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FORTALEZA
2017
BRISA PIRES MOURA
FORTALEZA
2017
BRISA PIRES MOURA
Aprovada em ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof.ª Dr.ª Isabelle Braz Peixoto da Silva (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________
Prof. Dr. Kleyton Rattes Gonçaves
Universidade Federal do Ceará (UFC)
___________________________________________
Prof. Dr. Gerson Augusto de Oliveira Junior
Universidade Federal do Ceará (UECE)
Aos meus pais.
E a todos que, assim com eles, ajudaram na
construção desta pesquisa.
AGRADECIMENTOS
Certamente tenho muito a agradecer. Várias pessoas me ajudaram das mais variadas
formas na construção desse trabalho.
Gostaria de agradecer a meus pais, aos quais também dedico esse trabalho, que em
diversos momentos da pesquisa atuaram dando-me conselhos, construindo pontes entre
interlocutores, além de sempre me apoiarem.
Ao GEPE (Grupo de Estudos e Pesquisas em Etinicidade) da UFC, pelas frutiferas
discussões e reflexões.
A Gilvan e Bianca, pela extrema disponibilidade, gentileza e carinho com que me
trataram.
À Dona Graça e seu Tarcísio, por tudo que fizeram, desde a enorme simpatia aos
ricos momentos.
A todos os interlocutores que, junto comigo, construíram essa pesquisa, confiando-
me suas narrativas, percepções e seu tempo.
À Professora Isabelle Braz Peixoto da Silva, pela paciência e dedicação durante a
orientação desse trabalho.
Aos professores participantes da banca examinadora, Kleyton Rattes Gonçaves e
Gerson Augusto de Oliveira Junior, pela disponibilidade e considerações.
A todos os meus colegas, sobretudo os que tiveram paciência de ouvir horas sobre
essa pesquisa.
RESUMO
The city of Acaraú, located approximately 238 km from Fortaleza, has two communities
considered indigenous in its territory and another nearby (Itarema located 23 km from Acaraú).
Within such communities, it is common for most people to identify themselves ethnically as
indigenous. Parallel to this context, there are still in the region, especially in places where
people do not recognize themselves as indigenous, a significant number of individuals that have
indigenous ancestry and are not recognized as such, which can be due to a number of factors ,
which may be related from the historicity of each group, as well as individual aspects. Thus,
the construction of an individual's identity is undoubtedly a complex process that relates
contexts such as: memory, relationships around individuals and the interpretations that the
individual produces in relation to the environment in which he is inserted, and, of course,
narratives linked to their own ancestry.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8
2 CAMINHOS METODOLÓGICOS ................................................................................... 11
2.1 EU COMO PESQUISADORA ...................................................................................... 13
2.2 OS LOCAIS DA PESQUISA ......................................................................................... 15
2.2.1 Curral Velho e praia de Arpoeiras, onde tudo começa ...................................... 16
2.2.2 Sede de Acaraú ....................................................................................................... 18
2.2.3 Espraiado................................................................................................................ 20
3 MEMÓRIA E IDENTIDADES INDÍGENAS NO NORDESTE..................................... 24
3.1 MEMÓRIA E IDENTIDADE ........................................................................................ 24
3.2 NO NORDESTE, NO CEARÁ E NO VALE DO ACARAÚ ........................................ 29
4 OS ÍNDIOS PUROS DO NARIZ FURADO: PUREZA E INDIANIDADE EM
ACARAÚ ................................................................................................................................. 32
4.1 OS PARENTES PEGADOS A DENTE DE CACHORRO ............................................ 36
5 O ÍNDIO, O CABÔCO E A IDENTIDADE NO CONTEXTO ACARAUENSE .......... 42
5.1 O TERMO ÍNDIO .......................................................................................................... 42
5.2 O TERMO CABÔCO ..................................................................................................... 52
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 56
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 58
ANEXOS ................................................................................................................................. 62
ANEXO A – PEIXE ESCALADO ....................................................................................... 62
ANEXO B – MAPA TURÍSTICO DO LITORAL DE ACARAÚ ....................................... 63
ANEXO C – BRAÇO DE RIO E MAR LOCALIZADO QUASE NOS FUNDOS DA
CASA DE SEU ANTÔNIO ............................................................................ 64
ANEXO D – CAPA DO CADERNO DE ORAÇÕES DA “MESTRE”, ENCADERNADA
COM JORNAL E COSTURADA à MÃO ..................................................... 65
ANEXO E – FOLHA DE ROSTO DO CADERNO DE ORAÇÃO, COM ESCRITOS E
ASSINATURAS ............................................................................................. 66
ANEXO F – VERSO DO CADERNO DE ORAÇÕES ....................................................... 67
ANEXO G – ITÃ DA PRAIA DE ARPOEIRAS ................................................................. 68
8
1 INTRODUÇÃO
2 CAMINHOS METODOLÓGICOS
11
É fato que, em nossa trajetória na graduação, durante uma grande parte do tempo,
tentam nos formar pesquisadores nos mostrando experiências distantes, e, em alguns casos, até
mesmo, próximas das diversas realidades que por ventura poderíamos encontrar em campo,
porém, também é fato que toda pesquisa tem suas adversidades e características próprias.
Acredito que é importante tratar com o máximo de clareza esse momento do
trabalho, que é justamente o que melhor esclarece e contextualiza o que diz a pesquisa e de fato
até onde vão os dados; desta forma, optei por dividir meu percurso em campo em alguns tópicos,
a fim ainda de tornar mais organizada a compreensão do que foi acontecendo em campo e
possibilitando uma leitura mais clara sobre como o campo da pesquisa foi organizado e da
realização de cada etapa.
É importante dizer, ainda, que sou natural da sede do município de Acaraú, onde
existem hoje duas comunidades autodeclaradas indígenas que buscam regulamentação de terras
diante da justiça brasileira e mais uma na região, a já bastante conhecida comunidade de
Almofala. No entanto, embora tenha nascido e vivido na região a maior parte da minha vida,
com exceção dessas comunidades citadas, quase não se fala da questão indígena nas redondezas.
Quando pouco se menciona, diz-se que existem índios em Almofala, e parece que apenas lá
existem e sempre existiram.
O que minha naturalidade traria de importante para a construção desse trabalho?
Foi daí que surgiram as perguntas que nortearam e motivaram e me fizeram querer saber mais
sobre o tema, sobre o qual só conheci e refleti melhor quando cheguei à universidade. Fui
movida por uma curiosidade de saber um pouco mais sobre a história e as pessoas da região, e
estes questionamentos, em um momento inicial, me fizeram levar aproximadamente onze ideias
de temas para minha orientadora, todos relacionados à etnicidade e à região.
Afinal, teria que escrever uma monografia e, para tanto, que seja não só com a
finalidade de ser aprovada no curso, mas para sanar questionamentos meus e de outros que
virão, além de buscar algo sobre questões que ficaram quase que na penumbra da história das
pessoas de uma cidade, ou mesmo que sirva de ajuda para alguém que um dia possa se interessar
em conhecer a região e produzir trabalhos, ou mesmo para algum curioso da própria cidade que
pretenda conhecer um pouco mais sobre o tema, principalmente nos lugares pesquisados.
Pelo fato de eu ser uma pesquisadora acarauense, houve uma série de facilidades
no campo – uma delas, sem dúvidas, foi a fácil aproximação com os interlocutores. Como
14
veremos a seguir, minha presença em muitos casos era tratada como menos estranha, tanto pelo
fato de eu ser natural de Acaraú quanto por alguns dos interlocutores já serem conhecidos ou
conhecerem alguns de meus familiares.
Pode ser mencionado, ainda, uma certa facilidade na compreensão dos termos
nativos, uma vez que em alguns acampamentos de família convivemos muito com pescadores
e marisqueiras da região, estabelecendo com eles uma forte relação de proximidade, o que
possibilitou um diálogo mais simplificado e compreensível entre pesquisadora e interlocutores.
Desta forma existiam diversos questionamentos que motivaram a escolha de uma
temática ligada a indianidade na região: Por que, em uma cidade com comunidades indígenas
tão próximas, quase não se fala em ascendência indígena? Também me pus a pensar por que se
falava tão pouco de outras famílias indígenas na região (salvo as que estão inseridas em
comunidades que já se reconhecem como indígenas), Será que as famílias indígenas da região
permaneciam exclusivamente e para sempre habitando os mesmos territórios? A resposta a essa
última pergunta parece óbvia, mas é algo importante de se pensar, nos faz observar a própria
história da região e o contexto da história do próprio Nordeste. Também nos traz reflexões sobre
história escrita e história oral e uma série de outras relações e processos pelos quais a região
passou. É aí que a história de Acaraú dialoga com a dos índios do Nordeste, e é a partir daí que
podemos compreender o quanto os termos ligados à cultura indígena foram marginalizados, o
quanto, como veremos melhor a seguir, as pessoas já tiveram que negar suas identidades para
resistir, e o quanto o próprio termo índio já tem uma carga pesada e generalizante quando fala
para e de vários grupos. O termo caboclo, por exemplo, também tem uma carga bastante
negativa na região, e é bem comum ser utilizado para tratar de pessoas que residem em bairros
considerados menos favorecidos ou perigosos na sede – “os cabôcos das Pedrinhas”, “os
cabôcos do Sítio Buriti” –, e é também disso que trataremos no decorrer desse trabalho.
Obviamente, não se pretende aqui responder a fundo todos os questionamentos que
motivaram a execução da pesquisa, também não pretendo afirmar quem é índio ou deixa de ser,
muito pelo contrário, trata-se de um trabalho que acaba nos trazendo ainda mais
questionamentos sobre as pessoas que fazem parte da pesquisa e toda uma região, e por que não
dizer, todo um Nordeste indígena. É apenas uma tentativa inicial de tentar falar mais sobre a
questão, refletindo sobre pequenas localidades da região e sobre o que nos disseram os
depoimentos e memórias de alguns membros dessas comunidades, tendo, é claro, bastante
consciência de que, devido ao tamanho da região, o trabalho se limita a falar de uma área muito
pequena. Mas essa pesquisa pode ser o começo de se falar um pouco mais sobre essa “parte
com índio” negada e às vezes meio escondida dentro das memórias de alguns interlocutores.
15
Nesta etapa, o interesse maior era pensar o território onde eu pisaria, organizar melhor as ideias
e conhecer outros trabalhos que andaram em uma linha semelhante ao que estava me propondo
a estudar.
Assim, em outubro do mesmo ano, foram realizadas duas conversas informais, as
quais eu detalho melhor a seguir, que foram fundamentais para a delimitação da proposta de
pesquisa. No início do ano de 2017 foram realizadas a maior parte das entrevistas gravadas e
conversas informais. O decorrer do mesmo ano se dedicou a algumas poucas visitas e conversas,
à conclusão da leitura da bibliografia final, e, é claro, à escrita do trabalho.
Como já mencionado, depois de um período de planejamento e de ter muitas
dúvidas sobre o que seria abordado na pesquisa, pois só na região há uma infinidade de coisas
que se pode investigar, decidi começar com algumas conversas informais para tentar entender
melhor o que encontraria no campo e se seria de fato possível fazer uma pesquisa sobre o tema.
Comecei indo à praia da cidade de Acaraú parar falar com Dona Helena1, senhora
que já tinha residido próximo à minha casa, localizada a aproximadamente 8 km de distância
do centro da Cidade, e lá tive uma das primeiras conversas informais. Quem lembrou dela foi
meu pai, dizendo que ela e sua família era bem antigas na região e que ela poderia me indicar
alguém. Fui na sua casa e comecei a falar que estava estudando, contei um pouco sobre a
temática de forma bem livre, explicando que estava planejando fazer o trabalho na região; então
perguntei se ela conhecia alguém que o povo dizia “ter parte com índio”, e ela de cara disse que
tinha essa “parte com índio” e começou a falar das histórias de seu pai e de alguns parentes.
Afirmava que seu pai era “índio do nariz furado” e “pegue a dente de cachorro”, aspectos que
serão mais bem abordados a seguir. Continuei então falando sobre minha pretensão de estudar
tais processos na região, e Dona Helena me falou que ele havia nascido em Espraiado, mas que
há muito e também não sabia o porquê, teria sido criado por religiosos, e isso estava entre as
poucas coisas que sabia do pai. Descreve, ainda, a relação com a tia, que, segundo ela, também
era índia:
- Escalava2 calangos e colocava no sol para comer, eu era criança e achava aquilo uma
maldade e jogava fora, ela se danava dizia para minha mãe que eu era muito danada e
que não me queria mais brincando lá.
-E o que ela dizia para senhora quando a senhora fazia isso?
1
Nenhum nome mencionado nesse trabalho corresponde ao verdadeiro nome dos interlocutores.
2
O termo faz referência a uma forma de limpar as vísceras do peixe, em que este é aberto pelas costas. Desta
forma, as vísceras são retiradas, e o peixe, que foi completamente aberto, em grande parte dos casos é salgado e
posto para secar ao sol. É uma forma de conservação do pescado ainda comum entre os pescadores da região (Ver
ANEXO A).
17
-Ela dizia que eu negava as tradições e ainda dizia ‘tu também é índia como eu, é uma
índia preta’. E eu ficava gritando ‘sou não’, e ela se danava. (Diário de campo, 22 de
outubro de 2016)
Sem dúvidas, essa relação de ser ou de negar algo que parecia tão próximo, vindo
até da própria família, muito me intrigava; o que tornou essa primeira conversa, que de início
era apenas um intento de fazer algum trabalho sobre a temática, algo ainda mais recortado. Foi
a primeira vez que pensei em observar essa dinâmica dentro do contexto das famílias da região,
famílias que a história formal diz que não existiam, mas aparecem nesses relatos. Também me
chamou atenção o quanto a imagem dos parentes indígenas às vezes era ligada a aspectos da
região, e às vezes eram comparados aos indígenas da região Norte do país, com base do que via
na TV e em alguns momentos era aparentada como exotização. Dessa conversa, um fato que
chama atenção é que conversávamos em uma parte da casa em que a interlocutora tinha um tipo
de barzinho que servia peixes e mariscos e vendia bebidas alcoólicas para pescadores da região.
Havia outras pessoas próximas que ouviam a conversa, mas até então sem
interromper. Em um momento da conversa, alguém não resistiu e lançou a pergunta: “e a
senhora é índia também, não é não?!”. Depois de pensar alguns momentos, ela respondeu,
sorrindo: “talvez eu seja mesmo”. Nesse momento, percebi o quão amplo seria falar sobre as
pessoas que têm ascendência indígena, e que não por isso necessariamente são indígenas, que
não se encontram residindo em territórios aldeados, compreendem e veem esses processos e
narrativas.
No mesmo dia visitei ainda um senhor, seu Manoel, só que desta vez no período da
tarde. Cheguei até esse senhor através de um colega dos tempos de colégio, que era de uma
dessas localidades as quais eu pretendia estudar, e perguntei se ele não sabia de alguém que
tivesse algum parentesco indígena na região. Dias depois, ele disse que havia falado com
algumas pessoas de sua família, seu cunhado até afirmava que sabia que sua família era de
origem indígena, mas não queria falar pois “não sabia de nada” ou “quem sabia era sua mãe, e
esta já havia morrido” – foi essa a primeira vez que me deparei em campo com essas duas
expressões que se tornariam bem comuns em todo o decorrer do trabalho.
Disse, ainda, que havia lá uma senhora e seu irmão que as pessoas falavam que
eram índios; o homem em especial era conhecido na localidade por se dizer índio quando
bêbado, sendo que muitas vezes, quando sóbrio, negava qualquer proximidade indígena.
Ouvindo esse relato, decidi ir junto com meu colega conversar com essas pessoas. Tentamos
falar primeiro com a irmã, que era mais velha e se disse evangélica. Perguntei algumas coisas
sobre o passado e, quando entrei em assuntos ligados à temática indígena, ela meio que parou
18
de falar, disse que não poderia ajudar e que não lembrava de muitas coisas; falou, ainda, que o
irmão é que andava falando isso quando bebia, e que apesar de mais novo que ela, ele tinha
uma boa memória, diferentemente do que acontecia com ela.
Fomos então ao encontro do irmão, que de início se mostrou um pouco tímido à
pesquisa. Parecia meio envergonhado, mas a partir da metade da conversa já narrava sobre sua
infância em Almofala, onde nasceu e residiu até os 8 anos, falou dos índios mais velhos e seus
ensinamentos. Disse que não era mais “índio puro” como os de antigamente, que “nasciam com
o nariz furado”, e que o que tinha eram apenas as memórias de sua infância, as quais considerei
riquíssimas.
Ao ver meu interesse, ele parecia se esforçar para lembrar de mais histórias, por
isso a conversa levou horas. Em um certo momento, passou um outro senhor de bicicleta, que
ele chamou e me disse: “ó, ele aí também tem parte com índio, veio lá de Almofala também”.
O homem, quando escutou isso, olhou para mim e saiu, só disse que fazia muito tempo e não
lembrava de nada. Depois do homem, passaram as senhoras que estavam no jogo de bingo da
casa próxima, parecia que o jogo havia acabado, era final da tarde, e uma delas gritou: “esse aí
quando tá bêbado diz que é índio”; nesse momento, o homem, que não se dizia índio até então,
disse em voz alta: “ora mais, se eu sou, não sou índio puro, mas sou índio”.
embora não houvessem outros clientes, o interlocutor ficou pouco tempo depois de finalizado
seu corte de cabelo.
Sobre a entrevista realizada no salão, podemos dizer, ainda, que o interlocutor não
parecia desconfortável, pois, embora estivesse com pressa, narrava a história de sua família
como se estivesse falando com minha mãe, que já é sua cabeleireira há décadas.
Com Dona Rita, que por sinal foi casada com um dos tios do meu pai, a conversa
se deu de forma bem familiar, pois, embora tivéssemos pouco contato, a interlocutora me via
desde a infância. E mesmo que, como veremos a seguir, não tenha em muitos momentos se
sentindo confortável com termos como “parte com índio”, contava fatos e histórias de grande
intimidade, me cantando ainda várias canções de brincadeiras do tempo que ainda era uma
menina. Foi nessa entrevista que pude ouvir uma das frases mais marcantes da pesquisa, que
foi dita quando a entrevista estava quase finalizada; saímos de sua cozinha em direção à sala
onde se encontrava minha mãe conversando com os netos de Dona Rita, e esta disse: “a
Brisinha 3 perguntando o que eu fazia naquele tempo (sorri). Sabe o que eu fazia? Naquele
tempo a gente passava muito era fome”4.
A entrevista feita depois de eu ter visto uma postagem em uma rede social foi a com
Dona Julha, onde estavam presentes ela, a filha e meu pai; em um certo momento, a entrevista
se tornou quase um grupo focal, onde Dona Julha e a filha falavam bastante sobre a história de
sua família.
Dentro da sede de Acaraú, tive uma certa dificuldade de achar pessoas para
entrevistar, mas acabei tendo grande facilidade no que diz respeito à mobilidade: estava na casa
dos meus pais, pude realizar entrevistas a pé e estava sempre alerta para um possível interlocutor.
De fato, em questão de acesso e mobilidade, estando na sede da cidade era tudo bem mais
simples.
2.2.3 Espraiado
De todos os lugares onde fui, Espraiado foi onde realmente tive uma experiência
mais diferente em relação às demais. Trata-se de uma localidade menor, mais distante da sede
e com uma população onde todos se conhecem, e me indicavam facilmente com quem falar.
Era muito comum, inclusive, entre os moradores do lugar, conhecer em detalhes todos os
3
Forma pela qual sou chamada por quem me conhece desde a infância.
4
Entrevista com Dona Rita, em agosto de 2017.
20
parentes de outras pessoas que também residiam na localidade, o que facilitou bastante nos
momentos em que me davam indicações de entrevistas ou de lugares onde ir.
Desta vez havia uma distância maior da sede (aproximadamente 20,5 km) em
relação aos outros lugares onde a pesquisa foi construída. A população vai até o Centro de
Acaraú geralmente através de carros conhecidos como paus-de-arara, que saem de lá por volta
de 6 ou 7 horas da manhã, retornando antes de meio-dia, dando tempo apenas para que eles
realizem compras ou resolvam alguma pendência em bancos ou em algum outro equipamento
público. Desta forma, parada a realização do trabalho, não seria possível, uma vez que não
contava com um meio de transporte próprio e dependeria desse “transporte coletivo”, ir e vir
no mesmo dia de Acaraú até Espraiado. Se quisesse mesmo ir em Espraiado realizar a pesquisa,
teria que ficar lá no mínimo por um dia.
Dada a dificuldade do transporte, apareceu uma segunda: onde ficaria hospedada?
Na localidade, embora existam praias e braços de rio exuberantes, não há movimentação
turística quase nenhuma, e, portanto, nenhum equipamento para receber visitantes. No mapa
turístico do litoral de Acaraú elaborado pela prefeitura local, Espraiado aparece, inclusive,
como praia paradisíaca (ver anexos B e C).
Tive então que procurar a casa de uma família que me abrigasse enquanto estivesse
realizando a pesquisa. E foi o que fiz, com a grande ajuda de minha mãe, que como cabeleireira
indicou uma de suas clientes que era de lá, mas que residia atualmente na sede do município,
mesmo seus pais continuando residindo em Espraiado. Fui então em busca dessa família e
felizmente fui bem-sucedida, podendo assim fazer entrevistas e trabalhar em minha pesquisa,
passando alguns dias lá.
A filha com quem eu falei entrou em contato com sua mãe, Dona Maria, por telefone
fixo, pois na localidade ainda não tem área de celular, salvo em alguns trechos muito específicos,
como na calçada da igreja, onde é preciso ficar procurando algum rastro de sinal. Só bem
recentemente as pessoas de Espraiado passaram a utilizar linhas de telefone fixo e, mais
recentemente, ainda a internet para se comunicarem. Depois do contato da filha e através dela,
marcamos de nos encontrar no ponto do centro de Acaraú, de onde saem os carros de lotação,
e seguimos em direção a Espraiado.
Logo no carro as pessoas pareciam notar minha presença, e quando desci tive já
nesse momento que responder a algumas perguntas sobre o que eu ia fazer ali, de onde eu era
etc. O que mais me chamou atenção foi o extremo interesse das pessoas em me ajudar. Logo
que descemos do carro, o motorista disse “não é bom você andar sozinha, pode se perder nessas
21
trilhas no mato ou no mangue”. Olhou para Dona Maria, que me receberia, e disse: “era bom
uma mocinha esperta para andar com ela, vou mandar a minha sobrinha Paula”.
E foi assim que conheci alguém fundamental para essa parte da pesquisa, uma
menina muito esperta e conhecida na região por conhecer tudo e todos em Espraiado. Poucas
horas depois que eu havia chegado, lá estava ela no portão, animada para começar a me guiar
nas redondezas.
Paula tem doze anos e gosta bastante de andar na localidade. Atualmente sua mãe
não gosta muito que ela saia, então, segundo suas próprias palavras, minha pesquisa era um
bom motivo para que pudesse perambular. Mesmo assim, eu tentava sempre fazer com que ela
se sentisse bem, pois as entrevistas às vezes eram demoradas e o conteúdo delas nem sempre
parecia interessante para a minha acompanhante, que em muitos momentos aparentava estar
meio impaciente quando as entrevistas começavam a demorar.
Pedi então para pagar pelos serviços, o que não foi aceito nem por sua família, nem
por ela e nem mesmo por Dona Maria. Sempre tentava tornar nossas longas caminhadas no sol
o mais interessantes possíveis. A todo momento conversávamos, eu sempre comprava doces na
tentativa de construirmos uma relação de amizade, que foi, inclusive, bem-sucedida. Mas
mesmo assim, no final dessa etapa da pesquisa me dispus a insistir que ela aceitasse uma
pequena ajuda de custo, pois sua família era bem humilde e naqueles dias ela deixaria de ir a
um passeio da escola por falta de recursos.
O acompanhamento de Paula foi fundamental para que eu chegasse aos locais e às
pessoas, e tivesse dias extremamente produtivos em Espraiado. Ela, Dona Maria e Seu José
(esposo de Dona Maria), a todo momento indicavam pessoas e lugares para ir, além de eles
próprios terem me dado diversas sacadas importantíssimas para a execução do trabalho e para
pensar como se davam e se dão as relações na localidade.
Ainda falando sobre o quanto todos da comunidade se conhecem e o quanto o
aparecimento de alguém estranho realmente traz uma série de perguntas, era bem comum as
pessoas irem à casa de Dona Maria, principalmente nos horários em que eu estava no campo,
perguntar quem eu era e o que estava fazendo lá, tamanha a curiosidade que era provocada.
Muitas vezes, ainda, chegava alguém na casa de Dona Maria para resolver algo com ela ou com
seu José, e quando a pessoa perguntava quem eu era, Dona Maria mentia dizendo que eu era
sua neta recém-chegada de São Paulo. Às vezes ela voltava atrás e desmentia, às vezes ela
apenas continuava falando, o que me deixava sem jeito e sem saber como reagir, uma vez que
era do meu interesse que as pessoas soubessem de fato quem eu era e minhas intenções de
trabalho na comunidade.
22
Algo que não pode deixar de ser mencionado é um fator que eu não esperava que
me ajudasse tanto em campo, que é a minha família. Sempre soube que havia pessoas da família
de minha avó paterna que residiam em Espraiado, mas nunca tive contato com esses parentes.
Meu pai mesmo só ia com frequência lá em parte de sua infância, e depois disso foi raras vezes.
Como já foi bem esclarecido, trata-se de uma localidade pequena, onde senti, apesar de uma
imensa receptividade no campo, certa desconfiança, principalmente por parte dos mais velhos,
que era com quem eu trataria na maior parte do trabalho. Assim, logo que chegava e me
apresentava dizendo que era de Acaraú, mas que atualmente morava em Fortaleza e estava
fazendo meu trabalho da faculdade, explicando do que trataria o trabalho, quase que
automaticamente recebia de volta uma pergunta, e isso aconteceu em quase todas as entrevistas
em Espraiado: “tu é fia de quem?”.
Então explicava que minha avó havia nascido lá, falava os nomes dos meus bisavós,
e imediatamente eu me tornava uma conhecida, muitas vezes indicada até com um “ainda somos
parentes distantes” e uma redução das desconfianças. E logo havia uma conversa e um empenho
ainda maior em me ajudar. Em muitos momentos tiravam água de coco para mim e me
ofereciam todo tipo de comida possível. Acabei descobrindo mais sobre minha família e sobre
mim, mesmo não tendo encontrado nenhum relato de que algum desses parentes tinha a “parte
com índio” que eu procurava. Acabei compreendendo diversos processos pelos quais passou a
comunidade através dessas narrativas que falavam das famílias de lá, inclusive da minha.
Foram-me confiadas, além de narrativas que muitas vezes eram extremamente
pessoais e em alguns casos até dolorosas, a história de famílias e o encontro com objetos
preciosos para muitos interlocutores. Como é o caso dos cadernos da “Mestre”, como é
conhecida na região, que seriam verdadeiras enciclopédias sobre o dia a dia de Espraiado,
escritos no século passado. Produção que, segundo sua bisneta, foi entregue ao museu do
Itarema e que pode falar bastante sobre as relações de Espraiado na época. Nesses cadernos era
anotado tudo o que ocorria na localidade, desde brigas e discussões até datas de mortes e
nascimentos.
Pude ver, ainda, um dos cadernos de oração de tal figura (ver anexos D, E e F), que
ainda hoje permanece viva na memória de muitos habitantes da localidade, sobretudo por seu
hábito de anotar tudo, costume reproduzido até hoje por sua neta, Lúcia, que guarda os cadernos
com extremo cuidado e zelo e diz saber de cor todas as datas de aniversário e placas de motos
e carros das pessoas que residem na comunidade.
23
Como o título acima sugere, neste tópico falaremos um pouco sobre “memória” e
da importância de compreender sobre a temática que ela envolve para o desenvolvimento desta
pesquisa, discutindo principalmente sua relação com o processo de formação de identidades.
Para isso, serão utilizados alguns trabalhos que se propõem a discutir a questão da memória e
oralidade, e a importância destes nesse processo.
Assim, um dos pensadores utilizados é Jacques Le Goff (2003), que compreende e
conceitua a memória, de uma forma bem resumida, como uma “[...] propriedade de conservar
certas informações, remete-nos um primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças
as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele represente
como passadas”, para nós, interessa bastante essa mencionada capacidade de atualizar e
repensar informações passadas. Assim, podemos perceber que se trata de um conceito
interessante para a pesquisa, uma vez que estamos falando de como um indivíduo ou um grupo
se veem e são vistos, além de podermos pensar como essa memória é importante para que os
indivíduos pensem suas realidades através de suas lembranças. Mais adiante, o autor acrescenta
sobre o quão a memória é um fator importante dentro de todas as sociedades, sobretudo para as
que não têm domínio da escrita, considerando que a falta de escrita causa diferenciação entre
culturas. (LE GOFF, 2003).
25
Não esqueçamos, portanto, que a escrita também pode ser vista como um modo de
rememorar, e que em diversos espaços da sociedade esse tipo de memória é vista como
“superior” ou “mais certa” diante da que se expressa através da oralidade, sendo, portanto,
utilizada muitas vezes como instrumento de poder ou forma de dominação. Tem-se um grande
exemplo disso com a situação de uma comunidade indígena da região, a comunidade de
Almofala, que há bastante tempo luta pela demarcação de suas terras e tem esse processo
dificultado por conta, principalmente, da empresa DuCoco S/A, que aproximadamente desde
1970 se instalou na região, afirmando, desde essa época, possuir documentos que comprovam
posse das terras onde estão localizadas parte de suas plantações; porém, a memória das famílias
da região, aliada a algumas outras evidências históricas, comprovam a posse das terras às
famílias Tremembé, que já bem antes habitavam a região (VALLE, 2004).
Mesmo com a longa tradição de se observar a forma escrita como mais “correta”
ou à prova de falhas, Pollak (2012) vê ambas as formas de memória, tanto a oral quanto a escrita,
com pesos iguais de importância, principalmente quando vistas como instrumentos de análise
histórica, refutando a crença de uma suposta “mais fácil manipulação das informações contidas
na escrita”. O autor esclarece que tanto a memória transmitida pela oralidade quanto a memória
escrita podem ser construídas ou modificadas, ou seja, nenhuma das duas fontes teria algum
peso maior, ou caráter não adulterável; mesmo que a afirmação em um primeiro momento
pareça um tanto quanto dedutível, é importante salientar que, dentro da tradição em que somos
socializados, que valoriza de forma exagerada a escrita e descredibiliza a oralidade, esses são
aspectos que devem ser sempre mencionados.
Podemos, portanto, retornar a Le Goff (2003) quando ele diz que a “memória é um
elemento essencial do que se costuma chamar identidade”, e que essa identidade pode se dar
tanto no aspecto individual quanto no coletivo. Destacando, ainda, que esse último tipo, em
contrapartida com o que já foi dito, pode ser utilizado também como um instrumento de poder,
principalmente em comunidades menores e com pouco domínio da cultura escrita, quando
coloca que:
Muito possivelmente seja esse um dos aspectos que permeiam a luta de diversas
comunidades, onde se tem a memória como ferramenta para lutar por seus direitos e melhoria
26
de vida, e até mesmo de posses que lhes foram tolhidas por algum acontecimento passado.
Podemos voltar ao caso que há pouco foi utilizado como exemplo, que fala sobre a questão dos
Tremembé de Almofala e a empresa DuCoco S/A. Certamente questões de conflitos similares
ao mencionado são bem comuns e parecem ter se repetido na própria região com outras
roupagens, em maior ou menor escala. Algo parecido foi mencionado por um dos interlocutores
dessa pesquisa, seu Geraldo, de 94 anos, morador de Espraiado, falando sobre a construção de
sua casa:
Essa terra aqui era liberta né, todo mundo que chegava fazia uma casa, hoje tá mais
assim por que...você sabe como é né? Mas de primeiro, eu fiz essa casa aqui em cima
dum morro maior que essa casa. Espanei a areia todinha, nunca ninguém disse nada.
Mas hoje, se o camarada vai cavar um buraco num pedaço de terra, sempre chegar um
e diz ‘rapaz num cava isso aí não que é meu’. (Geraldo, Espriado. Agosto/2017)5
O que seu Geraldo descreve é sobre quando ainda havia “terras livres” na região, o
que ainda era comum e vigente mesmo na época em que se casou (há aproximadamente 70
anos), afirmando que construiu a casa em um lugar onde a terra ainda não tinha proprietário;
mais adiante, ele e a esposa descrevem a chegada de uma família que, no passado, se alojou em
um local hoje conhecido com Papagaio e tomou posse de uma extensa quantidade de terras, e
que depois disso fez-se necessária a compra ou a autorização prévia para que se construísse na
área, onde já havia muitas famílias. O tempo descrito por seu Geraldo é um tempo onde não
existia na área o registro escrito e documentação das terras, ou, pelo menos, para que uma terra
fosse considerada sua era necessário apenas que você dissesse ou construísse nela.
Assim como foi dado a entender, e já pincelado na metodologia deste trabalho,
grande parte dos interlocutores sobre os quais trata esse trabalho são pessoas acima dos 60 anos
de idade, que foram apontados em grande parte dos casos como “alguém que entende da região
ou tem parte com índio”, pelos próprios membros da comunidade onde moram.
É importante ressaltar ainda o aspecto da escolaridade dessa população, que em
quase todos os casos não concluiu sequer as séries iniciais, o chamado o Ensino Fundamental
I, mesmo tendo consciência de que, na atualidade, os índices de analfabetismo tenham se
reduzido muito. No Brasil, em 1960, segundo dados do IBGE, o analfabetismo era de 39,7%,
tendo regredido a 8% em 2015. Infelizmente o analfabetismo ainda é muito presente na cidade
de Acaraú, sendo sua taxa a de 18,78% – um valor ainda bem distante do ideal.
É preciso refletir que, apesar dos discursos políticos, o analfabetismo ainda é
comum em muitas regiões do país, no caso dos locais onde se desenvolveram a pesquisa; ao
5
Entrevista com Seu Geraldo em Espraiado, no mês de agosto de 2017.
27
passo que existe toda uma nova geração que tem mais acesso à escola, ainda há uma larga
parcela da população que ficou de fora disso.
Estes fatores, assim como fora pincelado, faziam com que alguns interlocutores, em
momento inicial, inclusive se negassem a falar, sobretudo quando era feita a apresentação de
alguém que vinha de uma universidade, que se localizava em uma capital e queria saber algumas
informações sobre eles. O que ocorria, segundo Dona Maria, porque “eles tinham medo que tu
mandasse eles escrever”, o que precisou ser trabalhado no campo, principalmente no que diz
respeito à abordagem e introdução das perguntas.
A partir daí, Connerton (1999) nos alerta sobre a importância do ato de memorar
para a construção das identidades, quando diz que “[...] memorar também é refletir sobre si
mesmo”. O que está presente, em casos relatados anteriormente nesse trabalho, sobretudo
quando pessoas narravam sobre as histórias de sua vida e de seus familiares e relembravam
vários fatos em um mesmo momento. Como o caso de Dona Helena, que no meio da entrevista,
quando já havia falado bastante sobre sua história e a de sua família, foi questionada se seria
uma índia, e, a partir dessa discussão e de relembrar toda sua história, falou que talvez seria,
sim (Caderno de Campo, Praia de Arpoeiras, Outubro de 2016). Muito provavelmente ela já
pensou na possibilidade de se identificar dessa forma em outros momentos, porém neste ela
havia unido todo um conjunto de fatos sobre sua vida, enquanto mencionava aspectos que a
ligariam a raízes indígenas.
Há, também, o interlocutor que só afirmou a possibilidade de ser índio sóbrio,
quando foi confrontado depois de narrar a trajetória de sua família na região e suas memórias
de infância. Nesse caso, também podemos tentar interpretar os discursos dos dois interlocutores
sob o que diz Pollak (2012), quando fala dos processos de construção identitários, analisando
que estes também dependem da aceitabilidade dos outros, compondo o que ele chama de
sentimento identitário, que seria algo além de uma imagem que o indivíduo constrói sobre ele
próprio e apresenta aos outros e a si, mas algo que fala sobre como esse indivíduo quer ser
percebido pelos outros. O autor diz ainda que:
A partir dos temas levantados dentro dessa discussão, podemos tentar entender que,
dentro de uma região onde houve diversos conflitos entre índios e demais povoadores, se
28
reconhecer como indígena nem sempre pode ser algo “muito bem visto” pelo restante da
população, mesmo entre as comunidades com grande número de integrantes que se reconhecem
índios; por exemplo, é muito comum o testemunho de que por um longo tempo essas
comunidades tiveram que esconder suas identidades ou mesmo negá-las, muitas vezes até para
sua própria proteção.
Janaína Fernandes (2013), em uma monografia realizada na região, trata mais
precisamente sobre essa realidade dentro do povo Tremembé:
Narrativas orais contam muito sobre o tempo em que os Tremembé viviam com medo,
sendo incapazes de assumir sua etnicidade. Tudo isso em razão dos conflitos pela terra,
sendo que carregar a identidade de indígena era algo extremamente perigoso.
(FERNANDES, 2013, p. 61)
de informações e lembranças que até então eram avaliadas como algo sem importância pelos
próprios membros do grupo.
O depoimento do líder comunitário Djalma recolhido no trabalho de Santos (2003)
até se assemelha bastante com o dos interlocutores mencionados mais acima, pois o líder só
fala sobre as origens da comunidade quando se vê em uma situação bastante complicada,
sobretudo quando seu povo é ameaçado de perda do território.
É importante que se esclareça que o objetivo desse trabalho não é apontar o
“surgimento” de uma nova comunidade, ou falar sobre “índios que não querem ser índios”, o
que se intenciona aqui é simplesmente mostrar que, em relação à identidade indígena, existe
uma série de variantes e modos de representar que podem ser percebidos através dessas
memórias e identidades.
culturas serem descritas pelo que foram. Poucos falam de fato sobre o que elas vêm sendo
atualmente, tornando-se difícil comparar as culturas estudadas com um foco muito grande em
seu passado. Portanto, o esforço aqui é centrado no presente dessas populações, embora como
já tenha sido bastante discutido, para compreender esse presente tenha que se acessar às
memórias passadas, sejam elas de cunho individual ou coletivo.
Não faz parte do intento inicial da pesquisa seguir os caminhos dessas
descendências indígenas em busca de troncos velhos ou mesmo buscar apontar qual
comunidade teria mais pessoas com ascendência, ou até mesmo se alguma dessas poderia
almejar reconhecimento indígena. Na realidade, pretende-se que pessoas das comunidades
visitadas, bem como da região, tenham acesso a esse trabalho e que façam dele o uso que
desejarem.
A priori, o objetivo é apenas fornecer reflexões iniciais através das memórias, as
quais nos possam fazer pensar sobre a atualidade dos interlocutores, que aspectos os fazem
pensar, perceber essas realidades e como essa “parte indígena” é vista por eles.
Dentro de toda a discussão que as questões ligadas à indianidade provocam,
sobretudo quando é apontada qualquer que seja a comunidade indígena, certamente os que estão
em áreas onde o contato com o branco se deu há maior tempo são os que têm mais suas
identidades indígenas questionadas, não só por parte do poder público, mas muitas vezes
também pela população em geral.
Diferentemente da realidade que se encontra no Norte do país, por exemplo, temos
aqui comunidades indígenas que já têm comportamentos e costumes muito próximos ao do
restante da população nacional, além de, na maioria das vezes, não haver mais características
físicas aparentes. Santos (2003) também ressalta isso entre os Caxixós, falando de uma
dificuldade imensa de se perceber sinais diacríticos naquela população, o que provocava
inúmeras dúvidas tanto por parte da própria população quanto do poder público, e até mesmo
sob o olhar de alguns pesquisadores.
A imagem do índio do Norte, comparada a comunidades que tiveram contato mais
antigo com o branco, não é comum só para os que veem essas comunidades de fora, como será
mais bem abordado a seguir; através destes e de diversos outros conceitos, acaba-se por
construir uma imagem do índio de antigamente – ou índio do Norte – como o “índio puro”, e,
no caso desta pesquisa, tais comparações são tecidas muitas vezes pelos próprios interlocutores,
estes se considerando índios ou não.
É necessário percebemos o quanto a memória em contato com o externo e o “outro”
provocam diversas formas de se analisar a mesma situação; seja dentro das comunidades que
31
se consideram indígenas, seja nos arredores onde se realiza a pesquisa, há diferentes imagens
sobre o índio.
Os interlocutores pensam suas próprias identidades através de vários critérios. Dona
Helena, por exemplo, quando fala do que torna o pai indígena, assimila a imagem do índio do
Norte que conheceu na TV: “Eu imagino que eles era assim como passa na TV, eles andavam
nu coberto de pena” (informação verbal)6.
No capítulo seguinte, discutiremos de forma mais aprofundada essas várias
representações do índio, tanto para quem vê de fora quanto de dentro dos próprios grupos, e as
relações dessas tantas interpretações com a construção da identidade de muitas pessoas.
6
Entrevista realizada com Dona Helena em 22 de outubro de 2016.
32
Os próprios grupos ou até indivíduos criam sua própria forma de pensar o que vem
a ser essa “mistura” e como ela é reelaborada e pensada dentro desses grupos, podendo servir,
como no exemplo citado, para caracterizar algum membro da comunidade ou se caracterizar,
pois como foi abordado no capítulo anterior, as identidades seriam formadas também em
decorrência de processos exteriores aos indivíduos, ou seja, a forma com que o indivíduo se vê
e se reconhece também é influenciada pela forma como ele é visto.
A influência externa se faz tão importante dentro desses processos que, entre os
Tremembé, por exemplo, onde muitos membros da comunidade reconheciam a ascendência
indígena e mesmo suas histórias, mas só passaram a se dizer convictamente indígenas depois
que a prática missionária se fez presente (a partir do ano de 1986), reconhecendo sinais
diacríticos e realizando diversos trabalhos que intencionavam a valorização desse lado de suas
histórias (VALLE, 2004).
A partir do que foi discutido até aqui, é possível perceber que essa ideia de “mistura”
está intimamente ligada com o termo “parte com índio”, cujo significado também já foi
abordado em um momento anterior e nos remete a uma parcela ou “pedaço”, ou seja, a uma
“fração indígena” na composição do indivíduo em questão.
Dentro do campo realizado na execução desse trabalho, foi bem comum encontrar
referências tanto à “mistura” quanto à “parte com índio”, como nos trechos a seguir, frutos de
anotações do caderno de campo, derivados de uma conversa informal com Seu Manoel, diálogo
já mencionado aqui em alguns momentos. Quando conversávamos sobre sua parte com índio,
o interlocutor elaborou as seguintes questões:
Ele afirmou ter sessenta e cinco anos, e disse que haviam apenas narrativas de quando
ainda era muito jovem, então insisti um pouco mais para que ele dividisse comigo
essas lembranças, ressaltando que eram coisas pequenas que eu procurava. Então ele
começou falando que não era índio de sangue puro, era misturado e que o índio de
sangue puro nascia de nariz furado […] Ele disse que também se lembrava de poucas
coisas, mas que algumas tinha ouvido de um índio de sangue puro quando ainda era
bem pequeno (disse que cerca de seis a oito anos), ele descreve esse índio como um
homem já bem velho, de nariz e sobrancelhas furadas, onde ele às vezes colocava
penas, e orelhas com buracos bem grandes onde ele colocava itãns (como os
moradores chamam um tipo de molusco bivalve, aqui a referência seria a concha
deixada por esse molusco; o tamanho de uma itã é algo em torno de uma ou duas
polegadas, o que resultaria em alargadores de um tamanho razoável [ver ANEXO G]),
continuou falando que esse senhor costumava contar histórias às crianças de Almofala,
e que dizia que ‘Tremembé era uma raça boa e de sangue bom, e que quem não
prestava eram os Tapuía’; ele dizia que quando um Tremembé ficava doente, eles se
desbandavam na mata atrás de remédios, para fazer chá, essas coisas; mas já os
Tapuías, eles chamavam o doente, diziam que iam catar (se referindo a prática de tirar
piolhos), e matavam com um golpe no pescoço (descreveu isso fazendo o gesto que
apontava para a lateral do seu pescoço). (Diário de campo, 22 de outubro de 2016)
34
Pode-se atribuir essa questão dos Tapuia levantada por Seu Manoel ao fato de os
Tremembé de Almofala terem vivido em um aldeamento religioso por um longo período de
tempo, e que, assim, tenha se difundido essa diferenciação entre os Tapuia e os “índios de
verdade”, ou “índios do sangue bom”, termo que, na fala de seu Manoel, parecia remeter ao
aspecto de pureza sanguínea, através dos próprios religiosos que permaneceram na região
durante o período de aldeamento.
35
Essa diferenciação entre “índios bons” e “índios maus” já tinha seus motivos bem
definidos, sobretudo do ponto de vista da ação colonial, que, através da utilização e
disseminação de ideias como essas, mantinha uma diferenciação entre os índios que eram
aliados e os que iam contra o seu regime.
Tendo terminado o parêntese, que serviu para mostrar um pouco sobre o cenário do
qual podem ter derivado diversas questões atuais à ideia que seu Manoel, enquanto alguém que
vê em si uma parte com índio, tem sobre “pureza” e “mistura”, e até mesmo quem é
“verdadeiramente índio” e quem era “Tapuia”. Acaba-se falando também sobre o quanto essa
gama de fatores incide na maneira como Seu Manoel e os outros interlocutores se reconhecem
e seus conceitos sobre “ser indígena”.
Vale ser dito que, até esse momento da conversa com Seu Manoel, ele falava e se
identificava como “alguém que tinha ascendência indígena, mas não era índio”, ou “um índio
que não era puro”, por não ter, segundo ele, os sinais diacríticos que foram apontados como
características de um índio legítimo. Na visão do interlocutor, para que ele fosse índio de fato,
precisaria nascer com furos em lugares específicos, onde penduraria ornamentos, e ser ligado à
etnia Tremembé.
É importante fazer a ressalva de que Seu Manoel traz uma narrativa de cerca de 60
anos atrás, muito anterior ao fortalecimento do movimento indígena, que, sobretudo entre os
Tremembé, só vem se intensificar na década de 1980 (MESSEDER, 1995), período em que Seu
Manual já residia em Curral Velho junto com sua família. Só a partir dessa década há um
36
contexto no Ceará em que muitas comunidades indígenas passaram a se reunir em favor de suas
causas e pautas comuns, como o caso da demarcação de suas terras.
Ela me olhou com um sorriso e disse ‘eu mesma, meu pai era índio pegue a dente de
cachorro, era índio de nariz furado, porque eu não sei se você sabe, mas o índio de
sangue puro já nasce com o nariz furado’, e eu perguntei de onde ele era, onde ele
nasceu, e ela disse que foi no Espraiado e que quando o pai dele (seu avô) faleceu, ele
foi criado por religiosos na região. (Diário de Campo, 22 de outubro de 2016)
O termo “pegue a dente de cachorro” parece comum na região e dentro de todo o
Nordeste, e, em muitos momentos, parece ter um certo sentido de “atestado de indianidade”,
trazendo, também, em alguns momentos, a ideia de “selvageria” do parente, a fim de muitas
vezes retratá-lo como um índio puro de fato, pois seria inclusive “brabo”. Dona Helena disse
não saber mais sobre os motivos de o pai ter sido criado por religiosos e nem mesmo mais sobre
a família paterna; do pai trazia apenas essas narrativas, afirmando sempre não ter tido tanta
proximidade com ele.
A questão do ser “pegue a dente de cachorro” não é nada difícil de ser ouvida na
região. Na maioria das vezes, apontaram para a avó como a figura da família que “foi pegue ou
pegada a dente de cachorro” para se casar de forma forçada com um branco. Sobre esse cenário,
podemos trazer o trabalho de Cavignac (2005) quando esta diz que:
O destino das caboclas capturadas era, na grande maioria das vezes, o de servir de
esposa ou concubina para os colonizadores. Pegas a dente de cachorro e casco de
cavalo, como narram os depoimentos de seus descendentes, acabaram domesticadas
e mantendo relacionamentos com os brancos (CAVIGNAC, 2005, p. 155).
parecia ser uma prática comum do colonizador em relação a mulheres, e até mesmo meninas
indígenas nesse período.
Em uma entrevista, Dona Julha afirma que sua bisavó teria vindo com a família de
uma Serra, segundo ela, a de Uruburetama em um tempo de seca, e teriam se instalado em
Espraiado. Em seguida, a avó teria se casado com um português – a interlocutora, apesar de não
narrar que a bisavó foi raptada e sim dada pela mãe ao futuro esposo, em sua narrativa há uma
informação bastante interessante, que é quando a interlocutora de 95 anos diz que, segundo lhe
contavam, a quase totalidade da tripulação, dos navios que desembarcavam na região, era
composta por homens. O que também pode ser comparado a aspectos levantados na pesquisa
de Cavignac (2005), sobretudo quando esta diz que:
Minha prática como pesquisador ali foi sempre desconhecida ou, ao menos, não
implicava curiosidade maior. Enfim, não explicitava meu interesse de pesquisa pelos
Tremembé. Logo no primeiro dia de estadia, passei pela agência da Teleceará onde se
encontravam dois homens conversando com a telefonista. A moça perguntou o nome
de um deles e, quando ele respondeu, riu e disse que achava ‘estranho’. O homem
falou com tom animado que era ‘nome de índio’ e que ‘sua avó tinha sido pegada a
dente de cachorro e que tinha conseguido fugir correndo dali até a Bahia’. (VALLE,
2004, p. 312)
Não sabemos claramente se os homens que Valle (2004) ouvia conversando eram
da região, ou mesmo se a família do que afirmou ter uma avó de origem indígena teria relação
direta com a comunidade Tremembé ou com algum outro grupo próximo. O próprio pesquisador,
ao narrar a experiência, afirma que não foi possível detectar isso apenas pelo que foi ouvido,
muito embora tenha percebido que, no desenrolar da conversa, a comunidade de Almofala tenha
sido mencionada. Mesmo a conversa não tendo se realizado em forma de pesquisa, onde o
pesquisador pudesse ouvir tudo e realizar perguntas mais específicas, fornece base para que
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pensemos, assim como o autor relata em outros trechos, o quão é comum ouvir esse tipo de fala
na região, mesmo que a ligação mais próxima ou a admissão de alguma indianidade, em muitos
momentos, seja negada por parte dessas populações.
Como já foi mencionado, a vulgata do parente “pegue a dente de cachorro” não é
algo característico apenas da região, mas de diversos, parecendo ser presente em vários lugares
do país que passaram por situações semelhantes, do ponto de vista do contato entre indígenas e
brancos. Quando realizava uma pesquisa entre os Caxixó, comunidade indígena localizada no
interior de Minas Gerais, Fernandes (2013) menciona diversos casos que chama de “rapto de
mulheres”, que, na descrição de seus interlocutores, se assemelhavam bastante à vulgata comum
no Nordeste.
Em outra ocasião, quando realizava o trabalho de uma das disciplinas da graduação
que envolvia aplicação de um questionário, onde é comum que haja uma pergunta sobre como
quem está respondendo ao questionário se identifica etnicamente, deparei-me com uma senhora
que afirmou, em um primeiro momento, não saber responder à pergunta. Pois, embora estivesse
residindo em Fortaleza, era de uma cidade do interior, e mencionou sua parte branca e uma avó
índia “pegue a dente de cachorro”. Sem dúvidas, e apesar do diálogo ter acontecido em um
período anterior à pesquisa (no primeiro semestre de 2016), também podemos tratá-la como
algo interessante de ser mencionado aqui.
Dentro do mesmo assunto, é interessante observamos mais alguns contextos
abordados por Valle (2004) que nos trazem mais algumas reflexões sobre a vulgata. Entre os
Tremembé, ele percebe que:
Eram poucos os Tremembé que não contavam algum relato sobre uma antepassada
que fora pegada a dente de cachorro e amansada. Detalhes ou minúcias narrativas,
como dela ter precisado furar as ventas, por que era furiosa, eram comuns, anunciando
também a passagem de um universo selvagem para outro ‘domesticado’. Essa bisavó
ou tataravó estabelecia o vínculo de um tempo considerado como antigo, no
antigamente, de índios brabos da mata, com seus parentes que viviam nos dias de hoje.
O vínculo era personalizado pelo parentesco, não admitindo qualquer refutação. Se a
avó ou a bisavó eram índias brabas, a origem étnica estaria garantida para seu
descendente: ‘eu tô dizendo. A avó da minha mãe era (índia). Foi pegada a dente de
cachorro no mato, tão índia era. Ela era índia pura, pura, que pegaram ela no mato a
dente de cachorro’. (VALLE, 2004, p. 317-318)
Além de aprofundar mais o que pode vir a ser o sentido por trás da vulgata do
“parente pegue a dente de cachorro”, que parece se remeter na maioria das vezes a um
antepassado do gênero feminino e a forma como foi “caçada”. No trabalho de Valle (2004)
ainda é descrito o processo de amansamento desse indivíduo, que envolvia torturas físicas e
humilhações, tornando quem passaria por esse processo mais “dócil” ou “manso”.
Tais relatos, quando contados pelos interlocutores, muitas vezes são abordados de
forma corriqueira ou até mesmo envoltas por um ar cômico. No entanto, quando se reflete sobre
as narrativas, percebemos que elas falam bastante sobre um contato entre povos que gera
episódios em que o indígena era tratado como animalesco ou objeto sexual. Portanto, o que
essas narrativas nos trazem vai bem além do sentido de se atestar a indianidade do parente
mencionado, mas acaba por narrar situações de extrema violência vivenciadas pelos índios,
sobretudo pelas mulheres.
Essa concepção acaba fazendo um forte contraponto a algumas das interpretações
defendidas por Freyre (2003), por exemplo, que acabam dando a entender que a mulher
indígena, pelo menos na maioria das vezes, teria consentido ou até mesmo se voluntariado para
a execução do projeto do povoamento brasileiro. Ver o que narram descendentes dessas
mulheres traz para a questão o que pode ter sido a versão delas ou parte de seus relatos, que
conseguiram chegar, através da oralidade, até os dias de hoje. A seguir, um trecho em que Freyre
(2003) fala sobre sua concepção do papel da mulher indígena dentro da fundação da sociedade
brasileira.
Desta forma, podemos pensar a partir do que fala Oliveira (2016), o qual nos diz
que, para entendermos de fato a diversidade étnica no Brasil, é necessário “[...] incorporar as
muitas histórias perdidas das famílias, afetos, adultos e crianças que atravessaram fronteiras
étnicas e mostram criticamente os limites da etnificação”, ou seja, para que compreendamos os
processos de grupos étnicos hoje, temos que nos atentar antes para as outras versões das
histórias, que não as oficiais.
Muito embora estejamos falando sobre como as pessoas se veem, se identificam ou
são identificadas em razão de suas “partes com índio” hoje, suas narrativas nos levam a um
passado que produz a necessidade de uma contextualização, que muitas vezes serve para basear
ou acrescentar às suas narrativas, desta forma, servindo para a construção de suas identidades
na atualidade. Para além desses processos de analisar a violência e o que esses relatos nos falam
sobre o passado, é através dessas narrativas que essas famílias elaboram e reelaboram suas
vivências e constroem suas identidades.
Não iria tão longe afirmando que necessariamente todos que apontam um
parentesco indígena ou tenham relatos semelhantes a esses, dentro da história da sua família,
possam automaticamente se considerar indígenas, mas parece importante perceber que esses
relatos podem contribuir de alguma forma para a construção da identidade de quem os carrega.
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Segundo Daniel, quando um indígena é chamado de índio, ele entra num grupo de
pessoas iguais entre si. Uma forma de apagar a identidade de cada um. Uma palavra
que acaba diminuindo o indígena. ‘Eu sou um indígena Munduruku, esse é meu povo
com três mil anos de história. É um povo completo e que resolve suas necessidades
de maneira própria. São 300 anos de contato com a sociedade brasileira e que acabou
se adaptando a isso. O povo Munduruku lutou muito para manter sua essência e
conseguiu. Somos 15 mil no Pará, três mil em Amazonas e 3mil no Mato Grosso do
Sul. Temos nossa língua, nossas danças e nossa espiritualidade. Cada povo é diferente
nisso, e por isso não se pode dizer que índio é tudo igual’. (COLONETTI, 2013)
Através do trecho mencionado acima, termo indígena parece preferível por não ser
tão generalizador como “o índio”, tendo em vista que o vocábulo índio apontava para os grupos
que já se encontravam não só no Brasil, mas em toda a América, antes da chegada europeia,
como estes sendo pertencentes a uma única “raça” ou grupo, daí a ideia de generalização
presente no termo; já quando se fala em indígena, o significado remete a uma série de grupos e
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sabem, mas raramente mencionam, ou até mesmo uma ofensa. Em uma ocasião, quando era
realizada a pesquisa de campo, foi escrito no diário de campo da pesquisa:
Em muitos momentos, pessoas abaixam o tom da voz para falar que ‘fulano tem parte
com índio’ ou que ‘já ouvi falar que haviam índios aqui’, algo meio que parece denotar
um medo, não só de se assumir em si alguma indianidade mas também apontar alguém
‘que seja’ ou ‘tenha parte’. Em vários momentos percebia quando as pessoas
indicavam algumas famílias, tentavam ao máximo evitar dizer diretamente, que
achavam que ali haviam ascendentes indígenas ou índios. As indicações sempre eram
feitas indiretamente. (Caderno de Campo, agosto de 2017)
Esses pensamentos não param apenas no caderno de campo da pesquisa, mas eram
mencionados de forma discreta em certos momentos, e em outros de forma bem literal.
Podemos pensar essa esquiva também nos remetendo à famosa frase dita pelo Pajé Luiz
Caboclo, que já foi ouvida em uma aula de campo durante a graduação (27/05/2017) e também
esteve presente em alguns outros trabalhos que tratam sobre a etnia: “[...] o povo Tremembé
teve um tempo que para viver teve que se calar, hoje para viver tem que falar” (ARAÚJO, 2015;
FERNANDES, 2013), que fala justamente dos processos de perseguições pelos quais os
Tremembés passaram, nos quais tinham que esconder suas identidades na intenção de conseguir
empregos e até mesmo zelar por suas vidas. É interessante falar sobre esse aspecto entre os
Tremembé, pois essa é a etnia até hoje presente na região.
Dessa forma, pode-se deduzir que esse receio nas narrativas pode ser em
decorrência desses processos ou até mesmo em razão de já se considerar indianidade como algo
negativo e estigmatizado na região (GOFFMAN, 1988), o que sem dúvidas é uma ideia que foi
bastante implantada pelo colonizador no país.
Para trazer uma ilustração para o que está sendo dito, trazemos a seguir a transcrição
de uma conversa realizada com seu Antônio, senhor que tinha 94 anos, onde em um
determinado momento da conversa faço os seguintes questionamentos:
Brisa: Mas o senhor já ouviu falar que tem alguém aqui que tem parte com índio, ou
desse pessoal que o povo diz que tem mistura com índio?
Seu Antônio: não conheço mistura deles não... (para um pouco e continua), mas ter
tem, tem cabôco bruto aí que a brutalidade passa dos limites.
Brisa: Aqui mesmo no Espraiado tem gente assim?
Seu Antônio: Tem... (nesse momento seu Antônio sussurra e não pude ouvir o que ele
estava falando, apesar da proximidade espacial que havia).
Brisa: Como? Desculpe, não entendi.
Seu Antônio: Mas eles não querem não (continua falando em forma de sussurro, só
que dessa vez um pouco mais alto).
(nesse momento a esposa chega, eu me apresento e tento continuar)
Brisa: Mas aí… O senhor tava me dizendo que esse pessoal que tem parte com índio
não quer ter... é isso mesmo?
Seu Antônio: Querem nada.
45
7
Essa frase está no sentido de dizer que “não é nada demais ser índio”.
8
Entrevista com Seu Antônio em agosto de 2017.
46
ele traz de forma bem clara essa segunda visão, quando indagado de onde vieram os moradores
de Espraiado:
Seu Antônio: Eram tudo do Espraiado mesmo, não tinha índio não tinha nada. Os
antigos dizem, foi antes do meu tempo né, que antigamente passavam uns índios aqui,
mas que eles passaram de passagem e de fato eles passaram mesmo porque eles
deixaram por aí uns cachimbos, umas cabeça duns cachimbos, eu achei até uma pedra,
deste tamanho assim (faz um gesto que aproxima uns trinta centímetros de
comprimento), que na mente era até brilhante, eu não sei o que era.
Brisa: Achavam as coisas dos índios?
Seu Antônio: Achavam desses índios, mas ninguém via eles não. Eles passavam de
passagem, demoravam pouco tempo em um lugar, eles passavam dois, três dias num
lugar, nesse tempo isso aqui era uma mata mais danada do mundo. Índio só gosta de
mato, ele tava aqui dois dias pescando, e depois iam-se embora.
Brisa: Então eles se mudavam?
Seu Antônio: é, eles se mudavam, eles butavam as coisas nas costas e descia ribeira
abaixo e não se sabia pra onde.
Brisa: Mas o senhor era nascido nessa época que esses índios passavam?
Seu Antônio: Não.
Brisa: Isso tempo do seu avô… do seu pai?
Seu Antônio: Parece que nem eles, eles talvez nem dá notícia, papai não dá notícia de
ter conhecido eles, acho que ninguém viu eles não, eles passavam de passagem.
Quando ele nasceu, o papai, os índios já tinha passado. Uma hora dessa aí eles ainda
tão nesse meio de mundo andando.
Brisa: E eles ainda tão andando?
Seu Antônio: Tão, assim como dá na televisão. (informação verbal)9
O relato de Seu Antônio traz para a discussão uma imagem de índio quase que
imaginária. Como poderia ele, sua esposa ou seus filhos terem alguma coisa dos índios se estes
são tão brabos e estranhos? A descrição fala de um tempo bem antigo, segundo ele (que já tem
uma idade avançada), talvez estejamos falando do tempo de seu avô ou até mesmo de uma
época ainda mais antiga, um período em que esses índios passaram deixando pertences e
descendentes, uma vez que ele identifica pessoas que parecem ter parentesco com indígenas,
mesmo quase sem serem vistos.
No sentido de tornar as representações do índio como algo distante na região,
sobretudo a mídia parece ter um papel bastante forte em construir uma parcela da imagem que
muitos têm sobre “o índio puro” e os mais antigos. Tal representação, sem dúvidas, é de um
indígena com o qual essas pessoas não se reconhecem, não se veem ou se comparam, muito
embora, e como veremos a seguir, por vezes essa “indianidade” esteja em muitos casos bem
próxima. Para ilustrar esse pensamento, temos a fala de Dona Helena sobre seu pai e os outros
indígenas que sua família havia tido, que mesmo pouco tendo interagido com estes, “[...]
deviam ser bem assim como a gente vê na televisão” (Caderno de Campo, novembro de 2016).
9
Entrevista com Seu Antônio em agosto de 2017.
47
É importante ressaltar que não se está afirmando que Seu Antônio “é índio e não
sabe”, ou que está escondendo, e até mesmo não interpretando de forma coerente suas próprias
opiniões e relatos. É provável que o que aparece na situação em que ele fala que “ser índio não
é nada demais” seja resultado de uma autorreflexão provocada pelo fato de estar naquele
momento acessando um conjunto de memórias que tratam sobre a questão, e assim pensando e
refletindo sobre ele próprio e sua família. Afinal, com talvez algumas ressalvas, dificilmente as
pessoas estão preocupadas com sua ascendência ou tentam se classificar como alguma coisa
sem antes terem sido questionadas ou inspiradas de alguma forma a fazerem isso.
Através do que foi analisado na fala de Seu Antônio, é possível perceber que ele
parece tratar, à primeira vista, de dois tipos de índio, ou seja, existe em sua narrativa uma
percepção de índio em que pessoas de seu conhecimento e que participam de seu cotidiano se
sentem ofendidas por serem chamadas de “índias”, mas que não são “nada demais” em
diferenciação às outras. E um outro tipo que trata o índio como um alguém distante, que é assim
chamado remetendo a uma brabeza ancestral, que fala de pessoas que quase não se fizeram
presentes na localidade, exceto em algumas ocasiões em que se encontravam de “passagem”.
Seria importante ter em mente que, assim como foi dito em momentos anteriores, o
termo índio foi imposto e utilizado como uma forma de inferiorizar, exotizando e generalizando
um conjunto de populações que eram bem distintas entre si. Obviamente, diante de tudo isso,
tinha-se a intenção de exacerbar a diferença daquelas pessoas frente aos costumes europeus.
Assim era no passado, parecia muito comum e ainda parecesse ser, que muitas
pessoas não se reconheçam semelhantes à imagem de “índio” criada pelo colonizador e
divulgada hoje em dia pela mídia; nas próprias entrevistas, em muitos momentos se tenta
distanciar desse “personagem”, e parece ser isso que Seu Antônio tenta nos dar a entender
quando diz “[...] eu não tenho parte com índio, as minha indencedência é muito diferente, é
muito velha, sou da parte dos Ricardo e índio nem nome tem, né?!” (informação verbal)10.
A fala de Seu Antônio, de forma bem direta, nos diz que ele não reconhece ninguém
que ele identifique como indígena no passado de sua família, pois ela tem nome e famílias
indígenas não teriam. Essa tentativa de mostrar o quão longe se encontrava a ascendência
indígena e o quão não estaria presente em sua linhagem não foi encontrada apenas na conversa
com esse interlocutor, mas está presente, por exemplo, na fala de Dona Rita, que, quando ouve
o termo “parte com índio”, não deixa sequer que a frase que estava sendo dita fosse continuada.
10
Entrevista com Seu Antônio em Espraiado, no ano de 2017.
48
Brisa: Eu queria saber sobre as famílias de Acaraú, tem esses antigos que o povo diz
que vieram de navio e tal, mas tinha os que já estavam aqui há mais tempo, tem gente
que chama eles de antigos, as pessoas dizem que eles “tem parte com índio” […]
(nesse momento a interlocutora interrompe a conclusão da pergunta)
Dona Rita: pois é mulher, o povo diz até que eu tenho parte com índio e eu não sei
contar porquê... não sei. Porque aqui, onde dizem que tem os índios é na Almofala, e
eu nunca morei para Almofala. (informação verbal)11
O povo nunca diz assim ‘tu parece com índio lá da Almofala ou de outro lugar’, só
dizem assim ‘tu é descendente de índio’, mas eu não sei como é ser descendente de
índio, eu nunca vi índio... eu num sei nem o que é índio […] (pensa um pouco) eu sei
o que é índio, né... mas nunca vi. (informação verbal)12
Mais uma vez temos o termo índio como algo distanciado da região, exceto quando
se fala em Almofala, que é sempre apontada como o lugar onde moram os índios na região, que
embora seja um município vizinho à Acaraú 13 , em grande parte das vezes parece ganhar
aparência de um lugar distante e com habitantes desconhecidos; as duas comunidades indígenas
que se encontram no território de Acaraú (Telhas e Queimadas) pouco são mencionadas pelos
interlocutores.
Um outro relato que também pode nos trazer reflexões importantes é o de Dona
Geralda, esposa de Seu Antônio, que nasceu e passou parte da infância justamente na
comunidade de Queimadas, onde hoje muitos moradores se reconhecem como indígenas. Tendo
se mudado de lá há quase setenta anos e não tendo vivido a fase da comunidade que luta pelo
reconhecimento e demarcação de suas terras, a senhora de 84 anos, de início, trouxe um relato
bastante parecido com os que já temos acompanhado em outras entrevistas.
Quando Dona Geralda chegou em casa, eu estava entrevistando seu esposo, e ela
resolveu se sentar e acompanhar nossa conversa. Parecia estar se divertindo, participando até o
11
Entrevista com Dona Rita em Acaraú, em agosto de 2017.
12
Entrevista realizada com Dona Rita, em Acaraú, no mês de agosto de 2017.
13
Itarema, cidade onde se encontra Almofala, e Acaraú são vizinhas. É interessante ressaltar que em um passado
recente (apenas há 32 anos), Itarema ainda era um distrito do município de Acaraú.
49
momento de apenas algumas intervenções nas falas do marido; ao ver seu interesse, optei por
incluí-la na entrevista e o resultado foi bem interessante.
Brisa: E a senhora sabe de alguma história dos antigos? Esse povo que o pessoal diz
que tem parte com índio?
Dona Geralda: Não minha fia sei não… quer dizer, o povo mais velho, meu pai
conversava, mas eu nem prestava atenção.
Brisa: Não lembra de nadinha?
Dona Geralda: Me lembro de nada.
Brisa: Mas o que o seu pai conversava?
Dona Geralda: Sobre os índios que vivia só nas mata, e ele dizia assim ‘minha fia
nós num somo índio não, por que os índio nas mata só querem comer cru’. Mas acho
que não tem isso não, por que os que passam nas novelas eles pegam as comidas e vão
assar.
Brisa: Eu acho que tem muita gente que chama de índio aqueles que a gente chama
por “os mais antigos” (ela concorda com um gesto e eu continuo). E a família da
senhora sempre morou aqui em Espraiado também?
Dona Geralda: Não, meu pai era do Acaraú, minha mãe era do Espraiado, mas meu
pai morava nas mata, que era gente com os mais velho e aí ele veio embora para o
Acaraú (sede do município).
Brisa: E esses mais velhos que a senhora diz, é aquele pessoal bem antigo?
Dona Geralda: Bem antigo, bem antigo. Papai morreu ele tinha 93 anos e já tinha os
tios dele que já tinha morrido nas mata, nuns lugar chamado “as Queimada”, as
“Pedrinha”.
Brisa: Não é por acolá que o povo diz que tem famílias indígenas?
Dona Geralda: É, é tudo índio, os mais velho eram tudo índio.
Brisa: e aí a senhora é parente deles?
Dona Geralda: Sou sim, ali nas Queimada era tudo primo do meu pai... tio, mas já
morrero tudim.
Brisa: Por aqui tudo parece que tem muita gente misturada né?
Dona Geralda: É, exatamente. Aí eu morava nas pedrinhas depois vim pro Acaraú e
do Acaraú14 vim para cá. Papai morreu no Acaraú.
Como já foi abordado em um momento anterior, se dizer índio não é algo que
depende unicamente da genealogia da família, o processo de reconhecimento, além de
memórias e outros fatores que poderíamos denominar “internos ao indivíduo”, também são
salutares dentro desse processo, assim como para os Tremembé foi o apoio de uma organização
religiosa.
Mesmo em lugares onde hoje existe um movimento indígena bem definido há um
certo tempo, as dúvidas a respeito da identidade indígena são frequentes. Em sua pesquisa em
Almofala, Valle (2004) observa bem esses processos, identificando que existiam vários “tipos
de índios” que se diferiam com questões ligadas à já mencionada relação com a imagem do
“índio puro”; havia os indígenas que assumiam sua identidade, os que negavam e uma série de
outras variações.
14
Quando Dona Geralda se refere a Acaraú, ela se refere à sede do município.
50
A narrativa de Dona Geralda, sem dúvida, nos fala um pouco sobre como essas
relações se davam entre os Tremembé15 de Queimadas. Sendo interessante pensar que, para que
seu pai explicasse a sua “não indianidade”, é necessário antes que alguém o tenha apontado
como tal. É muito comum comunidades que passam por situações parecidas sofrerem intensos
processos de segregação e preconceito por conta de suas ascendências e costumes; de forma
rápida, podemos falar dos Jenipapo-Kanindé, que eram conhecidos pela população a seu redor
como “os cabeludos da encantada” (FREITAS, 2014), e depois do processo de união, realizado
principalmente pela luta por demarcação de terras, assumiram um novo nome e uma identidade
que antes era tratada por termos considerados por eles como pejorativos.
Há o exemplo, em meio a muitos exemplos que podem ser citados, dos Tapeba de
Caucaia, que entre os termos que eram utilizados para classificá-los pejorativamente estava os
“comedores de carniça”. Sobre isso podemos recorrer ao seguinte trecho de Barreto Filho:
Infelizmente, o caso dos Tapebas não parece ser o único, sendo variados os casos,
inclusive durante o campo dessa pesquisa, em que características pejorativas são ligadas ou
atribuídas aos indígenas. Muitas vezes não se parece falar de pessoas, e sim de um perfil
animalesco construído certamente para atender a interesses, de algo quase não humano, e, em
certos momentos, parece possível apontar certa “monstruosidade” nos perfis descritos. Dito isso,
chama atenção a fala de uma interlocutora que identifica suas origens como europeias:
Brisa: eu queria saber justamente sobre esse pessoal de antigamente que o povo dizia
que tinha parte com índio.
15
A etnia dessa região, assim como Almofala, também é a Tremembé.
51
Dona Tereza: Nasci e me criei e nunca vi índio aqui, eu vi assim, às vezes tinha uns
cabôco réi16 que tinham as ventas17 grandes e povo dizia que eles eram índios.
Brisa: Mas eles moravam aonde?
Dona Tereza: Lá nas Ostras18, mas já morrero tudo.
Brisa: Já morreram? Então eles eram os antigos lá das Ostras?
Dona Tereza: Talvez.
Brisa: hummm. E aí chamavam eles de cabôco?
Dona Tereza: Não, chamavam eles de índio.
Brisa: O pessoal das Ostras (repito, refletindo).
Dona Tereza: O pessoal antigo véi, agora só é gente novo que mora lá. Os velho já
morreram tudo.
Brisa: Não tem ninguém mais antigo nas Ostras?
Dona Tereza: A pessoa mais antiga talvez que tenha nas Ostras é a Joana Carneiro, o
resto dos mais véi já morrero tudo.
[…]
Brisa: Como o pessoal daqui via essas pessoas, falavam com eles? Tinham medo? [...]
Não gostavam deles?
Dona Tereza: Tinham medo, eu era uma que chorava de medo.
Brisa: Do pessoal das Ostras? Por quê? (Dona Tereza solta uma gargalhada).
Dona Tereza: Quando eu era menina. Por que diziam que eram índios, aí eu tinha
medo, mais os cabôco vei, na mente que num era não, era só porque eles tinham as
ventona.
Brisa: Mas o que é que eles faziam? Eles andavam diferentes ou era só mesmo por
que eles pareciam?
Dona Tereza: Não, tudo vestido, bem vestidim, trabalhando como os outros.
Brisa: E aí o pessoal tinha medo deles?
Dona Tereza: Os menino. As meninada tinham medo deles.
[…]
Dona Tereza: Eu cansei de ouvir falar que aqui tinha índio, né, mais eu nunca vi.
Brisa: Só o pessoal das Ostras que a senhora tinha medo? (falo em tom de brincadeira)
Dona Tereza: Era, era... chamavam eles, os Carneiros né, a venta do velho (se
referindo ao patriarca da família) era destaman (gesticula e faz com as mãos uma
distância de aproximadamente 8cm, tamanho que parece exagerado para um nariz),
as chinelas dele, eles pegavam uma talba19, cerrava talba e fazia uma do jeito da outra
e depois botava um cabresto de corda.
Brisa: Era mesmo? Eles até tinham essas coisas diferentes.
Dona Tereza: Era mermã. Era tudo diferente dos outros. Era destaman as chinelona
de palha com as correia de corda. (informação verbal)20
Nesse relato, é trazida uma lembrança de uma menina sobre pessoas as quais ela
tinha medo na infância, e não por serem criminosos, violentos ou por qualquer coisa que tenham
feito, mas por terem fama de “índios”. Podemos através disso imaginar quais relações e o que
se dizia sobre as famílias indígenas nesse período, e quais as concepções das pessoas que
cresceram ouvindo esses relatos. Assim, podemos pensar que, para que Dona Tereza
apresentasse tal comportamento, e segundo sua narrativa, não era a única criança a ter esse
medo, é preciso que antes tenha-se dito algo sobre tais famílias.
16
“réi” ou “véi”, nesse sentido, não seria sinônimo de “velho”, mas é constantemente empregado na região como
uma forma de reduzir ou desclassificar de certa forma o que está sendo apresentado. Podemos usar algumas
frases para facilitar o entendimento: “não quero mais esses seus doces véi ruins”, ou “Esse menino réi fei (feio)”.
17
Nariz.
18
Ostras é parte da localidade de Espraiado.
19
Tábua, se referindo a uma peça plana de madeira.
20
Entrevista realizada com Dona Tereza em Espraiado, no mês de agosto de 2017.
52
Desta forma, não é errada a noção que diz que em um lugar que tem tais narrativas,
é realmente muito complicado andar mencionando e exaltando sua ascendência indígena, uma
vez que, como comentamos no capítulo dois, a construção da identidade também depende da
sociedade à sua volta e o que esta sociedade acredita.
O termo caboclo, ao longo do tempo, veio recebendo diversos sentidos, que vão
desde indicar mestiçagem, índio com branco, e até mesmo algumas variações que se fazem
presentes em alguns trabalhos: caipira (CANDIDO, 2001), carijó, cariboca, caboré
(CAVIGNAC, 2005) e caboco, como encontramos em Acaraú. Sobre mais usos da expressão,
Cavignac (2005) coloca que:
Embora os índios de São Benedito do termo da Vila de Viçosa fossem muitas vezes
chamados de caboclos pelos brancos, e as mulheres indígenas de cunhãns, para eles
isso era uma grande ofensa, não queriam ser tratados através dessas categorias.
(XAVIER, 2010, p. 232)
populações, para eles havia aviltamento nesses termos, pois existiam registros de indígenas que
diziam que, quando os brancos se referiam a eles de tal forma, demonstravam desprezo ao falar.
Além de demonstrarem insatisfação por serem tratados pelo termo caboclo, ainda
esclarecem sua preferência por serem tratados por índio, porque pelo menos o fato de serem
reconhecidos como índios permitia-lhes também reivindicar posse das suas terras, uma vez que
se encontravam em um período no qual essa identidade só era negada quando a intenção era a
apropriação de suas terras.
Voltando desse pequeno salto ao século XIV, podemos observar o contexto por trás
dos termos e nomenclaturas pelos quais tanto indígenas quanto pessoas que não se consideram
como indígenas, mas que têm uma certa ligação ou parentesco com essas pessoas, foram e são
tratados.
Refletir sobre o porquê de pessoas com ascendência indígena muitas vezes terem
certa relutância até mesmo a ouvir a palavra índio, ou até sobre o quanto os próprios não se
identificam com o termo, é pensar também como se constituem e se leem as identidades na
região, e sobre os processos que daí derivaram.
55
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentro de Acaraú, fala-se bastante da versão da sua história que narra seu
povoamento, que, segundo a ótica de alguns historiadores do passado e populares, os primeiros
habitantes de Acaraú seriam imigrantes europeus ou pescadores, pouco ou nada se
mencionando sobre comunidades indígenas. Embora hoje possivelmente essa visão não seja
sustentada dentro dos estudos históricos produzidos mais recentemente, ainda é bem comum
em Acaraú se confiar na visão que exclui as populações indígenas. Nicodemos Araújo (1940),
sendo um estudioso local que se dedicava ao estudo da história da região, bem como a escrever
um pouco da genealogia de Acaraú, discorda dessa versão e afirma que, de fato, os primeiros
povoadores da região foram indígenas.
Ademais, intentou-se mostrar um pouco sobre essa origem indígena e o quanto as
suas narrativas e memórias participam de forma direta nos processos de criação da identidade
de vários Acarauenses. Desta forma, buscou-se analisar um pouco sobre a forma como alguns
moradores da região memoram e interpretam suas identidades ou as identidades de pessoas
próximas, principalmente com base nesse passado indígena.
Através dos dados colhidos em campo, pode-se perceber que, assim como fora
mencionado em muitos momentos, é comum que os interlocutores manifestem notória
resistência com o termo índio, o que se daria sobretudo por questões históricas que refletem até
os dias de hoje, sobretudo as que remetem a um passado colonial que envolve fortemente a
desclassificação social, a negação de direitos e a expropriação de terras aos habitantes que se
encontravam há mais tempo no local.
Por meio das entrevistas realizadas, pôde-se perceber que, em muitos momentos,
houve um certo receio ou insegurança em se reconhecer como indígena, onde as explicações
encontradas para isso estavam justamente em um “aspecto externo” aos indivíduos, ou melhor,
as explicações apontavam para como a sociedade ao redor desse indivíduo contribui para que
ele não reconheça ou negue dimensões da sua identidade, pois como também já foi visto aqui,
a construção da identidade depende muito do que a sociedade em volta do indivíduo acredita e
56
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ANEXOS