90

universais. O que eles não poderiam fazer é aproximar-se um do outro, e, menos ainda,
abraçar-se, porque ambos explodiriam por desintegração atômica total, transformando-se, um
e outro, totalmente, em energia. As substâncias de ambos podem ser contrárias; não, todavia,
suas essências... porque as essências, os conceitos, os objetos ideais, não sendo polarizados,
são universais, válidos para qualquer ponto do infinito, numa como onipresença. Estando
sempre presentes, mas nem sempre manifestos, explicitam-se, tão logo surjam as condições, ou
seja, desde que haja a substância em condições de atuarem. Cai uma árvore em cruz sobre o
tronco de outra já caída, e eis, aí, explicitado o princípio universal, onipresente, das alavancas,
com os seus três elementos: ponto de apoio, potência e resistência. Se dissermos para um
homem: pense o triângulo! Esse triângulo pensado é um conceito puro, universal, resultante de
três segmentos que se cruzam em pontos diferentes; não será um dado triângulo individual,
mas a idéia geral de triângulo, a pura triangularidade. Agora, se pedirmos ao nosso homem:
imagine um triângulo! Já, então, o triângulo imaginado, construído na sua imaginação, tem que
ser um dado triângulo em particular, que pode ser o escaleno, o isósceles, o retângulo, e,
ainda, qualquer deles, retilíneo ou curvilíneo. Se pedirmos ao nosso homem: desenhe um
triângulo qualquer!, ele não poderá desenhar o triângulo em geral, o triângulo como conceito
puro, e sim, somente, um triângulo individual imaginário que, depois, transfere para o papel;
aquele triângulo individual que já construiu em sua imaginação, com a matéria psíquica,
espectral, aquele modelo mental, etéreo, fluídico de um triângulo individual, é que será
transportado para a folha de papel. O conceito puro de triângulo, o triângulo em geral, é
irrepresentável; para ser representado ou construído, ele precisa revestir-se das características
de individualidade. Do mesmo modo que o triângulo em geral, também todos os conceitos
puros são inimagináveis, e, por isto, irrepresentáveis. Quando dizemos, por exemplo: cavalo,
todos sabem muito bem o que é, sem, no entanto, terem de imaginar um certo cavalo em
particular. O conceito é menos que um esquema mental geral, quanto mais uma imagem; para
representá-lo, ele deixa de ser puro, abstrato, para assumir os caracteres específicos de um
determinado cavalo concreto, e já, agora, ele se pinta colorido, vivo, movente, na imaginação,
de onde pode ser transferido para uma tela. Temos, deste modo, a sexta característica dos
objetos ideais: eles são irrepresentáveis.
Por motivo desta irrepresentabilidade dos objetos ideais, eles são pensados como
conceitos puros, e não como imagens. Ora, para toda uma classe de coisas só há um conceito,
e não dois, razão por que tais conceitos são unos, fixos, imutáveis. A imagem de cavalo pode
mudar desde o mais desprezível garrano, desde o pior sendeiro, até os mais refinados e belos
cavalos de corrida, e, ainda, podem aparecer nas mais variadas posições de movimento;
entretanto, seu conceito é um só e não muda. Um triângulo construído com hastes móveis
pode mudar de retângulo para isósceles, para escaleno; todavia, o conceito de triângulo, o
triângulo em geral, é uma idéia, não uma imagem; sendo geral, e não, particular, não pode ser
mudado, donde vem que a sétima característica dos objetos ideais, é serem imutáveis, fixos,
intransformáveis, imóveis.
Se não podem ser mudados, se são fixos, são únicos em si, absolutos, em sua espécie.
Não pode haver de triângulo, de cavalo, de laranja, dois conceitos diferentes. De uma coisa
podemos ter vários aspectos, e imaginá-la pelos seus aspectos; por causa disto, a realidade
integral, total, completa, já se vê, é a somatória de todos os aspectos isolados que determinada
coisa nos pode oferecer. Contrariamente a esta multiplicidade de ser existente, de situações
singulares, de aspectos do real que a vivência nos dá, o conceito, porque ideal, é geral,
universal, único, absoluto, para cada classe de coisas. Uma vez que cada conceito é uma
espécie, absoluto, único em si mesmo, só é idêntico a si mesmo, não podendo haver dois ou
mais conceitos para uma mesma classe de coisas. Deste modo, para os objetos ideais há o
princípio de identidade que diz: tudo é idêntico a si mesmo, e nada se contradiz. Contrapõe-
se a este princípio de identidade o de contradição vigente na substância, pelo que esta é
sempre polarizada. O princípio de contradição afirma o oposto do de identidade, e se
91

enuncia: nada é idêntico a si mesmo; tudo se contradiz. O primeiro princípio diz respeito à
idealidade, à formalidade da coisa, ao passo que o segundo fala da sua realidade objetiva, da
existencialidade. Os objetos ideais, pois, são unos ou únicos, absolutos, regidos pelo
princípio de identidade, e estas são a oitava e nona características de tais objetos.
Decorrente de serem unos ou únicos, absolutos, de serem fixos, intransformáveis,
imutáveis, imóveis, vem a décima característica dos objetos ideais que é a de serem
determinísticos, sem porta para a liberdade. A liberdade coexiste com a substância porque só
esta sendo livre, móvel, mutável, polarizada, pode variar livremente, até à oposição. O Deus
ou Ser dos filósofos, como é imutável e imóvel, está condicionado ao que é, em férreo
determinismo, sem nenhuma liberdade para ser diferente. Parmênides deveria ter posto entre as
qualidades que achou para o Ser: não é livre. Pois os objetos ideais não são livres, são
determinados, determinísticos.
Outra característica dos objetos ideais é a de serem só abstratos e não sensíveis,
passíveis; passibilidade diz respeito aos sentimentos de natureza substancial. A undécima
qualidade dos objetos ideais é serem impassíveis, isto é, desconhecem o sentimento, qualquer
que ele seja. Um Ser que somente fosse pura forma, essência pura, pura idealidade ou
formalidade, só podia estar em nossa inteligência, em nosso subjetivismo. Mas, pondo de lado
isto, vamos supor o impossível que é estar fora, no mundo real, objetivo, apesar de não ter
substância, de não ter corpo: este impossível Ser abstrato, mas que “existe” (!) fora do tempo
(?) e sem substância (!?), assemelhar-se-ia a um computador; conquanto super-humano, não
passaria de um grande Ser robotóide. Os princípios éticos, como são essências, podem estar no
computador; não, todavia, a vivência emotiva, sentimental, moral que é a substância da ética.
Um computador pode resolver problemas éticos, se, para tanto, estiver programado; contudo,
não será moral, não terá alma, afetos, sentimentos. Tal Ser imutável e fixo, sem liberdade,
impassível e insensível, por decorrência, seria frio, impiedoso, justo, inexorável em suas
determinações, em seu determinismo de máquina. Destituído de sentimentos, também não teria
desejos nem vontade. A Criação não existiria então, porque Deus, não possuindo querer, dado
que a vontade é energia-força-substância, não a poderia ter feito; e também, para fazê-la,
precisaria da substância que não existiria nele, e fora dele seria impossível, porque o Ser sendo
infinito não tem fora, não tem limites e exteriores.
Deus seria, portanto, do modo como o intuiu Aristóteles, um Ser ocupado em “pensar
pensamentos”... pensamentos só abstratos, como os da matemática pura, feitos só de
essências universais. E ainda este pensar divino careceria do tempo que o trânsito das partes
do pensamento humano exige para encadear-se; seria um pensamento sem tempo que é
como a intuição instantânea que tudo sabe, e que por isso não precisa pensar. Nem imaginar
coisas poderia Deus, porque as imagens são formações ocorridas no mundo subjetivo, e para
formar-se, precisam de substância, ainda que psíquica, ainda que etérea, ainda que espectral. E
se tal substância existisse, isto é, estivesse no tempo, no espaço, no reino da causalidade, no da
polaridade, no da transformação, essa substância seria como a matéria de Aristóteles,
incompreensivelmente estranha a Deus, mas, como ele, incriada, infinita e eterna. O fato de
Aristóteles se pôr frente a problemas insolúveis para sua época, obrigou-o a criar malabarismos
quais sejam, admitir como possível um Ser sem substância, mas que existe como realidade
objetiva; supor a existência duma matéria estranha a Deus, mas, como ele, eterna e infinita.
Não adianta ser gênio: quando não há a cooperação dos outros campos do saber, os
enunciados e as conclusões filosóficas fatalmente serão absurdos. Eis a razão por que o Deus
dos filósofos não serve para fundamentar nenhuma religião; é que sendo ele pura Forma,
Essência pura, sem matéria alguma (Aristóteles), um Ser surdo-mudo-cego-insensível qual um
robô, por sua impassibilidade de máquina, não se moveria à compaixão, pelo que seria inútil
elevar-lhe sentidas, sinceras e fervorosas preces.
Vimos que os objetos ideais são inespaciais; por conseguinte são inextensos. A idéia
de triangularidade, de circularidade, de cavalaridade não implica a idéia de extensão, de
92

dimensão. Um triângulo individuado por seu nome, uma circunferência referente a alguma
coisa circular, o cavalo de sela alazão podem ter dimensões porque são reais, objetivos,
existentes. Sob o aspecto de generalidade tais entes passam a ser ideais e sem extensão. Do
mesmo modo que não podem ser dimensionados quanto à extensão, não o podem também
quanto à quantidade. Um triângulo individuado, uma circunferência particularizada, como a da
Terra, como a do átomo, possuem dimensões, e os cavalos, além de espaciais, possuem massa,
pesam. O que é ideal não tem quantidade, não é extensível, nem pesável. Os objetos ideais não
são, pois, quantitativos.
Num plano euclidiano, umas linhas não podem ser nem mais retas que outras, nem
umas paralelas mais ou menos paralelas que outras. De circunferências, não há umas mais ou
menos circulares, “circunferentes”, que outras. Nem de triângulo se pode falar em mais ou
menos triangulares. Também não há triângulos mais ou menos belos, nem mais ou menos
perfeitos. Por que? Porque os objetos ideais não têm gradações de qualidade, não são
qualitativos.
Como entre os objetos ideais não há gradações de qualidade, nem de quantidade,
porque não são qualitativos nem quantitativos, podendo-se reconhecer neles apenas
hierarquia de implicação lógica, como a que há entre premissa e conseqüência, por isso mesmo
não há, aí, o que se chama fenômeno. Dado que fenômeno se opõe a nôumeno, os objetos
ideais são noumênicos, ao passo em que os objetos reais são fenomênicos. Falamos de
fenômenos físicos, químicos, astronômicos, biológicos, psicológicos, sociais, econômicos,
políticos, etc., mas não tem sentido falar em fenômenos legais, fenômenos matemáticos... em
se referindo às matemáticas e às leis e princípios científicos. Aqueles achados de relações
matemáticas que podem até ser enunciados como lei, são nôumenos. As matemáticas puras
são noumênicas; as leis das ciências são noumênicas; os objetos ideais são noumênicos.
Contamos quinze características, todas intercorrentes, e, puxando-se por uma, vêm
todas. Mais poderíamos dizer, indo por este caminho, porém, o quanto já expusemos supera
Parmênides, de muito, no que se refere às características do Ser. E chegamos a estes
resultados irrefragáveis, não pelos caminhos de Parmênides, de alta racionalidade, mas pelos
nossos, práticos, domésticos, a partir da laranja, compreensível, portanto, a qualquer um.
A primeira propriedade que Parmênides atribui ao Ser, é a de que ele é único. Pois
bem: sem ir tão alto, perguntamos: é possível haver dois conceitos diferentes de triângulo?, de
cavalo?, de laranja? Assim, os objetos ideais não se submetem ao princípio de contradição, e
sim, ao de identidade, porque são unos em sua espécie, não sendo possível haver dois ou mais
conceitos para uma mesma coisa.
O Ser é eterno, diz Parmênides. Suponhamos que o Ser não fosse eterno; então, teria
tido princípio no tempo e terá fim. Tempo é a duração do movimento; logo o Ser seria móvel,
mutável, não fixo. Tempo e movimento são correlatos, e inversamente proporcionais entre si,
por isso que, quanto menor for o movimento, mais se alonga o tempo, até o limite em que, o
movimento em se fazendo nulo, o tempo fica infinito, isto é, eterno. Por isto, o tempo eterno é
o daquilo que jamais, nunca, se moveu, nem se moverá. Tempo eterno é o mesmo que não-
tempo ou intemporalidade. O tempo estando unido ao moto, faz eterno tudo o que é fixo,
imutável, imóvel. Os objetos ideais, como já hemos visto, tal como o Ser de Parmênides, são
intemporais, ou, se quisermos, eternos.
Sendo o Ser eterno, por isto mesmo está parado, fixo, no que é, sem movimentos, ou
mudanças, ou transformações. Se mudasse, deixaria de ser o que é para ser outra coisa que
também se mudaria em outra, e assim por diante, num continuado vir-a-ser ou devir. Ora, o
que é, e deixa de ser o que é, para ser outra coisa, não-é. Pois o Ser é, e só o não-ser não é.
Para que o Ser seja, preciso é não se mude, nem se transforme. Daí que Parmênides conclui: o
Ser é imutável.
O Ser é ilimitado, infinito, diz Parmênides. Todavia, infinito implica a idéia de
extensão, de espacialidade. Porém, o Ser, tal como todos os objetos ideais, é inespacial,
93

inextenso, imaterial. Como, logo, é infinito? Pois há de ser, como já o dissemos, porque tem
validade universal e transuniversal, não havendo ponto nenhum no infinito, em que ele, o Ser, e
eles, os objetos ideais, deixem de ser o que são.
O Ser é imóvel, diz Parmênides. E é imóvel por duas razões: a primeira, porque é
inespacial; e não pode mover-se, indo de um ponto a outro do espaço, o que não possui, em si,
espaço; e há mais isto: o que é infinito não tem para onde ir, estando já em todos os lugares. A
outra razão é que movimento implica tempo; porém, o Ser é eterno, por isto mesmo não está
no tempo, sendo imóvel. O que é inespacial não pode mover-se no espaço; sem o movimento,
o tempo fica infinito ou eterno, e só pode ter tempo eterno o que é fixo, não móvel. Daí que o
Ser é imóvel.
Aí estão as características do Ser de Parmênides, que não diferem das dos objetos
ideais, cujo estudo fizemos a partir da laranja; são aqueles: único, eterno, imutável, infinito,
imóvel. E nós achamos para os objetos ideais: intemporais, incausais, inespaciais, não
polarizados, universais, irrepresentáveis, fixos, imóveis, imutáveis e intransformáveis,
unos, absolutos, determinísticos - não livres, impassíveis, inextensos, não quantitativos,
não qualitativos, noumênicos. Parmênides fixou o Ser nas alturas; nós o situamos nas coisas
próximas, porque nestas, e por estas, é que ele se manifesta, achando-se nelas imanente, e
estando ainda infinitamente, para além e acima delas como transcendentalidade.
Sem a Substância; sem este veículo de manifestação que a Substância é, o Ser é, mas
não existe. Para que seja e exista, o ser precisa revestir-se da sua divina Substância. Daí que
não há ser real feito só de pura essência, nem só pura substância; todo ser real é uma
unidade sintética que agasalha a dualidade de opostos: essência e substância. O ser que não
estiver revestido da sua substância não é real, mas só ideal; será apenas ente de razão, ou ser
para conhecimento. Pela recíproca, a substância que não estiver organizada pela essência,
também não é ser, é caos. O ser real, para sê-lo, necessita de ambas coisas: a essência que
idealmente é, e a substância que existencialmente realiza, ou seja, que faz a realidade, a
coisidade, a objetividade.
Se o Ser puro é, mas não existe, em contrapartida, a Substância pura existe, mas não
é. A Substância é um não-ser; porém, o Ser é um não-existir. A união de ambos faz o Ser
Existente, e só este é o Ser-Real.
Assentado, como está, que as características do Ser de Parmênides se identificam com
as dos objetos ideais; se as características dos objetos ideais são as mesmas do Ser, em que
sentido o Ser é mais do que os objetos ideais? O Ser é mais, porque abarca, porque implicita
os objetos ideais em sua Unidade absoluta, de modo semelhante ao que ocorre com a
Constituição de um país, a qual implicita todos os decretos, artigos, parágrafos e letras da Lei
mor. Do mesmo modo como nenhum parágrafo, nenhuma letra pode contrariar o espírito, o
sentido, da Constituição, também nenhum objeto ideal pode estar em oposição ao Ser. Cada
letra ou parágrafo da Lei guarda seu cariz absolutista (válido para toda a nação) implicitado no
absolutismo da Constituição. Ora bem: sendo o Ser absoluto, coerente com ele, sê-lo-ão todas
as decorrências que se explicitam dele nas essências das coisas. É por esta causa que Hegel
podia deduzir até a essência de um lápis, do Ser Absoluto. O menos ser do lápis não guarda
sentido de quantidade, mas de hierarquia, de decorrência, de explicitação; o lápis é menos
ser porque decorre por implicação lógica, tal qual, de uma premissa decorrem as
conseqüências de um silogismo. O absoluto é mais ser porque, como Premissa, como
Constituição, impõe essa decorrência que também possui um absolutismo, não fundamental,
mas derivado, conseqüente. O lápis é menos ser porque abrangido; o Absoluto é mais ser,
porque abrangente.
O único reparo a Hegel está em que ele chama realidade, à moda de Parmênides, de
Platão, de Aristóteles, ao que é puramente ideal ou essencial. Se Aristóteles afirma que Deus
é essência pura, sem matéria alguma, esse Deus não pode possuir realidade, porque real vem
de res = coisa, e não há coisa sem substância. O Deus intuído por Platão, por Aristóteles, que
94

é a mesma Razão Absoluta de Hegel, se é Essência pura, não pode apresentar-se como coisa,
res, donde vem que não pode ser real, existencial, temporal, para ser apenas ideal. Todavia,
assim como os objetos ideais são, em realidade, inseparáveis dos seus conteúdos substanciais
sobre os quais cavalgam, o Ser por excelência também terá de possuir substancialidade, sem o
que, não existe. Só idealmente separamos a essência do seu conteúdo; em realidade não se
pode fazer isso, porque toda coisa, sem nenhuma exceção, ... nenhuma!, é um binário,
indissolúvel de essência e substância, assim para o lápis, assim para Deus.
Como a essência se une, inextricavelmente, à sua substância, esta, de natureza
polarmente oposta àquela, esse consórcio de ambas é irredutível a princípio de razão; porque,
para a compreensão deste fato, temos de nos haver com o problema de o que é a substância.
Ora, a substância não-é, conquanto, exista. Como a inteligência só sabe trabalhar com o que é,
com as essências; e como a substância não-é, por isto esta não se reduz a princípio de razão.
Visto que a substância não pode ser entendida pelo saber racional, fica-nos ininteligível a
união fáctica, patente, inquestionável entre essência e substância. Não é com a inteligência,
sozinha, que se há de compreender isto, mas com o aparelhamento complexo em que entra o
homem integral, o homem como um todo. Até Platão, já no fim dos seus dias terrestres,
acabou por compreender isto. Já na velhice, “Platão retoma o problema e, na fase final de sua
obra (particularmente no diálogo Sofista), considera o ser e o não-ser como dois dos gêneros
supremos dentro da hierarquia das idéias. E o importante é que Platão renova a noção de não-
ser, entendendo-o não como um nada ou como o vazio: o não-ser seria o outro, a alteridade
que sempre complementa o mesmo, a identidade” 71. Eis aí: já na Grécia de Platão, tudo o que
dissemos já estava dito.
A razão sozinha, desacompanhada do complexo vivencial, é impotente para resolver o
problema do Ser... porque este não é somente racional. Eis que é chegada ao fim a longa
esperança dos gregos... (esperança abalada em Platão, quando entrado em anos), de que, com
a razão, poderíamos resolver o problema do Ser. Tal problema é da alçada da sabedoria, e,
nesta, o homem age como um todo unitário, e não só com sua inteligência. Por esta razão
poderíamos dizer que a união entre essência e substância é hipostática, mística, divina,
ininteligível, supra-racional, própria da sabedoria, e não da pura inteligência fria, desvinculada
da vida, do afeto, do sentimento, do amor.
O que, pois, não pudemos explicar, por ser ininteligível, mas vivencial, fáctico, patente,
inquestionável, isso deixamos sob a forma de um repto: separe alguém a essência pura de uma
coisa qualquer, do seu puro conteúdo, e nos apresente as duas partes: de um lado, o universo
das essências encadeadas que compõem a coisa, e, do outro, a substância pura, sem essência
alguma: de uma parte, a pura idealidade essencial, e, da outra, o mais inteiro caos
substancial. E garantimos que tal problema será de tão impossível solução, quanto ao do
moto-contínuo, e ao da quadratura do círculo.

71
Os Pensadores - História das Grandes Idéias do Mundo Ocidental, I, 80 - Abril Cultural
95

Capítulo XIV

OBJETOS REAIS - SUBSTÂNCIAS


Se até o presente nos coube estudar as propriedades, ou categorias, ou características
dos objetos ideais que a metafísica apresenta como sendo o ser das coisas, cumpre-nos ver
agora as propriedades polarmente opostas, as dos objetos reais, ou entes (de “ontos” – grego)
donde ontologia. A ontologia, pois, é a teoria ou estudo dos entes, dos seres individuais ou
objetos reais. Como as palavras seres individuais e objetos reais são equivalentes, jogaremos
com elas, conforme a construção da frase o exija. Com esta prevenção, fugiremos à mania
idealista moderna de considerar uma coisa pelo seu aspecto de generalidade, tratando-a pelo
que ela menos tem de real.
Relata-nos, Ortega, uma viagem que fizera, quando ainda jovem, em grande
transatlântico que rumava da Argentina à Europa. No navio, travou Ortega conhecimento com
umas belas senhoras norte-americanas, e, em se referindo a elas, as designou como “mulheres’.
Ofendida, uma delas advertiu-o dizendo que exigia ser tratada como “um ser humano” . A isto,
desabrido, Ortega lhe responde: “Senhora, não conheço essa personagem a que chama “ser
humano”. Conheço somente homens e mulheres (...)”. E acrescenta: “Aquela criatura havia
sofrido, em algum College, a educação racionalista da época, e o racionalismo é uma forma de
beatice intelectual que, ao pensar uma realidade, procura tê-la em conta o menos possível”72.
Esta, a nossa prevenção. A idéia de ente implica na de ser existente, ser individual; ao
contrário disto, a palavra ser é tomada como generalidade que já vimos tratar-se dos objetos
ideais. Assim, um objeto ideal é pura abstração, sem existência, visto lhe faltar a contraparte
72
Ortega Y Gasset, O Homem e a Gente, 164-165
96

substância que lhe daria objetividade, coisidade, exterioridade. Por este motivo, quando
quisermos nos referir àquilo que não é pura idealidade vazia, diremos ser individual, ou objeto
real, ou ente. Deste modo, a entidade duma coisa não é feita só da essência; nela há também a
substância que subestá, ou está debaixo da essência como suporte ou sustentáculo. Ontologia
e metafísica são, pois, as duas grandes divisões da filosofia: a primeira tratando dos entes, por
sua natureza, individuais, e a segunda cuidando dos seres, por sua natureza, gerais, universais.
Tomemos, de novo, a laranja na mão. Agora vamos analisar nela aquelas idéias que
Descartes chamava obscuras. Obscuras, por que? Porque nosso pensamento, pela sua própria
natureza, só sabe trabalhar com essências, com conceitos, com objetos ideais. Ora, a realidade
da laranja é vivencial, sensível, sensorial, substancial. E como nosso pensamento trabalha com
essências, tudo o que é de natureza substancial se nos torna obscuro. A cor da laranja, que nos
entra pelos olhos, sua rigidez ao tato, seu cheiro, seu sabor, o ser ela fria ou quente, leve ou
pesada, lisa ou rugosa são experiências sensíveis, são vivências; e depois de ingerida a laranja,
ela passa a impressionar os sentidos internos, a provocar as informações gastro-intestinais, as
glândulas, as respostas do cérebro, de gosto ou prazer, de sorte que, no conhecimento
vivencial, factual, o ente que somos age como um todo. Entendemos muito claramente tudo o
que constitui pura idealidade. Mas toda a substancialidade é-nos obscura; contudo, a vida nos
impõe ou põe-nos a laranja como um objeto real, e não se contenta com sua pura idealidade
ou formalidade. Ninguém gostaria de ter para “chupar”, somente laranjas ideais. Então, temos
de nos haver com o conteúdo das coisas, embora desaparelhado de um órgão central
especializado como é a razão que domina muito bem os objetos ideais. Ou melhor: nosso
aparelhamento para enfrentar o substancial, é o complexo de todos os sentidos externos e
internos, participando disto toda a nossa vida de onde se deriva a palavra vivência.
Os animais inferiores, os pássaros frutífagos, têm vivência da laranja lá pelos seus
mecanismos pelos quais sabem sentir ou gostar. As aves são pobres de olfato, e os cães,
riquíssimos; como, pois, seria a vivência da laranja para uns e outros destes animais? Não o
sabemos, porque, não vivendo suas vidas, não podemos ter suas vivências, e estas são
intransferíveis. Mas a laranja, como pura idealidade, como conceito puro, isso, podemos
assegurar, nem a ave nem o cão o tem. Se podem os animais imaginar a laranja, é dúbio; que
têm memória dela, é certo, pois a reconhecem quando a encontram. Enfim, toda esta
obscuridade resulta de que a substância é escura e confusa. A formalidade das coisas é
transferível, é transmissível pelo conhecimento. A substancialidade, como é carreada por
vivências pessoais, não se transmitem; cada um terá que ter suas próprias vivências se quiser
saber (de sabor) o que cada coisa é, ou seja, como a substância se mostra na coisa
especificamente modificada. Não adianta mostrar o cloro e o sódio que compõem o sal-de-
cozinha para um indivíduo que não tem vivências do sal, na esperança de que, com isto, ele
venha a saber o que seja o cloreto de sódio. Ou tem vivências do sal-de-cozinha, ou não saberá
nada do sal, ainda que conheça muito bem todas as propriedades físicas do cloro e do sódio
isolados.
Não há separação possível entre nós e as coisas, entre o meio e nós; nós estamos na
paisagem, e ela, em nós, e ambos consistimos no mundo. Se as coisas não estivessem aí, à
mão, à nossa frente, e nós frente a elas, não poderíamos ter vivências. Eliminamo-nos, e nos
cessam as vivências do mundo; eliminamos o mundo à nossa volta, e, igualmente, as vivências
nossas cessam. Este consórcio inextricável entre o mundo e nós, entre nós e o mundo, forma o
nosso lastro vivencial sobre que se edificam as nossas convicções mais entranhadas e
profundas, aquelas idéias que somos (crença), diferente das idéias que produzimos, que
discutimos, que sustentamos, que afirmamos ou negamos (Ortega). Nossas vivências são
indiscutíveis, porque nós as somos, e, por isto, nos recusamos a pô-las em discussão, uma vez
que são só nossas, privativas, intransferíveis, pessoais. Não reconhecemos nenhuma autoridade
suficiente para convencer-nos de que as nossas vivências são falsas, ilusórias, porque, se isto se
tentasse, nós continuaríamos tão convictos qual dantes, indiferentes, impenetráveis,
97

obstinados... porque nós somos as nossas vivências que, como conteúdo, como substância,
enchem os ocos dos nossos conceitos, do nosso saber intelectual.
Não adianta alguém armar silogismos refinados, ardilosos, argutos, para nos “provar”
que o mundo é bom, perfeito e justo, se temos vivências do contrário. É preciso que esse
alguém, aceitando, taxativamente, que o mundo é bom, nos demonstre por que o é, e não
pretenda confundir-nos, por meio de artifícios ardilosos de razão, com o fim de fazer-nos crer
que o mundo é justo e bom. E mesmo quando mudamos do que críamos antes, para nova
crença, fazemo-lo apoiados nas vivências, em referência a elas, em função desse lastro
vivencial que sempre subjaz, estratificado, como terreno, como base nossa. Nossas vivências
serão sempre fácticas, verdadeiras no seu existir, ainda que invertidas, negativas e falhas;
então é que, com fundamento nelas, criamos nossa crença, oposta à anterior, mas sempre com
base nas vivências... que passamos a interpretar às avessas de antes.
Nossas vivências são, pois, a nossa janela que dá para a paisagem além da qual se acha
o mundo. E se este se nos mostra negativo, egoísta, feio e mau, cumpre-nos, com base nestas
vivências nossas, fazer, em nós, a inversão delas. Este é o único modo de adquirirmos uma
crença positiva, crença que significa o mundo pelo avesso; crença que se firme como negação
do mundo negativo; crença que se proponha a inverter o negativo das nossas vivências no seu
oposto, no positivo; crença que seja contrária às convicções anteriores de quando cuidávamos
que o mundo se nos mostrava em positivo.
Este trabalho de inversão das vivências, de negação desse negativo que aí está à nossa
vista, patente, inquestionável, foi o primeiro da filosofia. Daí que ela começa propondo a
existência de dois mundos: o que está aí, negativo, sensível, patente, vivencial, e aqueloutro
inteligível, positivo, oculto, que resultou da “revelação do negativo”, como em fotografia,
dando-nos o retrato em positivo do mundo verdadeiro, luminoso, justo e bom.
Contra as filosofias que já foram, temos, porém, que fazer estes reparos: elas chamaram
de mundo real, ao mundo inteligível, ao mundo da razão, quando ele é apenas ideal, e, se
não estiver sustido, subestado pela substância, é, mas não existe. O segundo reparo é que elas
sempre consideraram este nosso mundo ilusório, aparencial, fósmeo, alucinante, véu de
Maya hindu, o que absolutamente não o é. Nosso mundo é real, mas invertido, negativo.
Conquanto negativo, eis o que os antigos filósofos não viram!, ele é tão real quanto o saldo
negativo de uma conta bancária que temos de pagar. E contra os que nos replicarem que este
nosso mundo é o do não-ser, por motivo da presença da substância cuja estrutura é o
movimento, respondemos que, em contrapartida, o mundo inteligível e transcendente dos
filósofos é o do não-existir, precisamente, por causa da total ausência do subsistente por sua
natureza móvel e transformável. Ora, para nós – eis o que há de novo, e que hemos
demonstrado – tanto o mundo transcendental como o nosso, são ser, pela essência, e são
existir, pela substância. Apenas que, nos primórdios do nosso universo, no mais rude e inteiro
Caos, a substância se mostrou totalmente invertida e negativa e, por esta causa, ela ainda
está, em parte, no avesso de como ela é no topos uranos de Platão, no mundo celeste de onde
ela desceu até o extremo Caos. Na parte já desinvertida, o nosso mundo participa (Platão) das
qualidades positivas do mundo transcendente, arquiluminoso, sem morte nem miséria e dor.
De maneira que são muito diferentes os dois saberes, o saber intelectual e o saber
vivencial. O primeiro é absoluto, válido para todos, e por isto, indiscutível, pelo menos na zona
do feito e acabado. O segundo saber, o vivencial, é relativo a cada indivíduo, uma vez que não
temos modo de obter a certeza de que a vivência duma coisa, por um indivíduo, seja idêntica à
de outro, relativamente à mesma coisa. Não temos meios de saber se nossa vivência da laranja,
de dada laranja, é idêntica à mesma experiência dela feita pelo nosso vizinho. Daí que, na nona
característica dos objetos ideais, pusemos que são absolutos, decorrendo, este absolutismo, de
serem universais. Como o saber intelectual, racional, se origina do conhecimento dos objetos
ideais, por isso ele é um saber absoluto, universal; sendo um saber absoluto, universal, então,
temos que ele é conectivo; por sua identidade todos os entes racionais se ligam, se comunicam,
98

se interatuam. Tal saber é inquestionável, exceto na zona em que ainda não está
completamente acabado, na zona em que ainda reina a ignorância. Já o saber vivencial é
altamente discutível, porque relativo e separatista. A própria inteligência que vem de ler entre,
busca o nexo que tudo unifica; busca o Eros que é o princípio de integração. E aqui já se
vislumbra que a mais alta racionalidade se confunde com o amor formal, com o amor
essencial, com a ratio do amor que é Eros. Mas se Eros é essência do amor, o amor
vivencial, sensível, vivo, atuante, fáctico, é a substância de Eros, e tudo o que, do átomo ao
universo, se une, se integra a outro, pratica um ato amoroso. O saber vivencial, pois, é
relativo, individualista, separatista, ao passo que o racional, na zona do feito e acabado é
absoluto, socializador, integrativo.
Tomemos, de novo, a laranja na mão. Sentindo sua forma, sua rigidez, seu peso,
concluímos por sua realidade, por sua coisidade, por sua materialidade, por sua
substancialidade. Tudo isto condensaremos no enunciado: os objetos reais são opostos aos
objetos ideais. Colocado isto, façamos a primeira pergunta ontológica, na mesma ordem com
que fizemos e respondemos às quinze perguntas metafísicas, as perguntas relativas aos
objetos ideais.
A laranja concreta é intemporal como sua forma, o esferóide?, como seu conceito
puro, como sua essência? Não. A laranja está no tempo; teve começo e tem fim; tem sua
história. É, portanto, temporal.
E teve causa na semente que deu a laranjeira que produziu as flores de que surgiram os
frutos com suas sementes. É, então, causal.
Que também é espacial não padece dúvida, visto que podemos medir-lhe as três
dimensões. Conseqüentemente é espacial. Decorrente de ser espacial, é dimensionável,
extensível. E que possui qualidades tais como peso, densidade, cor, cheiro, sabor, etc., não há
negar. E, como a laranja, todos os objetos reais são extensos, quantitativos e qualitativos. Os
objetos reais possuem qualidades gradativas: a altura das árvores, o peso das rochas, dos
animais e das plantas, a idade das coisas e dos seres minerais e orgânicos, as qualidades morais
como a coragem, o desprendimento, a renúncia. Visto que os objetos reais são transformáveis,
podendo mudar-se, alterar-se, até seu oposto (polaridade), segue-se que sofrem gradações. A
coragem, por exemplo, varia de qualidade desde a temeridade até a covardia. Cervantes já
afirmava que “assim como é mais fácil vir o pródigo a ser liberal do que o avaro, assim mais
fácil é dar o temerário em verdadeiro valente do que o fraco” 73. Se, pois, admitirmos a
temeridade e a prodigalidade como qualidades positivas, respectivamente, teremos essas
mesmas qualidades em negativo na covardia e na avareza. Ora, se o apoucamento progressivo
da temeridade leva à coragem e à covardia, segue-se que a diminuição quantitativa duma
qualidade, leva à qualidade oposta. Pela recíproca, se houver o aumento quantitativo duma
qualidade, ela muda de polaridade. A coragem é uma virtude: pois seu aumento leva à
temeridade que é um vício (desatino), e, sua diminuição, à covardia... que também é um vício,
oposto ao da temeridade. Neste sentido, o vício não é o oposto da virtude, porque esta é a
posição mediana entre os dois extremos igualmente viciosos. A virtude é, então, a áurea
sentença de Aristóteles que afirmava: “in medio virtus”.
Assim, dada à fluência, ao devir a que as coisas estão sujeitas, alterando-se os
elementos constitutivos duma coisa, alteram-se as relações, isto é, as qualidades se mudam. É
por este motivo que, segundo observa Hegel, a mudança de quantidade altera a qualidade. O
gelo aquecido torna-se água a zero grau centígrado; a água torna-se vapor a cem graus: pela
recíproca, o vapor refrigerado faz-se água, e esta se torna gelo se a quantidade de calor
continuar diminuindo. O ponto de passagem que marca a mudança de estado da água, seja pelo
aumento, seja pela diminuição da quantidade de calor, se chama ponto crítico. Explicar um
fenômeno é dar a razão por que houve alteração das qualidades. Essa explicação é a essência,

73
Cervantes, D. Quixote, II, III - Clássicos Jackson, Vol. IX
99

ou forma, ou inteligência, ou idealidade do fenômeno, a qual se mostra como lei (nôumeno)


na física, na química, na astronomia, e como teses nas ciências biológicas e sociais.
O homem avança na direção da essência íntima dos fenômenos, sem, contudo, esgotá-
la, em suas implicações com o todo. Todavia, no particular, no isolado, saber que a água se
evapora a uma temperatura constante a que se convencionou chamar cem graus centígrados;
ou então, que a causa de a água se tornar vapor, tem seu porquê no aumento de calor, isso é
atingir a essência íntima do fenômeno. Se não pudéssemos penetrar a essência íntima dos
fenômenos, descobrindo-lhes as leis, não poderíamos, depois, baseados nessas leis, ou
princípios, construir nossas máquinas. As máquinas, porque funcionam, são as provas
acabadas de que as leis e os princípios descobertos estavam certos, e, que, logo, pudemos
penetrar a essência íntima dos fenômenos, fazendo que o outrora em si dos fenômenos e das
coisas, se tornasse, também, para nós. Deste modo, por exemplo, a função clorofiliana dos
vegetais é o que sabemos ser, e não, mais; também não é mais do que sabemos ser, o
fenômeno da respiração animal. Se a essência íntima dos fenômenos fosse impenetrável para o
homem, ele não poderia, como o faz, dominar a natureza, obrigando-a a trabalhar para si.
Tudo, pois, que está abaixo do nível humano pode ser dominado pelo homem; não pode
sua inteligência dominar o que se acha do seu nível (este inclusive) para cima, nem dominar
as implicações das coisas com o todo, porque isto lhe transcende a faculdade de entender. No
entanto, o aumento constante da quantidade de conhecimentos, acaba por mudar-se em
qualidade, e o homem ignorante se torna culto, e, depois, sábio. A sabedoria é a potenciação
da cultura que resultou da somação quantitativa dos conhecimentos. A sabedoria resulta da
destilação do acervo de conhecimentos e das vivências adquiridos em muitas existências
corporais terrestres sucessivas.
Tudo isto mostra que os objetos reais tem polaridade, são polarizados; a laranja, que
tomamos para exemplo, é feita toda de contrários a principiar pelo seu conteúdo e forma que
se opõem. E tudo nela, dos elétrons e prótons acima, passando pelas moléculas orgânicas,
pelas células, tudo é feito de opostos que se harmonizam em unidades cada vez maiores, até a
construção da laranja como um todo. Logo, ela possui polaridade.
E seria a laranja universal, existindo ela no Sol, na Lua, em todo o sistema planetário,
galáctico, sideral? Antes pelo contrário, esta laranja que temos na mão, é individual, possuindo
características próprias, específicas, que a tornam única..., única por individuação, por
diferenciação, diferente de uma por generalidade conceitual. É, pois, individual.
E pode ser imaginada, desenhada, representada numa fotografia, pintada, esculturada.
É, portanto, representável.
Seria imutável ? A laranja foi um vir-a-ser desde a seiva, a flor, o fruto minúsculo que
cresceu até seu tamanho pleno e madurez atestada por sua cor dourada. E pouco mais, cai da
árvore e apodrece no chão, dando em nada-laranja. E se foi colhida, também dará em nada ao
transformar-se no tubo digestivo de quem, animal ou homem, a devorar. É, conseqüentemente,
mutável.
Porque mutável, uma determinada laranja é única, inconfundível em sua entidade, de
modo a se poder dizer-se: não há duas laranjas iguais. Se obtivermos duas laranjas idênticas
quanto à aparência exterior, elas serão diferentes quanto à estrutura interna e disposição das
células e das moléculas orgânicas. Cada laranja, em qualquer fase de sua existência, se
diferencia de outras por seus caracteres ontológicos, isto é, de ente inconfundível. Mas esta
unicidade não se deriva do princípio de identidade, e sim, do princípio oposto de
contradição. Sua variabilidade, no sentido de ser diferente de outras laranjas, a faz única em si
mesma. Trata-se de uma unicidade que fragmenta e separa o todo abstrato em indivíduos
reais, e não como na unidade do conceito de laranja que só pode ser um, e não dois, o um
abstrato em que se reúne o multifário dos entes específicos, reais e individuais. Unidade por
generalização universal se difere, polarmente, da unicidade por individuação, por
100

diferenciação. Visto como não pode haver duas laranjas idênticas, mas todas são laranjas,
segue-se que elas são multifárias, pluriformes, relativas.
Os objetos ideais são determinísticos, sem porta para a liberdade de querer, de agir ou
para ser de outro modo, diferente do que são. Mas a laranja pode ser de muitos modos, numa
como liberdade de ser diferente de todas as demais laranjas. E não há determinismo onde se
permitem variações ilimitadas, infinitas. Os objetos reais são, conseqüentemente, livres.
Quanto a serem impassíveis as laranjas, digam-no, em contrário, as geadas que as
queimam, os granizos que as ferem, os parasitos que as deformam, tornando-as doentias, feias,
enferrujadas, mortas. As laranjas padecem, são passíveis.
E vimos, atrás, que os objetos reais são dimensionáveis, quantitativos, qualitativos,
fenomênicos, em oposição aos noumênicos objetos ideais. Então, podemos construir o
seguinte quadro sintético:

Metafísica Ontologia

Objetos ideais - seres puros Objetos reais - entes existentes

Intemporais Temporais
Incausais Causais
Inespaciais Espaciais
Sem polaridade Polarizados
Universais, gerais Individuais, particulares
Irrepresentáveis Representáveis
Fixos, imóveis, imutáveis, intransformáveis Móveis, mutáveis, transformáveis
Unos Multifários, pluriformes
Absolutos Relativos
Determinísticos Livres
Impassíveis Passíveis
Indimensionáveis Dimensionáveis
Não quantitativos Quantitativos
Não qualitativos Qualitativos
Noumênicos Fenomênicos

Fica-nos clara toda a confusão dos filósofos universalistas que chamavam reais aos
objetos ideais. Platão, na cabeça da sua escola, considerava real a pura idealidade abstrata,
caindo no absurdo de representar tais idealidades formais, tais formas arquétipos puras,
universais, pondo tais representações ideográficas de fronte às almas, a fim de que estas as
contemplassem lá no lugar resplandecente. No pináculo das formas está a Forma do Bem da
qual todas as demais se derivam. Esta Forma suprema está escoimada de todo o compromisso
com o sensível, e, no entanto, Platão acha seja possível representá-la. Como representar
figurativamente a Forma do Bem ?, a forma dos irracionais matemáticos ?, a forma da
triangularidade ?, da cavalaridade ?
Contrapondo-se a este universalismo realista, Aristóteles, à frente dos seus
nominalistas, apresenta um realismo moderado. Para ele, o real é a forma que dá ser às
coisas. As essências puras universais não tinham existência alhures, não indo além de
idealidades abstratas que só podem estar em nossa inteligência. São meros recursos da nossa
inteligência, e não realidades objetivas. Estas realidades objetivas são as formas, as essências
das coisas, enquanto estão nas coisas, e não fora delas; quer dizer: para haver as realidades
das essências, era preciso houvesse as coisas nas quais aquelas realidades estavam; ora, coisas
não há sem substâncias; logo, essências e substâncias estariam presentes nas realidades das
coisas. Então conclui: as essências são tão necessárias às substâncias, quanto estas, àquelas.
101

Depois desta sentença lapidar, sai-se com o seu absurdo ao afirmar que Deus é pura forma
sem substância, essência pura sem matéria alguma, portanto, essência ou forma universal,
abstrata, qual as de Platão, mas que existe como Ente, como Ser individual algures.
E cabe, também, outra observação já vista em parte, que nos prepara para entender
toda a confusão de que estiveram presos todos os filósofos modernos. Como é que sendo tão
diferentes, tão contrárias, tão opostas, podem coexistir, pacíficas, a essência e a substância na
realidade das coisas? Todo ente se compõe de essência e de substância, de conteúdo e de
forma; a dicotomia destes dois aspectos só nos pode dar meio ser, e sempre a filosofia se
contentou só com esta metade ideal do ser, com a parte ideal das coisas; por que ? Porque,
estando os filósofos na crença dos gregos de que, com a razão sozinha, poderiam dominar o
ser-das-coisas, na verdade, nunca souberam haver-se com a outra metade, a metade
substancial, por ser esta inacessível à razão. Quando os filósofos idealistas nos afirmam que as
coisas só nos enviam impressões, enganam-se, porque as vivências que temos das coisas não
existiriam, se tais impressões não fossem já duplas, já constituídas de forma e de conteúdo;
haja vista o nosso desafio: separe alguém, de qualquer coisa, sua essência de sua substância,
de modo a nos apresentar o universo formal puro dela, de um lado, e, do outro, o inteiro caos
substancial. Como é, então, que as coisas fariam o milagre da dicotomia, enviando-nos só as
impressões substanciais desacompanhadas de suas respectivas essências? Quem, ao mexer
num fio elétrico carregado, tomar um choque, recebeu uma pura impressão; um jacto de luz
nos olhos, ou um ruído forte não identificado, também são impressões caóticas; mas dizer que
a paisagem que vemos e a música que escutamos são puras impressões? Em nosso psiquismo,
em nossa imaginação, as coisas reais do mundo se refletem, se copiam, tal qual estão lá fora.
Se lá fora, as coisas não possuíssem essências, seriam pura substância, e a pura substância é o
caos. Pois bem: quem poderia dar-nos a idéia de o que seja o caos? Ninguém, porque o caos é
uma não-idéia, uma ausência de ser, de essência, e, por isto, ininteligível. No entanto o caos
existe; ele está lá onde a pura substância (que, emocionalmente, intuímos, mas não
conceituamos) se resolve sem ordem, sem lei.
A teoria do conhecimento não há de ser como o entendia Kant, e sim, como o prova a
evolução biológica. A vida foi uma organização da matéria pelo método do acaso, mas cujo
objetivo era acertar com o que impunha, estabelecia a lei ou forma pré-estante que, por sua
natureza, é incausal, intemporal, inespacial, una, absoluta, etc.. Essa vida surgiu,
concomitantemente, com seu instrumento, o arranjo da matéria, um atuando sobre o outro na
proporção em que a evolução avançava. Primeiro um tubo digestivo; depois, a proteção de um
invólucro; mais tarde, um sistema de sensores, de comunicações e de comando entre as partes,
que são os rudimentares órgãos dos sentidos e o sistema nervoso. Este se complicou cada vez
mais pela escala zoológica acima, até que a vida criou um aparelho complexo de registro e
interpretação, que é o primitivo cérebro. Os embates do meio provocaram a criação dos
órgãos dos sentidos; o olho nasceu de células que se especializaram em sentir a luz, e, depois,
estas células se aglomeraram em determinado ponto - o olho. Os olhos são do modo que são,
porque princípios óticos pré-estantes os regem. O olho do homem é como o olho da Siba ou
como o olho artificial, a câmara fotográfica, não por derivação evolutiva, e sim, por puro
paralelismo. Os princípios óticos, estudados na física (incausais, intemporais, etc.), impuseram
ao olho formar-se segundo eles, princípios, e não de outro modo, porque não o há. O acaso é
apenas o método empregado pela natureza, ao fazer sua loteria de probabilidades. Quando dá
o número, o fenômeno acontece, a criação se realiza. Dar o número significa preencher as
condições da lei. O que cria é a essência causadora e incausada, a lei, o Deus imanente, ainda
que o ensaio-e-erro, o acaso, seja o método empregado pela natureza em nosso mundo surgido
do Caos. “O universo é a matemática tornada substância” 74. O acaso como criador é uma
palavra sem sentido proferida por um desatinado.

74
Fritz Kahn, O Livro da Natureza, I, 106
102

Os reflexos condicionados de Pavlov, a associação de estímulos, são, já, uma forma


embrionária de “reflexão”, a que Bertrand Russell dá o nome de “inferências fisiológicas”,
ainda muito aquém da mais simples associação de idéias, que Kohler demonstrou existirem, já,
nos macacos. Pavlov, e não Kohler, demonstrou que a primordial forma de associação, é a de
estímulos, e não, a de idéias, como pensara Ortega. Assim, a mais remota forma de raciocinar
está na associação de dois acontecimentos sucessivos, sendo, o último, a conseqüência do
primeiro. Depois disto, logo, por causa disto – eis o “raciocínio”, orgânico, biológico, muito
ainda aquém da pré-razão. Bate a campainha, e vem logo o alimento ao cão. De novo bate, e
alimento novo lhe é servido. Depois de algumas repetições, basta tocar a campainha que as
glândulas salivares começam a funcionar. Para a inferência fisiológica, o som da campainha é a
causa, e o alimento, o efeito; segue-se o efeito à causa. O princípio primeiro, primário, de
razão, descoberto pela vida, foi, portanto, o de causalidade. Não é por acaso,
conseqüentemente, que o homem primitivo tenha concebido a idéia de Deus com base no
princípio da causalidade, pois se o homem não se fez a si mesmo, a causa tem que ser buscada
num fautor transcendental.
E as massas humanas, que fazem a história, ainda raciocinam deste modo, donde os
qüiproquós de que a história está cheia. Um cometa nos céus prenunciava a morte de César;
outro cometa surgido mais tarde, portanto, augurava o fim de Vespasiano..., embora este fosse
careca, e o cometa, cabeludo, conforme contrargumentava o próprio Vespasiano. À-toa não é
que Ciro oferecia sacrifícios aos deuses das cidades as quais ia submeter pelas armas. Criar
equívocos para os adversários, e estar alerta contra os que os pudessem prejudicar, eis as
preocupações primeiras dos que iam comandar os combates. Estando Cipião à frente dos
soldados, ao aportar em terras africanas, tropeçou e caiu: aí estava um mau agouro de que
podia depender a sorte da batalha. E que fez Cipião? Prontamente abraçou-se com a terra, e
gritou para que todos o pudessem ouvir: “Agarrei-te! Ó África! Não me sairás mais das
mãos!”.
Move-nos a riso, ver Kant afirmar que, sem a intuição pura de tempo, os fenômenos
de movimento ser-nos-iam ininteligíveis. A ser verdade isso, temos de supor que tal intuição
pura existe já no descerebrado polvo. Um ente de uma espécie deles, pega uma pedra chata
com um tentáculo, aproxima-se, vagarosamente, duma ostra, e ... zaz!, mete a pedra na bivalva
que, fechando as conchas, prende a pedra; aí, comodamente, o polvo suga a ostra pela fresta.
Uma águia pega uma tartaruga com as garras, eleva-se com ela no espaço, e depois a deixa
cair sobre um penhasco. Não vale ter casco duro, quando o outro é mais inteligente! Um ente
de certa espécie de caranguejos, pega, com as pinças, dois molhos de actínias (anêmona do
mar), como se fossem dois fachos urticantes, e, com eles, ameaça o agressor, tal qual como o
faria um homem, com dois archotes, para afugentar algum perigoso animal. Todavia, segundo
Kant, sem a intuição pura de tempo, nenhum fenômeno de movimento ser-nos-ia
compreendido; logo, os polvos, as sibas, possuem essa intuição, embora carentes de
instrumentação mental, porque sabem para onde querem ir no espaço (intuição de espaço);
sabem quando se hão de locomover devagar, quando, depressa, e quando, rápidos, hão de
enfiar a pedra na bivalva. Os passarinhos, como, de certo, não hão de ter a intuição pura de
tempo, não podem compreender os movimentos do caçador que se aproxima deles. Mas não.
Os passarinhos fogem. Logo, entendem o movimento do que estava antes longe, e agora perto.
Se entendem o movimento, segue-se que possuem a intuição de tempo como o homem? O
passarinho apreende o movimento, como intuição sensível, sem fixar a essência do movimento
que é o tempo, visto como a intuição pura de tempo, ou mesmo seu conceito, até para Santo
Agostinho se fazia embaraçosa conforme ele próprio o confessa: “Se não me perguntam o que
é o tempo, eu sei o que é o tempo; mas se me perguntam o que é o tempo, eu não sei o que é o
tempo”.
Sendo que os homens procedem de baixo, por evolução, em que estágio, de que modo,
por quem e quando, lhe foram conferidas as intuições puras de espaço, de tempo e de
103

causalidade ? E o próprio Kant, na velhice, escreveu uma obra intitulada “Antropologia”, com
base na evolução, e, nela, ele foi taxativo em afirmar, antes de Darwin, que o homem evoluiu
do macaco. Face a esta obra, que diria o velho filósofo da sua obra anterior, a “Crítica da
Razão Pura”? Não é sem razão que Bertrand Russell escreve: “Kant goza da reputação de
haver sido o maior filósofo moderno, mas, na minha opinião, não foi senão uma desgraça” 75.
Os filósofos idealistas, sobre todos, Kant, partindo do princípio de que as coisas só nos
podem enviar impressões, e não mais que impressões, concluíram que as essências são
elaborações mentais nossas, e não, provindas das coisas. Conseqüentemente, nós é que pomos
às coisas as suas essências. Os realistas já haviam dito, em contrário, que as coisas nos enviam
as suas essências através das imagens, visto que estas imagens já carreiam as essências, o que
vale dizer que as coisas nos enviam suas essências.
Conforme o entendem os idealistas, as coisas não nos podem enviar suas essências. Ora
bem: essas coisas, ou são obras de Deus, ou obras da natureza, ou obras do próprio homem.
Se fosse verdade o que dizem os idealistas, ninguém poderia compreender a mensagem de um
monumento, de uma escultura, de uma pintura, nem um invento humano. Mas não. Olhando-se
um invento, podemos enxergar nele o princípio, e, nas obras dos artistas, é-nos facultado ler
suas mensagens, suas idéias. Se assim é para as obras criadas pelo próprio homem, sê-lo-á
também para as obras da natureza plasmadas pelas leis as quais podem ser descobertas. Logo,
as coisas nos enviam, não apenas impressões caóticas, mas suas imaagens organizadas, e,
nestas, porque não caóticas, porque organizadas, vêm-nos, de envolta, suas essências. Qual
das duas correntes está com a verdade?
Ambas estão, e por isto: o cientista e o filósofo são o artista e o inventor pelo avesso. O
inventor parte de um princípio científico geral, abstrato, e dele, dessa essência pura, pura
forma, particulariza seu invento, sua máquina. Do princípio abstrato, ele deduz ou cria a
máquina em sua imaginação, projeta-a no desenho, e depois a concretiza na matéria. Quer
dizer: o inventor pôs a essência na coisa que criou, ou criou-a, segundo a essência ou princípio
que já conhecia. Partindo duma essência que, por sua natureza, é geral e abstrata, o inventor
constrói uma coisa particular, primeiro na imaginação, e, depois, no mundo objetivo. O
movimento vai da essência para a coisa, por via da imaginação. Dando-se à seta a significação
de “vai para”, a cadeia pode ser assim expressa:

essência → imagem → coisa

Então, o inventor põe à coisa sua essência, e este é o único caminho possível segundo
os idealistas. No entanto, o homem inteligente, outro inventor, observando o invento de seu
colega, descobre-lhe o princípio, num processo inverso que é:

coisa → imagem → essência

As impressões ou imagens são a ponte entre essência pura e coisa, e vice-versa. Os


artistas põem suas idéias em suas obras, e nós, observando as obras, abstraímos delas as idéias
dos artistas, que são suas mensagens. E Deus, o Absoluto, o Criador eterno, partindo das
essências puras, imaginou as coisas e seres individuais que saíram, de pronto, plasmados da sua
divina Substância, surgindo, deste modo, o mundo resplendente. Parte deste mundo celestial
ruiu, desintegrou-se, vindo produzir o Caos medonho do qual se originou o nosso mundo, pelo
trabalho lento daquilo que chamamos Natureza; esta, pelo caminho do ensaio-e-erro, pouco a
pouco, foi recriando o descriado e caído, mas sempre só tal aconteceu, quando ela acertou
em ajustar os elementos segundo as essências que pré-estavam desde sempre porque
incausais, intemporais, etc. Agora, nós, observando as tais coisas recriadas pela Natureza,
lhes abstraímos as essências por meio das imagens. Se não houvesse o passo do mundo físico
75
Bertrand Russell, Delineamentos da Filosofia, 102
104

para o imagético, e deste para o das essências, seria também impossível o movimento inverso
que vai das essências para as imagens, e destas para as coisas criadas pelos inventores e
artistas. Ora, se, como dizem os idealistas, não há passo do mundo imagético, todo ele feito de
impressões vindas das coisas, para o mundo abstrato das essências, igualmente, não poderia
haver o movimento contrário, ou seja, a construção de qualquer coisa objetiva, partindo-se da
pura abstração. Se não há ponte das imagens para as abstrações, como o haveria das
abstrações para as imagens? Acaso, a dificuldade não é a mesma? Logo, não seria possível
quaisquer inventos, porque, se é impossível que as coisas nos possam enviar algo mais do que
impressões, igualmente seria impossível a recíproca, ou seja, que as essências pudessem
produzir impressões subjetivas, as imagens, para que, depois, as transferíssemos para o
mundo físico, para o mundo objetivo.
A verdade, porém, é que aquilo que um projeta para fora de sua intimidade, seja Deus,
seja a Natureza, seja o inventor, seja o artista, outro, num movimento inverso, pode recolhê-lo.
Este movimento, como sói acontecer com os demais movimentos, é reversível, donde vem que
realistas e idealistas têm razão, cada um com sua parcela de verdade. É deste modo que os
homens, em observando a natureza, colheram-lhe as imagens, e destas abstraíram as essências,
os princípios das coisas, as leis dos fenômenos. Num movimento inverso, partindo das
essências, dos princípios, das leis, produziram outras imagens e as projetaram no mundo
objetivo, criando uma como sobrenatureza que são as cidades com seus arranha-céus, com
suas indústrias, suas máquinas, veículos, instalações, tudo, enfim, da civilização e da técnica.
A dificuldade em entender-se que as essências, por sua natureza formal ou ideal se
unam às imagens subjetivas de natureza substancial, é a mesma de quando dizemos que, na
unidade de qualquer coisa, sua forma está, inextricavelmente, ligada a seu conteúdo. Aqui,
fazemos lembrar o nosso repto. Contudo, se ninguém for capaz de realizar o impossível dele,
que não se admire do fato patente, inquestionável, de que se abstraiam essências, conceitos,
das imagens das coisas, ou de suas impressões. Essência e substância são polarmente opostas;
a essência é racional, intelectual, formal, ideal, ao passo que a substância é vivencial, real,
objetiva, irredutível a princípio de razão. As essências são o objeto dos nossos
conhecimentos ao passo que as substâncias são o objeto do nosso saber... saber que vem de
sabor, de saborear, de experiência sensorial, de vivência. Sabedoria é vida, é experiência, e
não, mero conhecimento abstrato, intelectual, teórico, livresco, absolutamente desvinculado
das vivências. Por isto é que se precisa viver e ter vivido, para, depois, filosofar; assim é que
entendemos e aplicamos o aforismo latino: “primum vivere, deinde philosophari”.
Esta é a razão, e não há outra, por que a coruja de Minerva só levanta seu vôo ao
entardecer... das civilizações. Povos primitivos não produzem filosofia, não tanto por falta de
filósofos, nem de riquezas, nem de lazer, mas por carência de amadurecimento coletivo, de
vivências neste campo... Ainda não viveram o bastante, para, depois, pensar... Enquanto
sobram energias, como ocorre com todos os jovens, vão-se ao trabalho e aos prazeres.
Quando a civilização envelhece, então é que se vai dar ouvidos aos espíritos filosóficos, já, de
si, velhos, que sempre existiram em todos os tempos e povos. Existiram sempre, contudo, não
puderam aparecer, porque os povos jovens não constituem sociedade de consumo para as
obras filosóficas, e os poucos, os raros filósofos que há, perdem seu tempo em escrever, pois
são dissuadidos pelos editores que se recusam a publicar-lhes as obras, por causa de não haver
mercado para elas. Povos primitivistas, ricos ou pobres, não importa, como as crianças, não
padecem da angústia do desconhecido; guiam-se muito bem por sugestão, sem nunca
perguntar: por que ? Precisam agir, fisicamente, porque lhes sobram energias, e, para este fim,
qualquer pretexto serve. Na madurez e velhice, todavia, do homem e dos povos, as energias,
em se sublimando, se transferem para a zona do mental, a dúvida azucrina-os, a indagação do
desconhecido os atanaza, e, então, surgem os filósofos, porque, aí, suas obras se tornam
socialmente úteis, ao contrário de antes que elas eram dispensáveis, quando não irritantes,
impertinentes, odiáveis. Deste modo, embora possa haver espíritos filosóficos no seio dos
105

povos imaturos, eles acabam por aceitar a verdade de Sancho Pança que dizia: “O ofício que
não dá de comer a quem o tem não vale dois caracóis”..., pois até o “abade janta do que canta”
76
.

76
Cervantes, D. Quixote, Clássicos Jackson, IX, 2, 293 e 391
106

Capítulo XV

NOSSA CIVILIZAÇÃO EM QUEDA


O livro “Origem das Espécies” de Darwin saiu à luz em novembro de 1859, tendo-se
esgotado a edição no mesmo dia. O livro era passado de mão em mão, provocando os mais
acirrados debates entre as duas facções irreconciliáveis até hoje: a dos criacionistas e a dos
evolucionistas. Essa vitória estrondosa do livro se deveu a que a idéia estava preparada desde
há muito, para ser mais claro, tal idéia nascera já na Grécia. Todavia, o tema pegou fogo
mesmo foi nos séculos XVIII e XIX. Tudo o que se previu, então, que ia acontecer, se essa
idéia triunfasse, de fato aconteceu. Pouco a pouco, aquelas previsões dos criacionistas se foi
realizando, até que chegamos ao hoje da nossa civilização em plena queda. O evolucionismo
afastou Deus do convívio humano; declarou-se, enfaticamente, que ele estava morto; que sua
poltrona ficou vazia. Contudo, como Deus é o fundamento da moral... que disciplina os
costumes, sem essa base para a moral, os costumes principiaram a dissolver-se.
A família tradicional está em colapso, não se tendo ainda evidenciado uma forma
moderna que lhe assegure a estabilidade necessária à educação dos filhos. Estes, por sua parte,
rebelam-se contra os pais, tachando-os de “antiquados”, de “quadrados”, de “coroas”, etc.
Tais adjetivos reservados aos velhos, fazem parte de um vocabulário pobríssimo, próprio dessa
que se convencionou chamar: “geração sem palavras”. O paupérrimo vocabulário de gíria
tem sua complementação nos gestos, numa espécie de retorno às origens, quando os pré-
homens falavam por acenos, por mímicas, por gestos, tal como ainda o fazem os chimpanzés.
A música de tais jovens “prafrente”, como dizem, é um berreiro em meio ao estridor das
guitarras elétricas ensurdecedoras, e as letras de tais cantorias, ou são nada, ou são protestos-
sem-solução, tendentes a destruir o estabelecido, para que, em seu lugar, reine o mais
completo caos. Nunca se vê seriedade nos assuntos abordados pelos jovens modernos, como
se o amanhã não lhes dissesse respeito.
Os mais velhos, e os que adotaram as idéias da antiga geração, da velha guarda, sentem
o choque, mas nada podem fazer com suas fórmulas superadas do criacionismo. Cansados,
esses da velha guarda, dessa luta sem quartel..., em que os moços triunfam e se impõem na
televisão e no rádio, dão de ombros a tudo, passando a ganhar dinheiro, a engolfar-se em
atividades sócio-econômicas, sócio-esportivas, sócio-políticas..., e somente sócio-religiosas,
sócio-salvacionistas é que não.
Na Suíça já passou no Congresso, e na França se discute a lei que autoriza a eutanásia
a ser aplicada em doentes incuráveis, os quais, “caridosamente”, são mortos; pois, se temos
uma “bala piedosa” para um animal ferido de morte ou doente, como não sermos também tal
qual “magnânimos” para com o homem enfermo incurável ou muito idoso? Dado que todos,
como evolucionistas materialistas, ou só materialistas, acreditam que “morreu, acabou”, não
há por que não praticar tais “assassinatos caridosos”! Estes são apenas o lado fino da cunha:
depois do aborto legal... aplicável a “certos casos”, tais “certos casos” ir-se-ão alargando de
sentido, até o infanticídio praticável contra crianças doentes incuráveis, aleijadas e idiotas. É
como o divórcio no Brasil: as “precauções legais” também são só o lado fino da cunha.
Perdida a sua dimensão vertical da sacralidade, o casamento se tornou um assunto só de
legalidade. Já, já o divórcio, no Brasil, será como o das outras nações “civilizadas”. Perdida a
sacralidade do casamento, moralmente, ele se emparelha com a mancebia. O legislador
humano, baseado só em si mesmo, não tem autoridade, não pode infundir respeito sagrado.
Pensava-se nos casais infelizes (que melhor seria chamá-los imaturos) aos quais dever-
se-ia dar novas oportunidades, mas que eram minoria; e fez-se lei geral para atender a essa
minoria excepcional... O excepcional tornou-se regra? Pois, então, é só dar tempo ao tempo,
que o que era a regra (casamento estável) vai-se tornar exceção. Também, na Inglaterra,
morria-se de dó dos pederastas e das mulheres lésbicas, coitados!, pois não podiam ser
107

felizes... Permitiu-se, então, que tais pessoas do mesmo sexo se casassem legalmente. E muita
gente que reprimia suas tendências homossexuais, liberaram-nas..., pois nada há que reprimir
num mundo em que as palavras “virtude”, “santidade”, “comedimento”, perderam o sentido
face ao “morreu, acabou” do evolucionismo materialista. Daí os clubes de libertinagem em
que os maridos trocam de mulheres, e estas, de maridos; daí os casamentos em grupos, em que
tais trocas já fazem parte de disposições estatutárias; daí os festivais de pornografia, a
exploração infantil do sexo, etc. E, em caso de dúvida sobre como agir, sai-se às ruas a
consultar as massas, perguntando aos transeuntes o que acham disto ou daquilo. Antigamente
quem sabia era Moisés, era Cristo, era Sócrates; agora qualquer indivíduo vagabundo opina
sobre assuntos de alta monta. As massas avançam para os postos de comando, num retorno a
Protágoras para quem o “homem é a medida de todas as coisas”.
No meio desta bagunça nascem alguns filhos..., ou os filhos de casais sadios crescem
vendo e participando da bagunçada. Sem nenhuma educação moral, sem nenhuma inspiração
superior, tais filhos sem lares, observadores das orgias, das bacanais, das pândegas, acaso irão
ser honestos e bons? E ficam os ingênuos a perguntar, com caras de bobos: por que será que
cada dia mais aumenta o número de casos de criminalidade infantil e adolescente? Por que cada
dia aumentam mais as escolas de malandragem... que formam doutores-em-astúcia aos
magotes, para que não venha a faltar, em escala mundial, furtos, estupros, assaltos, seqüestros
e assassinatos? Não tenhamos dúvida: o número de bandidos crescerá na medida em que a
família se desintegra e os costumes se dissolvem; os seqüestros ir-se-ão tornando cada vez
mais freqüentes; por causa da enorme concorrência, ou seja, por causa da crescente oferta
desta mão-de-obra anti-social, as exigências dos seqüestradores ficarão menores, passando a
haver seqüestradores baratos; aumentarão, cada vez mais, os mandados de prisão não
cumpridos, por falta de lugares nas prisões já abarrotadas.
O jornal “O Estado de S. Paulo”, em sua edição de 14 de abril de 1977, declarou que o
aumento de criminalidade está preocupando o Secretário da Segurança Antonio Erasmo Dias.
Na Grande São Paulo há três assassínios por dia e quarenta assaltos dos quais sete ficam sem
solução. Na Semana Santa a média diária subiu para sessenta assaltos. “Até 31 de março - diz
o Secretário - tínhamos 41.708 mandados de prisão por cumprir, sendo que 30 mil se referem a
assassinos, estupradores, assaltantes e outros criminosos já condenados pela justiça. POR
QUE HÁ TANTOS CRIMINOSOS À SOLTA? Eu não sei responder”. Os destaques e os
versais são nossos.
O mesmo jornal “O Estado”, de 9 de fevereiro de 1977, traz outra notícia; agora quem
fala é o Secretário da Justiça Manoel Pedro Pimentel que, manifestando-se no II Seminário
Paulista de Administração Penitenciária, diz: “dentro de dois ou três anos, o sistema
penitenciário paulista será, fatalmente, levado a um colapso”; porque “CRESCE
VERTIGINOSAMENTE A CRIMINALIDADE em São Paulo. Fala-se em cerca de 700
delitos por dia, na Grande São Paulo, a um custo zero para o delinqüente. Isso representa, na
melhor das hipóteses, a expedição de mil mandados de prisão por mês”. Os versais são nossos.
Este é o quadro clínico da sociedade em todo o mundo dito “civilizado”, com
perspectiva de piorar até a morte. O que poderia salvar o mundo da falência? As religiões
superiores poderiam. Contudo, elas também, em sendo reptadas pela Doutrina da Evolução,
não souberam replicar. Bispos e padres, por isto mesmo, se fizeram materialistas, comunistas e
ateus, abandonando o mandamento de Cristo que disse: “Dai a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus” 77. Eles passaram a dar a César o que é de César, e a César o que é de
Deus... De salvadores de almas que deviam ser, fizeram-se todos reformadores sociais, ou
parapsicólogos, materialistas disfarçados, que só não declaram isto de uma vez, para não
perderem o governo que exercem sobre o rebanho de crendeiros que, incrivelmente, ainda
existe.

77
Mat. 22, 21
108

Para o padre Osvaldo G. Quevedo, S.J., nem os santos, nem os demônios podem
manifestar-se, e o que se supõe sejam comunicações de santos, de demônios ou de mortos
quaisquer, não passa de efeito arqui-prodigioso do inconsciente humano. A este respeito,
escreve: “O caso de possessão mais notável é o endemoninhado de Gerasa (Mc V, 1-17).
Torna-se difícil dar ao caso uma explicação demoniológica, ao passo que, numa explicação
parapsicológica, o fato se torna bem claro” 78. Mais: “Os demônios, puramente espíritos, sem
corpo ou matéria de nenhuma classe, necessitam de albergue? Passam frio no inverno?
Molham-se quando chove?” 79.
E assim o padre define espírito: pura essência ou forma vazia de substância, “sem
corpo ou matéria de nenhuma classe”. Disse, por outras palavras, que os espíritos são objetos
ideais, subjetivos, abstratos, fora do espaço e do tempo, existentes só na memória dos que
ficaram vivos. Se os espíritos não possuírem uma substância que lhes dê corpo num outro
plano de existência, então, são puras idéias abstratas, ou imagens conservadas na memória
dos vivos; são puros entes mnemônicos ou imaginários, porque, para serem reais, objetivos,
para existirem (tempo), precisam ser constituídos de energia-substância (espaço), precisam
possuir corpo fluídico, espectral, o que implica estarem em outros planos ou níveis de
existência, isto é, no espaço-tempo. Todavia, para o padre, o espírito não tem “corpo ou
matéria de nenhuma classe”! Boa maneira de dizer que “morreu, acabou”.
Fora tudo isto, a que se reduz a autoridade de Cristo que toma os demônios por
entidades reais malfazejas? Se Cristo tivera tomado umas aulas de parapsicologia com o
conspícuo padre Osvaldo G. Quevedo, S.J., não sairia com o estapafúrdio que se lê em Mateus
12, 43 a 45; ei-lo:
“E, quando o espírito imundo tem saído do homem, anda por lugares áridos, buscando
repouso, e não o encontra.
“Então diz: Voltarei para a minha casa donde saí. E, voltando, acha-a desocupada,
varrida e adornada.
“Então vai, e leva consigo outros sete espíritos piores do que ele, e, entrando, habitam
ali: e são os últimos atos desse homem piores que os primeiros”.
Pois bem: aquilo que Cristo sustenta serem espíritos malignos, o padre explica que são
manifestações do inconsciente. Trocando a autoridade de Cristo pela de Antoine Porot, doutor
em psiquiatria, descreve um caso de contorcismo psicopata, depois do que acrescenta:
“(Compare-se com o “endemoninhado” em Lc XIII, 10-16)”. Comparemos então: e que
vemos? Eis o testemunho de Cristo no caso: “E não convinha soltar desta prisão, no dia de
sábado, esta filha de Abraão, a qual há dezoito anos Satanás tinha presa?”.
Pouco mais adiante, Quevedo, falando da afonia ou mutismo histérico, acrescenta:
“(Compare-se com o endemoninhado de Mt XII, 22 ss.)”. Comparemos: e Cristo, defendendo-
se da acusação que lhe imputavam de expulsar demônios por Belzebu, príncipe dos demônios,
diz: “E, se Satanás expulsa a Satanás, está dividido contra si mesmo; como subsistirá pois o
seu reino?”. Cristo declara tratar-se de Satanás ou Belzebu, príncipe dos demônios, e o padre
Quevedo, trocando a autoridade de Cristo pela de Antoine Porot, afirma que tudo não passava
de “afonia ou mutismo histérico”. Se enfermidades diferentes não apresentassem quadros
clínicos iguais, não estaríamos, de quando em quando, nos deparando com lamentáveis erros
médicos... que têm levado muitos à morte!
E do mesmo modo que os demônios, também os santos não se comunicam, nem
recebem preces, nem missas, nem há purgatório, visto que a possibilidade ou capacidade de
sofrer é propriedade do corpo, não, da alma. “É o vivo – diz o padre – que pede a Deus por
intercessão dos santos e pelos méritos dos santos, que lhes conceda o que pede. Colocamos
por intercessores nossos advogados, nossos irmãos maiores que nos precederam na fé. As
orações aos santos não são propriamente uma comunicação com o morto, mas com Deus. E

78
O. G. Quevedo, O que é a Parapsicologia, 115
79
O. G. Quevedo, O que é a Parapsicologia, 116
109

quando um santo nos concede um favor, não é o santo que interfere neste mundo (porque não
pode). É Deus por intercessão ou pelos méritos do santo. A comunicação do ali com o aqui,
somente Deus pode fazê-lo” 80.
O santo ao qual o crente faz sua prece, não pode interferir, intervir, nem interceder,
nem ser advogado por impossibilidade de receber o pedido do fiel a fim de transmiti-lo a Deus.
É Deus que intercepta o pedido e o atende pelos méritos do santo, mas não por sua
intercessão, porque, como já ficou dito, o santo não pode interceder nem advogar causa
nenhuma de ninguém. O santo nem pode receber o pedido do crente, nem pode comunicar-se
com Deus, visto encontrar-se no estado de “dormindo no Senhor”, aguardando o juízo,
conforme o entendem os protestantes, ou seja, como diz o padre, o morto se acha na condição
de “frustrado, inútil, sem agir” 81. Então, o que vieram fazer os vocábulos interceder e
advogado no texto em estudo?
Esta é só uma amostra do que são os padres hoje: de guias espirituais que eram,
fizeram-se, ou reformadores sociais, ou reformadores da religião em tal grau, que o próprio
Cristo e seu Evangelho são corrigidos. Como, logo, não se esvaziarem os templos? Como se
há de guiar um pai de família para educar seus filhos na religião, se seus guias espirituais
apresentam doutrina controvertida, “um Evangelho diferente” (Gal. 1, 6) daquele que Cristo
pregou? Seria que o padre é o Mefistófeles vestido de batina? A falência da religião, a
hipocrisia e materialismo dos sacerdotes produziram a deserção dos jovens, e sua conseqüente
rebelião ao estabelecido. Como tais jovens são completamente vazios, nada têm para pôr nos
lugares das demolições. Eis que, harto, Inge teve razão ao escrever: “As antigas civilizações
foram destruídas por bárbaros de importação; nós criamos os nossos próprios bárbaros” 82.
Qual é a causa fundamental da queda de nossa civilização, da qual decorreu a agonia
das religiões, o crescente colapso da moral e a progressiva dissolução dos costumes? A
Doutrina da Evolução é a causa. Todas as filosofias e todas as religiões são criacionistas, e,
por isto, foram postas em xeque pela Doutrina da Evolução.
A idéia de Deus não nasce de um vácuo intelectual. O homem começou por ver o
mundo em grande, ao longe; e uma tal máquina não poderia existir sem um Autor. O princípio
de causalidade é o primeiro que desponta já no nível fisiológico que são os reflexos
condicionados. O organismo, abaixo da inteligência, já aprende associar estímulos – som da
campainha com alimento. Para o organismo, o som é a causa, e o alimento, o efeito. Todo
efeito pressupõe uma causa; ora, o universo é um efeito; logo, tem uma Causa. O Causador
de tudo, já para o primitivo é o mesmo Deus-Relojoeiro de Voltaire. Por isto, canta o poeta:
“Os Céus proclamam a glória de Deus, e o Firmamento anuncia as obras de suas mãos” 83. Em
místico enlevo, então, o homem fala da harmonia das esferas, da ordem do cosmo, da beleza
da paisagem, da música das aves, do colorido e perfume das flores. O mundo é belo, é bom ...,
e somente um Deus bondoso o teria feito...
Todavia, vem o cientista, com sua demoníaca curiosidade, e tira, com uma pipeta,
algumas gotas d’água de uma calha sob o beiral do telhado. Põe-nas sobre uma lamínola que
leva ao microscópio. Que são aquilo?... que parecem miniaturas, aos milhares, de insetos? São
os infusórios, isto é, seres unicelulares protozoários, animais de infusão. Dentre eles, lá está o
paramécio, grandalhão, em relação a muitos outros.
De um frasco ao lado, o cientista molha a ponta de um estilete, e depois encosta a
ponta na água da lamínola. O frasco continha uma cultura de Didinium nazutum, uma espécie
de infusório esferóide com uma ponta ou tromba. Aquilo que se supõe seja nariz ou tromba, é
a goela que o bicho põe para fora. O didinium é inimigo natural do paramécio. Tão logo
foram postos juntos, começa a batalha... semelhante a uma batalha naval..., em que o
paramécio, muito maior, assemelha-se a um navio-de-guerrra atacado por barcas torpedeiras
80
O. G. Quevedo, O que é a Parapsicologia, 107
81
O. G. Quevedo, O que é a Parapsicologia, 123
82
Arnold J. Toynbee, Um Estudo de Hisória, III, 785
83
Sal. 19, 1
110

(Fritz Kahn). Pelas trombas, os didiniuns expelem dardos, fios de plasma narcotizantes, como
se as trombas fossem canhões. O paramécio arrepia umas como escamas, deixando ver uns
furos laterais, como as bocas-de -fogo dos navios-de-guerra antigos. Por esses furos saem
também dardos de plasma narcotizantes. A batalha prossegue até o esgotamento dos dardos.
Aí começa a luta corpo-a-corpo. Os didiniuns agarram o paramécio com as trombas, e o
obrigam a nadar para trás, de modo a se arrepiarem as escamas, e a aparecerem os furos
laterais. Os outros didiniuns metem as trombas nesses furos, e injetam dentro do paramécio
suco digestivo. Morto o paramécio, é só chupá-lo.
É crível que, nessa menos que gota d’água, tudo isso tenha sucedido? Levanta o
cientista os olhos, põe-nos na paisagem distante, e fica a meditar. Em sua imaginação correm
os quadros já vistos antes. Vê uma leoa perseguindo uma corça, tal qual o faz um gato
espreitando um passarinho; cose-se com o chão aqui, levanta-se ali... atrás da moita, e, de
repente, salta-lhe em cima. Lá vem a leoa arrastando a corça, por sobre o capinzal e pequenos
arbustos. Segue-lhe ao encontro o forte leão jubado que, apoderando-se da presa, a devora.
Depois é que a leoa e seus filhotes vêm saciar a fome nos restos. Muda-se a cena, e eis o
cordeiro sendo pasto do lobo, e o pombo, do gavião.
Deus-da-força?! exclama o cientista, em voz alta, ao dar-se de si, acordando do seu
sonho... O coração palpita-lhe no peito...; a emoção cresce...; parece estar prestes a descobrir
novidades...; inflama-se-lhe a imaginação... tudo corre velozmente... Vê o bicho-pau imitando
um galho seco...; o louva-deus, além de verde, como as folhas, até parece estar rezando, de
mãos postas; eis, no entanto, que se apodera de um incauto que lhe passa perto, e o devora...
Ali está um besouro que se acerca da lâmpada, bate na parede, na porta, no vaso de flores, e
cai sobre a mesa... fingindo-se de morto. O camaleão, a lula, a mudarem de cor...; camuflagem,
mimetismo, o fingirem-se de mortos dos coleópteros todos, e da raposa! ... Acaso Deus é o
Deus da astúcia?, o Deus do engano, do ludíbrio, da mentira, da falsidade? A vida é
egoísta, amoral, desconhece a piedade, e dá a palma da vitória para o forte e para o astuto; e
é Deus o Autor da vida? Eis, aí está, a causa das dores e misérias do mundo! Razão teve,
Schopenhauer, de chamar a Deus de “Demônio Criador” em seu livro “Dores do Mundo” ...
Harto entendeu Buda que todo mal do mundo decorre do desejo de ser!; ser é mal, e
não-ser, bem!...
Este é o aspecto que a Doutrina da Evolução sublinhou desde Darwin: a luta pela
vida, com a vitória incondicional do mais forte, do mais apto, do mais astuto. Força, aptidão
e astúcia são o tripé sobre que se apoia a Natureza na sua mais alta forma de expressão que é
a vida. A visão do mundo evolutivo, como se observa, não conduz à idéia de um Deus de
bondade. Tirando as conclusões que Spencer deveria ter inferido do evolucionismo, Nietzsche
assenta que ser justo e bom é ser forte; a justiça é o desassombro do forte; a piedade é
fraqueza. De tudo isto inferem os filósofos contemporâneos: Deus morreu!, o trono de Deus
é uma poltrona vazia!... E como sem Deus não há moral, nossa civilização está caindo.
Por que caem as civilizações? Dentre tantas respostas, a mais corrente é a de Spengler:
as civilizações caem porque são cíclicas, circulares, donde vem que a história se repete sempre.
E responde ainda Spengler que a causa desse periodismo está em que as sociedades são como
organismos biológicos, sujeitas à lei do nascer, crescer, chegar à plenitude, depois, cair e
morrer. Ninguém reparou, diz Toynbee, que isso não passa de uma metáfora, e que
comparando uma sociedade com um organismo biológico, ambos não se parecem em nada;
nada do que há aqui, há ali, exceto que um e outro nasce, cresce, vive certo tempo e morre.
Sabe-se que o organismo vivo biológico morre porque se esgota a energia do plasma, o qual
não pode ser recarregado como ocorre com os unicelulares que se acasalam para as trocas de
substâncias nuclêicas de tempos a tempos. Que energia, então, se esgota na sociedade que a
leva à decadência e à morte? Que é dos sistemas: digestivo, sangüíneo, linfático, nervoso, de
locomoção, na sociedade? Acaso uma metáfora, mera figura de linguagem, pode servir de base
a conclusões científicas? Mas, então, por que as civilizações são cíclicas?
111

Quando Arnold J. Toynbee chegou a estas conclusões, viu claro que muito ainda havia
por fazer. Andando ele pela Grécia, a pé, a visitar os lugares cheios de história, foi
dessedentar-se num riacho que descia dum outeiro. Tinha já bebido o primeiro tanto, quando,
ao levantar a cabeça para respirar, deu com um pastor que, fazia tempo já, o estava
espreitando. Só então foi que o camponês lhe disse que aquela água não prestava. Disto
resultou-lhe uma disenteria que o maltratou por seis anos, desqualificando-o para o serviço
militar, em razão do que não foi morrer na Primeira Grande Guerra, como aconteceu a todos
os seus colegas de universidade, sem nenhuma exceção. Todos estes colegas, sobretudo os
mais brilhantes, são lembrados com saudade e carinho por Toynbee em seu livro
“Experiências”.
A primeira conflagração mundial foi um baque para a Inglaterra que viu perecer toda a
sua mocidade masculina. Por este motivo, o governo inglês quis saber as causas da guerra,
contratando Toynbee para esse serviço. Ao tempo em que este grande historiador ia fazendo o
estudo para o governo, trabalhava, também, numa obra particular a que deu o modesto nome
de “Um Estudo de História”. Uma obra se socorria da outra e vice-versa. Ao cabo de trinta
anos, com a colaboração de sua primeira e, depois, da segunda esposa, ambos trabalhos
ficaram concluídos. “Um Estudo de História” saiu em dez volumes dos quais se fez uma
condensação em quatro com o mesmo título. Toynbee, lendo os quatro volumes resumidos
pelo condensador, declarou que, se fosse fazer o trabalho, não sairia melhor. Estes quatro
volumes estão traduzidos para o português, e editados pela W. M. Jackson, Inc.
A história desenvolve-se pelo processo a que Toynbee chama repto e réplica, análogo
ao que, na psicologia, se chama estímulo e resposta. Repto é o mesmo, também, que desafio,
vocábulo muito em moda atualmente. As civilizações principiam a cair quando não podem
responder a um dado repto ou desafio. Mais de vinte civilizações que se foram, são
examinadas por Toynbee em sua obra, todas por não terem sabido responder ao último
desafio, ao último repto. Babilônia, Egito, Grécia, Roma, etc., caíram por impotência frente ao
último repto, e não porque tivesse chegado o tempo de elas morrerem, semelhante ao que
ocorre com os organismos biológicos.
O repto de Toynbee é a mesma antítese de Hegel; a história vai-se desenvolvendo
normalmente: é a tese; de repente, surge uma negação ao estabelecido: é a ANTÍTESE
(Hegel), ou REPTO (Toynbee), ou DESAFIO (Moderno). A única solução está na RÉPLICA
(Toynbee), ou SÍNTESE (Hegel). Agora podemos responder a todas as perguntas: as
civilizações mostram-se cíclicas; são cíclicas, porque não souberam ou não puderam responder
ao último REPTO, ou DESAFIO. Qual DESAFIO não pôde nossa civilização responder? O
da DOUTRINA DA EVOLUÇÃO. Qual, a RESPOSTA ? a esse DESAFIO ? A resposta é a
SÍNTESE.
A síntese é, sempre, a abertura de um campo mental novo, uma generalização que
abarque a tese e a antítese na nova unidade; exemplos: a tese-elétron e sua antítese-próton
dão a síntese-átomo; a tese-átomo-positivo e sua antítese-átomo-negativo dão a síntese-
molécula. Núcleo e citoplasma dão célula; homem e mulher, família. O homem primitivo
contava pelos dedos das mãos, e, depois, pelos dos pés, por isto mesmo, esses números são
chamados dígitos ou naturais. Depois surgiu um problema novo, um repto, um desafio: a
necessidade de divisão. O novo conjunto que abarca os números naturais e os números
fracionários passou a chamar-se: números racionais. E conforme as dificuldades foram
surgindo, ou seja, todas as vezes que aparecia uma negação ao estabelecido, quer dizer, uma
antítese, um desafio ou repto, teve-se de criar sempre um campo mental novo, fazer uma
síntese, dar uma RESPOSTA ao REPTO. Isto para a história, para as ciências da natureza,
para as matemáticas, para as ciências sociais, para a filosofia, etc.
Ora bem: tivemos até o século XVIII, o mundo sob o signo do CRIACIONISMO que
dominava todas as religiões e todas as filosofias, exceto a de Spencer que não concluiu no
plano moral. Daí para cá, surgiu a antítese, ou repto, ou desafio do EVOLUCIONISMO. É
112

preciso fazer a SÍNTESE, isto é, abrir um campo mental novo, fazer uma generalização que
abarque em sua unidade o criacionismo e o evolucionismo. Nossa civilização está caindo
porque não fez essa síntese. A GRANDE SÍNTESE FILOSÓFICA impõe-se, portanto, como
uma necessidade de vida ou de morte da nossa civilização. Mas, como fazê-la? O próprio
amadurecimento científico dos tempos nos fornece os elementos para essa SÍNTESE; ei-lo:
a) Matéria e energia são mutuamente reversíveis ou redutíveis;
b) Todas as energias são transformáveis umas nas outras.
Estas duas verdades cientificamente comprovadas, que um grego genial não sabia, e
que qualquer colegial conhece, deram azo a que Einstein, no seu “Campo Unificado”, fizesse
sua generalização, pura tautologia portanto, que diz:
c) Todas as MATÉRIAS e todas as ENERGIAS do Universo são redutíveis umas nas
outras, pelo que se pode dar um denominador comum a tudo que se poderá chamar:
ENERGIA-SUBSTÂNCIA.
d) “Na Natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma” (Lavoisier), pelo
que a ENERGIA-SUBSTÂNCIA do Universo é constante.
e) VIDA é energia-substância visto que não se reduz a essência, e também porque se
nutre do mundo dinâmico que lhe fica abaixo.
f) Os sentimentos, as emoções, a vontade, os desejos são forças que nascem da VIDA,
pelo que, como esta, também são energia-substância.
g) A mais alta manifestação do sentimento é o AMOR; conseqüentemente, o AMOR é
a mais alta expressão da ENERGIA-SUBSTÂNCIA.
h) Como não há posto a subir acima do AMOR, este se torna sem referência e sem
relação a algo acima de si, pelo que ele fica absoluto; sendo o AMOR absoluto, então, o
AMOR é DEUS ou “Deus é Amor” 84.
A vida é algo... além de simples arranjo da matéria orgânica, assim como quaisquer
máquinas são mais que seus arranjos mecânicos; se não houver uma energia que desencadeie
e mantenha o DINAMISMO, nenhuma máquina funciona. No motor a gasolina é necessário a
faísca de ignição: no motor vivo é preciso a energia nervosa para desencadear a queima da
glicose. Essa energia nervosa é a vida, e não o puro e simples arranjo mecânico das peças
anatômicas a partir da biologia molecular. Tal energia nervosa é uma forma de energia-
substância, dado que se não enquadra como essência, e ainda se mostra contrária a todas as
características das essências, concordando, plenamente, com as das substâncias.
De acordo com o princípio químico-dinâmico da conservação da substância,
enunciado por Lavoisier: “Na Natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma”,
donde se tira que a energia-substância do Universo é constante, em aparecendo a VIDA no
mundo, algo dinâmico consumiu-se para que ela tomasse o seu lugar. Consentâneo com o
princípio de conservação da substância as energias se transformam umas nas outras. Ora,
antes não havia vida no Universo, nem na Terra; depois ela surgiu: do que ? A VIDA é ALGO
anterior modificado.
Sabemos hoje que as infra-partículas constitutivas da matéria são ondas prisioneiras que
giram sobre si mesmas enroladas em vórtices; que as energias intra-atômicas se reduzem a
quase só eletromagnetismo; que a oscilação de corpos maiores, como as cadeias atômicas
complexas na base molecular da vida, como as moléculas gigantes, só acontece ao impulso
de ondas mais longas, isto é, de menor freqüência vibratória; que o cérebro, de longe, se
assemelha a um acumulador elétrico o qual, em seu processo eletrolítico para produzir a
energia nervosa, consome substâncias compostas de proteína, gordura (lecitina) e
carbohidrato, as duas primeiras muito ricas em fósforo, donde o aforismo do século XIX que
diz: “sem fósforo não há pensamento”; que a corrente nervosa percorre os nervos com a
velocidade ínfima de um simples avião - 250 km/hora; que, nos experimentos parapsicológicos
e espíritas de telecinésia, objetos pesados se movimentam no ar, atravessam paredes espessas
84
João 4, 7
113

sem deixar buracos, e ainda, tais objetos podem partir-se, em todos estes casos, consumindo
grande quantidade de energia ectoplásmica, telérgica, uma e outra nascida da energia vital;
que, mais quintessenciada que estas forças biopsíquicas, a parapsicologia nos apresenta os
fenômenos de telepatia e telestesia pelos quais a onda do pensamento não só percorre grandes
distâncias, como ainda que tal onda carreia emoções e sentimentos, pelo que estes também são
energia-substância, tal como a VIDA de que nasceram, e tal como o mundo dinâmico
inferior de que surgiu a vida.
Dado que o pensamento se propaga por ondas no espaço, percorrendo grandes
distâncias, e vem pejado de sentimento, de emoção; e assente que a substância não se cria do
nada, nem se perde no nada, mas se transforma, de que algo anterior surgiu o pensamento
dinâmico, a emoção, o sentimento ? Resposta única possível: da VIDA. E se é energia-
substância o produtor-vida, é energia-substância o produto-pensamento, emoção,
sentimento. E do que nasceu a energia vital ? Outra resposta única possível: do universo
dinâmico que lhe fica abaixo, sendo a vida, em seus fundamentos remotos, um processo
elétrico.
Assentado que os sentimentos nascem da vida, e esta, das energias que lhe estão
abaixo, seguindo-se disto que os sentimentos são, como a vida, energias-substâncias; e sendo
o amor o mais alto e nobre sentimento, concluímos que o amor também é energia-substância.
Como não há posto a subir acima do amor, ou seja, nada há para cima em que o amor possa
transformar-se; como não existe o trans ou o superamor; como não há nada acima a que o
amor possa referir-se ou relacionar-se, sem termo de relação, de referência, o amor fica
não-relativo, fica absoluto, fica sendo Deus.
Uma vez que a porção do amor que é Deus, existente no santo, surgiu de baixo, por
evolução, procedente das energias inferiores; e como não pode o que é Deus evoluir nem ser
criado, a não ser a partir de algo que, no princípio, era Deus, vem esta conseqüência
necessária: aquele AMOR que aparece no fim do processo evolutivo, é o mesmo do
princípio, de quando, em PRIMEIRA INSTÂNCIA, os filhos do mundo celeste foram
criados. Porque, se não houver a INVOLUÇÃO que antecedeu o Caos do qual se iniciou esta
nossa fase evolutiva, temos isto de inaudito: o amor que é Deus surgiu do Caos por evolução.
Como isto é impossível, o contrário é que é a verdade: o amor que é Deus, além de preceder à
INVOLUÇÃO, quando da criação dos espíritos celestes, ainda esteve presente sempre desde o
Caos, como princípio que é de integração, e nada se formaria se esse princípio estivesse
ausente, como, de fato, esteve todo o tempo que durou a queda em que tudo se desfez no rude
e medonho Caos.
Como o amor em nosso mundo evolutivo surgiu de baixo, da energia-substância
inferior; e sendo o amor Deus, segue-se que o amor é o último estágio do retorno, ou volta ao
que era no princípio, ao que era antes de a inversão e a queda acontecerem... na parte da
Energia-Substância-Amor divina individuada nos espíritos celestes, e que, nestes, ficou
autônoma até para tornar-se no seu oposto, no egoísmo desintegrador. Em se dissociando o
amor, surgiu dessa desintegração, aquele dilúvio de energias inferiores as quais possuíam
propriedades inversas das de hoje; ao invés de as energias abrirem-se em ondas para a
periferia, fechavam-se desta para o centro, como ocorre com os raios laser que são
concentrativos, e não, dispersivos. De tais energias concentrativas surgiu o Caos originário
deste nosso universo. Por isto foi possível, agora, o movimento inverso em que o amor retorna
à sua prístina figura, ao estado primitivo por evolução.
Deus, pois, é a ENERGIA-SUBSTÂNCIA-AMOR que se fez LUZ – “Deus é luz” 85.
Daí que, no gênese, está: haja luz, e não, haja a matéria. Há mil e quinhentos anos antes de
Cristo, Moisés deixou implícito que a energia se transforma em matéria; e faz setecentos e
trinta e um anos que Tomás de Aquino, “e com ele o sentir mais comum dos teólogos, resolve

85
I João l, 5
114

que a luz de que Deus criou o primeiro dia, foi a mesma luz de que formou o sol ao dia quarto
(...)” 86. O destaque é nosso para sublinhar que o Sol nasceu da sua luz. Agora São João:
“No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Tudo o
que foi feito, foi feito por ele, e nada do que foi feito sem ele se fez” 87. Portanto:

O Verbo era Deus


Deus é luz
Deus é Amor

O Amor é aquela SUBSTÂNCIA primordial que os filósofos de Mileto e pré-


parmenídicos procuravam.
O Amor é a “MATÉRIA” de Deus que Aristóteles não podia conceber, em razão do
que sentenciou que Deus é essência pura, pura idéia vazia, pura forma oca, sem matéria
alguma. E quando Kant deduziu que o espaço é infinito, ficou assustado face à conclusão
necessária de que a matéria infinita que enche o espaço infinito se confunde com Deus. Se
Aristóteles e Kant tivessem alcançado que essa matéria infinita se chama AMOR, certamente,
a teriam acolhido com júbilo, para maior coerência de seus respectivos sistemas.
Enfeixemos tudo na Grande Conclusão:
1 - O Universo Primeiro que Deus criou, o mundo celeste, o topos uranos, fê-lo da
sua ENERGIA-SUBSTÂNCIA-AMOR.
2 - A máxima moral super-evangélica vigente nesse mundo celeste era: “Ama ao
próximo mais do que a ti mesmo”.
3 - Houve o esfriamento do amor em parte do coletivo formado pelos espíritos celestes.
Depois, o impulso amoroso, porque livre, porque mutável, porque polarizável, inverte-se no
seu contrário, no EGOÍSMO desintegrador.
4 - Houve, então, a desintegração de parte dos espíritos celestes, sua dissociação
através dos níveis do espaço até o Caos primeiro, no centro daquilo que, depois, se chamou
universo.
5 - A ENERGIA-SUBSTÂNCIA-AMOR ao decompor-se, produziu um dilúvio de
energias degradadas, de ondas cada vez mais curtas, penetrantes e dinamicamente potentes,
até que, ao serem frenadas pelo choque de umas com outras, se enrolaram sobre si mesmas,
transformando-se em partículas de matéria no seio do Colosso Primitivo.
6 - Evolução é a volta ao perdido amor; por isso que CIVILIZAÇÃO é o mesmo que
DESINVERSÃO DE DRAGÃO, que DESANIMALIZAÇÃO, que DOMÍNIO DA BESTA
que o homem, em parte, ainda é.
Todavia, diz Toynbee: “Nenhuma civilização conhecida atingiu o OBJETIVO DA
CIVILIZAÇÃO; nenhuma conseguiu criar uma COMUNIDADE DE SANTOS sobre a
Terra” 88. Os versais são nossos. Este OBJETIVO que não se pôde até agora atingir,
coletivamente, foi alcançado por alguns homens isolados. Para onde foram estes? As
civilizações comparam-se a alambiques: o produto destilado - SANTO, SÁBIO – some-se
deste mundo para outros níveis mais felizes do universo; a restilada fica aqui; os demagogos
sobem ao poder; a minoria criadora anterior se troca por uma minoria dominante apenas, em
todos os níveis, inclusive, no da religião. Cessada a música celestial que fazia dançar as
multidões, estas param, recaem na animalidade, e é o fim. Eis, pois, que não há salvação fora
do amor. Splenger tem e não tem razão: tem-na quando afirma a evidência de que as
civilizações são cíclicas; não a tem quando afirma que o fatalismo cíclico não pode ser
quebrado. O Reino de Deus, de Cristo ou do Amor, quando for estabelecido entre os homens,
tal “Reino não terá fim” 89. Pela recíproca, por que haveriam de subsistir as civilizações que se
86
Vieira, Sermões, l, 182 - Ed. das Américas
87
João 1, 1
88
Arnold J. Toynbee, A Civilização Posta à Prova, 57
89
Luc. 1, 33
115

foram, se todas se compunham de homens dragontinos? E a nossa civilização cairá? Sem


dúvida que sim, se este caminho que apontamos, que é o de Cristo, não for palmilhado ...
Criacionismo ou Evolucionismo ? Ambos... visto que são tese e antítese. A Primeira
Criação fê-la Deus, diretamente, da sua Energia-Substância-Amor. A Segunda Criação é
obtida através da Evolução desde o Caos. Esta SÍNTESE é fecundíssima, pois tudo integra na
Unidade total. Eis o Evangelho posto em linguagem científico-filosófica, e por isto, racional,
exata. Aí está como se pode chegar ao Evangelho pelo caminho da razão... Cumpre-se aqui,
mais uma vez, a promessa que diz: “Eis que faço novas todas as coisas”(Apoc. 21, 5).
Os filósofos primitivos de Mileto buscavam uma substância que fosse primordial na
ordem das coisas: ar, água, terra, fogo, os quatro elementos juntos. Heráclito propõe que
tudo é movimento e transformação. Contra esta tese da substância-movimento, Parmênides
assenta a antítese do Ser-fixo-essência-pura. Que é da síntese entre esta tese e antítese do
Realismo greco-medieval? Ficou por fazer-se...
A antítese parmenídica que fixou o SER na imobilidade da Essência pura chamou-se
Realismo... visto que tudo o que não fosse essência foi considerado como não-ser,
irrealidade, sombra, ilusão. Se, contudo, tomarmos este Realismo, este segundo movimento
do pensar antigo (Mileto-Grécia) como nova tese, sua antítese será o Idealismo da pós
Renascença... que teve início no cogito de Descartes. O Realismo-tético parte das coisas (res)
para o sujeito (eu). O Idealismo-antitético parte do sujeito que pensa (eu) para as coisas (res).
Este Idealismo teve seu pináculo em Kant, descendo, depois, pelas vertentes absolutistas de
Schelling, Fichte e Hegel. Que é desta nova síntese? ... que integraria o Realismo greco-
medieval ao Idealismo moderno ? Outra vez ficou por fazer-se...
Vieram os filósofos ditos contemporâneos, e, em vez de efetuarem a síntese esperada,
perderam-se em criticar os filósofos absolutistas e sistemáticos, sobretudo, Hegel. Além de
não sistematizarem nada, além de não darem unidade à filosofia, que isto é torná-la sistema,
ainda levaram o mundo à desesperança, à angústia, ao caos, ao nada... O que faltou a todos?
Faltou darem SUBSTÂNCIA ao SER DEUS.
Dando-se SUBSTÂNCIA a Deus, partir-se-ia, não das substâncias físicas ar, água,
terra, fogo, movimento, como o fizeram os filósofos milesianos e o efésio Heráclito; não das
substâncias supra-físicas vida, desejos, Eu absoluto, vontade, como os filósofos pós kantianos
Bergson, Schelling, Fichte, Schopenhauer e Nietzche propuseram; mas do amor como o
fizeram Platão, Plotino, Agostinho, se bem que imaturamente, visto que todos eram
desprezadores do corpo, do mundo, da matéria, sem atinarem que, sem um corpo
substancial, a alma-essência-pura torna-se pura idéia vazia de conteúdo, simples lembrança
na memória dos que ficaram. O Deus-Substância é objeto das religiões (fés), ao passo que o
Deus-Essência-Pura é objeto das filosofias (razão); pois, dando-se a Deus a Substância-
Amor, razão e fé se irmanam, findando a guerra que as mantém separadas como adversárias...,
sendo esta a última, a maior e a mais fecunda SÍNTESE de todas. Sob o signo desta
SÍNTESE desenvolver-se-á a NOVA CIVILIZAÇÃO, a do terceiro milênio.
Isto não é pregar nenhuma nova religião, visto acharmos que todas as religiões
superiores, isto é, monoteístas, servem ao propósito de civilizar, de santificar o homem, desde
que ele se atenha ao que for essencial na sua religião, ou seja, ao que nela for fundamental.
Trata-se, para o mundo ocidental, de uma abertura nova para o Evangelho em que S. João é
posto em evidência, e proposto para tema basilar das meditações e das pregações, sobretudo
quando diz: “Se algum disser, pois: Eu amo a Deus, e aborrecer a seu irmão; é um mentiroso.
Porque aquele que não ama a seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?
E nós temos de Deus este mandamento: que, o que ama a Deus, ame também a seu irmão” 90.
Pois bem: o amor é energia-substância que nasce num sujeito e se dirige para o seu
objeto – que tem que ser substancial, físico, visível, abraçável – o outro, o irmão, através do
qual, e só através do qual, é possível amar a Deus. Deus não pode ser amado diretamente, e
90
I João 4, 20-2l
116

sim, indiretamente, por meio de suas criaturas das quais a mais excelsa é o homem. Se Deus,
diretamente, for o objeto do amor, quem o busca a ele estende os braços para o Infinito, para o
Eterno, para o Imponderável sem o achar, porque, como já dizia Pascal, “a simples
comparação entre nós e o infinito nos acabrunha”. Não podemos, pois, abrir os braços para
abraçar isso que, por sua grandeza e majestade nos acabrunha, nos esmaga; “as qualidades
excessivas são nossas inimigas, não as sentimos, sofremo-las” (Pascal). No entanto, esse Deus
distancíssimo, longínquo, inacesso para quem o desejaria cingir, diretamente, num amoroso
abraço, está perto, no irmão com o qual pode partilhar todas as horas de um convívio fraterno.
Tal o sentia S. Francisco de Assis para chamar ao lobo de irmão lobo, à serpente de irmã cobra
e ao próprio corpo de irmão corpo.
Por esta mesma razão, não se pode ser diretamente contra Deus, nem há modo de
ofendê-lo, a não ser através de suas criaturas. O legendário arcanjo Lusbel, ao fazer-se contra
Deus, não o fez diretamente, porque não pôde; para consegui-lo, não lhe sobrou outro recurso
além de opor-se à ORDEM em que se achava alojado desde a sua formação; e foi só contra
essa ORDEM, e contra seu próximo que estava e queria permanecer nela, que moveu sua
destrutiva ação. Seu ataque foi dirigido ao que estava perto e imediato, e não ao mediato e
remoto. Nisto se cifrou sua danada rebeldia e oposição a Deus. Como conseqüência natural,
inexorável, automática e imediata, “o seu lugar não se achou mais nos céus” 91; sua
desintegração no atro abismo, no centro daquilo que, depois, se chamou universo, foi o
resultado espontâneo de haver trocado o amor pelo egoísmo e a ORDEM pelo que, depois, se
evidenciou ser o CAOS..., de que se originou nosso universo.
Os mandamentos que impõem: amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como
a si mesmo, deixam implícitas duas condições, uma referente a Deus, e outra relativa ao
próximo. A primeira condição é supor um Deus antropomórfico, ainda que só representado
por imagem mental, que pode ser um semi-corpóreo e cruento Jeová hebreu, ou um imaginário
e boníssimo Pai cristão. Todavia, tanto que a humanidade parcialmente saiu de sua infância
para a idade da razão, e a idéia de Deus evoluiu para o abstrato, imponderável e inacessível,
Deus não pôde mais ser diretamente o objeto do amor de nenhum ente finito.
A segunda condição deixa claro que o homem, o próximo, não é coisa, mas, pessoa.
Demos que as criaturas todas, que enchem o mundo, sejam coisas; porém, o homem é pessoa.
Esta distinção entre coisa e pessoa se infere dos dois mandamentos de Cristo quando ele
sentencia: “Amarás a Deus sobre todas as coisas”; como o próximo não é coisa, ficou fora
deste primeiro mandamento, obrigando-se Cristo a fazer um segundo. Se o homem fora coisa,
Cristo havia de dizer: amarás a Deus sobre todas as coisas dentre as quais o próximo. Esta é a
razão de dizer, no segundo: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”. Não mandou amar a
Deus mais que ao próximo, nem ao próximo mais do que a si mesmo, nem a si mesmo menos
que a Deus. Como se dissera: amarás a Deus sobre todas as coisas; não, porém, mais do que a
teu próximo, nem mais do que a ti. E ao próximo, amarás como a ti mesmo. Donde se tira:
Amarás a Deus e ao próximo como a ti mesmo. O amor de cada um por si mesmo foi tomado
por padrão e medida do amor que se há de ter, em porção igual, ao próximo e a Deus. Como
se não bastasse que o amor ao próximo tem que ser igual ao amor devido a Deus, ainda há
mais isto, pela razão exposta atrás: o amor a Deus só é possível através do próximo, do irmão
que, unicamente, pode ser visto e abraçado.
Eis tornada clara, como a luz do dia, a razão por que se impõe uma abertura nova para
o Evangelho: os que dizem, pois, amar a Deus são mentirosos e o provam: porque, em nome
desse mesmo Deus, do qual se mostram tão zelosos, praticam não só o desamor do próximo,
mas ainda toda a sorte de selvageria, de barbaridade, já em atos particulares, já em genocídios
vários, dentre os quais as “guerras santas”, tudo perfeitamente comprovado pela história.
Não é difícil, porém, detectar a causa da mentira e hipocrisia reinantes no mundo; é que
é mais cômodo depararmo-nos em idéia, in abstracto, com uma situação, do que a
91
Apoc. 12, 8
117

enfrentarmos em objetividade. É mais fácil sermos filantropos no universo do discurso do que


na prática. Por isto disse Henry Fonda: “é mais fácil amar a Humanidade do que amar ao
próximo”. Essa é a razão por que Rousseau se indispunha com todo mundo, e entregou seus
próprios filhos à caridade pública, não obstante, nos seus escritos, nos iludir, fazendo-se passar
por “amigo do gênero humano”. “Leão Nicolaievitch, notava com tristeza a esposa de Tolstói,
fala sem cessar do amor de Deus e do próximo e só escreve sobre essas questões. Mas passa a
vida sem entrar em contato com o próximo, sem lhe testemunhar a menor simpatia” 92. O
mesmo ocorre com Bernard Shaw e Schopenhauer que eram magnânimos, sem pares, em seus
escritos, porém, avarentos, mesquinhos, em suas vidas. Não fugindo à regra, é mais fácil aos
ministros e pastores pregarem sobre o amor de Deus e de Cristo para conosco, e da nossa
obrigação de retribuirmos, do que pregar com palavras e com obras a respeito do amor do
próximo. Ir à igreja, rezar longamente, cantar hosanas, trinar hinos, recitar inflamados sermões
laudatórios em honra de Deus, de Cristo, é imensamente mais fácil e agradável do que dar a
mão amiga ao vizinho enfermo ou necessitado! Vamo-nos à igreja, em busca de Cristo,
esquecendo-nos de que ele ficou em nossa própria casa, e em nossa vizinhança, na pessoa do
velho decrépito e trabalhoso, e/ou da criança-problema que pede amparo, amor. De nada valeu
ter dito Cristo: “todas as vezes que fizestes estas coisas a um destes pequeninos, a mim é que o
fizestes” 93.
Cesse, pois, toda essa generalizada mentira e hipocrisia de todos os crentes e de todos
os sacerdotes, quaisquer que sejam as religiões, com exceções tão raríssimas, que nem vale a
pena anotar. Aí está o essencial das religiões, o só que salva: o amor indistinto, objetivo e
prático, para com todos! Se a queda se urdiu por esfriar-se, e por inverter-se o amor no seu
contrário, como poderá ser possível a salvação, a não ser pelo amor? Esta é a razão por que
não há salvação fora do amor ao próximo!... e de que só através do próximo é que se pode
amar a Deus !

92
Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 34l
93
Mat. 25, 40
118

Capítulo XVI

ALTRUÍSMO PURO E EGOÍSMO DILATADO


Deus criou os filhos, os espíritos celestes, da sua Substância, visto como não havia
outra; não podia Deus lançar mão de nada exterior a si, porque, sendo infinito, não possui
limites além dos quais estariam tais exteriores. Do nada substancial não podia ter criado os
filhos, porque estes seriam nadas, dado que criar é transformar algo em algo. Logo, havia-os
Deus de ter criado da sua Substância-Amor. Sendo substancial o Amor, por isto mesmo
possui todas as propriedades dos objetos reais, dentre as quais a da polaridade, da liberdade,
podendo, por que livre, esfriar-se e inverter-se no seu contrário. “Deus é Amor” 94, e desse
Pai-Amor saíram os filhos; “Deus é luz” 95, e dessa incriada luz inacessível nasceram os
espíritos celestes... todos luminosos, todos puros, todos amorosos. Se o amor cria e conserva,
o egoísmo descria, dissolve, dissocia, desintegra; e assim, os anjos caídos do amor se
escureceram, arrojando-se no profundo abismo, no centro onde, depois, surgiu o universo
evolutivo. Em se fechando cada vez mais sobre si mesmo, ao tempo em que desciam pelos
níveis, os mais altamente colocados na hierarquia, acabaram por desintegrar-se, indo suas
substâncias para o lugar em que se achou, depois, o medonho e turbulento Caos. Aqui
principiou a fase inversa da queda, que é a evolução.
E quando pôde o homem ser criado na subida, viu, atônito, perplexo, que a ignorância,
a aflição, a miséria, a dor e a morte eram suas companheiras. Porque se perdeu o amor, por
isso erra o homem pelo mundo; busca desvendar o enigma da vida, e não o consegue; sente o
frio da morte enregelar-lhe os membros na velhice, e se toma do horror do Nada.
Depois de percorrer com o mais insano estudo os caminhos todos do pensamento, e de
escrever livros sem conta, pode o homem hoje, finalmente, reencontrar a Verdade perdida no
prístino do tempo, quando o amor, em se fechando, ao invés de abrir-se, se transformou no
egoísmo. A natureza toda, todo o universo, teve sua gênese no Caos; e cuidando o homem que
tudo se lhe mostrava em positivo, não podia atinar que um Deus bondoso tivesse criado tanto
mal, feiura tanta, tanta miséria e dor. No entanto, este mundo nosso que cuidáramos fosse o
primeiro na ordem das coisas, hoje se nos mostra como secundário e derivado, semelhante ao
que enxergamos num negativo fotográfico em que tudo tem de ser interpretado pelo avesso;
onde o negativo nos diz claridade, é para entendermos escuro, e onde, trevas, é para ser
entendido luz. Tal, também numa fôrma: onde ela nos diz reentrância, é para lhe entendermos
saliência, e vice-versa.
Dissemos que o nosso mundo é invertido e mau, por efeito do egoísmo em que se
inverteu o amor sábio e bom. Como, agora, conciliar o amor com o seu contrário, o egoísmo?,
este sobre que repousa a natureza toda, o inteiro mundo? Pode haver conciliação entre tão

94
I João 4, 16
95
I João 1, 5
119

figadais inimigos?, e ainda conciliá-los nos termos do egoísmo, nosso velho conhecido, e não,
nos termos do amor?
O egoísmo é o amor pelo avesso; e como o mundo primitivo se fundava todo ele no
egoísmo, a natureza se nos mostra toda egoísta, toda invertida no contrário daquele mundo de
Platão, de Cristo, que não é o nosso. O egoísmo, com sede nos entes todos, do vegetal ao
homem, também quer, nestes, com uma vontade que se lança à ação; a ação da vontade
também encontra obstáculos, resistências, obrigando o agente a conhecer. Quer-se, então,
saber, para vencer as resistências, realizando a vontade com sede no egoísta. O egoísta, uma
vez chegado ao nível humano, descobre que, para ser forte, precisa associar-se a outros.
Descobre que, para viver em sociedade, necessita reconhecer e respeitar o limite do egoísmo
alheio. Nasce o direito, a justiça que é o respeito por esse limite. Transpor esse limite para tirar
um proveito do outro, contra a vontade desse outro, nisso se cifra a injustiça e o mal.
A sociedade, então, aceita esta verdade meridiana, axiomática, e a impõe pela força aos
recalcitrantes. Assim nasce o Estado que é o órgão aparelhado a executar a justiça. Deste
modo, todo o mal que o recalcitrante fizer aos outros, reverte-se, de imediato, em prejuízo do
próprio infrator da lei. Pela recíproca, onde não alcança a lei, a sabedoria ética ensina que todo
o bem que se fizer aos outros, enriquece o meio social em que se vive, redundando em
proveito para todos. Forte desta consciência, passa o civilizado a fazer o bem que pode ao
próximo, porque, a longo prazo, fazer aos outros, é fazer a si. Fazer a si? Mas que é este si ?
Quando nos ocupamos de distinguir a diferença entre o si e o seu, entre o eu e o meu,
verificamos que o eu e o meu se confundem, e tanto que costumamos dizer meu corpo, meu
cérebro, meus pensamentos, meu espírito, minha alma e até meu ego. Ora, se tudo é o
meu, onde se situa o eu ? Pois o eu e o meu se confundem. Tire-se a um homem tudo o que
ele chama seu, até seu corpo pela morte, até seu espírito, sua alma, pelo hipotético
aniquilamento, e ver-se-á que ele se reduz a nada.
Então, o egoísmo se dilata, se expande, por uma zona de meus cada vez maior, a
começar pelo corpo, estendendo-se, depois, pela esposa, pelos filhos, pelos pais, pelos irmãos,
pela família, pelos amigos, pela confraria, pela sociedade, pela pátria, pela humanidade inteira.
O pai dá o que pode à companheira, ao filho, à família, porque eles são seus, e dar aos seus é
dar a si. A abelha que morre pela colméia, o herói pela pátria e o santo pela humanidade,
morre cada um pelo seu. Neste egoísmo dilatado consiste a sabedoria que também é amor.
Tal, o amor que em nosso mundo enxergamos, diferente daquele outro dos celícolas, feito de
puro altruísmo que, conforme a etimologia da palavra, vem de alter outro, ou seja, o amor a
partir do outro, e não, como o nosso, que é a partir do eu. Já se disse até do amigo íntimo, fiel,
verdadeiro, que é o alter ego, o outro eu, porque a excelência da amizade não podia ir além do
máximo que consiste em considerar o outro como a si mesmo, e a partir de si. No céu há o
altruísmo puro, o amor sem metas, que é o sistema do outro, com a máxima superevangélica,
sentida e vivida mas não expressa em código por desnecessária, que diz: ama ao próximo
mais do que a ti mesmo; ou, de outro modo: ama-te a ti depois do que a teu próximo, ou,
por causa de teu próximo.
Quer dizer que o anjo ama ao próximo primeiro; ele não se pertence, para pertencer ao
outro, e o amor a si se deriva do amor ao próximo. Tal, o amor de Deus, amor sem metas,
amor por amor, sem outro agente motivacional que não seja o próprio amor; e de tal Pai, tais
Filhos. A criação do objeto do amor, dos Filhos, não se deu por necessidade de ter a quem
amar, e sim, por natureza, por ato intrínseco e espontâneo do próprio amor que quer dar-se...
nos Filhos, para depois dar aos Filhos. O amor não tem razões, não obedece a razões, está para
além das razões; é dadivoso por intrínseca virtude... Daqui vem, diz Vieira, que a etimologia
da palavra Deus se deriva do verbo dar. É Deus porque se deu nos Filhos, e agora dá aos
Filhos. Jacó declarou que seu Senhor seria seu Deus, se lhe desse sustento e agasalho. Deus é
Deus porque dá, e dá porque ama... porque é o Amor.
120

Este impulso de dar-se e de dar, tem em vista o outro, o objeto. E como os anjos
criados por Deus, seguiam o esquema divino, estavam estruturados no sentido de abrir-se para
fora, para o outro, para o próximo. Fica-nos claro, deste modo, que os anjos se moviam numa
atmosfera moral, afetiva, estando eles entrelaçados na mais perfeita integração. Fala o arcanjo
Gabriel a Adão na inspiração de Milton:

“Basta-te que saibas


Que nós nos altos Céus somos ditosos,
E que, onde amor não há, jamais há dita.
Abraçam-se os espíritos e se unem
Com íntimo, instantâneo movimento,
Pureza com pureza misturando”.

Canto VIII (No fim)

No entanto, a inversão do amor em egoísmo, mudou o sentido do amor que,


doravante, ao invés de ir para fora, num abrir-se para o outro, inverteu-se, e passou a ser no
sentido do eu, em proveito do eu que se fez centro; daí que ego-ísmo é o sistema do eu em
que o eu é tudo. E o egoísmo produziu a derrocada de todos e a desintegração total dos mais
altamente colocados na hierarquia, até o Caos mais completo, de onde, depois, principiou a
evolução.
Como a queda deu-se da periferia para o centro substancial, supomos que ela
desenvolveu uma espiral como a que se vê no gráfico 1 :

No gráfico 1, temos um círculo grande que é o limite do universo físico; fora dele está
o topos uranos ou lugar resplandecente de Platão. Aquela espiral fora do círculo, mostra o
sentido do amor que é o de abrir-se para fora, para o outro. Tanto que os espíritos celestes
inverteram o amor em egoísmo, principiaram a cair para o centro, formando uma outra espiral,
agora invertida, que penetra no círculo limite do universo, e se fecha no centro dissociativo. As
121

duas espirais são invertidas, porque, enquanto a do anjo virtuoso, a periférica ao círculo, se
abre para fora do eu central, a outra se fecha de fora para dentro no egoísmo demolidor. A
espiral, no centro, não só se fecha sobre si, senão que também possui sentido contrário ao da
espiral periférica.
Ora, o movimento inverteu-se de sentido, como o mostram as setas. O que, em “Um
Estudo do Nosso Tempo”, denominamos perda e esfriamento do amor, é o momento túrgido
de energia e dinamismo erótico ou amoroso em que se inverteu o impulso de abrir-se, no
oposto de fechar-se. E o impulso invertido continuou a girar sobre si mesmo, fechando-se,
cada vez mais, com o que o espírito imundo foi perdendo tudo o que possuía ao redor do
núcleo do eu que, por fim, também se desfez no rude Caos. Depois é que principiou a espiral
evolutiva, no gráfico 2, que aparece em linha cheia:

Em 3, temos o gráfico completo involutivo, vindo da periferia, num movimento


centrípeto, e depois, o evolutivo ou centrífugo:
122

Na volta ao empíreo a partir do Caos, vemos que o impulso egoístico não se


desinverte, porém, se abre para fora, alcançando uma integração com base no egoísmo sábio.
Na queda, o anjo que deixou de ser amoroso, inverteu o sentido do amor que era puro
altruísmo, e tinha por objeto o outro, no impulso egoísta do amor só a si mesmo, e, com isto,
inverteu-se também de ser que era, no não ser em pleno Caos. Na volta evolutiva, como o
impulso não se inverte de novo, o amor é egoísmo dilatado e se confunde com a sabedoria.
Pelo gráfico 3, pode ver-se que as espirais da primeira e da segunda criação são semelhantes,
porém de sentidos opostos. O amor do caído, quando da sua volta para Deus, conserva o
sentido egoístico, e é egoísmo dilatado, egoísmo sábio que alcançou isto: para ter, é preciso
dar.
Assim, para o que sobe, o amor é sabedoria que vai das partes para o todo, do
particular para o geral, num processo expansionista, com que o eu se enriquece, sentindo-se
cada vez mais crescer com as conquistas de mais e mais coisas suas, na zona do seu domínio.
O anjo não caído, o que soube ter-se na virtude mais excelsa que é o amor puro, é sábio do
tipo dedutivo. Sua intuição enxerga o todo, e se vai às partes, é por dedução, como fizeram os
filósofos idealistas. Não possui ciência porém, nem o pensamento discursivo, ou sintético, ou
indutivo, porque está impedido pelo amor puro de fazer experiências científicas; é-lhes
sumamente desagradável, repugnante, repulsivo, imoral, dissecar, esmagar, moer, pulverizar o
outro, ainda que de nível inferior, somente para satisfazer uma curiosidade científica. Já o que
sobe, não tem outro caminho de tornar-se sábio, a não ser pelo subir das partes, pela visão do
fragmento, pela ciência. De ciência em ciência, o que sobe chega às generalizações, e sua
sabedoria é sintética, discursiva, indutiva.
O amor do que sobe, parte do ego que tem necessidade de buscar no outro o que lhe
falta. Quando ele dá, fá-lo só na sua zona de domínio, na de sua expansão egoística, donde
vem que sempre dá para o que considera seu. Ora, quem dá ao seu, dá a si. Provemos a
consequência:
Quando o rei Creso, por pura ostentação, mostrou a Solon sua riqueza imensa, disse-
lhe o legislador de Atenas: “– Senhor, se aparecer outro rei que tenha melhor ferro que o
vosso, ele será o dono de todo esse ouro” 96. E surgiu aquele rei de ferro melhor, que foi Ciro,
o persa. Todavia, contrariando os vaticínios de Solon, considerado um dos sete sábios da
Grécia, Ciro não tocou nas riquezas de Creso, nem o tirou do trono. Por que? Disse-o o
próprio Ciro: “– O resultado de nossa avidez de riquezas seria dar-nos uma posse efêmera;
entretanto que, se desprezando-as, nos fizermos senhores dos territórios que as produzem,
adquiriremos uma posse constante” 97. A este mesmo pensamento chegou Gobrias quando
disse a Ciro: “Não me admira que possuindo nós maior porção de taças, de vestidos e de ouro,
sejamos contudo inferiores a vós. Nós curamos de amontoar riquezas; vós de fazerdes mais
valorosos” 98.
É que Ciro sabia o que mais tarde escreveria Goethe: “Quem se vence é que vence” 99.
Quão distante ia a sabedoria de Ciro em comparação com a truculência de Judá que, fez cortar
as extremidades das mãos e dos pés a Adonizec, antes de o matar. E em meio aos seus
tormentos Adonizec exclamou: “Setenta reis aos quais mandei cortar as extremidades das
mãos e dos pés, apanharam sobejos debaixo de minha mesa: assim como eu fiz, Deus me
fez” 100. Quão distante ia a sabedoria de Ciro em comparação com a selvageria do assírio
Assurnasirabal II (883 a.C.) que manda escrever, ufano: “De Alepo (no norte da Síria) lancei o
ataque e atravessei o Orontes... marchei do Orontes... conquistei as cidades... causei muita
mortandade, destruí, devastei, queimei. Fiz prisioneiros seus guerreiros e empalei-os em

96
Will Durant, História da Filosofia, 134
97
Xenofonte, Ciropédia, Clássicos Jackson, I, 147
98
Xenofonte, Ciropédia, Clássicos Jackson, I, 181
99
Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV, 181
100
Juízes, 1, 7
123

estacas pontiagudas bem à vista de suas cidades. Coloquei assírios no lugar deles... banhei
minhas armas no Grande Mar” 101.
Todavia, Solon estava certo em relação à psicologia da quase totalidade dos homens. A
previsão histórica do legislador de Atenas falhou, porque a história é imprevisível, uma vez
que ela não podia contar com os feitos de um Ciro cujo egoísmo era dilatado mais do que o de
quaisquer outros reis que se contentariam só com as riquezas. Para Ciro, só a posse das
riquezas não bastava; ele queria ter posse sobre o mesmo Creso que ficou seu vassalo, e sobre
todo o território de que as riquezas surgiram; e nenhum guardião havia melhor que o próprio
Creso para proteger as riquezas de Ciro. O erro de Solon constituiu em não atinar que o rei de
ferro melhor seria um Ciro, um gênio, um sábio, do qual disse Deus, pela boca de Isaías, que
era seu ungido 102. Daqui, uma sentença: “Dize-me até que ponto se expandiu o teu egoísmo,
e dir-te-ei quem és”.
No Evangelho, Jesus também não teve outro recurso que não o de vazar sua doutrina
na linguagem do egoísta, que é a que só entendemos. Disse ele ao moço rico: “– Vai, vende
tudo o que tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu” 103. Quem dá aqui, para ter lá,
não abre mão de nada: muda apenas a posse de lugar, e com vantagem, porque dá o menos e
efêmero em troca do mais e eterno. E São Paulo: Se perdoardes os vossos inimigos, e ainda,
por cima, lhes fizerdes o bem, amontoareis brasas vivas sobre suas cabeças 104. Deste modo se
troca uma vingança ativa, próxima e iminente, por outra passiva e remota, qual seja a de
esperar que o inimigo esteja, um dia, sob o fogo das brasas vivas. Então, não se perdoa nem se
faz o bem porque o inimigo é o anti-eu que devemos transformar em nosso amigo, em nosso
meu, em nosso outro eu (alter ego), em nosso eu egoísta expandido até ele, e sim perdoa-se
para que ele fique sozinho com sua culpa face à justiça de Deus que, cremos, não falha, a qual
o punirá, não com menos que com lhe pôr brasas vivas sobre a cabeça. Outro não é o espírito
de quem diz: “– Ponho tudo nas mãos de Deus”, ou então: “– Deus está vendo!” . Se nosso
amor fosse do tipo do anjo não caído, o saber que nosso perdão redundaria em pôr brasas
vivas sobre a cabeça do nosso inimigo, faria o perdão angustiado, aflitivo, e não gozoso como
é o perdão do egoísta crente do Apóstolo Paulo. Mas não; quem quiser vingar-se do modo
mais duro, usa o perdão, e, perdoando, vê ou crê ver o inimigo sob o fogo das brasas vivas.
Quem, pois, perdoa com este objetivo, e ainda, por cima, faz o bem ao inimigo, acaso perdoa
por amor? No entanto, o Apóstolo, fundado em Cristo, propôs esta forma de vingança, para
obter que o egoísta perdoe, esqueça a ofensa, não se vingue, não faça justiça por suas próprias
mãos.
Assim, a vingança do justo consiste no perdão. Porém, o sábio, pondo-se para além da
justiça, não se vinga, nem pelo perdão, visto como se acha disposto a amparar e defender o
que outrora fôra inimigo contra a descarga da justiça disparada do alto. Porque, como a
sabedoria transforma o inimigo em amigo, em atingindo o golpe da justiça o amado, fere
também o amante. A justiça, então, golpeia, mas o escudo do amor amortece os golpes que
cairiam sobre o amado. Tal, o perdão verdadeiro, o perdão do sábio que se fez amoroso –
amoroso porque sábio. Isto, bem o sabemos, é super-humano, é utópico para os tempos que
correm; contudo, a utopia de hoje será realidade amanhã, conforme a história o tem
demonstrado através das descobertas e invenções, e, no plano social, há o exemplo máximo de
Cristo.
– Quando deres, diz Cristo, faça-o, em segredo, de modo que não saiba tua mão
esquerda o que fez a direita; e acrescenta: – Esses que dão a toque de trombetas, com alarde,
já receberam sua recompensa na fama que adquirem, no aplauso que compram com a esmola.
Se deres em segredo, em silêncio, “teu Pai que vê em segredo te recompensará” 105. Por causa
101
História Ilustrada do Mundo Bíblico, 79
102
Isaías, 45, 1
103
Marcos, 10, 21
104
Rom 12, 20
105
Mat 6, 2
124

do galardão de Deus, que é mais, se abre mão da recompensa terrena, que é menos. Egoísta
um, egoísta outro; apenas que o egoísmo dilatado age a longo prazo, pelo que fica tendo
razão La Mettrie que dizia ser a “virtude o egoísmo munido de óculos de alcance”. E
Espinosa: – “Ninguém jamais rejeitou o que julga bom, exceto se tem esperança de, com a
rejeição, alcançar bem maior”.
A frase dar desinteressadamente significa apenas que não se espera retribuição
nenhuma do beneficiado, nem mesmo a sua gratidão, nem outra qualquer recompensa terrena
pela ação praticada. Mas isto não significa que não se tem esperança de receber compensação
nenhuma alhures, pelo ato. Dar desinteressadamente, pode levar, também, oculto, o interesse
de desenvolver a renúncia, a piedade; será, então, um exercício ascético que tem em mira
tornar mais brando o coração, sufocando nele a desagradável sensação de perda que sofre todo
aquele que distribui o seu, fora da sua zona de domínio. Age-se, então, como se houvesse
perdido algum bem, e, para não o sofrer, se o esquece. Que faça esta experiência quem o
desejar: pegue uma boa porção de dinheiro que doaria prazerosamente a um filho, e a dê para
o primeiro mendigo que encontrar. Nem o “Deus lhe pague” do necessitado, ainda que sincero,
será suficiente para desfazer, na alma do esmoler, a sofrida sensação de perda. Diz São Paulo
que “Deus ama ao que dá alegremente” 106; mas só se dá com alegria, quando se o faz dentro
da zona que o eu abarca e considera seu. E Cristo agora: “Daí e dar-se-vos-á; boa medida,
recalcada, sacudida e transbordando vos deitarão no regaço; porque, com a mesma medida
com que medirdes, vos medirão também” 107. Se crêramos a Cristo, não haveria no mundo um
só necessitado, e nossas medidas estariam transbordando, depois de recalcadas e sacudidas.
Finalmente, diz Cristo: ama ao próximo como a ti mesmo, e, dizendo-o, faz o amor do
próximo derivar-se do amor próprio que cada um tem por si mesmo; e se houvesse um homem
que a si não ame, esse homem hipotético, porque não existe, ficaria desobrigado de amar a
outrem. Se Cristo pregara a anjos em auxílio voluntário aqui na Terra, e com o propósito de
preservá-los do aniquilamento certo... a que se acham expostos todos os desprendidos deste
mundo egoísta e mau, teria de fundar sua doutrina no altruísmo puro, e, a partir do outro, e
não, do eu, sentenciar: ama-te a ti mesmo, como a teu próximo. O próximo, neste caso, seria
o ponto de partida, padrão, medida e referência do amor que cada anjo exilado havia de ter por
si mesmo. Porém, como pregava a homens dragontinos que só a si se amam, teve que alicerçar
sua moral no egoísmo, pondo o amor próprio de cada um por fundamento do amor ao
próximo.
O preceito de amar a Deus sobre todas as coisas, pressupõe que o próximo está entre
elas, e é coisa. Isto é perfeitamente inteligível, porém não sensível, isto é, entendemos mas não
sentimos..., a menos que seja excluído, de entre as coisas, o sujeito para quem o mandamento é
dirigido. Porque sendo o eu o ponto de partida e padrão de quaisquer amores, não pode o
homem amar nem mesmo a Deus mais do que a si mesmo. Amar a Deus mais que a si mesmo,
é preceito compreensível à inteligência, e fácil de dizer, porém, inviável, visto como ninguém
pode sentir tal amor por Deus... a menos que seja querubim, e viva o altruísmo puro, porque aí
então, o ponto de partida é o outro, e o maior Outro que existe é Deus. Esta impossibilidade
se reforça ao se tomar ciência de que o amor tem um sujeito e um objeto. Quando o sujeito se
ama a si mesmo, o amor é reflexivo; quando o amor recai sobre um objeto fora do sujeito,
então é transitivo. O objeto do amor sempre existe: ou é o próprio sujeito que a si se ama, ou é
um objeto amado exterior ao sujeito. Ora bem: quando o Objeto é Deus, o amor se dirige a um
Ser inacessível, indefinível, e se exaure na procura desse Objeto sem nunca o alcançar. Então,
se o amor se frustra por não atingir nunca o Objeto seu, porque infinito e vago, porque
inacessível, como pode tal Objeto fixar, polarizar, o amor do sujeito ao ponto de ele sentir...,
não apenas dizer, mas sentir, e não momentaneamente, porém de modo perene, que ama a
Deus mais do que a si mesmo? Amor puramente intelectual só podia caber na cabeça do

106
II Cor 9, 7
107
Luc 6, 38
125

tresloucado Dom Quixote pela Dulcinéia Del Taboso que ele próprio inventara, e que, por isto
mesmo, jamais vira! Se o ponto de partida do amor é o eu, nenhum amor pode ser maior do
que aquele que o eu tem por si mesmo, excetuado os curtos e raros momentos de alta fixação
em que se dá o paroxismo da emoção ou êxtase. Por esta razão, Deus não pode ser
diretamente amado... nem odiado, e a prece do santo e a maldição de Satanás, conquanto
possam ser endereçadas a Deus, são interceptadas pelas mais altas criaturas. Quando o anjo
mau se rebelou lá no empíreo contra Deus, foi contra as criaturas, contra o próximo, que
moveu a sua ação malévola. E atingindo seus irmãos, neles, ofendeu a Deus. Quando, pela
recíproca, o santo espalha benefícios por amor entre seus irmãos, é a Deus que ama neles, que
outra forma não há de o homem amar a Deus. São João é também deste parecer, e isso
escreveu: “Quem não ama a seu irmão a que vê, como pode amar a Deus a quem não vê?” 108.
Deste modo, o primeiro mandamento de Cristo, se aplicado ao homem terrenal, ao segundo se
reduz: ama-te a ti mesmo; e ao próximo, como a ti; e a Deus, como ao próximo, e por meio do
próximo. Ama a Deus sobre todas as coisas, depois do próximo, visto que o próximo não é
coisa. E se considerares o próximo como coisa, nisto mesmo já o rebaixastes de irmão,
manifestando o teu desamor.
Quando Cristo mandou Pedro meter a espada na bainha, acrescenta que quem fere
com a espada, com a espada será ferido, e esta lei ética da reversibilidade do dano, se
completa com a outra, a da responsabilidade proporcional que diz: a quem muito é dado,
muito será exigido. A primeira lei ética, aqui considerada, é extensão da que vigora no mundo
físico: a toda ação corresponde uma reação igual e contrária; o segundo preceito encontra
igualmente paralelo na mecânica: em toda máquina, a energia consumida é proporcional ao
trabalho produzido. Se a máquina tem consumo interno muito grande, pelo que rende pouco,
terá de ser substituída por outra que produza o máximo possível. Assim é que ninguém é
inteligente e culto, ou rico, ou poderoso para si somente, para seu uso, para seu gosto pessoal,
pois terá contas a prestar, hajam vistas as parábolas dos talentos e das minas. Daqui se tira que
se usufruir do bem próprio, olvidando os demais homens em seu redor, é máquina
improdutiva, de consumo interno muito grande, e que por isto precisa ser alijada do serviço.
Negadas as condições que propiciaram ser o que se é, tudo pára, tudo se embota, tudo se
apouca, tudo tende para nada. Era inteligente e culto, ou rico, ou poderoso, e tudo isto
empregou para cevar o egoísmo próprio, fechado sobre si? Sofra a sentença, renasça obtuso,
viva na pobreza à beira da indigência! Ora, o egoísta bem que poderia fazer tudo isto funcionar
em seu proveito, que nisto reside a sabedoria, e se Cristo fôra crido, o mundo deveria ser já um
paraíso.
São Francisco de Assis, que foi havido como sendo a sombra de Cristo, também não
encontrou outro meio de falar que não fosse na linguagem do egoísta. Dirigindo sua famosa
prece a Cristo, diz: “– Faze que procure eu mais consolar, que ser consolado”. Por que?
Porque o consolador, para consolar, precisa possuir primeiro a consolação, que do contrário
não poderia dá-la ao que a não tem. É uma outra forma de dizer: que eu esteja suprido da
sabedoria consoladora, de modo que nada, nem o martírio, nem a morte, possa alterar minha
socrática e profunda serenidade de espírito. Ainda que na dor, faze que eu seja feliz... porque
sofrer não é idêntico a ser infeliz. O que é desgraçado, sobre ser infeliz, sofre; o sábio,
conquanto possa sofrer, jamais, nunca, será infeliz. E isto pedia o santo para si primeiro, para
que, depois, o pudesse distribuir. Mais: “– Faze que procure eu mais amar, que ser amado”.
Por que? Porque quem ama é rico, e possui para dar; ao passo que, o só amado, se não ama, é
pobre; e é melhor possuir que ser necessitado. Noutras palavras: faze que eu seja rico,
possuidor de tudo, em vez do miserável coitado que olha em torno, vê o mundo, e sente que
nada de tudo isso é seu. São Paulo já dizia: “– Melhor é dar do que receber” 109; porque quem
dá, possui; e o que recebe, se acha na carência. Pois, melhor fartar-se que carecer. Se o objeto

108
I João 4, 20
109
Atos 20, 35
126

amado não retribuir ao amante, em dose igual, amor por amor, fica sendo mera posse do
amante, e, vazio do amor, não sentirá compensação, nem gozo algum de ser amado. Quem a
nada ama, sente-se flutuar no vazio da vida, e não é muito até que passe a aborrecer-se de si
mesmo, pelo que, não raro, busca o próprio aniquilamento pela morte. Ainda o santo:
“– Possa eu mais compreender, que ser compreendido”. Pois claro!... é melhor ser sábio que
ignorante, visto como só quem está em cima pode compreender ao que se acha embaixo,
nunca, jamais, se dando o contrário. Ser incompreendido é um tal gênero de desgraça, que é
mil vezes preferível sofrê-la, do que gozar a ventura de a não ter. Ser incompreendido é a
infelicidade do gênio, do santo e do sábio; porém, é preferível ter esta sorte, que ser agraciado
com a mediocridade de todos.
E prossegue o santo: “– É perdoando, que somos perdoados”. Logo, para sermos
perdoados, perdoamos. “– É dando, que recebemos”. E para recebermos, damos. “– É
morrendo, que renascemos para a vida eterna”. E para renascerem para a vida eterna, os
cristãos da Igreja primitiva, felizes, cantavam, na arena de Roma, no momento mesmo de
serem martirizados. É melhor sofrer um só golpe violento e mortal, e depois estar no paraíso,
do que viver no inferno terrestre e ser golpeado todos os dias com mil flagelos diferentes. La
Mettrie tem razão: “A virtude é o egoísmo munido de óculos de alcance”.
Ora bem: se tal é a virtude, o que é, então, o vício? É o egoísmo retrativo, míope, que,
como a toupeira, mais se guia pelo olfato, pelo faro, do que pela vista. Ao fechar-se sobre si
mesmo, o ignaro egoísta perde o que quer e o que tem. Cristo estava certo: a quem tem dar-
se-lhe-á e terá em abundância, e ao que não tem, ainda o que tem ser-lhe-á tirado. Esta é a
sorte do egoísta ignorante: quanto mais se fecha, quanto mais se aferra à posse do que cuida só
seu, e não, de todos, mais se apouca, mais se empobrece, e, em caso extremo, aniquila-se no
não-ser, quando, de fora, todo o auxílio lhe for negado. Quanto mais fechado o egoísta, mais
frustrado, mais violento, mais destrutivo, mais exposto ao auto-aniquilamento, até o não-ser.
Já o egoísmo expansitivo leva o homem sábio a compreender que nem ele próprio se
pertence, pois que é parcela e posse do todo em que se acha alojado, e esta alta consciência o
faz ser uma bênção para o coletivo em que vive. Conquanto seja esta a verdade última a que
pode alçar-se pela inteligência clara e fria, seu sentimento, cálido, abscôndito, profundo, lá no
íntimo da alma, lhe segreda outra convicção: diz-lhe que o todo lhe pertence, que o todo é seu,
e para esse todo que ama e sente como seu, faz todos os sacrifícios, até que, por fim, se
entrega à morte como herói. A vida já nos demonstrou vezes sem conta, que não agimos por
razões luminosas, insofismáveis, mas por sentimentos que são, depois, justificados com razões.
Esta é a causa por que Schopenhauer chama ao homem “animal metafísico”. Os outros animais
agem, apenas agem; o homem justifica seus atos, filhos do sentimento, com razões.
Schopenhauer escreveu com beleza singular sobre como triunfar das paixões; no
entanto, escravo delas, era impiedoso na cobrança dos aluguéis, e, irritado com uma sua
inquilina, deu-lhe um arremessão, jogando-a, desastradamente, escada abaixo, tendo, por isto,
de indenizá-la pelos danos causados. Era avarento, mesquinho, orgulhoso quase como
Nietzsche, possuído da mania de perseguição pelo que trazia sempre um revólver carregado na
mesa próxima à cabeceira do leito em que dormia. Bernard Shaw também era sovina,
miserável, vivia como um monge, apesar da riqueza que possuía. Ocupava-se lindamente de
escrever contra a exploração do homem pelo homem, mas era o último no mundo a lembrar-
se de seus empregados aos quais pagava salário de fome. Justificando o divórcio entre o
pensamento e a prática, escreveu: “Os ideais dos homens estão primeiro no papel”. Este
divórcio exacerbou o Apóstolo Paulo ao ponto de ele exclamar: “– Miserável homem que eu
sou, pois o bem que quero fazer, não faço; mas o mal que não quero, esse eu faço”.
Por que, assim? Porque, uma coisa é o que se pensa, e outra, o que se faz, arrastado
pelos sentimentos que governam a vida a despeito de todas as razões claras, insofismáveis. Se
a sabedoria fosse mera sabença de verdades claras como a luz do Sol, o mundo já estaria
povoado de sábios. No entanto, a sabedoria é vida, é o saber aliado ao sentimento, e não
127

dissociado dele, como vemos. O conhecimento funciona como a roda de escapo de um


relógio, pela qual se descarrega a caixa da corda. Na roda de escapo está a velocidade, e na
caixa de corda, a força toda que faz mover o maquinismo. Suponha-se, todavia, que
intentamos carregar a caixa de corda, fazendo girar, em sentido inverso, a roda de escapo, em
vez de empregarmos o mecanismo de carga. Tal qual, os conhecimentos são como a roda de
escapo, e os sentimentos, como a caixa da corda. Fazendo girar a roda de escapo dos
conhecimentos, a caixa de corda dos sentimentos, imperceptivelmente, se vai movendo. É,
portanto, natural, o muito falar e o pouco agir dos homens; é que o falar decorre dos
conhecimentos, e o agir, dos sentimentos.
Quanto maior for o número de verdades verdadeiras a compor o patrimônio mental do
indivíduo, quanto mais seu conjunto-verdade estiver expungido, alimpado, de verdades falsas,
tidas por verdadeiras, tanto mais ele será sábio, e suas ações, benéficas. Pela recíproca, quanto
mais verdades falsas compuserem o seu conjunto-verdade, tanto mais ele será ignorante, e
suas ações, erradas e perniciosas. Sábio é o que age..., e não o que apenas pensa..., mas o que
age com correção, guiado pela sua crença verdadeira ou conjunto-verdade (caixa da corda)
do qual se eliminaram todas as verdades falsas.
Do quanto dissemos se tira que as intuições dos anjos redimidos da queda pela
evolução, e as dos não caídos, são opostas: os não caídos vêem as partes através do todo, ao
passo que os redimidos da queda, os evoluídos, enxergam o todo pelo integrar das partes.
Duas sabedorias opostas de resultados idênticos na conduta: os não caídos são sábios porque
amorosos; os evoluídos, amorosos porque sábios; os primeiros têm o amor como premissa
maior ou fundamento do saber; os segundos possuem a sabedoria como alicerce do amor,
sendo este a abóboda ou a chave da abóboda que fecha em cima o edifício da catedral. Os que
se mantiveram na virtude excelsa que é o amor, da qual todas as mais virtudes nascem,
possuem a fórmula: amor-sabedoria; os que findarem a evolução, sabedoria-amor.
Uma coisa, portanto, é o sentir puro, e outra, o puro pensar; mas há entre ambos a
mesma correlação que há entre força e velocidade, entre roda de escapo de um relógio, e sua
caixa de corda. Do mesmo modo que sabemos todos, por princípio de razão, que a morte é
inevitavelmente certa, e, no entanto, despreocupados, não a sentimos ou longe ou perto, assim
também o sábio entende que é posse do todo a que pertence, porém, seu coração lhe diz, em
contrário, que esse todo é seu, e por esse todo vive, e sofre, e deixa-se matar como fez
Sócrates, como fez Jesus. Eis, aí, duas razões opostas: a natural do coração, e a formal da
cabeça, ambas coincidentes, enfasadas, como fim do homem. A razão natural, obscuramente,
me faz sentir que o todo é meu; a razão formal, claramente, me faz ver que pertenço ao todo.
A sabedoria (de sabor, de degustar, de experiência) não está só no pensar puro, senão, e
sobretudo, no sentir justo e reto. O unibinário sentir e pensar, sabedoria e amor, é o mesmo
que o da essência e substância a compor a unidade de todas as coisas sem nenhuma exceção.
É fácil entender que os anjos não caídos possam amar ao próximo mais do que a si
mesmos, porque, como vivem no sistema do outro, alter (altruísmo), o outro é o centro de
suas vidas, ou para onde se movem todos os seus pendores. Entretanto, no anjo que se fez tal,
por evolução, como estamos vendo, o ego continua o centro do sistema, e por mais dilatado
que se ache o egoísmo, sempre o eu é a referência. Face a isto, podemos propor esta questão:
seria possível, ao egoísta, amar ao próximo ou a qualquer coisa mais do que a si mesmo ?
Já vimos que, na evolução do homem, o egoísmo se expande do eu para todos os meus
que o envolvem, o circundam, de tal modo, que não se pode saber onde começa e acaba o eu,
para, daí em diante, iniciar-se a zona do meu. Ora, estabelecido que o eu e o meu se
confundem, destruir o meu é aniquilar o eu. Tirando-se a um homem o que ele chama seu, ele
reduzir-se-á a nada, uma vez que ele chama seu até “seu” próprio espírito, “sua” alma, “seu”
corpo. Destruir, pois, o “seu”, é destruí-lo a ele; é torná-lo nada. Segue-se, por conseguinte,
que o homem vive no, do e para o “seu”. E comumente ocorre que seu pendor recai sobre
algo que ele chama “seu”, com tal intensidade, que à perda do seu bem mais querido, ele passa
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a desejar a morte ou a anulação total. Santo Agostinho já dizia: “Meu amor é o meu peso; por
ele vou a toda parte que vou”. Pois então, com a perda do objeto amado, cessa o peso que faz
ir; sem este peso, o amante pára, deseja a morte, anseia pela anulação total, pelo não-ser. Se o
eu e o meu se confundem, e à perda de uma posse querida o eu quer anular-se, então é que o
eu se acha fixado nessa posse. Se essa posse forem os filhos, a mãe extremosa poderá sentir e
dizer: eu sou os meus filhos; se for a pátria, o herói dirá: eu sou a pátria; e o mártir: eu sou
a humanidade. Se Luiz XIV fosse sábio e santo, outro seria o sentido de sua famosa frase
egoísta quando disse: “o Estado sou eu”. Eis por que, a seguir-se à perda de um grande bem,
o indivíduo entra em estado de choque, de alheamento, de indiferença; e o remédio eficaz é
trazer todos os outros bens queridos à consideração do amante desolado, para que seu
interesse de novo se desperte. Se mãe carinhosa perde seu filho pela morte, o despertar terá
que ser fazê-la crer que seu filho continua vivo alhures, e que ela irá reencontrá-lo, quando,
por sua vez, deixar este mundo pela morte natural. Se ela pretender apressar este reencontro
pelo suicídio, é alertá-la logo com a doutrina de que o suicídio é uma forma de rebelião contra
a vontade de Deus, resultando em que, pelo suicídio, em vez de ela aproximar-se de seu filho,
dele mais se afastará. Ato contínuo, é tirá-la da fixação, da concentração afetiva sobre o
morto, lembrando-a dos outros seus filhos, se ele os houver, ou então, do marido, se ela tiver
amor ao marido, ou a outros quaisquer bens por ela estimados. Despertado o interesse, ainda
que com infinita dor, ela, resignada, passará a viver para esses outros bens.
Todavia, se o si e o seu se confundem, cumpre-nos, para fim de estudo, separar o que é
o eu do que é o meu. Assim, convencionemos que o eu é tudo aquilo que faz parte do
indivíduo como unidade biológica ou psicossomática corpo-mente-espírito. Deste modo, se de
uma parte pusermos o indivíduo como unidade, de outra estará tudo aquilo que, porque
exterior a si, dizemos que é o seu. Com esta dicotomia arbitrária entre o eu e o meu, se pode
verificar até que ponto se há expandido o egoísmo de dado indivíduo. Se ele se sente animado
a viver sua vida; se intimamente não desejar a morte, apesar de despojado de tudo o que ele
tem por “seu”, até “sua” crença no “seu” Deus; se ele quer viver, ainda que desfalcado de
tudo, como Jó, então, esse tal será egoísta em grau máximo. Não moverá ele uma palha em
favor de ninguém, porque ninguém é “seu”. Qualquer esforço será no sentido de carrear
alguma vantagem imediata para si. Se, no entanto, com a perda de tudo, ele, intimamente,
desejar apagar-se para sempre, então é que seu egoísmo se acha dilatado. Neste caso, o
indivíduo irá até o sacrifício, para que o “seu” bem mais querido sobreviva.
Vendo-se, então, pelo que morre um homem, pelo que é capaz de sacrificar-se, fica-se
sabendo até que ponto se acha dilatado o seu egoísmo. É o caso da abelha que, em picando,
morre; e mesmo “sabendo” que morre, pica. Sacrifica ela sua vida pela sua colméia, porque
mais ama a colméia do que a si, ou então, ama-se na colméia, ou sente que a colméia é si, e
diria, se pudesse: eu sou a colméia! O herói que morre pela pátria, ou por uma idéia, e o
santo pela humanidade, hão expandido, ainda que momentaneamente, seus egoísmos até a
pátria, até a humanidade. Suas preparações psicológicas os fazem aptos ao sacrifício supremo,
e no momento em que eles morrem, sentem, entre as dores da agonia, a emoção de possuírem
ou serem a pátria ou a humanidade. O enfrentar o martírio e a morte pelo bem amado, prova
que o indivíduo vive no e por causa do amado. Se este amado for o próximo, como no caso
de Cristo, ou uma idéia, como aconteceu com Sócrates, então o indivíduo ama ao próximo ou
a idéia mais que a si mesmo, visto que fizemos a separação entre o eu e o meu. Daqui se tira:
toda vez que um indivíduo fixa seu amor sobre um bem, e o ama acima de si mesmo, não
desejará sobreviver à perda desse bem.
Por conseguinte, tanto para o redimido da queda pela evolução, como para os anjos
não caídos, a vivência efetiva do princípio moral superevangélico é o mesmo, só que de
sentido inverso. A referência primária do evoluído é o eu, o ego, ao passo que a referência do
não caído é o outro, o alter. O não caído ama porque sim; ama por amar, enquanto que o
evoluído ama porque sabe... que, para ser amado, precisa valorizar-se em proveito do
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próximo; que perdoando, é perdoado; que dando, recebe, e tanto mais recebe, quanto mais der
de si; que morrendo para as coisas efêmeras do mundo é que renasce para a vida eterna. A
permanência neste estado de consciência (roda de escapo) move o sentimento profundo (caixa
da corda), e é assim que do saber se passa ao sentir, ou seja, do mental se passa ao moral.
Cada um destes amores conserva sua característica genética, não importando, na prática, se
sua referência é o eu ou o outro.
Ora bem: o amor é afeto, é sentimento, pertencente à esfera do moral. No anjo não
caído, o mental nasce do sentimento moral, e o conhecimento é dedutivo, a partir da premissa
do amor, à semelhança das filosofias idealistas que partem duma intuição seja ela formal, seja
emotiva, seja volitiva, para deduzir tudo o mais. No evoluído, como vem de baixo e invertido,
o mental vem antes do moral. As convicções do evoluído, com sede no mental (roda de
escapo), acabam por mover os sentimentos profundos (caixa da corda), e é assim que do
mental se passa ao moral. Já no anjo não caído, suas convicções têm por base o sentimento, o
amor unitivo; por causa de o mental nascer do moral, no momento em que, no moral, houve a
inversão do amor no egoísmo, no mental também os conceitos se viraram nos seus opostos. O
conjunto-verdade, com base no amor, no altruísmo puro, cessou de existir, e as verdades
falsas passaram a ocupar os vazios deixados pelas verdades verdadeiras no mental. E como
não havia ciência, então, a vã filosofia, o suposto saber, os sofismas, a “ciência” deduzida sem
base na experiência, nos fatos, nas provas de laboratório, passaram a ocupar os lugares onde
deveriam estar as ciências verdadeiras, e, deste modo, a queda se urdiu. Alegoricamente, isto
foi comer da árvore da ciência do bem e do mal, com resultados funestíssimos para quem
ousou fazê-lo. Todavia, agora, eis o fundamental: o continuar a nutrir-se de tais frutos, a
conquista da ciência, é o único caminho para o que evolui e se salva, com se tornar sábio.
Já que nosso saber é indutivo e vai do particular para o geral; uma vez que nossas ciências
dedutivas, como as matemáticas, só têm valor quando os fatos, as aplicações práticas, a
funcionalidade as comprovam; não há outro caminho para a sabedoria senão o da ciência. Isto
não significa que tal sabedoria não possa vir por revelação, não possa ser aprendida de outrem
que comunica; mas o primeiro comunicador na cadeia da revelação teve de partir dos fatos, do
mundo objetivo, para inferir sua verdade. O primeiro comunicador, anjo ou gênio, teve de ler e
traduzir para a linguagem humana a língua muda do Ser. A idéia de Deus jamais nasce de um
vazio cultural. Eis a razão por que a sabedoria pode vir por revelação; é até impossível a
qualquer homem aprender, por experiência pessoal, todas as ciências. São Francisco de Assis
era um sábio, não no moderno e deturpado sentido de cientista especialista, específico em dada
matéria filamentar, mas no sentido verdadeiro e etimológico da palavra que vem de “sabor”, de
“degustação”, de “saborear”, de ter experiência vital ou vivência da verdade unitária e geral.
Por qualquer caminho, o sábio, então, terá expungido seu conjunto-verdade de todas as
verdades falsas, e a árvore que era, outrora, da ciência do bem e do mal juntamente, se torna
na árvore só da ciência do bem, ou na árvore da sabedoria, ou na árvore do amor, ou na
árvore da vida que também fora plantada no meio do jardim do Eterno. Deus criou um sistema
– este é o ponto em que não há torcer, e quem pretender fazê-lo, a si mesmo se torce, se
inverte, se nega e tende para o não-ser; Deus criou um sistema para funcionar com base no
amor, porque ele é o Amor; e aquilo que foi perdido no princípio, terá que ser achado no fim.
Na alegoria bem fundada pelo gênio que foi Moisés, Adão era um sábio do tipo do anjo
não caído. Era feliz em seu estado de supremo vivente de um jardim. Porém quis a ciência,
supondo que, com ela, como lhe sugerira a astuta serpente satânica, ficaria como Deus. Eis
aqui a primeira “verdade” falsa, tida por verdadeira, nascida já do egoísmo que se opõe ao
amor. Pôs em dúvida as verdades verdadeiras do seu conjunto-verdade, que lhe foram
reveladas, trocando-as por falsas verdades, e, com isto, caiu ou foi expulso do seu abrigo,
tendo, daí por diante, de criar tudo com suas próprias mãos. Trabalhando com a cabeça, com
as mãos, com os pés, errando e acertando, incorporando os acertos e eliminando os erros,
acabará por adquirir a almejada ciência que se tornará em sabedoria, a guiadora da conduta,
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retornando, depois de vencida toda a fase evolutiva, ao antigo jardim edênico que ficara
perdido no prístino passado. Só que esse jardim desfeito terá que ser reconstruído pelo próprio
Adão que é o Homem ou Humanidade.
131

Capítulo XVII

INVOLUÇÃO
Como vimos no capítulo décimo terceiro, entre outras qualidades, os objetos ideais são
incausais, intemporais e inespaciais. Conseqüentemente, quaisquer princípios são, antes que
possam explicitar-se como existências. Não dizemos que preexistem, porque existência implica
tempo, e eles são intemporais; como os objetos ideais não estão no tempo, por isto não
existem, mas são..., desde sempre, podendo ou não manifestar-se nas coisas. A Natureza, por
exemplo, não teve oportunidade nem de aceitar, nem de recusar a roda que apareceu como
invenção do homem, e o mundo técnico anda sobre rodas. Ora, o princípio da roda que é o da
alavanca, sua essência, era, já, desde todo o tempo, e apenas manifestou-se quando lhe foi
dado substância, com a invenção da roda. Nada pode formar-se sem um princípio formal que é,
porque intemporal, antes que a coisa surja.
Deste modo, já se vê, quando as coisas começaram a organizar-se no Caos, embora o
fizessem pelo método do acaso, do ensaio-e-erro, só acertaram quando se submeteram às
imposições da lei que era, já, antes de as coisas se formarem. A substância informe, revolvente
no seio do Caos, esteve aqui, esteve ali, andando sempre em torrencial medonho, até que, em
se encaixando como o impunha a lei, a essência, apareceu a primeira “coisa”, o primeiro
cosmo, a primeira partícula, ficando esta ainda rodeada pelo Caos maior. Por isto, as essências
das espécies e a do homem eram, antes do aparecimento deles no cenário terrestre. Tudo o
que existe ou poderá existir é, desde sempre, como essência, na mente de Deus, e quando se
veste da substância, passa a existir, e tem início o tempo para si.
Assim, como tudo estava na mente de Deus, a criação primeira se formou, vestindo-se
da divina Substância, lá no lugar resplandecente. Esta criação não era uma massa homogênea
de iguais, mas, já, orgânica, o que implica individuação, diferenciação e hierarquia. Então se
nos depara à intuição, que aquele mundo celeste era vário, luminoso, policrômico,
calidoscópico, movente, porque, como já o vimos, o movimento não implica imperfeição. O
que não havia era a transformação evolutiva, porque o perfeito não evolui. Todavia, assim
como os objetos ideais são determinísticos, sem porta para a liberdade de ser de outro modo,
em contraposição a isto, a substância-amor é livre, e porque livre, pôde inverter-se no seu
contrário que é o egoísmo. E no ponto hierárquico superior, aconteceu esfriar-se o amor,
invertendo-se, depois, no seu contrário. Conseqüentemente, tudo o que estava abaixo, sob o
império dessas hierarquias superiores, sofreram a influência danosa da inversão, e a queda se
urdiu e efetivou-se. Os seres estavam escalonados, hierarquicamente, formando níveis ou
planos, os quais níveis, teoricamente cortados por uma paralela, formam uma escada; e a
queda foi como se essa escada tivesse girado sobre sua base, de modo que os que se achavam
no topo dela, foram-se para o extremo oposto, indo parar no que, depois, se chamou
turbulento Caos. Os que se encontravam no pé da escada, no seu ponto de rotação, apenas se
inverteram, sem, contudo, desintegrar-se, totalmente, no profundo abismo, no Caos medonho,
no centro do que, depois, se chamou universo, visto como a queda se deu da periferia para o
centro. Os que caíram no centro, se desintegraram no atro abismo, no horroroso Caos de que,
depois, surgiu o universo físico; tais espíritos caídos, pois, transformaram-se em energias que
vieram a formar o elemento físico em estado de caos.
Neste caos, os elementos já formados buscavam encaixar-se, que isto significa realizar
as condições da lei pré-estante. E a loteria da evolução jogou seus dados ao acaso, a esmo, por
trilhões de anos... Então, esses princípios pré-estantes ou leis tiveram de organizar o caos, de
baixo para cima, mas eles, os princípios, agiam de cima para baixo, vestindo-se, portanto, da
matéria, criando veículos de manifestação apropriados para si. Quando a escada hierárquica, lá
no empíreo, estava direita, corretamente organizada pela sabedoria de Deus, a substância
divina já existia, corporificando as essências várias, formando os seres; as substâncias, aí, já se
132

mostravam diferenciadas, diversamente encurvadas, mais encurvadas no pé da escada, e


menos, na proporção em que os degraus se sucediam escada acima até o seu topo. Quando,
todavia, a escada se inverteu, por obra da queda, as substâncias dos seres sofreram um
processo de encurvamento maior, ao longo da escada, rumo ao Caos, de modo que, quanto
mais desceram os seres, mais encurvadas e desfeitas se mostraram as substâncias deles, até o
limite extremo do não-ser em pleno Caos. Há, pois, no universo invisível tantos níveis de
substância a encherem o mesmo nosso espaço objetivo, quantos são os possíveis
encurvamentos dessa substância. Assim, há infindos planos de existência objetivos
interpenetrados todos, todos ocupando o mesmo espaço, sem, no entanto, as substâncias deles
se interferirem, à semelhança de todas as ondas de freqüências diferentes que podem coexistir
no mesmo espaço, cada uma enchendo só consigo todo ele, como se todas as demais ondas
não existissem: nas ondas, freqüências; nas matérias, raios de curvatura.
Os planos espirituais são duplicatas, triplicatas... centuplicatas... n-plicatas do nosso
mundo físico, todos eles ocupando um só e mesmo lugar sem se interferirem, de modo que um
ente habitante de um deles, cuida que só o seu plano existe. Sem se sair do lugar, um ente, em
se encurvando, em se fechando, desce de nível, ao passo que, em se abrindo, em se
desencurvando, sobe neles. Esta técnica é usada pelos espíritos quando querem aparecer nos
planos inferiores a si, ou depois sumir-se deles, a seu gosto. O universo se acha escalonado por
níveis de energia-substância, e subir ou descer significa o mesmo que se desencurvar ou
encurvar-se. Um homem, ao desencarnar-se, vê-se vivo num nível do universo, superior e feliz,
ou inferior e de sofrimento, de conformidade com o seu grau pessoal de encurvamento; e cuida
que tudo se resume do seu nível abaixo, porque não pode sentir os níveis superiores. O
médium de efeitos físicos exsuda, do seu sistema nervoso, uma matéria ectoplásmica, energia-
substância de base fosforada, pela qual os espíritos tomam forma ou podem agir em nosso
mundo físico. Os espíritos impregnam-se, isto é, impregnam seu corpo espiritual (perispírito)
de ectoplasma tirado do médium; como essa matéria espectral é intermediária entre os dois
níveis contíguos, ao pegar, o espírito, um objeto, este se eleva no espaço, move-se, pode ser
jogado, etc.
Se o próprio Deus possui Substância, sem a qual ele é, mas não existe, dele abaixo,
todas as criações são encurvamentos, cada uma ocupando seu nível próprio de energia-
substância, e, do Caos a Deus, há como infinitos níveis, tanto menos encurvados quanto mais
de Deus se acerca, e, pela recíproca, tanto mais encurvados, quanto mais se ruma para o Caos,
onde o extremo encurvamento produziu a pulverização e o não-ser. Outro-ser, pois, mesmo
em grau extremo, não significa não-substância, mas, apenas, não-ser, não-essência, não-
forma, substância informe, caos.
Neste Caos primeiro, tempo sem conta transcorreu, até que se forjassem os primeiros
núcleos do hidrogênio, e, a partir deles, todos os demais átomos, até os transurânicos. A
seguir, a pressão oriunda da periferia principiou a arrefecer-se, e a massa do Colosso
Primitivo, rodando sempre sobre si, começou a esfacelar-se, por explosão dos transurânicos,
afastando-se as galáxias com seus bilhões de sóis e de sistemas planetários ainda em formação.
Necessariamente houve explosão, por causa da presença e da desintegração dos transurânicos;
mas não foi uma explosão simples, como a de uma bomba, conforme o viu a mente de La
Mettrie, porque o Colosso estava girando sob a pressão do espaço dinâmico acantonante,
também em movimento. No afastamento, as galáxias seguiram trajetórias resultantes das forças
oponentes perífuga e centrífuga: a centrífuga proveniente da massa em explosão e rotação; e a
perífuga originária das energias que, vindas da periferia do universo, pressionavam a massa sob
a forma de gravitação. As energias acantonantes vindas da periferia do universo, e eram
oriundas da descida e transformação da Energia-Substância-Amor invertida no EGOÍSMO.
Quando a escada se inverteu, a desintegração foi proporcional à responsabilidade que
guardava relação com a hierarquia. Os seres vivos ínfimos que se encontravam no pé da
escada, antes de ela inverter-se, quando ela rodou sobre sua base, apenas ficaram invertidos
133

sem se saírem do lugar. Formou-se, assim, uma hierarquia invertida em que novo topo da
escada (ponto de rotação) estava ocupado pelos seres ínfimos, e deles abaixo se escalonavam
as hierarquias que, outrora, iam para cima, agora vão para baixo rumo ao centro do universo.
Nem todos os seres do lugar celeste se desintegraram completamente, e antes, residuou deles o
que chamaremos princípios. Deste modo, toda vez que nos referirmos aos princípios
existentes nos degraus da escada, queremos que se nos entendam isto: não se trata de
princípios vazios, mas já revestidos duma substância espectral, porém, com a qual, o ser não
podia realizar-se, não podia constituir-se, não podia integrar-se, porque... primeiro, o lugar
desses seres era embaixo, não em cima; perdidos os dirigentes superiores, a massa dos
inferiores se viu atônita, perplexa. Em segundo lugar, o egoísmo de tais entes ínfimos era
ignorante, retrativo e não, sábio, integrativo, expansitivo.
Depois, esfriou-se a Terra; e em sua atmosfera, candente ainda, o amoníaco, o vapor
d’água e o metano percorriam os espaços em vendavais medonhos, e o ribombo temeroso das
trovoadas atormentava todo o ar; os relâmpagos continuados, o contínuo coriscar de
poderosos raios, provocaram a formação das primeiras substâncias orgânicas: os amino-ácidos,
a glicina, a alamina, a sarcosina, a alamina-beta, o ácido aminobutírico-alfa, a metil-alamina-N
que são as pedras basilares da albumina. Stanley Milles obteve tais corpos orgânicos no
aparelho que fez, imitando a composição e as condições da atmosfera primitiva...
Um bilhão de anos levou para que essa “evolução química” produzisse o “caldo
orgânico” em cujo seio deveriam aparecer os primeiros ínfimos seres vivos, capazes de
operações fotoquímicas. Surgiram nos mares dos primórdios tais seres vivos cujos
descendentes absorveram todo o “caldo nutritivo”. De onde vieram tais princípios vivos para
os tépidos mares da crosta terráquea? Vieram dos níveis espirituais invertidos por efeito da
queda dos anjos, e precisavam de matéria mais densa, para se constituírem noutro
fundamento, no do egoísmo. Tais seres ocupavam outrora o pé da escada que, em girando
sobre sua base, tal pé ficou agora tope. Ora, tais seres ínfimos procuravam no novo mundo
evolutivo o seu lugar que é embaixo, como suporte, e não, em cima, no comando...
É voz corrente entre os biologistas materialistas o que George Wald escreveu; ei-lo:
“Fazer um organismo requer as substâncias corretas nas proporções corretas e na disposição
correta. Não acreditamos que seja necessário mais alguma coisa; isto, porém, já é problema de
sobra” 110.
Esta concepção mecanicista pela qual a vida surge do arranjo, põe de lado o essencial
que é a faísca de ignição capaz de principiar o movimento, de dar o arranque inicial. Falta a
energia-substância-vida que desencadeia o processo autoalimentador do sistema. Todo
mecânico sabe que para a máquina funcionar, não basta que o material das peças seja
correto; que as proporções das ligas metálicas sejam corretas; que as conexões, junções,
encaixes, lubrificação e combustível estejam corretos. Sem a chave de ignição não há
partida, tudo continua parado. Qualquer mecânico sabe que para a máquina funcionar, é
preciso uma centelha, uma faísca; para principiar a combustão num locomóvel, precisa-se de
um palito-de-fósforo. Onde ficou a centelha vital na máquina viva de George Wald? Que
músculo se contrairia para fugir a um inimigo ou dar-lhe ataque, sem esta centelha nervosa
disparada pelo cérebro, até o local em que se deve queimar a glicose, tal qual, no locomóvel, a
lenha, e no motor, a gasolina?
A vida individuou-se, enchendo os mares, simples de começo, mais complexa depois, e
cada fase, apenas iniciada, permitia a vinda de outras formas, de modo que, sempre, o que
estava em cima, à espera, atuava no de baixo de cujo material se revestia.
Não o Acaso, cego, como fundamento, mas um princípio pré-estante num degrau da
escada, que busca manifestar-se. No Caos tudo é acaso, enquanto dura o Caos, e, depois, pode
surgir ainda o acaso aqui e ali, na substância, mas logo é aproveitado pelo que, ansiadamente,
busca constituir-se. É como nas casuais invenções e descobertas: por acaso se descobre um
110
Artigos do Scientific American, A Base Molecular da Vida, 368
134

princípio que é logo utilizado com inteligência... O que há é o acaso como método para
alcançar um fim proposto; mas o fim a colimar pré-está... Quando um animal faz tentativas
loucas para evadir-se duma jaula, seu método é o ensaio-e-erro; contudo, um objetivo existe
que é a evasão. Ninguém diria que a lâmpada incandescente foi um produto do acaso, só
porque o ensaio-e-erro foi empregado por Edison na descoberta dos materiais com que fazer
os filamentos. O acaso em si não cria, não produz nada; o que cria é o princípio que pré-está,
e aguarda a que a loteria dê o seu número, ou que, as tentativas, os ensaios-e-erros acertem
em dar com o caminho da sua manifestação. O ensaio-e-erro, progressivamente, vai sendo
eliminado nas ações humanas, porque ele se desloca para a zona do pensamento, e quem pensa
sobre dado assunto, um empreendimento, por exemplo, faz tentativas mentais (ensaio-e-erro),
e só vai à prática, à experiência, quando supõe ter dado com o caminho da execução. Se
fracassa, toca a repensar tudo de novo, levando em conta o fracasso obtido.
Deste modo, o peixe não saiu fora d’água, a começar pelos peixes pulmonares, a
caminho de tornar-se anfíbio, por acaso. A vida, nesse peixe era já, em princípio, superior, e
ansiava por realizar-se. Pelo mesmo caminho, o anfíbio se fez reptil, e este, ave por um ramo, e
por outro, ornitorrinco e marsupial. Ramos vários brotaram do tronco marsupial, até que o
musaranho deu o tarsus de cara canina que se mutou no tarsus de feição macacóide de que saiu
o símio marsupial, e logo mais, o prossímio, já mamífero, de cujo tronco nasceram três galhos:
os símios, os antropóides e o homem. A escala biológica vem debaixo em seriação que a nossa
mente vê contínua, em contínua variação e saltos, mas cada um destes saltos foi como o centro
de uma explosão para todos os lados, de mil variadas formas, de mil tentativas, quase todas
fadadas à extinção, todas, pelo ensaio-e-erro, tentando realizar o princípio jacente no degrau
da escada. Tudo isto aconteceu graças à atuação de um agente espiritual que aguardava o
momento de manifestar-se, de constituir-se da matéria densa. Esse agente estava colocado
num degrau da escada da inversão, da escada que girou sobre o eixo imaginário de sua base. A
série que supomos contínua, porque reduzida a princípio de razão, na realidade objetiva,
concreta, além de ser um leque a abrir-se para todos os lados, ainda cada vareta do leque
constituiu-se de uma linha quebrada de avanços e recuos, de tentativas e falências, de puro
ensaio-e-erro, porque o princípio que atuava era ignorante, e procurava meios de constituir-
se, para, depois, desinverter-se. Um sistema inteiro que funcionara na base do amor, teria,
agora, de buscar a integração pelos caminhos do egoísmo.
Deste jeito, os seres criados por Deus do seu Amor, da sua Substância, ou
permaneceram fiéis, firmados e confirmados na virtude, ou se inverteram, permanecendo nos
degraus da escada uns, arrojando-se outros à desintegração, estes que se situavam nos postos
mais altos da hierarquia. Não há dizer, portanto, que o espírito, a consciência, a inteligência
surgiram como resultado final de um arranjo particular da matéria, acontecido por acaso...; não
é por acaso que pensamos e sentimos... O acaso como criador é absurdo. Não foi por acaso
que surgiu o homem de macacos primitivos, não de uma, porém, de várias famílias, mais ou
menos ao mesmo tempo, e em diferentes lugares da Terra. Cada espécie, seguindo o rumo que
escolhera, parou em dado estágio, não avançando mais, porque se realizou como princípio que
era, pré-estante. O caminho se manteve aberto só para o homem que trabalha ainda hoje por
tornar-se anjo, por negar-se de animal, por desinverter-se a si mesmo primeiro, e, depois,
desvirar do avesso o resto... que por sua culpa também caiu! A domesticação dos animais,
parte é, já, deste trabalho. Cada ente realiza em ato sua potência interna, e, explicitado o
princípio, pára, e não avança mais.
Assim se une, na síntese, as duas meias verdades: a do criacionismo, e a da evolução;
criacionismo e evolução biológica dos princípios jacentes nos degraus da escada, não na sua
forma direita, como era antes, no lugar celeste, mas invertida, por efeito da queda que
aconteceu. Dizem H.G.Wells, Julian Huxley e G.P.Wells, em “A Ciência da Vida”, que “o
Fausto de Goethe e o Livro de Job têm ambos um Prólogo no Céu; sem esse prólogo, não
poderíamos apreender a completa significação do que eles narram. O mesmo se passa com o
135

nosso drama da evolução orgânica. A história da matéria viva se dilata para além da história do
globo terrestre, do qual, entretanto, ela é apenas uma parte; e a história da terra, por sua vez,
se dilata para além da história desse astro a que chamamos Sol, e que, em eras remotas, imerge
na história da grande nebulosa” 111. Esse prólogo não tem só sentido cosmogônico, como
pretenderam os autores, mas, e sobretudo, sentido teológico, espiritual.
Todavia, mesmo no biológico, todas as teorias da evolução têm o seu ponto fraco na
genética. A origem das espécies tem que ter um fundamento genético, uma vez que a luta pela
vida darwiniana seleciona, mas não cria nada. Porém, isto é assunto já desenvolvido por penas
brilhantes em muitas obras...

O Macrodrama da Vida
Depois que a primeira luz do Sol atravessou as trevas densas do Algonquiano,
iluminando o céu toldado ainda de nuvens, não como até então negras, mas doravante claras,
os primeiros seres vivos já aí estavam ocupados em promover as combinações do azoto
atmosférico. Tão logo a luz se fez sobre a Terra, parte destas bactérias do azoto mudaram de
mister, pondo-se a utilizar a energia nova para fabricar, com carbono e água, os hidratos de
carbono. Apresando ondas sobre ondas, transformaram rudes materiais, irrespiráveis ares, em
combinações nobres, em plasma vivo, dando, deste modo, vida nova à matéria inanimada.
Entretanto, para o egoísta, apoderar-se da luz, carbono e água, ou nutrir-se do irmão
cujo corpo era um tesouro nutritivo, tudo era a mesma coisa. Antes, era até mais fácil devorar
o próximo, que extenuar-se em recolher raios de luz com que trabalhar os gases inferiores.
Certo de que a segunda opção era a linha de menor esforço e de rendimento máximo, o
egoísmo não podia deixar de criar o primeiro ladrão do fruto do trabalho alheio. As bactérias
do azoto, habitantes do Algonquiano, já de há muito existiam sobre a Terra, variadas na forma,
nas espécies várias, e, pululantes, enchiam o ar, o mar e a terra. Dos rudes materiais, esta foi a
transformação primeira. A luz do Sol dá logo nova vida à Terra, e, com a vida, surge a morte,
não morte natural, mas por assassinato. Eis o primeiro ato de Caim contra seu irmão Abel.
O fagócito, o devorador, encosta-se a um bacilo, como soe acontecer entre os
unicelulares; desta vez, porém, em lugar do amor que promove as trocas químicas, para o
reforço do plasma de ambas partes, em vez disto, o ladrão e assassino devora a bactéria. Daí
por diante, então, deste seu costume, deram-se-lhe o nome de bacteriófago.
Os cogumelos se acercam também de outros vegetais, unicelulares uns e outros ainda, e
unem-se a eles para roubar-lhes os compostos de carbono; contudo, igualmente, o outro era
ladrão: o vegetal o agarra, e furta-lhe, por sua vez, os compostos azotados. Daí por diante, a
dupla de exploradores mútuos não se larga mais, prosseguindo nesta luta pelo tempo afora. E a
ciência, mais tarde, dá, a esta união de egoístas, o belo nome de simbiose. A esses roubos
mútuos, movidos pelo egoísmo de cada parte, os estudiosos do século XIX tiveram por
recíprocos auxílios com base na colaboração fraterna, filha da concórdia e do amor. Simples
modo de ver a mesma coisa, ora no seu aspecto positivo do amor, ora no negativo do
egoísmo.
Mas o assassino e devorador que já existia no fagócito, no bacteriófago, também agora
é visto noutros seres que, prestos, aprenderam a lição, e o devorador mais alto tornou-se em
animal. Dois reinos, daí, então, passou a integrar a natureza: os ladrões e devoradores animais,
e os roubados e devorados vegetais... estes que despertam a matéria morta para a vida, e o
animal que desintegra, para seu uso, as grandes moléculas plenas da energia que doou o Sol.
Comer, eis o horrendo nome, princípio de todo o mal, já no bacteriófago, lá embaixo, já no
homem, cá mais em cima. A Natureza toda conjuga o verbo comer na voz ativa e na passiva, e
por isso ela se resume num come-come constante, dando motivo às defesas passivas, às
carapaças, aos espinhos, às fugas, aos mimetismos, aos odores maus, aos venenos, e ainda
111
História e Aventuras da Vida, 15 e 17
136

motivando, pelo lado ativo, os dentes, as garras, os ferrões e as farpas cheias de peçonha e
morte. De ardis e laços encheu-se toda a Natureza!
O furtar e o comer dos egoístas desencadearam a luta pela vida que selecionou número
sem conta de formas vivas que a variação e a mutação tinham criado. Do egoísmo veio o
comer, e do egoísmo, o desejar reproduzir-se, que é isto também uma forma de crescer. Fome
e amor, eis no que se cifra o macrodrama da Vida! A rapacidade e o assassinato variou de mil
modos os seus ardis e aspectos, e o temor de ser comido, o temor da morte, fincou pé firme no
instinto de conservação.
Os animais, então, se fizeram comedores de plantas; e para punir este crime, surgiram
os comedores de animais, os carnívoros que, por sua vez, se punem a si mesmos com se
entredevorarem. O homem que é comedor supremo, vive sob o império da auto-punição,
porque, quanto mais avança no porvir, no futuro da sua espécie, quanto mais se sublima e se
torna sensibilizado, mais se horroriza do passado seu, e o ressofre de contínuo na memória,
embora alentado pela esperança que o faz antegozar as alegrias do porvir. Dor e alegria
juntam-se nesse anjo-demônio esquizóide que anseia por uma coisa, e faz outra; que almeja
ardentemente o bem, e faz o mal. Nele, como na aurora, luz e trevas lutam, antes que desponte
o dia. As trevas da animalidade cederão lugar ao dia luminoso da sabedoria-amor, ou tudo se
reverte às origens, e o dia que surge pára, faz pé-atrás, voltando a imperar o turbulento Caos,
a Noite Antiga.
Por que razão venceram na vida formas tão egoístas, tão danosamente más? Acaso,
porque a Natureza é amoral ? Não. A Natureza é imoral, visto que se mostra como a moral
pelo avesso, invertida, desde quando o amor se tornou no seu contrário, no egoísmo; este é o
grande pecado original, não o de Adão, mas o do anjo que inverteu o amor. E os mais
egoístas e poderosos venceram na Terra, para que, deles, surgisse aquele ser esquizóide, o
homem, dotado de razão, que renegaria, enfim, o egoísmo e o mal, exaltando a Lei no topo do
Sinai, e o Amor, no cimo do Calvário!... O Código ético-legal primeiro, e o Código ético-
moral depois, são os dois passos forçados na passagem do nível mental ao nível moral. A
moral ou o amor, no fim, absorverão o legal e o ético, e a cadeia da subida assim se fecha,
completa:

físico --- vital --- mental --- moral

A Natureza é imoral, porque conhece a moral pelo avesso, pondo o egoísmo em lugar
do amor. O inferno da vida, por isto, tinha que ser o cadinho em que o medo, a dor e a morte
acrisolariam o mais precioso ente de brutos animais. Este nosso mundo está da melhor forma
possível, como dissera Leibnitz, não que não possa haver outro melhor, mas dadas as
condições e circunstâncias quais são, está como deveria ser. Se a Natureza e a Evolução não
tivessem finalidade, não alcançariam o seu escopo que é a desinversão, e todo o trabalho dela
redundaria no de Sísifo, e o eterno retorno nietzscheano seria o seu fim. O esforço sem
objetivo, como o dos loucos, não leva a lugar nenhum; porém, a meta agora é vislumbrada;
logo, os trabalhos e canseiras da vida têm um fim...
Olhando o drama da vida no particular, observando seu método de ensaio-e-erro, suas
mutações ao acaso, o filtro da seleção natural agindo cegamente, concluímos que a Evolução
não tem sentido. Vendo o mesmo drama do alto, do geral, numa visão de conjunto,
descobrimos que há um objetivo. A trajetória duma partícula em movimento browniano é
imprevisível, imperando aí o acaso; no entanto, os choques caóticos das moléculas do meio
que fazem a partícula mover-se, aparecem como pressão sobre a parede interna do recipiente;
agora esta pressão possui lei, pode ser medida e expressa em fórmula matemática; caos no
particular, e lei no geral; tal qual com a Evolução.
137

Capítulo XVIII

DOUTRINA DOS ESPÍRITOS


A revelação contida em “O Livro dos Espíritos” dada a Allan Kardec que nos diz “No
começo tudo era caos; os elementos estavam em confusão. Pouco a pouco cada coisa tomou o
seu lugar. Apareceram então os seres vivos apropriados ao estado do globo” 112; essa doutrina,
se tomada isoladamente, se nos afigura materialista, visto como não nos fala de nenhum
princípio, ou lei, ou essência, pré-estantes, que estivessem à espera de que o acaso, por sua
loteria de probabilidades desse o seu número, isto é, acertasse com o pré-estabelecido na lei
intemporal. E sem referir-se a tais princípios e leis pré-estantes nos diz que, por puro acaso,
“apareceram os seres vivos apropriados ao estado do globo”. Esta doutrina evolucionista, no
entanto, implica na sua correlata fase inversa, a INVOLUÇÃO; por isso que, pouco mais
adiante, Kardec pergunta:
“44. Donde vieram para a terra os seres vivos?”
“A terra lhes continha os germes que aguardavam momento favorável para se
desenvolverem. Os princípios orgânicos se congregaram, desde que cessou a atuação da força
112
L. E. - R 43 - pág. 69 - F. E. B. Ed.
138

que os mantinha afastados, e formaram os germes de todos os seres vivos. Os germes


estiveram em estado latente e de inércia, como a crisálida e as sementes das plantas, até o
momento propício ao surto de cada espécie. Os seres de cada uma destas se reuniram então, e
se multiplicaram” 113. Os destaques são nossos.
Como se vê, “no começo tudo era caos”, mas não caos puro e simples, pois já havia
“os princípios orgânicos” e os “germes em estado latente”, ainda “inerte”, prontos para
manifestar-se. O que era então no começo? Era o caos? Ou era o PRINCÍPIO GENITAL DE
TUDO ? Onde se encontrava tudo isto? Pois tudo se achava escalonado preenchendo os
vários níveis do universo, como princípios pré-estantes nos degraus da escada invertida pela
INVOLUÇÃO, ou como diz o Espírito revelador: a Terra já continha os germes, princípios
orgânicos, tudo em latência ou potência, ainda por atualizar-se. Na involução ou queda do
mundo celeste, o escalonamento dos níveis espirituais inverteu-se, como se uma escada girasse
sobre sua base; os que estavam mais no alto foram-se para o centro da desintegração ou caos.
Aquilo que ocupava o pé da escada, apenas inverteu-se quando ela girou sobre sua base. Tudo
então se inverteu, mas nem tudo se desintegrou. Nos degraus outrora altos da escada, agora
mais baixos, porque invertida, estava o homem; daí a pergunta de Kardec e a resposta do
Espírito:
“47. A espécie humana se encontrava entre os elementos orgânicos contidos no globo
terrestre?”.
“Sim e veio a seu tempo. Foi o que deu lugar a que se dissesse que o homem se formou
do limo da terra” 114 .
Eis, pois, que, segundo o Espiritismo, o corpo orgânico do homem veio de baixo, com
trânsito pelo corpo do pré-macaco de que se derivou o ramo dos antropóides e o dos
homídios; seu espírito, todavia, ou princípio hominal já estava à espera num degrau da
escada, em seu nível próprio, e quando toda a parte inferior dela já se tinha manifestado na
matéria densa, então pôde o princípio-homem atuar por sua vez, encarnando-se.
A doutrina, portanto, que desenvolvemos neste livro, está perfeitamente de acordo com
a de “O livro dos Espíritos” segundo a qual os princípios todos já estavam criados, e cada
um, do vírus ao homem, foi organizando a matéria densa. Logo, já havia um mundo espiritual,
antes deste nosso mundo corpóreo nascido do Caos. Qual, por conseguinte, foi o mundo
primordial, primário, por excelência, que Deus criou da sua Substância-Amor ?
“85. Qual dos dois, o mundo espírita ou o mundo corpóreo, é o principal, na ordem das
coisas?” 115.
“O mundo espírita, que preexiste e sobrevive a tudo”. Os grifos são nossos.
"76. E que são os Espíritos?"
“Pode dizer-se que os Espíritos são os seres inteligentes da Criação. Povoam o
universo, fora do mundo material” 116. E “o mundo dos Espíritos” é o “das inteligências
incorpóreas” 117, sendo, portanto, organizado, e não caótico. Se os “Espíritos são os seres
inteligentes da criação”, não são irracionais; e se “o mundo do Espíritos” é o “das inteligências
incorpóreas”, tal mundo é organizado, não caótico, porque onde há inteligência, aí há
organização, dado que inteligência, de interlegere = ler entre, significa organizar a congérie
do mundo segundo um princípio de racionalidade.
E assentado que o mundo espírita preexiste e sobrevive a tudo, de tal modo que o
mundo corpóreo poderia nunca ter existido ou pode cessar de existir, sem que isso afete a
essência do mundo espírita 118, então tal mundo espírita é anterior e será posterior ao nosso
mundo evolutivo originário do Caos. Sendo que o mundo primário criado por Deus da sua
113
L. E. - R 44 - pág. 69 - F. E. B. Ed.
114
L. E. - pág. 70 - F. E. B. Ed
115
L.E. - Pág. 85 - F.E.B. Ed.
116
L.E. - R .76 - Pág. 83 - F.E.B. Ed.
117
L.E. - R. 84 - Pág. 85 - F.E.B. Ed.
118
L.E. - R. 86 - Pág. 86 - F.E.B. Ed.
139

Substância-Luz-Amor é o que preexiste, segue-se que o nosso pós-existe como derivado e


resultante da inversão e queda de parte do primeiro. Por que? Porque o nosso mundo corpóreo
procede do Caos, e este é a negação de Deus ponto por ponto. Ora, Deus não poderia ter
criado a sua negação extrema; ele que, por excelência, É, não poderia ter criado, do modo
mais inteiro, o que Não-É, o anti-Deus extremo, o infinitamente formidoloso, medonho,
furibundo e turbulento Caos que, feio, se revolvia no atro abismo, no centro do que, depois, se
chamou universo.
Se “os Espíritos são os seres inteligentes da criação”, que “povoam o universo, fora do
mundo material”; se “o mundo dos Espíritos” é o “das inteligências incorpóreas”, organizado,
portanto, e não caótico; se não há mundo espírita sem espíritos, como não há mundo vegetal
sem plantas, nem mundo mineral sem rochas; se os espíritos são inteligências incorpóreas
que, com o seu correspondente mundo, preexistem e sobrevivem a tudo; que algo Deus criou
em primeira instância? Certamente que não foi o Caos que veio depois. Se veio depois, surgiu
do que ? Do primeiro, que é o mundo espírita. Por que? Por motivo da inversão ocasionada
pelo esfriamento do amor, e depois sua passagem para o seu contrário, o egoísmo
desintegrador. Por quem? Pelos próprios espíritos que, culpados de invigilância, não
cultivaram o amor no sentido do amor, mas, no sentido do seu oposto, no sentido do anti-
amor, de anti-eros, do egoísmo que é o amor pelo avesso. Quando aconteceu tudo isto ?
Antes do aparecimento do Caos..., que, portanto, surgiu da substância de parte do mundo
espírita deformado, derrocado, desfeito de ser no não-ser.
Em que estado Deus criou os Espíritos? Sábios e organizados no Amor?, ou
ignorantes e desorganizados no egoísmo ? Desde que apareceu o homem na face da Terra,
ele se mostrou não só ignorante, mas também egoísta e mau, aliás, em concordância com
todos os demais seres vivos, sem nenhuma exceção. Acaso, assim, Deus o criou? Se sim, onde
a sua sabedoria, amor e bondade? Se não, como foi possível ao homem tornar-se ignorante,
egoísta e mau... como o atesta, de modo irrecusável, toda a sua história evolutiva, desde os
seus primórdios até hoje? De quem a culpa? Como corrigir o mal?
Tornar-se o homem altruísta e viver a partir do outro, cumprindo a máxima
superevangélica – ama ao próximo mais do que a ti mesmo –, isso é impossível para o que
sobe estruturado pelo egoísmo. Só com a sabedoria se dará, então, a salvação, porque, com o
saber, expandir-se-á o egoísmo, e egoísmo dilatado é amor. Amor antes, amor no fim, com
troca apenas dos termos do binômio: amor-sabedoria, para os não caídos, e sabedoria-amor
para os redimidos pela evolução, não importando se o que a promoveu foi a ciência ou foi a fé.
Noutro ponto, Kardec interroga: É infinito e espaço?
“Infinito. Supõe-no limitado: que haverá para lá de seus limites? 119. E logo a seguir:
“36. O vácuo absoluto existe em alguma parte do espaço universal?”.
“Não, não há vácuo. O que te parece vazio está ocupado por uma matéria que te escapa
aos sentidos e aos instrumentos”.
Conseqüente disto, este raciocínio se impõe: o espaço é infinito, e não existe o vazio;
logo, o espaço infinito “está ocupado por uma matéria que (nos) escapa aos sentidos e aos
instrumentos”, donde vem que a matéria, nessa forma quintessenciada, é infinita. Pois bem: se
o ser infinito é uma das qualidades de Deus 120, desde Parmênides; se o espaço e a matéria
também são infinitos, Deus é material, visto que ambos infinitos se sobrepõem, se coincidem,
se confundem. Também, para Kant, uma das três pilastras de seu idealismo era a intuição do
espaço subjetivo ou formal infinito. No entanto, como tudo o que está em nós, no nosso
subjetivo, acha correspondência no mundo objetivo, tal espaço abstrato e infinito teria de
corresponder a uma matéria também infinita que enche a pura forma ideal estante em nós.
Recusou, todavia, Kant, esta conseqüência, porque, sendo o espaço objetivo, material, infinito,
Deus devia existir no espaço e ser, conseqüentemente, espacial e material. Zombando de Kant,

119
L.E. - R. 35 - Pág. 67 - F.E.B. Ed.
120
L.E. - P. 3 - Pág. 55 – F.E.B. Ed.
140

diz Will Durant: “A velha raposa abocanhou um pedaço maior do que o que podia
mastigar” 121.
A mesma preocupação azucrinou a mente de Aristóteles, e para não fazer Deus
material, intuiu-o como Essência pura sem matéria alguma. Reduzido Deus, assim, a pura
idealidade vazia, a pura abstração, a puro ente de razão, a puro objeto ideal, ficou sem
realidade objetiva, estando só na nossa inteligência, e não, fora dela. Como os objetos ideais
são intemporais, Deus É, mas não existe. Um Deus tornado, deste modo, pura abstração, não
podia servir de base a nenhuma crença religiosa. E a matéria? Pois a matéria, Aristóteles fê-la
estranha e exterior a Deus, incriada e infinita, o que é um formidoloso absurdo.
Então Kardec pergunta: “21. A matéria existe desde toda a eternidade, como Deus, ou
foi criada por ele em dado momento?” 122.
R. “Só Deus o sabe...” Esta outra velha raposa também não quis abocanhar o pedaço;
contudo a resposta ficaria implicitada quando o Espírito declarou: “No começo tudo era caos;
os elementos estavam em confusão. Pouco a pouco cada coisa tomou o seu lugar. Apareceram
então os seres vivos apropriados ao estado do globo” 123. Face a esta resposta, já se vê, a
matéria não existe, desde toda a eternidade, como Deus, porém foi criada num certo momento
que é aquele em que, no caos, “pouco a pouco cada coisa tomou o seu lugar”. E antes disto?
Pois antes, ainda, “os elementos estavam em confusão”. Antes disso era o caos em cujo seio a
matéria se forjou. E antes do caos? Que substância se fez ou se desfez no caos para, depois,
deste, nascer a matéria?
E Kardec: “37. O universo foi criado, ou existe de toda a eternidade, como Deus?”
“É fora de dúvida que ele não pode ter-se feito a si mesmo. Se existisse, como Deus, de
toda a eternidade, não seria obra de Deus” (pág. 68). Se, como é fato, a formação do universo
dependeu do nascimento da matéria; se “é fora de dúvida que ele (o universo) não podia ter-se
feito a si mesmo”, então, a matéria foi criada num dado momento. Ora, se o Espírito sabia
disto, sua resposta “só Deus o sabe”, ou é uma evasiva, ou é que a resposta seria, no
momento, inoportuna.
A pergunta de Kardec se referia à matéria densa, porque, quanto à matéria
quintessenciada, o Espírito já dissera (R.36) não existe o vazio. O espaço é infinito, e não
existe o vazio; segue-se, logo, que o espaço está ocupado por uma matéria imponderável para
nós, ou fluído universal de que tudo se originou 124. E esta matéria imponderável coexiste com
Deus desde sempre, ou foi criada por ele? Se não foi criada, se coexiste com Deus de toda a
eternidade, ela não é obra de Deus (R. 37), e é Deus como Substância, ainda que
infinitamente modificada. Se não coexiste com Deus, desde todo o sempre, como aspecto da
divina Substância, então houve um tempo em que o espaço era vazio, e Deus, Essência pura
ou pura idealidade abstrata, sem realidade objetiva. Pois bem: se a Essência não se
transforma na Substância... por causa do antagonismo polar das propriedades de ambas,
como hemos exaustivamente demonstrado, de que surgiu a Substância? do nada? Se a
Substância surgiu do nada, é pura ilusão e nada, tenha o aspecto que tiver, ainda que esse
aspecto seja Cristo, por que? Porque tudo o que existe é o seu aspecto anterior modificado.
E a isto ainda sentencia o Espírito: “Ficai sabendo: coisa nenhuma é o nada e o nada não
existe” 125.
Se o nada não existe, dele ou com ele nada se pode fazer; ora, algo foi feito; segue-se,
portanto, que foi modificada uma Substância anterior que, com ser INFINITA e INCRIADA,
porque não há o vazio, enche consigo o espaço infinito desde toda a eternidade. Que
Substância é esta, incriada e infinita, pelo que é Deus?

121
Will Durant, História da Filosofia, 288
122
L. E. - P. 21 - Pág. 62 – F.E.B. Ed.
123
L. E. - R. 43 - Pág. 69 - F.E.B. Ed
124
L. E. - R. 35 - Pág. 67 - F.E.B. Ed.
125
L. E. – R. 23 – Pág. 63 – F.E.B. Ed.
141

Repitamos parte do exposto no capítulo XV desta obra (Nossa Civilização em Queda),


para comodidade do leitor:
I - Matéria e energia são reversíveis entre si;
II - Todas as energias são transformáveis umas nas outras.
Estas duas verdades do conhecimento comum, cientificamente demonstrável por um
colegial, deram azo a que Einstein fizesse a sua generalização, pura tautologia que diz:
III - Dado que todas as MATÉRIAS e todas as ENERGIAS do Universo são
reversíveis umas nas outras, pode-se dar a tudo uma denominação genérica, um denominador
comum que se poderá chamar ENERGIA-SUBSTÂNCIA;
IV - Dado que “Na Natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma”
(Lavoisier), segue-se que a ENERGIA-SUBSTÂNCIA do Universo é constante;
V - A VIDA, que não havia antes e existe agora, nasceu, por transformação, do
universo dinâmico que lhe fica abaixo; é ela, logo, energia-substância; fora ainda isto: ela não
se reduz a ESSÊNCIA.
VI - Os sentimentos, as emoções, a vontade, os desejos são forças morais nascidos da
VIDA, pelo que, como esta, também são energia-substância.
VII - A mais alta manifestação do sentimento é o AMOR; conseqüentemente, o
AMOR é a mais sublime expressão da ENERGIA-SUBSTÂNCIA.
VIII - Como não há posto a subir acima do AMOR, este se torna sem referência, sem
relacionar-se a algo acima de si, fica não-relativo, fica ABSOLUTO, fica DEUS.
No entanto, isto que agora se impõe de modo peremptório, alcançara já a intuição de
Moisés que pôs a energia-luz por fundamento de tudo, de modo que tendo havido luz ao
primeiro dia da criação, o Sol nasceu da sua luz ao dia quarto... por transmutação da energia
em matéria. E subindo ainda mais alto na escala das vibrações diz São João que “Deus é
luz” 126, e que “Deus é amor” 127.
Deste modo, Deus não é Essência pura, e seu Ente infinito está pleno da sua divina
Substância-Luz-Amor, sendo esta a “matéria” que Aristóteles e Kant não puderam conceber,
a qual enche consigo o espaço infinito desde toda a eternidade, embora ela, como diz o
Espírito a Kardec, nos escape aos sentidos e instrumentos. Desta “matéria”, por modificação,
se construiu o mundo espírita feito de seres e coisas, mundo esse que preexiste e sobrevive ao
nosso mundo denso originário do Caos. O mundo espírita é o povoado pelos espíritos que são
inteligências incorpóreas, e deste mundo primaz, primordial, basilar, na ordem das coisas,
nasceu, depois, o Caos pela inversão do amor no egoísmo, do que resultou a queda e a
desintegração dos espíritos no atro abismo. Os seres invertidos, egoístas todos, que não se
desfizeram tanto, por sua menor posição na hierarquia e responsabilidade, permaneceram nos
degraus da escada invertida, nos vários níveis do universo, como germes espirituais das
espécies todas. E quando a evolução telúrica da matéria densa propiciou os meios, os germes
da vida, preexistentes, atuaram na matéria, e a vivificaram. Cresceu a vida, expandiram-se e
variaram as espécies, até que um ramo delas chegou ao nível dos germes espirituais do
homem, encarnando este pela primeira vez.
Estes germes, estes espíritos vieram para a matéria como “simples e ignorantes” 128.
Pois claro: antes da queda eles estavam firmados, assegurados pelo amor-sabedoria; tanto que
o amor se tornou no egoísmo, aquela sabedoria se mudou na ignorância. A fórmula que antes
era amor-sabedoria inverteu-se para egoísmo-ignorância. Entretanto, ser ignorante, embora
não signifique ser destituído de inteligência, a inteligência e o conhecimento se
complementam como pares dialéticos que são. Inteligência, de interlegere, significa ler ou
apanhar o nexo que liga as coisas; e a descoberta do nexo, a intelecção, é conhecimento. O
que falta ao ignorante é a sabedoria que enxerga longe e relaciona tudo; o conhecimento é

126
I João, 1, 5
127
I João, 4, 8
128
L. E. – R. 115 – Pág. 98 – F.E.B. Ed.
142

ciência, mas a ciência não é sabedoria. Assim, ainda que ignorantes, porque não sábios, os
espíritos egoístas continuam pertencendo à qualificação de “inteligências incorpóreas” ou
“seres inteligentes da criação” que povoam o universo além do mundo material.
Não é que Deus cria, ininterruptamente, espíritos simples e ignorantes por um ato
especial, e sim que esses espíritos, antes sábios no amor, se tornaram ignorantes no ponto em
que inverteram o amor no egoísmo. Se o amor é a virtude por excelência da qual todas as
demais decorrem, pela recíproca, o egoísmo é o pai de todos os vícios e maldades. Se em tal
estado Deus houvesse criado os Filhos de par com todas as outras suas criaturas, todas
egoístas, como dizer de Deus que é Pai amoroso, e sábio, e justo, e bom? A qualidade, o
caráter de egoísta, ignorante e mau, embora eufemizado pela expressão “simples e
ignorante” (R.115), não pode ter origem em Deus, pelo que, neste estado, Deus, jamais,
nunca, criaria os próprios Filhos. Estes, pois, descem, continuamente, de onde se acham já
criados, para tomar corpo na matéria densa onde, pela dor, pelo esforço, pelo estudo, hão de
desinverter-se, tornando-se sábios de novo, agora, pelo egoísmo dilatado que também é
amor. Descem de onde se acham já criados, porque, como disse o Espírito, “47. A espécie
humana se encontrava entre os elementos orgânicos contidos no globo terrestre”, “e veio a seu
tempo. Foi o que deu lugar a que se dissesse que o homem se formou do limo da terra” 129.
Se, como escreve André Luiz “o umbral começa na crosta terrestre” 130, descendo
mais, ele põe na boca de Gúbio estas palavras: – “Não estamos contemplando senão a
superfície de trevosos cárceres a se confundirem com os precipícios sub-crostais” 131. Esses
precipícios sub-crostais são “a zona das grandes trevas” 132. Numa destas regiões situava-se “a
cidade estranha” chefiada por Gregório o qual, em se referindo à sua mãe Matilde diz: – “Ela
serve ao Cordeiro, e eu sirvo aos dragões” 133. Dragões, diz a Nota do autor espiritual, são
“Espíritos caídos no mal, desde eras primevas da Criação Planetária, e que operam em zonas
inferiores da vida, personificando líderes de rebelião, ódio, vaidade e egoísmo; não são,
todavia, demônios eternos, porque individualmente se transformam para o bem, no curso dos
séculos, qual acontece aos próprios homens”. Só que as “eras primevas da Criação
Planetária” são as mesmas da Criação do Universo e datam de quatro bilhões de anos...
conforme a contagem do tempo geológico pelo relógio do urânio das jazidas existentes na
Terra...
Comparando o rei babilônio Nabucodonosor e seu filho Baltasar a Satanás, exclama
Isaías: “Como caíste do céu, ó Lúcifer, tu que ao ponto do dia parecias tão brilhante? Como
caíste por terra, tu, que ferias as nações?” 134. E Cristo afirma: “Eu via Satanás, como um raio,
cair do céu” 135. Quem são, pois, os dragões?
Antes da queda havia altruísmo puro, amor sem metas, amor por amor; depois dela,
para os que fizerem a evolução, haverá o egoísmo dilatado que também é amor, mas com base
na sabedoria. Para os que se tiveram e se confirmaram na virtude mais excelsa, raiz de todas as
demais virtudes, a fórmula é: amor-sabedoria. Os primeiros sabem porque amam, e se
deixam de amar, deixam de saber, tornando-se em egoístas-ignorantes; os segundos amam
porque sabem, e como não podem deixar de saber, não podem deixar de amar. Os espíritos
que se firmaram e se confirmaram no amor, não necessitam da ciência que é a visão
fragmentária e pulverizante cujo limite é o infinitesimal; os redimidos da queda pela evolução,
não poderão retornar ao lugar celeste, a não ser pela ciência que, indo na direção da
totalidade, leva à sabedoria que se confunde com o amor. A este mesmo resultado chegou
Francis Bacon do qual disse Payne que é “a mais poderosa mentalidade dos tempos
129
L. E. – R. 47 – Pág. 70 – F.E.B. Ed.
130
Nosso Lar, 58
131
Libertação, 93
132
No Mundo Maior, 209
133
Libertação, 103
134
Isaías l4, 12 a 17
135
Luc 10, 18
143

modernos”. Escreve Bacon: “Um pouco de filosofia inclina o espírito ao ateísmo, porém maior
profundez o conduz à religião; porque quem olha destacadamente as causas segundas, pode
algumas vezes não passar delas, deixando de ir além; mas quem lhes contempla o
encadeamento, remonta até à Providência e à Divindade” 136.
De tudo isto, concluímos que há dois mundos espíritas ou dois mundos dos espíritos:
o primeiro é o primário, fundamental, que preexiste e sobrevive a tudo... criado por Deus da
sua Substância-Luz-Amor. O segundo mundo espírita é o secundário e derivado do primeiro
por obra da queda. Este segundo mundo espírita provisório é também o de inteligências
incorpóreas, mas em estado de egoísmo e ignorância, formando a escada invertida cujos
degraus são os vários níveis do universo. Estes espíritos do mundo espírita secundário são os
que se reencarnam na Terra ou em outros mundos para se desvirarem de dragões egoístas em
anjos amorosos. Os que logram fazê-lo, retornam ao mundo primário como amorosos porque
sábios. Os que persistem na ignorância, no erro e no mal, permanecem infernados na Terra e
nos baixos níveis espirituais desta – este grande cadinho onde o ouro puro se acrisola de brutos
materiais. O inferno terrestre, pois, continua para além da crosta, nos níveis inferiores onde os
espíritos ignorantes e egoístas continuam sofrendo, não importa, portanto, se com corpo de
carne, se com corpo de matéria espectral. Diamantes se lapidam com diamantes, demônios
com demônios e homens com homens. Dos primeiros saem brilhantes, dos segundos, homens e
destes, anjos. O único modo de fugir à dor consiste em evadir-se para o alto, e isto só é
possível pela expansão do egoísmo, pelo tornar o egoísmo sábio ou dilatado, pela sabedoria
que se confunde com o amor. Daí a máxima cristã: fora do amor não há salvação.
Tais são os pontos em que há concordância entre a Doutrina dos Espíritos e a que
expomos; todavia, outros há em que ambas se discordam, como é o passo em que Kardec
interroga:
“13. Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único,
onipotente, soberanamente justo e bom, temos idéia completa de seus atributos?”
“Do vosso ponto de vista, sim, porque credes abranger tudo ... ” (pág. 58).
E dissertando, faz Kardec um desenvolvimento ligeiro, superficial, desses atributos da
divindade, que são os mesmos do Ser de Parmênides, de Platão, de Aristóteles, de São Tomás,
etc. Então, Kardec nos apresenta Deus como Essência pura, pelo que É, mas não Existe, dado
que existir implica tempo, e Deus é intemporal. Diz ele que Deus “é imutável”, e o é como
Lei, como Essência por sua natureza intemporal. Todavia, pela Substância-Amor que também
é Deus, este se nos mostra livre e transformável. Suponhamos, porém, que é só imutável
como pura Essência. Então é fixo, determinado, determinístico, sem liberdade, sem querer,
sem sentimento, impassível, sem amor, justo e certo como um computador, mas não
misericordioso, porque onde há justiça inflexível, implacável, cega, automática, não há lugar
para perdões, tolerâncias, indulgências, paciência, piedade, afeto, amor. Se Deus é
soberanamente justo não pode ser, ao mesmo tempo soberanamente bom, porque bondade e
justiça são termos que se excluem por pertencer a esferas oponentes. A justiça ou lei diz
respeito aos objetos ideais que, por sua natureza, são imutáveis, ao passo que a bondade, com
ter sede no afeto, no sentimento, pertence à esfera dos objetos reais, permitindo, por isto, o
movimento, a compaixão, a piedade. Já dizia Guerra Junqueiro no poema “A Caridade e a
Justiça” que “um justo não perdoa” ao passo que o caridoso, em perdoando a ofensa, não faz
nem exige justiça. Se Deus é soberanamente justo, e ainda por cima imutável, não conhece a
indulgência, pelo que, necessariamente, pune quaisquer delitos, sem a mínima possibilidade do
perdão. Um justo não perdoa; exige o cumprimento da lei; e se perdoa, não é justo, não por
carência, mas por superação da justiça pelo amor. Conquanto ser justo não seja ser mau, quem
só pratica a justiça permanece aquém da bondade, porque o bom supera a justiça pela
compaixão, pela piedade, pelo perdão.

136
Will Durant, História da Filosofia, 132
144

Dir-se-ia, logo, que se o justo não é mau, então, necessariamente, é bom. A


conseqüência está certa, e é esta bondade-justiça que Deus possui em grau excelso pelo que,
só neste sentido, é soberanamente justo. É soberanamente bom, porque é soberanamente justo.
Assim, a bondade-justiça se contrapõe a bondade-amorosa... esta que Deus não possui,
porque o amor, com ser mutável, flexível, polarizável, pode sofrer alteração. Se Deus é só e
sempre imutável, não se pode dizer nem que é amoroso, quanto mais que é o próprio Amor.
Se Deus é só e sempre imutável como diz a definição que é, não pode ser ao mesmo
tempo todopoderoso, porque só pode ser do modo como se impôs, não indo além da Lei
inexorável. Seu sentido do bom-justiça é de natureza robótica, matemática: é bom porque é
justo, exato, preciso, sem apelação, como as conseqüências de uma premissa, como os
resultados de um computador. Não adianta elevar-lhe preces fervorosas, sentidas, sinceras,
porque, como imutável, não se move à compaixão, pelo que também é impassível, distante,
alheio a toda dor, sem sofrimento, sem gozo. De nada adianta amá-lo, porque, sendo
substancial o amor, Deus não o conhece, não o sente, visto como é Essência pura, não tendo
em si substância ou matéria alguma, chegando mesmo a afirmar Kardec que Deus é
imaterial... Toda a ética se resume na Justiça, e o sábio e o justo que cura de não afrontar a
Lei, acomoda-se de modo a que não possa ela o atingir. Esta bondade de Deus, como se
confunde com sua Justiça, por igual, inspira-nos a uma bondade-justiça que exige o
cumprimento da pena, ou executa a justiça pelas próprias mãos, segundo o preceito mosaico
do olho por olho e dente por dente, e não, nunca, a uma bondade-amorosa que perdoa a
ofensa, abençoa e abraça o inimigo, chegando ao ponto de oferecer a outra face ao agressor.
Ser bom é ser justo, assim para Deus, assim para o homem; a bondade é a zelosa e indormida
vigilância da Lei que sempre se há de cumprir e fazer cumprir, à risca, sem indulgência, sem
perdão, sem amor... este que Deus só conhece por teoria, por formalismo abstrato, não,
porém, por vivência sentida, afetiva, gozada e sofrida.
“É imaterial", anota Kardec; e como a matéria é incriada e infinita: incriada porque
a essência não se torna em Substância; e se não foi criada da Essência, então, ou existe por si
mesma, ou surgiu do nada... pelo que é nada, tenha o aspecto que tiver; e infinita porque, já o
disse o Espírito: o espaço é o infinito, e não existe o vazio, donde vem que o espaço infinito
está cheio da matéria imponderável, por isso, também, infinita. De que surgiu a matéria, se só
havia Deus imutável, Essência pura, uma vez assentado, primeiro, que a essência não se torna
em substância, e, segundo, que do nada não sai nada, porque, se saísse, esse nada nem é,
nem existe? De que nasceu o amor? De Deus não pode ser, porque o amor é energia-
substância, e por isto, mutável, indo até ao ponto de tornar-se no seu oposto, no egoísmo?
Onde, por que, por quem e quando ele teve origem?
Aí está: essa doutrina de “O Livro dos Espíritos” traz o ranço aristotélico, provindo, de
certo, do Espírito que, no corpo carnal, se chamou Santo Agostinho. Pondo-se no alto,
distante, o Espírito acrescenta:
“Sabei, porém, que há coisas que estão acima da inteligência do homem mais
inteligente, as quais a vossa linguagem, restrita às vossas idéias e sensações, não tem meios de
exprimir” 137. O destaque é nosso.
Em vez de “inteligência do homem mais inteligente”, deveria ter dito: do Espírito
mais inteligente, porque, para este, qualquer que seja a sua hierarquia, também há limitações.
Uma delas é a compreensão de como pode a Energia-Substância primordial ser incriada e
infinita sem ser Deus!
Como decorrência desta doutrina aristotélica-agostiniana, vem esta outra, de quando
Kardec interroga:
“77. Os Espíritos são seres distintos da divindade, ou serão simples emanações ou
porções desta e, por isto, denominados filhos de Deus?” 138.

137
L. E. – R. 13 - Pág. 58 – F.E.B. Ed.
138
L. E. – Pág. 83 – F.E.B. Ed
145

“Meu Deus! São obras de Deus, exatamente como uma máquina o é do homem que a
fabrica”.
O exemplo do homem e sua máquina não serve para o caso, porque, sendo o homem
finito, limitado, não pode criar nada, a não ser lançando mão de um material exterior a si.
Todavia, Deus, com ser infinito, não possui exteriores, nem outro material que não o seu
próprio. Se ele pudesse (e não pode – todopoderoso?) ter exteriores, como o homem...; e se
nesses exteriores houvesse uma substância de que lançar mão, que matéria seria essa? Criada
por quem, de que, por que e quando? Assenta-se, como verdade indiscutível, que Deus é
imaterial, e quando as dificuldades lógicas surgem, vem a fuga mística, dogmática, imodesta,
emocional: “Não podendo fazer-se Deus, o homem quer ao menos ser uma parte de Deus” 139.
Ou então: “Há muitas coisas que não compreendeis, porque tendes limitada a inteligência” 140.
O caso não é a pretensão de ser ou não ser uma parte de Deus, que isto pouco importa; o que
importa muito é o que impõe o raciocínio lógico, como conseqüência necessária da premissa
posta por fundamento... E em lugar de “tendes limitada a inteligência”, havia-se de dizer
humildemente: temos limitada a inteligência... porque nenhum Espírito, encarnado ou não,
pode arrogar-se o título de senhor de todo o saber. Contudo, admitida uma premissa, as
conseqüências dela são obrigatórias, até mesmo para uma inteligência sem limitações! Aceita a
premissa: “Deus é imaterial”, Essência pura sem matéria alguma (Aristóteles), uma questão se
coloca, incômoda, irritante, exigente: de que surgiu a Energia-Substância que pode mostrar-
se como Luz-Amor, como as energias várias, como matéria ou quintessenciada, ou densa, ou
até como caos?
Desperdiçou Kardec uma pergunta quando trocou o de que por como; ei-la: “38.
Como criou Deus o universo? (pág. 68). E a resposta mística do Espírito deságua na frase do
Gênese em que “Deus disse: faça-se a luz e a luz foi feita”. Pois bem: de que foi feita a luz? Da
Essência não foi, que esta não se transforma em nada, com ser fixa, imutável, intransformável,
pelo que não se podia mudar em Substância. Do nada então? Se do nada..., tudo é nada... não
passando o universo de fósmea ilusão, da ilusão pura... criada por um passe de mágica. De um
lado, Deus; do outro, a ilusão do nada... que nos rodeia, nos penetra, e de que somos feitos...
porque, como tudo, não faz o homem parte do seu Criador!... Somos ilusão e nada!... Mas
ilusão que se ilude, ilusão que sofre, que padece o flagelamento cruel com que nos pune.
Quem? Por que? Acaso não se compadece Deus? Ah!... não conhece ele a compaixão, o
sofrimento, por causa de ser Essência pura, imutável, imóvel, impassível... Não fosse o
Grande Mágico impassível, insensível, então, ralado de tanta miséria e sofrimento, estalaria
logo os dedos... e tudo se reverteria ao que era antes, no primitivo Vácuo, no Vazio eterno, na
Noite antiga!
Contra o sarcasmo do Espírito que diz: “Não podendo fazer-se Deus, o homem quer ao
menos ser uma parte de Deus” (R.15); contra este sarcasmo, a nossa bem merecida ironia!
Tudo isto pode ser incômodo para os espíritas conservadores que cuidam seja “O Livro dos
Espíritos” uma obra intocável. Quando dizemos que essa obra precisa ser refeita, atualizada,
ficam ofendidos, quase nos tachando de hereges. O jeito, então, é convencê-los com toda a
convicção, que o Espiritismo, com tal filosofia superada, ou se renova, ou será posto de lado
por impotente para salvar a civilização cujo ciclo ora se está fechando. Todos, em seus
psitacismos, vivem repetindo a frase atribuída a Kardec: “Em Espiritismo se disse a primeira
palavra, mas não se dirá a última”. E depois insistem em que a palavra de “O Livro dos
Espíritos” seja, definitivamente, a última.

139
L. E – R. 15 – Pág. 60 – F.E.B. Ed.
140
L. E – R. 83 – Pág. 55 – F.E.B. Ed.
146

Capítulo XIX

TELEFINALISMO EVOLUTIVO
Quando Laplace estava expondo a Napoleão I sua teoria da formação do sistema
planetário e dos mundos, perguntou-lhe o imperador qual era o lugar de Deus no seu sistema,
ao que lhe respondeu o físico matemático: – “Sire, essa hipótese se tornou desnecessária”. De
igual modo, para os evolucionistas que fazem finca-pé na matéria, Deus também é uma
hipótese desnecessária, pelo que, no lugar de Deus, puseram o Acaso como soberano criador.
Assim também os Wells e Huxley (H.G.Wells, Julian Huxley e G.P.Wells), no vol. 6 da
“Ciência da Vida”- “O Drama da Vida”, fazem o relato de como a fêmea da mosca icnêumon
deposita seus ovos no corpo de determinado lagarto, e isto, valendo-se de um tubo penetrante
que lhe sai do traseiro. As larvas, em saindo da casca, principiam a devorar o animal por
dentro. De começo, respeitam os órgãos de importância vital para o lagarto, como se as larvas
tivessem consciência de que não devem “matar a galinha que põe ovos de ouro!”. Mas já
crescidas, já transformadas em ninfas dotadas de duros invólucros protetores, comem o que
resta do lagarto, atingem o pleno desenvolvimento, e buscam caminho para o exterior para se
transformarem em pupas. E acrescentam os Wells e Huxley: “Tais fatos são, com efeito, uma
dificuldade real para os que acreditam na criação do mundo, tal como ele é, por uma divindade
benfeitora”(pág. 199). Nisto os autores estão certos, porque Deus não podia ter criado este
mundo “tal como ele é”. Qual, logo, a solução para tais problemas filosóficos? “Para o
evolucionista (acrescentam), porém, não oferecem nenhum problema de ordem moral. A
seleção natural age cegamente, desconhece todos os valores humanos. É injustificável
atribuirmos qualidades morais, tais como crueldade ou beneficência, aos animais ou aos
processos de suas vidas, como atribuirmos resolução ao vento e consciência a uma montanha.
Os métodos da Natureza não conhecem valores; todos os valores surgem na mentalidade do
homem”(pág. 199). Surgem do que? De que modo? Por que? Em que se hão de basear os
valores? e a moral? Sim, porque os evolucionistas não têm em que fundamentar a moral, e, se
quiserem seguir a Natureza, serão, queiram ou não queiram, moralistas nietzscheanos.
E dizem noutro lugar: “Em nenhuma outra coisa se baseia a dignidade humana, senão
nela própria; e as atividades do homem precisam valer por si mesmas e pelos seus fins, se
tiverem que ter algum valor” 141. Eis os fundamentos duma inusitada axiologia: o valor do
homem se baseia em si mesmo. Mas que homem? Cristo? Sócrates? Trasímaco-Machiavel-
Nietzsche? Exceto Deus, tudo o que existe tem um fundamento fora de si. Como as opiniões
humanas variam ao infinito, segue-se que há tantos fundamentos quantos são os homens.
Quando o bandido pratica um crime, perfeitamente coerente com a Natureza, a que instância
superior se há de apelar, se o valor do homem se baseia em si mesmo ? Dir-se-á que os
valores hão de fundar-se na vontade e deliberação do coletivo, do social. Então, a vontade do
coletivo se torna o certo, o correto, ainda que seja para pregar Cristo numa cruz, e para pôr
nas mãos de Sócrates a taça de cicuta. Que é o certo, ou o errado, se o homem se fizer
autônomo, para decidir, já se vê, de acordo com seu egoísmo ignorante?
Eis outro passo em que os Wells e Huxley, não se contentando com ser apenas
cientistas, se quiseram fazer filósofos, tirando conclusões para além da ciência; dizem eles:
“Em todos os três casos supra mencionados - a redondeza da terra, a grandeza do sol e a
evolução da vida - os homens levantaram controvérsias, simplesmente porque se tinham
acostumado a outras crenças, com as quais se chocaram violentamente as idéias novas; suas
opiniões morais e religiosas estavam ligadas à noção de uma criação especial de cada espécie
de animal numa certa data, ou à noção de uma terra plana e de um sol pequeno e subserviente
que passeava sobre o nosso planeta; e pareceu-lhes que, se tais noções se destruíssem, o céu
inteiro, em que eles acreditavam, viria abaixo. Mas, novas gerações vieram, aceitaram as novas
141
Wells e Huxley, História e Aventuras da Vida, 29
147

idéias – e verificaram que o céu dos seus impulsos morais e dos seus sentimentos religiosos
nada perdera com a nova concepção mais vasta e mais esclarecida. Hoje, ninguém mais nega o
fato da evolução orgânica – exceto, naturalmente, os indivíduos ignorantes, supersticiosos ou
dominados pelo preconceito” 142.
O não saberem hierarquizar as idéias e os valores fez com que os autores pusessem no
mesmo nível a redondeza da Terra, o tamanho do Sol e a Evolução. No entanto, a doutrina
científica da Evolução implica na reformulação de toda a filosofia, o que ainda, exceto agora,
não foi feito, e, por isto, o mundo, sem norte filosófico, ruma para o caos. “Impulsos morais”
e “sentimentos religiosos” são condicionamentos que não se formam sem uma base, e essa foi
varrida pela doutrina da Evolução. Mas os Wells e Huxley, como estavam já condicionados
antes da nova crença científica, sentiram-se os mesmos. Porém, como condicionar os que virão
daqui em diante? A moral que se infere das lições da Vida, através de toda a Evolução, é a de
que o mundo nasceu do Caos; a de que Evolução se faz por ensaios-e-erros, em que a mutação
fortuita, irrefletida, irresponsável, sem finalidade, experimenta criar formas novas que a seleção
natural cegamente vai peneirando. Por causa disto, o mundo é dos mais fortes, mais bem
dotados e capazes, não havendo nele lugar para os ineptos ou fracos. Daqui vem o corolário
nietzscheano: ser justo é ser forte; a justiça é o desassombro do forte, sem as peias das
morais! O Criador que aparece no fim da cadeia de raciocínios que partem duma Vida
supinamente egoísta e má, ignorante e inconsciente, que para realizar suas experiências
emprega o ensaio-e-erro, agindo às cegas, num tempo de bilhões de anos, que mata mil
quintilhões de formas erradas, que põe o fraco e indefeso frente ao forte e astuto e massacra
aquele sem a mínima comiseração, tal criador só pode ser semelhante, conquanto em grau
infinito, ao cruento deus Moloch. Os Wells e Huxley podem ser cientistas, mas estão longe de
serem filósofos; suas conclusões neste terreno causam riso!
Outra de filósofos está quando escreveram: “Por que motivo o morcego que voa, a
baleia que nada, a toupeira que cava buracos, o gerbo que salta, são todos construídos
segundo o mesmo plano, enquanto um plano completamente diferente preside à formação da
borboleta, da pulga d’água, da paquinha e do gafanhoto, que também, respectivamente, voam,
nadam, cavam buracos e saltam?"...
“Muito tempo antes de Darwin, os naturalistas reconheceram essas semelhanças básicas
de plano; Cuvier empenhou-se em explicar o fato, asseverando que cada plano principal ou
arquétipo, como dizia, correspondia a uma idéia preexistente no espírito de Deus, que
imprimiu modificações naquele plano durante o processo da criação. Mas o que é difícil é
conceber como só um pequeno e limitado número de arquétipos ideais houvesse sido
concebido pela mente divina. Por que limitaria Deus suas idéias?” 143.
Depreende-se, do que disseram os autores, que eles confundem idéias-arquétipos com
imagens individuais. Idéias são generalizações ou conceitos tendentes para a unidade; trata-se
de um plano geral que se pode manifestar em miríades de formas individuais diversas.
Tendendo para a unidade, é claro que as idéias-arquétipos são limitadas. A perna de um
gafanhoto e a de um cavalo se assemelham, por causa da mesma função que executam, e não
por derivação evolutiva. Partindo de origens diferentes, a idéia-arquétipo manifestou-se
produzindo idêntico resultado na forma, ao que se dá o nome de convergência. Como estes
casos, estão todos os demais paralelismos biológicos e mecânicos. A ave é como o avião, o
tubarão, como o iate, porque possuem uma mesma idéia-arquétipo. Não é na idéia que tem de
procurar a multiplicidade, mas nas formas individuais em que a idéia única se objetivou. Os três
princípios das alavancas são idéias básicas que tudo fundamentam, até a roda que, à primeira
vista, nada se parece com uma alavanca. O universo é a matemática revestida de substância, já
o disse Fritz Kahn. Face a isto, que significação tem a pergunta: “Por que limitaria Deus suas
idéias?”.

142
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, pág. 222
143
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, págs. 92 e 93
148

E dizem, pouco mais adiante: “Repetimos: se todos os insetos são aparentados, tendo
os seus corpos essencialmente semelhantes, mas especializados de diversos modos para
adaptar-se a diversos hábitos, compreende-se facilmente o plano comum de construção de suas
mandíbulas; mas se todos eles foram criados separadamente, teríamos então que admitir um
monstruoso pedantismo na obra da criação” 144.
Eis aí a incoerência. Antes se perguntou: “Por que limitaria Deus suas idéias?” Agora,
se Deus não as limitou, criando todas as formas separadas, neste caso, como dizem os autores,
“teríamos então que admitir um monstruoso pedantismo na obra da criação”. Em que ficamos?
Deveria Deus limitar as suas idéias? Ou produzir o “monstruoso pedantismo na obra da
criação”? Se as limita, dá visos de pobreza; se as não limita, mostra-se pedante, isto é, faz
ostentação de conhecimentos superiores aos que possui, passando a ser parlapatão, impostor,
vaidoso, pretensioso, uma vez que tudo isto é o significado de pedante.
Dizem os Wells e Huxley que “se todos os insetos são aparentados, tendo os seus
corpos essencialmente (isto é, idealmente, ou sido criados segundo uma mesma idéia-
arquétipo) semelhantes, mas especializados de diversos modos para adaptar-se a diversos
hábitos, compreende-se facilmente o plano comum de construção (outra vez a idéia-arquétipo)
de suas mandíbulas” 145. Os grifos e os parênteses são nossos.
Como se explica então? Explica-se que sem um princípio diretor, por sua natureza
ideal; sem a essência que, porque intemporal e incausal, pré-está à coisa formada; sem a idéia,
nada se forma; porém, tudo se formou, não por etapas estanques, isoladas, separadas, por atos
especiais de Deus, mas por derivação genética, evolutiva, pelo método das tentativas e
falências, por ensaio-e-erro. A vida que era, antes da queda, sábia no Amor, tornou-se, depois
dela, ignorante no egoísmo, e isto, em virtude de haver-se invertido. Agora, seu método para
reconstruir-se, é o do ensaio-e-erro, gastando, em cada experiência bem sucedida, milhões de
anos. Todavia, à Evolução, não lhe resta outro recurso senão realizar-se segundo à idéia-
arquétipo da qual não pode fugir, e sem a qual nada se forma, nada é, se bem que gaste, em
cada experiência bem sucedida, em cada descoberta fundamental, milhões de anos, e empregue
o método do puro ensaio-e-erro.
Continuemos a verificar ainda o que acontece quando cientistas, indevidamente, se
põem a fazer filosofia, ainda que esta apareça resumida, concentrada, numa única máxima. As
mentes filosóficas são aptas a ver, de um golpe, toda a cadeia de raciocínios dedutíveis de uma
sentença. “A mente adestrada (diz Ortega) costuma percorrer velocíssimamente uma série
dialética elementar como a exposta. Esse adestramento é a educação filosófica, nem mais nem
menos misteriosa que a ginástica ou que o «cultivo da memória». Qualquer um pode ser
filósofo apenas querendo – entenda-se querendo exercitar-se, seja rico ou pobre, já que a
riqueza quase estorva mais que a pobreza” 146. Ora bem: a Vida carece de status fixo; é um vir-
a-ser em que uma espécie produz outras pela mutação, pondo zonzos os sistematizadores que
gostariam, como Aristóteles, como Lineu, que tudo fosse bem ordenado estando cada coisa
em seu devido lugar. Assentado isto, temos que a definição de espécie mais corrente é a de
Mayr: “Espécie é um conjunto de indivíduos que, por terem a mesma constituição genética,
são potencialmente interfecundos dando prole também fecunda”. No entanto, como nenhuma
definição é completa, os autores afirmam que “só uma pode considerar-se inatacável – a
proposta pelo Dr. Tate Regan, em reunião da British Association por volta de 1934: «Uma
espécie é um grupo de animais definidos como espécie por um sistematizador
competente»” 147.
Ora bem: uma definição é um conceito, uma delimitação de dada coisa num todo maior,
pela qual ela é compreendida, inteligida. Logo, a definição é propriedade imutável da coisa. A
definição do círculo não pode ter por base senão o que é o círculo. Mas, segundo os autores, a
144
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, pág. 95
145
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, pág. 95
146
Ortega Y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 175
147
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, pág. 150
149

definição de espécie passa a ter base no sistematizador competente. Ora, se houver dois, três,
cinco sistematizadores competentes a se digladiarem, aparecerão tantas definições quanto são
eles, e todas válidas. Que é, então, da unidade de idéia que é o princípio da definição? Ou se
define, ou não se pode definir; o que é absurdo é mais de uma definição para uma mesma
coisa. O espaço não é definível, por ser infinito, nem o tempo, por ser eterno; são, pois,
intuições. Acaso a espécie é uma intuição? Não, porque tem limites; e sim, porque os limites se
confundem. Então, vem um sistematizador competente, e põe o limite aqui, e outro, ali, e esse
limite arbitrário, subjetivo, idealista, com fundamento no entender do sistematizador, é o limite
da coisa? E será isso definição?
O fundo das idéias dos Wells e Huxley é o lamarckiano, ou seja, de que o meio provoca
as variações. Falando a respeito da origem das penas como aperfeiçoamento de escamas
primitivas, declaram que as penas surgiram “para cobrir o animal, e mantê-lo numa
temperatura favorável”. Na verdade, as penas apareceram por mutação ocorrida nos gens que
determinavam o aparecimento de escamas, e tal mutação foi aproveitada pelos répteis para
proteger-se contra o frio. Se a presença do calor impedisse o surgimento das penas nas aves,
estas não existiriam nas tórridas regiões equatoriais. Como as mutações não têm sentido, e se
dão às loucas, por ensaio-e-erro, por somação ou subtração de gens, não vale dizer o que
escreveram: “Como, todavia, no Período Jurássico, o mundo se achava numa temperatura
quente e uniforme, é razoável supor que as primeiras evoluções dessa cobertura de penas, que
serve para reter o calor, tivessem ocorrido nas vizinhanças das regiões polares, só se
propagando mais tarde durante as alterações climáticas radicais do Cretáceo” 148.
Noutras palavras: por causa do frio surgiram as penas, em vez de dizerem que elas
apareceram a despeito do calor. Fosse isto verdade, as aves emigrantes haviam de fugir dos
verões, em busca das zonas em que imperam os invernos; contudo é o contrário que se dá. Se
as variações, como disseram os mesmos autores, ocorrem ao acaso, por ensaio-e-erro, como
agora querem estabelecer uma causalidade, o frio, para o surgimento das penas nos répteis
primitivos?
Os pterossauros chegaram a desenvolver uma crista de penas, semelhante a cabelos,
mas “essas penas devem ter sido somente para adorno; o corpo e as asas encouraçadas mesmo
nos exemplares mais esquisitos encontrados, eram despidos de penas” 149. Como? “devem ter
sido somente para adorno?” E para que adorno de penas na cabeça, quando o imperativo da
Vida impunha a existência de penas para proteger o corpo contra as perdas de calor? É que,
como afirmamos, a mutação não tem nada a ver com os imperativos da Vida, visto que se dão
às cegas; é por isto que apareceram tais cristas de penas para nada, sem nem mesmo a
intenção de adornar, ao tempo em que os répteis voadores morriam todos de frio. Assemelha-
se o caso ao de um louco que compra nobilíssima cartola, em vez de premunir-se contra o frio.
Deixando entrever a mesma tese lamarckiana escrevem, noutro lugar, que “a luta pela
existência automaticamente acarreta o progresso, assim como, também automaticamente,
provoca uma especialização continuada, como a dos cavalos, ou uma adaptação de detalhes,
como a cor verde protetora dos insetos que vivem sobre as folhas” 150 – os grifos são nossos.
Em vez de “acarreta o progresso”, diga-se: aproveita a variação fortuita, porque
adaptativa. A especialização também é produto da mutação que a luta pela vida seleciona; não
“provoca a especialização”, porque a luta pela vida não cria nada; apenas destrói o que a
mutação criou, mas que não pôde adaptar-se.
Afinados pelo diapasão de Lamarck, escrevem a seguir: “Devemos recordar igualmente
que todo avanço realizado por uma planta ou animal provoca automaticamente um avanço
correspondente em todos os outros seres que vivem relacionados intimamente com esses” 151 –
os grifos são nossos.
148
Wells e Huxley, História e Aventuras da Vida, pág. 234
149
Wells e Huxley, História e Aventuras da Vida, págs. 239-240
150
Wells e Huxley, História e Aventuras da Vida, pág. 334
151
Wells e Huxley, História e Aventuras da Vida, pág. 335
150

Os avanços de uns não provocam os avanços de outros, porque tais uns não têm meios
de atuar no plasma germinativo de tais outros. Diga-se que os avanços de uns propiciam a que
outros, por seus caminhos próprios, genéticos, mutacionais, por sua vez também avancem. O
meio (de que faz parte o adversário que devasta, e o amigo simbionte que defende), não cria
nada, e apenas seleciona o que foi criado às loucas por mutação.
Os Wells e Huxley interrogam: “Qual teria sido a causa que fez o nosso ancestre pré-
humano descer das árvores e que lhe tirou os hábitos arbóreos?” 152. E lá vem a teoria das
modificações do meio, do ressecamento e conseqüente extinção das árvores, porque a idéia é a
de que o meio é que provoca a evolução, como pensava Lamarck. Não ocorreu, aos autores,
no entanto, que foi uma mutação que alterou os pés do pré-homem, tornando-o péssimo
trepador; não podendo competir com os companheiros do bando, nosso glorioso “aleijado”
ficou no solo, como ficam os gorilas velhos, estes, por causa de pesados, chegando a atingir
duzentos e cinquenta quilos. Não é porque os macacos desceram ao chão que se
transformaram em pré-homens, e sim, pelo contrário, porque se tornaram pré-homens e
péssimos trepadores, por isso se viram obrigados a descer ao chão. Como se vê, as
transformações são pré-adaptativas, como é o caso, por exemplo, de animais nascerem cegos
ou de olhos reduzidos, e, por isto, procurem abrigo nas cavernas, adaptando-se, aí, e aí
proliferando. Os que saem sadios dos olhos buscam a luz, ao passo que os deficitários
permanecem nas trevas, selecionando e fixando este caráter, pois claro: ser cego e sair à luz, é
expor-se a ser devorado...
O que há na Evolução é uma pã-ortogênese. Ortogênese é a denominação que se dá
ao fato, fartamente comprovado, de uma espécie, apesar de perfeitamente adaptada, revelar
um impulso intrínseco para variar as suas condições da vida. Esse fenômeno não ocorre
somente numa espécie, mas em todas, donde dizemos pã-ortogênese. Todavia, em oposição, a
seleção natural é uma tendência conservadora que vai eliminando tudo o que não se pode
adaptar. Contudo, se as variações se adaptam, as formas novas vivem lado a lado com as
anteriores não variadas. Podemos comparar a seleção natural como uma peneira que coa e põe
fora o que não serve, conservando apenas o que não atravessou nas malhas. No entanto, essas
malhas não são fixas; há períodos em que o meio se modifica, entra em oscilações, e isto é
como se as malhas se alargassem, deixando passar muita coisa que até então se conservara.
Um exemplo temos nos sáurios gigantescos do passado, que conviveram muito tempo com os
mamíferos. Mas sobrevieram as glaciações, e com elas, a carência de alimentos, matando os
répteis de sangue frio, e deixando vivos os mamíferos que, porque de sangue quente, possuíam
a proteção dos pelos e reguladores térmicos de temperatura. Além disto, tais mamíferos
primitivos eram pequenos, podendo esconder-se mais facilmente do frio (como, aliás, fizeram
também os répteis pequenos) e nutrir-se de menor provisão de alimento. Então, as glaciações
como que alargaram as malhas do crivo, e os répteis passaram por elas, e desapareceram.
Mutação e seleção, como se vê, são dois impulsos contrários em luta como tese e antítese. A
Evolução é a síntese resultante da atuação conjunta da tese (variação) e da antítese (seleção).
A seleção natural não aprecia inovações, ao passo que a mutação detesta o
conservantismo, a rotina. Dá-se então o equilíbrio: a mutação e a variação criando a torto e a
direito, e o filtro seletivo orientando automática e cegamente, e, sem comiseração, destruindo
a maior parte do que não corresponde às imposições do meio. Por causa de a maior parte das
variações se destruírem na luta pela vida, não as vemos, e cuidamos que a natureza é mais ou
menos homogênea. Quem desejar, porém, ver variações em abundância, procure as ilhas, lagos
e mares fechados, e aí as terá. “É maravilhoso verificar-se, escreve Darwin, que, na ilha James,
dentre trinta e oito plantas galapageanas que não existem em nenhuma outra parte do mundo,
trinta se limitavam exclusivamente a essa ilha”. E prosseguem os Wells e Huxley após esta
citação de Darwin: “Essa florescência extraordinária de espécies diferentes, cada qual no seu
pedacinho de ilha, impressionou Darwin a tal ponto que, trinta anos depois, ele ainda escrevia:
152
Wells e Huxley, História e Aventuras da Vida, pág. 353
151

«Quando visitei o arquipélago das Galápagos... pareceu-me estar diante de um verdadeiro


milagre da criação»” 153.
Cumpre notar, todavia, que o mesmo surto variativo ou mutacional ocorrido nas ilhas,
também aconteceu no continente próximo; porém, a seleção natural eliminou aqui as espécies
produzidas com a mesma freqüência que nas ilhas, porque, no continente, as espécies novas
foram peneiradas por um crivo seletivo de malhas mais largas. O isolamento não é uma causa
da variação (op. cit. 320), como disseram os autores, e sim, a causa da conservação do que
surgiu, às vezes, até sem nenhuma vantagem para o ser vivo. Um exemplo disto são as aves
sem asas da Nova Zelândia como o “kivi”, o papagaio-mocho, duas ou três famílias de
frangolins, afora ainda a grande “moa”, um ganso gigante, um pato e um açor, todos sem asas,
agora extintos. Na ilha Maurício há a ave “dódó” descendente de um pombo cujo corpo se
avolumou na proporção em que as asas se atrofiaram. Outro pombo não voador, o “solitário”,
também corpulento, habita as vizinhanças da ilha Rodrigues, e que hoje possui uma estrutura
semelhante a da avestruz. Os insetos das ilhas batidas pelos ventos, também são desprovidos
de asas; os que voavam foram colhidos pelos ventos e levados para o mar onde pereceram;
mas as gerações dos sem asas mutados sobreviveram. Quer dizer que, vez por outra, espécies
sem asas surgem também no Continente; mas a seleção, aqui, tem seu crivo de malhas mais
largas, e tais mutados saem pelas malhas e ... desaparecem.
Quando as ilhas não muito grandes abrigam mamíferos de porte avantajado, a espécie
deles começa a reduzir de tamanho, por causa da escassez de alimento; os que, por variação,
saem pequenos, sobrevivem e se reproduzem, enquanto os grandes perecem. É assim que em
Malta, no período Plistocênico, viveu um elefante anão, e nas ilhas do Mediterrâneo ainda
existem raças anãs de veados-vermelhos. As ilhas são como as cestas de lixo dos músicos e
escritores onde eles jogam os papéis com desenvolvimentos rejeitados. Nos continentes tais
papéis são queimados pela seleção natural. Peguem-se as cestas de lixo de Beethoven e de
Goethe, do tempo em que o primeiro compunha a “Nona Sinfonia”, e o segundo, o “Fausto”;
examinem-se os conteúdos de ambas cestas e ver-se-á quanta coisa foi rejeitada. Tais são as
ilhas: cestas de papéis rejeitados pela Evolução ocorrida em todo o lugar, tanto nas ilhas onde
se conservam, como nos continentes onde são destruídos. Nas ilhas permanecem os produtos
das mutações, monstros da Natureza, obras bizarras, incompletas, desviadas da senda
evolutiva, como a querer zombar dos sistematizadores, até que, afinal, são destruídos todos, se
evolam como fumo, se acontece surgir uma ponte, como ocorreu mil vezes no passado, que
ligue o continente às ilhas.
Se, pois, formos examinar a Evolução nos seus pormenores; se percorrermos os
caminhos de suas tentativas e falências, acabaremos concluindo que ela não tem sentido.
Olhando-a, depois, como um todo, no tempo e no espaço, até o aparecimento do homem,
então somos forçados a concluir que ela tem um objetivo. A esta mesma conclusão chegaram
os próprios Wells e Huxley para escrever: “Mas, de duas uma. Ou os seres vivos se orientam
para um fim, em suas transformações evolutivas (as flores, por exemplo, servindo para atrair as
abelhas, o cavalo tendendo a perder todos os dedos, exceto um), ou então, embora os seres
vivos não se proponham por si mesmos a nenhum fim, deve haver um propósito deliberado no
espírito de um Ser Divino, que utiliza os organismos e o meio a serviço dos seus fins, como
nós fazemos com os corpos materiais” 154.
A primeira alternativa tem que ser eliminada, porque é impossível que um vegetal tenha
consciência da necessidade de fazer suas flores com o fim de atrair os insetos ou os pássaros.
O objetivo alcançado mostra que o processo é inteligente, conquanto não se possa dizer que o
vegetal, por algum modo, seja inteligente. Resta, então, a segunda alternativa que é “haver um
propósito deliberado no espírito de um Ser Divino que utiliza os organismos e o meio a serviço
de seus fins, como nós fazemos com os corpos materiais”. Mas como a evolução se faz por

153
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, pág. 318
154
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, págs. 358-359
152

ensaio-e-erro, num tempo demasiado longo, e ainda por um processo “devastador, acarretando
grandes sofrimentos – para os animais superiores, pelo menos – e, o que é pior, gerando
muitos produtos definitivamente maus” (Wells e Huxley), concluímos que esse Ser Divino é
ignorante dos meios, e faz suas experiências por tentativas, como fizera Edison para descobrir
o filamento de sua lâmpada incandescente. Além de ignorante no que se refere aos meios para
alcançar seus fins, esse Ser Divino é desapiedado, por causa dos sofrimentos que impõe, e
imoral, por gerar produtos definitivamente maus, aos quais, incrivelmente, confere a palma da
vitória e da vida. Um Ser Divino ignorante, desapiedado e imoral é o que se infere da
observação da Natureza em que se opera a Evolução. Tal é o beco sem saída para a ciência,
quando quer induzir verdades mais gerais, fazer filosofia, a partir de suas observações.
Face a isto só nos resta um único caminho: negar que Deus tenha feito este nosso
mundo egresso do caos, em que reina o egoísmo, a ignorância e a dor, e afirmar que ele fez o
mundo celeste, de seres sábios porque amorosos, do qual uma parte ruiu. Quando, no binômio
amor-sabedoria, o amor se inverteu no egoísmo, a sabedoria se fez ignorância; o binômio
ficou negativo: egoísmo-ignorância. E esse binômio negativo é o que governa nosso mundo.
E pelos caminhos da ignorância, pelo ensaio-e-erro, por tentativas e falências, a Evolução
tende a realizar o que se acha pré-determinado, e que já existe na parte não caída dos celícolas.
Não há fugir; este é o caminho do pensamento, e não há outro.
Então os Wells e Huxley terminam o volume 3 de sua coleção “Ciência da Vida”, com
estes pensamentos: “Quando alcançamos o homem, todavia, a Evolução se torna parcialmente
intencional, ou, quando menos, tem a possibilidade de sê-lo, porque o homem é o primeiro
produto da Evolução que tem a capacidade de orientar-se conscientemente para um fim e de
controlar voluntariamente o seu destino evolutivo. A consciência humana é uma das obras-
primas da Evolução. Ela nasceu como um produto das atividades mecânicas da variação e da
seleção”...
“Desde, porém, que a consciência já despertou na vida, é possível esperar, para o
futuro, um método mais rápido e menos devastador de evolução, baseado na previsão e no
cálculo deliberado – em substituição ao antigo método vagaroso de luta cega e cega seleção.
Presentemente, isso é apenas uma esperança. Mas os conhecimentos e as capacidades do
homem cresceram desmesuradamente nestes últimos cem anos. A multidão dos homens que
hoje vivem na terra ainda não conhece senão uma parcela insignificante do que o homem já
conhece e ainda nem sequer sonha com muita coisa que atualmente já podemos fazer” 155.
Em outras palavras: a Vida que, no homem, toma consciência plena de si, nega-se a si
mesma como invertida que é, e negar-se na inversão é endireitar-se. O egoísmo-ignorante de
outrora tornar-se-á, cada vez mais, no egoísmo-sábio ou dilatado que se confunde com o
amor. Antes, porém, que o homem possa desvirar de negativa a Natureza exterior, terá que
desinverter-se a si primeiro de dragão, de animal, de demônio, tornando-se no tipo sábio-
amoroso, o que se faz pelo saber que, automaticamente, leva à expansão do egoísmo por uma
zona de meus cada vez maior.
Mas tentemos outra hipótese: suponhamos que Deus criou a Natureza, a que
conhecemos, na sua forma direita, positiva, donde vem que, como o entendia Schopenhauer, o
mal e a dor são positivos, e a alegria e o bem, negativos. Suponhamos que a Natureza esteja
certa, direita, em positivo; neste caso, o homem pretende invertê-la, torná-la negativa, porque
é nesta forma negativa que ela se nos mostra boa, sábia, moral. Suponhamos que o homem
possa negativar-se, e, depois, forçar a Natureza toda a negar-se também na sua forma positiva,
tornando-se toda ela também negativa.
Acontecido isto, o Ser Divino dar-se-ia por satisfeito, ou estaria contrariado? Se
satisfeito, então o homem teria realizado a vontade de Deus que, por sua natureza, também é
negativo. Se contrariado, o homem teria de lutar contra o próprio Deus, e nesta batalha ele, o
homem, já teria perecido, pois não teria chegado ao grau evolutivo de homem-negativo,
155
Wells e Huxley, Evolução dos Seres Vivos, págs. 361-362
153

negador da Natureza-positiva. Ora, se o homem pode construir-se como tal; se pode negar a
Natureza positiva, fazendo-se ele próprio negativo, com a devida permissão de Deus, então o
Ser Divino é negativo, tal como o homem procura ser, contra toda a Natureza sub-humana,
que só esta, neste caso, se mostra positiva. De uma parte temos, então, o Ser Divino e o
homem negativos, e de outra, a Natureza sub-humana positiva. Pois agora, então, é só fazer
como nas equações: trocar os sinais, que a Natureza fica negativa, e o homem evoluído, assim
como o Ser Divino, positivo.
Ora bem: se a Evolução principiou pelo binômio ignorância-egoísmo, e, atingido o
homem, desinverte-se para sabedoria-amor, entendido amor, aqui, como egoísmo dilatado,
segue-se que o telefinalismo evolutivo é a desinversão da Natureza. E só pode desinverter-se
o que estava invertido. Se esse telefinalismo vislumbrado pelo homem, e já em vias de
concretizar-se, está na mente de um Ser Divino, segue-se que esse Ser Divino não poderia ter
feito a Natureza invertida, egoísta e má, quando seu objetivo (o homem o atesta), era o amor e
o bem. Logo, Deus não fez a Natureza tal como ela é, e sim criou-a na sua forma direita,
positiva, no lugar celeste, onde aconteceu de uma parte ruir e inverter-se. Houve, portanto,
uma Involução até o caos, para que fosse possível, agora, a Evolução, a partir dele.
Esta filosofia norteará o porvir que pode começar agora, ou daqui a alguns mil anos,
quando esta mesma idéia for redescoberta por alguma outra civilização que vier a levantar-se,
como a fênix, das cinzas da nossa.

Capítulo XX

SUBIDA DO MENTAL AO MORAL


Quando estudamos a organização da vida animal, verificamos que a natureza jogou
com três alternativas, e todas foram fartamente exploradas pela vida em todos os seus níveis.
Os seres unicelulares segregaram plasma enriquecido por silício ou cálcio, tornando-se
radiolários e amebas calcárias. Assim, a primeira alternativa foi criar defesas passivas das
carapaças. A segunda, consistiu no não se envolver dos cascos duros e espinhosos, e antes, no
manter-se livres para os movimentos rápidos como o dos infusórios, com armas de ataque,
defesa pronta, para o que foi preciso, adquirir “nervos” sensíveis e “inteligência”. A terceira
alternativa consistiu em juntarem-se os unicelulares em colônias, o que propiciou tamanha
vitória, que, dos coloniais, pôde originar-se os seres superiores. Fixemos, então, esta verdade:
a abundância de vida só foi possível com a união.
Todavia, que motivou todos os três tipos de comportamento da vida? Pois foi o
egoísmo. Para defender-se, o unicelular criou a carapaça silicífera e calcária; pelo mesmo
motivo, os infusórios escolheram ser livres de pesos inertes, adquirindo agilidade, armas de
ataque e mais “inteligência”. Para defender-se, os unicelulares mantiveram-se unidos em
colônias. Este mesmo tema da vida repete-se mais acima, onde os já vertebrados se cobriram
de couraças defensivas como os répteis gigantescos do passado, e a tartaruga e o jabuti do
presente; outros, como os mamíferos, adquiriram agilidade e inteligência, além das armas
eficientes: chifres, dentes, garras; e ainda outros se irmanaram em bandos, como os macacos,
sob a autoridade de um chefe. Sempre o motivo foi a preservação do indivíduo, do eu, daí,
egoísmo.
154

Quanto benefício pode propiciar o egoísmo ainda ignorante! Daí que Mefistófeles se
define: “Quem sou? Parte da força, que, empenhada no mal, o bem promove” 156. Não podia
ser de outro modo: se não houvesse o egoísta que rouba e devora, os unicelulares não
precisariam defender-se, arregimentando-se em colônia de que surgiram os seres superiores. O
egoísmo de uns impôs problemas a outros egoístas, e estes, ou os resolveram, ou cessaram de
existir. Resolveram problemas? Então aprenderam a lição. Que lição? Acaso que a união faz a
força? Muito mais que isso: a união faz o ser, e foi pela união dos unicelulares que surgiram
os organismos superiores. Eis o primeiro ensinamento da vida, e também o último, que nos
cumpre aprender... mas que relutamos, porque nosso egoísmo é ainda ignorante. A lição que
Cristo ensinou num nível mais alto, é a mesma que os unicelulares soletraram na Cartilha da
Vida! E é impossível que aquilo que entenderam e aplicaram os unicelulares, não possa ser
compreendido e executado pelo homem em seu nível social, e que não é outra coisa senão que
a união faz o ser, e, pela recíproca, a desunião produz a fraqueza, a extinção, a morte da
civilização, o não-ser. Em todos os níveis do universo, sem exceção, todos os seres de um
nível resultam da união dos seres dos níveis inferiores, e entram na constituição dos seres que
lhes ficam acima. Assim, o ser da molécula resulta do ser dos átomos que se combinam, no
mesmo passo que os seres moleculares se integram aos seres maiores das moléculas gigantes,
de que se formam as micelas, etc.
Por este modo de ver, fica-nos patente que o egoísmo é como a terra oculta sob as
águas, da qual se erguem três ilhas que fundamentam o edifício da vida nos seus três instintos
básicos: a preservação do indivíduo, a preservação da espécie e o instinto gregário, este que,
sobre todos, possibilitou à vida ser mais vida. Assim o foi, quando os unicelulares
permaneceram integrados nas colônias, dando origem aos seres superiores, e assim, também,
quando os indivíduos superiores se congregaram em bandos, em clãs, em cidades-estados, em
Estados, em nações livres até a Nação Mundial ainda por nascer. Conquanto este instinto
último, o gregário, seja o mais alto e valioso, os dois outros continuam necessários para o
todo, de sorte que a vida se apóia sobre um tripé, e não, sobre uma perna só. Todavia, as três
pernas do trípode se firma sobre um terreno comum que é o egoísmo.
Em cada indivíduo, do macaco ao homem, imperam estes três instintos, podendo
realçar-se mais, ora o egoísmo individual, ou de preservação própria, ora o instinto de
preservação da espécie, e ora o de preservação do social. Ainda tornaremos ao esboçado nesta
parte.
Os organismos vivos morrem por se lhes esgotarem as energias vitais do plasma; as
civilizações se derrocam por se aniquilarem nelas as forças sociais nascidas da idéia de que há
algo importante e grande a ser feito. Quando uma civilização chega ao seu fim, chega-o,
porque se cuida que nada mais há a fazer senão gozar a vida, amolecer-se física e moralmente,
entregar-se aos gozos carnais, à devassidão. A minoria outrora criadora, troca-se por uma
minoria apenas dominante, as massas deixam de entusiasmar-se, perdem o senso de valor que
permite a elas saberem quem vale e quem não vale para o mando, resultando disto que os
homens-massas, os demagogos, ocupem o poder. Por que não? Os altos postos de comando
podem ser exercidos por qualquer um, pois nada se tem a fazer... Daí que, como diz Ortega, é
“muito difícil salvar uma civilização quando lhe chegou a hora de cair sob o poder dos
demagogos. Os demagogos têm sido apenas os grandes estranguladores de civilizações. A
grega e a romana sucumbiram nas mãos desta fauna repugnante, que fazia Macaulay exclamar:
«Em todos os séculos, os exemplos mais vis da natureza humana deparam-se entre os
demagogos»" 157. Fale ainda Ortega: “O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto
e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes,
sejam enormes” 158.

156
Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV, pág. 85
157
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, pág. 47
158
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas, pág. 104
155

O pré-homem macacóide, tanto que se viu em pé, já estava vivendo em grupo. O


mesmo macaco moderno (gorila, chimpanzé, orangotango, gibão) já é tribal, ou grupal, ou
“social”. Já sabem obedecer a um chefe que se alça sobre os demais.
Ora bem. O social se rege pelos princípios de Durkheim e de Ortega. Segundo
Durkheim, o fato social possui as características de exterioridade, coercividade e generalidade.
É exterior, porque já existia antes de nascermos; é coercitivo, porque se nos impõe
inexoravelmente; é geral, porque pertence a toda sociedade. E Ortega acrescenta que o fato
social é ainda irracional, visto como nos obriga a atos impensados por nós, que não são
produtos do nosso estudo, de nosso pensamento, de nossa deliberação pessoal, meditada,
consciente. Na sua gênese, o fato social foi pensado por alguém que estabeleceu as normas e
as aplicou aos demais; daí por diante, o fato social se despersonaliza e se nos impõe, e
obedecemos cegamente, como autômatos. Por isto, os fatos sociais são irracionais, e não
partem de uma suposta e mística mente coletiva, como o pensara o idealista Durkheim.
Levy Bruhl já dizia que o homem primitivo era místico, pré-lógico, que seu pensamento
carecia do princípio de contradição, pelo que, tudo o que acontecia, era pela vontade de Deus.
Sucede, porém, que, se descermos ao macaco, abaixo do pré-homem, verificamos que ali já
bruxuleia o legal, a ordem social imposta por um chefe, sem nenhuma idéia de Deus. Então,
temos que supor que a ética, no seu nascedouro, era um corpo de preceitos de consenso
coletivo, daí que ética vem de etos que quer dizer costume, sem, ainda, a apelação para Deus.
Neste consenso geral de que se derivam os costumes, etos, daí ética, o que um chefe tinha por
certo e verdadeiro, se fazia norma, regra. Como se vê, o consenso geral também estava na
mente e no coração do chefe. No entanto, umas tantas coisas desta pré-ética eram tão
imperiosas, segundo o entender do chefe, que ele as impunha como lei. Eis, pois, como a lei se
torna num círculo menor, sobreposto e concêntrico ao círculo maior da ética.
Pois bem. Se dentre tantas coisas que faziam parte da ética, etos, costume, umas eram
imperiosas e vitais, e outras, não, segue-se que havia uma hierarquia. Esta hierarquização das
coisas, das idéias, é o que se chama axiologia, ou teoria do valor. Era, então, preciso que
existisse o senso axiológico que hierarquizava, para, por meio da hierarquização, traçar os
círculos do ético primeiro, e do legal depois.
Quanto à moral, nós entendemos que ela se refere ao sentimento, e só aparece no fim,
quando a adesão íntima do cidadão (de civis), do homem civil ou social, do homem-sócio, se
inflama do sentimento de estar com a lei e pela lei, sem nenhuma coerção extrínseca. O justo
goza a vontade da lei, ao passo que o recalcitrante a sofre. No gozar a vontade da lei, no
colocar-se, com entusiasmo, do lado dos preceitos éticos e legais, nisto, para nós, se cifra a
moral, e que, portanto, não pode aparecer senão no fim da jornada evolutiva.
A primitiva idéia de Deus, portanto, posterior, foi nascedouro da ética, da moral, não
nasceu do raciocínio claro de que havia de existir um ser necessário que fez o homem, visto
que este não podia ter-se feito a si mesmo. Na cabeça do primitivo longínquo não cabia tanto.
A idéia de Deus nasceu no primitivo, da existência e presença de um chefe respeitado e temido
que se tornou imortal para o coletivo, já nos exemplos imitados pelos demais chefes, já nas
lendas formadas em torno de seu nome, já por causa dos profetas que se diziam intermediários
(médiuns), pelos quais o chefe morto continuava a dar suas ordens. Se os macacos pudessem
ter memória e história, o chefe do bando, ainda que morto, continuaria a governar os vivos. E
não faltaria um profeta que se supusesse incorporado pelo espírito imortal do chefe morto,
para continuar afirmando o que dissera o mesmo chefe quando vivo. Mas não. O macaco não
tem memória e história; não possui “mortos viventes” perto de si; e, como Pedro Schlehmil
que perdeu a própria sombra, os macacos ainda não a adquiriram: assim é que deve ter tido
origem a idéia de Deus no primitivo. A cadeia de raciocínios que clama pela necessidade da
existência de Deus, só pode ter surgido mais tarde, quando o pré-homem começou a pensar
com mais clareza.
156

Contudo, há outra hipótese para o surgimento da idéia de Deus, tal como esta,
verossímil. O homem é um egoísta. Portanto, o máximo valor é si mesmo, ou sua pessoa. O de
que sua vida depende, passa a valer mais que si, porque, sem aquilo que lhe é indispensável à
vida, ele morre, cessa de existir. O urso das cavernas, por exemplo, era vital para o primitivo
que o abatia, quando hibernado em profundo sono, com uma martelada no nariz. Então, o urso
que morria para dar vida ao homem, era o deus. O primitivo não reparava que o urso não dava
sua vida, senão que lha tomavam por força. Ainda, agora, dizemos que a vaca nos dá o leite...
O urso morto continuava vivo, em espírito, e precisava aplacar-lhe a ira com cultos e
oferendas... até de seres humanos; e estas hóstias humanas também eram devoradas em honra
ao deus urso. Ainda aqui, e por este caminho, a idéia de Deus, filha da razão, do raciocínio,
está fora de cogitação. Esta tese se reforça à vista de documentos antropológicos e
arqueológicos pelos quais sabemos que os deuses vegetais e animais, a fitolatria e zoolatria,
precedem os deuses humanos. Os deuses se humanizaram, antes de se tornarem abstratos no
monoteísmo.
A terceira hipótese é a da síntese que fecha o triângulo; esta é a que julgamos
verdadeira, podendo ter havido povos primitivos que seguiam a tese (o chefe morto é o deus),
outros, a antítese (deus é o urso que possibilitava a vida), e outros, a síntese que se cifra nisto:
os animais e os vegetais inspiram-nos pensamentos. O olhar deslumbrado da coruja conferiu ao
homem a idéia de que ela vive admirada; parece que esse olhar é inteligente, curioso, desejoso
de saber, para o qual tudo é novo, belo, fascinante. Então puseram a ave noturna, a ave que só
levanta vôo ao entardecer, na mão de Minerva, a deusa da sabedoria. A coruja simboliza a
filosofia que só aparece no ocaso das civilizações. O condor altaneiro e a águia carniceira,
apresentam um cariz de violência, vontade ardente, além de pujança e vigor. E lá vai a águia
orgulhosa servir de símbolo do poder romano e da eloqüência, cujos vôos altivos da retórica
patenteiam o poder da palavra em prosa e verso. De igual modo, o leão representa a força, o
boi e o cordeiro a mansuetude, e o próprio Cristo, comparando-se a animal, se deu como
sendo o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. Pela mesma ordem de idéias, o
pavão representa a vaidade, o sapo, a avareza, o bode, a luxúria, a serpente, a perfídia, a
raposa, a matreirice, e assim por diante. E os homens gostam até de dar-se nomes de animais,
sobretudo os indígenas. O Touro Sentado dos peles vermelhas americanos, por exemplo,
constitui até um absurdo, pois jamais ninguém viu um ente bovino sentado, uma vez que o
gado vacum, ao levantar-se, o faz pela parte traseira. Por que Hércules trazia por capa uma
pele de leão?
Desta sorte, o chefe primitivo que se dizia o Grande Urso, e se vestia da pele deste, não
é muito que, quando morto, se confundisse com o urso. Se o urso dava sua vida para servir de
sustento, o chefe era o guia e defesa da clã, e, por este, o chefe, ladeado de outros valentes,
morria em combate, quando necessário. Daí as formas híbridas de animal e de homem nos
faunos, nos centauros, no deus Dagon filisteu, peixe da cintura para baixo, e homem dela para
cima. Formas híbridas implicam idéias duplas, pelo que o chefe e o animal se confundiam já em
vida, e mais ainda, depois de mortos. Os deuses primitivos eram animais com espíritos de
homens que, como eles, se nomeavam; depois, precisava expressar esta dualidade, ou fazendo
homens com cabeça de animais (deuses egípcios e cretenses) ou fazendo animais com tronco e
cabeça de homens. O certo é que os deuses se humanizam nos heróis solares, antes de se
desantropomorfizarem nos monoteísmos. E paralelamente à concepção de Deus, segue a ética
que se fecha no círculo menor do legal.
Do exposto, a ordem moral, ética e legal, como produtos da revelação, vieram muito
depois. Moisés é de ontem, e seu Decálogo, que é cópia do Código de Hamurabi, teve seu
nascedouro na mente de um legislador babilônico. No entanto, por carência de autoridade
própria, Moisés não teve outra saída senão a de pôr na boca de Deus o Decálogo que ele
estudara nas escolas egípcias, como príncipe que era, e valido da casa de faraó, Decálogo que
os sábios do Nilo sabiam ser de origem babilônica.
157

Assim, pela ordem de atuação, primeiro vem o legal, depois o ético, depois a moral,
tudo fundamentado no mental. O legal é o que vem primeiro, e pune ou castiga sob a égide da
lei. Depois, o ético é o círculo maior e concêntrico ao primeiro, que age onde a lei não alcança
com o seu aguilhão de ferro. Um círculo maior ainda, ainda nebuloso, mas também concêntrico
aos anteriores, se abre para além do campo ético – o sentimento moral. E tudo se alicerça no
conjunto-verdade que forma a esfera do mental. Neste campo do mental, e só aqui, se é
totalmente livre... para errar e acertar. Porém, quando o conjunto-verdade se achar expungido
de todas as verdades falsas, tidas por verdadeiras, cessa, também, aqui, a liberdade anárquica,
e o sábio fica condicionado ao que sabe. E se ele ainda se sente livre, é porque usou sua
liberdade para se pôr a favor da verdade, fazendo-se, com ardor, paladino dela, porque a ama.
Pela ordem de importância, primeiro vem a moral, depois a ética, depois o legal, tudo
embasado no mental; aqui, no mental, está o conjunto-verdade que tudo alicerça; aqui, como
axiologia, vem a ordenação ou hierarquia dos valores; sem esta ordenação, não se poderia
saber o que é mais importante fazer, nem como escalonar os preceitos éticos e os legais.
Sobrepondo-se ao círculo maior da moral que é o mais importante, porém, ainda em
construção, está o círculo da ética explicitada nos seus códigos e regras de conduta.
Finalmente, vem o círculo menor do legal, menos importante na hierarquia de valores,
porém, de máxima atuação.
No tope da jornada evolutiva, quando o homem atinge o grau de sábio, a esfera do
legal e a da ética se confundem com a ordem moral; o legal e o ético são absorvidos pela
moral, e nesta desaparecem, e isto, por causa do alijamento de todas as verdade falsas do
conjunto-verdade existente no mental. Daí por diante, mental e moral ficam inextricavelmente
ligados entre si na alma do sábio, do mesmo modo como não se podem separar, nas coisas,
suas formas de seus conteúdos. O conjunto-verdade é de natureza essencial, formal, ao
passo que a moral é de natureza substancial, porque feita de sentimento.
Desta maneira, fica explicado, explicitado, o que apareceu, em síntese, implícito, em
“Um Estudo do Nosso Tempo”. Lá, dissemos que a involução ou queda deu-se na ordem do
moral, para o mental, para o vital e para o físico. Na subida, partiu-se do físico, indo-se para o
vital, para o mental e para o moral. Neste enfoque analítico sobre a subida do mental ao
moral, verificamos que tal salto puro e simples é impossível, sem o concurso do legal e do
ético, os quais, no entanto, ao termo da jornada, desaparecem, absorvidos pela moral. Todavia,
na falência, caiu-se do moral para o mental diretamente, porque não havia, então, as esferas do
ético e do legal. Estas fases apareceram, na subida evolutiva, somente como recurso
indispensável à conquista da esfera maior da moral, na plena Sabedoria-Amor.
A queda se deu no plano moral, com o esfriamento e inversão do amor no seu oposto,
no egoísmo. No mental, foi preciso criar-se a vã filosofia, a pseudo-ciência, os argumentos
sofísticos para justificar o egoísmo ignaro que fazia cada ente celeste fechar-se sobre si mesmo
e isolar-se. Este fechamento, além de suscitar luta entre os elementos do social, entranhou-se
na própria individualidade biológica do rebelde cuja estrutura também se demoliu pela guerra
movida entre si pelos órgãos e células, agora obedientes à nova “ordem” que era: cada um
por si contra todos. A falência que estava já, aqui, no vital, avançou para o físico (moléculas e
átomos) com que as partes se dissociaram em dilúvios de energia que se foram condensar no
centro daquilo que depois, se chamou universo, em pleno caos em cujo seio nasceu o Grande
Ovo, o Colosso Primitivo, ponto inicial da subida evolutiva.
De modo que a danação dos anjos não foi o resultado da desobediência a uma suposta
lei que estava em cima, como depois se viu com Adão, concebido pelo legislador Moisés. Um
jurista ou advogado, pensando em termos de leis, conceberia a queda como desobediência,
infração, contravenção penal. É assim que, para Adão, houve recomendações, ameaças de
castigo, preceito e lei; para os anjos, não. Não havia esta obediência à lei, simplesmente,
porque não havia a esfera do legal civil, nem a do legal ético, nem a do legal científico. Não
havia ciência, nem preceitos éticos, nem leis civis, porque desnecessários aos que se regem
158

pelo amor. O próprio amor agasalha, em si, a sabedoria de fins, sem necessidade da
perquirição científica e do cogitar filosófico os quais, sim, poderiam ser executados, mas por
puro diletantismo, como a música, a pintura, a escultura e a poesia. Mesmo entre nós, não é
por necessidade vital que se faz matemática pura, alta matemática, e sim, por puro
diletantismo, como o é o jogo de xadrez, visto como, de certo ponto em diante, a matemática
não tem aplicação, nem acha correspondência no mundo objetivo. Daí o afirmar o matemático
Bertrand Russell, que não sabemos o que a matemática está dizendo, nem se o que diz é
verdadeiro, isto é, objetivamente verdadeiro. A ciência e a filosofia que poderiam existir,
então, eram dedutivas, a partir da premissa maior do amor que tudo alicerçava. Era uma
“filosofia” semelhante à sabedoria das grandes religiões da Terra, que apresentam suas
verdades como máximas de que se deduzem ou se fazem exegeses ou comentários. Leis civis
e códigos éticos foram criados, na subida, porque indispensáveis; mas quando o amor impera
soberano, são desnecessários, e, por isto, inexistem. Dentro do lar feliz não há lei, porque
existe o amor; basta que não haja o amor, para começar, como se fora lei, o puro arbítrio do
mais forte.
A rebelião dos espíritos celestes, pois, tem que ser entendida, não como a adâmica
desobediência, mas como esfriamento e inversão do amor. É intuitivo, axiomático, que se o
amor tudo cria e sustenta, seu oposto, o egoísmo, tudo dissocia e desintegra. Se fora do amor
não há salvação para o que sobe, a perdição do que cai resulta do egoísmo que se fecha com
perda total de tudo... até de seu próprio ser, pois tudo o que o rebelde chama seu, como já o
vimos, se confunde com o seu ego; a perda total de tudo implica, pois, também, na perda do
ego.
Recapitulando o que hemos dito, temos: o amor do redimido da queda pela evolução, o
egoísmo dilatado, desenvolve-se em sentido inverso ao do amor do anjo fiel que não caiu;
porém, os dois amores apresentam resultados idênticos na conduta. Enquanto que o amor do
não caído é amor incondicional, amor puro, amor sem metas, amor por amor, altruísmo, o
amor do redimido da queda pela evolução, é sabedoria-amor, ou egoísmo dilatado, amor com
metas que consiste em se satisfazer; não amor puro, mas amor como necessidade de expandir-
se, ampliando o eu com a conquista de meus, num circuito tão amplo quanto possível.
A escala de valores do não caído é absoluta, pois tem em vista o outro que é o que vale,
e não, o eu. E as coisas valem quanto mais valerem para o outro, e a partir do outro. O eu,
então, vale, porque vale para o outro. Não me considero valor, enquanto o outro não me
disser que valho, e o quanto valho para si. O outro é o paradigma, a pedra-de-toque do valor.
A ciência que estuda este valor se chama axiologia, de axio – valor e logia – estudo. E os
axiólogos declaram que os valores são absolutos visto que são válidos em si mesmos, como
qualidades dos seres e das coisas que valem por si, que valem pelo que são em si, e não, para
nós. Já no redimido da queda, o valor relaciona-se com o sujeito, com o eu, ou seja, com as
necessidades suas, e vale tanto mais, quanto mais imperiosas forem estas necessidades. Então
acontece que, como os valores valem por satisfazer necessidades, um cantil d’água para quem
morre de sede num deserto, vale mais que todo o ouro do mundo. A água, conquanto
indispensável à vida, não vale nada, como não vale o ar que respiramos, por causa de sua
abundância; o ouro vale muito, por sua beleza e raridade. Assim, para nós, em evolução, os
valores são relativos e partem do eu de máximo valor, para as coisas, conforme possam
satisfazer as necessidades desse nosso eu. E como os vários eus possuem necessidades
diferentes, aquilo que é valiosíssimo para um, vale pouco ou nada para outro. Abrir mão do
que não vale para mim, e adquirir o que me é valioso, é a troca que satisfaz às necessidades de
ambas partes, tornando-as satisfeitas e felizes.
Assim é que, para o anjo não caído, os valores são axiológicos, absolutos, a partir do
outro, do irmão, de valor máximo. Já o valor máximo para o que sobe por evolução, é o eu;
nada vale mais que o eu, e tudo o mais vale a partir de mim, vale porque me satisfaz
159

necessidades. Este modo de valoração é o estudado pela economia política que fundamenta
sua estrutura simplesmente no egoísmo.
O mesmo que sucede com o amor, acontece, também, com a sabedoria que, no não
caído, é dedutiva, e vai analiticamente, do todo para as partes, ao passo que a sabedoria do
evoluído é indutiva, indo, sinteticamente, do particular para o geral. Aquele que faz a evolução
possui filosofia especulativa, com a qual busca entender o mundo, por meio de cadeias de
raciocínios rigorosamente apertados. Já os anjos não caídos, não precisam chegar às
generalidades, e antes, partem delas, onde se acham, para deduzir, por meio de exegeses, tudo
aquilo que se acha implícito, condensado nas máximas morais, como fazem os teólogos, os
exegetas ou comentaristas das grandes religiões da Terra.
Segue-se, de tudo isto, que, antes da queda, não havia preceitos legais. Por este motivo,
se caiu do moral para o mental, diretamente, e deste para o vital, e deste, para o físico. No
entanto, para quem faz a escalada evolutiva, no mental surgiu o ético que é a essência da
moral, moral codificada e imposta, mas ainda não sentida e amada; e o ético se restringiu ainda
mais no círculo menor do legal. Assim é que, no mental, se criaram regras de conduta ou ética,
e no âmbito da ética, o legal riscou o seu círculo de domínio mais restrito ainda, e por isto
mesmo, muito mais imperativo ou forte. Primeiro pela lei da força, depois pela força da lei,
impôs-se um mínimo de ética que é a lei civil. A ética, de círculo mais amplo que o da lei, se
sobrepõe ao círculo da moral ainda inexistente, porque não sentida e amada. Falando de outro
modo: o círculo da moral, com uma área ampla, mas ainda nebulosa, tem, sobre si, o círculo
concêntrico da ética; sobre este círculo ético, um menor, também concêntrico, se sobrepõe,
que é o do poder legal. Aos poucos, a coerção extrínseca fortíssima no legal, e menos forte no
ético, vão-se entranhando na personalidade como coisa desejada, e esta adesão íntima, interna,
intrínseca é a moral, porque se envolve do sentimento de querer, livremente, estar com a lei e
pela lei. Até que, com a plenitude do amor à lei e à ética, a moral absorve o ético e o legal.
Não são precisos preceitos legais e códigos de ética coercitivos para aquele cuja lei é o amor
alcançado pela sabedoria. Este é o sentido diversificativo em a lei e a graça, segundo S. Paulo;
a graça é o amor; e para quem está sob o império da graça, desnecessária fica a lei. No tope
da escalada evolutiva, a esfera do legal e a do ético são absorvidas pela moral, por causa do
alijamento das verdades falsas do conjunto-verdade existente no mental-emotivo daquele que
se fez sábio.
Deus não podia ter criado filhos sábios do tipo egoísmo dilatado, porque ele próprio
não o é, e ao dar-se nos filhos, fê-los a eles segundo seu próprio esquema. A sabedoria infusa
era, então, intuitiva, axiomática, puras máximas morais de que tudo se deduzia. As
experiências científicas estavam vedadas pelo próprio amor que fazia horrível até o pensar em
cortar, moer, pulverizar o inferior, para o estudo de como ele era feito por dentro, e como
funcionam suas partes. Nem é preciso subir tão alto, e aqui na Terra mesmo, certamente um
São Francisco de Assis que chamava a um lobo de irmão lobo, e a uma serpente, de irmã
cobra, ficaria horrorizado de ver o cão sendo decorticado por Galtz, ainda que isto tivesse a
melhor das intenções... científicas. Como não ficar fora de si um bonzo budista ao saber que os
alemães de Hitler fizeram experiências que tais em judeus, ele que traz, consigo, uma
peneirinha para coar a água que bebe, a fim de que não suceda venha engolir e matar algum
inseto? Positivamente, os anjos de amor estavam impedidos de fazer experiências científicas,
sobretudo em irmãos menores, completamente indefesos, cujos olhares de mansidão e de
ternura só não comoveriam a um homem terrestre, porque ainda insensível à dor alheia, o qual,
para saber, pratica toda sorte de barbaridade. Contudo, esta é a dura condição para se poder
chegar à sabedoria.
Todavia, um terço dos espíritos celestes tentaram estabelecer, como verdade, o oposto,
a contraditória de tudo isto, no momento em que sentiram esfriar-se e inverter-se o amor.
Desfalcados do saber científico e duma filosofia especulativa, e ainda, de códigos éticos e de
leis civis coercitivos, cuidaram-se livres para fazer esta experiência, esta arrojada aventura
160

fascinante para quem já não amava. Fizeram-na, e caíram, porque é próprio do ignorante errar
ao tentar fazer o que não sabe. Isto foi, alegoricamente, comer dos frutos da árvore da ciência
do bem e do mal.
Na subida evolutiva, o continuar a nutrir-se destes frutos se tornou inexorável
necessidade, e, graças a isso, se pôde adquirir todo aquele saber que ao anjo caído lhe faltava.
Os anjos eram livres, como o é Deus no seu aspecto substancial, como o é o amor, que,
de outro modo, se cerceados, os anjos seriam escravos, indignos de serem filhos de um Pai
amoroso e sábio. Mas liberdade implica em responsabilidade, sendo passível de punição
automática, todo aquele que, sendo livre e sábio no amor, sai de sua zona de saber para
aventurar-se a fazer o que ignora; o pleno saber só Deus o tem.
Isto que acabamos de dizer, calha bem aos emotivos, aos místicos; para os racionalistas,
eis o argumento trocado em miúdo: se o amor não fosse livre, mutável, polarizável, não se
poderia tornar no seu oposto; logo, seria fixo, imutável, intransformável, determinístico, sem
liberdade; não poderia, então, ter saído da eternidade, temporalizando-se nas criações; estando
fora do tempo, não poderia dar início a nada, como causa primeira que é de tudo, ficando
parado na sua incausalidade e intemporalidade; como imutável, não se poderia transformar em
nada, donde vem que não haveria coisa alguma que dele promanasse, nem os anjos, nem o
homem, nem a natureza, nem a matéria; como determinístico, Deus estaria sozinho, impedido
de criar, visto como criar é transformar algo em algo. Não haveria objetos reais, e sim,
somente, objetos ideais na mente divina, sem possibilidade de explicitação, de objetivação.
Uma vez que, tanto as qualidades dos objetos ideais, quanto as dos objetos reais, cada um na
sua esfera, são INTERDECORRENTES, basta que se altere uma qualidade, para que, no
mesmo sentido, fiquem alteradas todas as demais. Por esta razão irrefutável, o amor tem que
ser polarizável, movendo-nos a riso a ingenuidade da pergunta: por que Deus não tornou o
amor dos anjos impossibilitado de inverter-se no seu contrário?
A intuição primária, pois, de que Deus não podia ser culpado pelas dores e misérias do
mundo, acha, agora, sua comprovação racional, ou seja, fica reduzida a princípio de razão,
para todos os que não se guiam pela fé. Este nosso mundo é em grande parte negativo, e o era
totalmente, no remotíssimo passado. Mas aqui, o importante que Platão não viu: a não ser
quando já velho no diálogo “Sofista” : ser negativo não é uma ilusão, do mesmo modo que o
saldo devedor numa conta bancária, não é ilusório, só porque a dívida é a negação do haver. O
mundo não é ilusão, mas é a realidade pelo avesso. A dívida está, aí, por saldar; as dores e
misérias do mundo são conseqüências da culpa. Quem deve, pois, tem de pagar; daí a
necessidade de cada um, e do próprio mundo, de mudar-se de negativo, ignorante, egoísta e
mau, em positivo, sábio e amoroso. Desta sorte, ignorância, aflições, angústias, sofrimentos e
morte, são salários do pecado primeiro, original, que consistiu no haver tornado invertido o
amor. O pecado de Adão não é original, pois quando, da sua queda alegórica, já havia um anjo
degradado, transformado em serpente, para o tentar.
Vendo-se todo o processo de ida e volta do caos, como um todo, verificamos que tudo
aquilo que os anjos rebeldes buscaram, e que lhes ocasionou a queda, isso mesmo foi ou será
conseguido pela evolução que criou ou criará um tipo diferente de anjo: o sábio-amoroso, isto
é, de egoísmo dilatado, oposto ao que permaneceu no empíreo, o amoroso-sábio.
Esta doutrina suscitaria a pergunta: qual destes anjos é o mais importante para o
sistema divino? A resposta é a mesma para quem perguntar: que é mais importante no átomo:
seu núcleo, ou a calota de elétrons? E na célula: o núcleo, ou o citoplasma? E na família: o
homem, ou a mulher? E no ser: a essência ou a substância? A queda e a volta só serviram
para enriquecer o sistema divino de maior variedade, permitindo a existência de dois tipos de
anjos: o amoroso-sábio que já existia, e o sábio-amoroso que passará a existir no fim. Se o
sistema ficou enriquecido; se a experiência da involução e evolução servirá de garantia contra
nova rebelião, segue-se que a queda e salvação redundaram em bem? Sim, redundaram, porque
é próprio de Deus fazer que tudo se reverta em favor de seus objetivos. Se no fim, todavia, a
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evolução se cifrará em bem maior, em benefício da maior variedade, na garantia de não mais
haver queda, então, era ela necessária? Não, porque se o fosse, todos os anjos teriam caído.
Conquanto tudo resulte em melhoria, segundo nosso ponto de vista, que não sabemos se
também é o de Deus, de uma coisa estamos certos: não foi Deus que provocou a queda, nem a
forçou, nem a sugeriu, pelo que não é culpado pela existência da miséria, dores e males do
mundo.

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