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RESUMO ABSTRACT
Este trabalho busca esclarecer e discutir, no âmbito This article attempts to clarify and discuss, in the
da sexualidade e da divisão entre masculino e ambit of the sexuality and sexual division between
feminino, dois conceitos fundamentais das Ciências masculine and feminine, two fundamental concepts
Humanas e, em especial, da História de Gênero. of the Human Sciences – Inequality and Difference
Trata-se de discutir as noções de Desigualdade e – in order to consider their reciprocal relations and
Diferença, de modo a considerar suas relações historicity, particularly in reference to the question
recíprocas e a historicidade de cada uma destas of the sexual differences and inequalities. The initial
expressões, particularmente no que se refere à point is the semiotic analysis of the notions of
questão das desigualdades de gênero e diferenças Equality, Inequality and Difference. The intention
sexuais. O ponto de partida é a análise semiótica das is to examine how the historicity crosses the
noções de Igualdade, Desigualdade e Diferença. A development of the relation between these four
intenção é examinar como a historicidade atravessa notions, presenting some exemplifications referring
o desenvolvimento da relação entre estas quatro to some specifically historical situations.
noções, apresentando um quadro de exemplos Keywords: Gender; Sexuality; Equality; Inequality;
pertinentes a algumas situações históricas específicas. Difference.
Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Igualdade;
Desigualdade; Diferença.
por fim, sobre como se relacionam, de um diferente), tem-se visto algo da ordem da
ponto de vista social e histórico, as noções essência: uma coisa ou é igual a outra (ao
de Desigualdade e Diferença no âmbito da menos em um determinado aspecto) ou
sexualidade. Para tal análise, partiremos de então dela difere. Podemos, no âmbito de
uma discussão inicial sobre o que está im- certo número de indivíduos, considerar sua
plicado inter-relacionalmente em cada um igualdade ou diferença em relação ao aspec-
destes três conceitos: Igualdade, Diferença to sexual, ao aspecto profissional, ao aspec-
e Desigualdade. to étnico etc. A oposição entre Igualdade e
Antes de mais nada, porém, convém Diferença, se quisermos colocar a questão
refletir rapidamente sobre as noções de dentro de uma perspectiva semiótica, é da
Gênero e Sexo. Temos aqui duas noções ordem dos “contrários” (de duas essências
que, em teorias e abordagens mais tradicio- que se opõem)1 .
nais, têm sido confrontadas em termos de Já o contraste entre Igualdade e Desi-
Cultura e Natureza. O Gênero, diziam os gualdade refere-se, quase sempre, não a um
primeiros estudos no âmbito da Sexualida- aspecto “essencial”, mas a uma “circunstân-
de, do ponto de vista da História e da Soci- cia” associada a uma forma de tratamento
ologia, estaria mais ligado à Cultura; e o (mesmo que esta circunstância, aparente-
Sexo, mais ligado a aspectos naturais. As- mente, se eternize no interior de determi-
sim, a mulher definida sexualmente, de nados sistemas políticos ou situações soci-
acordo com um padrão genital e ais específicas). Trata-se de dois ou mais
cromossômico específico, remeteria a uma indivíduos com igualdade ou desigualdade
noção natural; enquanto isso, a Mulher, en- em relação a algum aspecto ou direito, con-
quanto gênero inserido em relações sociais forme sejam concedidos mais privilégios ou
e sujeita, em seu desenvolvimento, à restrições a um e a outro (isto pode ocorrer
historicidade, estaria relacionada à Cultura. independentemente de serem eles iguais ou
Contra esta corrente predominante, porém, diferentes, no que se refere ao sexo, à etnia
autores de grande importância para os estu- ou à profissão). Se é verdade que as mulhe-
dos de Gênero, como Michel Foucault e res podem receber um tratamento desigual
Judith Butler, contribuíram para difundir em em relação aos homens, no que concerne às
tempos mais recentes a imprescindível no- oportunidades de trabalho (e aqui estaremos
ção de que as duas noções – Gênero e Sexo falando na desigualdade entre os sexos), é
– estão, na verdade, igualmente atravessa- também possível tratar como desigualmen-
das pela História e pela Cultura. A radical te dois homens que em nada difiram em
dicotomização sexual entre Homem e Mu- relação a alguns dos seus aspectos essenci-
lher, mesmo nos seus traços aparentemen- ais (idade, sexo, profissão, etc.). Ou seja,
te mais naturais, não seria, de modo algum, Desigualdade e Diferença não são noções
um dado natural e a-histórico. Vejamos, em necessariamente interdependentes, embo-
seguida, como o exame das relações entre ra possam conservar relações bem definidas
os conceitos de Igualdade, Desigualdade e no interior de determinados sistemas soci-
Diferença pode contribuir para este deba- ais e políticos, conforme veremos mais adi-
te. ante.
Iniciaremos nossas considerações des- Distintamente da oposição por “con-
tacando que, do ponto de vista semiótico, a trariedade” que se estabelece entre Igual-
noção de Igualdade contrasta, simultanea- dade e Diferença, a oposição entre Igualda-
mente, com duas outras noções que têm sido
suas parceiras obrigatórias no decorrer de
inúmeros processos históricos e no desen- 1
Será fundamental, para a compreensão deste ensaio e das ideias
volvimento das inúmeras sociedades até aqui apresentadas, o entendimento do sentido que estaremos
atribuindo à expressão “essências”. As essências, conforme as
hoje conhecidas. Por um lado, Igualdade entenderemos, são “modalidades de ser”, por contraste às cir-
opõe-se a Diferença, mas, por outro, con- cunstâncias enquanto “modalidades de estar” ou de “ter”. Nada
tradita-se com Desigualdade. Existe, natu- neste trabalho, quando estivermos empregando a expressão
“essências”, estará remetendo às “teorias essencialistas”. A
ralmente, uma diferença sutil envolvida expressão estará sendo empregada em um sentido filosófico de
nestes dois contrastes. Quando se conside- essências que são construídas, e não de realidades que já exis-
ra o par Igualdade x Diferença (ou igual x tem previamente à ação humana. Este aspecto ficará claro mais
adiante.
de e Desigualdade é da ordem das “contra- os, por assim dizer). Tratar de Desigualda-
dições”. Bem entendido, as contradições são de implica nos colocarmos em um ponto de
sempre circunstanciais, enquanto os contrá- vista, em um certo patamar ou espaço de
rios opõem-se ao nível das essências. As reflexão (econômico, político, jurídico, so-
contradições são geradas no interior de um cial, etc.). Mais ainda, implica arbitrarmos
processo, têm uma história, aparecem em ou estabelecermos critérios mais ou menos
determinado momento ou determinada si- claros em de cada espaço potencial de re-
tuação, e, de resto, pode-se afirmar que os flexão.
pares contraditórios integram-se, Para resumir esta primeira aproxima-
dialeticamente, dentro dos processos que os ção, pode-se afirmar que, em geral, a Dife-
fizeram surgir. Por seu turno, os contrários rença se coloca no âmbito do Ser, enquanto
não se misturam (amor e ódio, verdade e a Desigualdade pertence inteiramente ao
mentira, igual e diferente), e, dessa forma, mundo da Circunstância. De modo a resu-
fixam muito claramente o abismo de sua mir visualmente o que foi até aqui discuti-
contrariedade. Logo veremos que essa dis- do com um esquema (ainda incompleto),
tinção entre “contrários” e “contradições” proporei um triângulo semiótico (correspon-
tem as suas implicações, embora, neste dente à metade de um quadrado semiótico
momento, isso possa soar como filigrana que será completado mais tarde). Neste tri-
semiótica. ângulo, a Igualdade relaciona-se horizontal-
Para o caso de que presentemente tra- mente com a Diferença (em uma coordena-
tamos, é preciso considerar, antes de mais da dos contrários que se refere ao plano das
nada, que as diferenças são inerentes ao essências), mas também se relaciona
mundo humano – para não mencionar o diagonalmente com a Desigualdade (em um
mundo natural. De modo geral, a ocorrên- eixo das contradições que se refere ao pla-
cia de diferenças de toda a ordem não pode no das circunstâncias). A indicação de
ser evitada através da ação humana. Vale ain- bilateralidade (uma linha com duas setas),
da dizer que a ocorrência de Diferenças no no eixo contraditório da relação entre Igual-
mundo social está atrelada à própria diver- dade e Desigualdade, indica que esses polos
sidade inerente ao conjunto dos seres hu- são autorreversíveis, ou que é possível um
manos, seja no que se refere a característi- deslocamento no eixo da Desigualdade. Já
cas pessoais (sexo, etnia, idade), seja no que para a coordenada de contrariedade relacio-
se refere a questões externas (perten- nada com os polos Igualdade e Diferença,
cimento por nascimento a esta ou àquela não há, de modo geral, reversibilidade pos-
localidade, ou cidadania vinculada a este ou sível. Trocando em miúdos, as Desigualda-
àquele país, por exemplo). des são reversíveis no sentido de que se re-
Enquanto pensar Diferenças signifi- ferem a mudanças de Estado; as Diferen-
ca se render à própria diversidade humana, ças, de um modo geral, não.
abordar a questão da Desigualdade implica
considerar a multiplicidade de espaços em
que esta pode ser avaliada. Avalia-se a De-
sigualdade no âmbito de determinados cri-
térios ou de certos espaços de critérios: ren-
das, riquezas, liberdades, acesso a serviços
ou a bens primários, capacidades. Indagar
sobre a Desigualdade significa sempre
recolocar uma nova pergunta: Desigualda- Proporemos alguns exemplos para
de de quê? Em relação a quê? Conforme foi ilustrar os aspectos relacionados às gradações
ressaltado, a Desigualdade é sempre cir- e às possibilidades de reversibilidade que
cunstancial, seja porque estará localizada afetam o eixo das Desigualdades. Conside-
historicamente dentro de um processo, seja remos o aspecto da Riqueza. Entre o homem
porque estará situada, necessariamente, em mais rico e o mais miserável (aquele que no
um determinado espaço de reflexão ou de limite extremo é desprovido de qualquer
interpretação que a especificará (um deter- bem), podemos imaginar todas as gradações
minado espaço teórico definidor de critéri- possíveis. É possível imaginar também si-
tuações em que o homem mais rico perca outros homens (saudáveis) – é contraditado
riqueza (e até atinja a miséria), ou em que o sobretudo com ele mesmo nas circunstân-
miserável vá, gradualmente, adquirindo ri- cias em que sua saúde está em equilíbrio,
queza, até se tornar rico. A Desigualdade ou nas quais deveria, idealizadamente, es-
relativa à Riqueza admite tanto tar em equilíbrio.
reversibilidade como gradações entre os Desse modo, a Doença – que remete
seus extremos. Raciocínios análogos pode- a fatores “desigualadores”, como “insu-
riam ser feitos para a Desigualdade relativa ficiência”, “deficiência”, “enfraquecimen-
à liberdade de ir e vir. De um lado, tería- to”, “transtorno”, “crise”, “distúrbio”, “dis-
mos o homem que pode ir a todos os luga- função”, “acidente”, mas também “exces-
res (que, imaginariamente, seria aquele que so”, “elevação desmedida”2 – remonta não
detém o máximo de poder, riqueza e prestí- apenas à circunstancialidade (“estar doen-
gio), e, do outro, o homem que não pode ir te”, e não “ser doente”), como também às
a nenhum lugar (que poderia ser ilustrado gradações que podem ser entrevistas no pro-
com o exemplo de um prisioneiro na solitá- cesso de sarar ou curar a doença. Entre a cir-
ria). Entre estes limites extremos existem cunstância de “ficar doente” e a de “ficar
as gradações e as reversibilidades (o Dita- saudável”, a convalescença ou o adoe-
dor pode ser, um dia, preso, e o prisioneiro, cimento colocam inúmeras gradações que,
libertado). Os exemplos poderiam se esten- depois de percorridas, permitem, mais visi-
der ao infinito para as Desigualdades relati- velmente, passar de um estado a outro3 .
vas à liberdade de expressão, ao acesso a A Doença, por fim, contradita-se com
bens e serviços, à privação de direitos jurí- a Saúde, porque um destes termos está in-
dicos, a imposições de segregação espacial, serido no outro como possibilidade. Uma
e tantas outras situações. De igual modo, na noção não existe nem adquire visibilidade
relação entre dois indivíduos, ou mesmo na sem a outra. Dialeticamente, uma se pro-
comparação de um indivíduo consigo mes- duz no interior da outra. O organismo indi-
mo em dois momentos, inúmeras situações vidual acolhe e medeia a passagem entre a
dicotômicas mostram-se implicadas ou ins- saúde e a doença da mesma forma que, em
critas em uma relação de desigualdade, o outro âmbito, a sociedade (ou, se quisermos,
que se expressa pelo fato de que só podem o organismo social) acolhe e medeia a coe-
ser aferidas relativamente: (“forte/fraco”, xistência e as passagens entre a Riqueza e a
“instruído/ignorante”). Pobreza. Por outro lado, as condições em
Uma digressão útil caberá neste pon- que se gesta a doença também são, frequen-
to. Algumas dicotomias ou polarizações – temente, produto de desigualdades sociais
mesmo que não se refiram, necessariamen- (subnutrição, excesso de trabalho, poluição,
te, a desigualdades propriamente sociais, no má qualidade de vida). Pode-se lembrar ain-
sentido de que sejam impostas pelos siste- da que, assim como a doença produz “sin-
mas sociais, pelos desnivelamentos econô- tomas” (febre, congestão, restrição do mo-
micos, pelas implicações políticas, pelas di- vimento), a desigualdade social é denunci-
fusões ideológicas ou pelas estratificações ada por traços como marginalidade, morta-
culturais – também remetem, de alguma lidade infantil, e outros desdobramentos
maneira, ao plano circunstancial das desi- que também podem ser vistos, de certo
gualdades, ainda que, neste caso, estejamos
diante de desigualdades que costumam se
expressar na vida individual através de ori- 2
“insuficiência cardíaca”, “deficiência de insulina” (diabetes),
gens diversas, que não necessariamente so- “enfraquecimento ósseo” (osteoporose), “transtorno obsessi-
ciais. “Estar Doente” por oposição a “Estar vo”, “distúrbio de personalidade”, “disfunção erétil”, “crise
Saudável” – uma dicotomia cuja referência renal”, “acidente vascular”, mas também o excesso de peso (a
“obesidade”), a “hipertensão”, o “hipertiroidismo”.
se mostrará imprescindível para uma argu- 3
A “doença crônica” anuncia para o indivíduo que a sua doença
mentação posterior – assimila-se perfeita- tornou-se uma diferença. O indivíduo não está, mas é diabéti-
mente ao âmbito das desigualdades. Para se co ou hemofílico. A surdez ou a cegueira pode deixar de ser
vista como circunstância, para que o indivíduo seja classificado
dar visibilidade a esta circunstância, que é a como “deficiente auditivo” ou “deficiente visual”. A paralisia
Doença, o “homem doente” – embora. Cer- ou a restrição do movimento – que pode ser assimilável, em
certas situações, a uma desigualdade momentânea – pode ser
tamente. também possa ser comparado a convertida em diferença no paralítico.
modo, como sintomas que falam aos histo- ponto, atribuindo relevância a uns e
riadores e cientistas sociais. minimizando ou ocultando outros, relacio-
Vejamos, em seguida, já exempli- nando alguns destes elementos com outros
ficando com a própria dimensão da Sexuali- ou desvinculando-os, hierarquizando-os ou
dade, como costuma se comportar a coorde- nivelando-os, concedendo-lhes direito à
nada de contrariedades relacionada às Di- expressão ou coibindo a sua exposição, co-
ferenças. brindo-os ou desnudando-os – tudo isso
pertence ao mundo da história e da cultura,
2 Sexualidades, diferença e desigualda- por mais que um determinado sistema de
de organização da sexualidade adquira a apa-
rência de eternidade e naturalidade6 .
Partiremos da divisão primária entre Mas retornemos, neste momento, à
homens e mulheres. Esta divisão, de acor- nossa base de discussão e situemo-nos den-
do com uma visão da partição sexual que tro dos limites culturais de nossa civiliza-
tem predominado na maior parte das cultu- ção. Partiremos desta divisão sexual entre
ras e civilizações até hoje conhecidas, sepa- as duas diferenças que parecem bastante
ra ao nascimento homens e mulheres de naturais a todos que foram educados neste
acordo com critérios genitais, que são de- modo de perceber o Sexo, com base no
pois confirmados por desenvolvimentos dimorfismo masculino-feminino, e que, adi-
anatômicos e que, na verdade, corres- cionalmente, é marcado por um discurso
pondem também à dicotomia cromossômica legitimado no amplo predomínio estatísti-
representada pela oposição entre os co da heterossexualidade naquilo que
cariótipos XX (mulheres) e XY (homens). concerne ao conjunto-universo dos seres
Estabelecem-se, aqui, duas modalidades humanos que vivenciam a sua sexualidade.
sexualizadas de ser. Vejamos como se comporta a Diferença en-
Por mais que esta divisão primária tre “Homem” e “Mulher”, particularmen-
baseada no dimorfismo sexual pareça tão te no que se refere à possibilidade de situá-
natural e que seja tão inegavelmente adota- las como “contrariedades” que envolvem
da pela ampla maioria das sociedades conhe- modalidades de ser, e não como
cidas (mas não necessariamente todas4 ), “contraditoriedades” que envolvem cir-
“Homem” e “Mulher” – ou como quer que cunstâncias reversíveis.
estas categorias sejam denominadas nas vá- Vimos atrás que as categorias que se
rias línguas – não são categorias a-históri- referem ao eixo da Igualdade e Desigual-
cas, como o pensamento comum habitua-se
a considerá-las5 .
Certos autores têm explorado, mais 6
A relevância que certo sistema cultural de organização da se-
xualidade atribui a certos “dados naturais” em detrimento a
criativamente, a ideia de que não é apenas outros é, aliás, outro aspecto a se considerar. Se os aspectos
o Gênero que é histórico, mas, de certo genitais aproximam a maior parte dos homens de outros ho-
modo, também o próprio Sexo, inclusive mens e a maior parte das mulheres de outras mulheres, há tam-
bém outros dados igualmente naturais que aproximam alguns
naquilo que, por vezes, nele parece perten- homens de mulheres e algumas mulheres de homens. Pesqui-
cer, francamente, à esfera da natureza. O sas desenvolvidas no ano de 2006 revelam que o hipotálamo –
modo como os homens se apropriam dos estrutura cerebral que tem muita importância para o funciona-
mento da sexualidade humana – apresenta características dife-
elementos trazidos pela natureza, este é o rentes em homossexuais e heterossexuais do mesmo sexo e,
mais ainda, que heterossexuais de um sexo e homossexuais do
sexo oposto apresentam respostas semelhantes aos feromônios
masculino e feminino, que são as substâncias cuja recepção
rege a orquestração dos desejos sexuais. Cientistas suecos teri-
4
Gilbert Herdt (1990, p. 433-446), autor ao qual voltaremos pos- am observado que “o padrão de resposta dos neurônios
teriormente, examina, em um de seus artigos, duas sociedades hipotalâmicos correlaciona-se não com o sexo do indivíduo, mas
(uma na República Dominicana e outra na Nova Guiné) que com sua preferência sexual. Assim, homens e mulheres que
desenvolveram uma divisão primária fundada em três sexos, gostam de mulheres respondem ao feromônio feminino EST;
ao invés de dois. Estas sociedades concedem visibilidade soci- já as mulheres e os homens que se sentem atraídos pelo mas-
al à sexualidade de um tipo de pseudo-hermafroditismo mas- culino têm o hipotálamo sensível ao feromônio masculino AND”
culino em que alguns indivíduos XY só desenvolvem caracteres (HERCULANO-HOUZEL, 2006, p. 50). Nesse sentido, seria
masculinos na puberdade, quando então passam a ser social- possível imaginar uma sociedade que agrupasse – com base
mente classificados em uma terceira categoria, que não é nem nestes dados que não deixam de ser naturais – os indivíduos
“homem” nem “mulher” (MACHADO, 2005, p. 12). pelo seu tipo de motivação ou preferência sexual e não de acor-
5
Sobre esta questão, ver Butler (1991, 2002 e 2003). do com as características genitais.
que, se o sexo masculino ou o feminino são, umas das outras como “modalidades de ser”,
tradicionalmente, definidos pelos marca- e não como pontos focais de um espectro de-
dores genital e cromossômico, a verdade é sigual e hierarquizado de variações8 .
que, do ponto de vista destes marcadores,
homossexuais são tão homens ou mulheres 3 Diferenças sexuais para além do
quanto os homens e as mulheres heterosse- dimorfismo tradicional
xuais (e, obviamente, se quisermos compli-
car ainda mais, como também os bissexuais). As situações relacionadas ao
Rigorosamente falando, ninguém é transgenderismo e também a ambiguidades
mais Homem ou mais Mulher que um se- corporais diversas podem ajudar a iluminar
melhante seu. Biologicamente, ou se é uma o que até aqui foi considerado a respeito das
coisa ou se é a outra, a ressalvar casos ex- diferenças sexuais. Para começar, será im-
cepcionais, como o hermafroditismo e al- portante que se entenda que casos como o
guns transgêneros, que podem trazer algu- do hermafroditismo (ou da intersexua-
ma polêmica. Culturalmente, mesmo que lidade) – em que existe uma ambiguidade
devam ser necessariamente admitidas algu- corporal, que pode se apresentar sob a for-
mas outras categorias, tampouco se poderá ma de presença simultânea de genitais mas-
dizer que um homem é mais homossexual que culino e feminino – devem ser entendidos
outro ou que uma mulher é mais lésbica que como exemplos de duas essências que se
outra. Da perspectiva de que o que está em superpõem (o masculino e o feminino), pro-
jogo aqui é o objeto de desejo sexual de cada duzindo, na verdade, uma nova essência.
indivíduo, uma mulher será considerada lés- O intersexual, que consiste na situa-
bica, bissexual ou heterossexual. ção em que, mais facilmente, poder-se-ia
Acima de tudo, uma mulher não pode pensar em algo que está “entre” os dois se-
ser mais mulher que outra; quando muito, xos tradicionais, na verdade também cons-
pode-se dizer que tal ou qual mulher pos- titui uma nova diferença. É certo, também,
sui mais feminilidade com relação a deter- que se inscreve em uma arena para inevitá-
minado padrão vigente e culturalmente veis polêmicas a decisão de considerar o
construído. De maneira análoga, não se pode intersexual como “diferença” que pode ser
dizer que alguém é mais cristão ou mais conservada, se este for o desejo do indiví-
muçulmano que seu semelhante; o que se duo em questão ou da família do recém-nas-
pode dizer é que alguém possui mais devo-
ção religiosa no âmbito do islamismo ou do
cristianismo, que cumpre, mais rigorosa- 8
Alguns modelos de percepção da sexualidade humana, como
mente, os preceitos da religião etc. De igual um continuum, ajudaram, a seu tempo, a construir a história
maneira, as cidadanias nacionais não permi- das teorias sobre o sexo. Mas mesmo nestes casos, hoje pouco
sustentáveis, sempre se falou de um continuum de diferenças
tem que se diga que alguém é mais russo e não de um continuum de desigualdades. Vale lembrar a teo-
ou brasileiro que outro, embora alguém pos- ria sobre a sexualidade, proposta em meados do século XX pelo
sa postular que um indivíduo apresenta mais sexólogo alemão Harry Benjamin (que aliás foi o difusor, em
1953, do conceito de “transexualidade”). Benjamim (1885-1986)
“brasilidade” que outro, o que, em todo o imaginava o sexo como uma complexa montagem envolvendo
caso, iria gerar alguma controvérsia. De qual- múltiplos componentes (sexos cromossômico, genital,
anatômico, psicológico, legal etc.). A partir daí, imaginava uma
quer modo, este é o padrão das ”diferen- espécie de continuum entre os polos idealizados “Homem” e
ças”: o registro de uma “singularidade” – “Mulher”, considerando que, através deste continuum, cada
indivíduo vai se definindo “pela importância quantitativa dos
ou uma questão de “ser” ou “não ser”, para fatores masculinos ou femininos encontrados no sortimento dos
recolocar a questão de uma outra forma. diversos ‘sexos’ que o compunham” (FRIGNET, 2002, p. 85).
Para fecho de sua construção teórica, Benjamim elaborou uma
Em suma, tal como ocorre com os de- “Escala de Orientação Sexual”, no interior da qual podiam se
mais tipos de diferenças, as diferenças sexu- expressar diversos conflitos entre os vários sexos fatoriais. Um
dos conflitos mais radicais emergente do confronto entre os
ais (biológicas ou culturais) distinguem-se diferentes quantitativos sexuais inerentes ao mesmo indivíduo
seria o transexualismo, no qual se contrariam o cérebro típico
de um sexo e a estrutura corpórea típica de outro (BENJA-
MIN, 1968).
é mais que um constructo sociocultural que por se afirmar, enfaticamente, nos planos
se faz acompanhar de um vocabulário espe- jurídico e médico18 .
cífico para designar tudo aquilo que fica fora Também no que se refere ao âmbito
do desenvolvimento considerado normal. da história das teorias sobre a sexualidade,
Com “perversões” e “desvios”, afirma-se podemos entender, concomitantemente, as
aqui um vocabulário da exclusão; a diferen- proposições do sociólogo americano Gilbert
ça faz-se desigualdade, torna-se legítimo Herdt, nos anos 1980, como um lance a mais
reprimi-la e útil corrigi-la. nesta luta de representações. Colocando-se
Cada diferença sexual, antes vista criticamente em relação às referências que
como desviante, trava o seu combate parti- se faziam ao homossexualismo como “do-
cular nesta complexa guerra de representa- ença”, “desvio” ou “perversão” (como algo
ções. A trajetória do homossexualismo, per- da ordem da desigualdade, portanto), Herdt
correndo, na história de sua recepção, teve a ideia de trazer para os estudos da se-
nuances que vão do “pecado” e do “crime” xualidade o conceito de um Terceiro Sexo
à “doença” e ao “estilo de comportamen- ou de um Terceiro Gênero19 . Essa solução,
to”, revela uma tenaz luta de representações diga-se de passagem, também abriria a pos-
que, entre avanços e recuos, parece condu- sibilidade de se falar em um quarto, quinto,
zir à sua afirmação como Diferença, e não sexto sexo etc., à medida que se queira afir-
como Desigualdade (desvio, perversão, do- mar, de modo mais enfático, um estatuto de
ença, crime, pecado). As últimas décadas do diferença (e não de desvio, de insuficiên-
século XX trazem, nos meios médicos e le- cia, de desigualdade) a outras variações e
gais de países ocidentais, os resultados mais orientações sexuais.
claros desta afirmação da Diferença. Assim, A intenção de Herdt era, precisamen-
em 1991, a Organização Mundial de Saúde, te, a de questionar a ideia de um inevitável
através da 10ª edição da Classificação Inter- dimorfismo sexual, o que estaria implicado
nacional de Doenças (CID 10), abandona- em sistemas que meramente se baseassem
ria, definitivamente, qualquer consideração na consideração dos genitais. Mas é impor-
do homossexualismo como doença mental. tante ressaltar que, para Herdt, a constru-
Enquanto isso, também para o Manual de ção de uma terceira categoria para o sexo
Diagnóstico e Estatística (DSM III), a ho- era mesmo assumida como uma estratégia
mossexualidade já não seria mais indicada conceitual que visava ultrapassar a
como perversão, passando a ser definida dicotomia entre o masculino e o feminino
como “estilo de comportamento”. absolutos. Seu ponto de partida foi o de
No Brasil, desde 1985, o Conselho mostrar que as várias culturas do planeta não
Federal de Medicina já não qualifica o fundamentavam, necessariamente, as suas
homossexualismo como desvio sexual e, em percepções da sexualidade a partir das mes-
março de 1999, o Conselho Federal de Psi- mas classificações anatômicas e biológicas
cologia coloca a si mesmo a necessidade de – e aqui entram as já mencionadas análises
redigir uma resolução amparada no reconhe- de Herdt sobre sociedades da Nova Guiné
cimento de que a homossexualidade não e República Dominicana, que praticavam
constitui doença, distúrbio ou perversão, de uma partição ternária do sexo. Não era sua
modo que a atuação dos psicólogos frente a intenção, na verdade, “essencializar” em
esta orientação sexual não deveria se pautar termos absolutos a proposta categoria do
pela ideia de que o paciente homossexual “terceiro sexo”, uma vez que a considerava
seria portador de patologia. Considerar o
homossexualismo como uma doença que
deveria ser tratada ou uma espécie de desi- 18
Com relação à avaliação do homossexualismo como “estilo de
comportamento”, deve-se atentar, ainda, para o uso adjetivado
gualdade a ser corrigida é, nesse sentido, de homossexual, como indicativo de um “comportamento ho-
desaconselhado. Oficialmente descolada mossexual”, em oposição a um “comportamento heterossexu-
dos estigmas históricos de criminalidade ou al”, registrando-se que um mesmo indivíduo pode apresentar
comportamentos heterossexuais e homossexuais no decurso de
doença, a Diferença homossexual termina sua vida.
19
HERDT, 1994. É importante lembrar, ainda, que a expressão
“terceiro sexo” já havia aparecido em textos de ativistas gays,
como Karl Heinrich Ulrichs (1825-1895) e Magnus Hirschfeld
(1868-1935).
24
Tomás de Aquino. Summa Theologica I. q. 92, a. 1 ad. 4.
25
Tomás de Aquino. Summa contra Gentiles III, 123.
26
Sobre isto ver o texto de Paulo Roberto Ceccarelli, com o título
“Diferenças Sexuais... Quantas Existem?” (CECCARELLI,
1997).
dois gêneros que se baseasse na “diferenci- rença pode ser empregada com o sentido de
ação”, e não na “desigualdade natural” – o Indiferenciação, de desconstrução da dife-
que, de resto, ainda necessita ser investiga- rença que oprime e de eliminação das dis-
do, mais sistematicamente, pelos historia- criminações, com vistas a restabelecer a
dores –, o fato é que foi um passo bastante Igualdade. Da mesma forma, poderemos ter
importante para a ampliação dos direitos da a Indiferenciação como estratégia de domi-
mulher esta possibilidade de trazer a dis- nação e de desconstrução de padrões de
cussão sobre os gêneros sexuais para o pla- identidade indesejáveis, para depois subju-
no das Diferenças e não mais conservá-la gar e até escravizar. Neste e em outros ca-
em um pretenso plano de Desigualdades sos, a ideia de Indiferença pode ser utiliza-
Naturais impostas, desde a origem, pela da em sentido negativo, o de ignorar ou
Natureza ou por um Deus desigualador. desconsiderar diferenças significativas e re-
levantes, de ser “indiferente a algo” (por
7 Indiferença alienação ou por menosprezo).
No exemplo atrás discutido, vimos um
Quando esquematizamos as relações processo semiótico que poderia ser narrado
entre Igualdade, Diferença e Desigualda- a partir do quadrado semiótico acima expos-
de, havíamos ressaltado que era ainda um to. Neste caso, seria preciso partir do vérti-
esquema incompleto. Ele pode ser ce superior direito. A Diferença Feminina,
espelhado, para se tornar um quadrado por assim dizer, sofrera, em certas teorias
semiótico perfeito31 , se acrescentarmos uma filosóficas da Antiguidade e da Idade Mé-
nova noção: a de Indiferença (por oposição dia, uma Indiferenciação (descida pela
contraditória com Diferença). A Indiferen- diagonal da esquerda). Igualados os dois
ça (ou Indiferenciação) corresponde a igno- sexos do ponto de vista de uma única fisio-
rar, rediscutir ou desprezar as Diferenças. logia ou modo de encarar os corpos mascu-
Completo, o quadrado semiótico das Igual- lino e feminino (subida pela vertical esquer-
dades e Diferenças ficaria assim: da até o polo da Igualdade no canto superi-
or esquerdo), o passo seguinte é a
visualização de uma “desigualdade natural”
que afetaria a Mulher (descida pela diagonal
direita até o polo da Desigualdade). Eis
aqui, através de um quadrado semiótico, a
narrativa filosófica de uma teoria simulta-
neamente indiferenciadora e desigualadora.
Desconstrói-se a “diferença feminina” para
reinstituí-la, ao final do processo de pensa-
O quadrado semiótico completo, com mento, como “desigualdade feminina”. A
o vértice da Indiferença, conforme nossa Mulher emerge então, nesta filosofia medi-
proposta, permite enxergar a questão da eval, como um Homem incompleto ou, em
Desigualdade e Diferença sob outros ângu- certas concepções também medievais, como
los. Propositalmente, conservamos as um ser que participa do mesmo padrão fisi-
ambiguidades da palavra Indiferença, para ológico, mas que possui o sexo invertido,
não depurá-la de suas riquezas internas e voltado para dentro. A Desigualdade Sexu-
permitir que o esquema proposto se apli- al, forjada como imposição da própria Natu-
que, funcionalmente, a um número maior reza, adquire aqui legitimidade: irá dar su-
de casos. Por um lado, a noção de Indife- porte a um mundo de dominação masculi-
na cuja história não será preciso contar mais
uma vez.
31
A operacionalização de “quadrados semióticos” para a com- A Desconstrução deste processo, na-
preensão do discurso é uma das bases da teoria semiótica pro- turalmente, teria de ser realizada, historica-
posta por Greimas e Courtés. Referências fundamentais perti- mente, pela subida através da vertical di-
nentes a esta abordagem poderão ser encontradas em obras
básicas destes dois autores: De GREIMAS, Semântica Estru- reita: da Desigualdade natural passa-se, no-
tural (1973); Sobre o sentido: ensaios semióticos (1975); De vamente, à Diferença, em um processo que
COURTÉS, Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva
(1979). Ver ainda GREIMAS e LANDOWSKI (1986).
alguns autores costumam identificar na Re-
nascença, e outros já preferem enxergar em ver. Neste caso, estariam sofrendo uma de-
um momento mais adentrado da Idade sigualdade relativa ao acesso às possibilida-
Moderna. De qualquer maneira, fica o des de executar atividades relacionadas à
exemplo para ilustrar como a compreensão escrita.
dos quatro conceitos ajustados inter- A Indiscriminação envolve também a
relacionalmente – Igualdade, Diferença, possibilidade de tratar “igualmente” seres
Desigualdade e Indiferença – pode auxiliar diferentes ou seres submetidos a condições
a decodificação de narrativas filosóficas ou desiguais, particularmente em detrimento
históricas sobre o jogo de desigualdades so- das classes ou dos grupos menos favoreci-
ciais que têm afetado as diferenças sexuais dos socialmente, ou mesmo em relação a
entre o masculino e o feminino. grupos que sofram algum tipo de discrimi-
É muito interessante observar, ainda nação ou de desigualdade relativa ao acesso
que a Indiferença tenha agora, particular- a bens e serviços. Nesse sentido, uma ques-
mente, o sentido último de “ser indiferen- tão ainda mais delicada relacionada aos pro-
te a algo” (por alienação ou por menospre- blemas que envolvem a Indiferença ou a
zo), também pode produzir injustiças soci- manipulação da Indiferença e às resistênci-
ais de outros tipos, e isto também pode afe- as a estas refere-se às chamadas “políticas
tar as relações entre os gêneros. Considere- de ação afirmativa”, mais recentes na histó-
mos, para trazer um exemplo de fora do ria da luta contra o racismo e outras formas
âmbito da sexualidade, que determinada de descriminação. O que são as “políticas
parcela de qualquer população é, habitual- de afirmação” senão uma forma de resistên-
mente, constituída de deficientes físicos de cia contra a “Indiscriminação”, aqui toma-
vários tipos. A Indiferença em relação a es- da no sentido de um tipo de
tes deficientes reintroduz o problema da desconsideração das diferenças e desigual-
Desigualdade, mas de outra forma. Se não dades que termina por estabelecer uma de-
existissem, por exemplo, as plataformas es- sigualdade com aparência de igualdade? As
peciais para os deficientes motores que não “políticas de afirmação” correspondem, nes-
podem subir ou descer escadas, eles estari- ta formulação teórica, a enfrentar, afirmati-
am impedidos de chegar a determinados vamente, a prática da Indiferenciação
locais e, portanto, estariam sofrendo uma (desconsideração de diferenças e desigual-
desigualdade em relação ao critério da mo- dades anteriores), resultando que, desta prá-
bilidade física. Da mesma forma, se alguns tica – e é isto, precisamente, o que as polí-
programas de televisão não apresentassem ticas de afirmação buscam combater –, não
em uma tela à parte a imagem de alguém se esconda sob a capa da Igualdade a Desi-
comunicando o discurso da tela principal sob gualdade, como o lobo em pele de cordei-
a forma de linguagem gestual de sinais, a ro32 .
parcela de deficientes auditivos seria priva- Em relação ao problema que presen-
da do acesso às informações. temente nos ocupa – o das desigualdades
Estes exemplos mostram que, em sexuais que terminam por se superpor às
muitas situações, não considerar as Diferen- diferenças sexuais e, particularmente, afe-
ças – isto é, agir com Indiferença – pode
implicar reintroduzir o problema da desi- 32
Para Hasenbalg, a aplicação de ações afirmativas visaria à Igual-
gualdade social em um outro nível. Outro dade no plano dos direitos entre grupos e corresponderia a tra-
exemplo é o das carteiras escolares que pos- tamentos preferenciais concedidos a indivíduos pertencentes
suem, em um dos lados, uma tábua para a certos grupos (de raça ou gênero), precisamente para com-
pensar a discriminação no passado – esta mesma instituidora
apoiar cadernos. Elas preveem, habitual- de desigualdades no presente (HASENBALG; SILVA, 1990).
mente, os alunos destros, que constituem a Ver ainda, sobre as ações afirmativas, o ensaio de A. S. Guima-
maior parte da população; mas, muito fre- rães sobre “A Desigualdade que anula a Desigualdade: notas
sobre a ação afirmativa no Brasil” (1999), atentando para a de-
quentemente, existe ao menos uma cartei- finição bastante precisa que dá ao novo conceito: “a antiga no-
ra canhota para cada vinte destras. Natural- ção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado deci-
sões de cortes americanas, conservando o sentido de reparação
mente que, se não existisse certo número por uma injustiça passada. A ação afirmativa moderna se refere
de carteiras escolares para os alunos canho- a um programa de políticas públicas ordenado pelo Executivo
tos, eles teriam de enfrentar dificuldades ou pelo Legislativo ou implementado por empresas privadas,
para garantir a ascensão de minorias étnicas, raciais e sexuais”
adicionais ou grandes incômodos para escre- (GUIMARÃES, 1999, p. 154).
tar as mulheres em várias sociedades histó- formação. O Sexo ou a Cor, quando invoca-
ricas –, seria de se perguntar se, com vistas dos como dados integralmente oferecidos
a superar as desigualdades que afetam as pela própria natureza, encobrem aquilo que
mulheres diante do mercado de trabalho nas há de histórico e cultural não apenas na cons-
sociedades contemporâneas, também não trução social do Gênero, Etnia ou da Raça,
haveria a possibilidade ou a necessidade de mas do próprio Sexo e da própria Cor.
se instituir certas “políticas de afirmação”, Compreender a historicidade de uma
como já existem no interesse de se comba- Diferença, de seus modos de percepção, de
ter as desigualdades raciais e também as seus processos de transformação e de sua
relativas a diversos tipos de minorias. De própria instituição como Diferença é assu-
igual maneira, encontra-se em aberto o pro- mir o poder de transformá-la, de decidir pela
blema de se pensar a inclusão das diferen- sua permanência transformada ou pela sua
ças sexuais que destoam do dimorfismo tra- superação, de propor novas divisões no in-
dicional, tal como as que discutimos no item terior de um mesmo critério de diferenças,
2 deste artigo. ou, se for o caso, de estender a dife-
rencialidade possível à própria multi-
8 Considerações finais plicidade humana. As Diferenças – em que
pese pertençam ao âmbito das “essências”
O problema da Desigualdade no mun- ou das “modalidades de ser” (por oposição
do moderno e, particularmente, o das desi- ao âmbito das circunstâncias, que afeta, ha-
gualdades que se acoplam às diferenças se- bitualmente, as desigualdades de diversos
xuais, estão longe da luz ao final do túnel. tipos) – são, de todos os modos, “essências”
De qualquer forma, um programa respon- social e historicamente construídas, na ver-
sável pelo combate à Desigualdade deve dade “essências em construção”. Compre-
partir, antes de mais nada, de uma compre- ender isto é chamar a si a possibilidade de
ensão muito clara e precisa do que é, pro- participar desta construção, em favor de um
priamente, a Desigualdade – no sentido fi- mundo com menos desigualdades, maior li-
losófico, sociológico, antropológico, históri- berdade de escolhas, maior riqueza de al-
co, humano – e também da compreensão ternativas e possibilidades de expressar as
sobre aquilo que distingue Desigualdade e diferenças e maior consciência da comple-
Diferença. Em seguida, um estudo mais sis- xidade humana. A diferença entre os sexos,
temático das relações e possíveis interações a mais antiga das diferenças, abre-se, certa-
entre Desigualdade e Diferença nos vários mente, como um dos campos mais impor-
meios sociais e tempos históricos – e em tantes na luta pela extinção ou minimização
âmbitos tão diversos, como a sexualidade, a da desigualdade nas sociedades humanas.
nacionalidade, a etnia, a religião, a educa-
ção – pode permitir que se compreenda
melhor como os sistemas de dominação, os 9 Referências bibliográficas
mais sutis ou os mais explicitamente cru-
éis, valem-se, frequentemente, de desloca- AQUINO, São Tomás. Suma teológica. v. I a
mentos diversos entre os âmbitos da Desi- XVII. Madrid: La Editorial Católica, 1953a.
gualdade e Diferença, forçando a leitura de
um como se fosse o outro, de modo a me-
lhor exercer a dominação. As relações entre AQUINO, São Tomás. Suma contra los
Desigualdades e Diferenças emergem aqui gentiles. v. I e II, Madrid: Biblioteca de Autores
como um verdadeiro campo de estudos, cla- Cristianos – La Editorial Católica, 1953b.
mando por conceitos e metodologias própri-
as. ARAN, Márcia. A transexualidade e a
Certamente, a historicidade mostra-se gramática normativa do sistema sexo-gênero,
fundamental para este tipo de estudo. Tan-
Ágora, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, 2006.
to as Desigualdades como as Diferenças são
históricas, sociais e culturais, mesmo quan- BENJAMIN, Harry. Il fenomeno transessuale.
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