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Tecnologia industrial e curandeiros: partilhando pseudo-determinismos

Paulo Granjo

A edição deste livro, em parte um balanço ilustrativo da diversidade de


investigações realizadas no ICS, estimulou-me a aprofundar uma questão que tem vindo
a ressaltar nas pesquisas que desenvolvo nos últimos anos, mas que a própria dinâmica
de publicação de artigos científicos me tem levado a “deixar para depois”.
Trata-se da afinidade (em termos lógicos, práticos e das limitações que
enfrentam) que podemos observar entre a gestão de “riscos” industriais e a actividade
dos adivinhos moçambicanos, a par do carácter epistemológico das tentativas de
controlo da incerteza que lhes estão subjacentes e das consequências que deveremos
retirar dos dois pontos anteriores.
Irei propor no presente artigo que, independentemente das representações
públicas acerca dessas actividades e da natureza que os seus praticantes lhes pretendam
atribuir, tanto a gestão probabilística de riscos quanto a adivinhação “mágica” se regem
por uma lógica de caos determinístico.1 Dessa lógica comum, associada à complexidade
dinâmica das realidades sobre as quais as suas análises incidem, resulta uma também
comum incapacidade de controlar a incerteza de forma prospectiva, transformando a
prevenção de acontecimentos indesejáveis (seja ela técnica, comportamental ou ritual)
num paliativo parcial – útil, mas insuficiente para os evitar. Dessa forma, mesmo
quando sejam exactas nos diagnósticos e cenários que produzam, as conclusões de um
adivinho ou de um analista de risco deverão ser consideradas, por quem as considere
fidedignas, como apenas parte das dinâmicas futuras possíveis e não como um controlo
seguro da incerteza; optar e agir apenas de acordo com os seus ditames, esperando com
isso assegurar o resultado desejado, é em última instância irracional.
Suponho que essa similitude entre uma análise quantitativa de riscos e um
adivinho que rola ossos e pedras sobre a esteira da sua palhota de espíritos, que aqui
proponho sem que tal constitua uma metáfora, surpreenderá tanto o leitor como
inicialmente me surpreendeu a mim.
Existe uma boa razão para essa surpresa. De facto, as sociedades capitalistas de
matriz cultural euro-americana 2 têm uma longa tradição de teorizar diferenças

1
Exporei adiante este conceito, que não corresponde nem a um determinismo nem a uma indeterminação.
2
Esta designação pouco precisa (mas que, pelo menos, permite incluir sociedades onde seja dominante essa matriz
cultural, não pressupondo que ela seja exclusiva e independentemente da sua localização geográfica), pretende referir,
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irredutíveis entre as formas de pensamento que reclamam como “suas” e as que


atribuem aos “outros” – sobretudo quando aquilo que entendem como “sua” é a
racionalidade científica, amiúde mitificada segundo um imaginário positivista e vista
como algo socialmente generalizado e único, pelo menos quanto a uma sua suposta
origem exclusivamente europeia.
Justificar-se-á, por isso, acompanhar brevemente a génese desses pressupostos
implícitos que, em grande medida, continuamos a partilhar.

Genealogia de um lugar-comum

Podemos dizer que, grosso modo, as principais linhas de interpretação dessa


diferença entre o “nosso” pensamento e o pensamento dos “outros” se vieram a
cristalizar em duas posições teóricas que tiveram grande impacto nas suas épocas e que,
embora hoje ultrapassadas e datadas, continuam a influenciar sub-repticiamente sensos
comuns e diversas produções científicas.
A primeira delas, em cronologia e em influência duradoura, foi a tentativa de
reconstrução de uma “evolução” das técnicas – intelectuais e práticas – desenvolvidas
pela humanidade na sua tentativa de controlar a natureza, dada à estampa por James
Frazer em 1890, no monumental The Golden Bough.
Na vertente dessa obra que aqui mais nos interessa, Frazer diferenciou ‘religião’
e ‘magia’ como démarches de natureza essencialmente diferente, aproximando contudo
esta última da ‘ciência’. Procurou, depois, construir e justificar uma evolução geral de
umas para outras, ao longo da história da humanidade.
Assim, a magia seria uma expressão primitiva de ciência por, tal como esta,
pressupor a existência de leis imutáveis e de relações necessárias e fixas de causa/efeito;
sendo uma tecnologia de acção sobre o mundo com efeitos putativamente automáticos,
constituiria contudo uma tentativa falhada de ciência, tornada “falsa” e “ineficaz” por se
basear em relações de causalidade erradas – a contiguidade e a similitude/contraste. A
magia teria sido abandonada devido à constatação da sua ineficácia, sendo substituída
por uma tentativa de controlo sobre o mundo muito diferente: a religião. Esta última já
não pressuporia a causalidade natural fixa (inviabilizando, com isso, a acção técnica do
Homem sobre relações causais constantes e ao seu alcance), mas a submissão do mundo
a seres sobrenaturais, cuja vontade seria necessário propiciar a fim de tentar obter deles

de forma menos inexacta e à falta de uma alternativa mais satisfatória, uma realidade correntemente designada por
uma expressão ainda mais vaga e incorrecta: “ocidental”.

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os efeitos desejados. A “substituição” da religião pela ciência, por fim, teria decorrido
de uma tendência inerente ao pensamento humano para se auto-aperfeiçoar, regressando
a humanidade, com a ciência, à lógica das relações de causa/efeito naturais – mas, desta
vez, verdadeiras e, consequentemente, eficazes.
Correspondendo a proposta de Frazer a um projecto evolucionista, tinha
necessariamente que pressupor, como o fez, a unidade do espírito humano. Contudo, o
segundo teórico marcante a que aludi parágrafos atrás, Lucien Lévy-Bruhl, não estava
tolhido por essa obrigação quando, vinte anos depois, publicou Les fonctions mentales
dans les sociétés inférieures (Lévy-Bruhl 1951 [1910]).
Nessa obra e noutras que se lhe seguiram, Lévy-Bruhl sustenta que o
pensamento dos “primitivos” é qualitativamente diferente do pensamento dos seus
contemporâneos “modernos”, não por ser irracional, mas por ser pré-lógico. Partindo,
para a sua análise, das contradições narrativas que amiúde se parecem descortinar nos
mitos, Lévy-Bruhl justificou-as com duas características cognitivas dos seus produtores
e ouvintes: por um lado, estes não dominariam o princípio da não-contradição, o que
permitia sequências de acontecimentos sem decorrência lógica e que, por exemplo, uma
personagem velha ou morta surja depois jovem ou viva, sem necessidade de qualquer
explicação para esse facto; em segundo lugar, o pensamento desses “primitivos” estaria
subordinado à participação mística. Quer isto dizer que não predominaria nele a
observação objectiva, pois a essência mística de um ser seria mais importante do que a
sua aparência exterior – pelo que, participando duma mesma substância seres que
pertencem “objectivamente” a categorias biológicas e/ou ontológicas diferentes, não
espantaria a um desses “primitivos pré-lógicos” que uma personagem mitológica fosse
agora um homem, depois um animal, depois ainda um relâmpago ou o vento.
As perspectivas de ambos os autores vieram a tornar-se facilmente rebatíveis.
Para além de se ter tornado evidente que as sociedades não se modificam numa
única e comum linha evolutiva e que, em cada lugar e tempo, formas diferentes de
pensar e de agir sobre o mundo (mágicas, religiosas, científicas…) coexistem e se
desenvolvem autónoma e interactivamente, as justificações que Frazer apresentou para a
passagem de umas “fases” para outras são frágeis. De facto, a suposta razão para o
abandono da religião em favor da ciência é uma mera teleologia. Por seu lado, aquela
que o autor avançou para o abandono da magia não tem sustentação empírica pois, tal
como Lakatos (1978) aponta à ciência, também a crença na magia tem o seu “cinturão
protector”, defendendo o “núcleo duro” contra evidências empíricas que o contradigam:

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perante cada caso particular de insucesso, o crente poderá alegar que o acto mágico foi
tecnicamente mal feito, que existe uma outra magia mais forte actuando em sentido
contrário, que o mago é pouco poderoso ou um mero charlatão, sem que tal ponha em
causa uma veracidade geral da magia, a que noutros casos poderá ser atribuída eficácia.
Acresce a isso que, conforme salientou Edmund Leach (1976), uma mesma
pessoa está a praticar formas fundamentalmente diferentes de acção sobre o mundo
quando pega num martelo para cravar uma estaca no solo e quando, na iminência de ser
atacada por um elefante, fica quieta e recita uma invocação mágica. Um é um acto
mecânico realizado por contiguidade e o outro é um acto de comunicação efectuado à
distância, não devendo por isso o segundo ser encarado como uma forma falhada do
primeiro, que se baseie nos mesmos pressupostos.
Quanto à proposta de Lévy-Bruhl, tem como primeiro óbice ser tautológica, pois
explica a aparente inconsistência lógica dos mitos postulando a existência de uma forma
de pensamento pré-lógico que lhe corresponde, e cuja prova estará na tal inconsistência
lógica dos mitos. Posteriormente, contudo, Claude Levi-Strauss (1985 [1958]; 1993
[1962]) veio a propor algo que qualquer pessoa que se cruze com a interpretação de
mitos e histórias poderá verificar, concorde ou não com a noção de mitema e com a
analogia linguística avançadas por esse autor: nas narrativas mitológicas e
“tradicionais”,3 as aparentes incoerências não decorrem de uma lacuna de princípios e
instrumentos lógicos mas, pelo contrário, de uma manipulação (re)combinatória e quase
obsessiva das relações entre elementos narrativos. Uma manipulação que, por vezes,
parece ter como único objectivo explorar os limites da lógica e em que, quase sempre,
os acontecimentos estranhos com que nos vamos deparando estão longe de ser gratuitos
ou fruto de desatenção – antes sendo deliberadamente estranhos e contrastantes com a
experiência do ouvinte, para chamar a atenção sobre eles e o seu papel na narrativa.
Independentemente da refutação dos modelos construídos por Frazer e Lévi-
Bruhl, convirá reter que, seguindo caminhos aparentemente opostos (um deles
postulando a unidade de um espírito humano votado ao seu auto-aperfeiçoamento, o
outro defendendo uma diferença cognitiva essencial no interior da humanidade), ambos
os autores sistematizaram a suposta diferença entre o pensamento científico/“civilizado”
e o dos “outros”, ambos se baseando, para o fazerem, em algo que faltaria a esses

3
O mesmo se poderia dizer, aliás, da maioria dos modelos rituais.

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“outros”: ou a capacidade de descortinarem relações causais verdadeiras, ou o domínio


de instrumentos lógicos fundamentais.
Contudo, essa refutação ocorreu, sendo de esperar que ela tivesse remetido as
ideias-chave que acabo de referir para o espaço das curiosidades passadas. Que tal não
tenha acontecido ficou plausivelmente a dever-se às dificuldades quase intransponíveis
que as pessoas intelectualmente formatadas por referentes materialistas e científicos
sentem, ao tentarem descortinar a racionalidade (a não apenas a lógica) de diversos
aspectos específicos dos contextos de feitiçaria,4 bruxaria, adivinhação ou religião com
que se confrontem.
De facto, podemos concordar com Leach (1976) quando este propõe que, ao
procurar causar danos a uma pessoa destruindo cabelos que foram seus, um feiticeiro
está a manipular um símbolo metafórico como se fosse um signo metonímico e a
pressupor que este constitui um sinal, causador de consequências automáticas como o
som que fazia salivar os cães de Pavlov. Podemos até concordar que esse raciocínio não
é diferente daquele que nos faz carregar num interruptor eléctrico de uma casa que não
conhecemos, esperando que uma luz se acenda.5 Mas como justificar que, conforme o
autor também refere, o feiticeiro recorra ao cabelo que foi da sua vítima para a atingir,
enquanto nós nunca carregaríamos num interruptor abandonado no chão, esperando com
isso acender uma luz?
Dan Sperber (1992) adiantou a proposta que me parece mais útil para
compreendermos a racionalidade dessas crenças aparentemente irracionais.
Diferenciando dois tipos de crenças – coisas “que se sabem” e coisas acerca de cuja
verdade se está convicto – e dois tipos de representações da realidade, aponta uma
conjugação entre elas em que é racional acreditar em algo que contradiga a experiência

4
De uma forma que salienta a influência do seu legado sobre quadros teóricos diferentes do seu, aquilo a que Frazer
chamou magia veio no essencial a corresponder, na posterior antropologia social britânica, à noção de feitiçaria
(sorcery) – por oposição à de bruxaria (witchcraft), esta última correspondente não a uma técnica cuja eficácia
decorre da correcta execução e é independente do indivíduo que a aplica, mas a uma acção que exige dos indivíduos
que a praticam poderes especiais (inatos ou adquiridos), que poderão mesmo actuar independentemente ou contra a
vontade dos seus possuidores. Note-se, entretanto, que esta diferenciação, embora por vezes útil como instrumento de
análise, raramente se verifica empiricamente; mesmo um ritual tão pouco exótico, para a maioria dos leitores, como a
transubstanciação da hóstia na eucaristia católica exigiria o uso das duas noções, pois tratar-se-ia de um acto de
feitiçaria com uma sequência de acções predeterminada, mas que teria que ser desempenhado por um bruxo (com
poderes adquiridos) para ser eficaz.
5
De facto, também nós pressupomos que um interruptor, que à partida não é mais, para nós, do que um símbolo
metafórico de disjunção de iluminação eléctrica, fará parte de um circuito eléctrico (metonímia) e que ligá-lo
produzirá luz (sinal) – sem que possamos a priori saber se a lâmpada está fundida, se a electricidade está ligada, ou
até se esse circuito eléctrico foi mesmo instalado, não sendo o interruptor apenas um artefacto isolado, montado
decorativa ou simbolicamente numa parede. Note-se que esta interpretação de Leach acerca da magia transfere a
questão do campo da incompreensão das relações causais materiais para o campo da indiferenciação entre formas de
representação simbólica.

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empírica e, aparentemente, a razão. Lembra que grande parte das representações que
temos acerca de aspectos da realidade são como que um endereço incompleto; não as
conhecemos de forma exacta e em todas as suas vertentes, mas apenas parcial e
aproximadamente – tal como eu, que não sou astrofísico, tenho uma ideia geral do que
são buracos negros que me permite pensar essa eventual realidade, embora saiba que
desconheço muitos aspectos acerca dela. O que torna racional a minha crença na
existência de buracos negros (enquanto coisa de cuja verdade estou convicto) é,
segundo Sperber, o mesmo que torna racional a crença (em moldes semelhantes) de
outras pessoas nos efeitos mágicos ou em dragões com coração de ouro maciço: eu
pressuponho que existem pessoas que têm uma representação completa e exacta acerca
do que é um buraco negro, que essas pessoas são consensualmente merecedoras de
confiança e que, se eu dominasse como elas essa representação completa e exacta,
poderia verificar que é verdadeira.6
Não obstante, a proposta de Sperber apenas nos permite resolver o problema da
racionalidade das crenças de cada indivíduo, particularmente tomado. Embora envolva a
ideia de consensos sociais (pelo menos, acerca da existência, conhecimento exaustivo e
fidedignidade dos especialistas naquilo que é objecto da crença), deixa-nos sem
respostas acerca da racionalidade tanto da criação desses consensos, quanto da
construção social de sistemas mágicos e religiosos. Para agravar a questão, também as
fronteiras entre o que é mágico, o que é religioso e o que é técnico são bastante mais
fáceis de pensar em abstracto do que de aplicar a realidades empíricas concretas.
Existe, assim, a (velha) matéria-prima mental e o espaço vazio necessário para
que se possa continuar a acreditar nas diferenças dicotómicas que possamos ir
construindo, com base em representações vagas e parciais, acerca do “nosso”
pensamento (imaginado como homogéneo e estritamente científico) e o pensamento dos
“outros” – nesse processo, também ele homogeneizado e visto como dominado por
princípios mágicos e simbólicos.

Imagens de determinismo e indeterminação

Haverá eventualmente casos em que tais dicotomias se justifiquem.


Não o pretendo discutir de forma generalizada, até porque a fluidez de fronteiras
entre sistemas de pensamento que nos habituámos a conceber como diferentes são, tal
6
Já não será racional aplicar esse processo de “validação por confiança” a uma representação da realidade que se
considere exacta e completa, ou acreditar que é uma verdade evidente e indiscutível algo acerca do qual apenas se
tem (ou pode ter) uma representação parcial e aproximada.

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como a interacção entre eles, tão recorrentes na observação empírica que tornariam
abusiva uma discussão como essa.
No entanto, delimitando a análise a dois contextos que conheço relativamente
bem em termos empíricos (a utilização da tecnologia industrial e a gestão dos seus
“riscos”7, por um lado, o sistema de adivinhação mais utilizado no sul de Moçambique8,
por outro), podemos verificar que as dicotomias habitualmente estabelecidas são pouco
adequadas e empobrecedoras.
Tais diferenciações costumam ter por base duas noções também elas
dicotómicas: determinismo e indeterminação.
Assim, a tecnologia industrial costuma ser encarada (pelo menos, na cultura
profissional de quem a concebe e de quem é academicamente qualificado para a gerir)
como um constructo absolutamente regulado por determinação material.
É, talvez, a área de actividade humana que se rege de forma mais estrita por
referentes positivistas, e há boas razões para que assim seja. Afinal, um projecto de
engenharia manipula, como dados, leis físicas e/ou químicas fixas, não se justificando
aplicar, por exemplo, a teoria quântica a uma análise cinemática, se existem para esse
efeito instrumentos de cálculo muito mais simples e com uma margem de erro que é
desprezável para os efeitos desejados. Tende-se, por outro lado, a pensar o
funcionamento da tecnologia de uma forma que abstracciona quer as variações materiais
concretas (como se todos os exemplares de peças idênticas fossem materialmente
iguais), quer o tempo e o historial da sua utilização – mesmo quando se equaciona a
fadiga de materiais e os desgastes climatéricos.
Dessa forma, quando ocorrem fenómenos que parecem teoricamente
impossíveis, 9 torna-se evidente um vazio conceptual para lidar com o problema
(contraditório com os pressupostos correntes), embora se assuma que as suas razões
decorrerão da causalidade material. Também a análise das disfunções que ocorram num
elemento complexo que faça parte de um sistema tecnológico hiper-complexo se
costumam restringir ao próprio elemento e à sua reposição no estado supostamente
“original”, desprezando tanto as mutáveis interacções a montante e a jusante que ele
mantém dentro do sistema, quanto os saberes práticos acerca da forma como as reacções

7
Veja-se, a este respeito, Granjo 1998, 2002, 2003, 2004, 2006, 2006 A, 2007 A e 2008.
8
Veja-se, a este respeito, Granjo 2007, 2008 A.
9
Para apresentar exemplos com que me cruzei em trabalho de campo (Granjo 2004), a ruptura de um tubo
recentemente bem montado e em perfeitas condições, de acordo com os instrumentos de análise e controlo utilizados;
ou a inversão do escoamento de produtos numa coluna de destilação, começando a sair os mais pesados por cima e os
mais leves por baixo.

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do conjunto da maquinaria se modificaram ao longo do tempo, que seriam certamente


necessários à resolução do problema.
A imagem determinista que é atribuída ao funcionamento da tecnologia é, não
obstante, partilhada pelos especialistas academicamente reconhecidos e pela população
em geral – embora não necessariamente pelos indivíduos que têm uma longa
experiência profissional de operar sistemas tecnológicos hiper-complexos.10
Já não se poderá apontar uma tal homogeneidade às imagens que são atribuídas à
análise probabilística de riscos.
Neste caso, os especialistas sabem que não podem nem devem reclamar um
estatuto determinista para a sua actividade pois, embora esta se baseie em
representações das relações causais materiais e na experiência anterior (ou em
extrapolações feitas a partir dela), não produz acerca do futuro representações “certas”
mas tendenciais e, no processo de o fazer, enfrenta três graves dificuldades
epistemológicas. Por um lado, a teoria das probabilidades aplica-se a longas sequências
de eventos e não a cada evento particular,11 o que parece fazer esvaziar a sua pertinência
prática, enquanto previsão ou base para a tomada de decisões; por outro, apenas uma
percentagem modesta dos acidentes envolvendo elevados níveis de energia (e de
possíveis danos) pode ser prevista com base na experiência empírica anterior,12 fazendo
com que as previsões produzidas sejam bastante lacunares; por fim, esta actividade
“divinatória” enfrenta o mesmo desconforto indutivo que atinge a ciência experimental
(e fá-lo por maioria de razão, pois esta última efectua manipulações empíricas sob
condições controladas, enquanto a análise de risco mobiliza abstracções e
acontecimentos heterogéneos): a partir de quantas repetições de acontecimentos
podemos ter um razoável grau de certeza de que estamos perante um resultado constante
de determinadas relações causais, e não perante uma coincidência estatística, que poderá
até ser marginal?
No entanto, por parte do “público” (entre o qual geralmente se incluem os
decisores políticos e os opinion makers), as análises de risco costumam revestir-se do
respeito quase religioso normalmente votado às visões fragmentares e

10
Veja-se, a este respeito, Granjo 2004.
11
Por exemplo, será de esperar que, em largos milhares de extracções do Totoloto, todas as bolas saiam um número
de vezes aproximadamente igual; mas a probabilidade de que, na próxima extracção, saiam os números até agora
menos frequentes é igual à probabilidade de que saiam exactamente os mesmos números que saíram esta semana. Da
mesma forma, um acidente muito provável pode nunca chegar a ocorrer, enquanto outro muito improvável pode
acontecer repetidamente.
12
Segundo uma extensa investigação australiana (Low & Beyers 1992), essa possibilidade não ultrapassa 25% dos
casos.

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positivistas/mecanicistas da ciência que são mais habituais nas “nossas” sociedades.


Não é estranha a esse facto a sofisticada manipulação quantitativa que tais análises
implicam, dado que a imagem corrente da ciência nos habituou a associar quantificação
e objectividade. Não sem alguma cumplicidade dos próprios especialistas de risco, que
são também “vendedores” e “publicistas” de uma actividade com elevado valor
económico, 13 as análises probabilísticas acabam, assim, por ser encaradas não como
uma representação tendencial da realidade, mas como um seu retrato objectivo e certo
(quando não como a realidade ela própria), capaz de dominar a incerteza e o aleatório.
À adivinhação africana, por seu lado, é quase sempre atribuído um carácter
determinista, fora do contexto em que é praticada. Esta atribuição pode ter várias
origens e expressar diferentes valorações.
Para quem tem dela apenas uma vaga ideia, essa visão costuma basear-se nos
estereótipos de que ou o adivinho e aqueles que a ele recorrem vivem imersos num
mundo dominado e pré-determinado por forças que lhes são estranhas (como na religião
de Frazer), ou tentam desesperadamente moldá-lo por meios mágicos (à imagem da sua
noção de magia). Em qualquer dos casos, contudo, pressupõe-se que as pessoas
envolvidas encaram aquilo que é “dito” pelos objectos divinatórios como sendo o futuro,
da forma que este necessariamente ocorrerá, a partir de cosmovisões arcaicas e “pré-
científicas”.
Mas também os estudiosos do assunto costumam pressupor ou mesmo atribuir
um carácter determinista às várias formas africanas de adivinhação, em grande medida
por influência indirecta da marcante interpretação de Evans-Pritchard (1978 [1937])
acerca da bruxaria Azande. Nela, E.P. expôs que, no terreno por si estudado, algo como
o “acaso” é socialmente inaceitável enquanto justificação para que um acontecimento
indesejável – cuja dinâmica é, contudo, explicada por causalidade natural – atinja uma
determinada pessoa. Para explicar a razão da coincidência espácio-temporal entre a
vítima e o acontecimento que a vitimou (mas não como este ocorreu), é alegada a acção
de bruxaria, cujo culpado será encontrado por consenso social, adivinhação e eventual
ordália. O mecanismo que descreve é, com variações locais nos factores explicativos
adoptados, muito recorrente em África 14 e suponho que a combinação entre a
inaceitabilidade do acaso, por um lado, e a veracidade atribuída pelas pessoas às

13
Veja-se, a este respeito, Roqueplo 1987.
14
Veja-se, por exemplo, Peek 1991, Janzen 1992, Dijk 2000, Olupona 2000, Masquelier 2001, Honwana 2002,
Binsbergen 2003 e Granjo 2007.

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conclusões da adivinhação, por outro, está na base do pressuposto de que esta última
seja determinista – por vezes, até, com o objectivo de enfatizar a sua dignidade, e não de
a diminuir.
Acontece que, conforme veremos, nem o facto de se considerar o resultado de
uma adivinhação verdadeiro e preciso pressupõe que o futuro ocorra necessariamente de
acordo com ele, nem a negação do acaso implica que se adopte uma visão determinista.
A redutora dicotomia que está na base desse raciocínio (tal como está na base da
desorientação sentida quando os sistemas técnicos escapam à lógica determinista que
era pressuposta, ou da dificuldade de “encaixar” o estatuto epistemológico da análise de
riscos numa categoria acessível ao público) resulta, afinal, de um outro pressuposto
dicotómico: que os sistemas explicativos da incerteza ou se regem pelo determinismo
ou pela indeterminação.
Na realidade, porém, estes não são mais do que os pontos extremos e opostos de
um continuum de possibilidades lógicas, largamente exploradas pela humanidade
(figura 1).

Fig. 1 – continuum de possibilidades de interpretação da incerteza

O determinismo está associado a formas de interpretar e se relacionar com a


incerteza como, por exemplo, a vontade de divindades omnipotentes, a visão do
universo como um aparelho de relojoaria submetido a leis mecânicas, ou várias das
acepções da palavra “destino”; a indeterminação, por sua vez, a noções como o acaso, o
caos, ou a representação das ameaças como sendo “perigos” inesperados e imprevisíveis.
Entre esses dois extremos, contudo, foram produzidas diferentes interpretações e
práticas que têm em comum a sua tentativa de atribuir um sentido e causalidade à
incerteza e ao aleatório que faz com que estes serem vistos como cognoscíveis,
regulados, ou mesmo dominados pelos seres humanos – aquilo a que chamo formas de
domesticação do aleatório, ou de domesticação da incerteza. São exemplo disso a
feitiçaria, as práticas supersticiosas, a coação de entidades como os santos na

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religiosidade católica popular, ou o conceito probabilístico de “risco”15 e as práticas de


manipulação da incerteza que lhe estão associadas.
Este continuum é, portanto, diversificado quanto aos elementos que nele se
inserem e aos referentes que lhes subjazem; mas não é uma “posta-restante” que se
caracterize sobretudo pela negativa, apenas por não corresponder nem ao determinismo
nem à indeterminação. Existem outros conceitos com estatuto equivalente ao destes
últimos e proponho que atentemos num deles: o caos determinístico.
Esta noção de origem matemática sustenta, no fundamental, que os
acontecimentos incertos que lhe correspondem são caóticos para quem os observa ou
sofre as suas consequências mas, não obstante, existe um princípio de determinação que
lhes está subjacente. Pensemos numa das equações que geram uma sucessão de números
que não corresponde a ciclos finitos e em que, portanto, nunca se repetem sequências de
números, por muito que um mesmo resultado individual possa voltar a surgir.16 Embora
exista uma instância de determinação (a própria fórmula), aquilo que dela resulta é de
facto caótico, incontrolável e imprevisível – a menos que tenhamos acesso à equação
que gera os resultados.17 Por outro lado, a noção não se aplica a sistemas complicados
(isto é, que se limitem a envolver um elevado número de variáveis lineares), mas a
sistemas complexos, em que as variáveis evoluam de forma não linear, em função do
historial de interacção entre elas – como no clássico exemplo de água pingando sobre
uma faceta de Lorenz.
Sugiro que, embora aspirem a dominar a incerteza de forma certa e necessária
(em última instância, determinista), tanto a adivinhação moçambicana como a análise
probabilística de riscos correspondem, na verdade, ao modelo de caos determinístico –
tal como, afinal, acontece com a tecnologia complexa e com as dinâmicas sociais que
são objecto da sua análise.

Adivinhos e analistas de risco

A adivinhação moçambicana por tinhlolo – lançamento de um conjunto de


objectos de origem animal, vegetal e mineral que representam diferentes entidades
15
Para aprofundar esta classificação, veja-se Granjo 2004.
16
Um exemplo clássico é a equação Pn+1 = R*Pn (1- Pn), em que P representa uma população de coelhos e R a sua
taxa geral de reprodução, quando R > 3,56 (cf. Eglash, 2005).
17
Note-se que o estatuto conceptual do caos determinístico e o seu lugar no continuum que apresentei dependem da
resposta que seja atribuída a três variáveis: 1) se é ou não possível conhecer a “equação”; 2) em caso afirmativo, que
tipo de entidade é capaz de a conhecer; 3) se, conhecendo a “equação”, é ou não possível alterar os acontecimentos
dela resultantes. Dependendo da combinação de respostas, podemos estar a lidar com uma teoria do caos de carácter
aleatório, com um sistema determinista de natureza religiosa ou pseudo-científica, ou com diferentes sistemas de
domesticação da incerteza.

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Paulo Granjo – Tecnologia Industrial e Curandeiros: partilhando pseudo-determinismos

sociais (imagem 2) – parece, à primeira vista, basear-se numa interpretação da incerteza


com carácter determinista. De facto, ela pressupõe que o acaso não existe e que, embora
os factores de perigo que nos rodeiam se rejam por relações de causalidade material, só
poderão atingir um indivíduo particular se a elas se juntarem razões sociais, que poderão
ser de três tipos: 1) a inabilidade ou negligência da vítima para reconhecer ou lidar com
esse perigo; 2) um acto de feitiçaria que a atraia para o perigo, ou a distraia da sua
existência e iminência; 3) uma suspensão da protecção por parte dos seus antepassados
(que deveriam afastá-la do perigo), com o objectivo de chamarem a atenção da vítima
para a sua insatisfação relativamente a um qualquer aspecto que será necessário
descobrir por adivinhação e depois corrigir.18

Fig. 2 – Um tinhlolo actual, que poderá integrar mais elementos

No entanto, se esse sistema interpretativo delimita rigorosamente as causas


possíveis e faz decorrer delas as consequências que pretende interpretar, tal não basta
para que o possamos rotular de determinista. Para que o pudéssemos fazer, seria de
esperar que quem neutralizasse as possíveis causas de infortúnios – fazendo apenas, de
forma atenta, aquilo que está qualificado para fazer e tendo um comportamento
considerado exemplar por vivos e mortos – ficasse deles salvaguardado, mas não é

18
Também este tipo de causa é estritamente social pois, por um lado, as causas de descontentamento prendem-se com
a conduta da vítima ou com uma culpa por ela herdada e, por outro, os antepassados não são uma proto-divindade
etérea mas a parte espiritual que sobrou da pessoa que antes foram, vivendo junto dos seus descendentes, com quem
mantêm as mesmas relações de deveres, direitos e hierarquia que cabem aos parentes seniores – de forma semelhante
à apontada por Kopytoff (1971) para outro contexto africano. Note-se que os infortúnios resultantes não são
concebidos como punições, mas como o resultado das limitações enfrentadas pelos antepassados: tendo perdido a
capacidade de comunicarem directamente com os vivos, vêem-se obrigados a chamar a sua atenção através de
acontecimentos disruptores da normalidade (acidentes, doenças, mortes, etc.), para que os seus descendentes se
apercebam de que algo está mal, procurem saber o que é (por adivinhação ou transe) e o corrijam.

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assim que a realidade é interpretada. Entre os vivos, o próprio comportamento


excepcionalmente correcto desse indivíduo poderia suscitar invejas, a motivação mais
comummente atribuída ao lançamento de feitiços. Poderia, por outro lado, suscitar a
dolorosa chamada de atenção dos mortos devido a um mal-entendido,19 por herdar uma
culpa de antepassados seus, ou mesmo ser a vítima indirecta de uma repreensão dirigida
a um seu parente próximo, que não havia correspondido a anteriores sinais dos
antepassados.
Ou seja, mesmo postulando-se que são conhecidas as variáveis ligadas à
ocorrência de infortúnios e que, em cada caso, poderão ser conhecidas as suas causas
concretas, a multiplicidade de entidades activas envolvidas, interagindo entre si em
função da sua própria agência e da interpretação que fazem das interacções anteriores (a
complexidade do social, afinal), faz com que seja inviável dominar a incerteza futura.
Por outras palavras, embora este sistema seja baseado numa estrutura determinista e
aspire a explicar e regular a incerteza, o seu resultado é caótico, devido à complexidade
dos factores envolvidos, incognoscíveis na sua totalidade e caracterizados por agência
humana ou para-humana. É um caso de caos determinístico.
O mesmo acontece, contudo, com um sistema tecnológico complexo, seja ele
uma fábrica, uma rede informática ou mesmo um automóvel.
Acerca deste último exemplo, mais familiar à maioria dos leitores, existem duas
imagens recorrentes e empiricamente verdadeiras em que valerá a pena atentarmos.
Uma, é a daquelas viaturas velhas e desgastadas que apenas os seus donos conseguem
pôr a funcionar e manter em andamento, sem que consigam explicar ou mesmo ter plena
consciência da forma particular como rodam a chave, mantêm uma determinada
aceleração, ou utilizam a embraiagem e a caixa de velocidades. Outra, é a ideia de que,
quando se parte uma única peça num carro velho, substituí-la por outra nova irá alterar o
funcionamento geral e acelerar a ruptura de muitas outras peças. A razão destes casos é
do conhecimento comum: um automóvel não é um amontoado de dispositivos isolados,
mas um sistema integrado em que esses dispositivos se influenciam mutuamente,
adaptando-se e desgastando-se em função das interacções que mantêm ao longo do seu
funcionamento conjunto, no qual a maneira como são operados é também uma variável
importante. Assim, a máquina acaba por não reagir da forma como foi inicialmente

19
Por exemplo, pensa-se que, se uma gota de saliva saltar da boca de um parente sénior enquanto este comentar as
acções de um indivíduo, os antepassados poderão interpretar isso como uma invocação, e as palavras do parente
sénior como um pedido de correcção de comportamento, por muito pouco que essa fosse a intenção do orador.

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concebida para o fazer, peças que não “viveram” o historial comum de funcionamento
tornam-se elementos desestabilizadores do sistema, enquanto a pessoa que o opera vai
“deformando” a máquina e respectivas reacções através da forma como a conduz e, ao
mesmo tempo, adaptando-se imperceptivelmente às alterações que provoca.
É curioso que este conhecimento, de quase mero bom-senso, não costume ser
aplicado a sistemas tecnológicos bastante mais complexos, como as fábricas, embora a
sua veracidade seja familiar ao pessoal que com eles opera e constitua um dado
adquirido para especialistas que acompanham a maquinaria com alguns anos de
intervalo.20 Não obstante, também os sistemas tecnológicos hiper-complexos alteram o
seu funcionamento e reacções em função do historial de interacção entre os seus
elementos – o que, associado ao elevado número de variáveis envolvidas e de
interacções entre elas, faz com que muitas disfunções não possam ser compreendidas a
posteriori a partir dos pressupostos de como a maquinaria “deveria” trabalhar, quanto
mais ser previstas a priori. Cumulativamente, nestes contextos hiper-complexos a
resolução de um problema colocado por uma determinada tecnologia tende a provocar
novos e diferentes problemas, imprevisíveis em virtude da introdução de novas
interacções num sistema onde elas são já demasiado numerosas e mutáveis para
poderem ser totalmente apreendidas e dominadas. E se isto é verdade para um sistema
tecnológico, é-o também para a relação entre ele e o mundo circundante.
Esta submissão da tecnologia complexa a uma lógica de caos determinístico é
um problema essencial para a análise probabilística que lhe seja aplicada pois, quer
esta última parta da experiência, da dedução lógica de relações de causa/efeito ou da
combinação entre ambas, a sua base é sempre a abstracção de uma “condição inicial” da
maquinaria que, se alguma vez existiu em cada caso concreto, depressa terá sido
modificada pelas interacções entretanto ocorridas. Mas a complexidade dos sistemas
tecnológicos cria ainda um outro problema que faz com que a análise de riscos
corresponda a uma lógica de caos determinístico: só se pode prever e quantificar aquilo
que se conseguiu conceber como possível. Ora a multiplicidade de variáveis (algumas

20
Conforme me dizia um especialista norte-americano na montagem e grandes manutenções de uma das unidades
processuais que foram instaladas na refinaria de Sines na década de 1990, «Já construí fábricas destas por todo o
mundo. É espantoso. Quando as construímos e testamos, são sempre exactamente iguais, mas quando se volta alguns
anos depois, são todas diferentes. Os comandos causam efeitos diferentes, os problemas que temos de enfrentar são
diferentes, a forma de lidar com eles é diferente... Realmente espantoso! Parece que foram construídas a partir de
projectos diferentes.» (Granjo 2004: )

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Paulo Granjo – Tecnologia Industrial e Curandeiros: partilhando pseudo-determinismos

até exteriores ao sistema em análise)21 e de possíveis interacções entre elas faz com que
uma grande parte das conjugações de factores que podem conduzir a um acidente
tecnológico sejam impensáveis a priori – correspondendo aqueles que podem ser
previstos apenas a uma parte dos que são possíveis, sem que se consiga sequer saber em
que medida essa parte previsível é numericamente significativa.
De novo, então, estamos perante um sistema de interpretação da realidade que
postula relações de determinação aparentemente claras mas cujo resultado é caótico,
devido à complexidade dos factores envolvidos.

Verdades e consequências

Detectadas estas similitudes, não me parece que estejamos perante uma mera
analogia metafórica, mas antes face a um isomorfismo formal e epistemológico, que
acarreta consequências também elas semelhantes para a aplicabilidade (e limitações) do
conhecimento produzido por ambas as actividades que temos vindo a acompanhar.
Assim sendo, não será abusivo explorar outros possíveis paralelos entre elas.
Mencionei páginas atrás que o facto de se considerar verdadeiro e preciso o
resultado de uma sessão divinatória moçambicana não pressupõe que o futuro ocorra
necessariamente de acordo com ele. Será então necessário clarificar que verdade é essa
e o que se espera que a adivinhação adivinhe.
Por um lado, espera-se que ela detecte a posteriori as razões subjacentes aos
acontecimentos passados, tornando-os compreensíveis e permitindo uma reacção eficaz
dos indivíduos, através da correcção das suas causas mais profundas ou da protecção
contra elas. Por outro lado, espera-se que a adivinhação vaticine quais os apoios e
obstáculos que se colocam a projectos futuros, de forma a permitir a adopção das
decisões, estratégias e precauções mais adequadas.
Assim, por muito verdadeira e exacta que se considere uma dada sessão de
adivinhação, nunca as causas diagnosticadas serão imutáveis ou se poderão considerar
assegurados os resultados pretendidos, por muito escrupuloso que seja o cumprimento
dos procedimentos receitados pelo adivinho. Isto porque as condições que estiveram na
base dos problemas actuais podem ser alteradas e, se o futuro não está predeterminado,
tão pouco depende apenas da actuação do cliente, visto cada acção individual ser apenas
um factor entre muitos outros, todos eles interagindo e influenciando-se mutuamente.
21
Por exemplo, uma paragem geral ocorrida na refinaria de Sines durante a década de 1990 foi causada por um gato
vadio que se foi aquecer à central eléctrica e morreu electrocutado, causando um curto-circuito que deixou a fábrica
sem energia.

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Dessa forma, a verdade que se espera seja revelada pela adivinhação por tinhlolo
não é o futuro, mas uma conjuntura presente de quadros de causas e relações – que virá
a ser influenciada pela agência do cliente e pela de muitos outros, vivos e mortos.
Estamos então perante a noção de uma realidade regulada, mas de tal forma complexa
que se transforma numa incerteza vivida, em que a capacidade de um indivíduo para
manipular os princípios de determinação que estão subjacentes aos acontecimentos não
é suficiente para o salvaguardar de danos, mas em que a sua ignorância acerca desses
princípios o poderia conduzir ao desastre.
Segundo esta perspectiva, são então úteis todas as formas de prevenção que
sejam pertinentes à luz dos princípios explicativos vigentes e da conjuntura que tenha
sido adivinhada, mas será também necessário acompanhar os desenvolvimentos que a
possam alterar e manter uma atitude de cautela para com novos factores.
Se alguns clientes esperam obter da adivinhação a revelação de um futuro certo e
se, apesar dos esclarecimentos em contrário fornecidos pelos adivinhos, esperam deles
receitas infalíveis que lhes permitam atingir os fins que desejam, isso já será abusivo
aos olhos dos adivinhos – e irracional, segundo Dan Sperber (op. cit.).
Partilhando a análise de riscos os mesmos obstáculos e relação com o caos
determinístico que a adivinhação moçambicana e incidindo como ela sobre uma
realidade que se rege por esse mesmo modelo, seria legítimo esperar que lhe fossem
colocados limites e reservas também eles adequados à natureza do tipo de verdade e
exactidão que produz.
Não é isso, contudo, que podemos verificar. A sua proeminência social induz,
pelo contrário, efeitos cognitivos perniciosos que os especialistas pouco ou nada fazem
para combater. Embora, conforme referi, a análise de riscos lide com uma parte limitada
dos perigos possíveis, abstraccione as correlações de factores de uma forma que
compromete a sua aplicabilidade prática e produza representações tendenciais que não
poderão ser mais do que indicativas, a imagem que projecta é bem diferente. Apresenta-
se como uma previsão objectiva e global, induzindo as ilusões de que é possível prever
de forma completa as incertezas tecnológicas e de que tomar medidas preventivas contra
aquelas que foram previstas é suficiente para evitar acidentes.
Por outro lado, mesmo sabendo-se que uma baixíssima probabilidade em nada
salvaguarda a possível ocorrência do fenómeno para que foi calculada, a utilização
retórica desses números como se eles se aplicassem a cada evento individual induz a
tendência para desprezar probabilidades de ocorrência muito baixas, independentemente

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da gravidade das consequências que lhes estejam associadas. Estimula-se e legitima-se,


assim, um mecanismo de tomada de decisão que é irracional para quem realmente saiba
o que é uma probabilidade: perante um projecto económico ou técnico-científico, em
vez de se equacionar a aceitabilidade ou não das perdas possíveis versus as vantagens
obteníveis, confrontam-se estas últimas com a meramente indicativa (e normalmente
baixíssima) probabilidade de perdas graves, como se esta fosse uma indicação objectiva
de que tais perdas não ocorrerão.
Em resultado destes efeitos cognitivos, é desvalorizado, por aparentemente
irrelevante, o único contraponto disponível para complementar as lacunas securitárias
deixadas em aberto pela lógica probabilística e sua aplicação: a atitude de precaução.
Combinada com a prevenção, essa atitude aumenta efectivamente a atenção a novos
factores de perigo, prepara para ocorrências inesperadas e desencoraja a tendência para
“arriscar” perante opções com consequências desconhecidas e potencialmente
incontroláveis. Revela-se, de facto, empiricamente mais adequada do que a mera lógica
probabilística; mas reconhecê-lo é reconhecer as muitas limitações da análise de risco.
É ainda a afirmação da capacidade técnica de prever que em parte legitima os
bloqueios à aplicação prática do princípio precaucionário que estipula, de forma sensata,
que uma inovação tecnológica cujos possíveis efeitos negativos sejam desconhecidos só
deverá ser adoptada depois de esses efeitos serem investigados e socialmente aceites. As
objecções mais comuns que lhe são apontadas têm um carácter economicista (o
princípio precaucionário prejudica a produção e a rentabilidade) ou teleológico
(bloqueia a evolução e o desenvolvimento, devido a cautelas desnecessárias); mas a
legitimação moral desses argumentos baseia-se em três crenças desenvolvidas no
contexto cultural técnico-científico: 1) é possível prever os efeitos tecnológicos; 2) a
ciência e a técnica têm a capacidade e potência para encontrar soluções para os
problemas que provoquem; 3) a natureza é suficientemente robusta para suportar os
efeitos desses problemas, pelo menos até que seja encontrada a solução.
Estará já evidente para o leitor que a primeira destas crenças é falaciosa. A
segunda é uma arrogante declaração de fé, compreensível face à impressionante
velocidade e capacidade de realização técnico-científica no último século mas
desmentida pela experiência empírica – que, pelo, contrário mostra a indução de novos
problemas pela tentativa de resolução dos anteriores. A terceira crença aparente ter
sustentação empírica, já que o mundo e o nosso modelo civilizacional não colapsaram

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até agora; mas, não sendo conhecidos ou deduzíveis nem os seus limites de resistência
nem parte dos problemas presentes e futuros, não passa de um wishful thinking.
Ora, sendo os crentes cientistas, estas crenças são irracionais.

Perante este quadro preocupante e os dados que adiantei, não chego ao ponto de
afirmar que adivinhos e analistas de risco façam essencialmente a mesma coisa, apenas
defendendo de forma diferente o seu poder. Mas parece que, mesmo para quem esteja
convicto de que os pressupostos probabilísticos sejam muito mais “reais” e eficazes do
que os pressupostos espiritualistas e mágicos, talvez tenhamos alguma coisa a aprender
com a modéstia epistemológica dos sempre imodestos adivinhos moçambicanos.
Afinal, alguém que tenha uma ideia apenas aproximada do que são
probabilidades e análises de riscos poderá estar a ser racional quando as encara de
acordo com as ilusões que referi – tal como acontece com alguém que, noutro contexto,
acredite em dragões com coração de ouro maciço. Mas o especialista que, conhecendo a
sua actividade e pressupostos, estimula essas imagens e ilusões está a reproduzir e a
apelar à irracionalidade. E está a pôr em causa, ao fazê-lo, a nossa segurança.

In Portugal Contemporâneo. Olhares sobre a sociedade portuguesa, Lisboa, Imprensa de Ciência Sociais

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