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A Filosofia da Religião de John Caputo

Uma Primeira Aproximação


Júlio Paulo Tavares Zabatiero

Introdução

Este ensaio visa oferecer uma primeira aproximação aos escritos de John
Caputo sobre a religião. Tal aproximação é oferecida com certa sensação de
desconforto, pois encontrei neste pensador uma espécie de alter-ego filosófico.
Ambos somos descendentes de italianos. Enquanto Caputo é filósofo por profissão e
teólogo por prazer, sou teólogo por profissão e filósofo por prazer. Caputo é
interlocutor privilegiado de Derrida, enquanto Habermas é o autor que preenche a
maior parte de minhas leituras em filosofia. Caputo é católico-romano, enquanto sou
protestante – ambos somos “praticantes” ao mesmo tempo em que temos uma visão
muito crítica em relação às nossas respectivas instituições eclesiásticas. Pelo menos
dois livros de Caputo me provocaram o estranho sentimento de que “este livro deveria
ser meu, eu o escrevi!”. Trilhamos caminhos bastante diferentes na atividade
acadêmica e de pesquisa, entretanto sinto-me plenamente à vontade – em casa – com
os escritos deste colega ítalo-norte-americano.
John Caputo é pouco estudado no Brasil. Em pesquisa, na Internet, sobre a
recepção de Caputo no Brasil, não encontrei artigos em revistas acadêmicas a respeito
de seu pensamento. Nenhum de seus livros foi traduzido e publicado no Brasil, nem
eventos sobre seu pensamento foram propostos e ele jamais veio ao nosso país como
preletor ou conferencista. Encontrei um artigo pequeno de Ricardo Gil Soeiro: “Sobre
Místicos, Magos e Desconstrucionistas: John Caputo e a Experiência Radical do
Pensamento“1; um texto algo mais denso de Luiz Hebeche, na página do Núcleo de
Investigações Metafísicas, da UFSC, “Reabilitando a hermenêutica da facticidade”2 um

1
http://www.revistaautor.com/index.php?option=com_content&task=view&id=414&Itemid=38
2
www.cfh.ufsc.br/~nim/textos_nim_files/textos.../hebeche2.pdf
estudo sobre a interpretação de Heidegger por Caputo; encontrei, enfim, um artigo de
Claudio Carvalhaes “Uma Crítica das Teologias Pós-Modernas à Teologia Ontológica de
Paul Tillich”, em que menciona Caputo várias vezes, embora o classifique como um dos
fundadores da “Teologia Negativa”, movimento que existiria nos EUA – mas a que
Caputo mesmo não se vincula.3 Menções a Caputo aparecem aqui e acolá em artigos e
textos relativos a Derrida ou a Heidegger.
John D. Caputo (n. 1940) é “Thomas J. Watson Professor of Religion &
Humanities” na Syracuse University (vinculada à Igreja Metodista)4 desde 2004, após
ter se aposentado como Professor na Villanova University de 1968 a 2004 (vinculada à
Igreja Católica). Escreveu cerca de 20 livros (alguns em co-autoria), editou cerca de
outros oito livros, e publicou várias dezenas de artigos. É editor de uma coleção de
livros sobre o pensamento filosófico europeu continental e tem se dedicado ao estudo
de pensadores como Derrida, Heidegger, Kierkegaard e Agostinho, além de se ocupar
de temas como hermenêutica, religião, desconstrução, fenomenologia e teologia
“fraca”. Pelo menos quatro livros já foram publicados acerca de seu pensamento, além
de vários artigos e ensaios.5 Manteve estreita relação de amizade e companheirismo
intelectual com Jacques Derrida que, em entrevista, afirmou que John Caputo lia seus
textos da maneira como ele desejava que fossem lidos.
Como uma primeira aproximação à filosofia da religião de Caputo este ensaio
não é sistemático, nem histórico. Visa oferecer, sim, alguns poucos marcos
importantes para a leitura de seus instigantes textos.

1. Um Lugar: Orações e Lágrimas

Não é possível, segundo Caputo, compreender a religiosidade humana (ou

3
http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio03/uma-critica-das-teologias-pos-modernas-a-
teologia-ontologica-de-paul-tillich. Acessado em 02.02.2011.
4
http://thecollege.syr.edu/profiles/pages/caputo-john.html. Acessado em 12.01.2011.
5
Cross and Khora: Deconstruction and Christianity in the Work of John D. Caputo, eds. Neal Deroo and
Marko Zlomsic (Eugene: Pickwick Publications & Wipf and Stock Publishers, 2010); A Passion for the
Impossible: John D. Caputo in Focus, ed. Mark Dooley (New York: SUNY Press, 2002); e Religion With/Out
Religion: The Prayers and Tears of John D. Caputo, ed. James Olthius (London: Routledge, 2002);
Simpson, Christopher Ben. Religion, metaphysics, and the postmodern: William Desmond and John D.
Caputo. Bloomington: Indiana University Press, 2009.
“religião”6) se o lugar a partir do qual a estudamos não for o das orações e lágrimas.
Isto não quer dizer que pessoas não-religiosas sejam incapazes de compreender a
religião, mas, sim, que o próprio conceito moderno de “religião” é um empecilho à
compreensão do fenômeno religioso. Religião é um conceito moderno, racional,
construído mediante um radical binarismo que contrapôs fé e razão, filosofia e religião
como pólos antagônicos no espaço da Verdade. A religião é concebida na
Modernidade como uma falta, um resquício do mundo pré-moderno e, por isso, na
melhor das hipóteses infra-racional, para não dizer irracional.7
Os filósofos modernos, climaticamente no Iluminismo, conceberam a religião
como uma esfera separada da existência humana e projetaram tal compreensão para
as crenças e práticas cristãs da Europa pré-moderna. Tal maquinaria conceitual lhe
impediu de enxergar adequadamente o fenômeno religioso, tomado exclusivamente
como uma atitude dogmática, pré-racional ou mesmo irracional, antagônica à razão, às
ciências e à filosofia. A religião foi extirpada do que lhe é próprio – a experiência
humana da busca – e reduzida a um epifenômeno da eticidade, ou a um desvio da
libido, ou à consciência alienada.
Retornando a Agostinho e Anselmo, Caputo nota que a experiência pré-
moderna da religião cristã não pode ser concebida como uma esfera particular da
experiência humana. A religião impregnava a mentalidade, a cosmovisão européia pré-
moderna, de tal modo que o adjetivo “religioso” não se referia a pessoas que “tinham”
religião, mas ao grau de compromisso da pessoa com a religião – o que chamaríamos
hoje de religiosidade ou de espiritualidade. Ninguém conceberia religião como uma
esfera particular da vida, mas como o próprio ambiente da vida humana. Não se
poderia conceber Deus como objeto de dúvida, mas apenas como sujeito de busca (ou
não). Tanto Agostinho como Anselmo falam da busca de Deus nos termos de um
círculo, no qual Deus já é concebido como existente, soberano, digno de honra e
adoração. O Deus conhecido é o Deus a quem se busca, o Deus que se deseja conhecer
mais e melhor. O Deus que criou o ser humano e o dotou de racionalidade, de modo

6
Caputo usa constantemente o termo “religion” para distintos referentes – uma religião em particular, a
religião enquanto conceito, religião como equivalente de religiosidade, religião como um componente
da condição humana que busca a transcendência. Normalmente usarei o termo no singular para me
referir ao “conceito” filosófico.
7
Para esta seção sobre o conceito moderno de religião, baseei-me, principalmente, em CAPUTO, John.
On Religion. Londres: Routledge, 2001, p. 37-66.
que igualmente a razão não pode ser concebida como uma esfera particular da vida, e
sim como o ambiente da vida propriamente humana.8
O “coração inquieto” de Agostinho e a “fé que busca conhecimento” de
Anselmo, por outro lado, não podem ser entendidos se lidos a partir da concepção
moderna de consciência – de um sujeito racional, centrado, auto-consciente,
realizador. Só podem ser adequadamente compreendidos se lidos a partir da noção
pré-moderna de sujeito como uma criatura, imperfeita, como que incompleta,
fragmentada, angustiosamente crente, permanentemente buscando o Deus que já
encontrou. Um Deus que não está “lá fora”, desconhecido, mas que participa da
própria busca, que está “aqui dentro”, no coração desassossegado, na mente inquieta,
no corpo sofrido – um sujeito poroso conforme a terminologia de Charles Taylor.9 O
sujeito moderno, “que busca autonomia”, que abandonou a fé como caminho da
intelecção, criou uma barreira intelectual entre si e o sujeito medieval, “que busca
conhecimento (de Deus)” encontra sua autonomia na relação com o próprio Deus, na
própria heteronomia.
O pensamento moderno concebe a religião a partir de um lugar vazio – sem
orações, sem lágrimas, sem dignidade para existir enquanto lugar, assim, mero não-
lugar. Lugar da razão autônoma e soberana. Lugar do intelecto apático, impassível.
Lugar da universalidade imaginada, porém jamais concretizada. A partir deste lugar, a
filosofia moderna só consegue conceber a religião de modo redutivo, classificada, a
priori, como aquém da razão, aquém do plenamente humano, adversária da
autonomia, da ciência, da razão. No pensamento moderno, desencantado, Deus se
tornou mero objeto. Enquanto objeto, Deus perde sua preeminência, posto que é um
objeto falho, impossível de ser encontrado, de ser pesquisado, de ser escrutinado.
Deus “fora de limites”, seja mediante o agnosticismo kantiano, seja mediante o
ateísmo feuerbachiano e todas as demais variações modernas do exílio de Deus do
espaço da racionalidade.

8
“That is the sense of religion that I am defending. Vera religio meant being genuinely religious, like
being truly just, not “the true religion” versus “the false religion.” CAPUTO, 2001, p. 43. (“Este é o
sentido de religião que defendo. Vera religio significa ser genuinamente religioso, semelhantemente a
ser verdadeiramente justo, e não “a verdadeira religião” versus “a falsa religião”.”)
9
TAYLOR, Charles. A Secular Age. Cambridge: Harvard University Press, 2007, p. 35-41.
O pensamento moderno torna impossível a religião. Consequentemente,
reduzida a epifenômeno da ética – redução que é apenas um passo no caminho da
rejeição pura e simples da religião enquanto dimensão integrante e significativa da
vida humana. Rejeição cujo diagnóstico mais duro e solene pode ser encontrado em
famoso discurso de Max Weber: “a quem não conseguir suportar virilmente o destino
da nossa época há que dizer: Regresse, em silêncio, lhana e simplesmente, sem a
habitual e pública propaganda dos renegados, aos amplos e compassivos braços das
velhas Igrejas. Estas não lhe levantarão dificuldades. Seja como for, terá de, desta ou
de outra maneira, fazer – é inevitável – o ‘sacrifício do intelecto’. Não o
condenaremos, se tal efectivamente conseguir”.10 “Religião nos limites da razão
somente”, religião mal entendida pelo Iluminismo não-iluminado, exilada, reduzida,
rejeitada, negada.
Não! Caputo não é ingênuo, nem pretende um retorno aos tempos pré-
modernos. Ele sabe que as instituições religiosas dominantes desempenharam um
papel nefasto no confronto com a razão em busca de autonomia. Não desconhece o
suplício de Galileu. Não desconhece o martírio dos hereges. Sabe que a religião pode
ser instrumento de poder, de negação do humano, de subordinação ao despotismo, de
obscurantismo. Sabe, porém, e melhor, que “religião” não existe. Existem pessoas e
instituições praticantes de religião, que podem fazer dela o contrário do que a religião
promete. Sabe que os tribunais da Inquisição foram, com razão, substituídos pelo
transcendente Tribunal da Razão somente. Por isso também sabe que de tribunal em
tribunal, a religiosidade humana, a espiritualidade, o próprio Deus, são meros réus,
pobres suplicantes sem advogado capaz de defendê-los da acusação soberana que lhe
paira sobre a cabeça.
Por isto, Caputo descreve – algo que ironicamente – nosso tempo como um
tempo pós-secular e, após vários movimentos argumentativos em que estabelece os
contornos dessa pós-secularidade, toma fôlego e adverte: “É por isso que insisto em
que o estilo ‘pós-secular’ deva brotar de uma certa iteração do Iluminismo, uma
continuação do Iluminismo através de outros meios, a produção de um Novo
Iluminismo, um que seja iluminado acerca dos limites do antigo. O ‘pós’ em ‘pós-

10
WEBER, Max. Ciência como Vocação. Edição portuguesa, disponível em:
www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf, consultada em 02.08.2008.
secular’ não deve ser entendido como ‘após e liquidando com’, mas, ao contrário,
como tendo trilhado a modernidade, de modo que não há perigo da emergência de
uma esquerda irracional relativista, por um lado, ou de uma recaída no pré-
modernismo conservador, mascarado de pós-moderno, por outro; que é o tipo de
coisa que ocorre exatamente em um movimento ‘pós-secular’ que se auto-descreve
com o irritante, iracundo e ressentido título de ‘Ortodoxia Radical’.”11
Não! Não é possível compreender a religião sem orações e lágrimas. Lágrimas
compassivas de quem escuta o clamor das pessoas que sofrem, das vítimas do mundo
civilizado, organizado, estruturado, cujas instituições desumanizam sob o pretexto de
humanizar. Lágrimas de quem escuta o seu próprio clamor, pessoa imperfeita,
incompleta, auto-cindida. Lágrimas intensamente passionais, e igualmente densas de
intensidade racional. Lágrimas que fecundam o árido solo da oração, visto que quem
ora o faz porque experimenta a ausência de seu deus, a não-presença de seu horizonte
de sentido, a angústia da certeza incerta da fé. Para compreender a religião é preciso
destronar a Razão, deusa impessoal e insensível. É preciso fazer as pazes com a razão
fraca, frágil, fragmentada, linguistificada, destranscendentalizada. É preciso
reconhecer os limites da razão, para que possamos escapar das grades indestrutíveis
da razão somente.12
Religião não é questão de verdade ou falsidade. É questão de relacionamento,
de intimidade, de fidelidade ou infidelidade, distanciamento, inimizade. Não se pode
compreender a religião se dela abstrairmos os corpos vivos, patéticos, intersubjetivos,
intercomunicantes. Não se pode compreender a religião se a abstrairmos de seus ritos,
crenças, práticas, instituições. É preciso iluminar o iluminismo, reencantar os
desencantados ouvidos e olhos do sujeito moderno para se compreender a religião. Só
se pode compreender a religião se abraçarmos a kantianamente desprezada

11
CAPUTO, 2001, p. 60-61.
12
Passando por diferentes razões e leituras, Habermas faz diagnóstico semelhante do Iluminismo,
inspirado por Johannes Baptist Metz, em seu ensaio “Israel or Athens. Where does Anamnestic reason
Belong?”. In: HABERMAS, Jürgen. Religion and rationality. Essays on reason, God, and Modernity (edição
e introdução de Eduardo Mendieta). Cambrige: Polity Press, 2022, p. 129-138. Habermas repete esse
diagnóstico em seu encontro com jesuítas: “a razão prática deixa de cumprir sua própria vocação
quando não mais tem força suficiente para despertar, e manter desperta, na mente dos sujeitos
seculares, uma consciência do que está faltando, do que clama aos céus”. Habermas, Jürgen et al. An
Awareness of what is Missing. Faith and Reason in a Post-Secular Age. Cambridge: Polity Press, 2010, p.
19.
Schwärmerei, posto que a loucura divina é preferível à sanidade filosófico-germânica.13
Só é possível compreender a religião se formos capazes de trilhar as críticas de
Kierkegaard e Nietzsche – radicalmente dirigidas à razão somente e não menos
radicalmente dirigidas à religião somente, outros nomes para o caminho
ontoteológico, metafísico, forte, fundacional. Caputo mesmo prefere o caminho
kierkegaardiano, pois nele encontra o mesmo deus de sua busca, embora o caminho
nietzscheano lhe seja indispensável para poder iluminar o Iluminismo. Ambos,
Kierkegaard e Nietzsche, são estações inevitáveis para um filósofo da indecidibilidade,
da desconstrução, peregrinante na khôra derrideana14.

2. Um Interlocutor: Jacques Derrida


Caputo não é filósofo de “uma nota só”. Leitor insistente de Agostinho, Tomás
de Aquino, Kierkegaard, Lutero, Nietzsche e Heidegger, entre outros, Caputo faz,
porém, de Derrida o seu interlocutor privilegiado, cujos escritos funcionam como uma
espécie de eixo interdiscursivo, pelo qual circulam as demais leituras que ele realiza.
Não discutirei os temas derrideanos nos textos de Caputo15, dirigirei minha atenção ao
modo de ler, ao próprio ato de ler e o farei guiado pelo próprio Derrida. Na seção
anterior deste ensaio fiz alusão a uma frase de Derrida sobre a leitura dele por Caputo,
e agora trago a voz do próprio Derrida para a discussão.
“Tenho várias razões para dizer isto. Em primeiro lugar, ele me lê de um modo
não somente agradável de ser lido, mas também do modo pelo qual eu me esforço
para ler outras pessoas – isto é, de modo generoso na medida em que tenta creditar
ao texto e ao outro o máximo possível, não a fim de incorporar, substituir ou
identificar-se com o outro, mas para ‘contrasinalizar’ o texto, por assim dizer. Isto

13
Cf. CAPUTO, 2001, p. 49. [Schwärmerei – entusiasmo, arrebatamento, êxtase]
14
“O Timeu nomeia essa khôra (localidade, lugar, espaçamento, posição), essa coisa que não é nada
daquilo a que ela parece dar lugar - sem jamais dar. Insensível, impassível, mas sem crueldade,
inacessível à retórica, khôra desencoraja, ela ‘é’ aquilo mesmo que desarma os esforços de persuasão e
de todo aquele que quisesse ter a ousadia de crer ou o desejo de fazer crer, por exemplo em figuras,
tropos ou seduções do discurso. Nem sensível, nem inteligível, nem metáfora nem designação literal,
‘nem’ isso ‘nem’ aquilo, ‘e’ isso ‘e’ aquilo, participando e não participando dos dois termos de um casal,
khôra, dita também a ‘matriz’ ou ‘nutriz’ assemelha-se, a um nome próprio singular, a um ‘pre’nome, ao
mesmo tempo maternal e virginal” DERRIDA, Jacques. Khôra. Campinas: Papirus, 1995, contracapa.
15
Ver, por exemplo, GOICOECHEA, David. “Caputo’s Derrida”. In: OLTHUIS, James H. (ed.). Religion
with/out Religion. The Prayers and Tears of John D. Caputo. Londres: Routledge, 2002, p. 80-95.
envolve aprovar e afirmar o texto, não de modo complacente ou dogmático, mas em e
através do gesto de dizer sim ao texto”.16 Em um ambiente tão competitivo e
politicamente carregado (por mais que tais aspectos sejam negados) como o
universitário, leituras afirmativas são casos relativamente raros. Saber dizer sim é uma
arte hermenêutica complexa e exigente. Dizer sim sem ser subserviente ao texto, sem
ser subserviente ao campo acadêmico, sem ser subserviente à carreira acadêmica.
Dizer sim que matiza todos os nãos que precisam ser enviados ao interlocutor lido.
Retorno a Derrida: “Ele faz isto sem abrir mão de seu próprio rigor exigente,
sua própria cultura e memória, bem como sua relação singular com outros textos que
eu não conheço. Assim, mesmo quando ele aparentemente está lendo a mim, eu
aprendo dele, pois ele ilumina meu texto com sua própria cultura e percepção. Para
exemplificar: uma vez que ele conhece a obra de muitos teólogos, tais como Meister
Echkart, Lutero e Kierkegaard, melhor do que eu, ele é capaz de escrever seu próprio
texto, seguindo sua própria trajetória e seu próprio desejo, sem, ao mesmo tempo, me
trair. Assim, não o considero, de fato, como meu comentarista ou intérprete. É outro
tipo de gesto”.17 Em outras palavras, Caputo lê Derrida como qualquer texto deveria
ser lido, mediante um instigante e pessoal emaranhado de relações intertextuais e
interdiscursivas, que chega à intenção não-intencionada de autor e texto, sem se
transformar em mera boa-intenção do leitor. Não se trata de descobrir o sentido
verdadeiro do texto, a verdadeira intenção ou intencionalidade de seu autor. Trata-se
de dialogar com o texto, de colocar em diálogo diferentes universos discursivos, de
criar novos textos, criativamente leais ao texto lido.
“Outra razão pela qual sou tão grato por seus escritos é que quando ele lê
meus textos, o que é especialmente o caso em Prayers and Tears, ele é o primeiro, e
até agora, o único, a unir os elementos mais filosóficos e teóricos de meus escritos
àqueles que são mais autobiográficos. Como alguns textos recentes mostram, os dois
são, para mim, várias vezes indistinguíveis.”18 E Caputo percebe tal vínculo sem
incorrer em psicologismos ou em análises psicológicas de Derrida. Percebe tal vínculo

16
DERRIDA, Jacques. “The Becoming Possible of the Impossible. An Interview with Jacques Derrida”. In:
DOOLEY, Mark (ed.) A Passion for the Impossible. John D. Caputo in Focus. Albany: SUNY Press, 2003, p.
21.
17
DERRIDA, 2003, p. 21.
18
DERRIDA, 2003, p. 22.
nos próprios textos, desemaranhando o que a exegese moderna se tornou incapaz de
captar – a pessoa no texto, as paixões textualizadas – e não a pessoa extra-texto, a
intenção pura, seja a da fenomenologia ontoteológica, seja a da exegese científica
(metódica), seja a da fusão de horizontes. Captar a pessoa em sua flutuabilidade, em
sua insustentável leveza, em seus inseparáveis e indistinguíveis momentos. Captar a
pessoa em seu fluir, não o sujeito racional moderno, não o autor desmascarado tão
habilmente por Roland Barthes ou Michel Foucault.
Caputo reconhece a validade do conceito da “morte do autor”, que não é
confundido – o que muitos leitores de Foucault e Barthes não conseguem deixar de
fazer – com a negação do autor: “Do ponto de vista do leitor, penso que permanece
verdadeiro o fato de que a ‘morte do autor’ é uma noção válida, pois ela não tem a ver
com criação, mas com recepção. Um leitor pode ler um texto sem se preocupar com as
alegrias, traumas e paixão pessoal que deram luz ao texto. O texto tem vida própria. A
noção da morte do autor, que é suficientemente válida, opera do ponto de vista de um
leitor ou da recepção. Para o escritor, porém, o autor, isto é incompreensível, é sem
sentido”.19 Escrever e ler são distintos e complementares jogos, mas não se pode jogar
o jogo da leitura a partir das regras do da autoria, e vice-versa. Tentar seguir regras
inadequadas deste tipo acaba por resultar em uma transfiguração do autor, em uma
redução do autor à imagem que dele faz o leitor.
A interpretação de Derrida por Caputo, de modo coerente com sua concepção
de leitura, não transforma o filósofo em religioso: “Também sou muito grato a Jack
neste aspecto, porque ele não tenta me transformar em uma pessoa piedosa. Ele
respeita o fato de que eu posso ser um ateu, e, é claro, ele assume todas as
complicações que este fato sugere. Penso que ele está correto em mencionar isto
porque minha relação com a religião é muito complicada e ele respeita o quão
complicada é esta relação. Sem tentar me atrair de volta para a religião, ele tenta
compreender o que está em luta em mim mesmo”.20 Captar a pessoa em seu fluir é
captar a pessoa em sua complexidade, em sua conflitividade, em suas contradições e

19
CAPUTO, John. “What do I love when I love my God? An interview with John D. Caputo”. In: OLTHUIS,
James H. (ed.). Religion with/out Religion. The Prayers and Tears of John D. Caputo. Londres: Routledge,
2002, p. 150.
20
DERRIDA, 2003, p. 23.
complicações, sem tentar reduzir essa complexidade a conceitos e explicações simples
e claros.
Enfim, “ele presta atenção aos mínimos detalhes que são significativos para
mim, e ele é o único que realmente presta atenção aos motivos, detalhes, metonímias,
ou sutis tropos e conexões significativos, os quais, até onde posso perceber, passam
despercebidos até mesmo de meus leitores mais generosos, de meus leitores mais
amigáveis. Estas são as razões por que sou tão grato”.21 Para um leitor que vem do
campo da exegese bíblica, é fácil reconhecer o quão custoso é ler um texto em seus
exigentes detalhes, gastar horas contemplativamente deixando-se guiar pelo texto,
permitindo o fluir e o fruir do desejo de compreender o texto melhor até de que seu
próprio autor. Ler realmente um texto, nos limites do sistema universitário, sob as
exigências férreas de publicar, ensinar, gerenciar carreira tem se tornado cada vez
mais uma demanda impossível. Lemos superfícies textuais, produzimos achatamentos,
esquematizações, formulamos juízos. Ler, porém, é outro gesto. É fruição, é amizade, é
lealdade incondicional. É pathos! Sequestrando a voz de Derrida, ler é manifestação da
différance.

3. Uma paixão: Religião sem(com) Religião

O leitor religioso de Derrida não-religioso executou, ao longo de sua carreira,


vários movimentos interpretativos do fenômeno religioso. Seus diálogos com Derrida,
Agostinho, Levinas, Kierkegaard e Heidegger (principalmente), conduziram seus
pensamentos por diferentes trilhas que se encontraram no destino final – religião
sem(com) religião. Desenharei algumas dessas trilhas.
Uma trilha perseguida por Caputo especialmente em seus primeiros livros
possui os contornos bem definidos da pesquisa e escrita acadêmicas. Rigor
argumentativo, retórica ocultada, estilo contido, linguagem pesadamente conceitual.
Caputo executou uma tradução filosófica da religião ao mesmo tempo em que
apresentava suas credenciais como filósofo profissional. Em uma retrospectiva de sua

21
DERRIDA, 2003, p. 22.
carreira, Caputo assim descreve suas intuições daqueles primeiros caminhos
percorridos: “a experiência religiosa é uma parte elementar, fértil e rica da experiência
humana e a maioria dos filósofos não lhe dedica a devida atenção. Eles cegam a si
mesmos em relação à experiência religiosa, talvez por causa dos muitos conflitos e
problemas que a religião trouxe sobre nós ao longo dos séculos, e por causa de um
tipo de racionalismo que é endêmico aos filósofos. Entretanto, o projeto de Heidegger,
lá nos anos 1920, era recuar e reexaminar a experiência do tempo no Cristianismo
primitivo, que ele considerava como uma rica fonte para a fenomenologia, para aquilo
que ele nomeava, naqueles dias, a ‘hermenêutica da vida fática’.”22
No momento mesmo da conquista de seu espaço no campo acadêmico, Caputo
apresenta os seus lances e movimentos principais: (a) explicita a importância da
experiência religiosa como objeto da filosofia, a ser estudada fenomenologicamente e
não metafisicamente – via uma fenomenologia pós-metafísica, fraca, indecidível; (b) a
filosofia moderna e boa parte da contemporânea têm sido incapazes de compreender
a religião – estudada de modo preconceituoso, seja em função das lutas pela Verdade
entre teologia e filosofia, seja em função dos limites inquisitoriais impostos a tantos
pensadores ao longo da história européia, seja em função do vírus racionalista, tão
eficaz em sua conquista de células e órgãos da racionalidade, reduzindo-a a
racionalismo, a um travestido dogmatismo inquisitorial não sutilmente encoberto pelo
grito de ordem razão somente; (c) sugere que o estudo da religião não deveria ser
concebido meramente como estudo de uma esfera separada da existência humana já
secularizada, mas como uma parte e parcela integrante da própria experiência,
caminho que se Heidegger tivesse teimado em seguir, ao invés de abandonado nas
curvas iniciais da estrada, ter-lhe-ia possibilitado uma fenomenologia da existência
muito mais densa e rica.
Destarte, Caputo assim complementa sua descrição anterior: “Religião, como a
Arte, é uma experiência humana elementar. Deve ser entendida em seus próprios
termos e trazida à luz filosoficamente em uma linguagem que respeite sua integridade.
É exatamente isto que está acontecendo, penso eu, na filosofia continental
contemporânea neste exato instante. Hoje em dia filósofos estão fascinados por
Levinas e qualquer pessoa que conhece a tradição bíblica reconhece o que Levinas está
22
CAPUTO, 2002, p. 151.
dizendo. Ele, porém, deu à tradição bíblica uma poderosa conceptualidade filosófica, o
que tem estimulado toda uma nova onda de trabalho filosófico”.23
Hoje em dia, mas nos idos dias da publicação de Radical Hermeneutics, a
fascinação era outra e o iniciante filósofo envereda pelos caminhos da crítica
hermenêutica, desfilando um potente arsenal de leitura e interpretação filosófica,
acumulando nomes e citações de filósofos na demonstração de competência
profissional. Somente a partir da página 272 de Radical Hermeneutics Caputo explicita
sua temática religiosa e oferece aos ouvidos atentos a sua voz, mas ainda algo tímida e
embargada.24 Ouçamos, então, a voz que não era propriamente sua voz: “Destarte, o
presente capítulo circunscreve o projeto iniciado no capítulo 8, o de mostrar que toda
esta conversa sobre o fluxo e o jogo não nos abandona aos lobos. Não nos priva da
ciência ou da ética mas, se realiza alguma coisa, nos provê um relato mais sensível de
ambas. Agora quero dizer que nenhuma delas é inimiga da noção de uma noção mais
depurada, pós-metafísica, da fé religiosa. De fato, penso que sem esta noção do fluxo,
a fé se torna um perigoso dogmatismo. E, visto que é exatamente isto que a fé é
frequentemente, nem todo verdadeiro crente receberá favoravelmente a estória que
narro a seguir”.25
Sua discussão da religião se deu no âmbito da discussão sobre o sofrimento. E
embora a voz não seja ainda a voz plena de Caputo, os sinais estão claramente
presentes: “Escrevo uma genealogia da religião a partir de baixo, e pergunto a todos os
que fazem de outro modo como conseguiram alçar-se à sua posição elevada. Os olhos
da fé significam que o crente é bom em construir seu próprio caminho na escuridão,
em seguir as pegadas do divino. Longe de ser capaz de ver Deus em todos os lugares, o
crente possui, talvez, o mais agudo senso possível da retirada de Deus, de Sua ausência
do mundo. Sua fé consiste precisamente em curvar-se na direção do Deus que se
retira.”26
São evidentes as marcas da teologia da morte de Deus (John Cobb e William
Altizer), da teologia secularizada de Dietrich Bonhoeffer, da crítica radical à

23
CAPUTO, 2002, p. 152.
24
CAPUTO, 2002, p. 151.
25
CAPUTO, John. Radical Hermeneutics: Repetition, Deconstruction, and the Hermeneutic Project.
Bloomington: Indiana University press, 1987, p. 272
26
CAPUTO, 1987, p. 279.
neoortodoxia barthiana que então dominava os departamentos de teologia no cenário
norte-americano, da teologia política de Johannes Baptist Metz, da teologia latino-
americana da libertação. Por isso a reafirmação do sofrimento como a gênese não-
originária da religião, como o espaço vital da fé, como a plataforma da esperança,
reflexão que merece uma citação mais longa: “A genealogia do religioso é encontrada
em uma hermenêutica do sofrimento. O religioso é uma resposta ao que se dá e se
retira no sofrimento. O sofrimento apresenta-se à mente religiosa como um ultraje
moral fundamental, uma violência injustificada que desperdiça a vida. Assim, a atitude
religiosa ergue-se precisamente como um protesto contra o sofrimento. Ela é
essencialmente desafiadora, protestante, protestando contra uma violação da vida
que não pode ser deixada sem resposta e católica, porque ela fala em nome de todos
os que sofrem. Não penso que a religião aceita o sofrimento como vontade de Deus ou
como uma punição pelo pecado, ou como meio de santificação, pelo menos não em
sua forma mais robusta e sadia. Penso, sim, que ela protesta contra o sofrimento em
nome da vida e que ela afirma Deus a fim de tornar audível seu protesto a favor da
vida, de escrever seu protesto com letras capitais. Não penso que ela comece de cima,
com Deus, como se expulsa do céu, e então explique o sofrimento como um
movimento descendente da vontade de Deus, ou como parte de uma estratégia
redentora. Ao contrário, ela começa embaixo, deixando-se levar pelo fluxo, com o
sofrimento, e, então, afirma Deus em um movimento ascendente, como uma resposta
ao sofrimento e expressão de sua indignação. A genealogia da religião no sofrimento
significa que a afirmação de Deus está implícita na afirmação da vida e no protesto
contra o sofrimento. A religião surge como uma expressão de solidariedade com o
sofrimento.”27 Em linguagem teológica, religião é clamor, grito a Deus contra toda
injustiça e opressão que mortificam a vida e tornam indigna a existência humana. É,
subvertendo Marx, suspirante protesto de pessoas oprimidas e de pessoas solidárias.
Ao concluir sua breve genealogia da religião, retoma os parágrafos iniciais e se
expressa em tons quiásticos proféticos: “Ora, é exatamente quando a religião começa
a pensar em termos de um dom da graça reservado somente a um povo escolhido que
ela começa a se degenerar em um poder faccional e uma força opressora. Ela começa
a perder sua capacidade protestante (contestadora) tão logo cessa de ser católica
27
CAPUTO, 1987, p. 280.
(universal), tão logo deixa de perceber que está comprometida, em princípio, com a
libertação universal. Torna-se metafísica e começa a dividir o mundo na oposição
binária de fiéis e infiéis, como se os crentes possuíssem uma linha direta para Hermes,
tornada inacessível aos in-fiéis, aqueles a quem definimos em termos de sua falta do
dom da presença que nos foi garantido. Então, a religião senta-se à mesa com os
poderes que são, exatamente quando ela deveria, outramente, comprometer-se com
sua disrupção.”28
Uma segunda trilha percorrida por Caputo, dez anos depois da publicação de
Radical Hermeneutics, é a do esforço impossível de compreender Derrida:
“Compreender a ‘religião’ de Jacques Derrida, acerca da qual ninguém entende nada,
nem mesmo sua mãe; compreender a aliança cortada em sua carne na circuncisão, o
pacto rompido e a aliança (anel) que ainda consegue vinculá-lo (se lier) ao Judaísmo,
‘sem continuidade, mas sem ruptura’, percebendo, ao mesmo tempo, que ele é lido
(se lire) cada vez menos adequadamente; compreender Jacques Derrida como ‘o filho
destas lágrimas’, como um homem de orações e lágrimas, como um Agostinho judeu
de El-Biar; compreender as (cir)confissões de Jacques da rua Santo Agostinho – tudo
isto é o que define o presente estudo, sua asssustadora tarefa impossível.” 29
Trilha que não pretendo percorrer juntamente com Caputo, trilha da qual
retomo apenas três estações, três lugares-de-repouso que, para os efeitos desta
comunicação, são suficientes:
(1) “I do not know who I am or whether I believe in God”.30 Buscar a
compreensão da religião é, paradoxalmente, buscar a compreensão do próprio ser
humano, da própria pessoa em sua irredutível individualidade não-solitária: “Esta foi
minha primeira tentativa e não penso que está totalmente errada. Eu não sei quem eu
sou, não por que eu sou uma interioridade subjetiva profunda, um reservatório
profundo de cognição e volição; mas por que eu sou um respondente respondendo a
não sei o quê. Eu não conheço o que me convoca, aquilo a que estou respondendo,
‘substituindo o eu fechado pela abertura de um quem? sem resposta’, como diz
Blanchot, não um ‘eu’ resiliente e cheio de recursos, mas o ‘desconhecido e fugidio ser

28
CAPUTO, 1987, p. 282.
29
CAPUTO, John D. The prayers and tears of Jacques Derrida: religion without religion. Bloomington:
Indiana University Press, 1997, p. XVIII.
30
CAPUTO, 1997, p. 331, grifos dele. (Eu não sei quem eu sou, nem se eu creio em Deus)
de um indefinido quem?’ (PdS, 290/Points, 276). Destarte, o quem? aberto, sem fundo
é o que vem após o sujeito! Entretanto, este é o modo mais negativo, mais apofático, o
mais inibido, o mais parcimonioso, o menos apaixonado modo de apresentar a
questão. É, diria agora, ao final de um longo estudo, o modo menos agradecido e
responsivo de responder ao segredo pelo qual somos todos habitados e
passionalizados, o modo menos afirmativo de dizer sim, de correr riscos, de nos
deixarmos engajar pelo momentum nas coisas.”31 No esforço por compreender o
impossível que nos apaixona, as orações e lágrimas que nos tornam o que somos, a
primeira estação é negativa – a recusa do sujeito moderno centrado, racional,
poderoso, a recusa, também, da crítica moderna do sujeito moderno, lançado às
brumas assustadoras do inconsciente, submetido à profundidade achatada de uma
superfície desgastada. É negativa, sim, posto que ainda tímida, receosa, incapaz de
fazer jus ao Impossível; expressão do ainda inquieto e implacável coração fragmentado
que busca e anseia profundamente pela presença.
(2) “I do not know whether what I believe in is God or not”32 Compreender a
religião é compreender uma ausência-presente, um Deus que sempre se esvai entre
nossos dedos: “Este é um modo mais afirmativo, algo mais agradecido, próximo ao oui,
oui, mais sensível ao impulso positivo e empoderador do secreto, embora se pudesse
ser um pouco mais assertivo. Eu creio, eu devo. Il faut croire. A vida é vivida pelo
impulso da fé, pela paixão da fé e não dará um passo adiante, le pas au-delà, sem fé.
Eu creio, ajuda-me em minha incredulidade. Ainda assim, eu não posso dizer se eu
creio em Deus ou não, se é em Deus que creio, ou se é na sorte de que as coisas
acabem por se ajeitar; se é em Deus que coloco minha fé, ou se é na possibilidade de
que, de algum modo, de alguma maneira, o sofrimento do outro será mais uma vez
ouvido. Je ne sais pas. Um modo melhor, embora pudesse ser um pouco mais
apaixonado.”33 Desconstruído o sujeito é necessário desconstruir a fé. Aquela fé que,
dez anos antes, fora descrita como inerentemente ligada ao dogmático. Desconstruir a
fé cognitivo-volitiva que substituiu a fé pessoal-orante; a fé episcopalizada que
substituiu a fé humanizada de Agostinho. Desconstruir o ontoteologizado crer-que que

31
CAPUTO, 1997, p. 331, grifos meus.
32
CAPUTO, 1997, p. 331, grifos dele. (Eu não sei se o objeto de minha fé é Deus, ou não)
33
CAPUTO, 1997, p. 331s. grifos e frases em francês dele.
substitui e usurpa o lugar do crer-em das escrituras judaico-cristãs. Desconstruir o crer
que se anulou no saber, a fim de reencontrar o credere di credere, o crer-que-se-crê de
outro católico, italiano, Gianni Vattimo, jamais citado na estória das orações e lágrimas
de Jacques-Agostinho.
(3) “I do not know what I love when I love my God”.34 Descanso final não-
definitivo. Desconstrução da desconstrução. Enfim, nomear o divino, filosofar Deus:
“Isto é percorrer plenamente a distância, abrir a garganta, engajar-se no oui, oui,
permitir que a vida dance, permitir que as forças joguem, ser empassionado pelo
secreto, empassionado pela paixão pelo impossível. Esta é a fórmula pela qual oro e
jejuo, com a qual eu danço, o motto em que medito dia e noite, em relação ao qual
estruturei o trabalho de minha vida. Quando acordo no meio da noite e relembro
meus sonhos, eu sempre escrevo a mesma coisa. Tomo meu lugar com o amor, e com
Deus, e sou dirigido por uma paixão por Deus”. Longe de ser uma esteticização da fé
religiosa, longe de ser uma desistência da dimensão cognitiva do religioso, a ignorância
que acompanha o amor a Deus é uma afirmação incontida de uma fé que busca
entendimento. O não-sei de Caputo não é agnóstico, não é o grito desesperado de uma
razão que se reduz a si mesma a razão somente. É um não-sei crente, fiel, amoroso,
derivado de orações e lágrimas, demanda de uma experiência finita do Infinito, de uma
experiência possível do Impossível. É uma espinoziana afirmação anti-espinozista da
paixão como o modo de ser da religião, posto que é o modo de ser humano-
demasiadamente-humano. É um não-sei dirigido não só à razão somente, mas
também, e especialmente, às teologias fortes, metafísicas, ontoteológicas,
afirmativamente crédulas no valor de sua incredulidade não assumida. É uma aposta.
Não sei o que amo quando amo meu Deus, mas mesmo assim o amo e-ternamente.
Não sei o que amo quando amo meu Deus, pois sua presentausência está sempre
presente-ausente em minhas orações e lágrimas. Alfa e Ômega. Princípio e Fim de uma
aventura de existir sem princípio nem fim.
Encaminhando-me, enfim, ao fim desta exposição, uma terceira trilha trilhada
por Caputo, com Caputo, sem Caputo. Dez anos depois. 2007. Outro encontro, adiado,
postergado, imaginado, enfim realizado. Caputo e Vattimo, católicos, italianos,
filósofos, crentes tão descrentes. Depois da morte de Deus, que resta dizer? Não mais
34
CAPUTO, 1997, p. 332. (Eu não sei o que amo quando amo meu Deus)
apenas filosofia. Dizer teologia – uma teologia do evento. Dizer teologia é, enfim, fazer
filosofia, ou, melhor, fazer filosofia no limiar entre filosofia e teologia, fazer filosofia
nos seus limites, nas suas bordas, no seu sincretismo indesejado com a teologia. Um
novo jeito de filosofar que só é possível porque não sabemos. Um novo jeito de
filosofar que é também um novo jeito de teologar a partir do lugar onde não sabemos.
Um retorno à mística, mas um misticismo eventual, pós-moderno: “Valorizo o
misticismo como uma expressão de nosso não-conhecimento, mas meu ceticismo tem
a ver com o alcançar este ponto de vista absoluto. Uma coisa importante que
significamos com a morte de Deus é a morte do centro absoluto, do habitar um ponto
de vista absoluto. Este é o ponto da crítica derrideana da teologia negativa – que ele
chama de hiperousiologia – o que nos mostra por que desconstrução não é teologia
negativa”.35
Evento, não o acontecimento, não a palavra, não o discurso. Mas aquilo que
irrompe no acontecimento, na palavra, no discurso. Irrompe e não se esgota em.
Irrupção escatológica, messiânica, por assim dizer, sempre fora do tempo enquanto no
tempo. Por isso, evento é algo pessoal, se for possível dizer algo deste tipo. Por isso,
evento se presta ao fazer teológico: “pois o evento constitui um tipo de aliança que foi
cortada36 conosco, que faz de nós o povo da promessa, da aliança, do corte. Religião é
a aliança que foi feita – por quem, não sabemos bem dizer – entre o evento e nós.
Assim, para além – ou, talvez, dentro – das alianças judaica e cristã, sonhemos uma
aliança pós-moderna, na qual somos o povo do evento, as pessoas congregadas pelo
evento.”37 Aliança em que ninguém é excluído de antemão da própria aliança, do
próprio evento, pois ela não esgota o evento e não se esgota no acontecimento
pactual em suas manifestações religiosas concretas e históricas.
Religião e evento se correspondem, pois onde há oração e lágrimas há religião
e vice-versa, e é nas orações e lágrimas que se dá o evento, irrompendo como dádiva,
como promessa, cujo cumprimento é sempre diferido, mas não esquecido; sempre

35
CAPUTO, John D. “On the Power of the Powerless: Dialogue with John D. Caputo”. In: ROBBINS, Jeffrey
W. (ed.). After the death of God. John D. Caputo & Gianni Vatimmo. Nova Iorque: Columbia University
Press, 2007, p. 117.
36
Caputo aproveita uma expressão da Bíblia Hebraica que descreve a realização da aliança como um
“cortar”, à luz de uma cerimônia ritual na qual um animal era cortado em duas partes para simbolizar
uma aliança.
37
CAPUTO, 2007, p. 52.
posposto, jamais indisposto. Religião e evento se correspondem, pois nas orações e
lágrimas encontramos o ser humano em sua afirmatividade mais densa, em sua
negatividade mais sombria, onde o evento pode brilhar, refulgir em seu esplendor que
sinaliza, aponta, sugere, orienta – tal como a palavra de YHWH levou Abrão a sair de
sua terra, atravessar os desertos vétero-orientais sem saber aonde chegar, sem mapa
em mãos, apenas munido do evento, do chamado, da promessa. Por isso, na teologia e
na filosofia não podemos ir além de Abraão, não podemos jamais ficar aquém de
Abraão, pois todos os crucificados com o Messias são filhos de Abraão – todos os
crucificados no evento são filhos de Abraão. Pois somente os crucificados conseguem
orar e chorar o clamor do outro, o grito de quem o choro não é mais ouvido, ou, se
ouvido, distorcido pelas concretizações não-eventuais do desejo – desejo de poder,
prestígio, riqueza, posteridade.
Filosofia e teologia se reencontram no evento, na fala sobre o evento, uma fala
sobre a fraqueza de Deus. Um deus fraco é o único deus capaz de destronar O Deus
Único Verdadeiro que, sob inúmeros nomes, se mantém ao lado dos que fazem chorar
sem serem capazes de chorar pelos que choram. Fraqueza de deus, o escândalo final, a
última pedra de tropeço contra a qual a razão somente deve ser lançada, seja qual for
a sua manifestação. Fraqueza de deus, infestação final, messiânico-apocalíptica do
evento, do desejar o evento, do evento no desejar, no desejo-desejante sem objeto
definido, apenas desejar ser encontrado por deus, a quem amo e quem não sei quem é
quando o amo. No evento desejado nihilismo e kenosis se encontram, a metafísica se
dissolve em orações e lágrimas, enfraquecidamente forte na fraqueza de sua
dissolução.
Por isso, enfim, a religião no evento é religião sem religião. Religião que se
recusa ser aprisionada na Religião, que não pode jamais ser fortalecida de novo
através de um Nome sobre todo Nome. Religião de cruzes, das cruzes dos que oram e
choram, cruzes solidariamente assumidas pelo Messias na cruz, em uma cruz, uma, tão
somente uma cruz. Religião sem privilégios. Cristianismo sem Religião, segundo uma
velha fórmula. Religião sem Cristianismo, em sua roupagem pós-moderna. Religião
sem Religião! Ou, para encerrar melhor este diálogo, retorno a palavra a Caputo:
“Não é uma hermenêutica verdadeiramente radical um pouco mais perdida no
deserto, um pouco mais destinerrante?
Não é uma teologia radical menos uma questão de perguntar como eu aplico e
traduzo esta figura autoritativa do Deus do Cristianismo ao mundo
contemporâneo, e mais uma questão de perguntar o que amo quando amo meu
Deus? – onde o nome de Deus é o nome do evento que transpira no nome de
Deus?
Não é a hermenêutica radical uma voz que clama no deserto, orando e chorando
no deserto?
Não é uma teologia radicalmente fraca, uma teologia do deserto?”38

38
CAPUTO, 2007, p. 85.

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