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“...UM DIA SE PERGUNTOU QUEM ERA...”


Notas dos depoimentos de Davide Prosperi e Julián Carrón no Dia de Início de Ano dos adultos e dos
universitários de CL da região italiana da Lombardia. Fiera Rho-Pero, 25 de setembro de 2010

Portopalo de Capo Passero, Sicília (Itália), 1999. PASSOS NOVEMBRO 2010 3


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“...um dia se perguntou quem era...”

Notas dos JULIÁN CARRÓN e das coisas” (L. Giussani, O caminho para
depoimentos de No início deste ano, peçamos ao Espíri- a verdade é uma experiência, São Paulo: Ed.
Davide Prosperi e to o dom da sabedoria para que possamos Cia. Ilimitada, 2006, p. 153).
Julián Carrón no entender qual é o problema dos problemas Isto também nos ajuda a entender a
Dia de Início de – o sentido da vida – e nos tornemos real- tarefa de uma presença cristã na socieda-
mente disponíveis a perseguir a modalida- de. Acabamos de escutar que não se trata,
Ano dos adultos e
de com a qual o Mistério nos alcançou e antes de tudo, de uma sabedoria nossa ou
dos universitários
continua a nos alcançar agora. do fruto das nossas iniciativas, pelas quais
de CL da região é possível celebrar quando esta presença é
Ó vinde, Espírito Criador
italiana da Saudações a todos aos que estão presen- reconhecida ou, pelo contrário, correr para
Lombardia. Fiera tes e aos que nos acompanham ao vivo de consertar quando é atacada. Se fosse assim
Rho-Pero, 25 de várias regiões da Itália e do exterior. Leio o não seríamos mais capazes de nos ma-
setembro de 2010 telegrama que enviamos ao Papa: Santidade, ravilhar por nada, no fundo tudo já seria
cinquenta mil adultos e estudantes universitá- codificado, sabido. Pelo contrário – como
rios de Comunhão e Libertação reunidos em ouvimos – a potência de Deus se revela em
Milão e que acompanham ao vivo, a partir de acontecimentos que constituem uma reali-
uma dezena de cidades italianas e do exterior dade nova dentro do mundo.
para o Dia de Início de Ano, gratos a Deus Bem, nós aqui hoje queremos dizer que
pela beleza da Vossa viagem ao Reino Uni- este ano fomos testemunhas e participamos
do, desejam entregar em Vossas mãos toda a de acontecimentos, alguns mais evidentes,
própria pessoa para estar, como Vossa Santi- que envolveram todo o Movimento, e outros
dade, ao serviço de um Outro, a fim de tornar que cada um pode encontrar na própria ex-
o anúncio de Jesus Cristo acessível aos irmãos periência pessoal. Lembro, acima de todos,
homens. Numa sociedade indiferente e hostil à o gesto de Roma no dia 16 de maio com o
fé, ao aprofundar o carisma de Dom Giussani Papa, quando já nas semanas anteriores for-
confirmamos o empenho em tornar transpa- mos introduzidos a um juízo diferente, não
rente Cristo ressuscitado, resposta inesgotável ideológico, sobre o significado daquele gesto,
às perguntas do coração de cada um. tanto que muitos de nós, talvez por compro-
missos firmados precedentemente, decidi-
DAVIDE PROSPERI ram participar no último momento, mesmo
Como cabe a mim evidenciar os passos em meio a obstáculos e impedimentos. So-
dados durante o ano passado, leio algumas li- bre isso, todos nos lembramos de que, nesta
nhas de Dom Giussani, contidas em O cami- mudança, também a respeito das decisões to-
nho para a verdade é uma experiência, e que madas, fomos ajudados pelo que Carrón nos
resumem de modo eficaz o que vivemos: “O disse: “Nós não vamos a Roma antes de tudo
cristianismo não nasce como fruto de uma para defender o Papa, mas para reconhecer
cultura nossa ou como descoberta da nossa e afirmar a rocha sobre a qual estamos an-
inteligência: o cristianismo não se comunica corados neste momento de provação para a
ao mundo como fruto da modernidade ou Igreja”. Isto mudou o olhar sobre aquilo que
da eficácia de nossas iniciativas. O cristianis- fazíamos, pois introduziu uma posição hu-
mo nasce e se difunde no mundo pela pre- mana nova, ao ataque, que entra nas coisas
sença do ‘poder de Deus’: ‘Deus, in nomine desarmada, para conhecer, para entender
Tuo salvum me fac’ (Por vosso nome, salvai- mais. Sem dúvida esse foi um dos êxitos im-
me Senhor; e daí-me a vossa justiça). Este previstos do trabalho de Escola de Comu-
poder de Deus se revela em acontecimentos nidade deste ano, e certamente a Escola de
que constituem uma realidade nova dentro Comunidade de Carrón (que foi possível de
do mundo, uma realidade viva, em movi- ser acompanhada por todos os que o dese-
mento, e portanto uma história excepcional jassem) é o ponto que alcançou a todos nós,
e imprevisível dentro da história dos homens mostrando-nos este método em ação.

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No Meeting de Rímini tivemos um refle- endemos o que é esse tudo [isto é, o que seja Texas (EUA), bombeiros em
xo desta positividade diante da realidade que Cristo] no choque, ou melhor, no encontro treinamento.
se encontra. Pensemos ao que significaram com as circunstâncias, com as pessoas, com
os tantos testemunhos sob várias frentes, que os acontecimentos” (“Viver é a memória de
agora, por brevidade não cito, mas que podem Mim”, Assembleia Internacional de Responsá-
ser encontrados numerosos na revista Passos. veis de Comunhão e Libertação, p. 52).
Sinteticamente podemos dizer que a esperan- Um exemplo extraordinário disto foi outra
ça que vem da experiência cristã nos torna passagem fundamental do ano passado, que
surpreendentemente – deixem-me dizer, tam- absolutamente não devemos perder, que foi o
bém inesperadamente – capazes de enfrentar artigo de Carrón no jornal La Repubblica (de
todas as condições, talvez até as mais difíceis, 4 de abril passado), referindo-se à tempestade
experimentando uma inteligência de iniciati- sobre a pedofilia que investiu a Igreja. Diante
va e, ao mesmo tempo, uma plenitude de ale- da grande contradição que se experimenta
gria que não precisa reduzir a dramaticidade (mas isto é verdade para qualquer contradi-
daquilo que está sendo vivido, como talvez, ção, é verdade para a dor em si) se impõe em
pelo contrário, muitas vezes somos levados a nós uma necessidade insaciável de justiça e
fazer para não cairmos no desespero. de verdade. Nada basta para curar a ferida
E, então, vem a pergunta: de onde vem que se abriu, nada daquilo que nós podemos
tudo isso? O que está por trás? Um mês atrás, fazer, pois a justiça que cada um de nós espe-
em La Thuile, durante a Assembleia Interna- ra não é apenas que nos seja restituído o que
cional de Responsáveis de Comunhão e Li- nos foi tirado, aquilo em que tínhamos colo-
bertação, Carrón retomou Giussani que disse: cado a nossa esperança, as nossas expectati-
“A realidade não deve ser arquivada por já vas; a justiça para a qual somos feitos é muito
sabermos [depois do encontro cristão], por já mais do que ser recompensados, aquilo que
termos tudo. Nós temos tudo, mas só compre- nós realmente esperamos é mais do que »

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Capriva do Friuli (Itália), » isso, é uma superabundância. A este pro- por ocasião da visita histórica na Grã Breta-
vinhedos de Collio. pósito há um episódio muito significativo dos nha pela beatificação do cardeal Newman:
primeiros tempos de Madre Teresa em Calcu- “Newman ensina-nos que se acolhermos a
tá: a jovem freira se deparou com um pobre verdade de Cristo e comprometermos a nos-
moribundo abandonado no meio da rua, o sa vida por Ele, não pode haver separação
acolheu na sua casa, o medicou, cuidou dele. entre aquilo em que cremos e o modo como
Pouco depois o homem morreu, mas antes de vivemos a nossa existência. Cada nosso pen-
morrer pronunciou estas palavras: “Vivi toda samento, palavra e ação devem visar a glória
a vida como um cão e agora morro como um de Deus e a difusão do seu Reino” (Bento
rei”. Madre Teresa provavelmente não tinha XVI, Vigília de oração para a beatificação do
feito mais do que uma enfermeira, talvez com cardeal John Henry Newman, Londres, 18 de
compaixão, poderia ter feito naquela situação, setembro de 2010).
e no entanto aquele homem disse aquelas pa- Portanto, te pedimos, neste novo ano
lavras. O que ele viu? O que pode ter visto que que começa: o que é essa conversão do eu
tinha esperado por toda a vida? No olhar de para o acontecimento presente, à qual te-
Madre Teresa brilhava o olhar de Cristo, na mos sido convidados?
sua voz vibrava a voz de Cristo: era isso o que
ele tinha esperado por toda a vida, encontrar
este olhar. Dizia ainda Carrón em La Thuile: JULIÁN CARRÓN
“A verdade não é algo abstrato, é esse Amor 1. A humanidade que nasce da fé
que se dobrou sobre o nosso nada, […] esta Celebramos este Dia de Início de Ano
comoção pelo nosso nada. […] Esta é a nossa ainda impressionados com os gestos que
responsabilidade: converter o eu ao Aconte- aconteceram neste verão: das férias das
cimento presente, ou seja, a esse Amor que se nossas comunidades ao Meeting, desde a
curvou sobre mim” (J. Carrón, “Viver é a me- Assembleia Internacional dos Responsáveis
mória de Mim”, op. cit., pp. 8-9). às equipes dos universitários e dos colegiais
Confiar-se a este olhar é o convite que re- de CL; e, mais recentemente, com a viagem
cebemos também do Papa na Praça de São do Papa à Grã Bretanha. O que ele enfati-
Pedro. A palavra que domina a preocupação zou por ocasião dessa visita nos leva a en-
de quem guia a Igreja é a palavra “conversão”, tender os desafios que a nossa fé é chamada
e o Papa o lembrou ainda na semana passada, a enfrentar hoje. Uma comparação com o

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que ele disse vai nos ajudar a contextualizar conhecer Cristo, Ele próprio o caminho, a ver-
a dimensão do percurso que estamos fa- dade e a vida (Jo 14,6)” (Bento XVI, Vigília
zendo e nos oferece ainda mais razões para de oração..., 18 de setembro de 2010). De fato,
percorrer a caminhada. se a religião é um fato puramente privado e
Bento XVI viajou – como todos sabemos subjetivo, uma questão de opinião pessoal, a
– para um dos lugares mais secularizados do consequência é óbvia: o relativismo. O relati-
mundo e nos testemunhou o que é uma pre- vismo minimiza a capacidade do homem de
sença. Estava bem consciente do alcance da conhecer a verdade, de encontrar nela a defi-
viagem, como ele próprio disse esta semana, nitiva liberdade e a realização das aspirações
ao falar das etapas que percorreu: “Ao me di- humanas mais profundas, isto é, de
rigir aos cidadãos daquele país, encruzilhada encontrar resposta completa para as “À luz do que diz
da cultura e da economia mundial, sempre suas exigências. De fato, se o homem o Papa, podemos
tive em mente todo o Ocidente, dialogando não encontra uma resposta para essa entender a
com as razões dessa civilização e comunican- aspiração, para essa exigência, tudo se
dimensão do
do a insuperável novidade do Evangelho, do torna relativo, tudo é opinável e nada
qual ela está impregnada” (Bento XVI, Audi- será capaz de capturar todo o seu eu. percurso que
ência geral, Praça de São Pedro, 22 de setem- Ao invés disso, o Papa disse: “À multi- estamos fazendo
bro de 2010). Para demonstrar que novidade dão de fiéis, especialmente aos jovens, para escapar da
é essa, naquele contexto, o Santo Padre se quero repropor a luminosa figura do fratura entre saber
serviu da figura de Newman, cuja beatifica- cardeal Newman, intelectual e crente,
ção era o motivo fundamental da sua viagem: cuja mensagem espiritual pode ser e crer, que relega o
“Newman – segundo o seu próprio relato – sintetizada no testemunho de que a crer para a esfera
refez a caminhada de toda a sua vida à luz de via da consciência não é o enclausu- do subjetivo, da
uma poderosa experiência de conversão, que ramento no próprio eu, mas abertura, opinião pessoal”
aconteceu quando ele era jovem. Foi uma ex- conversão e obediência Àquele que é
periência imediata da verdade da Palavra de Caminho, Verdade e Vida” (Bento XVI, Au-
Deus, da objetiva realidade da Revelação cris- diência geral, 22 de setembro de 2010).
tã, tal como foi transmitida pela Igreja. Tal ex- À luz disto, podemos entender o alcance
periência, ao mesmo tempo religiosa e inte- do percurso que estamos fazendo para esca-
lectual, teria inspirado a sua vocação para ser par da fratura entre saber e crer, que relega
ministro do Evangelho, o seu discernimento o crer para a esfera do subjetivo, da opinião
da fonte de ensinamento respeitável na Igreja pessoal, porque o homem não seria capaz de
de Deus e o seu zelo pela renovação da vida conhecer a verdade realizadora da vida.
eclesial, na fidelidade à tradição apostólica. Mas esse é um problema que diz respeito
No final da vida, Newman descreveria o pró- somente aos intelectuais, como Newman,
prio trabalho como uma luta contra a cres- ou tem a ver com todos nós?
cente tendência a considerar a religião como Aqui adquire todo o seu alcance o apelo à
um fato puramente privado e subjetivo, uma conversão que o Papa está lançando insisten-
questão de opinião pessoal. Aí está a primeira temente a toda a Igreja. Mas ninguém levará
lição que podemos aprender com a sua vida: de fato a sério esse apelo se não o sentir urgen-
em nossos dias, quando um relativismo inte- te para si próprio. As canções que entoamos
lectual e moral ameaça enfraquecer os pró- podem nos ajudar a entender essa urgência:
prios fundamentos da nossa sociedade, New- “Era um homem mau, / mas mau, mau, mau”
man nos recorda que, como homens e mulhe- (C.Chieffo, “L´uomo cattivo”, Il libro dei can-
res criados à imagem e semelhança de Deus, ti, Jaca Book, Milão 1976, p. 291). O termo
fomos criados para conhecer a verdade, para “mau” tem aqui o significado de “imoral”,
encontrar nela a nossa definitiva liberdade e a mas não no sentido costumeiro, em que o re-
realização das mais profundas aspirações hu- duzimos a incoerência ética, mas no sentido
manas. Numa palavra, fomos pensados para mais profundo de uma inadequada rela- »

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» ção com o Ser. Diz Dom Giussani: “Uso a sabemos quem ele era” (título da canção de
palavra moral ou moralidade em seu sentido A. e G. Roscio-A. e G. Agape, Canti, op. cit.,
mais profundo, substancial, que é a postura pp. 206-207); se não ocorrer agora, nós não
da pessoa frente ao Ser, isto é, frente à vida, saberemos quem Jesus é verdadeiramente,
à existência, como origem, consistência, des- mas com Ele, quando Ele acontece de novo,
tino” (L. Giussani, L´io rinasce in un incontro quando Ele vence em nós esse mal-estar, co-
1986-1987, Bur, Milão 2010, p. 42). Que esse é meçamos a entrar no real, na verdade do real,
o sentido da palavra, aqui podemos vê-lo pela como aquele homem mau: “Mas um dia se
sequência do canto. Quando se levantava de perguntou quem era/ que lhe dava a vida,/
manhã, não sentia remorso por algo que es- um dia se perguntou quem era que lhe dava
tivesse errado, não: “Quando se levantava de o amor”. Isto é, o homem começa a perceber
manhã, / tudo o incomodava, / a co- verdadeiramente Quem lhe dá a vida. Come-
meçar pela luz; até o café com leite”. E çamos, então, a mudar a nossa posição frente
“Se não ocorrer nós podemos até ter feito o encontro às coisas e começamos a ver o que antes não
agora, nós não cristão, e também acordar de manhã víamos: “a cor da uva” e “a criança que lhe sor-
e se incomodar com tudo, bem o sa- ria”. Quantas crianças já tinha visto sorrir, mas
saberemos bemos. Mas isso não é obstáculo para de fato não as via! Então “pôs a mão no cora-
quem Jesus é o Senhor: “O Senhor do céu / tantos ção/ e chorou quase um dia inteiro”. É isso que
verdadeiramente, presentes lhe mandava; ele apenas os possibilita ao Senhor nos dar tudo: “E Deus
mas com Ele, observava, / e às vezes até mesmo re- o viu e sorriu;/ tirou-lhe a sua dor,/ e depois
clamava deles”. O resultado dessa nos- lhe deu ainda mais vida,/ deu-lhe ainda mais
quando Ele sa incapacidade de captar a realidade amor”. A conversão, amigos, a consciência
acontece de novo, tal como ela é, ou seja, dom, presente, plena da realidade, tem um objetivo claro:
quando Ele vence em sua verdade – o que nos levaria mais vida, mais amor.
em nós esse mal- a ser gratos, a expressar gratidão tão Uma pessoa me escreve: “Caríssimo padre
Julián, foi muito difícil decidir lhe escrever,
estar, começamos logo abrimos os olhos – o resultado é mas a insistência de um amigo foi uma boa
ficarmos impedidos de fazer a expe-
a entrar no real, na riência de realização da vida, como se razão para fazê-lo. O que está caracterizando
verdade do real” vê pelo fato de que o que prevalece é a a minha vida é o pedido, o pedido para que
lamentação como sentimento último Cristo me comunique a Sua natureza. Há
de si mesmo. meses me separei da minha mulher e estou
Não existem santos, caros amigos! A vida vivendo na dor e na dificuldade. Este ano,
não é poupada a ninguém, nem sequer depois depois de anos de distanciamento do Mo-
do encontro cristão. Se olharmos lealmente, vimento, voltei a participar das férias da co-
sem medo, para a nossa experiência humana, munidade, porque eu desejava que meu filho
é difícil evitar a comoção quando cantamos pudesse ver e participar de algo que é maior
I Wonder: “Enquanto caminho, debaixo do do que ele, do que eu, do que as circunstân-
céu, [como um vagante desanimado posso cias dolorosas e difíceis que estamos viven-
sentir todo o maravilhamento, toda a admira- do. Depois de dois dias de stand by, onde eu
ção] me surpreendo de que Jesus tenha vindo ficava como espectador, essa coisa aconteceu
morrer por uma pobre gente faminta como eu comigo, sofri o impacto de um fato (eu, com
e você” (“I Wonder”, Canti, Cooperativa Edi- minha dor, com minha angústia, com o meu
toriale Nuovo Mondo, Milão 2002, p. 283). nada). Um abraço que despertou meu cora-
O mal-estar que experimentamos e a inca- ção de novo, e isso foi o início de uma pro-
pacidade de sairmos sozinhos de nós mesmos posta para a minha vida, que primeiramente
nos mostram como são pertinentes estas ob- partiu do meu coração e que encontrou vida
servações. Este mal-estar e este lamento po- na companhia em volta de mim. Embora in-
dem se tornar a ocasião para que cada um de digno, me senti objeto de uma imensa mi-
nós conheça quem é Cristo, porque “nós não sericórdia, senti que a vida estava de volta.

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O encontro com um amigo, o seu olhar, o Assim, foi abrindo caminho dentro de mim Trieste (Itália), litoral de
olhar apaixonado dos rostos do dia-a-dia a concepção profunda [isto é conversão!] de Mandracchio.
que estavam em torno de mim e que olha- que eu sou um dom para mim mesmo, que
vam a todo momento a vida como um dom eu sou um dom, e por isso a minha vida deve
de um Outro e não tinham medo do próprio ser um pedido, se eu quiser respeitar a minha
coração: ali entendi que nada sabia a respeito natureza. Assim, não passa um dia que eu
de Jesus, não havia entendido nada de Jesus, não deseje aquele olhar, para aprender quem
embora tivesse sido guia de uma comunida- sou eu e conhecer adequadamente a realida-
de, embora tivesse visto Dom Giussani. Eu de, e comecei a olhar assim, me surpreendi
não tinha entendido nada, e comecei a dizer: olhando tudo dessa maneira. Assim, não
Eu quero Te conhecer, Jesus. Por muito tempo passa um dia sem que o meu pedido se torne
eu estive no Movimento e na Igreja pensan- uma disponibilidade à realidade, até querer
do que sabia quem era Jesus, observando se encontrá-Lo todos os dias nos sacramentos
os outros aderiam à minha ideia de Jesus e e na oração, fundamento desse meu ser e da
da vida, ou até mesmo verificando se Jesus nossa unidade. Os problemas permanecem,
se adequava à minha ideia. Conhecer esse a angústia sempre ataca e a dor, às vezes, é
amigo, a maneira como me olhava, embora tão forte que chega a queimar na carne, mas
sendo um desconhecido, alargou aquela fen- isto não é objeção à verdade do que eu vi,
da que tinha se aberto. O verão acabou sen- à verdade daquele olhar, ou melhor, dentro
do o tempo da memória (quantas vezes eu da minha liberdade (tal como consigo, como
ouvi Dom Giussani dizer isso e experimentei posso), a dor escancara o meu pedido, é uma
fazê-lo, sempre naufragando no meu limite), estranha e misteriosa convivência de dor,
o tempo para buscar esse olhar e ir aonde eu alegria e felicidade!”.
era olhado assim, aonde a realidade era olha- Olhemos para este testemunho: o que é
da assim, e jogar-me dentro. Passei o verão que derrota o relativismo, essa redução da
girando pelo litoral, encontrando os amigos, razão e da liberdade que nos impede de co-
revendo aquele olhar, li muito para rever esse nhecer e de aderir à verdade que nos dá mais
olhar, por toda parte eu buscava aquele olhar. vida, mais amor? A contemporaneidade »

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Los Palacios (Espanha), » de Cristo, a única em condição de magne- do, e eles falaram ao meu, especialmente com a
quadrilha. tizar a nossa razão e a nossa afeição quando sua presença e com o testemunho da sua fé. [...]
encontra em nós a disponibilidade testemu- Aos numerosos adolescentes e jovens, que me
nhada por esse amigo. Não importa em qual acolheram com simpatia e entusiasmo, pro-
estado nos encontremos, nem os anos em que pus que não perseguissem objetivos limitados,
ficamos afastados do Movimento. contentando-se com escolhas cômodas, mas
Essa contemporaneidade, essa força de que visassem coisas maiores, ou seja, buscar
Deus, se torna presente por meio dos aconte- a verdadeira felicidade, que só se encontra em
cimentos, ou de testemunhos como esses que Deus. [...] Quis também falar ao coração de to-
vimos neste verão [europeu]. Mas o Senhor dos os habitantes do Reino Unido, sem excluir
continua a ter piedade do nosso nada e nos ninguém, sobre a verdadeira realidade do ho-
presenteou com uma testemunha ainda mais mem, sobre as suas necessidades mais profun-
espetacular: o próprio Papa. Ele é uma teste- das, sobre o seu destino último” (Bento XVI,
munha dessa vitória sobre o relativismo, não Audiência geral, 22 de setembro de 2010).
apenas por suas palavras, mas sobretudo pelo O que o Papa testemunhou? Deu testemu-
que testemunhou, pela maneira como se colo- nho daquilo que Cristo é capaz de fazer com
cou. De fato, o Papa não defendeu apenas a na- um homem que se torne disponível, que per-
tureza verdadeira do homem frente a qualquer mita ser gerado por Ele. Cristo gera uma cria-
redução, mas se dirigiu à pessoa sem reduções, tura tão nova que deixa a todos sem palavras.
ao que é mais original na pessoa, mais profun- Isso se vê pelo uso da razão, testemunhado
do do que todas as incrustações culturais: o co- pelo Papa, por uma inteligência da fé que se
ração; e o fez testemunhando hoje a paixão que torna inteligência da realidade, pela liberdade
Cristo tem pelo homem. Ele disse: “Nas quatro de se colocar sem ambiguidades frente à rea-
intensas e belíssimas jornadas transcorridas lidade, diante de todos, por uma humildade
naquela nobre terra, tive a grande alegria de que desarma e que deixa todo mundo atônito,
falar ao coração dos habitantes do Reino Uni- pela ingênua ousadia de dar um testemunho

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ardoroso, apaixonado e inteligente de Cristo. encontra, com as quais se depara, mas dos
Todos ficaram sem palavras ao ouvi-lo. Basta preconceitos [terrível!]. O ponto de partida do
consultar os jornais ingleses. Cito apenas um, cristão é um Acontecimento. O ponto de par-
o editorial do The Telegraph: “Alguém pode tida de todo o resto do pensamento humano
ter-se sentido ofendido com estas palavras, é uma certa impressão e avaliação das coisas,
dado o fracasso do Vaticano – agora admiti- uma certa posição que alguém assume antes
do corretamente por Bento XVI – na gestão de enfrentar as coisas, sobretudo antes de jul-
dos graves crimes de uma pequena minoria gá-las” (L. Giussani, L´uomo e il suo destino.
do próprio clero. Mas suspeitamos que mui- In cammino, Marietti, Gênova 1999,
tas outras pessoas tenham colocado de lado p. 109). E isso acontece diante das “O que é que
as próprias reservas em relação à Igreja e con- mesmas coisas!
fessaram a si mesmas: Ele tem razão” (The Te- Ouçam o que um de vocês me derrota o
legraph, 17 de setembro de 2010). diz: “Caro Julián, o caminho que relativismo, essa
Esta é a humanidade que nasce da fé, uma você está nos levando a fazer revela- redução da razão
estatura humana capaz de dar contribuição se cada vez mais determinante para e da liberdade
decisiva à vida dos homens. Quem de nós não mim e para muitos amigos. A Escola
desejaria uma humanidade assim, a capaci- de Comunidade sobre a esperança
que nos impede
dade de se colocar – em nossos ambientes de (É possível viver assim?, Cia. Ilimita- de conhecer e de
trabalho, como também nas universidades, na da, São Paulo 2008, pp. 147-210) fez aderir à verdade
família ou no meio dos amigos, sozinhos ou emergir de modo clamoroso o pro- que nos dá mais
em grupo – com esta inteligência e esta liber- blema: quantos de nós não viviam a
vida, mais amor? A
dade, com esta paixão por cada um? Para che- certeza! Inclusive para pessoas que
gar a esse ponto, amigos, é preciso continuar o estava há muito tempo no Movi- contemporaneidade
nosso percurso porque essa humanidade não mento, a vida se apoiava de fato em de Cristo, a única
se torna mecanicamente nossa; não nos iluda- outras coisas e a esperança – efeti- em condição de
mos: é preciso uma trajetória de conversão – vamente vivida – só se mantinha se magnetizar a nossa
como a de Newman – para derrotar dentro de as circunstâncias fossem favoráveis.
nós a influência do relativismo, que dificulta Uma coisa importante foi repen- razão e a nossa
o conhecimento da verdade, essa verdade que sar a minha responsabilidade (guio afeição”
nos dá mais vida e mais amor. uma Escola de Comunidade, e sou
o prior de um grupinho de Fraternidade), e
2. As três reduções percebi estar se tornando mera função: depois
Mas como o relativismo (este clima cul- de tantos anos de Movimento temos sempre
tural que torna difícil a atuação dessa capa- a respostinha correta, com a qual todos estão
cidade de conhecer a verdade da realidade) de acordo, vamos atrás de uma frase tirada
incide sobre nós, que encontramos o acon- de um outro livro de Giussani, fazemos ou-
tecimento cristão? De novo Dom Giussani tras citações apropriadas, o amigo mais velho
se torna nosso companheiro de caminhada nos diz sempre alguma coisa interessante que
e identifica três reduções. pontualmente citamos nos encontros; e tudo
isso nos ajuda a nos sairmos bem. O proble-
a) A primeira é a prevalência da ideolo- ma é que raramente eu dava uma contribui-
gia sobre o Acontecimento: “A relação com a ção de experiência real, vivida à luz do que
realidade que o homem vive de manhã até à estávamos dizendo. Eu era o primeiro a não
noite pode ser uma iniciativa contínua, uma entrar na realidade com a hipótese que nos
tentativa contínua frente ao que acontece e ao era sugerida, e, portanto, eu era o primeiro
que ele experimenta; ou então o homem pode a ser enquadrado pelas circunstâncias. Frente
ser movido, pode deixar-se mover por algo, aos problemas da vida, colocar-me diante das
pode obedecer a alguma coisa que não nasce, coisas que nos são ditas às vezes me irritava,
não brota do seu modo de reagir às coisas que porque eu queria algo que resolvesse o meu»

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» problema, não estava interessado em algo te o meu não, com as mãos tapando os olhos,
que me colocasse na posição justa; inclusive pode impedir o meu renascimento”.
os testemunhos, paradoxalmente, às vezes Esse amigo nos testemunha, de maneira
até me deixavam incomodado, aumentavam positiva, que sem que o homem perceba, é
o meu ceticismo; bem lá no fundo eu me di- como se no juízo sobre as coisas se infiltrasse
zia: o que aconteceu com eles jamais acontecerá um discurso já ouvido (a palavra justíssima,
comigo. Foi uma graça eu ter percebido isso! a respostinha, o preconceito que faz aparecer
Os Exercícios foram um ponto de questiona- bem). Todo este ideologismo é mais comum
mento decisivo, comecei a enfrentar do que pensamos! Ao invés, o cristianismo é
“O cristianismo é a realidade procurando estar cons- um acontecimento, e por isso está presente; e
um acontecimento, ciente do desafio que lançávamos, e o ponto de partida do cristão não é a ideolo-
a esse propósito conto um fato que gia ou preconceito, mas um acontecimento. Só
e por isso está me impressionou bastante. Um ami- o reconhecimento deste fato impede que nos
presente, é o go estava enfrentando a realidade do tornemos escravos de uma ideologia, que é o
ponto de partida trabalho com uma superficialidade desenvolvimento lógico do preconceito. A úl-
do cristão, não tal que me deixava chocado, colocan- tima forma da ideologia é a negação dos fatos,
do em risco um ótimo emprego que, que tornam esse acontecimento contemporâ-
é ideologia ou neo, agora, deixando-nos à mercê da interpre-
se perdido, jogaria a numerosa fa-
preconceito, mas mília numa situação dramática; não tação: Não existem fatos, só interpretações (F.
acontecimento. Só dava bola para a realidade, deixava- Nietzsche, Frammenti postumi 1885-1887, in
o reconhecimento se guiar pelo preconceito e pelo gosto Opere, Adelphi, Milão 1975, vol.VIII, fr. 7 (60),
desse fato impede pessoal. Isso me desagradava muito e p.299).
eu dizia para mim mesmo: como isso Dá calafrio só de pensar na encruzilhada
que nos tornemos é possível? Só que, refletindo sobre em que nos encontramos: “A Sua presença
escravos de uma o que significava essa provocação, tornou-se visível, tangível e experimentável
ideologia” percebi que eu fazia a mesma coisa pelo fato de mudar a vida das pessoas que es-
ao enfrentar a realidade. Portanto, o tão na comunidade, na companhia. Por isso,
Mistério, através daquela circunstância, esta- a lucidez com que se percebe o testemunho
va me corrigindo. Surpreendentemente fiquei de alguém, do outro – mesmo não sendo ele
comovido, me senti amado como nunca, e o chefe –, a agudeza com que se percebe o
desde então começou na minha vida uma di- testemunho, ainda que furtivo, todo discreto,
nâmica nova: a realidade começa (devagarzi- presente nas pessoas da comunidade, é o sinal
nho, mas está começando) a ser o lugar onde mais grandioso da honestidade de que faláva-
Alguém nos chama, e isso dá um gosto até mos antes. Inversamente, não existe nenhum
então desconhecido. Antes eu tinha a impres- sinal maior da desonestidade do que, dentro
são de que nada de novo poderia acontecer da companhia, notar os defeitos. Similes cum
no quotidiano. Agora acontece sempre tudo similibus facillime congregantur: a pessoa cap-
– ou melhor: Tudo –, as situações, inclusive ta o que é semelhante a si. Se em você pre-
as pesadas, começam a ser enfrentadas com domina o mal [mau, mau, mau], você viverá
ímpeto, ousadia, com o desejo renovado de lamentando o mal; se em você predomina a
ir em frente. É evidente que essa energia não busca da verdade, você descobrirá a verdade”
vem de mim! Como fico comovido e mara- (L. Giussani, Uomini senza patria 1982-1983,
vilhado ao ver tão claramente que Cristo me Bur, Milão 2008, p. 277). Essa é a tentativa
transforma! E quem seria, se não Ele? Outras extrema de evitar a conversão: negar a exis-
vezes eu diria ceticamente Sim, agora é assim, tência dos fatos, dos acontecimentos (porque
mas depois tudo voltará ao que era antes; isso se o cego de nascença não fosse curado, aí
não me importa mais: Ele próprio pensará em os judeus não precisariam mudar de atitude;
reconstruir tudo, até que eu O reconheça de portanto, basta negá-lo, para se continuar tei-
novo, comovendo-me mais uma vez. Somen- mosamente no próprio caminho).

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“...um dia se perguntou quem era...”

b) Introduzo uma segunda redução: a balho de Escola de Comunidade, teria deixa- Ilha Sagar (Índia),
peregrinos em busca de
redução do sinal a mera aparência. “Se o do tudo escorrer pelos dedos, como água. O
purificação no Gange.
homem cede às ideologias dominantes, sur- fato é o seguinte: uma noite, depois do traba-
gidas da mentalidade comum, verifica-se lho na feira, fui jantar com alguns amigos de
uma luta, uma divisão, uma separação entre Cremona e de Milão, e um deles me diz: ‘Está
sinal e aparência; daí se segue a redução do conosco um jovem que não é do Movimento
sinal a mera aparência. Quanto mais se tem e eu o convidei para vir também. Algum pro-
consciência do que o sinal é, mais se enten- blema?’. Absolutamente não, lhe digo. E assim
de o desastre de um sinal reduzido a mera nos encontramos num pequeno restaurante à
aparência. O sinal é a experiência de um fa- beira da praia, para comer peixe. Esse jovem é
tor presente na realidade que me remete a um operário de 23 anos e, não sendo do Mo-
outro. O sinal é uma realidade experimen- vimento, não sabia o que seria o Meeting, nem
tável, cujo sentido está em outra realidade; o o que esperar dele. De repente, ele intervém:
sinal revela o significado conduzindo a uma ‘Nestes dias na feira, vi logo os estandes em
outra realidade. Por isso, não seria razoável, que vocês trabalham e quais os estandes nos
humano, esgotar a experiência do sinal ao quais trabalham os operários das firmas de
seu aspecto perceptivamente imediato, ou preparação de eventos’. Eu fiquei impressio-
aparência. O aspecto perceptivamente ime- nado com essas palavras dele, era a primeira
diato de qualquer coisa, a aparência, não vez que participava do pré-Meeting e estava
mostra toda a experiência que temos das na feira há apenas dois dias. No dia seguin-
coisas, porque não fala do seu valor de si- te, procurou por toda parte um padre para se
nal” (L. Giussani, L´uomo e il suo destino. In confessar (o que não fazia há seis anos). Esse
cammino, op. cit., p. 112). fato – a clareza do juízo que deu repentina-
Vejam este testemunho: “Oi, Julián, dese- mente na noite anterior e o que aconteceu
jo contar-lhe um fato que aconteceu comigo no dia seguinte – me provocou e me questio-
durante o pré-Meeting (eu trabalho na pre- nou profundamente. Eu me perguntei: Mas
paração, como sempre, repartindo as respon- o que foi que ele viu? Exatamente o que viam
sabilidades com outros), fato que, sem aquilo os meus olhos e os olhos de todos os outros
que você nos mostrou nestes anos, pelo modo que giravam pela feira, nada mais e nada me-
como mergulhamos no que acontece e no tra- nos, e ninguém fez nenhum discurso nem »

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“...um dia se perguntou quem era...”

» sermão para ele. Mas, então, como é que a pecado original, a ser vítimas do aparente, do
mesma coisa provocou um empurrão no co- que aparece, porque soa como a forma mais
ração dele, ao passo que para mim era tudo fácil da razão. Há uma certa atitude de espíri-
normal e óbvio? Mas, então, para reconhecer to que faz mais ou menos isso com a realidade
a grande Presença é mesmo verdade que o do mundo e da existência (as circunstâncias,
problema não é o que vejo, não precisa de fato a relação com as coisas, a família a ser consti-
sensacional, mas tudo depende de como eu tuída, os filhos a educar...): acusa o golpe, mas
estou diante da realidade, tal como ela vem ao breca a capacidade humana de penetrar nele
meu encontro! Não pude deixar de lado esse à procura do significado, para o qual inega-
fato, e a partir daquele momento tudo mudou velmente o fato mesmo da nossa relação com
para mim: as coisas eram as mesmas de todos a realidade solicita a inteligência humana. Ou
os dias, mas tudo era diferente e quando ter- seja, bloqueia-se a própria capacidade da in-
minou o Meeting voltei para o trabalho, e esta- teligência humana de penetrar nele em busca
va ansioso para recomeçar a trabalhar, porque do significado, para o qual somos solicitados
entrar na realidade com esse olhar desejoso pela nossa relação com o que nos impressio-
de descobrir como eu seria surpreendido pelo na. A inteligência humana não pode deixar
Mistério, quais fatos aconteceriam dentro da de deparar com alguma coisa sem perceber
normalidade do trabalho, é justamente aquilo que ela, de algum modo, é sinal de uma outra
que mais desejo, porque nada, nada mesmo, é realidade, insinua a existência de uma outra
contra mim. Obrigado por estar nos desafian- realidade. Um eco desses conceitos podemos
do, acompanhando-nos paternalmente, mas encontrar numa afirmação de Hannah Aren-
sem poupar-nos de nada”. dt: A ideologia não é a ingênua aceitação do
Dom Giussani explica isso muito bem: “A visível, mas a sua inteligente destituição. A ide-
grande tentação do homem é esgotar a ex- ologia é a destruição do visível, a eliminação
periência do sinal, de uma coisa que é sinal, do visível como sentido das coisas que aconte-
Lalibela (Etiópia): a
celebração do Timkat, interpretando-a apenas em seu aspecto per- cem, o esvaziamento do que vemos, tocamos,
a Epifania dos etíopes ceptivamente imediato. Não é razoável, mas percebemos. Assim, não temos mais relação
ortodoxos. todos os homens são levados, pelo peso do com nada. Quando Sartre fala das suas mãos

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“...um dia se perguntou quem era...”

– Minhas mãos, o que são as minhas mãos? –, passo que o coração indica a unidade de sen-
define-as como a distância imensurável que timento e razão. Isso implica uma concepção
me divide do mundo dos objetos e me separa de razão não bloqueada, uma razão segun-
deles para sempre, operando assim uma des- do toda a amplitude da sua possibilidade: a
tituição do visível, do aspecto contingente. razão não pode agir sem o que se chama de
A destituição do contingente é, por exemplo afeição. É o coração – razão e afeti-
[vejam como Dom Giussani expõe plastica- vidade – a condição da atuação sa- “Quando nos
mente a coisa], afirmar que o que acontece dia da razão. A condição para que
acontece porque acontece, evitando assim o a razão seja razão é que seja reves- surpreendemos
impacto e a exigência de olhar o presente, um tida de afetividade e assim mova o vendo o
determinado presente, em sua relação com a homem todo. Razão e sentimento, acontecimento
totalidade” (Ibidem, pp. 112-113). razão e afeição: esse é o coração do prevalecer sobre a
Assim, não precisamos mais mudar, não homem” (Ibidem, pp. 116-117).
precisamos mais nos converter. Eu fico real-
ideologia, o sinal
mente atônito diante de certas interpretações 3. A vitória sobre o relativismo: sobre a aparência,
que esvaziam o que acontece entre nós... a memória o coração sobre
Dom Giussani termina esse ponto alertan- Esta observação de Dom Gius- o sentimento?
do-nos para a luta que se dá atrás dos basti- sani pode nos ajudar a identificar o Poderíamos colocar
dores: “A sensibilidade para perceber todas caminho da vitória sobre o relativis-
as coisas como sinal do Mistério é a tranqui- mo, e com isso pretendo terminar. diante dos olhos
la verdade do ser humano [já o vimos: até o Quando nos surpreendemos uma imagem que
recém-chegado é capaz de fazê-lo]. A ela se vendo o acontecimento prevale- facilitasse essa
opõe a tirania de quem tem nas mãos o po- cer sobre a ideologia, o sinal so- compreensão?
der, motivado por uma ideologia que nega bre a aparência, o coração sobre o
esta consideração que o homem atribui a uma sentimento? Poderíamos colocar Ajudou-me muito
coisa” (Ibidem, p. 114). diante dos olhos uma imagem que o critério que
facilitasse essa compreensão? Eu, Dom Giussani nos
c) Por que acontece isso? Pela terceira re- como vocês, estou cercado por oferece...”
dução, isto é, porque reduzimos o coração a testemunhos, por fatos excepcio-
sentimento: “Nós tomamos o sentimento, e nais que me deixam maravilhado, porque
não o coração, como o motor último, como documentam a contemporaneidade de
a razão última do nosso agir. O que isto quer Cristo. E eu me perguntava: Mas quando
dizer? Que a nossa responsabilidade se tor- foi que esses fatos me levaram a reconhecê-
na vã justamente por ceder ao uso do senti- Lo? Ajudou-me muito o critério que Dom
mento como predominante sobre o coração, Giussani nos oferece: “Quando pensamos
reduzindo assim o conceito de coração ao de n’Ele seriamente, com coração, no último
sentimento. Ao invés, o coração representa e mês, nos últimos três meses, de outubro até
age como o fator fundamental da persona- agora? Nunca. Não pensamos nunca n’Ele
lidade humana; o sentimento não, porque como João e André pensavam enquanto o
tomado sozinho o sentimento age como re- ouviam falar. Se fizemos perguntas sobre
atividade, no fundo é animalesco. Ainda não Ele foi por curiosidade, análise, exigência
compreendi – diz Pavese – qual a tragicidade de análise, de busca, de esclarecimento.
da existência [...] No entanto, é clara: é preci- Mas que tenhamos pensado n’Ele como al-
so vencer o abandono voluptuoso e deixar de guém realmente apaixonado pensa na pes-
considerar os estados de espírito como escopos soa pela qual se apaixonou (mesmo aqui
em si mesmos. O estado de espírito tem ou- rarissimamente acontece, pois tudo é cal-
tro objetivo, para ser digno: tem o objetivo culado com base no retorno!), puramente,
de uma condição colocada por Deus, pelo de modo absolutamente, totalmente dis-
Criador, através da qual nos purificamos. Ao tanciado, como puro desejo de bem...” »

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“...um dia se perguntou quem era...”

» (Giussani, É possível viver assim?, 2ª ed. falta é “a existencialidade da memória” (L.


São Paulo: Companhia Ilimitada, 2008, p. Giussani, L´io rinasce in un incontro, op. cit.,
272-274). p. 47), não a temos nem mesmo no canto dos
Aí se contrapõem dois modos de conhe- olhos, nos diz Dom Giussani.
cer. Pensar n’Ele seriamente, com o coração, Quanto ainda temos que caminhar na
significa pensar como João e André pensa- conversão para que isso se torne familiar!
vam n’Ele. Olhavam-no enquanto falava, Basta vê-lo em quão poucas vezes surpreen-
totalmente tomados, magnetizados demos em nós a experiência de João e André
pela Sua presença, onde a razão, enquanto O olhavam falar, e percebo quan-
“Pensar n’Ele que os ajuda a entrar nas profunde- do, pela graça de Deus, fui salvo de mim
seriamente, com o zas do mistério daquela pessoa, era mesmo, pela redução em que havia caído.
coração, significa salva pela afeição. Como isto é dife- Aconteceu comigo esta semana, em diver-
pensar como João rente da prevalência da mera curio- sas ocasiões em que eu estava todo apegado
a algo que eu estava vendo através da pes-
e André pensavam sidade, análise, pesquisa para escla-
recimento, onde a razão é reduzida soa que me contava a história; por exemplo,
n’Ele. Olhavam-no a mero instrumento – o sinal redu- fiquei de boca aberta quando uma pessoa
enquanto falava, zido a aparência –, porque separada me contava como, no momento culminante
totalmente tomados, da afeição. Que diferença abissal! de um namoro, se surpreendeu ao perceber
a imponência da presença de Cristo, que a
magnetizados pela Quem conhece melhor: o que pensa
como o apaixonado pensa na pessoa deixou inteiramente inquieta: essa pessoa é
Sua presença. Com amada ou quem está ali para fazer a primeira a ser vencedora nessa situação.
essas palavras, o uma análise? Como gostaríamos de E isso facilita em mim fazer novamente no
que Dom Giussani ser olhados? Quem captaria melhor presente a experiência de João e André, tan-
está descrevendo? o valor do nosso eu? A verificação to é verdade que me surpreendi, na manhã
de que saímos dessa redução de nós seguinte, enquanto fazia o silêncio, a pensar
A memória” mesmos – que somos razão e afei- naquelas pessoas que me haviam arrancado
ção – e da realidade é quando sur- da minha redução para ficar todo magneti-
preendemos em nós mesmos a experiência zado com a Sua presença.
sintética de João e André; porque aí, nesse Sem esse acontecimento, a ruptura entre
encontro, aconteceu a primeira vitória so- saber e crer não pode ser superada, e o rela-
bre o relativismo, e portanto isso nos ofere- tivismo vence, porque nada consegue magne-
ce o critério para reconhecê-la sempre. tizar totalmente o meu eu. Isso revela, ainda,
Com essas palavras, o que Dom Giussa- quanta atenção precisamos dedicar ao real,
ni está descrevendo? A memória: “Assim, o que exigência precisamos ter de Cristo: que se
cristianismo é um acontecimento e, por isso, torne carnalmente presente. Nós podemos re-
está presente, está presente agora, e a sua duzir João e André a uma lembrança do pas-
característica é que está presente como me- sado, e não fazer deles o critério para julgar a
mória; onde a memória cristã não é idêntica nossa experiência agora. Com o uso do episó-
a lembrança, ou melhor, não é lembrança, e dio evangélico que vimos, Dom Giussani tira
sim a própria Presença novamente” (L. Gius- João e André da possível redução sentimental,
sani, L´uomo e il suo destino. In cammino, fazendo deles o critério para reconhecer a vi-
op. cit., p. 111). O cristianismo nasce como tória sobre o relativismo.
acontecimento que se encarna no presente Para alguns começa a ser assim: “Caro Ju-
como memória. E a memória é o conteúdo lián, tenha paciência, mas de vez em quando
da consciência do cristão. Entendemos bem não resisto à vontade de lhe escrever, já que
isso olhando João e André: era Cristo quem não posso conversar pessoalmente com você.
dominava o olhar deles, e por isso a memória Quando encontrei um amigo recém-chegado
é a vitória sobre o relativismo, porque fomos da última Assembleia Internacional dos Res-
criados para conhecer o Cristo. O que nos ponsáveis, creio que compreendi o que a mu-

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“...um dia se perguntou quem era...”

-lher de André e seu irmão Simão viram e quando não há relação, dos dois, nunca é Lago de Grado (Itália),
quando ele voltou do encontro [com Cristo]. Ele que está faltando”. vale de pesca.

Não lembro de nenhuma palavra do que o Qualquer que seja a forma através da qual
amigo me disse (inclusive porque ele estava acontece agora, a vitória sobre o relativismo
muito agitado), mas observei seus olhos, seu terá sempre como critério aquele apego único
coração, e esperei ansiosamente chegar pelo a Cristo presente, que João e André documen-
correio a revista, com seu precioso suple- tam para sempre e que não poderá jamais ser
mento. Só esta noite, finalmente, a recebi. Na reduzido a uma nossa análise e menos ainda a
página 8 fiquei paralisado. Você diz [na reali- um comentário ou a uma mera emoção. Sinais
dade, é Dom Giussani quem diz]: Quando foi dessas reduções são o mal-estar e a lamenta-
que pensamos n’Ele seriamente, com o coração, ção. A alternativa ao mal-estar e à lamentação
no último mês, nos últimos três meses, de ou- é a vida como memória: “Viver é a memória
tubro até agora? Nunca”. Perdoe-me, mas do de Mim”! E por isso Dom Giussani insiste:
fundo do coração gostaria de dizer: Sempre. “Para esta luta diária contra a lógica do poder,
Não conseguiria nem respirar se todo dia não para esta vitória quotidiana sobre o aparente e
O encontrasse desse modo. É assim, eu não o efêmero, para afirmar esta presença consti-
posso mais viver sem que todos os dias suce- tutiva das coisas em seu destino que é Cristo,
da isso. Eu lhe agradeço de coração porque o que movimento pessoal é necessário! É a re-
trabalho feito este ano com você, seguindo-o vanche da pessoa sobre a alienação do poder.
tão de perto que até sinto fisicamente a sua Que movimento pessoal!” (L. Giussani, L´io
respiração, me tornou capaz de não desistir rinasce in un incontro, op. cit., p. 194). Este
jamais, de mergulhar em cada circunstância movimento pessoal é a conversão.
da vida, feia ou bonita, positiva ou negativa, Amigos, temos que decidir o que fazer
e ficar comovido só diante do maravilha- quando crescermos: continuar a nos conten-
mento de tal evidência, totalmente doada, tar com “segundas opções”, como as descreveu
totalmente gratuita. Quero dizer que Ele está o Papa aos jovens britânicos (dinheiro, carrei-
presente sempre, tanto na luminosidade do ra, etc.), continuando a ser levados pela onda,
sol quanto na chuva insidiosa ou na escuri- sem jamais tomar posição séria em relação a
dão pesada da noite; e é sempre relação viva, Cristo; ou entregar-nos a Ele. O problema »

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“...um dia se perguntou quem era...”

» para muitos de nós é que já somos adultos e adendo à coisa realmente importante, que se-
o tempo voa. Por isso, no início deste ano faço ria a palavra. No entanto, a Igreja desafia cons-
votos de que vocês decidam, peçam, mendi- tantemente essa redução que nós fazemos do
guem para pertencer a Ele, cedam à atração cristianismo, convidando-nos a participar de
d’Ele. Só assim poderemos ver acontecer em um acontecimento, do acontecimento da Sua
nós a derrota do relativismo. Basta não nos presença agora, que é este gesto eucarístico,
contentarmos com menos do que Ele, como onde nos é proposta de novo a Palavra, com
nos testemunha o décimo leproso. Graças a toda a Sua força, no seio deste acontecimen-
Deus há entre nós cada vez mais to da Sua presença, que veremos
pessoas que não se contentam “Graças a Deus ocorrer na transformação do pão
com a cura, nem com a bela com- há entre nós e do vinho no corpo e no sangue
panhia dos outros nove: assim cada vez mais de Cristo.
como o décimo, é Ele que que- Isso não é ideologia; é um even-
rem! A companhia verdadeira é pessoas que não to. É dentro desse evento que po-
feita por “décimos leprosos”, por se contentam com demos entender toda a dimensão,
pessoas como o décimo leproso. a cura, nem com toda a importância que damos à
Esta é a nossa responsabilidade, a bela companhia conversão. Ele, presente em nosso
depende de nós. Neste sentido, o meio, contemporâneo a nós, nos
trabalho pessoal e a responsabili-
dos outros nove: dirige esse chamado à conversão
dade pelos outros coincidem. Por assim como o por meio das leituras (Am 6,1.4-7 e
isso, a frase de Dom Giussani – A décimo, quer 1Tm 6,11-16) que acabamos de ou-
responsabilidade é a conversão do justamente Ele!” vir, e que nos dizem qual é o alcance
eu ao acontecimento presente – é do chamado à conversão.
um resumo do que nos cabe: não Podemos estar aqui – como diz
poderemos dar uma contribuição para a vitó- o profeta Amós – despreocupados e seguros,
ria sobre o relativismo se nós, por primeiro, sem entender verdadeiramente que o proble-
não cumprirmos a trajetória. Se caminharmos ma dos problemas é a relação da vida com o
juntos, poderemos nos tornar uma presença, Mistério, como o homem da parábola, que vi-
uma diversidade na sociedade, mostrando a via todo distraído, atento a outras coisas. Mas
verdade do que o Papa diz e testemunha. Cada – como nos diz São Paulo – há Alguém que
um de nós precisa estar bem consciente da nos chama: “Procure alcançar a vida eterna”,
responsabilidade diante de Deus, do trabalho porque essa é a questão, amigos, como o Mis-
que somos chamados a realizar, para podê-lo tério evoca de novo e tantas vezes.
testemunhar em qualquer ambiente. Mas conosco acontece como àquele ho-
Como testemunha um presidiário: “Olhan- mem rico do Evangelho, cuja passagem aca-
do para mim mesmo, hoje, tenho a consciência bamos de ouvir (Lc 16,19-31), o qual, tão logo
de que, me libertando dos estereótipos e das ca- chega ao outro lado da vida, toma consciência
deias sociais e culturais posso entrar numa rea- da verdade, da dimensão eterna da vida, se
lidade nova. Esta beleza é única, irrepetível”. apressa em ajudar às pessoas que ama, à sua
família; e o que lhe ocorre pedir a Abraão?
HOMILIA NA SANTA MISSA “Peço-lhe que mande Lázaro à casa do meu
JULIÁN CARRÓN pai, porque tenho cinco irmãos. Advirta-o se-
veramente para que eles também não venham
O sinal mais simples de que o cristianismo parar neste lugar de tormento”. “Mas Abraão
é um acontecimento, e não uma ideologia, é respondeu: eles têm Moisés e os Profetas. E
justamente o gesto que estamos celebrando. ele: Se algum dos mortos for até eles, se con-
E até que ponto a ideologia cresce em nós ou verterão. E Abraão respondeu: Se não escutam
incide sobre nós se vê pelo fato de que muitas Moisés e os Profetas, não serão convencidos
vezes pensamos que esse gesto é apenas um nem que alguém ressuscite dos mortos”. P

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