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RESUMO
No Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes, conhecido como
o segundo Discurso, Rousseau desenvolve o conceito de “faculdades virtuais” que compreende
a razão e a perfectibilidade fornecendo à razão um caráter ambíguo. Os objetivos deste trabalho
estão na investigação do “despertar” da razão e da perfectibilidade no homem primitivo,
analisando como o homem primitivo desenvolveu na sucessão dos tempos a razão e a
perfectibilidade. O que guiava o homem primitivo, antes mesmo da razão, eram os sentimentos
e as paixões, mas com a perfectibilidade e os desenvolvimentos sucessivos de suas
potencialidades o homem tornou-se racional. Essa investigação é importante para compreender
melhor o pensamento do filósofo, muito contraditório entre seus comentadores que o
consideraram, muitas vezes, irracional.
1
Graduando do Curso de Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais-SP.
1- Vida e obras de Jean-Jacques Rousseau
Em 1722 aos dez anos de idade Rousseau foi deixado pelo seu pai sob os cuidados de
um tio por parte de sua mãe chamado Bernard, pois seu pai após ter brigado com um soldado
francês decidiu fugir de Genebra, Bernard enviou Rousseau para estudar em uma escola em
Bossey dirigida por um pastor, que ficava fora dos muros de Genebra, era um cenário rural, e
Rousseau descreve sobre esse período:
O campo também foi uma experiência tão refrescante que nunca era o bastante
para mim. De fato o gosto que desenvolvi por essa vida foi tão forte que
permaneceu inextinguível, e a memória dos dias felizes e dos prazeres que
passei lá me fizeram desejar, todos os dias da minha vida, uma existência no
campo (ROUSSEAU, 1953, p. 23-24. Apud SIMPSON, 2009 p. 17).
Em 1740 Rousseau viaja para Lyon para trabalhar como professor para os filhos de um
nobre da família Mably. O Senhor Mably tinha dois irmãos, um deles era Abbé de Mably e o
outro tratava-se de Abbé de Condillac na época ainda jovem e que se tornou um dos maiores
filósofos daquele século muito conhecido como o padre ou abade de Condillac. Simpson conta
que nesse período “ele [Rousseau] fracassou como professor, mas obteve a experiência que o
substanciou para o resto de sua vida” (SIMPSON, 2009, p. 25).
Em 1742 já com 30 anos Rousseau deixa Lyon e viaja para Paris, mas o início de sua
chegada em Paris não foram tão difíceis assim, pois Rousseau “trazia consigo cartas de
recomendação da família Mably e de seus amigos em Lyon, que deram a ele acesso aos círculos
sociais mais elevados da metrópole.” (SIMPSON, 2009, p. 25). Logo ao chegar em Paris
Rousseau fez muito amigos, entre eles Denis Diderot.
Nesse mesmo período, Rousseau trouxe consigo uma proposta para um novo esquema
de anotações musicais que facilitariam o aprendizado dos músicos, Rousseau apresentou sua
proposta musical, porém sua proposta para o novo sistema foi rejeitado, segundo Simpson:
“alguns membros competentes da Academia, imediatamente, encontraram no sistema alguns
problemas que foram confirmados pelo grande compositor e teórico musical francês da época,
Jean-Phillipe Remaeu” (SIMPSON, 2009, pp. 25-26). Dessa forma sua chance de se inserir nos
círculos parisienses fracassou com a investida de Remaeu contra sua proposta musical; Remaeu
será mais tarde um dos inimigos de Rousseau, contra o qual Rousseau investe duramente com
críticas à música francesa. Conforme Starobinski:
Um dos períodos mais significativos, e não menos importante, de sua vida se deu em
1746 quando Rousseau foi convidado por Denis Diderot que estava trabalhando na
Enciclopédia ou Dicionário Enciclopédico (um marco do período das luzes); além de Diderot
estava trabalhando também nela o filósofo Jean d’Alembert. Rousseau foi convidado por
Diderot para escrever os verbetes de música. Assim Rousseau foi um dos que contribuiu para a
composição da Enciclopédia. “Ele [Diderot] encarregou Rousseau de escrever os artigos sobre
música, o que ele começou a fazer em 1748” (SIMPISON, 2009, p. 29). A Enciclopédia só foi
publicada por volta dos anos de 17551 e 1752 e teve várias edições.
[...] nós condenamos o dito livro [Emilio ou da educação] como contendo uma
doutrina abominável, própria a derrubar a lei natural e a destruir os
fundamentos da religião cristã; estabelecendo máximas contrárias à moral
evangélica; tendendo a perturbar a paz dos Estados, a revoltar os súditos
contra a autoridade de seu soberano; contendo um grande número de
proposições respectivamente falsas, escandalosas, plenas de ódio contra a
Igreja e seus ministros, transgressoras do respeito devido à santa Escritura e à
tradição da Igreja, errôneas, ímpias, blasfematórias e heréticas. Em
consequência, proibimos expressamente todas as pessoas de nossa diocese de
ler ou possuir o referido livro, sob as penas da lei (BEAUMONT, 2005, p.
235).
Rousseau morre em 1778 em Ermenonville, foi sepultado na ilha de Chopus, mas depois da
Revolução Francesa, em 1793 seus restos mortais foram transferido para o Pantheon de Paris e
considerado herói da pátria. Suas ideias influenciaram muito a Revolução Francesa
principalmente um dos principais líderes da Revolução o Maximilien Robespierre. Simpson
relata que em seu caixão estava gravada a inscrição: “Ele exigiu os direitos dos homens”.
A grande fama alcançada por Rousseau foi devida após a publicação de sua primeira
obra filosófica, o “Discurso sobre as ciências e as artes”, com o tema proposto pela Academia
de Dijon: “A restauração das ciências e das artes contribuiu para a purificação da moral?”.
Esta obra fora publicada em janeiro de 1751; e lhe rendeu não somente o prêmio da Academia
de Dijon, como também o grande sucesso como escritor e filósofo e também o prestigio dos
círculos sociais da época. “Logo publicado, o discurso explodiu como uma bomba,
transformando seu autor em escritor da moda.” (FORTES, 1989, p. 21).
Salinas Fortes conta que o Discurso, porém, não estava do gosto de Rousseau e que,
“[...] o primeiro Discurso, apesar do prêmio conquistado, é julgado severamente pelo próprio
autor, que o considerou carente de lógica e de ordem e, dentre as suas obras, ‘a mais fraca de
raciocínio’.” (FORTES, 1989, p. 40. Grifo do autor). Mas seu primeiro Discurso apesar de não
estar no gosto de seu autor, estava no gosto da moda, e causou grande impacto, escândalos e
polemicas na França do século XVIII, pelo fato de o Discurso defender que as “luzes” lançadas
pelo iluminismo junto com o progresso das ciências e das artes, teve influência negativa e, em
vez de gerar progresso causou um regresso, segundo Matthew Simpson a argumentação de
Rousseau era de que: “as ciências e as artes, longe de terem sido benéficas ou neutras, na
realidade, fizeram com que as coisas ficassem piores. Elas não somente falharam na melhora
da situação humana, como prejudicaram, positivamente, esta condição” (SIMPSON, 2009,
p.53).
A publicação dessa obra espantou toda a Europa do século XVIII e sua repercussão fora
quase que imediata, até porque ela iria contra todo o otimismo progressista do Iluminismo
naquele tempo; Rousseau se mostrou pessimista em relação às funestas e perigosas luzes acesas
pelo Iluminismo, por isso não é de se espantar que essa obra tenha obtido tanto sucesso assim
e causado grandes repercussões pela Europa. Esse trabalho provocou, portanto, fascínio e
muitas críticas positivas e também até negativas, fora um verdadeiro sucesso literário, conforme
Matthew Simpson: “Muitos pensadores proeminentes da época responderam ao seu trabalho
com crítica de elogio e fascínio, e isso o estabeleceu como uma figura importante da vida
intelectual dos meados do século em toda a Europa.” (SIMPSON, 2009, p. 49). Dessa forma,
seu primeiro Discurso foi um sucesso e também o estopim de inumeráveis polemicas, porém
em meio a tudo isso, esta foi a obra que consagrou Rousseau intelectualmente. Mas o Discurso
sobre as ciências e as artes é muito mais do que uma simples polemica, ele é também uma
condenação de seu tempo, uma crítica à sociedade francesa e ao movimento de ideias
decorrentes do Iluminismo, conforme Starobinski: “O Discurso sobre as ciências e as artes,
que marca a estréia de Rousseau na carreira literária, é a acusação do mal – do veneno – que
atinge as sociedades civilizadas à medida que progridem as ‘funestas luzes’, as ‘vãs ciências’.”
(STAROBINSKI, 2001, pp. 163-164. Grifos do autor).
Mas em novembro de 1753, a Academia de Dijon lança seu mais novo concurso com a
seguinte problematização: “Qual é a origem da desigualdade entre os homens, e a mesma é
autorizada pela lei natural?”2 Jean Jacques diz sobre esse tema em suas confissões: “Eu fiquei
2
A questão levantada pela Academia de Dijon possuiu algumas dificuldades de compreensão dada a sua
gama de significados, como a palavra “desigualdade”; “lei natural” e “origem” que Rousseau soube usar muito
bem na composição de seu Discurso. Lê-se na obra de Simpson: “[...] quando Rousseau se voltou para a questão
da origem da desigualdade, ele tinha em mente todas as desigualdades complicadas e sobrepostas que definem a
sociedade francesa, não somente sua dimensão econômica. [...] Ele interpretou, em particular, a questão da
Academia em termos de poder político no lugar do ganho monetário.” (SIMPSON, Matthew. Compreender
Rousseau. Rio de Janeiro: Vozes, 2011, p. 84). Rousseau mudou quase todo o contexto da pretensiosa pergunta da
Academia, continua Simpson: “[...] Rousseau mudou a estrutura da questão para se ajustar às suas próprias ideias
e aos seus objetivos. A Academia havia perguntado sobre a origem da desigualdade e se a mesma é autorizada
pela lei natural. Rousseau usou a abertura dada pela palavra “origem” para escrever uma enorme história
especulativa das instituições sociais humanas, retirando, na sua maioria, a ideia da lei natural da sua apresentação.
Ele mudou o título do seu trabalho para o ambíguo “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade”
e, com esse rótulo, apresentou uma teoria extraordinária da natureza humana e a justificativa das instituições
sociais. A questão que Rousseau realmente formulou e respondeu foi: por que existem pessoas de diferentes
intrigado por essa grande questão, e surpreso com a audácia da Academia em propô-la. Mas
desde que tiveram a coragem de fazê-lo, sou corajoso o suficiente para discuti-la, e assim me
dediquei a tal tarefa” (SIMPSON, p. 82, apud ROUSSEAU,1953, pp.361-362). Anos mais
tarde, em 1755 é publicada uma obra de maior importância o “Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos da desigualdade entre os Homens”. “Passados quatro anos depois do Discurso
sobre as ciências e as artes uma nova questão da Academia de Dijon forneceu a Rousseau a
oportunidade de desenvolver seus princípios” (STAROBINSKI, 2011, p.378. Adaptado). Com
efeito, Rousseau não desperdiçou essa oportunidade e, o segundo Discurso, foi a chance que
Rousseau teve para aprofundar as suas ideias que foram já tratadas no primeiro Discurso, assim,
o segundo Discurso fora a fundamentação do primeiro Discurso3, porém uma fundamentação
mais acertada, ordem e lógica corrigidas, Rousseau pôde rever seus raciocínios e escrever sua
obra com maior cuidado, segundo Matthew Simpson:
Este, porém, era um trabalho mais profundo, e sua influência nas gerações
subsequentes era incomensurável. Rousseau sabia desde o início que isso daria
a ele a chance de se expressar totalmente a respeito de suas ideias radicais
sobre a vida humana e a sociedade, portanto tomou mais cuidado em sua
composição, mais do que havia feito no primeiro “Discurso” (SIMPSON,
2009, p.82).
Entretanto, o Discurso sobre a Desigualdade não obteve o mesmo sucesso esperado que
o primeiro Discurso obteve: “O trabalho não teve nenhum impacto imediato, nada parecido
com o seu primeiro Discurso. [...] e, apesar de ter sido publicado logo depois de escrito, não
causou a mesma polemica que o trabalho anterior” (SIMPSON, 2009, p. 82). Rousseau não
escreveu o Discurso sobre a Desigualdade com a intenção de vencer o concurso, embora fosse
uma obra escrita para concorrer ao prêmio, para Starobinski Rousseau “já é conhecido, pouco
lhe importa agradar e ganhar o prêmio [...].” (STAROBINSKI, 2011, p. 378). Assim Rousseau
não tinha pretensão nenhuma em atrair os juízes da Academia. “Ele comentou que enviou o
trabalho com a certeza de que não ganharia o prêmio, pois sabia muito bem que não era para
trabalhos desse tipo que o concurso da Academia havia sido criado” (SIMPSON, 2009, p. 82).
A intenção de Rousseau era a de simplesmente rever princípios. E Rousseau estava certo, nem
posições políticas, sociais e econômicas e essas desigualdades são moralmente justificáveis?”. (SIMPSON,
Matthew. Compreender Rousseau. Rio de Janeiro: Vozes, pp. 87-88).
3
Para Salinas Fortes o primeiro Discurso não foi devidamente aprofundado pelo seu autor, mas sim é um
desenvolvimento do segundo: “o primeiro Discurso, [...] é apenas um desenvolvimento do segundo; as teses
expostas no primeiro discurso abordam apenas um aspecto derivado de uma questão muito ampla que somente no
segundo ganhou o aprofundamento devido.” (SALINAS FORTES, L. R. O Bom Selvagem. São Paulo: FTD, 1989,
p. 40).
mesmo a própria Academia olhou seu novo trabalho com bons olhos. Nas notas dos registros
sobre a apuração da obra de Rousseau é encontrado a seguinte observação: “Não se terminou
de lê-la em razão de sua extensão e de sua má tradição etc.” (STAROBINSKI, 2011, p. 379,
apud TISSERAND, 1936).
Com efeito, os jurados não puderam ler toda a sua obra, até pelo fato de que Rousseau
havia adicionado extensas notas de rodapé, além da densa complexidade e profundidade de sua
obra, que estava carregada de ambiguidades, e que causou extrema controvérsia entre os
estudiosos da época. E logo, sua obra se tornou alvo de densas críticas. Um dos críticos de sua
obra foi Voltaire, em uma carta que escreve ironicamente ele diz: “Meu caro Senhor, recebi
uma cópia do seu novo livro contra a raça humana, e agradeço muito. Ninguém nunca empregou
tanta inteligência para transformar a nós, homens, bestas. Sentimos uma vontade grande de
começar a andar de quatro depois de lermos seu livro” (SIMPSON, 2009, p. 100, apud
CRANSTON, 1991, p. 306).
Rousseau estava preocupado em desenvolver mais a fundo seus argumentos sobre a vida
humana e a sociedade, tão logo, se importava com o sucesso ou com a repercussão de seu mais
novo Discurso, Rousseau quer ir até as origens da desigualdade e da corrupção da sociedade ao
mesmo tempo em que poderia se defender das críticas “que os adversários do primeiro Discurso
taxavam de paradoxo e de sofisma” (STAROBINSKI, 2011, p. 379. Grifo da autor). Rousseau
era pretensioso, e logo, viu uma oportunidade para fechar essa lacuna deixada pelo Discurso
sobre as ciências e as artes. E esse paradoxo deixado pelo primeiro Discurso, consiste no
antagonismo da bondade natural do homem em relação ao mal que ele desenvolvera em
sociedade. Segundo Simpson:
[...] sua teoria da “bondade natural do homem”, que havia defendido pela
primeira vez no “Discurso”, levantou uma questão conspícua. Se as pessoas
são naturalmente boas, por que então são tão más? O primeiro “Discurso”
atribuiu isso, pelo menos em parte, ao desenvolvimento da alta cultura;
entretanto esta ainda não era uma resposta completa. Pois, se as pessoas são
naturalmente boas, então elas nunca deveriam ter desenvolvido as ciências e
as artes, ou deveriam ter feito somente coisas boas e não más com elas. [...] O
segundo “Discurso” tinha a intenção de resolver este paradoxo (SIMPSON,
2009, pp.82-83).
Rousseau, portanto, para suprir a carência de lógica, raciocínios e paradoxos deixados pelo
Discurso sobre as ciências e as artes, se utiliza do concurso da Academia de Dijon para difundir
e aperfeiçoar suas ideias radicais e lançar fundamentos sob o Discurso sobre a Desigualdade,
afim de, argumentar com maior empresa suas ideias. Rousseau quer, em outras palavras, limpar
a atmosfera de maus entendidos e polêmicas deixados pelo seu primeiro Discurso, quer
legitimar as ideias do primeiro Discurso a partir do segundo. Seu primeiro Discurso é uma
espécie de lagarta envolvida num casulo, que ao sofrer a metamorfose, virá a se transformar em
uma densa crítica contra a desigualdade da sociedade de sua época. Assim Rousseau pôde rever
uma série de argumentos que os acadêmicos e leitores mais rebuscados da época poderiam
exigir de coerência e eloquência de seu autor.
A principal proposta dos jurisconsultos era o de manter os direitos do homem que vivem
em estado pré-social assegurando, assim, seus direitos (a vida, a propriedade, a segurança, etc.),
mas principalmente a propriedade privada por meio de um contrato social feito com os
cidadãos, desse modo a sociedade civil garantiria a estabilidade de todos esses direitos que em
estado de natureza poderiam ser perdidos, pois os homens são violentos e tramam guerras entre
si, pondo em risco seus direitos. Otacílio Neto conta que “todos os jusnaturalistas seguiram à
risca esse modelo, exceto Rousseau, para quem o estado de natureza é a garantia de dois
princípios inalienáveis: a liberdade e a igualdade; princípios esses violados com a formação da
sociedade civil e a instituição da propriedade” (NETO, 2005, p. 327. Grifos do autor).
E temos uns dos primeiros pontos importantes que entram em confronto com a filosofia
de Rousseau são as: guerras ou conflitos em estado de natureza. Logo o genebrino irá refutar
Hobbes, supondo que o homem em estado de natureza não entra em guerra com seus
semelhantes, e que entre eles não há nenhuma rixa, uma vez que o homem natural é pacífico e
tímido. Enquanto Hobbes entende o homem natural portador da tirania e da maldade entre seus
semelhantes, Rousseau ao contrário entende que o homem em estado de natureza é amoral, ou
seja, “[...] os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bons [...]”.
(ROUSSEAU, 2015, p. 82). Em outras palavras o genebrino compreende o homem selvagem
como sendo bom, mas que se torna mal ao ingressar na sociedade. Nesse sentido, Rousseau
observa que:
É importante destacar, nesse ponto, que Rousseau não nega totalmente o pensamento de
Hobbes, pois para Rousseau: “A sociedade nascente deu lugar ao mais horrível estado de
guerra” (ROUSSEAU, 2015, p. 110). Nesse sentido Rousseau assimilou Hobbes em partes e se
não o negou nesse ponto foi porque aqui os conflitos começam a surgir, ou seja, as guerras só
acontecem na sociedade e não no estado de natureza, pois a propriedade na sociedade ainda não
é legítima e as guerras pelas propriedades ocorrem constantemente, diz Starobinski:
Umas das ideias muito em voga entre os naturalistas na época (exceto Rousseau) era de
que o direito à propriedade privada está inerente ao estado de natureza, isto é, muitos veem a
propriedade como um direito natural, principalmente na concepção de John Locke que trata da
propriedade no capítulo V do Segundo Tratado Sobre o Governo em que ele observa a
propriedade privada como algo comum em estado de natureza, onde ele argumenta que os frutos
produzidos pela natureza, quando colhidos tornam-se propriedade de quem os colheu e que a
esse respeito ninguém pode julgá-lo usurpador dos bens fornecidos pela floresta e por Deus:
E Ninguém poderá negar que tal alimento lhe pertença. Pergunto então:
Quando começaram a pertence-lhe? Quando as digeriu? Quando as comeu?
Quando as cozinhou? Quando as trouxe para casa? Quando as colheu? E é
evidente que, se a colheita, de início, não gerou a propriedade, nenhuma das
ações poderia tê-lo feito. Este trabalho estabeleceu uma distinção entre o
comum e elas; juntou-lhes algo mais do que fez a natureza, a mãe comum de
todos, tornando-as assim direito privado dele. E poderá alguém dizer que não
tivesse direito a colher essas bolotas ou às maçãs de que se apropriou por não
ter tido o consentimento da comunidade para que se tornassem dele? Seria
roubo tomar de tal maneira para si o que era comunitário? Se um tal
consentimento fosse necessário, o homem morreria de fome, apesar da
abundância que Deus lhe deu (LOCKE, 2011, p. 30).
Locke argumenta que o trabalho do homem sobre qualquer coisa que ele venha a retirar
do estado de natureza tornam-se propriedade sua, os argumentos de Locke são vários e simples
de serem compreendidos, me limitarei a dispô-los todos aqui até porquê esse não é o objetivo
deste trabalho, mas para simplificar como ocorre a propriedade privada no estado de natureza
de Locke, utilizarei um pequeno excerto de sua obra:
[...] a lebre que alguém está caçando, considera-se daquele que a persegue
durante a caçada, pois, sendo o animal selvagem ainda comum, e que não é
propriedade de um indivíduo particular, aquele que empregou trabalho para o
descobrir e persegui-lo retirou-o do estado de natureza em que era comum, e
deu início a uma propriedade (LOCKE, 2011, p. 31).
Além disso para Rousseau o homem no “primeiro estado de natureza” não conhece o
trabalho, ele recebe tudo da natureza e, é somente no “segundo estado de natureza” que o
trabalho surgirá e também as divisões de trabalho gerando desigualdades e injustiças. Rousseau
não nega que o homem trabalha e que de sua mão-de-obra surja a propriedade, mas nega que a
propriedade faz parte do homem natural. Rousseau alega que, quando um homem precisou do
socorro de outro homem “percebeu que era mais útil a um único ter provisões para dois, a
igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho se tornou necessário”
(ROUSSEAU, 2015, p. 104), antes disso, portanto, o homem não tinha “necessidade de recorrer
a qualquer esforço para arrancar de uma natureza pródiga os frutos necessários à sua
sobrevivência” (FORTES, 1989, p. 54), ou seja, os selvagens não possuíam noção de trabalho
articulado.
O terceiro ponto destoante que afasta Rousseau dos jusnaturalistas e filósofos políticos
é em relação a: sociabilidade. Para os naturalistas da época era uma tendência natural do homem
em estado de natureza ser propenso a socialização já que muitos animais vivem em grupos o
homem deveria viver também em grupo, segundo Matthew Simpson:
A exemplo dessa tendência temos o filósofo e naturalista romano Sêneca que defende a
sociabilidade. Ele é um dos naturalistas mais antigos dessa concepção. Para ele: “a natureza
gerou-nos como uma só família; [ela] faz-nos sentir amor uns pelos outros, e aponta-nos a vida
em sociedade” (SÊNECA, 1991, p. 519, apud ESPÍNDOLA, 2005, p.279). Desse modo Sêneca
entende que os homens em estado de natureza procuravam a socialização de forma natural, isto
é, a sociabilidade era uma processo natural e inevitável entre os seres humanos.
Podemos perceber, portanto, que a teoria da lei natural propostas por Rousseau é, no
mínimo, original e embaraçosa, distinguindo-se dos modelos clássicos de lei natural e
consequentemente de estado de natureza, pois suas propostas afirmam constantemente que o
homem não tramava guerras em estado de natureza, que o homem não tinha noções de
propriedade e muito menos de sociabilidade, pontos cruciais e relevantes que faziam parte dos
modelos de estado de natureza de seus antecessores, uma vez que, quase todos concordavam o
contrário de que Rousseau discordou. Simpson conta que pela complexidade e radicalidade de
sua proposta ele pode até sair dessa tradição da lei natural:
Quando escreveu seu segundo “Discurso”, ele aceitou o método geral dessa
tradição. Começou com uma análise da natureza humana, da qual tentou
descobrir qual o tipo de vida e qual o tipo de regra moral apropriados. E,
mesmo na superfície, existe uma diferença da ideia da lei natural de Rousseau
e de seus predecessores. Ele propôs um discurso evolutivo da humanidade, de
acordo com o qual a natureza humana muda dependendo das condições
ambientais e sociais. Isso torna sua ideia da lei natural mais complicada do
que a dos outros nessa tradição e, na realidade, pode até colocá-lo fora dessa
tradição, especialmente quando prosseguiu negando que os humanos são
necessariamente sociais (SIMPSON, 2011, p. 87).
Porém o estado de natureza de Rousseau é um estado em que o homem jamais poderá voltar a
ele, não existe um retorno, um regresso ao estado de natureza, esse paraíso está agora além do
homem, todas as sociedades que dele se afastaram não encontram mais nele o seu repouso. Dirá
Starobinski: “Se teria sido preferível, para o homem, jamais abandonar sua condição primitiva,
doravante não temos mais escolha” (STAROBINSKI, 2011, p. 396), e termina em outro ponto
“o caminho do retorno está aberto apenas aos sonhadores” (STAROBINSKI, 2011, p. 394).
Comecemos, logo, por afastar todos os fatos, pois nenhum respeito dizem à
questão. Não se deve considerar as pesquisas, a que se pode recorrer sobre
esse assunto, como verdades históricas, mas somente como raciocínios
hipotéticos e condicionais, mais adequados para esclarecer a natureza das
coisas do que para apontar-lhes a verdadeira origem [...]” (ROUSSEAU, 2015,
p. 55).
Mas, se por um lado, as descrições do estado de natureza são hipotéticas como o próprio
autor admite que “só poderia formar sobre esse tema conjecturas vagas e quase imaginárias”
(ROUSSEAU, 2015, p.59), por outro, Rousseau procurou fundamentos sólidos para a sua
argumentação, principalmente nos relatos dos viajantes, nos filósofos do contratualismo, nos
jurisconsultos e naturalistas estudiosos da corrente do Direito Natural, como Thomas Hobbes,
Richard Cumberland, Hugo Grotius, Wollf, Samuel Pufendorf, Jean-Jacques Burlamaqui,
François Corréal, Condillac, Barbeyrac, etc.. Mas além de todos esses nomes, o principal
naturalista e filósofo recorrido por Rousseau é Georges-Louis Leclerc o conde de Buffon
famoso por sua história natural; a esse respeito nos diz Starobinski que “Rousseau, no Discurso
sobre a desigualdade, e sobretudo nas notas desse texto, recorreu muito abertamente à História
natural. Sobre todas as questões de ciência, é a autoridade de Buffon que o Discurso alega
constantemente” (Starobinski, 2011, p.435. Grifo do autor). Assim utilizando-se desses
estudiosos do naturalismo Rousseau pode conferir importância cientifica à sua obra.
Rousseau quis afastar de seu trabalho todos os fatos e dados históricos sobre o estado
de natureza, pois diferente de seus sucessores da escola do Direito Natural e de todos os
Jurisconsultos, ele segue um método diferenciado a respeito do estado de natureza, ele alega
que os filósofos dessa Escola não foram fiéis o suficiente para descrever o hipotético estado de
natureza em que o homem se encontrava, o retrato do homem selvagem pintado por eles não
passa de um simulacro, não passa de uma cópia do homem civil projetada para o estado de
natureza. Conforme Rousseau:
Com efeito, afastando todos os dados científicos de sua obra, Rousseau pode ter mais
liberdade na composição de suas ideias, assim, por mais que Rousseau tenha se baseado nos
naturalistas, ele agora possui trânsito livre para pintar um novo retrato do homem primitivo, um
homem que só se tornou homem ao ingressar na sociedade, um homem que não possui nenhum
traço do civil, não conhece corrupção e desigualdades. Desse modo, sua genialidade fora tão
grande e inovadora que o fez se distinguir e apagar todos seus antecessores do Direito natural.
“Pouco importa que Rousseau tenha tomado a sua herança aos filósofos, aos jurisconsultos, aos
naturalistas, aos viajantes: ao integrar à sua obra o material que lhe fornecem os seus
predecessores, ele os faz desaparecer e nos dispensa de a eles recorrer.” (STAROBINSKI, 2011,
p. 388).
Apesar de ser paradoxal pensar em um estado natural hipotético do homem sem ter
nenhum fundamento, Rousseau não pode ser visto como um filósofo sem rigor. Para Fortes o
genebrino “não procedeu a uma investigação abstrata sobre os atributos que constituem o
homem. Ele interpretou a evolução desde os primórdios até os dias de hoje” (FORTES, 1989,
p. 39). E se Rousseau interpretou mal, talvez não seja por falta de pesquisas que seu Discurso
possui uma lógica sedutora e eloquente, pois segundo Simpson: “As ciências da antropologia e
arqueologia estavam ainda no início de suas existências e a única evidência que poderia oferecer
sobre a pré-história da humanidade vem das narrativas de viajantes sobre as tribos primitivas e
os orangotangos.” (SIMPSON, 2009, p. 100).
De fato, Rousseau, não poupou esforços para empregar em seu trabalho todos esses
relatos, se por um lado Rousseau se afastou de fatos históricos, por outro ele empregou muita
empresa e confiança nos relatos dos viajantes já que o texto de sua obra e as notas estão repletas
de relatos dos mais diferentes viajantes que viajaram para os mais diferentes locais como Japão,
México, Cuba, Chile, África, Brasil, etc., repletas dos relatos das tribos primitivas como os
caraíbas da Venezuela e da África como também dos hotentotes do Cabo da Boa Esperança,
além de que não faltam os relatos fabulosos de animais como os orangotangos, pongos e
mandrills descritos pelos viajantes como sendo monstros, também não faltam relatos de
“crianças selvagens” como os encontrados em, Hesse, Lituânia, Hanôver, nos Pireneus, etc.,
que entraram em contato com os homens civilizados e que despertam a curiosidade no leitor.
Sua obra está repleta de relatos impressionantes que encantam mais do que demonstram alguma
verdade. Segundo Starobinski:
Por certo, nenhuma das sociedades que eles [viajantes] descreveram nos
mostra o homem da natureza em sua integridade: aos olhos de Rousseau, os
caraíbas e os hotentotes estão já “desnaturados”, diferenciados pela cultura;
mas estão longe atrás de nós que, ao nos voltar para eles, olhamos na direção
da origem. Atrás desses homens enfeitados de plumas e de ocre, o olhar vê
elevar-se a imagem de um homem nu e solitário. (STAROBINSKI, 2011, p.
391).
Sua obra, portanto, não se trata de uma simples conjectura, mas sim de uma grande
investigação acerca do homem e que não podemos analisá-la com preconceitos. Segundo a
visão do suíço Starobinski o segundo Discurso “[...] não é apenas um requisitório como o
primeiro Discurso: é uma investigação” (STAROBINSKI, 2011, p. 388. Grifo do autor.
Adaptado). E em sua investigação antropológica é descrito o homem selvagem tal como sua
passagem do estado puro de natureza para o estado civil.
No entanto, se não sabemos se o estado natural realmente existiu, se não é possível tomá-
lo como verdades históricas, a não ser, por simples hipóteses e meras conjecturas, então por quê
Rousseau argumentou sobre algo que pode não ter existido? Para o filósofo suíço Jean
Starobinski é preciso pôr o estado natural como uma hipótese para assim medir um grau zero
na história: “O estado de natureza, nos diz Rousseau, talvez jamais tenha existido. Que seja. É
preciso contudo colocá-lo como hipótese, pois só se pode medir as distâncias em história com
a condição de ter previamente determinado um “grau zero” (STAROBINSKI, 2011, p. 395).
Dado um grau zero, isto é, um começo da história humana (que não pode ser conhecido
plenamente por ser hipotético, mas que não existia desigualdade e corrupção) é possível
formular o processo histórico que levou o homem até as corrupções da sociedade e que,
diferente do estado natural, pode ser muito bem conhecido e distinguido, pois junto com o
surgimento das sociedades é inaugurado a “propriedade privada”, fonte de todas as
desigualdades, com efeito, fixado um grau zero é possível saber quando o “paraíso” do homem
se sucedeu e quando ele veio a sua total ruina entrando em devir histórico e podendo processar
com clareza o momento em que a desigualdade (objeto de estudo do segundo Discurso) se
introduz na história humana, como aponta Salinas Fortes:
Outro método utilizado por Rousseau (talvez o mais coerente de seus métodos) para
descrever este estado original e hipotético do homem é a “introspecção”, isto é, um olhar para
dentro de si. E esse olhar para dentro de si é o olhar para dentro do próprio Rousseau. Quando
Rousseau se desloca para a floresta de San Germain para escrever seu segundo Discurso ele
parece ter refletido sobre sua própria constituição, a fim de, descrever este estado que não existe
mais, pois a única fonte de conhecimento possível para descrever à esse estado e ao homem
com tanta empresa é a autorreflexão, é entrar para dentro de si mesmo e se pôr no lugar dos
selvagens primitivos, é deixar fluir toda a imaginação possível sobre esse estado em que
Rousseau, em outras palavras, pôs a opinião dele. É assim que Rousseau dá vida ao homem
primitivo e deixa, por um instante de devaneio, o seu mundo atual e põem-se no mundo
imaginário e hipotético do estado de natureza, segundo Cassirer:
Rousseau foi um filósofo um tanto controverso de sua época. Avesso aos progressos das
ciências e das artes e à propagação das luzes acesas pelo Iluminismo, ele se posiciona contra
toda a ideia de progresso que aquela época estava vivendo e sentindo. O período das “luzes”,
assim chamado o período do Iluminismo que visava apagar por completo as trevas da Idade
Média, possuía uma confiança radical na “razão”, conforme Salinas Fortes: “O que caracteriza
as Luzes, além da valorização do homem [...], é uma profunda crença na Razão humana e nos
seus poderes.” (FORTES, 1981, p. 9). É inequívoco que Rousseau tenha feito oposição aos
progressos do Iluminismo de seu tempo, pois lê-se no Discurso sobre as ciências e as artes que
“as ciências, as letras e as artes, [...] estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de ferro
com que eles [os homens] são esmagados.” (ROUSSEAU, 1959, p. 7 apud STAROBINSKI,
2011, p. 12). Mas também é inequívoco que ele tenha criticado a poderosa razão que os
iluministas tanto confiavam, conferindo à ela um valor totalmente novo.
Atacar a razão foi um tema caro a Rousseau que ao se posicionar contra o poder
intelectual vigente é acusado de ser um “irracionalista”4 radical, o que gerou intensa confusão
e discussão sobre o verdadeiro pensamento do filósofo tanto em seu época como em épocas
posteriores e atuais. No entanto, Rousseau, de forma alguma deve ser confundido com um
irracionalista que desconfia do poder da razão, até porque, segundo Derathé, ele não o é5. O
sábio de Genebra quis simplesmente empregar uma libertação do intelectualismo exagerado da
época, uma vez que, toda a confiança daquele período estava empregada na razão, para ele a
razão não é a única segurança em que o homem pode se apoiar. Assim o século das luzes pode
ter sido marcado pela razão, mas Rousseau o quis marcá-lo pelos sentimentos e pelas paixões.
Os sentimentos e as paixões são novos elementos inseridos no pensamento do século XVIII:
Jean Starobinski comenta em sua obra “La transparence ou l'obstacleque” que a crítica
do sábio de Genebra, todavia, não é dirigida à qualquer razão. “Quando Rousseau condena a
razão, incrimina sobretudo a razão discursiva.” (STAROBINSKI, 2011, p. 61). A razão que o
genebrino condena é a razão raciocinante, a razão instrumentalizada que Kant denominou de
entendimento, é justamente essa razão que tira o homem da via imediata, Rousseau é
racionalista, porém pela via intuitiva e imediata. Para Rousseau sentimentos e paixões se
conciliam bem, mas não ocorre o mesmo com o mediato. Tudo o que não é imediato, todavia,
4
Ernest Cassirer em seu ensaio “Das Problem Jean-Jacques Rousseau” refuta aqueles que defendem
Rousseau sendo um irracionalista como, por exemplo, Edmund Burke. Segundo Cassirer: “Ambíguo e incerto
torna-se o julgamento quando tentamos confrontar o universo das ideias [sic] de Rousseau com a oposição
tradicional entre “racionalismo” e “irracionalismo”. É inequívoco que ele se afastou daquela glorificação da
“razão” vigente no círculo dos enciclopedistas franceses, e que, perante ela, ele se reporta às forças mais profundas
do “sentimento” e da “consciência moral”. Mas, por outro lado, foi justamente esse “irracionalista” que, em meio
às lutas mais intensas contra os “filósofos”, contra o espírito do Iluminismo francês, anunciou que as ideias [sic]
mais sublimes da divindade, das quais o homem seria capaz, eram fundadas pura e exclusivamente na razão: “Les
plus grandes idées de la divinité nous viennent par la raison seule”. E, além disso, foi esse irracionalista que
ninguém menos que Kant comparou com Newton, chamando-o de Newton do mundo moral.” (CASSIRER. A
questão Jean-Jacques Rousseau, 1999, p. 41).
5
Seguindo a mesma esteira de Cassirer, Robert Derathé também afirma o genebrino como um
racionalista, aliás, um racionalista consciente do uso e limite da razão e investe contra Pierre-Maurice Masson.
Escreve Derathé em seu famoso texto “Le rationalisme de J.-J. Rousseau”: “A lição que se depreende dos escritos
de Rousseau não é a que Masson deduz. Rousseau jamais acreditou que alguém devesse abster-se de usar sua razão
– o que seria, propriamente, um absurdo –, mas, ao contrário, quis nos ensinar a dela fazer bom uso.”. (DERATHÉ.
Le rationalisme de Jean-Jacques Rousseau, Paris: PUF, 1948. Trad. Suzana Albornoz, p. 28).
é acusado por ele, sua escolha é o imediato e não o irracional. Rousseau voltará a tomar uma
postura racional quando pode sujeitar-se à razão intuitiva que é capaz de uma iluminação
imediata. A razão raciocinante é atacada por Rousseau, uma vez que, ela aprisiona os homens
na opinião e na ilusão; os falsos raciocínios formulados sem clareza pelos homens são contrários
à boa razão:
6
Cf. Natália Carminatti: “Até o século XVIII toda explicação era concedida pela ciência e pela razão. A
“Era das Luzes” acreditava no progresso e desconhecia o poder do irracional. Em Les rêveries du promeneur
solitaire foi valorizada a parte irracional da personalidade.” (CARMINATTI. Memória e morte: uma intersecção
entre ser e escrever em Les rêveries du promeneur solitaire, de Jean-Jacques Rousseau, 2014, p. 81).
A iniciativa de render-se à sensibilidade era a de retratar a natureza humana de um
ponto de vista diferente. Enquanto muitos iluministas a retratavam pelo poder racional, ele a
retratava pelo predomínio sentimental; enquanto muitos a retratavam pelo poder reflexivo,
Rousseau o retratava pelo predomínio da sensibilidade, etc.; em outras palavras Rousseau
examina e disseca o homem de dentro para fora, começando pelos seus instintos, depois pelos
seus sentimentos mais profundos e pelas suas paixões, a fim de, chegar a sua constituição
original. Dessa forma Rousseau escava mais fundo na antropologia humana do que qualquer
razão instrumental. É o que nos lembra Reale e Antiseri: “Deixada ao seu livre
desenvolvimento, a natureza leva ao triunfo dos sentimentos, não da razão; do instinto, não da
reflexão; da autoconservação, não da opressão. O homem não é somente razão, aliás,
originalmente o homem não é razão, mas sentimentos e paixões.” (REALE & ANTISERI, 2004,
p. 281). É nesse sentido que devemos entender o homem como um ser sensitivo que vive no
imediato, a sua origem é o sensível e tudo aquilo que coloca o homem na objetividade ou no
mediato deve ser considerado como uma corrupção, um estado aquém do original.
Entretanto, não devemos tomar a razão nesse Discurso como um conceito já acabado e
definitivo, pois (mantendo a unidade das obras de Rousseau) no segundo Discurso a razão está
ainda inacabada, ela está em seu estado passivo, e se Rousseau exalta nesta obra uma razão
ambígua, em outras obras como a Nova Heloísa exalta a razão como sendo dom de Deus. Em
outras, uma razão não mais passiva, mas ativa e como condição importante para a evolução da
consciência humana como, por exemplo, no Emílio em que o genebrino dá um valor diferente
à razão do segundo Discurso. Nessa obra a capacidade de reflexão possuiu uma norma
pedagógica, de acordo com Starobinski (2011, p. 280-281):
Por mais profunda que seja a nostalgia de Rousseau pelo imediato da vida
sentida e do instinto, ele reconhece, no Emílio, que a sensação ainda supõe
apenas um ser passivo. Para que o homem se realize, é preciso que manifeste
o “princípio ativo” de sua alma, é preciso que julgue, raciocine, compare. [...].
Tais afirmativas esclarecem que o homem não está privado da razão. A razão pode sim
interferir no homem e modifica-lo, evoluindo a sua consciência, mas a razão só terá o poder de
intervir na natureza do homem quando for o momento certo, quando o menino Emílio estiver
em sua maturidade, está também será a visão de Derathé que afirmou que usar a razão
prematuramente conduz ao verbalismo e corrompe o juízo que está se formando. Desse modo
a atividade reflexiva, constitui-se uma fase intermediária entre infantilidade e maturidade. A
razão desperta o sentimento moral, é a síntese entre reflexão e sensibilidade:
Dessa maneira percebe-se que enquanto o homem está em estado natural sua razão
mantém-se inoperante e essa mesma razão não lhe faz falta nenhuma, pois ela não é uma
necessidade para o homem, ele pode muito bem se conduzir pelos seus instintos naturais. Mas
dada a saída do estado de natureza e o homem vivendo em sociedade necessita de uma
pedagogia natural que o faça sair de seu primitivismo instintivo e fazer uso de sua reflexão, o
homem saí do sensível e parte para o reflexivo, é importante que ele aprenda a raciocinar, está
é a visão que Rousseau transmite em Emílio; completamente o oposto que ele transmitiu anos
antes no Discurso sobre a desigualdade, mas que em nada entram em contradição, mas antes
se complementam.
Assim, longe de ser um irracionalista radical, Rousseau não pode ser visto como um
executor sumário da razão, pois ele põem em destaque a interioridade do homem primitivo e
que este é dotado também de sentimentos e paixões; o homem não pode ter somente a sua razão
considerada em detrimento de todas as outras virtudes, tal é a condição do homem primitivo do
estado de natureza rousseauniano que vive primeiramente a sensibilidade. Essa é a natureza
humana que o sábio de Genebra identificou no homem, assim a razão é uma faculdade
tardiamente anterior à esses princípios, que só se desenvolverá com a ajuda de condições
externas (como veremos mais adiante). Rousseau torna-se, por assim dizer, o pai, o defensor do
primado dos sentimentos e das paixões. O irracionalista entre os Iluministas, mas o
irracionalista que confia na razão e está ciente de suas capacidades, e que não negará a razão,
mas verá algo mais profundo que a mesma, verá o seu fundo primitivo: a sensibilidade.
Em palavras simples, o homem primitivo vive sem nenhum mal que lhe possa prejudicar
seriamente, o homem é puramente ingênuo frente o mal, ele possuiu a inocência original, não
existe corrupção nele e nesse momento: “O homem experimenta então um contato límpido com
as coisas, que ainda não é turvado pelo erro: os sentidos, limitados a si mesmos, não
contaminados pelo juízo e pela reflexão não sofrem nenhuma distorção.” (STAROBINSKI,
2011, p. 41. Grifo meu). Mas é quando as potencialidades tornarem-se ato que ocorrerá a
distorção, pois o problema fundamental é a questão do imediato; refletir, pensar, raciocinar,
fazer progressos, deixar o estado natural, etc., significa sair do imediato e partir para o mediato.
Eis a distorção que o homem sofrerá!
Mas como ocorre essa passagem do estado de natureza para o estado social? Do estado
a-histórico para o histórico? Ou do homem natural para o homem moderno? Essa passagem
corruptora do homem só pode ser efetivada pela perfectibilidade, é a presença dela que torna
possível a corrupção do gênero humano. Todas as outras faculdade decorrentes da
perfectibilidade levam o homem à sua corrupção ou desnaturação, suas faculdades logo que
despertas irão conduzir o homem por um longo processo e o levarão para a civilização para o
estado histórico, pois o progresso é irreversível. Adriano Martins aponta que “[...] a história do
homem é, também, a história do seu processo civilizatório rumo a formas de corrupção e
desigualdade cada vez maiores. Isto é, do distanciamento da natureza e da imersão cada vez
mais intensa num tipo de vida artificial e civilizada.” (MARTINS, 2011, p. 100).
Antes da história os homens levam uma vida natural longe da artificial, poucos esforços
lhes eram necessários para retirar da floresta a sua subsistência comum, poucos males o afligiam
em uma natureza que possuí para qualquer mal qualquer remédio, nenhum perigo poderia lhes
causar medo da morte. O homem vivia ocioso, e com desejos que se limitavam ao imediatismo
de sua existência atual, o homem não saía fora de si, o homem vive no instantâneo, no imediato
em equilíbrio com as suas necessidades, pois sua capacidade de retirar o supérfluo da natureza
são limitadas para ter-lhes necessidades de retirar-lhe coisas maiores do que os que já possuí,
assim o homem vive de forma moderada e imediata, conforme Rousseau (2015, p. 71):
Quase nada poderia atormentar este estado de felicidade e harmonia em que o homem
estava inserido à não ser os obstáculos da natureza (condições externas) que ativaram as suas
“potencialidades” e os conduziram para um processo migratório até o estado social. É nesse
estado que os males atingem os homens por todos os lados, por todos os ângulos possíveis em
que a propriedade os alcança e lhes causa a desigualdade, princípio de sua infelicidade. Assim
de uma natureza imediata e rica eles passam a ter que se esforçar para tirarem dela algum
sustento; de um corpo saudável eles são degradados pelas doenças artificiais criadas em
sociedade; e o pior de tudo é que “[...] ao afastar-se da condição animal, o conhecimento da
morte e de seus terrores é uma das primeiras aquisições que o homem faz.” (ROUSSEAU, 2015,
p. 70).
Para o genebrino os selvagens agem como os animais: “[...] [os homens] disperso entre
eles [os animais], observam, imitam a sua indústria e elevam-se, assim, até o instinto dos
animais [...]” (ROUSSEAU, 2015, p. 60). O instinto será a única peculiaridade do homem em
estado de natureza (ele não possui razão ativa nesse momento), o instinto define o seu caráter e
delineia o seu perfil “´o homem da natureza’ agia unicamente por instinto, ele não era dotado
da faculdade da reflexão intelectual; mas não necessita de algo a mais, o instinto [sensibilidade]
lhe era suficiente para orientar-lhe no mundo da natureza, sempre parecido e homogêneo”
(BACZKO, 1979, p. 135 apud MARTINS, 2011, p. 29), o homem selvagem vive de forma
semelhante à dos animais, mas junto ao instinto existem dois princípios que são anteriores à
razão e que norteavam o homem instintivo são: o amor de si e a piedade natural7, o primeiro
contribui para a preservação do indivíduo já o segundo para a preservação da espécie toda.
Assim, as primeiras operações efetuadas pelos homens, são operações instintivas, segundo
Rousseau (2015, p. 69):
7
Para Rousseau esses dois princípios são produtos do instinto e funcionam independentemente da razão,
segundo Rousseau: “[...] meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio perceber
nela dois princípios [amor de si e piedade natural] anteriores à razão, dos quais um nos interessa fortemente para
o nosso bem-estar e para a nossa própria conservação e o outro nos inspira uma repugnância natural em vermos
perecer ou sofrer qualquer ser sensível e, principalmente, nossos semelhantes.” (ROUSSEAU. Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da desigualdade entre os Homens, 2015, pp. 45-46). É somente com a razão que essas
duas virtudes entrarão em conflitos com a natureza do homem.
Podemos constatar que os selvagens primitivos viviam como os animais, porém não são
iguais aos animais, pois o homem é dotado de algumas características que por excelência lhes
dão a distinção devida à dos demais animais. Rousseau coloca o homem selvagem como um
homem animalizado, mas que em nada pode ser tomado como um animal ipso facto. O homem
é animal até certo ponto, até quando ele deixar de ser animal.
Mas o que distingue verdadeiramente os homens dos animais? São, tão logo, a liberdade
e a perfectibilidade. Essas duas potencialidades são exclusivas do homem primitivo, nenhum
animal as possuí. Rousseau não considera o “entendimento” como um fator extremamente
principal e primordial daquilo que distingue o homem do animal, mas sim entende que os
animais assim como os homens podem formular ideias, pois os animais são sensitivos e
instintivos, porém os animais combinam ideias até certos pontos, já o homem além de formular
ideias vive-as mais intensamente, sendo a intensidade de suas ideias a diferença das ideias dos
animais. Essa intensidade de ideias está relacionada à fala articulada, motivo pelo qual o homem
cria ideias mais complexas. Nesse interim Rousseau identifica a liberdade como a primeira
distinção fundamental do homem:
Rousseau entende que a perfectibilidade é um aparato útil para o homem manter a sua
preservação, já que ela faz com que ele ultrapasse os obstáculos que impedem à sua
conservação, e por conseguinte, sem ela o homem pereceria. Ela é vital para a sua
sobrevivência. No entanto, ao mesmo tempo em que ela gerencia essas capacidades humanas
ela lhe provoca males, pois seus desenvolvimentos supõe progressos e esses progressos o
afastam de sua natureza primitiva. Nesse sentido, a perfectibilidade é, pois, positiva, mas é
também negativa, pois ao mesmo instante em que ela desenvolve e aperfeiçoa o ser humano,
sua razão, suas virtudes, sua linguagem e todas as suas vantagens, ela também desperta seus
erros e seus vícios, afastando o homem da sua condição natural e colocando-o contra si mesmo.
8
Conforme Michel Launay: “Perfectibilidade é uma tradução científica e precisa da palavra vulgar
liberdade, a qual esconde muita confusão. Ela simplesmente expressa a ideia[sic] de que o homem pode
transformar-se, o que não parece ser o caso dos animais, a menos que eles próprios sejam transformados pelo
homem, isto é, humanizados e degradados, como são os animais domésticos.” (LAUNAY. Jean-Jacques
Rousseau, écrivain politique, p. 207. Grifos do autor. Tradução do autor. Apud MARTINS. A corrupção e a
perfectibilidade: A questão em Jean-Jacques Rousseau. Tese de Doutorado, Belo Horizonte: UFMG, 2011). A
liberdade, portanto, muitas vezes relacionada à perfectibilidade como sendo uma das causadoras da saída do
homem do estado de natureza, não é senão uma espécie de “sinônimo” da palavra perfectibilidade.
9
Salinas Fortes apontou muito bem em sua tese de Doutorado “Rousseau: da teoria à pratica” que: “Às
ordens da Natureza, o animal responde segundo um aparato preestabelecido: a plena eficácia corresponde ao
funcionamento de uma ordem quase mecânica sem brechas. A liberdade altera esta relação. Com ela, surge a
possibilidade de não-obediência [do homem] às ordens da Natureza; [...].” (FORTES. Rousseau: da teoria à
prática, 1976, p. 63). Desobedecendo à Natureza o homem poderá livremente emancipar-se independentemente
dela, o animal pelo contrário é limitado à ela, ele está preso às suas ordens rigorosas. A brecha que o homem possui
para não permanecer como o animal é a sua liberdade, motivo pelo qual ele não é um autômato e pode escolher
aperfeiçoar-se ou recusar o aperfeiçoamento.
estarem intimamente ligadas a desnaturação do homem, enquanto a primeira concorre ao
indivíduo somente, a segunda concorre para toda a espécie do gênero humano.
O homem, como já fora dito, vive no instinto. Mas dizer que o homem é instintivo não
significa dizer que ele não possua capacidades racionais e de que ele não precise da razão. Muito
pelo contrário, Rousseau não enxerga o homem como um ser irracional que não possuí razão e
que não seja capaz de pensar, sua razão surge através de um longo processo que ativará o seu
potencial racional; na verdade a razão só aparecerá quando o homem estiver socializado em
grupos já que no estado de natureza é impossível raciocinar em isolamento; a razão é, portanto,
uma faculdade da alma humana, mas que no homem primitivo encontra-se em estado latente,
ela está adormecida, segundo Salinas Fortes:
Rousseau não negará que o homem pensa, mas atribuirá à sua Razão um
estatuto diferente do tradicional. A capacidade de conceber ideias [sic] sobre
as coisas não se acha dada em sua plenitude; desde o início ela só se constituirá
ao longo de um processo laborioso. No homem primitivo, essa Razão de que
tanto nos orgulhamos e essa inteligência de que tanto dependemos só se
encontram em estado “virtual”, como algo que ainda não se manifestou
plenamente e que necessita de estímulo para se “atualizar”, ou passar de uma
condição de sono para a plena vigília (FORTES, 1989, p. 54).
Mas o que significa, então, dizer que a razão do homem primitivo se encontra dormente
no homem? E qual é o processo que trará à tona o seu despertar pleno? Para Rousseau a razão
adormecida é uma razão que ainda não está em uso, isto é, que existe como uma faculdade
contida dentro do homem, porém sem efeito atual, é uma razão em “potência” que só virá a se
tornar razão em “ato” quando o homem cair em uma espécie de devir de sua própria condição
natural, tornando-se assim “racional”, segundo Starobinski: “Através das vicissitudes do devir
histórico o homem atualiza suas faculdades virtuais: não é de imediato um animal racional;
torna-se racional ao deixar de ser animal.” (STAROBINSKI, 2011, p. 393). Essas vicissitudes
são, em outras palavras, as mudanças ocorridas na passagem do isolamento para o convívio
social. É dentro desse convívio social que a razão se desenvolve, ou melhor, que a razão
desperta. Desse modo, deixar de ser animal é deixar de viver os instintos e passar a viver na
reflexão. É deixar de viver no imediato e viver no mediato.
A perfectibilidade entra em ação na vida do homem quando este se depara com algum
obstáculo ou circunstâncias, um acidente que acionarão o seu gatilho, por exemplo, uma
escassez em determinada região que forçando os homens a buscarem novas chances de
sobrevivência e novas condições de vida no rigor extremo da seca, obrigaram o homem a se
adequar à essas novas condições e a formar grupos para sobreviver e vencer os obstáculos
impostos pelo novo clima, a espécie precisa agora adaptar-se ao meio ambiente. A adaptação
são as respostas que o ser humano infere ao ambiente. As respostas que o homem dá aos novos
estímulos ambientais despertam a perfectibilidade, a capacidade de criar respostas já é si mesma
o despertar da perfectibilidade. Dessa maneira o novo ambiente e a ação da perfectibilidade faz
com que o homem se aperfeiçoe mediante tal situação; ativaram-se assim as faculdades virtuais
do ser humano, que antes estavam em potência agora estão ao pleno ato de sua ação. A partir
desse acidente cataclísmico o homem entra já em processo de civilização.
É importante destacar que o processo civilizatório possui etapas. Depois do acidente
cataclísmico o homem é conduzido para um segundo estado de natureza, o homem cria para si
um segundo estado, está é uma das consequências da perfectibilidade: a capacidade de criar. O
segundo estado de natureza é seccionado por várias etapas: 1) estado de natureza histórico
(associação de seres humanos); 2) primeira revolução (criação de cabanas) essa é a idade de
ouro que coincide com a era paleolítica, esse é o momento em que a história deveria ser detida;
3) segunda revolução (ferro e trigo) que coincide com a era neolítica, nessa etapa já se instaura
a propriedade, divisão de trabalho, desigualdades, etc.; 4) estado de guerra (fim do segundo
estado de natureza); 5) pacto social e estado de civilização.
O homem abandona o seu estado de natureza que era a fase de seu isolamento e do
contato límpido como ambiente. O segundo estado de natureza revela os homens desnaturados,
mas não ainda socializados, eles vivem em grupos sociais criados ao acaso, mas a socialização
só se dará de fato quando ocorrerem as guerras, o que levará o homem definitivamente ao estado
social consumado com um contrato social. Salinas Fortes (1989, p. 61) nos lembra que “[...]
ainda nos achamos muito longe de um vínculo social efetivo, já que a ligação, além de
descompromissada, é inteiramente fugaz, esgotando-se com a própria realização do objetivo
para o qual se estabeleceu.”
Levados, portanto, para este segundo estado de natureza, o homem associa-se aos outros
homens formando uma espécie de colaboração descompromissada entre si. Estamos no estado
de natureza histórico, ele ainda não avançou para o que Rousseau chamou de idade de ouro.
Nessas associações com seus semelhantes o homem vai criando técnicas de sobrevivência.
Nesse momento o homem descobre o trabalho e a sua eficiência:
Mas o despertar da razão implica certas consequências, pois com o seu despertar que
desenvolveu a consciência de si mesmo no ser humano ele passa a identificar-se superiormente
aos outros animais e aos homens menos habilidosos. “É assim que o primeiro olhar que projetou
sobre si mesmo lhe produziu o primeiro impulso de orgulho; [...]” (ROUSSEAU, 2015, p. 97).
A superioridade em que o homem se enxerga é um vício de ser orgulhoso.
Jean Starobinski (2011, p. 44) aponta muito bem que: “Com a reflexão, termina o homem da
natureza e começa ‘o homem do homem’.” O orgulho torna-se a queda do homem, que romperá
o equilíbrio do ser sensitivo. Isso fará com que ele perca a coincidência inocente consigo
mesmo. Surgirá o amor-próprio10 que é um produto da razão e perverterá o amor de si, Lê-se
nas palavras de Rousseau que: “É a razão que gera o amor-próprio e é a reflexão que o fortalece;
é ela que faz o homem voltar-se sobre si mesmo; é ela que o separa de tudo o que o incomoda
e o aflige.” (ROUSSEAU, 2015, p. 85). O amor-próprio, por consequência, faz com que o
homem se aliene, viva sempre fora de si, ao passo que o homem selvagem vive em si mesmo.
É o amor-próprio que impulsiona os homens para os vícios, conflitos e desigualdades, até
chegar ao ponto da socialização. É a ruptura definitiva do homem com a natureza.
10
Na nota 15 (P) Rousseau distingue radicalmente o “amor de si” do “amor-próprio” para ele: “Não se
deve confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, pois são duas paixões muito diferentes, por sua natureza e
por seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que conduz todo animal a velar pela própria
conservação e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O
amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer
mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que inspira nos homens todos os males que se fazem mutuamente
e que é a verdadeira fonte da honra.” (ROUSSEAU. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da desigualdade
entre os Homens, 2015, p. 170).
Referências Bibliográficas
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Carta a Christophe de Beumont e outros escritos sobre a Religião e a Moral. Org. e Trad.
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