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Observatório da Educação na Fronteira

Política Linguística em
Contextos Plurilíngues:
Desafios e Perspectivas
para a Escola
Observatório da Educação na Fronteira

Política Linguística em
Contextos Plurilíngues:
Desafios e Perspectivas
para a Escola
Rosângela Morello
Marci Fileti Martins
(Organizadoras)
OBSERVATÓRIO EDUCAÇÃO NA FRONTEIRA
Coordenadora Geral: Profa. Dra. Rosângela Morello
Coordenadora Polo UNIR: Profa. Dra. Marci Fileti Martins
Coordenador Polo UFSC: Prof. Dr. Gilvan Müller de Oliveira

Escola Polo Municipal Ramiro Noronha, Ponta Porã/MS.


Ana Cristina Espínola Candia: professora e coordenadora de pesquisa.
Ana Lúcia Guieiro e Rosimar dos Santos Alves: professoras e pesquisadoras.
Escola Municipal Maria Ligia Borges Garcia, Ponta Porã/MS.
Maria Erineuda de Oliveira Ferreira: professora e coordenadora de pesquisa.
Antonia Kelly Garcete Rodrigues e Haideé Benites Mongez: professoras e pesquisadoras.
Escola Municipal de Ensino Fundamental Bela Flor, Epitaciolândia/AC.
Antonia Maria de Oliveira Nery: professora e coordenadora de pesquisa.
Jhonier Kellyn Thomaz Lima e Margarida Mitsue Ueno: professoras e pesquisadoras.
Escola Estadual Ensino Fundamental Durvalina Estilbem de Oliveira, Guajará-Mirim/RO.
Aurelúcia Moura dos Santos: professora e coordenadora de pesquisa.
Ariádne Gomes de Souza e Sandra Lima Karantino: professoras e pesquisadoras.
Escola Municipal de Educação Infantil e de Ensino Fundamental Floriza Bouez, Guajará-Mirim/RO.
Elma Janete Bormann Braga: professora e coordenadora de pesquisa.
Maria Íris dos Santos Araújo e Esmeralda Souza Tobias: professoras e pesquisadoras.

Assistente de Coordenação Geral: Claudia Leão Estevão Brites Ramos


Coordenação de Trabalho de Campo: Márcia R. P. Sagaz
Elaboração de questionários: Ana Paula Seiffert, Ana Sheli Trentin Altamiranda,
Bárbara Robertson dos Santos, Márcia R. P. Sagaz, Rosângela Morello
Coleta de Dados e Informações: Márcia R. P. Sagaz e Ana Sheli Trentin Altamiranda
Catalogação e Supervisão de Digitação: Ana Sheli Trentin Altamiranda
Digitação de Dados: Ana Sheli Trentin Altamiranda, Naissara D. F. Trombetta, Thais Campos,
Thaynara Cristina Nunes
Arquivo Audiovisual: Peter Lorenzo
Projeto Gráfico e Diagramação: Rodrigo Dias Pereira
Capa: Rodrigo Dias Pereira, Rosângela Morello, Márcia R. P. Sagaz
Revisão: Rosângela Morello, Marci F. Martins, Ana Paula Seiffert e Tatiana Wippel
Registro de Imagens (fotos): Ana Sheli Altamiranda e Márcia R. P. Sagaz
Realização dos Diagnósticos Sociolinguísticos: IPOL Instituto de Investigação e Desenvolvimento
em Política Linguística.
Apoio: Programa Observatório da Educação (OBEDUC), parceria entre CAPES, INEP e SECADI.
Edital 038/2010. Convênio OE n. 2107.

Observatório da Educação na Fronteira: Política Linguística em


Contextos Plurilíngues: desafios e perspectivas para a escola/
Rosângela Morello e Marci Fileti Martins (Organização) -
Florianópolis : IPOL : Editora Garapuvu, 2016
248p.

ISBN - 978-8586966-81-1

1. Política linguística 2. Linguística I. Título


CDD - 400

Editor a
Está proibida a reprodução total ou parcial desta obra.
Exemplar de cortesia, proibida sua venda.
editoragarapuvu@gmail.com Impresso no Brasil.
Agradecimentos
Coordenar o projeto Observatório da Educação na Fronteira
(OBEDF) significou, para mim, o privilégio de uma convivência que,
em tudo, foi aprendizagem. Sou, então, muito grata:
À equipe de alunos, professores e pesquisadores que fizeram
parte do OBEDF, aceitando o desafio de construir conjuntamente uma
escuta para as línguas inauditas no espaço escolar, dando voz aos seus
falantes;
A todos e todas que participaram das pesquisas nas escolas e nas
cidades, compartilhando conosco seus saberes, impressões e sonhos;
Aos pesquisadores do IPOL Instituto de Investigação e Desenvol-
vimento em Política Linguística, pela atuação primorosa e generosa no
processo de condução dos diagnósticos sociolinguísticos;
Às Escolas e Universidades parceiras, pela participação e
colaboração, tornando o OBEDF uma realidade.
Ao Programa Observatório da Educação (OBEDUC), parceria
entre a Capes, o INEP e a SECADI, pelo apoio financeiro e gestão
respeitosa.
Às muitas presenças cotidianas, em especial, Cláudia Brites,
Márcia Sagaz e Marci Fileti Martins, por tudo.

Em Florianópolis, 2016.
ÍNDICE

Apresentação
Rosângela Morello .......................................................................... 11

Línguas, Fronteiras e Perspectivas para o Ensino Bilíngue


e Plurilíngue no Brasil
Rosângela Morello .......................................................................... 17

Educação Bilíngue em Zona de Fronteira: Pensando Modelos


e Programas
Márcia R. P. Sagaz ......................................................................... 45

Alfabetização de Alunos Plurilíngues nas Escolas Brasileiras


de Fronteira
Antonia Kelly Garcete Rodrigues
Haidee Benites Mongez
Maria Erineuda de Oliveira Ferreira .............................................61

O Legado Do Projeto OBEDF em Sena Madureira (Acre):


o Português, o Jaminawa, o Bilinguismo e o Ensino da
Língua Oficial
Rosenilda Nunes Padilha ................................................................ 85

Apontamentos Sobre a Ortografia da Língua Jaminawa: entre o


Linguístico e o Não Linguístico
Marci Fileti Martins ......................................................................107

O Ensino e Aprendizagem na Escola Bela Flor antes e depois


do Projeto Observatório na Educação na Fronteira.
Antonia Maria de Oliveira Nery
Jhonier Kellyn Thomaz lima
Margarida Mitsue Ueno ...............................................................149
Construção Curricular na Perspectiva de uma Escola Bilíngue na
Fronteira Brasil X Bolívia
Ariádne Gomes de Souza
Aurelúcia Moura dos Santos
Sandra Lima Karantino Abiorana ...............................................159

Diferenças e Preconceitos Linguísticos: desafios para a Escola Pública


Elma Janete Bormann Braga
Esmeralda Souza Tobias
Maria Iris dos Santos Araújo ....................................................... 171

Bilinguismo na Escola Polo Municipal Ramiro Noronha


Ana Cristina Espínola Cândia
Ana Lúcia Guieiro
Rosimar dos Santos Alves ............................................................. 181

Princípios para a gestão do plurilinguismo na escola:


questões para reflexão e proposição de ações
Isis Ribeiro Berger ........................................................................193

Língua, Mídia e Fronteira: o Caso de Guayaramerin (BO) e


Guajará-Mirim (BR)
Marci Fileti Martins
Plácida Farias da Silva
Aristókles Pandoja Vargas
Janine Felix da Silva
Auxiliadora dos Santos Pinto ....................................................... 203

Os Censos Linguísticos e as Políticas para as Línguas no Brasil


Meridional
Gilvan Müller de Oliveira ............................................................. 229

Carta do Observatório da Educação na Fronteira - OBEDF .........241


Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

APRESENTAÇÃO
Rosângela Morello

As fronteiras como linhas limítrofes de territórios e como espaços


habitados por múltiplas outras fronteiras, materiais e imateriais, simbólicas
sempre, que se erigem por razões políticas, econômicas, étnicas ou linguísticas
e que afetam o ensino público constituem o tema central desse livro. Nele
estão reunidos textos que tematizam políticas que impõem fronteiras,
que falam da experiência de viver nas e com as fronteiras, de poder ou não
reconhecê-las e atravessá-las. São textos que falam das fronteiras como limites
subjetivos construídos por crenças e evidências e que também expressam o
deslumbramento dos momentos em que se pode olhar e ir além desses limites.
Textos que falam também das inseguranças e dos desafios implicados nesse ir
além e dos desejos de construção de novos territórios, novas possibilidades.
A palavra escrita nem sempre deu conta de tantos sentidos sentidos. No
entanto, ela nos possibilitou ancorar, ainda que provisoriamente, algumas
histórias para a travessia compartilhada no âmbito do projeto Observatório
da Educação na Fronteira (OBEDF), um projeto que tematizou uma das mais
eficientes fronteiras construídas para a consolidação da nacionalidade e da
cidadania brasileira: o monolinguismo em língua portuguesa.
O OBEDF colocou em discussão os confrontos entre o aparato do
monolin-guismo e a realidade multilíngue de escolas brasileiras situadas
na faixa de fronteira do Brasil com Paraguai e Bolívia. Por dois anos e meio
(início de 2011 a meados de 2013), professores e pesquisadores de Escolas
de Ensino Fundamental de Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, Guajará
Mirim, em Rondônia e Epitaciolândia, no Acre, e das Universidades Federais
de Santa Catarina e Rondônia, observaram o lugar das línguas nas práticas
de alfabetização e letramento nos anos iniciais, participaram do diagnóstico
sociolinguístico coordenado pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento
em Política Linguística (IPOL) e, em seminários presenciais e à distância,
discutiram hipóteses, desafios e iniciativas voltadas à promoção de um

11
ensino mais inclusivo, ensino este que considerasse as línguas dos alunos e
professores como importante recurso de aprendizagem e ensino. A construção
coletiva de um espaço de escuta para os sujeitos e suas línguas se tornou uma
prática fundamental no projeto e também um dos seus principais resultados.
Os textos aqui reunidos expressam essa dinâmica da pesquisa. Eles trazem,
às vezes na forma de relatos, a marca indelével do permanente processo de
escuta e da constante busca por compreensão das situações e questões que
foram se apresentando.
Abrindo a coletânea, o texto Línguas, fronteiras e perspectivas para o
ensino bilíngue e plurilíngue no Brasil contextualiza o OBEDF no quadro
do multilinguismo do Brasil, apresenta políticas linguísticas voltadas ao
reconhecimento das línguas brasileiras e discute as condições históricas e
políticas para uma educação bi e plurilíngue. Na sequência, explora alguns
resultados do OBEDF e defende a perspectiva de abordagem das línguas como
recurso educativo que promove um ensino inclusivo, qualifica a formação
escolar dos alunos e amplia as possibilidades de atuação dos professores.
Em Educação Bilíngue em Zona de Fronteira: Pensando Modelos e
Programas, o leitor encontrará uma análise de modelos de educação bilíngue
e uma sistematização de elementos que os integra segundo seus objetivos
educacionais, sociais e políticos. A partir dessa análise, a autora discute as
diretrizes apontadas na Portaria MEC no. 798 de 10/06/2012 que versa sobre
educação intercultural para zona de fronteira no Brasil.
Com Alfabetização de Alunos Plurilíngues nas Escolas Brasileiras de
Fronteira entramos na Escola Municipal Maria Lígia Borges Garcia, ouvimos
os relatos sobre o silêncio imposto aos falantes das línguas guarani e espanhol
e acompanhamos o sensível deslocamento dos professores para uma posição
atenta às interações linguísticas em suas especificidades, a partir da qual
passam a questionar valores, ideologias, concepções e possíveis preconceitos
linguísticos presentes no cotidiano escolar.
O Legado do Projeto OBEDF em Sena Madureira (Acre): o Português, o
Jaminawa, o Bilinguismo e o Ensino da Língua Oficial resulta da pesquisa
realizada na Escola Pública Municipal de Ensino Fundamental Messias
Rodrigues de Sousa, na cidade de Sena Madureira. Por meio da análise de
produções orais e escritas de alunos indígenas Jaminawa e alunos não
indígenas, traz para o debate as dificuldades enfrentadas, por um lado, por

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

professores que não estão preparados para receber os alunos Jaminawa


bilíngues vindos de diversas aldeias da região, e por outro lado, pelos alunos
Jaminawa que não conseguem dominar a língua portuguesa ensinada na
escola.
Dialogando com este texto está o Apontamentos sobre a Ortografia da
Língua Jaminawa: entre o Linguístico e o Não Linguístico, que contribui
para a documentação e descrição da língua Jaminawa através de uma
descrição fonética preliminar dos sons da língua e da problematização das
duas propostas ortográficas existentes para o alfabeto Jaminawa: o Guia
del Alfabeto Yaminawa e a Cartilha Jaminawa, produzidos na Bolívia e no
Brasil, respectivamente. A partir de um corpus que tomou como base os 70
itens lexicais elencados nas referidas propostas ortográficas e de uma lista de
aproximadamente 80 itens que incluem termos de fauna e flora, de partes
do corpo, dentre outros, o trabalho serve como indicador para os estudos da
fonologia Jaminawa, subsidiando a implementação de uma ortografia para
essa língua e seus usos na escola.
O Ensino e Aprendizagem na Escola Bela Flor antes e depois do Projeto
Observatório da Educação na Fronteira relata o processo de sensibilização
linguística vivido pela escola acreana a partir das intervenções propostas pelo
OBEDF e socializa alguns resultados que refletem o poder mobilizador de uma
política linguística adequada às demandas locais.
Nessa mesma direção temos o texto sobre a Construção Curricular na
Perspectiva de uma Escola Bilíngue na Fronteira Brasil X Bolívia em que
a equipe da escola Durvalina Estilbem de Oliveira, de Guajará-Mirim/RO,
na fronteira Brasil/Bolívia, reflete sobre a necessidade de construção de um
currículo escolar intercultural bilíngue/plurilíngue de fronteira que atenda
aos anseios da comunidade escolar com uma proposta ou modelo de ensino
com ênfase no ensino do português e do espanhol.
A identificação dos modos pelos quais a Escola Floriza Bouez tem lidado
com o multilinguismo constitui o mote inicial para o texto Diferenças e
Preconceitos Linguísticos: desafios para a Escola Pública. Associando as
práticas da escola com a necessidade de atender a demandas socioeconômicas,
apresenta um panorama das dificuldades de aprendizagem dos alunos
descendentes de bolivianos e tematiza o desafio que sua presença impõe aos
educadores.

13
Bilinguismo na Escola Polo Municipal Ramiro Noronha retrata a realidade
vivida pela escola, que lida cotidianamente com um grande fluxo de alunos
provenientes de Pedro Juan Caballero/Paraguai, que cruzam a fronteira para
estudar no Brasil. Esse deslocamento de alunos que trazem consigo seu idioma,
sua cultura e suas identidades cria no contexto escolar um mosaico de línguas
e culturas. O texto indica ações desenvolvidas pela escola e a necessidade de
que ela se afirme como uma escola intercultural.
Fechando as discussões e relatos sobre os desafios que o multilinguismo
traz para a sala de aula, o texto Princípios para a Gestão do Plurilinguismo
na Escola: questões para reflexão e proposição de ações apresenta alguns
princípios necessários à gestão de diferentes línguas nos espaços educativos,
dialogando com educadores que lidam diretamente com crianças bilíngues,
em situações de contato de línguas, em contextos de fronteira, de imigração,
em comunidades indígenas ou surdas. Pretende, assim, fomentar a agência
de educadores para que se vejam como copartícipes da gestão das línguas,
refletindo e tomando decisões a partir do contexto em que se inserem.
Por fim, o livro traz dois textos sobre o mapeamento de línguas, ação
essencial para o planejamento de políticas públicas.
O primeiro, Língua, Mídia e Fronteira: o Caso de Guayaramerin (BO) e
Guajará-Mirim (BR), apresenta os primeiros resultados do diagnóstico das
línguas em circulação no espaço midiático das cidades fronteiriças de Guajará-
Mirim, no Estado de Rondônia, no Brasil, e de Guayaramerín, na Província
de Vaca Dias, Departamento do Beni, na Bolívia. O trabalho, que fez um
levantamento das mídias em circulação nas referidas cidades e da situação das
línguas nesse contexto sociolinguístico, refletiu também acerca da construção
de sentidos sobre língua, fronteira e educação. A pesquisa contribui para o
entendimento do contexto sociolinguístico das fronteiras brasileiras e oferece
subsídios para os estudos no âmbito da comunicação social, especificamente,
na relação entre a mídia e as línguas na fronteira.
O segundo, Os Censos Linguísticos e as Políticas para as Línguas no
Brasil Meridional, traz reflexões sobre os censos linguísticos realizados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em todo o território
nacional nos anos de 1940 e 1950, discutindo os resultados obtidos pelo
recenseamento propriamente, os procedimentos da enquete e as razões pelas
quais a questão linguística despertou interesse naquele momento para depois

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

passar a ser sistematicamente omitida dos recenseamentos posteriores. O


texto argumenta sobre a necessidade de voltarmos a ter questões sobre as
línguas nos censos demográficos nacionais e em investigações nos âmbitos do
Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP) visando a produção de variáveis linguísticas importantes
para a formulação de políticas linguísticas e culturais, como o grau e a
natureza do bilinguismo da população, a dimensão das minorias linguísticas,
sua localização geográfica, as territorialidades linguísticas e o grau de perda
intergeracional das línguas.
Fechando o livro, o leitor encontrará a Carta do Observatório da Educação
na Fronteira – OBEDF, um documento produzido durante o III Seminário
do OBEDF que expressa os anseios e encaminhamentos partilhados pelos
participantes no intuito de contribuir para a promoção e o fortalecimento das
línguas e do ensino bi e plurilíngue no Brasil.
Esperamos que a leitura dos textos possa contribuir para o debate sobre as
travas impostas ao ensino público pelo ideário do monolinguismo. O projeto
de Estado Nacional fundado na equivalência entre Um Estado, Uma Nação
e Uma Língua (a portuguesa) fez do Brasil um país que se representa como
monolíngue, com todos os brasileiros falando a língua portuguesa, tendo para
tanto adotado, em sua história, medidas que desvalorizaram ou proibiram
todas as demais línguas faladas por seus cidadãos. Um país em que, apesar de
ter uma das mais extensas faixas de fronteira do mundo onde o multilinguismo
é uma premissa, e contar com centenas de línguas brasileiras, faladas, às vezes,
por maiorias de habitantes de pequenos municípios, tem o ensino público
ofertado apenas em língua portuguesa, com exceção das escolas indígenas.
Esse monolinguismo está em dessincronia com as realidades de nosso
tempo. Nesse século XXI, o multilinguismo constitui a base dos sistemas
de comunicação, de informação e de comercio eletrônico. O domínio de
línguas constitui um recurso que qualifica os cidadãos para a lida com essa
nova realidade. Urge, portanto, abrirmos o debate sobre o lugar das línguas
no ensino público e sobre o próprio lugar da educação pública nesse novo
cenário.

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

LÍNGUAS, FRONTEIRAS E
PERSPECTIVAS PARA O ENSINO
BILÍNGUE E PLURILÍNGUE
NO BRASIL

Rosângela Morello 1

RESUMO

O presente texto traça um panorama sobre o multilinguismo e as políticas


linguísticas do Brasil e discute as condições para uma educação bi e plurilíngue,
tendo em vista a existência de falantes de outras línguas diferentes do Português
em escolas públicas localizadas na faixa de fronteira. Apresenta os propósitos e
alguns resultados do Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF), projeto
interinstitucional que contou com apoio da CAPES (Edital 038/2010, Convênio
OE n. 2107), indicando a relevância de se trabalhar com as línguas como recurso
educativo que tanto promove um ensino inclusivo como qualifica a formação es-
colar dos alunos e amplia as possibilidades de atuação dos professores.

Palavras-chave: Multilinguismo. Fronteira. Política Linguística. Ensino Bilingue


e Plurilingue. Diagnóstico sociolinguístico.

1 INTRODUÇÃO

A história da formação do Estado brasileiro é também uma história de


exclusão étnica e linguística atrelada à constituição do Estado, da nação
e da cidadania pela via da língua portuguesa como única língua oficial e
legítima. Essa história silenciou e desvalorizou as centenas de outras línguas
– aproximadamente 300 nos dias de hoje - faladas por milhares de brasileiros
nos mais variados espaços sociais. Nas escolas públicas, com exceção das

¹ Coordenadora Geral do IPOL Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguísti-


ca. Coordenadora Geral do Projeto Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF).

17
indígenas, tais línguas nunca puderam atravessar legitimamente o umbral da
porta para dentro. Os seus falantes foram excluídos dos processos escolares
de ensino e aprendizagem nas suas línguas e suas demandas ficaram alijadas
da agenda das políticas públicas, entre elas, a educacional. A ausência, na
legislação nacional, de diretrizes para o ensino bi ou plurilíngue no sistema
público é um sintoma desse quadro. Igualmente o são as escassas iniciativas
de pesquisa destinadas a conhecer a realidade linguística das escolas, a
sustentar propostas didático-pedagógicas que promovam as línguas da
comunidade escolar e a formar profissionais sensíveis e preparados para
atuarem na educação bi e plurilíngue. Portanto, na história da formação e no
funcionamento do Estado brasileiro, o monolinguismo e todas as práticas e
crenças que o sustentam definem os parâmetros das políticas públicas e da
cidadania nas suas variadas interfaces, sobretudo as educacionais.
No entanto, as realidades multilíngues e plurilíngues2 se impõem. Elas são
parte da história, estão ligadas aos movimentos migratórios, à convivência
entre distintos grupos humanos e alicerçam, desde longa data, lutas políticas
por direitos cidadãos equânimes. As línguas, em sua diversidade e diferenças,
são dinâmicas, persistem e pressionam os limites do monolinguismo. Além
disso, nos dias atuais, as novas tecnologias de comunicação e informação
redimensionam o papel das línguas colocando-as como pilares da nova
economia em rede, do funcionamento de blocos econômicos e instituições
multilaterais, de processos de comércio eletrônico, das formas de socialização
pela internet e de formação e atuação profissional nos mais variados campos
(Marazzi, 2009; Oliveira, 2010). Há, portanto, de modo crescente, sobretudo
nas três últimas décadas, um choque entre os padrões monolinguistas que
regeram a formação do estado nação e a incontestável importância das línguas
nas dinâmicas sociais, políticas e econômicas desse século XXI.
O presente texto dialoga com esse cenário colocando em discussão as
condições para uma educação bi e plurilíngue no Brasil, tendo em vista a
existência de falantes de outras línguas diferentes do Português em escolas
públicas localizadas na faixa de fronteira. A discussão toma por base os
propósitos e alguns resultados do Observatório da Educação na Fronteira
² Conforme a Carta Europeia do Plurilinguismo (2009), enquanto o multilinguismo compreende
o número de línguas, o plurilinguismo significa o domínio, pelo falante, de mais de uma língua. A
essa distinção acrescentamos à significação de plurilinguismo seu vínculo à política de valoriza-
ção das comunidades linguísticas no Brasil, apresentada na parte final do artigo.

18
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

(OBEDF), projeto interinstitucional que contou com apoio da CAPES (Edital


038/2010, Convênio OE n. 2107) e do qual participaram as Universidades
Federais de Santa Catarina (UFSC) e de Rondônia (UNIR), o IPOL Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas e Escolas de Ensino
Fundamental situadas na fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolívia, a saber:

Ponta Porã, Mato Grosso do Sul:


Escola Polo Municipal Ramiro de Noronha.
Escola Municipal Maria Lígia Borges Garcia.
Guajará Mirim, Rondônia:
Escola Estadual de Ensino Fundamental Durvalina Estilbem de Oliveira.
Escola Municipal de Ensino Fundamental Floriza Bouez.
Epitaciolândia, Acre:
Escola Municipal de Ensino Fundamental Bela Flor.

Durante o período de execução do OBEDF, verificamos que a tensão


entre as politicas monolinguistas e o plurilinguismo se repercute em embates
recorrentes na prática pedagógica e determinam algumas perspectivas para
um ensino bi ou plurilíngue, como mostraremos. Inicio o texto com um
breve quadro do multilinguismo no Brasil e de recentes políticas linguísticas
e educacionais que o reconhecem e promovem. Em seguida, apresento
os propósitos do OBEDF, as prerrogativas para sua implementação e o
quadro teórico e metodológico que o sustenta. A próxima seção é dedicada
à apresentação e análise de alguns resultados do diagnóstico sociolinguístico
no que diz respeito à realidade linguística das escolas e regiões pesquisadas
e a percepção acerca dessa realidade presente em depoimentos obtidos na
pesquisa. Por fim, discuto avanços pedagógicos e políticos alavancados pelo
OBEDF e indico desafios e perspectivas para promoção de uma política de
fomento do plurilinguismo no ensino público no Brasil.

2 MULTILINGUISMO, POLÍTICAS LINGUÍSTICAS E ENSINO NO BRASIL

O Brasil, país bilíngue desde 2005 (português/Língua Brasileira de Sinais


- LIBRAS), é muito rico em diversidade linguística. Apesar de uma história
orientada para o monolinguismo que oficializou e aparelhou somente a
língua portuguesa como língua de ensino e oficial, o censo demográfico

19
realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
aponta a existência de cerca de 274 línguas indígenas no país, inclusive
línguas indígenas de sinais, como a dos Ka´apor. Pesquisas3 indicam, ainda,
aproximadamente 56 línguas faladas por descendentes de imigrantes, há
pelo menos três gerações, em vários municípios brasileiros, como é o caso do
talian, pomerano, hunsrükisch, polonês, russo, entre outras. Igualmente há
as línguas afro-brasileiras e as que se intercalam, como é o caso dos crioulos
Galibi Marworno, Karipuna do Norte e Palikur, falados na região do Oipoque,
na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, e do Portunhol, na fronteira
com países hispano falantes.
De um ponto de vista geodemográfico, há regiões claramente multilíngues.
Na faixa de fronteira são faladas as línguas oficiais dos países fronteiriços
(espanhol, guarani, inglês e francês), línguas indígenas e línguas alóctones,
além de ser espaço propício para processos dinâmicos de interferências entre
línguas e de crioulização, como indicado. Nas regiões Norte e Centro Oeste
há forte presença de línguas indígenas, e nas Sul e Sudeste há grande número
de línguas alóctones ou de imigração, decorrente de processos imigratórios
iniciados na primeira metade do século XIX.
Em data recente, esse multilinguismo tem sido tematizado no país,
culminando em políticas públicas voltadas à promoção das línguas.
Em 1988, a Constituição Federal garantiu para a população indígena o seu
direito às práticas linguísticas e culturais.
Em 2002, a lei federal no. 10.436 instituiu o direito à educação em Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS) para a população surda, e sua regulamentação
pelo Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005 valorizou e ampliou os espaços
de usos dessa língua.
Nesta mesma década, comunidades de falantes do Talian (vêneto brasileiro)
e instituições fizeram demandas para que sua língua, não contemplada na
Constituição de 1988, recebesse atenção do Estado pelo fato de constituir
referência cultural para o Brasil.
Em 2004, inspirado na política de reconhecimento e registro dos
bens imateriais desenvolvida pelo Ministério da Cultura (MinC), o IPOL

³ Cf. IPOL Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística (www.e-ipo.org) e


Projeto Atlas Linguístico-Contatual das Minorias Alemãs na Bacia do Prata (ALMA) https://www.
ufrgs.br/projalma/.

20
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

encaminhou uma demanda à Comissão de Educação e Cultura da Assembleia


Legislativa Federal para que fossem tomadas providências para que também
as línguas brasileiras, em sua totalidade – indígenas, alóctones (imigração),
crioulas, afro-brasileiras e de sinais – fossem consideradas como parte desse
patrimônio imaterial da nação. Era o início de um processo que conduziria
à Política do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL),
primeira iniciativa do Estado Nacional destinada a conhecer as realidades
multilíngues do país e reconhecer as línguas brasileiras como patrimônio
cultural e imaterial (Morello, 2012)4. Instituído em 2010 pelo Decreto
Federal 7.387/2010, o INDL acarretou a realização de debates e seminários
públicos, a formulação de um guia metodológico5 e a realização de projetos
pilotos. Em 2014, em seminário aberto, foram entregues os 3 (três) primeiros
certificados de Referência Cultural Brasileira ao falantes das línguas Guarani
Mbya, Assurini do Trocará e Talian. Desde então, somam-se 7 (sete) línguas
reconhecidas - Guarani-Mbyá (regiões sul e sudeste), Asuriní do Trocará
(Tocantins); Matipu, Nahukwa, Kuikuro e Kalapalo (Alto-Xingu) e Talian
(região sul: colônias velhas) - e 4 (quatro) outras se encontram em processo
de inventário - Hunsrückisch (Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Espírito Santo); Libras (Grande Florianópolis e amostragem em todo o país);
Ianomami (Médio Rio Negro, Amazonas, e fronteira Brasil/Venezuela) e
Pomerano (Espírito Santo e amostragem de outros Estados).
Além da política do INDL que atinge todo o território nacional, iniciou-
se, também em 2002, em São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, a política de
cooficialização de línguas. Por meio de uma lei municipal, as línguas tukano,
nheengatu e baniwa tornaram-se cooficiais no município, juntamente com
o português. Essa ação inaugurou uma nova jurisprudência para os direitos
linguísticos no país, uma vez que somente o português gozava, até então,
do estatuto de língua oficial (Morello, 2015). Um dos efeitos dessa política
se fez sentir no ensino superior com a oferta, pela Universidade Federal do
Amazonas (UFAM) da licenciatura Políticas Educacionais e Desenvolvimento
Sustentável6, que funciona também nas línguas cooficiais nheengatu, tukano
⁴ A Política do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) abrange, como língua
brasileira, todas as línguas faladas no país há pelo menos três gerações.
⁵ Cf. Guia INDL Vol. 1 (patrimônio cultural e diversidade linguística) e Vol. 2 (formulário e roteiro
de pesquisa) http://portal.iphan.gov.br.
⁶ Cf. Oliveira e Ferreira, 2012.

21
e baniwa. Um outro efeito é a forte aderência social da cooficialização de
línguas. Prova disso é o fato de haver neste ano de 2018, 30 (trinta) municípios
com línguas cooficializadas, sendo 7 (sete) indígenas (tukano, nheengatu e
baniwa, akwê xerente, guarani, wapixana e macuxi) e 4 (quatro) alóctones
(pomerano, alemão, talian e hunsrückisch).

Política de Cooficialização de Línguas


Línguas indígenas Línguas descentes de imigrantes
Tukano São Gabriel da Ca- Pomerano S. M. de Je bá/ES (2009)
Neengatu choeira/AM (2002) Pancas/ES (2009)
Baniwa Domingos Mar ns/ES (2011)
Guarani Tacuru/MS (2010) Laranja da Terra/ES (2008)
Akwê Xerente Tocan nia/TO (2012) Vila Pavão/ES (2009)
Macuxi Bonfim/RR (2014) Canguçu/RS (2010)
Cantá/RR (2014)
Wapichana Bonfim/RR (2014) Can- Pomerode/SC (2017)
tá/RR (2014)
Itarana/ES (2017)
Talian Serafina Corrêa/RS (2009)
Flores da Cunha/RS (2015)
Bento Gonçalves/RS (2016)
Paraí/RS (2016)
Nova Roma do Sul/RS (2015)
Fagundes Varela/RS (2016)
Guabiju/RS (2016)
Antônio Prado /RS (2016)
Nova Pádua/RS (2016)
Caxias do Sul/RS (2017)
Camargo/RS (2017)
Ivorá/RS (2018)
Nova Erechim/SC (2015)
Hunsrückisch Antônio Carlos/SC ( 2010)
S.ta Maria do Herval/RS (2010)
Alemão Pomerode/SC ( 2010)
São João da Boa Vista/SC(2016)
Bela Vista/SC (2017)
7 5 4 25
Total junho/2018: 11 línguas em 30 Municípios
Fonte: www.ipol.org.br

22
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Se for especificamente considerado o modo pelo qual as línguas são


tematizadas no campo da educação, notaremos que a Constituição de 1988
abriu a possibilidade para o ensino nas línguas indígenas para a educação
indígena. No entanto, o ensino comum seguiu massivamente enquadrado
pelo monolinguísmo da língua portuguesa até meados dos anos 2000, quando
tiveram início programas e projetos contemplando línguas alóctones (de
descendentes de imigrantes).
Uma das primeiras iniciativas foi o Programa de Educação Escolar Pomerana
(PROEPO) implementado, a partir de 2005, nos Municípios de Santa Maria de
Jetibá, Laranja da Terra, Vila Pavão, Pancas e Domingos Martins, no Espírito
Santo. Estruturado em uma parceria colaborativa dos Municípios, o programa
propõe “desenvolver nas escolas públicas um projeto pedagógico que valorize
e fortaleça a cultura e a língua pomerana, representadas por meio da língua
oral e escrita, danças, religião, arquitetura e outras tradições” (KUSTER et
alii, 2010: 126). Nesses municípios, a língua pomerana se tornou cooficial a
partir de 2008, abrindo a possibilidade de ampliação das ações de ensino na
língua por meio de um planejamento no âmbito da regulamentação da lei.
Outra expressiva ação, também em 2004/2005, voltou-se para o multi-
linguismo das regiões fronteiriças: o Programa das Escolas Interculturais
Bilíngues de Fronteira (PEIBF). Iniciado como acordo bilateral entre o governo
do Brasil e da Argentina, propunha um modelo de ensino comum desenvolvido
por escolas parceiras, uma de cada país, em cidades gêmeas, tendo por base
uma proposta pedagógica que combinava formação continuada e ensino via
pesquisa. Para tanto, o PEIBF desenvolveu uma perspectiva de planejamento e
trabalho conjunto em que, com apoio de assessoria especializada, professores
e gestores organizavam as ações didáticas e pedagógicas tendo como centro
os projetos de ensino/aprendizagem formulados a partir dos interesses dos
alunos de cada série. Participando de todo o processo de planejamento dos
projetos, os docentes se intercambiavam, assumindo tarefas na escola e turma
parceira, em um sistema que ficou conhecido como “cruce de docentes”.
Desse modo, uma ou duas vezes na semana os professores trocavam de escola
indo ensinar em sua língua, na escola do outro, os conteúdos previamente
planejados conjuntamente, conforme o projeto de pesquisa em andamento.
Ao mesmo tempo, em reuniões técnicas mais amplas, envolvendo ministérios,
secretarias de educação, assessores do IPOL, gestores e professores,

23
discutiam-se ajustes e diretrizes para o trabalho. Assumia-se, portanto, a
perspectiva de gestão compartilhada em todos os níveis de execução (Morello,
2011). Em 2008, o PEIBF consolidou-se como programa multilateral gerido
pelo Setor Educacional do MERCOSUL. Em 2010, 26 escolas (13 brasileiras e
13 de países parceiros) participavam do programa em várias cidades gêmeas,
comprovando o acerto e a legitimidade de sua concepção e de sua proposta
pedagógica, a saber, a de um ensino bi ou plurilíngue via projeto de pesquisa7.
A partir de 2010, o PEIBF foi remodelado pelo governo brasileiro e passou
a ser regulamentado pela Portaria MEC Nº 798, publicada em 19 de junho
2012. Essa portaria alterou o nome do Programa para Programa das Escolas
Interculturais de Fronteira (PEIF). A partir de então, o sistema de intercâmbio
com foco no ensino nas línguas perdeu espaço para trocas culturais em
situações típicas, e a perspectiva pedagógica do planejamento conjunto e
gestão compartilhada foi gradativamente abandonada em prol de decisões e
encaminhamentos de cada país8.
Também com enfoque nas fronteiras teve início, em 2011, o Observatório
da Educação na Fronteira (OBEDF), objeto dessa publicação. A proposta
surgiu no lastro do PEIBF mas se concentrou apenas em escolas brasileiras de
três estados do arco central da fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolívia:
Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre. A questão central da proposta estava
em verificar qual o lugar e o papel das línguas nas práticas de alfabetização
e letramento dos anos iniciais em contextos onde as crianças podem não ter
o português como língua materna ou língua primeira. A partir de estratégias
específicas, buscou-se identificar o perfil linguístico das crianças, docentes e
funcionários da escola, e verificar que relações havia entre falar e saber outras
línguas como os processos de ensino e aprendizagem. As equipes de professores
e coordenadores das escolas parceiras assumiram intenso protagonismo desde
o primeiro momento, sendo convidadas, de modo sistemático e reflexivo,
com apoio da equipe de pesquisadores e assessores, a observar suas práticas,
analisá-las e delas extrair hipóteses e soluções. O princípio pedagógico que
organizou o OBEDF foi o de uma pesquisa-ação pautada por uma perspectiva
política de valorização das línguas. Com esse olhar, colocou no centro dos
trabalhos a concepção e o desenvolvimento de estratégias de sensibilização

⁷ http://portal.mec.gov.br/escola-de-fronteira/escola-de-fronteira
⁸ Para mais detalhes sobre o PEIF, veja Sturza, 2017; Lorenzetti & Torquato, 2016.

24
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

linguística, de diagnósticos sociolinguísticos e de planejamento de ações de


natureza político-linguística voltada ao ensino plurilíngue.
Embora haja outras ações para o ensino bilíngue, em especial na rede
de ensino privada, as relatadas configuram ações inaugurais com vistas
ao questionamento do monolinguismo no âmbito das políticas a públicas.
Aprofundaremos a discussão a partir do OBEDF.

3 LÍNGUAS E FRONTEIRAS: O RECORTE GEOPOLÍTICO, TEÓRICO


E METODOLÓGICO DO OBEDF

A linha limítrofe do território brasileiro com o dos demais países sul-


americanos se estende por 15.179 km. De acordo com o censo demográfico
do IBGE de 2010, na faixa brasileira estão situados 528 municípios, somando
cerca de 10 milhões de habitantes. Destes, 1.141.429 habitam as 30 cidades
brasileiras que formam pares com outras dos países vizinhos, caracterizadas
por relações interfronteiriças frequentes, e pela coexistência de várias línguas.
De acordo com o IBGE (Censo Demográfico, 2010) aproximadamente 50% da
população fronteiriça frequenta escolas brasileiras, fato que potencialmente
caracteriza esse espaço escolar como multilíngue.
No arco central da faixa de fronteira, que compreende no Brasil os estados
do Paraná, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Acre, o multilinguismo está a
céu aberto. É comum crianças e adolescentes paraguaios, brasiguaios e
bolivianos frequentarem escolas no Brasil. Além disso, nessa região há terras
indígenas onde convivem vários povos indígenas que falam suas línguas como
línguas maternas, e os jovens, após a conclusão das series iniciais, igualmente
frequentam as escolas públicas não indígenas. Fora de suas terras, nas
periferias de cidades dessa faixa de fronteira, centenas de famílias indígenas
interagem com todo tipo de demanda e de desafio da urbanização, incluindo
a escolarização, mas recebem pouco ou nenhum tipo de atendimento
especializado, sobretudo do ponto de vista dos seus direitos linguísticos.
A título exemplar, na faixa que vai do Mato Grosso do Sul ao Acre
encontramos cinco línguas oficiais dos países fronteiriços - o português no
Brasil, o espanhol e o guarani no Paraguai, o espanhol, e o quéchua e o aimará
na Bolívia - e vários povos que falam suas línguas indígenas, como Oro Vieram,

25
Oro Waramxijein, Oro Mon. Oro Não, Oro Dao, Oro Bone, Oro Ai. Oro Eu
e Oro Wari no Município de Guajará-Mirim e Nova Mamoré; os Macurap,
Jabuti, Tupari, Canoé, Arua, Massaká, Ajuru e Cujubim, na Terra indígena Rio
Guaporé ou P.I. Ricardo Franco, também no Municipio de Guajará-Mirim; os
povos Cassupá e Salamãi no sul da Terra Indígena Karipuna no município de
Porto Velho (http://www.pakaas.net/rond.htm) e os guarani (Pãi-Tavyterã ,
Avá-Guaraní, Mbyá , Aché-Guayakí, Guaraní Occidentales (Áva - Chiriguano
- Mbya), Ñandeva (Tapieté). Na direção do Paraguai há também os que falam
línguas chaquenhas (Meliá, 2010). Outro exemplo de espaço fronteiriço
multilíngue é a cidade transfronteiriça de Foz do Iguaçu, Paraná, onde, além
de falantes de línguas oficiais dos países e de línguas indígenas, ressalta-se
a presença de árabes, indianos, chineses, coreanos, entre outros, muitos dos
quais têm pouco ou nenhum domínio da língua portuguesa.
Inseridas nesse contexto, as escolas participantes do OBEDF, assim como
outras localizadas em regiões de fronteira, quase sempre estão habitadas
por falantes de diversas línguas. No entanto, estruturadas sobre a ideologia
do ensino monolíngue, em que a língua portuguesa organiza e é a única
beneficiada com recursos didáticos e pedagógicos, tais escolas quase sempre
desconhecem quais são essas outras línguas. Em consequência, não entra
em seu horizonte político-pedagógico, ainda menos no âmbito curricular,
qualquer proposta para abordá-las. A ausência de suporte por parte das
secretarias de educação para avançar na direção de uma educação linguística
com foco nas línguas agrava ainda mais a situação. O resultado é um quadro
de exclusão escolar de milhares de crianças e jovens falantes de outras línguas
maternas distintas do português. Um quadro em que o papel essencial das
línguas para o desempenho escolar dessas crianças e jovens, em especial, para
os seus primeiros anos de escolarização, segue ignorado e silenciado.
Dar lugar ao multilinguismo na escola constitui, portanto, uma ação
polêmica, de enfrentamento das práticas monolíngues e geração de novas
perspectivas e abordagens dos conhecimentos. Ao fazê-lo, o OBEDF
estabeleceu, como ponto de partida, o esforço conjunto de diagnosticar
e compreender o papel das línguas no espaço escolar e em seu entorno,
fomentando a discussão sobre as perspectivas para sua inclusão no sistema
de ensino público. Propôs que fossem observadas as interferências do não
domínio ou pouco domínio da língua portuguesa no processo de aprendizagem

26
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

dos alunos de séries iniciais e que fossem construídas hipóteses e análises


para os aspectos observados. Paralelamente, pela via do diagnóstico
sociolinguístico, buscou identificar as línguas da comunidade escolar e as
percepções que os entrevistados tinham delas e dos que as falam. As práticas
pedagógicas tradicionais e as vias possíveis para se avançar na perspectiva de
um ensino bilíngue ou plurilíngue no Brasil estiveram, em todo o processo
de investigação, no centro do debate. A cada desafio encontrado, propunha-
se outro desafio: o de encontrar estratégias pedagógicas para tematizá-lo e,
quiçá, superá-lo.
Tendo por base, portanto, estratégias de pesquisa e de intervenção
pedagógica (BERGER, 2015; REASON, P., BRADBURY, H. 2008), o OBEDF
empenhou-se em produzir uma reflexão crítica sobre o ensino público no
contexto multilíngue da fronteira do Brasil com o Paraguai e a Bolívia,
adotando, para tanto, a perspectiva da política linguística. Conforme Oliveira
(2004b: 175), a reflexão sobre as línguas no campo da política linguística
envolve menos a adoção de uma teoria, seja ela sociolinguística ou não, e mais
uma ótica de pesquisa em relação a uma problemática. A ótica de pesquisa
consiste em considerar “objetos constituídos em outros campos de saberes
estabilizados e fora deles, em diversas épocas e diferentes recortes teóricos
[lançando] sobre eles um olhar definido”.
Nesse sentido, para avançar na reflexão sobre a presença das línguas e
de sua interferência nos processos de ensino e aprendizagem nas escolas,
foi necessário aprofundar a compreensão de questões que afetam o espaço
escolar advindas de outros dois campos de conhecimentos: i) a fronteira como
configuração geodemográfica e simbólica específica, marcada por ações de
delimitação nacional, integração regional e intenso plurilinguismo e ii) as
políticas educacionais como campo de acesso aos direitos à educação que
requer políticas linguísticas para as matrizes curriculares, materiais didáticos
e formação docente. A partir desse recorte e de acordo com as diferentes
temáticas das pesquisas, foram mobilizados estudos de referência nas áreas da
linguística, política linguística, educação, geografia, antropologia, sociologia,
história, entre outras. A posição de pesquisa adotada assumiu, portanto,
como parte do trabalho, a construção contínua e dinâmica do conhecimentos,
estabelecendo relações dialéticas entre compreender, perguntar, construir
hipóteses e atuar, cujas estratégias estão detalhadas a seguir.

27
3.1 Para escutar mais vozes nas salas de aula: posições para observação
em sala de aula e debates em seminários e reuniões

A estratégia de observação e intervenção em sala de aula envolveu


dois professores das séries iniciais e um coordenador em cada escola, em
todas as fases da pesquisa. Em cada escola, o professor de uma das séries
trabalhava um dia na semana observando a aula de seu colega, enquanto as
atividades em sua turma eram conduzidas pelo coordenador. Em outro dia,
o observado passava a observador, e repetia-se a atuação do coordenador
nessa outra turma. A cada semana, os três se reuniam para conversar sobre
aspectos observados e analisar os resultados junto com a equipe do OBEDF,
em reuniões on-line.
Esse entrelaçamento durou todo o projeto e seguiu um programa de
trabalho que consistiu, além da fase inicial de planejamento e da fase final
de consolidação de produtos, em três fases que se intercalaram, obedecendo
a uma certa cronologia de aproximadamente seis meses cada uma: fase 1)
detectar, nas aulas observadas, as ações de condução pedagógica em relação a
diferentes comportamentos e demandas dos alunos, relacionando-as ou não
a questões linguísticas; fase 2) observar as interações fora da sala de aula e
fase 3) discutir e propor encaminhamento para modificar positivamente as
situações observadas. Nestas fases houve uma discussão sobre os objetivos
das atividades, a produção conjunta de fichas de observação e elaboração
de relatórios semanais circunstanciados que proporcionaram, de forma
contínua, as condições para que fossem identificados os perfis linguísticos dos
alunos e suas atitudes em relação às línguas, a partir do que eram realizadas
ações para toda a escola visando a atender o aluno não falante do português
como primeira língua. Três seminários presenciais e várias reuniões on-line
permitiram alinhar objetivos e avançar na execução do projeto. Análises
dessas intervenções pode ser lidas em Berger (2015).
Paralelamente, como se poderá ler no item 4, novas informações sobre
as línguas foram produzidas por meio do diagnóstico sociolinguístico.
Compreendido como estratégia de natureza política e técnica para produção
de informações, tendo por base instrumentos de coleta de dados específicos,
o diagnóstico produz informações necessárias ao planejamento de políticas
linguísticas (Seiffert, 2015). Mas além disso, permite a tematização de questões

28
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

pouco visíveis, funcionando com uma importante política de sensibilização


sobre tais questões.

4 O DIAGNÓSTICO DAS LÍNGUAS COMO AÇÃO POLÍTICA E


PEDAGÓGICA

O diagnóstico sociolinguístico teve por objetivo a produção de informações


visando à identificação das línguas em uso nas escolas e os seus modos de
circulação, tanto no espaço escolar como nas cidades. Os questionários
contemplaram questões sobre as línguas maternas, aprendidas e usadas e os
locais de uso, e as entrevistas tematizaram, além desses usos, a visão sobre
a vida na fronteira, quem é o outro, o conhecimento ou não das línguas,
as perspectivas e os valores sobre sua língua, entre outros pontos. Foram
aplicados questionários a alunos de várias séries, e conduzidas entrevistas
semiestruturadas com professores, gestores, alunos e pais. Equipes formadas
por assessores, gestores e professores das escolas atuaram na elaboração dos
instrumentos e na coleta.

Instrumentos Participantes Total


Entrevistas em áudio pais, alunos, professores e gestores 25
Entrevistas em vídeo pais, alunos, professores e gestores 291
1º ao 3º. Ano 683
Questionários 4º. e 5º. Anos 380
Anos finais (8º/9º. anos) 107
Quadro 1. Instrumentos de pesquisa e dados coletados.
Fonte: Diagnóstico sociolinguístico, OBEDF, 2011.

A incorporação do diagnóstico sociolinguístico como parte das pesquisas do


OBEDF foi uma estratégia muito eficiente para trazer à tona o multilinguismo
de cada região e situação. Além de proporcionar informações sobre as línguas,
o diagnóstico promoveu, como se disse, uma mobilização da comunidade
escolar e outros setores da sociedade, como o comércio, que se viram diante de
uma situação em que suas línguas e saberes eram tematizados e valorizados.

29
A pesquisa produziu, então, uma sensibilização sobre o lugar e a importância
das línguas nas relações sociais e econômicas locais e na convivência e
aprendizagem das crianças e jovens dentro da escola. A partir dos resultados
publicados em Mapas Linguísticos (SAGAZ, M. R.; MORELLO, R. 2014)
sintetizamos, a seguir, informações que evidenciam o multilinguismo e
algumas considerações que foram feitas sobre a descoberta das várias línguas
na escola e seus efeitos nas práticas pedagógicas.

4.1 Alguns indicadores

4.1.1 Cidades multilíngues

Em primeiro lugar, o diagnóstico do OBEDF confirmou que as cidades onde


se localizam as escolas são multilíngues já que em todas elas, os participantes
declararam usar várias línguas.

Lista de línguas declaradas como línguas em uso, por cidade.

Cidade Línguas
Ponta Porã português; espanhol/castelhano/castelhano paraguaio; por-
tunhol; jupará/paraguaio; inglês; coreano; alemão; italiano;
guarani.
Epitaciolândia português; espanhol/castelhano; LIBRAS; francês; japonês
Guajará Mirim português; inglês; espanhol; castelhano; boliviano; línguas
Indígenas (macurap, zoró, Wari, oro-nao/oro-win /oro-wa-
ram oro-mon/oro-eo , jaboti, djeromitxi, kanoê, tupari)
Quadro 2. Línguas declaradas como línguas usadas, por cidade.
Fonte: Diagnóstico sociolinguístico OBEDF, 2011.

4.1.2 Escolas Multilíngues

Mas ainda mais multilíngues são algumas escolas. Considerando o quesito


línguas maternas/faladas em casa (L1)9, a declaração de alunos e professores

⁹ Consideramos que o âmbito familiar contempla os usos da língua materna, razão pela qual
reunimos na categoria L1 o que podemos chamar de língua 1, língua materna ou primeira e
língua falada em casa.

30
Observatório Política Linguística em
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

em relação ao português, espanhol e guarani, línguas oficiais e de ensino


nos países envolvidos na pesquisa, os resultados do diagnóstico mostraram
que, por exemplo, na Escola Pólo Ramiro Noronha (RN), em Ponta Porã,
Mato Grosso do Sul, apenas 15% dos alunos declararam ser monolíngues em
português. Apesar de haver diferenças marcantes entre esta escola e a Bela
Flor, em Epitaciolândia, Acre, será comum em todas elas a presença de alunos
falantes de outras línguas. No gráfico a seguir, representamos a distribuição
das línguas declaradas pelos alunos nas cinco escolas.

Gráfico 1: línguas declaradas pelos alunos como línguas maternas/faladas em casa (L1). RN:
Escola Ramiro Noronha; ML: Maria Lígia; DUR: Durvalina Stilbem; FLO: Floriza Bouez e BF:
Bela Flor.
Fonte: Diagnóstico sociolinguístico OBEDF, 2011.

Além da marcante situação de multilinguismo da Escola Pólo Ramiro


Noronha, a análise do gráfico 1 permite algumas outras afirmações:
a) Em todas as escolas há mais de uma língua declarada pelos alunos como
línguas maternas/faladas em casa (L1).
b) A língua guarani está fortemente presente nas escolas brasileiras Ramiro
Noronha (RN) e Maria Lígia (ML) de Ponta Porã, na fronteira com Paraguai.
Estas escolas são também as que recebem maior número de alunos que falam
espanhol.
c) A escola Bela Flor, Epitaciolândia, Acre é a que apresenta menor índice
de falantes de espanhol.
d) Em Guajará Mirim, Rondônia, na fronteira com Bolívia, a escola
Durvalina Stilbem de Oliveira recebe mais alunos falantes do espanhol do que
a Floriza Buez, onde predomina os que declaram falar apenas o português.

31
Além das três línguas destacadas no gráfico 1, cabe ressaltar o fato de haver,
na escola Durvalina Stilbem de Oliveira, Guajará Mirim, alunos que declaram
ter o quéchua e aimará (línguas nacionais da Bolívia, país fronteiriço) como
línguas maternas/faladas em casa. Além disso há, nesta escola, falantes de
línguas indígenas brasileiras. Neste caso, a língua não apareceu nas declarações
e sim nas observações mais detalhadas em salas de aula e nas listas de nomes
das matrículas dos alunos.
O fato de alunos indígenas ou do país vizinho não declararem sua língua
materna ou sua origem em situações escolares no Brasil tem sido constatado
em outras pesquisas e pode ser interpretado com um efeito da forma pela qual
o ensino público foi atrelado à cidadania brasileira não-indígena e em língua
portuguesa, excluindo todos “os outros”. O acesso por direito, legitimado, do
cidadão brasileiro ao ensino público constituiu-se, portanto, de modo restrito
e excludente.

4.1.3 Muitos professores sabem mais de uma língua

Considerando, novamente, as línguas oficiais dos países, as informações


coletadas mostram que, além do português, os professores são também
falantes de espanhol ou guarani como L1. A análise dos resultados mostra que:
- O espanhol é L1 de 7 (sete) docentes na Ramiro Noronha e 5 (cinco) na
Maria Ligia, em Ponta Porã; 2 (dois) professores na Floriza Bouez em Guajará
Mirim, Rondônia e 2 (dois) na Bela Flor em Epitaciolândia, Acre.
- O guarani é L1 de 7 (sete) professores na Ramiro Noronha e de 10 (dez)
na Maria Lígia.
No entanto, quando indagados sobre o uso que fazem das línguas na escola,
a maioria indica que só usa o português e que jamais usam a língua guarani. O
espanhol, mesmo sendo língua que pode ser acolhida como L2 no currículo da
escola, apresenta também baixo índice de uso, como se vê no quadro 2.

Escola No. de professores que No. de professores que


falam espanhol fora da falam espanhol na es-
escola cola
Ramiro Noronha 12 05
Maria Lígia 09 03

32
Observatório Política Linguística em
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

Durvalina Estilbem de 01 00
Oliveira
Floriza Bouez 03 00
Bela Flor 02 00
Quadro 2: Usos do espanhol dentro e fora da escola pelos professores
Fonte: Diagnóstico sociolinguístico OBEDF, 2011.

A explicitação desses resultados aliada a todo o processo de concepção,


realização, sistematização e análise das informações envolvendo professores
e gestores das escolas, possibilitou rica discussão sobre o multilinguismo
funcional da comunidade escolar e seu entorno e seu apagamento no espaço
escolar. O confronto da realidade multilíngue com a prática monolíngue da
escola repercutiu fortemente na auto avaliação de docentes e gestores e na
avaliação das condições do ensino. Desencadeava-se, assim, uma pequena
transformação no modo dos professores verem e compreenderem o papel
das línguas em sua história, sua formação e em sua atuação profissional. Esse
pode ser considerado um dos mais valiosos resultados do Projeto.

4.2 A escola é plurilíngue, e agora?

No início do OBEDF, um levantamento prévio junto às escolas indicava


não haver crianças e jovens falantes de outras línguas nas salas de aula.
Embora manifestassem uma compreensão generalizada de que na fronteira
são faladas várias línguas e que é preciso promover o respeito às diferentes
culturas, as escolas conduziam toda a sua prática, em todos os âmbitos, apenas
em língua portuguesa, produzindo, muitas vezes, avaliações equivocadas
sobre as razões do baixo desempenho dos alunos. Foi comum ouvir, durante
o trabalho investigativo, depoimentos dos professores sobre sua “descoberta”
de que “o problema não era que o aluno tivesse algum tipo de retardo ou
limitação intelectual” mas, que ele “não entendia o que o professor falava”.
Comum também foi a compreensão de que determinado aluno nunca
respondia simplesmente “porque não falava português”. Esse tipo de relato
esteve presente em todas as escolas. A título de exemplo, temos o recorte que
segue:

33
Antes da chegada do OBEDF na escola, nunca se havia pensado sobre
o que acontecia com os alunos, por não se dar o devido valor à sua
origem, cultura e língua. Nem mesmo os professores que também têm
fluência nas três línguas (espanhol, guarani e português) tinham a
iniciativa de realizar as explicações na L1 (Língua Materna) dos alunos.
Essa sensibilidade de olhar cada caso com mais minúcia passou
a ocorrer somente após o início das atividades do projeto na escola.
Assim, como consequência das atividades do projeto, as professoras
bolsistas conseguiram muitos avanços com seus alunos, pois passaram
a valorizar a língua materna do aluno e a utilizá-la para facilitar a
interpretação e os procedimentos no processo ensino-aprendizagem10

A sensibilização experimentada logo deu lugar, no entanto, à angústia


de enfrentar questões sobre o quê e como fazer com as situações. Inúmeros
depoimentos tocam nessa dificuldade, tal como ocorre no trecho que segue:

Pode-se perceber, também, que a dificuldade do aluno Jaminawa para


se desvencilhar do uso dos recursos da modalidade oral em seus textos
escritos, se deve ao fato do professor não refletir junto com seus alunos
sobre as diferenças existentes entre a modalidade oral e escrita. De
fato, percebeu-se quase que um total desconhecimento da realidade
linguística brasileira por parte dos docentes que foram entrevistados,
pois muitos afirmaram que só conhecem três línguas faladas no Brasil:
português, inglês e espanhol. De tal modo, o professor das escolas
brasileiras, notadamente da Escola A, não está preparado para receber
alunos falantes de línguas diferentes do português, especialmente
falantes de uma língua indígena, que é ao mesmo tempo absolutamente
desconhecida e desvalorizada. O professor assim, não compreendendo
o aluno bilíngue a ponto de valorizar esse conhecimento, não vai usá-
lo metodologicamente para o ensino e aprendizagem do português
(Relatório de pesquisa sobre a Escola Pública Municipal de Ensino
Fundamental Messias Rodrigues de Sousa, Sena Madureira, Acre.)

Em ambos os recortes, ficam claros o desconhecimento sobre a diversidade


de línguas no Brasil e os limites do ensino monolíngue em contextos de pluri-
linguismo. O segundo remete, ainda, à face metodológica e didática da ques-
tão, salientando a falta de formação do docente para lidar com o multilinguis-
mo. Esse é, de fato, um dos pontos de maior repercussão do projeto, porque
traduz a ausência, e consequente urgência, no Brasil, de políticas educacionais
que atendam a um ensino bi ou plurilíngue. Além disso, traduz a necessidade
de uma nova visão sobre o lugar das línguas na formação dos alunos e dos
10
Tomamos a liberdade de inserir nesse nosso texto excertos dos textos de colegas desse
mesmo livro.

34
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

docentes. Uma visão que, além do velho posto destinado à(s) língua(s) estran-
geira(s), dê também lugar às línguas brasileiras e de fronteira como geradoras
e articuladoras de conhecimento.
Conforme ficou ressaltado no OBEDF, mas também no PEIBF e em
fóruns de debates como o I Seminário em Gestão de Educação Linguística
de Fronteira do MERCOSUL11, o debate que se coloca diz respeito a
diretrizes para uma política pública voltada à gestão das línguas brasileiras
no ensino. Entre os eixos a serem contemplados, o OBEDF indica a urgência
em promover uma discussão e dar orientações sobre as especificidades e
potencialidades dos processos de aprendizagem e ensino que resultam da
presença de falantes várias línguas brasileiras em relação à língua portuguesa,
considerando, também, o lugar e função próprios dessas línguas em face das
línguas estrangeiras ensinadas nas escolas. Falamos, portanto, da urgência de
diretrizes para uma política linguística para o ensino público no Brasil.
Considerando as evidências produzidas no âmbito do OBEDF, mas também
no PEIBF e demais iniciativas expostas, ao menos quatro frentes se anunciam
como desafios a serem encarados para que se possa avançar na promoção de
um ensino público bi ou plurilíngue:

1. O desafio da legitimação do multilinguismo no quadro da legislação


educacional brasileira.
Afirmamos anteriormente que, do ponto de vista jurídico, a constituição
de 1988 resguardou para a educação indígena o direito ao ensino bilíngue ou
na língua indígena, e a LIBRAS entrou como língua de instrução no ensino
público a partir de sua cooficialização e regulamentação em 2002 e 2005,
respectivamente. No entanto, todas as demais línguas permanecem excluídas
desse quadro jurídico. Consequentemente, não constam das diretrizes
educacionais instruídas pelo Conselho Nacional da Educação (CNE)12.
Uma demanda instruída pela equipe central do PEIBF para que o CNE
contemplasse essas diretrizes foi formalmente encaminhada em 2010. No

11
I Seminário em Gestão de Educação Linguística de fronteira do MERCOSUL http://semi-
nariogelf.blogspot.com.br/
12
Cf. a Carta do Observatório da Educação na Fronteira OBEDF, produzida durante o III
Seminário do Observatório de Educação na Fronteira: Educação Linguística no Contexto Plu-
rilíngue da Fronteira: ações e perspectivas, realizado em Florianópolis, entre 15 e 18 de maio
de 2013.

35
entanto, a Portaria 798, publicada em 19/06/2012 no Diário Oficial da União,
instituiu o Programa das Escolas Interculturais de Fronteira (PEIF) excluindo
do nome, justamente, o bilinguismo. Nesse mesmo alinhamento assistiremos
ao veto da Presidência da República, em 2015, ao Projeto de Lei No. 5.954 de
2013 (No. 186/08, no Senado), que havia sido aprovado no Senado Federal e
que garantia às línguas indígenas o lugar de línguas de instrução em cursos de
nível superior.
Independentemente da intencionalidade ou não dos atos, ambos reforçaram
o silenciamento das línguas brasileiras nos quadro jurídico e administrativo da
educação pública em nível federal. No entanto, as atuais políticas linguísticas
do INDL e da Cooficialização pressionam esse monolinguismo do Estado
Nacional e poderão suscitar novas iniciativas perante o CNE.

2. O desafio da produção de informações sobre a realidade linguística das


escolas e do país.
A ausência de um censo linguístico para todas as línguas brasileiras conduzido
pelo IBGE constitui um impeditivo para o planejamento de políticas linguísticas
adequadas ao multilinguimo desse século XXI (cf. neste mesmo livro, o texto
de G. M. de Oliveira) e produz, como uma consequência, o desconhecimento
sobre as línguas brasileiras. Esse desconhecimento, como foi mostrado nos
depoimentos, conduz a equívocos no diagnóstico dos processos (e dificuldades)
de aprendizagem que comprometem, na maioria das vezes, toda a trajetória
escolar dessa parcela da população. Novamente, após a coleta parcial no Censo
de 2010, que contemplou apenas a população indígena, várias instituições,
incluindo o IPOL, encaminharam ao IBGE a demanda para inclusão de questões
para todos os cidadãos brasileiros sobre as línguas faladas/usadas em casa no
censo demográfico de 2020. No campo da educação, considerando as graves
consequências para os alunos, seria estratégico agilizar uma abordagem das
línguas através do censo escolar produzido pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), induzindo a inclusão de uma
questão sobre as línguas faladas ou usadas pelos alunos no ato de matrícula,
por exemplo.

3. O desafio da tematização do multilinguimo em programas vinculados ao


ensino público.

36
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

A ideologia de que o ensino no Brasil só pode ser em língua portuguesa


porque esta é a língua de todos os brasileiros - exceto para os indígenas e
população surda - funciona como evidência que se propaga em todas as práticas
vinculadas à educação. A título exemplar, vale citar o Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), um dos mais antigos na história da educação do
país: em nenhum edital do PNLD até o presente momento houve qualquer
instrução para que as propostas encaminhadas contemplassem abordagens
sobre as línguas brasileiras. Os direitos linguísticos dos cidadãos brasileiros
não são sequer considerados nessa frente que atinge todo o território nacional.

4. O desafio da formação docente e da produção de materiais na perspectiva


do multilinguismo.
Criar condições para se conceber e executar políticas de formação e de apoio
didático voltadas ao ensino bi ou plurilíngues constitui um passo fundamental
para a superação do enquadramento monolíngue do sistema de ensino
brasileiro. O monolinguismo trava as possibilidades de se avançar em políticas
linguísticas capazes de garantir uma cidadania atualizada e coerente com uma
sociedade plurilíngue, constituída por múltiplas identidades. Iniciativas como
o OBEDF, PEIBF/PEIF; PROEPO, Licenciaturas nas línguas brasileiras, entre
outras, mostram a necessidade urgente de se alavancar fóruns de debates e
programas de formação docente e de produção de materiais educacionais
que tenham por foco o ensino bi ou plurilíngue como base para qualificação
do ensino e democratização do acesso à educação. Essas ações requerem, no
entanto, como discorreremos no próximo item, uma posição política para que
a adoção de modelos e concepções de ensino bi ou plurilíngue esteja ancorada
nos propósitos de fomento do multilinguismo como condição de inclusão e
acesso à cidadania.

5 O ENSINO BILÍNGUE E PLURILÍNGUE EM UMA COMPREENSÃO


POLÍTICA DO PLURILINGUISMO

O conjunto de pesquisas sobre a educação bilíngue em diferentes modelos


e programas de ensino e sobre os seus efeitos para a formação acadêmica
dos alunos (FREEMAN, R. D., 1998), assim como as críticas aos modelos

37
idealizados de bilinguismo e de sujeito bilíngue (MAHER, 2007), são vias para
aprofundar o debate no âmbito do OBEDF e do sistema de ensino público no
Brasil. Considerando, no entanto, o foco assumido nesse texto, destacaremos,
a título de fechamento, alguns desdobramentos políticos e pedagógicos
implicados na evidência do multilinguismo no espaço escolar.
Os resultados da pesquisa do OBEDF indicam que a presença de alunos,
professores ou gestores falantes de outras línguas nas escolas é um fato
absolutamente ignorado. Indicam, também, que a realização de diagnósticos
age sobre a percepção da realidade linguística, permitindo que todos
questionem os padrões monolíngues e estejam sensíveis ao valor positivo
das línguas e dos saberes que elas instituem. No entanto, explicitação do
multilinguismo na escola desencadeou questionamentos sobre o despreparo
dos docentes para lidarem com as várias línguas, a falta de materiais didáticos
e ausência de cursos de formação voltados ao ensino bilíngue. Esse quadro,
quando colocado diante daquele antes descrito, de um Brasil com mais de
300 línguas e um dos 9 países mais plurilíngues do mundo, demonstra a
relevância em se ter, no país, a definição de políticas linguísticas voltadas ao
multilinguismo. Trata-se, em nosso ponto de vista, de uma ação estratégica
para enfrentar o crescimento exponencial de perda de línguas (UNESCO
Atlas of the World’s Languages in Danger). Ou seja, consideramos que uma
política pública para o ensino bi ou plurilíngue no Brasil deve ser pensada com
estratégia de formação e de fomento do multilinguismo na perspectiva de um
Estado multicultural.
Pela terminologia proposta na Carta Europeia do Plurilinguismo (2009),
plurilinguismo significa o domínio, pelo falante, de mais de uma língua,
enquanto que o multilinguismo equivale à presença de mais de uma língua
em um espaço.
Em um contexto histórico de extremo monolinguismo aliado a várias
formas de preconceitos linguísticos e culturais como o brasileiro, impõem-se
a necessidade de avançarmos em uma abordagem do multilinguismo ligada
a uma política do plurilinguismo, no sentido de fazer do plurilinguismo
uma pedagogia de fomento do multilinguismo como ampliação dos direitos
cidadãos.
Altenhofen e Broch vincularam o sentido de plurilinguismo a uma ação de
valorização do “papel das comunidades de fala e da educação visando a uma

38
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

“pedagogia para o plurilinguismo” que não apenas proteja o multilinguismo


(ou diversidade linguística), mas também desenvolva o plurilinguismo (ou
pluralidade linguística) como postura (ou habilidade do indivíduo) de se
constituir plural (linguística e culturalmente)” (ALTENHOFEN, C; BROCH,
I. 2011: 17).
Assumindo também essa perspectiva, afirmamos ainda que é necessário
uma política para o plurilinguismo como parte de um novo posicionamento
do Estado brasileiro como Estado plural, não-monolíngue. A Constituição
Federal de 1988 e, a partir dos anos 2000, o aparato jurídico garantindo
direitos de minorias e os novos direitos linguísticos expressam a luta para a
construção de um Estado menos excludente. No entanto, o multiculturalismo
como prática do Estado, como princípio organizador das suas ações e do seu
aparelho administrativo constitui ainda enorme desafio e deve permanecer
como bandeira de luta, uma vez que é nesse campo do direito aos bens
públicos que se pode equalizar os objetivos de um plurilinguismo voltado para
uma cidadania mais equânime. O plurilinguismo como qualificação individual
não necessariamente se reverte em melhor entendimento e convivência do
sujeito com o seu “outro próximo” pois pode se dar em uma perspectiva
de formação voltada para fora, alheia ao espaço local. Como bem mostra
Kymlicka (2003), há tensões e contradições entre os princípios que fundam
um Estado multicultural e os que podem reger a formação dos sujeitos.
Impõem-se, portanto, como parte de uma política pública para uma educação
bi ou plurilíngue, a reflexão sobre as contradições que perpassam a relação
dos sujeitos entre si e deles com as línguas, os conhecimentos e o Estado e
a assunção de uma perspectiva política que coloque o plurilinguismo como
prática no e do sistema de ensino e pilar das formas de funcionamento das
instituições.
O OBEDF, assim como o PEIBF/PEIF, demonstraram que o ensino
e a aprendizagem nas e das línguas nos espaços escolares constituem uma
possibilidade de reflexão sobre elas e de intervenção em suas dinâmicas,
quebrando preconceitos e promovendo novos sentidos e equilíbrios entre as
distintas comunidades linguísticas.
Se não forem ignoradas, as línguas das comunidades linguísticas podem
figurar como recurso educativo, e não como problema (RUIZ, 1984; BERGER,
2015) permitindo avançar em abordagens teóricas e metodológicas em ao

39
menos três frentes: i) sobre seu papel nos processos de aprendizagem da
língua portuguesa, ii) sobre suas funções sociais e comunicacionais, ligadas
por exemplo, a sua preparação para usos tecnológicos, e iii) sobre sua
relevância em um mercado de trabalho que exige, cada vez mais, competências
linguísticas dos sujeitos. Estas são algumas linhas de reflexão que, cedo
ou tarde, deverão ser tematizadas se se pretender, de fato, construir uma
educação respeitosa das línguas e politicamente qualificada para uma melhor
gestão dos conhecimentos, que são, fundamentalmente, linguísticos.

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43
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

EDUCAÇÃO BILÍNGUE EM
ZONA DE FRONTEIRA:
1
PENSANDO MODELOS E PROGRAMAS
Márcia R. P. Sagaz2

RESUMO

O presente artigo apresenta possibilidades de modelos de educação bilíngue a


partir da leitura de diversos estudiosos. Oferece ao leitor um quadro sistematiza-
do dos elementos integrantes em cada modelo, segundo seus objetivos educacio-
nais, sociais, políticos. E, a partir desta apresentação analisa as diretrizes aponta-
das pela Portaria MEC 798 de 10/06/2012 que versa sobre educação intercultural
para zona de fronteira no Brasil.

Palavras-chave: Modelos de educação. Bilinguismo. Política pública.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, o ensino bilíngue tem sido amplamente discutido. Porém, as


discussões têm permanecido restritas à educação escolar indígena, garantida
pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96)
em seus artigos 210, parágrafo 2º, e 32, parágrafo 3º, respectivamente. Os
documentos preconizam que “O ensino fundamental regular será ministrado
em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também
a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendiza-
gem.” (BRASIL, 1988) [grifo nosso].

¹ Este ensaio originou-se na Dissertação de Mestrado intitulada “Projetos Escolas (Interculturais)


Bilíngues de Fronteira: análise de uma ação política-linguística”, apresentada no PPGL/UFSC,
2013.
² Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguísticas/UFSC e Coordenado-
ra Executiva do Ipol Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística.

45
Contudo, no Brasil, além das 2743 línguas indígenas, há mais de 30
línguas de imigração4. Essas línguas ainda não têm um espaço consolidado
para discussão e ações de legitimação5. Do mesmo modo, as regiões de
fronteira, no que diz respeito às línguas, têm recebido pouca atenção, seja pela
implementação de projetos de execução governamentais, seja em projetos de
pesquisa.
Entre as iniciativas que dizem respeito às políticas públicas e ao português
e espanhol presentes nas zonas de fronteira, a partir de 2004, os governos do
Brasil e da Argentina promoveram o Projeto Escolas Bilíngues de Fronteira,
que foi implementado pelo governo federal por meio da Coordenação de
Formação Continuada do Departamento de Educação Infantil e do Ensino
Fundamental da Secretaria de Educação Básica no Ministério da Educação,
em parceira com o Ministério de Educação da Argentina (2004), do Paraguai,
do Uruguai e da Venezuela, a partir de 2008. Em 2009, passou a se chamar
Projeto Escolas Interculturais Bilíngues de Fronteira.
Por sua vez, o governo federal instituiu, através de publicação no DOU
(Diário Oficial da União), no dia 20/06/2012, da Portaria n. 798, de 19 de
junho de 2012, o Programa Escolas Interculturais de Fronteira, que objetiva
promover a integração regional por meio da educação intercultural e bilíngue.
O programa restringe a participação às escolas instruídas pelo “Modelo de
Ensino Comum de zona de fronteira a partir de um Programa para a educação
intercultural de com ênfase no ensino de português e espanhol” (DOU, 2012).
Esse Modelo Comum vem a ser o Projeto Escolas Interculturais Bilíngues de
Fronteira (PEIBF).
A Portaria 798 deriva, em certa medida, de parecer do IPOL Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística encaminhado à SEB/
DEIEF/MEC, em julho de 2010. O parecer objetivava solicitar ao Conselho
Nacional de Educação (CNE) o “Estabelecimento de Diretrizes Nacionais
que permitam um enquadramento jurídico e administrativo das Escolas
Interculturais Bilíngües de Fronteira” (IPOL, 2010). Já a Nota Técnica,

³ Dados do censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
4
Dados do Relatório GTDL (2007). Altenhoffen e Broch (2011) indicam cerca de 56 línguas fala-
das por descendentes de imigrantes no Brasil.
5
Com o objetivo de discutir esse tema com as comunidades, em 2012 foi criado o Fórum Per-
manente das Línguas Brasileiras de Imigração. Para saber mais ver: http://forlibi.blogspot.com.br/

46
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

elaborada pelo Mec para o CNE, a partir do parecer, tem como objetivo o
estabelecimento de diretrizes gerais para escolas de fronteira. Pois, o PEIBF
esteve durante oito anos (2004 - 2012) somente como Projeto, sem ancoragem
nas instâncias formais. Embora a nota verse sobre o PEIBF, não explicita
em sua ementa6 nem o bilinguismo ou a interculturalidade e as escolas
Interculturais Bilíngues de Fronteira não foramcriadas.
A Portaria 798 estabelece um programa de governo, do qual podem participar
somente as escolas vinculadas ao “Modelo Comum” e, consequentemente,
somente em parceria com países do Mercosul. Fronteiras, por exemplo, com o
Peru e a Bolívia não são incluídas. Uma vez que o PEIF faz parte da estrutura
orgânica do Setor Educacional do Mercosul (SEM), parece que estará posta
a restrição para zonas de fronteira fora do âmbito do Bloco Regional. Já as
escolas que estão em zona de fronteira com países participantes do Bloco
ficam à mercê de oscilações da política internacional, como o que aconteceu
com o Paraguai, suspenso do Bloco Mercosul e que mais recentemente
recusou-se a retornar. Outra restrição é que programas de governo podem ser
extintos a qualquer tempo com a mudança dos dirigentes federais. Além disso,
há o atrelamento ao Programa “Mais Educação”, que ocorre no contraturno,
cuja participação é restrita a certo número de alunos, em função de recursos
financeiros. Também há pais que não aderem, pois não querem que seus
filhos passem todo o dia na escola. Ainda, o ensino bilíngue não integra
a grade curricular da escola. E, finalmente, há a restrição de a ênfase estar
no intercultural e não no bilinguismo, haja vista que o Programa se chama
“Escolas Interculturais de Fronteira”.
Por outro lado, em 2010, um grupo de pesquisadores advindos da
experiência de assessoria ao PEIBF propõe à CAPES o Projeto de Pesquisa
Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF).
É no âmbito do OBEDF que surge este artigo, que versa sobre alguns
conceitos de bilinguismo e sistematiza diferentes programas de educação
bilíngue, com o intuito de contribuir à reflexão sobre a modalidade de educação
bilíngue para zona de fronteira, tratando das diferenças entre modelos que
são, por seus resultados, efetivamente bilíngues e modelos que operam no
sentido do monolinguismo, embora nominados de bilíngues.
6
Ementa: Escolas de fronteira. Estabelecimento de diretrizes gerais. Solicitação de pronuncia-
mento do Conselho Nacional de Educação. (Brasil, não publicado). Acervo do IPOL.

47
2 BILINGUISMO: O QUE É? O QUE PODESER?

Como não há um consenso sobre o que é bilinguismo, vamos rever algumas


possibilidades para esse conceito. Iniciamos pela proposta de Bloomfield
(1933 apud APELL; MUYSKEN, 1996), que define como bilíngue o indivíduo
que domina duas ou mais línguas tal como os nativos.
Concordando com Maher (2007), que indaga quem é esse falante nativo,
a questão é a qual situação de fala a proposta de Bloomfield se refere ao
idealizar o falante nativo; qual é o registro adotado para dada situação,
interlocutores, temas, gêneros discursivos, etc. Pois, para além das questões
linguísticas relevantes na produção de enunciados, Maher (2007) aponta que
há implicações sobre a marca de identidade e história pessoal que incidem
sobre o(s) modo(s) de uso de uma língua, inclusive da materna.
Também Halliday (1989 apud MAHER 2007, p. 72) é bastante rígido ao
definir o sujeito bilíngue como “aquele que funciona em duas línguas em
todos os domínios sem apresentar interferência de uma língua na outra”. Se
quando escreve “domínios” o autor se refere a modalidades, isso vai contra
a possibilidade de o bilinguismo acontecer somente em uma ou duas das
competências; mas, se domínios se refere a práticas comunicativas, isso
pressupõe práticas totalmente controladas, tarefa que pode ser inatingível, até
mesmo para falantes nativos, em especial para atos de oralidade.
Enfim, não nos parece possível definir o falante ideal como o produtor de
uma única variante, pois ser proficiente em uma língua é produzir enunciados
que se ajustem à situação de fala, e isso significa o uso de uma língua bastante
fluída, com variações e variedades.
Por outro lado, há a definição que considera bilíngue o indivíduo que tenha
habilidade em alguma das quatro modalidades (fala, compreensão, escrita,
leitura) de uma língua, além das habilidades em sua primeira língua, segundo
Macnamara (1969 apud APELL; MUYSKEN, 1996). A partir desse conceito, é
possível, por exemplo, definir como bilíngues usuários de Língua Brasileira de
Sinais (LIBRAS), que, além das habilidades que têm em sua língua primeira,
dominam somente duas das habilidades em português (leitura e escrita) por
uma limitação física na produção e recepção de sons.
E entre esses dois conceitos o que há? Maher (2007, p. 74) afirma que

48
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

[...] a competência comunicativa de um sujeito bilíngue só pode ser


compreendida e avaliada, de fato, tendo como referência as funções
que ambas as línguas têm para ele [...].

Ou seja, para definir se um sujeito é ou não é bilíngue, é preciso estabelecer


quais sãos as competências linguísticas necessárias para o sucesso de uma
determinada prática. Assim, se para determinada prática é necessário que o
sujeito leia em uma língua que não a sua primeira e ele o faz, ele é bilíngue,
mesmo que não a fale, por exemplo. Já a oralidade, que per se inclui a
compreensão, pode ser de domínio de um falante que não escreve em uma
dada língua, e este ser considerando bilíngue para situações que não exijam
a escrita. É relevante lembrar que isso ocorre também com nativos, seja pelo
analfabetismo ou por não produzir gêneros textuais que não fazem parte do
seu repertório.
Nota-se que essa posição sobre bilinguismo é bastante flexível e se aproxima
do falante real. Para coroar essa flexibilidade, Maher (2007, p. 79) afirma que

[...] existem vários tipos de sujeitos bilíngues no mundo, porque o


bilinguismo é um fenômeno multidimensional. Somente uma definição
suficientemente ampla poderá abarcar todos os tipos existentes. E,
talvez essa fosse suficiente: o bilinguismo, uma condição humana muito
comum, refere-se à capacidade de fazer uso de mais de uma língua

3 LÍNGUAS E BILINGUISMO NO OBEDF

As zonas de fronteira envolvidas no OBEDF compreendem uma língua


oficial do Brasil, o português, e as línguas do Paraguai e da Bolívia7, o
espanhol, o guarani, o jopará, entre outras menos frequentes, mas não menos
importantes, tais como algumas línguas indígenas. Logo, embora a realidade
fronteiriça se revele por vezes plurilíngue, este artigo adotará a perspectiva
que envolve duas línguas.
Das línguas que circulam no âmbito do OBEDF (em escolas localizadas em
Ponta Porã/MS; Guajará Mirim/RO e Epitaciolândia/AC), o espanhol, tal qual
o português, é uma língua internacional e, segundo dados do site Portalingua,
é oficial em 21 países, estando entre as cinco línguas mais faladas no mundo. O

⁷ Para mais informações sobre a presença das línguas ver Sagaz e Morello (2013).

49
status de língua não se mensura somente pelo número de falantes – é relevante
mencionar que o espanhol está presente em pelo menos quatro continentes
como língua oficial de 21 países dos 135 onde é falado. Porém, o Diagnóstico
Sociolinguístico realizado no âmbito do OBEDF revela que nas fronteiras
visitadas o espanhol é uma língua minoritária na relação com o português, do
lado brasileiro, em especial.
O que parece ocorrer é que o espanhol falado na fronteira não é considerado
de prestígio. O status de língua internacional está reservado, no imaginário,
ao espanhol standard da capital e até mesmo ao da Espanha pelos brasileiros
e paraguaios/bolivianos. Muitas vezes – conforme resultados de questionários
sociolinguísticos – não é nominado de espanhol e sim de espanhol boliviano e
também chamado simplesmente de “paraguaio”, “boliviano” e “castelhano8”.
Mesmo quando existe no questionário a opção espanhol entre as respostas
possíveis, respondentes optam por relacionar o nome da língua ao lugar,
regionalizando-a.
Esse quadro produz um autoimpedimento para o bilinguismo (português-
espanhol), pois uma das línguas envolvidas não é considerada de prestígio, e
o bilinguismo por vezes é considerado um obstáculo educacional. Por outro
lado, bilinguismo de prestígio (no qual ambas as línguas são majoritárias)
seria uma vantagem, conforme escreve Maher (2007). Exemplo disso são as
escolas bilíngues de elite do Brasil, nas quais as crianças aprendem inglês9.
Veja-se que Lietti (1983) nomeia dois tipos de bilingüismo: o primeiro, no
qual duas línguas majoritárias estão envolvidas, bilinguisme des riches; e o
segundo, no qual estão envolvidas uma língua minoritária e uma majoritária,
bilinguisme des pauvres. O guarani é outra língua que goza do status de
oficial, mas não internacional. Na fronteira, sofre o desprestígio ainda mais
do que o espanhol. Coloca-se, então, um quadro peculiar, no qual se tem,
no caso do português e do espanhol, duas línguas majoritárias. Uma delas é
tomada por minoritária, do lado brasileiro, na relação com o português, mas
que é dotada de todo instrumental, pois majoritária e faz parte, em função
dos meios de comunicação – tv, rádio, jornais, anúncios –, do cotidiano em

⁸ Parecem não ser considerados como sinônimo de espanhol, mas como um dialeto do espanhol,
ou pelo menos como um espanhol de fora da Espanha.
⁹ Para saber mais ver: AGÊNCIA BRASIL (2013).

50
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

espaços de legitimação das crianças que moram no Paraguai, como é o caso de


alunos das escolas localizadas em Ponta Porã/MS – Brasil.
Não há, até onde podemos afirmar, estudos sobre línguas nas fronteiras.
Assim, estudos sobre programas implementados no Canadá, Inglaterra, EUA,
Nova Zelândia, Bélgica, Itália, Alemanha, Gales, México, descritos em Baker
(1993) e Appel; Muysken (1996) e Hamel (2001) nos servirão de apoio para a
fundamentação teórica.

4 MODELOS E PROGRAMAS POSSÍVEIS

Diferentes autores utilizam distintas nomenclaturas e até mesmo


organizam os modelos e seus programas de maneira ligeiramente diferentes.
Baker (1993) utiliza as noções de Modelo Fraco e Modelo Forte e agrupa
os programas a partir dessa distinção, pois aponta para a generalização do
termo ensino bilíngue e chama a atenção para duas diretrizes distintas: a)
ensino para promoção de duas línguas e b) ensino para crianças com língua
minoritária.
Já Hamel (2001), refletindo sobre a educação bilíngue indígena no México,
organiza os modelos de educação bilíngue em: a) modelo de assimilação, em
que se pode utilizar até três programas distintos: (i) submersão total; (ii)
submersão relativa; (iii) por transição sistemática; b) modelo de preservação
da interculturalidade, que utiliza até dois programas (i) de equilíbrio e (ii)
revitalização; e c) modelo de enriquecimento, que utiliza o programa imersão10.
Esse autor organiza os modelos a partir de cada objetivo social e educativo:
assimilação ou enriquecimento linguístico.
No Programa de Submersão Total, o aluno é imerso em uma sala de aula
na qual é utilizada uma língua que não a sua materna para instrução, o que
o obriga a abandonar a sua primeira língua – naquele espaço e contexto –
e aprender a língua da sala de aula, assim como tão somente as práticas de
letramentos da língua de instrução. Maher (2007) aponta que esse tem sido
o modelo utilizado quando há inclusão de alunos surdos em comunidades
escolares de ouvintes11. Igualmente, tem sido utilizado esse modelo em escolas
10
Tradução minha, do original em espanhol.
11
Situação que vem paulatinamente sendo transformada nos últimos anos.

51
localizadas em algumas zonas de fronteira do Brasil: crianças não brasileiras
estão matriculadas em escola brasileira, e por vezes, inclusive, moram no
país vizinho, como é o caso de fronteiras secas, como em Ponta Porã, Mato
Grosso do Sul, fronteira com o Pedro Juan Caballero, no Paraguai, conforme
diagnóstico sociolinguístico realizado pelo IPOL para o Observatório da
Educação na Fronteira.
Em casos como esse, em geral, a escola acolhe as crianças monolíngues
em espanhol ou guarani; mas a escola não é bilíngue (português-espanhol/
guarani). Assim, temos duas situações: sujeitos monolíngues em espanhol
submersos em uma cultura escolar monolíngue em português e/ou indivíduos
bilíngues submersos em uma cultura/sociedade monolíngue. Ou seja, o projeto
da escola visa ao monolinguismo. No que se refere aos objetivos sociais, há,
então, a assimilação através da meta de um país, uma língua.
Já o modelo Assimilacionista por programa de transição a rigor consiste
em aulas em L1 nos primeiros anos escolares e em L2 nos anos finais. É o
modelo adotado para a educação indígena em toda a América Latina, segundo
Rebolledo12. Esse modelo é qualificado como desastroso por Hornberger
(2009) e violento por Maher (2007), uma vez que a criança chega monolíngue
em L1, passa por bilinguismo – como acesso à L2 – e finaliza sua vida escolar
monolíngue em L2 em uma total desvalorização, pela escola, dos saberes e das
práticas de letramento em sua língua materna.
O modelo de Preservação Intercultural pressupõe uma sala de aula cujos
alunos são majoritariamente falantes de língua minoritária e terão aulas durante
toda a vida escolar tanto na língua dominante como na língua minoritária.
Baker (1993) subdivide esse programa em de manutenção e de manutenção
evolutiva: no primeiro, há uma estabilização da língua que se mantém como
língua do lar; e no segundo a língua ganha o lugar de língua de ensino e segue
“evoluindo”, pois passa a ser equipada para desempenhar tal função.
Por último, o modelo de Enriquecimento Linguístico por bilinguismo
aditivo por programa de imersão pressupõe que os alunos sejam imersos em
salas de aula com uma segunda língua como língua de instrução. Esse modelo
tem como foco salas de aulas nas quais a maioria dos alunos é monolíngue na
língua majoritária.

12
Prof. Dr. Nicanor Rebolledo, em aula ministrada no ano de 2012, em curso na Pós-Graduação
em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.

52
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Esse último modelo passará de um para quatro programas para Baker


(1993), que organizou os modelos e programas de ensino a partir dos objetivos
amplos definidos por Ferguson, Houghton e Wells (1977). A tabela original de
Baker (1993) foi adaptada e acrescentaram-se informações a fim de construir
um panorama mais detalhado dos modelos e programas possíveis.
Todos os elementos que constituem os quadros foram construídos a
partir das leituras de Baker (1993) e Appel (1996)13. Os quadros organizam os
diferentes modelos a partir dos objetivos linguísticos, a saber: monolinguismo;
monolinguismo relativo/bilinguismo limitado e bilinguismo, aproximando-
se, assim, da estruturação proposta por Hamel (2001).
Dessa forma, entre outros elementos, o Quadro 1 permite observar que
no programa também nominado de Imersão Estruturada14 a L1 (MI)15 não é
valorizada e o resultado é o monolinguismo em L2 (MJ)16. O mesmo acontece
com o programa com classes de retirada. O programa de submersão [total]
sequer admite a L1 (MI) em salas de aula e o segregacionista opera no sentido
inverso, impedindo o acesso de bens linguísticos e culturais na língua dominante.

Quadro 1 – Modelo de Subtração17


Tipo de Língua Língua da Consequências Objetivo social Objetivo Objetivos
programa do aluno sala de aula e educativo linguístico amplos
Submersão Minoritária Língua Majoritária A L1 (MI) não se Assimilação Monolinguismo Criar ideais sociais,
Nenhuma desenvolve e é políticos e econômi-
manifestação de substituída pela cos comuns a todos
L1 (LM) em sala L2 (MJ) (uma língua = uma
de aula nação)

[Submersão] Minoritária Língua Majoritária A L1 (MI) não se Assimilação Monolinguismo Criar ideais sociais,
Por Imersão O Professor usa desenvolve e é políticos e econômi-
estruturada uma forma substituída pela cos comuns a todos
simplificada da L2 (MJ) (uma língua =
L2 (MJ) e uma nação)
inicialmente
pode aceitar
contribuições das
crianças com
L1 (MI)

13
As nomenclaturas utilizadas para denominar os programas podem sofrer variação, segundo
Baker (1993). Por exemplo, os EUA utilizam certas nomenclaturas e o Canadá outras, porém
com o mesmo significado. Os programas também podem se subdividir para além do apresentado
aqui.
14
O próprio autor orienta para que se evite esse termo.
15
Primeira Língua, minoritária.
16
Segunda Língua, majoritária.
17
A tradução, quando há, é a partir do espanhol e de nossa responsabilidade.

53
Quadro 1 – Modelo de Subtração (continuação)
Tipo de Língua Língua da Consequências Objetivo social Objetivo Objetivos
programa do aluno sala de aula e educativo linguístico amplos
[Submersão] Minoritária Língua Majoritária A L1(MI) não se Assimilação Monolinguismo Criar ideais sociais,
Com aulas [com aulas de desenvolve e políticos e econômi-
de retirada / ‘saída’ em L2] é substituída cos comuns a
Com Língua Grupos de alunos pela L2(MJ) todos (uma língua =
Majoritária têm aulas em L2 uma nação)
Protegida (LM) para criar
condições aos
alunos de acom-
panhar o conteúdo
das disciplinas em
L2 (LM)

Segregacio- Minoritária Língua minoritária A L1(MI) se Assimilação Monolinguismo Manter relação de


nista [forçada, desenvolve, subordinação entre
não eleita] não há os falantes de MJ
Aulas somente aprendizado (elite/poder) e MI
em L1(MI) de L2 (MJ)

O Quadro 2 apresenta o programa de transição muito similar ao programa


de imersão estruturada (Quadro 1), embora o autor defina como objetivo
linguístico no segundo caso o monolinguísmo relativo. O programa separatista
assemelha-se ao segregacionista, porém opera no sentido de superestimar a
língua MI, em detrimento da MJ, sendo esse tipo de ensino uma opção dos
próprios falantes da MI.

Quadro 2 – Outros Modelos de Subtração


Tipo de Língua Língua da Consequências Objetivo social Objetivo Objetivos
programa do aluno sala de aula e educativo linguístico amplos
Transição Minoritária Passa da minori- L1(MI) Assimilação Monolinguismo Criar ideais sociais,
tária à majoritária substituída por Relativo políticos e
Precoce: A L1(MI) L2(MJ) econômicos
utilizada para gradativamente comuns a todos
acessar a L2(MJ) (uma língua = uma
até dois anos. nação)

Separatista Minoritária Tardia: A L1(MI) A L1(MI) se Separação/ Bilinguismo Não ter a L1


utilizada para desenvolve e Autonomia Limitado subsumida por L2,
acessar a L2(MJ) não há aprendi- Impossibilidade como forma de
até sexto ano.40% zado de L2 (MJ) de pluralidade manutenção política,
L1(MI) – 60%L2 religiosa ou cultural
(MJ) do grupo

Língua Minoritária
[sem eleição]

Geral com Majoritária Língua Majoritária A L1(MI) se Enriquecimento Bilinguismo Oferecer habilidades
ensino de LE [com aulas em LE] desenvolve e limitado Limitado. Os linguísticas
[‘Goteo’] Disciplina de LE há pouco resultados, comerciais
– 30min/dia aprendizado de dependendo
LE/L2 da motivação,
são bastante
limitados

54
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Quadro 3 – Modelo de Adição


Tipo de Língua Língua da Consequências/ Objetivo social Objetivo Objetivos
programa do aluno sala de aula Metodologia e educativo linguístico amplos
Imersão Minoritária Bilíngue Entrada no Programa: Precoce: Plurilinguismo e Bilinguismo Acesso a bens
[com ênfase Inserção em classe com L2 (LM) Enriquecimento Biletramento culturais em
inicial à L2/ no pré-escolar duas línguas;
minoritária] Média: Inserção em classe com ampliação de
L2 (LM) no ensino fundamental capital intelec-
(anos iniciais) tual/cultural
Tardia: Inserção em classe com
L2 (LM) no ensino fundamental
(anos finais em diante)
Tempo de Exposição à Língua:
Total: 100% em L2 (MI)
>> 80% >> 50%
Parcial: 50% em L2 (MI)

[Manuten- Minoritária Bilíngue [com • Aulas de língua patrimonial Manutenção Bilinguismo Resgatar a L1
ção] Língua importância [aulas 2,5 h/ semana] plurilinguismo e Biletramento (MI) ou preve-
Patrimonial em L1/ • L1 (MI) meio de instrução – enriquecimento nir a extinção
• Proteção minoritária] 50% do período L2 (MJ) lições
• Manuten- e tarefas
ção Evolutiva

Dupla Majoritária Minoritária e Uma língua = Um período Manutenção Bilinguismo Acesso a bens
Direção/Duas (parte da Majoritária Exposição a cada uma das plurilinguismo e Biletramento culturais em
Línguas sala) e línguas em dias alternados ou enriquecimento. duas línguas;
Minoritária períodos alternados Falantes de MI ampliação de
(parte da MI meio de instrução e MJ integrados capital intelec-
sala) MJ meio de instrução em todas as tual/cultural;
Emprega as MI e MJ em lições/ aulas. Alteridade
tarefas garantindo equilíbrio de Eliminação ou
assuntos em cada língua. diminuição de
Evita-se a alternância de língua discriminação
em uma aula – buscando-se étnica
manter os limites de cada uma.
Quem domina uma língua ajuda
o(s) colega(s) no dia em que
sua língua 1 é a de instrução
(cooperação e amizade).
Quando não há professores
bilíngues pode-se ter uma dupla,
mas desde que haja compro-
metimento de ambos com o
bilinguismo e multiculturalismo.
Participação dos pais (pais
de MJ podem precisar ser
‘convencidos’).
Participação ativa dos pais de
MI com seus conhecimentos
auxiliando o professor. Ambiente
Aditivo Bilingue e Multicultural

Bilíngue Majoritária Duas línguas L1 Língua de instrução L2 Enriquecimento Bilinguismo Identidade


Geral majoritárias Inicialmente como disciplina, As duas ou Biletramento supranacional
posteriormente se converte em mais línguas se Fomento à
língua de instrução e volta a ser desenvolvem pluralidade
disciplina – com a instrução –
depois de certa apropriação

55
No Quadro 3, concentram-se os programas de imersão com vistas ao
bilinguismo. São quatro programas que contemplam alunos com L1 (MJ) e um
programa para alunos com L1 (MI), dividido em duas subcategorias: Proteção
e Manutenção Evolutiva. Este último programa é utilizado, por exemplo, para
crianças de famílias de imigrantes, nos estudos referenciados neste artigo.
O modelo de Adição nos oferece quatro programas distintos, que têm
como objetivo linguístico o bilinguismo. O programa de Dupla Direção tem
sido o aplicado no Programa de Segundas Lenguas em Educación Primária
do Uruguai.
Na zona de fronteira do Brasil e Uruguai, por iniciativa governamental, o
Uruguai, desde 2003, passou a tratar das línguas em suas escolas na fronteira
com o Brasil de maneira a potencializá-las.
Entende-se o Programa de Segundas Lenguas em Educación Primária
uruguaio como uma das referências para pensar as línguas em algumas
zonas de fronteira do Brasil, pois utiliza o modelo de Dupla Direção. Por esse
motivo, abriu-se uma seção para relatar, mesmo que brevemente, a iniciativa
uruguaia.

4.1 Escolas Bilíngues e Bidialetais de Fronteira do Uruguai18

Os alunos das escolas de fronteira do Uruguai localizadas nos


departamentos de Artigas, Rivera, Cerro Largo e Rocha não usam (ou usam
pouco) de maneira cotidiana o espanhol, língua oficial do seu país - e tampouco
é falado o português dito standart do Brasil, país vizinho. A língua mais falada
é o portunhol, também denominado DPU (Dialetos Portugueses do Uruguai),
que mais recentemente tem sido nomeado de Português Del Uruguay.
Por essa situação fronteiriça, o Departamento de Segundas Lenguas em
Educación Primária do Consejo de Educación Inicial y Primaria implementou
nas escolas que funcionam em tempo completo, isto é, em período integral, o
modelo de imersão dual. Ou seja, com paridade de tempo entre o português
standard e o espanhol, com espaço também para a valorização do português
18
Além da bibliografia citada, muitas das informações sobre o Programa de Imersão Dual foram
fornecidas por Javier Geymonat, membro da equipe técnica do Programa de Segundas Lenguas
em Educación Primária, em entrevista virtual, a quem agradecemos. Possíveis equívocos são
de nossa responsabilidade.

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da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

local através de atividades orais. Sobre a valorização do português local


(português do Uruguai) incide a perspectiva bidialetal do Programa.
As escolas contam com ensino fundamental (1º ao 6º grau) e organizam
a grade de trabalho cada uma a seu modo: há as que intercalam os períodos
com aulas em português e em espanhol, outras o fazem intercalando os dias
inteiros de imersão nas línguas. Estas últimas iniciam cada semana letiva com
uma das duas línguas para contemplar o equilíbrio ao tempo de imersão.
Há também um programa para escola de período parcial, intitulado
“Programa de Contenidos Curriculares”. Nesse modelo os professores
ministram aulas em L1 apenas três ou quatro horas por semana. Mas esse não
é considerado um modelo de educação bilíngue pelo Programa de Segundas
Lenguas, mas um programa clássico de ensino de línguas. No programa
de imersão dual, as aulas são planejadas por ambos os professores (“de”
português e “de” espanhol) de cada disciplina, que são organizadas em torno
de eixos temáticos. Não há repetição ou tradução de conteúdos.
Em 2006, os gestores do Programa realizaram uma série de entrevistas
para avaliar a sua recepção e concluíram que para os pais entrevistados dois
pontos principais são tomados como positivos, referentes ao Programa de
Imersão Dual. São eles: maiores possibilidades de trabalho, em função de
estarem tão próximos ao Brasil (este relato data de 2007. Em 2013, imagina-
se que essa expectativa, em função do crescimento econômico do Brasil, deve
ser ainda maior), e crença de que o português do Uruguai é uma mescla de
língua ou um dialeto, portanto, um português errado. Logo, estudar português
na escola seria uma maneira de alcançar o português correto. Entre os valores
negativos está o temor de que as crianças não possam manter as duas línguas
separadas. Já em relação aos alunos, Brovettto et al (2007) descreve que
as crianças gostam de estudar português na escola, ainda que não haja nos
relatos publicados dados sobre as especificações dessa inclinação positiva.
Provavelmente, as crianças não discorreram sobre os motivos por serem ainda
muito jovens para uma reflexão metalinguística ou mesmo sociolinguística.
Finalmente, para os professores a maior preocupação e o desconforto
no início do programa eram de que os alunos não conseguissem separar as
línguas, passando a usar uma língua indefinida (preocupação também dos
pais), e a possibilidade de o português influenciar negativamente na aquisição
da leitura e escrita em espanhol. Esse temor ficou no passado. Temiam pais e

57
professores pelo que se entende conceitualmente por “semilinguismo”, que,
de maneira geral, é competência parcial em duas línguas, sem o domínio de
nenhuma das duas, em função de variados motivos. Contudo, segundo os
relatos, os alunos não apresentam interferências e são capazes de separar as
línguas e utilizá-las adequadamente nos âmbitos correspondentes.
Há um aspecto não linguístico mencionado pelos professores que diz respeito
à mudança de atitudes dos falantes nativos de espanhol em relação aos que têm
o português como língua materna, assim como a redução do impacto sobre
essas crianças no ingresso da vida escolar. Para os professores, o Programa
tem sido importante para “fazê-los [os alunos] sentir-se identificados com una
propuesta que os motiva e respeta.” (BROVETTTO et al , 2007, p. 39)
Em relação às atividades relacionadas aos aspectos de bidialetalismo, há
pouco a apresentar aqui, restringindo-se à informação de que há atividades,
mas talvez não estejam contempladas no currículo escolar, restritas a eventuais
participações da comunidade em sala de aula.
Como varia o funcionamento das línguas, dependendo da zona de
fronteira, há possibilidades de diferentes programas a serem utilizados, em
função do perfil do aluno e do status das línguas e dos objetivos linguísticos,
educacionais, sociais, econômicos, ideológicos e políticos envolvidos.
É claro que modelos e programas são parâmetros e como tal somente
auxiliam a construir novas possibilidades para a educação bilíngue, de acordo
com cada realidade presente em cada zona de fronteira.

5 CONCLUSÃO

Concluímos que programas efetivamente bilíngues são constituídos de


um conjunto de elementos que não estão presentes na indicação do Programa
Escolas Interculturais de Fronteira – haja vista algumas das restrições e
indicações para sua realização apresentadas na introdução deste texto,embora
tenha como premissa escolas instruídas pelo “Modelo de Ensino Comum de
zona de fronteira a partir de um Programa para a educação intercultural com
ênfase no ensino de português e espanhol”. Embora seja uma importante
iniciativa, inclusive garantindo recursos materiais para promoção de
escolas interculturais de fronteira, ao menos no que diz respeito à formação

58
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da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

continuada, dilui mais do que reforça a possibilidade de educação bilíngue em


zona de fronteira e sua efetiva institucionalização em aspectos fundamentais,
com vistas a uma educação bilíngue forte e aditiva.

REFERÊNCIAS

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59
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20 de dezembro de 1996.

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Disponível em: <http:// portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Escolafronteiras/
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RELATÓRIO do Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística do Brasil (2006-


2007). Brasília: Câmara dos Deputados, 2007.

60
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

ALFABETIZAÇÃO DE ALUNOS
PLURILÍNGUES NAS ESCOLAS
BRASILEIRAS DE FRONTEIRA
Antonia Kelly Garcete Rodrigues1
Haidee Benites Mongez2
Maria Erineuda de Oliveira Ferreira3

RESUMO

Este artigo tem como propósito apresentar o trabalho realizado na Escola Mu-
nicipal Maria Lígia Borges Garcia integrada com o Observatório de Educação
de Fronteira (OBEDF), enfocando a presença da língua espanhola e guarani no
lado brasileiro da zona de fronteira Brasil/Paraguai. Devido aos problemas que a
escola enfrenta em alfabetizar os alunos de origem paraguaia, esta investigação
foi proposta pelo OBEDF com objetivo principal de analisar o nível de interação
linguística oriunda do contato das línguas espanhola, guarani e portuguesa no
contexto escolar. Nesse sentido, amparados no método da sociolinguística intera-
cionista, observou-se e delineou-se o complexo contexto linguístico das relações
estabelecidas de encontro intercultural. Procurou-se explanar, neste estudo, al-
gumas questões socioculturais e o aparente distanciamento ou afinidades dos ha-
bitantes brasileiros aos costumes e às tradições paraguaias e suas consequências
na alfabetização e no letramento dos cidadãos brasileiros nascidos e residentes
no Paraguai.
Compreender os valores, as ideologias, as concepções e os possíveis preconceitos
linguísticos presentes na interação diária desses habitantes fronteiriços poderá
suscitar ações que fomentem a integração efetiva dessa convivência, sem se limi-
tar à questão da dificuldade que os professores encontram para alfabetizar esses
alunos brasiguaios, mas valorizar a L1 (língua materna), a cultura e os valores
sociais desses alunos. Dessa forma, além de olhar a fronteira através da dificulda-
de de receber um aluno bilíngue e ter de alfabetizá-lo em português, a proposta é
levar em consideração que quando ele entra na escola, traz consigo suas origens e

¹ Professora alfabetizadora na E.M. Maria Lígia Borges Garcia e bolsista do OBEDF.


² Professora alfabetizadora na E.M. Maria Lígia Borges Garcia e bolsista OBEDF.
³ Coordenadora do OBEDF na E.M. Maria Lígia Borges Garcia e bolsista do OBEDF.

61
cultura, que devem ser respeitadas, para que não ocorra a exclusão. Buscaram-se
bibliografias que levantassem a discussão do assunto, de modo a ampliar o estudo
e mostrar que os espaços fronteiriços possuem grandes diversidades culturais em
que a aprendizagem da língua do outro poderá ser um meio de diminuir precon-
ceitos e não cultuá-los. Conforme Magnoli (1997), a política territorial de fron-
teira no Brasil está marcada por dificuldades na elaboração de políticas públicas
direcionadas para cada espaço fronteiriço devido a interesses governamentais
diferenciados. Um problema muito comum nessa questão é não perceber que as
escolas de fronteiras necessitam de uma atenção especial, um currículo próprio
e capacitação de professores para a inclusão dos alunos plurilíngues. Ensino de
qualidade e uma aprendizagem efetiva é um direito do aluno brasiguaio, cidadão
brasileiro, que está matriculado nas escolas de Ponta Porã/MS.

Palavras-chave: Plurilinguismo. Ensino. Fronteira. Alfabetização. Letramento.

1 INTRODUÇÃO

O município de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, localizado na


fronteira Brasil-Paraguai, limita-se com a cidade de Pedro Juan Caballero,
departamento de Amambay. Devido à sua localização e ao tipo de interações
que se dão nessa fronteira seca, o espaço geográfico é caracterizado pelo
plurilinguismo que se dá com contato cotidiano entre o português, o espanhol
e o guarani e que forma ambiente linguístico no qual a língua oficial do Brasil
e as demais, também oficiais, do Estado Paraguaio se permeiam. Esse contato
acontece em todos os setores da vida social e também nas escolas, o que faz
com que os processos de escolarização sejam especialmente complexos, já que
nas escolas, além dos alunos brasileiros, residentes em Ponta Porã, há alunos
brasileiros provenientes de famílias que residem no Paraguai, os brasiguaios4,
que interagem em grande parte do tempo nas línguas guarani e espanhola,
com pouco manejo na língua portuguesa.

⁴ A definição de brasiguaios pode se aplicar a diferentes indivíduos. Ora como os indivíduos


nascidos no Brasil, mas que vivem no Paraguai, ora aos indivíduos filhos de um dos genitores
paraguaio e outro brasileiro, ora aos indivíduos que possuem dupla cidadania (brasileira e pa-
raguaia), ora aos indivíduos filhos de brasileiros, mas nascidos no Paraguai. A definição não é
precisa, pois em cada caso individual haveria uma situação a ser analisada e descrita. Portan-
to, generalizaremos como brasiguaios os indivíduos que estão inseridos no sistema de ensino
brasileiro, cuja identidade cultural volta-se mais para o Paraguai, em razão do uso das línguas
espanhola e guarani, majoritariamente.

62
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

A Escola Municipal Maria Lígia Borges Garcia, de Ponta Porã/MS, vive


cotidianamente a realidade de uma escola localizada em tal fronteira tão pecu-
liar e, desde o ano de 2011, participa do projeto Observatório da Educação
na Fronteira (OBEDF)5, o qual visa a aprofundar o conhecimento dos
processos educativos que se dão nas regiões das fronteiras nacionais onde há
intenso contato de línguas. Ao longo da participação no projeto, observações
sistemáticas das interações em sala de aula e no ambiente da escola, bem como
dos procedimentos didático-pedagógicos que ocorrem nesse espaço serviram
para compreender o que era, de fato, educar na fronteira, educar em contexto
de plurilinguismo.
Este artigo objetiva relatar as conclusões das observações ocorridas na
escola, as intervenções realizadas nesse espaço educativo como reflexo das
ações propostas por toda a equipe do projeto OBEDF e a negociação, dentro
da escola, das possibilidades de gestão dessas três línguas nos processos
de educação for- mal. Assim, este artigo se insere no escopo da Política
Linguística, área do conhecimento que visa ao estudo das intervenções sobre
as línguas e suas funções na sociedade (CALVET, 2007).
Em um primeiro momento, na seção intitulada A Escola Municipal Maria
Lígia Borges Garcia: um espelho do hibridismo cultural e linguístico da
fronteira, será feita uma apresentação da escola em relação ao contexto em
que está inserida: dados relativos à localização, ao ambiente sociolinguístico
da escola e a sua atuação no projeto OBEDF (participantes e ações).
Na sequência, a metodologia utilizada será apresentada para a observação
das interações ocorridas na escola, propostas pela equipe do projeto OBEDF.
Serão discutidas, também, as conclusões e generalizações acerca dos desafios
de se educar em contextos plurilíngues, que foram possíveis a partir da
observação realizada desde meados de 2011 até o final do ano de 2012.
Posteriormente, a seção A gestão das línguas em sala de aula: o corpo
docente em foco refere-se à pesquisa realizada com outros professores
da escola que não estavam participando do projeto do OBEDF, visando a
investigar a sua percepção em relação às interações linguísticas que ocorrem

⁵ Aprovado pela CAPES no fim de 2010, o Projeto Observatório da Educação na Fronteira (OBE-


DF) não foi pensado em mão única, mas, sim, através da parceria entre escolas de Ensino
Fundamental localizadas na fronteira do Acre, de Rondônia e do Mato Grosso do Sul e polos da
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

63
em ambiente de sala de aula e as estratégias utilizadas para gerir essas línguas
e o processo de ensino-aprendizagem.
Ainda, a seção intitulada Integrar as línguas, incluir indivíduos, facilitar
a aprendizagem divulgará os resultados dos trabalhos dos professores
participantes do projeto por uma gestão de incorporação das três línguas
nos processos de instrução e relata as experiências e tentativas de
mudanças metodológicas para o sucesso do processo ensino-aprendizagem,
principalmente da alfabetização e do letramento nesse universo plurilíngue.
Por fim, registram-se considerações sobre o trabalho enfocando os desafios
e as possibilidades para as políticas linguístico-educacionais em situação
de contato de línguas, como é o caso da fronteira Ponta Porã - Pedro Juan
Caballero.

2 A ESCOLA MUNICIPAL MARIA LÍGIA BORGES GARCIA: UM


ESPELHO DO HIBRIDISMO CULTURAL E LINGUÍSTICO DA
FRONTEIRA

A Escola Municipal Maria Ligia Borges Garcia, situada no bairro São


Domingos, no município de Ponta Porã/MS, atualmente atende 430 alunos
da Educação Infantil ao 5º ano dos turnos matutino e vespertino do ensino
regular. No início do projeto, a escola funcionava até o 9º ano, mas, em
2013, por questões políticas, passou a atender apenas até o 5º ano. A escola
também oferece sala de atendimento especializado para alunos portadores de
necessidades educacionais especiais, sala de tecnologia e é única no município
com o projeto UCA (Um Computador por Aluno) do Governo Federal. Um breve
histórico do município fornece o entendimento da realidade demográfica, cul-
tural e linguística em que se insere a escola.
Localizado a sudoeste do Mato Grosso do Sul, o município de Ponta
Porã é separado apenas por uma rua da cidade de Pedro Juan Caballero,
Departamento de Amambay, no Paraguai, e faz parte dos municípios que estão
localizados na faixa de fronteira. Em meados da década de 40, o município de
Ponta Porã compunha com toda a região de Pedro Juan Caballero durante
o período colonial um local chamado de Punta Porã, que na língua guarani
significa Ponta Bonita. Ali habitavam povos nativos cuja língua era o guarani

64
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

e, posteriormente, com a chegada dos europeus – espanhóis e portugueses


– outras culturas e línguas (espanhol e português) habitavam aquele espaço.
A região onde o município está localizado foi palco de várias disputas
territoriais. Primeiramente, entre Espanha e Portugal quando os países da
América do Sul viviam sob o sistema colonial. Antes da Guerra da Tríplice
Aliança, a região era habitada por indígenas descendentes do povo Guarani.
Durante a guerra, a área foi ocupada por militares brasileiros com o intuito de
demarcar as fronteiras, mas acabou tomada pelo Paraguai e somente depois de
quase uma década foi reincorporada ao Brasil, com o fim da guerra, em 1870.
As relações entre as culturas, bem como as disputas por aquele espaço, foram
intensas e Ponta Porã é o resultado de um hibridismo cultural e linguístico,
lugar onde se entrelaçam os mitos e as histórias dos dois países: é um misto
de Brasil e Paraguai na conformação do território, no contato de línguas e nos
laços comerciais e culturais que aproximam os dois países em uma fronteira
seca, cujo limite internacional é ‘demarcado’ por duas avenidas separadas por
uma longa faixa de calçamento entre os dois países. No monumento de boas-
vindas à cidade se encontram, lado a lado, o tererê – bebida típica da cultura
paraguaia – e o chimarrão – bebida típica dos gaúchos que migraram para a
região e contribuíram para a formação da população local – representando
o encontro das culturas e a diversidade. A foto abaixo ilustra com muita
legitimidade a fronteira seca. Ao fundo, do lado esquerdo, o Paraguai e, do
lado direito, o Brasil.
FONTE: WWW.TURISMO.MS.GOV.BR

Figura 1 - Pórtico de entrada do município de Ponta Porã, que representa o encontro de culturas.

65
No que se refere às línguas faladas no município, há grande contato entre o
português, espanhol e guarani, o que promove a existência de variedades como
o jopará (híbrido de espanhol com guarani), o portunhol (híbrido de português
com o espanhol) e, ainda, um híbrido das três línguas. Além disso, devido àquela
região ter forte presença de imigrantes oriundos de outras partes do mundo,
também línguas como a árabe e as asiáticas irão compor o cenário plurilíngue
e pluricultural de Ponta Porã-Pedro Juan Caballero.
A Escola Maria Lígia Borges Garcia, que se localiza em frente à “linha in-
ternacional”, irá refletir esses contatos, em especial, entre as três línguas ofi-
ciais orais6 dos dois países. Contatos estes que representam desafios às ações
pedagógicas da escola, em especial aos procedimentos de ensino-aprendizagem
no contexto de sala de aula dos anos iniciais do Ensino Fundamental, já que
muitas crianças que ingressam na escola são descendentes de paraguaios e/ou
residentes do país vizinho e possuem como língua materna o espanhol e/ou
o guarani. Ao ingressarem no sistema educacional brasileiro, enfrentam
dificuldades quanto ao processo de escolarização, já que não ‘dominam’ a língua
de instrução das escolas brasileiras: o português.
No ano de 2011, com o objetivo de ampliar o campo de observação sobre a
realidade plurilíngue e pluricultural das escolas que se localizam nas fronteiras
e qualificar seu corpo docente, o projeto Observatório da Educação na Fronteira
(OBEDF) foi criado com o apoio da Capes7 e desenvolvido em rede com
universidades brasileiras, o Instituto de Investigação e Desenvolvimento em
Política Linguística (IPOL), escolas parceiras localizadas em três Estados
brasileiros: Acre, Mato Grosso do Sul e Rondônia. A Escola Maria Lígia Borges
Garcia compõe essa frente de trabalho.

3 O OBSERVATÓRIO DA EDUCAÇÃO NA FRONTEIRA (OBEDF) NA


ESCOLA

A Escola Maria Lígia Borges Garcia, conforme mencionado, está localizada


em uma rua à frente da linha internacional e este é um dos motivos pelos quais
a escola recebe em média 80% dos seus alunos, cidadãos brasileiros registrados,
6 Não se verifica ao longo das pesquisas o contato dessas línguas orais com as línguas de sinais.
7 Edital 038/2010/CAPES/INEP – Programa Observatório da Educação.

66
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

porém muitos deles residentes no Paraguai. Dessa forma, verifica-se que o Brasil
não é mesmo um país monolíngue, confirmado por Oliveira (2000, p.127): “no
Brasil hoje são falados por volta de 200 idiomas.” Ignorar a língua materna
(espanhol e/ou guarani) desses indivíduos durante a alfabetização e nos demais
momentos de ensino-aprendizagem é anulá-los, excluí-los e desconsiderar a
multiplicidade de línguas existentes no país. Sobre o mesmo assunto, Hamel
(1988, p. 2) afirma:

No debemos olvidar, sin embargo, que las lenguas (los sistemas


linguísticos) obviamente no pueden estar em contato entre sí. Son, en todo
caso, sujetos, grupos, pueblos que establecen uma relación de contacto
y conflito, relación donde las diferentes lenguas pueden jugar un papel
primordial.

Entende-se que os educadores podem fazer a diferença nesse contexto de


alfabetização, utilizando a língua e a cultura do país vizinho como facilitadores
e não como empecilhos para a escolarização. Em contraponto está o resulta-
do de uma pesquisa realizada na escola com dezoito professores, que mostra
que, em média, 90% deles não falam, nem escrevem outra língua que não o
português. Assim, surgem os questionamentos por parte da equipe do OBEDF
na escola: como ocorrerá essa interação? Como são ministradas as aulas aos
alunos que não têm o português como L1 (língua materna)? Essas línguas são
ignoradas? A aprendizagem é efetiva (ou seja eles realmente são alfabetizados e
letrados ou os falantes de L1 espanhol e/ou guarani aprendem a ler e a escrever
em português ou apenas codificam (ler) e decodificam o que escrevem)? Por não
entenderem as instruções, indicações e enunciados são considerados alunos com
distúrbios de aprendizagem (que não conseguem aprender)? Questionamentos
dessa natureza serão explorados no desenvolver do texto.
A partir desse panorama presente nas diversas escolas localizadas nas regiões
de fronteira, neste caso em Ponta Porã/MS, o projeto OBEDF propôs inicialmente
a observação sistematizada das interações em sala de aula e na escola, de forma
a verificar de que forma os educadores envolvidos percebiam o ambiente
sociolinguístico e quais as estratégias didáticas eram utilizadas para lidar com
o plurilinguismo na gestão das atividades escolares e no processo de ensino-
aprendizagem.
Assim, foi proposto que duas professoras bolsistas participantes do projeto

67
na referida escola – docente do 1º e 2º ano –, munida de um roteiro elaborado
pela equipe do projeto, observassem cada uma a aula da outra e anotassem
os pontos relevantes relativos à metodologia empregada em sala de aula, as
interações linguísticas entre professores e alunos e demais ocorrências tanto
em sala quanto no âmbito escolar. A partir desse trabalho de observação, muitos
questionamentos surgiram e cada professora passou a sugerir modificações e
intervenções para as aulas da outra. Pôde-se observar, então, que alguns alunos
que não desenvolviam as atividades escritas, ou que eram muito retraídos e
não se socializavam, estavam, muitas das vezes, exteriorizando o fato de não
entenderem o que lhes era proposto, sugerido ou indicado. Com isso, ora esses
alunos se agitavam, o que gerava indisciplina, ora demonstravam apatia e eram
considerados alunos com distúrbios de aprendizagem. Foi a partir dessas
observações que a postura das duas professoras observadoras mudou, pois
começaram a perceber que poderiam se utilizar do conhecimento dos alunos
para alcançar os objetivos com os outros, além de também aprender com eles.
Durante as reuniões de socialização dos trabalhos entre elas e a coordenadora
do projeto na escola, as bolsistas conseguiram mudar sua didática e metodologia
ao longo daquele ano e obtiveram melhores resultados com alguns alunos. Um
caso que pode ilustrar bem essa ocorrência será abordado no decorrer deste
trabalho.
Como parte das exigências do OBEDF, em 2011, as professoras e a
coordenadora do projeto na escola se reuniam uma vez por semana para
elaborar relatórios das atividades e observações, os professores observavam as
posturas em sala tanto dos alunos quanto das professoras e a coordenadora do
OBEDF na escola os enviava semanalmente para a coordenadoria geral do
projeto em Santa Catarina, onde eram arquivados em um banco de dados.
Em maio de 2012, houve o segundo seminário, no qual ficou decidido, com
todo o grupo participante, que a partir daquele ano, as aulas seriam, em um
primeiro momento, explicadas em português para a turma toda e, em um
próximo momento, individualmente. Para aqueles que não fossem falantes só
de português a professora faria as explicações em espanhol e/ou guarani. Assim,
haveria dias específicos que as aulas seriam nas três línguas.
Antes da chegada do OBEDF na escola, nunca se havia pensado sobre o que
acontecia com os alunos, por não se dar o devido valor à sua origem, cultura e
língua. Nem mesmo os professores que também têm fluência nas três línguas

68
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

(espanhol, guarani e português) tinham a iniciativa de realizar as explicações


na L1 (Língua Materna) dos alunos. Essa sensibilidade de olhar cada caso com
mais minúcia passou a ocorrer somente após o início das atividades do projeto
na escola. Assim, como consequência das atividades do projeto, as professoras
bolsistas conseguiram muitos avanços com seus alunos, pois passaram a valo-
rizar a língua materna do aluno e a utilizá-la para facilitar a interpretação e os
procedimentos no processo ensino-aprendizagem.
Outra consequência das novas atitudes foi o fato de demais professoras
começarem a se envolver também nas questões da diversidade linguística
existente no âmbito escolar. Por diversas vezes, passaram a chamar colegas
falantes de espanhol e/ou guarani, em uma ocasião ou outra, para entender
um pedido ou dar um comando aos alunos brasiguaios. Porém, ainda não
sabem como ensinar valorizando a língua, alfabetizar e letrar ao mesmo tempo.
Segundo Paiva (apud Calvet 2007, p.80), “ monolíngue distingue língua oficial
que é a língua de Estado, de língua nacional, que se aplica a todas as línguas
de um país”. Para ele, todo cidadão tem direito à língua de Estado, sob as
formas de alfabetização e de educação formal. Contudo, também tem direito a
sua língua materna. Verifica-se que é isso que ocorre na fronteira em questão
(Brasil-Paraguai): há uma língua de estudo, o português, porém, devido ao
contato intenso com a cultura e línguas oficiais do país paraguaio, há forte
influência do espanhol e do guarani no cotidiano, que, por sua vez, geralmente
acaba por ser invisibilizada nas escolas brasileiras de fronteira, dificultando
o processo ensino-aprendizagem. Contudo, de acordo com Sturza (1994, p.
2.537) e Maia (2002, p.48) .

é necessária uma abordagem do contato enquanto constitutivo de um


espaço de enunciação diferenciado em que as línguas significam as
condições socio-históricas das comunidades de falantes, os quais se
encontram expostos à contiguidade e cotidianidade das relações sociais
permeadas tanto pela presença do espanhol como a do português.
Nessa situação de contato se tocam, por vezes, se misturam. (STURZA,
1994, p. 53)

As professoras dos anos iniciais das escolas de fronteira do lado brasi-


leiro precisam necessariamente ensinar o português à maioria dos alunos
para posteriormente preocupar-se com as demais áreas do conhecimento.
Desse modo, não se deve ignorar o que o aluno já sabe, pois, para Ausubel,

69
Novak e Hanesian (1980), o conhecimento prévio do aluno é a chave para a
aprendizagem significativa. Deve-se, portanto, preparar os professores para
receber esses alunos, levando em conta o seu conhecimento prévio, sua cultura
e seus valores para poder tornar o ensino realmente efetivo.
Durante as avaliações diagnósticas, que são realizadas no início do ano
com todas as turmas dos anos iniciais, inclusive a pré-escola, como exigência
do processo ensino-aprendizagem, é levado em conta o nível de escrita dos
alunos, se eles conhecem a base alfabética e os números. Contudo, não há
a preocupação se o aluno conhece a língua portuguesa ou se vai conseguir
compreender o que lhe será solicitado no decorrer do ano. Seu contexto
sociocultural e linguístico é totalmente ignorado. As professoras envolvidas
no projeto já passaram a fazer uma avaliação em que a língua é levada em
consideração; porém, as demais ainda demostraram resistência, já que não
sabem como resolver o problema porque não dominam a língua do aluno, não
são capacitadas para isso ou mesmo por não concordarem com a presença
desses alunos falantes de espanhol e/ou guarani na escola. Aparentemente,
vive-se harmonicamente com essas diferenças étnicas que se entrecruzam na
fronteira, mas não se pode mascarar a realidade.
As professoras bolsistas, já sensibilizadas e com um olhar mais aguçado,
começaram a perceber que a repetência de alguns alunos, por várias vezes
nos mesmos anos escolares, poderia ter uma correlação com a língua. Esses
alunos talvez eram considerados fracassados apenas por não terem sua língua
valorizada, por não terem tido a oportunidade de uma metodologia que os
transportassem para a inclusão de forma a se apoderarem dos conhecimentos
passados da mesma forma que os outros alunos, falantes apenas do português.
Um fato que merece destaque foi quando os alunos brasiguaios (brasileiros fi-
lhos de paraguaios, que vivem ou não no Paraguai), ao perceberem que a
professora também falava espanhol e guarani, sentiram-se à vontade para
solicitar explicações em espanhol e/ou guarani e até para interagir com
os demais e com o professor para dizer quando não estavam compreenden-
do. A questão não é simplesmente a tradução: com ela vem a valorização do
que já sabem, da importância dos seus preceitos e de fazê-los existir, o não
isolamento. Segundo Rivas (2010, p. 5),

Muitas vezes o pré-conceito fica subjacente na pseudo-idéia de integração

70
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

fraterna entre povos fronteiriços (...) Acreditamos que a opressão sofrida


por atitudes discriminatórias ou pejorativas aumentam a crise identitária
e a negação às origens.

Esse contexto interfere diretamente na relação de preconceito na fronteira,


como afirma Alves (2003, p. 20):

O senso comum, igualmente, reforça o preconceito e a discriminação.


Denota esse fato com que, no cotidiano de nossas fronteiras, se dá a
repetição reiterativa de expressões verbais reveladoras de estereótipos
arraigados. Para efeito de ilustração, sempre que um brasileiro toma
uma atitude considerada pouco inteligente ou demonstra apego ao ócio,
seus compatriotas fronteiriços o estigmatizam por meio de designações
como “paraguaio ou “boliviano”.

A questão da não inclusão de alunos brasiguaios no contexto educativo é


uma situação muito comum, de tal forma que pouco se pensou realmente na
inclusão. Focavam-se, apenas, nas questões de ensino-aprendizagem quando,
na verdade, existe todo um contexto de exclusão da cultura, do desrespeito às
origens e à sua língua materna. É como se, de forma retrógrada, quiséssemos
que simplesmente o aluno, de uma hora para outra, esquecesse tudo com o
qual ele conviveu desde que nasceu, a língua que aprendeu quando começou a
falar, e chegasse à escola apenas para “receber” tudo a ser ensinado.

4 A GESTÃO DAS LÍNGUAS EM SALA DE AULA: O CORPO


DOCENTE EM FOCO

Com o objetivo de respaldar este trabalho, foi aplicado a dezesseis professores


da escola um questionário, respondido em dupla, com perguntas referentes à
língua e ao contexto sociocultural dos alunos oriundos do país vizinho, falantes
de espanhol e/ou guarani.
De acordo com a maioria dos entrevistados, a grande dificuldade ocorre
nos primeiros dias de aula de alunos dos anos iniciais. Alguns chegam à escola
sem saber falar nenhuma palavra em português ou espanhol, geralmente a
língua que dominam é o guarani. O público a que a escola atende varia entre
brasileiros e filhos de brasileiros residentes no Brasil, que falam exclusivamente
português; filhos de pai e/ou mãe paraguaios, que falam português e têm grande

71
contato com o guarani e o espanhol; crianças que moram no Paraguai, falam
espanhol e/ou guarani e têm contato com o português apenas na escola ou
em outra situação social; e aluno que chega à escola sem nunca ter escutado
ou pronunciado uma palavra em português. Daí vem a dificuldade apontada
pelos professores de ensinar a língua antes de alfabetizar e letrar.
Segundo os professores entrevistados, essa mistura de línguas acaba
atrapalhando e/ou dificultando o processo ensino-aprendizagem nas relações
com os colegas, na fala, mas especialmente na escrita, pois os alunos conversam
entre si o guarani até mesmo na sala de aula e acabam misturando as línguas.
Outro fato citado pelos professores é sobre a interpretação dos alunos do que
lhes é solicitado ou do que leem. Se alguns alunos brasileiros, não nascidos
na fronteira, já são considerados analfabetos funcionais (pessoa que lê, mas
não compreende o que lê), os alunos que ainda estão em fase de aquisição da
língua na fronteira têm mais esse agravante: não entendem ou não conhecem
o significado de muitas das palavras que leem.
Os professores abordaram o tema Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB), que é um indicador criado pelo governo federal para medir a
qualidade de ensino. As crianças da fronteira, que primeiramente necessitam
aprender a falar a língua portuguesa, com muitos problemas de ensino e
aprendizagem como tantas outras, diferem por ter de serem alfabetizadas e
letradas em uma segunda língua, o que contribui muito para que esse índice
seja baixo. Se já não é fácil obter bons números nesse indicador em escolas
brasileiras que não sejam de fronteira, nessas regiões plurilíngues a dificuldade
em alcançar altos índices ainda são maiores. Reforçando o pensamento da
maioria das professoras pesquisadas, Ledesma e Grassi (2011, p. 4) dizem:

Por outro lado ideologicamente se pensando também a imagem do


Brasil no Paraguai é de que os brasileiros são presunçosos e arrogantes
julgando-se superiores como nação sub-imperialista. Ao passo que os
brasileiros enxergam os paraguaios como povo atrasado, que não sabe
trabalhar e desleal. A partir desses estereótipos são construídos uma
gama de fatores de alteridade e etnocentrismo, que como a exemplo
da língua estabelece laços de conflitos, resistência ou mescla de
sentimentos de autoidentificação étnica ou nacional.

Infelizmente, alguns professores pesquisados realmente demonstram


comportamento relacionado ao que foi registrado anteriormente. E, convivendo

72
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

na fronteira com essa realidade, é possível deparar-se constantemente com tais


posturas. Uma das entrevistadas, inclusive, disse:

Se estão estudando nas escolas do Brasil, são brasileiros e, se são


brasileiros, têm obrigação de falar português. Não concordo que
tenhamos que nos preocupar com esses alunos que vivem no Paraguai
e vêm estudar no Brasil.

Gráfico 1: Proficiência dos alunos nas línguas espanhol e guarani e português.

Fonte: Diagnóstico Sociolinguístico do OBEDF.

Gráfico 2: Línguas que circulam na escola, além do português.

Fonte: Diagnóstico Sociolinguístico do OBEDF.

73
5 INTEGRAR AS LÍNGUAS, INCLUIR INDIVÍDUOS E FACILITAR A
APRENDIZAGEM

Nesta seção, os olhares estão direcionados a um assunto muito questionado


desde o início do projeto do OBEDF: como lidar com a particularidade da
região plurilíngue. A participação no projeto mostrou uma realidade que
antes não se percebia e, diante disso, algumas posturas e atitudes mudaram.
Nesse contexto, lembra-se o caso de uma aluna que representa uma média de
80% dos alunos residentes no Paraguai ou filhos de paraguaios (brasiguaios),
estudantes da escola, que na educação infantil e no primeiro ano era considerada
uma aluna com distúrbio de aprendizagem, uma vez que não falava e tinha
muita dificuldade em socializar-se com a língua portuguesa. Nesses anos, ela
era tratada igual aos demais, mesmo tendo a particularidade de não entender
nada do que lhe era dito e explicado. Essa tentativa da homogeneização vai
contra o que propõe Asfora e Souza (2013, p. 10)

Pensar em Educação Inclusiva remete, em primeiro plano, ao debate


sobre exclusão educacional e nos faz refletir sobre a lógica do Sistema
Escolar que historicamente buscava atender apenas a uma parcela da
população, segregar a maioria e direcionar o seu trabalho para uma
sala de aula homogênea. Se a escola não promovesse a exclusão
das diferenças, não precisaríamos definir aqui os princípios que
fundamentam uma escola inclusiva.

A progressão de ano escolar no município é automática, não há retenção.


Portanto, ela ingressou no segundo ano do Ensino Fundamental e passou a
ser aluna da outra professora observadora, participante do Projeto do OBEDF.
No início das observações em sala de aula percebeu-se que o “problema” da
aluna era apenas com a língua. Então, a professora inicialmente explicava
as atividades em português para toda a turma e quando passava a fazer as
explicações individuais à Luz Mariel a professora explicava em espanhol e
às vezes até em guarani. Vale salientar que a aluna, além de entender o que
lhe era proposto, passou também a demonstrar mais interesse pelas aulas,
já que falar a sua língua materna em sala não era mais proibido. Conhecer o
aluno, saber de suas necessidades, potencialidades, interesses e experiências
faz toda a diferença no processo ensino-aprendizagem. Assim, o aluno que
vem à escola predisposto a aprender e valorizar sua língua e sua cultura sente-

74
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

se incluído. Uma das revelações desse processo de aprendizagem significativa


da citada aluna é que ela se destacou até mais do que os alunos residentes no
Brasil.
Essa mudança na metodologia de ensino também viabilizou o ingresso
de outros alunos no processo de melhor interpretação da língua e de
predisposição à aprendizagem. Os demais colegas, quando não entendiam as
orientações em português, não se envergonhavam em pedir que elas fossem
feitas em outra língua. Além disso, por inúmeras vezes um colega percebeu
que outro aluno não tinha entendido as orientações em português e ele mesmo
fez explicações em espanhol e guarani. Ao falarem sobre currículo, Moreira e
Candau (2007), se referem às experiencias escolares que se desdobram em
torno do conhecimento, em meio às relações sociais e que contribuem para
a construção das identidades de nossos/as estudantes. De acordo com os
autores (2007, p. 80), o currículo abarca:

...os procedimentos e as relações sociais que conformam o cenário em


que os conhecimentos se ensinam e se aprendem, as transformações
que se deseja efetuar nos alunos, os valores que se desejam inculcar e
as identidades que pretende construir.

Fica evidente, portanto, que é urgente a necessidade de mudança de currí-


culo e metodologia, já que a alfabetização, que é por si só um processo complexo,
torna-se ainda mais difícil nas escolas de fronteira, pois, aliado ao letramento
e à alfabetização, se dá o ensino da língua portuguesa à maioria dos alunos.
No caso da aluna que vem sendo evidenciado, a primeira avaliação bimestral
de Língua Portuguesa, do segundo ano, em abril, teve nota de 1,5 (um vírgula
cinco) em uma prova que valia 10( dez). Isso foi em um momento em que o
OBEDF ainda não estava atuando efetivamente na escola e os procedimentos
metodológicos da professora e da observadora ainda permaneciam como
antes, uniculturalista. Observando as fotos das atividades (constam em
anexo), pode-se perceber, mesmo que leigamente, que uma nota 1,5 não é
satisfatória. A professora solicitou, na primeira atividade, que ela pintasse
as palavras do texto que caracterizam o coelhinho. A aluna pintou palavras
aleatórias por não entender o enunciado ou a solicitação da professora, que
foi feita em português, mesmo sabendo que a aluna não a compreendia. Nas
atividades 2 e 3 ela não respondeu, na 4 também não entendeu e não escreveu

75
a palavra cenoura que era a resposta correta. O exercício 5, que solicitava que
fosse reescrito um trecho do texto, também não foi respondido, assim como o
6, que era escrita de frases, e o 7, que era um pequeno texto de desejos de feliz
páscoa à família. Na atividade 8, em que era para escrever o próprio nome e
sobrenome, a aluna escreveu apenas o primeiro nome e não conseguiu res-
ponder questões como número de letras, primeira e última letras e quais se
repetiam. Na atividade 9, era para ser feito o registro do alfabeto maiúsculo e
minúsculo e a aluna não o fez. Na atividade 10, de ditado, a aluna encontrava-
-se no nível de hipótese de escrita SCVS (Silábico Com Valor Sonoro), em que,
segundo Ferreiro (1985) e Ferreiro e Teberosky (2008), a criança escreve uma
letra para cada sílaba falada e o que se escreve tem correspondência ao som
daquela sílaba. A aluna analisada já deveria estar em um nível mais adiantado
de escrita, já que frequentou a Educação Infantil, o 1º ano e parte do 2º (essa
avaliação foi feita em abril). Mas Luz Mariel não compreendia quase nada do
que lhe era proposto, solicitado e/ou ordenado. Somente após a atuação do
OBEDF que ela passou a receber orientações em português com tradução em
espanhol e/ou guarani em todas as intervenções em salas de aula feitas por sua
professora. Os colegas começaram também a usar o espanhol e/ou o guarani
para se comunicarem com ela e com os demais que sentiam dificuldade em
entender o português. Assim, a aluna passou a se dedicar mais e se mostrou
mais predisposta à aprendizagem, o que fez com que ela avançasse muito em
seus níveis de hipóteses de escrita e de aquisição da língua escrita e falada. A
respeito disso, para Wallon (2006), “as emoções têm um papel preponderante
no desenvolvimento da pessoa. É por meio delas que o aluno exterioriza seus
desejos e suas vontades. Em geral, são manifestações que expressam um
universo importante e perceptível...”.
Quando a língua da aluna passou a ser valorizada, seu saber anterior e
seus costumes passaram a ser respeitados. Consequentemente, ela passou
a demonstrar mais interesse pelas atividades e os resultados positivos
começaram a aparecer. Ao terminar o 2º ano, a aluna que estava fadada ao
fracasso escolar passou de SCVS para alfabética, com resultados bem mais
satisfatórios do que alguns dos alunos brasileiros. Para comprovar isso,
ilustra-se uma produção de texto, Cartinha para o Papai Noel, que ela mesma
produziu em dezembro, mostrando que já dominava com fluência a língua
escrita e consequentemente a falada.

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

As professoras observadoras, durante as reuniões de socialização dos


trabalhos, perceberam que poderiam tomar algumas atitudes de mudança da
prática pedagógica. Primeiramente, em relação à língua, permitir que os alunos
falassem espanhol e o guarani dentro da sala de aula, inclusive deixar que um
aluno ajudasse o outro quando necessário. Um dos pontos observados foi que
os alunos brasiguaios conversavam baixinho entre si, tentando entender o que
estava sendo explicado. Falavam, inclusive, em espanhol e guarani com os que
não entendiam português.
Além disso, a escola precisa valorizar a diversidade de saberes, fruto de
experiências culturais, fazendo com que os alunos se sentissem familiarizados
com o ambiente e predispostos à aprendizagem. Respeitar e considerar essas
diferenças não são apenas valores de natureza ética, mas é a base de um
trabalho pedagógico comprometido com o sucesso de aprendizagem de todos.
Segundo Ferreiro (1985, p. 68),

(...) por trás da mão que pega o lápis’ dos olhos que olham dos ouvidos
que escutam há uma criança que pensa. Essa criança que pensa não
pode ser reduzida à um par de olhos, de ouvidos e uma mão que pega
o lápis ...O processo de alfabetização nada tem de mecânico do ponto
de vista da criança que aprende. Portanto, ignorar sua língua materna,
segregar o aluno é torná-los os analfabetos funcionais.

Alguns dos alunos com L1 (língua materna) em espanhol e/ou guarani


podem codificar e decodificar, mas não compreender ou interpretar o que é
lido ou escrito. Para ilustrar esse caso, cita-se uma ocorrência na sala de uma
das professoras participantes do projeto. Durante a leitura coletiva da fábula
“O galo e o figo” (FONTAINE, 1998), retirado do livro didático da turma, a
professora fez as explicações sobre o texto em português e Liz, José e Hector
disseram não saber o que era figo. Iniciou-se uma discussão acerca do assunto,
todos tentaram explicar o que era, alguns até confundiram com ameixa. Então,
surgiu a ideia de solicitar que os alunos pesquisassem com seus pais como é
que se fala em espanhol ou guarani. No outro dia, a professora trouxe figo em
calda, que significa higo em espanhol, para que a turma conhecesse.
Ao reler o texto coletivamente, os alunos o compreenderam, pois as
informações passaram a ter significado para eles. Foi nesse momento que a
professora, por sugestão da turma, resolveu criar um dicionário de português/
espanhol/guarani, no qual os alunos deveriam trazer o significado das palavras

77
trabalhadas em sala que lhes chamassem a atenção, que não conhecessem o
significado em português e que gostariam de saber como se fala em guarani
e espanhol. A curiosidade da turma, no geral, foi lhes dando abertura para
perguntar aos pais, vizinhos, tios, etc. Essa foi uma forma que a professora
encontrou de socializar e valorizar o conhecimento de cada um sobre a língua.
Cada vez mais curiosos, os alunos iam aprendendo as três línguas. Essas aulas
foram muito enriquecedoras, pois tornaram possível que cada criança
participasse e aprendesse uma com a outra.
Após essa proposta de trabalho, observou-se que o aluno Hector* chamava
muito a atenção nas aulas de espanhol e guarani, por sua facilidade em regis-
trar palavras em guarani e participação e dedicação nas atividades propostas
pela professora. Numa mudança muito significativa, seus conhecimentos
foram se ampliando: já conseguia ler melhor e interpretar textos. Assim como
ele, outros que apresentavam dificuldades com a questão do plurilínguismo
na sala de aula também tiveram mudanças significativas na aquisição do
conhecimento. Com o projeto da OBDEF, os professores participantes
passaram a ver a situação de outra forma e conseguiram tornar as aulas
diferentes, fazendo com que fosse possível o aluno compreender a ponto de
conseguir interpretar os textos lidos, mesmo que oralmente.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho, ainda em andamento, mostrou que há contato plurilíngue


no contexto escolar, influenciado pela proximidade da escola com a
fronteira. Percebe-se uma dicotomia linguística, ao mesmo tempo em
que a língua espanhola não tem grande inserção entre os estudantes e
professores pontaporanenses. Na Escola Maria Ligia Borges Garcia, os
professores consideram importante aprender a língua como forma para
fugir do analfabetismo plurilinguístico. Porém, os que não estão envolvidos
diretamente no projeto do OBEDF não se interessam ou não dão valor para o
guarani, muito menos se preocupam em pensar na inclusão do currículo para
esses alunos oriundos do país vizinho. Durante as observações e entrevistas
com alguns dos professores participantes da pesquisa, concluiu-se que eles
pensam que para os alunos brasileiros, nascidos e residentes no Paraguai,

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

saber o idioma espanhol e/ou guarani são fatores secundários, que eles não
determinam a interpretação e que não fazem diferença nas dificuldades de
os alunos se alfabetizarem. Dizem não querer aprender espanhol ou guarani,
nem com o objetivo de inserir os alunos plurilíngues no contexto do ensino e
aprendizagem. Consideram que, se os alunos estão matriculados nas escolas
brasileiras, automaticamente devem saber falar português. Por outro lado,
admitem que haja muita dificuldade para se alfabetizar e dar continuidade
ao ensino, devido à língua materna desses alunos ser guarani e espanhol, pois
apresentam muita dificuldade tanto na interpretação quanto na ortografia,
o que interfere na aprendizagem de todos os outros conteúdos, já que não
compreendem o que leem.
Já as professoras e a coordenadora participantes do projeto bilíngue do
OBDEF, após todo 0 período de observação-reflexão e estudo dos casos,
concluíram que o meio para minimizar a exclusão desses alunos de acesso ao
conhecimento seria valorizar tudo o que é trazido por eles e procurar adaptar
o currículo escolar, que não inclui os alunos plurilíngues. Isso só acontecerá
com conscientização do professor, mudança de postura metodológica, didática
e políticas públicas. De acordo com Ferraço (2008, p. 7/8),

É com base no reconhecimento dessas semelhanças entre o que está


presente em propostas curriculares elaboradas em diferentes partes
do país, que se pode afirmar que alguns conhecimentos e algumas
capacidades cognitivas possam fazer parte dos acordos firmados nas
escolas públicas que tenham como finalidade a construção de situações
favoráveis de aprendizagem, em uma perspectiva inclusiva, isto é, em
uma perspectiva de garantia de aprendizagem para todos. A busca por
um currículo inclusivo rompe com os valores relativos à competitividade,
ao individualismo, à busca de vantagens individuais. Os princípios de
um currículo inclusivo incluem a definição de alguns conhecimentos
a serem apropriadas por todos os estudantes, respeitando-se as
singularidades, diferenças individuais e de grupos sociais.

A conclusão vem diante das mudanças metodológicas que ocorreram du-


rante o andamento do projeto pelas professoras participantes do projeto,
que puderam verificar com a vivência e experiência os avanços consideráveis
no aprendizado dos alunos a partir do momento que elas entenderam que
deveriam preparar aulas respeitando e valorizando também a diversidade lin-
guística.

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da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Anexo 3

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O LEGADO DO PROJETO OBEDF


EM SENA MADUREIRA (ACRE):
O PORTUGUÊS, O JAMINAWA
O BILINGUISMO E O ENSINO
DA LÍNGUA OFICIAL

Rosenilda Nunes Padilha¹

RESUMO

O presente artigo é o resultado da pesquisa realizada na Escola Pública Municipal


de Ensino Fundamental Messias Rodrigues de Sousa, na cidade de Sena Madu-
reira – AC. Tem como objetivo analisar questões envolvendo o processo de en-
sino e aprendizagem da língua portuguesa de alunos indígenas Jaminawa e não
indígenas, priorizando, nesse processo, a análise das produções orais e escritas
desses alunos. A pesquisa mostra, por um lado, as dificuldades enfrentadas por
professores que não estão preparados para receber os alunos Jaminawa bilíngues
vindos de diversas aldeias da região e, por outro lado, as dificuldades dos alunos
Jaminawa em dominar a língua portuguesa ensinada na escola.

Palavras-chave: Jaminawa. Bilinguismo. Oralidade. Escrita. Educação.

1 INTRODUÇÃO

Esse trabalho, que se situa no âmbito das pesquisas do Observatório


da Educação na Fronteira - OBEDF2, tem como objetivo analisar questões
envolvendo o processo de ensino e aprendizagem da língua portuguesa de
crianças indígenas Jaminawa do 2º ano aceleração e do 5º ano, na escola de

¹ Mestre em Ciências da Linguagem pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Lingua-


gem-UNIR e beneficiária de auxílio financeiro da CAPES – Brasil – AUXPE n. 2107/2010.
² Disponível em: <http://obedf2010.blogspot.com.br>.

85
Ensino Fundamental Messias Rodrigues de Souza, em Sena Madureira, no
Estado do Acre (AC). A partir, notadamente, do estudo das produções orais e
escritas de alunos indígenas e não indígenas dessa escola, o trabalho pretende
contribuir com as pesquisas feitas no âmbito do OBEDF. Os referidos estudos
mostram que as muitas dificuldades observadas na alfabetização (leitura,
escrita, oralidade) em língua portuguesa podem ser decorrentes de um
imaginário de homogeneidade linguística da escola, escolas que, como Escola
Municipal Messias Rodrigues de Sousa, são evidências de que no Brasil falam-
se outras línguas que não somente o português. Levando em consideração que a
diversidade linguística e cultural do Brasil, muitas vezes, não é contemplada na
abordagem pedagógica para o ensino da língua portuguesa, a pesquisa na Escola
Municipal Messias Rodrigues de Sousa mostrou, por um lado, os problemas
enfrentados pelos professores que não estão preparados para receber os alunos
Jaminawa vindos de diversas aldeias da região e, por outro lado, as dificuldades
desses alunos para aprender a variedade oficial da língua portuguesa.
Atualmente, os povos Jaminawa, do Estado do Acre, somam uma população
crescente de 1.800 pessoas e todos tem o jaminawa como primeira língua.
Vivem em duas Terras Indígenas (TI): a TI Mamoadate3, no Rio Yaco, com a
extensão de 313. 647 hectares, localizada nos municípios de Sena Madureira
e Assis Brasil, e a TI Rio Acre, com 76.680 hectares de extensão, localizada no
município de Assis Brasil.
Diversas famílias Jaminawa vivem fora da terra demarcada em diversos
seringais da região: Kaiapuká, São Paulino, Caeté, Extremo e Guajará. Essas
cinco áreas estão sendo reivindicadas pelo povo Jaminawa para demarcação
e já estão com alguns estudos antropológicos em andamento. Devido a essa
reivindicação dos Jaminawa pela posse da terra, há grandes conflitos com os
não índios que lá se estabeleceram e lutam pela mesma posse da terra.
Uma das cidades do Estado do Acre que recebe maior número de indígenas
Jaminawa é Sena Madureira. Ali, no bairro denominado Beco do Adriano,
vivem 36 famílias, totalizando 118 pessoas. Esse ambiente urbano depara-se
com inúmeros problemas, tais como: falta de moradia, dificuldade de conseguir
trabalho, problemas relacionados à assistência médica e, dificuldade para
integrarem suas crianças no sistema de educação municipal.

³ Essa terra é compartilhada com o povo Manchineri, que também soma uma população cres-
cente de 1.600 pessoas.

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na Fronteira e perspectivas para a Escola

Nas escolas das aldeias, as crianças são alfabetizadas na língua jaminawa


até o 4º ciclo, o que corresponde na escola não indígena ao 4º ano, e seguem
um currículo escolar que leva em consideração a organização social/cultural
de seu povo. Já na cidade de Sena Madureira, precisam frequentar a escola
não indígena que, evidentemente, é regulada por outro calendário e tem todo
seu currículo voltado ao um ensino monolíngue do português.
Assim, as crianças ao chegarem a Sena Madureira têm como primeiro
desafio tentar se adaptar à escola não indígena, o que dificulta ainda mais
aprender a escrever e falar em língua portuguesa. Os Jaminawa, assim como
outros povos indígenas, por questões históricas de denominação e inserção na
sociedade dominante, foram obrigados a falar somente a língua portuguesa.
Contudo, mesmo diante das dificuldades, os Jaminawa conseguiram manter
sua língua e atualmente são falantes bilíngues e a proficiência da língua
portuguesa se dá de forma diferenciada: os homens entre 20 e 50 anos são os
que mais dominam a língua portuguesa, enquanto que as mulheres e crianças
não se mostram tão proficientes.
Na comunidade Beco do Adriano, os Jaminawa falam sua língua e o
português; no entanto, a língua jaminawa é a primeira língua que as crianças
aprendem e a mais usada nas diversas situações de interação. Outros espaços
sociais frequentados pelos Jaminawa, notadamente pelas crianças, onde só
se fala o português (mercado, a Funasa, as feiras, os hospitais e a escola),
propiciam o aprendizado do português. Além disso, outro fator que tem
contribuído para o aprendizado do português é a televisão, que está em quase
todas as casas das famílias Jaminawa.
O bilinguismo envolvendo a sociedade indígena no Brasil pode ser
entendido pela perspectiva de Maher (2005, p. 68) como um “bilinguismo
de minoria”, em que falar o português para os indígenas assume um caráter
compulsório.
A esses não é dada a possibilidade de escolha. O domínio da língua
portuguesa é uma obrigação, tanto na situação de contato como na sociedade
majoritária. Existe uma “necessidade imperiosa” de falar português. A questão
do “pertencimento” é um dos fatores que se sobrepõem, apresentando-
se mesmo com prioridade para jovens e adolescentes Jaminawa, ou seja, é
forma de sentirem aceitos, principalmente nos diversos espaços urbanos de
Sena Madureira, onde convivem diariamente com os não indígenas. Para os

87
Jaminawa, então, dominar a língua portuguesa também na variedade escrita
é fundamental. Sobre esse tema, o professor da aldeia Kaiapuká, Samuel
Jaminawa, afirma: “Eu penso que estamos trabalhando certo na aldeia,
primeiro nossos filhos aprendem o Jaminawa na nossa escola e depois para
quebrar o galho não ficar fora do mundo da civilização, aprender a falar o
português”. Assim, os Jaminawa, mesmo os que moram nas aldeias, têm
consciência que precisam aprender a falar o português, sobretudo, para
defender os seus direitos. E dentre eles estão, justamente, o direito a falar sua
própria língua e ao acesso ao aprendizado da escrita da língua oficial brasileira.

1.2 Pressupostos metodológicos: os instrumentos sociolinguísticos


da pesquisa e a coleta de dados

Tomamos como princípio metodológico os pressupostos da pesquisa


sociolinguística qualitativa por entendermos que esse tipo de método de
pesquisa permite de forma mais produtiva congregar saberes diversos e, à
medida do possível, integrá-los. O trabalho, assim, se organizou levando
em consideração o papel desempenhado pelos seus participantes: alunos,
professores, coordenadores pedagógicos, entre outros. Em consideração a essa
heterogeneidade dos sujeitos participantes, optamos também por uma coleta
de dados através da aplicação de instrumentos sociolinguísticos também
variados: observação do participante, conversas informais, questionário com
roteiro, entrevistas gravadas em áudio e vídeo. Para registro dos dados foram
usados notebook e máquina fotográfica, a pesquisa foi desenvolvida na escola
de Ensino Fundamental Messias Rodrigues de Souza, em Sena Madureira/
Acre e envolveu quatro turmas: duas turma do 2º ano vespertino e 01 turma
do 2º ano matutino, ambas do programa aceleração, e uma turma do 5º
ano do Ensino Fundamental matutino. A produção oral e escrita dos alunos
Jaminawa foi analisada a partir de 33 textos escritos, dentre eles oito textos de
alunos Jaminawa do 2º ano aceleração e apenas um texto indígena do 5º ano
e 24 textos de alunos não indígenas. No que diz respeito à oralidade, foram
gravadas 16 produções orais sobre a história do Mapinguari, contadas por seis
alunos Jaminawa do 2º aceleração, e 10 com alunos não indígenas (seis alunos
do 2º ano aceleração e quatro alunos do 5º ano do Ensino Fundamental).

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Observatório Política Linguística em
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A pesquisa envolveu vários procedimentos, tais como: visitas à escola


antes da coleta de dados e observação direta da pesquisadora em sala de aula,
objetivando analisar o processo de interação aluno/ professor, o processo de
ensino aprendizagem e, por fim, a produção de textos escritos e a oralidade
dos alunos. O tema para a produção escrita e oral partiu dos próprios alunos
que sugeriam a história do Mapinguari, que faz parte do acervo narrativo
dos indígenas da Amazônia. Segundo a lenda, os índios, ao atingirem a idade
mais avançada, evoluiriam, se transformariam em um ser mítico chamado
Mapinguari e passariam a habitar o interior da mata.
Faz parte, ainda, do corpus uma série de entrevistas com as professoras
dos alunos, os coordenadores pedagógicos e o diretor da escola. Além dessas,
foram feitas nove entrevistas fora do ambiente escolar: uma com o coordenador
técnico da Secretaria Estadual da Educação Escolar Indígena de Sena
Madureira e oito entrevistas com pais dos Jaminawa do “Beco do Adriano”.
Visitamos também aldeias do Alto Rio Caeté, onde tivemos oportunidade de
conversar com vários professores, lideranças e pajés. Recorremos ao diário de
campo, que contém informações e registros importantes desde 2000.
Do material analisado, que resultou em uma dissertação apresentada
no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Fundação
Universidade Federal-Campus de Guajará-Mirim, recortamos para essa
discussão as questões envolvendo as noções de coerência e coesão da produção
escrita dos alunos Jaminawa. Do que interessa aqui sobre a análise dos outros
aspectos da produção dos alunos, como o domínio da ortografia e a produção
oral, diremos:

i) A oralidade
Os alunos Jaminawa que dominam satisfatoriamente português (falam com
muito sotaque) apresentam dificuldade para identificar e fazer concordância
de gênero na língua, o que demonstra baixo grau de proficiência. Contudo,
destacamos que a narrativa oral dos Jaminawa se mostrou muito mais
completa e rica do que a sua escrita. Ao narrarem oralmente à história do
Mapinguari, o fizeram de forma mais criativa que seus colegas não indígenas:
mostraram-se extrovertidos, sorridentes e, gesticulando, trouxeram muitas
informações, que envolviam diretamente a sua vida na comunidade, pois,
segundo eles, o que sabiam sobre o Mapiguari lhes foi contado pelos avós,

89
pelos pais e por outras pessoas mais velhas. De tal modo, o fato dos alunos
Jaminawa dominarem o tema da discussão garantiu-lhes uma performance,
na narrativa oral, mais expressiva do que aquela dos não indígenas.
Os alunos não indígenas, por seu turno, também conhecem a história do
Mapinguari e a contaram com muito mais domínio da língua portuguesa.
Contudo, narraram à história de maneira mais resumida e foram poucos os
que quiseram participar da contação. Suas informações ficaram repetitivas e
a narrativa pouco criativa.

ii) A aquisição da ortografia


A partir do material analisado e tomando como base as propostas de Lemle
(1982), Carraher (1986) e Cagliari (2012), constatou-se que:
a) Os alunos Jaminawa se mostraram muito mais propensos do
que os alunos não indígenas quanto i) à omissão e troca na ordem da
letra, ii) à interferência da variedade local de fala no português escrito,
iii) à dificuldade na marcação de acentos gráficos, iv) ao uso indevido
de letras maiúsculas e minúsculas, v) à interferência da oralidade na
escrita e vi) aos problemas de concordância de numero e gênero.

b) equivalência entre os grupos de alunos indígenas e não


indígenas no que diz respeito i) à erros relacionados à origem das
palavras, ii) à transcrição fonética da fala, iii) à juntura intervocabular,
iv) à segmentação das palavras e concordância, assim como na v) troca
de letras concorrentes (j/g e x/ch) e vi) à diferenciação tanto de traços
distintivos de sonoridade quanto para a utilização de regras, tais como
gafar “m” antes de “p” e “b”.

Os alunos indígenas, assim, apresentam muito mais dificuldades na


aquisição da ortografia do português do que os alunos não indígenas. Essa
situação deve-se ao distanciamento das comunidades indígenas da cultura da
escrita, já que, enquanto a sociedade ocidental se utiliza da escrita há pelo
menos 2.500 anos, os povos indígenas iniciaram esse contato há 500 anos,
aproximadamente. Junte-se a isso a política discriminatória do Estado que,
por muito tempo, afastou os povos indígenas dos seus direitos mais básicos,
como a educação e o acesso ao aprendizado da escrita.

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Observatório Política Linguística em
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

Ressaltamos, entretanto, que um texto não se constrói apenas pelo


domínio da estrutura ortográfica, mas por um conjunto de recursos coesivos
e de coerência essenciais tanto para à estruturação linear de uma narrativa,
quanto para a adequação semântico-pragmática do discurso. Os textos
escritos pelos alunos jaminawa, como veremos a seguir, materializa também
a pouca habilidade dos alunos indígenas, nesse caso, de manipular tanto os
recursos coesivos quanto aqueles de coerência para a construção da narrativa,
o que demonstra pouco domínio das funções semânticas e pragmáticas do
discurso escrito. A partir disso, iniciamos a discussão buscando caracterizar
essa unidade complexa que é o texto.

2 A COMPLEXIDADE DO TEXTO

O que é um texto? Diversos estudiosos têm considerado o texto como uma


unidade complexa estruturada por elementos linguísticos e pragmáticos.
Marcuschi (1983) procurando, a melhor forma para tratar os elementos
complexos que compõem a tessitura textual, afirma:

A linguística textual trata o texto como um ato de comunicação unificado


num complexo universo de ações humanas. Por outro lado, deve
preservar a organização linear que é o tratamento abordado no aspecto
da coesão e, por outro, deve considerar a organização reticulada ou
tentacular, não linear, portanto, dos níveis do sentido e intenções que
realizam a coerência no aspecto semântico e funções pragmáticas
(MARCUSCHI, 1983, p. 12).

Há textos incoerentes? Alguns autores afirmam que sim. Beugrande


e Dressler (1981, p. 31) mencionam que a base da coerência textual é a
continuidade de sentidos entre conhecimentos ativados pelas expressões
linguísticas do texto, que deve ser percebido tanto na codificação (produção)
como na decodificação (compreensão). Texto incoerente, portanto, para os
referidos autores, é aquele em que o receptor (leitor ou ouvinte) não consegue
descobrir qualquer continuidade de sentido. Por outro lado, há estudiosos
como Koch & Travaglia (1977, p. 50) que tem outro posicionamento:

não existe texto incoerente em si, mas que o texto pode ser incoerente
em/ para determinada situação comunicativa (...).O texto será incoerente

91
se seu produtor não souber adequá-lo a situação, levando em conta
intenção comunicativa, objetivos, destinarias, regras sócio culturais,
outros elementos da situação, uso de recursos linguísticos, etc. caso
contrário será coerente.

De qualquer modo, parece haver um consenso entre os autores de que a


coesão e a coerência estão ligadas no processo de produção e compreensão
de um texto e nesse sentido a coerência mesmo sendo mais abrangente
para composição de um texto necessita de recursos linguísticos (elementos
coesivos) para que haja “uma continuidade de sentido” ou uma “adequação à
situação comunicativa”.

2.1 A textualidade da história do Mapinguari

No que diz respeito aos textos aqui analisados, destacamos que foi
solicitado aos alunos Jaminawa e aos não indígenas que escrevessem sobre
o Mapinguari, personagem lendário que compõe o imaginário coletivo
do povo Jaminawa e de outros povos indígenas que vivem na Amazônia.
Os ribeirinhos e seringueiros assimilaram também essa história, o que
mostra que esse personagem lendário está inscrito no cotidiano dos várias
comunidades (indígenas e não indígenas) que vivem na floresta. Passaremos,
agora, à análise desses textos, notadamente dos textos dos alunos Jaminawa,
que, como já mencionado, apresentaram dificuldades no agenciamento dos
recursos de coesão e coerência textuais. Vejamos os exemplos:
Textos alunos Jaminawa

Texto 01: T01IMSJ2ºA

o mapinguare
o mapiguari come amulhe aqueli homem
brá muito preguesosa ele deixo
amulhe amulhe estava gravida
quando ela correu ela não pudia maes
corre quando ela parou ela viram datolado
veu uma mapeguari muito peludo
e tem um olho no meio datesta
é altão e ele é tem jeto di homem
tem braço tem pele

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No texto do T01IMSJ2ºA, há um quebra na ordem temporal do evento,


já que o aluno Jaminawa começa, na primeira frase do texto, contando o fim
da história: “a mulher foi comida pelo mapiguari”. O texto se desenvolve com
frases soltas, sem recurso coesivo que faça a interconexão entre elas. Cada
uma dessas frases descrevem um evento independente: I. a mulher estava
grávida; II. o homem deixou a mulher sozinha; III. ela correu e se cansou;
IV. ela viu o Mapinguari; V. e, por fim, faz-se a descrição do Mapinguari. Fica
evidenciada, assim, a dificuldade desse aluno para se utilizar dos recursos
coesivos (conjunções, por exemplo) na produção de seu texto.
Como já problematizado, os textos dos alunos Jaminawa, mais do que
os dos não indígenas, vão apresentar problemas relacionados à grafia das
palavras; contudo, o que parece estar em jogo nessas produções textuais vai
além desses problemas. Exemplos disso são os que se seguem dos alunos
T02NPJ2ºA e T06LMJ2ºA, em que se observa a tentativa de encadeamento
sintático, que se dá através da repetição da conjunção aditiva “e”:

Texto 02: T02NPJ2ºA

mapinguaré
mapinguaré e parece com homem ele tem olho no meio
ele tabem e cabiludo e peludo ele tem Dente grande
ele tem enspinho ele mora no perto do garape
ele proteje os animas
Era uma vez um homem foi ao
garapé pra pega os bodo dentro Do
buraquinho ele vi o mapingaré
comeu o homem e amigo estava preocupado
e um homem foi procura o amigo e
depente olhou o mapinguar
homem pegou o flexa e homen
e matou o mapiguare

Texto 03: T06LMJ2ºA

o mamapineuari e um bix
feio e vive na mata para
mata e comei bixo o
o lho deli na barig
e mora no mato.

93
Texto 04: T04TJ2ºA

o mapiguari
o mapiguari é um bicho que
Tem um olho no meio datesta ele
vivem na froresta e dizer que
tem grito orriveo ele tem Pés Pa
traís ele Proteger ele
dizer que ele e todo peludo

Texto 05: T05FMJ2ºA

O manpiguare e
Bicho que tem um
Olho no meio da testa ele tem pelo i grade
e cabeludo é e muito grande
de que predio. ele tem bigo
ele mora na floresta.

Além desse procedimento, apontamos que, em quatro textos analisados


(T03MJ2ºA, T04TJ2ºA, T05FMJ2ºA e T09ZFJ5ºA), além do conectivo
aditivo “e”, alguns encadeamentos sintáticos são realizados pelo uso do
conectivo subordinativo “que”. No texto T09ZFJ5ºA, do único aluno indígena
do 5º ano, observa-se também o uso da conjunção subordinada adverbial
temporal “quando”:

Texto 06: T09ZFJ5ºA (grifo nosso)

a historia do mapiguri
o mapiguri
o mapiguri e um binho que
Tem um olho no testa
ele tem muito pelo
i tem muito o Mosquito
quando ele acha uma pesoa
corre atras dele ante
pega a pessoa quado ele
pega uma pessoa ele come o
ele tei um iBigue grade
o o de come gente etc.

Esse recurso sintático de coesão com conectivo aditivo “e”, que pode
ser identificado na maioria dos textos Jaminawa, não parece se constituir

94
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

como um procedimento eficiente de encaixe sintático e, por conseguinte, de


coesão textual, dado o grau de repetição dos conectivos e dos encaixes entre
orações.Além disso, há uma perda do referente do discurso, o que inviabiliza
ainda mais a organização dos sentidos como texto. A dificuldade dos alunos
Jaminawa para produzir um texto coeso materializa-se assim, através i) dos
muitos encaixes, da repetição e do uso exclusivo de um único conectivo, assim
como através ii) da não manutenção do referente do discurso.
Os textos dos alunos não indígenas T07ES2ºA e T01LSP5ºA apresentam
também, como pode ser observado, problemas de grafia e de encadeamento
intático:

Texto 07: T07ES2ºA (grifo nosso)

Mapinguari
o mapinguari é um bicho que tem um olho no meio da
testa
uns diz em que é ele é no unbigo – tante- mais alto do que
um homem
tem jeito de o e homem. tem braço – tem pele – eli e todo
cabiludo
Aonde ele pisa o e que nem uma mão de pilão – E ligrita
muito.
Dar cada grito horrível o que quebra o pescoso e chupa
o tutano das pessoas.

Texto 01: T01LSP5ºA (grifo nosso)

O mapinguari
o Mapinguari é um bicho que tem um olho no meio da
testa. Uns dizem que no umbigo. É alto. Mais alto que um
homem. Tem jeito de homem. Tem braço. Tem pele. É todo
cabeludo. A onde ele pisa é que nem uma mão de pilão.
Ele grita muito. Dá cada grito horrível, quebra o pescoço e
chupa o tutano das pessoas.

Contudo, diferentemente dos alunos Jaminawa, vão produzir, em sua


maioria, construções que mais se aproximam das estruturas sintáticas
do português: subordinadas com o conectivo “que”, sem a utilização de
recursividade excessiva de estruturas sintáticas ligadas pelo conectivo aditivo
“e”, o que parece ser indicativo do seu maior domínio do português. Quando
não há a construção de subordinadas, os alunos não indígenas apenas arranjam

95
linearmente estruturas independentes (T01LSP5ºA) muito mais aceitáveis em
português.
Destaca-se, no entanto, que dos 24 (vinte e quatro) textos dos alunos não
indígenas analisados, em pelo menos três (T06MA5ºA, T11J5ºA e T12JE5ºA)
há também o mesmo procedimento de encaixe sintático através do conectivo
aditivo “e”. Mas como pode ser observado no texto em destaque abaixo em,
T11J5ºA, mesmo apresentando certa recursividade de orações com o conectivo
“e”, a estruturação de encaixe sintático vai se mostrar mais diversificada, já
que o aluno não indígena vai utilizar também outras construções coordenadas
(adversativa) e subordinadas (substantiva objetiva direta):

Texto 11 T11J5ºA

um mopinguari mora na floresta


e uma dimonha ouviuuse nas mas cas de perde um
homem era um índio e o indi viu uma pegada
uma pinguari e camuito medo se escondeu na casa
do mapinguari e quando viu um bicho enorme!
Se asustou e comesou acore muito lingeiro e caiu
Voutou para sua casa e nodia seguin te voutouna
floresta e levou uma flecha mas tinha que pegar
no olho entance nabarriga e dise paraum amigo
e dizia que tinha um olho na testa era peludo
e tinha pernas pa trás era peludo
e não com seguimatar

Assim, o que a análise nos mostra é uma regularidade de problemas (de


grafia e de coesão/coerência) que afetam os textos dos alunos Jaminawa em
grau muito mais acentuado se comparados aos textos dos não indígenas.
Observem-se dois textos de alunos não indígenas:

Texto 06: T06MLS2ºA

Mapinguario
mapinguari é um bicho que tem um olho no meio da testa. UNS
dizem que é imbigo. É alto que um homem. Tem jeito de homem
tem braço. Tem pele – é todo cabeludo. Aonde ele pisa é que nem
uma mão de pilão. Ele grita muito. DÁ cada grito horrível, quebra o
pescoço e chupa o tutano das pessoas eu já ouvi falar no mapinguari
mas nunca vi. Eu tinha era medo. Lá no seringal tem um pessoal
que ia quebra castanha e escutava um grito. Muito “alamante” dizem
que tem muita gente viu esse bicho – dizem que é um homem

96
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

“bem altão” não tem quem alcance a altura dele. É uma coisa feia,
feia. Agora dizem que os grito que ele dá, até de ouvir, a gente se
arrepia todinha mas, eu nunca escutei não.

Texto 08 T08TTO5ºA

o mapigari mim pagaré e o bicho com pé para trais e um olho Na


teta ele moram na floresta ele tem mendo da gente. Sam Não do
bicho Fica Na FlorestaPara patais o bicho ele parecem com
conrupiracom pé praatrá com o mapigariele comer as pessoas e
osbecho também ele andaa trais de pessoas e bichoele came
peixe dente FINO

Nesses textos de alunos não indígenas, obseva-se os dois extremos de suas


produções, ou seja, num deles (T06MLS2ºA) há um trabalho de encadeamento
sintático, o que garante a coesão textual e a manutenção do referente
do discurso, enquanto no outro (T08TTO5ºA) essas mesmas condições,
indispensáveis para a construção da textualidade, quase desaparecem. O
resultado é uma escritura desconexa e ineficiente nos seus propósitos. Os
textos dos alunos Jaminawa, assim, se aproximam deste último (T08TTO5ºA)
do qual não se depreende a construção de uma textualidade.
Esses aspectos envolvendo a estrutura linear do texto (coesão) trazem
consequências para a coerência, que é responsável pelo sentido nos textos
aqui analisados. Como já apontado, entende-se que as relações lógico-
semânticas e cognitivas que garantem interpretabilidade do texto dependem
do conhecimento partilhado entre os interlocutores. Assim, observar a
coerência e coesão em qualquer texto é interessante, porque permite perceber
que um texto não existe em si mesmo, mas se constrói na relação emissor-
receptor. A pergunta que surge então é: qual o conhecimento partilhado
entre os interlocutores desse contexto comunicacional entre os professores e
seus alunos? Muito poderia ser dito aqui, visto que essa questão envolvendo
o contexto escolar com seus discursos pedagógicos, didáticos, científicos
constrói-se de forma complexa, em que a contradição entre os sentidos de cada
discurso é o que se sobressai na maioria dos casos. Destaca-se assim, o lugar do
aluno indígena Jaminawa naquilo que ele traz como um pré-construído sobre
a escola, a escrita e a língua. Sabendo que para a cultura Jaminawa, assim
como para outros povos indígenas, a escola e a escrita são práticas recentes
resultantes do contato com o não indígena, é imediata a caracterização do

97
papel do aluno indígena nesse cenário, ou seja, estamos lidando com um
sujeito que desconhece a escrita e os sistemas de ensino/aprendizagem da
escola não somente porque seus pais são analfabetos, mas, sobretudo, por
determinações históricas e sociais que, por um lado, os colocam em uma
cultura em que o conhecimento é passado oralmente e, por outro, os exclui
desse mundo que se “aprende” na escola. Juntese a isso, evidentemente, o
contexto sociolinguístico desses alunos: são falantes de outra língua materna
que não o português. São sujeitos bilíngues que tem o Jaminawa como língua
materna e o português como segunda língua e que, em sua maioria, não
dominam o português a ponto de falar com desenvoltura. Eles têm, sim, um
conhecimento do português como segunda língua, que envolve muito mais
uma atuação como “ouvintes” do que como “falantes”.
Assim, entendendo a coerência como elemento que dá sentido a um texto,
sendo regulada, por sua vez, pela interação entre os interlocutores e pelo
conhecimento de mundo, diremos, no que se refere aos textos dos alunos
Jaminawa, que o ambiente sociolinguístico da sala de aula não garante a
construção de uma relação falante-ouvinte que permita ao aluno Jaminawa
compreender o que seu interlocutor, o professor, deseja. Isso acontece devido
ao distanciamento desse aluno das práticas educativas dos não indígenas, as
quais passam pela construção de uma metalinguagem tanto para a produção
de conhecimento (aprender sobre as coisas do mundo) quanto para o
aprendizado de uma escrita do português, língua com a qual o aluno indígena
pouco se identifica.
Pode-se perceber, também, que a dificuldade do aluno Jaminawa para se
desvencilhar do uso dos recursos da modalidade oral em seus textos escritos
se deve ao fato do professor não refletir junto com seus alunos sobre as
diferenças existentes entre a modalidade oral e escrita. De fato, percebeu-se
quase que um total desconhecimento da realidade linguística brasileira por
parte dos docentes que foram entrevistados, pois muitos afirmaram que só
conhecem três línguas faladas no Brasil: português, inglês e espanhol.
De tal modo, o professor das escolas brasileiras, notadamente da Escola
Municipal Messias Rodrigues de Sousa, não está preparado para receber
alunos falantes de línguas diferentes do português, especialmente falantes
de uma língua indígena, que é ao mesmo tempo absolutamente desconhecida
e desvalorizada. O professor, assim, não compreendendo o aluno bilíngue a

98
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

ponto de valorizar esse conhecimento, não vai usá-lo metodologicamente para


o ensino e a aprendizagem do português.
De volta ao material aqui problematizado, textos de alunos Jaminawa
e de não indígenas, destacamos essa relação entre as línguas Jaminawa e
portuguesa através do texto do aluno T07MJ2ºA:

Texto: T07MJ2ºA (grifo nosso)


era uma vezi
eu iaminhemai
e meu pai u mel pai
foi casa nama
u mel pai o viu ugrito
échega mas peto
é aqueli fedo
équili estreso
u bisho era grati (sh da língua jaminawa)
é cabeludo
tia uibigo mas de u pamo.
e o meupei
a tirou meme mo en bigo
é elicaiu
esta itos e du mapiguari.

No referido texto, evidencia-se uma grafia bastante singular na escrita da


palavra bicho, que foi grafada com BISHO. O aluno ao invés de empregar o
dígrafo “ch” ou mesmo o “x”, que representam, por vezes, o mesmo som em
português, utilizou o símbolo gráfico “sh”, inexistente no alfabeto português,
mas não no alfabeto da língua Jaminawa. Ignorando a existência de uma
ortografia Jaminawa, o professor, de forma simplista, classificaria a escrita
dessa palavra como “erro”.
Mais um texto, agora do aluno Jaminawa T08LJ2ºA, apresenta-se como
exemplar no que diz respeito ao contato entre o português e o Jaminawa:

Texto 08: T08LJ2ºA

o mapinguari e brico reíva


vive na mata pacr mata
cacoro do casado olo mo maríga
e muto reía tamada boi
tele ralo made mato mapinguari
brico le e muto da roleta do
mudo boca

99
O texto T08LJ2ºA expõe esse “contato” entre o português e o Jaminawa,
quando o aluno Jaminawa, ao escrever em português, põe em relação às duas
línguas através do uso do léxico jaminawa: CACORO “corcunda”, MADE
“terra” e MUTO “bicho”. Essas palavras da língua Jaminawa, assim como a
grafia “sh” na palavra “bicho” (texto aluno T07MJ2ºA), provavelmente seriam
consideradas “erros” pelos professores.
De outro modo, se esses alunos fossem percebidos como falantes bilíngües,
a análise de seus textos pelo professor poderia ser outra. De fato, o aluno
Jaminawa vive um processo de aprendizado da escrita do português que é
característico daqueles falantes de mais de uma língua:

O funcionamento discursivo do sujeito bilíngue, não só permite, mas


prevê a mesma utilização de mudança de código (code-switching)
e empréstimo lingüístico (borrowings) em sua gramática. Um bom
bilíngue, e é importante entendermos isso, transita de uma língua
para outra justamente porque diferentemente do monolíngue, tem
competência para tanto. Portanto, a mudança dos elementos de uma
língua para outra não é falta de competência, é sinal de competência do
bilinguismo. (MAHER, 2005, p. 100).

Assim, a escrita do português desse aluno bilíngue não pode ser considerada
“errada”. É, sim, uma escrita que revela a sua competência bilíngue. Entretanto,
nosso olhar não pode ser simplista a ponto de negar que neste caso específico
essa interferência, por não ser percebida e aproveitada, está comprometendo o
aprendizado de ambas as línguas. Estruturas como CACORODO CASADO OLO
MO MARÍGA, E MUTO REÍA TAMADA BOI do referido texto são exemplos
para demonstrar a inconsistência do uso dos mecanismos lexicais e gramaticais
de uma estrutura sintática do português: o texto em questão (T08LJ2ºA) foi
levado ao conhecimento de um professor Jaminawa que afirmou que o aluno
tentou escrever nas duas línguas, mas que, segundo ele, não conseguiu em
nenhuma das duas.
O diretor4 da Escola Municipal Messias Rodrigues de Sousa mostra
preocupação com o modo que a escola recebe os alunos indígenas. Entende
que a comunidade acadêmica não está preparada para lidar com esses alunos
bilíngues e indígenas:

⁴ Nei Lima da Silva é o atual diretor da Escola Municipal Messias Rodrigues de Sousa.

100
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Uma das dificuldades maior, eu diria, não só da escola Messias, mas sim
de Sena Madureira é com o conteúdo né, nós aqui não temos em nosso
currículo, não da de anteceder o conhecimento deles, ninguém está
preparado, a escola não está preparada para oferecer um conteúdo de
qualidade para eles. Até mesmo temos dificuldades até de professores,
então, primeiro sabemos uma coisa que a gente faz que não é direito
da gente é eliminar a questão da cultura deles, a gente internaliza neles
a cultura nossa, eliminando a cultura deles, exatamente por falta de
conhecimento de conteúdo desse pessoal. (04-10-2011).

A coordenadora pedagógica Marly Ararapi Diniz5, por seu turno, destaca os


problemas envolvendo “o modo de vida” Jaminawa que, em uma determinada
época do ano, os leva para as praias dos rios Purus e Yaco, em busca de ovos
de tracajá ou para visitar seus parentes nas aldeias. Os alunos Jaminawa que,
evidentemente, acompanham seus pais nessas jornadas abandonam por certo
período a escola dificultando ainda mais o processo de aprendizagem.
Estamos, portanto, diante de “dois mundos”: de um lado os alunos
indígenas Jaminawa vindos de suas aldeias para estudar na cidade. São
falantes de outra língua que não o português, pré-alfabetizados na sua língua
materna e com um modo de vida que não se encaixa no “calendário” dos não
indígenas. Do outro lado, os professores, alunos não indígenas e gestores da
escola que, com sua forte tradição escolar e escrita, desconhecem e, na maioria
dos casos, negam as tradições orais e indígenas.
De qualquer modo, o fato é que esses alunos Jaminawa chegam à escola da
cidade tendo já experimentado, mesmo que minimamente, a proposta de uma
escola indígena com um currículo diferenciado, em que os conhecimentos da
sua cultura são importantes e, portanto, fazem parte dos conteúdos escolares.
A disciplina de geografia da escola indígena, por exemplo, constrói-se com o
enorme conhecimento que os povos indígenas têm dos rios, matas e lagos.
Assim é também com a disciplina de matemática. Os jaminawa têm sua
maneira própria de produzir conhecimento aritmético com um sistema de
contagem que chega ao número dez, que é levado em consideração nas suas
aulas nas aldeias:

01: wisti “um”


02: rawe = dois

⁵ Marly Ararapi Diniz é Coordenadora pedagógica do 1º ao 4º do Ensino Fundamental na Escola


Messias Rodrigues de Sousa.

101
03: rawe ita wisti = dois mais um
04: rawe ita rawe = dois mais dois
05: meke wisti
06: meke wisti ita wisti
07: meke wisti ita rawe
08: meke wisti ita rawe ita wisti
09: meke wisti ita rawe ita rawe
10: meke rawe
Muitos: itxapa

Na cidade, então, as crianças Jaminawa se deparam com o “mundo


desconhecido” da escola não indígena, em que os conhecimentos que trazem
consigo não são valorizados. A sua língua materna de tradição oral, que
evidentemente é o modo como recortam seu mundo. É através da língua que as
matas, os rios ganham nomes assim como os números de sua matemática. Sua
língua é esquecida em favor da língua portuguesa com longa tradição escrita,
que para os alunos Jaminawa aparece somente como a língua “do outro”.
A relação importante aí, aquela posta entre oralidade e escrita, envolve
diretamente o modo como se propõe o estudo de uma língua. Segundo
Cagliari (2009), uma descrição minuciosa do conjunto de regras do sistema
linguístico de cada língua deve ser feita sobre fatos orais, que se constitui por
uma gama de variedades. O autor continua dizendo que o nosso sistema de
escrita, por ter um uso social muito abrangente, está acima dessas diferenças
entre as variedades, sendo um só para todos. Isso, obviamente, trouxe uma
grande vantagem no uso, mas também uma grande complicação na descrição
das relações entre linguagem oral e escrita:

Essa visão de linguagem oral e escrita tem muito a ver com que
comumente se chama de erro de linguagem. Como a escola tradicional
trabalha com a linguagem somente do ponto de vista da escrita, fica
muito difícil entender os mecanismos da fala e quais os seus usos.
Tudo o que foge do padrão da escrita passa a ser considerado erro. É
preciso acabar com esse equívoco. Do ponto de vista da escrita, está
tudo errado o que vai contra a ortografia e as normas gerais do nosso
sistema da escrita. A escrita também tem um estilo próprio, exigido de
acordo com as circunstâncias pela tradição cultural. (CAGLIARI, 2009
p. 249).

As políticas de ensino e as práticas pedagógicas da escola brasileira


assentadas no imaginário do monolinguismo e da escrita homogeneizante

102
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

afetam duplamente os alunos Jaminawa da Escola Messias Rodrigues de


Sousa, já que não se reconhece da perspectiva da escola qualquer tipo de
tradição oral: nem a da língua materna desses alunos nem da variedade do
português que eles conhecem.
Retornando ao material analisado, apresenta-se uma situação em que, du-
rante o exercício de contação da história do Mapinguari, os alunos Jaminawa
TO6LMJ2ºA e T08LJ2ºA não quiseram participar dizendo que se sentiam
envergonhados por não saber falar bem o português. Quando se solicitou que
contassem na língua jaminawa também se negaram afirmando que todos os
colegas iriam rir. E mesmo com a insistência da professora da turma os alunos
se recusaram veementemente.
Vemos aí, nesse contexto específico da escola Escola Municipal Messias
Rodrigues de Sousa, um sujeito bilíngue que não consegue se identificar com
o português, a língua oficial e, curiosamente, nem com a sua língua materna, o
que, notadamente, serve para expor o modo como a língua indígena é tratada
no ambiente escolar: ela é apagada e, se aparece, ganha essa “voz” que é
motivo de escárnio.
Isso posto, podemos sugerir que a escola, do modo como se organiza
hoje, ainda não consegue garantir uma formação adequada aos alunos que
falam outra língua que não o português, ela não garante a formação de “bons
bilíngues” nem tão pouco a formação de sujeitos que dominem a variedade
padrão do português (escrita e falada).

3 ALGUNS ENCAMINHAMENTOS

No que diz respeito à produção textual e oral dos alunos Jaminawa,


confirmou-se a hipótese de que há uma maior dificuldade dos alunos falantes
de outra língua materna que não português para se alfabetizarem na língua
oficial do Brasil em nossas escolas. De fato, a partir da análise dos textos
Jaminawa (escritos e orais), explicitaram-se, em parte, essas dificuldades e
também se constatou que os alunos Jaminawa vêm adquirindo, sobretudo,
o português padrão escrito, de forma muito mais lenta. Junte-se a isso o fato
da escola, professores especialmente, não terem metodologia e conhecimento
para lidar com os problemas que se apresentam.

103
De qualquer modo, mesmo com uma escola que ainda não está preparada
para o bilinguismo e a interculturalidade, os alunos Jaminawa marcam sua
identidade na produção acadêmica através de suas produções orais ricas em
detalhes. De fato, sua tradição que envolve dentre outras coisas a oralidade e
sua relação singular com a natureza também foi trazida para contar a história.
O exercício oral mostrou-se profuso no uso de expressão corporal e rico em
detalhes, materializando seu conhecimento diferenciado sobre o tema.
Queremos destacar que o bilinguismo dos Jaminawa é fator decisivo
para o entendimento dos processos de ensino e aprendizagem dos alunos
indígenas na escola Ensino Fundamental Messias Rodrigues de Souza. Assim,
para ensinar português, o professor precisa conhecer, minimamente, a outra
língua, a primeira língua que, invariavelmente, influencia a segunda língua.
Daí a necessidade de se produzir materiais sobre e em língua Jaminawa.
Evidentemente, esse é um trabalho que precisa ser feito a médio e longo
prazo e envolve um esforço conjunto de pesquisadores de diferentes áreas,
notadamente, da área da linguística e educação, assim como dos próprios
falantes Jaminawa.
Contudo, a produção de literatura Jaminawa deve levar em consideração
a relação entre oralidade e escrita garantindo à primeira o valor que por
séculos lhe foi negado. Nessa perspectiva, cita-se o ensino contemporâneo
do português em que não se considera de forma simplista “erro” falar, por
exemplo, respeitando as variedades regionais do português que por ventura
não se enquadrem dentro das normas da escrita. O “diferente” que, nesse
caso, são as variedades ágrafas do português, precisa ser valorizado e isso já
pode ser observado quando, da perspectiva dos estudos linguísticos, essas
variedades não são consideradas “erradas”, somente menos “aceitáveis”
socialmente. A língua Jaminawa, uma língua ágrafa com forte tradição
oral, passa a ser estudada, assim, em um momento histórico em que estão
sendo revistas as afirmações equivocadas e preconceituosas sobre o valor da
oralidade e, consequentemente, sobre o valor das línguas e culturas ágrafas.
Diante das questões expostas nesse trabalho, especificamente envolvendo
as dificuldades de aprendizagem de alunos falantes de outra língua que
não português, nesse caso o Jaminawa, em nossas escolas, gostaríamos de
contribuir com algumas sugestões. Entendemos a necessidade de:
1. levar a experiência de educação bilíngue das escolas de fronteira,

104
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

implementada pelo projeto OBEDF para aquelas escolas que não são
de fronteira, mas que recebem alunos falantes de outra língua, como é
o caso da Escola Messias Rodrigues de Sousa;
2. dar ênfase à oralidade em sala aula, pois é importante para o aprendizado,
sobretudo, dos alunos indígenas que trazem os conhecimentos de uma
cultural oral. Essa ação vai ajudar na valorização do aluno indígena,
assim como dos outros alunos não indígenas que ainda não dominam a
variedade padrão (escrita e falada) do português, o que, em decorrência,
contribuirá para o seu processo de aprendizagem do português padrão;
3. incluir na grade curricular do curso de formação continuada para
professores discussões sobre questões indígenas tais como língua,
cultura, legislação;
4. ter contratação pela Secretaria Estadual de Educação de professor
bilíngue para atuar em sala de aula dando subsídio aos professores não
indígenas.

REFERÊNCIAS

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização sem o BÁ- BÉ-BI-BÓ-BU. São Paulo:


Scipione. 2012.

________, L. C. Alfabetização e Linguística. São Paulo. Scipione. 2009.

CARRAHER, T. N. Explorações sobre o desenvolvimento de português.


Isto se aprende com ciclo básico. Projeto Ipê. Secretaria de Educação. S.P. SE/
IENP. 1986.

KOCH, I.G.V. e TRAVAGLIA, L.C. Texto e Coerência. Editora Cortez. 1977.

MAHER, Terezinha Machado. A criança indígena: do falar materno ao falar


emprestado. In FARIA, A.L.G. MELLO, S (org.). O mundo da escrita no
universo da pequena infância. Campinas: autores associados. 2005.

MARCUSCHI, L. A. Linguística de Texto: que é como se faz? Recife. UFPE.

OBEDF: Observatório da Educação na Fronteira (OBDEF). Projeto de


pesquisa aprovado pela CAPES através do Edital no. 038/2010/CAPES/INEP.

105
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

APONTAMENTOS SOBRE A
ORTOGRAFIA DA LÍNGUA
JAMINAWA: ENTRE O
LINGUÍSTICO E
O NÃO LINGUÍSTICO
Marci Fileti Martins1

RESUMO

A partir da análise de duas propostas ortográficas: a do Guia del Alfabeto Ya-


minawa e da Cartilha Jaminawa, produzidos na Bolívia e no Brasil, respectiva-
mente, e de um corpus constituído por, aproximadamente, 100 itens lexicais em
língua Jaminawa, que tomou como base os termos elencados nas referidas car-
tilhas (PADILHA 2013), o trabalho pretende contribuir para a desenvolvimento
da ortografia Jaminawa, assim como busca servir como um indicador para os
estudos da fonética/fonologia da língua, ainda carente de descrição.

Palavras-chave: Língua Jaminawa, fonética e fonologia, sistema ortográfico.

1 INTRODUÇÃO

Darmesteter prevê o dia em que se pronunciarão


até mesmo as duas letras finais de vingt, verdadeira
monstruosidade ortográfica. Essas deformações fônicas
pertencem verdadeiramente à língua, apenas não
resultam de seu funcionamento natural; são devidas a
um fator que lhe é estranho. A linguística deve pô-las
em observação num compartimento especial: são casos
teratológicos (SAUSSURE 1991, p.41).

¹ Professora Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas – PROFLLIND – Museu


Nacional/UFRJ e beneficiária de auxílio financeiro da CAPES – Brasil – AUXPE n. 2107/2010.

107
O propósito desse trabalho é contribuir para os estudos sobre a língua
Jaminawa, com ênfase na investigação dos processos envolvendo o
desenvolvimento de escrita e sistemas ortográficos. Para tanto, propõe-
se a análise de duas propostas ortográficas: o Guia del Alfabeto Yaminawa
(Bolívia) e a Cartilha Jaminawa (Brasil), paralelamente, à análise de dados
linguísticos referentes às variedades da língua Jaminawa falada nas aldeias
Kanamari (Terra Indígena Kaite, no Estado do Acre) e Sete Estrela (Terra
Indígena Kaiapuka, no Estado do Amazonas) (PADILHA 2013).
Os materiais didáticos serão tratados como casos exemplares tanto da
problemática envolvendo o estabelecimento de sistemas ortográficos de base
fonológica para línguas carentes de descrição linguística, como é o caso da
língua Jaminawa, quanto da complexidade desse tipo processo, em que se
relacionam, por um lado, uma língua de oralidade2 e, por outro, certa tradição
de conhecimento linguístico fortemente constituída pela escrita.
O Jaminawa (Iaminawa, Yaminawa, Yaminahua) é um povo ou povos
falantes de uma língua de mesmo nome e, de acordo com Calávia Saez (1995
apud PADILHA 2013), dividem-se em um número determinado de clãs de
caráter “totêmico” e de linha paterna, nomeados Xixanawa (gente do quati),
Kununawa (gente da orelha de pau) Sharanawa, (gente boa) Mastanawa,
(gente guerreira), dentre outros. A denominação Jaminawa foi lhes dada por
outros, sendo mencionada por José Correa Jaminawa como o nome dado pela
FUNAI em 1975, justamente, por “desconhecer a realidade dos índios que
viviam no Estado” do Acre , mas que, atualmente, já foi assimilada e aceita
pelo povo que passou a se autodenominar Jaminawa. (“Papo de índio”, 2006
apud PADILHA 2013, p. 16).
No conjunto das línguas Pano, o Jaminawa está posicionado, segundo
Ribeiro (2003 apud SOUZA, 2012), no Grupo I (Pano das Cabeceiras),
especificamente, no Subgrupo IV desse grupo3, no qual também se inclui o

² Souza (2017) propõe a denominação sociedades de oralidade no lugar de sociedades orais


ou ágrafas, afirmando que não se deve tomar a escrita – nem tampouco a sua falta – como
parâmetro para se definir o que é oralidade. Diferentemente das sociedades de escrita, nas de
oralidade, o oral deve ser pensado na sua própria materialidade e não a partir da sua visibilidade
em línguas de escrita.
³ Ribeiro (2003 apud SOUZA 2012, p. 11-13) classifica as línguas panos em cinco grandes gru-
pos, os quais apresentam subdivisões. Para essa classificação utilizou “um método léxico - es-
tatístico, e 20 línguas Pano do Brasil, Bolívia e Peru, com listas de Swadesh contendo 100
palavras.”

108
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Shanenahua, o Shawãdawa (Arara), o Yanawawa e o Shanenawa. Os povos


Pano apresentam homogeneidade cultural e linguística, concentrando-se em
uma área geográfica contínua localizada no Sudeste Amazônico: abrange o
Peru, a Bolívia e o Brasil. No que concerne aos Jaminawa e sua localização,
Padilha (2013) afirma que habitam as regiões do Estado Acre e das fronteiras
brasileiras com a Bolívia e o Peru. No Brasil, somam uma população crescente
de 1.800 pessoas, sendo duas as suas terras indígenas (TI) demarcadas: a
TI Mamoadate, no Rio Yaco, com a extensão de 313.647 hectares, localizada
entre os municípios de Sena Madureira e Assis Brasil, e a TI Cabeceira do Rio
Acre, com 76.680 hectares, localizada no município de Assis Brasil. Contudo,
segundo a mesma autora, há muitas famílias Jaminawa que vivem fora das
terras demarcadas morando em diversos seringais (Kaiapucá, São Paulino,
Caeté, extremo e Seringal do Guajará) da região.
A língua Jaminawa é a dominante nas comunidades e, mesmo naquelas
que se situam em cidades, como a do Beco do Adriano, em Sena Madureira
(AC), por exemplo, o Jaminawa é usado na maioria das interações sociais:

Para os pais Jaminawa a experiência de viverem no meio dos “brancos”,


na cidade, não os coloca necessariamente fora do grupo ou fora do
povo. Uma das características marcantes para identificar uma pessoa
Jaminawa em Sena Madureira é que ela se comunica na sua língua
materna, que é o Jaminawa. (PADILHA 2013, p. 43)

Destaca-se, também, o bilinguismo nas comunidades Jaminawa que, na sua


maioria, fala e compreende o português sem, contudo, ter muita proficiência
nessa segunda língua. O bilinguismo Jaminawa pode ser entendido, nos termos
de Maher (2005 apud Padilha 2013), como “bilinguismo de minoria”, em que o
este assumiria um caráter compulsório. De fato, os Jaminawa parecem entender
como uma necessidade o aprendizado do português, já que na situação de
contato com a comunidade envolvente (majoritária) o conhecimento da língua
portuguesa pode ser garantia de “pertencimento”, o que pode ser proveitoso na
defesa de seus direitos enquanto indígenas que são:

O professor da aldeia Kaiapuká, Samuel Jaminawa, afirma: “Eu penso


que estamos trabalhando certo na aldeia, primeiro nossos filhos
aprendem o Jaminawa na nossa escola e depois para quebrar o galho
não ficar fora do mundo da civilização, aprender a falar o português”.

109
Os Jaminawa mesmo os que moram nas aldeias, tem consciência que
precisam aprender a falar o português, para defender os seus direitos.
(PADILHA, 2013, p. 28)

Nesse contexto, no qual dominar a língua portuguesa é importante


politicamente para os Jaminawa, a escola aparece como o ambiente possível
para o aprendizado do português e, consequentemente, como uma espaço
político e de autonomia. A escola, assim, surge como uma reivindicação das
comunidades Jaminawa, reivindicação esta baseada no direito que os povos,
historicamente marginalizados, têm à educação.
Os esforços para a implantação de uma escola Jaminawa fundamentam-
se nas proposições da Educação Escolar Indígena, ou seja, na busca por uma
escola diferenciada e com ensino da língua Jaminawa nos níveis iniciais de
ensino (alfabetização e ensino fundamental). Contudo, mesmo tomando como
base para seu planejamento as diretrizes da Educação Escolar Indígena, a
educação escolar Jaminawa, como a de muitos outros povos indígenas, não
apresenta resultados que podem ser considerados relevantes se confrontados
com seus objetivos.
Na grande maioria das escolas indígenas, e na dos Jaminawa não é diferente,
o desenvolvimento da escrita em língua indígena apresenta-se, ainda, num
estágio bastante elementar. Evidência disso, nas escolas Jaminawa, são as
raras produções escritas na língua e sobre a língua. Padilha (2013), na revisão
bibliográfica dos materiais linguísticos e educacionais referentes à língua
Jaminawa, identificou os seguintes: três propostas de ortografia para a língua:
i) a Cartilha Jaminawa (monolíngue) produzida pela Secretaria Estadual de
Educação do Estado do Acre em 2003, durante o IV módulo do Curso de
Formação em Magistério Indígena, ii) o Guia del Alfabeto Yaminawa (bilíngue
jaminawa/espanhol) produzida em 2003, pelo Ministério da Educação da
Bolívia e iii) a cartilha Noko Kede I - I Cartilha de Alfabetização em Língua
Jaminawa, produzida pela CPI (Comissão Pró-índio do Acre), em 1991. A
pesquisa bibliográfica mostrou ainda, que não há estudo linguístico (descrição
fonológica/morfossintática) da língua.
Ampliada discussão, cita-se o contexto educacional envolvendo os indígenas
que vivem em cidades. Padilha (2013), tratando do processo de ensino-
aprendizagem da língua portuguesa de alunos indígenas Jaminawa, na Escola
Pública Municipal Messias Rodrigues de Sousa, em Sena Madureira (AC),

110
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

mostra por um lado, o problema enfrentado por professores que também não
estão preparados para receber os alunos Jaminawa vindos de diversas aldeias
da região e, por outro lado, as dificuldades desses alunos por não dominarem
suficientemente o português e nem terem sido satisfatoriamente alfabetizados
em sua língua materna, o que evidentemente os leva a terem dificuldades para
desenvolver a escrita e leitura em língua portuguesa.
A partir da análise da produção escrita e oral desses alunos, Padilha
(2013) aponta alguns problemas de ortografia na escrita da língua portuguesa
relacionados diretamente com o processo de alfabetização em língua Jaminawa.
Em sua análise, a referida autora observou no texto de um aluno Jaminawa
uma grafia bastante singular na escrita da palavra “bicho”. Essa palavra foi
grafada pelo aluno como “BISHO” que, ao invés de empregar o dígrafo “ch”
ou mesmo “x” que grafam, por vezes, a consoante fricativa palato-alveolar /ʃ/
do português, utilizou o símbolo “sh”. O grafema “sh” representa, no sistema
ortográfico do Jaminawa, a consoante fricativa retroflexa /ȿ/, inexistente
no sistema fonético/fonológico do português. Sem avançar na discussão do
que teria motivado do aluno Jaminawa a fazer tal escolha, menciona-se que
a consoante /ȿ/ tem o mesmo modo de articulação da consoante fricativa
palato-alveolar /ʃ/ do português, indicando uma proximidade fonética entre
os dois sons.
Ao desconhecer a experiência de um processo de alfabetização anterior
baseado em outro sistema ortográfico que não o do português, pelo qual,
possivelmente, esse aluno Jaminawa passou, o professor irá avaliar da palavra
“bicho” escrita com “sh” como um erro de ortografia, o que, segundo Padilha
(2013), não é a análise mais condizente nem a mais produtiva:

Trata-se, evidentemente, de um único exemplo, mas que deve ser visto


como um caso exemplar envolvendo reconhecimento por parte das
escolas do contexto bilíngue e de diversidade cultural em que muitas
delas se inserem. Dito de outra maneira, as escolas que recebem
alunos falantes de outras línguas que não o português precisam se
munir de conhecimento sobre esses alunos, que envolvam desde
dados privados, como os referentes ao parentesco (família), por
exemplo, até aqueles de cunho histórico, antropológico e linguístico.
(PADILHA 2013, p. 100)

111
1.1 A Gramatização4 como Política Linguística?

Longe de se estabelecer como um consenso, a proposição de projetos


educacionais para os povos indígenas constitui-se engendrando uma
multiplicidade de questões. Uma das mais complexas é a seguinte: como propor
uma educação escolar indígena diferenciada? De fato, um dos fundamentos
desse empreendimento é o reconhecimento da identidade linguística e
cultural próprias a esses povos. Esta afirmação, além marcar a importância
de se considerar a diversidade cultural e linguística, aponta também para a
necessidade de se buscar estratégias de ensino e aprendizagem que sejam
caracterizadas por essas especificidades culturais. Esse tipo de política
educacional e linguística, todavia, sofre a ação de uma força contrária: os efeitos
do processo de colonização do Brasil, notadamente, do que Mariani (2003,
p. 73) denominou colonização linguística do Brasil: “o processo histórico que
aglutinou a realeza e a igreja portuguesas em um projeto político-linguístico
em larga medida comum e simultaneamente nacional e internacional”.
A mesma autora aponta duas consequências fundamentais desse processo
colonizador: i) o nascimento de uma tradição de saber metalinguístico
sobre as línguas indígenas brasileiras (gramatização) e ii) o estabelecimento
de políticas portuguesas de defesa e implantação do idioma português no
território brasileiro (Brasil monolíngue  português a única língua oficial).
Assim, a educação dos e para os povos indígenas, implementada pelo projeto
educacional jesuítico/português, serviu como um meio de dominação,
como um instrumento usado pelo colonizador para impor sua cultura e seu
projeto político. Em um primeiro momento, funda-se as bases da escrita em
línguas indígenas (construção de um saber metalinguístico) e promove-se o
Tupinambá à categoria de língua franca; em um segundo momento, impõe-se
o português como única língua oficial com consequente exclusão, do cenário
linguístico (também educacional se se levar em consideração o Tupinambá)
das outras línguas indígenas faladas no território brasileiro.
As políticas linguísticas e educacionais contemporâneas mesmo decidindo
pela defesa do espaço social/institucional/político das línguas indígenas no

⁴ “Por gramatização deve-se entender o processo que conduz a descrever e instrumentar uma
língua na base de duas tecnologias que são ainda hoje os pilares do nosso saber metalinguísti-
co: a gramática e o dicionário.”(AUROUX 1992, p. 65)

112
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

cenário educacional, são afetadas por essa memória da colonização. Destaca-


se aqui, a tradição ocidental de saber (meta)linguístico, responsável pelo que
Auroux (1992) chama de

a revolução tecno-linguística que, a partir do Renascimento europeu,


tanto organizará uma produção maciça de gramáticas e de dicionários
monolíngues para as línguas neo-latinas, quanto proporcionará a
‘tecnologia’ necessária para a descrição das línguas do novo mundo.
(MARIANI 2003, p. 73)

O desenvolvimento de sistemas ortográficos para as línguas indígenas,


tomada aqui como elemento em análise, portanto, é um exemplo desse tipo de
produção, a qual está diretamente ligada ao desenvolvimento de sistemas de
escrita. A escrita, de acordo Auroux (1992), foi a tecnologia fundamental para
a constituição do saber metalinguístico, o que contraria o pressuposto de que
conhecimento metalinguístico foi o que determinou a origem da escrita. Desse
modo, a “revolução tecnológica da gramatização” somente se tornou possível
com o advento da escrita.
Aceitando ou não a tese de Auroux (1992), a proposta de desenvolvimento
de um sistema de escrita em língua Jaminawa, juntamente com a necessária
implementação de seu sistema ortográfico, podem ser entendidas como uma
“gramatização” da língua, no sentido que possibilitará sua instrumentalização
em acordo com um eixo organizador: certos modelos de gramática baseados
na já referida tradição de saber metalinguístico. A questão já posta: “como
propor uma educação escolar indígena diferenciada?” ganha seus contornos,
evidenciando a intricada tarefa que é, por exemplo, escrever em língua
Jaminawa sendo a escrita determinada de antemão por um conhecimento, por
uma tradição estranhos à cultura Jaminawa. De fato, a proposição norteadora
desse trabalho que assinala a necessidade de se produzir conhecimentos
linguísticos sobre os sons da língua Jaminawa em termos de sistemas fonético
e fonológico, como uma das condições para o desenvolvimento de um sistema
ortográfico, expõe a contemporaneidade de uma ciência da linguagem, que
se impõe como gramatização. Dito de outra maneira: o desenvolvimento
de sistemas de escrita é, na atualidade, resultado de uma reflexão sobre a
natureza da linguagem, fruto, portanto, do saber metalinguístico.
Necessária, nesse contexto em que se propõe ouvir a “voz” dos povos

113
indígenas na produção de seus sistemas de escrita, é a afirmação da
contradição, ou seja, da busca por uma fissura no arcabouço das ciências
da linguagem que possibilite encontrar a “falha”5. O deslocamento, assim,
pode emergir dos próprios princípios que regem um alfabeto: o princípio
da convenção (regras padronizadas) constitutivo de um sistema ortográfico,
pode ser o elemento capaz de regular, em certa medida, a determinação dos
modelos gramaticais institucionalizados. Dessa perspectiva, a escrita e sua
ortografia são consideradas contratos sociais e, portanto, não seria somente
a “técnica”: a fonologia (1 fonema = 1 grafema), o pedagógico (mais fácil para
ser ensinado/apreendido), o que determinaria um sistema ortográfico. Fazem
parte do empreendimento, portanto, elementos provenientes de demandas
político-sociais.
Dois casos podem ser esclarecedores. Um deles relaciona-se com a proposta
dos povos Guarani que, em seu movimento para o desenvolvimento de um
sistema ortográfico, optaram por representar cada uma das suas variedades
linguísticas (Mbya, Kaiowa e Nhandeva) por sistemas gráficos diferenciados.
Outro, é o caso da língua Quechua quando de sua oficialização, em 1975. Nesse
momento, de acordo com Alfaro6 foi necessário decidir sobre a representação
ortográfica do sistema vocálico do Quechua composto por três vogais: /a/, /i/ e
/u/. Os linguistas propuseram as letras “a”, “i” e “u” para representá-las, o que
foi recusado pelos membros da Academia Cusquenha, que argumentaram não
ser possível aceitar que a língua espanhola tivesse cinco vogais e o Quechua
somente três. A questão foi resolvida com uma negociação, que resultou na
admissão dos alofones [e] e [o] no sistema ortográfico do Quechua.
De tal modo, tanto a concepção “tecnicista” quanto a “político-social” adotadas
no desenvolvimento de sistemas ortográficos, são ambas “determinações
que sustentam um tipo de intervenção” sobre língua (CALVET 2007), o que
corrobora outra afirmação de Calvet (2007) de que a política linguística é
inseparável de sua aplicação:

A intervenção humana na língua ou nas situações linguísticas não é

⁵ “É importante ressaltar que apesar da força engendrada pela colonização linguística, não há
ritual sem falhas. Assim sendo, à revelia da colonização linguística imposta pela metrópole, pe-
quenos lugares de esgarçamento nessa ideologia de dominação pela língua do colonizador vão
sendo constituídos.” (MARIANI 2003, p. 81)
⁶ http://br.groups.yahoo.com/group/etnolinguistica/files/Biblioteca_Virtual/Liderancas_Indigenas.
pdf (agosto 2003)

114
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

novidade: sempre houve indivíduos tentando legislar, ditar o uso correto


ou intervir na forma da língua. De igual modo, o poder político sempre
privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa
língua ou mesmo impor à maioria a língua de uma minoria. No entanto,
a política linguística (determinação das grandes decisões referentes às
relações entre as línguas e a sociedade) e o planejamento linguístico
(sua implementação) são conceitos recentes que englobam apenas em
parte essas práticas antigas (CALVET 2007, pg. 11)

O trabalho que aqui se configura, portanto, pode ser considerado um


material de apoio para o planejamento linguístico de projetos envolvendo o
desenvolvimento da ortografia e da escrita da língua jaminawa.

2 A ANÁLISE

Na forma de apontamentos preliminares, a discussão fornece elementos


para a compreensão da fonética e da fonologia da língua Jaminawa, ao mesmo
tempo em que investiga o modo como nesses nos dois materiais didáticos (Guia
e Cartilha) relaciona-se fone, fonema e grafema. Para além de se estabelecer
uma comparação entre os dois sistemas ortográficos, interessa aqui, indagar
sobre os critérios utilizados para a produção desses materiais didáticos e se
esses procedimentos levaram em consideração o conhecimento linguístico da
língua para a concretização de seus objetivos linguísticos e educacionais.
A análise proposta toma como base um Corpora constituído por dois tipos
de dados: Corpus 1: dados referentes aos dois materiais didáticos: a Cartilha
Jaminawa (Cartilha) e o Guia del Alfabeto Yaminawa (Guia), e Corpus 2:
dados linguísticos referentes às variedade da língua Jaminawa faladas nas
aldeias Kanamari, da Terra Indígena Kaite, no Estado do Acre, e Sete Estrela,
da Terra Indígena Kaiapuka, no Estado do Amazonas (CKK). A coleta foi
organizada a partir de um questionário previamente elaborado por Padilha
(2013), que tomou como base as palavras elencados nos referido materiais
didáticos (Corpus 1). São aproximadamente 100 itens lexicais, dentre os quais
se destaca: termos de fauna e flora, de partes do corpo, de parentesco, dentre
outros. Participaram como colaboradores para a constituição do Corpus 2, os
falantes bilíngues do Jaminawa e do português: Geraldo Jaminawa e Josué
Jaminawa, professores das aldeias Kanamari e Sete Estrela, respectivamente.

115
2.1 As Propostas Ortográficas

2.1.2 A Cartilha Jaminawa

A Cartilha é um material monolíngue em língua Jaminawa7, produzido,


segundo Maria Corrêa da Silva, Ex-Secretária Adjunta de Ensino do SEE do
Estado do Acre, por um grupo de professores Jaminawa falantes bilíngues
(Jaminawa/português) e monolíngues em português, durante o IV Módulo
do Curso de Formação em Magistério Indígena, promovido pela Secretaria de
Estado de Educação, em 20038. A Secretária afirma ainda, na Apresentação
da Cartilha, que “o material tem caráter experimental e poderá/deverá ser
revisto, alterado e/ou substituído em futuras edições que os Jaminawa com
certeza demandarão.” (TEKE at al 2003, p. 5).
O material exibe um formato tradicional apresentando em destaque uma
palavra em língua Jaminawa, sendo que a primeira letra dessa palavra é o
grafema a ser aprendido. O grafema ganha destaque ao compor, juntamente
com vogais, uma sequência de segmentos silábicos:

⁷ Variedades do Jaminawa faladas nas Terras Indígenas Cabeceira do Rio Acre, Jaminawa da
Colocação São Paulino, Jaminawa Arara do Rio Bagé, Jaminawa do Igarapé Preto, Mamoadate
e Jaminawa do Rio Caeté.
⁸ A Cartilha Jaminawa não apresenta data, assim tomaremos como referência a data IV Módulo
do Curso de Formação em Magistério Indígena que ocorreu em 2003.

116
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Acompanha, ainda, à apresentação do grafema, uma gravura e um pequeno


texto que fazem referência a palavra tema (Shawe “jabuti”), além de um
exercício de escrita baseado em uma lista de questões sobre o texto proposto.
Não há no material, indicação de referências bibliográficas, o que contrasta
com a declaração da Secretária Adjunta de Ensino do SEE quando afirma
que a escrita Jaminawa conta com aporte técnico-científico e utiliza alfabeto
criado a partir de estudos de descrição linguística. A Secretária diz ainda, que
as lideranças do povo Jaminawa, especialmente os professores, não aceitam
maiores interferências na sua produção escrita, o que poderia justificar a
inexistência de dos registros bibliográficos dos referidos estudos de descrição
linguística sobre a língua, na Cartilha.
Dito isso, apresenta-se o sistema ortográfico da Cartilha, que conta com 20
letras: 4 vogais e 16 consoantes, sendo o número de grafemas proposto maior
que a versão da Bolívia (as consoantes B e D da Cartilha não aparecem no Guia
del Alfabeto Yaminawa):

Consoantes
p b n m
t d k r
s h sh tx
ts x y w

Vogais
a e i u

2.1.3 O Guia del Alfabeto Yaminawa

O Guia del Alfabeto Yaminawa é um material bilíngue (Yaminawa/


espanhol) produzido em 2003, na Bolívia, por uma equipe do Ministério de
Educación - Viceministerio de Educacion Escolarizada y Alternativa, mas traz
em destaque, como autores do material, os nomes dos professores Jaminawa
Lucibal Rodriguez da Silva e Janneth Olivio.
É uma revisão detalhada do alfabeto Yaminawa elaborada em 1996,

117
no Segundo taller sobre alfabetos de las lenguas del oriente boliviano,
em Tumichukua, do qual participaram os professores Jaminawa: Lucibal
Rodriguez da Silva e Eduardo Melendre Luis e a linguista Pilar Valenzuela. O
Guia tem como finalidade ensinar aos falantes Yaminawa,

de maneira autoinstrutiva, a escritura normatizada deste idioma a partir


dos conhecimentos que já tem do alfabeto castelhano. É possível ler as
palavras em yaminawa aplicando os conhecimentos de leitura e escrita
em castelhano. [...] Este texto é dirigido a todo o povo yaminawa, a todas
as autoridades tradicionais y especialmente aos professores bilíngues
que trabalham na região (SILVA e OLIVIO 2003, p. 5-6)

O material é constituído por 4 capítulos e por um anexo. O primeiro capítulo,


organiza-se a partir de informações sobre i) o povo Jaminawa (descrição do
povo, localização geográfica, história do povo, organização social e política,
língua: filiação e contatos) e ii) o alfabeto (história das oficinas, letras parecidas
com o castelhano, letra próprias do Yaminawa).
No segundo capítulo, apresenta-se a proposta ortográfica propriamente
dita que, por sua vez, está ordenada em duas seções:

na primeira, as letras comuns ao castelhano – que servem de base para


iniciar o aprendizado do alfabeto – e na segunda, as letras próprias
do yaminawa. Toda esta apresentação vai acompanhada da ilustração
de cada letra e de atividades simples propostas para consolidar o
aprendizado (SILVA e OLIVIO 2003, p. 5)

O terceiro e último capítulo traz uma série de textos (denominados


poesias, canções e histórias), em que se exibe a escrita com o alfabeto
proposto e que, segundo os autores, serve para exercitar a leitura na língua.
No quarto e último capítulo, o das referências bibliográficas, há um item
denominado Bibliografia linguística, no qual se afirma não haver informação
bibliográfica sobre o Yaminawa da Bolívia, pois a migração dentro das
fronteiras do território boliviano é, relativamente, recente: “A bibliografia
do ILV na Bolívia 1965-1985 não inclui material sobre a língua yaminawa.
É preciso consultar os dados do yaminawa do Peru e do Brasil.” (SILVA e
OLIVIO 2003, p. 65). As referências, assim, se reduzem a três itens, divididos
pelas denominações:

118
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Gramática
Eakikin, Lucille (1991). “Lecciones para el aprendizaje del idioma
yaminawa”. Documento de trabajo 22, Yarinacocha, Peru: ILV Ministerio
de Educación.

Textos
Usudawa, Julio y otros (1994). “Geografia Jaminawa”. XIII Curso de
Formação de Professores Indígenas do Acre e Sudoeste do Amazonas.
Rio Branco, Brasil.
Cartillas de alfabetizacion en yaminawa (serie Kirika), elaborados em el
Perú por el ILV (SILVA e OLIVIO 2003, p. 65)

Nos anexos, além de outras informações sobre a variação entre as grafias do


alfabeto peruano e brasileiro, os critérios de elaboração e revisão do alfabeto
yaminawa: técnicos, psicopedagógicos, sociopolíticos, destaca-se a seguinte
nota dos autores:

PARA OS FALANTES QUE USAM OUTRO ALFABETO


O alfabeto yaminawa foi elaborado por consenso a proposta de alfabeto
do ILV de Peru e o texto “Geografia Jaminawa” utilizado no Brasil (SILVA
e OLIVIO 2003, p. 67)

No que diz respeito à proposta ortográfica, o Guia apresenta 18 letras: 4


vogais e 14 consoantes. Comparado com a produção brasileira, observa-se a
diferença no número de consoantes. Como já pontuado, as consoantes B e D
da Cartilha Jaminawa não aparecem no Guia:

Consoantes
p t n m
f s x sh
ts ch k j
r y

Vogais
a e i o

119
2.2 Grafemas e Sons

Além da diferença quantitativa no número de grafemas nos dois materiais


didáticos, podem ser citadas ainda, aquelas resultantes da escolha dos
símbolos gráficos. Essas divergências podem estar relacionadas, por um lado,
à tentativa de aproximação do sistema ortográfico proposto ao das línguas
oficiais dos países (espanhol/português) nos quais se produziram os materiais
e, por outro, às possíveis diferenças dialetais: variedade do Jaminawa falada
na Bolívia e outra falada no Brasil.
De fato, as discrepâncias entre as duas propostas decorrentes de uma
possível diferença dialetal, é mencionada no anexo do Guia del Alfabeto
Yaminawa, quando destaca as diferentes opções ortográficas nos alfabetos
Jaminawa produzidos no Peru e no Brasil (Quadro 1), os quais foram tomados
como base para a produção boliviana:

Quadro 1
Alfabeto Yaminawa Alfabeto Jaminawa
(Peru) (Brasil)
- letra “O” Pode variar com - letra “U”
- letra “F” Pode variar com - letra “W”
- letra “M” Pode variar com - letra “B”
- letra “N” Pode variar com - letra “D”

Mesmo utilizando os grafemas para indicar a variação dialetal, o Guia faz


menção à distinção necessária entre letra e som ao apresentar, nas páginas
iniciais do material, uma representação do trato vocálico: os 14 grafemas
estão dispostas numa tentativa de indicar os pontos e os modos de articulação
consonantais:

120
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Quadro 2

Alude também, ao quadrilátero vocálico comum à representação das


vogais:

Quadro 3

Como pode ser observado na imagem que busca representar o diagrama


das vogais (Quadro 3), a letra “e” está situada na posição da vogal central,
alta, oral, não arredondada [ɨ]. A escolha da vogal “e” para grafar o segmento

121
[ɨ] - ortodoxamente representado na tradição linguística pela consoante “y” -
pode ter sido motivada pelo fato de a letra “y” já ser empregada na ortografia
da língua espanhola para representar tanto a vogal “i” (final de palavra: estoy
“estou”), quanto a aproximante palatal [j] ou a africada palato-alveolar sonora
[dʒ] (de palavras como yo “eu”, ayer “ontem”). A letra “y”, portanto, aparece
como a melhor candidata para grafar a aproximante palatal [j] do Jaminawa.
O grafema “j”, que no espanhol representa a consoante fricativa uvular surda
[x], está sendo usado no Guia para identificar a consoante fricativa glotal
surda [h] (Quadro 2).
A referência feita no Guia, (Quadro 1), às possíveis diferenças entre as
variedades do Jaminawa faladas no Peru e no Brasil: a letra “f” pode variar
com a letra “w”, por exemplo, juntamente com a posição do grafema “f”
no quadro da representação do trato vocálico (Quadro 2), permite que se
aponte duas possibilidades para a identificação do fone por ele representado.
A primeira assumiria que no do Quadro 2, somente o modo de articulação
(fricativa) teria sido representado: “f” grafa a consoante fricativa, labiodental,
surda [f]. Na segunda , “f” representaria a consoante fricativa, bilabial, sonora
[β] e, portanto, tanto modo (fricativa) quanto ponto (bilabial) estariam sendo
indicados no Quadro 1. Essa última possibilidade esbarraria, no entanto, na
identificação equivocada da posição da fricativa, retroflexa, surda [ʂ] que
estaria sendo classificada como palato-alveolar no Quadro 2. De qualquer
modo, a representação dos segmentos consonantais no Quadro 2, não garante
a sua rigorosa caracterização fonética, assim como não há referência à
fonêmica da língua.
Na Cartilha Jaminawa não há qualquer indicação da relação entre sons e
grafemas, o que dificulta ainda mais a análise do material. Entretanto, numa
comparação com o Guia, é possível afirmar que a Cartilha também utiliza a
letra “e” para grafar a vogal central, alta, oral, não arredondada [ɨ] e “y” para
representar a aproximante palatal, sonora [j], sem que a decisão, nesse último
caso, tenha o mesmo valor da convenção proposta pelo Guia: o alfabeto do
português não utiliza a letra “y” a não ser para grafar palavras estrangeiras.
Além disso, a letra “j” presente na ortografia do português para representar
a consoante fricativa, pós-alveolar, sonora [ʒ] não foi utilizada na Cartilha.
A letra “h”, que grafaria, possivelmente, a consoante fricativa, glotal, surda
[h], compõe o quadro dos grafemas consonantais da Cartilha, contudo não

122
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

aprece em destaque em um item lexical como os outros grafemas. A letra “w”


da Cartilha equivale ao “f” ([f] ou [β]) do Guia.

Quadro 4: Paralelo entre os grafemas dos dois sistemas ortográficos

Ortografia boliviana (Guia) Ortografia brasileira (Car lha)


(14 consoantes e 4 vogais ) (16 consoantes e 4 vogais)
p p
b
t t
d
k k
r r
s s
f w
sh sh
x x
j h
ʦ ts
ch tx
m m
n n
y y
i i
e e
u u
a a

123
2.3 Descrição Fonética dos Segmentos

A base de dados linguísticos para a descrição fonética dos segmentos


consonantais e vocálicos do Jaminawa proposta aqui, é o corpus CKK
concernente às variedades do Jaminawa faladas nas Terras Indígenas Kaite
e Kaiapuka (PADILHA 2013). Servirão como aportes para a descrição, os
materiais didáticos (Cartilha Jaminawa e o Guia del Alfabeto Yaminawa),
alguns estudos sobre fonética e fonologia de línguas Pano, tais como Shanenawá
(CÂNDIDO 1998, 2004), Katukina (BARROS 1987, AGUIAR 1998), Shawã
(SOUZA 2012) e Matis (FERREIRA SPANGHERO 2000, FERREIRA 2005)
e ainda, a investigação, de Padilha (2013), sobre o bilinguismo de crianças
Jaminawa em situação de ensino e aprendizagem da língua portuguesa.

2.3.1 Segmentos Vocálicos

As Vogais Orais

[i] vogal anterior, alta, oral, não arredondada:


[ɾi’si] “corda”
[pi’a] “flecha”
[piaka’ti] “arco”
[ki’ʃi] “coxa”

[ɨ] vogal central, alta, oral, não arredondada:


[ʂa’wɨ] “jabuti”
[ka’pɨ] “jacaré”
[pɨ’ȿɨ] “casa”
[bɨtu’tɨ] “dedo”

[u] vogal posterior, alta, oral, arredondada:


[u’tʃa] “assoalho de paxiuba”
[nu’ku] “nosso”
[u’ȿɨ] “lua”
[tɨniru’pɨ] “dinheiro”

124
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[us’ka] “cabeça”
[u’pa] “água”

[e] vogal anterior, média, oral, não arredondada:


[saɾa’pe] “remo”
[piaka’te] “arco”
[bɨtu’te] “dedo”
[hejtʃu’ku] “nariz”
[jaba’te] “kutia”

[o] vogal posterior, média, oral, arredondada:


[ba’po] “cabeça”
[ɾo’do] “cobra”
[kɨ’ʧo] “copo/caneca”
[doku’dɨ] “homem”

[a] vogal baixa central, oral, não arredondada:


[a’wa] “anta”
[kaʃ’ta] “tatu”
[ȿɨ’ta] “dente”
[ta’ɨ] “perna”

As Vogais Nasais

[ ĩ] vogal anterior, alta, nasal, não arredondada:


[ɾĩ’mõ] “remo”
[uĩ’te] “coração”
[kĩ’te] “panela de barro”

[ ɨ̃] vogal central, alta, nasal, não arredondada:


[mɨ̃kɨ] “mão”

[ũ] vogal posterior, alta, nasal, arredondada:


[nũ’ma] “juriti (ave)”

125
[õ] vogal posterior, média, nasal, arredondada:
[hõ’si] “lontra”
[ɾĩ’mõ] “remo”
[nõ’nõ] “pato”

[ã] vogal baixa, central, nasal, não arredondada:


[ɾi’mã] “limão”
[ʃã’no] “gato”
[kãɲ’ja] “rio”
[sã’mu] “abelha”
[mãɲ’ja] “banana”

2.3.1.1 Notas sobre a Variação: Segmentos Vocálicos

Não sendo o escopo deste trabalho a análise fonêmica da língua Jaminawa,


reitera-se, por um lado, o caráter preliminar da descrição proposta aqui e,
por outro, apresenta-se os dados do Jaminawa que podem ser classificados
a partir dos critérios de contraste, distribuição complementar e variação
livre. Afirma-se, entretanto, que esses contextos de variação precisam ser
investigados em estudos futuros, levando em consideração tanto a influência
de fatores linguísticos (estruturais) quanto sociais (extralinguísticos).

2.3.1.1.2 Variação Livre

Os seguintes pares de segmentos ocorrem em variação livre em ambientes


idênticos:

I) [o] e [u]

A variação livre entre os segmentos vocálicos [o] e [u], atestada em outras


línguas Pano, tais como Shanenawa (CÂNDIDO 1998, 2004) e Shawã (SOUZA
2012), pode ser identificada também nos dados CKK:

126
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01) a. [ju’ba] “peixe”


b. [jo’ba] “peixe”

02) a. [ȿu’pu] “algodão”


b. [ȿo’po] “algodão”

03) a. [ba’po] “cabeça”


b. [ba’pu] “cabeça”

Registra-se também a ocorrência nos dados CKK da vogal [o], exemplos


04)a - 07)a, nos mesmos itens lexicais grafados com a letra “u” no material
didático brasileiro (Cartilha), exemplos 04)b - 07)b:

04) a. [ɾo’do]
b. ? [ɾu’du]  rudu “cobra” (Cartilha)

05) a. [ki’to]
b. ? [ki’tu]  kitu “bermuda” (Cartilha)

06) a. [kɨ’ʧo]
b. ? [kɨ’ʧu]  kitxo “caneca” (Cartilha)

07) a. [i’to]
b. ? [i’tu]  itu “onça” (Cartilha)

Já nos exemplos 08)a -10)a, também dos dados do CKK, observa-se a


ocorrência de [u] nos itens lexicais grafados com a letra “o” no Guia, exemplos
08)b -10)b:

08) a. [u’ʃɨ] “lua”


b. ? [o’ʃɨ]  oxe “lua” (Guia)

09) a. [sã’mu] “abelha”


b. ? [samo]  samo “abelha” (Guia)

127
10) a. [vɨ’ɾu] “olho”
b. ? [fɨ’ɾo]  fero “olho” (Guia)

O segmento posterior, alto, oral, arredondado [u] foi identificado em


contraste em ambientes idênticos, nos dados CKK, exemplos 11)a-b, e pode
ser considerado fonema na língua:

11) a. [u’pa] “água”


b. [ɨ’pa] “pai”

Aceitando a variação livre entre [o] e [u] no Jaminawa, examina-se os seus


registros diferenciados nos materiais didáticos: o Guia apresenta somente
a vogal “o” enquanto a Cartilha traz a vogal “u”. É sabido que em algumas
línguas Pano, nas quais se observa a variação entre [o] e [u], o fonema é a
vogal, posterior, alta, oral, arredondada /u/ sendo [o] seu alofone9. A língua
Matis10, por seu turno, tem no seu inventário de fonemas as duas vogais /o/ e
/u/ sem, contudo, ocorrerem em variação livre.
Assim, a opção do Guia de registar a vogal “o” enquanto a Cartilha traz
“u”, indicaria uma análise diferenciada dos referidos segmentos em cada um
desses materiais: a vogal /o/ seria considerada fonema no Guia, e /u/ seria
o fonema na Cartilha. Contudo, por se tratar de variedades de uma mesma
língua, não é aceitável que se trate de fonemas diferenciados nesse contexto.
Como não há nos materiais didáticos informações sobre o sistema sonoro
do Jaminawa, assim como do paralelo entre os sons e as grafias escolhidas,
pode-se somente especular sobre análise que resultou na escolha diferenciada
as vogais [o] e [u], em cada um desses materiais. A análise dos dados (CKK)
aponta para a variação entre os segmentos [o] e [u], e identifica o segmento
[u] como fonema no Jaminawa, contudo, não garante um exame consistente
do segmento [o].

II) [e] e [ɨ]:

⁹ Conf. Shanenawá (CÂNDIDO 1998, 2004), Katukina (BARROS 1987, AGUIAR 1998), Shawã
(SOUZA 2012)
10
Conf. Ferreira Spanghero (2000) e Ferreira (2005).

128
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Nos dados CKK, a vogal central, alta, oral, não arredondada [ɨ] que ocorrendo
em contraste em ambientes idênticos, exemplos 12)a-b, é considerada fonema
na língua, pode ser atestada em pelo menos um contexto de variação como
segmento [e], exemplos 13)a-b:

12) a. [a’wa] “anta”


b. [ɨ’wa] “mãe”

13) a. [bɨtu’te] “dedos da mão”


c. [bɨtu’tɨ] “dedos da mão”

Pode-se, também, considerar como indicativo de variação livre entre fones


[e] e [ɨ], os dados CKK, exemplos 14)a e 15)a, comparados aos da Cartilha,
exemplos 14)b e 15)b:

14) a. [kĩ’te] “panela de barro”


b. [ki’tɨ]  kite “panela de barro” (Cartilha)

15) a. [piaka’te] “arco e flecha”


b. [piaka’tɨ]  piakate “arco e flecha” (Cartilha)

Enquanto o segmento [ɨ] pode ser identificado, sem ambiguidades, como


o fone grafado pela letra “e” no Guia e na Cartilha, a vogal anterior, média,
oral, não arredondada [e] não faz parte das ortografias propostas nesses
materiais didáticos. Os estudos de outras línguas Pano mostram, por sua vez,
que o segmento [e] pode ter função diferenciada: alofone em línguas como o
Shanenawá (CÂNDIDO 1998, 2004) e Katukina (BARROS 1987, AGUIAR 1998),
ou fonema como no Matis (FERREIRA SPANGHERO, 2000) e FERREIRA,
2005). Já na língua Shawã o segmento [e] não foi atestado (SOUZA 2012).

2.3.1.1.3 Distribuição Complementar: A Natureza da Nasalidade

No que concerne à nasalidade das vogais, foram atestadas no corpus CKK,


como já apresentado, as seguintes vogais nasais ou nasalizadas: [ɨ̃], [ ĩ], [ũ], [õ]

129
e [ã]. Apenas dois possíveis registros de nasalidade vocálica foram observados
nos materiais didáticos: na Cartilha, há uma ocorrência uma vogal nasal na
palavra asĩ “mutum” e no Guia identifica-se uma possível vogal nasalizada por
um segmento nasal na palavra jonsi “zorro”.
Os estudos referentes à natureza da nasalidade nas línguas Pano
mostram-se diferenciados, já que, segundo Cândido (2004), de um lado estão
os pesquisadores - Barros (1987), Paula (1992), Cunha (1993), dentre outros -
que descrevem a nasalidade como uma característica inerente dos segmentos
vocálicos, e de outro, estão aqueles - Loos (1967), Camargo (1991) e Costa
(2000), dentre outros - que sugerem que tal fenômeno seja o resultado do
contato entre a vogal e uma consoante nasal. Cândido (1998, 2004), por sua
vez, assume que no Shanenawa não existem vogais nasais, mas sim vogais
nasalizadas em decorrência do contato com uma consoante nasal adjacente,
portanto, toda a ocorrência da nasalidade em vogais na língua “deve-se ao
contato com um segmento [Nasal], esteja ele em posição heterossilábica [...]
ou tautossilábica”. (CÂNDIDO 2004, p. 62).
Nos dados CKK, identifica-se segmentos nasais adjacentes à vogal em:

Posição heterossilábica
[ʃã’no] “gato”
[nũ’ma] “juriti (ave)”
[sã’mu] “abelha”
[ɾĩ’mõ] “remo”

Posição tautossilábica:
[mãɲ’ja] “banana”
[kãɲ’ja] “rio”

Outras ocorrências de vogais nasais, atestadas em itens lexicais como:


[mɨ̃’kɨ] “mão”, [hõ’si] “lontra”, [uĩ’te] “coração”, [kĩ’te] “panela de barro”, por
um lado, e [ɾĩ’mõ] “remo”, [ɾi’mã] “limão”, [nõ’nõ] “pato”, por outro, podem,
a partir dessa perspectiva, ser interpretadas como tendo um segmento [Nasal]
adjacente em posição tautossilábica:

[mɨ̃ŋ’kɨ] “mão”

130
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[hõn’si] “ariranha”
[uĩn’te] “coração”
[kĩn’te] “panela de barro”

[a’sĩn] “mutum”
[ɾi’mõn] “remo”
[ɾi’mãn] “limão”

Atestada a sua ocorrência, o próximo passo é o exame da natureza da


nasalidade dessas vogais. Uma análise rigorosa da fonética e fonologia do
Jaminawa se faz necessária para que se possa fazer afirmações mais conclusivas,
tanto sobre a questão da nasalidade quanto sobre aquela envolvendo contextos
de variação.
Uma proposta preliminar para o conjunto de segmentos vocálicos da
língua pode, no entanto, ser apresentada: o Jaminawa seria constituído por 6
fones orais e 5 nasais:

Quadro 5: Fones Vocálicos


Anterior Central Posterior
Oral Nasal Oral Nasal Oral nasal
Alto
i ĩ ɨ ɨ̃ u ũ

Médio
e o õ

Baixo a ã

Não arredondado Não arredondado Arredondado

2.3.2 Os Segmentos Consonantais

[b] oclusivo, bilabial, sonoro:


[ba’po] “cabeça”

131
[jo’ba] “peixe”
[badɨ’pɨj] “folha”
[va’ba] “jacaré”
[bɨtu’te] “dedo”

[p] oclusivo, bilabial, surdo:


[ʃu’pu] “algodão”
[pi’a] “flecha”
[ka’pɨ] “jacaré”
[pa’ti] “rede”

[d] oclusivo, alveolar, sonoro:


[‘dij] “árvore”
[dɨ’ʂɨʂ] “cigana (ave)”
[badɨ’pɨj] “folha”
[doku’dɨ] “homem”
[ɾo’do] “cobra”

[t] oclusivo, alveolar, surdo:


[ki’to] “bermuda”
[ka’ti] “arco”
[kuʃujtija] “pajé”
[u’tis] “unha”
[‘taw] “paxiuba”

[k] oclusivo, velar surdo:


[ku’ba] “nambu”
[katʃa’βi] “limão”
[kĩn’te] “panela de barro”
[kãɲ’ya] “rio”
[us’ka] “cabeça”

[ɾ] vibrante simples (tepe):


[ʃa’ɾa] “abelha”
[ba’ɾi] “cutia”
[ɾo’do] “cobra”

132
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[m] nasal, bilabial, sonoro:


[sã’mu] “abelha”
[mãɲ’ja] “banana”
[mɨ̃ŋkɨ] “mão”
[matsu’pi] “vassoura”

[n] nasal, alveolar, sonoro:


[nu’ku] “nosso”
[nũma] “juriti (ave)”
[tsi’na] “cutia”
[nõ’nõ] “pombo”

[ɲ] nasal, palatal, sonoro


[mãɲ’ja] “banana”
[kãɲ’ja] “rio”

[ŋ] nasal, velar, sonoro


[mɨ̃ŋkɨ] “mão”

[v] fricativo, lábio-dental, surdo:


[kaʧa’vi] “limão”
[ʃiva’ti] “paneiro”
[vɨ’ɾu] “olho”
[vakis’ta] “criança”
[‘vaj] “roçado”

[s] fricativo, alveolar, surdo:


[a’si] “mutum”
[ɾi’si] “corda”
[sã’mu] “abelha”
[vakis’ta] “criança”
[os’ka] “cabeça”

[ʃ] fricativo, palato-alveolar, surdo:


[kaʃta] “jabuti”

133
[ʃiva’tɨ] “paneiro”
[ʃa’ʃo] “canoa”
[ki’ʃi] “coxa’

[ʂ] fricativo, retroflexo, surdo:


[ȿi’ki] “milho”
[u’ʂɨ] “lua”
[ȿa’wɨ] “jabuti”

[ts] africado, alveolar, surdo:


[tsi’na] “cutia”
[a’tsa] “macaxeira”
[matsu’pi] “vassoura”

[ʧ] africado palato-alveolar, surdo:


[u’ʧa] “pachiuba”
[‘ʧij] “fogo”
[hejʧu’ku] “nariz”
[ʧi’pa] “nádega”

[dʒ] africado, palato-alveolar, sonoro:


[dʒa’pi] “machado”
[dʒapa] “lenha”
[dʒu’ba] “peixe”

[j] glide, palatal, sonoro:


[ja’pa] “lenha do mato”
[jaba’te] “kutia”
[hejʧu’ku] “nariz”
[‘ʧij] “fogo”
[‘dij] “árvore”
[kuʃujti’ja] “pajé”

[w] glide, lábio-velar sonoro:


[a’wa] “anta”

134
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[ȿa’wɨ] “jabuti”
[ɨ’wa] “mãe”
[‘taw] “paxiuba”

[h] fricativo, glotal, surdo:


[hõn’si] “lontra”
[hejʧu’ku] “nariz”

2.3.2.1 Notas sobre a Variação: Segmentos Consonantais

Apresenta-se os segmentos consonantais que podem ser classificados a


partir dos critérios de contraste, distribuição complementar e variação livre.

2.3.2.1.1 Variação Livre

I) [v] e [f]:

Não foi registrada, nos dados CKK, a ocorrência do segmento [f]. Contudo,
tomando-se a consoante fricativa, labiodental, surda [f] como o segmento
grafado pela letra “f” no Guia (Seção 2.1.2), é possível apontar a variação entre
os segmentos [v] dos dados CKK, exemplos 16)a e 17)a, e [f] do Guia, exemplos
16)b e 17)b:

16) a.[vɨ’ɾu] “olho”


b. ? [fi’ru]  feru “olho” (Guia)

17) a.[kaʧa’vi] “limão”


b. ? [kaʧa’fi]  kachafi “limão” (Guia)

II) [v] e [w]:

A variação entre os segmentos [w], exemplos 18)b e 19)b da Cartilha, e


[v], exemplos 18)a e 19)a dos dados CKK, pode apenas ser sugerida pois,

135
enquanto no Guia há uma proposição mínima sobre relação som e grafema
– representação do trato vocálico e quadrilátero vocálico (Seção 2.1.2) – na
Cartilha Jaminawa não há referência a essa relação:

18) a. [ʃiva’ti] “paneiro”


b. ? [ʃiwa’ti]  xiwati “paneiro” (Cartilha)

19) a. [‘vaj] “roçado”


b. ? [‘waj]  way “roçado” (Cartilha)

De fato, dado esse contexto de variação, a letra “w”, na Cartilha, poderia


estar grafando tanto [w] quanto [v]. É possível afirmar, no entanto, a partir
dos dados do CKK, que o segmento aproximante, lábio-velar, sonoro [w] ao
ocorrer em contraste em ambientes idênticos, exemplos 20)a-b, pode ser
considerado fonema no Jaminawa. Já os exemplos 21)a e 22)a apresentam
itens lexicais do corpus CKK, em que se atesta a o a ocorrência de [w], sendo
os exemplos 21)b e 22)b os mesmos itens lexicais grafados na Cartilha com a
letra “w”:

20) a. [ɨ’wa] “mãe”


b. [ɨ’pa] “pai”

21) a. [ɨ’wa] “mãe”


b. ? [e’wa]  ewa “mãe” (Cartilha)

22) a. [nawawaɨpakɨ’a] “arco-iris”


b. ? [nawawaɨpakɨ’a]  nawawae pakea “arco-iris” (Cartilha)

III) [v] e [h]:

Registra-se, ainda, nos dados CKK, uma única ocorrência de variação entre
os segmentos fricativos [v] e [h]:

23) a. [võ’si] “lontra”


b. [hõ’si] “lontra”

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IV) [j] e [dʒ]:

Nos dados CKK, identifica-se também a ocorrência dos segmentos [dʒ] e


[j] em variação livre, exemplos 24)-26)a-b:

24) a. [dʒapaka’ro] “lenha de maxixeira”


b. [japaka’ro] “lenha de maxixeira”

25) a. [dʒu’ba] “peixe”


b. [ju’ba] “peixe”

26) a. [dʒa’pi] “machado”


b. [ja’pi] “machado”

V) [d] e [t]:

Os segmentos [d] e [t] ocorrem em variação em um único exemplo nos


dados CKK, exemplos 27)a-b. Enquanto o item lexical “cobra” é grafado com
a letra “d” na Cartilha, exemplo 27)c, o Guia, como já mencionado, registra
somente o segmento [t], exemplo 27)d:

27) a. [i’to] “onça”


b. [i’do] “onça”

c. [i’du]  idu “onça” (Cartilha)


d. [ta’ka]  taka “fígado de animal” (Guia)

O segmento oclusivo, dental, surdo [p] ao ocorrer em contraste em


ambientes análogos, exemplos 28)a-b, pode ser considerado fonema no
Jaminawa:

28) a. [ka’ti] “arco”


b. [ka’pɨ] “jacaré”

137
VI) [b] e [p] :

Enquanto somente o segmento [p] é registrado no Guia, nos dados CKK


atesta-se a ocorrência da variação entre [b] e [p] no seguinte exemplo, 29)a-b:

29) a. [ku’pa] “nambu”


b. [ku’ba] “nambu”

A comparação dos dados da Cartilha com os do CKK também pode ser


indicativo da referida variação, exemplos 30)a-b:

30) a. [ja’pi] “machado”


b. [ja’bɨ]  yabe “machado” (Cartilha)

O segmento oclusivo, bilabial, surdo [p] ao ocorrer em contraste em


ambientes idênticos, exemplos 31)a-b, pode ser considerado fonema no
Jaminawa:

31) a. [pa ʃ’ta] “cachorro”


b. [ka ʃ’ta] “tatu”

IV) [ʃ] e [ȿ]:

Já a variação entre os segmentos [ʃ] e [ȿ] pode ser sugerida levando em


consideração a comparação dos dados CKK, exemplos 32)a-36)a, com os dados
dos materiais didáticos: Cartilha, exemplos 32)b e 34)b e Guia, exemplos 35)
b e 36)b:

32) a. [ʃa’ɾa] “abelha”


b. [ȿa’ɾa]  shara “abelha” (Cartilha)

33) a. [kuʃujti’ja] “pajé”


b. [kuȿujti’ja]  kushuytiya “pajé” (Cartilha)

34) a. [ʧa’ʃo] “veado”


b. [ʧa’ȿu]  txashu “veado” (Cartilha)

138
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35) a. [u’ȿɨ] “lua”


b. [u’ʃɨ]  oxe “lua” (Guia)

36) a. [ʃa’nõ]
b. [ȿa’no]  shano “gato” (Guia)

2.3.2.1.2 Distribuição Complementar

I) [ŋ], [ɲ] e [n]:

Como já mencionado, os estudos da nasalidade vocálica em línguas Pano,


das quais se destaca o Shanenawá (CÂNDIDO 1998, 2004) e o Shawa (SOUZA
2012), propõem que a nasalidade nessas vogais é resultado do seu contato
com uma consoante nasal. Assim, nessas línguas, a série de fones nasais
foneticamente semelhante [ɲ], [ŋ], [N] e [n], alofones do fonema /n/, que
ocorrem apenas nos respectivos ambientes: antes das oclusivas palatal [c],
velar [k] e uvular [q], nasalizam a vogal que os antecede.
Ampliando essa proposição para a análise dos dados do Jaminawa, pode-
se propor a ocorrência da série de fones nasais [ŋ], [ɲ] e [n] em distribuição
completar em contexto de vogal nasal:

[ŋ] ocorre antes da consoante velar [k]:


[mɨŋ’kɨ] “mão”

[ɲ] ocorre antes da aproximante palatal [j]:


[mãɲ’ja] “banana”
[kãɲ’ja] “rio”

[n] ocorre nos outros contextos:


[hõn’si] “ariranha”
[kĩn’te] “panela de barro”

II) [c], [k], [q]:

A série de fones oclusivos foneticamente semelhante [c], [k], [q], alofones


do fonema /k/, em distribuição complementar no Shanenawa (CÂNDIDO

139
1998, 2004) e em outras línguas Pano, necessita ser melhor investigada no
Jaminawa. Do que se pode afirmar a partir dos dados aqui considerados, é
que a consoante oclusiva, velar, surda /k/ pode ser considerado fonema no
Jaminawa ao ocorrer em contraste em ambientes idênticos:

[mãɲ’ja] “banana”
[kãɲ’ja] “rio

III) [h] e [Ɂ]:

Os estudos sobre as línguas Pano também assinalam a existência do


segmento oclusivo glotal [Ɂ], analisado no Shanenawa (CÂNDIDO 1998,
2004) e no Shawa (SOUZA 2012) como alofone da fricativa glotal, surda [h].
No Shanenawa, de acordo com Cândido (2004), a glotal [Ɂ] teria um papel na
implementação de regras fonéticas e fonotáticas de boa formação da sílaba na
língua, implementação esta que assegura a formação de sílabas pesadas que
atraem o acento.
Já no Katukina, a glotal [Ɂ] é analisada ora como um segmento do nível
fonológico, ora do nível fonético. Barros (1987) reconhece um fonema glotal
/Ɂ/ com três alofones [Ɂ], [h] e [x]:

Reconhecemos desta forma, um fonema glotal que comporta três


alofones: oclusivo glotal em início de sílaba não inicial de palavra;
fricativo glotal que varia com fricativo velar em início de sílaba inicial de
palavra. O alofone fricativo do fonema glotal pode reduzir-se a zero em
interior de enunciado. (BARROS 1987, p. 43)

Aguiar (2004), por sua vez, afirma que a glotal [Ɂ] não um segmento
fonológico, somente fonético:

[…] achamos por bem dizer aqui que a glotal [Ɂ] ocorre na língua no nível
fonético. Se esta glotal - Ɂ - fosse um segmento no nível fonológico, ela
estaria em distribuição complementar com o w quanto à sua ocorrência
na posição de Coda, Ɂ só ocorrendo na coda da sílaba tônica - final- e
w só ocorrendo efetivamente na sílaba átona- inicial. Todavia, a glotal
não tem o comportamento semelhante ao ɾ, ʃ, ʂ, y, e n. Teoricamente,
esses segmentos, incluindo w, podem aparecer tanto em Onset quanto
em Coda de qualquer sílaba, mas a glotal - Ɂ - só ocorre na sílaba
proeminente do IL finalizada em vogal - aberta. Há outras possibilidades

140
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

de interpretação da glotal, mas, por ora, pensamos na possibilidade de


ela não ser um segmento fonológico, somente fonético. (AGUIAR 1994,
p.73)

A língua Matis não apresenta o segmento glotal [Ɂ]. Ferreira Spanghero


(2000) não aponta em sua análise nenhum segmento glotal e Ferreira (2005)
segue essa análise. Entretanto, vale destacar que na apresentação do quadro de
fonemas consonantais do Matis, Ferreira (2005) menciona o segmento glotal
[Ɂ] como um alofone na “Tabela 03: Fonemas consonantais IPA” (FERREIRA
2005, p.30).
No que concerne aos dados do Jaminawa aqui analisados, o segmento
fricativo glotal [h] foi identificado nos dados CKK, exemplos 37)a-b:

37) a. [hejʧu’ku] “nariz”


b. [hõn’si] “lontra”

Enquanto na Cartilha, a única referência à glotal [h] é a indicação do


grafema “h” no quadro ortográfico das consoantes, no Guia a letra “j” grafa
a consoante que aparece no quadro da representação do trato vocálico na
posição da fricativa, glotal [h] e é exemplificada nos seguintes itens lexicais:

38) a. [hõn’si]  jonsi “raposa”11 (Guia)


b. [ho’me]  jome “palmeira” (Guia)

Não há registros do segmento oclusivo glotal surdo [Ɂ] nos materiais


didáticos (Guia e Cartilha). Nos dados CKK, não foi possível identificar com
clareza a glotal [Ɂ]; sendo um segmento de difícil percepção para ouvintes não
treinados, exige, em muitos casos, o uso de equipamento específico para sua
identificação.
Contudo, cabe aqui, algumas considerações sobre dois aspectos: o acento
e o padrão silábico nas línguas Pano, os quais se relacionam diretamente à
distribuição do segmento glotal [Ɂ]. De fato, as análises são unânimes em
afirmam que as línguas Pano têm um acento fixo no final absoluto de palavras

11
A tradução de “jonsi” como “raposa” (zorro) pode estar equivocada no Guia del Alfabeto Ymai-
nawa. No Shanenawa, o item lexical “lontra” é [fu’siɁ] ~ [fu’seɁ] /fusi/ (CÂNDIDO 2004, p. 36).

141
e são sensíveis ao peso silábico para fins de atribuição do acento. Assim,
retoma-se a proposta de Cândido (2004), para o Shanenawa, na qual a autora
afirma que a glotal [Ɂ] tem um papel decisivo na implementação de sílabas
pesadas que atraem o acento:

No nível fonológico, a coda é preenchida por uma consoante coronal


/ʂ/, nasal /N/ ou aproximante /j/ ou /w/. No nível fonético, a oclusiva
glotal [Ɂ] ocupa toda coda que não for preenchida por um dos fonemas
exigidos pelo padrão silábico da língua. Aliás, isso nos faz interpretar [Ɂ]
como um sistema de correlação física do acento, ou seja, a inserção de
[Ɂ] na coda final se deve ao fato da língua inibir sílabas que não sejam
pesadas na posição final das palavras. (CÂNDIDO 2004, p. 46-47),

No que diz respeito ao acento na língua Jaminawa, não há referência a


sua marcação nos materiais didáticos, entretanto, observou-se nos dados CKK
que ele recai na última sílaba dos itens lexicais descritos. Junte-se a isso, o
fato de terem sido identificados também, tanto nos dados CKK quanto nos da
Cartilha, itens lexicais que tem a sílaba final travada pelos segmentos [j], [w],
[s] e [ʂ]:

[badɨ’pɨj] “folha”
[‘dij] “árvore”
[‘vaj] “roçado”
[ɾupaʃu’tij] “camisa”
[‘taw] “paxiuba”
[u’tis] “unha”
[dɨ’ʂɨʂ] “cigana (ave)”

Assume-se aqui, que as aproximantes [j] e [w], no Jaminawa, são


segmentos consonantais, todavia, essa suposição deve verificada através de
uma análise rigorosa da fonética e da fonologia da língua, assim como deve,
também, ser investigada a natureza da nasalidade, notadamente, a nasalidade
em final absoluto de palavra, a qual se relaciona à constituição do padrão
silábico e à determinação do acento. De fato, seguindo a hipótese da regra de
acento atribuir maior proeminência (acento primário) à silaba pesada final,
os dados CKK podem ser interpretados não como apresentando uma vogal
intrinsecamente nasal na sílaba final, mas como decorrente do contato da vogal

142
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

como uma consoante que a sucede12. A consoante nasal responsável tanto pelo
travamento da sílaba quanto pela nasalização da vogal será identificada no
Jaminawa, preliminarmente, como a nasal alveolar [n]:

[a’sĩn] “mutum”
[ɾi’mõn] “remo”
[ɾi’mãn] “limão”

Com base na análise da distribuição dos segmentos consonantais,


apresenta-se, assim, um inventário preliminar dos fones consonantais do
Jaminawa, no qual não se inclui os segmentos oclusivos: glotal [Ɂ], palatal
[ʎ] e uvular [χ], observando que numa análise mais rigorosa da fonética da
língua, possivelmente, esses segmentos possam ser identificados:

Quadro 6: Fones Consonantais


Bilabial Lábio- Alveo- Palato- Retro- Pala- Velar Glotal Lá-
-dental lar -alveolar flexa tal bio-
-velar

Nasal m n ɲ ŋ

Oclusiva p b t d k

Tepe ɾ

Fricativa f v s ʃ ʂ h

Africada ts ʧ dʒ

Aproxi- j w
mante

4 ALGUNS ENCAMINHAMENTOS

Junto ao inventário fonético preliminar dos segmentos vocálicos e

12
Conforme Souza 2012, Cândido 2004, Camargo (1991), Costa (2000) e Loos (1967).

143
consonantais da língua Jaminawa apresentado no Quadro 7, a análise aponta,
a partir dos critérios de contraste, distribuição complementar e variação livre
para algumas característica da fonologia da língua. A descrição proposta deve
ser tomada como preliminar e tem como finalidade servir como elemento para
a análise dos materiais didáticos aqui em destaque.
As propostas ortográficas para a língua Jaminawa apresentadas pelo do
Guia del Alfabeto Yaminawa (Bolívia) e pela Cartilha Jaminawa (Brasil)
constituem-se diferenciadamente no que diz respeito ao número e à escolha
dos símbolos gráficos, assim como no modo como apresentam a relação entre
fone, fonema e grafema. Enquanto a Cartilha brasileira é omissa sobre essa
questão, o Guia boliviano, mesmo sem fazer referência aos conceitos de fones/
fonemas/alofones, aponta para a distinção entre grafemas e som ao trazer,
por um lado, o quadrilátero vocálico comum à representação das vogais
(Quadro 3) e, por outro, uma representação do trato vocálico com as letras
representativas das 14 consoantes dispostas numa tentativa de indicar os
pontos e os modos de articulação consonantais (Quadro 2).
O Guia sugere também contextos de variação que seriam decorrentes de
diferenças dialetais ao destacar as distintas opções ortográficas nos alfabetos
Jaminawa produzidos no Peru e no Brasil (Quadro 1), os quais foram tomados
como base para a produção boliviana. Já na Cartilha não há menção à
variação, contudo a seleção dos grafemas “b” e “d” (além de “p” e “t”) poderia
indicar especificidades dialetais quando se considera que o Guia afirma serem
as letras “M” e “N” do alfabeto peruano, variações de “B” e “D” do alfabeto
brasileiro, variação esta não observada na Cartilha nem nos dados CKK. De tal
modo, sendo as alusões à variação, quando feitas, decorrência de uma visada
da ortografia e não da fonêmica, a sua compreensão fica mitigada no Guia.
De fato, as proposições sobre o sistema fonético/fonológico do Jaminawa
resultantes da análise dos dados CKK, amplia, por exemplo, o conjunto de
potenciais pares de segmentos consonantais [f] e [v], [v] e [w], [v] e [h], [b] e
[p], [d] e [t], [ʃ] e [ʂ] e vocálicos [o] e [u], [ɨ] e [e] em variação livre, delineando
um contexto de variação motivado também por fatores internos ao sistema
linguístico (estruturais), o que problematiza a suposição do Guia, que toma as
variações como decorrentes de fatores sociais (extralinguísticos).
Retoma-se nesse ponto, a questão, inicialmente, referida: a complexidade
de se desenvolver um sistema de escrita em língua indígena, com a necessária

144
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

consolidação de um sistema ortográfico, a partir dos pressupostos de uma


“educação escolar indígena diferenciada”, sendo já a “tecnologia” da escrita e
sua ortografia constituídas por um saber gramatical modelar e normatizador e,
portanto, estranho ao saber indígena. Uma potencial estratégia para afirmação
do conhecimento indígena na produção de seus sistemas ortográficos, como já
mencionado, pode ser a de considerar elementos provenientes de demandas
sócio-culturais como sendo, em certa situação, determinante para a produção
do sistema ortográfico. Uma reivindicação que costuma acompanhar o
movimento para o desenvolvimento dos sistemas ortográficos em línguas
indígenas, é a manutenção, nestes sistemas, das diferentes variedades que
constituem as suas comunidades de falas.
A recusa do princípio de uniformização da ortografia, assim como da
concepção de escrita como uma representação fiel dos sons (fonemas)
correspondentes, não implica na negação do paralelismo entre som e letra. De
fato, Mateus (2006) tratando desse tema afirma que muitas línguas subsistem
com diferentes ortografias. Contudo, segundo a mesma autora:

[...] deve-se ter presente que as letras que representam elementos


fonológicos vão ao encontro do conhecimento cognitivo do falante e
da sua possibilidade de reconhecer os fonemas da língua. Este é um
aspecto que não pode ser escamoteado e que justifica a dignidade
atribuída às questões respeitantes à escrita de uma língua. (MATEUS
2006, P.18)

Assim, o reconhecimento da “natureza do sistema fonológico da língua”


como entidade ‘abstracta’ e “por isso mesmo congregadora das múltiplas
realizações concretas sem valor distintivo” (GONÇALVES 1998 apud
MATEUS 2006, p. 8), permite tomá-lo como observatório apropriado para
se analisar, justamente, os contextos de variação das línguas. A concepção de
sistema ortográfico como uma entidade ideal e homogeneizante, portanto, é o
que deve ser revista.
Dos materiais didáticos analisados, o Guia del Alfabeto Yaminawa,
idealizado na Bolívia, mesmo limitado no que diz respeito à explicitação do
modo como a estrutura fonética/fonológica se relaciona com seu sistema
ortográfico, é aquele que oferece elementos para se compreender os processos
relacionados a produção de um sistema ortográfico. De fato, na seção Historia
de los tallers (capítulo 1), o Guia destaca as oficinas como o espaço de debate,

145
das quais participaram um grupo heterogêneo de colaboradores: professores,
linguistas e educadores (indígenas e não indígenas), do Peru e da Bolívia.
Os representantes Jaminawa também ganham destaque ao se evidenciar
a participação de Lucibal Rodrigues da Silva, como o professor Jaminawa
que acompanhou o projeto do alfabeto desde sua primeira versão em 1996.
Ao enumerar as revisões pelas quais passou o alfabeto Jaminawa, sendo a
primeira datada de 1996 e a terceira proposta do Guia, do ano de 2003, expõe-
se também a longevidade desse tipo de projeto, que deve ser pensado a longo
prazo. Junte-se a isso, o seu valor político, já que o Guia simboliza também a
acolhida do Estado boliviano ao povo Jaminawa:

Hace 28 años, un grupo de hombres, mujeres y niños yaminawa


decidieron ingressar al territorio boliviano con el fin de construir un
nuevo hogar. Es especialmente significativo que el pueblo yaminawa
y su lengua hayan participado en esta actividad convocada por la
organización indígena y por las instituiciones del Estado. Esperamos
que esta revisón de su alfabeto, que constituye un fuerte respaldo al
alfabeto que vienen empleand, fortalezca la unidad entre los yaminawa
con los demás pueblos pano, más allá de las fronteras que nos
delimintan. (SILVA e OLIVIO 2003, p. 14)

Os matérias didáticos: o Guia del Alfabeto Yaminawa e a Cartilha


Jaminawa aqui analisados, materializam, portanto, a complexidade desse tipo
de empreendimento: a difícil tarefa de desenvolver um sistema ortográfico
que possa ser considerado aceitável dos pontos de vista linguístico e não
linguístico.

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148
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

O ENSINO E A APRENDIZAGEM NA
ESCOLA BELA FLOR ANTES E DEPOIS
DO PROJETO OBSERVATÓRIO DA
EDUCAÇÃO NA FRONTEIRA
Antonia Maria de Oliveira Nery1
Jhonier Kellyn Thomaz Lima2
Margarida Mitsue Ueno3

RESUMO

O presente texto tem por principal objetivo socializar os resultados obtidos sobre
o ensino e a aprendizagem antes e depois do desenvolvimento do trabalho de
observação e intervenção sobre bilinguismo e línguas fronteiriças, na escola de
Ensino Fundamental (séries iniciais) Bela Flor, no município de Epitaciolândia -
Estado do Acre, fronteira com a Bolívia, Pando - Cobija. Em colaboração à inicia-
tiva e coordenação da equipe, o Projeto Observatório da Educação na Fronteira
(OBEDF) prevê duas ações prioritárias: sistematizar os modos de ensino de lín-
gua em cinco escolas de Ensino Fundamental (Escola Municipal Maria Ligia Bor-
ges Garcia, Escola Polo Municipal Ramiro Noronha em Ponta Porã (MS), Escola
Estadual de Ensino Fundamental Durvalina Estilbem de Oliveira, Escola Munici-
pal de Educação Infantil e de Ensino Fundamental Floriza Bouez em Guajará Mi-
rim (RO) e Escola Municipal de Ensino Fundamental Bela Flor em Epitaciolân-
dia (AC)); e realizar um diagnóstico sociolinguístico com o objetivo de conhecer
o perfil dos estudantes dessas escolas sediadas em região fronteiriça brasileira.
Acrescenta-se a isso, como parte específica da escola, relato do que foi observado
sobre o ensino e a aprendizagem dos alunos bilíngues, falantes do português e
do espanhol ou descendentes de bolivianos, na instituição de ensino Bela Flor.

Palavras-chaves: Ensino e Aprendizagem. Bilinguismo. Fronteira.

¹ Coordenadora da OBEDF na Escola de Ensino Fundamental Bela Flor e bolsista do OBEDF.


² Professora na Escola de Ensino Fundamental Bela Flor e bolsista do OBEDF.
³ Professora na Escola de Ensino Fundamental Bela Flor e bolsista do OBEDF.

149
1 INTRODUÇÃO

Pensar na fronteira hoje é pensar na diversidade, é investir na diversidade,


é investir em uma maior equidade social. O Brasil é um dos países mais
plurilíngues do mundo, e isso nos ensina sobre a convivência, sobre
essa diversidade e sobre as demandas que acontecem na região para
que possamos desenhar novas políticas públicas e educacionais.
(Morello, R, 2011- Boletim informativo do Projeto OBEDF – Ano 1 –
Edição 1. Florianópolis, novembro de 2011).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em seu art. 26 diz que


os currículos do Ensino Fundamental e Médio devem ter uma base nacional
comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento
escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais
e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. O § 5º desse
mesmo artigo rege a inclusão obrigatória, a partir da quinta série (6º ano),
do ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha fica a
cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.
Em dezembro de 2004, ocorreu, em Buenos Aires, a 1ª Reunião Técnica
Bilateral das equipes dos Ministérios da Educação da Argentina e do Brasil
para discutir sobre o bilinguismo nas regiões de fronteira do Brasil com países
que compõem o MERCOSUL.
Segundo Morello (Seminário do OBEDF- SC., em Florianópolis, em
novembro de 2011), vivemos no Brasil uma cultura plurilíngue, sobretudo com
maior intensidade em algumas regiões, como as fronteiras e os grandes centros
urbanos. Muito embora saibamos que as políticas nacionais são monolíngues,
o Brasil é considerado “bilíngue” desde 2005, devido ao reconhecimento
da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Mas, em se tratando de língua
estrangeira, além de favorecer apenas as séries finais do Ensino Fundamental,
a LDB deixa a cargo das instituições e da comunidade escolar a inclusão da
aprendizagem de língua estrangeira em seu currículo. O problema é que
muitas vezes, por falta de maiores esclarecimentos, opta-se pela língua menos
apropriada para a localidade, isso é, em uma região de fronteira, onde a língua
falada é a espanhola, por exemplo, a instituição de ensino opta por incluir em
seu currículo a língua inglesa, como língua de aprendizagem. Isso demonstra
a necessidade de uma política pública voltada para esse aspecto, que ofereça
uma base de orientação às instituições de fronteira, fundamentando-as sobre

150
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

a grande importância do olhar que deve ser voltado à escolha da língua que
fará parte de seu currículo. Assim, a instituição deveria compreender a língua
de fronteira não como língua de aprendizagem, mas como língua de instrução.
Em 5 de agosto de 2005, foi implantada no Acre a Lei n. 11.161, que tornou
obrigatória a presença do espanhol no Ensino Médio das escolas brasileiras
e, em 2011, foi fundado o Centro Estadual de Línguas no Acre. Porém, isso
não foi suficiente para atender a necessidade que se faz presente nas escolas
acreanas, em especial nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
O presente texto deixa evidente que é nas séries iniciais o momento
mais apropriado para as crianças absorverem e construírem conhecimento
com maior facilidade e naturalidade, embora seja necessário que a escola
conheça e identifique a realidade cultural e intelectual de cada criança. Em
específico, o texto detalha as dificuldades e os avanços de aprendizagem das
crianças bilíngues, falantes do português e do espanhol, estudantes da escola
municipal Bela Flor na área de fronteira com a Bolívia (Pando, Cobija) e o
Brasil (Epitaciolânida, no Acre).

2 DESENVOLVIMENTO

Uma situação bastante comum no município de Epitaciolândia, no Acre,


fronteira Brasil – Bolívia, é o casamento entre brasileiros e bolivianos, do
qual surgem filhos, crianças provindas de uma mistura ou um encontro de
culturas, que terão em seus lares duas línguas diferentes, o português e o
espanhol. Duas línguas que se tornam parte integrante do seu dia-a-dia e
que são utilizadas com naturalidade por essas crianças em suas casas e com
sua família. Duas línguas que não se separam quando a criança ingressa na
escola.
Mas os familiares do lado brasileiro, por insegurança ou medo do preconceito,
da rejeição por parte da escola, de perderem seus direitos a oportunidades de
trabalho, à estabilidade, orientam seus filhos a falarem apenas o português na
escola. Isso leva muitas crianças a se calarem, se negarem a ter uma interação
normal com os outros pelo fato de não dominarem totalmente a língua, por
terem sotaques ou por em determinados momentos falarem outra língua, ou
seja, começam falando em português e de repente passam a falar em espanhol,

151
como fazem regularmente em casa, no convívio com os pais, quando um é
brasileiro e o outro, boliviano.
No relacionamento com a família, a concretização dessas trocas linguísticas
pode ser estritamente oral ou constituir práticas de aprendizagem, quando
nela intervêm, direta ou indiretamente, os textos escritos.
Na sala de aula, ao invés de se calarem, ficarem apáticas, tais crianças
deveriam ser sujeitos participativos das tarefas propostas pelo professor,
como, ouvir, falar, discutir, questionar, fazer inferências, participar de
práticas de ensino e de aprendizagem que contribuam para a formação do seu
conhecimento como participantes desse processo, que, através da interação
com sua turma, obtêm e, ao mesmo tempo, repassam suas experiências de
vida para outros.
O ideal é que a escola torne-se uma extensão de suas casas, onde vivenciam
todos os dias a evolução cada vez maior da tecnologia, por meio da qual
pessoas do mundo inteiro podem comunicar-se a qualquer momento, criando
elos entre diferentes grupos sociais. Isso ocorre de várias maneiras, seja pelos
meios de comunicação de audiovisual, seja através de redes sociais de páginas
de internet, como o Orkut, Facebook, Twiter, e-mails, salas de bate-papo,
blogs, entre outros.
Assim, os indivíduos estão inseridos num processo de inter-relação
com a linguagem, porque tomam para si os conhecimentos de mundo, dos
contextos sociais e, ao mesmo tempo, estão transmitindo, para os seus
interlocutores, seu repertório linguístico, que se aprimora à medida que
eles transitam pelo contínuo de oralidade e aprendizagem, o que representa
adquirir conhecimentos sempre, em todos os eventos dos quais participam,
principalmente no espaço escolar, onde deve se concretizar a socialização
desses conhecimentos.
Desde sua fundação, em 2006, a clientela da escola Bela Flor é bem
heterogênea. Formam a comunidade escolar tanto crianças brasileiras quanto
bolivianas ou descendentes de bolivianos.
Conforme depoimento de pais, são dois os principais fatores para adesão
às escolas brasileiras: o primeiro é por serem filhos da união de brasileiros
com bolivianos, o que automatiza esse direito sem nenhuma burocracia;
e o segundo é porque a família boliviana vê no ensino do Brasil um melhor
aproveitamento, desempenho e preparo acadêmico, pelo fato de o ensino no

152
Observatório Política Linguística em
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

Brasil estar sempre evoluindo e acompanhando o desenvolvimento industrial


e tecnológico. Alegam, ainda, alguns pais que se vincular ao Brasil é garantir
melhores oportunidades de trabalho e estabilidade financeira para a família.
Esse é um dos principais motivos do aumento da união matrimonial entre
bolivianos e brasileiras.
Assim, as escolas da fronteira Brasil e Bolívia, como a de Epitaciolândia,
passam a ter cada vez mais em suas salas de aula a presença de pelo menos
duas línguas, o português e o espanhol, assim como no outro lado da fronteira
ocorre o mesmo.
O que a escola deve fazer com essas línguas? Como deve proceder de forma
a atender satisfatoriamente não somente as crianças brasileiras ou falantes do
português, mas também as crianças bilíngues ou os falantes do espanhol? A
escola somente começou a refletir sobre tais interrogações e tentar encontrar
respostas a partir de sua participação no Projeto Observatório da Educação na
Fronteira - OBEDF.
Apesar de o Acre ser um dos Estados brasileiros que faz fronteira com
países de língua espanhola, ainda não há investimentos em políticas públicas
voltadas para o ensino das línguas nas escolas de séries iniciais do Ensino
Fundamental. Esse fato de certa forma permite que a escola não se preocupe
com o ensino de uma segunda língua em sala de aula. No caso deste artigo,
argumentamos que a segunda língua deveria ser o espanhol, por se tratar
da língua de fronteira e pela presença não apenas de crianças bolivianas ou
descendentes, mas também com o breve ingresso nas escolas de crianças
haitianas, devido à grande demanda de imigrantes no território acreano.
Porém, antes de buscar respostas a tais questionamentos, por orientação e
acompanhamento do OBEDF, foi realizado um levantamento para identificação
de crianças falantes de outra língua nas salas de aula, sobretudo nas turmas
de 1º e 2º ano do Ensino Fundamental, das quais apenas duas, inicialmente,
eram objeto de estudo e observação, tanto no que diz respeito ao uso de
outra língua, além do português, quanto no que se refere ao comportamento,
desenvolvimento de aprendizagem e interação no espaço escolar, dentro e
fora da sala de aula, inter-relação professor – aluno, aluno – aluno, aluno-
funcionários da escola.
Houve certa dificuldade no início do desenvolvimento do projeto, em 2011,
sobretudo no preenchimento satisfatório dos roteiros de observação, porque

153
as crianças falavam apenas em português. Foi necessário recorrer às fichas
de matrícula das crianças, nas quais se observou a demanda de 418 alunos,
entre o 1º e o 5º ano, dos quais 4% eram filhos de bolivianos com brasileiros
ou descendentes.
Durante esse processo de identificação de crianças falantes de outra língua
ou de descendentes de outra cultura (boliviana, mais especificamente, por ser
área fronteiriça com a Bolívia), observou-se pelas informações nas fichas de
matrícula que, em sua maioria, as crianças filhas de bolivianos com brasileiros
são registradas no Brasil e que tanto o registro de nascimento quanto a ficha
de matrícula da escola deixam muito a desejar na parte de identificação dos
dados familiares dos pais das crianças. Um dado interessante é que todos
apresentam comprovante de residência brasileira, mesmo morando na
Bolívia. Isso ocorre com filhos de casamento de brasileiros com bolivianos e
com filhos de casais bolivianos, talvez pelo fato de terem algum tipo de contato
direto com famílias brasileiras, seja por questões de trabalho, seja por laços
familiares, resultantes da união matrimonial ou trabalhista entre as duas
culturas. Acredita-se que apresentar um comprovante de residência brasileira
é uma forma de garantir vaga na escola.
Realizado o levantamento, houve a necessidade de repensar, em colaboração
com o OBEDF, a metodologia do trabalho docente e lançar um novo olhar
às crianças bilíngues e/ou descendentes de bolivianos. A partir dessa nova
visão, percebeu-se que lidar com uma segunda língua torna a sala de aula um
ambiente com necessidades especiais por várias situações, como o silêncio
das crianças, a inexperiência ou falta de conhecimento dos professores para
lidar com a situação, a ausência da família na escola e o medo de seus filhos
sofrerem preconceito por falarem diferente, ou por falarem outra língua, e,
ainda, o baixo nível de aprendizagem de tais crianças.
Algumas ações foram sugeridas pela equipe do OBEDF para auxiliar os
professores no acompanhamento das crianças que vivem em ambientes
bilíngues, buscando adequar o ensino à capacidade cognitiva das crianças
através de brincadeiras, leituras, produção de listas, narração de histórias,
apresentação de vídeos infantis, músicas e danças, visitas à feira livre,
onde é reservada uma galeria de barracas de venda aos bolivianos, que por
coincidência fica ao lado da escola. Atividades pensadas e planejadas com o
objetivo de envolver e estimular as crianças à aprendizagem.

154
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Realizada a primeira etapa do projeto, ficou acordado em seminário


algumas ações que encadeariam o trabalho da segunda etapa, como a
apresentação do projeto aos gestores, professores e demais funcionários da
escola, na intenção de garantir apoio para o desenvolvimento das ações a serem
executadas. A principal delas é o ensino via pesquisa, desencadeada a partir
de um diagnóstico realizado por Ana Shelly e Márcia Sagaz (mestrandas), com
o objetivo de conhecer o perfil sociolinguístico dos estudantes dessas escolas
sediadas em região fronteiriça brasileira. A aceitação foi unânime, apesar da
falta de domínio da língua espanhola.
Além da apresentação e divulgação do projeto para a comunidade escolar
e da realização do diagnóstico sociolinguístico, foi realizada reunião com o
Secretário de Educação do município para apresentação dos objetivos e
da implantação do Projeto Observatório da Educação na Fronteira, com
a finalidade de garantir apoio para o seu desenvolvimento não somente na
escola Bela Flor, mas nas demais escolas do município. O Secretário acenou
positivamente e garantiu a divulgação local. Nesse encontro, ficou acordado
que o Secretário se encarregaria da organização de um seminário envolvendo
todas as escolas de Epitaciolândia e municípios vizinhos, assim como a
participação de algumas autoridades de Pando Cobija. Acordou-se, ainda,
sobre as ações da escola, no que se refere ao ensino via pesquisa e à reserva de
uma hora semanal para o desenvolvimento específico de atividades orais em
espanhol para todas as turmas do 1º ao 5º ano, nas quais todos os funcionários
e alunos da escola deveriam se comunicar na língua estrangeira.
Embora não tenha sido possível o cumprimento de todos os acordos por
questões de transição política, eleição e troca de representantes e secretariado
municipal, a parte que coube à escola foi realizada com grande êxito. Os
docentes se envolveram e abraçaram o trabalho com muita seriedade e
cooperação.
As atividades incluídas na rotina semanal durante o planejamento das aulas
surtiram efeito imediato. Crianças que no início do projeto foram detectadas
como caladas e com índice de aprendizagem lento (que não se envolviam e
falavam tão baixo que a professora precisava se aproximar para ouvir o que
falavam), em sua maioria falantes do espanhol e do português, apresentaram
melhora relevante em todos os aspectos. O que os professores consideravam
“erro” dos alunos até então passou a ser visto como a identificação da identidade

155
das crianças no que se refere ao seu perfil sociolinguístico. Por utilizarem mais
o espanhol em suas casas, era natural que nas atividades de escrita algumas
misturassem português e espanhol, como por exemplo, ao escrever a palavra
pão escreviam pan (em espanhol). Isso somente foi compreendido pelos
professores após o início do Projeto Observatório da Educação na Fronteira
através do trabalho de observação.
As atividades eram baseadas em: visitas com os alunos à feira livre ao
lado da escola, nas barracas bolivianas, com pesquisa de preços de produtos
como brinquedos, relógios, roupas etc., na qual os alunos se comunicavam
em espanhol; leituras e narração de histórias em espanhol; rodas de conversa
em espanhol; vídeos de músicas e filmes; apresentações culturais; leituras de
listas diversas; uma hora de oralidade em espanhol (comunicação informal)
envolvendo todos na escola.
Essas atividades tornaram-se rotina na primeira hora de toda sexta-feira.
Quando um professor falhava com a atividade, as crianças demonstravam
imediata insatisfação, recorrendo à equipe de coordenação para que fosse
tomada providência. As crianças passaram a envolver seus familiares em casa,
falando em espanhol com os pais, irmãos, avós, parentes que tinham algum
tipo de contato com a língua espanhola. Muitas crianças desenvolveram a
curiosidade e passaram a fazer perguntas aos pais e familiares sobre como se
falava isso ou aquilo em espanhol e a fazer visitas a seus parentes residentes
na Bolívia apenas com a intenção de se comunicarem na língua. Portanto, está
evidente que a criança consegue muito facilmente envolver-se e distinguir
as diferenças de pronúncia e entonação que existem entre as línguas sem
inibição.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da aceitação e colaboração, é evidente a necessidade de os


professores e demais educadores da escola tornarem-se de fato profissionais
receptivos às diferenças e diversidades culturais de alunos, provenientes de
outras nacionalidades. Culturas e costumes que são apenas diferentes, mas
tão importantes quanto os das demais nações. O que se pretende dizer é que
inicialmente a exigência não está em os educadores terem domínio dessa outra

156
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

cultura, mas consciência de que ela deve ser levada em conta no processo
de acompanhamento da aprendizagem, ou seja, devem estar disponíveis a
abraçar novos desafios.
Pode-se dizer que a escola Bela Flor tem sido um palco positivo, pois seus
educadores, não apenas os docentes, mas também os da administração, da
alimentação, da higiene escolar, entre outros, vêm colaborando satisfatoriamente
no desenvolvimento dessa experimentação bilíngue, conscientes de que a língua
de fronteira é imprescindível nas escolas fronteiriças, pois envolve diversas
atividades sociais, como a identidade cultural, a valorização e o respeito da
diversidade, a integração e a pluralidade social e cultural.
Sabe-se que a aprendizagem acontece não somente dentro da sala de aula,
mas é nela que ocorre sua sistematização. Considerando que o que se observa
sobre o ensino de língua de fronteira nas escolas do Estado do Acre nas séries
finais do Ensino Fundamental é apenas um cumprimento de carga horária,
na qual o aluno estuda apenas para adquirir notas, ignorando completamente
a importância da aprendizagem para enriquecer seu repertório cultural e
intelectual, é evidente a necessidade de se refletir a respeito da metodologia
utilizada no desenvolvimento de ensino. E, para garantir que as atividades
sejam continuadas na Escola Bela Flor, elaboramos o Projeto “Bilinguismo
na Escola Bela Flor”, como parte específica da instituição, que foi incluído no
Plano de Desenvolvimento – PDE da escola.
O Projeto Escolas de Fronteiras do MEC diz que:

Toda fronteira se caracteriza por ser uma zona de indefinição e instabilidade


sociolinguística onde atuam duas ou mais línguas”. Essa interação se produz
a partir dos falantes da língua e da influência dos meios de comunicação,
em particular o rádio e a televisão de um e de outro lado da fronteira.
É assim na fronteira do Brasil com os países de língua espanhola, por
exemplo, onde estão presentes o português e o espanhol. Há alternâncias
nos usos de ambos os códigos com propósitos comunicativos e
identitários. Encontram-se frequentemente na fronteira, ainda, fenômenos
de mescla linguística e de empréstimos maciços em uma ou outra direção.
Uma educação para as escolas de fronteira, nesse contexto, implica
no conhecimento, a valorização e a produção das culturas envolvidas,
tendo por base práticas de interculturalidade. Como efeito da interação e
do diálogo entre os grupos envolvidos, têm-se, então, relações entre as
culturas, o reconhecimento das características próprias e o respeito mútuo.
Além disso, a educação pensada para as zonas de fronteira proporciona
aos alunos das escolas envolvidas o conhecimento e o uso de mais

157
uma língua, o que contribui para a qualidade da educação e para o
aprimoramento de suas relações comunicativas, tendo em vista que
esses alunos encontram-se, em maior ou menor grau, expostos a
situações de utilização de ambos os idiomas.

Assim, considerando, ainda, os depoimentos dos professores da Escola Bela


Flor, é evidente que a língua de fronteira deve ser inserida na escola desde as
séries iniciais, momento em que a criança aceita com naturalidade, seriedade
e disponibilidade toda proposta de ensino que lhe é oferecida. Espera-se que
este trabalho torne-se foco de análise e reflexão sobre o ensino bilíngue e que
se invista mais em políticas públicas voltadas para a implantação da língua
de fronteira nas séries iniciais das escolas de regiões fronteiriças de todo o
território brasileiro.

REFERÊNCIAS

Boletim informativo do Projeto OBEDF – Ano 1 – Edição 1. Florianópolis,


novembro de 2011.

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Secretaria Especial de


Editoração e Publicações - O.S. 02544/2001- Brasília-DF.

MEC – Escolas de fronteiras, Brasília e Buenos Aires. Março de 2008. Disponível


em: portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdp/escolasfronteiras

MORELLO, Rosângela. Boletim Informativo do Projeto OBEDF. Ano 1. Ed. 1


Florianópolis. Nov. 2011.

158
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

CONSTRUÇÃO CURRICULAR
NA PERSPECTIVA DE UMA
ESCOLA BILÍNGUE NA FRONTEIRA
BRASIL/BOLÍVIA
Ariádne Gomes de Souza1
Aurelúcia Moura dos Santos2
Sandra Lima Karantino Abiorana3

RESUMO

Este artigo apresenta o perfil sociolinguístico de uma das escolas públicas loca-
lizadas na cidade de Guajará-Mirim/RO, na fronteira Brasil/Bolívia, juntamente
com uma discussão sobre construção de um currículo escolar intercultural bilín-
gue/plurilíngue de fronteira que atenda aos anseios dessa comunidade escolar.
Observa-se a emergente necessidade de ser inserida no currículo escolar uma
proposta ou modelo de ensino que satisfaça as expectativas dessa comunidade de
zona de fronteira, estreitando laços de interculturalidade com a cidade fronteiriça
– com ênfase no ensino do português e do espanhol.

Palavras-chave: Currículo. Fronteira. Escola Bilíngue.

1 INTRODUÇÃO

Toda fronteira caracteriza-se por ser uma zona de indefinição e instabilidade


sociolinguística na qual atuam duas ou mais línguas. Essa interação é produzida

¹ Professora Graduada em Pedagogia/Séries Iniciais e Especialista em Gestão Escolar: Adminis-


tração, Supervisão e Orientação Educacional.
² Professora Ms. em Ciências da Linguagem, Diretora da E.E.E.F Durvalina Estilbem de Oliveira
e Coordenadora Institucional do Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF) (em memória).
³ Professora Graduada em Pedagogia/Séries Iniciais e Especialista em Formação Política e Pe-
dagógica.

159
a partir dos falantes da língua e da influência dos meios de comunicação, em
particular do rádio e da televisão de cada lado da fronteira.
É assim na área que limita o Brasil e a Bolívia, por exemplo, onde estão
presentes, entre outras línguas, o português e o espanhol. E é nesse contexto
linguístico que se encontra a Escola Estadual de Ensino Fundamental Durvalina
Estilbem de Oliveira, localizada entre Guajará-Mirim/RO e Guayaramerin,
na Bolívia. Essa escola, nos últimos anos, vem buscando, através de estudos e
pesquisas cientificas, apresentar uma educação para escolas de fronteira e/ou
programa de educação intercultural a sua comunidade escolar, na tentativa
de concentrar esforços para a construção de uma identidade bilíngue.
Nessa perspectiva, estabelecemos a parceria com o projeto Observatório
da Educação na Fronteira (OBEDF), que tem por objetivo construir um
panorama qualificado da situação linguística em escolas da fronteira,
observando seu reflexo sobre os processos de aprendizagem, notadamente
da língua portuguesa, em alunos de séries iniciais. Tal parceria fortaleceu o
trabalho que já vinha sendo estudado e enriqueceu a troca de conhecimentos
e possibilitou ações a serem aplicadas na escola.
Por meio de instrumentos de observação aplicados nas salas de aula e
planejados com o OBEDF, a “rotina das aulas” foi modificada de modo que
as professoras puderam fazer um acompanhamento sistemático e contínuo
de suas aulas nas séries iniciais do Ensino Fundamental, inicialmente no 1º e
2º anos e posteriormente no 3º e 4º anos, objetivando melhor compreender
como o ensino da língua portuguesa é desenvolvido na escola e de que modo
se dá a aquisição da leitura e da escrita pelos alunos falantes de outras línguas,
que não o português.

2 BREVE PERFIL LINGUÍSTICO DA ESCOLA

Com os instrumentais de observação do OBEDF aplicados ao longo


dos anos de 2011 e 2012 e tendo como foco o aluno “caso exemplar”4, foi
possível perceber com maior clareza e melhor entendimento certas situações
linguísticas no ambiente escolar. Alguns professores,por exemplo, atestaram

⁴ Refere-se aos alunos bolivianos e/ou descendentes que falam o espanhol.

160
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

que alunos bolivianos tinham sérios problemas de aprendizagem quando


apenas não compreendiam o português e falavam e escreviam em espanhol
nas aulas. Situações como essa repercutiam negativamente na vida escolar
desses alunos.
O espaço multicultural encontrado é composto da seguinte clientela:

X
‡ EROLYLDQRV

X
‡ LQGtJHQDV FRPPDLRUQ~PHURRVGDVHWQLDV0DFXUDSH2UR1DR 

X
‡ GHVFHQGHQWHVGHEROLYLDQRV WrPSDLHPmHEROLYLDQRVPDVDFHUWLGmRGH
QDVFLPHQWRpEUDVLOHLUD 
X
‡ ULEHLULQKRV

X
‡ UHVLGHQWHVQD]RQDUXUDOH

X
‡ EROLYLDQRVHEUDVLOHLURVTXHUHVLGHPQD%ROtYLD

Gráfico 1: Nacionalidade dos Alunos

Nacionalidades dos Alunos


FONTE: SECRETARIA DA ESCOLA, 2012.


%UDVLOHLURV

,QGtJHQDV

%ROLYLDQRV

O gráfico acima evidencia o percentual da multiculturalidade presente


na escola. Em seguida, observam-se gráficos demonstrativos com as falas
coletadas no espaço escolar de acordo com a procedência dos alunos:

161
Gráfico 2: -ÓOHVBEFDMBSBEBQFMPs alunos de acordo com a procedência no

FONTE: INSTRUMENTAIS DO OBEDF, 2011.


ambiente escolar

%UDVLOHLURV %ROLYLDQRV
5HVLGHQWHVHP*XD\DUDPHULQ 9LQGRVGHRXWUDVORFDOLGDGHVGD%ROtYLD

)DODPSRUWXJXrVHSRUWXQKRO )DODPHVSDQKRO

Consideramos aqui portunhol o que afirma Faulsith (1997): é o contato


entre fronteiras do português com espanhol resultando num bilinguismo
aberto provocando o surgimento de uma variante mista – portunhol ou
fronteiriço.
Vale aqui apresentar os estudos de Barbery e Kempf (2001) que exemplificam
o caso de Guajará-Mirim (onde se fala português) pela proximidade linguística
com Guayaramerim (onde se fala espanhol) entre as duas línguas teto (a rigor,
trata-se de contato entre dialetos e não de contato entre línguas realmente
diferentes).
Tais contextos teóricos merecem um aprofundamento de estudo a fim
de buscar-se um melhor entendimento e aplicação de conceitos nos estudos
decorrentes.

Gráfico 3: Percepção do comportamento linguístico dos alunos

%UDVLOHLURV %ROLYLDQRV

5HVLGHQWHV´PXLWRWHPSRµQD 'HVFHQGHQWHVGHEROLYLDQRV
%ROtYLDHPRXWUDORFDOLGDGH
)DODPHVSDQKROSRUWXQKROHR
$VFULDQoDVVmRELOtQJXHV SRUWXJXrV
SUHFRFHV

5
Definem as variedades sociais ou dialetos sociais, com as suas variedades diatópicas, diastráticas
e diafásicas, como línguas com teto.

162
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

$LQGDVHS{GHREVHUYDUTXHRXVRGDIDODXWLOL]DGDSHORVDOXQRVYDULDGH
DFRUGRFRPRDPELHQWHFRQIRUPHGHPRQVWUDGRDVHJXLU

Gráfico 4: Variação do comportamento linguístico dos alunos

%ROLYLDQRV
(VFROD SRUWXQKRHVSDQKRO
&DVD HVSDQKRO
DO OBEDF E ENTREVISTAS COM OS PAIS, 2011.

'HVFHQGHQWHVGHEROLYLDQRV
FONTE: INSTRUMENTAIS DE OBSERVAÇÃO

(VFROD SRUWXQKRHVSDQKRO
&DVD SRUWXQKRSRUWXJXrV

,QGtJHQDVGHVFHQGHQWHV
(VFROD SRUWXJXrV
&DVD SRUWXJXrVHOtQJXDPDWHUQD
2UR1DR·H0DFXUDS

Vale aqui ressaltar que foi dada ênfase à linguagem verbal e não à escrita
por ser aquela a mais utilizada cotidianamente em diversos ambientes dentro
e fora da escola, inclusive nas idas a Bolívia por qualquer motivo, não só pelos
alunos, mas pelos pais, professores, turistas, etc. Isso acaba interferindo na
continuidade do uso da escrita na sua língua, por acreditarem que não há mais
necessidade de aprofundamento, principalmente por parte dos alunos que
foram alfabetizados na Bolívia.
Com a apropriação dessas informações obtidas através dos Relatórios de
Interação no Espaço Escolar, na aplicação do Diagnóstico Sociolinguístico I,
na participação em algumas fases de aplicação do Diagnóstico Sociolinguístico
II do OBEDF e com o apoio das pesquisas e entrevistas de cunho científico
realizadas em estudos anteriores, apresentam-se alguns pontos positivos e
dificuldades encontradas na convivência diária com esses alunos:

163
Pontos positivos e dificuldades de convivência com os alunos bolivianos
no ambiente escolar

321726326,7,926 ',),&8/'$'(6

• &RPSUHHQVmRGRV
FRPSRUWDPHQWRVHTXtYRFRV • GRVSURIHVVRUHVQmRIDODP
HVSDQKRO

• )RFRQRDOXQRH[HPSODU • 5RWDWLYLGDGHGHVHUYLGRUHV

FONTE: SANTOS, 2011 E RELATÓRIOS


• $OXQRVQmRDSUHVHQWDP
´GLILFXOGDGHVµQDDSUHQGL]DJHP • 'LILFXOGDGHGRVDOXQRVTXDQWRj
VRFLDOL]DomR

FINAIS DO OBEDF, 2011/2012.


• )RUWDOHFLPHQWRSDUDR
SODQHMDPHQWRHVSHFtILFR
• 3UHFRQFHLWRSRUSDUWHGRVDOXQRV
EUDVLOHLURVHGRVSUySULRVEROLYLDQRV

• 5HFRQKHFLPHQWRGHDOJXQV
SUREOHPDVOLQJXtVWLFRV
• )DOWDGHXPDSURSRVWDFXUULFXODU
LQWHUFXOWXUDOELOtQJXH

Essa experiência nos permitiu estabelecer uma discussão maior sobre os


passos já dados e os que estão por vir.

3 A INTERCULTURALIDADE NA ESCOLA DE FRONTEIRA

O trabalho didático-pedagógico visto através de uma perspectiva


do currículo intertranscultural começa criando espaços de encontros e
horários, o que estimula o diálogo entre as pessoas. Fazendo uma “leitura de
mundo” do contexto para questionar a realidade, tentando refletir sobre os
diferentes significados dos múltiplos sentidos da realidade, promovendo o
reconhecimento de símbolos e representações da nossa abordagem cultural,
experiências e diferenças de identidade são vivenciadas como o grau de
comunicação que as nossas linguagens permitem.
Segundo Fleuri (2004) no currículo intertranscultural uma cultura aprende
com a outra e, se isso não acontecer, é difícil para as pessoas da mesma cultura
ter uma boa compreensão de sua própria, pois serão incapazes de entender a
lógica de todos os padrões culturais e o que precisam para dar sentido a sua
vida coletiva.

164
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Para que as ações de sensibilização nas escolas de fronteira sejam


bemsucedidas, é importante partir dos conhecimentos prévios dos alunos, das
famílias e de suas realidades. Prevê-se, assim, que as escolas desenvolvam uma
sistemática de trabalho de sensibilização dos pais para o desenvolvimento de
atitudes positivas frente o bilinguismo e a interculturalidade.
Uma educação para as escolas de fronteira, nesse contexto, implica
o conhecimento e a valorização das culturas envolvidas, tendo por base
práticas de interculturalidade6. Como efeito da interação e do diálogo
entre os grupos sociais envolvidos, têm-se, então, relações entre culturas de
características próprias, o respeito mútuo e a valorização do diferente como
diferente (e não como ‘melhor’ ou ‘pior’).
Além disso, a educação pensada para as zonas de fronteira porporciona
aos alunos o conhecimento e o uso de mais uma língua, o que contribui
para a qualidade de educação e para o aprimoramento de suas relações
comunicativas, tendo em vista que esses alunos encontram-se, em maior ou
menor grau, expostos a situações de utilização de ambos os idiomas.
Acrescenta-se, ainda, o que diz Santos (2011) para os profissionais da
educação e, principalmente, ao educador: espera-se uma maior percepção da
necessidade de estreitar laços de interculturalidade entre cidades vizinhas de
países de fronteira com o Brasil.
A escola bilíngue deve ser vista em uma perspectiva sociolinguística-
cultural para o desenvolvimento do bilinguismo e da interculturalidade, em
que os países fronteiriços possam em comum acordo trabalhar na elaboração
de propostas educacionais que visem a uma maior interação com as escolas
de fronteira.
Diante desse contexto, McLaren (1999, p. 16) alerta que:

A educação multicultural e intercultural procura familiarizar as crianças


com as realizações culturais, intelectuais, morais, artísticas, religiosas,
etc. de outras culturas, principalmente das culturas não dominantes.
As crianças que não aprenderem a estudar outras culturas perderão

⁶ Entende-se por ‘interculturalidade’ um conjunto de práticas sociais ligadas a ‘estar com o outro’,
entendê-lo, trabalhar com ele, produzir sentido conjuntamente. Como em toda prática social, in-
terculturalidade se vive à medida que se produzem contatos qualificados com o outro. Ou ainda,
como conhecimento sobre o outro, sobre o outro país, suas formas históricas de constituição e
de organização, conhecimentos que precisam estar presentes curricularmente nos projetos de
aprendizagem planejados e executados nas escolas.

165
uma grande oportunidade de entrar em contato com outros mundos e
terão mais dificuldades de entender as diferenças; fechando-se para a
riqueza cultural da humanidade, elas perderão também um pouco de
capacidade de aprender a se humanizar [grifos do autor].

Ainda nesse contexto, Santos (2011, p. 41-42), afirma que “Faz-se necessária
uma reflexão sobre o futuro das crianças e adolescentes que convivem nesse
espaço fronteiriço ‘privilegiado’ que não é ‘privilegiado’.”
As políticas devem estar voltadas para a construção de uma cidadania
regional, bilíngue e intercultural, propugnando uma cultura de paz e de
cooperação interfronteiriça.
Há a necessidade de difundir o aprendizado do português e do espanhol
por meio dos sistemas formais e não formais, considerando como áreas
prioritárias o fortalecimento de identidade regional, o que leva dessa forma ao
conhecimento mútuo, a uma cultura de integração e à promoção de políticas
regionais de formação de recursos humanos visando à melhoria da qualidade
da educação.
É preciso avançar na sensibilização ao aprendizado dos idiomas oficiais do
Mercosul. Cita-se aqui um aspecto apresentado na reunião7 de Ministros da
Educação do Setor Educacional do Mercosul, no qual defendem “a educação
como espaço cultural para o fortalecimento de uma consciência favorável
à integração, que valorize a diversidade e reconheça a importância dos
códigos culturais e linguísticos”.
E, de acordo com Morello (2009), a implementação de políticas linguísticas
propõe o agenciamento de novos mecanismos de representação de variados
setores da sociedade. Mas esse agenciamento tem por suporte os vínculos
sociais e os mecanismos que instalam. Os vínculos afetam a consecução de
políticas públicas, interferindo em sua capacidade de estabelecer lastros
identitários, não sendo apenas seus efeitos. A atenção sobre esses vínculos
nos indica os modos de relação cultural que constituem os espaços simbólicos
compartilhados, desenhando redes de sustentação para as iniciativas das
políticas públicas. Mais um desafio, portanto, mobilizado pelas atuais políticas
para a diversidade.

⁷ Reunião realizada em Assunção / Paraguai, no ano de 2001, quando foi aprovado o Plano de
Ação do Setor para 2001-2005.

166
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

4 ADEQUAÇÕES PEDAGÓGICAS

A partir das considerações precedentes sobre os desafios, potencialidades


e possibilidades para uma educação que valorize as línguas e as identidades
nas relações de fronteira, pretende-se apresentar à Secretaria de Estado
da Educação de Rondônia – SEDUC para análise uma proposta de Projeto
Piloto no Estado de Rondônia a ser desenvolvida na E.E.E.F Durvalina
Estilbem de Oliveira – inicialmente para os alunos do 1º segmento do Ensino
Fundamental e/ou para somente alguns anos desse segmento, com a parceria
efetiva de professores que se identifiquem com a proposta, que tem como
objetivo geral promover o maior número de ações possíveis que viabilizem a
priori uma aproximação de fato de uma escola bilíngue na fronteira do Brasil
e da Bolívia.
No demonstrativo abaixo, apresentam-se algumas ações que possibilitarão
a reconstrução do currículo escolar com um “novo sistema de gestão”, na
tentativa de promover um melhor espaço intercultural e bilíngue.

(SÈGJDP"MHVNBTQSPQPTUBTEFBQPJPQBSBB SF
DPOTUSVÎÍPEPDVSSÓDVMPFTDPMBS

8VRGDVGXDVOtQJXDV
GLYHUVRVDPELHQWHVHVLWXDo}HV
FONTE: SANTOS, 2011 E RELATÓRIOS
FINAIS DO OBEDF, 2011/2012.

0HOKRUUHODFLRQDPHQWRLQWHUSHVVRDO $VVHVVRULD7pFQLFD(VSHFLDOL]DGD

,QWHUFkPELRGRV ,QWHUFkPELRHVFRODVGH $XODVHSURMHWRV


GRFHQWHVHRXWRV IURQWHLUDFRPSURMHWRV ELOtQJXHVFRP
SURILVVLRQDLVFRPDV H[LWRVRV FRRSHUDomR
HVFRODVGRSDtVYL]LQKR IURQWHLULoD

Por estar em fase de elaboração do projeto anteriormente citado, não será


detalhada a maneira como cada ação apresentada acontecerá no ambiente
escolar, com os devidos acompanhamentos técnicos pedagógicos internos. O
foco são as ações que auxiliam diariamente a leitura e a escrita.

167
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Privar os alunos imigrantes de sua língua significa criar situações de


conflitos entre dois modelos – o de família e o social – e desprezar suas
identidades. Se as línguas e culturas forem respeitadas pelos sistemas de
ensino, esses alunos desenvolverão uma melhor autoestima, amenizando ou
até mesmo extinguindo preconceito existente.
Sabe-se que o Brasil é um país multicultural e multilíngue. Conse-
quentemente, falam-se diversas línguas e nas escolas não poderia ser
diferente, ainda mais nas de fronteira. As adequações pedagógicas propostas
poderão inibir a tentativa de “apagar” da cabeça dos alunos sua língua, em
especial as que são consideradas idiomas “menores”.
Segundo (Oliveira, 2004, p. 36), “a base para o funcionamento da pesquisa
é o interesse das pessoas que participam do processo educativo”. Assim, é
preciso mobilizar a comunidade escolar e as instituições hierarquicamente
superiores e propor novas parcerias em prol da implantação de uma proposta
que contemple nossos interesses por “Una Escuela Bilingue”, através de
efetivas políticas linguísticas públicas.
Algumas concepções e experiências já vivenciadas na referida escola
foram apresentadas, bem como algumas ações que se almejam implementar
com o intuito de dar continuidade a reflexões sobre novas possibilidades
de implementação de práticas pedagógicas curriculares que levem em
consideração a heterogeneidade sociolinguística e a forte orientação
intercultural presente na nossa fronteira e na nossa escola.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FAULSTICH, Enilde. O portunhol é uma interlígua? Série Reflexões. 1997.

FLEURI, Reinaldo Matias. O desafio da transversalidade e da reciprocidade entre


culturas na escola. In: PADILHA, Paulo Robert. Currículo intertranscultural:
novos itinerários para a educação. São Paulo: Cortez, 2004.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez, 1999.

168
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

MORELLO, Rosângela. Diversidade no Brasil: línguas e políticas sociais.


2009.

OLIVEIRA, G. M. (Org.). Interesse, Pesquisa e Ensino - Uma equação para a


Educação no Brasil. 1ª ed. v. 2.000. Florianópolis: Prelo, 2004.

SANTOS, Aurelúcia Moura dos. A língua como instrumento de inclusão


escolar: um estudo com alunos bolivianos em uma escola de fronteira Brasil
– Bolívia. 156 f. Dissertação de Mestrado em Ciências da Linguagem. Fundação
Universidade Federal de Rondônia, 2011.

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

DIFERENÇAS E PRECONCEITOS
LINGUÍSTICOS – DESAFIOS
PARA A ESCOLA PÚBLICA

Elma Janete Bormann Braga1


Esmeralda Souza Tobias2
Maria Iris dos Santos Araújo3

RESUMO

O presente artigo aborda questões envolvendo o preconceito linguístico, nota-


damente, o modo como a escola contorna a situação no dia a dia do aluno. Rea-
lizou-se observações nas salas de aula da Escola Municipal de Educação Infantil
e Ensino Fundamental Professora Floriza Bouez e os resultados das observações
realizadas refletem os desafios linguísticos vivenciados pelos sujeitos – professo-
res, equipe gestora e alunos. Ao iniciar a pesquisa, identificou-se uma diversida-
de linguística dentro da escola, tendo em vista que a cidade de Guajará-Mirim/
RO é vizinha da cidade de Guayaramerim/BO. É visível o movimento de pessoas
dentro das fronteiras para satisfazer os desafios socioeconômicos, cuja busca de
trabalho propicia a maioria dos movimentos observados. Com a realização das
observações na escola Floriza Bouez, pôde-se traçar um panorama das causas ou
dos motivos que levam os alunos descendentes de bolivianos a não aprenderem e
analisar a prática como educadores, com vistas a diminuir a exclusão dos alunos
dentro da escola.

Palavras-chave: Ensino. Desafio. Preconceito linguístico.

1 INTRODUÇÃO

Para que o ensino de línguas nas escolas seja efetivo, torna-se necessária a
conscientização sobre a diversidade linguística.

¹ Coordenadora da OBEDF na E. M. Floriza Bouez e bolsista do OBEDF.


² Professora na E. M. Floriza Bouez e bolsita do OBEDF.
³ Professora na E. M. Floriza Bouez e bolsista do OBEDF.

171
Felizmente, essa diversidade já é observada pelas instituições oficiais
encarregadas de planejar a educação no Brasil. Assim, nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), publicados pelo Ministério da Educação e do
Desporto em 1998, observa-se que:

A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos


os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de
qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa”
está se falando em uma unidade que se constitui de muitas variedades.
(...)

2 PRECONCEITO LINGUÍSTICO E ENSINO

Ao nascerem, os indivíduos já trazem consigo formas internalizadas da


linguagem, da mesma forma que ao escutar outras pessoas conversarem
conseguem ao longo do tempo aprender a se comunicar através da fala.
Quando a criança é inserida no ambiente escolar, tem início o processo de
aprendizagem da língua padrão, ensinada pelas gramáticas tradicionais, a
qual na maioria das vezes diverge da língua aprendida até então. Esse aluno,
que já possuía sua “própria língua”, ao entrar na escola, descobre que tudo o
que aprendeu é considerado errado e, dessa forma, perde sua personalidade/
identidade e abre espaço para o preconceito em relação a outros modos
de falar. A língua padrão passa a ser considerada a forma “correta” de se
expressar, em detrimento de outras formas, que, por sua vez, passam a ser
consideradas “feias ou incorretas”. Em conjunto com essas situações reais,
pode surgir o preconceito linguístico, que, de acordo com Bagno (2007) “é
a atitude que consiste em discriminar uma pessoa devido ao seu modo de
falar”
Na cidade de Guajará-Mirim, é comum o fluxo imigratório de muitos
bolivianos que tentam melhores oportunidades de trabalho e condições de
vida do que aquelas encontradas em seu país de origem. Os imigrantes, em
geral, vêm acompanhados de suas famílias com filhos em idade escolar e esses
acabam sendo matriculados na escola regular. Ainda existem as famílias que
já residem há algum tempo no Brasil, cujos filhos são brasileiros falantes do
português e do espanhol.

172
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

A legislação brasileira, que assegura a todas as crianças do país o direito


à educação, garante, portanto, o acesso dos alunos estrangeiros à escola. O
impacto dessas matrículas na escola tem demonstrado que o acesso garantido
à escolarização não garante necessariamente o avanço escolar desses alunos.
A pesquisa realizada mostrou que a maioria dos alunos bolivianos ou
descendentes tem continuamente experimentado o fracasso escolar.
No ensino institucionalizado, a escola prioriza as aulas no idioma nacional
e o aluno estrangeiro, que não tem domínio da língua, enfrenta dificuldades
de aprendizagem em todas as disciplinas da grade curricular. Aprender a
língua portuguesa, portanto, é fator crucial para amenizar essas dificuldades
e assegurar a adaptação, alcançar a integração escolar, o aproveitamento e o
progresso desses alunos.
Com vistas a compreender melhor o cenário da realidade dos alunos
bolivianos na escola pública e detectar as dificuldades que eles enfrentam,
por falar uma segunda língua, o objetivo deste estudo é retratar os desafios
que se enfrentam em uma escola pública ao receber falantes de outra língua
a fim de que se criem ações que assegurem não apenas o direito à matrícula
desses alunos, mas que promovam sua adaptação aos estudos e o sucesso na
escola.

3 O CONTEXTO DA PESQUISA

O enfoque desta pesquisa foi traçar as dificuldades enfrentadas diariamente


pelos alunos estrangeiros ou descendentes por serem falantes de uma segunda
língua e relatar o despreparo de seus professores em compreender a língua
desses alunos.
Nesse contexto, o ponto de partida foi um mapeamento detalhado do
quantitativo de alunos estrangeiros matriculados, que permitiu a visualização
dos sujeitos em estudo bem como o número de professores que dominavam
o espanhol.
De acordo com as observações realizadas, chegou-se ao seguinte perfil de
aluno:
• alunos descendentes de bolivianos, cujos pais são falantes do espanhol,
mas que na escola interagem em português;

173
• alunos indígenas das etnias Oromon e Macurap que só falam a língua
indígena com a família; e
• alunos bilíngues que usam uma segunda língua na escola e em casa.
No decorrer das observações, encontraram-se as seguintes dificuldades:
• alunos dentro do perfil observado com dificuldades de leitura e escrita;
• preconceito dos colegas com os alunos indígenas e descendentes de
bolivianos;
• resistência das famílias em assumir as origens;
• desinteresse dos alunos em realizar as atividades propostas em sala de
aula; e
• professores que não sabem falar espanhol para trabalhar uma segunda
língua em sala de aula.

4 COMO GARANTIR A INCLUSÃO DOS ALUNOS BOLIVIANOS NAS


ESCOLAS BRASILEIRAS

Do ponto de vista histórico, para Romaine (1989) a sociedade tem atribuído à


escola o empoderamento para agir como um dos mais importantes instrumentos
de socialização. Exerce controle social sobre os alunos, fortalecendo valores
vigentes e ao mesmo tempo rechaçando outros que não se coadunam com o
código social aceito pela maioria. Isso coloca o aluno estrangeiro oriundo de
uma etnia minoritária, portanto, falante de outra língua e membro de outra
cultura, em posição de conflito. Nesse sentido, Gouveia e Solla (2004, p. 31)
ratifica que a “afirmação de que a língua portuguesa é a língua materna da
esmagadora maioria da população escolar e é a língua de acolhimento das
minorias linguísticas confirma que há alunos que não têm a língua portuguesa
como língua materna para os quais é preciso encontrar soluções adequadas.”
A política de inclusão educacional no Brasil está amparada pela Constituição
Brasileira de 1988, nas disposições que garantem o direito de educação para
todos e o respeito às diferenças.
No entanto, no cotidiano escolar, depara-se constantemente com o
desafio de atender as necessidades educacionais desses alunos estrangeiros
e descendentes, tendo em vista que eles encontram dificuldades iniciais

174
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

para se comunicarem em sala de aula com seus professores e com os demais


colegas. Além disso, sentem-se encabulados por não entenderem o que se
fala e têm medo de se expressar em português. Em consequência, sentem-se
desmotivados, não se adaptam às regras da disciplina escolar e acabam sendo
discriminados (Caldeira et alli, 2004).
No acompanhamento da situação do aluno boliviano sem o domínio da
língua portuguesa nas salas de aula, percebeu-se que era necessário refletir
sobre essa realidade e tentar conscientizar os professores da necessidade de
ministrar aulas tanto em português como em espanhol. É importante lembrar
que, de acordo com o princípio da inclusão, a escola deve acolher o aluno
estrangeiro, representante legítimo de uma minoria linguística, étnica e cul-
tural, e criar condições para que ele se desenvolva integralmente. Caberia,
pois, um questionamento quanto ao critério empregado pelo sistema escolar
para garantir a adaptação aos estudos a que esse aluno faz jus.
De acordo com dados estatísticos da escola Floriza Bouez, é visível o
fracasso acadêmico do aluno estrangeiro não falante do português e que, e
que se não for dada continuidade à ações para apoio pedagógico conforme
previsto no OBEDF, diversos prejuízos serão somados à vida escolar desse
aluno, demotivando-o em prosseguir seus estudos.
Convém lembrar que a parceria com a Universidade, cujo interesse é
promover um estudo sobre esses alunos a fim de implementar ações de
extensão para o fomento do ensino, da pesquisa e do desenvolvimento social,
pode ser um recurso adequado para sanar a dificuldade do aluno estrangeiro
com a língua majoritária.

5 DESAFIOS PARA A ESCOLA FLORIZA BOUEZ E SEUS


PROFESSORES

A diversidade cultural e linguística presente na escola é confirmada pela


presença crescente de alunos que falam outra língua, que não o português,
e pertencem a outras origens culturais. Frente essa realidade, o acolhimento
desses alunos coloca um desafio: o de integrá-los à escola, inserindo-os
no processo de escolarização para que lhes seja garantidas as mesmas
oportunidades de progresso escolar que têm os demais alunos.

175
É necessário que a escola reconheça a riqueza da diversidade, encarando-a
positivamente como uma grande oportunidade de capitalizar novas aprendiza-
gens. Só então estará consolidando o princípio da escola inclusiva, defendendo
a ideia de que a diversidade deve ser aceita e respeitada, na cultura e na língua
do outro.
De acordo com Pessini (2003), a baixa proficiência na língua de interação
em sala de aula coloca o aluno falante de uma segunda língua numa relação
de desigualdade com os demais, na qual as chances para um desenvolvimento
so-cial e acadêmico serão mínimas, a menos que se tomem providências
para superar a limitação imposta pela barreira linguística, que interfere nas
oportunidades de sucesso de aprendizagem do aluno nas diversas disciplinas
do currículo e na sua verdadeira integração à escola. Não é essa, como aponta
Freitas (2006), a essência das atuais políticas públicas de educação que
buscam incluir e garantir uma educação de qualidade para todos?
Para melhor retratar a realidade desses alunos sem domínio da língua
de escolarização, foi importante pesquisar, também, o que os professores
tinham a dizer com relação às dificuldades que esses alunos apresentam
em sala de aula. Foi relatado que, quando se deparam com as dificuldades
enfrentadas pelos alunos, os professores percebem-se angustiados por não
contar com apoio de nenhum projeto pedagógico ou orientação da SEMED
(Secretaria Municipal de Educação), de recursos ou capacitação que os auxilie
a encaminhar a questão.
Quanto ao interesse dos professores no sentido de ajudar os alunos a
superar a barreira linguística, não é plausível esperar que apenas o professor
ajuste sua prática pedagógica para lidar com esses alunos em sala de aula, sem
que lhe seja provido o devido preparo, necessário para ensinar o português
com a abordagem de segunda língua. O projeto político pedagógico da escola
deverá garantir a implementação de ações que visem à integração desses
alunos à realidade escolar. Os professores que recebem os alunos falantes
de espanhol em suas salas de aula não tiveram a formação específica para
lecionar aulas em espanhol e sentem-se despreparados, não confiantes, o que
é perfeitamente compreensível.
Houve, durante a pesquisa, a oportunidade de constatar ações como a
realização de aulas em espanhol ministradas pelas professoras participantes
da pesquisa. Tratou-se de uma iniciativa pontual, em resposta à demanda dos

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

alunos bolivianos matriculados nessa escola que não tinham o domínio da língua
portuguesa. O rendimento escolar desses alunos melhorou, bem como se percebeu
a diminuição do preconceito existente por serem falantes de outra língua.
Observou-se, portanto, que determinadas atitudes, como o desenvolvimento
de aulas em português e espanhol; reuniões com pais e professores, orientando-
os sobre como trabalhar com alunos falantes de outras línguas em sala de aula;
encaminhamento dos alunos com dificuldades de aprendizagem ao Centro
Multidisciplinar para atendimento especializado; e realização de palestras
educativas para funcionários, alunos e pais, contribuíram para minimizar as
dificuldades dos alunos à integração no sistema escolar.

6 NOVOS DESAFIOS PARA A SECRETARIA MUNICIPAL DE


EDUCAÇÃO

No contexto deste trabalho realizado na escola Floriza Bouez, é fato que os


alunos oriundos de minorias linguísticas têm acesso garantido à escola porque
precisam estar inseridos no sistema escolar condizente com sua faixa etária e
porque a lei brasileira lhes garante o ingresso. Suas famílias escolheram o Brasil
como país de adoção e seus filhos precisam estar inseridos no sistema educa-
cional, como meio de garantir direitos e deveres, e a aprendizagem da língua
portuguesa, nesse caso, assume uma importância crucial, pois é a ferramenta
necessária para que esses alunos possam alcançar integração na sociedade, à
qual agora pertencem, e praticar o exercício da cidadania estendida.
A solução para cuidar da aprendizagem suficiente do português para o bom
aproveitamento escolar e para a não interferência no andamento do ensino
aos alunos locais ultrapassa a alçada da escola. São necessárias ações das
autoridades educacionais para garantir a integração escolar desses alunos e
impedir que se mantenham esquecidos nas salas de aula, rotulados como os
que têm dificuldade de aprendizagem.
Com base nessa situação, sugere-se que sejam implementadas políticas
linguísticas que visem a apoiar esses alunos na aprendizagem durante o ano
letivo. Outra ação educacional, preventiva e necessária para se alcançar esse
objetivo é a formação de professores para ministrarem aulas em espanhol aos
alunos bolivianos.

177
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Alunos bolivianos são matriculados todos os anos na rede pública munici-


pal de Guajará-Mirim e têm frequentado as salas de aula sem que essa rede
de ensino tenha demonstrado preocupação em atender as dificuldades
apresentadas. Eles fazem parte das minorias linguísticas das escolas e não
recebem qualquer tratamento especial a que têm direito.
O impacto dessas matrículas na vida da escola deixa evidente o despreparo
da instituição para receber e formar esses alunos. A escola não tem reconhecido
a existência dos problemas oriundos da baixa proficiência linguística em
português desses alunos, não tem suscitado reflexão sobre a situação deles, e,
portanto, os têm relegado à invisibilidade.
No confronto com a situação do aluno boliviano, sem o domínio da
língua portuguesa, nas salas de aula das escolas da rede pública municipal
de Guajará-Mirim, percebe-se que há de se refletir sobre essa realidade,
registrando-a, analisando-a e levantando dados que revelem como os órgãos
reguladores do ensino, como o Conselho Municipal de Educação, a Secretaria
Municipal de Educação (SEMED) e, em última instância, as escolas e os
professores têm lidado com essa questão. Cabe, diante dessa realidade,
promover uma reflexão e uma providência sobre o tipo de política linguística
educacional a ser aplicada para o aluno boliviano matriculado nas escolas
públicas municipais.
É reconhecido, portanto, que compete à escola valorizar a diversidade
cul-tural e linguística dos alunos estrangeiros, respeitando a diferença, a
identidade étnica, o sistema de crenças e os valores que pertencem aos alunos
estrangeiros e, principalmente, assegurando-lhes o direito ao ensino da língua
portuguesa, que proporcionará, conforme enfatiza Barbulescu (2005, p. 4),
“[..] a capacidade de expressão e compreensão da língua portuguesa, como
instrumento de plena integração [..]”.
Enfim, acredita-se que o esforço dessa pesquisa, da qual trouxemos
aqui apenas um recorte, ainda que embrionária e fragmentada, a partir dos
dados revelados, já possa nos servir para despertar o olhar do Poder Público,
responsável pela educação, com vistas a buscar e encontrar soluções para
diminuir as dificuldades impostas pela barreira linguística que separa os
alunos do sucesso escolar e social para que possam compartilhar das mesmas

178
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

oportunidades de aprendizagem dos alunos que dominam o português como


língua materna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. 28ª ed. São Paulo: Loyola, 2004

BARBULESCU, G. O Ensino do Português como Língua Estrangeira para


Alunos de Língua Romena. Universidade Internacional de Lisboa – Centro de
Estudos Multiculturais. Lisboa, 2005.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Língua Portuguesa: 3º e 4º


Ciclos do Ensino Fundamental. 1998

CALDEIRA, E.; PAES, I.; MICAELO, M; VITORINO, T. Aprender com a


diversidade: um guia para o desenvolvimento da escola. Ministério de Educação.
Lisboa, 2004.

FREITAS, S. N. Uma escola para todos: Reflexões sobre a prática educativa.


In: Inclusão: Revista de Educação Especial, Brasília: Secretaria de Educação
Especial, p. 37-40, dez/2006.

GOUVEIA, Adelina; SOLLA, Cristina. Português Língua do País de


Acolhimento-Educação Intercultural. Lisboa, 2004.

PESSINI, M. A aquisição do português escrito por Alex, entre o Paraguai


e Brasil: Um estudo de Caso. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp,
2003.

ROMAINE, Suzanne. Bilinguismo. Oxford: Brasil Blackwell, 1989.

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Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

BILINGUISMO NA ESCOLA POLO


MUNICIPAL RAMIRO NORONHA

Ana Cristina Espínola Cândia1


Ana Lúcia Guieiro2
Rosimar dos Santos Alves3

RESUMO

A temática abordada por esse texto é a questão do bilinguismo evidenciado na


Escola Polo Municipal Ramiro Noronha, localizada em região de fronteira. Bus-
ca-se, no referido texto, retratar a realidade vivida pela escola, que lida cotidia-
namente com um grande fluxo de alunos provenientes de Pedro Juan Caballe-
ro/Paraguai, que cruzam a fronteira para estudar no Brasil. Esse deslocamento
de alunos que trazem consigo seu idioma, sua cultura e suasidentidade cria no
contexto escolar um mosaico assaz interessante: o bilinguismo social presente no
Paraguai se evidencia também na escola, o que promove uma mescla linguística e
cultural na escola, o que permite ser chamada de escola intercultural. Esse fenôme-
no é comum nas fronteiras brasileiras, devido ao fato de o Brasil ser um país com
grande dimensão territorial e largas extensões de faixas de fronteira com outros
países, especialmente as fronteiras secas, que permitem a natural permeabilidade
entre as culturas e constitui um cenário profícuo para a produção desse fenômeno.

Palavras – chave: Fronteira. Pluralidade cultural. Bilinguismo.

1 INTRODUÇÃO

As escolas localizadas em regiões de fronteira, pela proximidade com países


estrangeiros, vivem uma situação bastante peculiar devido à constituição das

¹ Coordenadora do Projeto OBEDF na Escola Polo Municipal Ramiro Noronha. Graduada em


Pedagogia e Especialista em Psicopedagogia, Expressão Hispânica e Gestão Escolar.
² Professora da Educação Básica, Especialista em Pedagogia, Pós-graduada em Metodologia e
Leitura no Ensino Fundamental.
³ Professora da Educação Básica, Graduada em Pedagogia, Pós-graduada em Metodologia e
Didática do Ensino Superior.

181
suas comunidades escolares. Nesse sentido, a Escola Polo Municipal Ramiro
Noronha (EPMRN), localizada no município de Ponta Porã – MS/Brasil,
conta com uma comunidade estudantil composta de aproximadamente 1.500
alunos, dos quais uma média de 85% são brasiguaios4 e bilíngues, que utilizam
uma língua diferente na comunicação no dia a dia: o jopará5. O jopará é uma
mescla do espanhol com o guarani, ou com o portunhol, uma mistura de
português com o espanhol, linguajar típico da fronteira, que se diferencia,
do lado paraguaio, até mesmo de outras localidades paraguaias e, do lado
brasileiro, de outros municípios.
Essa complexidade linguística, com que os alunos convivem naturalmente
em seus lares, provoca um estranhamento e um desafio para a escola, em espe-
cial no processo de alfabetização, pois muitas vezes gera dificuldades tanto
para os alunos quanto para os professores na consecução de seus objetivos.
Entendendo essa realidade como uma característica das escolas situadas
em região de fronteira, a EPMRN, a partir do projeto Dois países, uma só
Cultura (concebido pela direção da escola) e da participação dessa escola no
projeto OBEDF- Observatório da Educação na Fronteira, vem desenvolvendo
um trabalho, muito específico, por parte dos educadores, que visa a atender
essa peculiaridade, explorando a bagagem linguística e cultural dos alunos
com o objetivo de socializá-los, respeitando suas características psicossociais.
A língua é um fator extremamente importante para formação da identidade
cultural, à medida que demarca comunidades, grupos étnicos e serve de
expressão, em diferentes níveis, pois configura as diferenças sociais no meio
de uma comunidade. Uma grande porcentagem de alunos que residem no
Paraguai convive com a língua espanhola e guarani no lar e com o português
na escola, pois muitas famílias, devido à situação geográfica e a migrações,
são de origem paraguaia também. Não raro há famílias em que os pais são
brasileiros e paraguaios, residentes no Brasil ou no Paraguai, ou, ainda, pais
brasileiros e avôs paraguaios.
A reflexão sobre a realidade dessa escola promoveu questionamentos que
se busca responder no desenrolar deste artigo.

4
Brasileiros residentes no Paraguai, que incorporaram a cultura paraguaia ao seu cotidiano e/
ou vice-versa.
⁵ Língua resultante da mescla do espanhol com o guarani (dialeto muito utilizado no Paraguai).

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Observatório Política Linguística em
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

2 A ESCOLA COMO UM ESPELHO DA REALIDADE FRONTEIRIÇA

A EPMRN está situada na Avenida Brasil, n. 839, Bairro da Granja, zona


sul da cidade de Ponta Porã, no Estado do Mato Grosso do Sul.
O sistema de ensino da Escola Polo Municipal Ramiro Noronha organiza-
se da seguinte forma: Educação Infantil – Jardim II, destinada às crianças a
partir de 5 (cinco) anos; Ensino Fundamental do 1º a 5º anos e mais quatro
anos finais de 6º ao 9º anos. Atende, também, a modalidade do curso EJA
(Educação de Jovens e Adultos) na 1ª (primeira), 2ª (segunda), 3ª (terceira) e
4ª (quarta) fase do Ensino Fundamental, anos iniciais e finais.
A valorização do outro com sua identidade é uma preocupação constante
e muito presente na Escola, que por meio dos projetos “Semana do Folclore”,
“Grupo de Danças Típicas”, “Cantata Natalina” busca explorar e valorizar a
cultura da fronteira. Sobre esse aspecto, foi ressaltado na Conferência Mundial
sobre Políticas Culturais, promovida pela UNESCO e celebrada, no México,
em 1982, que

“[...] a identidade cultural é uma riqueza estimulante que amplia as


possibilidades de florescimento da espécie humana, incentivando cada
povo ou grupo a nutrir-s de seu passado, a colher as contribuições
compatíveis com suas características próprias, dando assim
continuidade ao processo de criação própria.”

O trabalho dos professores na escola e, em especial, nos anos iniciais, nos


quais as salas de alfabetização exigem maior desdobramento do papel do
pro-fessor, implica uma necessária adequação a cada turma, uma vez que os
alunos trazem consigo suas línguas, como por exemplo, o jopará, que traduz
uma linguagem, um aspecto cultural muito peculiar e “sui generis” da cultura
fronteiriça.
Acreditamos que a criança no processo de alfabetização deve ser acolhida
pela escola independente de sua origem para poder ultrapassar as barreiras
que possam impedir o seu aprendizado. Os brasiguaios que buscam a
educação no Brasil fazem-no, muitas vezes, porque acreditam que as escolas
brasileiras apresentam melhores condições de aprendizagem, possibilidades
maiores para o futuro, com preparação de alto nível, isto é, com uma
capacitação técnica maior para o trabalho. Nota-se que alguns professores
ainda demonstram certa resistência em desenvolver um trabalho com esse

183
alunado que apresenta uma linguagem mesclada. Essa dificuldade deve-se
ao fato de que muitos educadores não possuem a formação ou conhecimento
necessários das línguas envolvidas (espanhol e guarani) na questão.
Tendo-se como pressuposto que a aprendizagem de uma nova língua
implica, concomitantemente, o conhecimento de uma nova cultura, podemos
deduzir que daí partem as dificuldades enfrentadas pelo sistema de ensino
que não se encontra preparado para atender o bilinguismo dessa criança.
Trata-se, então, de inserir o conteúdo escolar propriamente dito à experiência
linguística (bilinguismo) que já compõe a vivência do aluno, isso é, deve-
se “acrescentar” e não “sobrepor” uma língua (cultura) a outra. Em outras
palavras, é preciso apoderar-se de um sistema cognitivo através de outro
traduzindo uma forma de pensar, organizar e estruturar o mundo de forma
distinta. Esse processo é difícil de ser realizado por quem não está habituado
e preparado para lidar com o bilinguismo e pode constituir um obstáculo
considerável à aprendizagem.
Pode-se afirmar que o processo de aquisição de uma língua e de todos os
conteúdos dependentes ou não desse aprendizado não começa na escola. Ao
contrário, sons e estruturas gramaticais da língua materna já são dominados
pela criança antes de sua chegada ao ambiente escolar.
Considerando-se os fatores observados nas pesquisas de campo, pode-
se demonstrar os resultados através de gráficos, que concretizarão frente os
nossos olhos a realidade vivida pela escola na cidade de Ponta Porã.
Ao analisarmos os gráficos apresentados nos resultados parciais do
diagnóstico sociolinguístico da escola, realizado pelo IPOL Instituto de
Informação e Desenvolvimento em Política Linguística, algumas questões
conduzem à reflexão. Neste artigo algumas respostas obtidas são apresentadas
a partir das observações sistematizadas realizadas nas mais diversas turmas e
nos níveis escolares ao longo da participação no OBEDF.

2.1 De onde procede a clientela da escola?

Tomando-se como base os dados coletados por meio das entrevistas e


pesquisas realizadas com alunos e pais, dos questionamentos informais no
ato da matrícula e das reuniões da APM (Associação de Pais e Mestres), pode-

184
Observatório Política Linguística em
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

se afirmar que, quanto à procedência, os alunos da escola são na sua maioria


(82%, conforme dados e gráfico do Instituto de Investigação e Desenvolvimento
em Política Linguística - IPOL) oriundos da cidade de Ponta Porã. Porém, ao
observar o gráfico seguinte, constata-se que essa representação diverge da
realidade da escola. Mesmo sendo afirmado que a maioria dos alunos é de
Ponta Porã, em outro gráfico, também elaborado a partir de questões que
foram respondidas pelos entrevistados, pode-se verificar que a maioria dos
alunos vive na cidade de Pedro Juan Caballero/Paraguai. Analisando os dados
a partir da observação e com a vivência na escola, pode-se afirmar que a maior
parte dos alunos é brasileira, pois todos possuem documentação brasileira
que permite estarem matriculados em escolas de Ponta Porã, no Brasil, na
Escola Ramiro Noronha. No entanto, esses indivíduos possuem suas raízes
no país vizinho, isto é, são filhos de pai/mãe ou ambos paraguaios, porém
nascidos e registrados no Brasil e residentes no Paraguai.

Gráfico 1 - PROCEDÊNCIA DOS ALUNOS

2.2 Qual o percentual de alunos que fala mais de uma língua?

Quanto ao uso de línguas, embora a maioria dos alunos (54%, conforme


dados do IPOL) estude no Brasil e possua algum tipo de parentesco com

185
brasileiros (conforme a demonstração nos gráficos), a maioria deles encontra
dificuldades com a escrita e com a leitura da língua portuguesa, pois, para
muitos, especialmente os que ainda residem em Pedro Juan, as línguas
maternas são o espanhol e/ou o guarani. Além de se constatar a dificuldade
com a língua portuguesa, pode-se acrescentar outro aspecto, especialmente
para os casos em que só o aluno é brasileiro dentro de uma família paraguaia:
a presença do “guarani”, uma das línguas oficiais do povo paraguaio, de
origem indígena.
O guarani se faz presente na maior parte das famílias paraguaias. É daí que
provém um dos maiores desafios para o aluno, especificamente no tocante
ao letramento, pois, em casa, a língua utilizada é o espanhol, o guarani e
“jopará”, que torna a língua portuguesa uma “língua estrangeira” para o aluno
da fronteira que, embora cidadão brasileiro, até então não havia tomado
conhecimento da língua oficial do país, visto que para ele a língua materna
é o espanhol ou guarani. Porém, em idade escolar, precisa apropriar-se do
português na escrita e na fala.
O espanhol, conforme se observa, representa a língua materna para um
numeroso grupo de alunos da escola que, mesmo residindo no Paraguai e
falando espanhol e guarani, identificam-se como “brasiguaios”.
Para a criança em idade escolar, que aprendeu o espanhol e o guarani
antes do português, a escrita e a leitura dessa terceira língua torna-se
muito difícil, pois ela não conhece o significado das coisas que “precisa ler e
escrever”. Daí advém todas as dificuldades devido ao preconceito linguístico
muito característico nessa região específica de fronteira. Conhecendo essa
característica da clientela, foi implantado na gestão 2008/2012 um projeto
pedagógico intitulado “Dois Países, uma só Cultura”, que, segundo sua
idealizadora, teve como missão: “Tornar-se referência na prestação de serviço
educacional em tempo integral, valorizando a cultura fronteiriça, resgatando
valores e enaltecendo o futuro cidadão, mantendo-se suas raízes, seus
costumes e sua identidade.” (CÂNDIA, 2008, p.11).
O projeto teve como objetivo fazer com que a Escola Polo Municipal Ramiro
Noronha estimulasse a valorização da integração cultural dos educandos,
possibilitando-os a reflexão sobre a relevância dos hábitos culturais fronteiriços
e, principalmente, incentivando-os à preservação desses hábitos como marcas
de identidade social e exteriorização de valores pessoais.

186
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Gráfico 2 – LÍNGUAS FALADAS PELOS ALUNOS

Pode-se constatar que, embora apenas 30% dos alunos declarem ter
o português como L1, e 16% declare não ter essa língua como L1, sendo
falantes, em casa e como língua materna, do espanhol ou do guarani ou do
jopará, a escola não possui uma metodologia adequada à integração das
línguas no ensino como um instrumento de letramento. Ou seja, o aluno fala
outras línguas, mas aprende a ler e escrever (nos anos iniciais) apenas em
português em razão da falta de formação e preparo do corpo docente e da
própria instituição para lidar com essa realidade. Esse fator faz com que não
consigamos sistematizar uma pedagogia na escola que inclua as outras línguas
que por ventura o aluno possa conhecer. Isso é, devido às limitações deixa-
se de lado a língua que o aluno fala em família e, na escola, este passa a ser
“brasileiro”, falando e escrevendo apenas em língua portuguesa.

2.3 Quais as competências linguísticas necessárias aos docentes?

No que se refere às competências linguísticas dos professores, ao


tomarmos como base a análise do IPOL, pode-se dizer que, embora a maioria
dos professores seja natural do município de Ponta Porã e/ou até mesmo do
Paraguai, que a maior parte dos docentes prioriza a língua portuguesa, lendo e
falando apenas o português com os alunos em sala de aula. Isso se deve ao fato

187
de a maioria dos professores não conhecer a gramática da língua espanhola,
pois o ideal visto pelo professor é o espanhol standard (padrão), um espanhol
mais normatizado, menos popular, diferente do portunhol, híbrido linguístico
falado pela maioria das pessoas da região fronteiriça.
A dificuldade que se enfrenta, na verdade, é o preconceito que existe em
relação ao espanhol que é popularmente falado, dado observado constantemente
durante o desenvolvimento do projeto do OBEDF.

Gráfico 3 – COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA DOS DOCENTES

Ao observar-se os gráficos acima, verifica-se que existe uma discrepância


entre os dados mostrados e a realidade, realidade em sala de aula, já que
nesse espaço o professor usa e fala apenas o português, mesmo tendo domínio
de outras línguas, em especial o espanhol e o guarani. De modo geral, o
monolinguismo apaga as outras línguas e fortalece preconceitos que podem
ser verificados “pelas atitudes positivas e negativas dos falantes”. Segundo
Rubin (1974, p.68 e 69).

[...] O espanhol, por exemplo, é mais respeitado no Paraguai, sendo


considerada a língua das pessoas cultas, inteligentes e educadas. Tem
grande valor cultural, econômico e político, principalmente nas funções
sociais. Já o guarani, um usuário monolíngue é desconsiderado e o próprio
falante acredita ser menos inteligente que os outros. Entretanto, durante
a guerra do Chaco, o guarani foi requerido como meio de comunicação,
como medida de segurança frente ao inimigo, além de instigar a lealdade
linguística ao País. Assim o espanhol é considerado o idioma oficial do
país, pois todos os textos jurídicos, os documentos públicos, os sinais
de trânsito, os nomes de ruas, a maioria das publicações literárias nesta
língua, no quartel muitas vezes são em guarani [...]⁶

⁶ A língua guarani tem tido seu estatuto e âmbitos de uso fortemente promovidos nos últimos
anos. CF. as ações da Secretaria de Políticas Linguísticas do Paraguai.

188
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

O fato de haver professores falantes de outras línguas favorece a adequação


da escola à situação bilíngue porque a clientela fronteiriça é bilíngue. Possuir
um conhecimento de duas línguas constitui uma ótima base para se conduzir
de forma eficiente a passagem de um sistema cognitivo para outro a fim de
aproveitar as habilidades adquiridas anteriormente pelos alunos.
Na EPMRN foi possível constatar, durante o desenvolvimento do projeto
do OBEDF, que nas aulas e/ou atividades em que o espanhol, o português e
o guarani eram explorados concomitantemente, a participação das crianças
aumentava, pois a exploração da língua era realizada de acordo com a língua
materna dos alunos que compunham a turma.
Houve uma evolução no interesse dos alunos pelas atividades que
envolviam a alfabetização, nos anos iniciais, sempre que era oportunizada a
exploração da língua que o aluno já conhecia.
Com base nessa evolução e no interesse demonstrado nas atividades
propostas em uma língua diferente (espanhol, guarani), passou-se a sugerir
cada vez mais atividades que, de maneira bem informal, pudesse valorizar a
cultura paraguaia e brasileira com igual intensidade.
No decorrer da aplicação das atividades diferenciadas, apresentadas pelo
OBEDF na escola, envolvendo o bilinguismo, pôde-se observar que, num
momento inicial, os “brasileiros” apresentaram uma certa resistência para
desenvolver as atividades, pois não entendiam o porquê de falar espanhol na
aula, visto que não era um hábito usual. A partir do momento que entenderam
o objetivo de falar outra língua, houve uma interação entre os alunos, não
apenas na sala de aula, mas na escola toda. Pôde-se, portanto, perceber o
envolvimento deles na aprendizagem de uma nova língua.
Embora a maior parte das dificuldades encontradas esteja no sistema de
ensino que não favorece esse tipo de multiculturalismo, também há bastante
resistência na aprendizagem formal da língua espanhola, que, segundo a
maioria das pessoas que foram ouvidas e observadas, durante o projeto, não
é uma prioridade e nem pode ser considerada como uma língua estrangeira
por tratar-se de uma língua pouco utilizada (segundo os entrevistados) como
instrumento de trabalho e especializações, se comparada ao inglês.
O projeto apontou não apenas as dificuldades para a implantação e
exploração de uma língua estrangeira dentro do currículo escolar nos anos
iniciais, mas também disponibilizou inúmeros motivos que facilitariam o

189
processo de letramento, se ele partisse da exploração da língua materna do
aluno, independentemente de ser brasileiro ou paraguaio. Dentre os motivos,
pode-se citar: a interpretação, a leitura, a escrita, a percepção e leitura do
mundo, a facilidade de compreensão, a valorização de sua própria identidade,
a descoberta de cultura diferente, etc.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo escolar proposto pelo projeto e vivenciado nos seus primeiros


passos distingue-se de outro qualquer, pois vai além da aprendizagem de
uma nova língua, da qual não se conhece o vocabulário, sons ou estruturas
gramaticais e, em última análise, o próprio universo cultural ao qual essa
mesma língua pertence.
A proposta é que a exploração de uma segunda língua na alfabetização implique
no aprendizado dessa nova língua e, simultaneamente, no processamento da
alfabetização propriamente dita. No caso específico da Escola Ramiro Noronha,
que o aluno aprenda o português e o espanhol com a mesma intensidade,
falando, escrevendo e conhecendo as estruturas linguísticas e gramaticais,
bem como todo o processo cultural que envolve essa aprendizagem.
O uso da língua materna permitirá que o processo de aprendizagem iniciado
pela criança fora da escola não seja interrompido, mas, sim, transposto para
outra situação. Aprendizagem só será significativa para o aluno se os sistemas
simbólicos utilizados forem conhecidos. Isso facilitará a equivalência entre
expressão/entendimento do que é transposto em termos linguísticos.
Do ponto de vista sociológico, a valorização da língua materna, como “língua
escolar”, pode facilitar o reconhecimento de um dado grupo minoritário em
situações de contato interétnico, isso é, a busca efetiva da cidadania do indivíduo
e dos grupos minoritários, socialmente falando, passa pela valorização da
língua como instrumento de cultura.
Partindo-se do que é familiar, o aluno poderá, gradativamente, e se for o
caso, passar ao estudo daquilo que lhe é estranho, como a aprendizagem de
uma segunda língua.
Se considerarmos verdadeira a afirmação de que “o ser humano aprende
a ler uma só vez na vida”, então o “[...] alfabetizado que lê com compreensão,

190
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

pode transferir sua habilidade de ler de uma língua para outra.” (POLÍTICAS
EDUCACIONAIS, 1992, p.15) Aliando-se os conhecimentos informais relacio-
nados à língua materna, que formam a bagagem cultural dos alunos, ao que se
propõe como objetivo fundamental para a exploração da língua portuguesa,
é possível facilitar a aprendizagem de uma segunda língua e, portanto, o
acesso a uma nova cultura. Note-se, porém, que, ao falar-se em L2, engloba-
se não apenas a oralidade da língua, mas, sim, a escrita e todos os aspectos
relacionados à gramática, leitura e escrita, isto é, a aprendizagem sistematizada
e o domínio de outra língua.
Ao falar-se em “aprender” uma nova língua, não se pretende que o aluno
apenas fale em português e/ou espanhol; pressupõe-se que o ele terá o mesmo
conhecimento de uma ou de outra língua, já que a proposta deste estudo é que
o aluno que ingressa na escola de região de fronteira tenha a possibilidade de
ser alfabetizado na sua língua mãe, o espanhol, devido à alta incidência de
alunos paraguaios na escola.
Entende-se que existe a necessidade urgente das escolas de reconhecerem
que os alunos da região de fronteira já são naturalmente bilíngues e que
cabe apenas ao sistema escolar aprimorar esse conhecimento, oferecendo
subsídios técnicos para que as habilidades necessárias à sistematização sejam
evidenciadas e desenvolvidas no aluno. Sabe-se que a definição da língua
materna do aluno é muito importante, pois poderá ser a ponte utilizada na
aprendizagem de outra língua.
Diante do quadro exposto e delineado pelo projeto desenvolvido pelo
OBEDF, essa escola propõe uma imediata e inovadora prática docente, na
qual a exploração do espanhol e do guarani, nos anos iniciais, sejam subsídios
para alavancar a aprendizagem do português, isso é, a exploração da bagagem
cultural do aluno deve ser mais valorizada e, portanto, a sua identidade
preservada.
Propõem-se, ainda, que novos estudos de atualização e capacitação sejam
oferecidos aos professores da escola e da rede de ensino para que sejam
capazes de atuar com segurança na sua função, explorando as riquezas que
oferece uma realidade multicultural.
Por fim, agradecemos ao OBEDF pela oportunidade dada à Escola Polo
Ramiro Noronha, representada na pessoa da atual gestora Diretora Ana
Cristina Espínola Cândia, à Coordenadora Maria Helena Silva, que esteve

191
presente em todas as etapas deste trabalho, às Professoras Ana Lúcia Guieiro
e Rosimar dos Santos Alves, companheiras incansáveis nesta jornada, às
Professoras Martha Ruiz, Kátya Soto e Édna Ferreira, que foram incansáveis
no assessoramento ao grupo de trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CANDIA, Ana Cristina Espínola. Projeto “Dois Países, Uma Só Cultura”, 2008.

RUBIN, Joan. Bilingüismo Nacional en El Paraguay. México: Instituto


Indigenista Interamericano, 1974.

MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO E CULTURA. Brasil. Políticas Educacionais –


Volume 6 – Diretrizes Gerais – Ensino Bilingue e Bicultural nas áreas de fronteiras.
Campo Grande – MS, 1992.

192
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

PRINCÍPIOS PARA A GESTÃO DO


PLURILINGUISMO NA ESCOLA:
QUESTÕES PARA REFLEXÃO E
PROPOSIÇÃO DE AÇÕES

Isis Ribeiro Berger1

RESUMO

A partir das ações desenvolvidas no escopo do projeto Observatório da Educação


na Fronteira, bem como de princípios norteadores à gestão de situações de pluri-
linguismo no âmbito das escolas, este texto tem por finalidade apresentar alguns
dos princípios necessários à gestão de diferentes línguas nos espaços educativos,
centrando-se nos educadores que lidam diretamente com crianças bilíngues, em
situações de contato de línguas presentes em contextos de fronteira, de imigra-
ção, em comunidades indígenas ou surdas. O pressuposto que orienta este texto
é o de que é possível fomentar a agência de educadores para que se vejam como
copartícipes da gestão, refletindo e tomando decisões a partir do contexto em que
se inserem.

Palavras-chave: Educadores. Gestão de línguas. Plurilinguismo. Questões nor-


teadoras.

1 INTRODUÇÃO

As eficientes ações de política linguística2 no Brasil com vistas à


homogeneização da língua construíram ao longo do tempo o mito de um país
¹ Doutoranda em Política Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina; Pesquisa-
dora-bolsista do OBEDF e Professora Assistente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
–Campus Foz do Iguaçu. E-mail: isisribeiroberger@yahoo.com.br
² Os termos política linguística e planejamento linguístico são definidos neste trabalho segundo
Calvet (2007, p. 11). O primeiro refere-se à “determinação das grandes decisões referentes às
relações entre as línguas e a sociedade”. O outro diz-se dos meios e recursos para a implemen-
-tação de tais determinações.

193
monolíngue, que contribui, como consequência, para a formação de uma nação
cuja maioria de professores do Ensino Fundamental é monolíngue em língua
portuguesa. Além das limitações do ponto de vista da comunicação e do acesso
a uma gama de possibilidades que o conhecimento de outra língua oferece aos
indivíduos, o quadro revela-se crítico quando, ao olharmos atentamente para
a composição linguística do país, verificamos que o Brasil é, na verdade, um
país plurilíngue, o que se vê refletido no cotidiano das práticas linguísticas de
muitas comunidades, em muitas escolas.
Em contextos de imigração, de comunidades indígenas, de espaços de
fronteiras internacionais, bem como em razão da grande comunidade de
surdos existente neste País (CAVALCANTI, 1999), a presença de indivíduos
bilíngues em salas de aula é uma constante em inúmeras escolas públicas
brasileiras. Essa questão precisa ser enfatizada na agenda da formulação de
propostas de valorização da diversidade, uma vez que tem ocupado espaço
significativo nas discussões no âmbito da educação. Entendendo a diversidade
linguística não só do ponto de vista variacional em torno dos usos da língua
portuguesa, mas da coexistência de línguas distintas, diferentes propostas e
estratégias metodológicas precisam ser levadas em consideração. Assim, será
possível melhor acolher indivíduos bilíngues em suas identidades linguístico-
culturais nos espaços da escola e propiciar condições para que desenvolvam
e valorizem seus idiomas concomitantemente à aprendizagem da língua
majoritária do país.
Regiões de intenso contato de línguas e culturas, as fronteiras nacionais
representam um grande desafio para todos aqueles que participam da
gestão da educação em seus diferentes níveis, seja no âmbito da idealização
e proposição de políticas educacionais, seja no âmbito da implementação
dessas políticas por meio dos procedimentos didático-pedagógicos nos
espaços de instrução (planejamento linguístico-educacional). Assim, o projeto
Observatório da Educação na Fronteira (doravante OBEDF), concebido a
partir do programa Observatório da Educação3,representou um grande passo
em direção ao fomento de pesquisas no âmbito da educação no contexto das
fronteiras brasileiras, visando a fortalecer a interlocução entre pesquisadores

³ O programa Observatório da Educação foi instituído a partir do Decreto n. 5.803, de 8 de


junho de 2006. Mais informações sobre os objetivos propostos em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5803.htm.

194
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

das universidades, gestores de políticas educacionais e educadores que lidam


diretamente com a realidade das fronteiras brasileiras. Conforme explicita
Morello (2011, p. 16), coordenadora do projeto, “o OBEDF deve ser capaz de
articular as práticas próprias à pesquisa e ao ensino para qualificar o trabalho
pedagógico”.
Partindo dessa premissa e considerando as ações assertivas desenvolvidas
ao longo do projeto, este texto tem por finalidade apresentar alguns dos
princípios necessários à gestão de diferentes línguas nos espaços educativos,
dedicando especial atenção aos educadores que lidam diretamente com
crianças bilíngues. Dessa forma, pretende-se centrar nos educadores como
copartícipes da gestão, encorajando-os à reflexão e conferindo-lhes a agência
necessária à proposição de estratégias didático-pedagógicas a partir do
contexto da diversidade linguística em que se inserem.

2 EDUCADORES COMO GESTORES DE LÍNGUAS: PREMISSA PARA


DISCUSSÃO

A gestão de línguas refere-se à forma como instituições, grupos e/ou


indivíduos lidam e intervêm sobre suas línguas ou o plurilinguismo. Ainda,
refere-se à administração das situações de uso das línguas e das políticas
linguísticas pelo Estado e por órgãos relacionados ao governo, bem como
por parte de indivíduos ou grupos que disponham de meios e/ou autoridade
para fazê-lo, com base em interesses e recursos diversos, além de condições
ideológicas, políticas, sociais, globais ou locais (CALVET, 2007; SPOLSY,
2005; 2009).
Spolsky (2005, 2009) explica que no complexo processo de gestão de
línguas diversos grupos e elementos se inter-relacionam. No âmbito das
políticas linguístico-educacionais, pode-se citar: a legislação vigente, o
conjunto de orientações e textos reguladores do ensino, os representantes
dos governos responsáveis por supervisionar a implementação das medidas,
o sistema de avaliação educacional, os gestores escolares, os educadores e a
comunidade local. Porém, conforme o linguista explica:

[...] os partícipes no domínio da escola variam muito em termos de

195
autoridade e os gestores de línguas locais (a exemplo dos professores)
estão sob grande pressão daqueles que hierarquicamente possuem
maior autoridade, seja no interior do domínio ou fora dele. (SPOLSKY,
2009, p. 114) [tradução minha].

Menken e Garcia (2010), por sua vez, argumentam que os educadores


estão no epicentro de um dinâmico processo de gestão de línguas, uma vez
que traduzem e colocam em prática as políticas linguístico-educacionais
vigentes. Consoante a esse pressuposto, Hornberger (2010, p. xii) coloca
que “as decisões e ações que educadores tomam em torno das línguas geram
profundas implicações para o futuro dos aprendizes” [tradução minha].
Considerando a necessidade de reduzir a lacuna existente entre a teoria e a
prática, ou seja, entre aqueles que propõem as medidas e aqueles que no plano
da prática as interpretam, negociam e (re) constroem, Menken& Garcia (2010)
partem da premissa de que é necessário dar especial enfoque aos educadores,
no sentido de conferir-lhes agência para assumirem-se como gestores de
línguas. Assim, propõem uma lista de princípios orientadores para pesquisa e
reflexão a fim de que os educadores/tais profissionais reconheçam o contexto
em que se inserem (sociedade, ideologia, comunidade local) e a importância do
papel que desempenham nesse multifacetado processo de gestão de línguas.
Acredita-se que, como consequência, os educadores serão capazes de propor
intervenções e estratégias a partir das demandas educacionais locais.

3 QUESTÕES PARA REFLEXÃO E PROPOSIÇÃO DE AÇÕES

A partir das premissas apresentadas na seção anterior, nas subseções


que seguem, apresento, com base em Menken & Garcia (2010), questões
orientadoras para autorreflexão, observação e discussão, acompanhadas de
breve comentário, a fim de que educadores que desempenham suas funções
em escolas localizadas em contextos sociolinguisticamente complexos possam
melhor compreender a relação entre as línguas e a sociedade no ambiente
linguístico e na comunidade em que se inserem. Tal compreensão poderá,
consequentemente, contribuir para tomada de posições e proposição de ações
em relação às línguas na escola e comunidade.

196
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

3.1 Sobre o perfil sociolinguístico e as práticas linguísticas

O perfil sociolinguístico refere-se às informações relativas ao conhecimento


e uso de língua(s) por parte de um indivíduo ou grupo, bem como à forma
que eles se relacionam com a(s) língua(s). Assim, para mapear o perfil
sociolinguístico de um indivíduo ou grupo, é necessária observação e/ou
realização de diagnósticos para identificar, dentre outros aspectos: a) que
língua(s) o indivíduo entende, fala, lê ou escreve; b) as circunstâncias de
aquisição/aprendizagem; c) as escolhas do indivíduo em relação aos usos que
faz das línguas em diversos espaços sociais.
Dentre as ações desenvolvidas no escopo do OBEDF, o IPOL (Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas) foi o responsável
por conduzir os diagnósticos sociolinguísticos nas escolas parceiras do projeto.
No entanto, colocam-se aqui questões para que educadores e gestores de
escolas possam, a seu modo, conduzir um levantamento sociolinguístico em
seus locais de trabalho, identificando, assim, o perfil tanto dos alunos como
dos professores. Portanto, deve-se questionar:
a) que línguas os indivíduos falam/usam e/ou entendem?
b) como os indivíduos avaliam seu conhecimento dessa(s) língua(s)?
c) de que forma essa(s) língua(s) foi(foram) aprendida(s)/adquirida(s)?
d) os indivíduos manifestam preferência por alguma língua? Que hipóteses
podem ser levantadas a esse respeito?
e) como o indivíduo descreve suas práticas linguísticas (usos das línguas)
em diferentes espaços sociais? Por exemplo, que língua usa/fala na
escola? E em casa, entre os membros da família?
f) na escola, quais línguas são usadas pelos indivíduos nos diferentes
espaços: sala de aula, pátio de recreação, etc.? Quais hipóteses podem
ser levantadas para o caso de diferentes usos em diferentes espaços?

3.2 Sobre as políticas linguísticas vigentes

A adoção de determinada(s) língua(s) de instrução pelas escolas atende a


um conjunto de ideologias, tradições e políticas linguísticas implementadas
historicamente em determinada sociedade. Em se tratando do contexto

197
brasileiro, a escolha pela oficialização da língua portuguesa como língua
nacional, como um dos símbolos da cultura brasileira, refletirá em todo um
conjunto de saberes e práticas no País. Diversas ações conduzirão a uma
homogeneização linguística (THOMAZ, 2005), através de várias esferas
da sociedade: educação, mídia, produção de documentos oficiais, esferas
administrativas e de jurisdição, etc.
Considerando esses elementos, as questões que se propõem neste trabalho
visam a encorajar educadores a buscar informações e compreender quais
políticas linguísticas estão vigentes na sociedade e de que forma interferem
no ensino.
a) Qual (quais) a(s) língua(s) oficial (s) do país? E do município em que a
escola se insere?
b) De que forma essa línguas é representada (estão presentes) nas diversas
esferas da sociedade?
c) Que documentos (legislação, orientações, diretrizes, etc.) explicitam
a oficialidade e as esferas em que essa(s) língua(s) deve(m) ser
utilizada(s)?
d) Quais as razões (históricas, políticas, econômicas) para a valorização de
determinada(s) língua(s) na sociedade em detrimento de outra(s)?
e) As políticas linguísticas vigentes contemplam o perfil sociolinguístico
da comunidade escolar?

3.3 Sobre as atitudes linguísticas

As atitudes linguísticas podem ser compreendidas como um conjunto


“de sentimentos dos falantes para com suas línguas, para com as variedades
das línguas e para com aqueles que as utilizam” (CALVET, 2002, p. 65) e,
como tal, exercem influência sobre a forma com que se relacionam com a
sua e com as demais línguas (comportamento linguístico). Manifestações de
preconceito ou de extremo fascínio em relação à determinada língua, bem
como o sentimento de identificação com uma língua, podem ser considerados
exemplos de atitudes linguísticas.
Convém observar as próprias atitudes linguísticas e aquelas que a
comunidade escolar manifesta em relação às diferentes línguas presentes

198
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

na complexidade linguística existente no contexto em que a escola se insere.


Dessa forma é possível refletir e compreender as razões pelas quais nos
relacionamos e tecemos julgamentos em relação a determinadas línguas
e comunidades que as usam. Calvet (2002, p. 77) explica que “há por trás
deles [dos comportamentos linguísticos] relações de forças que se exprimem
mediante asserções sobre a língua, mas que se referem aos falantes dessa
língua”, já que muitas vezes relacionam-se a atitudes em relação à raça, etnia,
religião ou a status econômico (WILEY, 1996).
Assim, para entender a forma como a comunidade escolar (gestores,
educadores, alunos, funcionários, família) avalia as línguas presentes no
contexto, dentre as quais aquelas que representam a identidade linguístico-
cultural dos membros da comunidade, as seguintes questões são propostas:
a) com que língua os diferentes membros da comunidade se identificam?
b) de que forma os membros da comunidade relacionam-se com as suas
e demais línguas? Há línguas de que se orgulham por conhecer? Há
línguas de que se envergonham por saber? Há manifestações de
preconceito em relação a alguma língua? Há línguas que prestigiam
mais que outras?
c) quais as atitudes linguísticas em relação à língua de instrução da escola?
d) as atitudes dos alunos em relação às línguas interferem na aprendizagem?
e) que hipóteses poderiam ser levantadas sobre as atitudes linguísticas da
comunidade?
f) quais as atitudes dos educadores em relação ao bilinguismo? Há
crenças de que o bilinguismo interfere negativamente na aprendizagem
da língua oficial do país e no desenvolvimento da cognição?

3.4 Sobre a relação entre as políticas linguísticas vigentes, o


currículo e a avaliação

Para Wiley (1996), nas sociedades modernas, a educação representa um


dos principais domínios de promoção de medidas em relação às línguas,
sejam elas para promover a aquisição de uma língua entre a sociedade ou para
a substituição de línguas (language shift). Portanto, grande parte dos esforços
de planejamento linguístico se dá por meio da educação, o que evidencia a in-

199
ter-relação entre as políticas linguísticas vigentes e a forma como as línguas
são organizadas nos currículos escolares.
A formulação de orientações e diretrizes curriculares, a formação de
recursos humanos (a exemplo da formação de professores), a escolha e adoção
de materiais de instrução ou a criação de exames para avaliação e regulação
do ensino são procedimentos que representam etapas do planejamento
linguístico-educacional. Segundo Shohamy (2006 apud MENKEN & GARCIA,
2010), em muitas nações, as medidas são implementadas por entidades
políticas de forma vertical e enfrentam pouca (ou nenhuma) resistência por
parte de educadores e instituições de ensino, de sorte que eles atuam como
“soldados do sistema” (soldiers of the system), sentindo-se sem a agência
necessária à proposição de mudanças.
O trabalho desenvolvido no escopo do OBEDF visou à proposição de
uma mudança nesse quadro, capacitando professores no sentido de prover-
lhes informações e instrumentos necessários à compreensão das políticas
linguísticas vigentes e, como consequência, da conformação do currículo
escolar. Assim, é possível encorajá-los a refletir sobre a forma como tais
políticas e o currículo relacionam-se ou destoam da especificidade e das
demandas linguístico-educacionais dos contextos de fronteira. Seguem
questões para discussão:
a) o currículo escolar valoriza/contempla a diversidade linguística?
b) que línguas são privilegiadas pelo currículo escolar?
c) a conformação do currículo está de acordo com as demandas linguísticas
da comunidade local?
d) de que forma a escola e os planejamentos pedagógicos lidam com as
orientações curriculares em relação às línguas do ambiente linguístico
em que se insere a escola?
e) o biletramento4 é privilegiado pelo currículo? E pelo planejamento?
f) que estratégias didáticas são adotadas em sala de aula para contemplar
as diferentes práticas linguísticas e, ao mesmo tempo, as diretrizes
curriculares?
g) qual a relação entre os sistemas de avaliação de aprendizagem e as
políticas linguísticas vigentes?
⁴ Conceitua-se biletramento como o letramento em duas ou mais línguas político-linguisticamen-
te definidas, ou seja, o ensino da leitura e escrita significativa em mais de uma língua para o
contexto de uso dos alunos.

200
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

h) em que línguas os alunos são avaliados na escola? As avaliações são


adequadas às demandas linguístico-educacionais dos alunos?

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme proposto, neste texto busca-se apresentar aos educadores


alguns elementos e questões para reflexão de forma que possam compreender
o contexto linguístico em que exercem seu papel e a forma como as políticas
linguísticas se relacionam às instituições e práticas educativas.
Muitas outras questões poderiam ser levantadas para discussão, porém,
considero que a partir dos elementos fornecidos é possível dar prosseguimento
a um movimento de conscientização dos educadores em relação às questões
linguísticas a fim de fomentar maior envolvimento em um modelo de gestão
de línguas que contemple a diversidade. Citando Menken& Garcia (2010, p.
267), cabe uma questão final: “De que forma podemos propor e reivindicar por
políticas linguístico-educacionais que sejam adequadas para nossos alunos e
nossa comunidade escolar?” [tradução minha]
É, ao mesmo tempo, desafio, incerteza e possibilidade, fatores que implicam
uma gestão compartilhada com vistas à promoção de línguas, à valorização de
identidades linguístico-culturais e ao desenvolvimento social.

REFERÊNCIAS

CALVET, L. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola,


2002.

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MORELLO, Rosângela. Educação linguística: compartilhar a gestão, promover as


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WILEY, Terrence G. Language planning and policy. In: MCKAY, Sandra Lee;
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Cam-bridge University Press, 1996.

202
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

LÍNGUA, MÍDIA E FRONTEIRA:


O CASO DE GUAYARAMERIN (BO)
E GUAJARÁ-MIRIM (BR)

Marci Fileti Martins1


Plácida Farias da Silva2
Aristókles Pantoja Vargas3
Janine Félix da Silva4
Auxiliadora dos Santos Pinto5

RESUMO

O presente estudo apresenta os primeiros resultados do diagnóstico das línguas


em circulação no espaço midiático das cidades fronteiriças de Guajará-Mirim, no
Estado de Rondônia, no Brasil, e de Guayaramerín, na Província de Vaca Dias,
Departamento do Beni, na Bolívia. O trabalho, que fez um levantamento das mí-
dias em circulação nas referidas cidades e da situação das línguas nesse contexto
sociolinguístico, refletiu também acerca da construção de sentidos sobre língua,
fronteira e educação. A pesquisa, além de contribuir, juntamente com os outros
trabalhos do Observatório da Educação na Fonterira-OBEDF, para o entendi-
mento do contexto sociolinguístico das fronteiras brasileiras, oferece subsídios
para os estudos no âmbito da comunicação social, especificamente, na relação
entre a mídia e as línguas na fronteira.

Palavras-chave: Língua. Mídia. Fronteira. Guayaramerín. Guajará-Mirim.

¹ Professora Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas – PROFLLIND – Museu


Nacional/UFRJ e beneficiária de auxílio financeiro da CAPES – Brasil – AUXPE n. 2107/2010.
² Bolsista de Iniciação Científica pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR e beneficiária de
auxílio financeiro da CAPES – Brasil – AUXPE n. 2107/2010.
3
Bolsista de Iniciação Científica pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR e beneficiário de
auxílio financeiro da CAPES – Brasil – AUXPE n. 2107/2010.
4
Professora da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.
⁵ Professora da Universidade Federal de Rondônia - UNIR.

203
1 INTRODUÇÃO

As cidades fronteiriças de Guajará-Mirim, no Estado de Rondônia,


no Brasil e Guayaramerín, na Província de Vaca Días, Departamento do
Beni, na Bolívia, são, das áreas de fronteira brasileira, excepcionalmente,
plurilinguísticas e multiculturais. Nesses distintos espaços socioculturais
e político-administrativos transitam brasileiros e bolivianos, dentre eles,
indígenas de várias etnias, assim como remanescentes de quilombolas e
descendentes de imigrantes de alguns países do oriente médio como Turquia,
Líbano e Síria. Segundo Kempf e Barbery (2004), a presença de bolivianos
redesenha a sociedade de Guajará-Mirim (BR), caracterizando-a como
linguisticamente binacional. No que diz respeito a Guayaramerín (BO), que
é visitada por brasileiros vindos de todas as partes do Estado de Rondônia,
interessados em fazer compras na zona de livre comércio, a situação é
semelhante, ou seja, a presença de brasileiros também delineia a cidade
boliviana como um espaço multicultural.
Nesse contexto, pretende-se problematizar o modo como se dá a
circulação das línguas nos meios da comunicação dessas cidades, discutindo,
especificamente, sobre a construção de sentidos sobre língua, fronteira e
educação. De fato, numa sociedade como a nossa, em que a mídia se constitui
como um espaço de poder interferindo massivamente nos planos político e
econômico, é importante compreender o seu posicionamento com relação a
esse espaço singular que é a fronteira: Camblong e Sanchez (apud STURZA,
2006) afirmam que os meios de comunicação exercem um forte domínio
influenciando as atividades de lazer e socialização dos cidadãos de fronteira.
A mídia brasileira, segundo esses autores, tem influência nesses espaços
fazendo com que os cidadãos espanofônicos incorporem gostos e preferências
relacionados à cultura brasileira através das músicas e programas de TV.
A fronteira é uma mistura de costumes, uma fusão de culturas e linguagens
e essas fusões são permeáveis às línguas que circulam nessas fronteiras
(STURZA 2006). Analisar como as línguas circulam na mídia fronteiriça
implica compreender, então, como se produz e quais são os efeitos dessa
relação na vida dos sujeitos que transitam por esses distintos espaços
sociolinguísticos/culturais. Pontua-se, entretanto, que essa convivência nem
sempre é amistosa. Envolve relações de poder através das quais entra em jogo

204
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na Fronteira e perspectivas para a Escola

uma história de conflito ora entre brasileiros e bolivianos, ora entre indígenas
e colonizadores:

[...] uma história das línguas praticadas na zona de fronteira do Brasil


deve ser considerada a partir de duas condições fundamentais: a
primeira que as nossas fronteiras geopolíticas também se definem
pela existência de um velho par de línguas com um contato histórico e
genealógico muito estreito que é do português-espanhol e a segunda,
que a história de contato dessas línguas na América é compartilhada
pela história de contato de outras línguas com as quais convivem e
entram nesse conflito. (STURZA, 2011, p. 47)

Segundo Arias Dorian Monteiro, comunicador da rádio boliviana Bambu, a


mídia nesse contexto fronteiriço, através do rádio, da televisão e da internet -
esta última capaz de possibilitar aos sujeitos receberem e veicularem notícias
de/sobre qualquer lugar do mundo - vai se posicionar de modo a significar
através de suas publicações essa rede de relações que envolve a fronteira
brasileira/boliviana e sua característica de diversidade e conflitos.
A mídia pode, assim, ser entendida como um discurso em que a linguagem
jornalística é determinada por processos históricos e políticos que possibilitam
um certo dizer e não outro:

discurso jornalístico é determinado, muitas vezes, por interesses


ideológicos e econômicos do jornal, do repórter, dos anunciantes e,
ainda que indiretamente, dos leitores. Além disso, o momento histórico
da divulgação de um fato também vai contribuir para a construção dos
sentidos que as notícias produzem. Desse modo, cada jornal divulga e
passa uma visão do mundo diferente e específica, de acordo com as
condições de produção de tudo que está envolvido na notícia. (MARIANI
1998 apud EVANGELISTA 2004, p.12)

Os jornalistas, portanto, acabam determinados pelos limites editoriais


e organizacionais das empresas de comunicação, o que, em muitos casos,
o impede de produzir “com liberdade” uma reportagem de acordo com os
princípios da “objetividade e imparcialidade”.
Do que interessa destacar aqui, diremos que, a partir dessa perceptiva, o
modo de circulação das línguas na mídia da/na fronteira de Guayaramerin
e Guajará-Mirim será resultado de condições de produção específicas
envolvendo “confrontos, alianças e adesões que gerenciam e constituem as
interpretações aí produzidas” (MARIANI, 1999, p.111). Dito de outra maneira,

205
a mídia nessas cidades vai regular o seu dizer sobre o que é língua, fronteira
e educação, assim como sua escolha da(s) língua(s) para circulação em seu
ambiente, pelo conjunto de fatores sociais, econômicos e políticos que
organizados, constituem a história e a vida das pessoas nesse espaço.

1.1 O Panorama Sociolinguístico da Fronteira

1.1.1 Guajará-Mirim e suas Línguas

Guajará-Mirim é o segundo maior município do Estado brasileiro de


Rondônia em extensão: possui 24.856 km2. É também o oitavo maior
município no quesito população com 41. 933 habitantes. Está localizado a
Noroeste do Estado de Rondônia. Seu lado oeste é banhado pelo Rio Mamoré,
que faz a separação deste com o município vizinho de Guayaramerin (BO).
A região é formada por uma complexidade de povos e de línguas, na qual se
destaca, em primeiro lugar, os povos indígenas, habitantes originários dessa
região. São representantes desses povos os grupos indígenas conhecidos como
Wari, falantes da língua de mesmo nome, da família linguística Txapakura. Sua
língua constitui-se por uma variedade de “dialetos”: oro-waram, oro-waram-
xijein, oro-não, oro-eo, oro-jowin, os quais representam também diferentes
clãs. Vivem nas Terras Indígenas (TI) Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão, Pacaás-
Novas, Rio Guaporé, Rio Negro/Ocaia e Sagarana e frequentam a região
urbana de Guajará-Mirim e a cidade próxima Nova Mamoré. Os Wari têm
conquistado espaço nas decisões políticas locais já que, de forma inédita,
dois indígenas conseguiram se eleger, no ano de 2012, para a Câmara de
Vereadores do município. Roberto Oro Win, que foi o candidato mais votado
no pleito, mora e trabalha como agente de saúde na Aldeia Rio Negro Ocaia.
Já Arão Wao Hara Ororam Xijein, o terceiro mais votado, mora e trabalha
como professor na aldeia Laje Novo.
Os povos falantes das linguas macurap, tupari e wajoro (família Tupari),
djeoromitxí e arikapú (família Jabuti), canoé (família Kanoé), aruá (família
Mondé), massako (língua isolada) e cujubim, vivem na TI Rio Guaporé e
Ricardo Franco. Já os falantes das línguas japaú, amondawa e uru-eu-wau-
wau (família Tupi-Guarani) vivem na TI Uru-Eu-Wau-Wau, assim como nos

206
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municípios de: Seringueiras, São Francisco, Campo Novo, Monte Negro,


Mirante da Serra e São Miguel. Finalmente, o povo Karipuna, falante da
língua de mesmo nome (família Tupi-Guarani) encontra-se na TI Karipuna,
nos municípios de Nova Mamoré e de Porto Velho.
Vivem também nessa região, nos vales do Guaporé e Mamoré, uma
população negra descendentes de escravos, que adentrou na região trazida
pela coroa portuguesa para a exploração do ouro e para o trabalho em
atividade agro-pastoril, no século XVIII. Segundo Francisco Matias6, escritor
e pesquisador da história e da política de Rondônia, o período do escravismo
negro na região do Vale do Guaporé se caracterizou pela resistência dos
negros à servidão. Segundo o autor, as revoltas e fugas marcaram a resistência
à escravidão, com diversos grupos de negros rebelando-se, lutando contra o
sistema escravagista e fugindo para o interior da floresta. Os escravos fugitivos
fundaram vários quilombos na Amazônia rondoniense. O mais importante é
o Quilombo do Piolho ou Quariterê (1752/95), que resistiu durante 43 anos às
expedições punitivas da Coroa Portuguesa. Os principais quilombos do Vale
do Guaporé foram: Galera, Galerinha, Taquaral, Pedras, Cabixi e Piolho.
Atualmente, em Rondônia, existem três Quilombos reconhecidos pelo
Instituto Nacional da Reforma Agrária - INCRA: Pedras Negras, Santo
Antonio do Guaporé e Comunidade de Jesus. Os moradores desses quilombos
são falantes de uma variedade de português, que apresenta, segundo alguns
estudos (FURTADO 2009, GONÇALVES 2009, SILVA 2010), forte influência,
sobretudo lexical, de línguas africanas da família Bantu.
Há, ainda, os imigrantes euro asiáticos (turcos, libaneses, sírios, espanhóis
e japoneses) e latinos (Paraguaios, Uruguaios) que chegaram para a construção
da Estrada de Ferro Madeira – Mamoré de 1907 a 1912. Os migrantes
nordestinos (Ceará, Pernambuco, Paraíba) chegaram em meados do século
XX, já na época do funcionamento da EFMM para trabalharem em seringais.
Finalmente, cita-se, evidentemente, os bolivianos que transitam regularmente
pela fronteira aqui descrita, falantes do espanhol/castelhano boliviano, de
outras línguas indígenas e também do português e/ou “portunhol”.

6
O artigo Aspectos Fisiográficos da Síntese da Formação do Estado de Rondônia foi publica-
do em 19/10/2007 no sítio http://portovelho-netojc.blogspot.com/2007/10/histria-de-rondnia_19.
html, o qual foi visitado como fonte de para esse projeto no dia 19/08/2011.

207
1.1.2 Guayaramerin e suas Línguas

Guayaramerim situa-se na porção oriental da Bolívia e faz parte do


Departamento do Beni, da Província de Vaca Dias. Está a 93 km da capital
provincial, Riberalta, e a 1.115 km da capital departamental do Beni, Trinidad.
Sua população foi estimada em 37.460 habitantes em 2005. Foi fundada em
1892, respondendo ao crescimento do setor agrícola da região, sobretudo da
exploração da borracha e, posteriormente, da castanha. Atualmente, a cidade
vive principalmente do comércio com o Brasil. Seus limites geográficos são:
ao Norte com o Rio Mamoré, a Leste com a cidade brasileira de Guajará-
Mirim, a Sul com a província de Mamoré, a Oeste com as cidades “Riberalta”
e “Cachoeira Esperança”.
A língua oficial de Guayaramerín é o espanhol/castelhano boliviano, idioma
que é ensinado nas escolas. Outras línguas como o quéchua, aymara e guarani
também são falados na cidade, assim como em contexto sociolinguístico mais
restrito. Segundo o comunicador Dorian Arias Montero, pode-se citar ainda
outras línguas como trinitarionó, itonama, baure, movima, joaquiniano e
chacobo. Este último é o idioma nativo da região de Guayaramerín, que, hoje,
segundo o comunicador, está quase desaparecido e esquecido.
Os grupos étnicos que habitam a Bolívia chegam a 40 e os povos originários
constituem mais da metade da população, juntamente com europeus (espanhol)
e outros, que constituem a outra metade. Esses grupos, que estamos aqui
denominando povos originários, podem ser divididos em dois sub-grupos a
partir de suas línguas. As línguas faladas na cidade de Guayaramerín, com
exceção do quéchua e do aymara, são classificadas como línguas do grupo
oriental:

Grupo Andino, en las regiones del altiplano, yungas y valles. Compuesto


por grupos de origen étnico: Quéchua, Aymara y Afroboliviano. Grupo
Oriental, en las regiones de llanos, amazonía y chaco boliviano.
Compuesto por grupos de origen étnico: Ayoreo, Chiman, Guarayo,
Izozo Guaraní, Mosetén, Moxos, Tacana, Yuracaré, Lecos, Chiriguano,
entre otros. (RUELAS , 2012)⁷

⁷ Disponível em: http://www.buenastareas.com/ensayos/Etnia-Tacana-Bolivia/5838996.html (vi-


sitado em 10/04/2013).

208
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Dando conta dessa diversidade linguística e cultural, o governo do Estado


Plurinacional da Bolívia, liderado por Evo Morales, através da Constituição
Boliviana, vigente desde 7 de fevereiro de 2009, reconhece 37 idiomas oficiais,
incluindo o castelhano e todos os idiomas das nações e povos indígenas
originários e campesinos da Bolívia.
Além dessas línguas, aparece, também, no contexto sociolinguístico
das cidades de Guayaramerín e Guajará-Mirim o chamado “portunhol”,
denominação comum dada à variedade linguística falada ao longo da fronteira
brasileira com os países de expressão hispânica. Essa variedade é conhecida
como uma “mistura” entre o português e o espanhol e foi primeiramente
estudada na região de Rivera/UR e Santana do Livramento/BR, como
mostram os trabalhos de Rona (1963 apud STURZA 2005): “éste es una
mezcla de portugués y español, pero no es ni portugués ni español y resulta
con frecuencia ininteligible tanto para los brasileños como para los uruguayos.
– Este dialecto es de base portuguesa, hispanizada”.
No que diz respeito aos estudos do “portunhol” falado na região
fronteiriça de Guayaramerín/Guajará-Mirim, muito poucas pesquisas foram
desenvolvidas. Cita-se os trabalhos de Lipisk (2010), de Kempf e Barbery
(2001) e, recentemente já no âmbito do OBEDF, de Martins (2012). De
acordo com Lipiski (2010), o “portunhol” falado na fronteira de Guayramerin/
Guajará-Mirim não pode ser considerado uma língua “misturada” como o
“portunhol” de Rivera. É, sim, uma variedade do português com maior ou
menor interferência do espanhol: no léxico (+ ou – palavras do espanhol),
na fonologia (+ ou – sotaque). De fato, de acordo como Martins (2012), o que
comumente denominamos “sotaque marcado’’ na fala de pessoas que não têm
português como primeira língua, pode aqui ser produtivo para compreender
o “portunhol” da região, ou seja, o “portunhol” falado, sobretudo pelos
bolivianos na região de Guayaramerín/Guajará-Mirim pode ser um caso do
português falado por espanofônicos. De qualquer modo, uma análise mais
refinada e minuciosa precisa ser feita antes de afirmações mais categóricas.
Para Martins (2012), esse contexto linguístico/cultural nas/das fronteiras,
que resulta dentre outras coisas em uma “língua de contato”, não pode ser
considerado de forma homogênea. A língua de contato, nesse caso, apresenta-se
com características próprias em cada uma das regiões e o que popularmente se
denomina “portunhol” em Rivera/UR (uma “terceira” língua, nem português,

209
nem espanhol) não pode ser aplicado sem ressalvas em todos os outros
contextos sociolinguísticos da fronteira brasileira com os outros países
hispanofônicos.

1.2 Metodologia

Neste trabalho, mesmo utilizando uma abordagem dita indutiva de base


sociolinguística, o dispositivo analítico é entendido como interpretativo e o
pesquisador não assume uma posição de neutralidade. Assim, conforme propõe
Orlandi (1999), a interpretação faz parte tanto do objeto de análise (corpus)
quanto da descrição (analista), pois não há descrição sem interpretação.
A partir desse entendimento, a metodologia sociolinguística mobilizada
utiliza os pressupostos da pesquisa qualitativa, especificamente o aspecto
observação-participante. Nessa posição de sujeito participante da pesquisa, os
pesquisadores direcionaram a prática teórica e metodológica do trabalho de
campo, construindo, assim, uma posição parcial para si e para o “pesquisado”,
já que a pesquisa deve ser construída por sujeitos interativos com seus
mundos sociais e culturais, nos quais os entrevistadores serão instigados a
compreender situações únicas e diversas (RAUEN, 2002). Por outro lado,
os procedimentos teóricos e metodológicos levaram em consideração o uso
da linguagem a partir da oralidade dos entrevistados, dos textos escritos nos
jornais impressos e dos programas de rádio.
A pesquisa pode também ser caracterizada cronologicamente pelas
seguintes etapas:
a) primeira:
b) observação e registro de todos os fatos ocorridos durante o período
da pesquisa de campo: i) inventário dos meios de comunicação; ii)
entrevista (questionário) com os comunicadores;
c) segunda: i) classificação e sistematização do material compilado; ii)
seleção e análise dos meios de comunicação para a identificação de
notícias envolvendo os temas língua, fronteira e educação. As rádios
selecionadas Rádios Aguaí e Bambu, de Guayaramerin, e Rondônia
FM, Educadora, e Guajará FM, de Guajará-Mirim, assim como o Jornal
impresso O Mamoré, de Guajará-Mirim, foram selecionadas para a

210
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análise dos temas educação, língua e fronteira devido a sua maior


audiência na região. O Jornal Boletim da Cultura, de Guayaramerin,
foi escolhido por ser o único jornal impresso a circular na cidade e por
se constatar a relevância desse impresso para as questões envolvendo
educação em Guayaramerin.

2 INVENTÁRIO DO CAMPO MIDIÁTICO NA CIDADE DE GUAJARÁ-


MIRIM

Como resultado do diagnóstico dos meios de comunicação na região


fronteiriça de Guajará-Mirim, lista-se as seguintes mídias:
• 3 rádios;
• 1 jornal impresso;
• 3 jornais on line; e
• 5 emissoras de TV em canais abertos.

As rádios são as seguintes: “Rondônia FM 89.9’’, “Educadora’’ e “Guajará


FM 93.3’’. Os jornais impressos de Guajará-Mirim são “O Mamoré’’, “O Diário
da Amazônia’’ e “O Estadão’’. Os jornais on-line são “O Mamoré’’, “Guajárá
Notícia’’ e “A voz da cidade’’. As emissoras de canais abertos são “Rede Globo’’,
“Amazon Sat’’, “Bolívia TV’’, “Rede TV’’ e “Televisa Uno’’.

2.1 Rádios

2.1.2 Rádio Guajará8

Alcança o lado Oeste até Riberalta (BO), o lado Norte até Porto-Velho
(RO), o lado Sul até Costa Marques (RO) e o lado Leste até Rio Negro Ocaia.
É associada à Rede Amazônica, que oferece serviços à Rede Globo. Com quase
100% da programação em língua portuguesa, apresenta um único programa
em língua espanhola, denominado “O Milagre da Oração’’, que acontece de
segunda a sexta, das 20h às 21h, somente às quintas-feiras. A rádio é dirigida
⁸ Disponível em http://portalamazonia.globo.com/guajarafm/

211
por Noemi Rimba, da Igreja Pentecostal, e sua programação é totalmente
voltada à evangelização. Não foram identificadas na programação analisada
referências aos temas língua, educação e fronteira.

2.1.3 Rádio Rondônia9

Essa rádio é uma filial da emissora estadual, que tem sua matriz em Porto
Velho. Abrange 93% de todo o Estado de Rondônia e seu nome comercial é
Rádio Rondônia Sociedade Ltda. Em Guajará-Mirim, alcança o lado Oeste até
Riberalta (BO), o lado Norte até Porto-Velho, o lado Leste até Rio Negro Ocaia
e o lado Sul até Costa Marques.
Na filial de Guajará-Mirim, a maior parte da programação é em língua
portuguesa, com um único programa na língua wari, denominado “Além
das Fronteiras’’. O programa ocorre somente às quintas-feiras, das 20h às
20h30min, e é transmitido em língua wari. É patrocinado e produzido pela
Igreja Presbiteriana Fundamentalista e direcionada à pregação do evangelho.
No ano de 2012, por iniciativa do diretor da rádio, Jorge Câmara Lopes,
foi realizado um programa específico chamado “Desafio’’, através de uma
parceria com as escolas estaduais do município. Esse programa promoveu
uma competição entre os alunos de cada escola, que participavam ao vivo
respondendo perguntas sobre temas de história e atualidade regionais,
nacionais e internacionais. Segundo seu idealizador, o programa tinha como
objetivo aproximar a rádio, que é uma entidade privada, da escola, que é uma
entidade pública. No que diz respeito aos temas língua, educação e fronteira,
não foram encontradas referências a eles na programação analisada.

2.1.4 Rádio Educadora10

Alcança o lado Oeste até Trinidad do Beni, o lado Norte até Vila Murtinho,
Distrito de Nova Mamoré, o lado Sul até São Miguel do Guaporé, no Vale do
Guaporé, e o lado Leste no município Governador Jorge Teixeira. A rádio,
⁹ Disponível em http://www.portalradiorondonia.com.br
10
Disponível em http://www.radioeducadoraam.com.br

212
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que é uma propriedade da Prelazia Católica de Guajará-Mirim, apresenta


a maior parte de sua programação em língua portuguesa e dois programas
apenas em outras línguas. Um deles, o programa “A Voz dos povos indígenas”,
é transmitido em língua wari todos os domingos, das 7h30min às 8h30min, e
tem como apresentadora, a indígena Eva Canoé. O outro programa, “Conexões
sem fronteiras”, transmitido em língua espanhola e dirigido por Kátia
Cortez, é veiculado aos sábados, às 16h, e transmite notícias da Bolívia e de
Guayaramerin. Os temas língua, educação e fronteira não foram identificados
na programação da Rádio Educadora.

2.2 Jornais Impressos

2.2.1 O Mamoré

O jornal é produzido semanalmente e editado em língua portuguesa. Nos


anos 90, houve edições em língua espanhola e em língua wari. Iniciou seus
trabalhos em 28 de fevereiro de 1988, tendo como diretores René Soto Acuña,
Ana Maria Mendes Soto e Emílio Rodrigues Santiago. Este último, também
foi o dono do primeiro jornal de Guajará-Mirim, O Imparcial, que circulou na
cidade nas décadas de 1960 a 1980. Atualmente, O Mamoré é administrado
pela jornalista Minerva Soto Santiago e circula, além da cidade de Guajará-
Mirim e de seus distritos Iata e Surpresa, em aldeias indígenas da região: Lage
Velho, Lage Novo, Ribeirão, Tanajura e Santo André, assim como na Bolívia,
nas cidades de Guayaramerin e Riberalta.
No corpus composto por edições do jornal do biênio 2011-2012, foram
identificadas 45 notícias relacionadas aos temas língua, educação e fronteira.
Destacamos a seguir algumas dessas matérias:
1ª matéria - “Fundación de Villa Bella’’: publicada no jornal impresso e
on-line foi a única matéria encontrada em língua espanhola, em 18 de julho de
2011, na 951° edição. O autor Juan Carlos Crespo Avaroma aborda a história
e a importância estratégica da cidade fronteiriça de Villa Bella, na confluência
do rio Beni com o Mamoré;
2ª matéria - “Empresas de navegação transportam alunos bolivianos
e brasileiros gratuitamente em Guajará’’: a matéria, que circulou tanto

213
no jornal impresso quanto no on-line, traz o tema fronteira e educação no
destaque para a notícia relacionada à política de incentivo à educação por
parte de uma empresa privada da cidade de Guajará-Mirim. A matéria faz
menção à “fronteira livre”, quando destaca o projeto que possibilita aos
alunos bolivianos o trânsito gratuito nas embarcações de alunos bolivianos e
brasileiros até as escolas brasileiras ou bolivianas;
3ª matéria - “Educadores recebem capacitação do Programa Jornal
Escolar’’: a matéria, que circulou tanto no jornal impresso quanto no on-
line, trata da capacitação de educadores para ajudar na criação de jornais
escolares produzidas pelos próprios alunos em escolas municipais urbanas e
rurais. Esse programa teve o apoio da Secretaria Municipal de Guajará-Mirim.
Segundo a matéria, o jornal escolar tem duas funções: alfabetizar por meio do
uso social da escrita e promover a participação de crianças. A notícia destaca,
ainda, que a iniciativa enriquece o trabalho do professor em sala de aula e
resgata a função social da escrita, inserindo a escola pública na sociedade da
informação. Também poderá a escola interagir com a comunidade uma vez
que as famílias poderão ler os jornais produzidos pelos alunos;
4ª matéria - “Se cachorro fosse professor’’: é uma crônica escrita por
Ramiro Ros e Sidny Frazão que trata das emoções e dos aspectos psicossociais
envolvendo o trabalho dos professores;
5ª matéria - “Educação: Confúcio se reúne com professores e diz que
Guajará será o modelo para todo o estado’’: a matéria circulou tanto no
jornal impresso quanto no on-line. Refere-se a projeto do governo do Estado
na cidade de Guajará-Mirim, no qual se implantará uma escola de ensino
integral e outra de ensino médio renovável, ambas com aulas em espanhol.

2.3 Jornais On-Line

2.3.1 Jornal O Mamoré

O Mamoré on-line11, editado em língua portuguesa somente, é também


administrado pela jornalista Minerva Soto Santiago. Foram identificadas 40
matérias envolvendo o tema língua, educação e fronteira. Cita-se quatro delas:
11
Disponível em http://www.omamore.com.br

214
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
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1ª matéria - “Dia Internacional dos Povos Indígenas”: foi elaborada


pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e é uma crítica às políticas
anti-indigenistas na região, que favorecem os latifundiários. E citado como
exemplo o projeto governamental da construção da Usina do Ribeirão no rio
Madeira, que trará sérios impactos para as aldeias em Guajará-Mirim e para
a região fronteiriça;
2ª matéria - “Festcineamazonia Itinerante leva cinema ao Vale do
Guaporé’’: trata do projeto que tem por objetivo levar o cinema a comunidades
isoladas do mundo globalizado e, sobretudo, valorizar a fronteira Brasil/
Bolívia. Apoiado pelo Ministério da Cultura, pela Prefeitura de Guajará-
Mirim, Alcadia de Guayaramerin, Television América Latina e pelo Governo de
Rondônia, esse projeto beneficiou várias comunidades brasileiras e bolivianas
que integram o Vale do Guaporé e Mamoré, dentre elas as de Guajará-Mirim,
Guayaramerin, Quilombo de Pedras Negras, Quilombo de Santo Antonio do
Guaporé, Versalhes, Mantegua e Buena Vista;
3ª matéria - “Escola Durvalina implanta o programa Mais Educação’’:
a matéria trata do programa implantado pela Portaria n. 17/2007, que
integra ações do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e que tem
por objetivo aumentar o tempo de permanência dos alunos na escola para
assim melhorar o desempenho escolar e fomentar projetos ou ações de
articulação de políticas socioeducativas. O projeto contemplou 100 alunos na
respectiva escola, que participaram das atividades de letramento, tecnologia
da alfabetização, fotografia, rádio escolar e promoção e prevenção de saúde.
O jornal não especifica, contudo, se os alunos bolivianos que estudam nessa
escola foram contemplados.

2.3.2 Jornal Guajará Notícias

O jornal12, produzido somente em língua portuguesa, é administrado por


João Teixeira, que também apresenta o programa Guajará “Em Cima da
Notícia”, na Rádio Guajará. Foi identificada apenas uma matéria envolvendo
a temática educação:

12
Disponível em http://www.guajaranoticias.com.br

215
1ª matéria - “Palestras educativas nas escolas na semana do meio
ambiente”: escrita por Aluizio da Silva, a matéria relata uma série de palestras
sobre o meio ambiente nas escolas, com o objetivo de difundir entre as crianças
as práticas da educação ambiental.

2.3.3 Jornal A Voz da Cidade

Esse jornal13, editado somente em língua portuguesa, é coordenado por


Raimundo Nonato Ribeiro de Araújo e divulga notícias da região e do Estado.
Apenas uma notícia sobre o tema educação foi identificada, relacionada à área
criminal:
“Professor afirma que Secretária abafa caso de estupro em escola de
Guajará-Mirim”: a notícia relata denúncia de um professor à Câmara Estadual
dos Deputados de Rondônia contra a Secretária do Estado de Educação, que,
segundo ele, tentou abafar um caso de estupro na escola Simon Bolívar em
Guajará-Mirim.

2.4 Televisão

As emissoras de televisão em Guajará-Mirim são TVs abertas e podem ser


vistas também em Guayaramerine. A Rede TV (Canal 12) e a Amazonas Sat
(Canal 12) têm sua programação transmitida em língua portuguesa, com um
horário bastante reduzido para a programação local e estadual. Já a Rede Globo
de televisão (Canal 3) transmite, em Guajará-Mirim, além de sua programação
nacional, a programação da rede TV Amazônica. Todos os sábados, no período
matutino, são transmitidas notícias da cidade de Manaus e região. Já as
notícias locais e estaduais são transmitidas somente às 12h15min e 17h15min
de segunda a sexta-feira. A programação é exclusivamente transmitida em
língua portuguesa.
Redes de TV bolivianas também circulam em Guajará-Mirim. São elas:
Televisa UNO, com transmissão somente em língua espanhola, e a Bolívia

13
Disponível em http://www.avozdacidadegm.com

216
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da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

TV (Canal 29), pela qual o Estado Boliviano é responsável e a mais popular.


Sua programação é divulgada somente em língua espanhola, com espaço bem
definido para as notícias locais e nacionais, que são, na sua maioria, de cunho
político e econômico.

3 INVENTÁRIO DO CAMPO MIDIÁTICO DE GUAYARAMERIN

A pesquisa realizada apresenta os seguintes resultados para o diagnóstico


dos meios de comunicação na cidade de Guayaramerín:
• 13 rádios;
• 7 TVs privadas;
• 1 TV estatal; e
• 1 jornal impresso.

3.1 As Rádios

A história das rádios, como também das emissoras de televisão de


Guayaramerín, teve início nos anos 1970, primeiramente em ondas curtas e
finalmente, em 1989, com frequência modulada. As rádios que circulam na
cidade são as seguintes:
FONTE: FARIAS DA SILVA, PLÁCIDA. 2011.

217
3.1.2 Rádios Guayaramerin, Santa Ana, Patiti e JSV

As Rádios Guayaramerín, Santa Ana, Patiti e JSV são privadas e têm


frequência que se limita a Oeste até Riberalta, a Leste até Nova Mamoré e ao
Norte até Cachoeira Esperança. Veiculam sua programação exclusivamente
em espanhol, com exceção do quadro musical que apresenta músicas
em português e inglês. Não foi encontrada na programação da Rádio
Guayaramerín nenhuma referência aos temas língua, educação e fronteira.

3.1.3 Rádios Activa, Rádio Nickol, Nueva Vida, Sol, Asambleia de Dios,
El Verbo de Dios e a Estambul

As referidas rádios têm sua programação veiculada exclusivamente no


idioma espanhol e trabalham exclusivamente com programação evangélica.

3.1.4 Rádio Bambu

A Rádio Bambu (FM 101,1)14 é uma rádio privada dirigida pelo comunicador
Dorian Arias Monteiro e tem alcance de aproximadamente 30 km: partindo de
Guayaramerín, atravessa a fronteira até ao rio Iata e alcança Vila Velha, Nova
Mamoré e Cachoeira da Esperança, no Brasil. É, também, uma das emissoras
de maior audiência na cidade de Guayaramerín. Desde sua inauguração no
dia 19/03/1989, tornou-se um dos pontos de referência na comunicação local.
14
Disponível em bambutv8fm101@yahoo.es

218
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da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Busca atingir o público com o slogan “rumo ao meridiano” para representar a


sua ideia de comunicação na região.
A programação é totalmente em língua espanhola, com exceção da
musical, que veicula músicas em diversos idiomas, dentre eles, quéchua,
aymara, guarani, espanhol, português e também inglês. Atinge um público
de diversas idades, dos jovens até os mais idosos. Cita-se dentre elas os
programas “Momento Saúde”, “Momento Educação” e “Momento Reflexão”
(leitura bíblica), além de notas informativas, como o repúdio ao trabalho
infantil, que, no período dessa pesquisa, foram veiculadas de meia em meia
hora na programação. As propagandas divulgam os produtos das empresas
de comércio local. No que diz repeito aos temas em análise, somente o tópico
educação apareceu na programação, no “Momento Educação”, que tem como
objetivo despertar nas crianças e jovens o gosto pelo estudo, destacando sua
importância na vida contemporânea.

3.1.5 Rádio Aguai

A Rádio Aguai tem 90% de seu trabalho divulgado em línguas nativas e


somente 10% em espanhol. A programação matinal é transmitida em espanhol e
a vespertina e noturna é transmitida em quéchua, aymara, guarani e morrenho.
A rádio, que faz parte da rede estatal Pátria Nueva, conta com três funcionários,
sendo que dois deles lidam diretamente com a produção dos programas.
A programação é, em sua maioria, noticiosa. Contudo, apresenta três
programas dedicados à juventude da cidade e do campo e por isso tem muita
audiência na área rural de Guajará-Mirim e Guayaramerín. Lamentavelmente,
de acordo com seu diretor Ravier Villa Verson, a rádio não tem nenhuma
programação em português. Contudo, isso não impede a identificação da
Aguai com o público brasileiro, já que, segundo o diretor, os brasileiros que
ouvem a rádio não são poucos e são também exigentes quanto à programação.
Verson afirma que os brasileiros buscam qualidade e isso pode ser observado
“quando algo não lhes agrada o fazem conhecer com uma mensagem de texto
e isso nos dá certo parâmetro para poder melhorar, não cometendo esse erro
outra vez”. Os tópicos educação, língua e fronteira não foram mencionados
explicitamente na sua programação.

219
3.1.6 Rádio Pátria Nueva

A Rádio Patria Nueva é uma rádio do Estado Boliviano e, em Guayaramerín,


funciona apenas como retransmissora de programas produzidos pela matriz,
que tem sede em La paz. A programação é divulgada em espanhol e também
nos idiomas aymara e quéchua. O Guarani também aparecem ocasionalmente
na programação. No material analisado para esta pesquisa, não foram
encontradas referências aos temas língua, educação e fronteira.

3.2 Televisão

Em Guayaramerín há oito emissoras de televisão com canais abertos e são


todas retransmissoras:

O canal 10 (Católica Televisión Popular) e o canal 15 (Sistema Cristiano


El Verbo de Dios) são as emissoras de televisão que trabalham com a
evangelização. De toda a programação transmitida, 80% é nacional e
envolve temas tidos como nacionais, e são produzidas nas cidades de La Paz,

220
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra. Os outros 20% são programação local


e envolvem breves reportagens noticiosas sobre a cidade de Guayaramerin e
região, programação musical, além de campanhas de assistência social. Em
toda a programação o idioma veiculado é o espanhol.

3.3 Os Jornais Impressos

Segundo o comunicador Arias Dorian, os anos 80 e 90 foram o auge do


jornalismo de Guayaramerín, momento em que surgiram os jornais semanais
“Cultura”, dirigido por Oswaldo Cabral Rivera, “Guayaravision”, do diretor
Gerson Fernandez Justiniano, “Povo”, dirigido por Nestor Murillo Pardo, e
“Guayaramerín e Liberdade”, do diretor Carlos Lopez Vaca.
Esses impressos tinham tamanho tablóide ou ofícios de tamanho
duplicado e as cores eram produzidas em La Paz e Santa Cruz de La Sierra.
O último desses jornais impressos saiu de circulação em 2010. Além desses,
outros jornais produzidos na decada de 60 podem ser citados. Eram jornais
mimeografados e suas notícias, segundo Arias Dorian Monteiro, tinham como
objetivo atingir a cidade de Guayaramerín e até mesmo as comunidades de
fronteira ao redor da cidade. Os jornais eram boletins políticos:

221
3.3.1 O Boletin de La Cultura

O Boletin de La Cultura surgiu na década de 70 como uma das produções


do Palácio da Cultura Dr. Aldo Bravo Monasterio. O Palácio de La Cultura,
criado pelo casal Dr. Aldo Bravo Monasterio e Dra. Hortensia Suárez de Bravo
com seus próprios recursos e doado à Universidade Autônoma do Beni, tinha
como objetivo promover condições para a manutenção e a difusão da cultura
da cidade. O Palácio de La Cultura foi fechado em 2011 e, a partir dessa data,
o Boletin de La Cultura passa a ser produzido pela Universidad Autónoma del
Beni- UAB.
O que caracteriza o Boletin é o fato de não ser produzido por jornalistas/
comunicadores, mas por professores e outros intelectuais da cidade como, por
exemplo, historiadores, médicos, dentre outros. Destaca-se que a publicação
não é feita a partir dos moldes profissionais de produção de jornais impressos,
por isso, é do tamanho de uma folha ofício, em preto e branco, a qual é
fotocopiada e, portanto, tem uma distribuição bastante restrita.
As matérias divulgadas estão em língua espanhola e são, na sua maioria,
artigos produzidos por alunos e professores das universidades bolivianas,
poetas, historiadores, até por qualquer pessoa que goste de escrever e de
publicar. É possível encontrar, ainda, publicação de excertos de livros,
periódicos ou revistas.
Segundo sua atual editora, Gaby Cuellar Camacho, o projeto editorial
do Boletín busca valorizar a cultura e a identidade local e não tem interesse
imediato de receber patrocínio de empresa que pague para estampar sua
marca no jornal. De forma desvinculada da economia, o Boletim promove a
vida local incentivando a leitura para um público que envolve estudantes e
demais pessoas da cidade Guayaramerín. De tal modo, os temas em discussão
(língua, fronteira e educação) foram identificados em um grande número de
matérias do Boletim. Citam-se os seguintes:

ANO de 1999: Boletín Mayo-Junio año 4, nº 3. Guayaramerín – Beni


Bolivia
Pág.3. “La humanidad Atrapada en la tejarana de las superautopistas de la
información”. 17 de mayo del “día mundial de las telecomunicaciones”. Escrita
por Ivan Miranda Balcázar. A notícia trata do dia mundial da telecomunicação

222
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

como um ato de alerta às comunidades, já que, segundo o autor, somente os


países ricos e desenvolvidos possuem um alto nível tecnológico, enquanto que
os países de terceiro mundo não conseguem ao menos dar uma boa educação e
saúde aos seus cidadãos. Nesses países, como é o caso da Bolívia, principalmente
em Guayaramerin, somente os ricos têm acesso aos utensílios tecnológicos;
já os os campesinos têm trabalhado apenas para a sobrevivência. O autor
afirma que isso somente será resolvido quando houver uma modificação na
mentalidade dos homens e na consciência coletiva dos povos.
Pág. 8. “El festival folkórico na Bolívia: Chope Piesta Santísima Trinidad”.
Escrita: Arnaldo Lijerón Casanovas.
O autor destaca o festival como sendo importante para legitimar o
patrimônio cultural indígena da capital do Beni e das províncias que se
identificam com essa herança. As danças e músicas das aldeias nativas,
segundo o autor, valorizam a tradição do outro, o indígena, incentivando o
respeito e a mútua cordialidade dos povos indígenas benianos. Essa matéria
não registrou o nome de nenhuma etnia.
Pág.10. “6 de Junio: día del maestro boliviano”. Escrita pela professora
Gabby Cuéllar Camacho.
O artigo trata da comemoração do dia do professor. Polemiza ao destacar
um possível antagonismo entre pais e professores. Ao mesmo tempo, incentiva
o contato dos pais com a escola, cujo apoio afirma ser importante aos
professores. Fala da realidade “dura e crua da educação” e da difícil tarefa que
é educar num país tão pobre quanto a Bolívia. A autora destaca os problemas
de infraestrutura e de formação dos professores na educação boliviana, que
impõe ao país o que ela denomina “desfalque educacional”. Afirma, ainda, que
é necessário urgentemente “tapar essa brecha”, através de uma reforma e que
“professores, pai e mãe de família” devem ir atrás desse objetivo.

ANO DE 1997 Boletím noviembre ano 2. Nº 14 Guayaramerín – Beni


Bolívia
Pág.5 e 6 “Importancia de la educación ambiental instrumental para el
desarrollo sostenible’’ Escrita por José Rodríguez.
A matéria trata da educação ambiental como instrumento para o
desenvolvimento sustentável em Guayaramerin, pois, segundo Martí, citado
pelo autor do artigo, educar é depositar em cada homem toda a obra humana

223
que o antecede, é fazer com que cada homem resuma o mundo vivente, é
chamar o homem para a vida. A educação ambiental é, de acordo como o autor,
dividida em formal e informal. A educação formal está marcada no currículo
das séries primárias, secundárias e universitárias, já a educação informal é
princípio da educação permanente, na qual a educação é um processo contínuo:
se prolonga pelo tempo de toda a vida e em quaisquer circunstâncias. Supõe
ações constantes de formação, atualização e aperfeiçoamento.

ANO DE 2011 Boletín Fehrero – Marzo año bs 2. Nº 5


Pág. 3. “El coro indígena de San Ignacio de Moxos”
(Autor não identificado)
Matéria trata de um ato histórico e festivo para os indígenas que é o dia
de San Ignacio de Moxos. Por ser um ritual sincrético, relacionado também à
Igreja Católica, está presente nas celebrações religiosas mais importantes de
Guayaramerin e da região.

4 ALGUNS ENCAMINHAMENTOS

No que diz respeito à circulação da extraordinária diversidade linguística


nos meios de comunicação das cidades irmãs Guayaramerin e Guajará-Mirim,
observou-se que, com exceção da Rádio Aguai, de Guayaramerin e das Rádios
Educadora e Rondônia, de Guajará-Mirim, todas as outras mídias (TV, rádios
e jornal) dão prioridade para a língua espanhola (BO) ou portuguesa (BR).
A mídia nessas duas cidades reafirma sentidos sobre a língua já estabelecidos
historicamente: a desvalorização das línguas nativas (indígenas, originárias)
em favor da língua do colonizador europeu.
Condições de produção específicas envolvendo o confronto histórico entre o
colonizador e o nativo, que penalizava este último até mesmo com a morte, caso
fale sua língua materna, determinam até hoje o modo como se deve gerenciar
e constituir os sentidos sobre as línguas nesse ambiente e o sentido aponta
para o apagamento da diversidade em favor da homogeneidade linguística.
Os meios de comunicação, assim, afetados por essa história, reproduzem e
perpetuam esse modelo monolíngue: em Guayaramerin, as rádios, especialmente
a Rádio Bambu, dão espaço para as línguas nativas, através da sua programação

224
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da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

musical somente em épocas de festas folclóricas; em Guajará-Mirim, a


circulação de outras línguas, do espanhol e do wari, estão diretamente ligadas
às determinações religiosas, já que aparecem como “línguas da/na mídia” em
programas das igrejas católica e evangélica. Assim, ao falar sobre "as coisas
do mundo" nessas cidades, a mídia constrói um espaço social para as línguas
nativas, que é aquele reservado a um dia especial (festa folclórica) e a um
objetivo específico (evangelização), espaço esse que não é o do dia a dia, o
da interação, aquele espaço real da vida das pessoas. Ao tratar a diversidade
linguística como exceção, a mídia nessas fronteiras constrói espaço restritivo
também para as diferenças culturais, impondo a todos uma mesma identidade.
No que diz respeito às referências aos temas língua, educação e fronteira
nessas mídias, observa-se também um apagamento, já que somente O
Boletim de La Cultura (Guyaramerin) e o jornal O Mamoré (Guajará-Mirim)
se posicionam assumindo um compromisso com a educação, que parece
se estender às questões envolvendo língua e fronteira. Esse compromisso
materializa-se mesmo quantitativamente, tal é o número de matérias sobre o
assunto nos dois jornais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Calvet (2007, p. 11), a intervenção humana na língua


ou nas situações linguísticas não é novidade: “o poder político sempre
privilegiou essa ou aquela língua, escolhendo governar o Estado numa língua
ou mesmo impor à maioria a língua de uma minoria”. O contexto fronteiriço
de Guayaramerin/Guajará-Mirim é exemplo disso quando se observa que
uma ação intervencionista fortemente determinada por ideais colonialistas
arcaicos privilegia duas línguas (português/espanhol) em detrimento das
muitas outras.
Contudo, esse modelo dominante parece estar sendo submetido a outras
determinações. De fato, é possível afirmar que em Guayaramerín já se avista
um movimento em favor da diversidade, resultado de uma política cultural
inclusiva, pois, mesmo se constatando a força do espanhol na maioria dos meios
de comunicação de Guayaramerin, pode-se observar também uma tentativa de
renovação. Essa renovação aparece como decorrência de uma política do atual

225
Estado Plurinacional da Bolívia, que, através de sua Constituição, reconhece
na Bolívia 37 idiomas oficiais.
Essa ação pode ser considerada uma “política linguística (determinação das
grandes decisões referentes às relações entre as línguas e a sociedade)” com seu
respectivo “planejamento linguístico (sua implementação)” (CALVET, 2007,
p. 11), que se materializa no espaço midiático de Guayaramerin determinando
o aparecimento da Rádio Aguai e de seu projeto, que posiciona as línguas
nativas como línguas de divulgação/circulação de quaisquer conteúdos
midiáticos. Os sentidos sobre a língua que surgem daí, materializam um
espaço social e político de legitimidade para as várias línguas originárias, que
é entendido como resultado de uma intervenção importante e necessária para
a consolidação de um Estado que se diz plurinacional.

REFERÊNCIAS

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IPOL, 2007.

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Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Rondônia. Campus Guajará-
Mirim: Mestrado em Ciências da Linguagem, 2009.

GONÇALVES, Francisca Valda. Identificação e análise de alguns vocábulos


básicos dos falares dos quilombolas do Vale do Guaporé. Dissertação de
Mestrado. Universidade Federal de Rondônia. Campus Guajará-Mirim: Mestrado
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Numero Especial: O Contato Linguístico no Brasil. Editado por Eliana
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em 01 de maio de 2012.

226
Observatório Política Linguística em
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“Mistura” de línguas. in Papia, n. 11. DF. 2001.

MARIANI, Bethânia. Sobre um percurso de análise do discurso jornalístico – A


Revolução de 30. in Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Freda
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MARTINS, Marci Fileti. A Língua de contato falada na região fronteiriça


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falares das comunidades quilombolas do Vale do Guaporé. Universidade
Federal de Rondônia. Campus Guajará-Mirim: Mestrado em Ciências da
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STURZA, E. R. “Fronteiras e práticas linguísticas: um olhar sobre o portunhol”, in


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________, E. R. Línguas de Fronteiras e Políticas de Língua: Uma


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227
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

OS CENSOS LINGUÍSTICOS E
AS POLÍTICAS PARA AS LÍNGUAS

Gilvan Müller de Oliveira1

RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar algumas reflexões sobre os censos linguís-


ticos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em
todo o território nacional nos anos de 1940 e 1950, tanto no que diz respeito
aos resultados obtidos pelo recenseamento propriamente dito como no que tange
aos procedimentos da enquête e sobre as razões pelas quais a questão linguística
despertou interesse naquele momento, para depois passar a ser sistematicamen-
te omitida dos recenseamentos posteriores (os recenseamentos de 1960, 1970,
1980 e 1991). Trata-se de um trabalho preliminar que, em seu desenvolvimento,
pretende levantar a questão da necessidade de voltarmos a ter – no âmbito do
MERCOSUL e da CPLP –censos que nos permitam avaliar variáveis linguísticas
importantes para a formulação de políticas culturais, como o grau e a natureza do
bilinguismo da população, a dimensão das minorias linguísticas, sua localização
geográfica nos países associados (por vezes cruzando fronteiras), as tendências
encontradas no seio de cada um para o desenvolvimento de habilidades linguís-
ticas, bem como a questão das territorialidades linguísticas e o grau de perda
intergeracional das línguas, quando houver.

1 A ATIVIDADE CENSITÁRIA NOS ANOS 1940-1950

Apenas nos censos demográficos de 1940 e 1950 questões relativas à língua


ou às línguas faladas no lar pelos habitantes do País interessaram ao governo
federal do Brasil, que, no censo demográfico de 2010, também aplicou uma
pergunta de caráter linguístico, mas restrita aos indivíduos que se declararam
indígenas no instrumento. No quadro do crescente nacionalismo empunhado
pelo governo brasileiro entre 1940-50, como detalharemos adiante, era
¹ Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenador do Polo OBEDF/UFSC. Coordenador da
Cátedra UNESCO Políticas Linguísticas para o Multilinguismo.

229
interessante saber quem não falava o português como língua materna, que
línguas predominavam e em quais regiões, se eram línguas ‘estrangeiras’ ou
‘aborígines’, se os falantes eram brasileiros natos, naturalizados ou estrangeiros
e, ainda, como as diferentes faixas etárias estavam representadas no universo
de falantes de cada língua.
Com referência à natureza do questionário, cumpre lembrar que o cerne
dos interesses era o do número de falantes das línguas classificadas como
‘estrangeiras’, isto é, as línguas dos imigrantes, como é possível deduzir dos
temas das análises realizadas em diversas publicações do órgão de estatísticas
encarregado, o IBGE. Além disso, no que tange às línguas ‘aborígines’, o censo
não se preocupou em minimamente distinguir as línguas indígenas entre si,
mas tratou-as em um único grupo, o que aponta o pouco interesse despertado
por esse grupo de idiomas, como mostra o seguinte comentário sobre o Mato
Grosso:

Na apuração, as diversas línguas aborígines faladas pelas populações


indígenas brasileiras constituem um único grupo; mas no caso de Mato
Grosso a língua aborígine dominante é o guarani (MORTARA, 1950,
p. 94).

No mesmo capítulo do qual se extraiu a citação acima, encontra-se também


a seguinte passagem, que discursivamente aponta para o interesse específico
do recenseamento: deduzir do número total de não falantes de português os
falantes de línguas indígenas, o que demonstra que o ponto central da análise
é mesmo o das línguas ‘imigrantes’:

A apuração das línguas faladas no lar, abrangendo todas as idades,


mostrou que 28.809 presentes em Mato Grosso, ou seja, 6,66% da
população de fato, vivem em lares em que se fala uma língua diversa da
portuguesa. Deduzindo-se desse total os 20.792 habitantes que falam
no lar o guarani, correspondendo a 4,81% da população de fato, fica
determinado em 8.017 o número dos habitantes que falam no lar uma
língua estrangeira (MORTARA, 1950, p. 94).

Os Estados da região Sul do País revestem-se de especial importância para


a compreensão das dimensões mapeadas pelos censos e para o entendimento
de sua importância política. Três razões levam a essa afirmação.
Em primeiro lugar, é a região do País com a maior proporção de não falantes

230
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

do português no lar naquele momento histórico (1940-50) e, tão importante


quanto isso, de falantes de línguas ‘estrangeiras’ e não de línguas ‘aborígines’.
Considerando apenas os dois Estados mais meridionais do País, notamos que
Santa Catarina era, em 1940, a unidade da Federação com a maior proporção
de não falantes do português: 25,08 %, seguido do Rio Grande do Sul com
22,52 %. Isso implica em uma média regional de 23,8%2, extraordinariamente
alta se considerarmos que a média nacional era, então, de 3,94 %. Para além
desse fato, a distribuição dos falantes dessas línguas dentro do Estado não é
homogênea, o que implica em áreas com grandes concentrações de falantes de
alemão e italiano, sobretudo. É conveniente lembrar que, naquele momento,
o fluxo mais forte de imigração estrangeira já havia cessado: “O grande fluxo
de imigrantes para o Brasil ocorreu entre 1888 e 1910, coincidindo, portanto,
com a abolição da escravatura e a implantação e consolidação do regime
republicano.” (SEVFERTH, 1990, p. 10).
A maior parte dessa população não falante de português, portanto – como
vemos na tabela seguinte –, era formada por cidadãos brasileiros com plenos
direitos políticos e não por estrangeiros, aspecto muito importante para a
argumentação que se tenta desenvolver.

Tabela 1 – Relação Línguas, Geração e Número de Falantes

Em segundo lugar, a visão, bastante comum entre as elites lusodescendentes,


de que o Sul era uma região de “nacionalidade ameaçada” ou de “ameaça à
brasilidade” – evidenciada pela alta proporção de falantes de outras línguas
que não o português –, teria sido justamente o fator motivador da inclusão

² Dados relativos a Santa Catarina foram tabulados e analisados pelo assessor técnico do Con-
selho Nacional de Estatística, Giorgio Mortara (1950b), que teve como colaboradores Guido Mor-
tara, Heloísa Vital, Pedro de Salles Georges, José Távora, Leandro dos Santos e Rêmulo Coe-
lho. Ainda sobre esse assunto aborda Mortara (1950a) na coletânea, sobretudo no capítulo III.

231
de questões linguísticas no recenseamento. “Nacionalidade ameaçada” parece
ter significado, concretamente, medo de perda de controle sobre o território:

Não se pode deixar de levar em conta a influência do fator político sôbre


à conservação da língua de origem, especialmente em alguns casos
em que a colonização pela imigração foi concebida pelos governos dos
países de emigração, ou pelos grupos que neles exerciam poderosa
influência, como o primeiro passo para a conquista dos territórios
colonizados. Os imperialistas alemães e japoneses não sabiam sempre
dissimular suas ambições relativas ao Brasil, e uma parte dos imigrantes
dessas nacionalidades levava a sério seus deveres de vanguarda da
futura ocupação armada. (MORTARA, 1950a, p. 12)

O censo, assim, teria sido um instrumento de avaliação para a política de


repressão linguística, também chamada de “Campanha de Nacionalização do
Ensino”, a que essa região esteve submetida no período imediatamente antes e
durante a Segunda Guerra Mundial, especialmente depois de 1942, momento
em que o Brasil declarou guerra à Alemanha e, consequentemente, aos países
do Eixo Roma-Berlim-Tóquio. Essa política, que teve uma lenta gestação
com o desenvolvimento de forças nacionalistas e antiliberais que chegaram
ao poder com a Revolução de 1930, foi conduzida na sua fase mais violenta
pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, regime implantado pelo golpe de 1937
que perdurou até 1945. Esse regime, entre outras ações, outorgou ao País uma
constituição autoritária, proibiu os partidos políticos, cerceou a autonomia
dos Estados Federados e tentou “nacionalizar” as minorias étnicas.

(..) os pressupostos político-filosóficos no sentido de “unidade nacional”


já estavam estabelecidos, pois, nas palavras de Fernando Azevedo
(Azevedo, 1964, 689-90), “... a seqüência natural dessa marcha para
a unidade que é toda a história da Revolução de 30, teve seu ponto
culminante no golpe de Estado e na Constituição de 1937: aglomerar,
aproximar, assimilar as unidades federadas, num espírito de comunhão
nacional brasileira, tal foi a tarefa principal do governo que se instituiu (...);
alargar as fronteiras, abolir as distinções locais e fundir, numa Nação, os
Estados e as comunidades rurais e urbanas”.(FIORI, 1993, p.)

Em terceiro lugar, o Sul é a região do País na qual a “assimilação”, isto é, o


abandono da língua materna em prol do português, de uma geração a outra,
processou-se de forma mais lenta, conforme as tabelas apresentadas adiante3.

³ Todas as tabelas apresentadas neste artigo são de Mortara (1950, p. 7-12).

232
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Atente-se em particular para as diferenças entre o alemão e o italiano:

Enquanto que no Sul, onde se constituiu um campesinato de origem


europeia, a preservação da língua é alta, em São Paulo, em um contexto de maior
heterogeneidade, mais urbanidade e de imigração para o trabalho assalariado,
rapidamente o uso da língua imigrante entra em queda. O fenômeno é mais
frequente para o italiano do que para o alemão. Isso significa a presença,
em áreas geográficas bem determinadas, de características linguístico-
culturais que permitem, ainda hoje, esforços no sentido de constituição de
uma política cultural de manutenção, como de fato está ocorrendo, embora
muito modestamente, desde a metade dos anos 80. São sinais dessa mudança
a crescente procura de cursos de alemão e italiano nas cidades do Sul4, a
fundação de círculos vênetos, trentinos e alemães, a retomada do ensino
dessas línguas nas escolas como L2 – o alemão, por exemplo, foi reintroduzido
como matéria facultativa no ensino escolar público em Santa Catarina (1984),
no Paraná (1987) e no Rio Grande do Sul (1988) –, com a subsequente política
de formação de professores necessários para essa nova demanda – caso, entre
outros, do Projeto Magister em Santa Catarina –, movimento este também

⁴ Vide Born (1997).

233
extensível ao caso dos professores indígenas bilíngues, como os Kaingáng e
Guarani5, entre outros.
Os dados levantados por esses censos permitem diversos tipos de
diagnósticos. No entanto, convém lembrar que nem mesmo as observações
realizadas pelos estatísticos do IBGE passaram por uma análise linguística
mais detalhada, o que bem mostra o divórcio entre a pesquisa realizada na
universidade e aquela realizada por órgãos associados mais diretamente ao
Governo, como o IBGE. É o caso dos estudos nomeados a seguir, referentes
ao censo de 1940 realizados pelo IBGE, e que nunca contaram com a
apreciação e o comentário mais detalhado dos linguistas acadêmicos. Estudos
semelhantes - é interessante frisar - nunca foram realizados, que sejam do
nosso conhecimento, sobre os dados de 1950, de modo que uma perspectiva
comparada nesse âmbito está ainda por fazer.
“Estudos sobre as línguas estrangeiras e aborígines faladas no Brasil”
(MORTARA, 1950) – doravante apenas “Estudos” – , publicado pelo IBGE
na Série Estatística Cultural, é uma coletânea que analisa os resultados do
censo de 1° de setembro de 1940. Trata-se de um livro com 11 artigos e uma
interessante introdução do assessor técnico do IBGE, Giorgio Mortara, por
mais de 30 anos um dos grandes responsáveis pela construção de um sistema
eficiente de censos no Brasil, que produziu centenas de artigos a partir dos
números apresentados nos recenseamentos.
Mortara (1950b) focaliza o Estado com maior proporção de falantes de
línguas outras que não o português, utilizando também os dados de 1940. Essa
assimetria entre os estudos realizados sobre os dados de 1940 e os de 1950 é
explicável, por um lado, pelo caráter altamente particular do censo de 1940,
que dá “início, no país, à série dos modernos recenseamentos brasileiros,
realizados com a adoção de princípios técnicos e critérios metodológicos
atualizados, que dão aos censos brasileiros uma situação de relevo no
continente americano” (AZEVEDO, 1990, p. 118).
Diz ainda Azevedo (1990, p. 18):

O censo de 1940, em vista da sensível falta de informações relativas à


população e à economia, resultante do grande lapso de tempo decorrido
do último levantamento censitário [1920], teve o seu programa concebido

⁵ Vide Oliveira, Oliveira (1996).

234
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

em termos ambiciosos, contemplando um extenso elenco de pesquisas.


Além disso, a situação existente naquele momento, relacionada
com a deflagração da II Guerra Mundial, terá contribuído certamente
para a tendência de se aprofundarem as pesquisas, no sentido de
um melhor conhecimento da realidade nacional [grifo meu].

Além disso, é interessante apontar que o censo de 1940, ao contrário do


de 1950, captou uma realidade sem os ‘medos e as falsificações’ mais tardes
introduzidas:

Na época desse levantamento, o Brasil mantinha-se ainda neu-tral no


conflito internacional, e a arrogância nazi-fascista se aproximava de seu
apogeu, de maneira que as respostas a estas perguntas foram dadas,
em geral, com sinceridade completa e, em casos bem numerosos, quase
com ostentação, sem qualquer indício de reticências ou dissimulações
que sem dúvida se encontrariam se a pesquisa fosse realizada dois ou
três anos mais tarde. (MORTARA, 1950, p.7)

O censo de 1950 – é de se esperar – foi expressão do efeito contrário, isto


é: desmoralizados pela derrota da Alemanha, Itália e Japão na II Guerra
Mundial e humilhados pela “Campanha de Nacionalização do Ensino”
conduzida dentro do País, os falantes das línguas de imigração passaram a
negar, no inquérito do censo, que falavam outra língua que não o português no
lar. Nesse sentido, devemos estar diante de um duplo efeito. Por um lado, as
instituições que reproduziam as línguas minoritárias (e seu prestígio) foram
destruídas e, com isso, de fato iniciou-se um período de retrocesso no seu
uso, principalmente público, mas também privado. O âmbito mais atingido
foi o urbano, o que deu início a um processo de ruralização dos idiomas em
questão. Por outro lado, mesmo nos meios em que o seu uso, do ponto de vista
do número de falantes, tenha se mantido, ou até, em raros casos, aumentado
– a população da área dita “colonial” continuou crescendo em taxas maiores
que a média do país nos dez anos que separam os dois censos –, as condições
políticas (isto é, o medo de represálias) não permitiam que esses dados
chegassem ao conhecimento das autoridades.
As análises apresentadas foram estruturadas a partir de duas perguntas,
relativas às línguas, que figuram nos boletins do censo demográfico de 1940:
18. O recenseado fala correntemente o português? 19. Que língua
fala habitualmente no lar? O seguinte trecho, entretanto, extraído da

235
introdução aos volumes estaduais do censo de 1940, mostra alguns objetivos e
efeitos inesperados das perguntas realizadas:

Língua - A condição de falar, ou não, correntemente o Português, de


par com a de usar habitualmente essa língua ou outra, no lar, indagada
no questionário do Censo Demográfico, associa-se, em vários quadros
desta publicação, a classificações segundo nacionalidades e países de
naturalidade, oferecendo dados bastante expressivos sobre as condições
de assimilação da população de origem estrangeira fixada no Brasil
e seus descendentes diretos. Houve, sem dúvida, certa precariedade
nas respostas dadas a um dos quesitos em apreço, confundindo-se a
condição de falar, ou não, correntemente o Português, com a de falar, ou
não, corretamente essa língua, o que levou a declarações negativas em
relação a crianças incapazes ainda do uso desembaraçado de qualquer
espécie de linguagem. Com o destaque da população menor de 5 anos
de idade, fornecida concomitantemente, pode-se, entretanto, em grande
parte, obviar a precariedade resultante da confusão assinalada. (Censo
Demográfico de 1940, p. XVII)

2 CENSOS LINGUÍSTICOS NO CONTEXTO POLÍTICO-CULTURAL


DOS ANOS 2010-2020

Como instrumentos inseridos no contexto histórico da sua época, os censos


linguísticos foram feitos no Brasil para permitir a avaliação da possível ameaça
representada pelos “imigrantes” (ou, como demonstramos, descendentes de
imigrantes, já cidadãos brasileiros com plenos direitos políticos) à integridade
do território nacional, através de uma possível ligação com políticas
expansionistas do país de origem dos seus pais. O Sul, nesse sentido, pela sua
colonização de imigrantes europeus que constituíam a população majoritária
em algumas áreas, teria sido o verdadeiro foco da produção desse instrumento
político-linguístico. O estudo das relações sociopolíticas e político-culturais
dessa região, portanto, são essenciais para lançar luzes sobre a introdução e o
abandono do interesse pela questão das línguas no órgão oficial de estatística
do governo brasileiro: o desinteresse pelas enquêtes linguísticas depois de
1950 deve ter sido causado pelos resultados do censo, que provavelmente5

⁵ Usa-se o termo “provavelmente” nesse contexto porque não se tem conhecimento de análises fei-
tas tais quais as realizadas sobre os dados de 1940, que tenham vindo a público. Por outro lado, re-
conhece-se que a utilização do dado pelos órgãos executivos do governo não depende de ele estar
formalmente apresentado em uma publicação. Os primeiros resultados do censo de 1940 estavam
disponíveis em 1943, mas as análises só foram publicadas dez anos depois da coleta, em 1950.

236
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

mostra um quadro de redução do uso de línguas minoritárias tranquilizador


para o governo federal. Além disso, é claro, a situação política de pós-guerra,
com a derrota do Eixo, tornou descabida a compreensão dos descendentes de
imigrantes como ‘cabeça-de-ponte’ de uma possível invasão estrangeira.
No contexto sociopolítico vivido atualmente pelo País, acompanhando
tendência mundial, as minorias étnicas adquiriram um novo papel e,
sobretudo, visibilidade. Fiori (1993) denomina esse processo de “a explosão
das diferenças”. Especialmente as populações indígenas e, em menor grau,
os “imigrantes” (assim chamados, mesmo constituindo, por exemplo,
brasileiros de quinta ou mais gerações) deixaram de ser vistos por alguns
setores importantes das elites lusobrasileiras como populações condenadas à
assimilação mais ou menos rápida de uma homogeneidade chamada “nação”,
o que dá ensejo, a médio prazo, à redefinição do conceito de nacionalidade e de
cidadania. Seu direito à existência diferenciada deu passos importantes a partir
da Constituição de 1988, embora, como é demonstrado em Oliveira (1997), o
direito à diferença tenha sido estendido até o momento mais às populações
indígenas e, em seguida, aos usuários da Língua Brasileira de Sinais, e muito
menos às minorias étnicas alóctones, com o que se encontra o país, ainda, em
um quadro claro de assimetria jurídica.
Nesse sentido, esse trabalho é uma contribuição à discussão sobre a
necessidade de reimplantação de questões linguísticas nos censos demográficos
do Brasil. Elaborado e conduzido sobre bases de valorização do plurilinguismo,
em consonância com as políticas atualmente vigentes, como a do Inventário
Nacional da Diversidade Linguística (INDL) do IPHAN/MINC ou a da
Cooficialização de Línguas em Nível Municipal (MORELLO, 2012), entre
outras, o novo censo viria apoiar as políticas de manutenção e promoção da
diversidade linguística contemporânea.
O censo linguístico, conduzido no âmbito do Recenseamento do Ano 2020,
poderia ser a demonstração da boa vontade do governo brasileiro frente às
minorias étnicas do País no século XXI, marcando um novo papel do Estado
face aos mais de 500 anos do contato europeu com as populações indígenas e
aos 200 anos da chegada, ao então Império do Brasil, dos primeiros imigrantes
não ibéricos.
O censo pode ser concebido no marco de outra política linguística do
que aquela que dominou sua primeira edição nos anos de 1940 e 1950: é

237
um instrumento valioso para o planejamento de políticas culturais de modo
geral e de políticas educacionais em particular. A integração dos países
latinos, por um lado, ocorrida pelo desenvolvimento do Mercado Comum do
Sul (MERCOSUL), estende o âmbito desse planejamento e dessas políticas
culturais para todo o Cone Sul, já que muitas dessas políticas referem-se à
situação cul-tural de dois ou mais países. Essa mesma perspectiva pode, por
outro lado, ser estendida à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP). Nesse novo quadro expandido, os censos nos permitem avaliar
variáveis linguísticas importantes para a formulação de políticas culturais,
como o grau e a natureza do bilinguismo da população, a dimensão das
minorias linguísticas, sua localização geográfica nos países associados (por
vezes cruzando fronteiras), as tendências encontradas no seio de cada um
para o desenvolvimento de habilidades linguísticas, bem como a questão das
territorialidades linguísticas e o grau de perda intergeracional das línguas,
quando houver.
Chegamos assim à equação ideal desta argumentação: a edição de um
Censo Linguístico do Mercosul e da CPLP como diagnóstico dos números e da
natureza da problemática linguística nas regiões, empreendimento de longo
alcance político, econômico e social.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura


no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1990.

BORN, Joachim. Minorités germanophones au Brésil: Effortes de maintien


linguistique et enseignement de l’allemand langue étrangéreau Rio Grande do Sul.
In Labrie, Normand (ed.). Etudesrécentes en linguistique de contact. Bonn,
Dümler, 1997. p. 13-26.

Censo Demográfico - População e habitação. Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística - Recenseamento Geral do Brasil - Setembro, 1940. Série Nacional vol.
II, Rio de Ja-neiro, 1950.

FIORI, Neide Almeida (1993). Rumos do Nacionalismo Brasileiro nos Tempos


da Segunda Guerra Mundial: o “Nacional” e as Minorias Étnicas “Inimigas”. In

238
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

Número Especial dos Cadernos de Sociologia. Programa de Pós-Graduação


em Sociologia / Sociedade Brasileira de Sociologia. Vol. IV, Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 1993.

MORELLO, R. A política de cooficialização de línguas no Brasil. In Revista do


Instituto Internacional da Língua Portuguesa, v. 1. n. 1, 2012. p. 08 - 17.

MORTARA, Giorgio. Estudo sobre as Línguas Estrangeiras e Aborígenes


Faladas no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
Estatística Cultural n. 2, 1950a.

__________ . Línguas Estrangeiras e Aborígenes faladas no Lar no Estado de


Santa Catarina. In Revista Brasileira dos Municípios, 3, n. 11, Rio de Janeiro:
1950b.

__________. Línguas faladas no lar pela população do Estado do Mato Grosso.


In Estudos sobre as Línguas Estrangeiras e Aborígenes Faladas no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Estatística
Cultural n. 2, 1950.

OLIVEIRA, Gilvan M. de; OLIVEIRA, Silvia M. de. Formação de Professores


Indígenas: um caso de política linguística nas comunidades Kaingáng. In Anais
do I Encontro de Variação Linguística do Cone Sul. Porto Alegre: 2 a 4 de
setembro de 1996 (no prelo).

SEYFERTH, Gyralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Editora da


UnB, 1990.

239
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

CARTA DO OBSERVATÓRIO DA
EDUCAÇÃO NA FRONTEIRA - OBEDF
Considerando que o Brasil é um país plurilíngue e que em seu território
coexistem diversas línguas de comunidades linguísticas historicamente
estabelecidas, além de possuir regiões extremamente plurilíngues, como é o
caso da faixa de fronteira;

Considerando que, como um país plurilíngue e democrático, o Brasil deve


pautar suas políticas na perspectiva da salvaguarda e do fomento da diversidade
linguística, como rezam documentos internacionais, tais como: a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948); o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (1966); a Declaração Sobre os Direitos de Pessoas Pertencentes a
Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas (1992); a Carta
Européia sobre as Línguas Regionais ou Minoritárias (1992); a Declaração
da Cúpula do Conselho da Europa sobre as Minorias Nacionais (1993); a
Convenção-Macro para a Proteção das Minorias Nacionais (1994); a Declaração
Universal para a Promoção da Diversidade Cultural – UNESCO (2005); a Carta
Europeia do Plurilinguismo (2005-2009) e, fundamentalmente, a Declaração
Universal dos Direitos Linguísticos (1996);

Considerando a existência de políticas nacionais voltadas para a promoção


das línguas, da educação bilíngue e da faixa de fronteira como espaço de
integração, tais como: a política do Inventário Nacional da Diversidade
Linguística (INDL) para o reconhecimento das línguas brasileiras como
patrimônio cultural e imaterial; as políticas de cooficialização de línguas
implementadas por municípios; a Carta de Calafate (2003); o Documento
“Programa Escolas Bilíngues de Fronteira – Modelo de Ensino Comum em
Escolas de Zona de Fronteira, a partir do Desenvolvimento de um Programa
para Educação Intercultural, com ênfase no Ensino do Português e do
Espanhol” (2008); a Portaria 798, de 19 de junho de 2012; a Lei 11.645, de 10
de março de 2008, e o Programa de Promoção do Desenvolvimento da Faixa
de Fronteira do Ministério da Integração Nacional (2009);

241
Considerando que nas regiões de fronteira as línguas estão presentes no
cotidiano das relações sociais, incluindo o espaço escolar;

Considerando que essas línguas são primeira e/ou língua materna ou,
ainda, segunda língua de muitos alunos, bem como de professores, gestores e
funcionários que atuam nas instituições públicas de ensino na fronteira;

Considerando que a promoção de educação plurilíngue garante a essa


população falante o acesso democrático aos conhecimentos e assim qualifica
os processos de ensino e aprendizagem;

Considerando que é de responsabilidade de órgãos como Ministérios da


Educação, da Cultura e da Ciência e Tecnologia; Secretarias de Educação
Estaduais e Municipais; Conselhos Nacional, Estadual e Municipal de
Educação, a regulamentação de políticas educacionais;

Considerando que é de responsabilidade de órgãos como Capes, CNPq e


FNDE o desenvolvimento de políticas de fomento ao ensino e à pesquisa;

Considerando os objetivos do Programa do Observatório da Educação


(OBEDUCCAPES/INEP/SECADI) voltados para a qualificação do ensino;

O Observatório da Educação na Fronteira (OBEDF), desenvolvido entre os


anos de 2011 e 2013, no âmbito do OBEDUC, que teve por foco construir um
panorama sobre a situação linguística em escolas da fronteira, observando seu
reflexo sobre os processos de aprendizagem, recomenda:

a realização de ações de combate aos preconceitos, sejam eles culturais,


linguísticos, sociais ou econômicos;

a promoção de políticas de comunicação valorizando o plurilinguismo;

o reconhecimento do plurilinguismo das escolas de fronteira dando encami-


nhamento para políticas públicas que visem à educação bi ou plurilíngue;

o estabelecimento de diretrizes para a construção de base curricular que


contemple a especificidade da educação em contexto de plurilinguismo,
visando estratégias para a valorização dos saberes linguísticos e a apren-
dizagem qualificada das línguas;

a elaboração e a implementação de políticas educacionais públicas que


possam atender a população falante de outra língua que não o português

242
Observatório Política Linguística em
da Educação Contextos Plurilíngues: desafios
na Fronteira e perspectivas para a Escola

(tal como indígenas que vivem em espaços urbanos) que frequenta escolas
brasileiras situadas em variados contextos;

a definição e a consolidação de ações em prol da educação bi ou plurilíngue


para a Educação Infantil e Ensino Fundamental, priorizando os anos iniciais
do Ensino Fundamental;

a implementação de ensino modular, portanto, não seriado e não


disciplinar, baseado em metodologias avançadas e inovadoras, tais como
o ensino via pesquisa, que contemple o perfil heterogêneo e plurilíngue da
população fronteiriça;

a promoção de fóruns de discussão para a configuração de programas de


educação plurilíngue pública no Brasil;

o fomento de pesquisas voltadas ao plurilinguismo;

a flexibilização dos critérios exigidos em editais públicos dos órgãos


competentes para a participação em projetos/programas de pesquisa de modo
a incluir novos atores e instituições, além das Universidades;

a proposição e a implementação de políticas de valorização e formação


de profissionais da educação das escolas de fronteiras voltado para o ensino
plurilíngue;

a criação de condições para qualificação de profissionais da educação e


afins para atuação em contextos de plurilinguismo em cursos de formação de
diferentes níveis;

a criação e/ou o incremento de cursos para a formação de profissionais em


várias áreas, visando sua atuação em contextos plurilíngues;

a promoção de políticas de formação universitária que visem à atuação de


profissionais em contextos plurilíngues;

o aprimoramento dos mecanismos de avaliação do ensino nos diversos


âmbitos (Provinha Brasil, IDEB, INAF, avaliações estaduais e municipais)
de modo a respeitar as particularidades linguísticas das escolas situadas em
regiões plurilíngues; e, por fim

a disponibilização de recursos no orçamento federal, estadual e municipal


(FNDE, PAR, PDDE), visando à melhoria das escolas e à qualificação de

243
profissionais de educação para a valorização do plurilinguismo em ações
contínuas e articuladas às propostas pedagógicas e curriculares.

A equipe do Observatório da Educação na Fronteira abaixo relacionada,


reunida no III Seminário do OBEDF intitulado Educação Linguística no
Contexto Plurilíngue da Fronteira: Ações e Perspectivas, realizado entre 15 e
18 de maio de 2013, em Florianópolis, SC, Brasil, assina esta Carta.

Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR Universidade Fed-


eral de Santa Catarina – UFSC

IPOL Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Políticas Linguísticas


Escola de Ensino Fundamental Bela Flor, Epitaciolândia (AC) – fronteira
Brasil/Bolívia

Escola Estadual de Ensino Fundamental Durvalina Estilbem de Oliveira,


Guajará-Mirim (RO)–fronteira Brasil/Bolívia

Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental Professora


Floriza Bouez, Guajará- Mirim (RO)– fronteira Brasil/Bolívia

Escola Municipal Maria Ligia Borges Garcia, Ponta Porã (MS) – fronteira
Brasil/Paraguai

Escola Polo Municipal Ramiro Noronha, Ponta Porã (MS)– fronteira


Brasil/Paraguai

Florianópolis, 18 de maio de 2013.

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