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Paulo Granjo
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Exporei adiante este conceito, que não corresponde nem a um determinismo nem a uma indeterminação.
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Esta designação pouco precisa (mas que, pelo menos, permite incluir sociedades onde seja dominante essa matriz
cultural, não pressupondo que ela seja exclusiva e independentemente da sua localização geográfica), pretende referir,
Paulo Granjo – Tecnologia Industrial e Curandeiros: partilhando pseudo-determinismos
Genealogia de um lugar-comum
de forma menos inexacta e à falta de uma alternativa mais satisfatória, uma realidade correntemente designada por
uma expressão ainda mais vaga e incorrecta: “ocidental”.
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Paulo Granjo – Tecnologia Industrial e Curandeiros: partilhando pseudo-determinismos
os efeitos desejados. A “substituição” da religião pela ciência, por fim, teria decorrido
de uma tendência inerente ao pensamento humano para se auto-aperfeiçoar, regressando
a humanidade, com a ciência, à lógica das relações de causa/efeito naturais – mas, desta
vez, verdadeiras e, consequentemente, eficazes.
Correspondendo a proposta de Frazer a um projecto evolucionista, tinha
necessariamente que pressupor, como o fez, a unidade do espírito humano. Contudo, o
segundo teórico marcante a que aludi parágrafos atrás, Lucien Lévy-Bruhl, não estava
tolhido por essa obrigação quando, vinte anos depois, publicou Les fonctions mentales
dans les sociétés inférieures (Lévy-Bruhl 1951 [1910]).
Nessa obra e noutras que se lhe seguiram, Lévy-Bruhl sustenta que o
pensamento dos “primitivos” é qualitativamente diferente do pensamento dos seus
contemporâneos “modernos”, não por ser irracional, mas por ser pré-lógico. Partindo,
para a sua análise, das contradições narrativas que amiúde se parecem descortinar nos
mitos, Lévy-Bruhl justificou-as com duas características cognitivas dos seus produtores
e ouvintes: por um lado, estes não dominariam o princípio da não-contradição, o que
permitia sequências de acontecimentos sem decorrência lógica e que, por exemplo, uma
personagem velha ou morta surja depois jovem ou viva, sem necessidade de qualquer
explicação para esse facto; em segundo lugar, o pensamento desses “primitivos” estaria
subordinado à participação mística. Quer isto dizer que não predominaria nele a
observação objectiva, pois a essência mística de um ser seria mais importante do que a
sua aparência exterior – pelo que, participando duma mesma substância seres que
pertencem “objectivamente” a categorias biológicas e/ou ontológicas diferentes, não
espantaria a um desses “primitivos pré-lógicos” que uma personagem mitológica fosse
agora um homem, depois um animal, depois ainda um relâmpago ou o vento.
As perspectivas de ambos os autores vieram a tornar-se facilmente rebatíveis.
Para além de se ter tornado evidente que as sociedades não se modificam numa
única e comum linha evolutiva e que, em cada lugar e tempo, formas diferentes de
pensar e de agir sobre o mundo (mágicas, religiosas, científicas…) coexistem e se
desenvolvem autónoma e interactivamente, as justificações que Frazer apresentou para a
passagem de umas “fases” para outras são frágeis. De facto, a suposta razão para o
abandono da religião em favor da ciência é uma mera teleologia. Por seu lado, aquela
que o autor avançou para o abandono da magia não tem sustentação empírica pois, tal
como Lakatos (1978) aponta à ciência, também a crença na magia tem o seu “cinturão
protector”, defendendo o “núcleo duro” contra evidências empíricas que o contradigam:
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perante cada caso particular de insucesso, o crente poderá alegar que o acto mágico foi
tecnicamente mal feito, que existe uma outra magia mais forte actuando em sentido
contrário, que o mago é pouco poderoso ou um mero charlatão, sem que tal ponha em
causa uma veracidade geral da magia, a que noutros casos poderá ser atribuída eficácia.
Acresce a isso que, conforme salientou Edmund Leach (1976), uma mesma
pessoa está a praticar formas fundamentalmente diferentes de acção sobre o mundo
quando pega num martelo para cravar uma estaca no solo e quando, na iminência de ser
atacada por um elefante, fica quieta e recita uma invocação mágica. Um é um acto
mecânico realizado por contiguidade e o outro é um acto de comunicação efectuado à
distância, não devendo por isso o segundo ser encarado como uma forma falhada do
primeiro, que se baseie nos mesmos pressupostos.
Quanto à proposta de Lévy-Bruhl, tem como primeiro óbice ser tautológica, pois
explica a aparente inconsistência lógica dos mitos postulando a existência de uma forma
de pensamento pré-lógico que lhe corresponde, e cuja prova estará na tal inconsistência
lógica dos mitos. Posteriormente, contudo, Claude Levi-Strauss (1985 [1958]; 1993
[1962]) veio a propor algo que qualquer pessoa que se cruze com a interpretação de
mitos e histórias poderá verificar, concorde ou não com a noção de mitema e com a
analogia linguística avançadas por esse autor: nas narrativas mitológicas e
“tradicionais”,3 as aparentes incoerências não decorrem de uma lacuna de princípios e
instrumentos lógicos mas, pelo contrário, de uma manipulação (re)combinatória e quase
obsessiva das relações entre elementos narrativos. Uma manipulação que, por vezes,
parece ter como único objectivo explorar os limites da lógica e em que, quase sempre,
os acontecimentos estranhos com que nos vamos deparando estão longe de ser gratuitos
ou fruto de desatenção – antes sendo deliberadamente estranhos e contrastantes com a
experiência do ouvinte, para chamar a atenção sobre eles e o seu papel na narrativa.
Independentemente da refutação dos modelos construídos por Frazer e Lévi-
Bruhl, convirá reter que, seguindo caminhos aparentemente opostos (um deles
postulando a unidade de um espírito humano votado ao seu auto-aperfeiçoamento, o
outro defendendo uma diferença cognitiva essencial no interior da humanidade), ambos
os autores sistematizaram a suposta diferença entre o pensamento científico/“civilizado”
e o dos “outros”, ambos se baseando, para o fazerem, em algo que faltaria a esses
3
O mesmo se poderia dizer, aliás, da maioria dos modelos rituais.
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De uma forma que salienta a influência do seu legado sobre quadros teóricos diferentes do seu, aquilo a que Frazer
chamou magia veio no essencial a corresponder, na posterior antropologia social britânica, à noção de feitiçaria
(sorcery) – por oposição à de bruxaria (witchcraft), esta última correspondente não a uma técnica cuja eficácia
decorre da correcta execução e é independente do indivíduo que a aplica, mas a uma acção que exige dos indivíduos
que a praticam poderes especiais (inatos ou adquiridos), que poderão mesmo actuar independentemente ou contra a
vontade dos seus possuidores. Note-se, entretanto, que esta diferenciação, embora por vezes útil como instrumento de
análise, raramente se verifica empiricamente; mesmo um ritual tão pouco exótico, para a maioria dos leitores, como a
transubstanciação da hóstia na eucaristia católica exigiria o uso das duas noções, pois tratar-se-ia de um acto de
feitiçaria com uma sequência de acções predeterminada, mas que teria que ser desempenhado por um bruxo (com
poderes adquiridos) para ser eficaz.
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De facto, também nós pressupomos que um interruptor, que à partida não é mais, para nós, do que um símbolo
metafórico de disjunção de iluminação eléctrica, fará parte de um circuito eléctrico (metonímia) e que ligá-lo
produzirá luz (sinal) – sem que possamos a priori saber se a lâmpada está fundida, se a electricidade está ligada, ou
até se esse circuito eléctrico foi mesmo instalado, não sendo o interruptor apenas um artefacto isolado, montado
decorativa ou simbolicamente numa parede. Note-se que esta interpretação de Leach acerca da magia transfere a
questão do campo da incompreensão das relações causais materiais para o campo da indiferenciação entre formas de
representação simbólica.
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empírica e, aparentemente, a razão. Lembra que grande parte das representações que
temos acerca de aspectos da realidade são como que um endereço incompleto; não as
conhecemos de forma exacta e em todas as suas vertentes, mas apenas parcial e
aproximadamente – tal como eu, que não sou astrofísico, tenho uma ideia geral do que
são buracos negros que me permite pensar essa eventual realidade, embora saiba que
desconheço muitos aspectos acerca dela. O que torna racional a minha crença na
existência de buracos negros (enquanto coisa de cuja verdade estou convicto) é,
segundo Sperber, o mesmo que torna racional a crença (em moldes semelhantes) de
outras pessoas nos efeitos mágicos ou em dragões com coração de ouro maciço: eu
pressuponho que existem pessoas que têm uma representação completa e exacta acerca
do que é um buraco negro, que essas pessoas são consensualmente merecedoras de
confiança e que, se eu dominasse como elas essa representação completa e exacta,
poderia verificar que é verdadeira.6
Não obstante, a proposta de Sperber apenas nos permite resolver o problema da
racionalidade das crenças de cada indivíduo, particularmente tomado. Embora envolva a
ideia de consensos sociais (pelo menos, acerca da existência, conhecimento exaustivo e
fidedignidade dos especialistas naquilo que é objecto da crença), deixa-nos sem
respostas acerca da racionalidade tanto da criação desses consensos, quanto da
construção social de sistemas mágicos e religiosos. Para agravar a questão, também as
fronteiras entre o que é mágico, o que é religioso e o que é técnico são bastante mais
fáceis de pensar em abstracto do que de aplicar a realidades empíricas concretas.
Existe, assim, a (velha) matéria-prima mental e o espaço vazio necessário para
que se possa continuar a acreditar nas diferenças dicotómicas que possamos ir
construindo, com base em representações vagas e parciais, acerca do “nosso”
pensamento (imaginado como homogéneo e estritamente científico) e o pensamento dos
“outros” – nesse processo, também ele homogeneizado e visto como dominado por
princípios mágicos e simbólicos.
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como a interacção entre eles, tão recorrentes na observação empírica que tornariam
abusiva uma discussão como essa.
No entanto, delimitando a análise a dois contextos que conheço relativamente
bem em termos empíricos (a utilização da tecnologia industrial e a gestão dos seus
“riscos”7, por um lado, o sistema de adivinhação mais utilizado no sul de Moçambique8,
por outro), podemos verificar que as dicotomias habitualmente estabelecidas são pouco
adequadas e empobrecedoras.
Tais diferenciações costumam ter por base duas noções também elas
dicotómicas: determinismo e indeterminação.
Assim, a tecnologia industrial costuma ser encarada (pelo menos, na cultura
profissional de quem a concebe e de quem é academicamente qualificado para a gerir)
como um constructo absolutamente regulado por determinação material.
É, talvez, a área de actividade humana que se rege de forma mais estrita por
referentes positivistas, e há boas razões para que assim seja. Afinal, um projecto de
engenharia manipula, como dados, leis físicas e/ou químicas fixas, não se justificando
aplicar, por exemplo, a teoria quântica a uma análise cinemática, se existem para esse
efeito instrumentos de cálculo muito mais simples e com uma margem de erro que é
desprezável para os efeitos desejados. Tende-se, por outro lado, a pensar o
funcionamento da tecnologia de uma forma que abstracciona quer as variações materiais
concretas (como se todos os exemplares de peças idênticas fossem materialmente
iguais), quer o tempo e o historial da sua utilização – mesmo quando se equaciona a
fadiga de materiais e os desgastes climatéricos.
Dessa forma, quando ocorrem fenómenos que parecem teoricamente
impossíveis, 9 torna-se evidente um vazio conceptual para lidar com o problema
(contraditório com os pressupostos correntes), embora se assuma que as suas razões
decorrerão da causalidade material. Também a análise das disfunções que ocorram num
elemento complexo que faça parte de um sistema tecnológico hiper-complexo se
costumam restringir ao próprio elemento e à sua reposição no estado supostamente
“original”, desprezando tanto as mutáveis interacções a montante e a jusante que ele
mantém dentro do sistema, quanto os saberes práticos acerca da forma como as reacções
7
Veja-se, a este respeito, Granjo 1998, 2002, 2003, 2004, 2006, 2006 A, 2007 A e 2008.
8
Veja-se, a este respeito, Granjo 2007, 2008 A.
9
Para apresentar exemplos com que me cruzei em trabalho de campo (Granjo 2004), a ruptura de um tubo
recentemente bem montado e em perfeitas condições, de acordo com os instrumentos de análise e controlo utilizados;
ou a inversão do escoamento de produtos numa coluna de destilação, começando a sair os mais pesados por cima e os
mais leves por baixo.
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Veja-se, a este respeito, Granjo 2004.
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Por exemplo, será de esperar que, em largos milhares de extracções do Totoloto, todas as bolas saiam um número
de vezes aproximadamente igual; mas a probabilidade de que, na próxima extracção, saiam os números até agora
menos frequentes é igual à probabilidade de que saiam exactamente os mesmos números que saíram esta semana. Da
mesma forma, um acidente muito provável pode nunca chegar a ocorrer, enquanto outro muito improvável pode
acontecer repetidamente.
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Segundo uma extensa investigação australiana (Low & Beyers 1992), essa possibilidade não ultrapassa 25% dos
casos.
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Veja-se, a este respeito, Roqueplo 1987.
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Veja-se, por exemplo, Peek 1991, Janzen 1992, Dijk 2000, Olupona 2000, Masquelier 2001, Honwana 2002,
Binsbergen 2003 e Granjo 2007.
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conclusões da adivinhação, por outro, está na base do pressuposto de que esta última
seja determinista – por vezes, até, com o objectivo de enfatizar a sua dignidade, e não de
a diminuir.
Acontece que, conforme veremos, nem o facto de se considerar o resultado de
uma adivinhação verdadeiro e preciso pressupõe que o futuro ocorra necessariamente de
acordo com ele, nem a negação do acaso implica que se adopte uma visão determinista.
A redutora dicotomia que está na base desse raciocínio (tal como está na base da
desorientação sentida quando os sistemas técnicos escapam à lógica determinista que
era pressuposta, ou da dificuldade de “encaixar” o estatuto epistemológico da análise de
riscos numa categoria acessível ao público) resulta, afinal, de um outro pressuposto
dicotómico: que os sistemas explicativos da incerteza ou se regem pelo determinismo
ou pela indeterminação.
Na realidade, porém, estes não são mais do que os pontos extremos e opostos de
um continuum de possibilidades lógicas, largamente exploradas pela humanidade
(figura 1).
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Também este tipo de causa é estritamente social pois, por um lado, as causas de descontentamento prendem-se com
a conduta da vítima ou com uma culpa por ela herdada e, por outro, os antepassados não são uma proto-divindade
etérea mas a parte espiritual que sobrou da pessoa que antes foram, vivendo junto dos seus descendentes, com quem
mantêm as mesmas relações de deveres, direitos e hierarquia que cabem aos parentes seniores – de forma semelhante
à apontada por Kopytoff (1971) para outro contexto africano. Note-se que os infortúnios resultantes não são
concebidos como punições, mas como o resultado das limitações enfrentadas pelos antepassados: tendo perdido a
capacidade de comunicarem directamente com os vivos, vêem-se obrigados a chamar a sua atenção através de
acontecimentos disruptores da normalidade (acidentes, doenças, mortes, etc.), para que os seus descendentes se
apercebam de que algo está mal, procurem saber o que é (por adivinhação ou transe) e o corrijam.
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Por exemplo, pensa-se que, se uma gota de saliva saltar da boca de um parente sénior enquanto este comentar as
acções de um indivíduo, os antepassados poderão interpretar isso como uma invocação, e as palavras do parente
sénior como um pedido de correcção de comportamento, por muito pouco que essa fosse a intenção do orador.
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concebida para o fazer, peças que não “viveram” o historial comum de funcionamento
tornam-se elementos desestabilizadores do sistema, enquanto a pessoa que o opera vai
“deformando” a máquina e respectivas reacções através da forma como a conduz e, ao
mesmo tempo, adaptando-se imperceptivelmente às alterações que provoca.
É curioso que este conhecimento, de quase mero bom-senso, não costume ser
aplicado a sistemas tecnológicos bastante mais complexos, como as fábricas, embora a
sua veracidade seja familiar ao pessoal que com eles opera e constitua um dado
adquirido para especialistas que acompanham a maquinaria com alguns anos de
intervalo.20 Não obstante, também os sistemas tecnológicos hiper-complexos alteram o
seu funcionamento e reacções em função do historial de interacção entre os seus
elementos – o que, associado ao elevado número de variáveis envolvidas e de
interacções entre elas, faz com que muitas disfunções não possam ser compreendidas a
posteriori a partir dos pressupostos de como a maquinaria “deveria” trabalhar, quanto
mais ser previstas a priori. Cumulativamente, nestes contextos hiper-complexos a
resolução de um problema colocado por uma determinada tecnologia tende a provocar
novos e diferentes problemas, imprevisíveis em virtude da introdução de novas
interacções num sistema onde elas são já demasiado numerosas e mutáveis para
poderem ser totalmente apreendidas e dominadas. E se isto é verdade para um sistema
tecnológico, é-o também para a relação entre ele e o mundo circundante.
Esta submissão da tecnologia complexa a uma lógica de caos determinístico é
um problema essencial para a análise probabilística que lhe seja aplicada pois, quer
esta última parta da experiência, da dedução lógica de relações de causa/efeito ou da
combinação entre ambas, a sua base é sempre a abstracção de uma “condição inicial” da
maquinaria que, se alguma vez existiu em cada caso concreto, depressa terá sido
modificada pelas interacções entretanto ocorridas. Mas a complexidade dos sistemas
tecnológicos cria ainda um outro problema que faz com que a análise de riscos
corresponda a uma lógica de caos determinístico: só se pode prever e quantificar aquilo
que se conseguiu conceber como possível. Ora a multiplicidade de variáveis (algumas
20
Conforme me dizia um especialista norte-americano na montagem e grandes manutenções de uma das unidades
processuais que foram instaladas na refinaria de Sines na década de 1990, «Já construí fábricas destas por todo o
mundo. É espantoso. Quando as construímos e testamos, são sempre exactamente iguais, mas quando se volta alguns
anos depois, são todas diferentes. Os comandos causam efeitos diferentes, os problemas que temos de enfrentar são
diferentes, a forma de lidar com eles é diferente... Realmente espantoso! Parece que foram construídas a partir de
projectos diferentes.» (Granjo 2004: )
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até exteriores ao sistema em análise)21 e de possíveis interacções entre elas faz com que
uma grande parte das conjugações de factores que podem conduzir a um acidente
tecnológico sejam impensáveis a priori – correspondendo aqueles que podem ser
previstos apenas a uma parte dos que são possíveis, sem que se consiga sequer saber em
que medida essa parte previsível é numericamente significativa.
De novo, então, estamos perante um sistema de interpretação da realidade que
postula relações de determinação aparentemente claras mas cujo resultado é caótico,
devido à complexidade dos factores envolvidos.
Verdades e consequências
Detectadas estas similitudes, não me parece que estejamos perante uma mera
analogia metafórica, mas antes face a um isomorfismo formal e epistemológico, que
acarreta consequências também elas semelhantes para a aplicabilidade (e limitações) do
conhecimento produzido por ambas as actividades que temos vindo a acompanhar.
Assim sendo, não será abusivo explorar outros possíveis paralelos entre elas.
Mencionei páginas atrás que o facto de se considerar verdadeiro e preciso o
resultado de uma sessão divinatória moçambicana não pressupõe que o futuro ocorra
necessariamente de acordo com ele. Será então necessário clarificar que verdade é essa
e o que se espera que a adivinhação adivinhe.
Por um lado, espera-se que ela detecte a posteriori as razões subjacentes aos
acontecimentos passados, tornando-os compreensíveis e permitindo uma reacção eficaz
dos indivíduos, através da correcção das suas causas mais profundas ou da protecção
contra elas. Por outro lado, espera-se que a adivinhação vaticine quais os apoios e
obstáculos que se colocam a projectos futuros, de forma a permitir a adopção das
decisões, estratégias e precauções mais adequadas.
Assim, por muito verdadeira e exacta que se considere uma dada sessão de
adivinhação, nunca as causas diagnosticadas serão imutáveis ou se poderão considerar
assegurados os resultados pretendidos, por muito escrupuloso que seja o cumprimento
dos procedimentos receitados pelo adivinho. Isto porque as condições que estiveram na
base dos problemas actuais podem ser alteradas e, se o futuro não está predeterminado,
tão pouco depende apenas da actuação do cliente, visto cada acção individual ser apenas
um factor entre muitos outros, todos eles interagindo e influenciando-se mutuamente.
21
Por exemplo, uma paragem geral ocorrida na refinaria de Sines durante a década de 1990 foi causada por um gato
vadio que se foi aquecer à central eléctrica e morreu electrocutado, causando um curto-circuito que deixou a fábrica
sem energia.
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Dessa forma, a verdade que se espera seja revelada pela adivinhação por tinhlolo
não é o futuro, mas uma conjuntura presente de quadros de causas e relações – que virá
a ser influenciada pela agência do cliente e pela de muitos outros, vivos e mortos.
Estamos então perante a noção de uma realidade regulada, mas de tal forma complexa
que se transforma numa incerteza vivida, em que a capacidade de um indivíduo para
manipular os princípios de determinação que estão subjacentes aos acontecimentos não
é suficiente para o salvaguardar de danos, mas em que a sua ignorância acerca desses
princípios o poderia conduzir ao desastre.
Segundo esta perspectiva, são então úteis todas as formas de prevenção que
sejam pertinentes à luz dos princípios explicativos vigentes e da conjuntura que tenha
sido adivinhada, mas será também necessário acompanhar os desenvolvimentos que a
possam alterar e manter uma atitude de cautela para com novos factores.
Se alguns clientes esperam obter da adivinhação a revelação de um futuro certo e
se, apesar dos esclarecimentos em contrário fornecidos pelos adivinhos, esperam deles
receitas infalíveis que lhes permitam atingir os fins que desejam, isso já será abusivo
aos olhos dos adivinhos – e irracional, segundo Dan Sperber (op. cit.).
Partilhando a análise de riscos os mesmos obstáculos e relação com o caos
determinístico que a adivinhação moçambicana e incidindo como ela sobre uma
realidade que se rege por esse mesmo modelo, seria legítimo esperar que lhe fossem
colocados limites e reservas também eles adequados à natureza do tipo de verdade e
exactidão que produz.
Não é isso, contudo, que podemos verificar. A sua proeminência social induz,
pelo contrário, efeitos cognitivos perniciosos que os especialistas pouco ou nada fazem
para combater. Embora, conforme referi, a análise de riscos lide com uma parte limitada
dos perigos possíveis, abstraccione as correlações de factores de uma forma que
compromete a sua aplicabilidade prática e produza representações tendenciais que não
poderão ser mais do que indicativas, a imagem que projecta é bem diferente. Apresenta-
se como uma previsão objectiva e global, induzindo as ilusões de que é possível prever
de forma completa as incertezas tecnológicas e de que tomar medidas preventivas contra
aquelas que foram previstas é suficiente para evitar acidentes.
Por outro lado, mesmo sabendo-se que uma baixíssima probabilidade em nada
salvaguarda a possível ocorrência do fenómeno para que foi calculada, a utilização
retórica desses números como se eles se aplicassem a cada evento individual induz a
tendência para desprezar probabilidades de ocorrência muito baixas, independentemente
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até agora; mas, não sendo conhecidos ou deduzíveis nem os seus limites de resistência
nem parte dos problemas presentes e futuros, não passa de um wishful thinking.
Ora, sendo os crentes cientistas, estas crenças são irracionais.
Perante este quadro preocupante e os dados que adiantei, não chego ao ponto de
afirmar que adivinhos e analistas de risco façam essencialmente a mesma coisa, apenas
defendendo de forma diferente o seu poder. Mas parece que, mesmo para quem esteja
convicto de que os pressupostos probabilísticos sejam muito mais “reais” e eficazes do
que os pressupostos espiritualistas e mágicos, talvez tenhamos alguma coisa a aprender
com a modéstia epistemológica dos sempre imodestos adivinhos moçambicanos.
Afinal, alguém que tenha uma ideia apenas aproximada do que são
probabilidades e análises de riscos poderá estar a ser racional quando as encara de
acordo com as ilusões que referi – tal como acontece com alguém que, noutro contexto,
acredite em dragões com coração de ouro maciço. Mas o especialista que, conhecendo a
sua actividade e pressupostos, estimula essas imagens e ilusões está a reproduzir e a
apelar à irracionalidade. E está a pôr em causa, ao fazê-lo, a nossa segurança.
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