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Curitiba,
Vol.
3,
nº
4,
jan.-‐jun.
2015
ISSN:
2318-‐1028
REVISTA
VERSALETE
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
de
uma
vida...
193
Curitiba,
Vol.
3,
nº
4,
jan.-‐jun.
2015
ISSN:
2318-‐1028
REVISTA
VERSALETE
distantes
até
o
século
XIX
e
boa
parte
do
século
XX,
escrever
cartas
era
a
forma
de
manter
a
interação
entre
os
missivistas
e
de
sustentar
um
relacionamento
à
distância.
Grande
parte
dos
escritores,
por
meio
de
missivas
de
caráter
pessoal,
correspondia-‐se
regularmente,
seja
para
o
envio
de
notícias
triviais,
seja
para
discutir
atividades
literárias.
Por
meio
desse
diálogo
epistolar
têm-‐se
registros
socioculturais
que
revelam
características
e
hábitos
de
uma
época,
e
uma
vez
que
se
constitui
num
momento
espaço-‐temporal
específico,
a
carta
atua
como
reflexo
da
vivência
do
indivíduo
em
determinado
tempo
histórico,
chegando
a
constituir-‐se,
muitas
vezes,
como
objeto
autônomo.
A
leitura
de
cartas
de
escritores/intelectuais
tem
mostrado
que
o
gênero
epistolar
presta-‐se
ao
conhecimento
do
cenário
literário
e
cultural
de
determinado
período,
ou
como
gênese
do
processo
de
composição/criação
de
um
texto.
Além
disso,
seu
caráter
biográfico
pode
revelar
características,
intenções
e
ideias
que
auxiliem
a
compreensão
do
escritor.
Ler
uma
correspondência
não
significa
conhecer
um
autor
como
ele
de
fato
foi,
mas
formar
uma
imagem
acrescida
de
outros
tons
e
enriquecida
por
certos
ângulos.
Não
se
trata
de
criar
um
retrato
definitivo,
mas
entrever
gestos
e
traços
que
relampejam
em
um
momento
de
ansiedade,
de
dúvida
ou
de
bem-‐estar.
De
fato,
uma
correspondência
intelectualmente
afinada
com
seu
tempo,
percorre
caminhos
acidentados
e
descontínuos.
Não
é
a
história
de
uma
vida,
com
começo
e
fim
determinados.
É
um
processo
aberto,
sujeito
às
vicissitudes
do
tempo
e
às
influências
do
cotidiano
[...].
É
uma
pluralidade
de
histórias,
desprovidas
de
princípios
rígidos
e
predeterminados,
que
permitem
ver
o
curso
de
uma
vida
e
traçar
uma
linha
de
acontecimentos.
(SANTOS,
1998,
p.287)
Este
trabalho
pretende
mostrar
como
a
correspondência
do
escritor
simbolista
João
da
Cruz
e
Sousa
(1861-‐1898),
filho
de
escravos,
retrata
a
sua
vida:
as
dificuldades,
seu
gênio
poético,
a
relação
com
os
amigos
e
a
mulher;
tudo
aquilo
que
nos
permita
enriquecer
as
possibilidades
interpretativas
sobre
a
obra
do
poeta.
As
características
de
maior
relevo
do
escritor
—
responsáveis
pelo
seu
reconhecimento
como
principal
nome
do
Simbolismo
no
Brasil
—
como
a
dicção
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
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de
uma
vida...
194
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4,
jan.-‐jun.
2015
ISSN:
2318-‐1028
REVISTA
VERSALETE
poética
pesada,
o
trabalho
estético
em
busca
da
materialização
do
inefável,
e
o
conflito
causado
pela
consciência
de
impossibilidade
de
realização
da
experiência
mística
através
da
linguagem,
não
encontram
ressonância
em
suas
cartas.
A
correspondência
cruzsousiana
mostra
outra
face
do
poeta:
as
desilusões
de
uma
vida
marcada
pela
rejeição
étnico-‐social,
os
constantes
pedidos
de
ajuda
financeira
aos
amigos,
as
promessas
de
amor
eterno
à
esposa
Gavita,
as
discussões
acerca
de
projetos
literários
e
o
prenúncio
da
morte.
Estes
elementos
nos
ajudam
a
construir
uma
imagem
possível
do
homem
que
foi
Cruz
e
Sousa.
O
ceticismo
e
a
desesperança
advindos
de
uma
vida
coberta
de
percalços
e
adversidades
de
toda
sorte
refletem-‐se
em
uma
escrita
que
se
revela
consciente
de
sua
própria
realidade.
As
missivas
enviadas
à
Gavita
evidenciam
o
amor
profundo
e
o
respeito
do
autor
pela
futura
esposa.
A
mulher
é
idolatrada
como
ser
divino
ao
qual
ele
promete
amor
puro
e
fidelidade.
Ela
é
adorada
como
lugar
único
de
felicidade
possível.
Além
disso,
a
noiva
é
retratada
como
refúgio
do
mundo
que
o
mirava
com
profundo
desprezo,
pois
a
pureza
e
bondade
de
“Vivi”,
apelido
carinhoso
dado
à
sua
companheira,
são
um
reduto
de
proteção
onde
o
poeta
encontra
alívio
e
conforto
frente
à
sua
marginalização
na
sociedade.
[...]
eu
te
tenho
como
o
consolo
maior
da
minha
vida,
a
luz
do
meu
coração,
a
esperança
feliz
da
minha
alma.
[...]
Amo-‐te,
amo-‐te
muito,
com
todo
o
meu
sangue
e
com
todo
o
meu
orgulho
e
o
meu
desejo
poderoso
é
unir-‐me
a
ti,
viver
nos
teus
braços,
protegido
por
tua
bondade
pura,
pelas
tuas
graças
que
eu
adoro,
por
teus
olhos
que
eu
vejo.
[...]
Eu
te
queria
a
ti,
em
pessoa,
para
te
apertar
de
abraços,
pedindo
a
Deus
para
abençoar
o
nosso
amor.
3
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
O
sofrimento
de
Cruz
e
Sousa
vai
além
da
marginalização
sofrida
em
decorrência
de
sua
etnia
e
corrente
estética;
a
enorme
decadência
de
sua
vida
se
reflete
em
algumas
cartas
que
são
verdadeiros
gritos
de
desespero,
já
que
ele
não
tinha
recursos
3Carta
a
Gavita.
Noite
de
terça-‐feira,
20
de
setembro,
às
7
horas,
p.
635.
Todas
as
correspondências
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
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vida...
195
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2015
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VERSALETE
financeiros
para
comprar
nem
o
alimento
de
sua
família.
Os
pedidos
de
ajuda
aos
amigos
políticos
e
poetas
vão
desde
a
súplica
por
leite
a
passagens.
Cruz
e
Sousa
reclama
a
Nestor
Vítor,
figura
intelectual
e
afetiva
de
maior
expressão
nos
textos,
não
só
ajuda
com
as
finanças,
mas,
também,
a
presença
do
amigo,
uma
vez
que
a
convivência
com
ele
lhe
é
consoladora.
[...]
o
pior,
meu
velho,
é
que
estou
numa
indigência
horrível
sem
vintém
para
remédios,
para
leite,
para
nada,
para
nada!
Um
horror!
Minha
mulher
diz
que
sou
um
fantasma,
que
anda
pela
casa!
Se
pudesses
vir
hoje
até
cá,
não
só
para
me
confortares
com
a
tua
presença,
mas
também
para
me
orientares
n’algum
ponto
desta
terrível
moléstia,
será
uma
alegria
para
o
meu
espírito
e
uma
paz
para
o
meu
coração.
4
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Nas
correspondências
o
poeta
não
é
aquele
que
sugere
a
evocação
de
elementos
transcendentais
e
a
reflexão
sobre
a
limitação
da
linguagem,
como
em
sua
produção
artística,
e
sim,
alguém
que
se
encontra
em
um
profundo
desespero
—
que
não
está
ausente,
também,
da
sua
produção
poética.
Dessa
forma,
seu
rogo
é
tomado
pela
angústia
de
ter
como
saída
única
os
empréstimos
e
favores
de
seus
conhecidos.
A
precariedade
da
situação
em
que
se
encontra
o
escritor
é
tão
grande
que,
ao
não
receber
respostas
de
seus
pedidos
desesperados,
ele
escreve
por
mais
vezes
às
pessoas
próximas
pedindo
quantias
menores
de
dinheiro.
Ilustre
Poeta
Amigo
Com
os
cumprimentos
de
estima
e
consideração
que
lhe
apresento,
tomo
novamente
a
liberdade
de
importuná-‐lo
com
relação
ao
pedido
que
tive
necessidade
de
fazer-‐lhe
por
carta.
Uma
vez
que
se
não
dignou
responder-‐me,
peço-‐lhe
ainda,
apelando
para
os
seus
generosos
sentimentos
de
homem,
que
me
sirva,
já
não
direi
com
a
quantia
de
300$000
reis,
como
lhe
pedi,
mas
ao
menos
com
a
metade
ou
mesmo
com
100$000
reis,
pois
é
bem
dolorosa
a
minha
situação
neste
momento.
Peço-‐lhe,
que
mesmo
em
sentido
negativo,
resolva
com
urgência
este
bastante
difícil
pedido.
5
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
4Carta
a
Nestor
Vítor.
27
de
dezembro
de
1897,
p.
649.
5Carta
a
Luiz
Delfino.
19
de
novembro
de
1893,
p.
645.
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
de
uma
vida...
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4,
jan.-‐jun.
2015
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VERSALETE
Mais
que
um
simples
papel
marcado
por
tinta,
a
carta
aproxima
o
remetente
do
destinatário.
A
foto
de
Gavita
que
o
poeta
possui,
não
é
o
bastante
para
acalmar
a
sua
saudade
da
amada,
a
correspondência
se
faz
necessária
para
suprir
uma
falta,
representando
o
desejo
de
materialização
da
presença.
Minha
adorada
Noiva
Saudades,
saudades,
muitas
saudades
é
o
que
eu
sinto
por
ti.
Escrevo-‐te
triste
por
não
te
ver
e
tenho,
na
hora
em
que
te
escrevo,
o
teu
querido
retrato
diante
de
mim,
entre
os
meus
livros,
companheiros
dos
meus
sofrimentos.6
(CRUZ
e
Souza,
2008).
Nestor
Vítor
foi
o
grande
amigo
de
todas
as
horas
do
poeta
catarinense,
e
as
cartas
a
ele
direcionadas
são
um
misto
de
desabafo
e
pedidos
de
auxílio
tanto
financeiro
quanto
emocional.
A
ligação
de
amizade
entre
os
dois
parece
ter
sido
tão
forte
que
a
presença
física
de
Nestor
é
requisitada
quase
como
um
analgésico
para
a
dor
da
tribulação.
Frente
à
opressão
do
mundo
e
as
tragédias
íntimas,
o
consolo
da
presença
é
o
amparo
do
desvalido.
Meu
Grande
Amigo
Peço-‐te
que
venhas
com
máxima
urgência
a
minha
casa,
pois
minha
mulher
está
acometida
de
uma
exaltação
nervosa,
devido
ao
seu
cérebro
fraco
que,
apesar
das
minhas
palavras
enérgicas
em
sentido
contrário
e
da
minha
atitude
de
fraqueza
em
tais
casos
acredita
em
malefícios
e
perseguições
de
toda
a
espécie.
Cá
te
direi
tudo.
A
tua
presença
me
aclarará
o
alvitre
que
devo
tomar.
7
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
[...]
Tenho
tido
grandes
saudades
de
nossa
convivência,
tão
consoladora
e
tão
nobre.
8
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Cruz
e
Sousa
mostra
suas
misérias
pessoais
sem
fugir
da
realidade
dos
fatos
e
apresenta,
ainda,
certa
consciência
sobre
a
proximidade
de
sua
morte,
porém,
sem
perder
a
coragem.
Tal
meditação
do
autor
sobre
o
fim
da
vida
foi
expressa
6Carta
a
Gavita.
Noite
de
terça-‐feira,
20
de
setembro,
às
7
horas,
p.
635.
7Carta
a
Nestor
Vítor.
Rio,
18
de
março
de
1896,
p.
647.
8Carta
a
Nestor
Vítor.
Rio,
2
de
junho
1896,
p.
648.
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
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4,
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VERSALETE
poeticamente
em
Últimos
Sonetos,
publicação
póstuma
de
1905,
em
que
os
poemas
sugerem
uma
preparação
do
poeta
para
a
morte
e
o
desejo
de
percorrer
o
caminho
transcendental
da
eternidade
por
meio
da
arte.
Não
nos
estenderemos
nos
comentários
sobre
a
obra
anteriormente
citada,
pois,
aqui,
pretendemos
nos
dedicar
às
cartas
cruzsousianas.
Meu
Nestor
Não
sei
se
estará
chegando
realmente
o
meu
fim;
—
mas
hoje
pela
manhã
tive
uma
síncope
tão
longa
que
supus
ser
a
morte.
No
entanto,
ainda
não
perdi
nem
perco
de
todo
a
coragem.
Há
15
dias
tenho
tido
uma
febre
doida,
devido,
certamente,
ao
desarranjo
intestinal
em
que
ando.
9
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Meu
Araújo
Que
os
meus
braços
amigos
te
apertem
bem
de
encontro
ao
meu
coração,
no
momento
em
que
receberes
estas
linhas
saudosas.
Mas
escrevo-‐tas,
meu
querido
irmão,
com
a
alma
dilacerada
de
angústias,
porque
me
vejo
a
morrer
aos
poucos,
e
quisera,
pelo
menos
passar
alguns
dias
contigo,
antes
que
isso
sucedesse,
pois
vejo
em
ti
um
grande
e
afetuoso
amparo
aos
meus
últimos
desejos.
Fala
com
teu
amigo
José
Fernandes
Martins,
e
arranja
com
ele
uma
condução
no
paquete
Industrial,
para
mim,
para
a
Gavita
e
para
os
meus
quatro
filhos.
Se
escapar
da
morte
que,
no
entanto,
julgo
próxima,
ajudar-‐te-‐ei
no
teu
colégio,
ouviste?
Saudades.
O
teu
pelo
coração
e
pela
arte,
Cruz
e
Sousa.
10
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Em
meio
às
cartas
de
amor
e
clamor,
há
alguns
textos
que
apresentam
opiniões
e
projetos
literários
do
autor.
Em
uma
epístola
a
Gonzaga
Duque,
notamos
a
exposição
do
plano
de
criação
da
Revista
dos
Novos.
A
missiva
referida
data
de
1894,
contudo,
a
ideia
de
fundação
de
tal
veículo
de
propagação
artística
começou
a
circular
no
ano
de
1891.
O
intento
da
revista
era
servir
como
instrumento
de
luta
dos
simbolistas
na
divulgação
de
sua
estética,
da
mesma
forma
como
dispunham
os
escritores
tradicionais
—
parnasianos.
Cruz
e
Sousa
assume
uma
postura
apostolar
e
cita
claramente
os
poetas
com
os
quais
gostaria
de
contar
no
projeto.
Além
disso,
é
evidente
o
seu
repúdio
pelo
teatro,
o
gênero
não
deve
ser
nem
mesmo
citado
na
9Carta
a
Nestor
Vítor.
Rio,
27
de
dezembro
de
1897,
p.
649.
10Carta
a
Araújo
Figueiredo.
Rio,
janeiro
de
1898,
p.
651.
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
de
uma
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3,
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4,
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2015
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VERSALETE
revista
—
de
acordo
com
a
justificativa
apresentada
no
texto,
não
existiria
ligação
entre
as
orientações
estéticas
do
grupo
e
aquele
gênero.
Em
razão
da
riqueza
de
elementos
presentes
na
carta
referida,
optamos
por
reproduzi-‐la
aqui
integralmente.
Rio,
11
de
abril
de
1894.
Na
impossibilidade
de
falar-‐te
calmamente,
escrevo-‐te
uma
ligeira
exposição
sobre
a
Revista
dos
Novos.
Penso
que
o
grupo
que
deve
naturalmente
constituir
os
combatentes
da
Revista
dos
Novos
tem
de
ser
composto
da
tua
individualidade,
Emiliano
Perneta,
Oscar
Rosas,
Arthur
de
Miranda,
Nestor
Victor,
B.
Lopes,
Emilio
de
Menezes,
Lima
Campos,
Araújo
Figueiredo,
Virgílio
Várzea,
Santa
Rita,
Maurício
Jubim,
Cruz
e
Sousa
e
Gustavo
Lacerda,
simplesmente
sendo
que
este
último
deverá
dar
escritos
sintéticos,
muito
generalizados,
sem
personalismo,
sobre
política
socialista.
Penso
assim
porque
esses
foram
sempre,
mais
ou
menos
de
vários
modos
intelectuais,
e
em
tese,
os
nossos
companheiros,
tendo
cada
um
deles,
na
proporção
de
sua
aptidão,
na
esfera
de
sua
perfectibilidade,
um
sentimento
homogêneo
do
sentimento
comum
na
Arte
do
Pensamento
escrito.
Penso
também
que
o
único
homem
fora
da
nossa
linha
artística
de
seleção
relativa
possível,
que
deve
ser
simpaticamente
admitido,
para
críticas
científicas
para
artigos
de
caráter
positivo
moderno,
é
o
dr.
Gama
Rosa,
que
podemos
considerar,
à
parte
toda
a
nossa
independência
e
rebelião
como
um
austero
e
curioso
Patriarca
do
Pensamento
novo.
Os
mais,
seja
quem
for,
que
venham
de
fora,
isto
é,
que
se
apresentem
com
trabalhos
estéticos
e
de
tal
natureza
alevantados
e
sérios
que
possam
ser
admitidos
nas
colunas
nobres
da
grande
“Revista”,
para
o
que
basta
apenas
uma
análise
severa,
rigorosa,
desses
trabalhos.
Enfim,
apenas
esse
deve
de
ser
o
grupo
fundador
por
excelência,
deve
constituir
o
corpo
uno
das
Idéias
da
Revista
nos
seus
elevados
fundamentos
gerais,
à
parte
dos
detalhes
da
compreensão
de
cada
um
em
particular.
Entre
esses
fundamentos
gerais
acho
que
deve
ser
um
dos
principais,
o
maior
e
mais
firme
radicalismo
sobre
teatro,
não
permitir
seções,
notícias,
folhetins
ou
coisa
que
diga
respeito
a
teatro
que,
por
princípio
e
integração
de
Idéias,
não
deve
existir
para
a
nossa
orientação
d’Arte
na
Revista
dos
Novos.
Teu.
Cruz
e
Sousa.
11
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Ainda
sobre
a
Revista
dos
Novos,
Cruz
e
Sousa
escreve
em
janeiro
de
1897
a
Araújo
Figueiredo,
convidando-‐o
para
o
projeto
junto
a
Nestor
Vítor
e
outros
poetas.
Os
planos
de
propagação
do
grupo
são
grandes
e
o
intento
é
produzir
uma
publicação
expressiva,
capaz
de
ganhar
espaço
no
cenário
tradicional
literário.
11Carta
a
Gonzaga
Duque.
Rio,
11
de
abril
de
1894,
p.645.
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
de
uma
vida...
199
Curitiba,
Vol.
3,
nº
4,
jan.-‐jun.
2015
ISSN:
2318-‐1028
REVISTA
VERSALETE
Caríssimo
Araújo
Saudades
e
abraços.
—
Esta
carta
tem
por
fim
somente
convidar-‐te
para
uma
Revista
de
Arte
que
o
Nestor
Vítor,
eu
e
outros
vamos
fundar.
Será
uma
publicação
vigorosa
e
alta
nos
seus
fundamentos,
trazendo
o
cunho
superior
de
uma
força
espontânea
e
nobre.
12
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Em
carta
de
1889
a
Virgílio
Várzea,
amigo
de
longa
data
com
quem
publicara
o
livro
Tropos
e
Fantasia
(1885),
Cruz
e
Sousa
manifesta
todo
o
seu
transtorno
e
revolta
pela
situação
de
miséria
em
que
se
encontrava:
Adorado
Virgílio
Estou
em
maré
de
enjoo
físico
e
mentalmente
fatigado.
Fatigado
de
tudo:
de
ver
e
ouvir
tanto
burro,
de
escutar
tanta
sandice
e
bestialidade
e
de
esperar
sem
fim
por
acessos
na
vida,
que
nunca
chegam.
Estou
fatalmente
condenado
à
vida
de
miséria
e
sordidez,
passando-‐a
numa
indolência
persa,
bastante
prejudicial
à
atividade
do
meu
espírito
e
ao
próprio
organismo
que
fica
depois
amarrado
para
o
trabalho.
Não
sei
onde
vai
parar
esta
coisa.
Estou
profundamente
mal,
e
só
tenho
a
minha
família,
só
te
tenho
a
ti,
a
tua
belíssima
família,
o
Horácio
e
todos
os
outros
nobres
e
bons
amigos,
que
poucos
são.
Só
dessa
linda
falange
de
afeições
me
aflige
estar
longe
e
morro,
sim
de
saudades.
Não
imaginas
o
que
se
tem
passado
por
meu
ser,
vendo
a
dificuldade
tremendíssima,
formidável
em
que
está
a
vida
no
Rio
de
Janeiro.
Perde-‐se
em
vão
tempo
e
nada
se
consegue.
Tudo
está
furado,
de
um
furo
monstro.
Não
há
por
onde
seguir.
13
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Ele
reclama
da
indiferença
e
do
desdém
com
que
era
tratado,
a
ponto
de
não
obter
um
emprego14.
Embora
tivesse
recebido
pelo
seu
pai
de
criação
—
Guilherme
Xavier
de
Sousa
—
uma
educação
formal,
fosse
um
homem
culto
e
admirado
pelos
amigos,
Cruz
e
Sousa
via-‐se
preso
a
uma
“maldição
social”:
mesmo
a
sua
capacidade
intelectual
e
o
alto
nível
de
seus
escritos
não
eram
capazes
de
superar
o
fato
de
que
era
negro,
num
tempo
em
que
opiniões
racistas
eram
sustentadas
por
teorias
acerca
da
desigualdade
das
raças.
12Carta
a
Araújo
Figueiredo.
Rio,
8
de
janeiro
de
1897,
p.649.
13Carta
a
Virgílio
Várzea.
Corte,
8
de
janeiro
de
1889,
p.
641.
14A
convite
de
Oscar
Rosas
havia
se
estabelecido
no
Rio
de
Janeiro,
mas
em
poucos
meses
retornou
a
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
de
uma
vida...
200
Curitiba,
Vol.
3,
nº
4,
jan.-‐jun.
2015
ISSN:
2318-‐1028
REVISTA
VERSALETE
Todas
as
portas
e
atalhos
fechados
ao
caminho
da
vida,
e,
para
mim,
pobre
artista
ariano,
ariano
sim
porque
adquiri,
por
adoção
sistemática,
as
qualidades
altas
dessa
grande
raça,
para
mim
que
sonho
com
a
torre
de
luar
da
graça
e
da
ilusão,
tudo
vi
escarnecedoramente,
diabolicamente,
num
tom
grotesco
de
ópera
bufa.
Quem
me
mandou
vir
cá
abaixo
à
terra
arrastar
a
calceta
da
vida!
Procurar
ser
elemento
entre
o
espírito
humano?!
Para
quê?
Um
triste
negro,
odiado
pelas
castas
cultas,
batido
das
sociedades,
mas
sempre
batido,
escorraçado
de
todo
o
leito,
cuspido
de
todo
o
lar
como
um
leproso
sinistro!
Pois
como!
Ser
artista
com
esta
cor!
Vir
pela
hierarquia
de
Eça,
ou
de
Zola,
generalizar
Spencer
ou
Gama
Rosa,
ter
estesia
artística
e
verve,
com
esta
cor?
Horrível!
[...].15
(CRUZ
e
SOUZA,
2008).
Ao
dizer-‐se
ariano,
Cruz
e
Sousa
manifesta
sua
revolta
face
às
injustiças
da
sociedade
branca.
O
ariano
de
espírito
depurado
estava
sempre
em
confronto
com
o
africano
“emparedado”16,
uma
vez
que
a
educação,
cultura
e
inteligência
que
possuía,
esbarravam
no
que,
naquele
tempo,
era
sua
característica
definidora:
a
qualidade
de
negro.
Embora
não
tenha
vivido
na
senzala,
Cruz
e
Sousa
viveu
as
contradições
da
abolição
que,
rejeitando
a
escravidão,
não
deu
condições
de
vida
aos
ex-‐escravos
e
seus
filhos.
O
escritor
perturba-‐se
ao
constatar
que
sua
sensibilidade
e
aptidão
de
espírito
eram-‐lhe
inúteis,
pois
não
o
capacitavam
a
ascender
ao
escol
da
sociedade
e
a
tornar-‐se
como
os
grandes
escritores,
essa
raça
de
“eleitos”.
A
vida
na
miséria,
a
marginalização
e
perseguição
sofridas
em
um
mundo
“negro
e
duro”
refletem-‐se
na
obra
do
poeta
que,
aspirando
ao
transcendente,
como
em
geral
os
simbolistas
o
fazem,
não
deixa
de
ligar-‐se
a
aspectos
e
lutas
referentes
ao
lugar
social
que
ocupava
como
filho
de
ex-‐escravos.
Essa
noção
consciente
da
sua
realidade
perseguiu
Cruz
e
Sousa
até
sua
morte,
de
tuberculose,
em
19
de
março
de
1898.
Nas
palavras
de
Andrade
Muricy
“os
simbolistas
julgavam
poder
viver
dentro
do
seu
sonho,
na
sua
poesia
[...].”17
(MURICY,
1987,
p.
40).
Talvez
seja
isso
que
Cruz
e
15Carta
a
Virgílio
Várzea.
Corte,
8
de
janeiro
de
1889,
p.
642.
16 Não
nos
referimos
ao
que
Roger
Bastide
chama
de
nostalgia
do
branco,
trata-‐se
apenas
da
constatação
de
um
fato,
em
uma
sociedade
escravagista.
Afinal,
a
Lei
Áurea
havia
sido
assinada
no
ano
anterior
(1888).
Miranda,
J.
A.
et
DIAS,
N.
I.
R.
Retratos
de
uma
vida...
201
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3,
nº
4,
jan.-‐jun.
2015
ISSN:
2318-‐1028
REVISTA
VERSALETE
Sousa
tenha
feito,
como
forma
de
sobrevivência
em
uma
sociedade
indiferente,
numa
vida
assombrada
constantemente
pelo
drama
da
raça.
REFERÊNCIAS
BASTIDE,
R.
Quatro
Estudos
sobre
Cruz
e
Sousa.
In:
COUTINHO,
Afrânio
(Org.).
Cruz
e
Sousa.
Rio
de
Janeiro:
Civilização
Brasileira,
1979.
(Coleção
Fortuna
Crítica).
MURICY,
A.
Atualidade
de
Cruz
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CRUZ
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João
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Obra
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São
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1987,
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dos.
Ao
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1998.
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In:_____
Obra
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prosa/João
da
Cruz
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Jaraguá
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Avenida,
2008.
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p.
633-‐654.
Disponível
em:
<http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol2_prosa.pdf>.
Acesso:
17
de
jun.
2013.
VITOR,
N.
Cruz
e
Sousa.
In:_____.
Obra
Crítica.
Coleção
de
Textos
da
Língua
Portuguesa.
Ministério
da
Educação
e
Cultura.
Rio
de
Janeiro:
Fundação
Casa
Rui
Barbosa,
1969.
Submetido
em:
17/09/2014
Aceito
em:
11/04/2015
Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 202