Вы находитесь на странице: 1из 21

ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO

FRANCÊS
Continuidades e rupturas sobre o conceito de
democracia *

Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro


Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ), Rio de Janeiro - RJ. E-mail: phpcassimiro@gmail.com.

DOI: 10.17666/339605/2018.

A democracia na imaginação política liberal bre a possibilidade de superação do modelo radical da


república jacobina – centrada nas ideias de soberania
A linguagem moderna do liberalismo francês do povo e de estado de exceção – por uma nova repú-
começou a emergir durante o Diretório (1794) e se blica que recuperasse o funcionamento institucional
estendeu pelo período do Império (1804-1814) – imaginado nos primeiros anos da Revolução: regime
como principal oposição ao despotismo bonapartis- representativo, garantias constitucionais, liberdade
ta – para consolidar-se na Restauração (1814-1830) política e igualdade civil. O topos comum à imagina-
– quando se tornou o principal instrumental do de- ção política do período era a busca pela solução para o
bate constitucional, buscando a transação possível en- problema da limitação do poder. Como colocar limi-
tre Revolução e Antigo Regime. A crise do período tes legítimos a um poder legitimamente constituído?
do Terror – encerrado em 1794 com a dissolução do A busca pela superação do período de “desinstitucio-
Comitê de Salvação Pública e a morte de Robespierre nalização da política” (Rosanvallon, 2000, p. 66) co-
e de vários de seus aliados – abriu espaço para uma locou o liberalismo diante do desafio de superar essa
variedade de formulações teórico-constitucionais so- caracterização problemática do político como expan-
são totalizante do social.
A questão da democracia no debate político
* Este artigo é parte de pesquisa de pós-doutorado fi- da Restauração sofre de uma dificuldade conceitu-
nanciada pelo CNPq, ao qual agradeço o apoio. al fundamental. O processo político deslanchado
Artigo recebido em 26/04/2016 pela Revolução, tal como descrito por vários de seus
Aprovado em 28/06/2017 contemporâneos, tende à dissolução das hierarquias
RBCS Vol. 33 n° 96 /2018:  e339605
2  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

sociais estruturais e à expansão da liberdade públi- A divergência quanto à redução da democra-


ca. Contudo, devido à associação da palavra “de- cia a uma forma de governo popular encontra-se na
mocracia” ao republicanismo radical ou mesmo ao origem da reflexão de Tocqueville, como demonstra
cesarismo bonapartista, esse processo foi expresso a célebre citação que André Jardin recolheu nos ma-
pelos liberais em conceitos diversos – governo repre- nuscritos de Yale: “A democracia constitui o Estado
sentativo, civilização, progresso, opinião pública –, social, o dogma da soberania do povo constitui o
afastados num primeiro momento do sentido que a direito político. Essas duas coisas não são análogas.
palavra “democracia” tinha para seus contemporâ- A democracia é uma maneira de ser da sociedade. A
neos. Como explica Koselleck (2011, p. 109), uma soberania do povo é uma forma de governo” (Toc-
palavra se torna um conceito quando uma totalidade queville apud Lamberti, 1983, p. 33, grifos meus).
empírica de circunstâncias sociais e políticas se agrega Aurelian Craiutu (1999) chama a atenção
a ela. Assim, a democracia encontra na obra de Ale- para o fato de que o problema da distinção entre
xis de Tocqueville a primeira grande formulação de a democracia, entendida como o primado da sobe-
síntese da questão: nela, a palavra “democracia” desig- rania do povo, e o governo representativo, enten-
na definitivamente o processo descrito parcialmente dido como o reino das garantias constitucionais,
por seus contemporâneos, associando forma política, mobilizava todo o debate político francês no qual
transformação sociológica e expectativa histórica. Tocqueville se encontrava imerso antes mesmo de
A bibliografia sobre Tocqueville tem se dedicado partir para a América. A bibliografia sobre Toc-
longamente a recensear os diversos usos da palavra queville tem insistido na importância da obra dos
“democracia” em sua obra. James Schleifer (1980), doutrinários na construção de seu pensamento, por
em The making of Tocqueville’s democracy in America, vezes em concordância e, por outras tantas vezes,
conta onze usos da palavra. Lucien Jaume (2008), em contradição com a geração de Guizot, Royer-
por outro lado, afirma que todos esses usos podem ser -Collard e Rémusat. A própria estreia do aristocrata
sintetizados em três: a democracia como poder local, normando na republique des lettres francesa coinci-
a democracia como religião pública e a democracia de justamente com o advento da Monarquia de Ju-
como expansão do gozo material. Contudo, a distin- lho e a ascensão de Guizot ao poder, o mesmo Gui-
ção clássica feita por Jean-Claude Lamberti (1983) zot que havia sido professor de Tocqueville durante
ainda responde da melhor forma à necessidade de dis- o célebre seminário que dera origem à História da
tinção do conceito em Tocqueville: a democracia pode civilização na Europa no final dos anos de 1820.
ser entendida ou como uma forma política, cuja raiz Além disso, o processo de confecção de A democra-
encontra-se na discussão clássica das formas de gover- cia na América foi acompanhado por uma intensa
no entre os gregos, ou como um “Estado social” (État correspondência entre Tocqueville e Royer-Collard.
social), uma transformação estrutural na própria for- O objetivo do presente artigo é seguir o desen-
ma de organização da sociedade. Em ambos os casos, volvimento do conceito de democracia no pensa-
a palavra descreve de algum modo uma tendência em mento de Tocqueville – bem como de outros con-
direção à igualdade: a dissolução de hierarquias polí- ceitos que circulam em torno deste – em relação ao
ticas, de privilégios aristocráticos, da perda de poder contexto do pensamento político francês do perío-
por um determinado grupo político e sua consequen- do. Assim, buscamos esclarecer, ao traçar relações de
te expansão na mão de um número maior de homens. continuidade e rupturas entre a obra de Tocqueville
Contudo, o segundo sentido possui um caráter mui- e a de diversos pensadores contemporâneos – não
to mais totalizante: como descreve Marcelo Jasmin só liberais como Guizot, Royer-Collard, Rémusat e
(2005, p. 41), o Estado social democrático, além de Benjamin Constant, mas conservadores como Jose-
uma análise sobre as condições sociais e políticas em ph de Maistre –, como a obra do autor de A demo-
transformação, mescla-se com a própria noção de mo- cracia na América promove uma inovação conceitual
dernidade; ele contém a compreensão de uma expan- no seio do debate político do período em torno da
são histórica em direção a um futuro determinado por divergência essencial entre liberalismo e democracia.
uma tendência inteligível. Assim, integração à linguagem política do liberalis-
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  3

mo do período e inovação conceitual se encontram progressivo das instituições e da sociedade euro-


para explicar a distinção fundamental que Tocquevil- peia. O exemplo mais bem-acabado desse esforço
le traça entre a democracia como forma de governo e teórico e histórico é História da civilização na Eu-
a sua “descoberta” do Estado social democrático. ropa, de Guizot. Em suas memórias, Guizot sinte-
O presente artigo trata, essencialmente, de tiza a obra dos doutrinários como o esforço para
uma discussão de interpretação da teoria política e, sintetizar “elevação filosófica e moderação política”:
para tanto, orienta-se por uma metodologia con- fiel aos princípios da Revolução, mas acreditando
textualista. Seguindo certos parâmetros adotados consolidá-los no império do direito, o liberalismo
especialmente por Reinhart Koselleck, buscamos da Restauração posicionou-se entre a velha ordem
nos discursos dos atores envolvidos na luta políti- que se desvanecia e a nova sociedade que nascia:
ca de determinados lugares e períodos a presença “Ao aceitar a nova sociedade francesa, aquela que
de conceitos e argumentos característicos, a fim de toda nossa história e não apenas 1789 construiu,
compreender como a circunstância, a necessidade e eles buscaram fundar seu governo em bases racio-
a contingência levaram esses atores a lançar mão de nais e, portanto, muito diferentes das teorias em
tais conceitos e eventualmente atribuir-lhes novos nome das quais a antiga sociedade foi destruída”
significados. Ao mesmo tempo, a ênfase no exame (Guizot, 1870, p. 157).1
dos problemas institucionais que conduzem à de- A ideia de uma “nova sociedade francesa” que
mocracia e nos discursos que dão suporte às trans- aparece tantas vezes nos escritos dos doutrinários,
formações que indicam a expansão institucional do descreve sempre a uma ordem social possível que
direito e da participação nos aproxima da história representa a transação entre a sociedade hierár-
conceitual do político de Pierre Rosanvallon. As- quica do Antigo Regime e o governo constitucio-
sim, do ponto de vista metodológico, é importante nal da Restauração. François Furet (1978, p. 177)
ressaltar que trabalhar com a história das ideias po- afirma que a participação de Tocqueville nas aulas
líticas é “retrabalhar constantemente as antinomias de Guizot no Collège de France produziram uma
constitutivas da experiência moderna” (Rosan- influência substancial em sua visão sobre a forma
vallon, 2010, p. 52), ou seja, compreender as for- mais adequada de escrever história. Em sua cor-
mulações teóricas e institucionais à luz da história respondência com Gustave de Beaumont no final
do desenvolvimento político da democracia e das dos anos de 1820, Tocqueville compartilhou seu
transformações históricas dos últimos três séculos, entusiasmo com o método historiográfico de Gui-
ao mesmo tempo que nelas encontramos a lingua- zot e, alguns anos mais tarde, após sua chegada a
gem por meio da qual os atores políticos buscaram Nova York, ele procuraria novamente a obra do
dar inteligibilidade à imaginação institucional e à doutrinário francês (Jardin, 1984, p. 80). A narra-
ação política concreta. tiva guizotiana ofereceu ao jovem Tocqueville um
exemplo de modelo historiográfico que escapava da
histoire événementielle ou do comparativismo ana-
Tocqueville e o liberalismo doutrinário: a crônico. Ao concentrar-se nos eventos e instituições
controvérsia sobre a democracia que possibilitaram as condições do surgimento da
Revolução, Guizot produziu uma interpretação
Insistimos, na introdução deste artigo, que a processual da história e conciliou a Revolução com
característica distintiva do liberalismo pós-revo- esse processo. Assim, a ruptura de 1789 represen-
lucionário é, por um lado, conciliar as conquistas tava mais um passo em direção a uma sociedade
consideradas “positivas” da Revolução – a igual- organizada de forma mais complexa, em torno de
dade civil e a liberdade política – com a possibi- certas liberdades locais conciliadas com um gover-
lidade de um regime representativo constitucional no centralizador a partir da evolução das institui-
e, por outro, assimilar a Revolução não como um ções representativas. Ao substituir a histoire événe-
movimento de ruptura radical, mas como parte de mentielle da Revolução por uma compreensão da
um processo harmonizado com o desenvolvimento longue durée do processo que criou suas condições
4  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

de possibilidade, Guizot ofereceu um modelo que temas que percorrem as páginas de A democracia na
Tocqueville seguiria especialmente no Antigo Regi- América encontram-se, de alguma forma, no estudo
me e a Revolução: para entender verdadeiramente a histórico de Guizot: as conexões entre aristocracia e
Revolução é preciso entender as condições gerais o governo local, a democratização e a centralização,
que implicaram na crise do Antigo Regime. a dissolução das hierarquias sociais do Antigo Re-
Mais do que um modelo para entender a Revo- gime etc. Guizot concentra-se fundamentalmente
lução, a associação entre filosofia e história professada na relação entre a ascensão da burguesia, o retorno
por Guizot em História da civilização em Europa, bem às cidades e o progresso na igualdade de condições
como a união entre a narrativa histórica e a identifica- sociais. O surgimento de uma classe social forte,
ção das causas e efeitos que vincula fatores sociais, po- mas fora do Estado – a burguesia –, representou
líticos, econômicos e culturais, resulta em um padrão a necessidade da criação de instituições que garan-
geral para a compreensão da história e de suas ten- tissem algum grau de acesso desta classe ao poder
dências futuras. O conceito de civilização, que associa constituído: o progresso das instituições represen-
todos esses elementos, oferece o termo para expressar tativas europeias é descrito por ele como a disputa
a unidade da pluralidade. A associação inerente entre constante entre as forças fora do Estado – mas que,
civilização e progresso que encontramos na História não obstante, detinham considerável poder econô-
de Guizot expressa de forma exemplar a tentativa de mico – e a resistência do poder a elas. Assim, o re-
explicar o desenvolvimento da história europeia como sultado desse processo histórico é, para ele, o surgi-
um processo cujo sentido culminaria nas instituições mento do moderno regime representativo. Síntese
representativas pós-revolucionárias e na ascensão do da disputa de forças entre a sociedade e o Estado do
terceiro estado – a burguesia – como classe dominan- Antigo Regime, que resiste à expansão política do
te. Tal modelo exerceu uma influência decisiva na for- papel da burguesia, a Revolução, salva de seu perío-
ma que Tocqueville narra o desenvolvimento da de- do de radicalismo democrático, concluiria, através
mocracia no mundo moderno, descrevendo o Estado das ideias de constituição, de igualdade civil, de li-
social democrático como algo diferente da definição berdade política e de regime representativo, a expe-
política tradicional da democracia. riência de transposição da legitimidade do político
para a sociedade civil.
“A história da civilização quer e deve querer Ao descrever o progresso da igualdade de con-
abarcar tudo ao mesmo tempo. É preciso exami- dições na França, Tocqueville também parte da
nar o homem em todas as posições de sua exis- análise da inadequação entre a sociedade e as insti-
tência social. É preciso que ela siga seu desenvol- tuições políticas, sustentadas pela hierarquia e pelo
vimento intelectual nos fatos, nos costumes, nas privilégio. Em “État social et politique de la France
opiniões, nas leis e nos monumentos da inteli- avant et après 1789” (O Estado social e político da
gência” (Tocqueville apud Jardin, 1981, p. 81). França antes e depois de 1789), uma das primeiras
tentativas de aplicar alguns dos conceitos desen-
A compreensão da democracia, nesse sentido, volvidos em A democracia na América ao contexto
demanda um modelo de história que a descreva francês, vinte anos antes de O Antigo Regime e a
como um processo da síntese de diversos fatores. Revolução, Tocqueville afirma:
Como veremos, os conceitos de civilização e pro-
gresso estão indelevelmente associados à descrição Na França, tudo marchava há algum tempo
tocquevilliana do Estado social democrático. para a democracia [...] os franceses, por seu Es-
Porém, é preciso ressaltar de início uma dife- tado social, sua constituição civil, suas ideias e
rença substantiva na descrição da perspectiva de fu- costumes, avançaram muito mais longe do que
turo entre as conclusões de Guizot na História e a outros povos que em nossos dias tendem à de-
análise de Tocqueville sobre A democracia na Améri- mocracia. A Revolução criou uma multidão de
ca, a qual envolve o cerne da controvérsia em torno coisas acessórias e secundárias, mas ela não fez
do problema da democracia. Vários dos principais senão desenvolver o germe das coisas principais;
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  5

esses existiam antes dela. Ela regrou, coordenou ela. O contato com a experiência norte-americana
e legalizou os efeitos de uma grande causa, mas mostra a Tocqueville que a democratização não é
não foi ela a causa mesma. Na França, as con- apenas a ascensão política, cultural e econômica
dições eram mais iguais que em outras partes; a de uma classe, mas uma tendência inerente ao de-
Revolução aumentou a igualdade de condições senvolvimento histórico do ocidente aberta com a
e introduziu na lei a doutrina da igualdade. En- vitória do primado da igualdade. Lamberti expli-
tre os franceses, o poder central havia se apro- ca brilhantemente que, enquanto Guizot associa o
priado mais do que em outros lugares da admi- progresso da civilização ao crescimento e depois à
nistração local. A revolução tornou esse poder dominação das classes médias,
mais hábil, mais forte, mais empreendedor. Os
franceses conheceram antes e mais claramente “Tocqueville, ao contrário, pensa que as menta-
que todos a ideia democrática de liberdade; a lidades e as paixões dessas classes, que lhes liga
Revolução deu à nação mesma, se não toda sua principalmente aos negócios privados, arriscam
realidade, ao menos a aparência do poder sobe- desviar as sociedades democráticas das grandes
rano. Tudo que a Revolução fez foi feito, não inovações intelectuais ou morais e mesmo do
duvido, sem ela; ela não foi senão um procedi- progresso social” (Lamberti, 1983, p. 196).
mento violento e rápido com a ajuda do qual se
adaptou o Estado político ao Estado social, os fatos Seu próprio caráter histórico transforma a de-
às ideias e as leis aos costume (Tocqueville, 2004, mocracia como Estado social em um processo muito
pp. 27-28, grifos meus). mais do que uma forma. A dinâmica inerente ao
progresso civilizatório inaugurada com o primado
Associando a ascensão do terceiro estado e a da igualdade não está fechada à decadência, por-
democracia, que lutava então para converter-se em tanto, exige o esforço continuo do exercício da li-
um princípio organizado de direito, Tocqueville berdade política. Mesmo diagnosticando que o Es-
parte de concepções muito semelhantes àquelas de tado social democrático tornaria as revoluções mais
Guizot: a Revolução é a responsável por adequar as raras, Tocqueville não afasta o risco permanente da
instituições ao caráter das transformações já ope- democracia; estagnação e decadência são uma pos-
radas na dimensão amorfa e desorganizada da so- sibilidade inerente a qualquer dinâmica histórica.
ciedade “pré-civil”. A Revolução não é um evento “Porque a civilização romana morreu após a inva-
puramente francês, mas a resolução de um princí- são dos bárbaros, somos inclinados talvez a acredi-
pio comum à grande revolução europeia. Contudo, tar que a civilização não poderá morrer novamente”
as interpretações de Guizot e Tocqueville diferem (Tocqueville, 1986b, p. 267). A própria ideia de
essencialmente na compreensão da perspectiva de expansão que implica a concepção de democracia
futuro aberta pela grande revolução europeia. Ora, em Tocqueville pode ser ressaltada como um pon-
se para o primeiro o regime representativo é apre- to de desacordo fundamental com o pensamento
sentado como o resultado moderno de um proces- guizotiano: para este, mesmo que as luzes pudes-
so de longue durée que caracteriza o traço principal sem ser expandidas e um maior número de pessoas
da história política europeia na época pós-feudal, fosse incluído nos critérios da soberania da razão,
o segundo apresenta essa mesma cadeia de eventos o princípio distintivo da razão pública continuaria
como uma tendência inconclusa e aberta para o fu- sendo o instrumento por excelência para designar
turo. Ao assumir o conceito de democracia como os critérios de participação, instaurando assim uma
um processo que não se reduz à sua concepção de barreira perpétua à igualdade de participação.
forma de governo – necessariamente negativa para Outro ponto fundamental da relação entre a
o liberalismo político de então – Tocqueville des- obra de Guizot e Tocqueville é a comparação entre
creve uma cadeia de eventos muito mais ampla, o desenvolvimento dos processos políticos na In-
que não se encerra na identificação entre a ascensão glaterra e na França. Guizot ressalta em História da
de uma classe e as condições políticas adequadas a civilização na Europa que a diferença fundamental
6  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

entre o modelo político inglês e o francês reside na soberania – conceito chave da discussão constitu-
capacidade do primeiro em fazer conviverem um sis- cional da Revolução – como uma representação
tema administrativo centralizado e a preservação das unívoca e indivisível das vontades. Isso levaria o
liberdades locais. A necessidade de responder às de- liberalismo a buscar soluções inspiradas no mode-
mandas crescentes da liberdade pública que surgem lo do governo representativo inglês através de um
no seio do social leva os Estados à criação de meios constitucionalismo que absorvesse a lição do equi-
de governo (moyens de gouvernement) que incorpo- líbrio das instituições representativas como equilí-
rem tais demandas da liberdade ao direito político. brio das forças sociais em conflito. Como veremos,
O modelo mais bem-sucedido de criação de meios as interpretações de Tocqueville sobre a relação
de governo encontra-se, evidentemente, na Inglater- entre centralização e liberalismo na história fran-
ra. Desde a coalizão de barões que conquistou junto cesa e a ideia de self-governement na América são
ao rei a Carta no século XIII, passando pela forma- legatárias dessa distinção esboçada pela historio-
ção do parlamento como um conselho efetivamente grafia guizotiana (sem, contudo, deixar de inverter
associado ao exercício do poder e por fim eclodindo o juízo positivo que Guizot fazia da centralização
na Revolução Gloriosa, de 1688, Guizot apresenta administrativa). A França responderia pelo mode-
a história política da Inglaterra como uma contí- lo “negativo” do processo de dissolução do Estado
nua “aliança entre diversos elementos da sociedade social aristocrático, no qual a deseducação de uma
para formar um só corpo político” (Guizot, 1985, aristocracia como capaz de colocar freios ao poder
p. 236). Assim, a demanda dos interesses privados e legou um modelo de Estado centralizador que per-
locais era absorvida no Estado através da formação maneceria mesmo após a Revolução. A América, ao
de mecanismos criadores de direito sem ameaçar a contrário, teria desenvolvido no seio de uma “so-
natureza do poder central. Na França, contudo, o ciedade nova”, despida do legado aristocrático da
mecanismo responsável pela transação entre as de- colônia, mecanismos de autogoverno que deviam
mandas da liberdade e o direito, os Estados Gerais, muito à concepção aristocrática das liberdades que
fracassou. Se, por um lado, os Estados Gerais foram os liberais anglófilos louvavam, sem prejuízo da ori-
bem-sucedidos em servir como um espaço de expres- ginalidade “democrática” daquela sociedade.
são moral das classes, por outro, sua capacidade de Na esteira de Guizot, Tocqueville procurou de-
absorção pelo Estado, ou seja, sua transformação em monstrar, no livro II de O Antigo Regime e a Revo-
um meio de governo efetivo, foi improfícua. “Eles lução, que o empobrecimento da aristocracia com o
não atenderam jamais o objetivo para o qual foram fim do sistema feudal resultou em dois padrões dis-
formados, quer dizer, a fusão em um só corpo das tintos de desenvolvimento social. No caso inglês, a
sociedades diversas que repartiam o país” (Idem, p. nobreza manteve seu poder local de forma sólida e,
235). Dito de outro modo, os Estados Gerais refle- ao mesmo tempo que a distinção social com relação
tiam o desencontro entre uma “sociedade em pro- à burguesia diminuiu (Tocqueville lembra mesmo
gresso” e um “governo estacionário” (Idem, p. 300), que, muito antes que a França, a Inglaterra havia
resultando na inadequação institucional que criaria diminuído o preconceito social em torno do casa-
as condições propícias ao advento da ruptura revolu- mento entre nobreza e burguesia), ela se fortaleceu
cionária durante o século XVIII. como ponto de equilíbrio ao poder monárquico. Já
Essa distinção marcaria o padrão de desenvol- na França, ao contrário, a nobreza passou a circular
vimento do liberalismo nos dois países: se na In- cada vez mais em torno da corte e, como conse-
glaterra o governo representativo é visto como uma quência disso, enfraqueceu sua capacidade de co-
forma de representar a variedade de forças sociais mandar as forças locais em contraposição ao poder
que se perpetuam no conflito entre nobreza e povo, absoluto; ao mesmo tempo, a distinção social entre
tendo o rei como força arbitral e a divisão dos po- nobreza e burguesia, que não correspondia mais à
deres como garantia preservadora do equilíbrio, na distância econômica entre as classes, contribuiu para
França o processo revolucionário legaria ao modelo a dificuldade de incorporação das classes economi-
político francês a dificuldade de superar a ideia de camente ascendentes ao sistema político. O resulta-
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  7

do desse processo, diz Tocqueville, é a demora para exercício ilegítimo e despótico do poder. Esse po-
o surgimento de uma identidade cidadã no povo der social, evidentemente, pressupõe que cada so-
francês: a longa permanência de uma sociedade ciedade contenha um número de “superioridades
em que a disputa entre as classes não consegue dar naturais”, que são de fato os meios de governo.
lugar a uma identificação nacional para além da divi- Nas palavras de Aurelian Craiutu (1999, p. 481):
são social impede o surgimento de uma concepção “Em cada departamento, cidade ou vila, argumenta
de interesse geral na sociedade francesa. Guizot, existem indivíduos que formam uma parte
essencial do ‘verdadeiro governo da sociedade’”. A
Nossos pais não tinham a palavra individualis- pressuposição do equilíbrio entre poder social, re-
mo, que forjamos para nosso uso, porque no gime representativo e governo da razão encontra-se
tempo deles de fato não havia indivíduo que não só na obra de Guizot, mas no fundo de todo o
não pertencesse a um grupo e que pudesse se pensamento do liberalismo doutrinário.
considerar absolutamente só; mas cada um dos
mil pequenos grupos de que a sociedade fran- Segundo os princípios de nosso governo, que
cesa se compunha só pensava em si mesmo. são aqueles da razão, uma contribuição mais
Era, se posso expressar-me assim, uma espécie elevada não confere, por ela mesma, nenhuma
de individualismo coletivo, que preparava as preeminência pessoal, nenhum privilégio, mas
almas para o verdadeiro individualismo que ela é exigida para certas conexões como uma
conhecemos hoje (Tocqueville, 2009, p. 107). garantia necessária da independência e das lu-
zes. [...] A pressuposição da capacidade, se está
A relação entre integração de classes e centra- ligada a uma certa contribuição, todos os que
lização que encontramos no fundo de ambas as in- se adequam a ela são igualmente capazes. A lei
terpretações ajuda a lançar luz sobre a perspectiva política não é atribuidora de capacidades, mas
da democracia moderna de Tocqueville. O modelo somente exclusiva da incapacidade. Essas são
inglês, no qual centralização, integração das classes nossas garantias inexpugnáveis contra a oli-
e liberdade política convivem, parece o mais ade- garquia e contra a democracia (Royer-Collard
quado à visão da democracia que Tocqueville en- apud Barante, 1861, t. I, p. 410, grifos meus).
contrará na América. Nela, a exigência de um espa-
ço público democrático sempre ativo aparece como O espaço da representação, portanto, não se
o melhor antidoto para centralização excessiva que confunde com o critério oligárquico da identidade
pode prejudicar o exercício da liberdade política. entre participação e riqueza, e nem com o critério
A questão da relação entre centralização e mo- universal da soberania do povo. O mecanismo de
dernidade política nos remete novamente ao debate exclusão, segundo Royer-Collard, obedece funda-
político da Restauração, especialmente no que toca mentalmente à ambição de uma seleção qualitativa
à intervenção dos doutrinários. A relação entre cen- da participação: o poder que se encontra na socie-
tralização e modernidade na obra de Guizot não dade deve, ainda assim, ser provido de mecanismos
implica uma defesa autoritária do Estado. Muito que selecionem nessa mesma sociedade aqueles que
pelo contrário, o Estado encontra sua legitimidade melhor se adequem ao critério da razão.
na constituição de um espaço de garantias no qual Na obra de Royer-Collard também encontrare-
o indivíduo reina absoluto. O Estado, “como re- mos um dos topoi centrais da obra de Tocqueville: a
presentante da sociedade, sua força pode ser imen- conexão entre a centralização administrativa, o indi-
sa, maior do que jamais foi: como um ser especial vidualismo e uma nova forma de despotismo. Tam-
e isolado, ela é quase nula” (Guizot apud Rosan- bém encontramos em sua obra a preocupação com o
vallon, 1985, p. 53). Assim Guizot define o poder processo de nivelamento de condições e o desapare-
social: ele parte da sociedade, através do mecanismo cimento dos corpos intermediários que, ao mesmo
do sistema representativo, o que lhe confere uma tempo em que alimentam o individualismo, nutrem
força e uma extensão incomparáveis a qualquer uma nova forma de concentração de poder.
8  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

Vimos a velha sociedade perecer, e com ela rística saliente de nossa organização social foi
um conjunto de instituições domésticas e de observada e julgada há tempos, e por ninguém
magistraturas independentes que ela portava foi descrita com mais severidade e vivacidade
em seu seio, pilares poderosos de direitos pri- do que por Royer-Collard. Ninguém deplorou
vados, verdadeiras republicas nas monarquias mais essa uniformidade administrativa que as-
[...] nada sobreviveu dela, e nenhuma outra se simila o país político a uma planície nua [...]
elevou em seu lugar. A revolução não deixou sobre a qual a força organizada do governo ma-
de pé senão os indivíduos. A ditadura que a nobra como uma guarnição em uma esplanada.
concluiu terminou também sua obra. Da so- [...] Tocqueville esforçou-se para descobrir por
ciedade tornada pó saiu a centralização (Royer- sua própria conta aquilo que havia sido encon-
-Collard, 1827, pp. 29-30, grifos meus). trado antes dele (Rémusat, 1861, p. 804).

O esforço que Tocqueville realiza no Antigo Re- Temos insistido na distinção fundamental entre
gime e a Revolução é, justamente, mostrar como uma os dois tipos de democracia na obra de Tocqueville.
revolução administrativa operada no Antigo Regime A democracia, entendida como o desenvolvimento
precedeu e deu sentido ao resultado da revolução po- de um determinado Estado social, ultrapassa os li-
lítica. A interpretação do papel da nobreza feudal nes- mites estreitos de sua simples definição como forma
se processo aproxima Tocqueville de Royer-Collard. de governo, fundamentalmente associada na França
Guizot afirmava nunca ter existido uma verdadeira pós-revolucionária com o primado da soberania do
aliança entre liberdade e ordem política durante o povo. A dificuldade fundamental colocada pela ino-
período feudal, associando feudalismo e desordem vação conceitual de Tocqueville no contexto do pen-
fragmentadora; o surgimento do Estado moderno samento político do liberalismo da Restauração está
coincide justamente com a ascensão da burguesia na dissociação entre o reconhecimento do processo
e com o fortalecimento das monarquias nacionais. de nivelamento das condições sociais e políticas e a
Tocqueville, ao contrário, interpreta o governo local associação persistente entre a palavra democracia e a
dos aristocratas e sua relação paternalista com os ci- soberania do povo. Dito de outro modo, podemos
dadãos submetidos ao seu domínio como um foco de encontrar na obra de seus contemporâneos várias
resistência à expansão da ação política de uma coroa passagens nas quais o diagnóstico sobre o advento de
fortalecida. Nesse ponto, portanto, aproxima-se con- um novo tipo de sociedade coincide com o que Toc-
sideravelmente de Royer-Collard, que descreve o fim queville afirma ser o Estado social democrático; po-
dos corpos intermediários como condição fundamen- rém, ao mesmo tempo, permanece viva a associação
tal para a possibilidade de um novo tipo de concen- negativa entre democracia e governo popular, risco
tração do poder no seio de uma sociedade organizada constante à constituição de um governo representati-
pela igualdade civil e pela liberdade política. “Porque vo e à liberdade política.
as instituições desabaram é que temos a centralização” Tal dificuldade fundamental aparece especial-
(Royer-Collard, 1861, t. II, p. 226). Essa associação mente no desenvolvimento da obra de Guizot. Não
não passou despercebida a um de seus contemporâ- é raro encontrarmos em sua obra referências ao pro-
neos. Charles de Rémusat, em seu artigo “L’esprit de cesso de nivelamento de condições associado ao tema
réaction: Royer-Collard et Tocqueville”, escreve: da centralização:

Ele [Royer-Collard] via como um dos grandes “As grandes diversidades se enfraquecem; as
vícios da sociedade francesa, ao menos um dos ideias, os sentimentos, os interesses comuns,
principais obstáculos que ela oferecia ao estabe- se espalham e se fortificam. [...]Assim, de uma
lecimento de um governo livre e estável, o nive- parte, muito mais existências individuais têm
lamento social que deu origem à centralização. importância e força; de outra parte, todas as
Parecia-lhe que a democracia civil seria própria existências são estreitamente enlaçadas, resso-
para o exercício do despotismo. Essa caracte- am umas nas outras” (Guizot, 1850, p. 228).
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  9

O argumento aponta sempre para o fato de Em sua constituição eu reencontro o despo-


que, na modernidade, o poder legítimo precisa dei- tismo revolucionário. Nenhum poder distinto
tar raízes na sociedade; ao mesmo tempo, contudo, e forte o suficiente para se controlar e se reter
é essa nova mecânica da legitimidade, sustentada reciprocamente. Nenhuma resistência sólida ao
pela liberdade pública e pelo regime representativo, abrigo da qual os direitos e os interesses diver-
que permite a criação de uma força pública imen- sos possam se estabelecer. Nenhuma organiza-
sa, diante das forças individuais enfraquecidas. A ção de garantias, nenhum balanço de forças no
questão colocada por Guizot é a seguinte: como centro do Estado e no topo do governo. Nada
constituir uma ordem legal partindo do reconhe- além de um motor e suas engrenagens, um
cimento inevitável da liberdade pública, que pode mestre e seus agentes. Por toda parte as liber-
mesmo conduzir à guerra civil? “Passemos do esta- dades individuais dos cidadãos estão sós diante
belecimento da liberdade ao do poder. Sua obriga- da presença da vontade única da maioria nu-
ção é imensa; várias forças são indispensáveis para mérica da nação. Por toda parte o princípio do
cumpri-la; ele deve encontrá-las nas instituições, despotismo em face do direito de insurreição
nas leis, nas disposições da sociedade a seu respeito” (Guizot, 1849, pp. 43-44).
(Guizot, 1821, p. 13).
Contudo, a resistência de Guizot à democra- Guizot descreve o republicanismo de 1848 da
cia, vinculada sempre ao problema da soberania mesma forma que Germaine de Staël, Benjamin
do povo, refere-se às implicações de seus aspec- Constant e os republicanos moderados de 1794
tos políticos. Guizot insiste que há uma vincula- descreviam o jacobinismo: alimentado pela idola-
ção essencial entre soberania do povo e tirania, na tria política, pela suspensão das garantias constitu-
medida em que a primeira, conforme mostrou o cionais, pela centralização do poder e pela tirania
modelo revolucionário, pode suprimir até mesmo da maioria, o radicalismo republicano coloca em
os direitos da liberdade (Guizot, 1985, p. 372). risco as conquistas da liberdade e do direito advin-
Após a vitória da Revolução de 1848, que colo- das da “boa” revolução. Na Revolução de 1848 esse
caria fim à sua vida política, Guizot aprofundou germe de desordem se escondia por trás da palavra
a associação entre democracia e anarquia polí- democracia. “É o caos de nossas ideias e de nossos
tica. Tanto em suas memórias de 1848 quanto costumes políticos, esse caos que se esconde tanto
em De la démocratie en France, ele descreve – sob a palavra democracia, quanto sobre a palavra
ao modo dos realistas quando da ascensão dos li- igualdade ou povo, que lhe abre todas as portas e
berais ao poder em 1815 – o avanço da demo- abate diante de si todas as resistências da sociedade”
cracia como a lenta e perigosa penetração dos re- (Idem, p. 65).
publicanos radicais, sustentados pela mobilização De maneira diferente de Guizot, a obra de
das massas populares, na opinião pública e nas Royer-Collard apresenta-se de maneira mais dúbia
posições de representação. Sob a justificativa da quanto à sua avaliação sobre a democracia, algumas
criação de uma república democrática e social, a vezes deixando de interpretá-la apenas como a for-
motivação fundamental da Revolução de 1848 era ma de governo da soberania do povo e passando a
a tomada da riqueza material impulsionada pelo descrevê-la, de forma muito semelhante a Tocque-
longo período de paz e liberdade que se instalara ville, como um processo de expansão da igualdade,
na França após a constituição da monarquia parla- como atesta o célebre discurso de 1816 sobre a li-
mentar ( Guizot, 1850, pp. 123-124). A democra- berdade de imprensa. “Por minha parte, tomando
cia, portanto, está associada a um elemento que, a democracia numa acepção puramente política,
originado durante os primeiros anos da Revolução como oposta ou somente comparada à aristocracia,
de 1789 e constantemente associado ao republica- acredito que a democracia brota com plena força na
nismo radical, permaneceu sufocado para eclodir França” (Royer-Collard, 1949, p. 43, grifos meus).
novamente na Revolução de 1848: o despotismo E, após reconhecer essa distinção entre os Es-
revolucionário. tados sociais democrático e aristocrático, Royer-
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

-Collard vincula a democracia com a ascensão das pode ser entendida muito mais como um processo
classes médias: “É preciso aceitar este Estado ou histórico em curso do que como a conquista de uma
destruí-lo, e para destruí-lo é preciso destituir, em- forma de governo, e possivelmente é nessa distinção
pobrecer e embrutecer as classes médias. A aristo- que reside a capacidade inicial de Tocqueville em
cracia e a democracia não são mais doutrinas vãs, formular o problema democrático para além das
livres para nossas disputas” (Idem, p. 44). limitações impostas pela soberania do povo nos ter-
Contudo, os discursos de Royer-Collard são mos do liberalismo francês; se esta é compreendida
pontuados por uma série de descrições da demo- na França como uma forma de governo cujos limi-
cracia como um risco constante à estabilidade ins- tes difusos podem sempre tender à suspensão das
titucional do governo representativo.2 O processo garantias constitucionais e ao governo despótico –
de nivelamento das condições, assim como o for- o jacobinismo ou o bonapartismo são os modelos
talecimento da opinião pública como o espaço por essenciais desse “desvio” pela ação das massas e pelo
excelência da liberdade, pode degenerar constante- militarismo, forças que fogem aos limites consti-
mente no que ele chama de “democracia destrutiva” tucionais do modelo representativo. A democracia
(Royer-Collard apud Barante, 1861, t. I, p. 277). O não se limita a uma forma especifica, caracterizada,
esforço de Royer-Collard em conciliar democracia e desde os antigos, pelo critério do número. Ela é um
liberdade na manutenção da ordem social constitu- processo que tem origens anteriores à Revolução e
cional leva-o a reavaliar a primeira, sem, contudo, que carrega em si a transformação das estruturas
deixar de ressaltar seu potencial de dissolução do hierárquicas do Antigo Regime. Se a soberania do
equilíbrio de poderes do sistema representativo. povo é o princípio de legitimidade da democracia
Buscando encontrar uma difícil síntese entre as como forma contemporânea de governo – princí-
diversas e aparentemente contraditórias interpreta- pio que assume características distintas na França
ções sobre a democracia na obra de Royer-Collard, ou nos Estados Unidos – a democracia como “Es-
podemos dizer que ele a identifica como o surgi- tado social” (état social) é caracterizada como algo
mento do primado da igualdade de direitos. mais amplo e de implicações muito maiores do que
uma forma política: ela é um sentido histórico.
“Através de diversas infelicidades, a igualdade A experiência relatada por Tocqueville em A
de direitos (este é o verdadeiro nome da demo- democracia na América revela a necessidade funda-
cracia, e eu o aceito) prevaleceu; reconhecida, mental de preservar a autonomia local diante da
consagrada, garantida pela Carta, ela é hoje em pressão do poder central, equilíbrio que não está
dia a forma universal da sociedade, e assim é a de- simplesmente garantido pela conclusão constitu-
mocracia em toda parte. Ela não tem mais con- cional de um sistema representativo. Nesse sentido,
quistas a fazer” (Idem, t. II, p. 137, grifos meus). o modelo do federalismo norte-americano oferece
um exemplo de ensaio político mais adequado à
A democracia é, portanto, o que surge da disso- democracia do que a constituição parlamentar in-
lução da sociedade aristocrática. Contudo, longe de glesa, preferida tradicionalmente pelo liberalismo,
descrevê-la como um processo em expansão, Royer- pois naquele encontramos um caso exemplar da
-Collard acredita que ela é uma forma de socieda- disputa entre o poder local e o poder central que
de concluída e realizada na Carta, que consagra a não se limita à representação, mas se nutre da pró-
igualdade legal e a liberdade política. Para além de pria mecânica de criação de instrumentos de auto-
todas as semelhanças entre o diagnóstico da origem governo. Essas e outras questões fazem da obra de
e dos riscos da democracia que encontramos entre Tocqueville uma síntese notável da tradição liberal
Royer-Collard e Tocqueville, o contato com a ex- francesa, associando as questões em torno da nova
periência fundadora da república norte-americana sociedade que surge da ruptura com a velha ordem
leva o segundo a avaliar o fenômeno democrático a aristocrática e os problemas institucionais coloca-
partir de critérios para além dos que seus contem- dos pela cultura do liberalismo político.
porâneos alcançaram. A democracia em Tocqueville
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  11

Tocqueville e o Estado social democrático vários séculos, superando diversos obstáculos con-
tingentes (Idem, pp. 41-42). Tocqueville busca afas-
Procuramos explorar na seção anterior como tar, assim, duas possibilidades interpretativas. Por
a Revolução coloca o problema da democracia em um lado, aquela que afirma a possibilidade de deter
termos dificilmente conciliáveis. Se o liberalismo o progresso da igualdade destruindo os germes da
francês reconhece a tendência inexorável ao ni- Revolução, tal como acreditavam alguns dos con-
velamento de condições, ao mesmo tempo ele se trarrevolucionários, como Joseph de Maistre, que
sustenta na refutação constante a qualquer ideia de insistia na possibilidade de colocar em marcha “o
soberania do povo como fundamento da expressão contrário da revolução” para interrompê-la. Por ou-
de uma vontade política unívoca. Mencionamos tro lado, aquela que enfatizava o caráter inovador da
também como a experiência de Tocqueville com o Revolução de 1789: ela é menos um processo
Novo Mundo deu-lhe um modelo de democracia de ruptura e mais um desdobramento da tendência
que superava os “defeitos de fundação” encontrados diagnosticada na história da civilização europeia.
nas recentes experiências políticas da Europa. Toc- A equação conceitual que podemos derivar do
queville reconhece, no Avertissement da edição de argumento inicial de Tocqueville se resume da se-
1848 de A democracia na América, que a ausência guinte forma: o progresso da civilização tende à
de uma estrutura política prévia à fundação da re- igualdade, que chamamos democracia; contudo, o
pública norte-americana evitou que a natureza de- avanço desse novo Estado social encontra-se diante
mocrática da fundação de um novo regime resultas- de uma velha ordem que se lhe resiste, impondo va-
se em graves conflitos civis e em anarquia. Assim, lores, costumes e privilégios que não são facilmente
a república dos Estados Unidos se notabilizou por destruídos. Esse desencontro conflituoso de Estados
não ser “perturbadora, mas conservadora de todos sociais é a verdadeira causa do processo revolucio-
os direitos” (Tocqueville, 1986a, p. 35). A igualda- nário que eclode em 1789 e permanece durante o
de de condições, como fato gerador tanto da ordem período da Restauração, no qual Tocqueville atua e
social quanto da ordem política, faz da sociedade escreve. E é justamente a dificuldade imposta por
norte-americana um caso especial: ela não se cons- esse conflito que, segundo ele, leva seus contempo-
titui sobre os escombros de uma ordem que ainda râneos à confusão conceitual fundamental quanto à
possui resquícios e resistências. natureza do problema democrático:
Tocqueville descreve a expansão da igualdade
como a tendência à “civilização” e à “estabilização” “Animados pelo calor da luta, colocados além
da sociedade europeia (Idem, 38). O crescimento da dos limites naturais de suas opiniões pelas opi-
influência do clero sobre a diluída sociedade me- niões e excessos de seus adversários, cada um
dieval; a superação dos conflitos locais pela unifica- perde de vista o objeto mesmo de suas inquieta-
ção dos grandes reinos; o protestantismo; a maior ções e sustenta uma linguagem que responde mal
divisão das terras nas mãos de outros homens que a seus verdadeiros sentimentos e a seus instin-
não os aristocratas; a expansão da indústria e do co- tos secretos” (Idem, p. 48, grifos meus).
mércio etc.; tudo isso contribuiu para o desenvolvi-
mento gradual da igualdade de condições, que To- Ora, o problema da democracia está mal equa-
cqueville classifica como “universal, durável e que cionado quando colocado nos limites do conflito
escapa cada dia do poder humano; todos os even- político revolucionário que perpassa pela França.
tos, como todos os homens, servem a seu desenvol- Sua natureza só se torna bem observada quando
vimento” (Idem, p. 41). A imagem da providência, distinguimos as duas acepções fundamentais da de-
que dá sentido ao desenvolvimento do processo, mocracia, isolamos a segunda – a que versa sobre o
exerce um papel fundamental na argumentação: ela progresso do Estado social democrático – e a obser-
serve para demonstrar que o progresso da igualdade vamos a partir de sua melhor expressão: aquela rea-
não é fruto dos “esforços de uma geração” e que lizada na fundação da república norte-americana.
essa “revolução irresistível” já caminha através de Com a distinção entre democracia como forma
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

de governo e Estado social democrático Tocque- democracia vista em seu estado puro, a república
ville oferece uma solução para um problema que, norte-americana, é o poder da “individualidade
como procuramos demonstrar, se estabelece como comunal” que condiciona toda a estrutura política
o centro da questão da legitimidade do político no da nação. Assim, o primado do social, realizado no
liberalismo francês. Ele reconhece, reiterando o to- Estado social democrático, se encontra com um po-
pos da inevitabilidade da igualdade, que a França al- der social organizado de cima para baixo: o caráter
cançará as mesmas condições sociais que a América. democrático da América é atestado pelo seu federa-
Contudo, não é possível derivar de um Estado so- lismo, através do qual a independência das colônias
cial semelhante as mesmas consequências políticas: precede a existência de um poder central. “No seio
“Estou longe de crer que eles [os norte-americanos] da comuna vemos reinar a vida política real, ativa,
tenham encontrado a única forma de governo que toda democrática e republicana [...] é a monarquia
a democracia pode constituir; mas é suficiente que é a lei do Estado, mas a república já vivia nas
que nos dois países a causa geradora das leis e dos comunas” (Idem, p. 87). A união entre o Estado
costumes seja a mesma, para que tenhamos interes- social democrático e o poder social exercido pelo
se em saber o que ela produziu em cada um deles” governo comunal determina a forma republicana
(Idem, pp. 50-51, grifos meus). da democracia nos Estados Unidos. Esta é a razão
A causa geradora, o avanço da igualdade, im- fundamental de encontramos na América o modelo
prime o caráter geral da ordem política. Dito de por excelência do desenvolvimento da democracia.
outro modo, a origem da legitimidade política Nela, o Estado social democrático encontra uma
se encontra na dimensão da sociedade, é ela que forma política adequada à sua realização, longe da
condiciona as formas jurídicas e a cultura política possibilidade de resistência imposta pelos elemen-
que dá ordem à vida social. Contudo, Tocqueville tos sobreviventes da antiga ordem hierárquica dis-
não se limita a reproduzir a ideia da precedência solvente que encontramos na Europa. Como nos
dos costumes sociais como determinantes da forma mostra Pierre Manent (1993, p. 48), a democracia
política que encontramos, de alguma forma, pelo para Tocqueville não é a simples predominância do
menos desde Montesquieu, e que estabelece um pa- social sobre o político, mas antes a realização efetiva
drão liberal sobre as relações entre Estado e socie- dessa dualidade na realidade histórica.
dade civil. Se a legitimidade do político se encontra A distinção entre a democracia como forma
no social, ela pode manifestar-se em uma varieda- de governo e o Estado social democrático fica mais
de de formas políticas mais ou menos condizentes evidente quando Tocqueville discute o problema da
com o caráter democrático do Estado social. A soberania do povo na América. O equívoco dos de-
simples existência de instrumentos que sustentem fensores da soberania popular e da ideia de vontade
a legitimidade democrática de um governo consti- nacional está em acreditar que “do fato da obediência
tucional e representativo não garante que a demo- nasce o direito do comando” (Tocqueville, 1986a, p.
cracia se realize de forma substantiva. Esta é a razão 106), ou seja, em interpretar a soberania como um
pela qual a soberania do povo, a despeito de ser um mecanismo de delegação absoluta de um direito de
signo do processo histórico de democratização, não exercício do poder por aqueles que são sujeitos da
contém em si todos os desdobramentos necessários legitimidade política. A democracia, como temos
da democracia como Estado social. Essa questão insistido, é menos uma forma é mais um processo
fica muito clara mais adiante, na argumentação to- para Tocqueville. Assim, diante do processo histórico
cquevilliana sobre os riscos de um despotismo de- de desenvolvimento do Estado social democrático,
mocrático no qual a cidadania ativa da sociedade a soberania popular pode assumir formas diversas.
se dissolve por trás do simples exercício mecânico e No caso da França, ela representou, na interpreta-
individualista do regime representativo. ção liberal que Tocqueville ecoa, uma força tendente
A lição de Guizot repercute constantemente ao despotismo. Conforme a ideia de que a soberania
na obra de Tocqueville: a um Estado social corres- não poderia se fragmentar e, portanto, a Assembleia
ponde um determinado poder social. No caso da Nacional como corpo representativo único da nação
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  13

não poderia ser limitada por outros corpos políticos – por si mesma, todavia, ela não é anárquica. Ao
modelo que vigorou durante a Revolução até a repartir a autoridade tornamos, é verdade, sua
Constituição de 1794, quando finalmente foi admi- ação menos irresistível e menos perigosa, mas
tido algum grau de divisão dos poderes –, a sobera- não a destruímos (Idem, p. 127).
nia do povo padece dos mesmos vícios da soberania
do Rei: ela representa uma concepção centralizadora, Ora, na medida em que a soberania popular
una e indivisível do poder político. Esta é a princi- é entendida pelos liberais na França como a con-
pal razão pela qual o liberalismo francês buscou se centração do poder, conduzindo ao risco iminen-
afastar da ideia de soberania do povo e, na medida te de este se tornar arbitrário, a obra da liberda-
em que esta é associada desde o jacobinismo à “re- de consiste em criar garantias para a limitação de
pública democrática”, rejeitar a ideia de democracia seu exercício. Na América, ao contrário, dado que
como uma forma de usurpação do poder legítimo a soberania é entendida como o exercício ativo e
pela ambição despótica daqueles que são capazes de descentralizado do poder, inspirado por uma con-
mobilizar as massas.3 cepção comunal de organização social e política, a
Nos Estados Unidos, no entanto, a soberania obra da liberdade consiste na manutenção efetiva
popular assumiu uma forma distinta. Ela não se desse espaço de deliberação e interpenetração en-
confunde com a prerrogativa da constituição de um tre a sociedade – locus da legitimidade política – e
corpo soberano, uno e indivisível, que sintetizaria, o Estado – objeto da representação. Nesse sentido,
portanto, a vontade dos representados. Ao contrário, se, como já dissemos, existe uma distinção entre a
a questão da soberania popular se realiza verdadei- democracia como forma de governo e a democra-
ramente na relação aberta de exercício da soberania cia como estado social, na América esse processo
pelo poder comunal. O que Tocqueville chama de histórico de transformações que Tocqueville no-
“o dogma da soberania do povo” na América versa meia “Estado social democrático” resulta na forma
muito menos sobre a constituição de uma autorida- política mais adequada para sua realização: aquela
de legítima e muito mais sobre a relação descentrali- na qual a soberania popular é compreendida como
zada de exercício da cidadania. Se na França o prin- descentralização e autogoverno.
cípio da soberania do povo conduziu à constituição Tocqueville distingue, contudo, dois tipos de
de uma autoridade cuja força tornou-se excessiva e soberania que se encontram nos Estados Unidos.
ameaçadora para a liberdade, na América a soberania O primeiro tipo, e o mais “natural”, é a soberania
serviu como um instrumento para diminuir a ação descentralizada dos estados, enquanto o segundo,
da autoridade. É por isso que o mesmo princípio da “obra artificial” criada a partir da unidade dos pri-
soberania popular exerceu um efeito tão díspar entre meiros, é a soberania da União:
os dois lados do Atlântico.
“A soberania dos estados se apoia sobre as lem-
Existem dois meios de diminuir a força da au- branças, sobre os hábitos, sobre os preconcei-
toridade em uma nação. O primeiro é enfra- tos locais, sobre o egoísmo de província e de
quecendo o poder em seu princípio mesmo, família; em uma palavra, sobre todas as coisas
dotando a sociedade do direito ou da faculdade que tornam o instinto da pátria tão poderoso
de se defender em certos casos: enfraquecer a no coração do homem. Como duvidar de suas
autoridade desta maneira, é o que se chama na vantagens?” (Idem, p. 257).
Europa de fundar a liberdade. Há um segundo
meio de diminuir a ação da autoridade: esse Ora, o argumento tocquevilliano toca aqui al-
não consiste em retirar da sociedade alguns de guns temas centrais para o conservadorismo tradi-
seus direitos, de paralisar seus esforços, mas cionalista: a concepção de uma ordem social na qual
de dividir o uso dessas forças em várias mãos. o direito se sustenta pela força dos costumes e das
[...] Encontramos povos nos quais esta divisão tradições; na qual a história, entendida como sedi-
dos poderes sociais pode conduzir à anarquia; mentação desse passado que se torna medida de re-
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

gra e supera a força normativa do indivíduo/cidadão, sobrevivência da liberdade política. A existência de


coincide com a visão burkeana da legitimidade da um poder local fortalecido poderia servir de contra-
ordem política inglesa, que, por sua vez, é recepcio- peso à concentração do poder central e de seus pos-
nada durante a Revolução pelo pensamento contrar- síveis desvios despóticos, servindo como um equi-
revolucionário. Lucien Jaume (2008, pp. 152-154) valente funcional dos corpos intermediários cujos
chega mesmo a notar que, na primeira parte do pri- privilégios garantiam sua relativa independência
meiro livro de A democracia na América, exatamente com relação ao poder real.
o trecho no qual Tocqueville discute o problema da
soberania e a constituição de uma autoridade legí- Exprimo aqui um pensamento que lembrará
tima nos Estados Unidos, encontramos três vezes o que disse em outra parte sobre as liberdades
o conceito de princípio gerador para falar da relação comunais: não existe país onde as associações
entre Estado social e forma de governo. O conceito, sejam mais necessárias para impedir o despo-
como bem demonstra Jaume, tem origem na obra tismo dos partidos ou o arbitrário do príncipe
Le principe generatéur des Constitutions, de Joseph que aqueles onde o estado social é democrático.
de Maistre, na qual o autor procura refutar a ideia de Nas nações aristocráticas, os corpos secundários
que o racionalismo contratualista poderia justificar a formam associações naturais que interrompem
formação de uma ordem política: esta só tem origem o abuso do poder. Nos países onde associações
legítima na relação historicamente fundada entre desse tipo não existem, se os particulares não
uma autoridade legítima e um povo cuja identidade podem criar artificialmente e momentaneamen-
depende dessa autoridade. De Maistre contrapõe à te alguma coisa semelhante, não vejo nenhum
abstração metafísica do direito natural o uso da his- tipo de dique para qualquer tipo de tirania, e
tória, chamada por ele de “política experimental” um grande povo pode ser oprimido impune-
(De Maistre, 1884, t. I, p. 267). mente por um punhado de facciosos ou por um
Podemos oferecer duas respostas possíveis à homem (Tocqueville, 1986a, p. 292).
aproximação entre o tradicionalismo e o pensa-
mento de Tocqueville. Em primeiro lugar, essa A uniformização social produzida pela democra-
aproximação versa sobre a relação entre Estado so- cia exige, então, instrumentos que se interponham
cial democrático e desenvolvimento do poder local. entre o indivíduo/cidadão e o Estado. Contudo, a
Longe de buscar o argumento tradicionalista para diferença central entre Estado social democrático e
defender uma ordem constituída, Tocqueville, con- aristocrático impõe uma distinção. Como nos lem-
tudo, apela à ideia de um princípio gerador fundado bra Marcelo Jasmin, o modelo tocquevilliano do
nos costumes para caracterizar a democracia. Para Estado social aristocrático caracteriza-se “não pela
ele, a experiência política norte-americana cons- desigualdade tout court, mas pelo seu caráter hierár-
titui, efetivamente, uma “política experimental”. quico”; e completa, mais adiante, afirmando: “Ain-
Através da atividade criativa dos homens, sustenta- da que o conceito queira referir-se à totalidade das
dos sob o princípio da igualdade, foi possível cons- sociedades históricas que antecederam a revolução
tituir uma sociedade democrática. A relação entre democrática, a noção de desigualdade hierárquica
o princípio gerador e o Estado social fica então evi- é constituída com base na experiência medieval eu-
dente: a força providencial da democracia, unida à ropeia. A sociedade aristocrática de Tocqueville es-
experiência de fundação de uma nova ordem políti- trutura-se organicamente pela articulação de corpos
ca, permitiu o surgimento da república dos Estados coletivos” (Jasmin, 2005, p. 42).
Unidos. Assim, tendência histórica e oportunidade Se no caso do Estado social aristocrático é o
encontram-se no nascimento da América. Outra próprio caráter hierárquico e estruturalmente desi-
aproximação possível refere-se à insistência tocque- gual da sociedade que resulta na existência de cor-
villiana – especialmente desenvolvida no segundo pos intermediários e prerrogativas aristocráticas que
volume de A democracia na América – no risco que possam ser interpretadas como o germe da liberdade
a dissolução dos corpos intermediários oferece à política na civilização europeia, na democracia, con-
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  15

tudo, a inadmissibilidade de qualquer interferência Essa preocupação transforma a percepção da de-


estrutural no critério da igualdade demanda da re- mocracia como o resultado da transformação do Esta-
pública a criação de mecanismos sempre ativos de do social. Se a uniformização dos critérios de distinção
interferência do indivíduo/cidadão na deliberação social pode levar ao nivelamento autoritário da opi-
do poder, para além do regime representativo. O nião, a democracia, como tendência histórica, pode
modelo norte-americano, assim, oferece o melhor caminhar para a dissolução do complexo sistema de
exemplo dessas instituições. O autogoverno local equilíbrio institucional no qual se funda a concepção
está em consonância com o espírito mesmo do Es- liberal de constituição. Há, portanto, uma oposição
tado social democrático: a organização do poder fundamental que subjaz ao argumento, um conflito
social não se funda em privilégios ou concessões, entre liberalismo e democracia, entre instituições e
mas na própria característica descentralizada da autodeterminação, inerente à dinâmica da sociedade
formação republicana da América. O vocabulário moderna.
tocquevilliano, assimilando conceitos ligados à rea-
ção tradicionalista ao direito natural, promove mais “Se um homem sofre uma injustiça nos Esta-
uma vez uma transformação conceitual a partir da dos Unidos a quem quereis que ele se dirija?
experiência dos Estados Unidos: no Estado social À opinião pública? É ela que forma a maioria;
democrático, o governo local e os costumes que o ao corpo legislativo? Ele representa a maioria
sustentam são colocados a serviço da república. e a obedece cegamente; [...] ao Judiciário? O
Há, portanto, um elemento persistente no Judiciário é a maioria revestida do direito de
pensamento liberal que reaparece nas preocupações pronunciar julgamentos” (Idem, p. 378).
de Tocqueville: a oposição entre liberdade e igual-
dade. A função do autogoverno, bem entendido, é Tocqueville diz que a preservação das garantias
observar a manutenção contínua da participação, na democracia exige que os poderes sejam represen-
da permeabilidade do político pelo social. Contu- tantes da maioria sem, contudo, serem escravos de
do, a força niveladora da democracia pode conduzir suas paixões. Porém, a resposta não soluciona o pro-
a um processo devastador de homogeneização da blema essencial colocado pelo conflito entre libera-
opinião, eliminando de forma legítima o equilíbrio lismo e democracia no pensamento tocquevilliano:
entre forças opostas, preocupação fundamental do se a constituição liberal é pensada como um meca-
constitucionalismo liberal da Restauração, e forta- nismo de equilíbrios e garantias, como, em uma so-
lecendo o despotismo da maioria. ciedade democrática, torná-la infensa à interferên-
cia nociva das paixões? Além disso, se a democracia
“O que eu reprovo mais no governo democrá- ativa necessita da existência de um espaço público
tico, da forma como se organizou nos Estados sempre aberto para colonizar o político pelo social,
Unidos, não é sua fraqueza, como pretendem como tornar a opinião pública “desapaixonada” ou,
na Europa, mas sua força irresistível [...]. O dito de outro modo, como estabelecer limites legí-
que me repugna na América não é a extrema timos para a ação no espaço público? Para compre-
liberdade que reina, mas a pouca garantia que endermos essa questão é preciso entender a inter-
encontramos contra a tirania” (Tocqueville, pretação de Tocqueville sobre a natureza da opinião
1986a, p. 378). pública no Estado social democrático.
O tema da opinião pública é não só um dos
Essa dimensão do liberalismo encontra-se por mais constantes em A democracia na América, mas
trás da preocupação tocquevilliana com os riscos do um dos conceitos acessórios mais utilizados para
despotismo democrático: a liberdade na América se caracterizar o movimento do Estado social demo-
sustenta nos costumes e não nas leis (Idem, p. 379); crático. Tocqueville afirma que, tanto na América
não há garantias institucionais suficientemente es- quanto na França, a opinião pública é o poder do-
táveis para salvaguardar a liberdade contra os assé- minante. Contudo, na França ela possui um caráter
dios possíveis da tirania democrática. menos definido e sua influência sobre a formulação
16  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

das leis é menos perceptível do que na América. cquevilliana pressupõe a existência de uma sociedade
Então, ele conclui que na América o exercício da ativa e sua penetração no âmbito de decisão do polí-
opinião procede pelas eleições e pelas manifestações tico. Contudo, essa equação se realiza de forma mais
institucionais de autogoverno, enquanto na Fran- bem-acabada na América por uma característica es-
ça ela procede por meio das revoluções ( Idem, p. pecial dessa sociedade. O problema da propriedade,
198). Assim, na América a opinião e os costumes colocado como centro da questão social revolucioná-
democráticos nascem e desenvolvem-se juntos na ria na França, está ausente na Revolução Americana.
constituição da república, enquanto na França o Nos Estados Unidos, tendo a maioria um bem par-
caráter de ruptura que acompanha a conquista da ticular a defender, todos reconhecem por princípio o
liberdade política resulta em uma crise entre Esta- direito de propriedade.
do social e instituições. Como Tocqueville aponta
adiante, o momento em que se atribui direitos po- “Na América, o homem do povo concebeu
líticos a um povo privado deles é sempre um mo- uma alta ideia dos direitos políticos, pois ele
mento de crise (Idem, p. 359). Contudo, em ambos tem direitos políticos; ele não viola os dos ou-
os casos, a natureza do poder da opinião, insiste tros pois ele tem os seus. [...] O governo da
Tocqueville, é sempre republicana: isso faz com que democracia faz descer a ideia dos direitos polí-
o exercício do poder real possa se parecer muito ticos até o meio dos cidadãos, como a divisão
mais com uma república na França do que o poder de bens coloca a ideia de propriedade em geral
do presidente possa se parecer com uma monarquia ao alcance de todos os homens” (Idem, p. 358).
na América (Idem, p. 198).
Ora, se a natureza da opinião pública é essen- O conjunto de interesses que concorre para a
cialmente republicana, ou seja, se ela foge à esfera do “prosperidade geral” da sociedade – que não deve
segredo e da razão de Estado e se exerce em um espa- ser entendida, evidentemente, apenas como pros-
ço expandido que articula Estado e sociedade, ela é a peridade econômica, se bem que esse critério exerça
dimensão por excelência na qual devem se articular um papel fundamental na hierarquia dos interes-
participação política e motivações individuais. A par- ses individuais – pressupõe, portanto, a vida ativa
ticipação na comunidade política democrática não se que se confunde com o problema da propriedade.
limita à mecânica institucional da eleição de repre- Assim, “se no meio dessa confusão universal, não
sentantes – garantida pela condição do indivíduo/ se conseguir ligar a ideia de direitos à de interesse
cidadão (censitária, capacitária ou mesmo universal pessoal que oferece como o único centro imóvel do
masculina, como no caso dos Estados Unidos), mas coração humano, o que vos restará para governar o
ao exercício contínuo da “vida ativa cidadã”. Essa re- mundo, senão o medo?” (Idem, p. 359).
lação fica muito clara quando Tocqueville distingue A vida ativa econômica é parte condicionante
o patriotismo antigo e o moderno. da vida ativa social; a vitalidade da comunidade po-
Aquilo que Tocqueville caracteriza como o “pa- lítica pressupõe um interesse conjunto no progresso
triotismo instintivo da monarquia” em contraposi- da riqueza dos indivíduos. A perspectiva de uma co-
ção ao “patriotismo refletido da república” (Idem, p. munidade política em expansão no tempo – assim
354) dá conta de algo mais do que o amor à pátria e como está em expansão a tendência niveladora da
descreve a própria natureza do vínculo entre os indi- democracia – encontra-se com a expectativa da ex-
víduos e a comunidade política. Dizer que cada um pansão da atividade econômica moderna – o comér-
é parte ativa do governo da sociedade na democracia cio, a indústria, a expansão do cultivo da terra etc. A
norte-americana significa dizer que a cidadania ativa atividade social penetra todas as instancias da vida
produz um vínculo maior do que a identificação pas- humana na república democrática; ela caracteriza-se
siva do pertencimento de nascença a uma determi- pela necessidade de uma opinião ativa e constante
nada comunidade. É esse patriotismo refletido que sobre os “negócios do Estado” (Idem, p. 385). Essa
garante a união da força da atividade social com as conexão entre motivação individual e “patriotismo”
garantias políticas. Assim, o cálculo da ação social to- ficará mais bem desenvolvida na célebre ideia de
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  17

“interesse bem entendido”,4 desenvolvida por To- se contrapõe à “vontade republicana” que precisa
cqueville no segundo volume de A democracia na ser encarnada pelas instituições representativas. Ao
América. Se o direito é a virtude tornada norma, nos contrário, o interesse bem entendido pressupõe um
Estados Unidos a virtude obedece ao critério da uti- “consenso republicano”, uma sociedade sustentada
lidade. O efeito da teoria do interesse bem entendido pelo princípio do consenso construído a partir da
sobre os costumes políticos leva o cidadão a sacrificar opinião pública e não através da unificação e anula-
uma parte de seu tempo ao interesse coletivo. O fun- ção das vontades comuns em uma vontade soberana.
cionamento dessa sociedade na qual todos reservam
uma parte de seu tempo à atividade social resulta em
um cálculo geral em que a vida republicana e o inte- Conclusão
resse egoísta não se sobrepõem: a dimensão pública
não sufoca a vida privada – como na república dos A questão de fundo colocada pelo problema
antigos – e o interesse não reduz a vida do indiví- do interesse bem entendido é a seguinte: como en-
duo/cidadão à simples atividade do voto, criando contrar um “sujeito moral” que agirá politicamente
uma barreira segura à expansão do despotismo de- numa sociedade secularizada, na qual o consenso úl-
mocrático. Assim, Tocqueville, com o exemplo da timo sobre os fundamentos religiosos da sociabilida-
república norte-americana, oferece um modelo pos- de se desfaz? Esse problema se coloca desde o princí-
sível para a aparente incoerência entre vida republi- pio para o liberalismo, na busca da compreensão de
cana e liberdade moderna apresentada por Constant como manter a possibilidade de um sentido de bem
em sua Liberdade dos antigos e dos modernos. comum em um processo de transformação e expan-
são do direito não a partir da vontade de um sobera-
A doutrina do interesse bem entendido não no uno, mas da criação de uma ordem cuja legitimi-
produz grandes devotamentos; mas ela sugere dade advém da sociedade civil e cujo poder se exerce
cada dia pequenos sacrifícios; somente por ela através de uma dimensão real – a representação – e
não se fará um homem virtuoso; mas ela for- outra virtual – a opinião pública. A confiança não
ma uma multidão de cidadãos regrados, tem- está depositada no mérito do legislador-soberano e
perantes, moderados, previdentes, mestres de no produto virtuoso de sua atividade, mas na capa-
si mesmos; e, se ela não conduz diretamente à cidade da ordem política em limitar a possibilidade
virtude da vontade, ela se aproxima dela sensi- de uma lei que ultrapasse os limites de suas determi-
velmente por meio dos costumes. Se a doutrina nações. Ao mesmo tempo, a existência de um espa-
do interesse bem entendido vier a dominar in- ço público legítimo, mesmo que virtual – aquele no
teiramente o mundo moral, as virtudes extra- qual se exerce a opinião pública –, garante que o pro-
ordinárias serão sem dúvidas mais raras. Mas cesso de legitimidade da representação seja contínuo
penso também que as depravações grosseiras e sempre aberto, para além do momento eleitoral.
serão menos comuns [...]. Eu não temerei di- Podemos contrastar a concepção feita por Constant
zer que a doutrina do interesse bem entendido de um espaço público regulado pela opinião com a
me parece, de todas as teorias filosóficas, a mais ideia rousseauniana de vontade geral: não se trata de
apropriada às necessidades dos homens de nos- reconhecer uma vontade soberana, mas de interpretar
so tempo [...]. É principalmente em direção a no espaço público a “opinião média” da sociedade. A
elas que o espírito dos moralistas de nossos dias opinião é interpretada como a primeira das garantias
deve voltar-se. Mesmo que eles a julguem im- essenciais para a limitação do poder, mais até do que
perfeita, será preciso adotá-la como necessária a separação dos poderes e o regime representativo:
(Tocqueville, 1986b, pp. 175-176). no seio de uma sociedade em que a opinião não está
disposta à liberdade, o despotismo frutifica com faci-
A ideia de interesse bem entendido redimen- lidade (Constant, 1997, p. 315).
siona a relação entre os homens em uma sociedade Ao reconhecer o caráter plural da opinião,
democrática, na qual o “interesse particular” não Constant admite também que o espaço público
18  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

é composto por uma variedade de interesses, rom- vida privada, ou melhor, nas quais o indivíduo ato-
pendo definitivamente com o caráter absolutamen- mizado e secularizado predomina sobre o homem
te objetivo e unitário do conceito de soberania da como parte orgânica do corpo político?
nação sieyèsiano, segundo o qual a legitimidade de- A ideia do interesse bem entendido redimen-
legada deveria partir de uma concepção totalizante siona a relação entre uniformização dos caráteres re-
do bem público, sem reconhecer o interesse privado sultado da democratização e o individualismo mo-
como fonte legítima da representação. Porém, mes- derno, formulando uma “saída republicana” para
mo reconhecendo que o interesse regula a opinião, o conflito entre igualdade e liberdade. Essa “teoria
Constant ataca duramente o utilitarismo, afirmando ética da ação política” de Tocqueville parte de um
a impossibilidade de uma ordem que não se com- diagnóstico decisivo: a grande transformação do
ponha de um elo entre a norma e o dado histórico mundo moderno implica o redimensionamento da
da existência da sociedade: a própria ideia de delito relação entre indivíduo e sociedade. O diagnóstico,
pressupõe um acordo prévio entre o legislador e o evidentemente, não é uma originalidade tocque-
governado, sem o qual a convenção sobre o que é villiana. Ele perpassa por todo o espectro da filo-
um delito seria impossível (Idem, p. 285). sofia política dos séculos XVIII e XIX. Contudo,
É esse problema central do liberalismo que Tocqueville rearranja os termos do debate de forma
Tocqueville busca dar solução quando retoma a dis- a demonstrar como a república moderna pode en-
cussão sobre o consenso republicano e sobre a pos- contrar um meio-termo entre liberdade individual
sibilidade da existência de um princípio de “virtude e vida civil, entre interesse e participação, evitan-
comum”, entendido como critério para a existência do o risco da decadência da liberdade pública. Se-
de uma vida ativa republicana na sociedade moder- gundo Tocqueville (1986b, p. 137), é no ponto em
na. Como nos lembra Marcelo Jasmin: que se encontram a liberdade política e a vida civil
ativa que a igualdade e a liberdade se confundem.
Num mundo em que a virtude cívica dos an- O individualismo, ideia que expressa um senti-
tigos não pode mais viger e onde só pelo as- mento novo, inerente à modernidade, é fruto da
sentimento os indivíduos se interessam pelo democratização. Ele nasce, segundo Tocqueville, do
público, o ímpeto inicial que dispara o ciclo isolamento dos indivíduos da massa, criando uma
da pedagogia tocquevilliana só poderia vir do “pequena sociedade” e, ao mesmo tempo, abando-
cálculo e do interesse. De fato, afirmava Toc- nando a “grande sociedade” (Idem, p. 143). Assim,
queville, o que a prática comunitária produz é do “rebaixamento” da virtude promovido pelo indi-
a transformação do cálculo em instinto, do in- vidualismo e pelo nivelamento de condições, duas
teresse em escolha, da necessidade em virtude. soluções podem emergir: aquela no qual o indivi-
Tal proposição reelaborava a teoria republicana dualismo fecha-se na esfera privada, esvaziando o
de Montesquieu à luz da observação da expe- público de sentido e promovendo o “despotismo
riência americana e atualizava, para a moder- democrático”; ou aquela na qual a “fraqueza” do
nidade, o antigo princípio da virtude (Jasmin, Estado social democrático pode regenerar-se em
2000, p. 79). um princípio regulador para a república moderna:
o interesse bem entendido.
A questão aqui retoma o dilema de Montes-
quieu, recuperado durante a Revolução tanto por Os americanos não formam um povo virtuoso e
Madame de Staël quanto por Benjamin Constant, no entanto são livres. O que não prova de modo
no seu célebre discurso sobre a liberdade dos anti- algum que a virtude, como pensava Montes-
gos e dos modernos: como a liberdade pode vigorar quieu, não seja essencial à existência das repú-
em uma sociedade composta por nações expandi- blicas. O que o grande homem quis dizer é que
das, e não por cidades-estados reduzidas a peque- as repúblicas só podiam subsistir pela ação da
nos territórios, nas quais a “esfera pública” não se sociedade sobre si mesma. O que ele compreen-
sobrepõe, regulando e limitando, a dimensão da de como virtude é o poder moral que cada indi-
ALEXIS DE TOCQUEVILLE E O LIBERALISMO FRANCÊS  19

víduo exerce sobre si mesmo e que o impede de antigos”, Tocqueville reformula o debate da republica
violar o direito dos outros. Quando este triunfo moderna, procurando encontrar, a partir do exemplo
do homem sobre as tentações é o resultado da da sociedade norte-americana, a saída possível para o
fraqueza da tentação ou de um cálculo de in- conflito entre liberalismo e democracia.
teresse pessoal não se constitui em virtude aos
olhos do moralista; mas serve à ideia de Montes-
quieu, que falava do efeito bem mais que de sua Notas
causa. Na América, não é a virtude que é grande,
é a tentação que é pequena, o que dá no mesmo. 1 Todas as traduções de citações das obras originais são
Não é o desapego aos interesses que é grande, é o de responsabilidade do autor do artigo.
interesse que é bem compreendido, o que também 2 É importante lembrarmos que uma dificuldade fun-
dá quase no mesmo. Montesquieu tinha então ra- damental no estudo do pensamento de Royer-Collard
zão quando falava da virtude antiga e o que diz reside no fato de que sua obra consiste basicamente
dos gregos e dos romanos também se aplica aos em algumas coletâneas, preparadas especialmente por
seu contemporâneo Prosper de Barante, de discursos
americanos (Tocqueville apud Jasmin, 2000, p.
reunidos nos dois volumes de La vie politique de M.
80, grifos meus). Royer-Collard, publicados em 1861.
3 Pierre Rosanvallon nos lembra que o modelo políti-
Tocqueville, evidentemente, reconhece as limi-
co francês padece de uma polaridade essencial entre a
tações inerentes à existência dessa sociedade tendente “cultura política da generalidade”, sustentada pela ideia
ao individualismo e à vida democrática. Essa possibi- do Estado como um todo indivisível que deve repre-
lidade criativa da vida social que emerge do fim da sentar e incorporar a nação, cuja vontade absoluta se
sociedade estruturalmente hierárquica pode ser um expressa na lei, e as resistências a esse modelo, baseadas
risco à saúde da república: o primado da “pequena na ideia de que as garantias da liberdade sustentam-se na
sociedade” econômica ou da “pequena sociedade” re- existência de corpos políticos autônomos, capazes de
ligiosa em detrimento da “grande sociedade” política se autolimitar (Rosanvallon, 2004, pp. 17-19). Essa
resulta necessariamente no esvaziamento do caráter mesma diferença pode ser tomada como central para a
distinção do modelo francês com relação aos seus con-
republicano da democracia, alimentando a hidra do
temporâneos inglês e norte-americano. Em ambos os
despotismo democrático. Contudo, é apenas a liga-
modelos políticos anglo-saxões o sistema representativo
ção entre interesse público e interesse individual que é pensado como um sistema de equilíbrio e mútua anu-
Tocqueville encontra nos Estados Unidos, ou, dito lação entre as instituições que compõem o governo. Se o
de outra forma, a associação entre progresso da socie- povo é pensado como um fundamento jurídico-consti-
dade e progresso individual, que pode ser a solução tucional para a legitimidade política, sua “transposição”
para o impasse entre o primado da vida ativa indivi- para a existência real das instituições políticas legitimas
dual e a necessária sobrevivência da vida ativa políti- não se dá pela necessidade da criação de um corpo
ca e republicana. A teoria da ação social democrática que represente a “vontade” da nação como um todo.
de Tocqueville reencontra aqui o problema colocado A reação a esse modelo “rousseauniano” que se encarna
em diversos momentos da história francesa – jacobinis-
por Constant em seu diagnóstico sobre a civilização
mo, bonapartismo, gaullismo – é o traço distintivo da
do comércio e das luzes e o progresso da liberdade na
concepção das relações entre Estado e sociedade civil no
Europa. É o próprio autor de A democracia na Améri- modelo liberal francês.
ca que reivindica uma “atualização” do argumento de
4 Optamos aqui pela tradução de intérêt bien entendu
Constant e seus contemporâneos, afirmando que “fiz como “interesse bem entendido”. Porém, o leitor tam-
ver como a ideia do progresso e a perfectibilidade inde- bém poderá encontrar em outras traduções a opção
finida da espécie humana são próprios das eras demo- “interesse bem compreendido”.
cráticas”5 (Tocqueville, 1986b, p. 107, grifos meus). 5 Sobre a importância dos conceitos de progresso e per-
Assim, reconhecendo o caráter inevitável de uma for- fectibilidade no argumento de Constant, ver Cassi-
ma de liberdade moderna, que implica um tipo de so- miro (2016).
ciabilidade que anula a possibilidade da “liberdade dos
20  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 33 N° 96

Bibliografia JAUME, Lucien. (2008), Tocqueville: les sources


aristocratiques de la liberté. Paris, Fayard.
BARANTE, Prosper de. (1861), La vie politique de KOSELLECK, Reinhart. (2011), Futuro passado: con-
M. Royer-Collard: ses discours et ses écrits. Paris, tribuição à semântica dos tempos históricos. Trad.
Didier et Co. 2 vols. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira.
CASSIMIRO, P. H. P. (2016), “O liberalismo po- Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto.
lítico e a república dos modernos: a crítica de LAMBERTI, Jean-Claude. (1983), Tocqueville et
Benjamin Constant ao conceito rousseauniano les deux démocraties. Paris, PUF.
de soberania popular”. Rev. Bras. Ciênc. Polít. RÉMUSAT, Charles de. (1861), “De l’esprit de
[online], 20: 249-286. réaction: Royer-Collard et Tocqueville”. Revue
CHIGNOLA, Sandro. (2011), Il tempo rovesciato: des Deux Mondes, t. 35.
la Restaurazione e il governo della democrazia. ROSANVALLON, Pierre. (2000), La démocratie
Bolonha, Il Mulino. inachevée: histoire de la souveraineté du peuple
CONSTANT, Benjamin (1997). Écrits politiques. em France. Paris, Gallimard.
Paris, Gallimard. ROSANVALLON, Pierre. (2004). Le modèle poli-
CRAIUTU, Aurelian. (1999), “Tocqueville and tique français: la société civile contre le jacobinis-
the political thought of the french doctrinaires me de 1789 à nos jours. Paris, Seuil.
(Guizot, Royer-Collard, Rémusat)”. History of ROSANVALLON, Pierre. (1985), Le moment
Political Thought, 20 (3): 456-493. Guizot. Paris, Gallimard.
DE MAISTRE, Joseph. (1884), Oeuvres complètes. ROSANVALLON, Pierre. (2010), Por uma histó-
Lyon, Vitte et Perussel. 14 tomos. ria do político. Trad. Christian Edward Cyril
FURET, François. (1989), Pensando a Revolução Lynch. São Paulo, Alameda.
Francesa. Trad. Luiz Marques e Martha Gam- ROYER-COLLARD, Pierre Paul. (1949), De la
bini. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. liberté de la presse: discours. Paris, Librarie des
GUIZOT, François. (1816), Du gouvernement ré- Médicis.
presentatif et de l’état actuel de la France. Paris, SCHLEIFER, James. (1980), The making of
Maradan. 2 vols. Tocqueville’s democracy in America. Indianapo-
GUIZOT, François. (1849), De la démocratie em lis, Liberty Found.
France. Paris, Victor Masson. TOCQUEVILLE, Alexis de. (1986a), De la démo-
GUIZOT, François. (1985), Histoire de la civilisa- cratie en Amerique I. Paris, Gallimard.
tion en Europe. Présenté par Pierre Rosanvallon. TOCQUEVILLE, Alexis de. (1986b), De la démo-
Paris, Hachette. cratie en Amerique II. Paris, Gallimard.
JARDIN, André. (1981), Alexis de Tocqueville TOCQUEVILLE, Alexis de. (2004), Oeuvres III.
(1805-1859). Paris, Pluriel. Introdução e notas François Melonio e Fran-
JARDIN, André. (1998), Historia del liberalismo çois Furet. 2. ed. Paris, Gallimard.
político: de la crisis del absolutismo a la Cons-
titución de 1875. Trad. de Francisco Gonzáles
Aramburu, 2. ed. Cidade do México, FCE.
JASMIN, Marcelo Gantus. (2005), Alexis de Toc-
queville: a historiografia como ciência da política.
2. ed. Belo Horizonte/Rio de Janeiro, Editora
UFMG/Iuperj.
JASMIN, Marcelo Gantus. (2000). “Interesse
bem compreendido e virtude em a democra-
cia na América”, in Newton Bignotto (org.),
Pensar a República. Belo Horizonte, Editora
UFMG.
RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  21

ALEXIS DE TOCQUEVILLE E ALEXIS DE TOCQUEVILLE ALEXIS DE TOCQUEVILLE ET


O LIBERALISMO FRANCÊS: AND FRENCH LIBERALISM: LE LIBÉRALISME FRANÇAIS :
CONTINUIDADES E RUPTURAS CONTINUITIES AND RUPTURES CONTINUITÉS ET RUPTURES DU
SOBRE O CONCEITO DE ON THE CONCEPT OF CONCEPT DE DÉMOCRATIE
DEMOCRACIA DEMOCRACY

Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro Paulo Henrique Paschoeto Cassimiro

Palavras-chave: Liberalismo; Democra- Keywords: Liberalism; Democracy; Re- Mots-clés: Libéralisme; Démocratie; Ré-
cia; República; Revolução; Restauração public; Revolution; Restoration publique; Révolution; Restauration

O objetivo do presente artigo é acompa- This paper aims to follow the develop- Le but de cet article est de suivre l’évo-
nhar o desenvolvimento do conceito de ment of the concept of democracy in lution du concept de démocratie dans
democracia no pensamento de Tocquevil- Tocqueville’s thought in relation to the la pensée de Tocqueville par rapport au
le em relação ao contexto do pensamento context of French political thought in the contexte de la pensée politique française
político francês do período da Restaura- Restoration period (1814-1848). We will de la période de la Restauration (1814-
ção (1814-1848). Buscaremos esclarecer, try to clarify, by tracing relations of con- 1848). Nous chercherons à clarifier, tout
ao traçar relações de continuidades e tinuity and rupture between Tocqueville’s en traçant de liens de continuités et de
rupturas entre a obra de Tocqueville e o work and the political debate in France ruptures entre l’œuvre de Tocqueville et
debate político da França na primeira me- during the first half of the nineteenth le débat politique en France dans la pre-
tade do século XIX, como a obra do au- century, since the work of the author of mière moitié du XIXe siècle, de quelle
tor de A democracia na América promove Democracy in America promotes a con- façon l’œuvre de l’auteur de La démocra-
uma inovação conceitual no interior do ceptual innovation within the political tie en Amérique promeut une innovation
debate político da Restauração em torno debate of the Restoration about the es- conceptuelle au sein du débat politique
da divergência essencial entre liberalismo sential divergence between liberalism de la Restauration autour de la divergence
e democracia. Assim, integração à lingua- and democracy. Thus, integration into essentielle entre le libéralisme et la dé-
gem política do liberalismo do período the political language of liberalism and mocratie. Ainsi, l’intégration au langage
e inovação conceitual se reúnem para conceptual innovation come together to politique du libéralisme au cours de cette
explicar a distinção fundamental traçada explain the fundamental distinction that période et de l’innovation conceptuelle
por Tocqueville entre a democracia como Tocqueville draws between democracy as se réunissent pour expliquer la distinc-
forma de governo e seu conceito do estado a form of government and his concept of tion fondamentale établie par Tocqueville
social democrático. the social democratic state. entre la démocratie en tant que forme de
gouvernement et son concept d’état social
démocratique.

Вам также может понравиться