Entrevista

a Manuel
Graça Dias
Paulo Tormenta Pinto e Alexandra Areia.
Registo fílimico de Inês de Castro Monteiro.

Paulo Tormenta Pinto (PTP): Estamos a fazer um número

da Passagens dedicado à agua e aos rios, em conjunto com o
Grupo da Metrópole Fluvial, de São Paulo, coordenado pelo
Alexandre Delijaicov. Nesse sentido interessava-nos abordar
o tema da Manhattan de Cacilhas porque foi um projecto que
apresentava uma ideia de grande pujança para a transformação
da área metropolitana de Lisboa e em concreto para o estuário
do Tejo. Sabemos que este trabalho foi um “ensaio de ocupa-
ção” para um fundo de investimento e gostaríamos sobretudo
de perceber a forma como a proposta se apresenta enquanto
extensão da cidade para a sua periferia. Sendo a cidade tradicio-
nal o sítio de eleição do discurso do Manuel Graça Dias, per-
guntamos se estas áreas metropolitanas, estas áreas periféricas,
podem ter a esperança de se transformarem numa cidade como
a Lisboa que nós conhecemos, enquanto resultado de sobrepo-
sição de capas e várias camadas temporais. Será que esta cidade
nova pode desejar ser tão espetacular como aquela outra que
encontramos em Lisboa?

96 97
Manuel Graça Dias (MGD): É um tema
interessante, essa questão de conse-
guirmos fazer o novo, mantendo a pos-
sibilidade de que envelheça, tal como
a cidade tradicional vai envelhecendo;
mas não num tempo longo, para não
estarmos durante anos à espera que
as coisas ganhem densidade. A nossa
ideia, quando nos propuseram a “Ma-
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nhattan de Cacilhas” foi muito a de
tentar cruzar várias situações, vários
layers, várias camadas, de modo a que
ficasse já preparada uma certa história,
ainda que criada de um dia para o ou-
tro. Mas nem foi bem assim, as coisas
foram ganhando complexidade com
o tempo, até porque tivemos duas ou
três fases durante as quais pudemos ir
acrescentando mais situações e reven-
do outras. Uma das coisa pela qual nos
batíamos muito era que aquele todo
pudesse vir a ser executado por 30, 40
arquitectos diferentes, a partir de um
plano que garantisse essa complexida-
de e que fosse depois sendo “poluído”,
alterado, acrescentado, pelas diversas
vontades chamadas a actuar.
99

Dito assim, poderá parecer um pouco
anedótico, mas a tentativa de criarmos
alguma “história”, à partida, pode ler-
se no facto de pegarmos na implanta-
ção que já existia, relacionando as do-
cas, as várias unidades industriais e os
grandes armazéns entre si. Fez-se um
levantamento correcto de toda aquela
complexidade e usámo-lo como base,
como ponto de partida. Algumas ruas
ficaram no mesmo sítio onde já esta-
vam, dentro daquele pedaço indus-
trial; as docas, claro, ficaram também.
As direcções das docas, que não são
todas paralelas entre si - há uma que
faz um ângulo diferente -, foram cruza-
das e criámos uma malha que registava
esses dois jogos de ortogonalidades.
A partir daí, desenhámos quarteirões
e, como seria difícil escavar para criar
caves de estacionamento, definimos
que esses “quarteirões” seriam pla-
taformas com dois pisos, envolvidas
perifericamente por uma faixa comer-
cial, sendo, no miolo, destinados a es-
tacionamento. Só depois começámos
a introduzir as torres, partindo dessa
base, dessa espécie de “bolo” baixo e
recortado que também definia uma sé-
rie terraços frente às vistas de Lisboa.
Começámos a pensar nas torres, até
porque a encomenda tinha sido essa:
pediam-nos um número muito volu-
moso de construção, cerca de um mi-
lhão de metros quadrados, o que teria
que ser sempre resolvido com torres,
caso contrário ficávamos para ali com
uma série de “pudins” insuportável.
100
Pensámos muito em como é que o con-
junto poderia vir a ser visto de Lisboa.
Fotografámos uma série de enfiamen-
tos visuais a partir da cidade: na Aveni-
da D. Carlos, na Rua do Alecrim, no Cas-
telo. O nosso ponto de referência era
o pórtico da “Lisnave”, desde que se
visse o pórtico da “Lisnave” estaríamos
a ver aquele futuro conjunto. Desenhá-
mos essas linhas nos nossos mapas e
começámos a cruzar toda aquela infor-
mação, conjugada com o movimento
do Sol. Interessava-nos que as torres
não se sombreassem umas às outras,
nem sombreassem a cidade que já
existia (apesar de demagogicamente,
depois, se dizer que estávamos a “tirar
o Sol aos almadenses”...). Na realidade,
fizemos muitas simulações com o mo-
vimento do Sol, o que nos levou a “em-
purrar” as construções mais altas para
sudeste. Fizemos muitas experiências
com a luz e com as sombras: de ma-
nhã a sombra caía sobre os morros não
construídos da antiga costa, a meio do
dia, o Sol alto fazia pouca sombra sobre
a nova zona, à tarde, a sombra come-
çava a espalhar-se na água. Ao empur-
rarmos as torres mais para sul e ao cui-
darmos do sombreamento entre elas,
estávamos também já a criar um skyli-
ne variado, com algumas irregularida-
des e excepções, mas não arbitrário,
não aleatoriamente “inventado” por
nós. Procurámos sempre tirar o máxi-
mo de aleatório possível à operação.
O Egas [José Vieira] introduziu um exer-
cício divertido mas rigoroso: começou
por colocar sobre a base da maqueta,
uma enorme quantidade de volumes
torre, com as mesmas dimensões. Fi-
cámos com uma série de pedaços de
roofmate com a altura que definíramos
máxima, e depois usámos um foco po-
tente a fazer de Sol — “agora de ma-
nhã, agora ao meio-dia” — e íamos
101
recortando —, “este faz sombra deste
lado, aquele faz sombra no outro, o
primeiro não pode ser, tenta esse mais
à frente”. Não era uma atitude escul-
tórica, ainda que, com certeza, tudo
chegue sempre informado pela nossa
própria sensibilidade; o facto de estar-
mos preocupados com a questão do
Sol conduziu-nos a um “princípio de es-
quema” que, depois, a intuição compo-
sitiva confirmava ou corrigia. Criámos,
também, uma série de aberturas, ras-
gos, torções e enfiamentos — “o que é
que se vê da Rua do Alecrim?”, “vê-se
este”, “então, corta-lhe uma fatia para
que se veja também o outro, atrás, o
mais alto”— e os blocos ficavam sepa-
rados por uma nesga com a largura da
Rua do Alecrim, ou com metade. Estas
orientações e posicionamentos das
torres eram, entretanto, conjugados
com o que já estava definido em baixo,
mais ligado à história recente do sítio.
Havia também a questão dos trans-
portes. Era preciso que os cacilheiros
ou outros barcos mais ou menos sofis-
ticados, entrassem dentro do conjun-
to. O novo cais não seria em Cacilhas
mas agora na Margueira. Também a
ideia do metro ligeiro de superfície, de
que já se falava — “onde é que o metro
de superfície deverá parar para servir
este novo território?”. Os automóveis
privados, também: há uma curva deli-
cada que remata a Avenida 25 de Abril
de 1974, a avenida que conclui um
atravessamento que espinha toda a ci-
dade, mais ou menos no sentido poen-
te-nascente; essa curva sugeriu-nos
continuarmos a Avenida, pelo rio fora,
envolvendo toda a nova zona e criando
uma elipse que, simbolicamente, segu-
rava o conjunto, e lhe dava um limite
visual forte, ajudando alguma fluidez
do próprio trânsito.
Reconversão urbana
do estaleiro da Margueira,
Almada, 1999
Autores: Manuel Graça Dias e Egas José Vieira
Promotor: Fundo Margueira Capital
Coordenação: Luís Torgal (I fase);
Paulo André Rodrigues (II fase)
Colaboradores: Gonçalo Afonso Dias; José Silvestre,
Duarte Correia, Luís Pereira Miguel

102 103
A meio, haveria uns nós e umas laçadas
que conduziriam para dentro, para o in-
terior da Margueira e a norte, voltaria
a desfazer-se e a integrar-se no sistema
viário já existente. Propositadamente,
sublinhávamos o facto de não se tra-
tar de nenhuma “auto-estrada” nem
“viaduto”; teria algumas dessas carac-
terísticas porque passariam por ali au-
tomóveis mas teria passeios, uma zona
rebaixada para as pessoas se sentarem
a ver a água, a pescar, a namorar; seria,
sobretudo, um percurso ao longo da
água, mais do que uma via muito agita-
da, apesar de também funcionar como
distribuidor de tráfego.
104
E foi assim, com histórias sobrepostas,
e com a tal ideia de que outros arqui-
tectos pudessem também vir a ocupar-
se de novos sentidos para as coisas, que
fomos construindo esta aproximação
de cidade. Completamente esquemáti-
ca, é certo, mas que, penso, ficou a de-
ver parte do seu sucesso — para quem
aderiu, claro, porque houve muitos
detractores —, não tanto aos edifícios
altos, mas por parecer haver ali uma
substância qualquer que indiciava que
pudesse vir ser uma cidade verdadeira,
e uma cidade divertida. Por outro lado,
existe uma contraposição volumétrica
imediata: Lisboa é uma cidade deitada
por sobre as colinas, com poucas tor-
res; vemos grandes peças brancas ho-
rizontais, à borda de água e mais aci-
ma; percebe-se muito bem, a partir da
Margueira. Fizemos, então, o contrário.
A Margueira é uma zona completamen-
te plana, ao nível da água; como tal,
funcionaria como uma base a partir da
qual surgiriam os elementos fortemen-
te verticais. Esse contraponto entre
uma acentuada verticalidade sobre o
plano liso do Tejo e a franca horizonta-
lidade da Lisboa mais antiga a galgar as
colinas, estabeleceria um diálogo que
nos pareceu curioso e com hipóteses
de criar aderência histórica.
105
Finalmente, tudo isto fazia parte de
uma ideia mais vasta de recentrar o
crescimento de Lisboa e o das autar-
quias vizinhas em volta do rio; deve-
ríamos saber criar condições para que
estes vários municípios não se conti-
nuassem a espalhar indefinidamente
para norte e para sul, para territórios
menos agradáveis e muito longínquos,
e mantê-los mais próximos das mar-
gens do Tejo. Acreditávamos bastante
em transportes do género dos cacilhei-
ros que ligassem permanentemente
as margens — Cacilhas Lisboa, Lisboa
Alcochete, Alcochete Montijo, Montijo
Belém —, e que todo o Estuário fosse
permanentemente cruzado por barcos,
o que permitiria às pessoas dispensar
bastante o automóvel. Previa-se que
ali vivesse e trabalhasse muita gente:
haveria edifícios de escritórios, edi-
fícios de habitação, muito comércio,
escolas, divertimentos, cinemas, cafés,
bares, restaurantes. Toda aquela popu-
lação, que se imaginava pudesse vir a
viver ali, acabaria por chamar e justifi-
car esse tipo de acontecimentos.
Uma das ideias fortes do Estudo era
chamar a atenção de todos nós para o
facto de Lisboa não poder continuar a
fugir para norte, de Lisboa ter que pa-
rar, ter que acordar com outras autar-
quias, a criação, à volta do Tejo, à volta
desta bacia tão grande, de um grande
centro de distribuição.

PTP: Esta questão de se chamar
“Manhattan de Cacilhas”…
MGD: Isso foi um nome jornalístico.
“Manhattan de Cacilhas” foi uma desig-
nação que apareceu logo na primeira
notícia no Expresso. Nós chamávamos-
lhe “A elipse”, por razões óbvias, por-
que havia uma elipse que “continha”
aquele território. O nosso cliente cha-
mava-lhe Margueira, porque era por
esse nome que era conhecida a zona
antes da Lisnave se ter instalado. “Ma-
nhattan de Cacilhas” foi um soundbite
jornalístico que depois mais ninguém
largou, porque era fácil e era elucida-
tivo, digamos assim. A nossa ideia não
era fazer nenhum Manhattan, mas per-
cebemos a alusão, por analogia com
o skyline. Havia, contudo, uma ligeira
tentativa de desqualificação, nesse
nome; Cacilhas está associada a uma
zona fora de Lisboa, onde se vai aos
domingos comer umas coisas e beber
uns copos. Não digo que fosse consi-
derada uma zona saloia, mas tinha um
pouco essa conotação. “Manhattan de
Cacilhas” correspondia a um somatório
subtilmente achincalhante; mas achá-
mos graça.
PTP: Koolhaas lançou Delirious New
York, na década de 70, mais tarde, na
década de 90 saiu a primeira El Croquis
conjunta com os OMA e pouco tempo
antes da elaboração deste seu projec-
to para a Margueira, saiu o SMLXL, em
95-96. Poderá estabelecer-se alguma
relação entre pesquisa realizada para
os antigos estaleiros da Lisnave e as
propostas que Koolhaas apresentava,
para a “Manhatanização” e verticaliza-
ção das cidades?
MGD: Não! Eu, por sinal, acho um pou-
co antipática a figura de Rem Koolhaas
e acho sempre os seus livros panfle-
tários demais —percebo que seja ne-
cessário ser panfletário, Le Corbusier
também o foi, é sempre necessário
exagerar-se para que as novas ideias
acabem por criar algum peso e haja
uma certa adesão. Mas vi muito esses
livros, sobretudo o SMLXL, como uma
espécie de legitimação de uma arqui-
tectura comercial pouco interessante,
uma espécie de legitimação dos gran-
des shoppings centers, ou das grandes
torres especulativas de arquitectura
“tanto faz”. Rem Koolhaas gosta mui-
to da cidade indistinta, genérica, mas
quando lhe colocaram um edifício por
trás da Casa da Música, ficou muito
aflito. Eu acho que a cidade genérica
é uma realidade, não podemos fugir
dela, não podemos ter uma cidade só
feita por arquitectos — e ainda bem,
prefiro uma cidade feita por toda a
gente; no fundo, como sempre foi, com
os arquitectos a darem o seu contribu-
to, a tentarem introduzir sentido em
coisas que já existem ou em coisas que
venham a existir. Em todo o caso, a cul-
tura do shopping center irrita-me bas-
tante. Vejo-a muito com a sua origem
naqueles heróis dos anos de 1960, que
agora estão na moda, os “Team X”, que
defendiam muito grandes estruturas,
106
informes, com alturas variadas, cheias
de “prateleiras” e mezzaninos, com uns
a almoçar em cima, outros a jantar em
baixo, outros a consumir ao lado, e os
carros a entrar por trás — enfim, o sho-
pping center… O que não é, de todo,
a minha ideia de cidade; é uma ideia
pouco amável e pouco solidária, como,
aliás, se tem visto. O SMLXL de Koo-
lhaas nunca me entusiasmou muito;
enfim, é um livro interessante, não es-
tou a desfazer, mas não foi lá, de modo
algum, que fomos beber. Aliás, não be-
bemos em lado nenhum. Teve graça: o
nosso cliente, quando nos contactou,
começou por nos perguntar se conhe-
cíamos as grandes cidades do Oriente,
Singapura, Tóquio, Hong-Kong. Nós
conhecíamos, tanto eu como o Egas já
tínhamos estado nessas cidades. “Ah,
ainda bem! e gostaram?”. “Gostámos,
gostámos”. “Queríamos que vocês
pensassem numa solução que tivesse
esse espírito, essa verticalidade, essa
diferenciação, mas não queremos gas-
tar mais dinheiro em viagens porque
já levámos um arquitecto a visitar es-
sas cidades todas e, no fim, disse-nos
terminantemente que não concordava
nada com a ideia de torres!”
Há muito esta noção, um pouco pere-
grina e parola, de que as torres são um
símbolo da cultura americana. E é preci-
samente o contrário: não haverá maior
símbolo da cultura americana que os
milhares de casotinhas com quintal
que se espalham por aí, pelo País fora.
Penso que não fazia mal nenhum à mar-
gem sul ter ali uma zona com alguma
concentração. Sou um grande adepto
da concentração porque acho que em
concentrado acontecem mais coisas,
mais situações, mais oportunidades do
que em situações de sprawl, de constru-
ção espalhada e de “urbanismo difuso”,
onde é mais difícil, o que quer que seja,
acontecer. Percebe-se muito timida-
107
mente na zona do Saldanha: há ali bas-
tante gente a circular a pé, de centro co-
mercial em centro comercial, à hora de
almoço, para ir aos restaurantes, para ir
aos cafés à volta. Há uma vida qualquer,
muito por causa daquela concentração
de escritórios. O Saldanha era um bom
sítio para se construírem umas torres
“valentes”, muito grandes, que fizesse
daquele lugar uma mini-city. Isso gera-
ria muito mais movimento à volta, mui-
to mais cinemas, muito mais cafés, mais
bares, mais lojas disto e daquilo, taba-
carias, quiosques de jornais, o que se
queira. Surgiu agora uma nova polémi-
ca, porque foi aprovada, para a zona do
Saldanha, uma torre dos Barbas Lopes
Arquitectos; mas é uma torre só com
17 andares! — era bom era que tives-
se 40 ou 50, mas, se já assim, começa
tudo aos gritos... -, A demagogia maior é
tentar passar-se a ideia de que, quando
há uma torre, aumenta logo o número
de automóveis, o que é absurdo! É o
contrário: como aumenta a densidade,
a variedade também aparece, natural-
mente; não é preciso andar de automó-
vel, as coisas ficam mais perto umas das
outras, e ao fim do dia metemo-nos no
metro e vamos para casa (enfim, quem
viver em zonas servidas pelo metro,
pelo menos). Com milhares de casi-
nhas espalhadas pelo território ficamos
dependentes do automóvel; para ir da
minha casinha à casinha do meu amigo,
cinco quilómetros à frente, lá vou eu de
automóvel, ou para ir ao café, ou para ir
ao cinema... Se eu viver verticalmente,
tenho elevadores que sobem e descem
rapidamente e, em baixo, uma zona
relativamente pequena onde me mo-
vimento facilmente e onde muita vida
pode acontecer — era o que queríamos
que viesse a suceder, dentro daquele
território definido pela “Elipse”.

Alexandra Areia (AA): Em relação à ima-
gem, à imagem do projecto, à comuni-
cação que quiseram fazer do projecto.
Por exemplo, Paulo Varela Gomes fala
que as fotomontagens deste projecto
constituem “um dos grandes momen-
tos da história multissecular de Lisboa.”
MGD: Isso é muito exagerado...
via do Castelo, o que se via a partir do
topo da Rua do Alecrim, do fim da D.
Carlos, etc. que, no fundo, constituiam
a comprovação da “tese” que tínha-
mos elaborado durante o estudo inicial
e que queríamos testar se estaria mais
ou menos certa. Essas imagens gera-
ram uma avalanche com proporções
que não imaginávamos. Tiveram um
sucesso bastante grande, muitos jor-
nalistas queriam falar connosco sobre
o assunto e solicitavam-nos imagens
para ilustrar as reportagens. Nós ía-
mos-lhes fornecendo fotomontagens,
fotos das maquetas e aquilo ia apare-
cendo em vários jornais. Imagens dife-
rentes e variadas que tinham que ver
com o trabalho e não, necessariamen-
te, com estratégias; não se tratou de,
“criar aqui 30 imagens para alimentar a
imprensa”. O que aconteceu foi muito
natural, muito espontâneo, muito fru-
to da curiosidade que os media enten-
deram dispensar à proposta.
AA: Gostaríamos de perceber um pou-
co essa estratégia de comunicação e
do impacto que teve posteriormente
nos media.
MGD: A palavra “estratégia” não se
adequa; quem tinha uma estratégia era
o nosso cliente. O nosso cliente preten-
dia, realmente, um Estudo com impac-
to, porque necessitava de dialogar com
a tutela (o Ministério das Finanças), a
partir dessa oportunidade de discussão
pública que acabou por acontecer. No
final do trabalho fizemos maquetas de
apresentação, bem como uma série de
fotomontagens para explicitar o que se
108
Até aconteceu uma coincidência ainda
mais engraçada. O canal de cabo que é
hoje a “Sic Notícias” começou por ser
o “Canal Lisboa”, e teria arrancado por
essa altura. José Couto Nogueira, que
era um dos responsáveis editoriais do
canal, fez-nos uma entrevista, relativa-
mente longa, ilustrada com as maque-
tes e com pedaços de um vídeo de ani-
mação que também tinha sido feito no
âmbito do Estudo. Pouco tempo de-
pois, o “Canal Lisboa” acabou e ficou,
para aí, três ou quatro meses a “pisar
ovos” e a repetir conteúdos. Uma das
coisas que repetiam era essa nossa en-
trevista. Mas repetiam-na imenso; a
entrevista fartou-se de ir para o ar! De
tal maneira que, em várias ocasiões,
amigos ou alunos vinham ter comigo
dizer-me que me tinham visto na tele-
visão no dia anterior. Estava sempre a
passar em loop, o que, mais uma vez,
também não foi pensado nem propo-
sitado. Entretanto, os jornais sempre a
pressionar e a pedir imagens. Depois,
Maria Emília de Sousa, a Presidente da
Câmara de Almada, como estava con-
tra o processo, convocava escandaliza-
das conferências de imprensa, o que
ainda dava mais publicidade ao tema.
Foi tudo crescendo por si só.
Acabou, foi um pouco ingloriamen-
te, passado um ano ou dois, quando o
Engenheiro Sócrates, à época Ministro
do Ambiente, andava por todo o lado
a querer implodir torres e, em Viana
do Castelo, aos gritos contra o “Pré-
dio Coutinho”, dizendo que iria acabar
com os “erros urbanísticos”. Foi então
que um jornalista lhe perguntou o que
pensava da “Manhattan de Cacilhas” —
“Enquanto eu for Ministro do Ambiente
nunca, jamais, se construirão edifícios
em altura, em Portugal. Jamais!”. E o
Expresso, no dia seguinte, logo na pri-
meira página: “‘Manhattan de Cacilhas’
chumbada pelo Ministro do Ambiente”.
109

O nosso cliente, o Dr. Ricardo Nunes,
Presidente do Fundo Margueira Capi-
tal, um Fundo criado pelo Ministério
das Finanças para gerir o problema das
dívidas da Lisnave, que tinham ido pa-
rar às mãos do Estado no tempo dos
Governos de Cavaco Silva, precisava de
dialogar com o Ministro que o tutelava
mas o Ministro não o recebia, não que-
ria saber; interessava-lhe, como tal, um
pouco de barulho à volta do projecto,
mas mesmo Ricardo Nunes nunca terá
pensado que a sua “estratégia” (ele
sim, tinha uma “estratégia”), chegasse
tão longe... O Dr. António Costa, que
era Ministro da Administração Interna,
telefonou-me porque tinha curiosi-
dade em conhecer o Projecto. Fomos
também, noutra ocasião, mostrá-lo ao
Ministro das Obras Públicas, Dr. Jorge
Coelho No entanto, o Ministro que de-
veria ter tomado as decisões, acabou
por não tomar nenhuma.
110
PTP: Este projecto feito nos anos 90
representa o optimismo que estava
presente naquele período, contudo,
olhando agora para trás, passados 15
anos, podemos adivinhar que, de certo
modo, estava já presente um certo pre-
núncio da crise que veio a acontecer
depois. Estas torres altas, a desmesura
presente numa escala a que não esta-
mos habituados, pode ser vista como
indício daquilo que viria a ocorrer?
MGD: Creio que não. Eram anos de
uma certa euforia, eram anos em que
se imaginava que este tipo de desen-
volvimento era possível. Se formos
contabilizar os metros cúbicos de cons-
trução que foram feitos desde essa
época, até hoje, mesmo com crises,
nessas tais periferias anónimas, à volta
de Lisboa, provavelmente chegaríamos
a valores mais altos que o tal milhão de
metros quadrados que nos era pedi-
do. Acho que se construiu na mesma,
não se construiu foi num determina-
do sítio, com uma determinada ideia
e com uma determinada filosofia de
desenho ou de cidade. É verdade que
chegámos, de há dois ou três anos para
cá, a uma situação em que parece ter
parado a construção. Mas durante 12
anos, até a crise bater forte, foi-se sem-
pre construindo. Em vez de ser naquela
zona, foi, foi noutros sítios.
PTP: E hoje em dia como vê as possibili-
dade de desenvolvimento do estuário do
Tejo. Fala-se muito no porto de Lisboa,
mas quase sempre no sentido de tentar
encontrar um novo local para oimplan-
tar. Como é que vê esta relação da cidade
com o porto e sobretudo com o rio?
MGD: Eu gosto da ideia do porto estar
onde está; sou completamente contra
aquela ideia de retirar os contentores
para fazer esplanadinhas à volta da
água. Quanto mais situações de traba-
lho envolvidas, quanto mais vivências,
quanto mais vida real neste Estuário —
que é fabuloso, que é extensíssimo e,
ao mesmo tempo, tão abrigado, com
condições tão óptimas para uma sé-
rie de actividades aquáticas —, mais
cidade teremos à volta dele. Sou com-
pletamente contra a hipótese de tirar
o porto de Lisboa daqui; o que vale é
que essas coisas também nunca pas-
sam de “ameaças”. Eu adoro o porto,
adoro a variedade que propõe. Gosto
dos navios de cruzeiro a entrar e a sair,
dos navios de carga ao largo, à espera
de vez, dos guindastes, da linha férrea
ao longo dos cais repletos de contento-
res que vão viajar, que vão para outros
sítios. A maior parte das pessoas não
valoriza a civilização que a ideia de con-
tentor contém, passe a redundância.
É uma ideia que me interessa muito,
defendo-a muito perante os alunos de
Arquitectura.
PTP: Olhando hoje em dia para este
território, quais poderiam ser as gran-
des orientações para o futuro da área
metropolitana de Lisboa?
MGD: Continuo a achar que é um des-
perdício esta superfície de água não
ser vivida mais intensamente, no sen-
tido do trabalho e do dia-a-dia. Faz-me
imensa impressão a questão do aero-
porto. A base área do Montijo tem ou
não tem condições para a aterragem
de voos? Estaria ainda bem perto do
centro da Lisboa, qualquer shuttle
poderia ligar-nos às principais redes
de transporte metropolitano; não sei
se não seria uma ideia a desenvolver.
Também seria muito bonito, os aviões
a baixarem e a aterrarem em cima des-
ta enorme massa de água; é pena é
que já não haja hidroaviões (no princí-
pio da aviação, amaravam hidroaviões
ao largo dos Olivais; lembro-me de
ser miúdo e ir ver um hidroavião que
apodrecia no meio da doca). Esta vi-
vência aqui à volta talvez pudesse ga-
rantir que a grande cidade deixasse de
crescer noutras direcções. Temos que
criar condições para que a cidade não
cresça tanto em extensão. Para mim,
o crescer em extensão é o que estraga
tudo, é o que espalha mais, o que traz
mais automóveis, o que impede mui-
to a possibilidade de uma distribuição
concentrada dos serviços. Tudo isso
poderia ser revertido, com uma espé-
cie de paragem do crescimento desor-
denado da Grande Lisboa e com uma
reestruturação das possibilidades de
construção nestas áreas tão bonitas à
volta do Estuário do Tejo.
111
 Manuel Graça Dias
Professor da Faculdade de
Arquitectura da Universidade
do Porto, Contemporânea, Lda;
Autor com Egas José Vieira
do Projecto de Reconversão ur-
bana do estaleiro da Margueira
em Almada.
Paulo Tormenta Pinto
Director da Revista PASSAGENS
e do Programa de Doutoramen-
to Arquitectura dos Territórios
Metropolitanos Contemporâ-
neos. Investigador, Dinâmia-CET
e CIAAM.
112 113
Alexandra Areia
Doutoranda no Programa Ar-
quitectura dos Territórios Me-
tropolitanos Contemporâneos.
Investigadora Dinâmia-CET.
Inês de Castro Monteiro
Doutoranda no Programa Ar-
quitectura dos Territórios Me-
tropolitanos Contemporâneos.
Investigadora Dinâmia-CET.