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“FORMAS QUE PRECEDERAM A PRODUÇÃO CAPITALISTA” COMO PONTO DE

INFLEXÃO NA OBRA DE MARX?


ALGUMAS QUESTÕES DE INTERESSE PARA O ESTUDO DO MERCADO MUNDIAL
Flávio Ferreira de Miranda

Resumo:
Este artigo tem por objetivo oferecer uma leitura do famoso texto Formas que precederam a
produção capitalista, de Marx, sob a ótica de questões de interesse para o estudo do mercado
mundial. Primeiro, nos perguntamos quanto à existência de preconceito eurocêntrico no Formas,
através da postulação de um modelo unilinear para o desenvolvimento histórico. Após oferecermos
uma resposta negativa a esta primeira pergunta, nos sentimos impelidos a oferecer uma avaliação da
posição segundo a qual o Formas representaria um momento de ruptura na obra de Marx,
exatamente no que diz respeito à questão acima. Expressamos a nossa insatisfação com essa
hipótese, tendo por base escritos anteriores de Marx, como A Ideologia Alemã, escrito em co-autoria
com Engels, que servem de base para a demonstração de uma notável unidade na teoria da história
marxiana desde a década de 1840 até os famosos escritos sobre a Rússia em seus últimos anos.
Palavras-chave: Mercado mundial; teoria da história; periferia; sociedades pré-capitalistas;
marxismo.

Abstract:
This paper has the aim of offering a interpretation of Marx's Forms which precede capitalist
production under the perspective of questions of interest for understanding the world market. First,
we deal with the question of wetter or not the text contains eurocentric prejudices such as a defense
of an unilinear model of historical development. After rejecting this hypothesis we offer an answer
for the hypothesis that Forms constitutes a turning point in Marx's works in respect to the previous
question. We reject such hypothesis on the basis of Marx's previous writings such as The German
Ideology, in collaboration with Engels, that shows an outstanding unity in his works since then till
his writings about Russia in his last years.
Key-words: World market; theory of history; periphery; pre-capitalist societies; marxism.
Introdução
Este artigo tem por objetivo oferecer uma leitura do famoso texto Formas que precederam a
produção capitalista1, de Karl Marx, sob a ótica de questões de interesse para o estudo do mercado
mundial. Acreditamos que a obra de Marx constitua o ponto de partida mais fecundo para que sejam
entendidas as complexas inter-relações entre os países que, em linhas gerais, são determinadas pela
forma como estes se inserem na lógica global de acumulação de capital. Para tanto, defendemos a
necessidade do estudo rigoroso do método marxiano, como condição para o engajamento em um
debate tão qualificado e extenso como o que se trava no âmbito do marxismo quanto ao significado
da categoria “mercado mundial” e do qual o atual resgate da teoria marxista da dependência
corresponde um notável exemplo.
Assim, com base no texto em análise jogamos luz sobre questões metodológicas que,
segundo nos parece, correspondem a alguns dos pilares fundamentais do edifício teórico legado por
Marx. O fazemos através da apresentação da nossa leitura do Formas, para a qual remetemos a
importantes autores que nos ajudam a entendê-lo (mesmo quando deles discordamos em um ou
outro aspecto) e a outros textos de Marx.
Tal apresentação serve com preâmbulo para o tratamento de duas questões controversas no
âmbito do marxismo quanto à forma como Marx tratou a relação entre os países centrais do
capitalismo e sua periferia, e sobre como podemos entender essa relação a partir da obra de Marx.
Primeiro, nos perguntamos quanto à existência de preconceito eurocêntrico no Formas, através da
postulação de um modelo unilinear para o desenvolvimento histórico, ou seja, a ideia de que a obra
de Marx postularia a inevitabilidade histórica do desenvolvimento capitalista nos moldes do
ocorrido na Europa ocidental. A resposta negativa a esta questão se baseia nos fundamentos do
materialismo histórico, tal qual apresentado por Marx neste e em outros textos. Em seguida, nos
sentimos impelidos a oferecer uma avaliação da hipótese – levantada por teóricos marxistas
extremamente importantes e com os quais possuímos muitas afinidades teóricas e práticas – de que
o Formas representaria um momento de ruptura na obra de Marx, exatamente no que diz respeito à
questão acima. Isto é, para estes autores até o Fomas a teoria de Marx seria portadora de uma noção
unilinear para o desenvolvimento histórico, tecnologicamente determinista, o que revelaria os
preconceitos eurocêntricos do autor. Expressamos a nossa insatisfação com essa hipótese, tendo por
base escritos anteriores de Marx, como A Ideologia Alemã, em coautoria com Friedrich Engels, que
servem de base para a demonstração de uma notável unidade na obra marxiana no que diz respeito a
essa questão, desde os anos 1840 até os famosos escritos sobre a Rússia em seus últimos anos.

1 Doravante Formas.
Os objetivos do Formas
Em se tratando de entender os objetivos específicos de Marx ao escrever o famoso trecho
Formas que precederam a produção capitalista em seus primeiros esboços de preparação para O
Capital, os Grundrisse, ao menos com relação a um aspecto parece-nos não haver espaço para
muitas dúvidas: desde as primeiras linhas do texto fica claro que não se trata, como pode parecer a
uma leitura apressada, de uma mudança no objeto de estudo de Marx. Não apenas neste texto, como
em toda a sua obra, a sociedade capitalista, em perspectiva histórica e em suas leis imanentes de
movimento, é o alvo. Não é a toa que a primeira frase do texto indica que o estudo (neste caso,
como em todos os Grundrisse, apenas para o auto-esclarecimento do autor, isto é, não para
publicação) diz respeito ao movimento histórico que teve por resultado “a separação do trabalho
livre das condições objetivas de sua realização”. (MARX, 2011, p. 388) Com ainda maior ênfase
Marx afirma algumas páginas à frente:

“O que nos interessa aqui, antes de tudo: o comportamento do trabalho em


relação ao capital, ou às condições objetivas do trabalho como capital,
pressupõe um processo histórico que dissolve as diferentes formas em que o
trabalhador é proprietário, ou em que o proprietário trabalha”. (Ibid., p. 408)

Importa-lhe, portanto, investigar as condições necessárias para um dado resultado histórico


que é, ao mesmo tempo, pressuposto da produção capitalista e constantemente posto (em escala
ampliada) pelo movimento imanente a esse modo de produção: a relação entre capital e trabalho. A
análise de Marx é, portanto, retrospectiva, ou, se preferem, post festum. Dado o resultado, deve-se
elucidar as condições necessárias, embora nunca suficientes, para a sua emergência. Não se trata, no
caso de Marx (como supõe alguns erros grosseiros de interpretação), que tal coisa, como por
exemplo a separação entre trabalhadores e condições objetivas do trabalho, tenha surgido em função
de um resultado pré-determinado (teleologicamente), a produção capitalista neste caso, mas que este
resultado pressupõe aquela separação. Uma observação tão simples quanto essa nos parece
suficiente para o descarte de um número considerável de acusações que imputam a Marx algum tipo
de determinismo histórico.
Pode-se concluir que assim como “a anatomia do homem é a chave para anatomia do
macaco”, a “anatomia” do modo de produção capitalista é a chave para a “anatomia” das sociedades
pré-capitalistas. Se, por um lado, isso não significa, de maneira alguma, que as mais diversas
formações sociais precedentes desembocariam, necessariamente, na sociedade capitalista, como
Marx deixa claro no Formas, por outro, o contato entre um modo de produção que tem por lei
imanente a superação de todas as barreiras externas que se lhe antepõe (embora apenas na medida
em que repõe essas barreiras em mais alto nível de complexidade) e modos de produção que não
possuem essa tendência interna, deve resolver-se na dominação destes por aquele.
Eric Hobsbawn destaca o fato de que a dedicação de Marx ao estudo de períodos históricos
outros que não o capitalista se deu “principalmente na medida em que o levava às origens e ao
desenvolvimento do capitalismo”. (HOBSBAWN, 2006, p. 23) E, perece-nos lícito acrescentar: na
medida em que jogasse luz sobre as condições gerais para o desenvolvimento histórico, ou seja, as
condições a partir das quais a reprodução de um determinado conjunto de relações sociais engendra
a sua própria negação. Acreditamos que seja este o sentido da análise da constituição interna de três
modos de produção pré-capitalistas (asiático, greco-romano e germânico) que, entre outras coisas,
possuem em comum o fato de que os indivíduos que trabalham, enquanto membros de uma
comunidade, comportam-se como proprietários das condições objetivas do trabalho, isto é, o fato de
não ter sido quebrada ainda a unidade entre trabalhadores e meios de produção. A forma como a
lógica subjacente à reprodução de cada um desses modos de produção contém, ou não, a tendência a
criar essa separação é o tema de Marx. Ainda de acordo com Hosbsbawn: “Na verdade, como
sempre – embora, aqui, de um modo mais geral – não está preocupado com a dinâmica interna dos
sistemas pré-capitalistas, exceto na medida em que explicam as condições prévias do capitalismo”.
(Ibid., p. 43)
Nada no texto indica que Marx estivesse tratando esses modos de produção como se
fizessem parte de uma sequência histórica específica. Assim, parece-nos que a sugestão de Ellen
Wood (2004), segundo a qual os erros históricos de Marx a respeito da caracterização do modo de
produção greco-romano teriam comprometido a sequencia de modos de produção proposta por
Marx no Formas é indefensável de saída. Muitas mediações, de ordem social e relativas à
constituição geoclimática das diferentes regiões nas quais essas comunidades se fixaram, devem ter
determinado esses diferentes resultados históricos. Não nos parece que o Formas defenda que a
antiga civilização Grega tenha emergido do comunalismo primitivo como uma alternativa ao modo
asiático2. A despeito disso, não se pretende debater com a autora em seus apontamentos sobre a
história da civilização greco-romana. Simplesmente não dispomos de meios para tanto. Podemos
apenas salientar que Eric Hobsbawn (2006) e Ciro Cardoso (1982) ressaltam o estágio embrionário
das pesquisas sobre modos de produção antigos à época do Formas. Marx, contudo, esteve sempre

2 “There are no known examples of an 'ancient' form, as a pristine transition from primitive communalism and
an alternative to the 'Asiatic'”. (WOOD, 2008, p. 82)
tão bem informado sobre essas sociedades quanto os estudos arqueológicos de sua época o
permitiram.
Não obstante, Wood relata alguns problemas na caracterização da forma Germânica.
Segundo a autora:

“Marx probablly exaggerates the individualism of German tribes, since the


archeological record suggests a fairly consistent pattern of village
settlement. But the real problems in his account have more to do with
traditional conventions about barbarian invasions of the Roman Empire,
which seem to suggest incursions by more or less pristinely 'Germanic
tribes', emerging more or less untouched form the forests of the north”.
(WOOD, 2004, p. 84)

Mais uma vez foge à nossa capacidade debater os avanços mais recentes da historiografia
sobre modos pré-capitalistas de produção (a esse respeito preferimos confiar nas informações
trazidas por Wood). Devemos, contudo, analisar essas afirmações à luz do texto de Marx. Neste
caso, não nos parece que Marx tenha tratado da forma Germânica como um caso de
desenvolvimento isolado das demais formações sociais, mas que tal impressão possa surgir
mediante o elevado nível de generalidade dos apontamentos de Marx, assim como a impressão de
que a sociedade greco-romana teria emergido do comunalismo tribal como uma alternativa ao modo
oriental. Obviamente que tal nível de abstração está relacionado aos objetivos do texto. A análise de
mais uma passagem de Wood deve nos ajudar na exposição deste argumento. A partir da posição de
que as práticas e instituições relativas à forma Germânica são tidas como precursoras do
feudalismo, afirma a autora:

“To the extent that Marx is concerned with the transition from feudalism to
capitalism, what he says about the feudal form is obviously a matter of some
consequence. (…) Marx's account of feudalism in 'Forms which Precede
Capitalist Production' is perhaps most interesting for what is absent from it.
Although there can be little doubt of his conviction that feudalism led to
capitalism, he has very little to say about the internal dynamics of feudalism
that produced this effect”. (Ibid.)

Apesar de concordarmos que Marx pouco fala sobre isso no Formas, achamos que dita
ausência se explica pelo fato de que tais considerações fogem aos objetivos do texto. Aqui importa
analisar a dinâmica interna dos três modos de produção no que diz respeito à possibilidade da
emergência de uma das condições necessárias para o modo de produção capitalista: a “dupla”
liberdade do trabalho. Ou seja, a análise situa-se em um nível mais elevado de abstração, tendo em
vista a necessidade de se captar, em geral, a tendência à transformação, a partir da lógica interna de
reprodução de um ente social, em outras palavras, como a constante posição das condições de
existência de um determinado conjunto de relação sociais cria, ao mesmo tempo, a sua negação.
Exatamente por isso, a partir do texto, “is not entirely clear what it was in the logic of the Germanic
type that conveyed itself to feudalism or helped to bring it into being”. (Ibid.)3
Por enquanto, notemos que essas observações levam Wood à seguinte conclusão:

“The German form, in other words, was important in promoting the


development of capitalism not so much because of its own internal dynamic
but because it left available spaces within which 'bourgeois' culture and
economic activity could freely develop. (…) In 'Forms which Precede
Capitalist Production', he [Marx] has not yet entirely broken with most
common question-begging accounts of how capitalism originated. Classical
political economy and Enlightenment theories of progress had tended to
assume the existence of 'commercial society' or capitalism in order to
explain its coming into being: the urban economy of merchants and
craftsmen contained the elements of 'commercial society', more or less by
definition, and all that was required to bring about its full maturity was to
release the commercial economy from bondage and sweep away the
obstacles to its development. The remnants of this view are still visible in
Marx's theory of 'interstices' and his account of the role played by Germanic
forms in opening the road to capitalism”. (Ibid., p. 85)

Para Wood ao menos até a época da redação dos Grundrisse, Marx identifica-se, portanto,
no que diz respeito à gênese do capitalismo com autores que viam este resultado histórico como a
plena realização de propriedades naturais antes inibidas pelas instituições políticas pré-capitalistas.
A libertação dessas amarras políticas representa, para os economistas políticos clássicos, a vitória
do capitalismo e, ao mesmo tempo, o ponto alto da história da humanidade. Nesse caso, Wood diria
que para Marx, ao menos até 1858, “the whole historical process that culminates in capitalism may
still be driven by some inevitable transhistorical tendency to improve the forces of production
through the division of labour and technological improvement”. (Ibid., p. 86) Na nossa visão,
contudo, tal associação é absolutamente inaceitável! Marx jamais tratou as relações sociais
capitalistas como tendo emergido de supostas propriedades naturais e, portanto, a-históricas, dos

3 Não se pode perder de vista que se tratam de linhas escritas como preparação para o que viria a ser O Capital,
tendo por objetivo o auto-esclarecimento de seu autor. Portanto, mais do que pelo o que está ausente (cuja explicação
pode inclusive obedecer a fatores de ordem não-teórica), o texto deve ser julgado pelo que oferece.
seres humanos. Além disso, pelo menos desde A Ideologia Alemã, a teoria da história proposta por
Marx não comporta nenhum tipo de determinismo tecnológico. Em vez de postular uma relação de
antecedência necessária, única e exaustiva entre as forças de produtivas e relações sociais de
produção, Marx, coerente com seu método dialético, percebe que a determinação recíproca é a
forma adequada para apreender teoricamente essa relação4. Além disso, o lugar das forças
produtivas como momento predominante diz respeito apenas ao seu papel condicionante, de
limitador de possibilidades (por exemplo, não pode haver uma sociedade de classes se o
desenvolvimento das forças produtivas não permite a produção para além das necessidades dos
produtores diretos)5.
Dos três modos de produção considerados, o asiático, apesar de ter sido de longe o mais
controverso, seria aquele cujas observações de Marx seriam as menos problemáticas tendo em vista
a evolução da pesquisa arqueológica e da historiografia sobre essas sociedades em comparação com
a época de Marx, segundo Wood (2008). A autora diz existirem evidências da existência de estados
arcaicos muito próximos do que Marx considerou como modo oriental, mesmo que não se
localizem predominantemente na Ásia.
Parece-nos que esta observação está de acordo com as de Ciro Cardoso (1982) que lembra
que se o termo “modo de produção asiático” surgiu para dar conta das diferenças entre Índia e
China, de um lado, e o mundo capitalista desenvolvido de meados do século XVIII de outro, em
18536, seu uso no Formas, isto é, a ênfase na persistência das comunidades agrárias auto-
subsistentes, torna-o aplicável a outros tipos de sociedades, entre as quais o Egito faraônico. “Em
outros termos, o 'modo de produção asiático' se converte assim, numa das formas possíveis – entre
diversas outras – da passagem de uma sociedade tribal comunitária a uma sociedade de classes e
com Estado desenvolvido”. (CARDOSO, 1982, p. 39) Cardoso vai além ao apontar que diante de
tamanho grau de generalidade da categoria,

“o Egito antigo talvez constitua o caso histórico que melhor reflete tal
modelo, em virtude de um controle mais persistente exercido pelo Estado
sobre as tentativas de formação de uma propriedade privada (a qual existiu,
mas não a ponto de alterar o esquema social básico) e sobre as atividades

4 Falaremos um pouco mais sobre isso abaixo, no entanto deve-se apontar que todas as observações a esse
respeito, aqui e mais à frente no texto, seguem as indicações de André Guimarães Augusto (2011), Marcelo Dias
Carcanholo e André Guimarães Augusto (2013) e Saludjian et alli (2013).
5 Para um tratamento mais completo dessas questões remetemos a Saludjian et alli (2013).
6 “É a 10 de junho que Marx trata pela primeira vez publicamente do modo de produção asiático; ele acabava de
trocar suas ideias a esse respeito com Engels numa carta enviada a 2 de junho, à qual Engels responde a 10 de junho”.
(MANDEL, 1968, p. 121)
artesanais e mercantis”. (Ibid., p. 40)

O texto apresenta argumentos críticos à, assim chamada, “hipótese hidráulica” que, como
sabemos, figura nas primeiras formulações de Marx e Engels sobre o modo de produção asiático
como hipótese explicativa para a notável resistência à transformação social nessas sociedades.
Cardoso aponta que as evidências de queda pronunciada da pluviosidade entre os anos 3300 e 3000
antes de cristo, que teriam tornado tanto a agricultura quanto a criação de gado crescentemente
dependentes da irrigação, faz com que seja “forte a tentação de atribuir a unificação do Egito num
só reino, ocorrida por volta do ano 3000, à necessidade de uma administração centralizada das obras
de irrigação para o bom funcionamento da economia agrícola num país de clima desértico”. (Ibid.,
p. 5) Em primeiro lugar, segundo Cardoso, seriam altamente contestáveis as indicações sobre a
irrigação no Egito Antigo. Por exemplo, apenas a partir do Reino Médio (2040-1640 a.c.) escritos
explícitos tratando da irrigação tornam-se mais abundantes e muitas afirmações a respeito da
importância das obras de irrigação baseiam-se em passagens de autores greco-romanos, ao invés da
Arqueologia ou documentos da época faraônica. (Ibid., p. 7) Além disso, as condições do Egito
Antigo comparativamente às da Mesopotâmia indicam a necessidade de um sistema hidráulico mais
simples para a agricultura irrigada. (pp. 7-8) Em suma:

“A irrigação não pode, (…), ser vista como a causa do surgimento do Estado
centralizado e da civilização egípcia: pelo contrário, um sistema
centralizado de obras hidráulicas para a agricultura irrigada surgiu como um
resultado tardio da existência de um Estado forte. Note-se que o abandono
da 'hipótese hidráulica' não significa que a irrigação não fosse muito
importante. E, inclusive, uma vez instalado um sistema planejado e
centralizado de irrigação, mesmo tardiamente, nas novas condições o
controle institucional unificado da rede de canais e diques acabou por
transformar-se em algo necessário: sua ausência poderia agora provocar
uma catástrofe econômica, já que se tornara difícil voltar à descentralização
anterior”. (Ibid., p. 8)

Dito isto, deve-se notar que a “hipótese hidráulica”, embora muito comum à sua época, fora
abandonada por Marx, ou, ao menos, deixou de figurar nas formulações posteriores a respeito das
características fundamentais de sociedades como esta.
Em seguida, é atacada a tese da “estagnação tecnológica”, segundo a qual a sociedade
egípcia antiga (assim como outras que podem ser incluídas sob a rubrica do modo de produção
asiático) apresentaria uma incapacidade de desenvolver as forças produtivas. Sobre isso, Cardoso
aponta, especialmente, para a ilegitimidade metodológica da comparação histórica com o mundo
contemporâneo. O avanço tecnológico ininterrupto como tendência imanente é uma singularidade
do modo de produção capitalista. “Em todas as sociedades pré-capitalistas, o que temos são fases de
'revolução tecnológica', de surgimento de nova tecnologia, às quais se seguem períodos mais ou
menos longos em que o novo nível técnico é explorado e aperfeiçoado, e se estende a novas
regiões” (Ibid., p. 10). Em outro momento do texto Cardoso afirma que:

“Foram bastante frequentes, no passado, as interpretações das estruturas


econômico-sociais do Egito faraônico que apelavam para conceitos como os
de escravismo, feudalismo ou mesmo capitalismo, todos anacrônicos ou
inadequados às realidades específicas da vida às margens do Nilo durante o
longo período considerado neste livro. Tais generalizações de categorias
derivadas da História antiga ou recente do mundo mediterrâneo-europeu a
uma experiência histórica consideravelmente distinta deram, como era
natural, resultados muito ruins e pouco convincentes”. (p. 38)7

Se o uso de conceitos trasladados da realidade europeia imediatamente para o resto do


mundo em diferentes tempos históricos pode ser enquadrado, sem grande controvérsia, como
eurocentrismo, deve-se apontar que tal princípio não se faz presente na teoria marxiana. Cardoso
afirma que essa ideia de estagnação tecnológica “oriental” teria surgido como projeções sobre o
passado de comparações entre China e Índia, de um lado, e a Europa Ocidental, de outro, no século
XIX. “Ora, comparações entre sociedades situadas em pontos extremamente diferentes de evolução
econômico-social carecem de sentido, são metodologicamente inaceitáveis”. (Ibid., p. 10) Tomando
isso por suposto, o que queremos salientar é que definitivamente não foi essa a posição de Marx.
Claro está que não é isso que Marx faz no Formas. Como já dissemos, o objetivo do texto é analisar
a capacidade interna de diferentes modos de produção, em um nível bastante elevado de
generalidade, em produzir o resultado específico da destruição da unidade entre trabalhadores e
meios de vida que as sustenta. Ou seja, a ideia de persistência de um determinado conjunto de
relações sociais no Formas (assim como em outros escritos de Marx) é apenas relativa, apontando
para a incapacidade de geração autônoma das condições necessárias para a emergência do modo de

7 Maurice Godelier crítica a hipótese da estagnação tecnológica por outro caminho argumentativo: “Se o
aparecimento do Modo de Produção Asiático significa o nascimento de uma primeira estrutura de classes de contornos
ainda indecisos, pode-se supor a existência da apropriação regular de uma parte do trabalho das comunidades por essa
classe, ou seja, a existência de um excedente regular. Do ponto de vista da dinâmica das forças produtivas, a passagem
de uma sociedade ao Modo de Produção Asiático não significaria uma estagnação, mas, ao contrário, atestaria um
progresso das forças produtivas. (…), sob diversas formas, o Modo de Produção Asiático significa, em sua origem, não
o estancamento mas maior progresso das forças produtivas realizado sobre a base das antigas formas comunitárias de
produção”. (GODELIER, 1982, p. 87)
produção capitalista.
Em outros textos, como o The Future Results of British Rule in India, publicado no New
York Daily Tribune a 8 de agosto de 1853, Marx afirma:

“A country not only divided between Mahommedan and Hindoo, but


between tribe and tribe, between caste and caste; a society whose
framework was based on a sort of equilibrium, resulting from a general
repulsion and constitutional exclusiveness between all its members. Such a
country and such a society, were they not the predestined prey of conquest?”
(MARX, 1999)

Como já observamos, há que se indagar se o resultado mais provável do encontro entre


mundo capitalista desenvolvido, com sua tendência imanente ao aumento da produtividade, à
expansão do processo de acumulação de capital para além de quaisquer fronteiras nacionais etc., e
sociedades pré-capitalistas (como a indiana da primeira metade do século XIX) não seria mesmo o
previsto por Marx, ou seja, a dominação colonial. Os acontecimentos históricos, por fim, deram-lhe
razão: a Índia, a China e outras partes do globo terrestre seriam mesmo conquistadas, ou seja,
lançadas na órbita do processo global de acumulação de capital de maneira subordinada. Por mais
que Índia e o capitalismo europeu situassem-se em pontos “diferentes de evolução econômico-
social”, a reprodução capitalista (ampliada, em sua forma típica) colocou aquela sociedade frente a
si e à força de suas armas. A incorporação deu-se a ferro, fogo e capital. Nas palavras de Marx em O
Manifesto do Partido Comunista, “Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que
destrói todas as muralhas da China (...)” (MARX & ENGELS, 2010, p. 44). Em 1853 esse resultado
era mesmo inevitável: aquelas regiões estariam condenadas a servir como apêndice da acumulação
do capital que afluía desde a Europa Ocidental, desenvolvendo-se economicamente a reboque dos
países centrais, isto é, de maneira desigual e combinada.
Apesar disso, não se pode deixar de notar que, nesses mesmos textos, a análise de Marx
sobre os possíveis resultados do avanço imperialista sobre a Ásia está recheada de expressões e
observações que, a despeito de poderem ser consideradas floreios retóricos, revelariam uma suposta
teoria determinista da história ou, em outras palavras, uma visão unilinear para o desenvolvimento
histórico8. Em The British Rule in India, artigo que precede o anteriormente citado, publicado em
25 de junho de 1853, diz Marx:

8 Como apontam, entre outros, Kohan (2009) e Anderson (2008).


“England, it is true, in causing a social revolution in Hindostan, was
actuated only by the vilest interests, and was stupid in her manner of
enforcing them. But that is not the question. The question is, can mankind
fulfil its destiny without a fundamental revolution in the social state of Asia?
If not, whatever may have been the crimes of England she was the
unconscious tool of history in bringing about that revolution”.

Parece-nos que apenas com base na conjuntura com a qual defrontava-se Marx linhas como
essas devem ser julgadas. Aliás, era exatamente essa a sua função como articulista do New York
Daily Tribune: análise da conjuntura internacional. Se a dominação era inevitável, é de se esperar
que o movimento expansivo do capital aprofundasse todas as contradições que trazem a
possibilidade de sua negação. Isto é, de maneira alguma pode-se concluir que o objetivo de Marx
em artigos como o citado fosse o de oferecer elementos para a construção de uma teoria da história.
No entanto, expressões como “destino da humanidade” e “ferramenta inconsciente da história”
parecem, e estão, completamente fora de lugar na teoria de Marx. Referimo-nos não apenas a um
Marx “maduro” que defende a possibilidade de que a obshchina (comuna rural russa)
correspondesse à “alavanca da regeneração social da Rússia”, em carta a Vera Zasulitch a 8 de
março de 1881, mas ao homem de vinte e sete anos que, em parceria com um Engels dois anos mais
moço, assina um texto que contém as seguintes linhas:

“A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que


cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a
ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela
continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por
outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas
condições, o que então pode ser especulativamente distorcido, ao converter-
se a história posterior na finalidade da anterior, por exemplo, quando se
atribui à descoberta da América a finalidade de facilitar a irrupção da
Revolução Francesa, com o que a história ganha finalidades à parte e torna-
se uma 'pessoa ao lado de outras pessoas' (…) enquanto o que se designa
com as palavras 'destinação', 'finalidade', 'núcleo', 'ideia' da história anterior
não é nada além de uma abstração da história posterior, uma abstração ativa
que a história anterior exerce sobre a posterior”. (MARX & ENGELS, 2007,
p. 40)

É categórica e “juvenil”, portanto, a rejeição de teleologia para a história. Isso não significa,
para esta concepção, que a história seja mero resultado aleatório das práticas humanas, nem que os
seres humanos a façam conscientemente, mas que o modo de reprodução de uma formação social
determina um conjunto de possibilidades históricas, não um resultado previamente determinado.
Essas observações preliminares nos permitem acessar algumas questões de interesse no que
tange ao entendimento expresso por Marx acerca do mercado mundial. Em primeiro lugar, haveria
no Formas algo como um preconceito eurocêntrico no que diz respeito à maneira como Marx trata o
mundo não capitalista, ou algo que indicasse uma visão unilinear para o desenvolvimento histórico?
Em segundo lugar, representaria o Formas um ponto de inflexão na obra do Marx no que diz
respeito à maneira como considera as possibilidades de desenvolvimento para os países que se
inserem de formas diferentes no mercado mundial?

Eurocentrismo no Formas?
Segundo Wood, Marx é muitas vezes acusado de eurocentrismo por sua insistência na
relativa fixidez da forma oriental (WOOD, 2008, p. 80)9. Na teoria de Marx (e isso fica
sobremaneira claro no Formas), é o modo como uma sociedade se constitui, ou seja, reproduz-se,
que determina internamente suas possibilidades de desenvolvimento.

“Para que a comunidade continue a existir enquanto tal à maneira antiga, é


necessária a reprodução de seus membros sob as condições objetivas
pressupostas. A própria produção, ou seja, o progresso da população
(também este faz parte da população), abole necessária e gradualmente essas
condições; destrói-as, em lugar de reproduzi-las etc., e com isso desaparece
a comunidade, juntamente com as relações de propriedade sobre as quais
estava fundada. A forma asiática é a que necessariamente se mantém com
mais tenacidade e por mais tempo. Isso se deve ao seu pressuposto; que o
indivíduo singular não devém autônomo em relação à comunidade; que há
um círculo de produção autossustentável, unidade de agricultura e
manufatura etc. Se o indivíduo singular altera sua relação com a
comunidade, então, ele altera a comunidade e atua destrutivamente sobre
ela, bem como sobre seu pressuposto econômico; por outro lado, a mudança
desse pressuposto econômico (…) abole o vínculo real sobre o qual ele se
fundamenta. Em todas as formas, o fundamento do desenvolvimento é a
reprodução das relações pressupostas do indivíduo singular à sua
comunidade – relações originadas mais ou menos naturalmente, ou mesmo
historicamente, mas tornadas tradicionais –, e uma existência objetiva,
determinada, predeterminada para o indivíduo, no comportamento seja com
as condições do trabalho, seja com seus companheiros de trabalho,
companheiros de tribo etc. – desenvolvimento que, por conseguinte, é por
princípio limitado, mas que, superado o limite, representa decadência e
desaparecimento”. (MARX, 2011, p. 398-399)

9 Segundo Del Roio (2008) Marx seria herdeiro de uma tradição que desde Montesquieu apresenta o
“despotismo oriental” como uma forma política diferenciada, inferior, perigosa e própria do Oriente (...)” (DEL ROIO,
2008, p. 19) Marx teria talvez atingido o limite das possibilidades de apreensão e abstração deste paradigma sem,
contudo, conseguir abandoná-lo não apenas no Formas como até mesmo em seus trabalhos maduros. (Ibid., p. 35; p.
49)
Portanto, a relativa fixidez da forma asiática é determinada por sua forma peculiar de
reprodução. Assim, é completamente fora de propósito supor que Marx chega a essa conclusão
através da repetição de preconceitos comuns à sua época. Muito pelo contrário, “a coerência interna
e a simplicidade deste tipo de sociedade, o caráter praticamente indestrutível da comunidade de
aldeia, conduzem o modo de produção asiático a um alto grau de estabilidade”, nas palavras de Ciro
Cardoso. (CARDOSO, 1982, p. 39) Já mencionamos a nossa concordância com a crítica à hipótese
da “estagnação tecnológica” a partir da comparação entre modos de produção essencialmente
diversos, tal qual defendida por Cardoso. No que diz respeito, contudo, à análise derivada da
constituição interna dessa sociedade, Cardoso não se furta a afirmar que “uma vez esgotadas as
virtualidades permitidas pelo nível técnico, a sociedade 'asiática' tende à estagnação”. (Ibid.)
Essa “tendência à estagnação” é determinada por alguns fatores: inexistência formal da
propriedade privada, uma vez que apesar dos produtores diretos se comportarem como proprietários
efetivos das condições de trabalho, estas, assim como o excedente criado, pertencem a um Estado
despótico que se situa acima das comunidades de aldeia; o poder do déspota, de fundamentação
religiosa, implica na direção e controle da economia, divisão do trabalho e construção e manutenção
de obras públicas necessárias para a produção das comunidades, além da organização da defesa
interna e o controle sobre a religião; o fato dos escravos, no sentido comum do termo, não
constituírem a base da produção setorial; e a inexistência de comércio e artesanato como atividades
com autonomia suficiente para alterar a ordem social, de maneira que não há um intercâmbio
cidade-campo, mas o fornecimento unilateral de produtos agrícolas para as cidades que constituem
as sedes do poder despótico. (CARDOSO, 2004, pp. 38-39)10. A leitura que Cardoso oferece da
categoria modo de produção asiático, à luz não apenas dos escritos de Marx e Engels, como dos
avanços recentes no estudo destas sociedades, termina por dar razão a Marx quando este afirma, por
exemplo que:

“Quanto mais tradicional o próprio modo de produção – e este dura muito

10 Isso é muito diferente do que dizer que essas sociedades não possuem história, ou que são essencialmente
imutáveis. Na verdade, julgamos absolutamente errado considerar que “Indian society has no history at all, at least no
known history” (MARX, 1853), com base no próprio materialismo histórico. Apesar da terminologia equivocada, talvez
devida a certo exagero de Marx na busca de um efeito retórico através de suas famosas metáforas, parece-nos que a
forma mais adequada de interpretar essa passagem seja a partir do fato de que em sociedade tendentes à estagnação, o
resultado mais provável é que revoluções sociais ocorram a partir do contato com outras sociedades. Uma vez que a
dinâmica interna das sociedades de tipo oriental possui características tais que a tornam resistentes à desintegração e a
evolução econômica, o contato com a sociedade capitalista deve levar à sua destruição (como de fato levou). Ou seja, a
suposta “ausência de história” não pode ser senão relativa. Não podemos nos esquecer que o objetivo do texto que
contém a passagem acima é o de avaliar as perspectivas da dominação imperialista britânica sobre a Índia.
na
agricultura; dura mais ainda na complementação oriental de agricultura e
manufatura –, ou seja, quanto mais invariável for o processo efetivo da
apropriação, tanto mais constantes serão as antigas formas de propriedade e,
em decorrência, a comunidade de modo geral. Ali onde já existe a separação
entre os membros da comunidade como proprietários privados de si mesmos
como comunidade urbana e proprietários de território urbano, também já
estão dadas as condições pelas quais o indivíduo singular pode perder sua
propriedade, i.e., a relação dupla que o torna cidadão igual aos demais,
membro da comunidade, e que o torna proprietário. Na forma oriental essa
perda dificilmente é possível, exceto por influências completamente
externas, uma vez que o membro singular da comunidade jamais entra em
uma relação livre com ela, e pela qual ele possa perder seu vínculo (objetivo
econômico com a comunidade). Ele é enraizado. Isso depende também da
associação entre manufatura e agricultura, entre cidade (o povoado) e
campo”. (MARX, 2011, p. 405-406)

Ademais, fica (mais uma vez) claro que a forma como a reprodução das relações sociais
estabelecidas cria, como possibilidade, a negação dessas mesmas relações sociais, é tratada por
Marx como uma lei do desenvolvimento histórico de validade geral. Isto significa que cada
formação social tem seu desenvolvimento condicionado por suas próprias contradições internas.
Marx está aqui especialmente preocupado com a forma como os trabalhadores se relacionam com as
condições objetivas do trabalho. Uma relação que “tem a sua realidade viva em um modo de
produção determinado, um modo de produção que aparece seja como comportamento ativo
determinado em relação à natureza inorgânica, como modo de trabalho determinado (…)”. (Ibid., p.
406) As possibilidades do desenvolvimento histórico são relativas, portanto, a cada modo de
produção particular, cada qual resolvendo-se como uma determinada correspondência entre o grau
de evolução das forças produtivas e as relações sociais de produção subjacentes. “Até certo ponto,
reprodução. Em seguida, converte-se em dissolução”. (Ibid.)
Ao comentar essa forma de analisar o problema da evolução dos modos de produção pré-
capitalistas, Hobsbawn afirma categoricamente tratar-se da tentativa mais sistemática de Marx de
enfrentar o problema do desenvolvimento histórico. (HOBSBAWN, 2006, p. 14) Segundo o
historiador, Marx preocupa-se em estabelecer o mecanismo geral das transformações históricas, isto
é, constrói sua argumentação em alto grau de abstração. Assim:

“Devemos, portanto, entender que Marx não se refere à sucessão


cronológica, ou mesmo à evolução de um sistema a partir de seu
predecessor (embora, obviamente, seja este o caso do capitalismo com
relação ao feudalismo), mas à evolução num sentido mais geral”. (Ibid., p.
38)
Wood (2008) concorda com Hobsbawn quando este diz que eventuais equívocos nas
observações históricas de Marx e mesmo o uso de enganadoras informações parciais não afetam a
teoria geral do materialismo histórico. A força de seu método permite que Marx, mesmo submetido
aos limites impostos pelo nível em que se encontrava a historiografia de sua época, seja capaz de
apreender corretamente o movimento da história a partir das contradições internas a uma
determinada formação social. Como observamos acima, o Formas deve ser lido levando-se em
contra esse elevado nível de abstração que reflete as preocupações de Marx ao escrever o texto.
É, portanto, fora de propósito interpretar o texto em questão como portador de uma teoria
unilinear do desenvolvimento histórico. Muito menos faz sentido argumentar que a tendência à
estagnação de certas formações sociais é derivada de preconceitos eurocêntricos. Além disso, a
proposição de um princípio geral para o desenvolvimento histórico não significa a identificação de
um resultado previamente determinado. Ao invés disso, a relação dialética entre força produtivas e
relação sociais de produção, a forma como uma sociedade produz as condições materiais de sua
existência, define um conjunto de possibilidades para o desenvolvimento histórico, nunca um
resultado único e certo. Ou seja, é fundamental que se entenda o lugar da “possibilidade” na teoria
de Marx, a mediação entre o ser e o não-ser, isto é, o que pode vir a ser. Além disso, deve-se ter em
mente que quando Marx fala em leis imanentes a um determinado modo de produção, está falando
em tendências cuja manifestação concreta depende da interação não apenas de fatores relacionados
a outras tendências (muitas vezes opostas), como contingenciais.

O Formas como momento de ruptura na obra de Marx?


Claro está, portanto, que, a partir do Formas, Marx não pode ser acusado de eurocentrismo,
determinismo ou de oferecer uma análise unilinear para o desenvolvimento histórico de países que
se inserem de modo diverso no mercado mundial. Contudo, por outro lado, alguns autores como
Néstor Kohan (2009) e Kevin Anderson (2008, 2010) apontam que este texto marcaria uma ruptura
no pensamento de Marx, exatamente no que diz respeito a essas questões. Isto é, os escritos de
Marx sobre a Índia e a China na década de 1850, o Manifesto do Partido Comunista, entre outros,
conteriam evidências de que Marx partira de uma perspectiva eurocêntrica para entender a realidade
da periferia capitalista, postulando uma rota única de desenvolvimento para os diferentes países, de
maneira que teria avaliado a possibilidade de revoluções no mundo periférico como ilusórias diante
do parco desenvolvimento das relações sociais capitalistas no interior desses países11. Segundo

11 Aricó (1982) situa essa suposta ruptura nos escritos de Marx sobre a Irlanda na década de 1860, enquanto que
Kohan:

“De alguna manera, Marx tenía en ese momento, como presupuesto no


expreso pero omnipresente12, la creencia de que estos trastocamientos del
orden social interno indio eran algo así como el preludio de una repetición
mecánica, ahora en el espacio de la periferia del sistema mundial, de los
mismos estadios de desarrollo industrial por los cuales había pasado
Inglaterra y los países capitalistas más desarrollados”. (KOHAN, 2009, p.
236)

Parece-nos que o imperativo de oferecer explicação para passagens como as que já


mencionamos, por exemplo, sobre a Índia leve esses autores à necessidade de situar em algum
ponto da obra de Marx tal ruptura. Mais do que isso, a própria necessidade de se responder a certas
críticas13 indica a assimilação, ao menos em parte, dessas posições, no caso de Anderson. Quando
este autor menciona os escritos da década de 1850 de Marx sobre a Índia e o Manifesto do Partido
Comunista para concluir que ambos “evidencian implícitamente un modelo unilineal de desarrollo
social en el que Inglaterra era la sociedad más avanzada en aquellos tiempos, con otras
necesariamente siguiéndola, voluntaria o involuntariamente, hacia el futuro capitalista”,
(ANDERSON, 2010, p. 2) somos forçados a apontar que, em certo sentido, foi exatamente isso o
que ocorreu, ou seja, as outras nações transformaram-se mesmo em capitalistas e, nesse sentido,
seguiram a Inglaterra, embora de maneira desigual (subordinada). Da mesma forma, quando
chamam de etnocêntrica a utilização por Marx do termo “bárbaros” para referir-se a sociedade pré-
capitalistas, sentimo-nos obrigado a lembrar que a terminologia era lugar-comum na imprensa da
época. Portanto, antes de Marx, a sociedade que se afirma como dominante, espalhando-se a partir
da Europa Ocidental para todos os recantos do planeta era, ainda é, e não poderia deixar de ser,
etnocêntrica. Kohan aponta que a oposição entre nações “bárbaras” e “civilizadas” representa o
registro de uma certa perspectiva progressista desse “jovem” Marx, segundo a qual a
responsabilidade pela corrente da civilização, isto é, pela história, caberia aos “civilizados”. Neste
sentido, e apenas neste sentido, haveria certa condescendência com o imperialismo na obra de
Marx, uma vez que seu resultado final seria o de levar a “civilização” aos países atrasados.
(KOHAN, 2009, pp. 339-345)
Por outro lado, considerar que Marx realmente trata o desenvolvimento dos países

Löwy (2013) considera que apenas os escritos sobre a Rússia a partir do final dos anos 1870 a indicariam.
12 Destaque nosso.
13 Anderson menciona Edward Said (1978), Jean-François Lyotard (1979) e Robert Tucker (1978).
periféricos ou pré-capitalistas como seguindo “un poco por detrás” as sociedades economicamente
mais avançadas, como Anderson parece sugerir para escritos anteriores aos Grundrisse, é o mesmo
que chamá-lo de economista do desenvolvimento! Ou seja, assim como para os economistas do
desenvolvimento, o problema do subdesenvolvimento, para Marx, seria o da ausência de
desenvolvimento. O sentido do termo “desenvolvimento” neste autor, contudo, é completamente
diferente, remetendo à afirmação das tendências próprias a uma formação social, mesmo que de
maneira desigual14. Muito mais profícua nos parece a abordagem da teoria marxista da dependência
no que diz respeito à existência de uma relação necessária entre centro e periferia, isto é, entre
países desenvolvidos e subdesenvolvidos, no sentido de que o subdesenvolvimento de uns é
condição para o desenvolvimento econômico de outros, e vice-versa.
A despeito disso, é bastante fecunda a abordagem proposta por Anderson de se ler os
Grundrisse e O Capital a luz dos escritos tardios de Marx, em especial, sobre a Rússia e os
cadernos etnológicos. (ANDERSON, 2010, pp. 1-2) O objetivo seria apontar que esses escritos
tardios confirmam os anteriores, no sentido da demonstrarem a inexistência de determinismo
unilinear. Propomos, contudo, ir-se além. Esses textos confirmam a teoria da história proposta por
um Marx ainda mais moço, como em A Ideologia Alemã, apesar de passagens como a que citamos
acima sobre a Índia. Ou seja, esses escritos posteriores, representam um tratamento mais
pormenorizado e aprofundado de questões que já haviam sido abordadas anteriormente em maior
nível de generalidade. Sendo este o caso, estas devem ser explicadas com base em outra hipótese
que não a existência de suposta ruptura na obra marxiana no que diz respeito à sua teoria da
história. A esse respeito concordamos quando Eric Hobsbawn diz:

“Importante distinção se estabelece entre os sistemas que favorecem a


evolução histórica e os que se opõem a ela. O modelo elaborado em 1845-6
[A Ideologia Alemã]15 apenas toca de leve este problema, embora, como
vimos, o ponto de vista de Marx sobre desenvolvimento histórico nunca

14 Isso significa que o entendimento correto do que Marx quer dizer com “desenvolvimento” é a chave para se
entender a seguinte afirmação contida no Prefácio à 1ª edição de O Capital: “O país industrialmente mais desenvolvido
não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro”. (MARX, 2013, p. 78) Como o
próprio autor explica no mesmo parágrafo trata-se das “leis naturais da produção capitalista (…) que atuam e se
impõem com férrea necessidade”. (Ibid.) Nas palavras de Bianca Imbiriba Bonente: “No caso da sociedade em forma
especificamente capitalista, desenvolvimento significa, seguindo a mesma lógica, a operação das leis que emanam da
organização própria da economia regida pelo capital em sentido extensivo (i.e., para uma porção mais ampla do globo,
submetendo uma quantidade maior de formações sociais e seres humanos) e/ou intensivo (comandando momentos mais
amplos da convivência social, como a atividade artística, esportiva, relações afetivas etc.). O trânsito de um estágio
mais baixo de desenvolvimento para um estágio mais alto significa, portanto, a predominância mais ampla da lógica
capitalista na existência social (e não a passagem do pior ao melhor, como quer que esses estados sejam definidos”.
(BONENTE, 2012, pp. 2-3)
15 Adicionado por nós.
tenha sido simplesmente unilinear, nem o tenha, jamais, encarado como um
mero registro de progresso. Seja como for, nos anos 1857-8 o estudo se
encontrava consideravelmente mais avançado”. (HOBSBAWN, 2006, p. 34)

Kohan concorda que em “1846, cuando tenia apenas veintiocho años, Marx había rechazado
los arrogantes intentos que pretendían explicar toda la historia de la humanidad desde un esquema-
receta de matriz filosófica universal”. (KOHAN, 2003, p. 338) De fato, como já mencionamos de
passagem, Marx rejeita peremptoriamente a proposta de se explicar o processo histórico partindo-se
apenas da história das representações dos seres humanos, à margem dos “verdadeiros
acontecimentos históricos”. (MARX & ENGELS, 2007, p. 45) Desta forma, a filosofia da história
pode oferecer meramente “uma receita ou um esquema com base no qual as épocas históricas
possam ser classificadas”. (Ibid., p. 95) A despeito disso, é justamente esta a acusação que recai
sobre Marx quando se insiste, como fazem Kohan (2003) e Anderson (2010), que até o Formas
haveria uma visão unilinear para o desenvolvimento histórico em Marx.
Muito pelo contrário, o que temos em A Ideologia Alemã é uma concepção da história na
qual a negação de uma formação social depende da práxis humana associada a uma determinada
classe que se impõe como universal, cujas condições necessárias para a transformação são derivadas
da exasperação da contradição entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Nessa
relação as forças produtivas aparecem como momento predominante, pois uma vez que a história é
produto da ação prática de seres humanos, a forma como os seres humanos reproduzem-se, isto é,
mantém-se vivos e perpetuam-se geração após geração, é condição sine qua non da história. Deve-
se ressaltar que tal característica ontológica do ser social está longe de significar que as forças
produtivas representem o momento determinante, no sentido do determinismo tecnológico que
postula a existência de uma relação de precedência única e exaustiva entre forças produtivas e
relações sociais de produção16. As forças produtivas, objetivações das capacidades humanas,
assumem tão somente um papel limitador, isto é, o conjunto de possibilidades que diz respeito ao
movimento histórico depende do grau de desenvolvimento das forças produtivas. Um exemplo
simples pode ser encontrado no fato óbvio de que uma sociedade que se organiza de maneira que
um estamento ou classe não trabalha só pode ser possível após o desenvolvimento das forças
produtivas atingir um nível tal que um indivíduo seja capaz de produzir mais do que ele próprio
consome.
Adicionalmente, as forças produtivas são desde sempre sociais, uma vez que envolvem a

16 Veja-se Marcelo Dias Carcanholo e André Guimarães Augusto (2013)


cooperação de seres humanos, correspondendo, ademais, a um legado transmitido às gerações
posteriores. A própria cooperação, por sua vez, é uma força produtiva. Uma vez que forças
produtivas e relações sociais de produção (formas de apropriação) correspondem a uma unidade, a
relação entre elas só pode ser de determinação recíproca. Ou seja, se os meios existentes para a
reprodução (e produção, isto é, criação de novas objetividades e, potencialmente, novas
necessidades) da vida material condicionam as relações sociais de produção (a organização da
produção), estas modificam as forças produtivas, no sentido de condicionarem o curso do
desenvolvimento que as forças produtivas podem tomar. Nas palavras de Marx:

“A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades


vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes
classes sociais e são, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu
funcionamento (...)”. (MARX & ENGELS, 2007, p. 31)

Com base nisso pode-se afirmar que Marx descartaria sem pestanejar certas formulações
marxistas que durante muito tempo exerceram grande influência sobre o pensamento e a práxis
política na América Latina17 defendendo a necessidade de certo desenvolvimento nas forças
produtivas – o desenvolvimento capitalista no sentido econômico atual – como pré-condição para a
transformação das relações sociais no sentido da superação da ordem capitalista. Além disso, a
teoria marxiana da história não dá margem para se postular a determinação dos demais complexos
sociais, a “superestrutura”, pela “base econômica” (na metáfora usada uma única vez por Marx, no
Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, mas que virou mantra tanto entre
marxistas quanto entre críticos de Marx). Tão somente a teoria marxiana tem claro que uma vez que
a história parte de indivíduo vivos, reais, é obviamente fundamental a forma como esses indivíduos
se mantém vivos, isto é, a organização econômica da sociedade que, portanto, condiciona os demais
âmbitos da vida social.

“O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados, que são ativos na


produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais e
políticas determinadas. A observação empírica tem de provar, em cada caso
particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou
especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A
estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de
indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer

17 Veja-se, por exemplo Edgar Carone (1982).


na
imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer,
tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como
desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e
condições materiais, independentes de seu arbítrio”. (Ibid., p. 93)

A relação entre o, por assim dizer, “econômico” e os diferentes complexos sociais é de


condicionamento, portanto, não de determinação. A esse respeito Marx menciona, em outro texto, a
“relação desigual do desenvolvimento da produção material com, por exemplo, o desenvolvimento
artístico (…) [m]as o ponto verdadeiramente difícil de discutir aqui é o de como as relações de
produção, como relações jurídicas, têm um desenvolvimento desigual”. (MARX, 2011, p. 62).
Enfim, Marx não oferece uma tal “receita ou um esquema com base no qual as épocas
históricas podem ser classificadas”. Ao invés disso, a partir da constatação de que o “primeiro ato
histórico” dos seres humanos é a produção das condições para a vida humana (que traz em si a
possibilidade da transformação das condições de sua própria reprodução), “um ato histórico, uma
condição fundamental de toda a história, que (…) tem de ser cumprida diariamente, a cada hora,
simplesmente para manter os homens vivos”, oferece uma concepção teórica, o materialismo
histórico, disposta a “observar esse fato fundamental em toda a sua significação e em todo o seu
alcance e a ele fazer justiça”. (MARX & ENGELS, 2007, p. 33)
Nesse sentido, a ideia da ruptura defendida por Kohan (2003) e Anderson (2010), entre
outros, leva ao estranho resultado da existência, simultânea, de um Marx que ora se apresentava
como um crítico do determinismo histórico e do desenvolvimento unilinear da história,
reconhecendo a existência de inter-relações complexas entre os países no mercado mundial, e ora
considerava que países asiáticos, ou melhor, “bárbaros”, não eram portadores de história, e que
necessariamente deveriam passar pelas etapas que correspondiam ao desenvolvimento dos países da
Europa Ocidental.
Comentando as alterações introduzidas na edição francesa (1872-1875) de O Capital, em
especial sobre a questão da acumulação primitiva, Anderson chama a atenção para o fato de que
Marx fez questão de ressaltar que o processo descrito dizia respeito apenas aos países da Europa
Ocidental, “aunque dependiendo del entorno cambia el color local, o se confina a una esfera más
estrecha, o muestra un carácter menos pronunciado, o sigue un orden de sucesión diferente”.
(MARX, apud., ANDERSON, 2010, p. 6) A nosso ver, isso indica não uma ruptura teórica com
relação a escritos anteriores, mas a percepção cada vez mais consciente por Marx do real alcance de
suas concepções teóricas (cujas linhas gerais expressavam-se já na década de 1840, como vimos),
vis-à-vis o aprofundamento seus estudos sobre sociedades não-ocidentais. Como chamam a atenção
Henk Overbeek e Patricio Silva (1986), Marx não pretendia em escritos como os citados sobre a
Índia oferecer uma teoria geral para o desenvolvimento histórico e, conforme seguiu estudando o
país, mudou diversas vezes de opinião sobre a dominação britânica, percebendo, sobretudo, que o
impacto do capitalismo sobre a Ásia era muito diferente do que teve a nascente produção capitalista
sobre o feudalismo europeu. (OVERBEEK & SILVA, 1986, p. 124) Com relação ao crescente
interesse de Marx sobre a Rússia a partir dos anos 1870, Hobsbawn observa:

“Além da orientação agrária de seu trabalho no Capital III, duas razões


podem ser sugeridas para explicar esta sua concentração de interesse.
Primeiro, o desenvolvimento de um movimento revolucionário russo levou,
crescentemente, Marx e Engels a depositar na Rússia suas esperanças
relativas a uma revolução europeia. (Nenhum erro de interpretação de Marx
é mais grotesco do que o que sugere possibilidades de revolução
exclusivamente nos países industrialmente avançados do Ocidente). (…) [A]
segunda razão da crescente preocupação de Marx com o comunalismo
primitivo: seu progressivo ódio e desprezo da sociedade capitalista. (…)
Pareceria provável que Marx, que anteriormente saudara o impacto do
capitalismo ocidental como uma força desumana mas historicamente
progressista sobre as estagnadas economias pré-capitalistas, fosse ficando
cada vez mais impressionado com sua desumanidade”. (pp. 49-50)

Ao que parece Hobsbawn concordaria com a avaliação de que o aprofundamento nos


estudos sobre o mundo não-europeu ocidental teria levado Marx a dar-se conta, cada vez mais, dos
impactos concretos da expansão do capitalismo e seus resultados possíveis, mantendo-se fiel às
bases metodológicas precocemente esboçadas, já que reconhece que, pelo menos, a partir da A
Ideologia Alemã, a noção de desenvolvimento histórico em Marx nunca foi unilinear e aponta como
o erro mais grotesco de interpretação concluir-se, a partir da obra de Marx, que a revolução só seria
possível em países avançados sobre a ótica capitalista.
No que diz respeito às possibilidades da revolução em um país situado na periferia do
sistema a resposta à Vera Zassulitch, em carta de 8 de março de 1881, talvez represente o único
registro disponível da reação de Marx quando diretamente perguntado se sua teoria postulava um
desenvolvimento linear para os países inseridos de maneira diversa no mercado mundial. Sua
resposta foi, simplesmente, não! Tentamos apresentar argumentos que comprovem que isso não está
em desacordo com a totalidade de sua obra, pelo contrário, confirma contribuições absolutamente
fundamentais oferecidas quase quarenta anos antes18.

18 Poder-se-ia argumentar que dada a demora para responder a carta de Zassulitch e o tamanho dos esboços à
carta em comparação com seu texto final, Marx não estivesse seguro com relação a sua resposta. Contudo, em nenhum
Conclusão
O materialismo histórico, já presente nas obras de um Marx ainda muito jovem e
desenvolvido ao longo de toda a sua vida, é absolutamente incompatível com o determinismo
histórico e o desenvolvimento unilinear (como nas interpretações “etapistas” do marxismo vulgar
do período estalinista), não representando, portanto, uma proposta teórica eurocêntrica, embora seu
autor, um europeu do século XIX estivesse sujeito não apenas ao nível relativamente baixo dos
estudos sobre sociedades pré-capitalistas, como aos preconceitos comuns à sua época. No entanto, a
obra de Marx trata, de fato, do estudo de relações sociais que tiveram a Europa Ocidental como
lugar de gênese, a partir de onde espalharam-se ao redor do mundo, como resultado do movimento
engendrado por suas próprias contradições, amplificadas por essa mesma expansão.
Merece destaque o fato de haver uma clara unidade no pensamento de Marx, ao longo de sua vida,
no que diz respeito à teoria da história. Se essa unidade pode ser contrastada com a evolução das
análises de Marx sobre as possibilidades de desenvolvimento social nos países periféricos, tal fato,
em vez de negar, confirma a rejeição de qualquer determinismo ou unilinearidade no
desenvolvimento histórico na obra do autor, como atesta a compatibilidade entre os escritos sobre a
Rússia da década de 1880 (como a citada carta à Zasulitch e seus rascunhos) e a teoria da história
cujos primeiros e decisivos traços aparecem já em meados dos anos 1840. Concordamos com Henk
Overbeek e Patricio Silva quando nos dizem que essa mudança nos escritos de Marx sobre
economias periféricas representa “una de las pruebas más elocuentes de que Marx nunca fue
prisionero de sus proprias afirmaciones”. (OVERBEEK & SILVA, 1986, p. 125)
Ou seja, seguindo-se a proposta apresentada por Anderson de ler-se os textos de Marx à luz
de seus últimos escritos sobre a Rússia, chegamos à conclusão de que a obra do autor caminha no
sentido da perfeita adequação de suas análises sobre a conjuntura internacional ao materialismo
histórico. Desta feita, podemos rejeitar de antemão às tentativas de imputar ao marxismo a pecha de
etnocêntrico e, portanto, de ser incapaz de dar conta das peculiaridades que dizem respeito às
possibilidades de desenvolvimento das economias periféricas. A tarefa que se impõe, portanto, é a
de se buscar na obra de Marx a chave para se entender o mercado mundial, isto é, as complexas
inter-relações entre países inseridos de maneira diversa na lógica global de acumulação de capital.
Para tanto, parece-nos fundamental seguir o nexo metodológico da forma de apresentação de O
Capital, das abstrações reais mais simples às formas mais complexas correspondentes à realidade

dos esboços há indicação que a resposta seria funadamentalmente diferente! Sabemos que Marx vinha estudando a
Rússia a alguns anos, tendo inclusive aprendido o idioma para ler documentos disponíveis apenas em russo, o que
talvez o tenha levado a se sentir obrigado a oferecer uma resposta mais completa. De qualquer modo, não há qualquer
documento que indique uma resposta diferente do rechaço ao desenvolvimento unilinear.
concreta. Dito de outra forma, faz-se necessário o reconhecimento das mediações teóricas
necessárias entre o processo de acumulação de capital em geral, tal qual em O Capital, e o mercado
mundial.
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