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Para além das peculiaridades metodológicas da demarche sociológica da “Escola de Chicago” (implícita ou
explicitamente reclamada também pela Antropologia), os antropólogos da chamada Escola de Manchester não só
apropriaram terrenos e metodologias complementares com origem na Sociologia e na Demografia, como poucos ou
nenhuns pruridos tinham de que os designassem por “sociólogos “ (veja-se WERBNER, 1984), por a questão não lhes
surgir, simplesmente, como pertinente. No polo “oposto”, diversos sociólogos têm, nas últimas décadas, apropriado
com elevada qualidade a observação participante ou seus sucedâneos, em sociedades ou grupos sociais
habitualmente “pertencentes” à Antropologia, sem que sintam questionada a identidade disciplinar da sua demarche ou
essa apropriação de terrenos.
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Teoria, tautologia e prática antropológica
Para sustentar esta afirmação, não apelarei aqui para o recorrente argumento da
multiplicidade de olhares possíveis na abordagem do social, nenhum deles capaz de o
apreender na sua totalidade, mas cada um deles contribuindo para que, do seu conjunto,
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decorra um aprofundamento do conhecimento.
Equivaleria isto a dizer que, pela conjugação das suas especificidades metodológicas
(entretanto reapropriadas por outros) e do seu substracto teórico próprio, a Antropologia é
passível de produzir uma visão única dos objectos, com a mais-valia específica da sua
observação e análise a partir de perspectivas diferentes das aplicadas pelas restantes
disciplinas.
Esse argumento, embora correcto, nem me parece situar-se no centro da questão, nem
poderia basear, por si só, a pertinência da prática antropológica em contexto fabril - pois
apresenta, para esse efeito, três limitações imediatas. Por um lado, a validade do argumento
pressupõe, a limite, um enclausuramento no quadro das especificidades disciplinares, pouco
consentâneo com o seu objectivo final e com as potencialidades de diálogo e reapropriação de
apports de outras disciplinas, que constitui exactamente uma das potencialidades de
abordagens não clássicas deste tipo de terreno. O argumento pressuporia, por outro lado, uma
posterior síntese e confrontação entre os diferentes olhares produzidos, que nada faz prever
num quadro temporal razoável. Por fim, e sobretudo, negando embora a redundância de uma
tal demarche, este argumento não exclui o seu eventual carácter diletante.
A questão coloca-se de uma forma bem diferente, e que só numa leitura superficial se
insere na linha anterior, na argumentação com que Pierre Bouvier (1991) procura sustentar a
emergência daquilo a que chama Sócio-antropologia do trabalho.
Neste caso, serão as alterações verificadas no âmbito do trabalho, das empresas e da
sua inserção no mundo e no social a requisitar novas abordagens, que vão buscar a sua
inspiração à prática e tradição antropológicas. Explicitando, a conjugação da blocagem na
expansão económica e industrial com a introdução dos automatismos no processo produtivo
deslocará os centros de interesse e pertinência; estes, que antes se localizavam nas condições
de organização, nas atitudes colectivas e nas relações entre trabalho e contexto extra-laboral,
passam agora a situar-se nos novos sentidos emergentes, em resultado das profundas
alterações verificadas. Para os poder abordar, será necessária uma «interrogação fundamental
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sobre as práticas mais usuais e sobre as atribuições de sentido que elas subentendem» (idem, 140), que
corresponde àquilo que se torna necessário fazer quando se aborda, conforme é clássico na
Antropologia, um objecto “exótico”. A criação desse distanciamento só será, por seu lado,
viável se o sociólogo deixar de abordar os objectos de estudo sob a forma de um
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Esta perspectiva recorrentemente reproduzida é, em si própria, correcta. Deverei contudo acrescentar que, quando a
concebo, incluo também, entre esses “olhares” passíveis de contribuir para o aprofundamento do conhecimento,
aqueles a que não é reconhecida – ou sequer a buscam – cientificidade. Concomitantemente, sou incapaz de restringir
a validade do conhecimento social ao reconhecimento do carácter científico (por critérios positivistas, ou por outros) da
demarche que o produz. Por essa razão, é-me pouco pertinente a polémica acerca da cientificidade das disciplinas
académicas de análise social; tal não contradiz, contudo, que atribua a maior importância à legitimidade lógica e
epistemológica da sua prática, particularmente no que concerne a análise dos fenómenos a partir das suas próprias
características e dinâmicas, e não enquanto objectos de projecção de quadros teóricos pré-definidos.
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No original, «(...) interrogation fondamentale sur les pratiques les plus usuelles et sur les allocations de sens qu’elles sous-
entendent.».
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«Trabalhamos sobre um barril de pólvora»
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Entre as relativas excepções que conheço conta-se o sociólogo Denis Duclos - que por sua vez refere (1991) como
observou o centramento da análise, por um psicólogo social, em conceitos como ‘sofrimento’ e ‘prazer no trabalho’,
depois destes serem induzidos no discurso das pessoas entrevistadas, que não os manipulavam ou referiam antes
dessa indução. Conforme adiante discutirei, a ausência de institucionalização do ‘papel condutor da teoria’ numa
disciplina (como, por exemplo, na Antropologia) tão pouco impede que investigações o sigam, na prática.
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Teoria, tautologia e prática antropológica
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Essa substituição não é apenas tomada como desejável, mas também como necessária à exequibilidade e
reconhecimento da cientificidade de uma investigação. De facto, à luz do princípio do papel condutor da teoria, só se
pode falar da existência de um ‘objecto’ quando, ao terreno e às questões que lhe sejam aprioristicamente colocadas, é
adicionada a definição do quadro teórico que irá ser aplicado.
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Desenvolvendo a questão que se segue em nota de rodapé por forma a evitar desvios passíveis de fazer perder o fio
condutor da argumentação que pretendo transmitir, creio valer a pena salientar algumas estranhas particularidades da
construção desta alternativa epistemológica à falência do empiricismo, eventualmente merecedoras de estudos mais
aprofundados.
Assim, por um lado, uma mudança concebida e apresentada como tão radical e como atingindo a legitimação dos
dados e da própria demarche científica joga-se, essencialmente, em torno das teorias apriorísticas reconhecidas como
admissíveis (ou, a partir duma posição “academicocêntrica”, reconhecidas tout court como teorias) e mantém
irresolvido o problema de partida. Ou seja, desenrola-se apenas no âmbito daquilo a que Imre Lakatos chamou
‘cinturão protector’ das teorias – veja-se LAKATOS & MUSGRAVE, 1974.
Por outro lado, as alternativas são implicitamente apresentadas como um sistema fechado, com base numa assunção
quase maniqueísta do binómio empiria/teoria, construído segundo o modelo das taxonomias mutuamente exclusivas
que é típico da vertente da tradição intelectual ocidental - e, no mundo, quase apenas dela - não consideradora das
propostas hegelianas.
Apesar disso, a resultante necessidade de imposição, aos dados observáveis, de um quadro explicativo que lhes é
autónomo e extrínseco mas lhes assegura, à partida, coerência interpretativa e explicativa (ou seja, a necessidade de
imposição da teoria pré-definida), suscita irresistivelmente a um antropólogo paralelos e isomorfismos com o papel
heurístico da bruxaria (enquanto princípio que assegura um segundo – e superior - nível explicativo às relações causais
e à aleatoriedade, observáveis e reconhecidas, atribuindo-lhes coerência e integrando-as em termos lógicos), tal como
é interpretado e apresentado por Evans-Pritchard (1978 [1937]).
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consequentemente, correndo sérios riscos de encontrar o que se procura, por pouco pertinente
que seja para a compreensão do fenómeno em estudo, ou por muito árduo que seja o trabalho
necessário para «encaixar os factos do mundo objectivo» no «conjunto de conceitos que foram
desenvolvidos a priori».
A crítica de Leach ao estrutural-funcionalismo antropológico que apresentei em
epígrafe de capítulo (e de que foram repegadas estas expressões) aplica-se, assim, às
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demarches que mantenham e reproduzam o dogma que temos vindo a discutir, mesmo que
originalmente tenha sido apontada a pesquisas que o praticaram no contexto de uma disciplina
que nunca o formalizou explicitamente. Repegando a analogia de Leach com a astronomia
ptolomaica, poderíamos dizer que, também no caso das pesquisas subordinadas ao ‘papel
condutor da teoria’, o problema essencial não será o de estarem erradas (e em muitos casos,
certamente, não estarão), mas o de constituírem demarches potencialmente tautológicas,
redundantes e, por consequência, ilegítimas.
Alargando este olhar às questões metodológicas, dever-se-á salientar que,
particularmente sensíveis à tendência tautológica e redundante acima referida, são sobretudo
as metodologias de investigação “duras”, de tratamento quantitativo e extensivo – aquelas que
são típicas, embora não sejam de forma alguma únicas, na Sociologia. Neste contexto e a esse
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respeito, o conceito e eventual prática da ‘serendipidade’ não constitui, obviamente, mais do
que um paliativo ocasional para um obstáculo epistemológico que radica na própria concepção
(academicamente aceite e reproduzida de forma hegemónica) que a disciplina tem da relação
entre o investigador e aquilo que investiga.
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Não me refiro, obviamente, apenas à Sociologia, nem me refiro a esta e à prática sociológica como um todo
indiferenciado, mas às partes (hegemónicas) de disciplinas que reproduzem e aplicam o ‘papel condutor da teoria’
como princípio orientador.
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Basicamente, o conceito prevê e aconselha a re-elaboração e alteração dos quadros teóricos e/ou das hipóteses
básicas, durante a realização da pesquisa (ou seja, uma reformulação do objecto e um relançamento da mesma),
quando os dados empíricos se revelam contraditórios ou desadequados relativamente ao ponto de partida.
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O corolário desta afirmação é que «Um cientista que queira maximizar o conteúdo empírico dos pontos de vista que sustenta e
pretenda compreendê-los tão claramente quanto lhe seja possível, deverá portanto introduzir outros pontos de vista, quer dizer,
deverá adoptar uma metodologia pluralista.»
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Note-se que mesmo a leitura de autores da área da neurologia, como António Damásio (1995) ou Oliver Sacks
(1985), teve por vezes uma capacidade inspiradora indirecta - enquanto ponto de partida para a associação de
raciocínios - na clarificação dos dados desta pesquisa, embora os temas por eles abordados e as teorias transmitidas
não tivessem qualquer aplicação directa ou indirecta.
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Teoria, tautologia e prática antropológica
Não que a comparação tivesse alguma coisa de deslustroso, para o meu trabalho ou
eventualmente para o de qualquer um dos meus colegas. Naven é uma obra brilhante, bela e
estimulante, anacrónica por uma abertura e avanço epistemológicos que justificam uma
notoriedade e um destaque na história da Antropologia bastante superiores àqueles de que já
dispõe. Não obstante, a sua construção apresenta duas características merecedoras de reparo
e contraditórias com a proposta que apresento, sendo que pelo menos a segunda delas coloca
limitações tanto às potencialidades da inovação estabelecida pelo autor, quanto aos resultados
por si obtidos.
Em primeiro lugar, Bateson, ao pressupor à partida a aplicabilidade global dos quadros
teóricos a que recorre, mantém em aberto a potencialidade de indução de tautologias por parte
da teoria – mesmo se, por um lado, a aplicação desses quadros teóricos foi requisitada
pertinentemente pelas características do objecto e, por outro, a sua operacionalização é por
vezes mais interessante e exigente do que aquela que haviam realizado os seus criadores
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iniciais.
Em segundo lugar, a metodologia utilizada acaba, afinal, por dividir o objecto em
“gavetas” analíticas estanques e apenas apresentadas em sequência, sem nunca chegarem a
interagir entre si, numa busca de síntese totalizante – e perdendo, por esse facto,
potencialidades heurísticas.
Dessa forma, se Naven assumiu certamente um papel inspirador de particular
importância na progressiva construção da proposta que apresento, os pontos de partida, os
pressupostos e as práticas são, em cada um dos casos, significativamente diversos.
Trata-se agora de, sob o domínio de princípios anti-tautológicos, construir a acção de
observação e análise e a selecção e manipulação de eventuais inputs teóricos como um
processo permanentemente dialéctico, que procura apreender uma realidade exterior que é ela
própria apenas compreensível no conjunto do quadro de interacções que lhe dão existência,
continuidade e mutabilidade.
Por fim, será altura de repegar uma questão que inicialmente relacionei com a
pertinência de abordagens não tradicionais (como é o caso) dos contextos fabris: a de um
eventual carácter diletante das alternativas.
Criativa, em frequente mutação e apelando a um grau não negligenciável de
oportunismo teórico, uma demarche como a que sugiro nada tem, não obstante (pelos seus
princípios epistemológicos, pelo permanente confronto com a empiria e pelas exigências de
formação e legitimação teórica que pressupõe), de experiência ou prática diletante.
Já poderá ser justo, contudo, apontá-la como um processo com um desenvolvimento
tendencialmente anárquico - uma característica que não consigo encarar como um perigo, nem
como um factor que deva ser assustador para quem opte por praticá-la, em alternativa a
formas de pesquisa mais ortodoxas, reguladas e pré-ordenadas (e, consequentemente,
seguras).
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A conjugação destes dois factores poderá contribuir significativamente para o facto de não serem sensíveis, na obra,
induções de tautologias por parte dos quadros teóricos, com a eventual excepção de alguns aspectos dispersos
relacionados com a operacionalização do conceito de “ethos”.
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Feito este longo desvio, que constitui afinal, em minha opinião, uma deslocação ao
centro do problema, poderemos repegar de forma diferente (e dar resposta) à questão da
pertinência da pesquisa antropológica em contexto fabril.
É evidente que a prática mais habitual da Antropologia não corresponde, pelo menos
de forma assumida, ao modelo de investigação que proponho. É igualmente evidente que os
sociólogos (e a Sociologia, enquanto disciplina) não estão impedidos de o praticar, podendo
mesmo alguns deles aproximar-se das posições que sustento, ou desenvolver pesquisas com
uma dinâmica semelhante a esta.
Contudo, aceitando-se como correcta e útil a minha proposta de que um a alternativa
viável à indução de tautologias (por teorias apriorísticas ou pelo seu inquestionamento
empiricista) é um tipo de pesquisa em que a descoberta e clarificação do objecto mantenha
uma permanente relação dialéctica com a emergência e opção por técnicas, processos
heurísticos e enquadramentos teóricos, não será polémico afirmar que a Antropologia é, de
entre os saberes sociais academicamente reconhecidos, aquele em que este tipo de
processo é mais exequível.
Isto é verdade por duas razões diversas.
A menos importante, mas nem por isso negligenciável, é o grau de liberdade teórica
que actualmente existe no seu contexto académico (pelo menos em Portugal e em vários
espaços lusófonos), com a consequente liberdade de práticas de investigação, mas também
com a coexistência, contacto, conhecimento mútuo e ensino ecléctico de uma multiplicidade de
tendências teóricas. Ou seja, a inexistência de um paradigma dominante e hegemónico, a
confusão e anarquia que aparenta quando olhada a partir do exterior, mas que é internamente
encarada como normal, facilita e potencia o desenvolvimento pela Antropologia do tipo de
processo que proponho.
A razão mais importante para a particular adequação da Antropologia a esse tipo de
processo de superação da tautologia é, contudo, o seu maior "pecado" quando encarada por
olhos positivistas. De facto, uma permanente relação dialéctica entre objecto e quadros
teóricos pressupõe uma elevada flexibilidade do processo de investigação, uma particular
sensibilidade e capacidade de decisão por parte do investigador, e um alargado espaço de
manobra teórico e metodológico para que este as possa aproveitar e exercer. Dessa forma, o
centramento da aproximação ao terreno na observação participante, por um lado, e, por outro,
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