Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
A CONSTRUÇÃO
INTERCULTURAL DO DIREITO DAS MULHERES INDÍGENAS A
UMA VIDA SEM VIOLÊNCIA: A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
Lívia Gimenes Dias da Fonseca
Fonseca
A CONSTRUÇÃO INTERCULTURAL
INTERCULTURAL DO CONSTRUCTION OF THE
DIREITO DAS MULHERES RIGHT OF INDIGENOUS
INDÍGENAS A UMA VIDA WOMEN TO A LIFE
SEM VIOLÊNCIA: WITHOUT VIOLENCE: THE
A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA BRAZILIAN EXPERIENCE
RESUMO ABSTRACT
Ao se aplicar a noção de interculturalida- When applying the notion of intercul-
de aos direitos das mulheres no Brasil se tural for women’s rights in Brazil is fac-
confronta, em especial, com os desafios ing, in particular, the challenges posed
colocados pelo movimento de mulheres by the movement of indigenous women.
indígenas. Uma situação importante que An important situation that points to the
aponta para a complexidade deste pro- complexity of this problem is the reality
blema é a realidade de violência que of violence that indigenous women have
as mulheres indígenas vêm denunciando been reporting as marital violence on
em contexto intra-étnico como violências intra-ethnic context. The challenge that
conjugais. O desafio que se coloca é a arises is the understanding that the an-
compreensão de que as respostas às vio- swers to the violence suffered by women
lências sofridas pelas mulheres não pode can´t be homogeneous in the same way
ser homogênea do mesmo modo que a that their reality is different. The idea of
realidade delas é diversa. Refletir sobre reflect on the state institutions, especially
as instituições estatais, em especial as ju- legal, is for these be more open to diver-
rídicas, para que essas sejam mais aber- sity and dialogue with society, something
tas às diversidades e ao diálogo com a that serves the whole society. The propos-
sociedade é algo que serve a todos e al that arises here is the discussion about
todas. A proposta que aqui se coloca é the possibilities of opening the right to the
a discussão acerca das possibilidades problem-solving dialogue with indigenous
de abertura do Direito para o diálogo women’s organizations, as legitimate so-
problematizador com as organizações cial organization in the formulation and
de mulheres indígenas, como organização expansion of women’s rights so that they
social legítima na formulação e alarga- serve the release of all women.
mento da concepção de direitos das mu- Key words: Indigenous Women; Domestic
lheres para que estes sirvam à libertação violence; Interculturalism.
de todas as mulheres.
Palavras Chaves: Mulheres indígenas;
Violência doméstica; Interculturalidade.
cação dos indivíduos por trabalho, gêne- Estado Nação o espaço único de produ-
ro e raça1. (QUIJANO, 2010: 114). ção do próprio Direito ao igualá-lo com
Assim, da colonialidade do poder se de- a produção de leis. O positivismo teori-
senvolve a colonialidade do ser, isto é, a camente rompe com a tradição do jusna-
criação a partir de uma perspectiva et- turalismo que na sua trajetória histórica
nocêntrica de um(a) “Outro(a)” (o índio, o anterior às revoluções burguesas tinha na
escravo, o oriental, a mulher) como subal- palavra de Deus o conteúdo do Direito.
terno ao eurocentrismo, branco, masculi- Todavia, esse rompimento será apenas
no, heterossexual e patrimonial, no qual a uma dissimulação das bases racionais
cultura (a razão) europeia seria superior já que a tradição judaico-cristã tem que
aos dos demais povos, o que justificou não Deus teria feito o “homem” a sua imagem
só a escravização dos povos africanos e e semelhança. A passagem da tradição
indígenas, mas também a colonização do medieval do conhecimento para moder-
“sul” pelo “norte”. nidade carrega esse principio. Como
A partir dessa classificação social de se- aponta Grosfoguel, a lógica cartesiana
res humanos irá se produzir também a co- de Descartes “substitui Deus, fundamen-
lonialidade do saber. A divisão da socie- to do conhecimento na teopolítica do co-
dade colonial entre “civilizados” e “selva- nhecimento da Europa da Idade Média,
gens/indígenas” constitui uma base epis- pelo Homem (ocidental), fundamento do
temológica que situa os(as) nativos(as) conhecimento na Europa dos tempos mo-
dernos” (GROSFOGUEL, 2010: 460).
como objetos “naturais” da ciência que
os coloca num “tempo-espaço temporal- Por meio dessa crítica à dualidade jus-
mente indeterminados, mas ainda assim positivismo e jusnaturalismo, Lyra Filho irá
periférico”(MENESES, 2010a, p. 226). rejeitar essas como as únicas possibilida-
des de pensar o Direito e irá propor a
A produção de conhecimento a partir da
ideia de um Direito Achado na Rua, isto
lógica da modernidade irá se fundar nes-
é, a compreensão de que o Direito é um
sa colonialidade do saber se constituindo
produto de articulações da própria so-
como uma produção da “não existência”,
ciedade, em especial dos movimentos so-
ou de outro modo, como “monocultura
ciais, na sua atuação e participação ati-
do saber”. O pensamento moderno, des-
va para a destituição de uma realidade
se modo, irá dicotomizar o conhecimento
injusta que nega aos indivíduos sua plena
científico, que será considerado neutro, de
realização. O direito pode até se mani-
outras formas de saberes (SANTOS, 2006:
festar por meio de normas, desde que se
102). Essa suposta neutralidade do conhe-
assegure que estas sejam a expressão de
cimento científico será à base da ideologia
uma “legítima organização social da li-
positivista. Neste sentido, a diferença cul-
berdade” (LYRA FILHO, 2005: 86).
tural na razão moderna assumiu contornos
de hierarquia racial “a partir da articula- Essa proposta quebra com a perspectiva
ção entre o evolucionismo, o positivismo e o universalista de Estado Nação como locus
racismo” (MENESES, 2010b: 74). único de produção do Direito. A crítica
ao universalismo envolve, assim, o reco-
O positivismo na produção de conheci-
nhecimento de uma pluralidade social de
mento sobre o Direito terá no modelo de
produção de sentidos jurídicos e a nega-
ção da imposição de uma cultura sobre a
1 E outras classificações como por identidade de gênero; orientação sexual,
capacitismo, adultismo. A figura, assim, de um ser humano no modelo hegemônico outra. Isso não significa a aceitação da
a quem o pensamento moderno serve é: europeu, masculino, branco, proprietário,
heterossexual, cissexual (não-transsexual); sem deficiência, adulto. concepção relativista que nega qualquer
Hendu 6(1):88-102 (2015) | 91
tipo de interação entre as culturas e de prática legal e judicial assimilacionista
alteração de algumas delas independen- de dominação colonial. Somente com a
te de seu conteúdo opressor. Constituição Federal de 1988, após mo-
O que se propõe, assim, é que o Direito bilizações e pressões da população indí-
seja reconhecido como fruto das articu- gena, é que foi admitida legalmente a
lações sociais pelo fim de realidades de perspectiva de sujeitos dos/as integran-
opressão que se dão por meio de um tes destes povos.
diálogo intercultural entre diversos gru- Ainda, a Convenção da Organização
pos de oprimidos e oprimidas (SANTOS, Internacional do Trabalho (OIT) no 169
2006: 445). A interculturalidade, segun- introduz a possibilidade do ordenamento
do Walsh, seria um conceito e também estatal ser tratado dentro de uma noção
uma prática de contato e intercâmbio en- pluralista que admite as formas tradicio-
tre culturas de maneira equitativa2 nais dos grupos indígenas de julgar e tra-
tar os comportamentos de seus e de suas
integrantes3. Se por um lado, esta aber-
a partir da relação, comunicação e
tura busca que esses povos não sejam co-
aprendizagem permanentes entre
locados sob completa vulnerabilidade a
pessoas, grupos, conhecimentos, va-
lores, tradições, lógicas e racionali-
uma legislação e modelo estatais de afe-
dades distintas, orientados a gerar, rição de decisões judiciais que são muito
construir e propiciar um respeito mú- fechadas à diversidade cultural que car-
tuo, e um desenvolvimento pleno das regam4, por outro lado ainda não resolve
capacidades dos indivíduos e coleti- o problema do conflito entre as leis e os
vos, acima de suas diferenças culturais costumes dos povos indígenas.
e sociais. Em si, a interculturalidade Uma situação importante que aponta
busca romper com a história hegemô- para a complexidade deste problema é
nica de uma cultura dominante e ou-
a realidade de violência que as mulheres
tras subordinadas e, dessa maneira,
indígenas vêm denunciando que as atinge
reforçar as identidades tradicional-
não somente em contexto interétnico (en-
mente excluídas para construir, tanto
na vida cotidiana como nas institui- tre “brancos” e “indígenas”), mas também
ções sociais, um com-vivir de respeito intra-étnicas como violências conjugais,
e legitimidade entre todos os grupos além de outras práticas discriminatórias
da sociedade (WALSH, 2009: 41). como matrimônios forçados, a prática de
doar filhas a outras famílias e violação
das meninas. Neste sentido, Ela Wiecko
Ao se aplicar a noção de interculturalida- de Castilho (CASTILHO, 2008:12) apon-
de aos direitos das mulheres no Brasil se ta que a Lei no 11.340/2006, conhecida
confronta, em especial, com os desafios como Lei Maria da Penha, a principal nor-
colocados pelo movimento de mulheres
mativa nacional que trata de violações
indígenas. Os/as indígenas por quase
dos diretos das mulheres, não foi pensa-
toda a história brasileira foram trata-
dos/as como incapazes e objetos de uma 3 Convenção OIT no 169, Artigo 9º. 1: Na medida em que isso for compatí-
vel com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessa-
2 Equitativa não quer dizer “neutra”. A interculturaidade é uma proposta que dos recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus
não ignora as assimetrias presentes na sociedade em decorrência da coloniali- membros.
dade. As relações de poder entre agentes de Estado e movimento sociais, por 4 Um exemplo é o fato ocorrido no dia 04/05/2011 em que uma juíza negou
exemplo, são desiguais e a busca por um diálogo equitativo deve ter em conside- o direito aos/as indígenas de utilizarem sua língua nativa, o guarani, nos depoi-
ração essas desigualdades de poder, ao invés de ignorá-la. Nesse caso, o diálogo mentos como testemunhas no júri popular dos acusados pelo assassinato do cacique
intercultural demanda que o poder da fala seja distribuído, mas também que a Marcos Veron, sob alegação de que os/as indígenas presentes falavam português
fala mais valorizada seja aquela silenciada historicamente pelo próprio Estado. (ULTIMA INSTÂNCIA. 2010).
Quadro 1 – Análise das propostas presentes no relatório final dos Seminários Regionais Participativos
sobre a Lei Maria da Penha (2008 – 2010)9
Propostas - aplicação de
Propostas - Atuação Propostas - Lei Maria da
respostas tradicionais
do Estado (com seus Penha como instrumento
próprias de cada etnia
instrumentos) de enfrentamento
(autonomia)
Necessidade de
Conscientização dos jovens conscientizar também os Necessidade de consultar
em relação a uso de homens sobre a violência liderança interna (ou
drogas, bebida e violência contra a mulher e a Lei cacique ou pajé ou ancião).
Maria da Penha
Aplicação conjunta da Lei
Relacionamento da violência
Maria da Penha com lei Aplicação aos casos de
com o uso de bebidas e
interna (com prioridade violência de lei interna
drogas
para a interna)
Fazer palestras; Criação de delegacias Necessidade de
realização de materiais especializadas de organização das mulheres
de conscientização, sobre atendimento a mulher, em para debater essa temática
uso de drogas, bebidas, especial, da mulher indígena e para combater a violência
prostituição, DST/Aids acessível às aldeias contra as mulheres
A resolução de conflitos
Oferta de atendimento Aplicação conjunta da
oriundos de violência
psicológico às vítimas; Lei Maria da Penha com
doméstica deve passar por
agressores e usuários de lei interna (sem apontar
uma decisão interna da
bebidas e drogas prioridade)
comunidade
Realização de intercâmbio
Inclusão do tema nas Criação de núcleo (centro) entre povos para que estes
escolas de atendimento à mulher discutam o problema e
caminhos para solucioná-lo
Capacitação de integrantes
dos órgãos públicos
(delegacias; FUNAI, Criação de Casas de apoio
FUNASA, etc) que atuam às mulheres vítimas de
junto aos povos indígenas violência
quanto à questão da
violência contra a mulher
Garantir a demarcação
e ampliação das terras
indígenas
Fonte: Elaboração da autora a partir de dados da FUNAI (FUNAI, 2010a).
Há apenas um grupo que trata de forma9 nas focando na questão das agressões
expressa da violência para além da fí- físicas. Em um dos grupos aparece a se-
sica, ou seja, trata também da psicológi- guinte afirmativa: “No nosso povo não
ca. Isso levanta a dúvida se as propostas está acontecendo esse tipo de violência
dos outros grupos foram pensadas ape- agressão. Pode tá acontecendo com ou-
tros povos diferentes porque perderam
9 As propostas foram colocadas em ordem decrescente de cima para baixo
em relação ao número de vezes que a proposta aparece em diferentes grupos. a cultura” e “Não aceitamos que a lei
Hendu 6(1):88-102 (2015) | 95
Maria da Penha interfira na cultura do que foi criada pela comunidade” (FUNAI,
nosso povo, pois não sofremos abusos 2010a). Neste mesmo grupo, há a pro-
por nossos maridos. Nem maus tratos”. posta de “Não usar os recursos da lei dos
Como não aparece de qual etnia são brancos” ao mesmo tempo em que algu-
as pessoas que realizam estas falas não ma participante apresenta que “Sabemos
dá para analisar a qual realidade es- que nós mulheres somos muito discrimina-
pecífica se refere, pois no mesmo grupo das, agora com a ajuda dessa lei [supõe-
aparecem propostas que, ao contrário, -se Maria da Penha] estamos fortalecidas
reforçam a necessidade de enfrentar a e temos nosso direito reconhecido na lei,
violência doméstica. temos que fazer valer a lei que é um di-
reito nosso” (FUNAI, 2010a).
Em 2010, quando este relatório foi de-
batido entre as participantes do Encontro Nesta direção, a resistência por alguma
Nacional de Mulheres Indígenas para a intervenção estatal na questão da vio-
Proteção e Promoção de seus Direitos, uma lência doméstica está associada a uma
das participantes indígena se mostrou desconfiança em relação à atuação do
Estado que pode vir a apenas aprofun-
dar a desestruturação interna promovida
preocupada porque na cabeça de pelo contato com não indígenas. A alta
algumas mulheres parece que os 13 associação da violência doméstica com a
Seminários foram voltados para que bebida alcoólica e uso de drogas pode
as mulheres usassem a Lei Maria da estar relacionada com a percepção de
Penha nas Comunidades. Mas não alguns grupos de que os processos de
foi isso, os Seminários foram para alteração culturais internos provocados
compreender a Lei Maria da Penha pela assimilação da cultura não indíge-
e outros direitos. Não somos nós que na (“dos brancos”) é a causa, em verda-
estamos fazendo a lei, não é questão de, da violência em si. Por isso também
de aceitar ou não a lei. Vamos voltar a presença da demanda da demarca-
para as nossas casas mudadas pelas ção de território como resposta a ques-
novas informações (FUNAI, 2010b). tão da resolução de violência doméstica
intra-étnica.
Em um dos grupos, as mulheres também A alta demanda de que esta temática
afirmaram que não há violência no seu seja discutida com os homens, para além
povo. Assim, a violência doméstica pode da noção que os problemas culturalmente
de fato não existir na realidade em são debatidos sempre com a participa-
questão; ou talvez seja apenas uma afir- ção de toda a comunidade indígena, está
mação de que esta temática não é uma também relacionada a esta questão da
prioridade no momento para o povo em desestruturação cultural, a exemplo do
questão; ou também uma afirmação da que aparece na fala de que “os homens
autonomia do povo de definir e como tra- não eram educados para bater nas mu-
tar este assunto. lheres, perderam a educação, os homens
Em um dos grupos aparece uma fala que têm que ser reeducados, não queremos
orienta para uma outra possibilidade de apanhar” (FUNAI, 2010a).
explicação da não presença de violência Em dois grupos apareceu a questão dos
dentro de algumas etnias: “Há comuni- casamentos com não indígenas ou com
dade que não tem este tipo de violên- pessoas de outra etnia ou fora da tra-
cia, porque tem um grupo de liderança dição, como aspectos a ser associados
96 | Hendu 6(1):88-102 (2015)
Fonseca
Assim, muitas vezes os próprios homens drão moderno que homogeneíza o modo
indígenas utilizam do discurso da práti- de viver em sociedade, ignorando e até
ca tradicional de forma a não debater destruindo outras formas de organização
as discriminações ocorridas internamen- social por não compor a possibilidade de
te em seus povos. Como exemplifica Rita coexistência de pluralidades de organi-
Segato (SEGATO, 2012: 119), o papel zação na sua estrutura interna.
de diálogo com as aldeias vizinhas tra-
No caso da construção dos direitos das
dicionalmente eram feitas pelos homens,
mulheres, como base de políticas públi-
porém a substituição automática deste
cas, essa deve ter por base uma epis-
papel para o diálogo com as agências
estatais podem gerar desequilíbrios. temologia feminista crítica e decolonial
capaz de realizar traduções intercultu-
Esta desestruturação por vezes ocorre rais. Isso significa que na mesma medida
inclusive pela forma de intervenção do que se deve negar a noção de “homem”
Estado, como por exemplo, ao obrigar como padrão de humanidade universal,
que as organizações indígenas sejam deve-se negar a de uma mulher univer-
formalizadas em formato de associações sal (HARDING, 1993, 08), superando o
para receber financiamento. Essas asso- padrão colonial/moderno sobre os seres
ciações possuem seus cargos de diretoria humanos que uniformiza os grupos sociais
ocupados nem sempre pelas lideranças e, no caso, as mulheres num único padrão
tradicionais e isso gera um enfraqueci- de ser.
mento destas lideranças e por consequên-
cia das normas internas de comportamen- Por isso, é muito presente nos relatórios
tos e de resolução de conflitos. dos encontros de mulheres indígenas a
demanda por autonomia decisória dos
Esse modelo organizacional formal de povos indígenas e que a criação de polí-
associação por não respeitar “o modo ticas públicas perpassem por consultas di-
de ser e de fazer dos povos indígenas” retas e, preferencialmente, coletivas junto
(BANIWA, 2012: 219) gera conflitos in- a estes povos.
ternos e diferenciações sociais e econô-
micas que fragilizam a democracia hori- Isso não significa que as mulheres indíge-
zontal “em que o poder de decisão é um nas rejeitam em totalidade a possibilida-
direito inalienável de todos os indivíduos de de aplicação da Lei Maria da Penha,
e grupos que constituem a comunidade” como explica Valéria Paye (KAXUYANA
(BANIWA, 2012: 219). e et. al, 2008: 42). Essa desestruturação
tem atingido o elo mais fraco que são as
Essas desestruturações que as(os) indíge-
mulheres e que “se no passado a ‘lei do
nas confrontam em seus povos, resultantes
branco’ não tinha muito a dizer para o
do processo colonial, devem ser enfrenta-
das com fundamento na decolonização12 universo indígena, hoje parece ser ne-
do poder, isto é, na desconstrução das cessária”. O problema da Lei Maria da
formas modernas de produzir políticas Penha para as indígenas é que ela vem
públicas pelo Estado a partir de um pa- proteger as mulheres em uma situação
em que a rede comunitária que realmen-
12 “Suprimir o “s” e nomear “decolonial” não é promover um anglicismo. Pelo
te as protegia já foi rompida por ações
contrário, é marcar uma distinção com o significado em castelhano [e português] do
“des”. Não pretendemos simplesmente desarmar, desfazer ou reverter o colonial;
do próprio Estado ou por sua omissão
isto é, passar de um momento colonial a um não colonial, como se fosse possível que
seus padrões e rastros desistam de existir. A intenção, em verdade, é para apontar
(SEGATO, 2012: 110).
e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua– de transgredir,
intervir, insurgir e incidir. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínuo Assim, as mulheres indígenas ao lidar com
no qual podemos identificar, visibilizar e destacar “lugares” de exterioridade e
construções alternativas” (WALSH, 2009, p. 15, nota de rodapé 1). o problema da violência doméstica não
Hendu 6(1):88-102 (2015) | 99
estão pedindo por proteção estatal que a todas as realidades indígenas e tam-
acaba por limitar a autonomia dos povos pouco pode significar o fechamento ao
(CASTILLO, 2001: 19), mas por reconheci- diálogo com essas mulheres. Ao contrá-
mento do seu direito a autodeterminação rio, a sua demanda é para que os espa-
que significa reconhecer as suas formas ços em que elas possam opinar e orien-
de resolução de conflitos internos ou in- tar as políticas públicas sejam cada vez
clusive de recriá-las de forma a permitir maiores. Portanto, não é possível pensar
a expulsão das colonialidades e dos pa- o direito das mulheres numa perspectiva
triarcalismos presentes internamente. libertadora sem as mulheres indígenas.
5. CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
O Estado moderno é marcado por uma BANIWA, Gersem. 2012. A conquista da cida-
dania indígena e o fantasma da tutela no Bra-
lógica monista de produção de normas sil contemporâneo. In RAMOS, Alcida Rita (org.).
algo que adquire aspectos mais exclu- Constituições nacionais e povos indígenas. Belo
dentes na medida em que a sociedade Horizonte: Editora UFMG, pp. 206 – 227.
que seu sistema normativo busca espelhar
é idealizada dentro de uma construção CASTILHO, Ela Wiecko V. de. 2008. A violência
doméstica contra a mulher no âmbito dos povos
histórica em que determinados grupos, indígenas: qual lei aplicar? Em VERDUM, Ricardo
como os indígenas, são invisibilizados. (organizador), Introdução - Mulheres Indígenas, Di-
reitos e Políticas Públicas. Brasília: Inesc, p. 21-32.
A construção de um Estado que seja real-
mente democrático deve ser capaz de re- CHAKRABARTY, Dipesh. 2000. Provicializing Eu-
presentar ou de permitir coexistir grupos rope. Tradução Livre. Princeton University Press:
distintos, porém com a mesma dignidade 27-46
de ter neles sujeitos de direitos. Aqui di- CONVENÇÃO Organização Internacional do Tra-
reito compreendido não como um equiva- balho (OIT) n. 169 de 27 de junho de 1989, ra-
lente a sistemas legais, mas como expres- tificado pelo Brasil por meio do Decreto no 5051
são de uma superação de condições de de 19 de abril de 2004.
opressão por meio da ação organizada
DUSSEL, Enrique. 1994. 1492 – El encubrimiento
legitima por quem a sofre. del Otro – Hacia el origen del “mito de la moder-
Pensar, assim, o direito das mulheres a nidad”. Tradução Livre. Conferencias de Frank-
furt, octubre, 1992, Plural editores – Facultad de
uma vida sem violência deve se levar Humanidades y Ciencia de la Educación - UMSA,
em consideração que em relação a al- La Paz, (colección academia número uno).
guns povos indígenas brasileiros isto se
expressa na consolidação do direito a FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. 2012. A luta
pela liberdade em casa e na rua: a construção
identidade indígena; na demarcação e
do Direito das mulheres a partir do projeto Pro-
não intervenção dos seus territórios; e no motoras Legais Populares do Distrito Federal. Dis-
respeito a sua autonomia normativa, já sertação (Mestrado em Direito). Universidade de
que exatamente a desestruturação cul- Brasília, UnB.
tural causada por uma invasão cultural
FUNAI. 2014. Mulheres Indígenas participam de
ocorrida ao longo de séculos é que deu o Encontro Nacional a Proteção e Promoção dos seus
formato para muitas das violências atual- Direitos. 19 nov. Disponível em http://www.funai.
mente sofridas pelas mulheres indígenas. gov.br/index.php/comunicacao/noticias/2223-
-mulheres-indigenas-participam-de-encontro-na-
Entretanto, isso não pode ser tomado cional-a-protecao-e-promocao-dos-seus-direitos,
como uma resposta única a ser aplicada acessado em 07/12/2014
100 | Hendu 6(1):88-102 (2015)
Fonseca
GARGALLO, Francesca. 2014. Feminismos desde Antropologia”. - Rio de Janeiro, Brasília: Museu
Abya Yala. Ideas y proposiciones de las mujeres do Índio/ GIZ /FUNAI.
de 607 pueblos en nuestra América. Tradução Li-
vre. Editorial Corte y Confección, Ciudad de Mé- SACCHI, Ângela. 2011. Representações políticas
xico, 1ª ed. digital. contemporâneas das mulheres indígenas. Em Leila
Linhares Barsted, Jacqueline Pitanguy (Orgs.), O
GROSFOGUEL, Ramón. 2010. Para descoloni- Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010, Rio
zar os estudos de economia política e os estudos de Janeiro: CEPia; Brasília: ONU Mulheres, pp.
pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de 299-304.
fronteira e colonialidade global. In: SANTOS,
Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula SEGATO, Rita Laura. 2003. Uma agenda de ação
(Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez afirmativa para as mulheres indígenas no Brasil.
Editora, p. 455-492. Série Antropologia, n. 326. Brasília: Departa-
mento de Antropologia/ Universidade de Brasí-
HARDING, Sandra. 1993. A instabilidade das ca- lia (UnB). Disponível no seguinte endereço: www.
tegorias analíticas na teoria feminista. Tradução agende.org.br/docs/File/dados_pesquisas/ou-
de Vera Pereira. Revista Estudos Feministas. No1, tros/Acoes%20para%20mulheres%20indigenas.
p. 7 – 31. pdf. [consultado em 08/12/2014).
KAXUYANA, Valéria Paye Pereira & SOUZA e ________________. 2006. Antropologia e Di-
SILVA & Suzy Evelyn de. 2008. A Lei Maria da reitos Humanos: Alteridade e ética no movimento
Penha e as mulheres indígenas. Em VERDUM, Ri- de expansão dos direitos universais, Mana 12(1):
cardo (organizador), Introdução - Mulheres Indí- 207-236. Disponível em http://www.scielo.br/
genas, Direitos e Políticas Públicas, Brasília: Inesc, pdf/mana/v12n1/a08v12n1.pdf.
p. 33 – 46.
_________________ . 2012. Gênero e Colonia-
LYRA FILHO, Roberto. 2005. O que é direito? São lidade: Em busca de chaves de leitura e de um
Paulo: Brasiliense. vocabulário estratégico descolonial. Tradução
de Rose Barboza, Revista E-Cadernos, Publica-
MENESES, Maria Paula. 2010a. Corpos de violên- ção Trimestral, n. 18 - Epistemologias feministas:
cia, linguagem de resistência: as complexas teias ao encontro da crítica radical. Universidade de
de conhecimento no Moçambique contemporâneo. Coimbra, Centro de Estudos Sociais (CES).
In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Ma-
ria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Pau- SANTOS, Boaventura de Sousa. 2006. A gramáti-
lo: Cortez Editora, p. 221 – 261. ca do tempo: para uma nova cultura política, São
Paulo: Cortez Editora.
MENESES, Maria Paula. 2010b. O ‘indígena’ afri-
cano e o colono ‘europeu’: a construção da dife- _________________________. 2001. Para uma
rença por processos legais, E-cadernos CES, 7, p. concepção multicultural dos direitos humanos, Re-
68-93. vista Contexto Internacional, Rio de Janeiro, vol.
23, no 1, janeiro/junho, pp. 7-34.
PANIKKAR, Raimundo. 2004. Seria a noção de
Direitos Humanos uma concepção ocidental?. Em _________________________; MENESES, Maria
Baldi, Cesar (org.), Direitos Humanos na Socieda- Paula (Orgs.). 2010. Epistemologias do Sul. São
de Cosmopolita. Rio de Janeiro, São Paulo e Reci- Paulo: Cortez Editora, p. 221 – 261.
fe: Editora RENOVAR.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo. 2011. Direito
QUIJANO, Aníbal. 2010. Colonialidade do poder como liberdade: O Direito Achado na Rua, Porto
e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed..
Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemo-
logias do Sul. São Paulo: Cortez Editora, p. 84 VERDUM, Ricardo (Org.). 2008. Introdução - Mu-
– 131. lheres Indígenas, Direitos e Políticas Públicas. Bra-
sília: Inesc.
SACCHI, Ângela & GRAMKOW, Márcia Maria
(Orgs.). 2012. Gênero e povos indígenas: co- ULTIMA INSTÂNCIA. 2010. MPF abandona júri
letânea de textos produzidos para o “Fazendo sobre morte de cacique por impasse no depoi-
Gênero 9” e para a “27ª Reunião Brasileira de mento de indígenas. 04 maio. Disponível em
Hendu 6(1):88-102 (2015) | 101
http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noti- FUNAI. 2010b. Relatório síntese do Encontro Na-
cias/46420/mpf+abandona+juri+sobre+morte cional De Mulheres Indígenas para a Proteção e
+de+cacique+por+impasse+no+depoimento+ Promoção Dos Seus Direitos. Arquivo em pdf não
de+indigenas.shtml, acessado em 02/06/2015. publicado, disponível junto ao órgão FUNAI.