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Barriga que tem “cheiro de churrasco” durante o corte com bisturi a laser na
cesariana. Ameaça de degolar um bebê ao fazer a cirurgia, caso a mãe não concordasse
em ir para a sala de parto. Bebês retirados do útero e examinados violentamente antes de
serem entregues às suas mães e pais para um dos mais sublimes encontros da vida. Estas
são cenas protagonizadas por profissionais de saúde e caracterizam exemplos clássicos
da violência obstétrica, que acomete uma em cada quatro mulheres brasileiras.
Trata-se de um tipo específico de violência contra as mulheres (também contra
os bebês e, por consequência, contra seus companheiros ou companheiras e sua família)
que desfruta de uma desconfortável qualidade: é praticamente invisível. Seja pelo fato
de acontecer, em geral, no momento do nascimento, que é tão esperado e pelo qual se
nutrem expectativas de perfeição; seja por ser praticada por profissionais de saúde, que
constituem uma categoria forte e “blindada” socialmente, posto que reconhecida como
séria e detentora de legitimidade; seja “simplesmente” por se tratar de um tipo de
violência contra as mulheres, em geral, colocadas em condição fragilizada e alienadas
de seu próprio corpo.
Se esse tipo de violência virou algo corriqueiro, o cenário parece começar a
mudar em função, principalmente, de dois movimentos: o primeiro são as iniciativas
que buscam denunciar essas atrocidades com mulheres e famílias no momento do parto
e do nascimento e que estão ganhando cada vez mais notoriedade; o segundo são as
ações, movimentos, coletivos e grupos de apoio dedicados à humanização do parto e do
nascimento.
As situações listadas no início do texto foram reveladas por uma ação de
blogagem coletiva chamada “Teste da Violência Obstétrica”2. O teste contou com 1.966
1
Michelle Prazeres é jornalista e mãe do Miguel. Jamila Maia é tradutora e mãe do Gael.
Amigas, ambas são ativistas pela humanização do parto e do nascimento.
respostas de mulheres que em sua maioria (82%) estavam relatando episódios ocorridos
na gestação e parto do primeiro filho, que aconteceu majoritariamente em um hospital
privado, através de convênio (56%). A pesquisa revelou dados como:
Heranças do patriarcado
5
Website: https://violenciaobstetrica.crowdmap.com/
6
Para mais, veja: http://estudamelania.blogspot.com.br/2013/02/guest-post-violencia-
obstetrica-by-ana.html
7
Fonte: http://minhamaequedisse.com/2013/04/os-ventos-estarao-mudando-no-cenario-
obstetrico-brasileiro/
8
Fonte:
http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/index.cfm?portal=pagina.visualizarTexto&codConte
udo=6942&codModuloArea=168&chamada=carta-sus
Existem, portanto, alguns meios para se comunicar a violência sofrida pela
mulher, mas se ela tiver interesse em levar o caso à justiça, o ideal é consultar um
advogado. A advogada Gabriella Sallit já entrou com uma ação por violência obstétrica
em nome de uma cliente em uma ação pioneira no Brasil. Em post no blog Dadada9 ela
afirma que a “decisão de denunciar a violência obstétrica deve ser tomada com cuidado,
depois de muita reflexão. Acusar alguém é mais difícil do que se imagina. Os processos,
sejam administrativos ou judiciais, reviram a vida da gente, remoem coisas que são
dolorosas, envolvem terceiros que nem sempre concordam com a nossa postura
(marido, filhos etc.). Nem sempre o jogo é limpo. Na verdade, poucas vezes é”. No
texto, ela deixa algumas dicas para quem resolver denunciar uma ação de violência
obstétrica.
9
http://www.dadada.com.br/2013/04/01/como-denunciar-a-violencia-obstetrica/
10
Tradução livre da lei venezuelana, que pode ser consultada aqui:
http://venezuela.unfpa.org/doumentos/Ley_mujer.pdf
mulher; praticar o parto por via de cesárea, existindo condições para o parto natural,
sem obter consentimento voluntário, expresso e informado da mulher.
Outros atos que podem ser considerados violência obstétrica, segundo Ana
Cristina Duarte11 são:
impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, familiar
ou de seu círculo social;
tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, zombeteira ou de
qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, incluindo tratá-la de
forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos;
submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes,
como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas
abertas;
impedir a mulher de se comunicar com o "mundo exterior", tirando-lhe a
liberdade de usar o celular, caminhar até a sala de espera, etc.;
fazer graça ou recriminar por qualquer característica ou ato físico como
obesidade, pelos, estrias, evacuação e outros, assim como por comportamentos como
gritar, chorar, ter medo, vergonha, etc.;
fazer qualquer procedimento sem explicar antes o que é, por que está sendo
oferecido e acima de tudo, sem pedir permissão;
submeter a mulher a mais de um exame de toque (ainda assim quando
estritamente necessário), especialmente por mais de um profissional, e sem o seu
consentimento, mesmo que para ensino e treinamento de alunos;
cortar a vagina (episiotomia) da mulher quando não há necessidade (discute-se a
real necessidade em não mais que 5 a 10% dos partos); dar um ponto na sutura final da
vagina de forma a deixá-la menor e mais apertada, supostamente para aumentar o prazer
do cônjuge;
subir na barriga da mulher para expulsar o feto (manobra de Kristeller);
submeter a mulher e/ou o bebê a procedimentos exclusivamente para treinar
estudantes e residentes, ou permitir a entrada de pessoas estranhas ao atendimento para
"ver o parto", quer sejam estudantes, residentes ou profissionais de saúde,
principalmente sem o consentimento prévio da mulher e de seu acompanhante com a
chance clara e justa de dizer não;
11
http://estudamelania.blogspot.com.br/2013/02/guest-post-violencia-obstetrica-by-ana.html
fazer uma mulher acreditar que precisa de uma cesariana quando ela não precisa,
utilizando de riscos imaginários ou hipotéticos não comprovados (o bebê é grande, a
bacia é pequena, o cordão está enrolado) e submetê-la a essa cirurgia
desnecessariamente, sem a devida explicação dos riscos que ela e seu bebê estão
correndo (complicações da cesárea, da gravidez subsequente, risco de prematuridade do
bebê, complicações a médio e longo prazo para mãe e bebê);
dar bronca, ameaçar, chantagear ou cometer assédio moral contra qualquer
mulher/casal por qualquer decisão que tenha(m) tomado, quando essa decisão for contra
as crenças, a fé ou os valores morais de qualquer pessoa da equipe;
submeter bebês saudáveis a aspiração de rotina, injeções e procedimentos na
primeira hora de vida, antes que tenham sido colocados em contato pele a pele e de
terem tido a chance de mamar.
A violência obstétrica é portanto física, emocional e também simbólica, pois a
informação que chega às parturientes é carregada de simbolismos e valores que as
conduzem a uma condição de medo e desempoderamento. O parto pode ser
compreendido como um importante rito de passagem para a mulher, uma experiência
grandiosa na medida em que a mulher se sente vitoriosa e capaz quando ele termina,
munida de força psíquica inclusive para encarar a próxima grande transformação: a
amamentação e os cuidados com o bebê. Se submetida a um processo repleto de
agressões e intervenções, ao seu término a mulher – colocada neste lugar pelo agressor -
pode de fato se sentir "defeituosa", incapaz e fraca, à mercê do auxílio constituído na
figura dos profissionais de saúde, sem os quais supostamente o nascimento não teria
sido possível.
Assim, quando há violência obstétrica, a agressão ocorre em vários níveis: há a
violação física, como nos exames de toque feitos sem explicação, consentimento ou
necessidade, nos casos de episiotomia e também de falta de liberdade de movimentação
e de escolha de posição para parir (que chega ao absurdo quando a mulher é amarrada
na cama), mas também há toda a violência verbal que remete ao sexo e às escolhas que
ela fez sobre sua vida reprodutiva. Frases como "na hora de fazer não gritou" traduzem
bem o pensamento de uma sociedade ainda bastante machista e patriarcal, que julga e
"castiga" a mulher que usa sua sexualidade, como explica Ligia. É um ato de negação
da autonomia da mulher, do seu direito de escolha, de sua dignidade e de sua
integridade corporal e emocional.
Questões econômicas e sociais envolvidas
Mudanças no cenário
12
Planos cobrem só cesárea em parte dos hospitais.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,planos-cobrem-so-cesarea-em-parte-dos-
hospitais-,1015814,0.htm
13
Recentemente, no primeiro capítulo de uma novela em horário nobre, a rede de televisão
com maior audiência no país mostrou uma cena de morte materna em um parto normal. A
representação dos partos nas novelas brasileiras é digna de um estudo mais aprofundado.
Compartilhamos aqui apenas uma impressão, de que o assunto parece ser sempre cercado de
lendas, mitos e de uma aura aterrorizante, que confirma e reforça o senso comum.
Felizmente, este cenário está começando a mudar no Brasil. Uma série de
inciativas começam a surgir para informar a mulheres, denunciar situações violentas e
alertar órgãos responsáveis. Nos últimos anos, o movimento pela humanização do parto
ganhou ainda mais visibilidade a partir de marchas, movimentos e mobilizações
nacionais, como as em favor da presença das doulas no parto e pelos partos
domiciliares. Ligia Moreiras Sena está por trás de algumas das iniciativas nesse sentido,
como o Teste da Violência Obstétrica e a produção do vídeo-documentário popular
"Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras"14 que atingiu um grande alcance e hoje
possui cerca de 70 mil visualizações no Youtube, além de ter sido apresentado a
profissionais de saúde em diferentes eventos. Por meio desse documentário, formado
por depoimentos de mulheres sobre a violência que sofreram no nascimento dos filhos,
muitas outras mulheres passaram a problematizar as circunstâncias de nascimento dos
próprios filhos e estão se envolvendo na causa.
Por sua vez, o projeto "1:4 - retratos da violência obstétrica", da fotógrafa Carla
Raiter, retrata mulheres que foram vítimas dessa violência com trechos de relatos
estampados em seus corpos. “Ele tem como objetivo chamar atenção para o
tema, disseminar informação, curar feridas, fortalecer redes de apoio, tirar o assunto do
escuro, incentivar a discussão e a denúncia”, explica a idealizadora.
Por fim, cabe destacar o filme "O Renascimento do Parto"15, produzido por um
casal de ativistas, cuja distribuição está sendo viabilizada por uma ação de
crowdfunding (financiamento coletivo). O filme mostra a violência obstétrica sofrida
diariamente pelas mulheres nas maternidades e consultórios brasileiros. O filme traz
depoimentos de profissionais renomados na área do atendimento humanizado ao parto,
como o obstetra francês Michel Odent e a parteira mexicana Naoli Vinaver, além de
histórias de mães e pais, e entrevistas com obstetras, parteiras, doulas e pediatras.
“Felizmente, os últimos dois anos foram marcados por ações e projetos com o
objetivo de tirar a violência obstétrica da invisibilidade, discuti-la, evidenciá-la e
problematizá-la”, conta Ligia. Contudo, ainda há um longo caminho a ser percorrido
para que as mulheres possam ter partos livres e dignos no Brasil.
A humanização do atendimento ao parto é um dos principais caminhos para a
transformação desse cenário, na medida em que se propõe a devolver o protagonismo do
14
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=eg0uvonF25M
15
http://benfeitoria.com/o-renascimento-do-parto
momento do parto à mulher, com redução nas intervenções tanto no aspecto clínico
quanto na condução do parto, que é encarado como evento fisiológico.
A preparação dos profissionais de saúde para esse modelo pode ajudar a sanar
não apenas a violência obstétrica, mas também os outros males embutidos nesse
processo, como a medicalização excessiva, a mercantilização do processo de
nascimento (que se traduz na aceleração desnecessária dos partos com fins de
produtividade em detrimento da observação das evidências científicas) e a dominação
sociocultural da mulher.
Assim, o nascimento de uma criança poderá ocupar a posição que lhe cabe na
vida de seus pais, da família e da sociedade como um todo: um evento natural e feliz no
qual um novo ser humano é recebido no mundo com dignidade e respeito, inclusive – e
principalmente – por parte dos profissionais de saúde eventualmente envolvidos no
processo.
Nota final: Agradecemos a oportunidade de participar deste projeto, pois esta obra,
certamente, caminha junto com outras iniciativas no sentido de dar visibilidade a esta
e a tantas outras violências que são cometidas diuturnamente contra nós, mulheres,
no Brasil.
Referências