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Heranças africanas no brasil

monica lima

1ª EDIÇÃO
rIO DE JANEIRO, 2009

Patrocínio
Copyright © Monica Lima
Heranças Africanas no Brasil
é uma publicação do
Centro de Articulação de Populações Marginalizadas - CEAP
Rua da Lapa, 200 - gr.810 - Lapa - RJ - CEP: 20021-180
Tels: (21) 2224-8530/2232-7077
e-mail: ceap@portalceap.org.br - Site: www.portalceap.org.br

Coordenação editorial: Astrogildo Esteves Filho e Ele Semog


Edição e produção: Espalhafato Comunicação e Produção.
Capa e diagramação: Ricardo Bogéa

Rio de Janeiro, 2009

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
SUMÁRIO
Apresentação 5
Fundamentos históricos das Heranças Africanas 7
Africanos no Brasil: origens 23

Religiosidade, linguagem e corporeidade 41

Tecnologias, práticas terapêuticas e alimentação 65


Capoeira e musicalidade afrodescendente 85
Conversações pedagógicas: heranças africanas 98
APRESENTAÇÃO

Os Cadernos do CEAP fazem parte do projeto Camélia da Liberdade e servem


de apoio aos professores, aos alunos da rede pública e privada do ensino básico,
além de universitários, movimentos sociais, grupos do movimento negro, e a
todos aqueles que têm compromisso com a construção de uma sociedade que
prime pelo respeito à diversidade, que reconheçam os valores e as contribuições
dos afrodescendentes na vida social do país.
Em 2009 a coleção será composta de seis volumes, dentre os quais este intitulado
“Heranças africanas”, apresentado pela professora Mônica Lima de Souza,
doutora em História pela Universidade Federal Fluminense, que nos permite
ter uma visão rica e contundente de fatos relativos à formação do Brasil. O
texto não trata de uma nova história, muito menos de outra história, mas 5
desvenda, com acuidade, a nossa história tão manipulada à conveniência dos
escribas dos vencedores, que tantas e tantas vezes seqüestraram acontecimentos
inteiros da presença e contribuição negro-africana no Brasil, na tentativa de
impor invisibilidade, de anular, a presença de um povo inteiro. É um olhar
sobre o berço da humanidade: a África. Continente formado por dezenas de
povos distintos, que direta e/ou indiretamente influíram na formação desta
nação, a despeito da sanha colonizadora portuguesa que resultaram em séculos
de escravidão.
Além do conteúdo específico do tema, nas páginas finais de cada volume, os
Cadernos do CEAP contêm um roteiro para trabalhos pedagógicos que permite
aos professores muitas alternativas de exploração do material em sala de aula.
Este é mais um instrumento para a implementação da Lei nº 10.639/03,
nas escolas da rede pública e privada de ensino, dando um novo impulso nas
discussões da questão étnico–racial no processo de educação.
A escola é um dos espaços privilegiados de formação do indivíduo para viver
em sociedade como verdadeiro cidadão. A cidadania para os afro-descendentes
passa necessariamente pela compreensão, respeito e valorização da historia, de
sua identidade, com os seus valores socioculturais e religiosos. Na sociedade
brasileira o conhecimento histórico ainda é um desafio educacional.
Esse é o nosso objetivo, possibilitar aos professores e educadores o acesso à nossa
história e à nossa cultura com mais esta edição.

Ivanir dos Santos - Secretário Executivo do CEAP


FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DAS
HERANÇAS AFRICANAS

Para entendermos melhor as heranças e contribuições africanas na


nossa identidade e na formação do Brasil contemporâneo, temos que olhar
para a história dos nossos ancestrais. Ela nos mostra que muitos povos da
África tinham uma longa história de contatos com outros povos e culturas
antes de se encontrarem com os europeus no litoral atlântico, no século XV.
Essa história faz parte da memória e identidade dos africanos e também foi
trazida ao Brasil.

A longa história da África 7

A História da humanidade começou na África. O continente


africano é o lugar onde surgiram as primeiras instituições gregárias das
sociedades humanas, que mais tarde deram origem às formas mais básicas
de organização social: as famílias extensas e clãs. Partiram de lá os primeiros
seres humanos a povoar o planeta.

África na Antiguidade

Na África, durante a Antiguidade, surgiram impérios como no


Egito e na Núbia, que deixaram testemunho de sua riqueza e seu poder
em monumentos e registros escritos. Os estudos de História Geral sobre
o período conhecido como “História Antiga” quase nunca ou muito
raramente contemplam o continente africano. Ou se o fazem, não revelam
a profundidade da contribuição africana. Isto é particularmente perceptível
quando se apresenta a História do Antigo Oriente Próximo e dentro dela,
a história do Egito. O Egito, apesar de por todos os mapas e referências
geográficas, se encontrar no continente africano, é mostrado como se
fosse parte de um “mundo oriental” sem localizar os povos que ficavam
em seus limites ao Sul. Privilegia-se o enfoque sobre seus contatos com a
península arábica e a antiga Mesopotâmia e menos a sua ligação com as
terras africanas ao Sul onde ficam hoje a Etiópia e o Sudão.
No entanto, sabemos uma outra parte dessa História, em
grande parte devido aos longos e criteriosos estudos de Cheikh Anta-
Diop – intelectual de muitos saberes nascido no Senegal. Ele afirmou,
8 comprovando com fontes pesquisadas, que o Egito se ligava de forma
profunda ao mundo africano. As bases da chamada “civilização egípcia”
se encontravam ao Sul, dentro da África, e para lá corriam faraós e
sacerdotes em busca de proteção, inspiração e sabedoria. A fundação
do império egípcio, que se fez há cerca de 5000 anos atrás, se deu a
partir do Sul, e dali conquistando a região do Delta do Nilo. O Egito é
e foi sempre africano, ainda que próximo à Ásia Ocidental e ao mundo
mediterrâneo. As trocas culturais e demográficas com outras regiões
do chamado “Antigo Oriente Próximo” não tiram o lugar geográfico e
histórico do Antigo Egito.
Portanto, as contribuições no campo dos conhecimentos técnicos,
do pensamento e filosofia egípcios ao mundo mediterrâneo levaram à
Europa e à Ásia Ocidental um conjunto de saberes que se elaborara no
interior da África. Havia e sempre houve o contato com outros povos e
culturas, mas esse contato não foi uma via de mão única no intercâmbio
cultural.
Da mesma forma, quando estudamos a história do Mediterrâneo
ocidental na Antiguidade, ouvimos falar de Cartago e das guerras desta
cidade africana contra a poderosa Roma, sem mencionar os dados internos
àquela cidade. O que fazia de Cartago uma cidade tão rica e poderosa? O
seu papel comercial, sem dúvida. Mas, o quê de tão valioso comerciava
Cartago, que enriquecia seus governantes a ponto de fazer dela a rival
temida da cidade mais poderosa do Mediterrâneo? Cartago possuía férteis
campos de trigo, base para a alimentação dos povos naqueles tempos e o
contato com os berberes, povos do deserto do Saara que traziam, pelas
rotas das caravanas, o ouro do interior do continente. De Cartago saíam os 9
navios fenícios que costeavam a África em direção ao ocidente, chegando
ao litoral ao sul do Marrocos em busca de produtos locais.
O domínio sobre Cartago a partir de 146 a.C. significou não
só o início do poder de Roma sobre o Norte do continente, como o
estreitamento das relações do mundo europeu mediterrâneo com os povos
do deserto. Provavelmente graças aos romanos, os berberes tomaram
contato com o camelo – o “navio do deserto”, animal de carga e transporte
que se adequou especialmente às condições do Saara. E com o camelo,
os africanos do deserto chegaram ainda mais longe dentro do continente,
levando e trazendo pessoas, produtos, técnicas e conhecimentos.
Outro tema de história africana que tem estreita relação com a
História geral na Antigüidade é a expansão do cristianismo sobre as terras
africanas. Isto se deu sob o domínio de Roma. A presença de religiosos fez
nascer na África ramos do Cristianismo muito antigos e profundamente
influenciados por crenças locais. No Egito dominado por Roma, muitos
grupos oprimidos se cristianizaram e fizeram da nova fé um motivo de
consolo e de resistência contra os opressores. Porém, no século IV, Roma
se tornou um império cristão e fundou uma nova capital em Bizâncio, na
Europa Oriental. A partir de Bizâncio saíram missões para a África e destas
missões africanas saíram muitos estudiosos e líderes do Cristianismo.
Santo Agostinho, nascido na Numídia (na costa oriental da atual Argélia)
em 354, foi um dos mais importantes. E também surgiram comunidades
cristãs que criaram igrejas locais, como os cristãos coptas no Egito e a igreja
cristã etíope, nascidas nos primeiros séculos da era Cristã.
10

Grandes reinos e o comércio de


longa distância

Grandes reinos e civilizações com conhecimentos sobre


metalurgia, mineração, técnicas agrícolas, além de sofisticados sistemas
de poder, existiam na África muitos séculos antes dos primeiros
portugueses lá chegarem. Na época da expansão muçulmana, a partir
do século VII, habitantes do norte da África e do deserto do Saara
migraram em direção ao sul da Europa, principalmente para onde
ficam hoje Portugal e Espanha. E lá ficaram, misturaram-se com a
população e levaram conhecimentos e produtos. Durante o tempo
conhecido como Idade Média na Europa, a África era conhecida
como a “terra do ouro”.
Na África Ocidental, havia centros de estudo desde o século XIV.
A cidade de Tombuctu, que fica no atual Mali, era onde ficava um dos mais
importantes, com diversos estudiosos dos mais diferentes assuntos. Nesta
cidade os livros estavam entre as mais caras e cobiçadas mercadorias entre
os séculos XIV e XV. Tombuctu ficava numa das mais importantes e ativas
rotas de comércio transaariano, que saía de Marrakech, passava pelas minas
de sal de Taghaza e chegava até o antigo reino de Gana. Havia outras rotas
igualmente importantes como a que ia de Tunis à terra dos hauçás, no norte
da Nigéria atual. Havia ainda uma terceira
entre as principais que cruzava o deserto
de Trípoli ao sul de Bornu - na região
do lago Chade - e a longa e importante
rota de Gao até a cidade do Cairo. E essas 11
rotas centrais se subdividiam em outros
caminhos secundários. Nos pontos de
descanso das caravanas que cruzavam o
deserto surgiram cidades e aldeias.
Com o crescimento da atividade
mercantil ao longo do Saara surgiram
núcleos de poder centralizado, vinculados
à prosperidade trazida por esse comércio
de longa distância. Foram os chamados
reinos, que se formaram na franja ao
Rotas transaarianas.
Sul do deserto e nas regiões de savana, Fonte: IBAZEBO, Isimene. À descoberta da África. Lisboa: Editorial
favorecidos por terem acesso e controle Estampa, 1996. p.7
dos bens mais valorizados nos mercados do Norte do continente: o ouro e
o sal. Os mais conhecidos entre esses reinos da África Ocidental entre os
séculos X e XVI são: Gana, Mali e Songai.
Estes tipos de reinos surgiram não apenas na África Ocidental
como na África Oriental, sendo que nessa região não estavam ligados ao
comércio de longa distância pelo deserto. Nas regiões próximas à costa do
Índico surgiram núcleos de poder centralizado ligados ao grande comércio
transoceânico que ligava essa área litorânea da África à Península Arábica.
A Índia, as ilhas da Indonésia e a China eram também parceiros nessa
atividade mercantil marítima.

12

Redes de comércio no
Oceano Índico, século X
ao XVI.
Fonte: SHILLINGTON,
Kevin. History of África.
Nova Iorque: Macmillan,
2005. 2ªed rev. p.126
Islã e comércio de longa distância

Tanto na África Ocidental como Oriental a expansão do Islã,


especialmente entre os séculos IX e XI, trouxe ainda mais intensas
conexões comerciais e mercados. O contato com o mundo muçulmano
que se ampliava a Oriente e Ocidente, no Mediterrâneo e na Ásia,
colocou estas áreas da África sul-saariana em permanente relação com
amplas áreas do mundo.
Vejamos como a expansão do Islã fortaleceu o comércio de
longa distância.
Um dos pontos mais importantes para a religião muçulmana é a
questão da formação de uma relação de irmandade entre os fiéis. Como
se trata de uma religião sem autoridades e hierarquias centralizadoras 13
(diferente, por exemplo, da Igreja Católica), o fiel fortalece sua fé e encontra
orientação juntando-se a outros. Eventualmente, um estudioso, um sábio
do Islã funciona como referência, mas a irmandade é a base. E isto faz
dos vínculos entre os muçulmanos algo muito forte, que inclui apoio e
compromisso.
Logo, ao aderir ao islamismo, os comerciantes entravam também
nestes grupos, e passavam a fazer parte das confrarias muçulmanas. E as
normas quanto à honestidade nos negócios e à hospitalidade a um irmão de
fé em viagem eram algo sagrado. Portanto, o comércio entre muçulmanos
se tornava muito mais seguro. Além disso, um fiel do Islã faria negócios
com muito mais boa vontade com um seu irmão de fé. E mais ainda: as
redes muçulmanas se estendiam em rotas muito amplas, que chegavam até
Pequim, passando por Bagdá e pela Cashemira, entre outros tantos lugares
de produtos cobiçados pelo grande comércio.
No entanto, o cenário africano ao Sul do Saara não era só de reinos
e grandes cidades portuárias. Havia também muitas aldeias de poucas
casas, com populações cujos vínculos de trabalho e organização social se
explicavam por meio do parentesco e da vida em grandes famílias. Entre
alguns destes grupos, existiam desigualdade e relações de subordinação,
assim como em tantas partes do mundo. Eles disputavam territórios e
recursos entre si, comerciavam e pagavam tributos aos grandes reinos, se
ficassem em território dominado.
O que podemos concluir com estas breves informações até agora
apresentadas sobre a História da África, antes da presença europeia em suas
14 margens atlânticas:
l Os povos deste continente estiveram conectados a diferen-
tes povos, de diversas partes do mundo, ao longo de toda sua
História.
l Nas relações entre os africanos e o mundo que os cercava
muitos conhecimentos, técnicas e produtos foram dissemina-
dos e aperfeiçoados.
l A África não era um continente desconhecido para muitos
povos.
l A África não estava isolada, nem fechada até as “Grandes
Navegações e Descobrimentos” europeus.
A formação do mundo atlântico e o tráfico
de escravos

Havia, portanto, uma longa história anterior à chegada dos


portugueses no litoral atlântico da África. Ao desenvolverem as relações
comerciais durante a sua expansão, os portugueses estabeleceram contatos
no litoral ocidental, oriental, com a Índia e o Oriente. Desenvolveram
várias trocas comerciais e entre elas, aquela modalidade que acabou por ser
responsável pela diáspora africana no Brasil e nas Américas: o tráfico.
O comércio atlântico de escravos conectou não só o Brasil e a África.
Como parte do Império Português que se estendia até as cidades costeiras
da Índia e Macau (na China), esta ampla rede colocou todo um conjunto
de lugares distantes em contato permanente e sistemático. As naus da rota 15
da Índia chegavam carregadas ao nosso litoral, pois antes passavam pelo
litoral da África, trocando os panos do sul da Ásia que traziam (conhecidos
como “panos de negros”) por escravos. Aqui, no Brasil, os cativos serviam
para se adquirir açúcar e aguardente. Era uma ampla rede de comércio que
envolvia diferentes parceiros em diferentes partes do mundo, durante o
tempo que durou o tráfico de escravos.
16

Mapa da diáspora africana elaborado por Joseph Harris.


Fonte: Jornal O Globo, Caderno “Prosa e Verso”. Rio de Janeiro, 1º de outubro de 2006.

Estas relações, que cruzavam os oceanos, levavam e traziam pessoas


e mercadorias. E, com estas pessoas, novos produtos agrícolas, novos
alimentos, novas maneiras de cultivar. E instrumentos de trabalho até
então desconhecidos. E novas práticas medicinais e curativas. E mais
(muito mais!): outros jeitos de falar e de se expressar, idéias, religiões,
musicalidade, modos e ritmos de dançar e cantar, de fazer e dizer poesia,
de celebrar a vida... Tudo isso tudo fez parte do fenômeno histórico da
diáspora africana.
Mas, não devemos esquecer: o tráfico de escravos africanos trazia
gente. Parece óbvio, mas sempre vale lembrar: por mais que tratados e
registrados como mercadorias, nunca perderam sua humanidade. Eram
seres humanos retirados de sua terra natal, de suas aldeias, de suas casas e
de suas famílias. Por meio de guerras mais do que tudo, mas também eram
aprisionados em expedições de captura especialmente montadas para este
fim. Os envolvidos naquela atividade, que depois passou a ser conhecida
como “o infame comércio”, eram os europeus e seus parceiros africanos,
inicialmente. E, principalmente a partir do século XVIII, entraram os
brasileiros - ou residentes no Brasil. 17

Os africanos e a escravidão

Como puderam, perguntam alguns, os africanos traficar seus próprios


irmãos? Para começar, eles não se sentiam como irmãos naquela época. A
África é um continente, lembremos. E um continente dividido em povos
com seus territórios, hoje países. Naquela época não havia os países como
os vemos hoje, mas os povos, organizados em unidades menores. Eram
mais do que tudo pequenos grupos, conjuntos de aldeias, algumas cidades
e, algumas vezes, reinos.
A identidade das pessoas nas sociedades africanas se vinculava às suas
comunidades. E estas comunidades eram os povos de cada um. Não havia
nada que os irmanasse acima de suas fronteiras étnicas. Um diula não se via
necessariamente como um irmão de um mandinga, no Senegal. Um habitante
de Oió (no que veio a ser chamado país iorubá, na Nigéria) não se identificava
como sendo um conterrâneo de um hauçá (que habitava o que veio a ser depois
o mesmo país, a Nigéria, mas, na época do tráfico eram apenas identificados
como um grupo do norte, muitas vezes inimigos de guerra dos iorubá). Um
bakongo e um ambundo, na atual Angola, tinham histórias distintas apesar
de poderem estar próximos no espaço. As guerras, as disputas territoriais e por
mercados haviam pautado diversas vezes suas relações.
A idéia de africano como unidade somente surgiu no século XIX, muito
vinculada ao contexto da luta contra o tráfico e a escravidão. É ao mesmo
tempo uma resposta e um novo significado dado ao tratamento que este
18 mesmo europeu vinha fazendo quando se referia aos nativos da África. Ao
generalizar os africanos, os europeus tinham como objetivo a dominação, e
uma justificativa para que a mesma se exercesse indiscriminadamente sobre os
nativos da África. Como efeito não desejado, o reconhecimento dos aspectos
em comum da africanidade também acabou surgindo muito em função da
experiência da escravidão nas Américas, incluindo o Brasil.
O tráfico enfraqueceu comunidades africanas inteiras, mas enriqueceu
mercadores e reis na África. Enriqueceu também alguns pequenos
comerciantes, bem como agricultores que vendiam alimentos para as cidades
portuárias e víveres para os navegantes. Empobreceu muitos povoados e
deixou famílias sem filhos e pais. Encheu os cofres de grandes senhores - alguns
destes mestiços de africanas com europeus - e fez cair na miséria os grupos
mais fracos militarmente. O tráfico criou e fortaleceu redes de proteção e de
clientelismo que submetiam pessoas e povos a algum chefe que lhes garantia a
não escravização.
A escravidão já existia na
África, mas o tráfico atlântico de
escravos a fez crescer e assumir novos
formatos e, sobretudo, uma outra
dimensão – muito mais ampla em
termos de mundo e profunda em
termos de penetração no continente.
O tráfico aprofundou divisões
entre grupos locais e rivalidades se
intensificaram. Estas já existiam, sim,
mas assumiram faces muito mais 19
radicais. Não há dúvidas: os povos Caravanas de africanos escravizados sendo levados em direção ao litoral
Fonte: HENRIQUES, Isabel de Castro e MEDINA, João. A rota dos escravos.
africanos perderam muito nesse Angola e a rede de comércio negreiro. Lisboa: CEGIA, 1996.p.155.
processo.
A história de quase três séculos e meio de comércio escravista para as
Américas mudou o mundo ocidental. E fez a África perder vidas humanas
em seu momento mais produtivo – em termos de reprodução demográfica
e de criação de alternativas para seu desenvolvimento. Muito do que vimos
acontecer em amplas áreas do continente, depois da longa história do tráfico,
ou seja, a partir do século XIX, não deixa de estar relacionado a este longo
processo de espoliação.
África e Brasil: relações diplomáticas além
do tráfico

Assim como os brasileiros se preocupavam em agradar e serem bem


aceitos na África, os soberanos africanos sempre buscaram manter boas
relações diplomáticas com seus parceiros no Brasil. E este relacionamento
não era simplesmente entre os comerciantes situados de um lado e de outro
do mar. Era entre altos funcionários de governo. Há diversos exemplos na
História brasileira.
Quando os holandeses ocuparam o Nordeste brasileiro
no século XVII (1630-1654), dominaram Pernambuco, que
era a área de produção de açúcar mais importante do Brasil,
20 e, portanto, um dos mercados mais intensamente conectados
a portos do tráfico escravista na África. Na ocasião, o rei do
Congo enviou, entre 1643-1644, três missões diplomáticas
à Recife, onde ficava a capital do “Brasil Holandês”. Os
representantes do soberano congolês estavam encarregados de
resolver questões referentes à presença holandesa em Luanda
e sobre os negócios em comum. Albert Eckhout, pintor que
veio com a missão artística trazida por Maurício de Nassau,
registrou um dos enviados do reino do Congo, com toda
pompa e circunstância.
Dom Miguel de Castro, representante do
Rei do Congo. Houve outros exemplos. Em 1802, o soberano de
Pintura de Albert Eckhout Onim ou Eko - nomes da atual cidade de Lagos, na Nigéria
National Museum of Denmark, Copenhagem,
- enviou embaixadas ao Brasil para tratar de negócios. Em
Dinamarca
1807, novamente mandou representantes ao nosso país. Após a vinda da
família real portuguesa, há outros registros. Em 1810, o soberano de Alada,
no então Daomé, atual Benin, mandou representante ao Brasil para ter com a
Corte. O mesmo fez o rei do Ngoio (atual Norte de Angola): mandou um alto
funcionário entrevistar-se com D.João, o Príncipe Regente, e este deu ordens
a seus assessores para bem receber o enviado do soberano de tão importante
reino da baía de Cabinda.
Numa outra vertente, as questões políticas de chefes e reis africanos
também se desdobraram para o Brasil. Quando ainda no século XVII, a rainha
Nzinga, de Matamba e Ngola, guerreava com portugueses pela autonomia
de seu reino, vários de seus soldados foram escravizados e trazidos ao Brasil.
Muitos eram jagas ou imbangalas, conhecidos guerreiros que se organizavam
em acampamentos de treinamento e defesa conhecidos como quilombos, na 21
África. Acredita-se que alguns deles terminaram levando a experiência africana
de combate ao Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga em Alagoas.
O Brasil se formou como país também nas suas relações com a África.
Da África foram trazidos milhões de trabalhadores, os quais, além de
sua função na produção, exerceram uma série de outros papéis sociais. Foram
sacerdotes, soldados, contadores de histórias, inventores e artífices de mil
talentos, dançarinos, médicos da medicina popular, artistas... Na sua bagagem
espiritual e mental trouxeram os conhecimentos e talentos que a longa história
do continente lhes permitiu acumular.
Nós somos herdeiros dessa História.
22
AFRICANOS NO BRASIL: ORIGENS

Uma das questões mais presentes entre nós, descendentes de


africanos no Brasil é a que indaga sobre as origens dos nossos antepassados.
De onde foram trazidos, de que parte da África saíram estes sobreviventes da
travessia que nos deixaram tantas heranças? Os nomes da nação pelos quais
ficaram conhecidos no Brasil (mina, nagô, cabinda, congo, moçambique)
realmente significavam identidades de origem? Essas perguntas nos movem,
pois são pistas importantes para entendermos os legados que nos deixaram.

Tráfico de africanos escravizados no


Império Português 23

Os portugueses foram os primeiros a realizar tráfico de escravos


africanos pelo oceano Atlântico. Eles começaram a estabelecer contatos
comercias com nativos da costa ocidental africana na primeira metade do
século XV. Em meados de 1450, o tráfico atlântico enviava a Portugal uma
média de 800 africanos cativos ao ano. Contratos firmados entre a Coroa
portuguesa e os navegantes-mercadores estipulavam a obrigatoriedade de
que estes avançassem na costa ocidental africana, conseguindo cada vez mais
contatos comerciais. O medo da concorrência de outros grupos europeus
levou a que tomassem providências: foi criada a Casa dos Escravos em
Lisboa em 1481, para controle e taxação desse comércio, e começou a
construção da fortaleza na Costa da Mina, no litoral de Gana atualmente.
Esta fortaleza, batizada de São Jorge da Mina, se tornou muito importante
no tráfico de escravos para o Brasil e passou, com o tempo, a identificar o
grupo de procedência dos africanos escravizados exportados a partir daí.
Estes passaram a ser chamados “pretos mina” ou “negros mina”.

Fortaleza de São Jorge da


Mina (litoral da República
de Gana atualmente)

24

Antes da arrancada do tráfico de escravos para o Brasil, entre 1526-


1550, saíram da Guiné-Bissau e da Senegâmbia aproximadamente 1.000
cativos por ano, o que correspondia a 49% do total de africanos escravizados
exportados do continente. Da região Congo-Angola (na África Centro-
Ocidental) foram retirados outros 34% , e 13% se originavam no Golfo da
Guiné, próxima ao qual ficava o reino do Benin.
25

África Ocidental, região conhecida como Sudão Ocidental no século XVI. Encontram-se
identificados povos e reinos e marcados os limites ao Sul do deserto e ao Norte da região de
florestas. Desta região foram retirados os primeiros africanos escravizados para o tráfico atlântico.
Fonte: identificada na própria imagem.

A costa do Congo foi alcançada pelos portugueses no início a década


de 1470. Mas, somente na década seguinte se estabeleceram contatos
regulares. Diogo Cão, navegante e explorador português, iniciou o contato
com o reino do Congo e a partir chegou a Angola em 1482. No reino
do Congo, ficou assim como os demais portugueses, impressionado com
a organização deste reino, formado por diversas províncias administradas
por chefes escolhidos entre a nobreza que habitava sua capital, Mbanza
Congo – mais tarde (em 1491) nomeada pelos portugueses de São Salvador.
Quando chegaram ao reino do Congo os portugueses já encontraram
grandes mercados regionais com produtos que vinham de outras regiões
como o sal, metais, tecidos e derivados de animais. Já havia inclusive um
sistema monetário com uma moeda-padrão que era um tipo de concha da
ilha de Luanda : o nzimbu.

26

Fonte: SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei Congo. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002. p.46
A região Congo Angola, que ia desde
Cabinda-Loango até Angola, foi responsável
por aproximadamente três quartos dos cativos
exportados para as Américas até finais do
século XVII. No século XVIII, o período mais
ativo do tráfico escravista, ainda continuou
sendo a maior fornecedora de escravos para as
Américas, mas sofreu maior concorrência da
região do Golfo da Guiné, que passou a ser
conhecida como Costa dos Escravos. O tráfico
dentro do Império Português se concentrava
nesta região da África. Com o tempo, e
especialmente a partir do século XVIII, este 27
comércio passou cada vez mais a se concentrar
em mãos de brasileiros ou residentes no Brasil,
principalmente na cidade do Rio de Janeiro.

Região Congo-Angola no século XVIII e as áreas cobertas


pelo tráfico escravista.
Fonte: CURTIN, Philip e outros. African History. From
earliest times to independence. Nova Iorque: Longman, 1995.
2ª ed. p.233.
Rio de Janeiro: maior porto escravista
das Américas

O eixo LuandaßàRio de Janeiro passou a ser a mais ativa rota


para o Brasil, ainda que as conexões entre a economia produtora de tabaco
e os traficantes de escravos estabelecidos no Golfo da Guiné movimentas-
sem o fluxo em direção ao nordeste do Brasil, por meio do porto de Sal-
vador, na Bahia. Como conseqüência de uma série de fatores que tiveram
relação com o contexto africano, brasileiro e das relações transatlânticas,
o Rio de Janeiro tornou-se o maior porto escravista das Américas a partir
de fins do século XVIII. Por este lugar desembarque, entravam milhares de
africanos no nosso país. Muitos seguiam dali para outras regiões do Sudes-
te, Centro-Oeste e Sul do Brasil.
28

Porcentagem de africanos escravizados desembarcados por região da África no Rio de Janeiro Amostragem
por embarcações do tráfico escravista, 1795-1852.

1795-1811 1817-1843 1821-1822 1825-1830 1830-1852


África Ocidental 1.2 0.8 --- --- 1,5
Centro-Oeste Africano (Congo-Angola) 96.2 71.1 72.93 73.1 79.7
Congo Norte 0.6 25.4 23.17 28.1 32.2
Angola 95.6 45,7 49.76 45.0 45.9
Desconhecida --- --- --- --- 1.6

África Oriental 2.3 24.5 26.31 26.86 17.9


Desconhecida 0.4 3.7 0,76 --- 0.9
Fonte: KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000. p.52
É sempre muito difícil estabelecer com precisão a origem dos
africanos trazidos para o Brasil. Muitos deles eram capturados longe
do litoral, apesar de receberem o nome do local de partida. Outros, ao
longo da travessia e em sua inserção na sociedade brasileira, no universo
de outros nativos da África escravizados, assumiam uma identidade que
fazia referencia ao seu local de origem sem maior precisão. Outros, ainda,
integravam-se a grupos da mesma região de procedência, ainda que
pertencessem a povos diferentes. Surgiram identidades étnicas no Brasil
escravista que eram grandes “guarda-chuvas” integradores que agregavam
povos de uma mesma ampla área de partida. Alguns desses amplos campos
identitários acabaram virando “nomes de nação”. A referência do nome
de nação pelo qual ficaram registrados poderia ser territorial - o nome da
localidade de onde vinha – ou lingüística/étnica – o nome pelo qual seu 29
povo ficara conhecido.
30

As origens dos africanos escravizados no Rio de Janeiro (século XIX)


Fonte: KARASH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000. p.53
Nomes de nação e identidades africanas

O termo nação acaba remetendo mais ao olhar dos colonizadores,


e dos traficantes de escravos. Eles identificavam os africanos a partir da
relação que tinham com os mesmos, vinculada aos portos e regiões de
embarque na África. A ideia de recuperar os nomes pelos quais os próprios
grupos e pessoas se identificavam busca considerar mais as suas próprias
visões. Não se trata de tarefa simples, porque a maioria das fontes sobre
as origens dos africanos escravizados no Brasil foi produzida pelos que os
escravizaram. No entanto, em algumas dessas fontes, sobretudo as que serão
ditadas pelos próprios africanos, quando libertos – como os inventários e
testamentos. Ou também em outros tipos de registros como os de batismo
ou de óbito, que podem em geral trazer mais dados das identidades étnicas 31
de origem.
Sendo assim, os chamados cabindas no Rio poderiam ser nsundis,
tekes e gabões. Incluíam-se entre estes muitas vezes também os anjicos e
monjolos. Os congos seriam aqueles originados de diversos grupos situados
na vasta rede comercial do rio Zaire (Congo). E os angolas poderiam ter
vindo do entorno da cidade de Luanda, mas também da área de Cassange
ou do vale do rio Cuanza. Os moçambiques poderiam ser macúas, ou sena,
ou mujaus, entre outras origens, trazidos de uma ampla área que abrangia
o que é hoje o Sul da Tanzânia, o Norte de Moçambique, o Malauí e o
Nordeste da Zâmbia,
Os africanos trazidos para o Rio de Janeiro e embarcados na África
Ocidental - da região do Golfo da Guiné ou sua subdivisão, a Costa da
Mina - poderiam ser todos incluídos, ou incluírem-se, no grande grupo
conhecido como mina. Algumas vezes poderiam ser identificados com
maior especificidade, no referente à sua origem. Por exemplo, poderiam ser
nomeados como mina-mahi ou simplesmente mahi, quando pertencentes
a esse povo que se localizava na fronteira Norte do reino de Daomé, no
atual Benin.
Mas, não se tratava apenas de identidades criadas a partir de fora.
Ao longo de sua história no Brasil os africanos também criaram novas
identidades, e se articularam com pessoas trazidas de outros povos do
continente. Aproximaram-se por semelhança lingüística ou vizinhança
territorial na sua origem. Foram surgindo assim os grupos de procedência,
como nomeou Mariza Soares em seus estudos sobre os mina-mahi no Rio
32 de Janeiro do século XVIII.
E como faziam isso? Havia muitos mecanismos. Um deles era
com base na língua que falavam. Um morador de uma região, na África,
geralmente sabia a língua do povo vizinho ao seu. Assim, se identificavam
por terem idiomas semelhantes. E o fato de serem de regiões próximas
também fazia com que tivessem elementos comuns na sua cultura, e na
religião. Isso também os aproximava, principalmente estando tão longe de
casa, e numa situação tão difícil como a escravidão. Juntar-se era poder se
fortalecer, criar vínculos.
Dessa maneira, grupos africanos de uma mesma região de
procedência foram descobrindo e criando uma identidade, com base na
sua experiência na África e no Brasil escravista. E assim foram surgindo
os grupos denominados de mina, no Rio de Janeiro, por exemplo. Ser um
negro mina ou uma negra mina não era fazer parte de um mesmo povo,
pois esse povo não existia na África. Significava, sim, ter sido trazido da
mesma área: a chamada Costa da Mina na África Ocidental, e compartilhar
alguns conhecimentos e costumes. Podiam fazer uso da sua identidade
mina para criar entidades de congraçamento, como irmandades religiosas,
ou comunidades de terreiros de religiosidades de matriz africana.
E um negro congo poderia ter sua origem no reino do Ngoio, ou
no antigo reino do Congo, formados por povos diferentes, situados entre
a região da baía de Cabinda e a bacia do rio Congo, na fronteira norte de
Angola. E aqui no Rio de Janeiro, eles poderiam se juntar e formar uma
associação beneficente de ajuda mútua, em que todos se identificassem
como congo.
33

Salvador: uma cidade africana no Brasil


escravista

Em outra importante cidade do Brasil, Salvador, na mesma


época, as predominâncias de regiões de origens dos africanos eram outras.
Durante muito tempo a conexão do segundo maior porto de entrada de
africanos no Brasil se deu muito mais com o litoral da África Ocidental,
a chamada Costa da Mina também conhecida como Golfo do Benin. O
forte de Ajuda (Uidá) fundado no século XVIII naquele litoral (no atual
Daomé), fora erguido com o capital dos comerciantes estabelecidos na
Bahia. Durante muito tempo foi administrado a partir de Salvador. Até
mesmo a sua guarnição era em grande parte vinda da Bahia, inclusive.
34

Reinos, cidades, rotas e portos do tráfico escravista na África Ocidental (século XVIII).
Fonte: LOVEJOY, Paul. A escravidão na África. Uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002. p.159.

Havia também contatos e comércio com a África Centro-Ocidental,


ou seja, com a região Congo-Angola, e foram intensos em determinados
momentos. Mas, a predominância dos africanos da África Ocidental foi
estabelecida em Salvador, sobretudo por meio de tratados entre comerciantes
escravistas e seus parceiros baianos desde o século XVIII. Isso se refletiu na
composição da população africana desta cidade. O processo de obtenção da
primazia no envio de africanos escravizados dessa área para a Bahia foi bastante
bem estudado por Pierre Verger .
As mudanças nos portos de embarque e nas regiões fornecedoras de
escravos na África normalmente se explicavam por alterações na política local
muito mais que pelos interesses externos. Guerras, disputas pelo trono, expansão
territorial, eram situações que geravam mais cativos. Um chefe ou soberano mais
interessado no comércio escravista naquele determinado momento, também
influía. No entanto, é um equívoco denominar como “ciclos” os períodos de
maior volume de africanos escravizados de uma determinada área. O termo
‘ciclo’ passa uma idéia de que ocorreu um fechamento, ou um encerramento
no comércio escravista de uma região, dando lugar a outra. O que em geral
acontecia era a redução do tráfico em algumas áreas e o crescimento em outras,
por situações do momento. Mas se mantinha a atividade na área em que antes
estavam os portos mais importantes, só que de forma menos intensa.
Nação dos escravos africanos em Salvador, 1802-1835 35
Nação 1802 - 1806 (amostra) 1819 - 1820 (amostra) 1835 (estimativa da população)
África Ocidental
Mina 223 21 1681
Hauçá 22 34 1611
Nagô 51 36 5388
Jeje 72 47 2688
Outros 6 26 1208
sub-Total 374 (67%) 164(68%) 12616(72,8%)
África Centro-Ocidental
Angola 149 31 1763

Benguela 30 8 399

Cabinda --- 26 1334

Outros 5 10 1213
Sub-Total 184 (33%) 75 (31,45%) 4709 (27,2%)
TOTAL 558 239 17325
Fonte: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Cia das Leras, 2006. 2ªed. rev. p.309.
Outros lugares de chegada e partida

Ao longo dos quase quatro séculos de tráfico escravista, os africanos


foram transportados não só para o Nordeste canavieiro – via Salvador - ou
para o Sudeste minerador e as áreas cafeeiras. – via Rio de Janeiro. Foram
levados, em volumes e a partir de diferentes regiões da África, para todas as
regiões, seja o Rio Grande do Sul no século XVIII, ou áreas de criação de
gado em Sergipe atual, lavouras de tabaco na Bahia e regiões mineradoras
em Goiás e Mato Grosso. Sem falar no Maranhão e no Pará, onde passaram
a trabalhar como canoeiros, na produção de farinha, de algodão, arroz e
anil. Junto com a população indígena escravizada serviram como mão de
obra na região do rio Negro, na Amazônia, para a extração das especiarias
36 da floresta (as “drogas do sertão”). Nestas áreas mais ao Norte chegaram
africanos da região da Alta Guiné, embarcados em feitorias portuguesas de
Cabo Verde, Cachéu e Bissau. Eram originários de povos como mandinga,
balanta, falupo, bijagó e papel, entre outros.


37

Senegâmbia e Costa da Malagueta (conhecida como Costa dos Ventos pelos ingleses):
litoral que dava acesso aos povos da região conhecida como “Alta Guiné”.
Vê-se assinalado o porto de Cachéu, na atual Guiné Bissau,
onde funcionava uma feitoria portuguesa desde o século XV.
Fonte: CURTIN, Philip e outros. African History. From earliest times to independence.
Nova Iorque: Longman, 1995. 2ª ed.
Assim como em todas as regiões da África onde se estabeleceram os
negócios do tráfico, houve conflitos entre os europeus e africanos. Havia
muitas vezes uma tenaz resistência local à escravização. No relato de Gomes
Eanes de Zurara (1410-1474), a Crônica dos Feitos da Guiné, está registrada
a dificuldade dos portugueses em vencer os africanos da Senegâmbia:

“a gente dessa terra não é assim ligeira de pilhar (escravizar) como nós
desejamos, que são homens muito fortes e avisados e percebidos em suas
pelejas (lutas), e o que é pior, é que trazem suas setas empeçonhadas (enve-
nenadas) com erva mui perigosa.”
Fonte: citado por AMADO, Janaína e FIGUEIREDO, Luiz Carlos. A formação do
Império Português (1415-1580). São Paulo Atual, 1999. p.56. Explicação dos termos
por Mônica Lima.

38
Brasil africanizado

Os africanos passaram a estar de forma decisiva presentes na história


do Brasil a partir do governo-geral de Tomé de Souza, em 1552, quando o
primeiro grande grupo de escravizados trazidos do continente aportou em
terras brasileiras. Desta época até 1850, periodicamente, em alguns lugares
a cada seis meses, ou três meses, ou a cada mês, ou mesmo a cada semana,
chegavam novos africanos trazidos pelo tráfico. E em grandes números,
sobretudo no século XVIII e primeira metade do século XIX.
O que isso significava, na prática?
Que muitas cidades e em amplas áreas do Brasil eram re-africanizadas
a cada tanto, com muita freqüência. Africanos e africanas recém-trazidos,
re-alimentaram a vida social, econômica e cultural brasileira como seus
aportes, durante muito tempo. E isto se dava de uma forma sistemática, não
era uma leva que eventualmente chegava e depois se diluía na sociedade.
Ao chegar, os “africanos novos” ou “pretos novos” – como eram conhecidos
- injetavam renovadas doses de africanidade na sociedade brasileira.
Os navios do tráfico funcionavam também como correios e
embaixadas, e traziam gente da África que não estava escravizada. Havia
todo um conjunto de pessoas que iam e vinham em viagens constantes, de
uma margem a outra do oceano. Houve chefes africanos que mandaram
seus filhos para viver no Brasil, a fim de aprender o idioma e fazer contatos.
Outros exilaram por meio do tráfico os que desejavam afastar do seu
território de domínio. A partir especialmente de fins do século XVIII,
famílias dividiam-se entre cidades brasileiras e africanas, mantendo-se 39
articuladas. Sacerdotes de religiões de matriz africana, mesmo na vigência
da escravidão, cruzaram o oceano para fortalecer seus laços com os seus
maiores na África e voltaram para o Brasil para seguir em sua função.
O que acontecia na África poderia, portanto, chegar como notícia ao
Brasil, alcançando as ruas das nossas cidades negras, assim como as senzalas
e os quilombos. O que se passava nas Américas da diáspora negra também.
Assim foi com as notícias do Haiti rebelde, por isso temia-se o exemplo
quilombola e as conexões possíveis entre os escravizados e libertos. Os
africanos e seus descendentes faziam tremer as bases da mesma sociedade
que os trouxera a construir o país. Ao mesmo tempo, traziam grandes
aportes civilizatórios, transformavam e transformavam-se no Brasil.
40
RELIGIOSIDADE, LINGUAGEM
E CORPOREIDADE

Aos africanos escravizados não era permitido carregar nada na travessia.


No entanto, trouxeram para as Américas e para o Brasil especialmente,
os mais valiosos bens que possuíam: sua força de trabalho e de fé, sua
inventividade e engenhosidade, seu talento artístico, sua visão de mundo.
Isso tudo, além de uma série de conhecimentos acumulados numa longa
história. Podemos dizer, sem medo de errar, que os africanos trouxeram
contribuições determinantes para o que há de mais representativo e belo
na vida brasileira.
41
Religiosidades de matriz africana

A religiosidade sempre foi um fator definidor da organização


social e política das sociedades africanas, ao longo de toda sua
História. Nessa religiosidade encontramos aspectos comuns a diversos
povos, em especial na África ao Sul do Saara. Um deles é o culto aos
ancestrais, que se caracteriza pela fé num ente familiar fundador do
grupo, que teria assumido, a partir de determinado momento, ou que
possuía, desde seu nascimento, poderes divinos. O ancestral adquire
uma importância basilar, pois ser parte de sua descendência define o
pertencimento ao grupo que o cultua. Portanto, define a identidade
da pessoa – quem ela é.
Outro elemento fundamental nas expressões religiosas africanas
nativas é o culto a forças e elementos da natureza. Há povos para os quais
o entendimento da essência da vida engloba todas as dimensões do mundo
natural, incluindo os diferentes seres vivos. Assim, uma árvore como um
baobá (imbondeiro, em alguns idiomas africanos) pode ter um caráter
espiritual, assim como um animal, ou um rio. O fato de tornar estes
elementos da natureza sagrados, assim como o ser humano também pode
ser sagrado, exprime um entendimento holístico, totalizante, do mundo.
Não haveria uma separação entre a Natureza e as pessoas: todos fariam
parte de um mesmo universo sagrado.
Outro ponto importante a ser destacado é a ênfase na dimensão
espiritual na vida das sociedades de onde foram retirados os africanos e
42 africanas trazidos ao Brasil. Não há uma separação entre o mundo material
e o mundo espiritual. Tudo se relaciona, e entende-se que há uma ligação
entre a vida concreta cotidiana e as forças imateriais que a governam.
Assim, toda ação humana tem um sentido e a ordem mesma da vida
respeita a vontade de forças que se encontram num mundo não visível,
mas perceptível e alcançado por meio de consultas, preces e cultos.
As pessoas que foram envolvidas na diáspora africana trouxeram
para o mundo que construíam nas Américas os resultados de todas estas
histórias. Isto tudo veio nas suas mentes, na sua memória, pois não lhes
permitiam trazer nada quando vinham escravizados. Eram retirados de
partes diferentes da África. Alguns foram trazidos de cidades, outros,
de pequenas aldeias; uns tinham sua terra natal perto do litoral, outros,
na região de savana. Eram muitos, falavam muitas línguas e tinham
diversas práticas religiosas, sendo algumas muito antigas e próprias
de sua região. E nem só das religiões nativas da África se compunha
esse universo de crenças. Havia também muçulmanos — fiéis ao
Islamismo — trazidos da África Ocidental e grupos que já conheciam
o Cristianismo, trazidos da região do reino do Congo, na África
Centro-Ocidental.

Milagres de fé no Extremo Ocidente

Sabendo o quanto importante era a religiosidade para os africanos,


podemos deduzir que compunha uma parte fundamental da bagagem
cultural trazida por eles ao Brasil. Além disso, a dureza da travessia, a própria
condição de escravo num território distante e totalmente desconhecido 43
eram circunstâncias em que a força da fé poderia ser o elemento que
faria a diferença entre viver e morrer. A escolha pela sobrevivência numa
situação dessas muito provavelmente necessitaria firmar-se na crença em
forças superiores, ou num destino de maior dimensão que aquele que se
apresentava. Explicar o acontecido, acreditar na superação das condições
mais duras, eram possibilidades que a fé em deuses e espíritos pode oferecer.
Os sistemas religiosos também podem contribuir para organizar o
mundo social. Na África, uma série de funções sociais era determinada pelas
religiões. Pertencer a uma comunidade, como já se disse aqui, era pertencer
a um grupo que se colocava sob a proteção de uma ou mais divindades,
cultuadas em comum. As cerimônias religiosas eram mecanismos também
para reforçar o pertencimento ao grupo e o lugar de cada um na sociedade.
Cultivar a fé na vida, renovar a esperança, encontrar razões para
o infortúnio, organizar mentalmente e concretamente o mundo a sua
volta – tudo isso certamente fazia com que buscassem sua religiosidade.
Em muitos casos, o simples fato de estarem vivos os colocava frente a
explicações espirituais. Retirados de seus territórios, afastados das terras
de seus ancestrais, encontraram na criação de comunidades religiosas de
matrizes africanas um novo lugar – que não sem razão em muitos lugares
do Brasil ficaram conhecidos como terreiros.
Destituídos de suas famílias, os africanos encontraram nas
irmandades, nas comunidades de terreiro, nos grupos de cultos e preces,
as suas novas famílias extensas. Conquistavam assim novos irmãos, mães,
e pais espirituais. E a força de uma comunidade para lutar pela vida.
44
Irmandades negras

No Catolicismo, os africanos introduziram práticas e interpretações


que deram novas cores a essa religião no Brasil. Muitas vezes eram obrigados
a aceitar a fé dos senhores escravistas, e transformavam as bases da doutrina
imposta. Levaram para a Igreja Católica algumas novas dimensões de ritual,
e de aparência. As igrejas do Barroco brasileiro receberam uma estética
própria dos seus construtores africanos. As procissões viraram cortejos
ainda mais coloridos e animados. As festividades receberam os sons dos
tambores e outros instrumentos, trazendo o meio de comunicação com os
deuses da África para a celebração cristã. As histórias de santos e mártires
ganharam novos relatos na tradição oral africana no Brasil. Seres mágicos
e deuses nascidos do outro lado do mar passaram a habitar o calendário
religioso católico, misturados ou traduzidos como entes do Catolicismo.
Forçados – em alguns casos, convencidos – a entrar na Igreja, levaram
consigo seus pertences espirituais.
As irmandades religiosas católicas foram a expressão mais viva
do Catolicismo popular na formação do Brasil. Eram associações que
congregavam fiéis em torno do culto especial a um santo, a uma expressão
de Nossa Senhora ou outra entidade católica (o Divino Espírito Santo,
o Sagrado Coração de Jesus, entre outros). As irmandades ou confrarias
á existiam em Portugal, mas ao se constituírem aqui, receberam outros
ingredientes. Entre estes elementos novos, vários foram trazidos pelos
africanos.
O caráter excludente da sociedade fez com que fossem criadas as 45
irmandades de pretos e pardos, para escravos e libertos. Eram assim as de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, ou a de Santo Elesbão e Santa
Efigênia, estes três últimos santos negros. Nestas irmandades, escravos e
libertos, africanos e crioulos (descendentes de africanos nascidos aqui) se
juntavam, muitas vezes.
Nas irmandades, além de ser criado um espaço de encontro, de ajuda
mútua, podiam conquistar um outro olhar da sociedade dominante. Conseguir
esmolas pela irmandade para as festas, procissões e construções das igrejas e
capelas também significava poder realizar estas celebrações, mostrar capacidade
de organização e iniciativa, além dos talentos artísticos que apareciam durante
os eventos. E as irmandades iam para as ruas desfilar, mostrar em seus cortejos
as muitas cores e sons da tradução negra do catolicismo popular.
E ainda havia outras importantes
funções do da acumulação de pecúlio
na irmandade: a compra de alforria, a
ajuda aos irmãos doentes, o auxílio para
os enterros. Eram gastos previstos no
compromisso da irmandade, que era um
documento que estabelecia seus objetivos
e regras de funcionamento. Dentro
dessas associações religiosas surgiram
lideranças e reforçaram-se autoridades
Mulheres de uma irmandade (segunda metade do século XVIII) na comunidade negra. E a visibilidade
Fonte: JULIÃO, Carlos. Riscos iluminados de figurinhas de brancos e negros
das irmandades, ou seja, a maneira como
dos uzos do Rio de Janeiro e Serro Frio. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
46 1960. apareciam para a público, mostrava um
estilo próprio de cultuar a fé católica, que
impregnou a sociedade.

Religiões de matriz africana

Uma das heranças mais importantes que nossos ancestrais


deixaram foram as religiões de matriz africana. Duramente perseguidas
ao longo de sua história no Brasil, estas religiões preservaram tradições,
idiomas, conhecimentos médicos e valores éticos trazidos da África.
Nos terreiros, guardavam-se, por meio de rituais de iniciação e
obrigações religiosas, cânticos, práticas curativas, danças, receitas de
comida, lições de vida. Essa rica bagagem cultural foi cuidadosamente
preservada, além de ser utilizada para o conforto, proteção e apoio de
nossos antepassados.
Eram, e ainda são, lugares de memória. Em nenhum outro espaço
da vida social negra houve tanta preocupação com a recuperação e guarda
do passado como nas comunidades religiosas de matriz africana. Nas casas
de culto e templos, o uso das línguas africanas, dos instrumentos, das
vestimentas, dos produtos africanos nos rituais, era a garantia de maior
proximidade com o que havia de mais genuíno naquela fé. Por isso, se
tornaram espaços de afirmação das identidades
de origem e de transmissão de memória social.

Portanto, ao falarmos de religiões de
matriz africana hoje, estamos nos referindo a um 47
conjunto de práticas e saberes que atua e atuou
de forma decisiva na preservação e afirmação de
identidades que reivindicam a afrodescendência.
Numa sociedade como a brasileira que,
majoritariamente, desde os tempos da escravidão,
procurava negar sua origem negra, elas se
tornaram verdadeiros movimentos de resistência
à dominação e de recusa ao esquecimento. Ainda
que não empunhassem explicitamente nenhuma Mãe Senhora (Maria Bibiana do Espírito Santo),
bandeira, ainda que acolhessem pessoas de todas Ialorixá do terreiro Axé Opô Afonjá entre 1939 e 1967, em
as cores, seu conteúdo era manifesto: ali se Salvador – Bahia. Foto de Pierre Verger
Fonte: VERGER, Pierre. Orixás. Deuses Iorubas na África e no
celebrava o pertencimento a um passado africano. Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1981. p.185. Fotografia 157.
Cultos aos ancestrais sagrados, aos mortos, às forças da Natureza
corporificadas em divindades, realização de contato com o mundo espiritual
por meio da música e da dança – todas estas características estavam e estão
presentes nas religiosidades de matriz africana. E elas marcam não apenas os
mundos daqueles que as praticam. Em torno delas, e por elas influenciadas,
estão outras praticas religiosas que se alimentam de suas poderosas raízes.

Influências e preconceitos

Um das mais fortes crenças nas religiões de matriz africana é a


possessão por espíritos, que leva ao transe e coloca a entidade diretamente
em contato com o mundo aqui na terra. Outra ideia e prática muito presente
48 é a de limpeza espiritual, com rituais para purificação do corpo e da mente.
Há religiões cristãs, sem católicas, que, mesmo combatendo e disputando
hoje em dia corações e mentes com as religiões afrodescendentes, utilizam
estes mesmos elementos. Não poucas vezes o próprio vocabulário é o
mesmo das religiões afro-brasileiras: “descarrego”, “corpo tomado”, entre
outras expressões. Estas religiões disputam com as religiões afro-brasileiras
num universo comportamental que, ainda sem querer reconhecer, recupera
heranças muito próximas.
Na religião católica, as influências também foram profundas, além
daquelas já citadas no ritual e no visual das celebrações. Santos católicos
foram identificados com divindades das religiões de matrizes africanas. Isso
fortaleceu seu culto e a fé do povo nos mesmos. O sincretismo religioso,
tantas vezes condenado, muitas vezes produziu comportamentos que
reforçaram a presença de fiéis na Igreja Católica. Há que se lembrar que
existem vertentes de religiões afro-brasileiras com um caráter flexível,
que não exigia exclusividade de culto. Essa possibilidade de convivência
agregou fieis ao Catolicismo em lugar de retirar.
Nas suas bases, as religiões de matriz africana são profundamente
valorizadoras da vida humana e da natureza. Suas práticas buscam manter
o equilíbrio entre os seres humanos e as forças do Universo, estimulam
o respeito aos ancestrais e a solidariedade. Têm um olhar amoroso para
a diferença e são em geral menos repressoras em termos da sexualidade.
São religiões nas quais não se reza apenas com a fala, mas com o corpo.
O corpo é sagrado e por isso se consagra inteiro à prece que se faz, em
movimento e ritmo. Existe dança, música e gestos para se louvar e saudar
os deuses, para agradecer, e para pedir. 49
Um dos preconceitos mais comuns quanto às religiões afro-
brasileiras é com relação às suas práticas religiosas e um suposto caráter
maligno contido nestas. Este tipo de afirmação não resiste ao confronto
com nenhum dado mais consistente de pesquisa sobre as religiões
africanas e a maioria das religiões afro-brasileiras. Por exemplo: não há
a figura do diabo nas religiões da África tradicional nem de nenhum
ser ou entidade que personifique todo o Mal. As divindades africanas
e suas descendentes no Brasil podem em alguns casos até se encolerizar
se não forem corretamente cultuadas e consideradas. E então, podem
castigar o infrator. Mas, jamais agem para o mal de forma independente
dos agentes humanos que a elas demandam. O grande adversário das
forças do Bem não existe. Não há este poder em nenhum ente do sagrado
africano, a não ser naquelas religiões influenciadas pelos monoteísmos
cristão e islâmico.
De forma depreciativa foram chamadas de feitiçaria, batuques,
ajuntamento de negros, e mais tarde de macumba. Foram proibidas pela
Igreja durante a Colônia e o Império, e depois pelo Estado Republicano
laico. A porção dominante da sociedade sempre olhou para as religiões de
matriz africana com medo. Esse medo foi marcado por temor dos efeitos
da união dos que as cultuavam e pelo racismo. E esse medo tinha raízes
numa enorme ignorância, que é o que alimenta até hoje o preconceito.
Mas, ainda com tudo isso, o prestígio de seus sacerdotes, o poder de suas
rezas e suas ervas, fez com que muitas pessoas recorressem a elas.
As religiões afro-brasileiras congregam muitas doutrinas e práticas
50 distintas, ainda que resguardem aspectos em comum. Existem os voduns
dos terreiros Fanti Achanti e da Casa das Minas no Maranhão, há os orixás
dos candomblés em suas muitas vertentes (por alguns, chamadas de diversas
‘águas’) - incluindo os xangôs de Pernambuco. E há a umbanda, que
agregou elementos do Catolicismo, do Espiritismo e dos cultos indígenas.

Os calunduzeiros: médicos do povo

Todas estas religiões e seus desdobramentos carregam uma longa


história. Há notícias de cultos africanos em terras brasileiras desde o século
XVII, tanto em registros de arquivos do poder público como em arquivos
religiosos – em especial os da Santa Inquisição. Pesquisadores revelaram
nomes como o do congolês Domingos Umbata, encontrado em 1646 por
visitadores da Inquisição católica em Ilhéus; e da angola Branca, no começo
do século XVIII em Rio Real (BA); de Luzia Pinta, também angolana, em
Sabará (MG) nas primeiras décadas do século XVIII, entre tantos outros.
Nos arquivos coloniais brasileiros há muitas referências aos calundus
– que era a maneira como se referiam muitas vezes aos cultos de origem
africana.
Desde o começo os calundus eram freqüentados também por
brancos. Os sacerdotes principais podiam, além de dirigir os cultos, ter
funções de médico popular e ser um conselheiro pessoal para o dia a dia, em
especial nos momentos aflitivos. Esse foi o caso de Luzia Pinta, a angolana,
que foi classificada como “calunduzeira, curandeira e adivinhadeira”. Esta
mulher exerceu suas atividades na região das minas gerais entre 1720 e
1740. E ainda houve outros casos em que os senhores brancos adquiriam 51
escravos com conhecimentos de medicina popular para poder auferir
lucros com a exploração da atividade dos mesmos.
A associação entre as religiões, as práticas médicas, e o conhecimento
das ervas curativas era muito comum. Ou seja, os sacerdotes se dedicavam
a aliviar as dores da alma e do corpo dos que os procuravam. Preparavam
cataplasmas, ungüentos, receitavam chás, preparavam antídotos para
picadas de animais, e também eram capazes de aliviar moléstias graves
como a tuberculose, a varíola e a lepra. Os conhecimentos e as importantes
funções que desempenhavam os sacerdotes fizeram com que calundus
pudessem existir abertamente em alguns lugares, e por um longo tempo.
Em termos das divindades cultuadas, em sua maioria hoje
guardaram uma forte influência da religião dos orixás originada na região
iorubá – que fica no Sudoeste da Nigéria e parte do Benin atual. Antes dos
iorubás (no Brasil conhecidos como nagôs) , estiveram ligados aos cultos
aos voduns da área gbe, conhecida no Brasil como jeje. Um vodum, assim
como um orixá, pode ser um ancestral divinizado ou a síntese espiritual de
uma força da Natureza. No entanto, nem só de matrizes da África Ocidental
surgiram essas religiosidades. Da região Congo-Angola, na África Centro-
Ocidental, como vimos nos casos citados acima, foram trazidas práticas e
conhecimentos importantes.
Hoje em dia muitos brasileiros freqüentam o candomblé, a
umbanda e outras religiões de matriz africana em suas diferentes vertentes
e misturas. E mesmo entre os que não professam a fé, há muitos que já
visitaram terreiros ou se consultaram com sacerdotes (pais e mães de
52 santo) por interesse e curiosidade ou em busca de uma bênção. E ainda
há aqueles que por saberem preceitos dessas religiões, os respeitam e os
integram às suas vidas, como vestir roupa branca às sextas-feiras, ou pedir
licença para passar por uma oferenda de encruzilhada. E todas as pessoas
que vão colocar flores para Iemanjá no mar, na virada de ano, na mais
concorrida festa em torno de uma divindade de matriz africana no Brasil.
Vestidas de branco, preferencialmente, para demonstrar respeito e ter as
bênçãos do Orum.
Reconhecer a presença histórica dessas heranças, valorizar sua
riqueza e sua importância para os hoje é respeitar a fé dos brasileiros.
E é entender uma parte fundamental da alma do nosso povo.
Falando línguas africanas

Dengo, carimbo, farofa, moleque, neném, quitanda, samba...


Quer palavras mais brasileiras que estas?
De fato, são brasileiras – mas nasceram na África. Foram trazidas da
ampla região central africana banhada pelo Atlântico, onde se encontram
hoje em dia Angola e os países que levam Congo em seu nome. As palavras
citadas, apenas exemplos entre as muitas de origem africana que integram o
Português que se usa no Brasil, têm sua origem no tronco lingüístico banto
– que engloba línguas como o quimbundo, o umbundo e o quicongo.
As línguas da África Ocidental, outra região importante de origem
dos nossos ancestrais, as suas vertentes mais relevantes no Brasil foram
povos de língua do grupo ewe-fon, chamados de minas ou jejes, e os iorubás 53
da Nigéria e do Benin atuais. As palavras desse grupo de línguas são mais
conhecidas no vocabulário da culinária e da religiosidade. No entanto, é
importante ressaltar que tanto as línguas banto como as dessa região da
África Ocidental são da grande família Níger-Congo. São línguas, por
assim dizer, aparentadas.
Muitas palavras com origem na África substituíram no Brasil
vocábulos portugueses que eram utilizados para os mesmos fins pelos
colonizadores que vinham do reino. Ou seja, em alguns casos, os falares
africanos conseguiram sobrepor-se aos outros. Por exemplo: benjamim
virou caçula, selo virou carimbo, molambo substituiu trapo, insultar
virou xingar, as nádegas passaram a ser chamadas de bunda e aguardente
definitivamente passou a ser cachaça no Brasil. Como a língua é algo vivo
algumas palavras mudaram um pouco, outras adquiriram significados
distintos, não muito distantes do original.
Além das palavras, o sotaque. O ritmo da fala, a cadência, a
sonoridade. E a vocalização – termo especializado que se refere ao modo
de dar som às palavras. Como sinaliza Yeda Pessoa de Castro, no Brasil se
pronuncia as vogais átonas. Nós no Brasil falamos ‘pi.
neu’ em lugar de pneu, ‘a.di.vo.ga.do’ ao invés de a(d)
vogado, ‘su.bi.ma.ri.no’ para su(b)marino...
A linguagem é, sem dúvida, um dos mais visíveis
aspectos da contribuição cultural dos africanos trazidos
ao Novo Mundo. Os falantes de línguas banto, pela
antiguidade, volume populacional e disseminação
54 pelo território do nosso país, foram os principais
agentes transformadores da língua portuguesa em sua
modalidade brasileira. Podemos imaginar que nossa
língua, o Português do Brasil, como uma pessoa que,
nascida na Península Ibérica e já falando, veio a crescer em
nossa terra com mãe de família indígena e pai africano.
Grandes famílias linguísticas da África. Aprendeu com eles, modificou e foi modificado. Nunca
mais voltou ao que era originalmente, nem se tornou
igual a nenhuma de suas matrizes criadoras. Mas, guarda a presença de
cada um em sua maneira de ser.
Cultura corporal afrodescendente

As manifestações expressivas corporais das pessoas passaram a


ser tratadas nos estudos mais recentes sob o tema “cultura corporal
em movimento”. Esta cultura se relaciona a uma das dimensões
subjetivas que define a identidade da pessoa, que é a sua corporeidade.
A corporeidade é a forma pela qual o corpo da pessoa mostra a sua
identidade: como se movimenta, como se cobre ou se mostra, como
se modifica e se enfeita. Os trabalhos e pesquisas sobre a corporeidade
estão ligados aos estudos sobre a expressão da identidade de indivíduos
e comunidades a partir das manifestações do corpo. Ou seja: estes
estudos revelam o quanto a maneira de se mover e de se adornar mostra
como a pessoa é, ou deseja ser. 55
Assim, se estamos nos debruçando sobre as presenças das heranças
africanas no Brasil, não podemos deixar de reconhecer a forte herança
das manifestações corporais dos nossos ancestrais. E estas manifestações
se expressam na corporeidade em movimento, traduzida nas danças de
matriz africana, na ginga e no rebolado, e na estética afro-brasileira, que
vem desde o modo de vestir e se enfeitar do tempo da escravidão até a
recuperação de penteados e padrões de tecido africanos nas cabeças e nos
trajes dos que desejam celebrar esse pertencimento cultural hoje em dia.
As diferentes danças brasileiras que têm origem no continente
africano relacionam-se a uma parte fundamental da vida das sociedades
locais. A dança mostra e reforça a unidade e a ligação entre os integrantes
de uma comunidade. Pela repetição de movimentos e sons a partir do
corpo (palmas, ruídos com a boca), passados de geração a geração, a
pessoa aprende que faz parte de um grupo. Em geral, as danças são
circulares, o que reforça a ideia de igualdade de condições e possibilidade
de participação. Entrar na roda é integrar-se ao grupo que dança. Os
acontecimentos do dia a dia e especialmente os extraordinários são
celebrados com dança, e é por meio dessa expressão corporal que muitos
africanos se dirigem aos seus deuses.

Danças sagradas

Nas religiões de matriz africana no Brasil isso se revelou na dança


dos orixás. Cada divindade do candomblé tem sua dança específica, e
56 os movimentos dizem respeito às características dos deuses. Pela dança
se sabe quem do sagrado chegou ao culto (“baixou”) e os movimentos
transmitem mensagens, revelam pertencimento e filiação a um orixá. São
gestos acompanhados de uma simbologia de objetos (o espelho de Oxum,
o machado duplo de Xangô, entre outros). A dança é uma forma de oração
também. Pede-se e se agradece não só pelo discurso textual, mas pelo
discurso corporal. Na dança religiosa afrodescendente, o corpo todo fica
em prece, em celebração, em devoção. E, como nas culturas africanas que
nos influenciaram não se separa o aspecto religioso da vida cotidiana, quase
todas as danças afro-brasileiras se originam em rituais sagrados,
As danças africanas ao sul do Saara variam muito de região para
região, mas a maioria delas tem certas características em comum. Os
participantes quase sempre dançam juntos a um grupo, raramente dançam
sozinhos ou em par. As danças podem chegar a apresentar algumas vezes
diferentes ritmos ao mesmo tempo. A dança está presente no dia-a-dia das
pessoas, seja no vilarejo ou no bosque sagrado ou das florestas. Ela parece
interromper a monotonia e modifica o passar do tempo. Assim como uma
canção, a dança é uma forma de contar histórias.

Danças de matriz africana no Brasil

No Brasil temos o jongo, o maculelê, o coco, o tambor de crioula,


o afoxé, o maracatu, a congada, o catumbi, o samba de roda, o samba de 57

escola, o samba de parelha, o hip hop, entre muitas outras danças de matriz
africana no Brasil. Cada uma delas tem uma história e sua especificidade,
mas também revelam pontos em comum. São danças coletivas, em que
até mesmo a virtuose de um dançarino sempre se insere no movimento de
um grupo que o cerca. Muitos estudiosos também sinalizam a presença do
rebolado, o movimento de quadril e pélvis, que marca muitas danças afro-
brasileiras. Pesquisadores e folcloristas chegam a afirmar que o rebolado é
característico da cultura corporal dos povos da África Centro-Ocidental.
Isto levaria a que reconhecêssemos que na memória do nosso corpo se
encontra inscrita a ginga congo-angolana.
Em meados do século XX surgiu no cenário brasileiro um
personagem que se tornou um símbolo da dança de matriz africana
que soube se fazer traduzir sob os mais diferentes estilos. Essa figura foi
Mercedes Batista, primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do
Teatro Municipal, e fundadora do grupo de balé folclórico que levou o seu
nome e afirmou o balé afro no Brasil. Mercedes Batista participou ainda de
fóruns culturais do movimento negro como o TEN (Teatro Experimental
do Negro) onde cresceu sua consciência do lugar do corpo negro na dança.
Seu trabalho foi um divisor de águas na história das danças de matriz
africana no Brasil.
Hoje em dia, professores e pesquisadores das áreas de expressão
corporal e Educação Física ressaltam os aspectos saudáveis da prática de
58 danças afrodescendentes, pelo fortalecimento de vínculos coletivos e o
cooperativismo, ao desenvolvimento de componentes das funções motoras
como: coordenação, ritmo, equilíbrio, e ainda, percepção ao nível de corpo,
objetos, formas, linhas e cores. Homens e mulheres, com a prática desses
tipos de danças podem fortalecer sua musculatura abdominal. Os exercícios
aeróbicos ritmados que proporcionam, principalmente, as modificações
significativas do sistema cardiopulmonar que se caracteriza por um aumento
das cavidades do coração, alem da melhoria das trocas gasosas.
Além da saúde do corpo, as danças de matriz africana ressaltam
a sensualidade, que traz como princípio o corpo que pode e mostra seu
desejo e suas possibilidades. O corpo na dança afrodescendente não deve
se envergonhar de sua vitalidade e de sua beleza, ao contrário, faz delas um
motivo de celebração.
No mundo mais contemporâneo e jovem, ocorre um expressivo
resgate desses movimentos por meio das danças de rua, que aparecem nos
seus diferentes estilos conectadas à herança africana. Nascidas como modelo
de dança nas cidades estadunidenses, as danças de rua se alimentam de uma
longa história afro-americana, e da expressividade da juventude negra nos
seus locais de moradia. Hoje essas danças correram o mundo, chegando
até o Japão. No Brasil encontraram milhares de seguidores e admiradores,
e ganharam outros elementos. Além disso, na juventude da periferia,
majoritariamente negra, a dança é um lugar de afirmação positiva.

Estética

Herdamos dos africanos e africanas um gosto especial de enfeitar 59

nosso corpo e cabelos. Apesar dos padrões dominantes de beleza e


vestuário, nossos ancestrais desde os tempos da escravatura guardavam
suas identidades no estilo próprio de se vestir e pentear. Alguns traziam
inscritos na sua pele o pertencimento á África, com as marcas faciais que
indicavam a identidade étnica. O uso de penteados em tranças, o pano
da costa em diagonal na frente do corpo, as pulseiras, os anéis, os colares,
os pingentes presos à roupa, os turbantes, estavam presentes no modo
das mulheres negras vestirem-se no século XIX. Os homens tinham seus
objetos de vaidade, como os diversos tipos de chapéus e se possível, um
guarda-chuva.
Com o passar do tempo, objetos de adorno e a estética mudaram,
mas ficou assinalado um gosto específico no trajar e se adornar por parte
de muitos homens e mulheres negras. Durante o século XX, a estética
afrodescendente foi duramente atingida pela disseminação de um padrão
de beleza que buscava marcar distância daquele pertencimento. Os meios
de comunicação de massa (cinema, revistas, jornais) na primeira metade
do século XX fizeram o possível para ridicularizar e desvalorizar qualquer
estética que remetesse aos africanos.
No entanto, neste mesmo século, dos anos cinquenta em diante,
o movimento negro, as independências na África, a luta pelos direitos
civis dos negros norte-americanos, a (re)aproximação do Brasil à África
e a consequente valorização de nossas ligações com as culturas africanas
fizeram com que se fosse recuperando, pouco a pouco, o olhar positivo
sobre a estética afrodescendente. E especialmente partir da década de
60 1970, os cabelos black power, os muitos estilos de tranças e penteados afro
começaram a adornar lindamente cada vez mais cabeças pensantes.
As tranças e penteados, de sofisticada elaboração, são fruto de
técnicas passadas de geração a geração. Demorados, delicados e criativos,
permitem que uma série de adornos possa ser agregada ao cabelo, além
de apliques com cores diferentes e tamanhos variados. E requerem um
cuidado especial na lavagem e secagem, estimulando uma relação de
contato e atenção especial. Cabelo é um assunto sério. Lidar com ele requer
atitude. O cabelo crespo pode até ser motivo de incômodo para uns, mas
igualmente pode ser de vaidade e muito charme para outros. No Brasil,
trata-se de uma marca inequívoca de afrodescendência. Portanto, cuidar
dos cabelos afro – aqui apelidados de “étnicos” - significa para muitos, de
fato, não perder a raiz..
Não é simples para um jovem negro reivindicar um modo de se
apresentar que marque sua afrodescendência. E não é só a força da mídia
branca que impõe uma aparência para disfarçar a negritude. Os que

61

Mulher negra da Bahia


Fotografia de Marc Ferrez, 1885.
Coleção Rui Sousa da Silva.

Cumprimento de dois escravos.


Imagem posada em estúdio para cartão-postal.
Fotografia de Christiano Jr., Rio de Janeiro,
c.1865. IPHAN
escolhem revelar mais explicitamente essa aparência mais negra enfrentam
também o preconceito de outros jovens e de uma parte da sociedade. Eles
e elas têm que ter atitude para manter sua escolha. Isso não quer dizer que
uma jovem que alise o cabelo, ou que faça relaxamento, esteja distante de
suas raízes negras. Assumir o gosto e o respeito pelas diferentes formas da
estética negra é muito mais do que fazer penteados de estilo afro. Mas, sem
dúvida, os adornos multicoloridos, as tranças, os dreads e blacks dão um
toque especial e sinalizam mais que um pertencimento, um orgulho dessa
herança.

62
63
Menina do bloco mirim do
Olodum.
Salvador, Bahia.
Fonte: foto da internet

As especialistas em penteados afros fazem


verdadeiras obras de arte com o cabelo.
Em geral aprenderam o ofício desde muito
jovens, com mulheres mais velhas das suas
famílias.
Na foto, Rafael de Souza trança seus
cabelos com Lessandra,
do Salão LM Cabelo com Arte, no
Rio de Janeiro.
Fonte: Arquivo pessoal (foto autorizada).
64
TECNOLOGIAS, PRÁTICAS TERAPÊUTICAS E
ALIMENTAÇÃO

Há pouco reconhecimento sobre as contribuições africanas para a


sociedade brasileira. Quando se menciona a presença das heranças africanas,
no máximo se fala das questões referentes ao vocabulário, à música e às
danças. E ainda há uma tendência a se desvalorizar esses campos da vida
social como se fosse menos importante, o que é errado. Acompanhando
este olhar que minimiza o peso das contribuições na linguagem e nas
manifestações culturais, está um outro equívoco: reduzir a estes setores
as contribuições dos nossos ancestrais trazidos da África. Os estudos hoje
revelam que os africanos trouxeram na sua bagagem conhecimentos de
65
outras naturezas.

Transferência de tecnologia para o Brasil por


africanos escravizados

O trabalho de Guadalupe Nascimento Campos, doutora em Ciência


dos Materiais e Engenharia Metalúrgica, e pesquisadora do Instituto de
Arqueologia Brasileira(IAB) é uma dessas pesquisas que trouxe novos
dados sobre a atuação dos africanos nas áreas técnicas para a produção de
riquezas no Brasil. Seu estudo demonstrou que a contribuição africana para
o Brasil inclui também atividades ligadas à tecnologia, como a confecção
de cerâmica (exercida pelas mulheres) e de peças de metais. Esses africanos
pertenciam a grupos que tinham conhecimentos técnicos avançados, pois
faziam parte de uma cultura de especialistas.
No capítulo em que vimos sobre a origem dos africanos trazidos ao
Brasil como cativos, assinalamos a existência de alguns grupos que tinham
sua origem na Costa da Mina. Essa região originalmente era conhecida
como sendo o acesso à área onde havia minas de ouro, de onde os africanos
vinham a pé trazendo o precioso metal, pois só eles conheciam este caminho.
Os habitantes desta costa, no começo do tráfico atlântico, no seculo XV e
começo do século XVI, chegaram a comprar com ouro os escravos trazidos
pelos portugueses de outras partes do continente, inclusive da área Congo-
Angola. A atividade mineradora era conhecida em muitas áreas da África
(como já mencionamos, era a “terra do ouro”), assim como os métodos de
66 transformação do metal – a metalurgia.
No Brasil a atividade de busca de jazidas de ouro sempre existiu
desde que aqui chegaram os portugueses. Mas, foi a partir do século XVII
que essas buscas ficaram mais intensas. Na última década desse século as
primeiras jazidas foram encontradas numa área que por essa razão passou
a ser chamade de “região das minas gerais”. E para lá muitos africanos
foram levados como escravos, para trabalhar na mineração, atividade que
se tornou a mais importante para o Império Portugues e sua colônia na
América, o Brasil. E havia africanos, como vimos, que conheciam bem os
ofícios ligados a esse campo de trabalho.
Africanos mina: sorte na mineração?

Entre a população da região das minas no Brasil, existia uma antiga


crença presente principalmente entre os mineradores durante os séculos
XVIII e XIX. Acreditava-se que todo minerador deveria ter uma negra de
nação mina como amante para que tivesse sucesso em suas atividades de
extração do metal. Esse poder quase mágico dos mina para acharem ouro
e a sorte na mineração associada a uma amante mina eram, na verdade,
uma explicação imaginosa de um conhecimento técnico apurado,
construído durante centenas de anos, desde muito antes de qualquer
contato com europeus na época moderna. Em alguns momentos, a
preferência dos traficantes luso-brasileiros por escravos da Mina, durante
a segunda metade do século XVII e a primeira do século XVIII, se explica 67
em parte pelo conhecimento mineratório e metalúrgico dos africanos
dessa região.
Os grandes proprietários de escravos, quando se dedicavam de
forma exclusiva ou principalmente às atividades mineradoras, escolhiam,
preferencialmente, os homens originados da Costa da Mina. Uma
amostragem realizada entre testamentos e inventários coordenada pelo
pesquisador e professor Eduardo França Paiva, da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), mostra que entre os homens proprietários de
dez escravos ou mais, na Comarca do Rio das Velhas, capitania das Minas
Gerais, que, no século XVIII, dedicaram-se de maneira mais ou menos
intensa a atividades mineradoras, os cativos Mina representavam 40%. O
restante dos africanos identificados tinha várias outras origens. Entre as
principais, os angola somavam 26% os benguela, algo em torno de 8% e
os congo, 4%, ou seja, de regiões de línguas banto.
No Brasil, os africanos banto eram aqueles que foram trazidos da
região Congo-Angola e de Moçambique. No caso da Comarca do Rio das
Mortes, na mesma capitania mineira, há uma inversão aparente daqueles
totais verificados para a Comarca do Rio das Velhas, que ficava mais
ao Norte na região das Gerais. Os mina nessa região no século XVIII
representavam apenas 12% do total de africanos com origem identificada.
Ao contrário, foram muito mais numerosos os angola (28%), os benguela
(16%) e os congo (8%), entre outras várias origens.

Os que detinham o segredo da metalurgia


68
Vimos também no capítulo 2 que entre os cativos trazidos da África
para o Sudeste do Brasil, predominaram ao longo do tempo os que falavam
línguas do tronco linguístico banto. Esses povos haviam se espalhado pela
África ao Sul do Saara num longo processo migratório que durou século e
ficou conhecido como a “expansão banto”. Os banto conseguiram realizar
estas migrações e se estabelecer mesmo em algumas áreas já ocupadas antes
por terem desenvolvido tecnologias da metalurgia. Ao longo dos séculos
foram se fixando em algumas áreas e estruturando suas comunidades.
Dessas comunidades, séculos mais tardes surgiram povos. E desses povos
foram retirados os africanos escravizados do grupo banto.

Mapa das migrações banto
na África.
A seta mais escura
corresponde à primeira
leva migratória (início: por
volta do ano 1000 a.C.) e
a seta mais clara à segunda
leva migratória ( início: por
volta do ano 500).

69

Os grupos banto ficaram conhecidos como “o povo que detinha


o segredo da metalurgia”, eram exímios metalurgistas, que conheciam
e controlavam a temperatura do forno e a composição do material para
a fundição. Através do estudo da arqueometalurgia, pode-se constatar a
sofisticação dessa tecnologia de fundidores usada na confecção de metais,
considerados superiores à indústria européia da época. Com o tempo, essa
manufatura foi sendo abandonada pela concorrência de peças européias,
pois as peças africanas tinham um alto custo, devido ao transporte da
madeira para o carvão e do minério de ferro. Essa dificuldade acarretou
uma acirrada concorrência com o material europeu, apesar da sua baixa
qualidade em relação às peças africanas.
Os grupos africanos apresentavam uma relação especial com o metal,
principalmente, o ferro. Esse valor aparece no universo religioso afrcano,
trazido para o Brasil. Um dos orixás mais populares do candomblé é Ogun,
que além de guerreiro, é ferreiro – por tal razão é também o guardião do
fogo. O valor atribuído ao ferro pelos africanos se diferencia da cultura
européia que o considerava unicamente utilitário, um material sem beleza
70 estética. Vale ressaltar que a África passou diretamente da Idade da Pedra
para a do Ferro, sem passar pelo período denominado Idade do Bronze.
Em outros locais e culturas, a tecnologia do bronze (formado por ligas de
cobre com outros metais como estanho ou zinco) antecedeu a do ferro. Isso
porque o cobre é encontrado na natureza pronto para ser trabalhado. O
ferro, por sua vez, exige temperaturas de fusão muito mais altas e se encontra
na natureza, quase sempre misturado a outros elementos, o que significa
que precisa ser extraído e depurado para ser utilizado. No continente
africano, o surgimento e desenvolvimento dessas duas tecnologias ocorreu
no mesmo período.

Artífices trabalhando o
ferro em Angola. Gravura
de G.A. Cavazzi de
Montecuoccolo. Istorica
Descrizione de Tre Regni,
Congo, Matamba et
Angola, 1687.
Fonte: HENRIQUES,
Isabel de Castro e
MEDINA, João. A
rota dos escravos. Angola
e a rede de comércio
negreiro. Lisboa: CEGIA,
1996.p.95.

71
Os artefatos mais comuns confeccionados pelos grupos africanos
eram: enxadas, machados, enxós e pontas de lança. Esses objetos tinham,
além de uma função utilitária, um caráter simbólico. A enxada poderia
ser apenas uma ferramenta ou simbolizar uma oferenda mortuária,
um dote, um talismã protetor representando autoridade, saúde, status
social, e fazer parte de rituais secretos. Um dos prováveis motivos de o
ferro estar relacionado a papéis sociais é que apenas alguns indivíduos
escolhidos recebiam de seus antecessores os conhecimentos da metalurgia.
A aprendizagem desses conhecimentos se dava por meio de rituais de
iniciação, e longo períodos em que o candidato a ferreiro era submetido
a provas para mostrar-se digno da função. Isso tudo porque acreditavam
que os conhecimentos de metalurgia teriam sido passados pelos próprios
deuses aos ancestrais daquele grupo.
Havia uma relação direta entre o dominio da metalurgia e o poder
de um grupo. Por meio da fabricação de artefatos metálicos, obtinham-se
melhores condições de trabalho nas suas atividades agrícolas e domésticas,
assim como nas práticas militares, pela utilização de armas mais potentes
e eficazes, objetivando a defesa e conquista de seus territórios. Assim,
procuravam cada vez mais melhorar sua técnica.

Fabricação de utensílios nas fazendas

No Brasil muitos desses especialistas eram comprados como


escravos por senhores de terras para o abastecimento de ferramentas em
geral, pois havia uma necessidade de que trocassem constantemente os
72 utensílios, pelo desgaste dos mesmos. Nas fazendas de açúcar, os engenhos,
os instrumentos comumente utilizados para a manutenção dos engenhos
eram, em sua maioria, materiais ferrosos, como machados, enxadas e foices.
Assim, a arquelogia histórica hoje afirma que diversos artefatos encontrados
em antigos engenhos podem ser produtos do trabalho dos africanos
escravizados, que aqui deram continuidade ao seu oficio de ferreiros, além
da possibilidade de alguns utensílios terem sido trazidos da própria África.
A transferência do trabalho do ferro ocorrida no Brasil está relacionada
diretamente com a tecnologia do cadinho, que é um recipiente de argila
refratária utilizado em operações químicas a temperaturas elevadas.

Técnicas e instrumentos para a mineração

Na atividade mineradora, esses conhecimentos eram ainda mais


fundamentais.
No começo do século XVIII, quando se iniciaram de uma forma
mais efetiva os trabalhos de mineração do ouro, dos diamantes e das pedras
preciosas, segundo relatos de viajantes que visitaram o Brasil mais adiante,
as técnicas não eram tão apuradas quanto se tornaram um pouco mais
tarde com a contribuição dos africanos. Um exemplo: eram usados pratos
de estanho, nos rios e córregos, para separar-se areia e seixos do material
precioso. Não demorou muito e o instrumento foi considerado pouco
adequado ao bom desempenho das atividades. Africanos e africanas (sim,
havia mulheres trabalhando na mineração) escravizados teriam introduzido, 73
então, gamelas feitas com madeira específica, resistente ao sol e à água, para
separar o ouro e os diamantes do material indesejado. E não foi apenas o
tipo de madeira e da técnica de manipulação das gamelas, eles trouxeram
de seus conhecimentos ainda, práticas para facilitar o trabalho. Houve
um geólogo inglês, de nome John Mawe, que visitou o Brasil em 1807, e
comentou sobre a habilidade e conhecimentos químicos dos africanos em
separar o ouro

“Alguns dos grãos de ouro são tão pequenos, que flutuam na superfície,
podendo, por conseguinte, ser arrastados nas repetidas mudanças da
água que se fazem. Para prevenir esse inconveniente, os negros
esmagam algumas ervas em uma pedra e misturam um pouco do seu
suco à água de suas gamelas. Não afirmarei que este líquido contribuísse
realmente para precipitar o ouro, mas é certo que os negros o
empregavam com grande confiança.”

Fonte: MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. (trad.) Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/
EDUSP, 1978, p. 134.

Outro viajante que esteve no Brasil entre 1810 e 1821, o engenheiro


de minas Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege, que é considerado por
alguns o maior conhecedor da mineração e dos recursos minerais brasileiros
na época, também escreveu sobre a contribuição africana à mineração no
Brasil:

Somente mais tarde, aprendendo com a prática, principalmente depois da in-


trodução dos primeiros escravos africanos, que já na sua pátria se tinha ocupa-
74 do com lavagem do ouro, e de cuja experiência o natural espírito inventivo
e esclarecido dos portugueses e brasileiros logo tirou proveito, foi que os mineiros
aperfeiçoaram esses processos de extração. Deve-se principalmente ao negros a
adoção das bateias de madeira, redondas e de pouco fundo, de dois a três pal-
mos de diâmetro, que permitem a separação rápida do ouro da terra, quando
o cascalho é bastante rico. A eles se devem, também, as chamadas canoas, nas
quais se estende um couro peludo de boi, ou uma flanela, cuja função é reter o
ouro, que se apura depois embateias.(...) O escoamento (de cascalho), a prin-
cípio, se fez apenas, ou por meio de vasilhas, ou por meio dos usuais carumbés
de madeira, igualmente de pouco fundo e arredondados como as bateias, com
a diferença de que possuem somente de palmo e meio a dois de d i â m e t r o .
Por assim dizer, a terça parte caía fora e ajuntava-se em seguida, ou a profun-
didade era tão grande, que as vasilhas passavam de mão em mão antes de serem
despejadas em cima.
Fonte: ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. (trad.) Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1979, p. 167-168, vol. 1.

Certamente podemos imaginar que esses conhecimentos sofriam


adaptações às condições encontradas e também se beneficiavam dos saberes
sobre a natureza que os nativos do Brasil possuíam, e das informações dos
portugueses, e das experiências que trocavam no trabalho. No entanto, traz
uma base inegavelmente africana, que transformou o cotidiano do trabalho
na mineração e produziu ainda mais riquezas para os que a exploravam.
Em imagens produzidas no século XIX se localizam cenas que reforçam e

75

Mineração de ouro por


lavagem perto do morro do
Itacolomi
Fonte:http://commons.
wikimedia.org/wiki/
File:Rugendas_-_Lavage_
du_Mineral_d’Or_-
pres_de_la_Montagne_
Itacolumi.jpg
confirmam os relatos dos viajantes e estudiosos.

Artes da cura e medicina popular

Como Ossain recebeu de Orumilá o nome das plantas


“Ifá foi consultado por Orunmilá, que estava indo apanhar todas as folhas
e partindo com elas da terra para o céu. Quando Orunmilá chegou ao Céu,
Olodumaré perguntou o que iria fazer com todas as folhas. Orunmilá respondeu
que iria usá-las para benefício dos seres humanos. Todas as folhas que estava
pegando, carregaria para a Terra.

Quando chegou à pedra Ágbàsaláàárin ayé Iòrun (pedra que se encontra no


meio do caminho entre o Céu e a Terra) então Orunmilá encontrou Ossain e
perguntou: Ossain, aonde vai? Ossain disse: - ‘Vou ao céu, vou buscar folhas e
76 remédios. ’

Orunmilá disse que já havia ido buscar folhas para o benefício dos humanos
na Terra. Disse: - ‘Olha todas essas folhas. ’ Ossain pode apenas arrebatar todas
as folhas. Ele poderia fazer remédios com elas, porém não conhecia seus nomes.
Foi Orunmilá quem deu nome a todas as folhas. Assim Orunmilá nomeou
todas as folhas naquele dia. Ele disse: - ‘Você, Ossain, carregue todas as folhas
para a Terra. Volte e iremos juntos. ’ Foi assim que Orunmilá entregou todas
as folhas para Ossain naquele dia. Foi ele quem ensinou a Ossain o nome
das folhas apanhadas. Olodumaré deu a Ossain o poder das folhas, o qual ele
guardava numa cabaça pendurada num galho de uma árvore.

Um dia Xangô se queixou a sua mulher Oyá, deusa dos ventos, que só Ossain
conhecia o segredo de cada uma das folhas e que os demais Orixás estavam
no mundo sem possuir nenhuma planta. Oyá levantou a sua saia e agitou-a,
um vento violento começou a soprar e derrubou a cabaça de Ossain no chão,
quebrando-a. Ossain, ao perceber o que aconteceu, gritou – ‘Ewéo!’ (Oh! As
folhas! As folhas!), mas não pode impedir que os demais Orixás pegassem as
folhas e as dividissem entre eles. Mas, os orixás não tinham os conhecimentos
das ervas e até hoje precisam de Ossain para usá-las em seus rituais, ficando
seus segredos a salvo.”

Esta narrativa religiosa de matriz ioruba define a função de uma das


principais divindades do candomblé, Ossain (ou Ossanha), e é reveladora
no que se refere à importância do conhecimento sobre as folhas nas
práticas terapêuticas e curativas. O orixá recebe não apenas as folhas, mas
principalmente, as informações sobre elas, seus nomes e poderes curativos.
E finalmente, por ação de outros orixás, essas folhas se espalham, mas não
todo o conhecimento sobre elas, que continua sob a guarda da entidade a 77
quem foi dada essa responsabilidade e função.
Entre os muitos saberes que a sociedade brasileira recebeu dos
africanos encontram-se os conhecimentos sobre a utilização de produtos
da natureza para a fabricação de remédios, ungüentos, emplastros e outras
intervenções terapêuticas, além de tratamentos para alívios de dores do
corpo e da mente – ou da alma, para os que crêem. Os escravos e libertos
africanos e seus descendentes diretos eram os médicos populares nas
cidades brasileiras até o século XIX: aplacavam o mal-estar dos adoentados,
curavam os feridos, socorriam os picados por animais peçonhentos, e
acalmavam aos atormentados.
Utilizavam as plantas também para banhos, que tinham efeitos
higienizante e relaxante. No receituário africano, que até hoje se perpetua
na memória de afrodescendentes, os banhos serviam igualmente para
defesa, limpeza e purificação do corpo. Tratava-se de uma terapêutica para
ativar o sistema imunológico do paciente, efeito das ervas que neles havia.
Da mesma maneira as plantas serviam, nos conhecimentos botânicos dos
africanos, para queimar e trazer bons fluidos, incensando e depurando o ar
dos ambientes, ou funcionando como descongestionante em inalações. A
presença permanente do fogo aceso nas casas de negros –
como bem retratou Rugendas em gravura famosa – fazia
com que sempre pudesse sair um chá quentinho, ou se
prender um cachimbo ou cigarro de palha. O tabaco
era planta das Américas, mas seu consumo cotidiano e
ritual foi disseminado pelos africanos no Brasil.
78 Não só no caso do tabaco, mas muitas espécies
nativas passaram a fazer parte da farmácia doméstica
Habitação de negros. Gravura de Rugendas
dos africanos e seus descendentes, e foram por eles
preservadas para que hoje sirvam como base a um maior conhecimento
sobre a biodiversidade brasileira e as possibilidades curativas e terapêuticas
das plantas. Muito do que utilizaram veio da sabedoria indígena, e das
informações que os nativos tinham sobre a floresta. Pôde-se observar um
compartilhar de saberes, em que aos recursos botânicos locais foi agregado
um tratamento africano.

Usos religiosos

Assim como Ossain dos iorubás, os indígenas brasileiros tinham e


têm suas entidades ligadas às folhas e ervas. O papel religioso das plantas
não pode ser esquecido, pois é atribuído pelas culturas ameríndias e
afrodescendentes um sentido a cada planta e muitas assumem tanta
importância que se tornam objeto de culto. Adquirem, portanto, um
valor sagrado. As plantas utilizadas para se atingir estados de transe em
rituais são algumas vezes colocadas nesse lugar. A jurema (conhecida
cientificamente com mimosa hostilis) é utilizada como matéria prima na
preparação de um vinho consumido em trabalhos de catimbó, produz
estados alterados de consciência. A sacralização dessa planta não permitiu
que ela fosse profanada, de modo que não faz parte da lista de drogas 79
socialmente consumidas. Os mulungo (plantas do gênero erythrina)
também são utilizados em situações de ritual com ação hipnótica e
tranqulizante, devido a presença de alcalóides. Tais propriedades foram
devidamente registradas por diversos trabalhos científicos desde os anos
quarenta do século XX. As plantas com poderes inebriantes presentes nas
práticas religiosas permitem os estados de desligamento desejados pelos
fiéis, de forma a permitir-lhes uma entrega absoluta aos seus deuses. Ajuda
também àqueles que desejam controlar seu comportamento para melhor
servir à suas religiões. Em terreiros de candomblé de São Paulo, segundo
pesquisas, a liamba (Vitex agnus-castus), funciona como um inibidor sexual
empregado para dar equilíbrio àqueles que se iniciam na religião, conforme
informações dos sacerdotes locais. 
Como já observamos em capítulos anteriores, não há uma linha
divisória rígida entre o mundo sagrado e profano nas culturas africanas
tradicionais. Portanto, o uso terapêutico muitas vezes, pode-se dizer que
na maioria das ocasiões, está inserido numa situação ritual. Assim como
determinados ofícios, ainda que exercidos no mundo profano, estejam
historicamente vinculados a procedimentos e cuidados rituais.

Barbeiros sangradores: um ofício de africanos

Durante muito tempo no Brasil, até pelo menos o final do século


XIX. A sangria é o uso de animais ou ventosas para provocar uma leve
hemorragia no paciente e, de acordo com o que se acreditava, purifica-lo
80 do mal que o atingia. Era uma prática médica utilizada em muitos lugares
do mundo. A arte de sangrar faz parte de concepções terapêuticas de várias
tradições culturais desde longa data na História da medicina. A historiadora
Mary Karash, cujo trabalho citamos no capitulo 2, identificou a presença
de sangradores entre os bacongo, povo africano da região Congo-Angola
em sua parte Norte. E também podia ser encontrada desde longa data entre
os ameríndios, que utilizavam rotineiramente a escarificação e a sangria.
Para a medicina européia do período (Brasil Colônia e Império), a sangria
constituía um recurso terapêutico fundamental, baseada na concepção
hipocrática e galênica de estrutura e funcionamento do corpo humano.
A sangria, portanto, era uma das mais importantes “artes de curar”,
e estava submetida, entre 1808 e 1828, à regulamentação e à fiscalização da
Fisicatura-mor, que era o órgão do governo responsável por essas atividades,
ao qual os sangradores deveriam requerer licença ou carta para atuar. Entre
os solicitantes brasileiros, encontram-se forros ou escravos em 84% (que
corresponde a 164 em 193 pedidos) dos casos. Negros e mulatos constituíam
a maior parte dos sangradores. As lojas normalmente pertenciam a negros
libertos que empregavam escravos, instruindo-os como aprendizes. Entre os 173
sangradores com ‘nacionalidade’ definida, 61.3% (106 em 173) haviam nascido
na África. Verificamos, assim, que os africanos ocupavam predominantemente
esse ofício. E entre os nascidos no Brasil a maior parte era de escravos e forros,
portanto descendentes dos primeiros. A procedência dos africanos mostrava
no Rio de Janeiro uma ligeira predominância de oriundos da África Centro-
Ocidental (52%), seguidos por pessoas vindas da África Ocidental (46%) e do
África Oriental (2%). Esses números resultam de pesquisa foi realizada por
Tânia Salgado Pimenta, doutora em História Social pela UNICAMP
e Pesquisadora do Centro Colaborador em Vigilância Sanitária ISC/ 81
UFBA/Anivisa.

Praticas e saberes negros

Portanto, se reconheciam os conhecimentos e talentos médicos de


africanos e seus descendentes diretos, mesmo que se pese o fato do ofício
ser objeto de discriminação na época por lidar diretamente com sangue.
Os moradores das cidades brasileiras recorriam a esses cirurgiões práticos
nas situações em que sua destreza e conhecimento profissional poderiam
ser mais duramente testados. O fato de seguirem ocupando esses postos
por décadas indica que havia uma confiança no manejo que os africanos
tinham dos instrumentos e técnicas de tratamento médico.
O domínio de uma série de conhecimentos de farmacobotânica
popular e de procedimentos curativos, incluindo intervenções diretas
no corpo dos doentes, esteve durante longo tempo predominantemente
em mãos negras no Brasil escravista. Na medida em que a medicina se
tornou um saber exclusivo dos que cursavam faculdades, passou-se a
desvalorizar esses saberes, e os que os colocavam em prática. No entanto,
no interior do Brasil, os práticos de medicina, os conhecedores de ervas
e chás, as benzedeiras e rezadeiras continuaram a socorrer os enfermos,
sendo chamados não só para tratar como para evitar doenças com suas
orientações. Com conhecimentos que a tradição oral faz passar de geração
a geração, resistiram e resistem às acusações de feitiçaria e charlatanismo.
Seus saberes encontram-se ameaçados não só pelo discurso da Ciência,
82 como pela intolerância religiosa, e pela destruição da natureza, seu
manancial de matérias-primas para tratamentos.

Educação ambiental

A frase em ioruba “Ewe orixá ewé” (sem folha não tem orixás) revela bem
o princípio do culto aos orixás de tradição africana. A relação com a natureza é
muito próxima, essencial. As matas são moradas de deuses, assim como rios, lagos
e mares. Muitas vezes a divindade se expressa por meio do meio natural, ela é a
própria cachoeira, a árvore, ou o animal. O equilíbrio entre os humanos e esse
mundo que dá abrigo e consistência aos orixás é fundamental para essa fé.
Por tal razão as ameaças aos ecossistemas são ameaças graves à
sobrevivência das religiões de matriz africana. Praticamente todas elas
sobrevivem desse contato com a Natureza. Por isso, os terreiros e casas de
santo têm que ter árvores, de preferência um rio passando perto, porque
diversas cerimônias e preces tem que ser realizadas em encontro esse mundo.
Preservar, cuidar e manter a fauna e a flora é condição fundamental para
os(as) participantes dessa religiosidade afro-brasileira. Os ritos e rituais são
propiciados por meio de folhas, banhos de águas naturais e por partes de
animais consagrados aos orixás. Esse uso de animais em sacrifício não deve
ser nunca exagerado nem desperdiçado. O animal sacrificado na maioria
das vezes transforma-se em alimento, retornando ao mundo vivo por
outros caminhos.
Assim, por princípio e sobrevivência, as religiões de matriz africana
devem ter compromisso com o meio ambiente e sua preservação.

Alimentação 83

A cozinha durante longo tempo e em muitas casas brasileiras era um


espaço de domínio feminino de origem africana. Ainda que eventualmente
sob ordens ou orientações de um senhora branca, o comando do fogão
era majoritariamente negro. E, mesmo que as ervas, as leguminosas, as
verduras e os grãos tivessem saído da mistura cultural que caracterizou
a história da sociedade brasileira, a mistura, o gosto, as doses, o toque, a
química era de origem africana. Ainda que as receitas se originassem na
cultura lusitana, a mão que as traduzia ao paladar brasileiro era a “mão da
imaculada nobreza” - conforme diria nosso Ministro Gilberto Gil.
No entanto, a comida que preparavam não ia para a mesa dos negros
durante o tempo da escravidão. A dieta alimentar dos cativos era pobre,
sobretudo no campo. Para diversificar-se dependia de um fruto ou outro
colhido às escondidas, de um pouco que poderia conseguir de presente dos
que lidavam na cozinha. Só com a saída da escravidão a mesa negra pôde
ganhar de fato mais vida própria.
Havia exceções como na atividade de ganho nas ruas das cidades,
quando o talento culinário das africanas era transformado em fonte de
lucro para seus proprietários. Muitas dessas mulheres foram colocadas
“ao ganho” vendendo quitutes – aliás, esta é uma palavra nascida em
África. Esse tipo de atividade, aliás, dava independência e prestígio às suas
empreendedoras. A sofisticação e diversificação da cozinha afrodescendente
se deu também e em grande parte a partir da experiência dos terreiros, das
receitas para os santos, que saíram desse universo e alcançaram a rua e mais
84 tarde, em meados do século XX, o status de comida típica.
As comidas que conhecemos hoje como sendo de matriz africana
resultaram de muitas trocas culturais, comerciais e alimentares. Recebemos
o inhame, o quiabo e o azeite de dendê, os quais, misturando com produtos
das Américas, como a mandioca, o milho e os feijões deram origem a
delícias da nossa cultura alimentar como o acarejé, o bobó, o xinxin, o
vatapá. Houve também participação lusitana com receitas técnicas como
refogar, fritar e assar em forno romano. Mas, foi o comando da mão afro-
brasileira acabou por dar uma personalidade própria a esses pratos nascidos
da diáspora.
CAPOEIRA E MUSICALIDADE
AFRODESCENDENTE

O universo das heranças africanas no Brasil é imenso e sabemos que


não seria possível colocar toda essa riqueza num só número dos Cadernos
CEAP. Na verdade, esse legado dos nossos antepassados está presente nos
temas abordados por diversos números dessa coleção – aliás, em quase em
todos eles.
Ainda conscientes de nossa impossibilidade de dar conta desse
amplo universo cultural, é importante colocar um foco sobre dois ricos
e representativos veios de expressividade afrodescendente no Brasil
contemporâneo. Trata-se de marcas da identidade brasileira no Brasil e
no exterior, verdadeiros símbolos da brasilidade, cujas histórias abrem 85
muitos campos de estudo. Nossos destaques finais são para a capoeira e
musicalidade de origem africana. São arquivos vivos de afro-brasilidade
por meio dos quais talvez possamos vislumbrar possibilidades de mais
estudos, mais pesquisas e novos escritos.
Trabalhos relativamente recentes nos campos dos estudos da história
dos africanos no Brasil têm destacado as ações combativas dos mesmos face
à dureza das relações escravistas. Historiadores como o baiano João Reis
e o carioca Flavio Gomes, entre outros, têm demonstrado que, durante
o tempo da escravidão, os africanos e seus descendentes encontravam
diferentes formas de lutar contra as condições a que eram submetidos.
Algumas vezes este tipo de atitude se traduzia em conquistar espaço para
a manifestação de suas expressões culturais. Certamente estavam cientes
da importância da preservação dessas memórias nos corpos e mentes que
haviam sido trazidos para o Brasil e dos que deles iriam descender. Há
exemplos da importância dessa luta para os escravizados. No final do
século XVIII, numa rebelião na área rural na Bahia, os cativos sublevados
reivindicavam além de terras e melhores condições de trabalho, o direito de
poderem “brincar, folgar, e cantar em todos os tempos que quisermos sem que
nos impeça e nem seja preciso licença”
Ao encaminhar este tipo de reivindicação ao senhor da fazenda
onde estavam, em plena ação rebelde, revelavam a importância do direito
a fazer suas rodas de baile e cantoria, que se transformavam também em
danças guerreiras e práticas que desenvolviam habilidades e competências
corporais. No meio à letra satírica e ao rebolado, o giro de perna, o rabo-de-
86 arraia, o desvio de corpo. Naquele tempo e situação, como bem traduziu
mais tarde a letra da canção de Wally Salomão, imortalizada na voz de
Gilberto Gil: “a felicidade do negro é uma felicidade guerreira”.

Os significados da capoeira

Há muitas interpretações sobre a origem do termo capoeira. Muitos


acreditam que é um termo indígena derivado do tronco Tupi-Guarani,
base lingüística de muitos grupos nativos no litoral brasileiro à época do
descobrimento. Para alguns autores, a definição de capoeira seria uma
vegetação rasteira, de variada densidade. Outro significado seria da palavra o
nome de certo tipo de cesto de palha entrelaçada, com o formato de grande
círculo, muito utilizado por africanos e seus descendentes escravizados no
transporte de produtos nas cidades brasileiras. O cesto seria chamado de
capoeira e os seus carregadores “os capoeiras”. Esta última definição parece
ser a mais aceita atualmente como sendo a origem do termo capoeira na
qualidade de prática cultural da população negra escrava e liberta, no Rio
de Janeiro do século XIX.
Estudos mais recentes sobre a história da capoeira destacam tanto seu
lado lúdico, de jogo e dança como seu lado de resistência e luta. Segundo
alguns estudiosos, o primeiro lado da capoeira, como dança e jogo, teria
precedido o segundo, em termos cronológicos. Fora uma criação surgida
no Brasil, mas que apresentaria parentescos melódicos e de movimentos
com os sons de instrumentos e danças de povos da África, sobretudo de
Angola.
87

Jogo da Capoeira.
Rugendas (1834)
Fonte: SOARES, Carlos
Eugênio Líbano. A
negregada instituição:
os capoeiras no Rio de
Janeiro 1850-1890. Rio
de Janeiro: Secretaria
Municipal de Cultura
/ Coleção Biblioteca
Carioca, 1994. p.30
A capoeira na cidade do Rio de Janeiro nos tempos da escravidão
se tornou também uma forma de instituição associativa, ao agregar
grupos que eram chamados como as maltas de capoeiras. Na primeira
metade do século XIX o Rio de Janeiro, principalmente sua zona central,
era dividida entre áreas de atuação das diferentes maltas de capoeira,
que tinham como razão de ser a autodefesa e a tentativa de controle
sobre determinadas partes da cidade. A autodefesa era principalmente
dirigida a proteger os membros do grupo da truculência dos senhores
e da polícia.
Os capoeiras também desenvolveram um cancioneiro em que
faziam referência às origens de sua prática (o refrão: “venho de Angola,
camará!” é um exemplo), bem como destacavam qualidades como a
88 esperteza, a argúcia e a agilidade corporal:

“No lugar que tem malandro


Vagabundo não encosta
No lugar que tem sabido
Eu não vou fazer aposta
No lugar que tem piranha
Jacaré nada de costa”.

(Cantiga de Capoeira, anônimo. Citada por SCHWARCZ, Lilia e REIS, Letícia Vidor. Negras
Imagens. Ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: EdUSP, 1996. p.34)

A dança característica da capoeira parece ter sido aceita, segundo


as fontes históricas, como uma das muitas atividades lúdicas promovidas
pelos cativos em suas reuniões. Ou seja, no inicio, a capoeira não parecia
ameaçar os escravocratas. Mas a capoeira adquiriu diferentes significados e
usos, como se viu.
Em meados do século XIX estava na cidade havia grande repressão aos
capoeiras. Segundo fontes da época, os praticantes dessa dança-luta, quase
todos negros, utilizavam fitas de cores vermelha e amarela para distinguir-
se e reafirmar seu pertencimento ao grupo de capoeiristas. Essa era muitas
vezes razão suficiente para ser considerado suspeito e preso. A detenção
por prática de capoeiragem era um dos delitos mais freqüentes na cidade
carioca entre os anos 1810 e 1818. Houve casos em que foram detidos
por assoviar como um capoeira – pois este era um meio de comunicação
entre os praticantes. Nem sempre os conflitos eram entre os capoeiras e a
polícia ou os escravocratas. Havia muitos conflitos envolvendo a prática
de capoeira entre a população africana e afro-descendente. Essa evidência 89
demonstra que a capoeira era também um instrumento nas disputas de
poder entre os escravos e libertos que viviam na cidade.
O antropólogo Julio Tavares, num estudo sobre a capoeira, relaciona
a prática da atividade diretamente com a luta pela liberdade. Nesse caso,
uma liberdade que se expressa na não domesticação do corpo do africano
e na afirmação do mesmo, utilizando de sua habilidade e energia. Para este
estudioso e especialista no tema, a capoeira teria se constituído em expressão
de memória, um arquivo corporal dos saberes africanos em movimento
de resistência à dominação. Resistir, diz ainda, significava manter-se vivo
e, antes de mais nada, a necessidade de preservar-se inteiro, fisicamente
íntegro, assegurando a pulsão daquele corpo, cotidianamente massacrado
pelas engrenagens da extensiva agromanufatura exportadora. Com ele,
nele e para ele, era necessário se rebelar. Fazer do corpo o ponto de partida
e de chegada da luta. Preservar e agregar na sua única propriedade, que
era o corpo. E como esse corpo era ainda desconhecido como tal pelo
escravocrata, usá-lo dessa maneira permitiria não lhe dar acesso a todas as
informações que impulsionassem a viabilização de um projeto de liberdade.

Musicalidade

Um dos mais antigos instrumentos é o tambor, ou tantã, como se


diz em muitos lugares. Há vestígios dele desde princípios da Humanidade.
Quando ouvimos um tambor, muitas vezes ele parece tocar dentro da
gente, no peito, junto ao coração. Quem sabe teria sido inspirado pelo
90 som do próprio coração?
Há vários tipos de tambores, e eles existem em muitas culturas. Nós,
brasileiros, temos nos tambores de matrizes africanas uma forte herança
musical. Nos ritmos mais populares, nas danças mais tradicionais, na
base das músicas mais reconhecidas por sua brasilidade, lá está ele, em
suas mais diversas formas, soando forte, marcando o compasso e dando
a cadência da melodia: o tambor.
Na África, de onde foram trazidos os nossos antepassados, o
tambor, além de suas funções musicais, é meio de comunicação. Com
ele se transmitem mensagens à distância, se avisa sobre acontecimentos,
se anuncia o início de alguma cerimônia. Os africanos, no Brasil,
recuperaram esse importante instrumento ligado às suas vidas e a sua
história. Durante muito tempo, o som de tambores esteve associado às
culturas de matrizes africanas no Brasil, e sua batida era quase como um
sinal da presença negra.
A percussividade é uma marca dos africanos na nossa música e
na música mundial. Os sons dos tambores e outros instrumentos de
percussão, assim como as batidas de um coração, marcam compasso e
fazem mover o sangue na música, levam o oxigênio às diversas partes do
corpo musical. A força dos sons dos tambores tem o poder de transformar
uma apresentação musical numa experiência sensorial e até mesmo
espiritual, para alguns.

91

Africanos caracterizados
para a celebração da
Congada tocam tambores.
Foto de Christiano Júnior,
Rio de Janeiro, c. 1865.
Acervo do Instituto do
Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional
(IPHAN).
Na sua origem, os tambores são também instrumentos de
comunicação com os antepassados, com o mundo imaterial. Por meio
de diferentes tipos de instrumentos percussivos e com toques variados, se
pode homenagear, pedir, chamar e se despedir de uma entidade do mundo
sagrado. Os ancestrais ouvem os tambores porque o som do instrumento
atravessa as fronteiras entre os diferentes mundos.
Mas, com o tambor também se pode dançar e se divertir. Nas
rodas: de samba, de capoeira, de jongo, de caxambu, nas quais o círculo
sagrado adquire seu formato profano, lá se encontram os tambores. E eles
estão lá, desde a chegada dos primeiros africanos escravizados ao Brasil.
Como forma de resistência, de sobrevivência, de expressão de identidade.
Como uma negação e uma afirmação, pois, como bem diz a canção de
92 Chico César: “mais forte que o açoite dos feitores são os tambores”.

Cantos do trabalho

A musicalidade era algo muito presente na vida dos africanos trazidos


para o Brasil. Era parte de seu dia-a-dia e aparecia tanto no trabalho como
na religiosidade e no lazer. Essa característica veio nas suas mentes e nos
seus espíritos – os únicos “bens” que puderam trazer nos navios negreiros,
além da sua força de trabalho.
Algumas das expressões mais visíveis dessa característica eram os
cantos do trabalho. Quando estavam trabalhando, principalmente em
serviços pesados e em grupo, os cativos cantavam em coro, em línguas
africanas, em português, ou muitas vezes numa mistura desses idiomas.
Suas canções tinham letras simples, com uma cadência que acompanhava
os movimentos que faziam. A melodia, ao mesmo tempo em que animava
o grupo, fazia com que todos seguissem o mesmo ritmo de trabalho.
Havia vezes que, à frente de um grupo de carregadores, um deles
ia tocando um tambor e, assim, marcando o ritmo das passadas e dando
cadência à canção que entoavam. Outras vezes, junto ao tambor ou no
lugar dele utilizavam as kalimbas ou malimbas, instrumentos africanos,
constituídos de meia parte de um coco no qual se prendiam pequenas hastes
de metal, para serem tocadas com os polegares. Havia, ainda, os chocalhos
de cuia utilizados na África para manter o ritmo – e que produziam um
som parecido aos das “bolinhas de gude” se chocando.
Esses instrumentos, e em especial os tambores, além de serem
marcadores de ritmo, remetiam muito diretamente às tradições africanas e 93
serviam para reforçar a presença e a memória das heranças ancestrais.
Podemos dizer que os africanos influenciaram profundamente a
civilização brasileira com muitos elementos. Um deles, sem dúvida, é a
forte relação que têm com a música, com os ritmos e sons cadenciados,
que são parte da identidade brasileira. Podemos dizer, portanto, que entre
os valores mais marcantes que os descendentes de africanos inseriram nas
nossas manifestações culturais está a musicalidade, em estreita relação com
a expressão corporal que a sonoridade desperta. Uma das expressões mais
conhecidas da musicalidade afro-brasileira é o samba, não poucas vezes
colocado como símbolo da nossa identidade no exterior.
Diferentes maneiras de se pensar o samba

Em todos os campos do estudo e do ensino da História encontramos


diferentes maneiras de abordar determinados temas e questões. Sabemos
que a História é uma construção, isto é, ela resulta do trabalho daqueles
que interpretam as fontes, fazendo perguntas e elaborando a partir das
mesmas, respostas. As maneiras de se formular as perguntas e as perguntas
em si já assinalam determinados tipos de respostas e, por conseqüência, de
análise. Portanto, ao nos debruçarmos sobre um campo novo dos estudos
de História cultural, como o surgimento do samba e seus significados,
encontramos diferentes formas de se tratar o tema, ou seja: vários pontos
de vista.
94

Batuque: uma das


possíveis origens do
samba.
Gravura de Rugendas
(1834)
Ao longo da história do samba, muitos caminhos foram trilhados.
Há quem fale das origens nas danças de umbigada em rodas, com palmas
e instrumentos de percussão, às quais se agregaram
a cuíca, o ganzá e o reco-reco. Em alguns lugares, o
tambor e coco surgiram como os instrumentos das
danças em roda, que por sua vez derivaram no lundu. O
lundu, de grande popularidade entre os negros cativos
e libertos, era acompanhado de um coro num sistema
de pergunta e resposta musical. Ainda no século XIX,
junto ao lundu, mas com influências de outros férteis
campos musicais das Américas escravistas surgiu o
maxixe. Nenhum desses ritmos por si só originou o
samba, eles formaram um conjunto de influências. 95
Podemos dizer, então, que o samba já nasceu de uma
mistura de ritmos e sons – mas, a palavra é muito
provavelmente de origem nos grupos banto situados
ao Sul do Equador.
No início século XX, os sambistas ainda eram Dança angolana classificada como “baile
desonesto” no olhar católico do século
mal-vistos pelas classes dominantes, pela influência que
XVII. Observamos os atabaques, as palmas
sua musicalidade exercia na recém liberta população acompanhando e os movimentos de perna.
negra. Ao mesmo tempo, as práticas religiosas afro- Poderia ser uma das matrizes de manifestações
descendentes eram também reprimidas, assim como de dança/música afro-brasileiras, como é o nosso
as reuniões para tocar tambores, cantar e dançar em samba.
Fonte: CAVAZZI, João Giovanni Antonio.
roda. A cidade do Rio de Janeiro se modernizara,
Descrição Histórica dos três Reinos do Congo,
especialmente após as reformas de Pereira Passos, Matamba e Angola. Lisbos: J.I.U, 1965
que, com o as obras de demolição conhecidas como“bota-abaixo”, fez a
população pobre ter que sair das velhas ruas do centro, subir os morros e
alcançar os subúrbios.
No processo de constituição das primeiras favelas e de ocupação
de áreas então periféricas da cidade foram surgindo também atividades e
costumes associativos em que os sambas eram criados e cantados. E, num
outro lado da cidade, a vida boêmia também passava a ser mais presente.
A cidade dos anos 1920, com a luz elétrica, os cinemas (com músicos
tocando ao vivo), os bares e as ruas feitas para o passeio, atraíam as pessoas
para a rua.
Dos encontros de grupos boêmios de classe média carioca e dos
músicos populares surgiram parcerias musicais e a apropriação de uma
96 herança musical negra e popular por parte de setores mais favorecidos.
Houve intensas mediações culturais que envolveram, entre outros,
sambistas do Estácio (hoje parte da Cidade Nova); intérpretes compradores
de músicas, como Francisco Alves e Mário Reis; e compositores de classe
média, ou classe média baixa, como Noel Rosa. Os sambistas de origem
popular seguiram com sua atividade, até a constituição das escolas de
samba, e a consagração do ritmo na capital da República durante o período
Vargas.
O samba influenciou a bossa-nova e se tornou base para a chamada
MPB (Música Popular Brasileira). Ao se buscar o representante máximo da
musicalidade brasileira a ele recorrem, mas normalmente na sua expressão
mais conhecida, do samba-canção, mais lento, e dos sambas enredos,
ritmados pelas baterias. Mas, o samba tem muitas formas e diversas
modalidades: partido alto, samba de roda, samba de breque, entre outras.
No partido alto, como em outras formas musicais afrodescendentes como o
caxambu, entra em cheio o repente e a poesia, fazendo com que a cadência
e a rima integrassem a criação musical.
Finalizamos com a lembrança da poética dos rappers hoje, que, no
binômio ritmo e poesia, resgataram para a juventude americana e também
brasileira a prática da palavra cantada - tão característica dos artistas
e memorialistas (os chamados griôs) africanos. Trata-se de mais uma
vertente criativa da diáspora africana nas Américas que nasceu da a partir
de heranças africanas.

“De um jeito diferente, eu vou chegando


raizes (raízes) é o que estou cantando... 97
África(África) é de onde viemos
e construimoso Brasil(il) que hoje temos
gratidão(ão)... certamente não existe...
nemporissoirmão,euvouficartriste
Sou negrão(ão)...
e já falei a voces vamos nos unir(ir),
pois essa é nossa vez
de mostrar nossa capacidade, inteligência, falar a verdade...”

Raízes {Toaster Roots 2] , de Rappin’ Hood


A AUTORA
Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro, fez o mestrado em Estudos de África no Colégio do México e o
doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense, defendendo
tese que articula a história dos africanos no Brasil à História da África.
Com longa experiência docente na área de História na Educação Básica e
História da África para graduação e pós-graduação. Realizou pesquisas em
arquivos na África e no Brasil. Tem diversos artigos publicados sobre ensino
de História da África e dos africanos no Brasil, e ministra constantemente
palestras e cursos sobre o tema. É professora do CAp/UFRJ desde 1984,
tendo ocupado cargos de coordenação e direção da área de formação de
professores(Licenciatura).
98
CONVERSAÇÕES PEDAGÓGICAS

Africanidades Brasileiras - Heranças


Africanas no Brasil

O texto Heranças Africanas no Brasil da professora Mônica Lima é


um belo texto, forte, panorâmico, potencializador e informativo. Uma das
portas de entrada para a compreensão da importância da história e cultura
africana, da visibilidade com positividade. Fundamental para a percepção de
uma inscrição histórico-cultural na nossa brasilidade.
Gostaria, contudo, antes de viajar nas ações que o texto convida, de
negritar que comungo da idéia que o item Conversações Pedagógicas dos
Cadernos do CEAP, é um dialogo com o autor ou autora do texto temático 99
de cada caderno, uma provocação a pensarmos na sua aplicabilidade em
conteúdos do/no cotidiano escolar, na sua ação didático-pedagógica. Neste
sentido, creio que cada caderno, assim como a Lei nº 10.639/2003, não é
um fim em si mesmo, mas um desafio à imersão criativa na temática que
cada um deles (cadernos) se propõe apresentar.
Não gostaríamos de nos fixar numa mera proposta de atividades, mas
na idéia que cada leitor/a é um/a criador/a, que carrega uma expertise que o
habilita a construir práxis que consolide a presença qualificada da História e
Cultura Africana e afro-brasileira nos currículos escolares.
Neste sentido, o que escrevemos é apenas uma possibilidade, a ser
ou não apropriada, reapropriada, resignificada, criticada pelos/as leitores/as.
Somos puxados pelo fio do sonho, do dialogo com outros textos e autores/as,
que nada mais é do que a ação de quem crê que entrou na corrente sanguínea
do texto.
O presente caderno pode configurar-se num excelente texto de estudo
para docentes de História e de outras disciplinas.
Imersa no texto e diante do desafio de propor atividades pedagógicas
relacionadas a sua temática, sou impelida a dizer que a presença africana
no Brasil, nos legou como herança valores civilizatórios, valores estes que se
constituíram em valores civilizatórios afro-brasileiros.
Valores como algo que nos impulsiona, que nos constitui, que nos
aglutina, nos dá um subjetivo senso de pertença, como aspectos significativos,
cultivados, desejados, substantivos e táticos.
Civilizatório numa concepção diferente de algumas que se pretendem
100 evolucionistas, hierarquizantes, asséptica, apartada do entorno e da Natureza,
mas, sim, como produção de marcas, projetos, modos de viver, ser e estar no
mundo.
O texto é instigante para pensarmos nossas Heranças Africanas
na ótica de aspectos que podemos classificar como valores civilizatórios
afro-brasileiros: MEMÓRIA, ORALIDADE, COMUNITARISMO,
CORPOREIDADE, ANCESTRALIDADE, AXÉ (ENERGIA VITAL),
TERRITORIALIDADE, LUDICIDADE, CIRCULARIDADE.
Destacaremos alguns, outros ficam por conta da percepção e criatividade-
critica de cada leitor/a, e apresentaremos idéias de ações pedagógicas a eles
relacionados. É importante destacar, antes, que os valores não são estanques,
nem estáticos, eles dialogam entre si, se imbricam já nos sinalizando, talvez,
ações pedagógicas transdisciplinares, ou além, fora do modelo disciplinar.
Ancestralidade – Ação Pedagógica: De onde viemos? Quem foram
nossos ancestrais?
Construção de arvores genealógicas possíveis. Até onde conhecemos
nosso passado?
Memória – Que tal “cavar” nossas histórias submersas? De casa, da
família, da cidade. Quais são nossas heranças escondidas. Por que escondidas?
Fazer um relicário na escola pode ser um excelente começo de ação.
Perceber o quanto de africanidade carregamos no nosso cotidiano.
Descobrir, redescobrir lugares de memória negra, afro-brasileira.
Pensar o que é e qual o significado da memória no sistema democrático, na
história dos povos que constituem este pais Brasil.
Circularidade - Os contatos das culturas e civilizações... o texto nos
sinaliza este aspecto em muitas partes, como: Grandes reinos e o comércio de 101
longa distância; Islã e comércio de longa distância; A formação do mundo
atlântico e o tráfico de escravos; Mapa da diáspora africana elaborado
por Joseph Harris; África e Brasil: relações diplomáticas além do tráfico;
Salvador: uma cidade africana no Brasil escravista; Brasil africanizado.
Cada item deste pode se desencadear em projetos de trabalho, em
dialogo, inclusive com outros Cadernos do CEAP.
Júris simulados (O trafico negreiro);
Mapas do estado onde se localiza a escola e os lugares de memória
descobertos em pesquisas escolares
Comunitarismo – Um “espírito” de irmandade, de ligação e
comunidade e cooperação, talvez tenha sido fundamental para a reconstrução
do modo africano de ser-viver na diáspora. O texto nos dá pistas suporte
para pensarmos este valor: a expansão do Islã”; A identidade das
pessoas nas sociedades africanas se vinculava às suas comunidades.
E estas comunidades eram os povos de cada um”; Nomes de nação e
identidades africanas.
Religiosidade – “Destituídos de suas famílias, os africanos encontraram
nas irmandades, nas comunidades de terreiro, nos grupos de cultos e preces,
as suas novas famílias extensas. Conquistavam assim novos irmãos, mães, e
pais espirituais. E a força de uma comunidade para lutar pela vida.”
Somos desafiados, sobretudo em tempos de intolerância religiosa a
pensarmos na religiosidade (e não na religião como espaço de fidelidade
mas, como espaço de adesão, história, ancestralidade, memória).
Investigar sobre as religiões: o que são, o que pregam, o que significam:
102 Candomblé, Umbanda, Islã, Católica,... onde estão os negros e negras
nas religiões.
Uma pesquisa? Leituras de textos? Visitas mediadas a templos, terreiros,
igrejas? O conhecer para não discriminar é fundamental.
Oralidade; O texto nos dá pistas de trabalho, sobretudo se associarmos
oralidade e múltiplas linguagens.
Os falares – investigar o que tem de africano na língua brasileira.
As linguagens artísticas: as danças, as artes plásticas, o teatro, ...Mais
uma vez, uma transito pedagógico que vai: conhecer> manipular >interagir>
criar> recriar> ressignificar.
As histórias, mitos, contos, causos... Ouvir os mais velhos, recolher
suas histórias e memórias afro-brasileiras... ilustrar estas histórias, dramatizá-
las, recontá-las...
Corporeidade – O corpo negro, o corpo afro-brasileiro, o corpo da
mulher negra, o corpo das crianças negras... o corpo do idoso e da idosa
negra...o próprio corpo negro.
Pesquisar sobre a estética negra. exercitar novos olhares, pesquisa sobre
as ausências-presença deste corpo (mídia, poder, locais)...
Territorialidade – Dialogar com o caderno do professor Renato
Emersos. Aqui um destaque, os cadernos, assim como os valores, dialogam
entre si.
Concurso de redação, os territórios negros. Qual a função e importância
destes territórios no Brasil? Os quilombos, os terreiros...
Ações pedagógicas sobre o Axé, a Ludicidade, a musicalidade como valores
civilizatórios afro-brasileiros, fica como desafios para as/os docentes leitoras/es.
103
Ações gerais:

Ler o mapa da áfrica – cada ano pode ficar com uma região da áfrica,
dependendo do tamanho da escola, cada classe pode se responsabilizar por
um país. A partir daí, pesquisas e uma bela exposição no final sobre a África e
seus países para além dos estereótipos. Imaginem, contatos com embaixadas,
consulados, sites... centros de pesquisas...
Africanidades – um projeto dos professores e professoras. Para inicio de
conversa, os –as docentes podem preparar um material inicial, cada um com
sua contribuição, sobre AFRICANIDADES BRASILEIRAS – A herança
africana no Brasil, a partir da leitura deste caderno.Depois...é só construir
milagres de fé num mundo sem racismo nas nossas escolas.
O Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) é uma organização não
governamental, sem fins lucrativos, laica, fundada em 1989, na cidade do Rio de Janeiro, por ex-
internos da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), membros da comunidade
negra e do Movimento de Mulheres. Defende o direito à liberdade religiosa como um princípio,
assim como a dignidade das religiões de matrizes africanas. A recorrente violação dos direitos
fundamentais da criança e do adolescente, das mulheres e das populações negras marginalizadas
pela prática do racismo serviu de inspiração para sua criação.

Direção: Gerente de Projetos:


Presidente: Maytê Ferreira da Silva Éle Semog
Secretário Executivo: Ivanir dos Santos
Ações Afirmativas:
Tesoureiro: Wilmann da Silva Andrade
Jorge Damião
Secretário: Gerson Miranda Teodoro (Togo Yoruba)
104
Ações Quilombolas:
Administração:
Obertal Xavier
Marcelo Luiz dos Santos / Sidnéia Pereira /
Juan Pablo Pinheiro (programação gráfica) / Comunicação:
Maurício Casimiro / Astrogildo Esteves Filho (coordenação)
Isabel Cristo Rosiane Rodrigues (assessoria de imprensa)
Vânia Lima (marketing)
Coordenação Geral:
Rute Marcicano Costa

CEAP - Centro de Articulação de Populações Marginalizadas


Rua da Lapa 200, sala 809, Centro
Rio de Janeiro, RJ – CEP 20021-180
Tel.: 2224-8530 / 2232-7077
www.portalceap.org - presidencia@portalceap.org

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