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À REIKA DA f\LÉSIA

,,", IIISTÚHIA
I':NTHE CEl{TEZA~
I,: I ~(.)lll·.n m:

1{OCEI{ CI-IARTlER

Trad uç'.ão
PATllíCIA CIIIITONI RAMOS

c.

Edit
da U".:"iversidade
\.
\

© de Roger Chartier
I' edição: 2002

Título original em françês: Au bordde iafalaise: L'histoire entre certitudes et inquiétude.

Direitos reservados desta edição:


UniverSidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa e projeto gráfico: Carla M. Luzzatto


lIustràção da capa: Dicgo Velásquez, "Las hilanderas", óleo sobre tela, Musca de
Prado, Madrid; manipulado eletronicamente.
Tradução: Patrícia Chittoni Ramos
Revisão: Rosangela de Mello
Edito rdção eletrônica: Fernando Piccinini Schmitl

Roger Chartier é historiador. Diretor de estudos na Ecole des Hautes Études en Sciences
Sociales -l!.RESS. Conhecido por seus trabalhos de história cultural e especialista em
histórias do livro e da leitura, publicou e dirigiu inúmeras obras.

C486b Chartier, Roger


A beira da falésia: a história entre incertezas e inquie·
tude ! Roger Charticr, trad. Patrícia Chittoni Ramos. - Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

1. História- Fi losofia. 2, História - Sociologia, I. Título.

CDU 930.23:101
930.23:304

Catalogação na publicação: Môn ica BalJejo Canto -CRB 10/1023

ISI~N - 85-7025-623-X
Sumário

In trodução geral / 7

PRIMEIRA PARTE

Percurso

Introdução / 21
I. História intelectual e história das mentalidades / 23
2. O mundo como representação / 61 "\
3. A história entre n arrativa e conhecimento / 81
4. Figuras retóricas e representações h istóricas / 101

SEGUNDA PARTE

Leituras

Introdução / 119
5. "A quimera da origem".
Foucault, o Iluminismo e a Revolu ção Francesa / 123
6. Estratégias e táticas. De Certeau e as "artes de fazer" / 151
7. Poderes e limites da representação. ,
Marin, o discurso e a imagem / 163
8. O poder, o sujeito, a verdade. Foucault leitor de Foucault / 181
TERCEIRA PARTE
Afinidades

Introdução / 201
9. A história entre geografia e sociologia / 203
10. Filosofia e história / 223
11. Bibliografia e história cultural / 243 \(.o,,\.JC
12. História e literatura / 255 J~

Fontes. /273
Índice de autores citados / 275
Introdução geral

"À beira da falésia". Era com essa imagem que Michel de Certeau
caracterizava o trabalho de Michel Foucault. 1 Ela me p..!'~ce designar
lucidamente toda~ as ten tativas \!lte!~ctuais g~, como_a_nossa, colo-
.sam no centro de seu métod<J..'!S relª-ções que mantêm o§ discursos e
as práticas sociais. O empreendimento é difícil, instável , situado à beira
do vazio. É sempre ameaçado pela tentação de apagar toda diferença
entre lógicas heterônomas mas, no entanto, articuladas: as que orga-
nizam os enunciados e as que comandam os gestos e as condutas.
Seguir assim "à beira da falésia" também permite formular mais
seguramente a constatação de crise ou, no mínimo, de in certeza fre-
qüentemente enunciada hoje em dia acerca da história' Aos elãs oti-
mistas e conquistadores da "nova história " sucedeu, com efeito, um

t Michel de Cen.eau, "M icrOLec hniques el discours panoptique :_ un quiproquo", in Michel


de Ct!rleau, Húloirul/).rydlOnal)'seenlrescienceetjiction, Patis, Gallimard, 1987, p.37-50.
~ Em língua francesa, três pub licações coletivas situam a disciplina histórica: I-listoire socia-
te, histoire gtobale? Actes riu. co/loqlle de!.' 27-28 janvier /989, Chlistophe Charlc (ed.), Palis,
Editions de la l'vlaison eles sciences de I'homme, 1993, Pa5Sés recomposés. Champs ef chanliers
de l'histoire, Jean Boutier e DomilliqueJulia (cd.), Paris, Editions Autrement, 1994, e
L'f Iisloireelle mélierd'ltislOtien en Fnmce 1945-/995, François Bédarida (ed.) , com a colabo-
ração de Maulice Aymarel, Yves-Marie Bercé e Jean-François Silinelli, Paris, Editions de la
Maison dessciencesde l'homme, 1995. Cf., também, Gérad Noiriel,Surla "crise"del'histoire,
Paris, Belin , 1996. Em língua inglesa, ver Jo)'cc Appleby, Lynn Hunt e MargarclJacob,
TcLLing lhe Tl1llh abo1LJ flislOly, Ncw YOI-k c Londres, W.W. NOI-ton and Company, 1994.

7
tempo de dúvidas e d e interrogações. Para esse humor inquie to e,
às vezes, impertinente, várias razões: a erda d e confiança nas cer-
tezas d~~an tificação, o abandono dos recortes c1ássicm,primeira-
~te geográficos,dos objetos históricos, ou àillda, (, q uestionamen-
to das no ões "mentalidades", "cultura p(~Eul~r", etc.) , d as catego-
rias (classes sociais, classificações socioprofissionais, etc. ) , dos mo-
,jelos de interpretação (e struturalista, marxista, demográfico, e tc.)
que eram os da historiografia triunfante. .
A crise d a inteligibilidade histórica foi mais rudemente senti-
da porque sobreveio em uma conjuntura de fo rte crescimento do
número de histori ad ores profissionais e de suas publicações. Ela
teve um duplo efeito. De início fez a história perd er sua p osição
d e disci lin a federalista no seio das ciências sociais. Na França, mas
tam bém fora dela, fora em to rno dos dois progra mas sucessivos dos
Annales (aquele co mandado pelo primado da história econôm ica
e social d os anos 1930, aquele identificado à antropologia históri-
ca dos anos 1970) qu e se realizara, senão a unificação da ciência
social com que sonhavam no início desse século a sociologia dur-
kh eimiana e o projeto de síntese histórica de Henri Berr, pelo
menos uma interdiscipli naridade, cuja pedra angular era dada pela
história. Hoje não ocorre mais o mesmo. Em segundo lugar, o tem-
po dos questionamentos foi também o da dispersão: todas as gran-
d es tradi ões historio ráticas perderam sua unid ade, todas se frag-
m entaram em propos tas diversas, freqüentemente contraditórias,
que multiplicaram os obj etos, os métodos, as "histórias".
~e d o refluxo ct.os grandes m odelos exp li cati~os, uma pri-
meira e forte tentação foi a volta ao a rquivo, ao documento bruto
que registra o surgimento dãSpalavras singulares, sempre mais rÍ-
cas e mais complexas do g ue pode delas dizer o historiador. Desa:
parecendo por detrás das palavras do ou tro , o histo riador esforça-
se para escapar à postura que lhe viria de Michelet e que, segundo
Jacques Ranciere, consistiria na "arte de fazer os pobres falarem ca-
lando-os, de fazê-los falarem como mudos" .3 Tal vontade d e apaga-

~Jacques Ranciere, Les Mols de l'hisloire. EssailÚjJOétiquc dusavoir, Paris. Edi tions du Seu-
il, 1992, p.96. .
"'<Jr,cO - .,.lC::,,,- qual < .<>'os\rcd", ~ve Co.OG/'W. OS "JcO' ..,.~cn~, .. S de
V"Y'> obit!:..o ; cQ0c.e\~o j

8 ca.h'<;jocoo- r"",.k< '" """lv"*oJc"J. to"" d..o~ , ,,f)w.Io~ OJ'~Ú.o.,


",l,,·h<>\o~ '1 ••ol",,·... ";O';~ , h '1'c. "'- r.1.. ~av;( .. "",,1<, f= .. )..10"",,-
e. l.-)<fn~!)M V(..'1$~"'~ s) jvl w~ ,JIS(;-~.$ e..lc,
mento por detrás das palavqs, dadas a ler em sua própria literalida-
de, pode parecer paradoxal em um momento em que, bem ao con-
trário, a história é habitada por uma reivindicação, por vezes alta-
mente proclamada, da subjetividade do historiador, da afirmação dos
direitos do eu no discurso histórico e das tentaçõs:s da ego-hi~tó.ria4,
No entanto, a contradição é apenas aparente, De fato, dar a ler tex-
tos antigos não é, de acordo com as palavras de Arlette Farge, "reco-
piar o real", Pelas escolhas ue faz e elas relaçõe~ ue estabelece,_o
historiador atribui um sen tiºo-1D~dito às palay[ as_que _arranca_do
silêncio dos ar uivos:, "A apreensáo da palavra responde à preocu-
pação de reintroduzir existências e singularidades no disGUrso his-
tórico, de desenhar a golpes de palavras cenas que são igualmente
acontecimentos",5 A presença da citação no texta.JJ.ilitóri.cQ-llluda
assim totalmente de sentido, Ela não é mais ilustração de uma regu-
laridade, ",stabele<:,ida graçãs_à~érie e à mediºa;~dica agora a irrup-
ção de uma diferença e de uma varias ão,
O re!.~rn0!l0 arquivo levanta um segundo problema~ 0_das re-
la ões entre as cat~gorias maniBuladas pelos_ªt9re~e a~ n.QÇ º-e~ em-
pregadas no trabalho de análise, P0r.I(;lI1go tempo, a ruptura entre
am bas pareceu a Rrópria condLção de um disnu:s..o..ci.entífico_liobLC':
o mundo social. Essa certeza não existe mais, Por um lado, os crité-
rios e os recortes clássicos que por muito tempo fundamentaram a
história social (Ror exemylo, a classificação socio rofissional o_u a
posição nas~elaçQ~de produção) perderam sua força de evidên-
cia, Os historiadores tomaram consciência de que as categorias que

·1Maurice Agulhon, Pierre Chaunu, Georges Duby, Raou! Girardct,jacques Le Goff,


Michelle PeiTO r, Renê Rémond, Essaisd'ego-histoire, Picrre Nora (cd.), Paris, Gallimard,
1987. Para um exemplo americano, Pensar la Argentina. Los historiadores hablande histo-
riay política, Roy Hora eJavier Trimboli (cd.), Buenos Aires, Ediciones EI Ciclo por
Asa llo,1994,
"Arl ette Farge, Le Cours ordinaire des choses dans la cilé du XVi!! siecle, Paris, Editions du
Seuil, p.9. Ver também Arlette Farge, LeGoúl de l'atchive, Paris, Editions du Seuil, 1989,
e o texlO fundador de Mic h el Foucault, "La vie des hommes infâmes", Les Cahiers du che-
min, 29, 1977, p.12-29, rceeditado em Michel Foucault, Dilsetécrils, 19j4-1988, edição
estabelecida sob a direção de Daniel Defert e François Ewald, com a colabOl-açào de
Jacques Lagrange, Paris, Gallimard, 1994, t. IH, p.237-253.

9
~javam ti.nham elas próprias uma história, e gue ahistó~ia so·
cial era necessariamente a história das razões e-dos usos destas." Por
_ _o _ _. _ _ __.___ __ - ._._ _, ~._ . . _,

outro lado , as hierarquizações habituais, fundadas sobre uma con·


cepção fixa e unívoca da atividade profissional ou dos interesses so·
ciais, pareceram não dar totalmente conta da labilidade das relações
e das trajetórias que definem as identidades.
Por isso, a aten ão at~i.buíçla às casegorias e ao léxico dos ato·
~, e a ê nfase ~!ada à~ interações e.às .::.~ des-.9ue delineia~_solid~rie.
dades e antagonismos. Por isso, ta!l1b.ém, na.s formulações radica.is
do linguis/icju!.n à .ªlllçTicana, a perigosa redução do mundo social
1!...!Q!l'! PUl:i!So!!strução discursh:'a, a meros jog(;"s- de linguãgem~ Ó
( des'!!!2 lan_çad<!..E.0r..!lE1a I!.?V<i história das sociedades, da qual a mio
cros/mia italiana ]2ode.ser cOQSiderada cQn}O.uma lllOd·alidade exem-=-
lar, consisle> portanto, l1a l1ecessária articulação entre, de um lado!
a d escrição das percepções, das representaçõ es e das racionalidades
·..<!.os atoTes e ede outro: a identificação das interd~endências desco·
nhecidas ql!.e~j1LI.ltM,_ d.eli lllitam e informam suas estratégias. Dessa
articu lação depende a possível superação da oposição clássica en tre
as sin ulai-idades subjetivas··e as· d e terminações coleuvas. Por essa-
razão , uma atenção particular deve ser dada ao conjunto das noções
("configuração", "habitus social", "sociedade dos indivíduos") que,
para Norbert Elias, permitem pensar de uma ma;;eira nova, libera·
da da herança da filosofia clássica, as relações entre o indivíduo e o
mundo social.
A articu lação en tre as propriedades sociais objetivas e sua in te·
riorização nos indivíduos, sob (orma de um habitussociaJ que coman·
da pensamentos e ações, leva a co nsiderar os conflitos ou as negocia·
ções, cujo desafio con tinua sendo sua capacidade para fazer com que
se reconheça sua identidade? É do crédito concedido 0ll. recusa·
do) à im age..m q':'..e uma comunidade produz de si mesma, portanto
de seu "seEpercebido", qued~pend~Efitm~ção(2U <l neiaçãofde
6 AlainDesros iêres, La Polilique des grands 1!fJmbres. Hisloiu de la raison slalislique, Pa lis,
Editions La Découverte, 1993, c Eric Brian, Lalvlesun! de l'E/al. Arbninislmlcllrsetgémnetres
01./XVUI' sikJe, Paris,Albi n1\'[ichel, 1994-.
; Piene Bourdieu. La Dislinction. Critiqlte sociale d1lJllgelllenl, Pmis, Editions de Minui l,
1979. .
IQ\:>'Y' o\o,.<>\~ - ·' 0S!ro.b ·\ \ , ~.', 't~ ,,,"<x r ,!!,,,-) "'e~I;3<Á. r",I",,(n"~ .
10
seu ser social. O porq uê da importância da noçâo de representação,
CJ..l:I.~rm}te articular u"ês .~~tros de realidade: por um lado, as
representaçõe~letivas que incorporam nos indivíduos as divisões
do mundo social e organizam os esquemas de percepçâo a partir dos
quais eles classificam,julgam e agem; por outro, as formas de exibi-
ção e de estiliz'!Ç.ão da .identidi!.de que pretendem ver reconhecida;
enfim , a dele ação a representantes (indivíduos particulares, insti-
tuições, instâncias abstratas) da coerência e da estabilidade da iden-
tidade assim afirmasIa.A história da construção das identidades §0-
ciais enCOMra-se assim tra}1sformada em .l!.m~Jlistóri~..sIas re1.a,!.õ~_s
simbólicas de força. Essa h istória define a construção do mundo so-
cial COlIlO o êxit~ (ou o fracasso) do trab~l ho gue os grupos efetu-
am sobre si mes!IlOs :: e sobr:e os oulros - para transformar a~pro.::
priedades obj.!':Üva~_'lue são comuns <: seus membros em uma per-
tença ercebidac.most!:.ada, recS)l1h ~çida J9u n egada). Conseqüen-
temente, ela compreende a dominação simbólica como o EI'2ces§o
pelo qual os dominadõsaéeitam ou rejeitam as identidade_s imp5ls-
tas qüe visam a assegurar e perpetuar seu a;;Sujeitamento. Ela inscre-
ve-;-"assim, no prõeessode lo nga duração de redução da vio lência e
de coMenção dos afetos, tal como descrito por Elias, a importância
crescente assumida, na Idade Moderna, pelos confrontos que têm
por questões e instrumentos as formas simbólicas.
O retorno dos historiadores ao arquivo situa-se, sem dú\~da al-
guma, em um m00mento mais vasto: o interesse renovado pelo tex-
to. Os h istoriadores perderam mui to de sua timidez ou de sua inge-
nuidade diante dos textos canônicos de seus 0zinhos - historiadores
da literatura, das ciências ou da filosofia - e isso, no próprio momen-
to em que , nessas outras histórias, as abordagens sociohistóricas ou
contextualistas encontravam uma nova vivacidade após a dominação
sem reservas dos p rocedimen tos estruturalistas e formalistas.
Para citar apenas um exemplo, os postulados clássicos e domi-
nantes da história da filosofia (ou seja, a definição da legitimidade das
questões e dos autores a partir de sua atualidade na ati0dade filosófi-
ca contemporânea, a existência de um fundo comum de problemas
e de respostas independente de qualquer formulação específica, a

II
autonomia dessa philosophia perennis em relação a toda inscrição his-
tórica) são hoje em dia fustigados por outros modos, igualmente le-
gítimos, de pensar a relação da filosofia com a história. Em uma tipo-
logia que se tornou clássica, Richard Ror coloca assim, ao lado das
reconstruções racionais da filosofia analítica, voluntariamente anacrô-
nicas e a-históricas, três outros modos de escrever a história da filoso-
fia, todos três plenamente históricos e todos três tidos por pertinen-
tes: a Geistesgeschichtt; definida como a história das questões propria-
mente "filosóficas" e da constituição do cânone dos "filósofos" que as
formularamj a "história intelectual", entendida.no sentido de uma
J]i~tória das cond i çõ~~esm '!.s da atividade fi!?sófica~enfim , as recons-
truções históricas, ue atribuem o sentido dosJ extos a seu contexto
de elaboração e a u3s_c.oudi.ç.ões..dE-possibilidade.8 Esta última pers-
pectiva é evidentemente a mais próxima das práticas históricas clássi-
cas, na medida em que acentua a descontinuidade das práticas filosó-
ficas, diferenciadas pelo lugar social ou pela instituição de saber onde
são exercidas, pelas mutações das questões e dos estilos de investiga-
ção legítimos, pelos gêneros e formas do discurso, pelas configurações
intelectuais que dão aos mesmos conceitos significações diversas."
( Essas três ,:,ias têm seus e uivalentes na história c:Ias ciências, na
-
história da arte ou na história da literatura. 11 ustram uma forma de
-
retorno -aos textos (ou-:-mais geralmell.l&,ils bras) que as inscreve
nos lugares e meios de sua elaboraçfu:l, que as situa no repertório
específiCO dos gê.neros, das questões, das convenções pr,óprias.a_UID
dado tempo...!.... ue focaliza sua atenção nas fq.rmas de sua circula-

t ção e de sua a .ropria ção~ Nisso, elas marcam claramente que , no


momento em que certas dúvidas assaltaram a disciplina, as aborda-
gens históricas reencontram todos seus d ireitos em outro lugar: na
filosofia, na crítica lit~rária, na estética.

8Richarc1 Rorty, "The Historiographyof Philosophy: FourGenres", in Philosophy in His-


lory. Essa)'s Ol/. the I-listoriography ofPhilosoph)1. Richard Rorty,J.B. Schneewind e Qu c l1tin
Ski nner (ed. ), Cambl'idge. Cambridgc Unive rsity Press, 1984, p.49-75 (trad ução fran-
cesa "Quatre mani e n~s d'écrire I'histoire de la philosophie". in Que peltlfaire In. phiJoso-
frlliede scm histoire?, Gianni Vauimo (ed.) , Paris , Editionsdu Seu il, 1989 , p.58-94).
9 Alasdail"Mclnlyrc, "The ReJationship of Philosoph y to its Past", in Philosoph)' in HisJo'Y)',
op. dt., p .31-48.

12
Entre os historiac[Qres., um dos efeitos da atenção renovada pe-
los textos foi atribuir novamente um papel_ce~tr~1 ~s discip-li~ de
erudição. Por muitõ 1-ernRo rele,gadQs à posição ancilar de ciências
auxiliares esses sab~res técni.;..os, C]u~ propõem descrições rigorosas
e formalizadas dos objetos e das formas, tornam::se (oll..!Qrnam-se
~va mell~).ssseQciaisJjá C]1!Loul,Pcumentos.llão são mais conside-
rados somente pelas informações ue fornecem mas s~o também es-
tudados em sLmesmo~,_el1Lsua O{giLnização discursiva e material, suas_
_condiçõe~e produção, suas utilizaçies estrat~g!cas. A Raleografia e
a diplomática transformaram-se, assim, emuma história dos usos so-
ciais da escrita, brilhantemente ilustrada pelos trabalhos de Arman-
do Petrucci e d e seus alunos. 10 Já a analytical bibliography, tal como pra-
ticada sobretudo, mas não exclusivamente, no mundo anglo-saxão,
ampliou-se em uma ambiciosa "sociologia dos textos", segundo a ex-
pressão de D. F. McKenzie,1I que lembra, contra a tirania das aborda-
gens estritamente lingüísticas, ue as dete~mi!lações el!!iürso n~ü-­
_cesso de .(:01!!'trução do s~ntido são plurais. Elas dependem das estra-
tégias de escritura e d e ediçáo, mas também das pQssibilidades e im-
posições próPrias a cada um<:t das formas 0ateriais que sustentam os
discursos, e das competências, das ráticES e das~xpectativas de cada
Cõmui1ldade de lellores (Qu.de espectadores). 12 A "sociologia dos tex-
tos" assim compreendida não se afasta da reflexão feita sobre a noção
de representação, já que, seguindo a distinção proposta por Louis
Marin, as próprias formas dadas aos textos (tanto na oralidade quan-

10 Armando PetnlCci, La scrillura: Ideologia e reppresenlazione, Piccola Biblioteca Einaudi,


Turim, Ein aud i, 1986 (Lradução francesajeux de leUres. Fonnes et usages de l'inscriptionen
llalie xp-XJe mies, Paris, EdiLions de I'[cole des hautes études en sciences sociales, 1993) ,
e Le scnUure ultime: i deologia delta tlwrle e strategie dello SOlvere nella tradizione occidentale,
Tur im, Giuilio Einaudi editore, 1995.
11 O. F. McKenzie , Bibliograplty and lhe Sociology ofTexts, The Panizzi Leclures 1985, Lon-
dres, The British Library, 1986 (traduç:io francesa La Bibtiographie et la sociologie des lex-
les, Paris, Ed itions du Cercle de la Librairie, 1991).
12 A título de tentativa para relaciona r em uma mesma história uma obra, suas formas c
"performances", seus públicos c suas significações, ver Roger Cha rl ie r, "George Dan-
din, ou le soc ial e n représentation ", Annales, f-fistoires, Sciences Sociales, 2, março-abril 1994,
p.277-309, reeditado em Roger Chartiel~ Cull1t1'técriteet société. L'ordredes livres (;av-À,VJ/l'
siMe), Paris, Albin Michel, 1995, p.155--204.

13
to na escrita, no manuscrito e no impresso) pertencem à dimensão
"reflexiva" de toda representação, aquela pela qual um dispositivo
material apresenta-se como representando algo - no caso , um texto.
Os historiadore~_s~b_e.!TIbem hoje e m dia que também são ~ro­
_dutQres de textos. A escritura da história, mesmo a mais quantitati-
va, mesmo a mais estrutural, pertence ao gênero da narrativa, com
.o qual compartilha as categorias fundamentais. Narr~tivas de ficção
e narrativas de história têm em comum uma mesma maneira de fa-
zer agi~ seu~2ê'~sõnãgens", uma mesma maneira decó-nstruir-a tem.--=-
-Foralidade, u]n'.lc E2..<:.s ma ..<:o~"pção da causalidade. Essas constata-
ções tornaram-se clássicas pelas obras de Michel de Certeau" e de
Paul Ricoeur.'4 Eles lembram, de início, que considerando a depen-
dência fundamental de toda história, qualquer que seja, em relação
às técnicas da rnise en in/ligue' , o repúdio da história factual não sig-
nificou absolutamente o abandono da narrativa. O que é uma boa
maneira de dizer que os historiadores, assim como os outros, nem
sempre fazem o que pensam fazer e que as rupturas orgulhosamen-
te reivindicadas mascaram com freqüência continuidades ignoradas.
Porém, o problema mais essencial é outro e pode ser assim for-
mulado: por que, duradou~nte , a história ign,2rou sua perten;:..
ça à classe das narrativas?'" Esta era necessariamente ocultada em
todos os regimes _de_historicid~de- que 'postula:~I~-;-;;;-a ~~incidên- '
-.s,iª sem._dist<l!J_çi" enúe-os fatos}íistóricos .e os discúrsos qüê tinham
_ o enc'![go de justificá-los. Quer seja coleta de exemplos à maneira
antiga, quer se dê como conhecimento de si mesma na tradição his-
loricista e romântica alemã, quer se queira "científica"y a história só
podia recusar-se a se pensar como uma narrativa. A narração não
podia ter nenhum estatuto próprio , visto que, conforme o caso, es-
lava submetida âs disposições e às figuras da arte retórica, era consi-
derada como o lugar do desenvolvimento dos próprios acontecimen-
tos, ou era percebida como um obstáculo maior a um conhecimen-

I' Michel de Cerlcau , L'Ecrilure de l'Iúsloire, Pari s, G<lll imard , 1975.


H Paul Ricoeur, TeiiiPSel récil, 3 vol. , Paris, Ediri ons dLI Se uil, 1983-1985.
* Composição de lima trama, de lima intrib-'a. (N. de T.)
J .~ Fnlllçois Hartog, "L'an du récit hislorique", in Ptlssés n:r,;vlllposis. Clwmps el chantif:rs de
I'IúslOire, oI'. cil. , p.184-J93.

14
to verdadeiro. Soment~_çQ!Iljl. .<::º-Iltestação d~ssa .~pistemologia da
coincidência eSQ!l1 .'!.. t.9,!,ad,! de consciência da,distância existente
,en tre g P.e.~s.i!9o_ e sU3_r_ep!esenp~ção f ou, para dizer como Ricoeur,
entre "o que, um dia, foi" , e que não é mais, e as construções discU1~
sivas-que pretendem~assegüra!:.a !!P!§sentanceou a lieutenance' desse
~~ado Ll~podl'! des<:;nvolver-se llJlli! refle"ão sob,re as modalidades,
<lQ_~esm~e~o ~:gmuns e sing~l':l!:<::s,_da narr~tiva d,,:.história.
Essa consciência agl}.9a da.2jmefls;;'º-!l.~r!'!l:i~~~ histórialançou
um sério d~afiº~~odos31quelesgl!(:~!::,s.'l:r.n_~-",~pos~<2~ relatiyista
à Ha c!!::.'.l.':Y.'.hite, q~e não vê no d~scurso d<::..his~ótia senão um livre
~~ de fig~ra~ r.e~óricas, senão uma expressão deTltre outras da in-
venção ficcionaI. Contra essa dissolução do estatuto de conhecimen-
to da históriaJ'reqüentemente considerada nos Estados Unidos como
uma figura do pós-modernismo,_d~':.e-se ~\!~t~ntar com força que a
história é comandada por uma intenção e por um princípio de ver-
dade, que o pãSS'aJoque'ela estabelec e com() objctõ'[üffiã realídade
exteriorao discurso, e que seu conhecimento pode ser controlado.
--' A lembrança é mals'do qüe i:í"iilem uma época em que
às fôrtes
tentações da história identitária correm o risco de embaralhar toda
distinção entre um saber controlado, universalmente aceitável, e as
.~!lstrl!.çiies míti'2'§.gu!,..v,tm_cgngrmar ll!~!flórias.", a,:;[>,iraçõ~s
particulares. Como escreve Eric Hobsbawn: "A projeção no passado
a"",_aô'ejos'do tempo pr~sen [;;:Ou, em termos técnicos, o anãcroms-
mo,é a técnica mai~ co~re'nte é-fiais cõmodã'parac-'::iár uma'histó'
ria própria a satisfazer as necessidades de coletivos oLi de 'c'omuíü-
dad~s imaginárias' - conforme' a expressão de Beneâict A:ffderson ~
que estão lõú'ge de serem exclusivamente nacionais".!7
- Mas pode-se resistir a essa deriva, mortal para a função refe-
rencial da história, somente pela reafirmação, por mais necessária

* Représenlance, o que tem a função de representar; lieulenance, o que substitui. (N. de T.)
tu Paul Ricoeur, Temps et récil, o}). cit., L. I, p. 203~205.
17 EricJ. Hobsbawm, "L'historicn entre la quêle d'universalité e t la quête d'idcntité",
Diogene, 168, outubro-dezembro 1994, número especial "La responsabilité soci:.dc de
J'hislOrien", p.52-86 (citação p.61). Eric Hobsbawm faz referência ao livro de Benedict
Anderson, lmagi-ned COInmunilies. Rejlections on lhe Oágin and SPread ojNaLiollalism, (1983),
edição revista, LOlidres e NewYork, 1991.

15
que seja, das exigências, das disciplinas e das virtudes do exercício
crítico? Não se deveria antes, considerando que o saber, histórico
ou não,-;:;ão pode mais ser-pensado como a pura coincidência ou
a simples equivalência de um objeto e de um discurso, emp reen~ -
-_der uma ref~ndação mais essencial? É jJar~ i~so que tend~m]oy ~e
~pleby, Lynn Hunt e Margaret]acob quando pl~iteiam um a n~
theory o[ obji ctivity. (entendida como an intemctive relationship
between an inquiring subject and an externai object [uma relação recí-
proca entre um sltieito conhecedor e um objeto exterior] e pensa-
d~ como não exclusiva da pluralidade das interpretaçõ~s) .e quan-
do adotam uma posição epistemológica, qualificada de practical
l-ea tsrn, segun o a qual peoPle 's perceptions oJ the world have sorne c01~
respondance with that world and that standards, even tough they are his-
torical products, can be rnade to discriminate between valid and invalid
assertions" [as percepções do mundo dos atores têm alguma cor-
respondência com esse mundo e onde critérios, mesmo que sejam
historicamente construídos, podem ser estabelecidos para distin·
guir entre as afirmações admissíveis e as que não o são].
Paul Ricoeur E.Q!~ a vez indica as condiçôes de possibilidJlde
de um "realismo crítico do conhecimento histórico". Para ele, elas
se devem, por um lado, à inscrição do sUj eito lstoriador e do obje-
to histórico no mesmo campo temporal: "É o mesmo e único siste-
ma de datação que inclui os três acontecimentos que constituem o
começo do período considerado, seu fim ou sua conclusão, e o pre-
sente do historiador (ma is precisamente, da enunciação histórica)".
Elas remetem, por outro lado, à pertença do historiador e dos ato-
res, cuja história ele escreve a um campo de práticas e de experiên-
ciassuficientemente comum e compartilhado para fundar a "depen-
dência mesma do 'fazer' do historiador em relação ao 'fazer' dos
agentes históricos": "É primeiramente como herdeiros que os histo-
riadores se colocam em relação ao passado antes d e se colocarem
como mestres artesãos das narrativas que fazem do passado. Essa

lSJoycc Appleby, Lyn n Hum c Mal'garetJacob, Telfi-ng Ifu TY"I.tLh about Hislory, op. cit., p.259
e 283. .

16
noção de h erança pressupõe que, d e um certo modo, o passado se
perpetua n o presente e assim o afeta". 19
Sem dúvida, é paradoxal que- um
- historiador
- ._--como eu , qu e en-
contra inspiração nos p en samentos da ruptura e da diferença, evo-
que deste modo o procedimento h ermen êutico e fenomenológico
de Paul Ricoeur. Mas é dessa tensão que d epende hoje a compreen-
são d o passadõ , ou do o u tro, para além das d escontinuidades que
separam as configurações históricas.
Todavia, a constatação não basta para dotar a história do estatu-
to de conh ecimento verdadeiro. Resta uma questão que, parece-me,
não responde completamente nem às tentativas para fundar uma new
ª
theory Dfobjectivity, n em às propost~que visam assegurar o "realism o
críti co do conh ecimento histórico": ou seja, quais são os critérios gra-
ças aos qUais um discu::so histórico, que é se'!!Pre ~m conhecimento
sobre traços e indícios, pode ser considera.do çomo uma reconstru-
ção válida e explicativa (em todo caso,~ais válida e explicativa do 9':!tC
o utr~s) da realidade passada que ele constituiu como seu objeto? A
~esposta não é simples-e hoje m enos ainda do que no tempo em que
as certezas bem ancoradas da objetividade crítica e de uma epistemo-
10gIã da c oincidência e ntre 2 real e seu conhecimento protegiam ã
história de qualquer inquietude quanto a seu regime de verdade.
Isso não ocorre mais. Fundar a disciplina em sua dimensão de
conh ecime nto, e de um conhecimento que é diferente daquele for-
n ecido pelas obras de ficção, é de uma certa manei ra seguir ao lon·
go da falésia. Os historiadores perderam muito d e sua ingenuidade
e de suas ilusões. Agora sabem que o respeito às regras e às opera-
ções próprias à sua disciplina é uma condição n ecessária, mas não
sufici ente, para estabelecer a histó ria como um saber específico.
Talvez seja seguindo o perc ur~o que leva do arquivo ao texto, do texto,
à escritura, e da escritura ao conhecime nto, qu e eles poderão acei-
- tar o desafio que lh es é h oj e la n çado.
- Uma última co nsideração. Sempre me pareceu que o trabalho
de todo historiador está dividido entre duas exigências. A prim eira,

J9PauI Ricoeur, "Histoirc Cl rhétoriquc", Diogêne, p.9-26 (citações p.24 e 25).

17
clássica e essencial, çonsiste em propor a inteligibilidade mais adequa-
~ossível de um o~eto, de um corpm,de um prõbfema. É poressa
razão que a identidacte de cada historiador lhe ,[dãdâ por seu traba-
lho em um território particular, que define sua competência própria.
~~~~~ "~'!P_o de pe§quisa é o da história das formas, usos
e efeitos da cultll ra..e!<2:i ta. n~s soc.iedades da primeira modernidade,
entre o século XVI e o século XVIII. Mas há também uma segunda
exigência: aquela que obriga a história a travar um diálogo com ou-
tros questionamentos - filosófico~, sociol~&cos, literários, etc. Somen-
te através desses encontros a disciplina pode inventar questões novas
e forjar instrumentos de compreensão mais rigorosos.
- Por isso, a organização deste livro . Sua primeira parte demar-
ca, por meio de uma série de reflexões historiográflcas e metodoló~
gicas, os deslocamentos·que- transformaram o s m ódos de pensar e
de escrever a hist6 riâ n estes iütimos vinte anos. A se~nda segue em·--
companhia de pensamentos fortes, de ob·ras densas, que foram pre-
I ciosos pontos de apoio para o trabalho dos historiadores. Nestes úl-
' timos anos, três noções sustentaram a reflexão das ciências huma-
I nas e sociais: dis~o, erática,r~eres_~~~çã9 . Resgatar a obra de
Michel Foucault, a de Michel de Certeau e a de Louis Marin permi-
e
te precisar melhor seus contornos d ellrllr com ·malsacu ídade sua
pertinência. Enfim, a última parte da obra é consagrada às relações
que a h istória manteve e mantém com várias disciplinas que são suas
vizinhas próximas. Trata-se de compreender como os historiadores
preferiram certos corporativismos e, conseqüentemente, n egligen-
ciaram as propostas ou as questões vindas de outros horizontes.
Acompanhando a história dessas alianças e ignorâncias, nosso obj e-
tivo é duplo: retornar às escolhas que marcaram duradouramente a
I prática da história na França, mas mostrar igualmente (a partir do
exemplo dos laços entre crítica textual e história cultural) que se
~ inventam hoje em dia novos espaços intelectuais.

18
PRIMEIRA PARTE

Percurso
Introdução

Os quatro textos que compõem a primeira parte deste livro


foram redigidos e publicados em datas e em contextos muito diferen-
tes. Reuni-los hoje responde a uma dupla intenção. Por um lado, tra-
ta-se de indicar meu percurso a partir da tradicão historiográfica à gua!
pertenço - a da história sociocultural à maneira dos Annales. Entre o
texto crítico apresentado em Comell en;-1979 e publicadõ em 1983,
que pretendia submeter a exame as d ivisões e noções demasiado sim-
ples sobre as quais tinha vivido a história das mentalidades, e o publi-
cado em 1994, que tenta fazer o levantamento das principais razões
que abalaram as certezas dos historiadores, tanto na França como fora
dela, um caminho foi traçado. Ele é marcado pela ampliação dos ho-
rizontes historiográficos, pelo apagamento das fronteiras entre tradi-
ções nacionais, pelo desencravamento da história, agora mais ampla-
mente aberta às interrogações das disciplinas que são suas vizinhas.
Situando em um caml.20 de estudo ~ticular, aquele que une textos,

lado "O mundo como representação" queria mostrar os ganhos que


se pode esperar tanto da manipulação dQS conceitos quenão perten-
-.9.am ao repertório clássico da história das mentalidades - por exem-
~0.!.-S's Ee r~reseI!.tação OIJ de ap2"Clpriação - quanto do cruzamento
de abordagens e de técnicas por muito tempo disjuntas.

21
Por ou Ira lado - e esta é uma segunda intenção -, os quatro
ensaios aqui ·reunidos permitem, pelo menos espero, âeterminar os
princiFl<iis debates que atravessaram a díséiplina histórica nestes úl-
timos vinte ou trintã anos. Os desafios foram numerosos e diversos,
da "reviravolta lingüística" à americana ao retorno ao político, cris-
talizado na ocasião do Bicentenário da Revolução Francesa, da "re-
\ viravolta crítica" pleiteada pela redação dos Annales ao questiona-
'" mento do estatuto de conhecimento da história. As discussões tra-
vadas em torno dessas propostas, às vezes perturbadoras, transfor-
maram profi.lI1damente os modos de p<cnsar, de trabalhar e de es-
crever dos historiadores. Elas fizeram surgir novos objetos; obriga-
ram a reformular questões clássicas (por exemplo, a da objetivida-
de do discurso histórico); levaram. a correlacionar de maneira iné-
dita as formas da dominação, a construção das identidades sociais e
as práticas culturais. Com o desaparecimento das antigas certezas,
tais como organizadas pelos paradigmas dominan tes dos anos 1960,
a história pareceu entrar em crise. Penso que o diagnóstico não é
totalmente exato. Questionando as evidências que pareciam mais
solidamente estabelecidas, o trabalho histórico encontrou uma nova
vitalidade e articulou de modo inventiva as ref1exões teóricas ou
metodológicas com a produção de novos saberes.

22
1. História intelectual
e história das mentalidades

I
JL
Definir a história intelectual não fi tarefa fácil, e isso por várias
razões. A primeira manifesta-se no próprio vocabulário. Em nenhum
o utro campo da história, de fato, existe uma tal especificidade nacio-
nal das designações utilizadas e uma tal dificuldade para aclimatá-las,
a té mesmo simplesmente para trad uzi-las para outra língua e outro
contexto intelectual.' A historiografia americana conhece duas cate-
gorias, cujas relações são, aliás, pouco específicas e sempre problemá-
ticas: a de intellectual histo , surgida com a NI!W History do início do
século e constituída como designação de um campo particular de
pesquisa com Perry Miller; a de his/ory o[ideas, construída or Arthur
Lovejoy para definir uma_di~Ü~.Iin? tendo seuQQjeto róprio, seu
program~~s<:us métodos de P_lê.s uisa, seu lugar institucional (em
particular, graças ao journal o(theHistory of./@as,fundado em 191Q por
Lovejgy). Ora, nos diferentes países europeus, nenhuma dessas duas
designações passa: na Alemanha, Geistesgeschichtepermanece dominan-
te; na Itália, S/ona intellec/ualenào aparece, nem mesmo em Cantimo-
ri. Na França, história das idéias quase não existe, nem como noção,
nem como disciplina (e foram de fato historiadores da literatura, tal

I Ver as primeiras páginas do artigo de FeUx Gilbert, "Intel1ectual HislOl")': its Aims and

Methods" , Daedall.ls, ' -lisloricalSludies Toda)'. winler 1971 , p.80-97.

23
como Jean Ehrard, que reivindicaram, aliás, com dúvidas e prudên-
cia, o termo), e história intelectual parece ter chegado tarde demais para
substituir as designações tradicionais (história da filosofia, histól-;a lite-
rária, história da arte, etc) e não teve força contra um novo vocabulá-
rio fOljado essencialmente pelos historiadores dos Annales: história das
mentalisiadJiS, psicologia histórica, história social das idéias, história sociocul-
tural, etc. A recíproca desse fechamento é, aliás, verdadeira, já que
história das mentalidades exporta-se mal, parece mal assegurada em
outras línguas que não o francês e parece ser a origem de inúmeras
confusões, o que leva a não traduzir a expressão e a reconhecer assim
a irredutível especificidade de uma maneira nacional de pensar as
questões. Às c~tezas lexicais das outras histórias (econõmica, social,
política), a l]istória intelectual opõe, portanto, uma dupla incerteza
do vocabulário ~e <t.. design~da historiografia nacional possui sua
própria conceitualização_e, em cada uma delas, diferentes noções,
dificilmente-
distinguidas
- umas das outras,-entram
--- e m-competição.
Mas, por detrás dessas palavras que diferem, as coisas são se-
melhantes? Ou ainda, o ob jeto _~ de~nam tão diversamen te é
único e homogêneo? Nada parece menos certo. A título de exem-
plo, duas tentativas taxinõmicas: para Jean Ehrard, a histól-;a das
idéias recobre três histórias - "história individt;.alista dos grandes
sistemas do mundo, história dessa realidade coletiva e difusa_que
é a opinião, história_estrutural 1<!.s formas de pensamento. e d~ sen-
sibilidade";2 para Robert Darnton, a história intelecl!lal (intellectu-
al history) comp-reende the history of ideas (lhe stud)' o/ s)'stematic thou-
ght usuall)' in philosophical treatises), intellectual history proper (the stu-
dy o/ informal thought, climates %pinion and literacy movements), the
social hist01y of ideas (the study of ideologies and idea diffusion) and cul-
tural history (the study o/ cult"re in lhe anthropological sense, including
worldrviews and collectivementalités' [a história das idéias (o estudo

2J ean Ehnlrd, "Histoire dcs idées et histoire littéraire", in Problemes ell1u:lhodes de {'histoill!
littéraire. Co/loque /8novembre 1972, Publications de la Société d'hisloire litté raire de la
Fnmce, Paris, Armaml Colin, 1974, p.68-80.
~I RobertDarnton, "In tellewlaI and Cultural HislOl)''', in TlwPasl BeJore Us: ContemjJorary Uis·
umcal H/rilingin ilu UnitedSlllles~ M. Kammer (ed. ), ComeU Un iversity Press. 1980, p.337.

24
dos pensamentos sistemáticos, geralmente em tratados filosóficos),
_a história intelectual ro riamente dita (o estudo dos pensamen-
tos informais, das correntes de opinião e das tendências literárias),
a história social das idéias (o estudo das ideologias e da difusão das
idéias), e a história cultural (o estudo da cultura no sentido antro-
pológico, incluindo as visões do mundo e as mentalidades coletivas) l-
Em um vocabulário diferente , essas defini ões dizem , no f~ndo ,
uma mesma coisa: que o cam o da história Qita intelectual reco-
bre, na verdade, o conjunto das formas de gensamento e que seu
?b jeto não tem mais yr~isão af!.riori dO_Ç]ue aquele da história so-
cial ou econômica_
- --
Para além das designaçôes e das definições, importam portan-
to, antes de tudo, a ou as maneiras como, em um determinado mo-
mento, os historiadores recortam este territÓrio.imenso_e indeci-
so e tratam as unidades de observação assim constituídas_ Toma-
das no centro de oposições intelectuais ao mesmo tempo que ins-
titucionais, essas maneiras diversas detITminaI]1 cada uma seu ob-
jeto, suas ferrafl.1enta§SQ!LceituaiJ;, sua metodologia_ No entanto,
cada uma delas sustenta eX]2 li citamffite_QU.não, Uillaxepresenta--
ção da totalidade do camRo histórico, do lugar que ela prJ:_tende
~ele ocupar e daquele deixado aos outros ou recusa_do . A incerte-
za e a compartimentação do vocabulário de designação remetem
sem dúvida alguma a estas lutas interdisciplinares cujas configura-
ções são próprias a cada campo de forças intelectuais e cujo obje-
tivo é urna posição de hegemonia, que é primeiramente hegemo-
nia de um léxico.
Queremos en tão ex or a ui algumas das oposições que mode-
laram e dividiram de maneira original a história intelectual france-
~, e isso, estando consciente de um duplo limite: por um lado, na
falta de investigações precisas, não poderemos restituir plenamen-
te as questões institucionais ou políticas subj acentes aos confrontos
de método; por outro, devido à nossa posição pessoal, privilegiare-
mos por força alguns debates, em particular, aqueles travados em
torno dos Annales, de 1930 até hoje, desequilibrando talvez assim o
quadro de conjunto.

25
OS PRIMEIROS ']\NNALES" E A HISTÓRIA INTELECTUAL

No século XX, a trajetória da história intelectual na França (no


duplo sentido de suas mutações temáticas ou metodológicas e do
deslocamento de suas posições no campo disciplinar da história) foi
amplam ente comandada por um discurso que lhe era externo: aque-
le mantido pelos historiadores que , entre as duas Guerras Mundiais,
formularam uma maneira distinta de escrever a história. Deve-se,
portanto, partir daí e tentar compreender como a história dos An-
nales e, em primeiro plano, Lucien Febvre e Marc Blocl~.' pensaram
o que devia ser a história intelectual. O fato importa, não para uma
celebração retrospectiva qualquer, mas porque essa abordagem da
história das idéias tornou-se progressivamente comum entre os his-
toriadores, na própria medida em que a comunidade histórica de-
signada, muito ab usivamente sem dúvida, tornava-se dominante,
de início in telectualmente nos anos 1930, em seguida in stitucional-
mente após 1945:'
Para Febvre, pensar a história intelectual é primeiramente rea-
gir àqu ela que se escreve em sua época. Desse ponto d e vista, a con-
tinuidade é grande e ntre os primeiros resumos publicados na Revue
de synlhése hislonque de Henri Berr, antes de 1914, e aqueles que ele
concede aos Annalesdurante e após a Segunda Guerra Mundial. Por
exemplo, as duas longas recensões que consagra, na revista de Berr,
em 1907, ao livro de L. Delaruelle sobre Budé e, em 1909, ao de E.
Droz sobre l'roudhon. A í se encontram formuladas duas interroga-
ções que fornecerão os próprios fundamentos de seus grandes livros,
o Lulherem 1929 e o Rabelaisem 1942. Primeiramente, pode-se re-
duzir às cate orias tradicionais de que' se serve a h istória das idéias
(Renascença, Humanismo, Reforma, etc.) os pensamentos às vezes
contraditórios, freqüentemcllte compósitos e, em todo caso, sem-
pre móveis de um home m ou de um meio? AB designações retros-
pectivas e classificatórias e n cerram contra-sensos e traem a vivên cia

4 Cf. Jacques Revel , "The Amwles: Co ntin uities and Discominuities", Review, vo l. I, n. 3/
4, invemo-primavera 1978, p.9-18 c "Histoire e t sci enccs socia le s: les paradigmes dcs
. Anna/eS', Anna/esE.s.C , 1979, p.1360-1375.

26
psicológica e intelectual antiga: "Assim, por exemplo, designando
com o próprio nome de reforma, no início d esse século [o século
XVI], o esforço de renovação religiosa, de renascimento cristão de
um Lefevre e de seus discípulos, j á não defo rmam os, interpre tan-
do-a, a realidade psicológica de então?"" Livrando-se dos rótul os ue,
jJre~ nd e nd o identificar os pensamentos antigos, na verdade os tra-
v~~em, a tarefa clos:llis1s>j!adorés do m(lVimento intelectüal" (como
esc reve Lefêvre) é, antes de tudo, reencontrar a originalidade, irre:
dutível a toda definição aprio'Ti, de cada sistema d e pensamento, el11
sua com pfexidade-e seus deslocamentos.
O esforço para pensar a ~'elação e ntre ~s idéias (ou as ideologi:.
E) e a realidad e social alravés..de categ.9rias distintas daQueJas da
influência ou do determinismo é a segunda preocupac;.i!9_expressa
por Fel?Y'ê.e_ant~s l11esmo Cfél·9J4. Tes temunha disso é este texto de
1909 acerca do proudhonismo:

Não há, no sentido próprio, teorias "criad oras" - porque assim que uma
idéia, por mais fragm e n tária que seja, foi realizada no domínio dos fatos e
de maneira tão imperfeita quan to possível - não é a idéia que conta con-
seqüentemente e que age, é ~1'!§.t.i l ui~ã.9 situada e m seu lugar, em seu tem-
po, incorpo rando-se uma rede complicada e móvel de fatos sociais, pro-
duzindo c sofre ndo alternadamente mil ações diversas e mil' reações,fi

Mesmo que os procedimentos de "encarnação" das idéias sejam sem


dúvid a mais complexos do qu e Febvre deixa supor aqui, resta que
ele afirm a c1aramen te sua von tade de romper com toda uma tradi-
ão de história intekc tual (figura invertida e um marxIsmo s impli~
ficado) ~e deduzia de a lguns pensamentos voluntaristas a totalidad e
dos processos de transformação social: tara ere,·o iõcial não"pode-
ria d e ll,lodo ª l gum ~e d isso.!.~n~s ideologias..9,ue visam a modelá-
~ Estabelecendo assim , n esses textos de juventude, uma dupla dis-

"Lucicn Febvre, "Guillaum e Budé ct lcs o ri gin es de l'humanisme rrança is. À propos
d'OUVl'âges récen lcs", Reuu.e de S)'n.lhese hislorique, 1907, retomad o em Paur ~me Jtisloin à
paTt m/iere, Paris, SEVPEN, 1962, p. 70S.
ti Lucien Febvre, "Une qucstioll d' inOu en cc: Proudh oll elles ~i}'ndi ca li s Jll es des an nées

1900-] 9 14", Re:vuede sy·nthese hisloriqu.e, 1909 , retom ado Cln Paur une ltútoire à par! enliere,
op. cil., p.785.

27
tância, de um lado, entre as maneiras de pensar antigas e as noções,
na maioria das vezes muito pobres, com as quais os historiadores pre-
tendiam catalogá-las; de outro, entre esses pensamentos antigos e o
terreno social onde eles se inscrevem , Lucien Febvre indicava o ca-
minho a seguir para uma análise histórica gQ.e tomaria por modelo
as d escrições elos fatos de mentalidade tais c0I!!0 os co nstruíaII! en-
tâo os sociólogQ§ d~rkheimianos ou os etnólogos que seguiam a tri-
lha de Lévy-Bruhl.
Quarenta anos mais tarde, contra uma história das idéias que
Febvre percebe como imobilizada em suas abstrações, o tom tornou-
se mais crítico e mais mordaz. Em 1938, ele maltrata assim os histo-
riadores da filosofia:

De todos os lraba lhadores que retêm, precisado ou não por algum epí-
teto, o qualificativo genérico de historiadores, não existe quem o justifi-
que de alguma maneira ao nosso ver - salvo, com bastante frequência,
aqueles que, aplicando-se a repensar por sua conta sistemas às vezes com
vários séculos de idade, sem a menor preocu pação de estabelecer sua
relação com as outras manifestações da época que os viu nascer- acham-
se assim fazendo, muito exatamente, o contrário do que reclama um
método de his toriadores. E que, diante dessas criações de conceitos oriun-
dos de inteligências desencarnadas - e depois vivendo sua própria vida
fora do tempo e do espaço, urdem estranhas cadeias, de an éis ao mes-
mo tempo irreais e fechados ... 7

Contra a história intelectual do tempo, a crítica é, portanto, dupla.


Por isolar as idéias ou os sistemas de pensamen to das condições que
autorizaramsua prõdução, por separá-los radicalmente das formas da
vida social, essa história desencarnada institui um universo de abstra-
ções onde o pensamen to pare-ce não ter limites já que não tem de-
- eOctências. Explicando-com admiração - o livro de Étienne Gils-o n ,
La Philosophie au Moyen Age, Febvre retoma, em 1948, esta idéia cen-
tral para ele: "Não se trata de subestimar o papel das idéias na histó-
ria. Menos a inda de subordiná-lo à ação dos interesses. Trata-se de
mostrar que lima catedral góticac.os mercados de Ypres ... e uma <!.es-

"] Lucicn Febvre, "LCUl" histoirc ct la nôtre" , Anno{es d'hisloh1J économique et sociale, 1928,
reto mado e m C01l1balJ ponrl'Hisloire, Pal;s, Armand Coli n, 1953, p.278.

28
sas grandes catedrais de id éias como as que Etienne Gilson nos des-
creve em seu livro -são as filhas de lIm mesmo telllpo. Irmãs que cres-
ceram em um m(!smo lar"'" Sem ex.elicitá-Ia ou teorizá-la, Febvre su-
ere a ui uma leitura 9.ue postula, ara uma dada época, a existência
de "estruturas de pensamento" (a expressão não aparece em Febvre),
elas ró rias comandadas~~as evo lu ões socioeconõmicas, que Ol~
nizam tanto as construções intelectuais uanto as . roduçõ~~rtís­
ticas, tanto as práticas coletivas como os Rensamentos filosóficos.
Arquitetura e escolástica: a letra mesma da observação de Feb-
vre convida a apro~imá-la do livro muito contemporâneo de Erwin
Panofsky, Gothic !lTChitectU1~e and Scolasticis1n (objeto de uma série de
conferências em 1948 e publicado em 1951).' Com efeito, ambos,
de maneira paralela, e muito provavelmente sem influência recípro-
ca, tentam na mesma época criar os meios intelectuais que permi-
tam pensar este "es írito da é oca", este Zeitr;eist que, por exemplo,
fundamenta todo o método de Burckhardt mas que, para Panofsky
e para Febvre, é, bem mais do que o .9ue ex lica,justamente o que
deve ser explicado. Fazendo isso, cada um à sua maneira, distancia-
se das noções que até entâo subentendiam implicitamente os traba-
lhos de história in telectual, ou seja:
1
1. o postulado de uma relação consciente e transparente entre
as intenções dos produtores intelectuais e seus produtos;
2. a atribuição da criação inte lectual (ou estética) apenas à in-
ventividade individual , portanto, sua liberdade - idéia que funda o
motivo mesmo, tão caro a uma certa história das idéias, do precursor;
3. a explicação das concordâncias determinadas entre as dife-
rentes produções intel ectuais (ou artísticas) de um tempo, seja pelo
jogo dos empréstimos e das int1uências (outras palavras mestras da
história intelectual), seja pela referência a um "espírito da época",
conjun to compósito de traços filosóficos, psicológicos e estéticos.

8 Lucien Febvre, "Doctrincs ctsociétés. ÉtienneGi lson ct la philosophie ctn XN~ siêcIe",
A11.nales E.s.c., 1948, retomado em Combalspour I'Histoire, O/l, dl., p.288.
9 Envin Pallofsky, Architeclu11t golhiqlle et pensée scolasliq!te, pt'ecedido por L'Abbé Suger de

Sainl-Denis, tradução e posfácio de Pi erre Bourdieu, Paris , Éd itions de MinuiL, 1967.

29
Pensar de o utro modo essas diferentes relações (entre a obra e
seu criador, entre a obra e sua época, entre as dife rentes obras de
uma mesma época) exigia forjar ~i tos noy'º-s: em Pano[sk , os
d e h ábitos mentais (ou habitus) e de forças formadoras de hábitos
(habitfonningforces) ; em Febvre, o de3Parel!1agel!lJ!lental. Em am-
bos os casos, graças a essas novas nomeS, tomava-se uma distância
d os procedimentos habituai s da história intelectual e, por essa ra-
zão, seu próprio obj eto se e n co ntrava deslocado.
Em seu Rabelais, pub}icado em 1942, Febvre não d~.fine a apa-
relh agem .men tal, mas carate riza-a assim:

A cada civilização sua aparelhagem mental; mais do que isso, a cada época
de uma mesma civili zação, a cada progresso, seja das técnicas, seja das
ciências que a ca rateri za - uma aparelhagem renovada, um pouco mais
desenvolvida para certos empregos, um pouco menos para outros. Uma
apare lhagem mental que essa civilização, que essa época nào eSl.:1 garan-
tida de poder transmitir, integralmente, às civi lizações, às épocas que vão
lh e suceder; e la poderá conhecer mutilações, retrocessos, defonnaçõcs
sig nifica tivas. Ou, ao contrário, progressos, enriquecim en tos, com plica-
ções novas. Ela va le para a civilização que soube forj á-la; vale para a é po-
ca que a L1liliza; não vale para a eternidad e, nem para a humanidade: nem
mesmo para o curso restrito d e uma evoluçào interna de civilização. 10

o que queria dizer três coisas: primeiramente, seguindo o Lévy-Bruhl


d e La Mentalité primitive (1 922) ,.!lue as catewi..as do p_ensa!l1ento não
são nem universais nem redutíveis àquelas operacionalizadas pelos
homens do século XX; em se~ida, q~e·as..mant:i!as dêFiêns;ir gepen-
_dem, antes de mais nada, dos instrumentos mateJiais (as técnicas) ou
conceituais (as ciências) queM to-;:nam possíveis; enfim :::contraum
evolucionismo ingênuo - queOãõ hiCprõgiésso contínuo e n ecessário
(definido como uma passagem do simples ao complexofnaSüCeSsão
das diferentes aparelhagens men tais. Para compreender o que, para
Febvre, designa a próplia noção de aparelhagem mental, dois textos
podem ser evocados: por um lado, o tomo primeiro de L'Enc)'cloj)édie
fiançaise, publicado em 1937, sob o título L'Outilla e mental. Pensée, lan-

10 Lucien Fcbvre, Le Probleme de l'incro)'alue au XV! siCclc. La religion de Rabelais, 1942, ree-

d iç.io, Paris, Alb in Mich el, co!. L'É\'olul ion de I' H ll l1l<l nité, 1968, p.141 -142.

30
_gage, manthématique; por outro, o segundo livro da segunda parte de
Rabelais02g~e define nessas páginas..~~r:t;llti'gem m;:ntal éo estado
da língua, em seu léxico e sua sintaxe, as fe~J:<!Il!e!lta§ t; a linguagem cien-
tífica disponíveis~também e~~ "supo~te s~nsível .do Pensame,nto" que
é o sistema das percepçôes, cul~_~.2 rrli~yariável com~l!dai' estr:l!tu~
ra da afetividade: "Aparen temen te tão próximos de nós, os con temp-Q-
râneos de Rabe laisjá estão muito lónge por todas_suas pertenças inte-
lec~a!s . E suap!qpriaest:rllturaEão~r::a a nossa"" (o grifo é nosso) . Em_
uma determinada época,_o cruzamentQ desses diferentes suportes (lin-
gQísticos, conceituai§, ;ifetivQ§) comanda "modos de .pensar e de sen-
tir" gue recor!,am, c.Qnfiguraçôes inJdes tl,lais.específicas (por exemplo, _
sobre os limites entre o possível e o impossível ousobr!:..~fro~_t<:!ir~
entre o naturaCe o so.brenatural). .
A tarefa pritp.ei ~.e_ d()_his!Qrj;H:l9.I, a~sim..c,omo do etnólogo, .é
então resgatar essas rCE)resenta0~s, em sua irredutível especificida-
de, sem recobri-las com categorias anacrônicas, nem medi-las pela
aparelhagem mental do século XX, posto implicitamente como o
resultado necessário de um progresso contínuo. Também aqui,
Febvre reencontra Lévy-Bruhl para alertar contra uma leitura errô-
nea dos pensamentos antigos. Prova disso é a similitude entre a in-
trodução de La Mentalité primitive:

Ao invés de substituirmos em imaginação os primitivos que estudamos,


e de fazê-los pensar como nós pensaríamos se estivéssemos em seu lu-
gar, o que só pode levar a hipóteses no máximo prováveis e quase sem-
pre falsas, esforcemo-nos, ao contrário, para nos prevenir contra nossos
próprios hábitos mentais e tratemos de descobrir os dos primitivos por
meio da análise de suas representações coletivas e das ligações entre es-
sas representaçõcs!2

e as primeiras páginas de um livro publicado por Febvre em 1944,


Amour sacré, amourprofane. Autourde l'Heptaméron:

A esses ancestrais, atribuir candidamente conhecimentos de fato - e por-


tanto materiais de idéias - que possuímos todos, mas que eram impossÍ-

"lbid., p. 394.
J:!Lucien Lévy-Bruhl, La Mentaliléprimitive, 1922, reediçào, Paris, Retz, 1976, pAl.

31
veis de adquirir mesmo pelos mais sábios dentre eles; imitar tantos bons
missionários que outrora voltavam maravilhados das "ilhas": pois todos os
selvagens que tinham encontrado acreditavam em Deus; um pequeno
passo a mais, e eles seriam verdadeiros cristãos; dotar também nós, os con-
temporâneos do papa Leão, com uma generosidade sem limite, das con-
cepções do universo c da vida que nossa ciência nos fOljOU e que são tais
que nenhum de seus elementos, ou quase,jamais habitou o espírito de
um homem da Renascença - , podem-se contar infelizmente os historia-
dores - falo dos mais influentes, que recuam diante de uma tal deforma-
ção do passado, uma tal mutilação da pessoa humana em sua evolução. E
isso, sem dúvida, por não se tcr levantado a questão acima, a questão da
inteligibilidade. Na verdade, um homem do século XVI deve ser inteligí-
vel não em relação a nós, mas em relação a seus contemporâneos.13

A noção de aparelhagem mental tal como empregada por Feb-


vre apresenta, todavia, um certo número de dife renças em relação
aos conceitos, no entanto próximos, avançados na mesma época por
Panofsky. Em primeiro lugar, a própria p<llavra aparelhagem (ou a
expressão "aparelhos mentais", ãs vezes empregada por Febvr~1~
sugere a existência guase objetivada de um~ an9plia de instrumen-
tos intelectuais alavras símbolos conceitos etc.) ~ disposição do
pensamento, ~ntrasta~ a maneira como Panofsky define o há-
bito mental, conjunto de esquemas inconscientes, de princípios in-
teriorizados que dão sua unidade ãs maneiras de pensar de uma
_é oca se·~ al for o objet2- -ensado. Nos séculos XII e-XIII, por
exemplo, são os princípios de esclarecimento e de conciliação dos
contrários ue constituem um modus operandiescolástico, cujo cam-
_po de ªRlic<tÇão não se limita ãC(mstruçãõt~ I qg;caDessa primei-
ra decalagem resulta uma segunda. Em Febvre, a aparelhagem inte-
lectual que os homens podem manipular)os homens de uma época )
é pensada como um estoque dado de "materiais de idéias" (para re-
tomar sua expressão). Conseqüentemente, o que diferencia as men-
talidades dos grupos sociais é, antes de mais nada, a utilização mais
ou menos extensa que fazem dos "instrumentos" disponíveis: os mais
eruditos empregarão a quase totalidade das palavras ou dos concei-

13 Lucien Febvre, Am.our sacré, o1l1ollrproJane. A'lltourde I'Heptaméron, 1944, rcediç~o, Pa-
ris, Gallimard, colo Idées, 1971, p.10:

32 ~wlnl)<"' . 90.\ ;""""0 . VCXio.cfJ > J.. .1p."'f'


tos existentes, os mais desfavorecidos não utilizarão senão uma par-
te ínfima da aparelhagem mental de sua época, limi tando assim , em
relação a seus próprios contemporâneos, o que lhes é possível pen-
sar. A ênfase em Panofsky é distinta (e paradoxalmente mais social).
Com efeito, p ara ~I e> os hábitos n!~tais remetem a suas c9ndições
de in culcação, portanto, a estas "forças formadoras de hábitos" (habit-
JonningJorces) - Eor exem~a instituição escolar em suas diferen-
tes modalidades - próprias a cada grupo. Ele pode então compre-
ender, n a unidade de sua produção, as homologias de estrutura exis-
.!entes entre diferentes "produtos" inte lectuais de determinado meio,
e também pensar as variações entre os gruEos como diferenças en-
tre sistemas de Jercepção e de apreciação, eles p róprios remetendo
a diferenças nos modos de fo rmação. É dessa concepção q ue se apro-
xima Marc Bloch quando, no capítulo de La Société jéodale intitul a-
do "Maneiras de sentir e de pensar", hierarqui za níveis de língua e
universos culturais em função das condições de formação intelec-
tual.' ·' No entanto,jl.qui falta , como em Febvre,a ani lise_(central em
'Panof~) dos mecanismos at.!avés dos quais categorias de pel!Samen-
to fundamentais torna.!!l-se,-em um determinado grupo de agentes
-,!ociais, esquemas interiorizados e in conscientes, es truturando todos
os pensamentos o u ações particulares.
Apesar dessa limi t,"lção, de natureza teóri ca, fica bem claro que
a posição dos histo riadores da primeira geração dos Annalespesou
muito na evo lu ção da história in telectual fra n cesa. De fato, ela des-
locou o próprio q uestionamento: o que é im20rtante co mpseen-
der não é mais as aud ácias do pensamento, mas bem mais os Iimi-
te~ concebíve l. A umahistóriamtelectual das 1I1t~ligências sem
li mites e das id éias sem su arte, é o osta uma história das repre-
sentações coletivas, das apa..relh <:lgens e das .~ategorias intelectuais
dis20níveis e compa-.rtilh adas em uma éjJoca dada. Em Lucie n
Fe bvre, é um tal projeto qu e funda o prim ad o con cedido ao estu-
do b iográfico. Luther em 1928, Rabelais e Des Periers em 1942,
Marguerite de Navarre em 1944: casos onde determinar comQ, para

I " iv larc Bloc h, La Soâétéjeodaie, 1939, J


"ced ição, Paris, Albi n Mich el, col. L'Évolution de
l' Humanilé,1968, p.1l5-128:

33
os h omens d o século XVI , se o rgan izam a percepção e~ represen-
ta ão do mundo , com o se definem os limites do que é então possí-
vel pensar, comoJó~ co nstroem relações próprias à é p ~ca e nt~re­
li gião, ci ê nci~~ moral. Assim, o indivíduo j devolvido à ~ ua épo-
ca ,j á que, seja ele qual for, nào pode se subtrair às determ in ações
que regulam as maneiras d e pensar e de agir de seus con temporâ-
n eos. A bio rafia in telectual à Febv,re é p-ort,lnjo" na verdade, his-
tória socia l, ~i sto~e situ a seu~ h eróis como te ~tel11unhas e , ao
wes!l1....Q.J;e mpo , ÇQ!l10 pro~d_uIOS das imposiçõeLq!!t: limjta_m a livre
inven ção individual. O caminh o eslava assim aberto ( uma vez aban-
don ado o gosto parti cular de Fe bvre pela bi ografi a) para uma his-
tória d os sistemas d e cren as de valores e d e re )resen tações pyó-
prios a uma época o u grupo, design ada n a historiografia fra ncesa
pe la expressão, tanto mais globalizante--9. uan to..!!eu conte údo no-
cional p erman ece vago, de "história das m en talidad es". É ela qU e
devemos exam in ar ago,;. - - ---

I-Il STÓRJA DAS MENTALIDADES/HISTÓ RIA DAS IDÉIAS

A partir dos an os 1960, a no ão de mentalidade imE.õe-se na


historio rafia ~ra~esa para qualificar uma história qu ~ã~s lab e­
lece como .obje to n em as id éias n em os fundamentos socioecon õ-
micos das sociedades. Mais exercida do que teorizada, essa história
das me ntalidad es "à fra ncesa" repousa sobre um certo número d e
concepções ma is ou m e n os comuns a seus práticos. 10 Prim eiramen-
te, a d efiniçâo d a palavra: "a mentaIidade de um indivíduo, mesmo
sendo um grande hQmem , é justamente o que e le tem de comum
com outros h o mens de seu tem po", o u ainda níve l da história c!as:'0
15 Ve r Geo rges Duby, "L'h isLOire des m en tal ités", in L'H isloire et ses 1IIét/wdes, Paris. Call t-

mard, Bibliolh êquc de la Pl éiaclc, 196 1, p.937-966; Robcl"( Mandrou, "L'h isLOire des
m e ntalités" , in Encyclopedia Universalis. vo l. V III , 1968, p.4 3fi...438; Gco rges Duby. "Hi s-
loire soc iale ct hislOit"c dcs mc ntalités. Le Moyen Age", ] 970 , in Aujourd'hui i'I-lisloire,
J'aris, Ed ilio lls SQc iales, 1974, p.20 1-217;Jacq ucs Le Gofi", ~ Les mcnlal ités. U ne hisloi l-c
ambigue\ in Faire de rhistoire, Pads. Gallimard, 1974, t. UI , p. 76-94; Philip pe AI-ie1i,
"L'histoire eles m c ntalilés", e Roger Chaniet", "Outillagc mental", in I....a Nollvelle Húloire,
Pal'is, ReLZ, 1978, p.402-423 e 1'.448452.

34
mentalidades é aquele do c9~diano e do jiutom_ático, é o que esca-
_ pa~l~eitos indivicluais da_hi~tória 2.orgue revejador do conteú-
do impessoal de seu pensamento" (as duas definições são deJacques
Le GofE). Eassim-const.ituído como ob·eto histórico fundamental
um obieto~ é o contrário mesmg daqu.ele da histó~ia intelectual
clássica: à idéia, construção consciente de uma mente individuada,
opõe-se termo a termo a mentalidade sempre coletiva que regula,
sem queeles- o saib·am:ã;repi'esentações eJulgamentos dos atores ·
sociais. A relaçãõent:re a consciência e o pensamento é;- portantõ,
estabeljcida de uma nova man eira, próxiillãda-quela dos sociólogos
da tradição durklieimiana, enfatizando os esquemas ou-õs·conteú-
dos de f:>ens"0en~o_ ~e, mesl!l~que sejameJlunciados sobl:e o"podo
individual , de endem, na verdade, dos condicionamentos incons-
cientes e interiorizados que fazem com que um grupo õmociedade
com -a~tilhe, sem que sej'U'-r~iso e2<"pli citá- OSy UriiSí~té!l1~ ae!er!:.~
sentações e um sistema de valores.
- - Outro ponto de acordo: üffiã concepção I!luito ampla do cam-
p.Q.Iecobe rto ela no ~o c!_~~.Eta lidad~q u e engloba,_c9_'!!.~ esc~:e­
ve Robert M'll1droJ,l., "o qu~. ~soncebido_e sentido, o camp o da inte-

\ li ência e do afetivo". Por isso, a~tençã2 d.~d~cadll l!!.nto ils catego-


rias p~~lógicas ~J()Vav,"!ment~Lqua nto à.s categoria.s intelectuais,
ortan to, mais umadecalagem entr~ uma história das mentalidades
identificada !pS!coLogia ~i stóri ca e a história intelectual em sua de-
finição tradicional. Muito presente em Febvre, leitor atento de
Cha rles B10ndeÍ (lntTOlLuction à la /!.sychgj.pgjp his.101ique, 1929) e de
Henri WallonjPrinciPes depsychologieapP!i:.quée, 1930), lO e em se us su-
cessores (o livro de Mandrou: 7iitrod-;;,tion à La France ?noderne, 1500-
1640, publicado em 1961, não tem o subtítulo Essai depsychologie his-
torique?), essa identificação funda a própria obra de Ignace Meyer-
son, Cl~a importância foi central para a transformação do campo dos

15 Cf. seus três artigos: "Méth odes et solutions pratiques. Henri \Vall ol1 et la psycholo-
gic appliqu ée", Annales d'hisloire éco1lomiqut eI soclltle, 1931 , "Une V"l.Ie d ' ensemblc. His-
toire et psyc hologic", l:.nC)'clojJédie Fmnçoise, 1938, e "Commcnt reconstiluer la ,rie affec-
tivt! d 'aulrcfois? La scnsibili té e ll 'h istoirc", Annalcs d 'hisloirc soc:iale. 194 1, retomado em
Combats poud'histoire, op. át., p.201-238.

35
estudos gregos. 17 Para além mesmo do projeto de reconstitui ão dos
sentimentos e das sensibilidades ró rios aos homens de uma épo-
-- -
.Q\. (que é, grosso modo, o projeto de Febvre), são as categorias psico-
ló icas essenciais, a uelas em ação na constr];Ição do tempo e do
espaço, na rodu ão do imaginário, na percepção coletiva das aii-
vidades humanas, ue s~o postas no centro da ob~ervaç~ e a[>reen-
didas no que têm de diferente de acordo com as épocas históricas.
Por exemplo, a noção de pessoa tal como abordada por Iean-Pier!:<:,
Vernant, seguindo Meyerson:

Não há, não pode haver pessoa-modelo. exterior ao curso da história


humana, com suas vicissitudes, suas variedades conforme os lugares, suas
transforma ções conforme o tempo. A invesLigação não tem, pois, de es-
tabelecer se a pessoa, na Grécia, é OLl não é, mas buscar o que é a pessoa
grega antiga, em que ela difere, na multiplicidade de seus traços, da pes-
soa de hoj e,l8

A partir de uma posição intelectual semelhánte, Alphonse Dupront


propunha em 1960, no Congresso Internacional das Ciências His-
tóricas, em Estocolmo, constituir a história da si colo ia coletiva
como disciplina particular no campo das ciências l1,Umall as, e isso,
dando-lhe uma extellsão mlxil1!ajá que recobrindo "a história dos
valores, das mentalidades , das formas, das simból~c..'!.s, dos mitos". lO
Na verdade, através de uma tal definição da psicologia coletiva, era
uma reformulação total da história das idéias que era sugerida. Um
dos objetos maiores da história da psicologia coletiva é, com efeito,
constituído pelas idéias-forças e pelos conceitos essenciais ue habi-
tam o "mental coletivo" (a expressão é de Dupront) dos homens de
uma época. As idéias, a reendidas através da circulação das palavras
ue as desi nam, situadas e m seus enraizamentos sociais, pensadas em
sua car a afetiva e--erríõcional tanto quantO' em seu conte6do intelec-
-------- --- - ~

J7 Ignace Meyerson, Les Fonclions ftS)'chologiques et.les oeuvres, Pal-is. Vrill , 1948, reediç;lo,
Paris, Albin Michel , 1995 .
~ J~ Jea n-Pierre Vernant, Mytlte d jJensée cJiez les Grecs. E/l.ldes de psyclwlogie histonque, Palis,
Maspero, 1965, p.13-14.
J!I Alphonse Dupro Jlt, "Problemes el méthodes d 'un e hisloi re de la psychologie collcc-
tive", AnnalesE.S.C., 1951, p.3-11.

35
lual, tornam-se assim, exatamente como os mitos ou os valores, uma
destas "forças coletivas através das quais os homens vivem seI) tempo",
portãi1lõ"; um dos componentes da ")siquec oletiva" de uma civiliza-
ção. Aqui, há como que uma conclusão da tradição dos Annales, tan-
to na caracterização fundamentalmente sicológica da mentalidade
coletiva quanto na redefinição do que deve ser a história das idéias,
ressituada em uma ~xplorãÇãõgiobal do mental coletivo.
~ c aro, enfim, que como a história das mentalidades (conside-
rada como uma parte da história sociocuItural) tem por objeto o co-
letivo, o automático, o repetitivo pode e deve fazer-se contável: "A his-
tória dJ"l psicologia coleti"a necessita de séries, senão exaustivas, pelo
menos o mais amplas possível".20 Vê-se, deste modo, o que ela deve à
história das economias e das sociedades que, no horizonte da grande
crise dos anos 1930, depois naquele do imediato pós-guerra, consti-
tuiu o setor "pesado" (pela quantidade de investigações e pelos êxi-
tos de alguns empreendimentos) da pesqu isa histórica na França.
Quando, nos anos 1960, a história cultural emerge como o domínio
mais [re üentado e - mais i nova~o..!:da l~stória, ela o faz retomai1clO,
para transpô-las, as problemáticas~ as m etQdologias gue garantiram
o sucesso da história socioeconômica. O projeto é simples, claramen·
te enunciado a posteriOli por Pierre Chaunu:

o problema consiste em usar realmente o terceiro nível [ou seja, o afe-


tivo e o mental (R. C.)] em beneficio das técn icas de uma estatística re-
gressiva, em benefício, pois. da análise matemática das séries c da dupla
interrogação do documento, primeirdmente em si, depois em relação à
sua posição no seio da série homogênea na qual a informação de base
está integrada e posta. Trata-se de uma adaptação tão completa quanto
possível dos mét.odos aperfeiçoados há vários anos pelos historiadores
da econom ia, e depois por aqueles da quantidade social. ~ I

Dessa primazia concedida à série e, portanto, à coleta e ao tra-


tamento de dados homogêneos, repetidos e comparáveis a interva-

'LOTbid., p,8,
ti Pie rre Chaunu , "Un Il ouvea u champ pour l'hislOire sé riell e: lc quanl italifau
lrois ieme ni\'eau" , in Mé/augesen l 'honneur dc FCl'lland IJraudel, Tou louse, Prival, 1973,
l. li, p.105-125.

37
los regulares, dependem vário.s coro.lários, e primeiramen te o privi-
légio. dado a conjuntos documentais maciços, amplamente represen-
tativo.s so.cialmente e que autorizam so.bre um lo.ngo. perío.do. a co.le-
ta de dado.s múltiplo.s. Daí, a releitura e a reutilização. de fontes clas-
sicamente utilizadas em história so.cial (por exemplo, os arquivo.s
no.tariais); daí, também, a invenção de novas fontes próprias a res-
gatar o.s modos de pensar ou de sentir. Para além da similitude me-
todológica, essa "história serial dQ terreiro níver'_(para retomar a
expressão., que discutiremo.s po.sterio.rmente, de Pierre Chaunu)
co.mpartilh a co.m aquela das econo.mias e das so.ciedades uma du-
pla problemática. A grim ~ira é a das durações: .fomo articular, com
efeito, o tem o. lo.ngo. de mentalidades que, no nível~ l]1aio r nú-
mero., são pouco. móveis e po.uco plásticas, com o tempo curto de
bruscos abandonos ou detrãí1s1eí'eildãs co~tiY~s_de crença e de sen-
sibilidade? A questão (levantada, por exemplo., acerca da descristia-
nização da França entre 1760 e 1800) reproduz a interrogação cen-
tral de La Méditerranée: .fo.mo pens<ir a .!:JierarqujzaçjQ, a..<'r~iculação
e a com lexidade das diferentes durações (tem o curto, conjuntu-
ra e lo!"!g~ l!!:~çã()1-dos fenõ'!l!:!.10s_histór2cos?22 " -
A segunda herança problemática da história cultura l reside na
maneira .de conceber as relações entre os grupos sociais e.-'2.s .níveis
._._-----
cu lturais. Fiéis à obra de Ernest Labro.usse e à "escola" francesa de.
.!2.i.stória ~o.cial ,_õ~~';;;:-;es feitos ",ara classificar os fato.s de mentali·
dade resultam sem re de un:§..al2.álise social G\!.ehier]l.rquip o~!1f­
-:eis de fortu~, d}stingue_o.s tipos dep~ nc!.ª~, classificª-,\S.pro fi ssõ.cs..
C, )ortanto , a partir dessa -""de social _e pl'?fissioflal , d.~d~ d_~2Ete­
mão, que po.d~e r o.l:J~da_a !!constituiç~o dos difer~ nte ~ sis\S:mas
de pensamento. e de comportamento.s cultu rais. De onde , um a ade-
quação necessária entre as divisões intelectuais o.U culturais e as fron·
teiras sociais, quer sejam aquelas que separam o povo e os no.táveis,
os dominados e o.S do.minadores ou aque las que fragmentam a esca-
la social. Essa primazia quase tirânica do so.cial, que define previa-

2'lFcrnand Braudel, LaJ\Jédilerranéeelle mondcmMiterranéenà l 'époquede Phili/)Pe 11, 2. cd.,


!)<lris, Armand Co lin , 1966, t. I. p.16-17, e "Hisloire et scicllces socia les. Lo longuc dll-
rée", 1959, in Ecrits SILTl'Histoire, Paris, Flammarion, 1969, 1'.41-83.

38
men te variações culturais que em seguida se trata apenas de carac-
terizar, é o traço mais nítido dessa dependência da história cultural
em relação ã história social que marca a historiografia franc esa do
pós-guerra (pode-se aliás observar que essa d ependência não existe
em Febvre ou Bloch, mais sensíveis seja às categorias compartilha-
das por todos os homens de uma época, seja aos usos diferenciados
do equipamento intelec tual disponível).
Foi sobre esses fundamentos metodológicos, manifestos ou in-
co nscientes, que a história das mentalidades desenvolveu-se n a his-
toriografia francesa nos ú ltimos quinze anos. Ela respondia, com
efeito, bem mais do qu e a histó ria intelectual, às novas tomadas de
consciência dos historiadores franceses. Dentre estas, três antes de
tudo sào mais importantes. Em primeiro lugar, a consciência de um
novo equi líbrio entre a história e as ciências sociais. Contestada em
se u rimado intelectual e institucional, a história francesa reagiu
anexando os terrenos e os questionamen tos das disciplinas vizinhas
(antropologia, sociologia) que queStíonavam sua QommaçàO:-A aten-
ção deslocou-se então para os ol:!jetos (os pensamentos e gestos co-
letivos diante da vida e a morte , as crenças e rituais, os modelos
educativos, etc.) até então próprios à investigação emológica e para
n~,questões, am lame!1~ ~ t~gei ~,:; à história sOGaI, dêdíca-
da antes de tl!do a hier;u"quizar os grupos çonstitutivos de uma SOCle-
~ Tomada d e consciência, também , de que as dife renciações
sociais não podem ser pensadas somen te em termos de fortuna ou
de di nidade , mas ue são ou roduzidas o.~1 traduzidas or varia-
ções culturais. A distribuição desigual das competências culturais
(por exemplo, ler e escrever), dos bens culturais (os livros ou os
quadros), das práticas culturais (das atitudes d iante da vida àguelas
diante da morte) tornou-se assim o objeto central d e múltiplas in-
vestigações, conduzidas de acordo com métodos quantitativos e vi-
sando, sem questioná-la, a dar um conteúdo outro à hierarquização
social. Enfim, uma o u tra tomada de consciência coletiva reconhe-
ceu que, para abo rdar esses novos domínios, as metodo logias clássi-
cas não bastavam: eis a r azão, como já vimos, do recurso à análise
serial onde as disposições testam entárias, os motivos iconográficos

39
e os conteúdos impressos substituíram os preços do trigo; razão tam-
bém do trabalho sobre a ou as linguagens, da lexicometria à semân-
tica histórica, da descrição dos campos semân ticos à análise dos enun-
ciados.'" Por transpor procedimentos e problemas que eram os da
história socioeconõmica, ao mesmo tempo que operava um deslo-
camento do questionamento histórico, a história das mentalidades
(parte ou totalidade da história sociocultural) põde ocupar a dian-
teira do palco intelectual e parecer (como sugeria implicitamente
Alphonse Ducront) reformular - e, portanto, desqualificar - a ma-
. neira antiga de fazer a história das idéias.
Mas essa reformulação também foi feita no in terior do campo
da história intelectual e chegou a posições totalmente contraditórias
com aquelas dos historiadores das men talidades. Aqui, a obra funda-
mental, aliás, bem acolhida pelos Annales, é a de Lucien Goldmann.'4
No ponto de partida, seu p rojeto subentende uma mesma distância
em relação às modalidades tradicionais, biográfica e positivista, da
história das idéias. Como em Febvre, .como na história das menEalida-
des, trata-se antes de tudo de construir a articulaçâo entre os pensa-
mentos-e o social. Extral o aer::ükács·;O-conCéi lO cre' Vlsao o mun-
do" é O instrumento que autoriza essa apreensão . Definido como "p
conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias ue reúne os mefl!-
- 6ros e um mesmo ru o (na maioria das ; ezes, de u ma classe social)
e os opõe aos outros grupos",'" ele permite uma tripla operação: al~i­
buir uma significação e uma posição sociais definidas aos textos li te-
rários e filosóficos, compreender os parentescos que existem entre
obras de forma e de natureza opostas, discriminar nó interior de uma
obra individual os textos "essenciais" (o adjetivo é de Goldmann), cons-
tituídos como um todo coerente, ao qual cada obra singular deve ser
relacionada. Em Golclmann , o conceito de visâo do mundo tem, pois,
o encargo das [unções que são aquelas da aparelhagem mental em

2:\Cf. R. Robin, l-fis/oireel Ling'uiJliq1/e, Paris, Annand Co1in, ]g73.


~4 Lucien Goldlllann, Lt! Dimt caché. Ftude 51/r la viJion lragique dons tes Pensées de Pasr:rd ct
dons le tltéâtre de Racine, Paris, Gallimard, 1955, e o artigo d e RoberL Mandmu, "Tragi-
que au XVII" siecle. A propos de travaux rt:Ctnts ~ , A n?1aleJ t;.s. c., 1957, p.30.11-3 13.
~" Lucien Go ld man n, op. cit., p.26.

40
Febvre e, simu ltan eamente, do habit1lSem Panofsky (e Bourdieu) . O
Diea Caché dava uma- aplicação, discutível mas exemplar, dessas pro-
postas, construindo os Pensées de Pascal e nove tragédias de Racine,
de Andromaque até Atlzalie, como o cm1nlS expressando com a maior
coerência "uma visão trágica do mundo", identificada ao jansenismo,
e relacionando essa consciência coletiva a um grupo particular, o dos
oficiais de toga privados de seu poder, portan to, de seu poder social,
pela construção do Estado absolu tista.
Sej-ª-Qual for a validade histórica dessa a_nálise, ela trazia um a
idéia essencial , totalmente oposta a um dos postulados da história
das mentalidades, ou seja, que são os "grandes" escritores e filóso-
fos q ue exp rim em com mais coerênCia, através de suas obras essen-
ciais, a consciência do grupo social ao qual pertencem; são e las qu e
atin em "o máximo de consciê ncia ossível do . ru o SOCial que ex-
pressam". De onde a primazia concedida aos textos maiores (defi-
nidos, de maneira nO\ia,2Q.r sua ~deguação aL lma visão do m-undo)
e seu corolário: a desconfiança, senão a rejeição, das abordage ns
uantitativas no cam o da h istónacultural. Bem antes das reservas
atuais, baseadas em um a concepção antropo lógica da cultura, foi na
tradição da história intelectual à Goldman n que surgiram os primei-
ros alertas con tra as ilusões da quantificação. '~U ma história socioló-
ica da lite ratura deve privilegiar o ~tudo dos g,!!pdes textos", es-
creveuJea n Ehrard,26 ~q L~ria diz~.!LP2r um lado, que é n<] sin-
. ularidade desses texto~ue se mostram m ais claramente, mais CQIll -
plctamente, .as idéias compartilh adas; por outro, que as contagens
das palavras, dos títulos, dos m otivos, dos temas são, no sentido pró-
prio, "insignificantes":,, [5tõ é, incapazes d e restituir as significações
compl'2'as,conflituais e cO~I~ad i tórias, dos p_ensamentos co letivos.
A coleta contável do su erfi c i a~ t:io banal, do rotineiro não é repre-
sentativa e a consc iê ncia cole ti~~ do grueo (q~ é 'inconsciência"
.,.Ç9letiva para a maioria)_se dá a ler unicamente no trab alh o, imagi-
nativ02.!:l conce itual , dos poucos autores gLle a e levam a seu mais
alto gra u de coe rência e d e transearência. -

ZliJean Ehrarcl, op. cit., p.79.

41
o debate que se trava aq ui tange à d efinição mesma da histó-
ria intel ectual , portanto, à co nstituição de seu o bj eto p'róprio. Em
1960, Dupront pleiteia ass im contra a história das idéias:

A história das idéias, d e resto ma l distin ta e capaz de receber, mais ou


menos como um d epósito gene roso, tudo aq uil o de que a história trad i-
cio nal se oc upava tào po uco, pende demais parJ. a inlelectualidade pura,
a vida abstrata da idéh\, isolada freqü ente mente além d a medida dos
me ios sociais onde e la se enraíza e que diversamente a exprimem [ ... ].
O que importa, tanto quanto a idéia c talvez mais, é a encarnação da idéia,

---'--
suas significações, o LI SO uc se faz dela. o
-
De onde a proposta de uma história social das idéi3ls, tendo por ob-
'eto se u enraizam ento e circulação. Em um texto d ez anos depo is,
Franco Ve nlu ri recusa a pertinência de um lal projeto qu e, para ele,
carece do essencial:

II risdúo della storia socia/e dell'IUwninismo, quale la vediamo oggi sojJrattuto in


Francia, edi sludiaTe te idee quando son diventate armai struttU're 17lentali, senza
cogliem mai iL momento ereativo e altivo, di esaminam tullo la struttura geologica
del jJassalo, salvo precisamente l'hulIl1ls sulla quale crescono te jJiante e i [ruai 8
[O risco da história social das Luzes, tal como a vemos sobretudo hoj e
em di a na França, é estud a r as idéias quand o elas se to rnaram estruturas
°
me ntais, sem apreender momento criativo c ativo, examinar toda a es-
trutura geológ ica do passado, salvo precisamenle o húmus sobre o q ual
crescem as plantas e os frutos] .

Idéias co ntra estruturas m entªis: a oposição indi ca bem o lugar das


divergê ncias e a recusa do reducionismo suposto da bistória social
(portanto qua ntitativa) da produção inte lec tual. Aliás, esse reducio-
nismo tem uma dupla fa ce. A prime ira é sociológica, reduzin do a
significação das idéias à sua qualificação social, quer seja dada p e la
posição dos indivíduos ou dos meios que as produzem, quer o seja
pelo campo social de sua re cepção. 29 Deve-se nota r que essa crítica,

27 Alph onse DUp l"O nl, 01'. àl.


Fr~lIl cQ Ve nLU ri, UtoPia e liforlno nell'lll'llmúúsl1lo, Turim, Ei nfl ud i, 1970, p.24.
?lo!
29 Jeal1 Ehrard, "H is toire dcs idécs CI hisloi .·c sacialc CIl Francc au XVIII" siêc1e: rétlex io ns
d e mélh od e", in Niveauxde cul1ureel&'TOllfXs sociaux, A.n:aisdo colóqu io reunido de 7 a 9 de
maio d e 1966 na Ecole nOlma1e SUpél;cu re, Pat;s/ La I-Iayc, Mollton, 1967, p .171-178.

42
dirigida contra os empreendimentos de sociologia cultural, não co-
loca em questão a perspectiva de Goldmann, mas situa-se na verda-
de em sua h erança. Com efeito, a noção de visão do mundo ermi-
te articular, sem reduzi-Ias uma à outra, de um lado, a significação
de""";:;-~";istema id;olójiico, dé-;õ·Ttõ7ffi- Si mesm.-ô, .de-00.1"0 ~cori.
dições socio olíticas, que fazem com que um grupo ou uma classe
determinados, em um dado momento histórico, compartilhe, mais
ou menos, conscientemente ou não, esse sistema ideológico. Esta-
mos, portap-t~onge das característIcas sumárias que esmagam o
ideológico~ o social e levam , por exemplo, a designar as Luzes
como uniformemente burguesas, sob o pretexto de que a maioria
dos filósofos ou seus leitores o são. Dian te das idéias, ou melhor, dian-
te dos conceitos de que se servem os homens de umá'época lhes dan-
do um conteúdo próprio a essã época,-; -tãITra- dohístoriaCloidãs
idéias é, pois, "substituir a busca de uma ~eterm inaçã_0.J..~~la de ~~
/Únção" , função que pão pode aliás ser apre..:ndida senão pela consi-
~.ra ão O"lobal do sistema ideológico ~~:onsid~ada . 3õ
Mais rece ntemente , a crítica dirigida à história social das
idéias visou um outro alvo e denunciou uma outra forma de reducio·
nismo, ou seja, não mais a redução de uma idéia ou de uma ideolo·
gia às suas condições de produção ou de recepção, mas a assimila-
ção, que é uma reificação, dos conteúdos de pensamento a objetos
culturais. A "história serial do terceiro nível" carrega em seu próprio
projeto uma tal redução, já que seu empreendimento contável su-
põe ou que os fatos culturais e intelectuais analisados sejam de saí-
da conjuntos de objetos (por exemplo, livros cujos títulos podem ser
tratados estatisticamente, ou imagens cujos motivos podem ser in-
ventariados), ou então que os pensamentos coletivos, tomados em
suas expressões mais repetitivas e menos pessoais, sejam "objetiva-
dos", isto é, reduzidos a um conjunto reduzido defórmulas das quais
se trata apenas de estudar a freqüência diferencial no interior dos
diferentes grupos de uma população.j\. tentação ~oci9lS! ica consiste_,_
portant.o,_em considerar _<l~ al".:'.::'s, as idéia':.:. os pensamentos, as

3(J Ibid., p.175 e a in tervenção de JacqLle~i Prollsl, p.181-183.

43
representações como meros objetos que se deve contar a fim de res-
t ituir sua distribuição desigual. O que egu ivale~limi nal:-õ sl~eito
J individual ou coletivo da análi~ e, ao mesmo tempo, denegar toda
imQortãncia à relação ( essoal aLI social) que mantêm os atores so-
ciais com os ob'etos culturais ou os conteúd02. de pe~nto. -Ora ,
todo uso ou LOda apropriação de um produto ou de uma idéia é um
"traba lho" intelectual que faz falta ce rtamente ao estudo apenas dis-
tribucional: Nel caso della stoTia quantitativa delle idee, soltanto la consa-
jJevollezza della valiabilità, s/OIica e sociale, della figllTa dellellore, !Jotl'à jJorre
davvero le jJremesse di una storia delle idee anche qualitativamente diva- .
so.'l [No caso da história quantitativa das idéias, somente a clara cons-
ciência do caráter histórica e socialmen te variável da figura do lei-
tor poderá estabelecer as verdadeiras premissas de uma história das
idéias que s.::ja diferente mesmo no plano qualitativo]. Por exemplo,
e para segu ir Carla Ginzburg em seu terreno, o que os leitores fa-
zem de suas leituras é uma questão decisiva diante da qual tanto as
análises temáticas da produção impressa quanto aquelas da difusão
social das diferentes categorias de obras permanecem impotentes.
Assim como as modalidades das práticas, dos gostos e das opiniões
são mais distintivas que estes," os modos como um indivíduo ou um
grupo apropria-se de um motivo intelectual ou de uma forma cul-
tural são mai s importantes do que a distribuição estatística desse
motivo ou dessa forma.
Seguros de sua metodologia quantitativa, reunidos em uma
definição da história das mentalidades menos vaga do que se disse,"
os historiadores fran ceses ficaram por muito tempo surdos a essas
interpelações. Implicitamente, sua representação do campo da his-
tória inte lectual constituía essas críticas como sendo combates de
retaguarda de uma tradição esgotada e postulava, a termo, a absor-
ção da história das idéias em um recorte mais vasto, que se podia

" Cado Gill zburg, Ilfor'moggio cl i venni. II cosmo di un lIIugnaio de1'500, Turim, Ei naudi.
1976, p.XXI-XX I I ( u-ad. fr. Le jromage l i les l't?rs. L'uniuers d'U1~ meunie-r du XV! siec/e, 2.
cd., Paris, AubieJ; 1993, p. 18).
~~ Pierrc Bourclieu , 1,0 Distinclion. Critique sociare du jugemenl, Par is, Ed ilions de M in uit,
1979,1'.70-87.
:tI I'ol-ex emplo, Robert D~lrnton . op. àl.
batizar de diversas maneiras (história sociocu ltural, história das
mentalidades, história da psicologia coletiva, história social das
idéias, etc.). Pode-se ver hoje em dia que, neste caso, tratava-se de
acreditar que no domínio da história intelectual nada mudara des-
de os anos 1930. Ora, o desconhecimento era duplo. Desconhecimen-
to, primeiro, do modelo proposto a qualquer método de história in-
telectual pela epistemologia, a de Bachelard, de Koyré ou Cangui lh em.
É sintomático encontrar nos Annales apenas um artigo consagrado a
Bachelard (duas páginas de Lucien Febvre, em 1939, sobre P,ychanalyse
dufeu) e nenhum sobre as obras de Canguilhem ou Koyré (o único
artigo publicado por Koyré na revista o será somente em 1960). Essa
extraordinária cegueira tem muitas conseqüências: ela privou os
historiadores franceses de todo um conj un to de conceitos que os
teria alertado contra as certezas demasiado grosseiras advindas da
investigação estatística e que lhes teria permitido substituir a descri-
ção não articu lada das produções culturais ou dos conteúdos de
pensamento de uma época (aquela estabelecida pelo estudo qua n-
titativo) pela compreensão das relações que existem, em um dado
momento, entre os diferentes campos intelectuais, Através disso, teria
sido conçebível o ue falta a() inventário co!}tável: primeiramente,
os la os de de e ndência recí roca ue unem as represen tações do
mundo, as tecnologias e o estado de desen~olvimentõ dos diferen-
tes saberes; a seguir,~ trãvés de uma noçãõ com 2,.a de-9bstáculo epis_-
temológico (que en contra de outra maneira o que há de mais agu-
do -;:;-;;-'de aparelhagem menE!) , a articulação entre as representa-
ções comuns (estoque de sensações, de imagens, de teorias) e os
~ -- -
progressos dos conhecimentos desIgnados como científicos. ' " Aes-
----
cuta da epistemologia histórica poderia ter permitido igualmente
colocar diferentemen te o problema com o qual se choca toda his-
tória das mentalidades, ou seja,~s r!lzões e as modalidades da pass~
gem de um sistema a outro. Ainda aqui, a constatação das mutações
através da enumeração dos objetos ou dos motivos permanece im-
potente para apreendet- os processos de transformação que não

!HGaston Bachelard, La F01'lfwlio n de l'espril scitnlifiqlle. Confl7'bution à une PSJ'chrl1lo{yse de


lo con.naisso,nceobjective, Pads, Vrin , 1939. .

45
podem ser compreendidos a não ser pensando , à maneira d e Koyré ,
a dependência ea autonomia dos diferen tes campos do saber. A pas-
sagem de um sistema de representações a outro pode entào ser vis-
ta ao mes mo tempo como uma ruptura radical (nos saberes, m as
também nas próprias estruturas do pensamento) e como um pro-
cesso feito de hesitações , de retrocessos, d e bloqueios.'"
_ A esse d e~onhecim e ntoja epis.!:emologia, que os privou c!o~
instrum entos intelectuais capazes de articular o que a histó ria social
êlãs idéiaSlhes perm itiaapenãs constãt:ar,Os historiãdores .ãçITsce n-
taram pOl:-'mi'lito tempo um o'"'Lttro: aquele da maneira nova de pen-
_ sar as relações entre as obras · ( l~9.se ntido mais amplo) e a socieda-
d e, tal como a formulavam, sendo fiéis mas também se distancian-..
----cIOdc Lucien Goldmann, historiadores da lit~ratura e das idéias. A
problemática comum à história ;;'a aí deslocada de uma dupla m a-
n eira: de um lado, dando uma acep ção da represe nta tividade que
não era fundada sobre a qua ntidad e; de outro, desarticulando os
sistemas ideológicos da sociedade cujos conflitos supostamente re-
fletiam ou prolongavam ou traduziam - o que, contudo, não signi-
fica afirmar sua absoluta independência face ao soc ial, mas estabe-
lecer essa relação em te rmos de homologias estruturais ou de cor-
respondências globais. Hoje em dia, os historiadores das mentalida-
des resgatam a validade desses questionam entos, outrora negligen-
ciados, sem dúvida porque, renunciando ao projeto de uma histó'
ria total, levantam agora o problema das articulações entre esco lh as
intelectuais e posição social em escala de segmentos sociais bem
delimitados, até mesmo naquela do indivíduo.'" Nessa escala redu-
zida, e sem dúvida somente nela, podem-se compreender, sem re-

.,.'", Alexandre Koyré, From l!te Closed World lo tlullljillile Univcrse, Baltimore, TheJohns
Hopkins Univcrs ily Prcss, 1957 (t rad. fr. Du monde elos à l'univers infini, Paris, P.U.F,
1962, p .l·6).
~Ii
A título de exemplos, ver o livro já citado na nota 31, de G'u'lo Ginzburg, consagrado
à cosmo logia de um moleiro d e do Friúli, Domcni co Scm , ... clla, d ito Mcnocc hio, e os
e nsaios de Nata lie Zemon Davis, qu e levantam , a panir de a lgu ns" case stndiel' , o pro-
blema das relaç ões entre escolha religiosa c perten ça social, reun idos e m Sociely o'lld
Cult'tlreill &,rl)' ,Modem Frtlnce, Stanro rd Universil)' I) ITSS, 1975 (trad. fr. Les Cultufesdu
peuPle. Ril'lIels, savoirs el résislancesatt XVI" sitcle, Paris, Aubier-Montaignc, 1979).

46
dução determinista, as relações en tre sistemas de crenças, de valo-
res e de representações de um lado , e pertenças sociais de outro. Os
__Erocedimento.~~eanálise, no ápice, próprios ã história dos pensa-
mentos s~_o assim mobilizadou,()bre u~ outro~er~êno ::-'pã ra apre-
~E der com?''y m_ gr_tpo_ () ~ym r:omel!' :5 om~~Eropr~-=se ã_Sl.0
~ eiE~ u~_p0c:le s_~ ~ d ~formadQ!~,._ªa~i.c!.éi 'ls ou das crençªLds:
seu ten:'.p~ Longe de estar esgotada, a história intelectual (entendi-
da como a análise do "trabalho", cada vez específico, feito sobre um
material ideológico dado) an exa assim o terreno dos pensamentos
populares, que parecia por excelência o domínio reservado da his-
tória quan tificada. ~~1 tre histó.0~..s:!as men ta!idades e história das
idéias, relações devem- ser- ..concebidas
--- as-------------. - .." - -- _. de uma
.~_ .... ..- -
maneira infinita-
._~ -".
~ ,
men te mais co!nplexa d ().E~e ~~e!a comum aos historiadores fran-
ceses dos anos 1960.

RECORTES EM QUESTÃO

Além dos métodos de análise ou das definições disciplinares,


as questões fundamentais dos debates de hoje concernem aos recor-
tes essenciais que até então eram admitidos por todos. Essas distin-
ções primordiais, expressas mais geralmen te através dos pares de
oposições (erudito~E..0pu l ar, _cr~as~'?! c()ns\l-'!'o, realidaE~ !.ft~ ç~o,
etc.), eram como que a base comum e não problemática sobre a qual
se podiam apoiar maneiras de tratar os objetos da história in telec-
(ual ou cultural, as quais divergiam. Ora, de a lguns anos para cá, são
esses próprios recortes que se tornaram objeto de questionamentos,
convergentes, senão idênticos. Pouco a pouco, os historiadores to-
maram de fato consciência de que aS.Glli:g.oOas..que..estr:utw::a>,lam o
~120 de sua análise (com tal evidência que freqüentemente não
era percebida) também eram, exatamente como aquelas cuja histó'
ria faziam, o produto de divisões móveis e temporárias. Por essa ra-
zão, a atenção deslocou-se agora (neste texto, mas sem dúvida tam-
bém no seio da disci plina his tórica) para uma reavaliação crítica das
distinções consideradas evide ntes e que são, na verdade, o que deve
ser questionado.

47
Primeira divisão tradicional: aquela que opõe erudito e popu-
lar, high cultuTe e popular culture. Estabelecida como evid ente , essa
divisão encerra em si mesma toda uma série de corolários metodo-
lógicos cujo princípio John Higham estabelecia em 1954: The
internai analysis of lhe humanist aPPlies chiejly to lhe intellectual elite, it
has not reached veryfar into the úroadfield ofpopular thoughl. Tile úlunter,
external appmach Df the social scientist leads us cioser to collective loyalties
and aspirations ofthe úulk of hurnanit]" [A análise internalista do es-
pecialista das humanidades aplica-se principalmente à elite intelec-
tual, não tendo penetrado muito no vasto campo do pensamento
popular. A abordagem dogmática e externalista do especialista de
ciências sociais é mais próxima das lealdades coletivas e das aspira-
ções da maior parte da human idade].
Encontra-se em inúmeros textos, na França e nos Estados Uni-
dos, essa mesma oposição entre, de um lado, a cultura da maioria, que
diria respeito a uma abordagem externa, coletiva e quantitativa e, de
outro, a intelectualidade dos pensamentos no ápice , suscetível ape-
nas de uma análise interna, individualizando a irredutível originali-
dade das idéias. Claramente ou não, foi sobre essa distinção que se
basearam os historiadores desejosos de explorar o vasto território da
cultura popular, objeto não único, mas em todo caso privilegiado da
história das mentalidades na França e de uma história cultural ampla-
mente inspirada pela antropologia nos Estados Unidos.
Vejamos o exemplo francês. A cultura popular (que poderia
ser designada também como o que é considerado como popular
no campo da história intelectual) foi duplamente identificada na
França: a um conjunto de textos - aquele dos livre tos vendidos de
porta em porta e conhecidos sob o nome genérico de "Bibliothe-
que blcue" [Biblioteca azul]; a um conjunto de crenças e de ges-
tos considerados como sendo constitutivos de uma religião popu-
lar. Em ambos os casos, o popular é definido por sua diferença de
algo que não é ele (a literatura erudita e letrada, o catolicismo
normativo da Igreja); em ambos os casos, o historiador ("intelec-

3; 10hl1 Higham , "lntelJectuaJ Histoly and Íls Nc ighbours", Thejounwl oj lhe J-fislO/y oJ
Ideas, vol. XV, n. 3, 1954, p .346.

48
tual" ou "cultural") tem diante de si um cmpus bem recortado do
qual deve inventariar os motivos.
Ora, é justamente esse recorte que causa problema. Por um
lado, a atribuição social das práticas culturais até então designadas
como populares é agora pensada de maneira mais complexa. A reli-
gião "popular" seria a dos camponeses, do conjunto dos dominados
(em oposição às elites), da totalidade dos leigos (em oposição aos
clérigos)? A literatura "popular" alimenta as leituras (ou a escuta)
da sociedade camponesa, ou de um público mediano situado entre
o povo analfabeto e a magra minoria dos letrados, ou então consti-
tui uma leitura compartilhada por toda uma sociedade, que cada
grupo decifra à sua maneira, da mera determinação dos signos à lei-
tura corrente? Questões difíceis, mas que em todo caso indicam <I!!.e
não é.~imples identificar um nível cu ltural ou intelectual, que p~r­
tenceria ao popu lar, a partir de um conjunto de objetos ou de práti-
~ Por outro lado, todas as formas culturais anele os historiadore§
reconheciam a cu ltura do povo revelam-se, atualmente, sempre
como conjuntos m i stos-9u~ reúnem, em uma imbricação difícil de_
desatar, elemen tos de origens muito diversas. O repertório da Biblio-
Iheque bleue foi produzido por profissionais da escrita, mas os proce-
dimentos de reescritura que submetem os textos eruditos a adapta-
ções e revisões visam a torná-los "populares". E por meio da compra,
mais ou menos maciça, os lei tores revelam suas preferências; assim,
seus gostos estão em posição de mudar o rumo da própria publica-
ção dos textos. Em um movimento inverso, a cultura folclórica, que
dá sua base à religião da maioria, foi profundamente "trabalhada"
em cada época pelas normas ou pelos interditos da insti tuição ecle-
siástica. Saber se deve ser cham ado de popular o que é criado pelo
povo ou então o que lh e é destinado é, pois, um falso problem?..
Importa, antes de tudo, a identificação da maneira como, nas práti-
cas , nas representações ou nas produções, cruzam-se e imbricam-se
diferentes figuras culturais.
Essas constatações só afastam aparentemente da história cultu-
ral, e por duas razões. Primeiramente, é claro que a própria cultura
de elite é constituída, em grande parte, por um trabalho operado so-

49
bre materiais que não lhe são próprios. É um mesmo jogo sutil de
apropriação, de reempregos, de desvios que funda, por exemplo, as
rêlaçõ,:s entre Rabelais e a "cultura popular do lugar"'" ou entre os
irmãos P~rrault e a literatura oral.'" A relação assim instaurada entre
a cultura de elite e o que ela não é concerne tanto às formas quanto
aos conteúdos, tanto a0S códigos de expressão quanto aos sistemas de
repreSenl:lçÕes, portanto, à totalidade do campo reconhecido à his-
tÓlia intelectual. Esses cruzamentos não devem ser entendidos como
relações de exterioridade entre dois conjuntos dados de antemão e
crra:~ (um erudito, outro popular), mas como produtores de
"a lia1~Vcultura is ou intelectuais, cujos eleme . estão tão solida-
mente incorporados uns aos outros quanto na aliagens etálicas. Se
seguirmos Bakhtin, para certas épocas (como a Renascença), até mes-
mo em obras da cultura letrada ou erudita a cul tura popular se mani-
festaria com o máximo de coerência e revelaria da forma mais com-
pleta possível seu próprio princípio. Para ele, a obra de Rabelais é "in-
substituíveI quando se trata de penetrar a essência mais profunda da
cultura cômica popular. No mundo que ele criou, a unidade interna
de todos seus elementos heterogêneos revela·se com uma excepc;o-
nal clareza, tanto é verdade que sua obra constitui toda uma enciclo-
pédia da cultura popular".'" "Enciclopédia": isto significa que, a lém
da utilização de palavras, de imagens ou de formas da "cultura cômi-
ca popular", todo o texto funciona sobre uma concepção da vida e
do mundo que é aquela mesma da cultura carnavalesca, estabelecida
como o "seio materno" de toda expressão popular.
Por outro lado, tornar problemática a divisão popular/erudito
é, ao mesmo tempo, anular as diferenças metodológicas postuladas
como necessárias para o tratamento contrastado de um e de outro
domínio. O "popular" não é por natureza destinado à análise quanti-
tativa e externa dos social scientists e, como mostra Carla Ginzburg,

:\~ Cf. Mikhail Bakthine, L'Oeuvre de François Rabelais ti la c1.tllun populaire au Mo)'en Age el
5011$ la Rennaissrlnce, Irad. fI'. Paris , Gallimard, ] 970.
3!1 Marc Soriano, Les Contes de Perro.ull. Culture savanle cf traditions jJOj/-ulaires. Paris, Calli-

mal"d,1968.
41' Mikhail BakLhine, op. cil., p.67.
quando os documentos o autorizam, é p lenamente lícito examinar,
minuciosamente, como um homem do povo pode pensar e utilizar
os elementos intelectuais esparsos que, através de seus livros e da lei-
tura que faz deles, lhe vêm da cultura letrada . Bakhtin é aqui inver ti-
do, já que é a partir de fragmentos tomados da cultura erudita e li-
vresca que se constrói um sistema de representações que lhes dá um
outro sentido porque, em seu fundamento, há uma outra cultu ra:
Dielm i libri rimuginati da Menocehio avenamo individualo un eodiee di let-
lura; dielra queslo codice, uno strato ,olido di C1lltura o'ralé" [Descobrimos,
por trás dos livros ruminados por Me!lOCchio, um código de leitura;
por trás desse código, uma camada sólida de cultura oral]. Não se
pode, portanto, colocar como necessário o vínc ulo estabelecido, por
exemplo por Felix Gilbert, en tre a ampliação social do campo de pes-
quisas da h istória intelectual e o apeJo aos procedimentos estatísticos."
Com efeito, se sob certas condições, a abordagem quantitativa (inter-
na e externa) dos textos mais elaborados pode ser aceita como legíti-
ma, inversamen te, quando o arqu ivo o permite, o trabalho intelectual
do m ais anônimo dos leitores pode requerer os métodos de análise
normalmente reservados aos "maiores" pensadores.

o questionamento do par erudito/popular leva a uma segunda


interrogação, que tem por objeto uma outra destas d istinçôes conside-
radas como fundamentais pelos h istoriadores, quer sejam h istoriado-
res das idéias ou das mentalidades: a oposição entre criação e consu-
mo, entre produção e recepção. Também aqui, dessa distinção primor-
dial decorre toda uma série de corolários implícitos. Em primeiro lu-
gar, ela funda uma representação do consumo cultural que se opõe ter-
mo a termo àquela da criação intelectual: passividade contra invenção,
dependência contra liberdade, alienação contra consciência. A inteli-
gência do "consumidor" (retomando uma metáfora da antiga pedago-
gia) é como uma cera mole onde se inscreveriam com toda legibilida-
de as idéias e as imagens fotjadas pelos criadores intelectuais. Disso,
outro corolário, uma necessária divisão disciplinar entre o estudo da

·1 1 Cado Gin zburg, op. cit., p.SO.


1! Felix GilberL, op. cil., p.92.

51
difusão intelectual ,~ge c:iiria respeito a UIna sociologia cultural retros-
_p~ctiva, e aquele da produção intelectual, que seria o apanágio de uma
abordagem estética das formas ou de uma compreensão filõsófica das
idéias. Essaradicarseparação entre produção e consumo leva, pois"a
postular que as idéias ou as formas têm um sentido intrínseco, totalmen.'
te independente de sua apropriação por um sujeito ou por um grupo
de sujeitos. Através disto, sub-repticiamente, o historiador reintroduz
na maioria das vezes seu próprio "consumo" e o erige, sem ter bem cons-
ciência disso, em categoria universal de in terpretação. Fazer como se
os textos (ou as imagens) tivessem significações dadas por si mesmas,
independentemente das leituras que os constroem, leva na verdade,
quer se queira ou não, a relacioná-los ao campo intelectual (e senso,
rial) do historiador que os analisa, portanto, a decifrá-los através de ca-
tegorias de pensamento cuja historicidade não é percebida e que se dão
""implicitamen te por permanen teso
. Restituir essa historicidade exige que o "consumo" cultural ou
intelectual seja ele mesmo tomado como uma produção, que certa-
mente não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que
nunca são idênticas àquelas que o produtor, o autor ou o artista in-
vestiram em sua obra. É por essa razão que se deve, sem dúvida, dar
um alcance geral à definição que dá Michel de Certeau do consumo
cultural de massa que carateriza atualmente as sociedades ocidentais:

A uma produção racionalizada, expansionista, do mesmo modo que cen-


tra lizada, ruidosa e espetacular, corresponde uma ou.tra produção quali-
ficada de "consumo". Ela é astuciosa, dispersa. mas insinua-se por toda
parte, silenciosa e quase invisível. já que não se distingue com produtos
próprios, mas em maneiras de empregaras produtos impostos por uma Of.-
dem econômica dominante:"

Anularo recorte entre produzir e consumir é, primeiramente, afir-


mar gue a obra só ad uire sentido através das estrã tégias pe inter-
~tação ue const,o_em suas significaç,ões. A do autor é uma den-
tre outras, que não encerra em si a "verdade", suposta única e per-

...' Michel de Certeau, L'invention duquot.idien, t. I, Arls defaire, Pat-is, U.C.E. , col. 10( 1S,
1980, p.ll. .

52
manente, da obra. Através disso, pode ser restituído umjusto lugar
ao criador, cuj a intenção (clara ou inconsciente) não contém mais
toda a compreensão possível de sua criação, mas cuja relação com a
obra não é, no entanto, eliminada.
Definido como uma "outra produção", o consumo cultural, por
exemplo , a leitura de um texto, pode assim escapar à passividade que
tradicionalmente lh e é atribuída. Ler, olhar ou escutar são, de fato,
atitudes intelectuais que, longe de submeter o consumid or à onipo-
tência da mensagem ideológica e/ou estética que supostamente o
modela, autorizam na verdade reapropriação, desvio, desconfiança
ou resistência. Essa constatação leva a repensar totalmente a relação
entre um públ ico designado como popular e os produtos historica-
mente diversos (livros e imagens, sermões e discursos, canções, ro-
mances-fotográficos ou programas de televisão) propostos para seu
consumo. A "atenção oblíqua" que, para Richard Hoggart, caracte-
riza a decifração popular contemporânea desses materiais," é uma
das chaves que autorizam a elucidar como a cultura da maioria pode,
em qualquer época, graças a um distanciamento, encontrar um es-
paço o u instaurar uma coerência própria nos modelos que lhe são
impostos, contra sua vontade ou não, pelos grupos ou poderes do-
minantes. Tal perspectiva leva a dar um contrapeso àquela que en-
fatiza os dispositivos, discursivos o u institucionais, que em uma so-
ciedade visam a enquadrar o tempo e os lugares, a disciplinar os
corpos e as práticas, a modelar, pela ordenação regrada dos espaços,
as condutas e os pensamentos. Essas tecnologias da vigilância e da
inculcação devem sempre compor com as táticas de consumo e de
uso daqueles que e las têm por função modelar. Longe de terem a
absoluta eficácia acul turan te que lhes é atribuída com demasiada
freqüência , esses dispositivos de toda ordem (dos quais fazem parte
grande número dos materiais que são habitualmente objeto da his-
tória cultural ) deixam necessariamente um lugar, no momento em
que são recebidos, à variação , ao desvio , à reilllerpretação.

+1 Richard Hoggart, Tlu UsesoJ LileraC)', 1957 (trad. fI'. Lo Cullure du pauvre. Elude SU1" lc
style de vie des classes popultlires en AngUterre. Paris, Ed ilio ns de Min uit., 1970, p.263-298, c a
apresentação deJean-Claude Jlassel"on. p.20-24 ).

53
---- -----------------------------------------~----

Essas observações, que questionam todo um conjunto de postula-


dos implícitos na história sociocultural francesa de hoje (presentes, em
particular, na interpretação da Reforma católica, cujos efeitos suposta-
mente destruíram uma antiga cultura folclórica), distanciam-nos da
história intelectual, mesmo estritamente definida? Parece que não, na
medida em que elas incitam a situar todo texto em relação com leitu-
ras. Contra a concepção, cara aos historiadores da literatura ou da filo-
sofia, segundo a qual o sentido de um texto estaria nele escondido como
um mineral em sua ganga (a crítica sendo conseqüentemente a opera-
ção que traz à tona esse sentido oculto), deve-se lembrar que a signifi-
cação éo produto de uma leitura, de uma construção de seu leitor: "este
não assume nem o lugar do autor nem um lugar de autor. Ele inventa
nos textos algo diferente do que era sua 'intenção'. Ele os separa de sua
origem (perdida ou acessória). Combina seus fragmentos e cria signifi-
cações inéditas no espaço organizado pela capacidade dos textos para
permitir uma pluralidade indefinida de significações".'" Concebidos
como um espaço aberto às leituras múltiplas, os textos (mas também
todas as categorias de imagens) não podem então ser apreendidos nem
como objetos, cuja distribuição bastaria determinar, nem como entida-
des, cuja significação seria ur'iversal. Devem ser relacionados à rede con-
traditória das utilizações que os constituíram historicamente. O que
levanta, evidentemente, duas questões :...'2..gue~nifica ler? C0.!!!2..~es­
gatar as leitura~.<:'.n ti!@s? As respostas não são muito garan tidas, mas é
claro que a história intelectual não poderá evitã-las por muito tempo.
A título provisólio, sem dúvida é um bom método não recusar nenhu-
ma das apreensões que autorizam a reconstituir, pelo menos parcial-
mente, o que os leitores faziam de suas leituras: a apreensão direta, nos
meandros de uma confissão, escrita ou oral, voluntária ou extorq uida;
o exame dos fatos de reescritura e de intertextualidade onde se anula
o recorte clássico entre escritura e leitura,já que aqui a escritura é ela
própria leitura de uma outra esclitura;'16 enfim, a análise serial de corpo-

}.fichel de Certeau, 0/). cit., p.285-286. e capo XII, "Lire: Un braconnage", p.279-296.
<15

Em uma bibliografiajá imensa, citemos apenas.Julia Kristev<l, RecllercltC~·pourunesima­


4ti
nalyse (Semeiotike), Paris. Editions du Seuil, 1969, e Hans RobenJauss, Pourune eslhéLique
de la récePlion. Paris, Ga llimard, 1978.

54
m fechados na medida em que a mudança de motivos no interior de
um gênero dado (por exemplo, os livre tos de boas maneiras ou as pre-
parações para a morte) situa-se no cruzamento de uma intenção-a dos
produtores de textos - e de uma leitura - a de seu pc. blico. Sem reduzi-
la a uma história da d ifusão .§..Q<=,ial das idéias, a histó_ria int,Ç.leçtual deve
então estabelecer como central a relação do texto com as leituras indi-
vid uais ou coletivas que,~ada vez, o~O!::.stro em (isto é, deco~õem-no
para uma recomposição).
Mas ual é o estatuto des..s..e~ te~tos múltiplos qu ~ a história inte-
3.ctual es ta.~e!c:c':G=~n:!.0 objeto de af1áli~e? Tradic.íonalmente, é sua
----p'!:ó ria função ue sUE<2stamente lhes dá uma unidade: todos, de tato, ..'
constituiriam representações de um real que se esforçariam para apre-
ender sob modalidades diversas, fil ÕsÓficas ou literariãs. A opósiçao
entr~ realTdadeere )~e!!.tação é assirn:es~be~~}da c<:!mo erimor~01
ara distin.i:)uir !:p~s c:le histó!ias e, simultaneamente,. discri n~nar ti- _
os de textos. Opor-se-ia ao historiador das economias e das socieda-
des q~titui o que era aq uele das mentalidades ou das idéias, cujo
ob'eto não é o real mas as maneiras como os homens o ensam e o
transpõem. A essa divisão do trabalho histórico corresponde uma di-
visão dos materiais próprios a cada campo~~.'?s textos "documentais"
ue, subme tid os a umajusta crítica, revelam o que era a realidade
antiga, opor-se-iam os textoS"ili:eiTr1ós",'cü]o estatllto é'"ãêjuele cíafic-=-
ção e que-fia0 põdem;pÜis, ser consi erados como testemu nh as -de
, ,

realidade. Essa divisão fu ndam e ntal nâo foi alterada nem pela con5-
truçâ~m forma de séries estatísticas dos "documentos" antigos, o que -
não faz senão acentuar seu valor de verdade, nem pela rece nte utili-
zação de textos li terários pelos historiadores, visto que, neste caso, eles
perd em sua n~u!eza literária . Ea~ s~~em red~zid os ao estatuto d_e
documentos, cabíveis porque di zendo, de um outro modo, o que a
análise social estabeleceu por m eio de seus rá )[ios rocedimentos, -
O texto individual torna-se ilustração "vivida" da leis da quantidade.
São essas divisões demasiado simples que, hoje em dia, os histo-
riadores ã escu ta da crítica literária contemporânea" ou da sociolo-

'li Cf. Jeall Marie Goulemot, "Histoire litténlire", La NouveJleHisloire, oI'. cif., p.308-3 13.

55
gia questionam . É claro que nenhum texto, mesmo o mais aparen te-
mente documental, mumo o mais "objetivo" (por exemplo, um qua-
dro estatístico estabelecido por uma administração) , mantém uma
relação transparente com a realidade que ele apreende. Jamais o tex-
to, literário ou documental, pode anular-se como texto, isto é, como
um sistema construído segundo categorias, esquemas de percepção
e de apreciação, regras de funcionamento, que remetem às suas pró-
rias condições de produção. A relação do texto com o real constrói-
se de acordo com modelos discursivos e recortes intelectuais próprios
a cada situação de escritura. O qu~ leva a não tratar as ficções como
meros documentos, supostos reflexos da realidade histórica, mas a
estabelecer sua especificidade enquanto texto situado em relação a
outros textos e cuja organização e forma visam a produzir algo dife-
rente de uma descrição. O que conduz, a seguir, a considerar que os
"materiais..ctocumentos" obedecem, eles também, a procedimentos de
construção onde se investem os conceitos e as obsessões de seus pro-
dutores e onde se marcam regras de escritura particulares ao gênero
de que fazem parte. São essas categorias de pensamento e esses prin-
cípios de escritura que se deve, portanto, fazer sobressair previamen-
te a toda leitura "positiva" do documento. O real assume assim um
novo sentido: o que é real, de fato, não é somente a realidade visada
pelo texto, mas a própria maneira como ele a visa, na historicidade
de sua produção e na estratégia de sua escritura.

CONCLUIR?

A única definição atualmente aceitável da história intelectu~l


ou cultural arece, então, ser aquela dada por Carl Schorske, na
medida em que ele não lhe atribui nem meto õ logla partIcUlar
nem conceitos obrigatórios, indicando apenas a dupla dimensão
de um trabalho:

The historian seehs to Locate and inte1jnrt lhe artifact temporally in a field wltere
fruo /ines intersect. One linr is vertical, ar diachronic, by whic/t he establishes lhe
relation of a texl 01' a systnll ofl!lOughl to p'revi()us exjJnssion in lhe same branch

56
Df cultural activity (jJaintings, jJolitics, etc.). The other is horizontal, ou synchrcr
nic; by it he assesses the relation oflhe conlent 01 lhe intellectual object to whtat i-5
ajJpearingin olher branches or aspects o/a culture at lhe same liuuj113
[O historiado r busca situar e interpretar a o bra no tempo e inscrevê-Ia
no cruzamento de duas linhas de força: uma vertical, diacrônica, pela qual
ele relaciona um texto ou um sistema de pensamento a tudo o que os
precedeu em um mesmo ramo de atividade cultural (pinLUra, política,
e tc.); a outra, horizontal, sincrônica, pela qual o historiado r estabelece
uma relação e ntre o conteúdo do objeto intelectual e o que se faz em
ou tras áreas na mesma época].

É evidenlemenle uma mesma c,oncepção da tarefa do historiador inte-


lectual que compartilha Hayden White, propondo-lhe um duplo mo-
delo e um duplo questionário: Gomblich and K"hn have given 1lS nwdels
01 h01.IJ lo wrile lhe histories of ffnres, sl)'1es and disciplines; Goldrnan shows tiS
how lo unile [hem on lhe broader canvases provided by social, polilical, and eco-
nomic hislorianf9 [Gombrich e Kuhn forneceram-nos os modelos para
escrever a história dos gêneros, dos estilos e das disciplinas; Goldman
!1'0s!:I:a-nos como reuni-los nos quadros mais ª mplos fornecidos pelos
historiadores da sociedade , da política e da economia]. Sem forçosa-
men te dizê-lo, aqueles que na Fran ça te;;tam compreender os "objetos
intelectuais" (retomando a expressão de Schorske) concordam com essa
definição do espaço cultural (e, portanto, de seu próprio campo de
eSludo) como um espaço de duas dimensões, o que p~rrnite-E-ensar uma
I
produção intelectual ou artística na especificidade da história de seu
gênero ou de sua disciplina, e tam éii1em suarelaçao com' as outras
j2roduções culturais que lhe são con temporãneas e em suas relações com_
diferentes referentes~ituados em outros campos da totalidade social (so- _
Eoeconômica ou polític.!!l. Ler um texto ou decifrar um sistema de pen-
samento consiste, pois, em manterjuntas essas diferentes questões que
constituem, em sua articulação, o que se pode considerar como o obje-
to mesmo da história intelectual.

48Carl Schorske, Fill-de-siecle Vienna. Polüics anel Cultu re, New YOI-k, Cambridge Universi-
ty Press, 1979. pXXI-XXII (lI<ld. fr. Vien:ne]in de siecle. Poliliqueel culwre. Paris, Seuil, 19~ 1,
p.1 3 [ tradu ção re\'isa d ~I] ).
H aydc n "'"hi te, "Tbe Tasks cf In lell eclual I-J islor}''', TILe Monist, \'OI. 53, n. 4, o utu bro
-\~t
1969, p.606-630 (ci tação p.626).

57
No entanto , por detrás de sua força de evidência, essa defini-
ção encerra ainda muitas a rmadilh as. De fala , dois conceitos cau-
sam problema e podem induzir ao erro: o de obj elo intelectua l (in-
tellectualobject) e o de cultura. Após Foucault, é bastante claro, com
efeito, que não se pode considerar esses "objetos intelectuais" como
"o bjetos naturais", Cl0as modalidades históricas d e existência seriam
as únicas a mudar. A loucura, a med icina, o Estado n ão são catego-
rias pensáveis sobre o modo do universal e cuj o conteúdo cada épo-
ca particularizaria. Por detrás da permanência enganosa de nosso .
vocabulário, deye-se reconl7ecer n~o ~bj etos, mas obje tivaçqG~ que '
çonstroem a cada vez um ~ f~gur~~igin~1. Co~o escreve muito _b erro
Paul Veyne, Cl!JO comen ta n o seguftnOs aq UI: neste mundo, nao se
joga xadrez com figuras eternas, o rei , o louco: as figuras são o que
as configurações sucessivas sobre o tabuleiro 'fazem delas".'o São,
portanto, as relações com os obj etos que os constituem, de um modo
específico e de acordo com agrupamentos e d istribuições semp re
singlll ares!A história intelectual não deve cair na armadilha das pa-
lavras que podem dar a ilusão de que os d iferentes campos de dis-
cursos ou d e práticas estão constituídos de um a vez por todas, re-
cortando objetos, cujos contornos, senão os conteúdos, não variam;
\ bem ao co ntrário, ela d eve estabelecer como centrais as descontinui-
dades que fazem com que se designem, se agTeguem e se dispersem,
de maneiras diferentes ou contraditórias con fo rme as épocas, os sa-
eres e os atos. Este é seu objeto, ou seja, "relacio n ar os pretensos
obj etos n aturais ãs práticas datadas e raras que os objetivam e expli-
car essas práticas, não a partir de um mOlar único, m as a parti!' de
todas as práticas vizinhas sobre as quais elas se ancoram ".'l O que é
resgatar, sob as práticas visíveis ou os discursos conscien tes, a gramá-
tica "oc ulta" ou "i mersa" (como escreve Veyne) que os justifica. É
identificando as divisões e as relações que constituíram o objeto que
quer ap ree nde r que a hi stó ria (das idéias, das formações ideológi-
cas, das práticas discursivas - pouco importa a designação) poderá

~uPaul Ve)'ne, "Foucault rémlutionne I ' histoirc", Qmt1nenl Oll écritl'hisloire. segui do de
Pmlc(/U.{t ré'volulinnne ['hisloi-re, Paris, Ed itions du Scuil. 1978, p.236.
" ! Iid., p.24J.

58
pensá-lo sem reduzi-lo a apenas uma figura circunstanciada de uma
categoria supostamente universal.
Tão arriscado quanto o de objeto intelectual, o conceito de cultu-
ra. Sua d iscussão não é aceitável aqui. No máximo, pode-se observar que
uma representação comum, particularmente sensível na afirmação de
uma "história serial do terceiro nível", constró i a cultura como uma ins-
tãncia da totalidade social, situada "acima" da economia e do social que
supostamente constituem os dois primeiros n íveis do arcabouço. Essa
tripartição, utilizada como uma comodidade entre os historiadores
quantitativistas para delimitar diferentes campos de aplicação do trata-
mento serial, reproduz na veldade o recorte marxista tal como sistema-
tizado por Louis Althusser. Essa divisão que postula, de um lado, que
uma das instãncias,- a econõmica - é deterlT!inante e, de outro, que o
cultural ou o ideológico forma um nível à parte (claramente identifi-
cável e confi nado em limites reconhecíveis) da totalidade social, não
parece mais concebível. Na verdade, o que se deve pensar é como to-
das as relações, inclusive aquelas que designamos como relações eco-
nômicas ou sociais, organizam-se segundo lógicas que colocam emj ogo,
em ação, os esquemas de percepção e de apreciação dos diferentes su-
j eitos sociais, portanto, as representações constitutivas do que se pode
chamar de uma "cultura", quer seja comum a toda uma sociedade, quer
seja própria a um gmpo determinado. O mais grave n a acepção habi-
tual da palavra cultura não é tan to o fato de que recobre geralme n te
apenas as produções in telectuais ou artísticas de uma elite, mas que leva
a supor que o "cultural" não se investe senão em um campo particular
de práticas ou de produções. Pensar diferentemente a cultura e, por-
tanto, O próprio campo da história intelectual, exige concebê-la como
um cOl:junto de significações que se enun ciam nos discursos ou nas
condu tas aparentemente menos "culturais", como faz Clilford Geertz:
The CUltUI'C concept to which I adhm r. . J derwtes an historically transmitted
paUem 0/ meanings elllbodied in symbols, a system 0/ inherited conceptions ex-
frressed in symbolic /orllls by means 0/ which men cOlnmlLnical.e, perjJetuate, and 1
develop their knowledge abolLt and altitudes towards life" [O conceito de cul-

!>~ Clifford GecrlZ, The lnfclp rel alion ofCultu·re, New York, Basic Books In e. , 1973, p.89.

59
turaao qual adiro [... ] designa um conjunto de significações historica-
mente transmitido e inscrito em símbolos, um sistema de concepções
herdadas expressas nestas formas simbólicas por meio das quais os ho-
mens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu saber sobre a vida e
suas atitudes diante dela]. Portanto, é uma nova articulação entre cul-
tural structuni e social stnlcture que se deve construir sem nela projetar
nem a imagem do espelho, que faz de uma o refl exo da outra, nem a
da engrenagem, onde cada uma das engrenagens repercute o movimen-
to plimordial que afeta o plimeiro elo da cadeia.

60

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