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A humanização como dimensão pública


das políticas de saúde

Humanization as a public dimension


of the policies in the health system

Regina Benevides 1
Eduardo Passos 2

Abstract As long as it is assumed that human- Resumo No momento em que se assume a hu-
ization is a fundamental aspect regarding the manização como aspecto fundamental nas políti-
health policies it is demanding that its concept be cas de saúde urge que o conceito de humanização
revised and criticized so changes in the models of seja reavaliado e criticado para que possa efetuar-
assistance and management can be performed. se como mudança nos modelos de atenção e de
Such urge is presented not only because the con- gestão. Tal urgência se configura pela banalização
cept has been trivialized, but also by the fragmen- com que o tema vem sendo tratado, assim como
tation of the practices connected to different pro- pela fragmentação das práticas ligadas a progra-
grams of humanization of the health system. It is mas de humanização. Trata-se de um mesmo
the same problem in a double inscription theoret- problema em uma dupla inscrição teórico-práti-
ical/practical, so the need to face the task of re- ca, daí a necessidade de redefinição do conceito de
defining the concept of humanization as well as humanização, bem como dos modos de constru-
the construction of public and transversal policies ção de uma política pública e transversal de hu-
of humanization of/and in the health system. manização da/na saúde. Este segundo aspecto
This second aspect points out to the need of a de- apontou para o debate sobre a dimensão pública
bate on the public dimension of the health poli- das políticas de saúde em sua relação com o Esta-
cies and its relation with the Government. This do. O texto se dedica, orientado pela análise fou-
paper intents, supported by Foucault’s analysis of caultiana do poder, a examinar o conceito de hu-
power, to exam the concept of humanization in a manização na relação do Estado com as políticas
more wide scenario showing the relationship of públicas como experiência concreta, afirmando
the Government with the public policies as con- que não há como garantir uma política nacional
crete experiences, assuring that there is no way of de humanização da saúde sem que se confronte
guaranteeing a National Policy of Humanization com o tema do humanismo no contemporâneo.
1 Departamento of Health without confronting with the concept of Esta tarefa não é simples, já que o pensamento no
de Psicologia, Universidade humanism in the contemporary world. In the século 20 foi fortemente marcado por uma crítica
Federal Fluminense. 20th Century, the idea was strongly stressed by an anti-humanista que deve agora ser retomada pa-
Campus do Gragoatá,
Bloco O, 3o andar, anti-humanistic critic and the task we face now is ra que possamos nos reposicionar.
24000-000, Niterói RJ. not easy and has to be carried out so we can redi- Palavras-chave Políticas públicas, Humaniza-
rebenevi@terra.com.br rect ourselves. ção, Sistema Único de Saúde, Anti-humanismo
2 Departamento
de Psicologia, Universidade Key words Public policies, Humanization, Sin-
Federal Fluminense. gle Health System, Anti-humanism
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Introdução rantir o “caráter constituinte” do SUS, impõe


que possamos identificar os problemas con-
O debate a que nos propomos neste artigo está temporâneos que se dão na relação entre Esta-
apoiado nas experiências desenvolvidas nos do e as políticas públicas. É esta relação que
anos de 2003/2004, quando nos integramos à queremos problematizar neste momento que o
equipe da Secretaria Executiva (SE) do Minis- projeto de uma Política Nacional de Humani-
tério da Saúde (MS), como consultor e como zação retoma o que está na base da reforma da
Diretora de Programa da SE coordenando a saúde do porte daquela que resultou na criação
“Política Nacional de Humanização da atenção do SUS.
e da gestão na saúde” (PNH). Tais experiências Nos primeiros passos que demos imediata-
dizem respeito a um cenário que a partir de mente nos confrontamos com outro aspecto
2005 se altera com a mudança na formulação e presente no âmbito do que se nomeava como
condução das políticas de saúde no MS. No programas de humanização: havia projetos, ati-
momento em que escrevemos o presente texto vidades, propostas, mas em todos era evidente
acompanhamos com atenção os desdobramen- o caráter fragmentado e separado dessas inicia-
tos destas mudanças para saber se os princípios tivas não só na relação de baixa horizontalida-
construídos nestas experimentações poderão de que se verificava entre elas, mas também no
reverberar nas novas configurações da máqui- modo vertical como elas se organizavam den-
na do Estado tro do MS e do SUS. Tínhamos, então, um du-
plo problema: seja o da banalização do tema da
humanização, seja o da fragmentação das prá-
O que pode uma política pública ticas ligadas a diferentes programas de huma-
ou o tema do poder nização da saúde. Na verdade, trata-se de um
mesmo problema em uma dupla inscrição teó-
No início de 2003, enfrentamos um debate no rico-prática, daí a necessidade de enfrentarmos
MS defendendo a priorização do tema da hu- a tarefa de redefinição do conceito de humani-
manização como aspecto fundamental a ser zação, bem como dos modos de construção de
contemplado nas políticas públicas de saúde. O uma política pública e transversal de humani-
debate se fazia a partir da tensão entre concep- zação da/na saúde.
ções diferentes. Havia escolhas, de um lado, Diante deste duplo problema, a SE do MS
que visavam aos “focos e resultados dos pro- propôs a criação da PNH. Como política, a hu-
gramas” e, de outro, que problematizavam os manização deveria traduzir princípios e modos
processos de produção de saúde e de sujeitos, de operar no conjunto das relações entre todos
no plano mais amplo da alteração de modelos que constituem o SUS. Era principalmente o
de atenção e de gestão. Neste contexto, apre- modo coletivo e co-gestivo de produção de
sentava-se para nós não só um desafio, mas saúde e de sujeitos implicados nesta produção
principalmente a urgência de reavaliar concei- que deveria orientar a construção da PNH co-
tos e práticas nomeadas como humanizadas. mo política pública.
Identificada a movimentos religiosos, filantró- Esta orientação imporia mudanças no mo-
picos ou paternalistas, a humanização era me- delo de atenção dos usuários e da gestão dos
nosprezada por grande parte dos gestores, ridi- processos de trabalho. O projeto da PNH foi
cularizada por trabalhadores e demandada pe- afirmar a saúde não como valor de troca, mas
los usuários. como valor de uso (Campos, 2000), o que faz
O debate ia se montando em torno das con- com que se altere o padrão de atenção no sen-
dições precarizadas de trabalho, das dificulda- tido da ênfase no vínculo com os usuários, ga-
des de pactuação das diferentes esferas do SUS, rantindo seus direitos. Estimulava-se o prota-
do descuido e da falta de compromisso na as- gonismo dos atores do sistema de saúde fosse
sistência ao usuário dos serviços de saúde. O pela sua ação de controle social, fosse pelo fo-
diagnóstico ratificava a complexidade da tarefa mento de mecanismos de co-gestão. Garantir
de se construir de modo eficaz um sistema pú- melhores condições para os trabalhadores e
blico que garantisse acesso universal, equânime gestores realizarem seu trabalho foi outra dire-
e integral a todos os cidadãos brasileiros. ção da PNH. A humanização como política pú-
Não restava dúvida: o SUS é uma conquista blica deveria criar espaços de construção e tro-
nascida das lutas pela democracia no país que ca de saberes, investindo nos modos de traba-
em 1988 ganham estatuto constitucional. Ga- lhar em equipe. Isto supõe, é claro, lidar com
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necessidades, desejos e interesses destes dife- marcado por uma crítica anti-humanista que
rentes atores. devemos agora retomar para que possamos nos
A humanização se apresentava para nós co- reposicionar.
mo estratégia de interferência no processo de A discussão da humanização no campo da
produção de saúde levando em conta que su- saúde não pode se fazer sem que consideremos
jeitos, quando mobilizados, são capazes de trans- a maneira como o tema está intrinsecamente
formar realidades transformando-se a si pró- ligado ao processo de constituição do SUS no
prios neste mesmo processo. Investíamos na Brasil. Como sabemos, o SUS é o resultado de
produção de um novo tipo de interação entre lutas pela redemocratização da sociedade bra-
os sujeitos que constituem os sistemas de saú- sileira que aconteciam em meio a movimentos
de, retomando a perspectiva de rede descentra- de resistência à ditadura militar. No campo da
lizada e co-responsável que está na base do SUS. saúde, essa resistência se exprimiu no Movi-
Uma rede comprometida com a defesa da vida, mento da Reforma Sanitária a partir do qual
rede humanizada porque construindo perma- foram formulados os princípios de universali-
nente e solidariamente laços de cidadania. dade, eqüidade e integralidade da saúde na
Humanizar a atenção e a gestão em saúde Constituição de 1988 como direito de qualquer
no SUS se apresentava como meio para a qua- cidadão e como dever do Estado. Os anos 60,
lificação das práticas de saúde: acesso com aco- 70 e 80, no Brasil, foram marcados por essas lu-
lhimento; atenção integral e equânime com res- tas que impunham não só a recolocação das
ponsabilização e vínculo; valorização dos tra- funções e deveres do Estado, como também, os
balhadores e usuários com avanço na democra- direitos dos homens. Todo um experimentalis-
tização da gestão e no controle social participa- mo político caracteriza esses momentos de
tivo. efervescência que na América Latina se orques-
Com estas direções definimos os seguintes travam na forma geral da resistência ao autori-
princípios norteadores (Brasil, 2004): 1) valo- tarismo de Estado. Há, nesses anos, um debate
rização da dimensão subjetiva e social em to- que acompanha as experimentações políticas
das as práticas de atenção e gestão no SUS, for- em curso que precisamos resgatar na sua po-
talecendo o compromisso com os direitos do ci- tência de problematização do poder. Afinal de
dadão, destacando-se o respeito às questões de contas, trata-se mesmo de avaliar os poderes
gênero, etnia, raça, orientação sexual e às po- instituídos e as resistências-instituintes de no-
pulações específicas (índios, quilombolas, ri- vos modos de viver e, mais especificamente, de
beirinhos, assentados, etc.); 2) fortalecimento lidar com o tema da saúde.
de trabalho em equipe multiprofissional, fo-
mentando a transversalidade e a grupalidade;
3) apoio à construção de redes cooperativas, A analítica do poder e as artes de governar:
solidárias e comprometidas com a produção de as contribuições de Michel Foucault
saúde e com a produção de sujeitos; 4) cons-
trução de autonomia e protagonismo de sujei- Nos anos 70, podemos dizer que experimenta-
tos e coletivos implicados na rede do SUS; 5) mos mudanças das concepções do poder em
co-responsabilidade desses sujeitos nos proces- práticas concretas discursivas e não discursivas.
sos de gestão e de atenção; 6) fortalecimento do Essas mudanças estão presentes nas teses de
controle social com caráter participativo em Michel Foucault que se dedica à construção de
todas as instâncias gestoras do SUS; 7) com- uma analítica do poder produzindo efeitos de
promisso com a democratização das relações desestabilização nas formulações acerca do te-
de trabalho e valorização dos profissionais de ma. É importante lembrar que em maio de
saúde, estimulando processos de educação per- 1973 Foucault proferiu um conjunto de cinco
manente. conferências na PUC-Rio (Foucault, 1996). Es-
Pretendemos neste texto nos dedicar à tare- sas conferências foram posteriormente publi-
fa de inserir o conceito de humanização na sua cadas e antecipavam entre nós as teses genealó-
relação com o tema do Estado moderno. Não gicas que em 1975 apareceriam no livro Vigiar
há para nós como garantir a aposta numa Polí- e punir (Foucault, 1977).
tica Nacional de Humanização sem que nos Essa fase do pensamento foucaultiano, co-
confrontemos com o tema do humanismo no nhecida como período genealógico, caracteri-
contemporâneo. Esta tarefa não é simples, já za-se, sobretudo, por um método de acopla-
que o pensamento no século 20 foi fortemente mento do conhecimento com as memórias locais,
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que permite a constituição de um saber histórico uma série de tratados sobre a arte de governar.
das lutas e a utilização deste saber nas táticas Como governar, como fazer para ser o melhor
atuais (Foucault, 1979a). São, antes de tudo, an- governante? Tais são as questões que emergem
ticiências no dizer de Foucault, insurreição dos num contexto de instauração dos grandes Es-
saberes contra “os efeitos de poder centraliza- tados territoriais e de uma preocupação com a
dores que estão ligados à instituição”. Para ele, concentração estatal, mas também indicando
a questão de todas as genealogias é a do poder: movimento de dispersão e dissidência religio-
quais seus mecanismos, efeitos, relações e dis- sa, como foi o caso da Reforma e da Contra-
positivos que se exercem nos diferentes domí- Reforma. É mesmo uma “problemática geral do
nios da sociedade e com extensões tão variadas. governo em geral” (1979c) que se coloca como
Mais tarde indicará que o método genealó- tema.
gico realiza sempre uma “ontologia histórica de Mas Foucault, pesquisador dos textos me-
nós mesmos” (Foucault, 2000), o que faz deste nores, não se atém ao que na época era tomado
método a preparação de saberes que argúem o como o discurso sobre o governar, tal como
que somos, o que sentimos, o que cremos, de- apresentado em O príncipe de Maquiavel. Ele
sestabilizando o instituído para fazer aparecer destaca a existência de uma literatura antima-
as forças históricas do processo de sua institu- quiavélica entre o século 16 e o início do século
cionalização. A genealogia, neste sentido, é um 19, que aponta para uma importante constru-
método crítico por excelência que mantém ace- ção da arte de governar que desenhará e sus-
so este ímpeto emancipatório próprio da mo- tentará o Estado moderno.
dernidade em confronto constante com o já O que o autor propõe é o contraste entre
dado (Passos & Benevides, 2001). duas tecnologias do poder que no século 16 se
É com esta direção que queremos seguir em rivalizam. É a modulação de uma sociedade
nossa tarefa de pensar a posição e importância tradicional marcada por um diagrama de po-
conferida ao Estado na definição do plano do der soberano para a sociedade moderna dita
poder. Sendo nosso objetivo neste trabalho pro- disciplinar. No primeiro diagrama, vemos um
blematizar a humanização como política de Es- modo de governar caracterizado pela exteriori-
tado, parece-nos indispensável o esforço teóri- dade, pela transcendência do príncipe em rela-
co de retomar as teses genealógicas de Foucault ção ao seu principado que ele recebe por he-
para melhor compreender a sintonia entre a rança, por aquisição ou por conquista e com o
emergência do Estado representativo moderno qual mantém laços por tratados, por violência.
e uma certa concepção de homem que sustenta Decidir a morte ou deixar viver, eis a fórmula
grande parte das propostas de humanização na como a violência soberana se exercia na socie-
saúde. dade pré-moderna. O objetivo do exercício do
Em se tratando do tema do poder na pers- poder é, conseqüentemente, o de reforçar e pro-
pectiva foucaultiana é menos apropriado falar teger este principado, entendido não como o con-
em campo do que em um plano do poder. Tal junto constituído pelos súditos e o território...
distinção por nós anteriormente trabalhada mas como [a] relação do príncipe com o que ele
(Benevides & Passos, 2000) aponta para as di- possui (Foucault, 1979c). Esta doutrina do prín-
ferenças entre os conceitos no que cada um de- cipe ou a teoria jurídica do soberano marca
les se refere, seja ao domínio da realidade cons- uma descontinuidade entre o poder do gover-
tituída (campo), seja em relação ao plano de nante e as outras formas de poder. Ação des-
constituição dessa realidade (plano). A tese tra- cendente e de exterioridade, transcendente e
dicional é que a política se organiza como um descontínua, o poder se exerce em sentido úni-
campo que tem no centro a máquina do Esta- co, como habilidade em conservar o principa-
do da qual emanam os projetos de governo e as do, custe o custar.
políticas públicas. A série, portanto, aqui, se faz Essas são as premissas de Maquiavel em seu
no sentido descendente Estado-governo-políti- trabalho de aconselhamento do príncipe. O
ca pública. que Foucault diz, contrastando maquiavelismo
Foucault, na década de 70, propõe um con- e antimaquiavelismo, é que a modernidade po-
ceito que subverte esta série tradicional que co- lítica já não podia encontrar apoio em um dia-
loca o Estado como o locus de emanação do po- grama de poder soberano.
der: trata-se do conceito de governamentalida- Um outro diagrama se apresenta, segundo
de. O autor (Foucault, 1979c) destaca que entre a expressão de Foucault, como uma arte de go-
o século 16 e o final do século 18 desenvolve-se vernar. E qual é a diferença entre o governo do
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soberano e esta arte que governa sob um regi- com que os termos ativo e passivo se distingam,
me que não é mais o do príncipe? Foucault des- mas não mais se separem, compondo um regi-
taca que no século 16 o governo começa a to- me de poder cuja palavra de ordem se enuncia
mar como alvo não mais um território com numa voz reflexiva: governa-se, governe-se. O
seus súditos, mas um conjunto heterogêneo de poder assujeita na justa medida em que subje-
“coisas”. A diferença, portanto, se dá sobre o tiva. Assujeitar e subjetivar são, portanto, ações
que se exerce e como se exerce o poder. É uma distintas porém inseparáveis no exercício do
nova incidência do poder, novos alvos, e, por- poder na modernidade.
tanto, uma nova visibilidade e dizibilidade que Pesquisando as artes de governar, Foucault
se anuncia no século 16. Fala-se neste momen- destaca a existência de três tipos de governo: o
to do governo da casa, das almas, das crianças, governo de si (domínio da moral), a arte de go-
da família. vernar uma família ou a população (domínio da
Qual é, então, o lugar do Estado moderno economia), e a ciência de bem governar o Esta-
na composição do plano do poder? A questão do (domínio da política). Mas, o importante é a
que Foucault quer, sobretudo, destacar é a di- característica contínua e em mão dupla, indo
mensão do governo relativa ao Estado, isto é, a tanto no sentido ascendente quanto descenden-
dimensão política do governo. E por que este te, das artes de governar. O sentido ascendente
destaque quando já não pensamos mais numa aponta para o fato de que “aquele que quer po-
centralidade e sim numa dispersão do poder der governar o Estado deve primeiro saber se
no plano das artes de governar? Qual o sentido governar, governar sua família, seus bens, seu
de se colocar em questão a função centraliza- patrimônio”. Já o sentido descendente indica
dora do Estado e, conseqüentemente, este sen- que quando o Estado é bem governado, os pais de
tido descendente da série Estado-governo-polí- família sabem como governar suas famílias, seus
tica pública? Na pesquisa acerca da “governa- bens, seu patrimônio e por sua vez os indivíduos
mentalidade”, partir do tema do Estado, figura se comportam como devem (Foucault, 1979c).
macropolítica, é a estratégia escolhida para des- Percebe-se o caráter multivetorializado do
tituí-lo de qualquer primado na teoria política. exercício do poder que, mesmo em sua relação
Mas superar o Estado territorial é necessaria- com o Estado, não tem mais uma fonte e um
mente substituí-lo por uma outra figura central objeto único de incidência privilegiados. O que
de Estado? Como na modernidade a arte de go- Foucault chama de governamentalidade diz
vernar em sua multifocalidade se relaciona com respeito ao “desbloqueio” das artes de governar
a pretensa centralidade política do Estado? “coisas”, que entre os séculos 16 e 18 estavam
O que Foucault está indicando é, numa tor- ainda marcadas pelo modelo da família. A fa-
ção da teoria política tradicional, que o lugar mília como modelo de governo desaparece,
do poder se desloca na modernidade no que reaparecendo não mais nesta condição mas co-
diz respeito a seu alvo e a seu modo de operar. mo segmento ou instrumento privilegiado pa-
A transcendência e a uniformidade do poder ra o governo da população. É no século 18,
político soberano são substituídas, nas artes de portanto, que a preocupação com o controle da
governar a partir do século 16, pela multiplici- população realiza este desbloqueio das artes de
dade dos exercícios de poder e pela sua ima- governar, criando as condições para uma ação
nência nos diferentes objetos ou “coisas” gover- ampliada de governo que Foucault designa por
nadas. Eis aí uma nova topologia política, pois “governamentalidade”.
entre o foco de emanação do poder e seu ponto
de incidência não há mais a distância que ca-
racterizava o exercício soberano. Entre o prín- A máquina do Estado e suas linhas
cipe e o território com seus habitantes há uma
relação de exterioridade ou transcendência, di- Na modernidade, portanto, os níveis de gover-
ferente do que se afirma no século 16 acerca da no se encaixam: o governo político, o econômi-
inseparabilidade entre os diversos domínios do co e o moral se dobram uns sobre os outros ge-
governo. Governar a nação, a família e a si mes- rando esta arquitetônica complexa, multiveto-
mo são, doravante, exercícios que se realizam rializada e contínua. O Estado não tem mais a
num mesmo plano de imanência do poder, de primazia de foco ou de centro do poder, no en-
tal maneira que não há mais aquela distância tanto ele permanece como um dos pontos de
entre quem exerce o poder e quem o sofre. A referência na constituição da governamentali-
imanência desse plano na modernidade faz dade: plano multifocalizado no qual Estado, fa-
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mília e si mesmo se apresentam como três refe- Mas, o desafio assumido a partir da década
rências para as práticas de governo. Quanto ao de 1970 pelos movimentos de mudança dos
governo político, inverte-se a série que partia modelos de atenção e gestão nas práticas de
da centralidade do Estado. Temos agora uma saúde impunha tanto a redefinição do conceito
outra série que considera o Estado uma das re- de saúde, quanto a recolocação da importância
ferências para as artes de governar. Neste caso, dos atores implicados no processo de produção
a série se altera para governo-Estado-política de saúde. Falar, portanto, de saúde pública ou
pública entendendo-se, assim, que é em um re- saúde coletiva é falar também do protagonis-
gime moderno de governamentalidade que o mo e da autonomia daqueles que, por muito
governo político se faz na referência ao Estado tempo, se posicionavam como “pacientes” nas
em sua relação com a dimensão pública das práticas de saúde, sejam os usuários dos servi-
políticas. ços em sua paciência diante dos procedimentos
de cuidado, sejam os trabalhadores eles mes-
mos, não menos passivos no exercício de seu
Política (pública) de humanização: mandato social. O que queremos ressaltar é
por um novo humanismo que a força emancipatória na base do SUS só se
sustenta quando tomamos como inseparáveis o
Quando chegamos no Ministério da Saúde nos processo de produção de saúde e o processo de
deparamos com a máquina do Estado com seu produção de subjetividades protagonistas e au-
intrincado poder ali expresso em programas, tônomas que se engajam na reprodução e/ou
projetos, burocracias, instâncias e esferas de na invenção dos modos de cuidar e de gerir os
governo político. A complexidade desta máqui- processos de trabalho no campo da saúde. Nes-
na faz de seu interior um mundo que tende a te sentido, é preciso avançar, como indica Gas-
nos atrair e capturar. Percebíamos que o Esta- tão Wagner (Campos, 2000), a discussão no
do, embora não sendo a fonte de onde emanam campo da saúde coletiva propondo esta relação
as linhas de capilarização do poder, tende a ab- entre produção de saúde e produção de sujei-
sorvê-las, interiorizando-as. Contudo, a expe- tos, entre atenção, gestão e subjetividade. Por-
riência no MS também nos indicava que estas tanto, recolocar na agenda da saúde o tema da
linhas não dobram apenas para dentro. Há al- humanização é reativar o movimento consti-
go que resiste a esta interiorização, algo que in- tuinte do SUS.
siste em sua exterioridade fazendo com que a O criticismo moderno se apresenta, diante
máquina do Estado se abra para o que é o seu da crise do Antigo Regime, como experiência
fora. Chamamos este fora de plano coletivo aí revolucionária, cujo ímpeto emancipatório do
onde se constroem, de fato, políticas públicas. Humanismo impõe imediatamente uma reação
A PNH se propôs a operar neste limite entre a contra-revolucionária. A dimensão crítica da
máquina do Estado e o plano coletivo, apostan- modernidade se apresentava, portanto, como
do que na série governo-Estado-políticas pú- uma dupla face que coexiste por tensionamen-
blicas, é este último termo que deve prevalecer to: por um lado, uma força emancipatória que
na orientação das ações governamentais. A recusa toda transcendência como fundamento
nosso ver, alterações da experiência coletiva é da experiência humana, por outro, uma reto-
que podem gerar políticas públicas malgrado o mada desta transcendência por uma manobra
movimento de interiorização da máquina de sofisticada associada à instauração do Estado
Estado. Na série governo-Estado-políticas pú- moderno, Estado-Nação.
blicas é o que se produz no plano do coletivo A tese de Hardt e Negri (2001) é de que a
que garante o sentido público das políticas que modernidade é a “afirmação dos poderes deste
também atravessam o Estado. mundo, a descoberta do plano de imanência”.
Esta, sem dúvida, foi a direção do movimen- A filosofia moderna impunha uma valorização
to das políticas públicas de saúde que culmi- da individualidade que encontra em si mesma
nou no SUS. Com o conceito de saúde coletiva sua fundação, sem a necessidade, doravante, de
é a dimensão do público que é revigorada nas um fundamento transcendente (Deus, o sobe-
políticas de saúde. Não mais identificado a es- rano ou qualquer outra figura da lei transcen-
tatal, o público indica assim a dimensão do co- dente). É a dignificação do humano, de seu
letivo. Política pública, política dos coletivos. mundo e de seu pensamento. Não é preciso um
Saúde pública, saúde coletiva. Saúde de cada “para além” que dê sentido àquilo que a arte
sujeito, saúde da população. humana realiza.
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Mas se a modernidade tem uma dupla face, capitalismo, portanto, é indispensável para a
é porque seu conceito não é unitário e a crise transcendentalização do governo político, isto
logo se impõe na forma de uma reação contra- é, para a organização de um Estado representa-
revolucionária que reinstaura a transcendência tivo moderno. A soberania ganha estatuto uni-
contra a potência da imanência. À força e ao versal e transcendental, estendendo-se sobre
desejo que pulsam como potência dos coleti- todo o socius com seu poder de regulamenta-
vos sobrevém uma figura cuja função é a de ção como biopolítica da espécie humana que,
mediar toda experiência: é o Estado-Nação que na segunda metade do século 18, vem comple-
tem a função de disciplinar, estabelecer e regu- xificar o plano político não mais exclusivamen-
lar as relações entre os sujeitos formalmente li- te se dando na forma de uma anatomopolítica
vres. A liberdade, definida como experiência dos corpos dóceis (Foucault, 1999). O que Fou-
imediata dos coletivos, se submete neste ins- cault nos indica é que o projeto político da mo-
tante às formas de mediação de uma nova dernidade se monta a partir de uma dupla fo-
transcendência. calização: nos corpos individuados, docilizados
O Estado é a forma da soberania moderna para seu melhor aproveitamento pelos apare-
definida por um jogo de transcendência e re- lhos de produção e na população que se torna
presentação completamente estranho ao ímpe- o alvo de práticas extensivas de controle.
to revolucionário moderno. O soberano mo- Quando acompanhamos a construção des-
derno tem seu poder enraizado neste plano te projeto político no século 18 esta dupla fo-
imanente das relações humanas. Daí a idéia de calidade exige uma função-relé que permite
Estado representativo moderno que a um só que as práticas de poder possam ampliar o jo-
tempo se propõe como garantia da expressão go de assujeitamento incidindo ora sobre os in-
política das massas e se apresenta como a for- divíduos, ora sobre as populações. Deve-se des-
ma da alienação do poder daqueles que no Es- tacar que é também a partir de pesquisas que
tado estariam representados. Neste sentido, se Foucault faz com os textos históricos acerca das
estabelece um contrato de associação e ao mes- modulações das práticas de saúde que sua ana-
mo tempo um contrato de subjugação. Esta fa- lítica se constrói. Neste sentido, as práticas de
ce contra-revolucionária da modernidade, sua cuidado médico no século 18 ganham uma im-
face soberana, se assenta em uma concepção de portância na articulação do que é do domínio
contrato social que garante um acordo entre os do privado e do domínio do coletivo. É uma
indivíduos na medida em que a força e a vonta- nosopolítica refletida (Foucault, 1979d), posto
de desses sejam desenvolvidos e sublimados pa- que é uma nova preocupação com o tema da
ra a construção de uma vontade geral e que es- doença que explicita, na discursividade e nas
ta vontade geral provinda da alienação das von- tecnologias de cuidado, regras de controle da
tades isoladas garanta a soberania do Estado. população e de cuidado com os indivíduos. Tais
Temos, então, a situação paradoxal de uma práticas de poder, que como assinalou Fou-
soberania que, se tradicionalmente se definia cault, são distribuídas em todo corpo social sem
como poder de um, na modernidade se assenta nenhum lugar privilegiado de emergência, man-
na alienação do poder das massas à autoridade têm com o Estado moderno uma relação parti-
do Estado. A vontade das massas é refreada pe- cular colocando-o como gestor da saúde da po-
la ordem imposta pelo Estado moderno. pulação.
Mas não podemos negligenciar que o ad- A dimensão de omnicontrole que Foucault
vento do Estado moderno se faz em um con- designou como biopoder faz com que o Estado
texto marcado pelo desenvolvimento do capi- desempenhe cada vez mais uma função poli-
talismo. O modo de funcionamento próprio do cial. Esta função persiste no percurso, que vai
capital se expressa na maneira como o Estado da inauguração do Estado moderno à atualida-
moderno opera. O capital como princípio de de, mesmo quando nos vemos confrontados
equivalência universal confere à modernidade com uma expressiva alteração, em nível mun-
um caráter de totalidade, universalidade e de dial do papel do Estado como formulador das
mundialização. O coletivo se submete ao impe- políticas nacionais. Observamos especialmente
rativo da unidade do capital. É neste sentido nas últimas quatro décadas a reorganização
que a massa se transforma numa totalidade minimal do Estado num cenário de globaliza-
ordenada por um princípio de equalização da ção transnacional do capitalismo, em que me-
existência, ao mesmo tempo em que se faz re- canismos de controle dos indivíduos e popula-
presentar na unidade/totalidade do Estado. O ções tornaram-se cada vez mais distribuídos e
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não localizados. No entanto, em países como o quando estados às voltas com a construção de
Brasil, onde o Estado de bem-estar social se- uma política de humanização.
quer chegou a se concretizar, a relação entre as Cabe-nos, agora, perguntar qual é a posição
políticas públicas e o Estado, no seu papel re- do sujeito na composição das massas. Pode-se
gulamentador, não pode ser negligenciada. No verificar a ligação e simultaneidade da teoria
que se refere ao campo da saúde no Brasil, o moderna do homem como sujeito e o Estado
movimento sanitário e a constituição do SUS de polícia. Descartes é um representante dessa
acontecem em anos onde o neoliberalismo cres- modernidade que definiu o homem separando
ce. Neste sentido, o SUS como política de Esta- corpo e alma, o que se articula com esta outra
do foi certamente uma forma de resistência a separação entre estado natural e estado civil,
essa tendência mundial. Mas reconhecer a im- entre paixão e razão. A operação moderna no
portância dessa conquista não pode significar seu afã purificador distingue e separa os ter-
um afastar-se do que está em sua base, a saber, mos e, mais do que isso, submete o primeiro ao
a força emancipatória do movimento consti- segundo termo de cada oposição. Neste senti-
tuinte do SUS. Cabe, então, perguntar como do, tudo se submete aos imperativos da racio-
manter esta força constituinte quando estamos nalidade, do contrato social, de tal maneira que,
comprometidos com a humanização da saúde na modernidade, os direitos se assentam me-
como uma política pública, uma política cole- nos na experiência do homem e mais no con-
tiva. Qual o papel dos coletivos em sua relação trato que assegura o controle social.
com o Estado? Que conceito de humano se for- É neste sentido que uma autora como Bar-
ja neste processo de controle das massas reali- ret-Krigel (1988) afirma a incompatibilidade
zado pelo Estado? entre o Estado moderno com sua função poli-
Diante das massas movidas por impulsos cial e os direitos humanos, como direito que
irracionais, o Estado moderno se fundou por salvaguarda a experiência de cada homem e de
uma contratualidade que as protege de seu qualquer um. A teoria do homem como sujeito
próprio movimento. É porque se pressupõe da razão separado das paixões e dos embates
que as massas são perigosas que se convoca o entre os corpos, separado da natureza como
cidadão a firmar um contrato social a partir do plano comum da existência, pode fundar uma
qual ele cede poder a uma instância transcen- doutrina de direitos civis e se harmonizar com
dental que o representa. Esta instância assume, um Estado administrativo-policial, mas não
doravante, o papel de controle político-econô- pode estar de acordo com os direitos humanos.
mico, isto é, controle da cidade (polis) e con- A doutrina dos direitos humanos supõe uma
trole das famílias e das populações (eicos). Tal teoria do homem diferente desta que separa o
controle se exerce – e esta é outra importante homem da natureza através dos mecanismos
indicação de Foucault – por um Estado repre- do contrato social e da representação política.
sentativo e policial. O Estado policial tem a ta- Estes mecanismos estão diretamente associa-
refa de controle das massas ou de gestão do dos à criação do fundamento da sociedade mo-
corpo social. Foucault, assim, retoma e retorce derna: o Homem como figura ideal e o Estado-
o conceito de Estado de polícia formulado ori- Nação como figura gerencial. Tal fundamento
ginalmente por historiadores constitucionais pressupõe o movimento reflexivo segundo o
alemães do século 19 que, movidos pelo ideá- qual o Sujeito em sua transcendência se consti-
rio liberal burguês, defendiam o ideal constitu- tui ao mesmo tempo como base do humano e
cional do Estado de direito. O termo alemão em defasagem com a sua natureza ou corporei-
Politzei diz respeito a uma prática de gestão da dade. Na experiência de uma defasagem inte-
população buscando a “integração acessória” rior – como aquela entre corpo e espírito, entre
dos indivíduos ao Estado (Foucault, 2004). Pa- o Homem e um homem – o sujeito se constitui
radoxalmente na racionalidade política do Es- como fundamento do humano e do que, de di-
tado moderno comparece um duplo movimen- reito, é o Homem e a organização da socieda-
to: de individualização e integração à totalida- de. No entanto, este “de direito” nunca se con-
de do Estado. Foucault designa este movimen- cilia com o que é de fato a experiência de um
to de tecnologia política dos indivíduos que homem.
produz homens ativos e produtivos para a or- É a partir da idéia transcendente do Ho-
dem social. Dessa forma, a relação entre Estado mem que o campo do direito burguês se orga-
e individuação ganha aqui um sentido de assu- niza de modo fragmentado e por binarismos
jeitamento que precisa ser colocado em análise em que os termos se distinguem e se separam.
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O direito se encontra parcelarizado, dividido – mem, ele mesmo, é assujeitado. Libertar o hu-
penal, público, civil, administrativo –, sendo os mano torna-se, paradoxalmente, uma resistên-
direitos do homem recusados e/ou marginali- cia ao Homem, ou à estratégia de sua morte. O
zados por esta divisão do campo do direito. Se- homicídio em questão aqui é aquele que sub-
gundo o comentário de Barret-Kriegel, o de- verte o Homem como metro padrão ou ideali-
senvolvimento do Estado de polícia coincidiu dade a partir da qual se modela a existência hu-
com a preferência pela segurança da sociedade. mana. Tal metro padrão, por definição, está
Neste caso, não é que Foucault tenha desconsi- descolado da realidade sobre a qual ele se apli-
derado, em sua descrição da polícia, o direito, ca. Na qualidade de figura transcendental que
mas é que ele observou as formas exatas atra- paira como realidade separada, o Homem é a
vés das quais o direito, tornado norma, se me- garantia da normalização, da classificação e da
tamorfoseou em prática de pretensa “defesa da definição de práticas modeladoras e corretivas
sociedade” em nome do que os direitos de um de tudo que se afasta ou se desvia dessa figura
homem ficam sempre referidos e mesmo sub- identificatória ideal.
metidos ao direito do Homem, esta figura re- Este desvio desidentificatório, entretanto,
guladora do socius. não implica o abandono das utopias ativas. Dis-
Este ideal transcendente, portanto, opera tinguir utopia de idealidade é a condição para
formatando a realidade a partir de um padrão pensarmos outros princípios ou rumos de or-
nunca efetivado, mas que se impõe como pro- ganização das instituições. Apostamos no tra-
messa ou ideal a ser alcançado. Neste sentido, o balho democrático pela via de sujeitos e coleti-
direito é menos uma efetividade do que um vos protagonistas e co-responsáveis por sua
porvir ou uma finalidade. própria história. A democratização institucio-
Em contraste com esta idealização do direi- nal exige um reposicionamento dos sujeitos na
to que equivale a uma idealização do Homem, experiência concreta de produção da realidade.
o desafio no contemporâneo é o de pensar o Tal reposicionamento coincide com aquele que
direito num plano comum, isto é, o direito desloca, no debate acerca da humanização, o
construído na experiência concreta dos ho- privilégio de ações orientadas por uma noção
mens ou de um homem qualquer. Falamos, en- idealizada do Homem para aquelas compro-
tão, de um direito não idealizado, porque cons- metidas com a experiência singular de qual-
truído na jurisprudência ou na experiência quer homem – um homem em processo contí-
concreta das lutas pelo direito. E se falamos de nuo de humanização. Estamos, então, diante de
luta, não queremos, ao desidealizar o campo do um novo humanismo. Humanização da saúde:
direito, fazer movimentos que pudessem incor- por um novo humanismo
rer na barbárie. É certo que uma das maneiras É na dimensão da experiência concreta que
de se proteger dos perigos do “direito do mais encontramos um “SUS que dá certo”. A cons-
forte” é pela via de um Estado-gestor do con- trução da PNH se fez por um “reencantamento
trato social. Entretanto, o que temos observa- do concreto” (Varela, 2003) e não a partir da de-
do, passados dois séculos de instauração do Es- finição de um modelo ou de um padrão-ideal
tado moderno é que os mecanismos de repre- para organização dos modos de atenção e de
sentação no campo político não têm dado con- gestão no campo da saúde pública brasileira.
ta da articulação dos direitos humanos com a No concreto da experiência da saúde pública
dimensão humana das políticas públicas de pudemos encontrar a dimensão coletiva do pro-
saúde. Este Estado-gestor do contrato social se cesso de produção de sujeitos autônomos e pro-
exerce e se legitima a partir da autoridade de tagonistas na produção de sua saúde. Neste sen-
uma instância superior, transcendental, separa- tido, em 2004 foi criado o Prêmio David Capis-
da da realidade concreta. Esta separação é uma trano que recebeu num período de dois meses
operação de transcendentalização, operação 671 inscrições de experiências criativas e inova-
através da qual a dimensão da política pública doras no campo da saúde pública. Este prêmio
se submete ao Estado e um homem se submete foi a oportunidade para a publicização de ini-
ao Homem. ciativas, com significativa participação de usuá-
Na modernidade, a morte de Deus signifi- rios, trabalhadores e gestores, que apontavam
cou, na contra-revolução, a eleição do Homem para a construção de um SUS humanizado. Este
como figura do fundamento transcendental. panorama nacional do SUS, que o Prêmio deu
Ironicamente, é pelo pressuposto de uma di- relevo, já vinha sendo acompanhado por con-
mensão transcendental do humano que o ho- sultores e técnicos da PNH que garantiam uma
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efetiva capilarização na ponta do Sistema. É Mas criar novas práticas de saúde, mudar
neste sentido que a PNH invertia a tendência à os modelos de atenção e de gestão do processo
interiorização própria da máquina do Estado de trabalho em saúde é apostar em políticas
apontando para estas linhas que vêm de fora do públicas que vão se construindo numa estra-
Estado nele inoculando a força do coletivo. nha e paradoxal relação com a máquina do Es-
Se em 2003 construímos as bases da políti- tado. O paradoxo é o do funcionamento de uma
ca, em 2004 foi possível ampliar significativa- máquina dita republicana que, no entanto, ex-
mente seu raio de ação desenvolvendo um in- perimenta uma relação de tensão ou mesmo de
tenso processo de discussões e pactuações no repulsão diante da coisa pública. Eis a questão
âmbito dos Estados, municípios e serviços. da qual não podemos nos furtar: o funciona-
Através de dispositivos, tais como os Grupos de mento de uma máquina Estatal em que a res
Trabalho de Humanização, as Oficinas e ativi- pública está nela e contra ela.
dades de apoio institucional, entre outros, a Entendendo este fora do Estado como o
PNH se capilarizava resistindo às habituais de- plano do coletivo em que a saúde se apresenta
terminações verticais e normalizadoras do MS. como uma questão pública (uma res publica),
Essas ações eram acompanhadas da elaboração apostar na humanização das práticas de saúde
de conceitos e criação de subsídios práticos que impõe, portanto, que repensemos a relação en-
davam suporte às intervenções. tre Estado e política pública. Quando esses dois
Falar de saúde como processo de produção termos não são mais tomados como coinciden-
é falar de uma experiência que não se reduz ao tes, quando o domínio do Estado e o do públi-
binômio queixa-conduta já que aponta para a co não mais se justapõem, não podemos acei-
multiplicidade de determinantes da saúde e pa- tar como dada a relação entre eles. Se o público
ra a complexidade das relações entre os sujei- diz respeito à experiência concreta dos coleti-
tos trabalhadores, gestores e usuários dos ser- vos, ele está em um plano diferente daquele do
viços de saúde. O que se produz neste processo Estado como figura da transcendência moder-
é a um só tempo a saúde e os sujeitos aí impli- na. O plano do público é aquele construído a
cados. Por isso, falamos da humanização do partir das experiências de cada homem. Huma-
SUS como processo de subjetivação que se efe- nizar as práticas de atenção e gestão em saúde
tiva com a alteração dos modelos de atenção e foi para a PNH levar em conta a humanidade
de gestão em saúde, isto é, novos sujeitos im- como força coletiva que impulsiona e direcio-
plicados em novas práticas de saúde. Pensar a na o movimento das políticas públicas. Neste
saúde como experiência de criação de si e de sentido, não havendo uma imagem definitiva e
modos de viver é tomar a vida em seu movi- ideal do Homem, só nos resta aceitar a tarefa
mento de produção de normas e não de assu- sempre inconclusa da reinvenção de nossa hu-
jeitamento a elas. A contribuição de Cangui- manidade, o que não pode se fazer sem o tra-
lhem (1978) para o debate acerca da normati- balho também constante da produção de ou-
vidade da vida é indispensável. Este autor nos tros modos de vida, de novas práticas de saúde.
indicou como a vida se define não por uma as- Este trabalho só o fazemos, ou pelo menos só
sujeitamento a normas e sim por uma produ- garantimos a ele sua máxima consistência, quan-
ção delas. A distinção proposta entre normali- do nos organizamos coletivamente em movi-
dade e normatividade dá a direção para este mentos de resistência ao já dado, como assisti-
debate acerca do tema da humanização como mos no processo constituinte do SUS ou na
experiência concreta de um homem em proces- proposta/aposta da PNH. É preciso manter vi-
so de produção de si e de sua saúde. Por huma- vo este processo afirmando o seu não esgota-
nização entendemos, portanto, menos a reto- mento. O fato de o SUS ter se constituído co-
mada ou revalorização da imagem idealizada mo um texto legal, sua dimensão “de direito”,
do Homem e mais a incitação a um processo de não pode esgotar o que na experiência concre-
produção de novos territórios existenciais. ta se dá como o movimento constituinte e con-
Dizíamos que malgrado o fato de a máqui- tínuo da reinvenção do próprio SUS.
na de Estado tendencialmente dobrar para den-
tro as linhas de capilarização do poder, há sem-
pre um lado de fora do que se dobra. Este fora
que insiste no interior da máquina do Estado é
o plano do coletivo, aí onde a política se conso-
lida como experiência pública ou res pública.
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Colaboradores

O trabalho de elaboração do artigo foi desenvolvido de


forma conjunta por R Benevides e E Passos.

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Artigo apresentado em 11/03/2005
Aprovado em 6/04/2005
Versão final apresentada em 5/05/2005

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