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Figura 1: Enguerrand Q uarton, Coroamento da Virgem, detalhe, 1454, óleo sobre painel. M useu
Pierre de Luxem bourg, V illeneuve-lés-A vignon © M usée Pierre de Luxem bourg/
Giraudon/The Bridgem an A rt Library.
1 Este texto foi originalmente publicado em francés na revista Gradhiva, n. 13, 2011, traduzido para o
portugués por Alberto Goyena, com revisao técnica por Els Lagrou.
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O museu Pitt Rivers de Oxford possui urna argola de marfim singular, encon
trada na Sibéria (Figura 2). Veem-se nela duas formas idénticas que podem ser
interpretadas de maneiras diferentes: como o contorno de urna cabera de lobo
ou como o corpo inteiro, provavelmente, de um leáo marinho. Esse objeto nao
constituí Unicamente a representando de dois animáis diferentes pelos mesmos
meios visuais; ele é testemunho de um ato do olhar. Inserindo urna linha curva em
dois contextos diferentes, a imagem passa da representando pela imitando de um
animal a interpretando complexa e plural de urna forma. Enquanto trano material,
a representando faz emergir um trabalho mental, urna série de operanoes mentáis
(ou, simplesmente, de pensamentos) que se associam a urna linha e que déla fazem
surgir, em ambos os casos, urna parte invisível ou potencial.
Elá alguns anos, havíamos proposto chamar de quimérica esse tipo de repre
sentando (Severi, 2003), assinalando que ela se caracteriza pela condensando da
imagem em alguns tranos essenciais. A condensando engendra, por projenao,
urna ou mais interpretanoes da forma. Aquilo que pode ser visto é considerado,
implícitamente, urna parte de outra forma, cuja presenna é imputada e eventual
mente representada. Num ato do olhar como esse, o invisível prevalece sobre o
visível e parece indicar o contexto. Formulamos a hipótese de que, ñas tradinoes
habitualmente chamadas de “oráis”, esta estrutura, “por indicios”, confere a ima
gem um aspecto particular que lhe permite desempenhar um papel crucial ñas
práticas sociais, tanto ligadas a memorizanao como a consolidando de um saber.
A saliéncia visual destas imagens, ligada a mobilizanao da inferencia que elas
implicam, pode se tornar, assim, um trano mnemónico capaz de veicular e de
preservar sentidos.
Figura 2: A rgola siberiana de leáo m arinho em m arfim , m useu Pitt Rivers, Oxford.
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Essa primeira definí náo, que intencionava aludir aos modos de funcionamento
de certa quantidade de exemplos específicos, suscitou novos debates e pesquisas
no marco de urna teoría antropológica da memoria. Dentre as questóes provo
cadas, um primeiro grupo concerne á interpretando etnográfica: como apreciar,
em novos campos, a capacidade heurística da nocáo de quimera? Seria possível,
a partir dessas primeiras análises, definir um tipo geral de representando, a qual
se poderia chamar de “quimérica”, da mesma forma como se fala, por exemplo, de
represen lacóes “realistas”, “abstratas” ou “simbólicas”? Como identificar modos de
variando, no espano ou no tempo, das representanoes quiméricas? Conforme defi
nida nos primeiros exemplos, a representando “quimérica” seria própria das artes
nao ocidentais? Se for o caso, como diferenciar o que seria próprio das quimeras
amerindias, oceánicas ou africanas de tudo aquilo que a tradináo ocidental deno-
minou de imagem fantástica, dupla, ambigua ou simplesmente, segundo a recente
definido de Darío Gamboni (2004), imagem “potencial”?
Outros questionamentos concernem aos aspectos mais propriamente lógi
cos desta nonáo. Se o essencial da ideia de quimera náo diz respeito a um tipo de
imagem definida por urna morfología específica, mas sim ao tipo de operanoes
mentáis que a invennáo e a apreensáo desse tipo de imagem implicam (selenáo
de tranos visuais, projenáo, indunáo, estabelecimento de sequéncias etc.), cabe
perguntar: o que distingue a representando quimérica? Qual o exercício do pen-
samento que a caracteriza e que permite, eventualmente, opó-la a outros modos
de pensamento?
Algumas questóes foram também formuladas a partir de um ponto de vista
mais próximo da estética. Concordaremos, dentro dessa perspectiva, que um dos
efeitos da representando quimérica é intensificar urna imagem granas á mobiliza-
náo de seus aspectos invisíveis. Mas poder-se-ia objetar, a rigor, que toda obra de
arte suscita um trabalho do pensamento concernente ao que náo está material
mente representado. Todos os clássicos do pensamento estético moderno desta
caran! esse ponto. Em seu Essais sur lapeinture (Ensaios sobre a pintura), Diderot
já descrevia com grande precisáo esse jogo do olhar, essa máquina que faz surgir,
através de um cálculo cuidadoso do espano e das propornoes, a parte invisível de
um quadro:
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e, oferecendo apenas urna face, voces for^aráo minha imaginando a ver a face oposta;
só entáo direi que voces sao desenhistas surpreendentes (1951:1.118).
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Figura 3: A n ón im o, A Trindade, século XVIII, óleo sobre m adeira (43,5 x 28,5 cm).
M useu Carolino A ugusteum , Salzburgo.
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Figura 4: Santo Brasca, plano do Santo Sepulcro em Jerusalém, Leonardus Pachel e U ldericus
Scinzenzeler, Itinerario alia Santissima ctttá di Gerusalemme, M iláo, 1481: 58V.
Pode-se ver, por exemplo, urna forma redonda, muito vagamente trabada,
ladeada de projecoes alongadas em forma de L. Ou entáo, de um ponto de vista
mais geométrico, um círculo chapado sobre um retángulo truncado. A percepnáo
possível dependerá, para além do processo mecánico que rege a percepnáo visual,
“das capacidades interpretativas, das categorías, dos modelos e dos hábitos de
deducán e de analogía” que formam o que se poderia chamar de “estilo cognitivo”
de um dado observador (Baxandall, 1985: 48). Saber que essa imagem provém de
urna descricáo da Terra Santa publicada em Miláo, em 1481, e que ela está acom-
panhada da legenda “Esta é a forma do Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesús
Cristo” traz dois elementos importantes para a percepcáo da imagem. Primeira-
mente, segundo Baxandall, o observador poderá se referir a possíveis experien
cias, por meio de certas convencocs representacionais. Ele, ou ela, julgará, talvez,
que a imagem se destaca da projecáo plana. Trata-se de urna convencáo de leitura
segundo a qual, urna vez observadas verticalmente, as linhas que representam os
muros periféricos de um edificio se desenham a partir do solo. Em seguida, se
estivermos familiarizados com a arquitetura italiana do sáculo XV, deduziremos
pelo desenho que o círculo representa urna edificando redonda, talvez coberta por
urna cúpula, que as alas retangulares sao vestíbulos e que o quadrado no inte
rior do círculo designa o espado onde se localiza a tumba (ibid.: 49). Sao tres as
variáveis que, ligadas á cultura, agem no modo como nosso espirito interpreta
formas que, até entáo, poderiam parecer desprovidas de sentido: “urna variedade
de modelos, de categorías, de métodos dedutivos; o treinamento numa série de
convencocs para representar as coisas e, finalmente, a experiencia baseada nos
modos plausíveis de visualizar aquilo sobre o que náo temos mais do que urna
informando incompleta” (ibid.). Chegaremos á conclusáo de que em todo ato do
olhar, tal como ele se exerce em urna dada cultura, a percepnáo como processo
fisiológico e a projenáo de certos saberes adquiridos encontram-se estritamente
associadas. Como operanoes mentáis, elas sáo indissociáveis de todo ato do olhar.
Contado, isso náo significa que essa relanáo entre percepnáo e projenáo, definidora
do processo de construnáo cultural de urna imagem, se estabelena sempre dentro
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Ver e representar um objeto sao dois processos muito diferentes: para obter urna pro va
disso, observe um objeto atentamente e dé-lhe as costas. O que resta em seu espirito
é muito diferente da primeira impressáo que teve: urna parte da imagem desapare
cen mas outros traios persistem. O primeiro ato é urna percepiáo; o segundo é urna
representaiáo. O ato que preside a representaiáo é, portanto, próprio da lembrania e
náo da percepiáo (200111893]: 122).
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conhecido Cristo, dizia ser ele “um homem de estatura mediana ou baixa... seus
cabelos eram da cor de castanha madura e caíam retos até a altura das orelhas e,
em seguida, formavam cachos grossos até os ombros... sua testa era vasta, polida e
serena, seu rosto era desprovido de rugas, e sua barba, da mesma cor dos cabelos,
assemelhava-se a primeira barba de um rapaz”.
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Figura 8: Jéróme Bosch, O martirio de Santa Liberata, óleo sobre painel (104 x 119 cm).
Palácio dos D ogos, Veneza. © Palazzo D ucale/The Bridgem an A rt Library.
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semifictício, semirreal, no qual aquele que olha fica enredado. Descobre-se o que
Shearman, ao retomar a definíalo clássica de Riegl (2009 [1902]) e os trabalhos de
Gombrich (1969,1982), chamou de transitividade da perspectiva. Trata-se de sua
capacidade, inteiramente formal, de suscitar a presenta de um observador enga
jado na imagem. Enquanto convencáo visual, ela implica nao somente a existencia
de um “ponto de fuga”, que organiza em um espado coerente a percepcáo da pro-
fundidade, mas também de dois campos visuais: um situado no interior do quadro
e outro que se projeta para o exterior do espado pintado, marcando assim o lugar
implícito do observador (Shearman, 1992: 36).
Figura 9: A n drea M antegna, Sao Sebastiáo, em torno de 1459, tém pera sobre painel (68 x 30 cm).
Kunsthistorisches M useu de Viena. © Kunsthistorisches M useum /
A li M eyer/The Bridgem an A rt Library.
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Figura 10: A n drea D el Sarto, Virgem com harpías, 1517, oleo sobre painel (178 x 207 cm).
Galerie des Offices, Florence © Galleria degli U ffiz i/ ^ e Bridgem an A rt Library.
2 O nível de análise que Karl Bülher chamou, em sua teoria da linguagem (1990 [1934]), de EU, AQUI,
AGORA do enunciado se tornaria assim pertinente para a representando visual, o que permitiria reno
var a interpretando da “agencia” (no sentido Gell [1998]) atribuída a imagem.
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Figura 11: Juan de Flandes, Tríptico de Sao M iguel, detalhe, em torno de 1506.
M useu diocesano, Salam anca © Album /Oronoz/akg-im ages.
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3 As análises que Gell (1996, 1998) dedicou as técnicas que em certas artes nao ocidentais tendem a
capturar o olho numa representacáo labiríntica devem ser indubitavelmente interpretadas com o caso
de transitividade. Outro exemplo é o da arte funeraria chinesa e, notadamente, de certa quantidade
de monumentos funerarios (datados de entre 618 e 713, dinastía T ’ang), onde, com o demonstrou
recentemente Jonathan Hay (2010), a representacáo da tumba é disposta do ponto de vista do espirito
do morto.
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A leitura do Elmo de Filipe, assim como a da cimeira baga, nos permite for
mular duas primeiras indicanoes sobre o grau de complexidade que caracteriza a
representando quimérica. A primeira concerne a passagem da ambiguidade visual
do estatuto de deslocamento entre projendo e percepndo (no marco de um espano
formulado por meios opticos independentes) ao estatuto de princípio organizador
do espano. A segunda diz respeito ao estabelecimento de uma articulando logica
entre uma representando iconica e uma marca indiciária de presenna. Poder-se-ia
concluir que, se quisermos compreender as representanoes quiméricas, ndo será
suficiente assimilá-las prematuramente a um fenómeno de ambiguidade visual.
Será necessário, pelo contrário, apreciar com exatiddo as condinoes de possibili-
dade que caracterizam sua propria complexidade. Assumiremos, como ponto de
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Figura 13: A n ón im o, Elmo de Filipe V da M acedónia, século IV a.C., bronze (28 x 20 x 66 cm)
© The J. Paul G etty M useum , V illa C ollection, M alibu, California.
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Vejamos agora um exemplo dessa logica das relanoes entre os seres, que a ima-
gem quimérica permite formular em termos iconicos. Consideremos duas tradi-
noes iconográficas ameríndias, nas quais a representando quimérica constitui sem
dúvida a convenndo visual dominante: os Yekuana e os Wayana. Trata-se de popu-
lanoes de canadores e agricultores tropicais, falantes de diferentes línguas da famí-
lia caribe, e que vivem hoje em dia na regido do Alto Orinoco, entre o Brasil e a
Venezuela. O caso das cestarias yekuana, em que toda sorte de criatura mitologica
é representada, nos permitirá introduzir os primeiros elementos de nossa análise.
Os trabalhos de um certo número de etnologos (Civrieux, 1970; Wilbert, 1981)
nos permitiram adquirir um conhecimento relativamente detalhado da mitologia
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vos dessa mitologia sdo a oposindo constitutiva entre dois grandes grupos de perso-
nagens e a ideia de um processo de transformando contínua que a todos afeta. Essas
metamorfoses tem duas modalidades. Por um lado, pode-se ter a nondo de uma
criatura múltipla que (como Odosha) “assume a forma” de toda uma série de outros
seres. Caminha-se, conforme esse ponto de vista, do indivíduo a série. Por outro
lado, esse processo de metamorfose incessante (onde a ideia do bem é resultado de
um processo de domesticando do mal) pode conduzir a dotar uma mesma criatura
de uma ambiguidade constitutiva que configura simultaneamente uma instancia
positiva e negativa. Passa-se, assim, de uma série de seres a representando de um
único ser complexo. A iconografia yekuana permite traduzir em termos visuais, de
forma sucinta e precisa, esses dois princípios de organizando do mundo mítico. Os
termos visuais que traduzem os nomes dos espíritos derivam todos de um mesmo
tema gráfico, uma espécie de “T ” invertido que representa Odosha. Toda a série de
outros personagens da mitologia é engendrada a partir desse primeiro tema grá
fico, mediante transformanoes geométricas simples. Tais grafismos traduzem, ao
mesmo tempo, a multiplicidade de animais (macaco, serpente e sapo) e sua uni-
dade, como formas derivadas de um mesmo ser original. Os diferentes persona-
gens sdo assim construídos a partir de uma única forma básica, em um sistema que
permite representar ndo apenas seres bem identificados, mas também suas pos-
síveis relanoes. Essas relanoes entre figuras (analogia, inclusdo ou transformando)
indicam uma organizando interna propria de um sistema de representanoes que se
baseia em um critério único: trata-se sempre de representar, pela via quimérica,
a pluralidade potencial de cada criatura mitologica. Mas o debate ndo se encerra
aqui. A técnica visual descrita implica também em um jogo de forma e fundo que
permite representar (por meio de uma interpretando reflexiva do marco que engen
dra, como em toda representando quimérica, um jogo de complementaridade entre
projendo e percepndo) ao mesmo tempo um ser específico e uma de suas possíveis
metamorfoses. Essa possibilidade de uma representando em forma de ser poten
cialmente duplo diz respeito a vários personagens da mitologia: os macacos, os
morcegos ou os sapos. O exemplo mais marcante é, sem dúvida, o do tema gráfico
chamado de woroto sakedi (“máscara do onna”, Figura 15), que representa alternada
mente, dependendo do foco de atenndo, a forma ou o fundo da imagem, Odosha ou
Awidi, quer seja, uma de suas transformanoes em forma de serpente. Reconhece-se
aqui a relando instável, de complementariedade alternada, entre o tema iconográ
fico e seu espano liminar e entre percepndo e operanoes de projendo, que caracte
riza o espano quimérico. De fato, como sublinhou Guss, o verdadeiro sujeito dos
grafismos yekuana ndo é esse ou aquele personagem, mas “a relando dinamica em
forma de transformando latente” de um no outro (1989: 106, 121-124). Encontramos,
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vil
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mas também como o reflexo desse “outro” habitante dos olhos de quem constroi
um artefato e que, por assim dizer, “guia sua mdo”, tal forma ndo se revela ple
namente, sendo quando o objeto é confeccionado seguindo as regras da técnica
tradicional, permitindo ao artefato revelar sua verdadeira natureza e mostrar-se
“semelhante a um ser vivo”. De fato, segundo a tradindo wayana, os artefatos, os
humanos e os ndo humanos podem (e as vezes devem) partilhar a mesma deco
rando. É assim que eles “assumem a mesma pele”. Essa nondo é muito importante,
uma vez que, para os Wayana, “a pele, ou melhor, a pele pintada conforme um
esquema reconhecível representa um elemento que permite identificar a natureza
de um ser, o meio pelo qual é possível definir sua especificidade propria” (Vel-
them, 2003: 129). Na medida em que os artefatos e, notadamente, os artefatos de
uso ritual usam a mesma pele que os seres predadores ancestrais - cujos modelos
sdo a anaconda, o urubu e a onna -, eles sdo sempre pensados como “réplica” ou
“imitando”. Por conta dessa “identidade do desenho”, os artefatos podem “dannar”,
“falar” ou mesmo “atacar”, como fazem os predadores. De fato, os Wayana ndo se
limitam a afirmar, como os Yekuana, que a cestaria é “objeto-corpo”. Posto que seu
criador fabricou a primeira mulher humana utilizando precisamente a técnica do
trannado, segundo acreditam, um único processo “engendra”, inclusive em ter
mos sexuais, os artefatos e os humanos. Diz-se ndo apenas que a cestaria, como
outros seres vivos, é dotada de palavra, de movimento (ibid.: 197) ou de sexo (ibid.:
135), mas também que os humanos e os animais, precisamente porque eles podem
portar os mesmos grafismos sobre a pele, sdo compostos da mesma matéria dos
artefatos. A ideia de “pele pintada - explica Lucia Hussak van Velthem - é indisso-
ciável das ideias de copia e de reprodundo, uma vez que é por meio desse elemento
que, conforme os Wayana, todo ser é engendrado. A produndo de todo indivíduo
supoe a produndo de uma nova pele, um ato técnico que se funda na observando
de um modelo preexistente” (ibid.: 240). Desse ponto de vista, a pele de um recém-
nascido está “simbolicamente associada a um tecido de plumas”. A de um adulto é
sempre pensada como um entrelanado de desenhos, como uma cestaria decorada.
Em poucas palavras, no universo wayana, a identificando entre humanos e arte-
fatos ndo se funda em uma semelhanna direta, mas sim na ideia de que todo ser
vivo é definido por uma decorando ou um desenho específico, representando ao
mesmo tempo a pele, seu emblema e seu nome visual.
Contudo, nos enganaríamos ao pensar que a aparencia dos seres do mundo
está fixada, para os Wayana, conforme modelos preestabelecidos. No mundo dos
Wayana tudo que existe está em processo de transformando constante. Todo ser
pode assumir, a cada instante, a “pele” de outro e até, por vezes, a de vários ouros
seres simultaneamente. Velthem lembra o caso das dannas que acontecem na casa
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dos homens. A casa é um lugar “habitado pelos peixes tukuxi”, representados com
outros seres no pilar central da cobertura da grande casa cerimonial. Os peixes
sao também representados como “colibris de bico comprido”. Quando os homens
mascarados “agem como peixes”, eles se tornam, ao mesmo tempo, “colibris de
bico comprido”.
V ' ..
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que caracteriza o caso wayana é aquela que vai da representando de diferentes indi
viduos (personagens, como já dissemos) á representando de membros de classes,
e até mesmo, como no caso da danna ritual, a representando daquilo que podería-
mos chamar de séries de séries de seres quiméricos.5
Como pode essa lógica complexa, e a ontologia que ela implica, ser traduzida
em termos visuais? Devemos pensar que o caso wayana nao tem mais nada em
comum com aquele, mais simples, dos Yekuana, que parecía limitar-se a tradunao
visual de urna série restrita de nomes próprios? Ou devemos admitir que essas
categorías de complexidade crescente, vistas em curso durante a anao ritual, per-
tencem somente a dimensao da exegese, sendo apenas discurso, sem relanao com
a iconografía?
A representando de seres individuáis na forma de motivos geométricos sim
ples, como identificada entre os Yekuana, nao está de forma alguma ausente na
tradinao wayana. Van Velthem menciona 47 temas gráficos para as cestarias e 29
para a cerámica. Aínda assim, os Wayana náo se contentam, como os Yekuana,
com simples listas de temas. Eles jogam com um principio de classificanáo dos
temas gráficos reagrupados em tres categorías distintas: aqueles que “pertencem”
ás pinturas corporais de anaconda, os que sáo associados á pele da onna e os que
se referem á pele de “monstros antropomorfos” (urna categoría que abrange os
inimigos, logo, os Brancos). Alguns motivos visuais, que guardam sua significa
ndo específica, sáo, em seguida, associados á designando de grupos ou categorías
de seres. Consideremos um primeiro caso. “Urna das formas paradigmáticas da
predanáo é o ato de ‘ferir, picar, perfurar’” (Velthem, 2003: 327). O ato que os sin
tetiza, “flechar” ou “atingir atravessando a pele”, é característico de um artefato, a
flecha, e de vários animáis, como cobras, vespas, escorpióes e certas aves, entre elas
a cegonha maguari (Florida caerulea). “Essa ave, reconhecida como o prototipo
dos seres que picam, é representada, no seio da iconografía wayana, pelo motivo
‘bico de maguari’ (Figura 17), cujo contorno gráfico indica urna posado de vigi-
láncia própria desse animal. [...] De fato, o grafismo representa a flecha enquanto
artefato, assim como qualquer animal, enquanto predador, que deve atingir sua
presa ao modo de urna flecha. A flecha redobrada poderá, portanto, designar de
maneira indeterminada ‘tudo aquilo que pica”. Temos assim urna primeira forma
de sair da representando de um ser individual para passar á representando da série.
Urna vez estabelecido, esse principio se aplica a outros casos. “Um tema gráfico
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Notemos também que, mesmo quando ocorre, sob formas diversas, a pas-
sagem da designando de seres específicos á representado de séries de estatuto
lógico diferente, a iconografía wayana permanece ligada á representando de listas
de nomes próprios, ponto cuja importancia foi sublinhada alhures (Severi, 2007).
Nao obstante, os nomes próprios nao mais designam personagens individuáis
(mesmo “disfamados” ou transformados, como podiam sé-lo entre os Yekuana,
Odosha ou Wanadi), e sim séries organizadas de seres. Os nomes traduzidos em
termos visuais por temas gráficos funcionam entre os Wayana como “dcíinicóes
verbais” que mobilizam vários nomes de espécies. No que tange á memorizacáo de
nomes, assistimos ao estabelecimento de um duplo processo. Um único tema grá
fico representa o nome visual de urna série de seres reunidos em urna única classe,
mediante a utilizando de critérios taxonómicos distintos. Ou urna série de temas
gráficos, dispostos em sequéncias ordenadas, ilustra a série de transformanoes que
designam a “verdadeira natureza” de um único ser.
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Figura 19: R oda de teto (maruana), séc. XX, Estado do Pará, rio Paru do leste, Brasil,
W ayana-aparaí © M usée d’Ethnographie de G eneve (MEG). Foto Jonathan Watts.
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concluir que esses dois animais (considerados sob o ponto de vista revelado por
seu mirikut) possuem “um corpo de felino”, o que confirma a natureza da onna (ou
melhor, o modo de existencia possível “enquanto onna”) do quatipuru. Reconhe-
cemos aqui o caráter essencialmente serial da iconografia wayana: um ser nunca
é pensado apenas em sua singularidade. Ele é sempre definido pela “pele pintada”
que ele veste, enquanto membro de uma classe ou de uma sequencia de “modos
de existencia” possíveis.
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rico designa urna reí acao instável, de complementariedade alternada entre o tema
iconográfico e seu espado liminar e entre a percepcáo e as operacoes de projecáo.
Este trabalho de análise nos permitiu concluir que a representando quimé
rica é, antes de tudo, urna representando das retardes expressas pela imagem. Desse
ponto de vista, ela nao se inscreve numa tipología de representares iconográficas
(“realista”, “anicónica”, “abstrata” etc.), mas sim em urna lógica de relacóes iróni
cas. A análise de duas Iradicóes amazónicas, ñas quais a representando quimé
rica constituí a convennao visual dominante, nos permitiu mostrar até que ponto
a designando por projenao de urna presenna imputada engendra a ideia de urna
esséncia própria dos seres quiméricos. No caso yekuana, essa esséncia é represen
tada por grandes personagens concebidos como seres submetidos a urna constante
transformando, presentes ñas narrativas mitológicas. No caso wayana, a esséncia
daquilo que é quimérico se desenvolve em urna lógica plural onde vemos aparecer,
no lugar dos personagens, classes (e, por vezes, classes de classes) de seres híbri
dos. Nessas tradinoes, como em outros lugares da Amazonia, a representando qui
mérica se associa á defininao essencialista de urna classe de seres cujos tranos defi
nidores jamais coincidem com aqueles que, no seio do mundo humano, animal ou
vegetal, definem urna espécie. O jogo incessante entre fragmento e marco (cadre),
e entre percepnao e projenao, que torna o espano quimérico iterativo, recursivo e,
dentre os Wayana, potencialmente infinito, designa nao apenas urna estética, mas
também um modo de existencia dos seres sobrenaturais no mundo amazónico.
Concluimos que o estudo da representando quimérica permite ampliar entendi-
mentos e visóes nao apenas a respeito das artes, mas também da ontologia dessas
tradinoes. Eis aquí, sem dúvida, urna das questóes antropológicas do espano qui
mérico, cujos primeiros elementos procuramos esbonar.
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