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GÊNERO, SEXUALIDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA:


QUATRO NOÇÕES ATRAVESSADAS PELA HISTÓRIA

GENDER, SEXUALITY, INEQUALITY AND DIFFERENCE:


FOUR NOTIONS CROSSED BY THE HISTORY

José D’Assunção Barros1

Recebido em: 20/09/2010


Aprovado em: 02/02/2011

RESUMO ABSTRACT

Este trabalho busca esclarecer e discutir, no âmbito This article attempts to clarify and discuss, in the
da sexualidade e da divisão entre masculino e ambit of the sexuality and sexual division between
feminino, dois conceitos fundamentais das Ciências masculine and feminine, two fundamental concepts
Humanas e, em especial, da História de Gênero. of the Human Sciences – Inequality and Difference
Trata-se de discutir as noções de Desigualdade e – in order to consider their reciprocal relations and
Diferença, de modo a considerar suas relações historicity, particularly in reference to the question
recíprocas e a historicidade de cada uma destas of the sexual differences and inequalities. The initial
expressões, particularmente no que se refere à point is the semiotic analysis of the notions of
questão das desigualdades de gênero e diferenças Equality, Inequality and Difference. The intention
sexuais. O ponto de partida é a análise semiótica das is to examine how the historicity crosses the
noções de Igualdade, Desigualdade e Diferença. A development of the relation between these four
intenção é examinar como a historicidade atravessa notions, presenting some exemplifications referring
o desenvolvimento da relação entre estas quatro to some specifically historical situations.
noções, apresentando um quadro de exemplos Keywords: Gender; Sexuality; Equality; Inequality;
pertinentes a algumas situações históricas específicas. Difference.
Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Igualdade;
Desigualdade; Diferença.

1 Igualdade, desigualdade e diferença:


relacionando três conceitos

O presente artigo tem como objetivo


principal examinar a questão de como po-
dem dialogar – concomitantemente às dis-
cussões em torno do “masculino” e do “fe-
minino” no quadro das discussões de Gê-
nero e Sexo – as noções de Igualdade, De-
sigualdade e Diferença. Discorreremos so-
1
Doutor em História Social pela Universidade Federal bre os deslocamentos que ocorrem entre as
Fluminense. Professor Adjunto da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro e Professor Colaborador do Programa de Pós-
noções de Desigualdade e Diferença no
Graduação em História Comparada da Universidade do Rio de âmbito da Sexualidade, bem como sobre a
Janeiro. Autor dos livros “O Campo da História”, “O Projeto historicidade, que dimensiona tanto as de-
de Pesquisa em História”, “Cidade e História”, “A Construção
Social da Cor” e “Teoria da História”. sigualdades como as diferenças sexuais, e,
E-mail: jose.assun@globo.com

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por fim, sobre como se relacionam, de um diferente), tem-se visto algo da ordem da
ponto de vista social e histórico, as noções essência: uma coisa ou é igual a outra (ao
de Desigualdade e Diferença no âmbito da menos em um determinado aspecto) ou
sexualidade. Para tal análise, partiremos de então dela difere. Podemos, no âmbito de
uma discussão inicial sobre o que está im- certo número de indivíduos, considerar sua
plicado inter-relacionalmente em cada um igualdade ou diferença em relação ao aspec-
destes três conceitos: Igualdade, Diferença to sexual, ao aspecto profissional, ao aspec-
e Desigualdade. to étnico etc. A oposição entre Igualdade e
Antes de mais nada, porém, convém Diferença, se quisermos colocar a questão
refletir rapidamente sobre as noções de dentro de uma perspectiva semiótica, é da
Gênero e Sexo. Temos aqui duas noções ordem dos “contrários” (de duas essências
que, em teorias e abordagens mais tradicio- que se opõem)1 .
nais, têm sido confrontadas em termos de Já o contraste entre Igualdade e Desi-
Cultura e Natureza. O Gênero, diziam os gualdade refere-se, quase sempre, não a um
primeiros estudos no âmbito da Sexualida- aspecto “essencial”, mas a uma “circunstân-
de, do ponto de vista da História e da Soci- cia” associada a uma forma de tratamento
ologia, estaria mais ligado à Cultura; e o (mesmo que esta circunstância, aparente-
Sexo, mais ligado a aspectos naturais. As- mente, se eternize no interior de determi-
sim, a mulher definida sexualmente, de nados sistemas políticos ou situações soci-
acordo com um padrão genital e ais específicas). Trata-se de dois ou mais
cromossômico específico, remeteria a uma indivíduos com igualdade ou desigualdade
noção natural; enquanto isso, a Mulher, en- em relação a algum aspecto ou direito, con-
quanto gênero inserido em relações sociais forme sejam concedidos mais privilégios ou
e sujeita, em seu desenvolvimento, à restrições a um e a outro (isto pode ocorrer
historicidade, estaria relacionada à Cultura. independentemente de serem eles iguais ou
Contra esta corrente predominante, porém, diferentes, no que se refere ao sexo, à etnia
autores de grande importância para os estu- ou à profissão). Se é verdade que as mulhe-
dos de Gênero, como Michel Foucault e res podem receber um tratamento desigual
Judith Butler, contribuíram para difundir em em relação aos homens, no que concerne às
tempos mais recentes a imprescindível no- oportunidades de trabalho (e aqui estaremos
ção de que as duas noções – Gênero e Sexo falando na desigualdade entre os sexos), é
– estão, na verdade, igualmente atravessa- também possível tratar como desigualmen-
das pela História e pela Cultura. A radical te dois homens que em nada difiram em
dicotomização sexual entre Homem e Mu- relação a alguns dos seus aspectos essenci-
lher, mesmo nos seus traços aparentemen- ais (idade, sexo, profissão, etc.). Ou seja,
te mais naturais, não seria, de modo algum, Desigualdade e Diferença não são noções
um dado natural e a-histórico. Vejamos, em necessariamente interdependentes, embo-
seguida, como o exame das relações entre ra possam conservar relações bem definidas
os conceitos de Igualdade, Desigualdade e no interior de determinados sistemas soci-
Diferença pode contribuir para este deba- ais e políticos, conforme veremos mais adi-
te. ante.
Iniciaremos nossas considerações des- Distintamente da oposição por “con-
tacando que, do ponto de vista semiótico, a trariedade” que se estabelece entre Igual-
noção de Igualdade contrasta, simultanea- dade e Diferença, a oposição entre Igualda-
mente, com duas outras noções que têm sido
suas parceiras obrigatórias no decorrer de
inúmeros processos históricos e no desen- 1
Será fundamental, para a compreensão deste ensaio e das ideias
volvimento das inúmeras sociedades até aqui apresentadas, o entendimento do sentido que estaremos
atribuindo à expressão “essências”. As essências, conforme as
hoje conhecidas. Por um lado, Igualdade entenderemos, são “modalidades de ser”, por contraste às cir-
opõe-se a Diferença, mas, por outro, con- cunstâncias enquanto “modalidades de estar” ou de “ter”. Nada
tradita-se com Desigualdade. Existe, natu- neste trabalho, quando estivermos empregando a expressão
“essências”, estará remetendo às “teorias essencialistas”. A
ralmente, uma diferença sutil envolvida expressão estará sendo empregada em um sentido filosófico de
nestes dois contrastes. Quando se conside- essências que são construídas, e não de realidades que já exis-
ra o par Igualdade x Diferença (ou igual x tem previamente à ação humana. Este aspecto ficará claro mais
adiante.

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de e Desigualdade é da ordem das “contra- os, por assim dizer). Tratar de Desigualda-
dições”. Bem entendido, as contradições são de implica nos colocarmos em um ponto de
sempre circunstanciais, enquanto os contrá- vista, em um certo patamar ou espaço de
rios opõem-se ao nível das essências. As reflexão (econômico, político, jurídico, so-
contradições são geradas no interior de um cial, etc.). Mais ainda, implica arbitrarmos
processo, têm uma história, aparecem em ou estabelecermos critérios mais ou menos
determinado momento ou determinada si- claros em de cada espaço potencial de re-
tuação, e, de resto, pode-se afirmar que os flexão.
pares contraditórios integram-se, Para resumir esta primeira aproxima-
dialeticamente, dentro dos processos que os ção, pode-se afirmar que, em geral, a Dife-
fizeram surgir. Por seu turno, os contrários rença se coloca no âmbito do Ser, enquanto
não se misturam (amor e ódio, verdade e a Desigualdade pertence inteiramente ao
mentira, igual e diferente), e, dessa forma, mundo da Circunstância. De modo a resu-
fixam muito claramente o abismo de sua mir visualmente o que foi até aqui discuti-
contrariedade. Logo veremos que essa dis- do com um esquema (ainda incompleto),
tinção entre “contrários” e “contradições” proporei um triângulo semiótico (correspon-
tem as suas implicações, embora, neste dente à metade de um quadrado semiótico
momento, isso possa soar como filigrana que será completado mais tarde). Neste tri-
semiótica. ângulo, a Igualdade relaciona-se horizontal-
Para o caso de que presentemente tra- mente com a Diferença (em uma coordena-
tamos, é preciso considerar, antes de mais da dos contrários que se refere ao plano das
nada, que as diferenças são inerentes ao essências), mas também se relaciona
mundo humano – para não mencionar o diagonalmente com a Desigualdade (em um
mundo natural. De modo geral, a ocorrên- eixo das contradições que se refere ao pla-
cia de diferenças de toda a ordem não pode no das circunstâncias). A indicação de
ser evitada através da ação humana. Vale ain- bilateralidade (uma linha com duas setas),
da dizer que a ocorrência de Diferenças no no eixo contraditório da relação entre Igual-
mundo social está atrelada à própria diver- dade e Desigualdade, indica que esses polos
sidade inerente ao conjunto dos seres hu- são autorreversíveis, ou que é possível um
manos, seja no que se refere a característi- deslocamento no eixo da Desigualdade. Já
cas pessoais (sexo, etnia, idade), seja no que para a coordenada de contrariedade relacio-
se refere a questões externas (perten- nada com os polos Igualdade e Diferença,
cimento por nascimento a esta ou àquela não há, de modo geral, reversibilidade pos-
localidade, ou cidadania vinculada a este ou sível. Trocando em miúdos, as Desigualda-
àquele país, por exemplo). des são reversíveis no sentido de que se re-
Enquanto pensar Diferenças signifi- ferem a mudanças de Estado; as Diferen-
ca se render à própria diversidade humana, ças, de um modo geral, não.
abordar a questão da Desigualdade implica
considerar a multiplicidade de espaços em
que esta pode ser avaliada. Avalia-se a De-
sigualdade no âmbito de determinados cri-
térios ou de certos espaços de critérios: ren-
das, riquezas, liberdades, acesso a serviços
ou a bens primários, capacidades. Indagar
sobre a Desigualdade significa sempre
recolocar uma nova pergunta: Desigualda- Proporemos alguns exemplos para
de de quê? Em relação a quê? Conforme foi ilustrar os aspectos relacionados às gradações
ressaltado, a Desigualdade é sempre cir- e às possibilidades de reversibilidade que
cunstancial, seja porque estará localizada afetam o eixo das Desigualdades. Conside-
historicamente dentro de um processo, seja remos o aspecto da Riqueza. Entre o homem
porque estará situada, necessariamente, em mais rico e o mais miserável (aquele que no
um determinado espaço de reflexão ou de limite extremo é desprovido de qualquer
interpretação que a especificará (um deter- bem), podemos imaginar todas as gradações
minado espaço teórico definidor de critéri- possíveis. É possível imaginar também si-

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tuações em que o homem mais rico perca outros homens (saudáveis) – é contraditado
riqueza (e até atinja a miséria), ou em que o sobretudo com ele mesmo nas circunstân-
miserável vá, gradualmente, adquirindo ri- cias em que sua saúde está em equilíbrio,
queza, até se tornar rico. A Desigualdade ou nas quais deveria, idealizadamente, es-
relativa à Riqueza admite tanto tar em equilíbrio.
reversibilidade como gradações entre os Desse modo, a Doença – que remete
seus extremos. Raciocínios análogos pode- a fatores “desigualadores”, como “insu-
riam ser feitos para a Desigualdade relativa ficiência”, “deficiência”, “enfraquecimen-
à liberdade de ir e vir. De um lado, tería- to”, “transtorno”, “crise”, “distúrbio”, “dis-
mos o homem que pode ir a todos os luga- função”, “acidente”, mas também “exces-
res (que, imaginariamente, seria aquele que so”, “elevação desmedida”2 – remonta não
detém o máximo de poder, riqueza e prestí- apenas à circunstancialidade (“estar doen-
gio), e, do outro, o homem que não pode ir te”, e não “ser doente”), como também às
a nenhum lugar (que poderia ser ilustrado gradações que podem ser entrevistas no pro-
com o exemplo de um prisioneiro na solitá- cesso de sarar ou curar a doença. Entre a cir-
ria). Entre estes limites extremos existem cunstância de “ficar doente” e a de “ficar
as gradações e as reversibilidades (o Dita- saudável”, a convalescença ou o adoe-
dor pode ser, um dia, preso, e o prisioneiro, cimento colocam inúmeras gradações que,
libertado). Os exemplos poderiam se esten- depois de percorridas, permitem, mais visi-
der ao infinito para as Desigualdades relati- velmente, passar de um estado a outro3 .
vas à liberdade de expressão, ao acesso a A Doença, por fim, contradita-se com
bens e serviços, à privação de direitos jurí- a Saúde, porque um destes termos está in-
dicos, a imposições de segregação espacial, serido no outro como possibilidade. Uma
e tantas outras situações. De igual modo, na noção não existe nem adquire visibilidade
relação entre dois indivíduos, ou mesmo na sem a outra. Dialeticamente, uma se pro-
comparação de um indivíduo consigo mes- duz no interior da outra. O organismo indi-
mo em dois momentos, inúmeras situações vidual acolhe e medeia a passagem entre a
dicotômicas mostram-se implicadas ou ins- saúde e a doença da mesma forma que, em
critas em uma relação de desigualdade, o outro âmbito, a sociedade (ou, se quisermos,
que se expressa pelo fato de que só podem o organismo social) acolhe e medeia a coe-
ser aferidas relativamente: (“forte/fraco”, xistência e as passagens entre a Riqueza e a
“instruído/ignorante”). Pobreza. Por outro lado, as condições em
Uma digressão útil caberá neste pon- que se gesta a doença também são, frequen-
to. Algumas dicotomias ou polarizações – temente, produto de desigualdades sociais
mesmo que não se refiram, necessariamen- (subnutrição, excesso de trabalho, poluição,
te, a desigualdades propriamente sociais, no má qualidade de vida). Pode-se lembrar ain-
sentido de que sejam impostas pelos siste- da que, assim como a doença produz “sin-
mas sociais, pelos desnivelamentos econô- tomas” (febre, congestão, restrição do mo-
micos, pelas implicações políticas, pelas di- vimento), a desigualdade social é denunci-
fusões ideológicas ou pelas estratificações ada por traços como marginalidade, morta-
culturais – também remetem, de alguma lidade infantil, e outros desdobramentos
maneira, ao plano circunstancial das desi- que também podem ser vistos, de certo
gualdades, ainda que, neste caso, estejamos
diante de desigualdades que costumam se
expressar na vida individual através de ori- 2
“insuficiência cardíaca”, “deficiência de insulina” (diabetes),
gens diversas, que não necessariamente so- “enfraquecimento ósseo” (osteoporose), “transtorno obsessi-
ciais. “Estar Doente” por oposição a “Estar vo”, “distúrbio de personalidade”, “disfunção erétil”, “crise
Saudável” – uma dicotomia cuja referência renal”, “acidente vascular”, mas também o excesso de peso (a
“obesidade”), a “hipertensão”, o “hipertiroidismo”.
se mostrará imprescindível para uma argu- 3
A “doença crônica” anuncia para o indivíduo que a sua doença
mentação posterior – assimila-se perfeita- tornou-se uma diferença. O indivíduo não está, mas é diabéti-
mente ao âmbito das desigualdades. Para se co ou hemofílico. A surdez ou a cegueira pode deixar de ser
vista como circunstância, para que o indivíduo seja classificado
dar visibilidade a esta circunstância, que é a como “deficiente auditivo” ou “deficiente visual”. A paralisia
Doença, o “homem doente” – embora. Cer- ou a restrição do movimento – que pode ser assimilável, em
certas situações, a uma desigualdade momentânea – pode ser
tamente. também possa ser comparado a convertida em diferença no paralítico.

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modo, como sintomas que falam aos histo- ponto, atribuindo relevância a uns e
riadores e cientistas sociais. minimizando ou ocultando outros, relacio-
Vejamos, em seguida, já exempli- nando alguns destes elementos com outros
ficando com a própria dimensão da Sexuali- ou desvinculando-os, hierarquizando-os ou
dade, como costuma se comportar a coorde- nivelando-os, concedendo-lhes direito à
nada de contrariedades relacionada às Di- expressão ou coibindo a sua exposição, co-
ferenças. brindo-os ou desnudando-os – tudo isso
pertence ao mundo da história e da cultura,
2 Sexualidades, diferença e desigualda- por mais que um determinado sistema de
de organização da sexualidade adquira a apa-
rência de eternidade e naturalidade6 .
Partiremos da divisão primária entre Mas retornemos, neste momento, à
homens e mulheres. Esta divisão, de acor- nossa base de discussão e situemo-nos den-
do com uma visão da partição sexual que tro dos limites culturais de nossa civiliza-
tem predominado na maior parte das cultu- ção. Partiremos desta divisão sexual entre
ras e civilizações até hoje conhecidas, sepa- as duas diferenças que parecem bastante
ra ao nascimento homens e mulheres de naturais a todos que foram educados neste
acordo com critérios genitais, que são de- modo de perceber o Sexo, com base no
pois confirmados por desenvolvimentos dimorfismo masculino-feminino, e que, adi-
anatômicos e que, na verdade, corres- cionalmente, é marcado por um discurso
pondem também à dicotomia cromossômica legitimado no amplo predomínio estatísti-
representada pela oposição entre os co da heterossexualidade naquilo que
cariótipos XX (mulheres) e XY (homens). concerne ao conjunto-universo dos seres
Estabelecem-se, aqui, duas modalidades humanos que vivenciam a sua sexualidade.
sexualizadas de ser. Vejamos como se comporta a Diferença en-
Por mais que esta divisão primária tre “Homem” e “Mulher”, particularmen-
baseada no dimorfismo sexual pareça tão te no que se refere à possibilidade de situá-
natural e que seja tão inegavelmente adota- las como “contrariedades” que envolvem
da pela ampla maioria das sociedades conhe- modalidades de ser, e não como
cidas (mas não necessariamente todas4 ), “contraditoriedades” que envolvem cir-
“Homem” e “Mulher” – ou como quer que cunstâncias reversíveis.
estas categorias sejam denominadas nas vá- Vimos atrás que as categorias que se
rias línguas – não são categorias a-históri- referem ao eixo da Igualdade e Desigual-
cas, como o pensamento comum habitua-se
a considerá-las5 .
Certos autores têm explorado, mais 6
A relevância que certo sistema cultural de organização da se-
xualidade atribui a certos “dados naturais” em detrimento a
criativamente, a ideia de que não é apenas outros é, aliás, outro aspecto a se considerar. Se os aspectos
o Gênero que é histórico, mas, de certo genitais aproximam a maior parte dos homens de outros ho-
modo, também o próprio Sexo, inclusive mens e a maior parte das mulheres de outras mulheres, há tam-
bém outros dados igualmente naturais que aproximam alguns
naquilo que, por vezes, nele parece perten- homens de mulheres e algumas mulheres de homens. Pesqui-
cer, francamente, à esfera da natureza. O sas desenvolvidas no ano de 2006 revelam que o hipotálamo –
modo como os homens se apropriam dos estrutura cerebral que tem muita importância para o funciona-
mento da sexualidade humana – apresenta características dife-
elementos trazidos pela natureza, este é o rentes em homossexuais e heterossexuais do mesmo sexo e,
mais ainda, que heterossexuais de um sexo e homossexuais do
sexo oposto apresentam respostas semelhantes aos feromônios
masculino e feminino, que são as substâncias cuja recepção
rege a orquestração dos desejos sexuais. Cientistas suecos teri-
4
Gilbert Herdt (1990, p. 433-446), autor ao qual voltaremos pos- am observado que “o padrão de resposta dos neurônios
teriormente, examina, em um de seus artigos, duas sociedades hipotalâmicos correlaciona-se não com o sexo do indivíduo, mas
(uma na República Dominicana e outra na Nova Guiné) que com sua preferência sexual. Assim, homens e mulheres que
desenvolveram uma divisão primária fundada em três sexos, gostam de mulheres respondem ao feromônio feminino EST;
ao invés de dois. Estas sociedades concedem visibilidade soci- já as mulheres e os homens que se sentem atraídos pelo mas-
al à sexualidade de um tipo de pseudo-hermafroditismo mas- culino têm o hipotálamo sensível ao feromônio masculino AND”
culino em que alguns indivíduos XY só desenvolvem caracteres (HERCULANO-HOUZEL, 2006, p. 50). Nesse sentido, seria
masculinos na puberdade, quando então passam a ser social- possível imaginar uma sociedade que agrupasse – com base
mente classificados em uma terceira categoria, que não é nem nestes dados que não deixam de ser naturais – os indivíduos
“homem” nem “mulher” (MACHADO, 2005, p. 12). pelo seu tipo de motivação ou preferência sexual e não de acor-
5
Sobre esta questão, ver Butler (1991, 2002 e 2003). do com as características genitais.

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dade – como “pobre/rico”, “forte/fraco”, “li- menos a considerar o já mencionado


vre/escravo” – admitem um contínuo entre dimorfismo sexual fundamental que se ba-
seus termos extremos, isto é, estados inter- seia na contraposição entre os órgãos sexu-
mediários entre o homem mais pobre e o ais e reprodutores masculino e feminino ou
homem mais rico ou entre o homem dotado mesmo nas duas alternativas cromossômicas
de mais prestígio e o menos prestigiado, que constituem, do ponto de vista da biolo-
apenas para ficar em dois exemplos. De gia, a regra matricial da sexualidade huma-
modo bem distinto, não existem na (XX e XY).
“gradações” entre Homem e Mulher, uma Para não nos imobilizarmos em tornei-
vez que estas categorias estão relacionadas os conceituais inúteis, o indivíduo homos-
a “modalidades de ser” (“essências”, para sexual, seja masculino, seja feminino, terá
utilizar a nossa nomenclatura, mas lembran- de ser aqui entendido como um homem ou
do que estaremos aqui muito longe das “te- uma mulher que apresenta suas motivações
orias essencialistas”). Ressalvadas certas sexuais voltadas para indivíduos do mesmo
especificidades que logo serão discutidas, sexo. Nos quadros históricos de nossa civi-
ou se é uma coisa, ou se é outra. Diante dos lização, não é por ser homossexual que um
critérios bem definidos que presidem em homem ou uma mulher deixa de pertencer
nossa cultura a edificação do dimorfismo biologicamente a um ou a outro destes se-
sexual, afirmar que alguém é algo “entre” xos. Assim, do ponto de vista estritamente
estas duas categorias – “Homem” e “Mu- biológico e mesmo que sejam ressaltadas
lher” – ou que determinado indivíduo é eventuais especificidades cerebrais que fa-
“quase Homem” ou “quase Mulher”, é bas- vorecem no indivíduo homossexual o inte-
tante problemático7 . Mas, obviamente, a resse erótico por seres humanos do mesmo
Intersexualidade e a Transexualidade, fe- sexo, este indivíduo homossexual continu-
nômenos que, de resto, seguem sendo ex- ará sempre sendo Homem ou Mulher.
cepcionais do ponto de vista estatístico, te- Da mesma forma, o homossexual
rão de ser analisados à parte. (masculino ou feminino) também não é, de
Também não é possível afirmar, nos nenhuma maneira, um intermediário entre
limites deste sistema, que existem o Homem e a Mulher, e não apenas porque
gradações entre o Homem Heterossexual e os homossexuais são abarcados por uma e
a Mulher Heterossexual, situando entre es- outra destas categorias. Mesmo que fixemos
tas categorias os vários casos de como ponto de apoio o Homem e Mulher
homossexualismo masculino e feminino. heterossexuais, em vista do fato de que a
Especificamente com relação ao Homosse- ampla maioria dos homens e das mulheres
xual, pode-se dizer que, em uma primeira desenvolve, naturalmente, uma atração pelo
instância, ele não se introduz nesta discus- sexo oposto, ainda assim – e a considerar
são como uma nova diferença biológica –ao aqui a homossexualidade como uma “ori-
entação sexual” que traz uma singularida-
7
Os traços de deslocamentos, criadores de nuances de desigual-
de ao indivíduo que nela se enquadra – será
dades entre as duas diferenças sexuais primárias, também po- forçoso dizer que ainda não teremos, no
dem ocorrer em diversas culturas, às vezes de maneira vaga. homossexual, uma mediação entre homem
Emergem, por vezes, as “quase diferenças”, mas que, na ver-
dade, são situações de desigualdade impostas dentro dos limi-
e mulher (heterossexuais), mas sim uma
tes do dimorfismo básico, sem transcendê-lo. Pode-se nova diferença.
exemplificar: ao empreender a análise etnográfica de uma so- Para enxergar o homossexual (de um
ciedade de camponeses berberes das montanhas da Cabília,
Pierre Bourdieu menciona – entre os dois modelos básicos de
e de outro sexo) como categorias exteriores,
crianças educadas para a virilidade ou para a feminilidade – o mas mediadoras entre as categorias Homem
caso dos “filhos de viúvas”. Trata-se de meninos órfãos de pai, e Mulher (neste caso, atribuindo ao
educados sem a presença do genitor masculino na fase mais
importante de ocorrência dos rituais que impõem a assimilação heterossexualismo a força de um padrão
dos padrões de virilidade nesta cultura. Assim nos relata polarizador), seria preciso elaborar um es-
Bourdieu: “Em oposição aos que são chamados por vezes na pectro contínuo, no qual os indivíduos pos-
Cabília de ‘filhos dos homens’, cuja educação compete a vários
homens, os ‘filhos de viúva’ são vistos com suspeição de terem suíssem mais ou menos de alguma qualida-
escapado ao trabalho de todos os instantes que é necessário de que os aproximasse disto que se está
evitar para que os meninos se tornem mulheres e de terem entendendo por homem ou mulher. Desde
sido abandonados à ação feminilizante da própria mãe”
(BOURDIEU, 2005, p. 36). já, isso se coloca como um problema por-

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que, se o sexo masculino ou o feminino são, umas das outras como “modalidades de ser”,
tradicionalmente, definidos pelos marca- e não como pontos focais de um espectro de-
dores genital e cromossômico, a verdade é sigual e hierarquizado de variações8 .
que, do ponto de vista destes marcadores,
homossexuais são tão homens ou mulheres 3 Diferenças sexuais para além do
quanto os homens e as mulheres heterosse- dimorfismo tradicional
xuais (e, obviamente, se quisermos compli-
car ainda mais, como também os bissexuais). As situações relacionadas ao
Rigorosamente falando, ninguém é transgenderismo e também a ambiguidades
mais Homem ou mais Mulher que um se- corporais diversas podem ajudar a iluminar
melhante seu. Biologicamente, ou se é uma o que até aqui foi considerado a respeito das
coisa ou se é a outra, a ressalvar casos ex- diferenças sexuais. Para começar, será im-
cepcionais, como o hermafroditismo e al- portante que se entenda que casos como o
guns transgêneros, que podem trazer algu- do hermafroditismo (ou da intersexua-
ma polêmica. Culturalmente, mesmo que lidade) – em que existe uma ambiguidade
devam ser necessariamente admitidas algu- corporal, que pode se apresentar sob a for-
mas outras categorias, tampouco se poderá ma de presença simultânea de genitais mas-
dizer que um homem é mais homossexual que culino e feminino – devem ser entendidos
outro ou que uma mulher é mais lésbica que como exemplos de duas essências que se
outra. Da perspectiva de que o que está em superpõem (o masculino e o feminino), pro-
jogo aqui é o objeto de desejo sexual de cada duzindo, na verdade, uma nova essência.
indivíduo, uma mulher será considerada lés- O intersexual, que consiste na situa-
bica, bissexual ou heterossexual. ção em que, mais facilmente, poder-se-ia
Acima de tudo, uma mulher não pode pensar em algo que está “entre” os dois se-
ser mais mulher que outra; quando muito, xos tradicionais, na verdade também cons-
pode-se dizer que tal ou qual mulher pos- titui uma nova diferença. É certo, também,
sui mais feminilidade com relação a deter- que se inscreve em uma arena para inevitá-
minado padrão vigente e culturalmente veis polêmicas a decisão de considerar o
construído. De maneira análoga, não se pode intersexual como “diferença” que pode ser
dizer que alguém é mais cristão ou mais conservada, se este for o desejo do indiví-
muçulmano que seu semelhante; o que se duo em questão ou da família do recém-nas-
pode dizer é que alguém possui mais devo-
ção religiosa no âmbito do islamismo ou do
cristianismo, que cumpre, mais rigorosa- 8
Alguns modelos de percepção da sexualidade humana, como
mente, os preceitos da religião etc. De igual um continuum, ajudaram, a seu tempo, a construir a história
maneira, as cidadanias nacionais não permi- das teorias sobre o sexo. Mas mesmo nestes casos, hoje pouco
sustentáveis, sempre se falou de um continuum de diferenças
tem que se diga que alguém é mais russo e não de um continuum de desigualdades. Vale lembrar a teo-
ou brasileiro que outro, embora alguém pos- ria sobre a sexualidade, proposta em meados do século XX pelo
sa postular que um indivíduo apresenta mais sexólogo alemão Harry Benjamin (que aliás foi o difusor, em
1953, do conceito de “transexualidade”). Benjamim (1885-1986)
“brasilidade” que outro, o que, em todo o imaginava o sexo como uma complexa montagem envolvendo
caso, iria gerar alguma controvérsia. De qual- múltiplos componentes (sexos cromossômico, genital,
anatômico, psicológico, legal etc.). A partir daí, imaginava uma
quer modo, este é o padrão das ”diferen- espécie de continuum entre os polos idealizados “Homem” e
ças”: o registro de uma “singularidade” – “Mulher”, considerando que, através deste continuum, cada
indivíduo vai se definindo “pela importância quantitativa dos
ou uma questão de “ser” ou “não ser”, para fatores masculinos ou femininos encontrados no sortimento dos
recolocar a questão de uma outra forma. diversos ‘sexos’ que o compunham” (FRIGNET, 2002, p. 85).
Para fecho de sua construção teórica, Benjamim elaborou uma
Em suma, tal como ocorre com os de- “Escala de Orientação Sexual”, no interior da qual podiam se
mais tipos de diferenças, as diferenças sexu- expressar diversos conflitos entre os vários sexos fatoriais. Um
dos conflitos mais radicais emergente do confronto entre os
ais (biológicas ou culturais) distinguem-se diferentes quantitativos sexuais inerentes ao mesmo indivíduo
seria o transexualismo, no qual se contrariam o cérebro típico
de um sexo e a estrutura corpórea típica de outro (BENJA-
MIN, 1968).

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54 JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

cido, ou então a decisão de enquadrá-lo, transexualismo abarca casos de indivíduos


medicamente, como “desigualdade” que que, psicologicamente, sentem-se perten-
deve, necessariamente, ser corrigida, em centes a um sexo ou que possuem um cére-
favor de um ou outro dos sexos tradicionais. bro francamente enquadrável neste sexo do
Mal encaminhada, uma questão como esta ponto de vista morfológico, mas que nasce-
ram ou pensam ter nascido com o corpo per-
pode conduzir a transtornos e problemas
tinente ao outro sexo, o que, por vezes, os
psicológicos profundos, e é notório o caso leva a buscar corrigir, através de uma cirur-
histórico de Abel Barbin (Adelaida gia de mudança de sexo, aquilo que consi-
Herculine Barbin) – hermafrodita francesa deram um “erro da natureza”.
do século XIX que, classificada, inicialmen- A “disforia de gênero”, fenômeno da
te, como pertencente ao sexo feminino, foi, sexualidade humana que pode levar ao que
posteriormente, reclassificada como perten- se entende como transexualismo,
cente ao sexo masculino, terminando por corresponde, portanto, aos indivíduos que
cometer o suicídio, em 1868. Tendo escrito possuem ou se veem como possuindo um
um diário durante sua vida, sua história tor- cérebro feminino dentro de um corpo mas-
nou-se amplamente conhecida depois que culino (MTF), ou, inversamente, um cére-
este foi publicado por Michel Foucault – bro masculino em corpo feminino (FTM).
Diríamos aqui que, para o sistema conceitual
que aliás sempre foi um autor extremamen-
que movimentamos, estaríamos, neste caso,
te preocupado em dar voz às diferenças9 .
diante de um conflito dolorosamente
Se os hermafroditas ou intersexuais
vivenciado pelo indivíduo perante a simul-
colocam um problema um pouco mais difí-
taneidade entre duas diferenças12 .
cil para o novelo das desigualdades e dife-
Em âmbito bem diverso de conside-
renças sexuais, já os indivíduos bigendered
rações, poderiam ser citados casos como o
se apresentam, mais claramente, como pes-
das drag queens, que são homens que sen-
soas que alternam os dois gêneros clássicos
tem a necessidade imperiosa de investirem
– dispondo-se a viver os papéis de homem
publicamente em uma visualidade e em um
e mulher alternadamente - há indivíduos
comportamento andrógino, ou das flame
que vivem semanas em cada gênero, e ou-
queens, que são aquelas que se apresentam
tros que sentem a necessidade imperiosa de
como “parcialmente travestidas”13 . Ao con-
viver em um dos dois gêneros clássicos ape-
trário do que ocorre com o transexualismo,
nas por algumas horas. Neste caso, o que
a superposição de diferenças nas drag
ocorre é a prática de uma alternância de duas
queens e flame queens não parece ser
essências no mesmo indivíduo, em momen-
tos distintos. Os bigendered, poder-se-ia
dizer, deslocam-se entre duas diferenças 12
Na terminologia sexológica, a letra “T” tem sido utilizada para
sexuais. Sua identidade inscreve-se neste indicar o transgenderismo. MTF corresponde ao indivíduo que,
movimento, ela é este mesmo movimento. em virtude dos marcadores cromossômico e genital, foi identi-
ficado, no nascimento, como pertencente ao gênero masculi-
Situação distinta pode ser exem- no, mas que atravessa este gênero em direção ao feminino (o
plificada com o transexualismo (disforia gênero alvo). O inverso ocorre com relação aos indivíduos FTM.
neurodiscordante de gênero, como muitos O transexual, portanto, é o indivíduo que está “em transição”
ou que se transicionou para um papel social do gênero oposto,
preferem tratar10 ). Expresso através de in- em muitos casos, redesignando o seu corpo. A busca do
tenso sentimento de não-pertença ao seu transexual, portanto, vai ao encontro do seu cérebro, contrari-
ando o restante do seu corpo. O conceito de “transexualismo”
sexo anatômico11 e, a nosso ver, caracteriza- consolida-se em 1953, após a primeira experiência de interven-
do pela ocorrência de duas essências que se ção cirúrgica visando à mudança de sexo (1952), o que deu
contrariam dolorosamente no mesmo ser, o 13
visibilidade pública aos casos de “disforia de gênero”.
DUBERMAN, 1993. A utilização do termo “travesti”, criado
originalmente em 1910 pelo sexólogo Magnus Hirschfeld
(1991), já traz consigo algumas complexidades adicionais. Nes-
ta acepção primeira, o conceito estaria relacionado a indivídu-
9
FOUCAULT, 1981. É significativo, aliás, o título escolhido por os que obtém prazer sexual ao utilizar trajes típicos do sexo
Foucault para o prefácio que introduz o livro de Barbin: “Pre- oposto e isto independente da orientação sexual do indivíduo,
cisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”. que não seria, necessariamente, homossexual. Posteriormente,
10
FISK, 1973. com a prática da prostituição homossexual ou bissexual por parte
11
CASTEL, 2001, p. 77. O fenômeno também pode ser coloca- de indivíduos do sexo masculino travestidos de mulher, “tra-
do em termos de uma incoerência entre sexo e gênero. Ver vesti” passou, no âmbito popular, a designar este tipo de pro-
ARAN (2006). fissional do sexo.

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GÊNERO, SEXUALIDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA: QUATRO NOÇÕES ATRAVESSADAS PELA HISTÓRIA 55

vivenciada dolorosamente, passando longe apenas os polos clássicos “Homem” e “Mu-


de qualquer desejo de uma operação cirúr- lher” (heterossexuais) – é deixar de consi-
gica que elimine esta simultaneidade. Ao derar as demais realidades sexuais como
contrário disso, as drag queens ostentam, meros desvios ou aberrações que se afastam
alegremente, e, por vezes de modo caricato, ou que se confundem em uma linha única
esta superposição de diferenças14 . que se estende entre aqueles dois polos clás-
Sobre a distinção entre o homos- sicos que seriam os únicos legítimos. Quan-
sexualismo15 e o transgenderismo, impor- do se fala em contradições (em circunstân-
tante de ser pontuada, é interessante se ter cias), passa-se a ideia de algo que pode ou
em vista que o homossexualismo tende a deve ser superado; quando se fala em es-
ser definido, nos dias de hoje, como uma sências, estamos já no âmbito de diferenças
“orientação” relativa ao campo de preferên- que se afirmam com o mesmo grau de legi-
cias ou atrações sexuais que afetam uma timidade. As desigualdades sexuais (as dis-
pessoa (no caso, a atração pelo mesmo sexo), criminações contra a mulher ou contra cer-
ao passo que o transgenderismo – nas suas tas formas de expressão sexual) situam-se
várias formas já mencionadas – refere-se a no plano das contradições e, nesse sentido,
uma questão de identidade autor- podem e devem ser superadas; mas as dife-
referenciada, àquilo que o indivíduo sente renças sexuais teriam o direito de serem afir-
que é ou às imprecisões que caracterizam a madas, se este for o interesse dos indivídu-
sua autopercepção, aos papéis sociais os a elas relacionados.
sexualizados que pretende desempenhar ou A história da afirmação das diferentes
à imagem que estes indivíduos constroem formas de expressão sexual, bem como de
de si mesmos através do comportamento, da sua repressão médica, legal e pedagógica, é
visualidade ou do vestuário. Nada impede, constituída de ambíguos episódios de uma
obviamente, que estas duas categorias mais luta que se dá em torno do deslocamento
amplas – o homossexualismo e o das diferenças sexuais para o âmbito das
transgenderismo – se imbriquem em indi- desigualdades sociais e vice-versa. Sigmund
víduos específicos, o que também não ocor- Freud, nos seus Três ensaios sobre uma te-
re necessariamente16 . oria sexual17 , escritos em 1905, deu um pas-
O que é importante de se ter em vista so importante para uma compreensão me-
é que, em todos estes casos, e em diversas nos estreita da sexualidade humana, ao re-
outras expressões ligadas à sexualidade que conhecer, contra toda a teoria de sua época,
poderiam ser consideradas, estaremos sem- a presença da sexualidade na infância (para
pre diante de diferenças que se dão nos vá- Freud, a criança é, nos seus primeiros anos,
rios âmbitos relativos à sexualidade e não um “perverso polimorfo”, capaz de se satis-
de posições contraditórias inseridas em um fazer de múltiplas maneiras). Contudo, tam-
continuum numa escala. Restituir ou insti- bém nestas primeiras publicações, Freud
tuir para estas diferenças sexuais o estatuto considera que a “perversão” adulta seria
de essências que se contrariam – e não de ocasionada por uma “detenção do desen-
realidades desiguais que se contraditam no volvimento”, que imobilizaria o indivíduo
interior de um continuum que legitimaria nestas primeiras formas de satisfação. Está
implícita aqui a ideia de um “desenvolvi-
mento normal”, de uma normalidade sexu-
al que deveria ser atingida. Se aplicarmos
14
Vale lembrar que, para o caso do transformismo, considerado este episódio da história da teoria sexual ao
uma profissão, não teríamos, necessariamente, sintonia com mo-
dalidades como o drag queenismo e, muito menos, com o
quadro conceitual que aqui estamos desen-
homossexualismo. Um ator que tenha orientação inteiramente volvendo, poderemos afirmar que as “dife-
heterossexual e que, na sua vida cotidiana, não esteja sintoni- renças sexuais” passam aqui (ou continuam
zado com nenhuma das variações acima descritas, pode prati-
car profissionalmente o transformismo, sem nenhuma reper- aqui) a serem associadas a “desenvolvimen-
cussão para sua sexualidade. tos desiguais”, em referência a um certo
15
O conceito é introduzido em 1869 pelo médico húngaro Karoly padrão de normalidade que, certamente, não
Benkert.
16
Sobre Diferenças Sexuais e um panorama de suas abordagens
na teoria psicanalítica, ver o ensaio de Ethel Person e Lionel
Ovesey intitulado “Teorias psicanalíticas da identidade de gê-
17
nero” (CECCARELLI, 1999). FREUD, 1998.

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56 JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

é mais que um constructo sociocultural que por se afirmar, enfaticamente, nos planos
se faz acompanhar de um vocabulário espe- jurídico e médico18 .
cífico para designar tudo aquilo que fica fora Também no que se refere ao âmbito
do desenvolvimento considerado normal. da história das teorias sobre a sexualidade,
Com “perversões” e “desvios”, afirma-se podemos entender, concomitantemente, as
aqui um vocabulário da exclusão; a diferen- proposições do sociólogo americano Gilbert
ça faz-se desigualdade, torna-se legítimo Herdt, nos anos 1980, como um lance a mais
reprimi-la e útil corrigi-la. nesta luta de representações. Colocando-se
Cada diferença sexual, antes vista criticamente em relação às referências que
como desviante, trava o seu combate parti- se faziam ao homossexualismo como “do-
cular nesta complexa guerra de representa- ença”, “desvio” ou “perversão” (como algo
ções. A trajetória do homossexualismo, per- da ordem da desigualdade, portanto), Herdt
correndo, na história de sua recepção, teve a ideia de trazer para os estudos da se-
nuances que vão do “pecado” e do “crime” xualidade o conceito de um Terceiro Sexo
à “doença” e ao “estilo de comportamen- ou de um Terceiro Gênero19 . Essa solução,
to”, revela uma tenaz luta de representações diga-se de passagem, também abriria a pos-
que, entre avanços e recuos, parece condu- sibilidade de se falar em um quarto, quinto,
zir à sua afirmação como Diferença, e não sexto sexo etc., à medida que se queira afir-
como Desigualdade (desvio, perversão, do- mar, de modo mais enfático, um estatuto de
ença, crime, pecado). As últimas décadas do diferença (e não de desvio, de insuficiên-
século XX trazem, nos meios médicos e le- cia, de desigualdade) a outras variações e
gais de países ocidentais, os resultados mais orientações sexuais.
claros desta afirmação da Diferença. Assim, A intenção de Herdt era, precisamen-
em 1991, a Organização Mundial de Saúde, te, a de questionar a ideia de um inevitável
através da 10ª edição da Classificação Inter- dimorfismo sexual, o que estaria implicado
nacional de Doenças (CID 10), abandona- em sistemas que meramente se baseassem
ria, definitivamente, qualquer consideração na consideração dos genitais. Mas é impor-
do homossexualismo como doença mental. tante ressaltar que, para Herdt, a constru-
Enquanto isso, também para o Manual de ção de uma terceira categoria para o sexo
Diagnóstico e Estatística (DSM III), a ho- era mesmo assumida como uma estratégia
mossexualidade já não seria mais indicada conceitual que visava ultrapassar a
como perversão, passando a ser definida dicotomia entre o masculino e o feminino
como “estilo de comportamento”. absolutos. Seu ponto de partida foi o de
No Brasil, desde 1985, o Conselho mostrar que as várias culturas do planeta não
Federal de Medicina já não qualifica o fundamentavam, necessariamente, as suas
homossexualismo como desvio sexual e, em percepções da sexualidade a partir das mes-
março de 1999, o Conselho Federal de Psi- mas classificações anatômicas e biológicas
cologia coloca a si mesmo a necessidade de – e aqui entram as já mencionadas análises
redigir uma resolução amparada no reconhe- de Herdt sobre sociedades da Nova Guiné
cimento de que a homossexualidade não e República Dominicana, que praticavam
constitui doença, distúrbio ou perversão, de uma partição ternária do sexo. Não era sua
modo que a atuação dos psicólogos frente a intenção, na verdade, “essencializar” em
esta orientação sexual não deveria se pautar termos absolutos a proposta categoria do
pela ideia de que o paciente homossexual “terceiro sexo”, uma vez que a considerava
seria portador de patologia. Considerar o
homossexualismo como uma doença que
deveria ser tratada ou uma espécie de desi- 18
Com relação à avaliação do homossexualismo como “estilo de
comportamento”, deve-se atentar, ainda, para o uso adjetivado
gualdade a ser corrigida é, nesse sentido, de homossexual, como indicativo de um “comportamento ho-
desaconselhado. Oficialmente descolada mossexual”, em oposição a um “comportamento heterossexu-
dos estigmas históricos de criminalidade ou al”, registrando-se que um mesmo indivíduo pode apresentar
comportamentos heterossexuais e homossexuais no decurso de
doença, a Diferença homossexual termina sua vida.
19
HERDT, 1994. É importante lembrar, ainda, que a expressão
“terceiro sexo” já havia aparecido em textos de ativistas gays,
como Karl Heinrich Ulrichs (1825-1895) e Magnus Hirschfeld
(1868-1935).

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GÊNERO, SEXUALIDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA: QUATRO NOÇÕES ATRAVESSADAS PELA HISTÓRIA 57

uma construção histórico-cultural20 . Instituir 4 As diferenças são essências


o homossexualismo, mais claramente, como construídas (e em construção)
Diferença e, portando, combater o seu tra-
tamento desigual era o seu alvo último. O Registraremos, em função do que até
conceito por ele inventado constituía ape- aqui se discorreu, que as Desigualdades re-
nas o arco e a seta utilizados para atingir este lacionam-se, mais frequentemente, ao Es-
alvo. tar ou mesmo ao Ter (pode-se “ter” mais
O importante, para a presente discus- riqueza, mais liberdade, mais direitos polí-
são, é que a criação de uma categoria como ticos), enquanto as Diferenças relacionam-
a do “terceiro sexo” desponta, neste caso, se, mais habitualmente, ao Ser (“ser negro”,
como uma hábil estratégia para impor o re- “ser brasileiro”, “ser mulher”). Pertencer
conhecimento social de uma diferença. Da (beneficiar-se ou sofrer de um sentimento
mesma forma, o reconhecimento da homos- de pertença a algo), é, por outro lado, o ver-
sexualidade como “orientação sexual” foi, bo limítrofe, ora referido a desigualdades,
a seu tempo, outro lance nesta luta de re- ora a diferenças. Pode-se pertencer a uma
presentações. Se a orientação homossexual etnia, nacionalidade, religião ou a um dos
é regida ou tem a sua recorrência facilitada sexos, e, neste caso, “pertencer” assinala
por predisposições genéticas ou não, con- uma diferença; mas pode-se pertencer a um
forme tem sido investigado em pesquisas clube fechado ou a uma classe econômica
mais recentes, estes são novos eventos nes- ou política para a qual adquiriu os elemen-
te mesmo embate. De qualquer maneira, a tos que regem a possibilidade de inclusão
afirmação da homossexualidade feminina ou no novo grupo. Aqui, certamente, estaremos
masculina como Diferenças, ambas situadas falando de um “pertencer” que se refere às
no mesmo nível das heterossexualidades desigualdades, e não às diferenças, e tão rá-
masculina e feminina e reivindicando os pida ou demoradamente como adentramos
mesmos direitos (ou seja, rejeitando a De- o novo grupo instituidor de privilégios e
sigualdade), desponta como tendência nas obrigações, também poderemos ser expeli-
sociedades ocidentais contemporâneas. Não dos ou deslizar para fora dele.
importa, para a nossa discussão, se o O requisito para prosseguirmos, a par-
homossexualismo deve sintonizar-se com a tir dos exemplos até aqui examinados e de
ideia de um “terceiro sexo”, como aventou outros, é que fique claro que as diferenças
Herdt, ou se falaremos em indivíduos do são “essências construídas” (e em constru-
sexo masculino ou feminino com orienta- ção). Mesmo que uma determinada diferen-
ção homossexual. Em ambos os casos, as sin- ça possua um núcleo aparentemente forma-
gularidades do homossexual masculino e da do por elementos naturais (uma cor, um
homossexual feminina anunciam-se como sexo, uma faixa etária), tudo o que se elabo-
diferenças (“essências”, isto é “modalida- ra socialmente em torno e que passa a ser
des de ser”, e não “circunstâncias” repre- vivido, individualmente, por cada um (mui-
sentativas de aspectos relacionados a desi- tas vezes como se fosse “natural”) é, inevi-
gualdades)21 . tavelmente, uma construção. “Ser mulher”
ou “ser velho” (como “ser brasileiro” ou “ser
cristão”) é algo que se aprende e que muda
historicamente.
“Ser mulher” hoje, no Ocidente do
mundo capitalista, significa algo distinto de
20
MACHADO, 2005, p. 259.
“ser mulher” na Antiguidade, embora pos-
21
Para além do surgimento de propostas como a de Herdt ou de samos encontrar também elementos de lon-
reposicionamentos nas Associações Médicas com vistas a con- ga duração; também há variações pequenas
siderar o homossexualismo como orientação sexual ou estilo de
vida, estes mesmos anos 1980 constituem, efetivamente, um
ou distinções mais ou menos fortes em re-
momento de virada, para a afirmação das diferenças sexuais. lação a ser mulher em outras sociedades
Vale lembrar o surgimento, nesta década, do Queer Studies, contemporâneas. De qualquer forma, em
movimento acadêmico surgido nas universidades americanas
buscando inserir as discussões sobre as minorias sexuais, orien- todas as épocas, a experiência de se tornar
tações sexuais e identidades de gênero em um espaço definido mulher, de ser percebida como mulher – e
de saber. Ver JAGOSE (1997), LAURETIS (1991) e RUBIN
(1989).

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58 JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

de se identificar como mulher – implica cutar certos movimentos ou imponha cer-


muito mais que uma definição genital e uma tas restrições corporais, determinadas limi-
sinalização cromossômica. Aprende-se, sem tações ou determinados cuidados. A cada
o saber, uma certa maneira de andar, da faixa etária, uma cultura pode atribuir um
mesma maneira que se aprende uma certa conjunto específico de responsabilidades e
postura corporal, um modo específico de irresponsabilidades e as disposições psico-
manter-se em pé, um repertório de lógicas decorrentes das mesmas. Aprende-
entonações, um gestual que cada cultura se isto sem se perceber. O indivíduo é edu-
destinou a este ou àquele sexo, bem como cado diuturnamente para se enquadrar na
uma capacidade específica de identificar, sua diferença, na essência que a ele
com alguma clareza, os espaços franquea- corresponde naquele momento, e, no caso
dos e interditos do discurso para cada um. da variação das faixas etárias, para ultrapas-
A própria roupa e os artefatos que se sar cada compartimento diferencial na épo-
disponibilizam para este ou aquele sexo o ca adequada. Pode-se criar certa forma de
introduz em um mundo de liberdades e res- comunicação voltada para as crianças – um
trições. tatibitate infantilizado, por exemplo – que
Esse padrão, ou um certo repertório pode contribuir para retardar ou orientar o
de modelos, é aprendido; e a arte e as técni- seu desenvolvimento em direção às expec-
cas para transgredi-lo – com parcial ou ple- tativas que a sociedade constrói em torno
na consciência das repercussões possíveis – do que acredita que deva ser uma criança.
também farão parte deste aprendizado. O Da mesma forma, ao idoso, sopesadas as res-
repertório de modelos e transgressões ofe- trições pertinentes à sua condição social,
recido pela sociedade para a diferença se- algo mais se permite que não ao homem
xual feminina, obviamente, irá entrecruzar- maduro, ao mesmo tempo em que, em ou-
se, de modo complexo, com inúmeros fato- tra ponta, são fechados os seus caminhos.
res e dialogar com outras diferenças e tam- Aprende-se a ser idoso como se aprende a
bém com certas desigualdades. A combina- ser criança, e aprende-se a ser idoso ou cri-
ção com uma religião específica, uma naci- ança de um sexo ou outro.
onalidade, uma etnia, a faixa etária, mas tam- Às diferenças de cada tipo –que afe-
bém com a classe socioeconômica e com cir- tam um ser humano como indivíduo ou
cunstâncias familiares específicas, no plano como membro de um grupo social – são afei-
das desigualdades, orientará cada mulher tos também certos tipos de desigualdades.
concreta a escolher, consciente ou incons- Às diferenças de sexo podem se juntar as
cientemente, os seus caminhos dentro do desigualdades de sexo; às diferenças etárias
repertório franqueado à sua diferença podem-se juntar os preconceitos contra o
sexual. jovem ou contra o idoso. Ao indivíduo iden-
Da materialidade do vestuário e dos tificado ou autoidentificado como “negro”,
objetos pertinentes a cada sexo ao imaginá- um determinado sistema de dominação eco-
rio a que este sexo estará associado ou, tam- nômica e política que favorece o “branco”
bém, aos padrões de comportamento a se- poderá interpor pesadas restrições e precon-
rem sutilmente aprendidos pelos indivídu- ceitos, explícitos ou silenciosos.
os – este repertório em que será possível Este novelo, que termina por concre-
fazer algumas escolhas, é certo, mas que ain- tizar um emaranhado de desigualdades e
da assim é um repertório –, tudo conspira diferenças, nem sempre é fácil de ser exa-
para construir uma determinada essência minado. De qualquer forma, a compreen-
(uma certa modalidade de ser) em torno do são das distinções entre Desigualdade e
núcleo primário de fatores em que se fun- Diferença, no âmbito dos aspectos que fo-
dou cada um dos sexos ou mesmo em torno ram discutidos até aqui, é certamente im-
de cada uma das formas de sexualidade em prescindível para que se possa perceber
particular. adequadamente como estas duas noções
Aprende-se também a ser criança, jo- têm se relacionado entre si no âmbito social.
vem, um homem maduro, ou um velho, e
não apenas porque a natureza permita ou
impeça, a cada uma das faixas etárias, exe-

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 23, n. 02, jul/dez 2010, p. 47-66


GÊNERO, SEXUALIDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA: QUATRO NOÇÕES ATRAVESSADAS PELA HISTÓRIA 59

5 Deslocamentos entre a desigualdade xuais, situação por demais evidente, basta


e a diferença: a questão da sexualidade citar, neste momento, os igualmente notó-
rios e conhecidos exemplos de desigualda-
Até aqui nos concentramos nas rela- de imposta à mulher nas diversas socieda-
ções entre Igualdade e Diferença e entre des conhecidas. A questão que estudaremos
Igualdade e Desigualdade. Já a relação en- em seguida, particularmente interessante,
tre Desigualdade e Diferença é um capítu- refere-se aos deslocamentos que se dão en-
lo bastante complexo na história das socie- tre os âmbitos da Desigualdade e da Dife-
dades humanas. Uma sociedade pode assu- rença com propósitos de dominação.
mir – concreta ou imaginariamente – um Aqui nos referiremos à possibilidade
determinado tipo de conexão entre diferen- de que uma determinada “contradição” re-
ça e desigualdade (ou entre alguns tipos de lacionada com Desigualdade passe a ser lida,
diferenças e a desigualdade social ou políti- socialmente, como “contrariedade” relaci-
ca). onada com Diferenças. Antes de adentramos
Nas democracias modernas desenvol- a questão da imposição histórica de desigual-
ve-se o imaginário (nem sempre correspon- dades sociais à diferença feminina – ou
dente às situações concretas e efetivas) de mesmo das falsificações históricas da singu-
que certas diferenças não devem gerar de- laridade feminina como desigualdade, e não
sigualdade. Neste caso, considera-se que como diferença – lembraremos outra ques-
devem ser tratadas com igualdade as dife- tão histórica importante, que foi a da oposi-
renças de cor, sexo ou religião. Nem sem- ção entre Liberdade e Escravidão. Natural-
pre foi assim e ainda não é assim em diver- mente que, se considerarmos que a Escra-
sas sociedades que afirmam, concreta e ima- vidão é a privação de Liberdade, deveremos,
ginariamente, o vínculo entre a desigualda- de imediato, localizar este par de contradi-
de social e as diferenças deste tipo. São no- tórios no eixo circunstancial da Desigualda-
tórios os exemplos medievais de segrega- de. O Escravo é aquele que perdeu a Li-
ção espacial de certos grupos religiosos em berdade. A escravidão e a condição de ho-
bairros específicos, e não está longe no tem- mem livre constituem, cada qual, um “es-
po o exemplo do Apartheid , que tado”, uma circunstância (estas duas noções
correspondeu à bem conhecida política de interagem reciprocamente como contradi-
segregação étnica oficializada na África do ções, e não como diferenças). A
Sul NO período de 1948 a 199022 . Nestes estratificação social no Brasil Colonial, que
casos, a conexão entre Diferença e Desigual- aqui apenas evocamos como um exemplo
dade implica também Exclusão ou Segre- rápido, fundou-se, precisamente, no deslo-
gação, outras noções que colaboram na mes- camento imaginário da noção desigualadora
ma rede de significados. “Discriminar” re- de Escravo para uma coordenada de contrá-
mete também ao cultivo daquilo que pode- rios fundada sob a perspectiva da Diferen-
mos conceituar como “preconceito” – um ça entre homens livres e escravos. Nesta
“conjunto de atitudes que provocam, favo- nova perspectiva, um indivíduo não está
recem ou justificam medidas de discrimi- escravo, ele é escravo.
nação”23 . Outros deslocamentos que se dão en-
As diferenças sexuais, na história das tre o eixo circunstancial das Desigualdades
várias sociedades conhecidas, estiveram, fre- e a coordenada essencial das Diferenças são
quentemente, emaranhadas com desigual- bastante recorrentes no período moderno,
dades sexuais. Tratando-se das minorias se- envolvendo diversos outros contextos, para
além da questão da Escravidão. A noção de
Nobreza, seja no período antigo, seja no iní-
cio do período medieval, foi gerada a partir
de certas circunstâncias de desigualdade li-
22
A palavra “apartheid” significava, literalmente, “separação”, gadas ao acesso a terra e à posse de armas.
então considerada em relação à divisão estabelecida para o co-
mando político do país entre a minoria branca e um amplo se-
No decorrer de um complexo processo his-
tor de excluídos, formado pela maioria racial dos negros e pelas tórico, a oposição do par contraditório “no-
minorias mestiças e asiáticas. Sobre o Apartheid, ver o ensaio bre/não-nobre” foi deslocada para uma co-
de Marianne CORNEVIN (1979).
23
ROSE, 1972, p. 162.
ordenada de contrariedades em que “nobre”

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60 JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

passou a ser designativo de uma essência. 6 Mulher: da incompletude medieval às


Nascia-se “nobre” (embora esta ideia tenha lutas pela plenitude
de ter convivido com a ideia antagônica de
que “faziam-se nobres”, sobretudo a partir Na filosofia da Idade Média, teve bas-
das mãos do rei). tante recorrência a ideia de que a Mulher
É sintomático que, no preâmbulo dos era um Homem incompleto (assim como a
movimentos sociais contra os privilégios de que a Criança é um adulto incipiente).
aristocráticos, já no período de Percebe-se aqui, desde já, que uma Dife-
questionamento do Antigo Regime que se rença sexual natural bastante evidente (nos
deu na Europa Moderna, os filósofos limites da própria cultura em que se apoia)
iluministas tenham se esforçado por elabo- é relida como uma Desigualdade na origem.
rar uma nova leitura da noção de Nobreza, A ideia de que a mulher é um “homem
reencaminhando-a do eixo essencial das inacabado” (um “mas occasionatus”) é, na
Diferenças ao eixo circunstancial da Desi- verdade, uma herança aristotélica que se
gualdade. O circunstancial, conforme vimos, estendeu e ganhou força no período medi-
é mais maleável à ação humana e está, por eval, particularmente com o pensamento de
isso, mais claramente sujeito à história. De São Tomás de Aquino24 . Assim, esse “mas
igual modo, o movimento revolucionário só occasionatus” que seria a mulher era aqui
pôde remover o monarca de sua posição visto como mero receptáculo passivo para a
absolutista quando desconstruiu o seu mis- força generativa única do varão, acrescen-
terioso halo de Diferença, regrado a direito tando ainda São Tomás de Aquino que “a
divino, e passou a ler a figura régia como a mulher necessita do homem não somente
de um agente instaurador de desigualdade, para engendrar, como fazem os animais, se-
um tirano! Não é possível cortar a cabeça não também para governar, porquanto o
de um rei diferenciado de todos os homens homem é mais perfeito por sua razão e mais
pelo próprio Criador, mas, facilmente, de- forte por sua virtude”25 .
capita-se um tirano que fora alçado ao po- As propostas de Tomás de Aquino
der por mecanismos de desigualdade inven- (1227-1274 d.C.) para o entendimento da
tados pelos próprios homens. Destituído da sexualidade humana e para uma argumen-
Diferença e declarada a sua Desigualdade, tação acerca da existência de uma distinção
o rei facilmente perde a cabeça. hierárquica entre os dois gêneros vinham,
Enfim, diversos exemplos históricos como se disse, de longínquas fontes clássi-
mostram-nos as profundas implicações que cas e remetiam a uma bem ajustada combi-
se escondem na leitura das Desigualdades nação entre o modelo da “ordem dos seres”,
como Diferenças ou das Diferenças como proposto pelo filósofo grego Aristóteles
Desigualdades. Obviamente, estes desloca- (384-322 a.C.) – um modelo que reservava
mentos não são gratuitos e não ocorrem se- ao homem o grau máximo da perfeição
não como signos de profundas alterações metafísica, deixando a mulher em segundo
que vão se dando na história de determina- lugar – e o modelo de “corpo anatômico”
das sociedades. A questão em que nos con- elaborado por Galeno (129-200 d.C.), mé-
centraremos a seguir é, precisamente, a da dico da Roma Antiga26 . Remonta daí um
ocorrência de deslocamentos históricos en- padrão de percepção das anatomias dos dois
tre Desigualdade e Diferença no plano da gêneros como variações derivadas de um
sexualidade. Veremos como a mulher deixa modelo fisiológico e anatômico único – o
de ser vista, por certos sistemas históricos masculino –, notando-se que, para o caso dos
de dominação masculina, como diferença órgãos genitais, o homem os teria voltados
para ser compreendida como o desigual – e, para fora e a mulher os teria internalizados
pior, como um desigual sancionado pela pró-
pria natureza.

24
Tomás de Aquino. Summa Theologica I. q. 92, a. 1 ad. 4.
25
Tomás de Aquino. Summa contra Gentiles III, 123.
26
Sobre isto ver o texto de Paulo Roberto Ceccarelli, com o título
“Diferenças Sexuais... Quantas Existem?” (CECCARELLI,
1997).

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GÊNERO, SEXUALIDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA: QUATRO NOÇÕES ATRAVESSADAS PELA HISTÓRIA 61

(configurando-se assim uma inferioridade, Retomando as origens medievais, vale


uma incompletude, como veremos mais ainda lembrar que, para a mesma época em
adiante)27 . que São Tomás de Aquino resgatava a no-
Segundo as implicações desta que ção aristotélica da mulher como “homem
hoje nos soaria como uma estranha perspec- inacabado”, a historiadora Christine
tiva sobre os sexos, a própria Natureza teria Pouchelle (1983) iria descobrir nas anota-
tratado desigualmente os seres na sua ori- ções de um cirurgião medieval e em outras
gem, gerando uns que são completos e ou- fontes do mesmo período a representação
tros que são incompletos. Cria-se aí uma da vagina como “falo invertido”. Desta ma-
hierarquia “natural”, que reforça as hierar- neira, ora representada como “homem
quias sociais e políticas, nas quais o com- inacabado”, ora como “homem invertido”,
pleto está acima do incompleto, ou o Ho- a mulher perde, nas representações geradas
mem acima da Mulher. pela dominação masculina medieval, o di-
Essa ideologia de bases antigas e me- reito a ser percebida como singularidade,
dievais sobre as distinções e relações de como “diferença”, como fisiologia específi-
gênero, aliás, parece não desaparecer total- ca e, portanto, como psicologia específica.
mente com a medievalidade e estende-se, Tal como observa Pierre Bourdieu em seu
de alguma maneira, até o século XVIII28 , estudo sobre A Dominação Masculina
quando, sob as luzes da Ilustração, começa- (1998), com base nestes diversos exemplos
se a pensar, pela primeira vez, uma siste- e considerando esta atmosfera medieval de
matização mais atenta e particularizada acer- representações na qual o masculino e o fe-
ca das diferenças anatômicas e fisiológicas minino são vistos não como fisiologias dife-
entre os dois sexos, sendo que um não era renciadas e singulares, mas sim como as va-
mais visto como derivado do outro – ou como riantes superior e inferior de uma mesma e
a “incompletude” do outro –, o que acabou única fisiologia, não é difícil compreender
permitindo a alguns dos filósofos iluministas por que, “até o Renascimento, não se dis-
“desnaturalizar” a desigualdade sexual e pusesse de terminologia anatômica para
reconhecer a necessidade de um espaço so- descrever em detalhes o sexo da mulher,
cial e político para a mulher. Mas, mesmo que é representado como composto dos
modernidade adentro, após um período re- mesmos órgãos que o do homem, apenas
lativamente breve de valorização da diferen- que dispostos de maneira inversa”30 .
ça feminina com o Iluminismo francês, logo Esteja na Renascença ou na Ilustra-
iremos encontrar diversos autores que vol- ção a base inicial para um contraste entre os
tam a sustentar, mais inflexivelmente, a
ideia de incompletude da mulher em rela-
ção ao homem ou mesmo a existência de uma visão curta. Em poucas palavras, são crianças grandes: uma
uma desigualdade sexual natural.29 espécie de estágio intermediário entre a criança e o homem,
este sim, uma pessoa de verdade” (SCHOPENHAUER, 2004,
p. 7). Ou ainda: “[a mulher] é, antes, uma mente míope, na
medida em que sua inteligência intuitiva enxerga com acuidade
27
Segundo Laqueur, em seu estudo A Fábrica do Sexo (1992), o que está próximo, mas em contrapartida tem um círculo de
este modelo do “sexo único” perdura como modelo dominante visão estreito, no qual o que está distante fica de fora; é por isso
até o século XVIII, quando então começa a se projetar outro que tudo o que está ausente, que é passado ou ainda virá, atua
modelo, no qual os gêneros masculino e feminino começam a de modo muito mais fraco sobre as mulheres do que sobre nós”
ser percebidos como claramente diferenciados nos aspectos (SCHOPENHAUER, 2004, p. 14-15).
anatômico e fisiológico (CECCARELLI, 1994, p. 2). 30
BOURDIEU, 2005, p. 24. A importância do ensaio de Bourdieu
28
Alguns autores identificam a emergência de uma percepção está em mostrar que “a definição social dos órgãos sexuais, lon-
diferenciadora entre os dois sexos, superando o modelo do pa- ge de ser um simples registro de propriedades naturais, direta-
drão único com duas variantes, já na Renascença. A este res- mente expostas à percepção, é produto de uma construção efe-
peito, ver Pierre Bourdieu, em seu estudo A Dominação Mas- tuada à custa de uma série de escolhas orientadas ou, melhor,
culina (1998). através da acentuação de certas diferenças ou do
29
Arthur Schopenhauer, um dos mais misóginos dentre os filóso- obscurecimento de certas semelhanças” (BOURDIEU, 2005,
fos modernos, é autor de passagens que promovem uma leitu- p. 23). Acrescentaremos que, em meio a este jogo de acentuar,
ra das relações de gênero com base no deslocamento das dife- obscurecer, inventar ou cancelar diferenças, de modo a cons-
renças para o plano das desigualdades sexuais, por ele postula- truir uma representação das oposições de gênero que melhor
das como naturais. Será possível identificar diversos trechos do favoreça a dominação masculina, a pedra de toque, o impiedoso
filósofo alemão que exprimem essa concepção do sexo femini- lance final do sistema medieval de representação dos sexos é
no como “naturalmente desigual” em relação ao sexo masculi- imobilizar a discussão em um plano imaginário de desigualda-
no (e não apenas “naturalmente diferente”). “Para amas e edu- des que estaria legitimado pela própria Natureza. Lance final
cadoras em nossa primeira infância, as mulheres se mostram que, de resto, se re-editaria de novas maneiras em períodos
particularmente adequadas, já que são infantis, tolas, e têm posteriores.

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62 JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

dois gêneros que se baseasse na “diferenci- rença pode ser empregada com o sentido de
ação”, e não na “desigualdade natural” – o Indiferenciação, de desconstrução da dife-
que, de resto, ainda necessita ser investiga- rença que oprime e de eliminação das dis-
do, mais sistematicamente, pelos historia- criminações, com vistas a restabelecer a
dores –, o fato é que foi um passo bastante Igualdade. Da mesma forma, poderemos ter
importante para a ampliação dos direitos da a Indiferenciação como estratégia de domi-
mulher esta possibilidade de trazer a dis- nação e de desconstrução de padrões de
cussão sobre os gêneros sexuais para o pla- identidade indesejáveis, para depois subju-
no das Diferenças e não mais conservá-la gar e até escravizar. Neste e em outros ca-
em um pretenso plano de Desigualdades sos, a ideia de Indiferença pode ser utiliza-
Naturais impostas, desde a origem, pela da em sentido negativo, o de ignorar ou
Natureza ou por um Deus desigualador. desconsiderar diferenças significativas e re-
levantes, de ser “indiferente a algo” (por
7 Indiferença alienação ou por menosprezo).
No exemplo atrás discutido, vimos um
Quando esquematizamos as relações processo semiótico que poderia ser narrado
entre Igualdade, Diferença e Desigualda- a partir do quadrado semiótico acima expos-
de, havíamos ressaltado que era ainda um to. Neste caso, seria preciso partir do vérti-
esquema incompleto. Ele pode ser ce superior direito. A Diferença Feminina,
espelhado, para se tornar um quadrado por assim dizer, sofrera, em certas teorias
semiótico perfeito31 , se acrescentarmos uma filosóficas da Antiguidade e da Idade Mé-
nova noção: a de Indiferença (por oposição dia, uma Indiferenciação (descida pela
contraditória com Diferença). A Indiferen- diagonal da esquerda). Igualados os dois
ça (ou Indiferenciação) corresponde a igno- sexos do ponto de vista de uma única fisio-
rar, rediscutir ou desprezar as Diferenças. logia ou modo de encarar os corpos mascu-
Completo, o quadrado semiótico das Igual- lino e feminino (subida pela vertical esquer-
dades e Diferenças ficaria assim: da até o polo da Igualdade no canto superi-
or esquerdo), o passo seguinte é a
visualização de uma “desigualdade natural”
que afetaria a Mulher (descida pela diagonal
direita até o polo da Desigualdade). Eis
aqui, através de um quadrado semiótico, a
narrativa filosófica de uma teoria simulta-
neamente indiferenciadora e desigualadora.
Desconstrói-se a “diferença feminina” para
reinstituí-la, ao final do processo de pensa-
O quadrado semiótico completo, com mento, como “desigualdade feminina”. A
o vértice da Indiferença, conforme nossa Mulher emerge então, nesta filosofia medi-
proposta, permite enxergar a questão da eval, como um Homem incompleto ou, em
Desigualdade e Diferença sob outros ângu- certas concepções também medievais, como
los. Propositalmente, conservamos as um ser que participa do mesmo padrão fisi-
ambiguidades da palavra Indiferença, para ológico, mas que possui o sexo invertido,
não depurá-la de suas riquezas internas e voltado para dentro. A Desigualdade Sexu-
permitir que o esquema proposto se apli- al, forjada como imposição da própria Natu-
que, funcionalmente, a um número maior reza, adquire aqui legitimidade: irá dar su-
de casos. Por um lado, a noção de Indife- porte a um mundo de dominação masculi-
na cuja história não será preciso contar mais
uma vez.
31
A operacionalização de “quadrados semióticos” para a com- A Desconstrução deste processo, na-
preensão do discurso é uma das bases da teoria semiótica pro- turalmente, teria de ser realizada, historica-
posta por Greimas e Courtés. Referências fundamentais perti- mente, pela subida através da vertical di-
nentes a esta abordagem poderão ser encontradas em obras
básicas destes dois autores: De GREIMAS, Semântica Estru- reita: da Desigualdade natural passa-se, no-
tural (1973); Sobre o sentido: ensaios semióticos (1975); De vamente, à Diferença, em um processo que
COURTÉS, Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva
(1979). Ver ainda GREIMAS e LANDOWSKI (1986).
alguns autores costumam identificar na Re-

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GÊNERO, SEXUALIDADE, DESIGUALDADE E DIFERENÇA: QUATRO NOÇÕES ATRAVESSADAS PELA HISTÓRIA 63

nascença, e outros já preferem enxergar em ver. Neste caso, estariam sofrendo uma de-
um momento mais adentrado da Idade sigualdade relativa ao acesso às possibilida-
Moderna. De qualquer maneira, fica o des de executar atividades relacionadas à
exemplo para ilustrar como a compreensão escrita.
dos quatro conceitos ajustados inter- A Indiscriminação envolve também a
relacionalmente – Igualdade, Diferença, possibilidade de tratar “igualmente” seres
Desigualdade e Indiferença – pode auxiliar diferentes ou seres submetidos a condições
a decodificação de narrativas filosóficas ou desiguais, particularmente em detrimento
históricas sobre o jogo de desigualdades so- das classes ou dos grupos menos favoreci-
ciais que têm afetado as diferenças sexuais dos socialmente, ou mesmo em relação a
entre o masculino e o feminino. grupos que sofram algum tipo de discrimi-
É muito interessante observar, ainda nação ou de desigualdade relativa ao acesso
que a Indiferença tenha agora, particular- a bens e serviços. Nesse sentido, uma ques-
mente, o sentido último de “ser indiferen- tão ainda mais delicada relacionada aos pro-
te a algo” (por alienação ou por menospre- blemas que envolvem a Indiferença ou a
zo), também pode produzir injustiças soci- manipulação da Indiferença e às resistênci-
ais de outros tipos, e isto também pode afe- as a estas refere-se às chamadas “políticas
tar as relações entre os gêneros. Considere- de ação afirmativa”, mais recentes na histó-
mos, para trazer um exemplo de fora do ria da luta contra o racismo e outras formas
âmbito da sexualidade, que determinada de descriminação. O que são as “políticas
parcela de qualquer população é, habitual- de afirmação” senão uma forma de resistên-
mente, constituída de deficientes físicos de cia contra a “Indiscriminação”, aqui toma-
vários tipos. A Indiferença em relação a es- da no sentido de um tipo de
tes deficientes reintroduz o problema da desconsideração das diferenças e desigual-
Desigualdade, mas de outra forma. Se não dades que termina por estabelecer uma de-
existissem, por exemplo, as plataformas es- sigualdade com aparência de igualdade? As
peciais para os deficientes motores que não “políticas de afirmação” correspondem, nes-
podem subir ou descer escadas, eles estari- ta formulação teórica, a enfrentar, afirmati-
am impedidos de chegar a determinados vamente, a prática da Indiferenciação
locais e, portanto, estariam sofrendo uma (desconsideração de diferenças e desigual-
desigualdade em relação ao critério da mo- dades anteriores), resultando que, desta prá-
bilidade física. Da mesma forma, se alguns tica – e é isto, precisamente, o que as polí-
programas de televisão não apresentassem ticas de afirmação buscam combater –, não
em uma tela à parte a imagem de alguém se esconda sob a capa da Igualdade a Desi-
comunicando o discurso da tela principal sob gualdade, como o lobo em pele de cordei-
a forma de linguagem gestual de sinais, a ro32 .
parcela de deficientes auditivos seria priva- Em relação ao problema que presen-
da do acesso às informações. temente nos ocupa – o das desigualdades
Estes exemplos mostram que, em sexuais que terminam por se superpor às
muitas situações, não considerar as Diferen- diferenças sexuais e, particularmente, afe-
ças – isto é, agir com Indiferença – pode
implicar reintroduzir o problema da desi- 32
Para Hasenbalg, a aplicação de ações afirmativas visaria à Igual-
gualdade social em um outro nível. Outro dade no plano dos direitos entre grupos e corresponderia a tra-
exemplo é o das carteiras escolares que pos- tamentos preferenciais concedidos a indivíduos pertencentes
suem, em um dos lados, uma tábua para a certos grupos (de raça ou gênero), precisamente para com-
pensar a discriminação no passado – esta mesma instituidora
apoiar cadernos. Elas preveem, habitual- de desigualdades no presente (HASENBALG; SILVA, 1990).
mente, os alunos destros, que constituem a Ver ainda, sobre as ações afirmativas, o ensaio de A. S. Guima-
maior parte da população; mas, muito fre- rães sobre “A Desigualdade que anula a Desigualdade: notas
sobre a ação afirmativa no Brasil” (1999), atentando para a de-
quentemente, existe ao menos uma cartei- finição bastante precisa que dá ao novo conceito: “a antiga no-
ra canhota para cada vinte destras. Natural- ção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado deci-
sões de cortes americanas, conservando o sentido de reparação
mente que, se não existisse certo número por uma injustiça passada. A ação afirmativa moderna se refere
de carteiras escolares para os alunos canho- a um programa de políticas públicas ordenado pelo Executivo
tos, eles teriam de enfrentar dificuldades ou pelo Legislativo ou implementado por empresas privadas,
para garantir a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais”
adicionais ou grandes incômodos para escre- (GUIMARÃES, 1999, p. 154).

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64 JOSÉ D’ASSUNÇÃO BARROS

tar as mulheres em várias sociedades histó- formação. O Sexo ou a Cor, quando invoca-
ricas –, seria de se perguntar se, com vistas dos como dados integralmente oferecidos
a superar as desigualdades que afetam as pela própria natureza, encobrem aquilo que
mulheres diante do mercado de trabalho nas há de histórico e cultural não apenas na cons-
sociedades contemporâneas, também não trução social do Gênero, Etnia ou da Raça,
haveria a possibilidade ou a necessidade de mas do próprio Sexo e da própria Cor.
se instituir certas “políticas de afirmação”, Compreender a historicidade de uma
como já existem no interesse de se comba- Diferença, de seus modos de percepção, de
ter as desigualdades raciais e também as seus processos de transformação e de sua
relativas a diversos tipos de minorias. De própria instituição como Diferença é assu-
igual maneira, encontra-se em aberto o pro- mir o poder de transformá-la, de decidir pela
blema de se pensar a inclusão das diferen- sua permanência transformada ou pela sua
ças sexuais que destoam do dimorfismo tra- superação, de propor novas divisões no in-
dicional, tal como as que discutimos no item terior de um mesmo critério de diferenças,
2 deste artigo. ou, se for o caso, de estender a dife-
rencialidade possível à própria multi-
8 Considerações finais plicidade humana. As Diferenças – em que
pese pertençam ao âmbito das “essências”
O problema da Desigualdade no mun- ou das “modalidades de ser” (por oposição
do moderno e, particularmente, o das desi- ao âmbito das circunstâncias, que afeta, ha-
gualdades que se acoplam às diferenças se- bitualmente, as desigualdades de diversos
xuais, estão longe da luz ao final do túnel. tipos) – são, de todos os modos, “essências”
De qualquer forma, um programa respon- social e historicamente construídas, na ver-
sável pelo combate à Desigualdade deve dade “essências em construção”. Compre-
partir, antes de mais nada, de uma compre- ender isto é chamar a si a possibilidade de
ensão muito clara e precisa do que é, pro- participar desta construção, em favor de um
priamente, a Desigualdade – no sentido fi- mundo com menos desigualdades, maior li-
losófico, sociológico, antropológico, históri- berdade de escolhas, maior riqueza de al-
co, humano – e também da compreensão ternativas e possibilidades de expressar as
sobre aquilo que distingue Desigualdade e diferenças e maior consciência da comple-
Diferença. Em seguida, um estudo mais sis- xidade humana. A diferença entre os sexos,
temático das relações e possíveis interações a mais antiga das diferenças, abre-se, certa-
entre Desigualdade e Diferença nos vários mente, como um dos campos mais impor-
meios sociais e tempos históricos – e em tantes na luta pela extinção ou minimização
âmbitos tão diversos, como a sexualidade, a da desigualdade nas sociedades humanas.
nacionalidade, a etnia, a religião, a educa-
ção – pode permitir que se compreenda
melhor como os sistemas de dominação, os 9 Referências bibliográficas
mais sutis ou os mais explicitamente cru-
éis, valem-se, frequentemente, de desloca- AQUINO, São Tomás. Suma teológica. v. I a
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fundamental para este tipo de estudo. Tan-
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