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Abstract: A new comprehension of Adam Smith’s writings arose in the last years. These
studies emphasized the political and ethical dimensions of his work and its
connection with the eighteenth-century context. This article reviews the
historical reception of Smith’s works and discusses the recent literature about
the relation between his moral philosophy and political economy.
Key words: Adam Smith; political economy; moral philosophy; Amartya Sen.
φ
Do Cedeplar - Universidade Federal de Minas Gerais (E-mail: hugo@cedeplar.ufmg.br).
Para ler Adam Smith: novas abordagens 1
Introdução
Há cerca de dois séculos, Adam Smith goza da reputação bem difundida de ser o
fundador da ciência econômica. As transformações metodológicas e conceituais que
marcaram a evolução da teoria econômica ao longo deste período não foram suficientes
para retirar o estatuto canônico da Riqueza das nações, que segue sendo apontada como
modelo original e fonte de inspiração de sucessivas gerações de economistas das mais
distintas orientações (Tribe, 1999: 609).
Por outro lado, o nome de Adam Smith não está associado apenas à imagem do
fundador da ciência econômica, mas também a um modo específico de conceber essa
disciplina, isto é, como uma teoria voltada para explicar a maneira pela qual a busca
irrefreada dos interesses pessoais conduziria, através dos mecanismos de mercado, aos
melhores resultados possíveis em termos de bem-estar para os indivíduos que compõem
uma dada sociedade. Desse modo, a Riqueza das nações é geralmente considerada a
afirmação clássica das virtudes do laissez-faire (Griswold Jr., 1999: 8-9; Brown, 1997).
Estudos mais recentes sobre a obra de Smith têm contribuído para perceber o
que há de caricatural nessa imagem. Deixando em segundo plano as análises
econômicas para enfocarem a dimensão política e ética de seu pensamento, ao mesmo
tempo em que se preocupavam em localizá-lo em relação aos problemas e motivações
intelectuais do século XVIII, tais pesquisas trouxeram à luz um quadro totalmente
diverso, mais matizado e complexo, no qual
1
Este trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico - CNPq.
1
Leituras de Smith
Sua reputação como pensador antecede ao período em que ele foi entronizado
como o fundador da economia política e um dos pioneiros do liberalismo econômico.
Data, pelo menos, de 1759, quando publicou sua Teoria dos sentimentos morais.
Receando que o livro tivesse o mesmo destino que sua obra de estréia, Hume
encarregou-se de promovê-lo entre membros influentes dos círculos de literários e
políticos.2 Posteriormente, quando seus piores temores já pareciam ter se dissipado,
Hume redigiu uma longa e divertida carta em que comunicava sua iniciativa a Smith e o
avisava em tom jocoso de que “your Book has been very unfortunate: for the Public
seem disposd to applaud it extremely. It was lookd for by the foolish People with some
Impatience; and the Mob of Literati are beginning already to be very loud in its
Praises.” (Hume apud Smith, 1987: 35). De fato, o livro foi reeditado cinco vezes até
1790, ano da morte de Smith, e outras vinte vezes até 1825, tendo recebido no mesmo
período de três diferentes versões para o francês e duas traduções para o alemão.3 Mais
que o relativo sucesso editorial, as evidências disponíveis indicam que ele foi lido e
refletido por um amplo conjunto de filósofos daquela época, começando, naturalmente,
pelo próprio Hume e pelos iluministas escoceses, estendendo-se aos autores do
Continente como D’Holbach, Condorcet, Herder e Kant (Reeder, 1997; Raphael e
Macfie, 1982).
2
Amigo dileto e uma espécie de conselheiro de Smith, Hume é também o provável autor de uma resenha
(na verdade, um longo resumo combinado a algumas observações críticas) sobre a Teoria dos
sentimentos morais que foi publicada anonimamente na Critical review um mês depois do lançamento
do livro (Cf. Raynor, 1984).
3
Registre-se en passant que a primeira versão integral para o português só foi publicada 250 anos depois
do lançamento da edição original, em tradução feita por Lya Luft e revista por Eunice Ostrensky, e que
foi publicada pela editora Martins Fontes.
2
período. Este quadro só se alteraria na última década do século XVIII, após a morte do
pensador escocês, num período de intensa agitação política e em meio aos debates sobre
a Revolução Francesa, quando a autoridade da Riqueza das nações foi invocada pelos
que defendiam a supressão do “antigo regime” na França e, também, na Inglaterra.
Nesta última, autores como Joseph Priestley e Thomas Paine tomaram as doutrinas
sobre a liberdade econômica como parte de um argumento mais amplo por reformas
políticas e sociais que abolissem as restrições à liberdade e os privilégios da nobreza e
do clero. Mais tarde, quando a reação política na Inglaterra conteve as vozes mais
radicais deste movimento, o temor provocado pela suspeita de associação ao
jacobinismo levou os intérpretes mais moderados de Smith a enfatizarem a ausência de
vínculos entre o seu argumento econômico liberal e qualquer ideal de reforma
constitucional (Teichgraeber, 2000).
Em certa medida, este último movimento contribuiu para que, a partir do século
XIX, uma apropriação mais seletiva da obra de Smith tivesse início. De um lado, as
proposições da Riqueza das nações passaram a comandar um amplo assentimento entre
os estudiosos que constituíram a economia política na primeira metade daquele século e
tanto Malthus quanto, posteriormente, Ricardo a tomaram explicitamente como um
ponto de partida para suas próprias elaborações teóricas. De outro lado, este
assentimento não significou uma adesão acrítica ou in totum àquele conjunto de
proposições. Os autores deste período compreendiam sua tarefa como uma tentativa de
aprofundar o tratamento dispensado por Smith às questões econômicas, mas corrigindo
os aspectos que lhes pareciam deficientes, sobretudo com relação às teorias do valor e
da distribuição (Teichgraeber, 2000; Black, 1976).
4
Outro exemplo pode ser encontrado no discurso preliminar ao Tratado de Say: “Após haver mostrado,
tanto quanto possível num esboço tão rápido, os progressos que a Economia Política deve a Smith, será
talvez útil indicar, de maneira igualmente sumária, alguns dos pontos em que ele parece ter-se
enganado ou que deixou por esclarecer” (Say, 1983: 54). Stuart Mill, por sua vez, constatando a
popularidade e a influência da obra de Smith entre os legisladores e o público em geral, características
que a tornavam uma obra única em seu gênero, atribuiu este sucesso a sua capacidade de combinar
princípios econômicos com as premissas de outros ramos da filosofia social para explicar questões
práticas, algo que, para ele, faltaria às obras posteriores. Ao mesmo tempo em que a tomava como um
modelo para a elaboração de seus Princípios, Mill não hesitaria em afirmar que a “Riqueza das nações
está obsoleta em muitas partes e imperfeita no conjunto” (Mill, 1983: 22).
3
foram acomodadas ou ignoradas. Teve início o processo de transformação da obra de
Smith numa espécie de pedra fundamental de uma nova tradição teórica, a economia
política clássica, o que representou simultaneamente sua neutralização teórica, isto é,
sua transformação em uma espécie de relíquia histórica a ser conservada e reverenciada,
mas já incapaz de alimentar soluções para as novas controvérsias no interior daquela
tradição (Teichgraeber, 2000; Black, 1976).5
No círculo mais amplo dos homens públicos, a doutrina liberal de Smith também
encontrou seus admiradores. Seus princípios foram gradualmente difundidos e
implementados, de tal modo que, na segunda metade do século XIX, o livre comércio
foi aclamado como a mais importante conseqüência prática de sua obra. Entre estes
admiradores, a adoção do laissez-faire era entendida como o resultado de um consenso
sobre os princípios básicos da economia política. Julgava-se que os temas que ainda
suscitavam alguma controvérsia teórica estariam limitados a aspectos secundários da
doutrina e que haveria pouco a ser acrescentado aos princípios enunciados por Smith e
ampliados e desenvolvidos por Ricardo e seus seguidores.
5
Os Princípios de McCulloch foram a primeira tentativa bem sucedida de popularizar a idéia de que a
economia política constituía uma tradição intelectual distinta e definida fundada por Adam Smith
(Teichgraeber, 2000: 92). Entre os economistas contemporâneos esta visão é tão amplamente
compartilhada que é quase impossível não se deparar com reiteradas afirmações de que “Smith’s huge
achievement was to provide the foundation for the whole of Classical economics” (O’Brien, 1984: 377).
6
Sobre os elementos que permitem caracterizar a economia política clássica e unificar o ponto de vista
destes autores vis-à-vis a abordagem neoclássica, ver Myint (1946), entre outros.
4
estereotipada de Smith como um defensor intransigente da não ingerência do Estado na
condução dos negócios, visão herdada do século anterior e amplamente majoritária,
apesar da presença de algumas poucas vozes dissonantes. Desta soma de elementos
resultou um declínio acentuado no prestígio de Smith, a tal ponto que, no início dos
anos 1950, os economistas chegariam até mesmo a considerá-lo um autor “fora de
moda”:7
“At a time when the more advanced countries are run by a vast
body of local and central administrators, when national
economies are protected by elaborate systems of tariffs, quotas,
subsidies, and exchange controls, the student of economics
knowingly smiles at the very mention of the name of Adam
Smith. (...) Today we know better...” (Moos, 1984, 39).
7
Referimo-nos ao título do artigo de Moss (1984): “Is Adam Smith out of date?”
8
Um levantamento da produção acadêmica no período seguinte corrobora plenamente esta premonição.
Nos anos 1970, os periódicos internacionais de economia publicaram uma média anual de 6 artigos
sobre a obra de Smith; nos anos 1980, esta média passou para 10 artigos ao ano, saltando para 18, na
década seguinte. O crescimento do número de artigos sobre Smith foi 33% superior ao do total de
artigos publicados pelos mesmos periódicos (Whigt, 2002).
9
Para um apresentação crítica da literatura relativa ao Das Adam Smith Problem, ver Raphael e Macfie
(1982: 20-5) e Heilbroner (1982). O debate contemporâneo sobre a relação entre a ética e a economia
política de Smith será analisado mais adiante.
10
Além disso, os esforços de pesquisa iniciados por James Bonar (1966) e Tadao Yanaihara (1966) e,
posteriormente, complementados por outros pesquisadores permitiram reconstituir a relação dos livros
que compunham a biblioteca de Smith, oferecendo novas pistas para a compreensão de suas fontes.
5
correspondence of Adam Smith. Lançada como parte das comemorações do
bicentenário, ela praticamente dobrou a extensão dos seus trabalhos disponíveis para a
consulta, que agora não estão mais restritos à Teoria dos sentimentos morais (Smith,
1982a) e à Riqueza das nações (Smith, 1981), os únicos livros que publicou em vida,
mas incluem também um expressivo conjunto de textos – como cartas (Smith, 1987),
resenhas, rascunhos, anotações (Smith, 1982, 1982b, 1985) – que até a pouco eram
desconhecidos ou negligenciados.11
Como se sabe, nos últimos anos de sua vida Smith trabalhou em dois volumes de
história da filosofia – o primeiro, sobre literatura, filosofia e retórica (eloquence), e o
segundo, sobre direito e formas de governo – que não chegaram a ser completados.
Seguindo suas instruções, os manuscritos destes trabalhos foram destruídos por seus
testamenteiros literários logo após sua morte. Restaram, no entanto, as notas tomadas
por alguns alunos dos cursos que ele proferiu enquanto ocupava a cátedra de filosofia
moral da Universidade de Glasgow. Elas foram gradualmente descobertas e publicadas
ao longo dos últimos cem anos, a começar pelas anotações de um curso sobre justice,
police, revenue and arms, em 1896, seguidas, nos anos 50, por dois outros conjuntos de
notas, desta vez de um curso sobre rhetoric and belles-lettres e de cursos de
jurisprudence. Ainda neste mesmo período, houve a descoberta de outros materiais
inéditos, versões preliminares de partes da Riqueza das nações, algumas cartas e
memorandos. Todo esse material foi finalmente editado e reunido no final dos anos
1970 para compor a Glasgow edition (Winch, 1996:42-3; Brown, 1997). O que importa
frisar para nossos fins é que a maior parte deste material teve sua origem nos cursos
ministrados em Glasgow entre 1752 e 1764 e, desse modo, é razoável inferir que “these
individual writings likewise form parts of a project whose contours are as yet
incompletely charted” (Tribe, 1999: 612).12
Nos últimos anos, não foram poucas as tentativas de mapear esta obra, de traçar
seus contornos e, sobretudo, de expor as ligações entre as diferentes partes deste projeto.
Mas, antes de passar ao seu exame, é conveniente que nossa atenção se volte por um
instante para as perspectivas que orientaram estes esforços de interpretação, suas
distintas maneiras de visar ou enfocar o pensamento de Smith.
Protocolos de leitura
11
O projeto da Glasgow edition previa ainda a elaboração de uma nova biografia de Smith, que só foi
concluída e editada na década de 1990 (Ross, 1995).
12
Os cursos eram compostos de quatro seções: uma de lições teologia natural (que não sobreviveram em
nenhum tipo de registro), seguida por outra de ética (que foi publicada como a Teoria dos sentimentos
morais), uma terceira sobre justiça (das quais restaram as notas reunidas hoje em dia nas Lectures in
jurisprudence) e, finalmente, uma quarta seção que veio a se constituir na base para a redação da
Riqueza das nações (Tribe, 1999; Campbell e Skinner, 1981).
6
racional e reconstrução histórica, Whig history e historicismo etc..13
É fácil ver que essa perspectiva não é capaz de nos levar muito longe na
compreensão da originalidade e da especificidade do pensamento se Smith, pois ela já
parte do pressuposto de que sabemos: i) o que o texto é – um texto de economia; ii) o
que é um texto de economia – um texto que se conforma aos padrões modernos. O que
escapa a este padrão é imediatamente desconsiderado e tudo o que sobra é avaliado a
luz de conceitos e problemas contemporâneos, estabelecendo-se a priori (e de modo
injustificado) uma continuidade entre os textos do passado e a maneira moderna de
conceber o objeto. Finalmente, na medida em que tomamos como estabelecido o padrão
conceitual e teórico moderno, os textos antigos parecem repletos de “erros” ou
“incoerências”, que resultam de seu desacordo com o padrão empregado. A
possibilidade de que estes “erros” reflitam apenas uma ordem ou coerência distinta da
moderna é algo que sequer chega a ser considerado (Tolipan, 1990: 5-18; Tribe, 1999).
No caso de Smith, isso nos levaria a desconsiderar a maior parte de seus textos
(na medida em que não são “textos de economia”) e até mesmo a fazer uma leitura
seletiva e desequilibrada da Riqueza das nações (na medida em que há ali muito que
escapa a economia ou que não se enquadra nos padrões modernos da disciplina):
“Given that Smith’s writings are more or less all that we have to
go on in seeking to understand his intentions, this limited focus
of attention runs the risk of our missing the point as Smith
would have conceived it. And (...) if we are to deepen our
understanding of the work of Adam Smith, we need to reexamine
well-worn assumptions concerning his work.” (Tribe, 1999:
616).
13
O termo Whig history deriva do título de um livro publicado em 1951 pelo historiador Herbert
Butterfield. Ele identificou e criticou uma tendência dominante na historiografia inglesa, que consistia
em tratar a história da Inglaterra como um movimento progressivo em direção aos ideais liberais
representados pelo Partido Wigh (liberal). Desde então, o termo entrou em uso na literatura sobre a
história do pensamento para designar de maneira pejorativa uma prática que deveria ser evitada pelos
historiadores (Blaug, 2001: 151).
7
público para se declarar “culpado por este pecado”,14 penitenciando-se por ter adotado
esta abordagem em seus próprios trabalhos, somos levados a concordar com aqueles que
considerariam um otimismo injustificável esperar que “Smith’s departed spirit will ever
be entirely released from the tortures devised by ingenious mathematical economists
seeking to force his subtle insights into their own sadistic conceptual apparatus.”
(Coats, 1984: 302).
14
“Although I have been guilty myself of the very sin I have just deplored, I have come to the conclusion
that the only approach to the history of economic thought that respects the unique nature of the subject
material, rather than just turning it into grist for the use of modern analytical techniques, is to labor at
historical reconstructions, however difficult they are.” (Blaug, 2001: 152).
15
O termo é tomado aqui em sentido intencionalmente vago e genérico, de modo a incluir tanto a história
da filosofia, quanto a história do pensamento econômico ou político.
16
Ver, entre outros, os trabalhos metodológicos de Skinner - reunidos em Tully (1988) - e o balanço de
Pocock (1985b).
17
Deste ponto de vista, ao tratarmos, por exemplo, do conceito de propriedade na obra de Locke,
estaríamos incorrendo em equívoco grave se lhe atribuíssemos o sentido restrito que tem hoje (Tully,
1980). Ou ainda, ao pensar o conceito de trabalho em Locke ou Smith como semelhante ao nosso,
estaríamos mais uma vez impondo à obra destes autores um sentido totalmente deslocado de suas
intenções (Cerqueira, 2000; 2002).
18
O exemplo mais significativo é o trabalho de Winch (1996).
19
Ver, entre outras, as críticas que Brown (1994) dirige a essa abordagem, de um ponto de vista inspirado
em Foucault e Derrida.
8
Sobre as novas leituras de Smith
Uma das características distintivas de boa parte dos novos estudos smithianos é
que, ao contrário das leituras tradicionais, que insistiam em apontar uma inconsistência
ou contradição entre os princípios expostos na Teoria dos sentimentos morais e na
Riqueza das nações, há agora uma clara tentativa de compreender estes textos como
partes de uma mesma obra. Se as oposições que se supunha existirem entre sua filosofia
moral e sua economia política são, hoje em dia, atribuídas a um equívoco de
interpretação, resta em aberto o problema de estabelecer a natureza dos vínculos entre
estes dois planos.
É sem dúvida notável que não haja na Riqueza das nações qualquer referência à
Teoria dos sentimentos morais e que, nesta última, a única menção à Riqueza seja
aquela feita no Advertisement acrescentado à sua sexta edição. À primeira vista, isso
conduziria a pensar que a economia política smithiana seria independente de sua ética,
de sua filosofia do direito etc.. De outro lado, Smith nunca deu qualquer indicação de
que pensasse haver alguma contradição entre estes trabalhos ou mesmo uma mudança
essencial de posição filosófica ao longo de sua vida. Isso nos coloca diante da tarefa de
encontrar a chave de uma leitura unificada de seus textos, ao mesmo tempo que reclama
uma explicação sobre o significado do silêncio de Smith sobre essa conexão, tanto mais
em se tratando de alguém que insistia na natureza sistemática do conhecimento, na
necessidade de conectar os objetos do conhecimento num sistema.20
20
Esse ponto é assunto privilegiado do ensaio sobre a História da astronomia. Ver, entre outros, Skinner
(1996) e Whightman (1982).
21
Este parágrafo e os três seguintes apoiam-se extensamente no survey preparado por Brown (1997) e, em
menor medida, no artigo de Tribe (1999).
9
the moral values of prudence, frugality, self-command and justice that sustain such a
society” (Brown, 1997: 298). Rosenberg (1990), por exemplo, é um dos que
argumentam no sentido de que para Smith as sociedades comerciais incorporariam
instituições que propiciam a acumulação de um “capital moral”, ou seja, de que a busca
dos interesses individuais tem que operar num contexto em que já se exige o
reconhecimento de valores como a justiça, a honestidade etc.. De outro lado, Evensky
(1987, 1989, 1992, 1993) procurou mostrar que o funcionamento de uma economia de
mercado nos quadros de uma sociedade liberal clássica pressupõe a existência de uma
comunidade ética de indivíduos.
Por sua vez, o quarto approach se diferencia dos demais por dar destaque à
presença de algumas ambigüidades no pensamento de Smith, enfatizando as passagens
de sua obra que denunciam a corrupção moral das sociedades comerciais. West (1996),
por exemplo, argumenta em torno da dificuldade de conciliar o tratamento dado por
Smith à divisão do trabalho, que ora se faz do ponto de vista liberal de quem argumenta
22
Evensky fala de uma viragem em direção ao “humanismo cívico”. O conceito, usualmente associado à
tese de Hans Baron (1966), é aí empregado em sentido mais amplo, referindo-se à tradição que, tendo
se iniciado entre os humanistas florentinos, teria chegado à Escócia por meio de autores como
Harrington ou Bolingbroke, e que visaria promover a cidadania como uma virtude ativa baseada numa
disposição moral para a busca do bem público, identificado com a associação política, a polis ou a
república.
23
Pocock, que inspira estas leituras, já havia argumentado sobre a impossibilidade de divisar nos autores
do século XVIII uma visão da política e da economia como pólos independentes e opostos. “I want to
argue it was an unending and unfinished debate. The main historical weakness in the antiliberal
tradition is that all its practitioners, right and left, are so anxious to find, that they antedate and
exaggerate, some moment at which economy became emancipated from polity and market man,
productive man, or distributive man declared that he no longer needed the paidea of politics to make
him a self-satisfactory being. I cannot find such a moment (not even a Mandevillean moment) in the
eighteenth century, because the dialogue between polity and economy remained a dialogue...”
(Pocock, 1985: 70).
24
É nesse sentido que alguns dos autores que defendem a idéia de uma continuidade entre a Teoria dos
sentimentos morais e a Riqueza das nações empregam o argumento de que, para Smith, a tarefa do
legislador seria promover as virtudes do “humanismo cívico”.
10
a favor das vantagens econômicas decorrentes dessa divisão, ora consiste em acusar, de
um ponto de vista republicano, as mutilações mentais e a degradação moral decorrentes
da especialização dos trabalhadores. Outros intérpretes preferem ver nesse tipo de
flutuação teórica sinais de uma “tensão produtiva”, ao invés de uma debilidade da
argumentação.
Desdobramentos
É fácil ver que esta mudança na recepção contemporânea da obra de Smith nos
deixa diante de – pelo menos – duas tarefas.
11
A primeira, consiste em retomar a investigação sobre sua filosofia moral – e, em
particular, de sua concepção sobre a liberdade e a justiça – discernindo o que há de
específico nela em relação à reflexão de outros filósofos modernos. Ainda que a Teoria
dos sentimentos morais possa ser colocada entre os grandes tratados de ética, a análise
de sua estrutura e de seu argumento está longe de ter sido plenamente desenvolvida e,
tomando de empréstimo as palavras de um autor contemporâneo, “it is perplexing that
Adam Smith’s ethics should be so relatively unread as compared with Hume’s ethics
when there is so much of value in Smith.” (Harman citado em Griswold Jr., 1999: 9).
Em segundo lugar, a nova literatura sobre o pensamento de Smith deve nos levar
a reinterrogar a verdadeira natureza de sua economia política e o modo como foi
possível operar e justificar a separação dessa disciplina do interior da filosofia moral,
tendo em vista que a Riqueza das nações e a Teoria dos sentimentos morais têm, cada
uma delas, uma “unidade orgânica”, mas formam juntas um “todo coerente” (Griswold
Jr., 1999: 29-30). Se nestas obras a liberdade de perseguir os interesses próprios que é
característica das sociedades comerciais está vinculada a uma ordem moral que liga
cada indivíduo à sociedade, a consideração destes pressupostos morais deveria nos levar
a uma revisão da compreensão tradicional dos objetivos, da natureza e dos limites da
teoria econômica de Smith (Cerqueira, 2000).
Neste sentido, parece-nos razoavelmente claro que esta tarefa não pode ser
levada a termo com os recursos e no interior da própria ciência econômica, pois exige
uma reflexão de cunho filosófico, que transcenda a natureza instrumental do interesse
que guia a atividade científica. Trata-se de uma reflexão que, ao invés de se ocupar com
a análise de fenômenos econômicos, lidará com a fundamentação dos pressupostos que
orientam esta análise, tarefa que abre um amplo espaço para uma proveitosa cooperação
entre estudiosos da filosofia e da economia.
12
taken the Wealth of Nations as their inspiration, or through the
emergence of bodies such as the Adam Smith Institute (founded
in 1977) as influential centres for the promulgation of free-
market doctrines.” (Copley, 1995: 2).
No que diz respeito ao primeiro ponto, Sen afirma que “a natureza da economia
moderna foi substancialmente empobrecida pelo distanciamento crescente entre
economia e ética” (Sen, 1999: 23). Ao mesmo tempo em que admite que a maneira de
conceber os seres humanos e suas motivações que caracteriza a abordagem econômica
convencional tenha produzido resultados teóricos relevantes, ele considera que a teoria
econômica poderia tornar-se mais produtiva se considerasse os problemas associados às
questões éticas que moldam o comportamento humano.
25
Para uma análise minuciosa da relação entre o pensamento de Amartya Sen e a obra de Smith ver
Walsh (2000).
13
de ações orientadas por valores éticos, ao invés do mero interesse pessoal: “Considerar
qualquer afastamento da maximização do auto-interesse uma prova de irracionalidade
tem de implicar uma rejeição do papel da ética na real tomada de decisão” (Sen, 1999:
31).
26
Recentemente este suposto também tem sido aplicado a comportamentos não-econômicos, tais como a
escolha conjugal ou do número de filhos, ou ainda a escolha entre realizar ou não um ato criminoso.
27
Neste sentido, a prudência não pode ser igualada a busca de objetivos imediatos ou atuais (que é o
sentido normalmente atribuído às escolhas com base no auto-interesse). O verdadeiro auto-interesse
demanda a consideração das nossas necessidades futuras na medida em que forem previsíveis. Sobre
este ponto do argumento de Sen, ver o artigo de Walsh (2000: 10-11).
14
sociabilidade (Sen, 1999: 39-40).28
Que esta visão equivocada tenha prevalecido por tanto tempo entre economistas
e historiadores do pensamento econômico é algo que não deveria causar surpresa, pois é
um resultado previsível do enfoque anti-histórico que orienta sua maneira de ler e
abordar as obras do passado.29 Mais do que isto, é também um testemunho da
perspectiva limitada que caracteriza a economia contemporânea:
Neste caso, não há exagero em afirmar que as novas tentativas de abordar a obra
de Smith a partir de uma perspectiva abrangente representam um passo importante no
sentido de superar o abismo criado entre as duas disciplinas.
28
Destes contextos, o mais citado é a passagem em que Smith (1981: 27) explica a troca de mercadorias a
partir do auto-interesse: “It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the Baker, that we
expect our dinner, but from their regard to their own interest. We address ourselves, not to their
humanity but to their self-love…”. Mas é fácil mostrar que, mesmo levando em conta estas passagens,
Smith jamais considerou que o auto-interesse fosse suficiente para assegurar a existência da economia
ou para permitir o bom funcionamento da sociedade (cf. Sen, 1995: 25).
29
Ver a seção sobre Protocolos de leitura (acima).
15
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