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Rio de Janeiro, GB – Fone: 32-272 1

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Artes Gráficas Gomes de Sousa S.A.
Rio de Janeiro – Brasil

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OS
VAMPIROS
DE
ANGOLA

Capa de BENÍCIO

Copyright ©Editora Monterrey Ltda.

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COLEÇÃO K. O. DURBAN

NÚMEROS PUBLICADOS
1 – Traição no Vietnam – I
2 – Traição no Vietnam – II
3 – Desencontro em Moscou – I
4 – Desencontro em Moscou – II
5 – Crime no teto do Mundo – I
6 – Crime no teto do Mundo – II
7 – O Segredo dos UFOS – I
8 – O Segredo dos UFOS – II
9 – Atentado em Pequim – I
10 – Atentado em Pequim – II
11 – Pânico em Berlim – I
12 – Pânico em Berlim – II
13 – Conflito em Israel – I
14 – Conflito em Israel – II
15 – Violência na América – I
16 – Violência na América – II
17 – Conta o Dragão Vermelho – I
18 – Conta o Dragão Vermelho – II
19 – Contra o Homem Forte do Haiti – I
20 – Contra o Homem Forte do Haiti – II
21 – Contra o Monstro do Ártico – I
22 – Contra o Monstro do Ártico – II
23 – Contra o Terror de Chipre – I
24 – Contra o Terror de Chipre – II
25 – Contra os Vampiros de Angola – I
26 – Contra os Vampiros de Angola – II
27 – Contra os Fenômenos da Ilha – I
28 – Contra os Fenômenos da Ilha – II
29 – Contra os Nazistas do Paraguai – I
30 – Contra os Nazistas do Paraguai – II
31 – Contra o Dono da Bomba H – I
32 – Contra o Dono da Bomba H – II
33 – Assassinos de Estudantes – I
34 – Assassinos de Estudantes – II
35 – Missão Submarina – I
36 – Missão Submarina – II
37 – Morte na Fórmula V – I
38 – Morte na Fórmula V – II
39 – Caça ao Homem de Hong Kong – I
40 – Caça ao Homem de Hong Kong – II

Especial – Os Três Pecados de K.O. Durban


Especial – Operação Carnaval

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AOS NOVOS FREGUESES

Se o leitor já conhece K. O. Durban, por tê-lo


acompanhado em suas aventuras anteriores, não precisa
ler sua ficha técnica, arquivada no Computador Eletrônico
do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Mas, se
só agora o leitor trava conhecimento com o nosso herói,
aqui está a ficha:
“NOME: Keith Oliver Durban.
APELIDO: Nocaute Durban.
IDADE: 34 anos.
NATURALIDADE: Norvich, Norfolk, Reino Unido.
Naturalizado norte-americano. Posteriormente, cidadão
do mundo.
FILIAÇÃO: Filho de um baronete inglês, cujo nome
prefere omitir.
PROFISSÃO: Ex-detetive de Scotland Yard. Ex-agente
do IS (IM13, Serviços Especiais). Ex-espião da CIA.
Atualmente, Senhor de Aloana e agente secreto
independente.
CARACTERÍSTICAS FÍSICAS: 5 pés e 8 polegadas de
altura, 200 libras de peso, pele morena, olhos verdes e
cabelos castanhos, ondulados. Constituição atlética.
ESTADO CIVIL: Seis noivas na Ilha de Aloana.
RESIDÊNCIA: Aloana, Arquipélago do Havaí.
Considera a sua ilha Território Independente, inclusive
com bandeira própria: branca, tendo ao centro dois punhos
cruzados, dando uma “banana” vara o resto do mundo.

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“CURRICULUM-VITAE”: Agente do IS britânico e
detetive adido ao DIC de New Scotland Yard de 1952 a
1957. Dezenas de crimes misteriosos esclarecidos, em
Londres e arredores. Agente da CIA de 1955 a 1965.
Envolvido em centenas de casos de espionagem
internacional, alguns ainda guardados em sigilo. Vide seu
dossiê do QG da CIA, em Langley, Washington. Paladino
da Justiça e defensor das liberdades civis. Recentemente,
atuou com êxito no Vietnam, União Soviética, Cordilheira
do Himalaia, Austrália, Brasil, China Popular, Alemanha,
Oriente Médio, Estados Unidos, Japão, Haiti, Groenlândia
e Chipre.
OBSERVAÇÕES: Indivíduo recalcitrante e difícil de
ser controlado. Expulso da CIA em 1965, depois de ter
fuzilado alguns diplomatas e espiões neonazistas, à revelia
de seus superiores, quase provocando a última Guerra
Mundial. Comprou a ilhota de Aloana, no Oceano Pacífico,
e declarou sua independência, criando um Estado Livre
Insular, no estilo Anárquico-Romântico. Mora na ilha,
como um novo Carlos Magno, em companhia de suas
noivas Gerda Offenbach, Consuelo Fernandez, Pétala de
Lótus, Filha de Búfalo, Jandira da Silva e M’bata Kaolack
(uma para cada dia da semana, descanso aos domingos) do
crioulo indiano Jeremias Onamunis (seu eunuco e mestre
de karatê) e outro crioulo (Gabriel Smith) mecânico de seu
caça a jato e maquinista de seu iate “Vida Mansa”. Agora,
que se aposentou, diz que seu único desejo é pescar
arenques e barrancudas, esquecido de tudo e de todos, na
sua ilha de Aloana. Esse é o seu desejo. Mas não é o que
tem acontecido

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OUVERTURE

A Colônia portuguesa de Angola (que o governo do Dr.


Oliveira Salazar chama, por eufemismo, “província
ultramarina’) fica na África Ocidental, entre a República do
Congo, a Rodésia do Norte, a África do Sudoeste e o
Oceano Atlântico. Angola é dividida em sete províncias, ou
distritos (Luanda, Cabinda, Congo, Malange, Benguela, Bié
e Huíla) aos quais foi acrescido o distrito de Sunda(1), ao
norte, na fronteira com o Congo. É neste distrito, isolado no
meio da mataria tropical, que transcorre a nossa história.

(1) Este nome é fictício. Também são fictícios todos


os personagens e acontecimentos descritos neste livro. Não
há motivos, portanto, para que Nocaute Durban seja
proibido de entrar em Portugal.

No dia 25 de junho do ano passado (enquanto Nocaute


Durban se dedicava a combater o Terror de Chipre)
estourou uma revolta no Sunda. O movimento, de tendência
separatista, era chefiado pelo Major João Natanga, à frente
de alguns nacionalistas negros e um grupo de mercenários
brancos, comandados pelo jovem sargento angolano
Francisco Macundo. De início, o Major Natanga matou, a
tiros de pistola, o Administrador-Geral do Sunda (Tenente-
Coronel Manoel Botucatu) e passou a controlar o Palácio
do Governo e o Erário, recebendo o apoio do chefe do

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Estado Maior do falecido Administrador-Geral, Tenente-
Coronel Manuel Caxumbela.
— Sou um soldado — disse o Tenente-Coronel
Caxumbela, ao ter notícia de que o ouro de Sunda estava
em poder dos rebeldes. — Devo ser fiel ao Governo que me
paga e respeitar a hierarquia da caserna! Se o Governo
mudou, minha formação militar, intransigente no
cumprimento do dever, obriga-me a aderir ao mais forte,
pois este passou a ser o meu superior hierárquico. Sou um
técnico e não um político; não há razões para que renuncie
ao meu emprego!
Graças a esta atitude enérgica (e inteligente) o cabo-de-
guerra continuou no seu posto, como chefe do Estado-
Maior do governo revolucionário. Depois, quando as tropas
mercenárias do Sargento Macundo acabaram de subjugar os
últimos focos de resistência da guarnição militar
portuguesa, os rebeldes fecharam as fronteiras da província
e o Major Natanga declarou que estava fundada a República
Nacionalista do Sunda, nomeando-se a si mesmo Presidente
Provisório. Reforços das Forças Expedicionárias
Portuguesas foram enviados contra o Sunda, para uma nova
matança de negros, mas esbarraram num obstáculo
intransponível: a fronteira da região com o resto de Angola
estava defendida por uma fileira de construções de cimento,
fabricadas por um tipo de formiga branca particularmente
agressivo; estas casamatas, a que os nativos davam o nome
de Linha Salalé, mostraram-se mais inexpugnáveis do que
a Linha Maginot, atravessada pelos alemães em 1940. Os
caminhões e as tropas de infantaria portugueses esbarraram
nesse sistema defensivo formicular e não puderam
ultrapassá-lo, tendo que enfrentar as formigas por baixo e
os franco-atiradores por cima. Então, em vez de uma nova
matança de civis angolanos. houve uma correria de

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militares lusitanos. Os franco-atiradores, ocultos por trás
dos formigueiros (que mediam, por vezes, dois metros de
altura e eram mais resistentes do que o cimento) dizimaram
os primeiros contingentes de tropas fiéis ao Governo
colonial. Em Luanda, capital de Angola, o Secretário
Provincial (no impedimento do Governador-Geral, que se
encontrava passeando pela Europa) comunicou-se, pelo
rádio, com a Metrópole e pediu ordens, ao Ministério do
Ultramar, para bombardear o Palácio do novo Governo do
Sunda; contudo, também isso não foi possível, pois o
Presidente Natanga transferira o seu Quartel-General para
o subúrbio de Petrolina, na capital de Lochas do Norte,
instalando-se na sede da APERTA-SANGRA (coalizão das
Companhias All Petroleurn Royal Trust of Angola e
Sociedade Angolense de Riquezas Autóctones). Acontece
que o edifício da sede da APERTA-SANGRA ficava
situado entre os dois poços de petróleo mais valiosos do
distrito e o Governo do Dr. Oliveira Salazar (notável pelo
seu espírito de poupança) preferiu não bombardear o
Palácio do Governo rebelde, para não destruir as instalações
petrolíferas. Era essa, justamente, a atitude que o líder
revolucionário Natanga esperava do Governo Central. Ée
jogara com o fator psicológico e ganhara a partida. De
início, pelo menos.
A novel República do Sunda foi sitiada pelo sul (a uma
distância prudente dos formigueiros das salale’s), mas isso
de pouco serviu, pois os revolucionários passaram a receber
suprimentos pelo norte (por via aérea), principalmente de
seus camaradas da FRELIMO, de Moçambique, e da
PAIGC, da Guiné. No dia 25 de julho (um mês depois da
morte do Tenente-Coronel Botucatu) a República
Nacionalista do Sunda foi reconhecida oficialmente pelos

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Governos da União Soviética e da França, sempre prontos
a aplaudirem as desinteligências internacionais.
O próximo passo do Presidente Natanga foi
nacionalizar os poços de petróleo de Lochas do Norte
(capital do Estado) e de Tchibungo (a segunda cidade mais
importante), expulsando do território sundaenses os dois
grupos financeiros que manobravam a APERTA e a
SANGRA, ou seja, um grupo composto por ingleses,
holandeses e norte-americanos e outro, composto por
firmas bancárias lisboetas. A nacionalização do petróleo
angolano causou um impacto em todo o mundo capitalista,
principalmente em Portugal, pois o Governo da Metrópole
recebia uns royalties de 49% sobre os lucros líquidos da
Empresa. Com a nacionalização das riquezas naturais do
Sunda, o Presidente Natanga cortava os mais estremecidos
laços que existiam entre Angola e Portugal.
A situação estava neste pé quando os ecos da revolução
sundaense chegaram a Abana, pequena ilha independente
do Pacífico (no coração do Havaí) e tiraram, mais uma vez,
a paz e o sossego de um pescador de arenques chamado
Keith Oliver Durban.

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O APELO DA ÁFRICA

Meu adversário esquivou-se ao cruzado que lhe enviei


com a esquerda e encolheu-se a um canto, cobrindo a
cabeça com as mãos. Fiz uma finta de direita, ameaçando
dar-lhe um gancho no fígado, e obriguei-o a abaixar a
guarda; então, encaixei um tremendo uppercut no seu
queixo desguarnecido. O gigantesco crioulo estremeceu e
suas pernas se dobraram.
— Tamboi, saíb! — pediu, enquanto caía sentado de
encontro às cordas. — Deu tucá pavon!
Falava em concanim, dialeto da antiga Índia
Portuguesa, sua terra natal.
— Gará voch — ordenei, indicando o chalé, que
branquejava entre as bananeiras. — Por hoje, chega! Vou
tornar banho na cascata.
Jeremias soltou um gemido e levantou-se,
cambaleando. Tinha dois metros de altura e seus músculos
eram duros como aço, mas não podia estar em melhores
condições, depois da surra que eu lhe dera. Amparei-o e
esperei que se refizesse; depois, enquanto ele tirava o
capacete de couro e as luvas acolchoadas (de seis onças), eu
me libertava do calção de boxe e das luvas de quatorze
onças, maiores e mais inofensivas do que as de meu
sparring. Ninguém assistira ao nosso treino (três assaltos,
de 3 minutos, com um de descanso) no ringue situado a

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nordeste da ilha, entre o campo de futebol e a Praia do Leito
Nupcial. Era domingo, 30 de julho, dia de descanso em
Abana. Preso no cercado de arame da “Terra de Ninguém”,
do outro lado do milharal, meu papagaio cinzento
esbravejava, indignado por não ter assistido ao combate:
— Essa, não! Onde se viu? Olha a comidinha do
neném!
Jeremias pôs uma toalha no pescoço e foi,
obedientemente, para o chalé, onde minhas noivas
passavam a manhã em diversos afazeres domésticos.
Enquanto isso, nu em pelo, eu me dirigi para a Cascata do
Suave Refrigério (entre o chalé e a plantação de hortaliças)
e tomei uma ducha fria, que me retemperou o organismo.
Antes de bater o meio-dia, metido num paréu amarelo
estampado com flores vermelhas, estava pronto para o ai
moço. Jandira acabara de assar um excelente porco fresco,
com batatas polinésias e molho de soja, que M’bata se
preparava para servir numa esteira da sala, coberta por
folhas de palmeiras, à moda luau. Ainda era cedo; sentei-
me na rede da varanda, com um copo de Islander Duplo na
mão, e pus-me a mordiscar pedaços de endro e palmitos de
papaya. molhados em coalhada e creme de coco verde. A
paz e o silêncio, sob um sol quente e dourado, faziam de
Aloana um paraíso: até os meus cachorros (seis machos e
uma fêmea) respeitavam a paisagem bucólica e
mantinhamse silenciosos, espichados em vários trechos de
grama, ao longo dos dois quilômetros quadrados da ilhota.
Mas, de repente, Ninguém bateu as asas e trepou pelo
alambrado de sua imensa jaula.
— Alerta! — gritou ele, com voz esganiçada. — Olha
o careca! Aí vem o careca, pessoal! — e pôs-se a imitar uma
corneta, tocando rebate.

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Para o papagaio todos os visitantes eram carecas, assim
como, para nós, eram todos indesejáveis.
— Vorsicht! — advertiu Gerda, aparecendo à porta da
varanda. — Deve ser outro importuno, para nos tirar a
alegria! Ich bedauere sehr, mein lieb! (Sinto muito, meu
amor!)
— Beruhigen Sie sich bitte (Tranqüilize-se, por favor)
— retruquei, levantando-me. — Sie Machen viel Lürm!
(Você faz muito barulho) Deixe que eu me entendo com os
homens daquele outrigger!
O barco polinésio aproximava-se do Cais das Lágrimas
(construído sobre a Pedra dos Dois Amantes) entre a Praia
da Virgem Distraída e o pier onde estava encostado o meu
iate “Vida Mansa”. Havia três tripulantes a bordo, dois
deles (havaianos) remando cadenciadamente; o terceiro
homem, um negro elegantemente trajado à europeia, com
colete e chapéu gelo, trazia uma valise preta no colo. Logo
que o pequeno barco encostou ao cais, ele saltou para terra,
a maleta debaixo do braço, e estendeu-me a mão. Como se
tratava de um crioulo alto e magro, sua mão era negra e seca
como um arenque defumado.
— Mister Oliver Durban? — perguntou afavelmente.
Fingi que não via o seu gesto cortês.
— Quem? Durban? Ele morreu no ano passado. Eu sou
o seu fantasma.
A meu lado, Gerda examinava o intruso com um olhar
crítico e ameaçador.
— Desculpe — volveu o homem, recolhendo a mão. —
Trago um recado para a noiva de Mister Durban...
— Qual delas?
— M’bata. Fui enviado pelo tio de M’bata, que se
encontra em Angola, na África Ocidental. Acabei de chegar
do Congo, por via aérea.

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Meu gelo se derreteu. Um homem recém-chegado do
outro lado do mundo merecia, pelo menos, um gole de
“araí” ... Pedi a Gerda que chamasse minha noiva crioula e
trouxesse duas talagadas da bebida tradicional de Abana;
depois, encaminhei o visitante para a varanda, onde nos
sentamos. Os dois tripulantes havaianos ficaram à espera,
no outrigger.
— De que se trata? — inquiri, cruzando as pernas nuas.
Sentado numa cadeira de verga, o elegante crioulo pôs
a valise no colo; seus gestos eram rápidos e nervosos.
— Trata-se da recente revolução em Angola, Mister
Durban. O tio de M’bata, Major João Natanga, é o novo
Presidente da República Nacionalista do Sunda. Mas ele
está em dificuldades! Por isso, apela para sua sobrinha.
Sabemos que o senhor é um homem difícil, Mister Durban,
e que só uma de suas noivas poderá convencê-lo a aderir à
nossa causa...
— Eu sabia! — rugi, furioso. — Sabia que era eu quem
vocês queriam! Por que não me deixam em paz? Sou um
pescador de arenques e não um espião! Há muito tempo que
me afastei da espionagem internacional! Sou um cidadão
abano, dedicado ao progresso de minha terra! E pouco me
interessam as revoluções do Sunda!
— O Presidente Natanga está em dificuldades —
suspirou o negro. — Agora, são os vampiros!
— Os vampiros! — explodi. — Era o que faltava! Que
vampiros?
— Uma raça de pigmeus selvagens, que invadiram o
Sunda depois da vitória das forças nacionalistas.
Acreditamos que os vampiros estejam sendo pagos pelo
governo português, para destruírem a obra de nosso
Presidente! Já que os imperialistas de Lisboa não puderam
evitar a perda do Sunda, com o poder de suas armas, agora

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apelam para o terror, atirando uns negros contra os outros!
esse é um processo reacionário típico. Eu sou uma espécie
de Ministro das Relações Exteriores da nova República do
Sunda, Mister Durban, e terei muito prazer em pô-lo a par
dos últimos acontecimentos. Precisamos do senhor! Só o
senhor poderá acabar com os vampiros de Angola!
Sempre a mesma história! Mas eu estava curioso. Já lera
as aventuras do Conde Drácula nas catacumbas da
Bucovina, mas era a primeira vez que ouvia falar em
vampiros africanos. Abri a boca, para fazer uma pergunta,
mas nesse momento M’bata entrou na varanda, trazendo
dois talos de bambu cheios de um uísque fresco e cheiroso.
Fiz as apresentações e soube, então, que o crioulo chamava-
se Carlos Catinga; aliás, o cheiro característico de seu corpo
(disfarçado com essência de cravos) não negava o fato.
— Sim — disse M’bata, encantada. — Meu tio Natanga
é angolano e estava refugiado no Congo... em Kasai, se não
me engano. Como está ele, Dr. Catinga?
O diplomata negro tirou um envelope do bolso do terno
de casimira inglesa e entregou-lhe, em silêncio. Minha
noiva abriu o subscrito e leu a carta que ele continha. Nós
esperamos, em suspenso. M’bata dobrou a carta e sorriu.
— Então, titio agora é o Presidente da República do
Sunda? Que honra para a família! Mas... quem são esses
vampiros? — Olhou para mim e acentuou o sorriso de seus
dentes fortes e brancos. — Desculpe, meu soba, mas você
terá que se interessar por este caso. Eu não poderei ir
sozinha a Angola! Não poderei, realmente!
— Está maluca? — retruquei, irritado. — Você não irá
a Angola nem em sonhos! Ninguém vai sair de Aloana para
se meter numa terra de bárbaros! Ainda há pouco, foi uma
revolução na Nigéria; depois, outra revolução em Catanga...
Não, senhora! Ninguém vai se meter em Angola, para levar

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um tiro perdido! Os aloanos só querem que os deixem viver
em paz!
— Pois é — disse M’bata, beijando-me os lábios.
— Nós queremos paz meu soba. E é isso o que vamos
levar à África! Vamos levar a paz ao Sunda, ajudando meu
tio e livrar-se desses vampiros asquerosos! É preciso não
esquecer que, quando eu era criança e morava em Ghana,
titio sempre foi muito carinhoso para mim! Não poderei
deixar de atender ao seu apelo! E, se você não quiser ir
comigo, Keith Oliver Durban, irei sozinha!
Eu poderia cortar o entusiasmo de minha noiva com
dois gritos, mas a Constituição Anarquista de Aloana me
impedia de ser uru ditador. Estávamos numa terra livre, sob
o regime político do Anarquismo-Romântico; em que cada
um de nós tinha o direito de agir conforme as suas
tendências, desde que não prejudicasse a paz social. Por
isso, engoli em seco e bebi raivosamente o meu talo de araí.
— Okay — resmunguei, depois. — Conte a sua história,
Dr. Catinga. Vamos ver o que podemos fazer por vocês!
E a história tomou corpo, na palavra do enviado
especial do Presidente Natanga. Em resumo, tratava-se do
seguinte: Depois de vitoriosa a revolução do Sunda, que
tomara essa província independente do resto de Angola, o
Presidente João Natanga nacionalizara os poços de
petróleo, situados em Lochas do Norte e Tchibungo,
provocando ainda mais o ódio e o desespero do Governo
Português. E, um mês depois da criação da República,
quando a vida no Suada parecia ter-se normalizado (apesar
do território nacional estar sitiado pelas tropas coloniais
lusitanas), tinham começado a ocorrer, em vários pontos do
país, vários, assassinatos misteriosos, atribuídos a um
bando de selvagens vindos do Congo. Esses selvagens
teriam entrado no Sunda por uma aldeia do Alto Chingaqui,

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depois de descerem o Rio Zaire. E os assassinatos
(praticados, em silêncio, altas horas da noite, contra os
mercenários brancos importados pelo Presidente Natanga)
caracterizavam-se pelos sinais de dentadas que as vítimas
apresentavam no pescoço; os assassinos assemelhavam-se
a vampiros sedentos de sangue, com grande prática em
morder a jugular dos adversários. Ora, como havia uma
velha lenda bantu sobre certa raça de pigmeus do Congo
dada à prática do vampirismo, o Presidente Natanga
supunha que alguém contratara os vampiros para dizimar as
suas tropas de choque, propiciando uma contra-revolução
favorável à volta do neocolonialismo. A polícia secreta
sundaense fizera investigações, mas não lograra descobrir
nenhum exemplar da raça vampiresca, embora acreditasse
piamente na sua existência. Cinqüenta mercenários
brancos, bem como oitenta crioulos, já tinham aparecido
mortos (e dessangrados) e a onda de terror avolumava-se
cada vez mais. Metade dos operários, destacada para a
exploração do petróleo, recusava-se a trabalhar nas jazidas
de Lochas e Tchibungo, ameaçando provocar um colapso
no armazenamento das reservas petrolíferas, principal fonte
de divisas do Sunda. O que o Presidente Natanga queria era
que sua sobrinha M’bata convencesse o famoso espião
internacional Nocaute Durban a ir a Angola acabar com a
ameaça dos vampiros e consolidar a revolução nacionalista.
— Lamento muito — disse eu, quando o Dr. Catinga
fez uma pausa em sua narrativa. — Não estou disposto a
trabalhar para os revolucionários sundaenses, combatendo
as forças legalistas portuguesas. Sou amigo do Dr. Oliveira
Salazar, a quem conheci numa de minhas visitas a Lisboa a
serviço da CIA, e ele não me fez mal algum. Se o Presidente
Natanga teve bastante recursos para dar a independência ao
Sunda, também deve tê-los para manter-se no poder. Essa,

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Dr. Catanga, é uma briga que eu não desejo comprar de
graça!
— O petróleo do Sunda — retrucou o diplomata negro
— vale mais do que qualquer outro do mundo. O senhor já
ouviu falar nas características peculiares do nosso óleo
mineral?
— Não. Nunca. O que é que ele tem mais do que os
outros?
— Nosso petróleo, Mister Durban — respondeu o
crioulo com um sorriso superior — já nasce refinado!
— Nasce o quê?
— Refinado! Por isso, seu valor é muito maior do que
o do petróleo dos Estados Unidos, da União Soviética ou do
Oriente Médio!
— Não entendo. Como é que o petróleo pode nascer
refinado?
— Esse é um mistério da natureza, Mister Durban. O
fato é que o imenso... eu diria, mesmo, o inesgotável lençol
petrolífero do Sunda fornece óleos das melhores
qualidades, com seus derivados quimicamente separados
por um processo semelhante ao usado nas refinarias. Isso
torna o produto mais econômico, pois não necessita do
trabalho de refinação. O campo petrolífero de Lochas do
Norte, por exemplo, fornece ininterruptamente um esguicho
de gasolina pura, assim como o campo de Tebibungo
fornece os óleos mais pesados do mesmo lençol. Assim
sendo, nós recolhemos em Lochas, cerca de 597 750
toneladas de gasolina, enquanto, em Tchibungo,
bombeamos 800 mil toneladas de querosene, 1 140 mil
toneladas de óleo diesel, um milhão e trezentos e noventa
toneladas de fuel-oil e 890 mil toneladas de Burker C. Isso
sem falar nos gases de metano, etano, propano e butano;
este aparente milagre é facilmente explicável pelo aspecto

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peculiar das jazidas do Sunda. Ali, a 200 metros de
profundidade, há uma camada de cascalho e argila; a 400
metros, encontram-se rochas impermeáveis; a 500 metros,
outra camada de rochas porosas, impregnadas de gás de
metano; a 600 metros, acha-se uma camada anticlinal de
rochas impermeáveis; a 800 metros, encontra-se a gasolina
e os gases que a obrigam a subir para a superfície; a mil
metros, há outra camada filtrável de rochas térmicas, com
aquecimento de 80 graus centígrados; a 1 200 metros,
encontra-se outra camada de gás e querosene; a 1 400
metros, nova camada filtrável de rochas térmicas, com
aquecimento de 130 graus; por baixo, há um depósito de
gás e óleo diesel; mais abaixo, outra camada filtrável de
rochas ígneas, com aquecimento de 180 graus; por baixo,
acham-se es gases, óleos pesados e resíduos de asfalto;
finalmente, a 2 mil metros, jaz outra camada filtrável de
rochas ígneas, com temperatura de 350 graus, e uma
camada rochosa, originalmente impregnada de petróleo
bruto, chamada “rocha-mãe”. Então, que acontece?
Pressionado pelos gases, o petróleo sobe, através das
diversas etapas caloríficas, e vai se desintegrando em
produtos derivados, de acordo com o grau de calor das
rochas ígneas. que obriga a se evaporar e, logo, voltar à
forma líquida, na etapa superior. O curioso laboratório
natural do Sunda proporciona uma excelente refinação do
petróleo, que pode ser colhido, em suas várias etapas, por
meios mecânicos. Assim, em Lochas, a gasolina espirra
naturalmente, mas, em Tchibungo, o óleo diesel tem que ser
aspirado por meio de bombas.
— Interessante. Com efeito, um petróleo desses tem
que valer mais. E todo mundo deve estar de olho nele.
— Foi a nacionalização dos lençóis de Lochas do Norte
e Tchibungo que atraíram os vampiros a Angola, Mr.

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Durban! Ninguém nos tira isso da cabeça! Pois bem: para
salvar o nosso petróleo, o Presidente Natanga está disposto
a pagar duzentas mil libras esterlinas a um espião
independente que o ajude a liquidar os vampiros. Estou
sendo claro? Se o senhor livrar o Sunda dos pigmeus
assassinos, a recompensa será integralmente sua! A cabeça
do chefe dos vampiros vale bem duzentas mil libras!
— E quem é o chefe dos vampiros. Dr. Catinga?
— Ninguém sabe. Nenhum dos bandidos foi agarrado,
como lhe disse. Até agora, só podemos fazer conjecturas.
Nossos conterrâneos amanhecem mortos, com o pescoço
cruelmente mordido, mas os agressores desaparecem nas
sombras da noite. Ninguém sabe quem são os pigmeus,
quanto mais o chefe deles! Mas tem que haver um chefe!
— Se esses vampiros são pigmeus — volvi,
pensativamente — não será difícil desmascará-los. Um
pigmeu de estatura normal deixa de ser pigmeu... E um anão
não pode deixar de ser um homem baixinho! A polícia
secreta do Sunda não encontrou nenhum anão...?
— Nenhum — asseverou o Dr. Catinga, soltando outro
suspiro. — Mas o Sunda é muito grande e tem enormes
savanas ainda pouco exploradas. Dizem que os vampiros
moram em grutas das florestas. O senhor aceita a
incumbência, Mr. Durban?
Lambi o resto de uísque do meu talo. Depois, sorri para
M’bata.
— Talvez — respondi. — Estamos precisando de
dinheiro em Aloana... Por duzentas mil libras esterlinas,
apesar da desvalorização, talvez eu me arrisque a ser
mordido por um vampiro... E o petróleo? — continuei
ficando sério outra vez. — Vocês acham, então, que a
origem da reação vampiresca seja o petróleo?

— 21 —
— Achamos — disse o visitante. — Não posso lhe dar
outros detalhes sobre a extração do petróleo, que estava a
cargo da APERTA-SANGRA, uma empresa mista com
capitais portugueses e estrangeiros, mas posso lhe assegurar
que os lucros do ouro negro ascendiam a milhares de
dólares. No fundo de todas as revoluções, Mr. Durban, está
sempre o fator econômico. Foi o petróleo maravilhoso do
Sunda que criou os vampiros!
— E quem me pode dar outras informações sobre a
empresa mista que explorava as jazidas petrolíferas?
— Talvez o senhor obtenha melhores esclarecimentos
em Lisboa, se falar com o Dr. Moisés Alves Beça. Mas não
deverá se apresentar como Nocaute Durban, para não
despertar suspeitas...
O Dr. Alves Beça é o Presidente do Banco Moisés, uma
das empresas portuguesas interessadas na SANGRA. As
outras empresas lusitanas são a Casa A. Beça, a Companhia
A. B. de Petróleo, a Alves B. Sociedade Anônima e a
Empresa Beça de Empreendimentos.
— Falarei com o Dr. Alves Beça, antes de ir para a
África. De qualquer maneira. Portugal fica no meu
caminho... E talvez seja interessante uma entrevista com um
dos antigos donos do monopólio do petróleo; depois dessa
entrevista, poderei dizer que vou ao Sunda a serviço da
PIDE.
— Já temos os seus documentos preparados, Mr.
Durban. O senhor viajará com passaporte e carteira de
identidade em nome de Olivérius Van Loon, mercenário
holandês foragido da Nigéria. Sabe como obtivemos estes
documentos?
— Sei. Vocês apelaram para o Serviço de Informações
do Exército Soviético. Somente o RU poderia fabricar esses
papéis em tão pouco tempo. Isso demonstra que a União

— 22 —
Soviética está ajudando o Presidente Natanga e que a
revolução “nacionalista” é outro golpe da ditadura
comunista.
— Tem razão, Mr. Durban. Os soviéticos foram muito
gentis, reconhecendo a República do Sunda. Mas nós não
lhes devemos nenhum auxilio material, em nossa
revolução. Foi um movimento essencialmente local. No
entanto, agora que está no poder, pode ser que o Presidente
Natanga se revele comunista. Foi o que fez Fidel Castro.
— Quando atuei no Vietnam — retruquei, sorrindo —
estive em contato com representantes da União Soviética e
da China Popular. Naquele caso, usei o nome de Olivérius
Van Loon. Não vejo inconveniente em voltar a ser um
turista holandês, passeando pela África Ocidental... Onde
estão os meus documentos? Tenho curiosidade em ver a
fotografia que vocês me arranjaram...
O crioulo sorriu e abriu a valise que tinha no colo.
Depois, enfiou a mão na maleta e logo soltou um grito. Na
mesma hora, estava de pé, com uma coisa negra grudada no
pulso Cinzento. Seu rosto magro também estava cinzento.
— Cuidado! — gritou M’bata. — É um escorpião!
Saltei para trás, em busca de uma arma. Entretanto, o
diplomata colored pulava pela varanda, sacudindo a mão,
com o enorme aracnídeo pendurado pela cauda. Era um
escorpião negro, com mais de um palmo de comprimento,
e dois dos seus quatro pares de patas mexiam-se
ameaçadoramente no ar; o aguilhão venenoso estava
enterrado profundamente no pulso de sua vítima.
— Socorro! — gemeu o crioulo, perdendo a elegância
e caindo sentado no chão. — Estou tonto! Não consigo tirar
isto daqui!
Com a mão esquerda, agarrava febrilmente o bicho
peçonhento, mas não tinha forças para arrancá-lo da pele.

— 23 —
Nisso, Jeremias apareceu na varanda, nu como um Apolo
de ébano, com o seu torsad em punho.
— Aum assam angá! — bradou. — Aum cortam!
E desferiu um golpe de sabre no tórax do escorpião,
partindo o animal em dois. A metade caída no chão (a parte
mais grossa, contendo a cabeça e metade do tórax) mexia-
se espasmodicamente, erguendo os tentáculos, ao passo que
o pré-abdome e a cauda ainda continuavam grudados ao
pulso do Dr. Catinga. No minuto seguinte, meu eunuco
tinha arrancado a metade do bicho presa ao pulso de nosso
visitante e dava-lhe outros golpes, com a lâmina do torsad,
reduzindo-a a uma massa gelatinosa. Mas o socorro chegara
tarde; o Dr. Carlos Catinga tinha os olhos vidrados e a boca
coberta de espuma.
— A forma mais perigosa — gemeu ele. — Nenhum
antídoto chegaria a tempo! Isto também deve ser obra dos
vampiros!
Sentei o pobre homem na cadeira de vime e mandei
M’bata trazer mais arai.
— É tarde — murmurou o crioulo, fechando os olhos e
respirando pesadamente. — Os documentos estão na valise.
Por favor, Mr. Durban, não deixe de ir ao Sunda! Eles são
uns assassinos impiedosos! E Angola... ainda há de ser...
angolana! — Sua voz tomou-se um sopro. — Não deixe de
ir... ao Sunda... ajudar... o nosso... Presidente... por favor...
ah!
Seu corpo se retesou e ficou imóvel, caído na cadeira.
Quando M’bata voltou com o araí, o enviado de seu tio já
estava morto.
— Um vichu — declarou Jeremias, examinando o que
restava do escorpião. — Um dos maiores e mais venenosos
vichus que eu já vi! Deve ter sido criado em viveiro,
especialmente para matar!

— 24 —
— Cuidado com a valise — retruquei. — Pode haver
também uma cascavel. Tudo se espera, depois de
aparecerem vampiros em Angola!
Meu eunuco enfiou cautelosamente o sabre na maleta
aberta (que ficara caída aos pés do morto) e anunciou:
— Não tem mais nada, sahib. Apenas papéis.
Era uma valise comum, preta, com o rótulo de um hotel
de Lisboa e outro de Luanda. Examinamos o visitante e
constatamos a sua morte. Ora, como o veneno do escorpião
dificilmente poderia liquidar um homem em tão pouco
tempo, fiquei desconfiado e resolvi recolher os restos do
aracnídeo a um envelope de papel manilha, para serem
examinados num laboratório de Honolulu. Depois, fui
conversar com os dois havaianos do outrigger.
— Não saber nada — disseram eles, apavorados.
— Homem negro contratou viagem a Abana, em
Honolulu. Ele chegou de avião, hoje de madrugada. Não
saber mais nada, Nocate Dâba!
Pedi-lhes que voltassem a Oahu e trouxessem a polícia,
pois eu não podia assumir a responsabilidade pela morte do
africano. O chefe de Polícia de Honolulu era meu amigo e
facilitaria tudo, sem tornar pública a minha missão em
Angola.
— Nós vamos? — perguntou M’bata, quando voltei
para junto do cadáver.
— Eu vou — respondi. — Você não pode viajar sem
documentos. E, mesmo que pudesse, não quero ver minha
noiva envolvida com vampiros! Para minha surpresa,
M’bata sacudiu no ar a carta recebida do Presidente
Natanga.
— Tenho que ir com você, meu soba. Titio me pede que
vá, porque tem um presente para mim que me fará feliz. Ele
sempre foi muito bom para mim e eu quero ser ótima para

— 25 —
ele! Ajudarei você, meu soba. A África é a minha terra natal
e eu tenho saudades de lá. Por favor, leve-me com você! Tio
Natanga mandou meu passaporte pelo Dr. Catinga.
Era verdade. Encontrei, na valise do falecido diplomata
sundaense, além dos documentos referentes ao holandês
Olivérius Van Loon, um passaporte, em nome de M’bata
Kaolack, perfeitamente em regra. O documento fora
expedido em Dacar e tinha o visto das autoridades
angolanas. Diante disso, tive que me curvar aos ditames do
destino: pela segunda vez, desde que me tomara livre
atirador no terreno da espionagem internacional, levaria
uma noiva numa de minhas espinhosas missões secretas; da
primeira vez, naquele caso do Haiti, tinham ido todas as
seis.
— Okay — decidi, beijando a crioula nos lábios.
— Você vai comigo para Angola, via Lisboa. Ainda me
resta uma esperança. Pode ser que algum lisboeta se
apaixone por você e não a deixe seguir viagem para o
Sunda.
— Bobinho — retrucou M’bata, apertando-me contra o
coração. — Nenhum homem branco seria capaz de me
separar de você! Iremos juntos para o Sunda!
Gostei do abraço. Escusado será dizer que, como de
costume, minha noiva crioula usava apenas tanga...

***

Depois do almoço, foi reunido o Conselho da Família e


recebi a aprovação geral para a minha viagem a Angola. Daí
em diante eu e M’bata nos dedicamos apenas a arrumar as
bagagens. A morte prematura do Dr. Carlos Catinga tinha
prejudicado um pouco as negociações, pois eu ficara sem
saber quem me pagaria as passagens para a África; afinal,

— 26 —
resolvi ir no meu Fantom-13. Quanto às duzentas mil libras
de recompensa, esperava recebê-las no Sunda, diretamente
das mãos do Presidente Natanga. Isso, no caso de me sair
bem da empreitada e liquidar os vampiros...
— Estou muito feliz — exclamava M’bata, pelos cantos
do chalé. Nunca esperei que, um dia, pudesse voltar à
África! Você vai gostar da viagem, meu soba! Mais bonito
do que Angola, só mesmo o Sudão! É a terra onde nasci!
Ela era alta e forte, como todos os sudaneses, e tinha as
feições características de sua raça; mas nenhuma crioula
possuía uns olhos tão expressivos e uns lábios tão doces!
Beijei-a (antes e depois da chegada da polícia, que carregou
o cadáver do Dr. Catinga para Honolulu) e ajudei-a a eleger
os perfumes que levaria na sua mala de viagem. Depois, ela
também me ajudou a testar o meu colete-arsenal, que eu não
podia deixar de levar.
Depois de testar todos os aparelhos do colete, ainda
lubrifiquei a minha velha Magnum 357, calibre 44 (que
sempre levo num coldre, debaixo do sovaco esquerdo), e
municiei uru pequeno revólver Srnith-and-Wesson 38,
Special Centennial Airweight, que tem apenas cinco
centímetros de cano e pesa meio quilo; esta última arma é
destinada a viajar na minha perna direita, pendurada na liga.
— E os novos óculos? — perguntou M’bata. — Você
não vai experimentar os óculos que falam, aqueles que
Mike lhe ofereceu?
Eu tinha me esquecido daquilo! Realmente, um ex-
colega meu da CIA (Tenente Michael Barnes) tinha me
oferecido um par de óculos escuros, japoneses, muito
interessantes; não passavam de dois rádios (receptor e
transmissor) alimentados por mini baterias, ocultas nas
hastes que também serviam de antenas. Testei os dois
aparelhos eletrônicos (com M’bata falando na extremidade

— 27 —
leste da ilha e eu ouvindo na extremidade oeste) e verifiquei
que funcionavam perfeitamente; aquilo era muito
interessante e talvez pudesse vir a ser útil em nossa
aventura na selva...
Estes preparativos para a viagem ao país dos vampiros
levaram dois dias; só na terça-feira (dia de Consuelo) eu e
minha noiva crioula nos declaramos prontos para a partida.
Na tarde desse dia, também chegou um mensageiro de
Honolulu, trazendo o resultado dos testes feitos com o
material peçonhento colhido na varanda.
— Aquele escorpião africano — disse o homem do
laboratório de análises — pertence a um tipo especial,
muito perigoso. Além disso, o ferrão do bicho estava untado
com uma espécie de curare, um veneno poderosíssimo
capaz de matar um homem em poucos segundos! Não há a
menor dúvida de que se trata de um crime!
— Obrigado — respondi. — Vou, agora, atrás do
criminoso!
Meu avião a jato vermelhinho estava abastecido (por
Gabriel) na cabeça da pista da Alameda da Saudade; no dia
2 de agosto, às quatro horas da madrugada, eu e M’bata
despedimo-nos do resto da família, entramos no aparelho e
levantamos voo, com os olhos rasos d’água.
— Adeus, Abana! — choramingou minha noiva
crioula. — Malditos sejam os cazumbis que nos separam
sempre de você! Mas, com a ajuda do Caçone, havemos de
voltar, entre raios e trovões!
Meu plano de voo fora aprovado pelas autoridades e
nossa primeira escala seria São Francisco da Califórnia. Ali
chegamos, às dez horas dessa mesma manhã (hora local) e,
depois de almoçarmos no aeroporto internacional, voltamos
ao avião e seguimos viagem para Nova Iorque.
Aterrissamos às dez horas da noite no Aeroporto de

— 28 —
Idlewild e fomos dormir num hotel familiar, exaustos pela
longa travessia. Mas, embora acordássemos às oito horas da
manhã de quinta-feira (dia de Filha de Búfalo), dormimos
apenas cinco horas. E eu, que pensava que ia me arrepender
de ter levado minha noiva nessa aventura, compreendi que
nunca deveria ter viajado antes sem uma garota ao alcance
da mão...

— 29 —
O CASTELÃO DE CASCAIS

Às onze e meia da noite dessa quinta-feira estávamos


em Lisboa. A travessia do Atlântico fora cansativa, mas o
Fantom-13 portara-se muito bem. Orientados pelo
aeródromo da Portela, descemos em Sacavém. Aí (embora
interrogados pelas autoridades militares e observados pelos
agentes da PIDE) fomos deixados em paz. É claro que
M’bata não usava apenas tanga, e sim um vestido longo e
discreto que disfarçava as perfeições de seu busto e de suas
nádegas. Livres da Alfândega, deixamos o avião aos
cuidados do pessoal da TAP e partimos, de táxi, para o
centro da cidade. A fim de não atrair a atenção, fomos nos
instalar num hotelzinho modesto (o Real Família), no
princípio da Avenida da Liberdade, junto ao Largo do
Rossio. Pedi dois quartos (um para mim e outro para minha
“secretária”), mas, depois de desmanchar a cama do
primeiro, ficamos juntos no segundo. O rapazinho da
Recepção forneceu-me um catálogo telefônico que levei
para o quarto e folheei em cima do colo de minha noiva.
Descobri facilmente o número do telefone de um dos
escritórios do Dr. Moisés Alves Beça, na cidade baixa, mas
não consegui localizar a residência do financista.
— Já passa da meia-noite — disse M’bata. — Não há
mais ninguém nesse escritório da Rua Augusta. Deixe o
resto para amanhã.

— 30 —
Segui os seus conselhos e tirei a roupa, caindo nos
braços quentes e macios (cor de chocolate) que se abriam
para mim. Uma hora depois, estávamos dormindo,
exaustos, e sonhando com pardais Chilreantes.
Acordei às oito horas e fui para a extensão telefônica.
Soube, então, que o Dr. Alves Beça raramente ia ao
escritório e habitava um velho castelo, em Cascais, na Costa
do Sol. O famoso banqueiro lusitano não parecia fácil de
ser entrevistado. Obtive o número telefônico do castelo e
tentei a comunicação. Fui atendido por uma voz rouca,
falando português com sotaque alentejano. Respondi em
inglês:
— Bom-dia, amigo. Sou Olivérius Van Loon, cidadão
holandês, de passagem por Lisboa. Necessito urgentemente
falar com o Dr. Alves Beça a respeito das jazidas
petrolíferas do Sunda, em Angola. Ele gostará de se
entrevistar comigo, antes de meu embarque para a África.
— Um momento — replicou a voz rouca, também em
inglês. — Vou ver se o Dr. Beça pode atendê-lo.
Durante o minuto seguinte, ouvi o eco da voz rouca,
falando provavelmente noutro telefone interno; em seguida,
meu interlocutor voltou ao fone que estava ligado comigo:
— Às ordens de vossência, Sr. Van Loon. O Dr. Beça
terá muito prazer em recebê-lo, hoje, às onze horas, para
almoçar. Vossência deverá vir sozinho ao Castelo de
Cascais. Conhece o caminho?
— Perfeitamente — respondi cordialmente. — Já estou
muito velho para me perder em Lisboa. Diga ao Dr. Alves
Beça que lá estarei, às onze horas em ponto. Obrigado.
Desliguei e testei, mais uma vez, os óculos-rádio que
me ligavam a M’bata; funcionavam perfeitamente.

— 31 —
— Por que é que eu não vou a Cascais? — quis saber a
crioula. — Gostava tanto de conhecer um castelo por
dentro! Por que é que eu sempre hei de ser jogada fora?
— O homem quer que eu vá sozinho, meu bem.
Também não gosto disso, mas não podemos fazer nada.
Contudo, ficaremos em contato pelo rádio. Almoce no
hotel, filhinha, e espere-me antes das duas. Depois, então,
faremos algumas compras no Chiado.
Não tive dificuldades em localizar o Castelo do Dr.
Alves Beça, pois o homem era muito conhecido na terra.
Cascais fica na extremidade ocidental de Lisboa, além dos
centros turísticos do Estoril. Aluguei um automóvel na
Agência Hertz e parti para lá, bordejando a Costa do Sol. O
clima era ameno e fui seguido por um sol maravilhoso, O
carro deslizava maciamente pela excelente rodovia. Na
altura de Oeiras, liguei os óculos-rádio e perguntei a M’bata
se estava me ouvindo: Sua voz quente e sensual acariciou-
me o ouvido direito:
— Ouço perfeitamente, meu soba. Cuide-se bem.
Estou, neste momento, no living do hotel, e um hóspede de
grandes bigodes negros está sorrindo para mim. É possível
que aconteça aquilo que você esperava e eu seja apanhada
por um lisboeta endinheirado... Aquele rapaz é um “pão”!
— Um “pão” bolorento — respondi secamente. Basta
que tenha bigodes.
— Você fala de mágoa. Está se mordendo de ciúmes.
Olhe, agora são dois os “fãs” que sorriem para mim... E o
segundo fuma a mesma marca de cigarros que eu. Creio que
aceitarei um.
— Livre-se de me passar para trás — grunhi, na haste
esquerda dos óculos. — Se você se fizer de engraçadinha,
eu lhe taco a mão na cara!

— 32 —
Ouvi uma risada gostosa, no pequeno alto-falante
oculto na haste direita do aparelho, e mais nada; a crioula
tinha desligado o microfone. Depois disso, a viagem ficou
menos divertida e passei a ansiar pelo meu regresso ao
hotel; de todas as minhas noivas, M’bata era a mais ardente
e carinhosa, aquela de quem eu mais gostava e sem a qual
não saberia viver! Principalmente nas noites de sábado.
Eram dez e meia quando cheguei a Cascais. Atravessei
a cidadezinha (seguindo as indicações de um polícia) e logo
me vi num subúrbio florido, no sopé de uma colina, em
cima da qual se avistava o perfil de um velho castelo, estilo
mourisco. O prédio, que parecia talhado em pedra-sabão,
era digno de se transformar em museu. No alto de suas
ameias tremulava uma bandeira, azul e branca, que eu não
pude identificar. Meti o carro por um caminho íngreme, que
dava volta à colina, e fui parar a poucos metros da escadaria
de cimento que levava ao portão principal da fortaleza. Um
sujeito alto e magro, de bigodes arrebitados, saiu de uma
casinha contígua ao castelo e veio me receber. Trazia
metade de um sanduíche na mão e mastigava come um
ruminante. Seu inglês era difícil de entender:
— Bom-dia, doutor. É o Sr. Olivérius Van Loon? Ele
dizia “Olvério Banlum”. Respondi alegremente:
— Eu mesmo, Alverto Biana. O Dr. Albes Veça espera-
me às onze horas.
— Faça o favor de subir. O secretário do doutor está na
antecâmara. Eu tomarei conta do seu carrinho. E não me
chamo Alberto!
— Obrigado da mesma forma, Joaquim.
Subi as escadas de cimento e enfrentei uma enorme
porta, chapeada de ferro, que se abriu à minha aproximação.
Alguém tinha assistido à minha chegada, por uma das
janelas do castelo. Na sombra do hall, fui atendido por um

— 33 —
mordomo gordo e mole, com cara de lua cheia, que ficou
com o meu chapéu.
— Tenha a bondade de entrar para a antecâmara, Sr.
Van Loon. O Dr. Américo aguarda-o.
O gordo tinha uma voz tão mole quanto o resto do
corpo. Atravessei o hall e entrei num salão enorme,
atapetado, cheio de móveis e decorações em estilo
bizantino. O dono do castelo devia ser uru milionário
excêntrico; antes de conhecê-lo eu já começava a simpatizar
com ele.
— Sr. Olivérius Van Loon? — disse uma voz rouca. —
Tenho imensa honra em conhecê-lo pessoalmente. Meu
nome é Américo da Silva e sou o secretário do Dr. Beça.
No primeiro momento não vi o homem; depois,
localizei-o atrás de uma secretária pesada, atulhada de
papéis. Era um jovem de seus vinte e cinco anos, alourado,
de lunetas e suíças, com apenas um metro e meio de altura.
Apertamo-nos as mãos e ele me fez sentar numa poltrona
incômoda, de alto espaldar. O mordomo (que me seguira
em silêncio) saiu e voltou instantes depois, com dois
aperitivos numa bandeja de prata.
— Já conhece pessoalmente o Dr. Beça? — perguntou
o secretário do grande homem.
— Ainda não tenho esse prazer. Mas, pelo que vejo, ele
gosta de antiguidades... Deve ser muito romântico! Meu pai
também era.
O rapaz deu uma risada. Parecia divertido.
— Romântico, o Dr. Beça? Nem por isso. Mas é um dos
homens mais ricos de Portugal. Isso lhe dá o direito de ser
extravagante. Os outros ricaços da terra apreciam morar em
Paris, mas o Dr. Beça prefere viver neste castelo medieval,
que lhe foi oferecido pelo Governo. Além de seus interesses
em cinco casas bancárias, o Dr. Beça também é acionista da

— 34 —
Companhia dos Fósforos. Infelizmente, seu estado físico
não lhe permite viajar muito.
Pressenti alguma coisa fora do comum, O milionário
seria corcunda, como aquele famigerado Dr. Magog que eu
encontrara na Groenlândia? Não, não era nada disso.
— O Dr. Beça é paralítico — informou o jovem
Américo da Silva. — Suas pernas não funcionam. Mas isso
não impede que possua um dos cérebros mais atilados de
Portugal. É um verdadeiro gênio das finanças e por duas
vezes recusou ser Ministro! O senhor gostará dele, Sr. Van
Loon. Todos aqueles que conhecem o Dr. Beça ficam
encantados com a sua forte personalidade. São agora dez e
três quartos; dentro de um quarto de hora, poderei admiti-
lo no gabinete particular da ala norte do castelo. Aceita um
novo aperitivo?
— Aceito, Sr. Silva. Uísque, se for possível.
O mordomo serviu-nos um scotch legítimo, sem água,
com bolinhas de gelo coloridas. Os outros quinze minutos
passaram-se rapidamente, enquanto o secretário do castelão
procurava descobrir as minhas intenções. Disse-lhe que era
um mercenário holandês, contratado nos Estados Unidos, e
que viajava num avião norte-americano. Mas deixei
dúvidas sobre o Governo que me contratara.
O senhor veio a Lisboa para se avistar com as
autoridades e debater o problema ultramarino? —
perguntou o rapaz.
— De certa forma — respondi evasivamente. — Mas
não posso ser visto em contato direto com o Dr. Oliveira
Salazar...
— Compreendo. Seu contrato foi feito após a revolta do
Sunda, não é verdade?

— 35 —
— Exato. Assumi o compromisso de ir a Angola depois
que o Major Natanga tomou conta do Governo. Mas minha
missão é altamente secreta.
— Era o que eu imaginava — disse o Sr. Silva, sorrindo.
— O Dr. Beça terá muita alegria em lhe prestar
informações, se delas depender a sua missão em Angola.
Como sabe, ele também foi prejudicado com a
nacionalização dos poços de petróleo de Lochas e
Tchibungo. Tenha a bondade de entrar, Sr. Van Loon. São
onze horas cm ponto.
E indicou-me uma porta, com reposteiros bordeaux, ao
fundo da antecâmara. Agradeci e cruzei a porta, que estava
aberta. O gabinete para onde entrei ficava na extremidade
norte do castelo e suas amplas janelas (duas) abriam para a
paisagem coberta de sol. Mas estava escuro ali dentro;
grossos cortinados de veludo verde tinham sido corridos
sobre as vidraças. Os móveis eram todos negros, pesados,
estilo colonial. Ouvi um chilrear macio, musicado, e surgiu
na minha frente uma cadeira de rodas, deslizando sobre o
fofo tapete persa; sentado nessa cadeira, com uma manta
escocesa sobre as pernas, achava-se um cavalheiro de meia-
idade, de cara larga e nariz semítico, os cabelos grisalhos
colados ao casco da cabeça. A expressão de seu rosto,
branco e macilento, era bondosa como a de um querubim.
Encarei-o, piscando os olhos, e ele me estendeu dois dedos
longos, de unhas cuidadosamente manicuradas.
— Sr. Vau Loon? Encantado. Sou Moisés Alves Beça.
Confesso-lhe que estou curioso por conhecer os motivos
que trouxeram vossência à minha humilde morada.
Apertei-lhe os dedos, com ar deferente, e perguntei se
havia mais uísque. O milionário sorriu, com expressão
angelical, e premiu um botão que havia no braço da cadeira
de rodas; ouviu-se tocar uma cigarra e o mordomo

— 36 —
reapareceu, com uma bandeja, dois copos altos, uma garrafa
de scotch e um balde com bolinhas de gelo coloridas.
Sentei-me numa poltrona e servi-me generosamente.
Depois:
— Sou um mercenário holandês, que já combateu no
Congo e na Nigéria, ajudando Tchombe e Odumegwu, e
que agora mudou de patrão. Fui contratado, nos Estados
Unidos, para me reunir a alguns elementos do Sunda, em
Angola, e mudar o curso da História. Não posso lhe dizer
quem me paga. excelência, mas não seria nunca a União
Soviética!
— Acredito que não — disse o Dr. Beça, sorrindo
bondosamente. — Vossência não tem cara de comunista. E
tampouco de negro sujo. Sua visita prende-se, então, ao
caso do petróleo do Sunda?
— Exatamente, doutor. Soube que o senhor teve um
grande prejuízo com a revolução sundaense, após a
nacionalização dos poços de petróleo, e gostaria de
conhecer essa história, antes de enfrentar o Presidente
Natanga.
Os olhos doces do milionário brilharam.
— Ah! Vossência vai enfrentar o Presidente Natanga?
— Claro. Não poderei deixar de enfrentá-lo.
— Agrada-me saber que algo será feito contra o homem
que se intitula Presidente do Sunda. Eu já estava perdendo
as esperanças de recuperar os poços de petróleo que me
foram roubados por esses revolucionários maltrapilhos e
analfabetos! A bis~ tória é simples, Sr. Van Loon. Sou o
principal acionista das cinco empresas portuguesas que
formam a Sociedade Angolense de Riquezas Autóctones.
sociedade que dividia, com a All-Petroleum Royal Trust of
Angola, a exploração do campo petrolífero do Sunda. A
APERTA, formada por capitais norte-americanos,

— 37 —
holandeses e ingleses, tinha apenas 45 por cento das ações,
de acordo com a lei. Minhas empresas são: o Banco Moisés,
a Casa A. Beça, a Companhia A. B. de Petróleo, a Alves B.
Sociedade Anônima e a Empresa Beça de
Empreendimentos. O capital social da coalizão
APERTASANGRA era de 35 milhões de dólares e seus
lucros orçavam pelos 60 milhões por ano, pois o petróleo
daquela região já nasce livre e impurezas. Desses 60
milhões de dólares, pagávamos ao Governo Português uns
royalties de 49 por cento que, em princípio, devia reverter
em benefício de Angola. Tudo corria muito bem, apesar da
concorrência que nos faziam a CARBORANG, do Lobito,
a PETRANGOL, a COPA e a PETROFINA, esta última
uma companhia belga. De repente, estourou a revolução do
Major Natanga e o Sunda tornou-se independente!
— Quem financiou a revolução? Sabe?
— Não, não sei. Mas só podiam ter sido inimigos de
Portugal! Alguns mercenários internacionais
desembarcaram no Sunda, de pára-quedas, e assumiram o
controle militar, expulsando as tropas legalistas e o Exército
Nacional! Os jornais dizem que esses mercenários eram
franceses, ingleses, belgas, espanhóis, americanos e um
português. Desconfio, muito, do Olho de Moscou! Há
muito tempo que esse olho está virado para Angola!
— É possível. E depois?
— Depois da independência do Sunda, tentei negociar
os poços de petróleo com os revolucionários, mas não fui
ouvido; o novo Presidente, certamente influenciado pela
política de Moscou, expulsou-nos de Lochas e Tchibungo e
nacionalizou o petróleo! Foi uma coisa horrível, Sr. Van
Loon!
— O prejuízo material da APERTA e SANGRA foi
horrível?

— 38 —
— Tudo! Principalmente, a revolução dos pretos!
Quando se pensava que os angolanos estavam satisfeitos
com as últimas reformas ultramarinas, eis que eles voltam
a cometer atrocidades contra colonos indefesos! É inaudito!
Os pratos matarem homens brancos... e portugueses... em
Angola! É de pasmar!
— Não acho. De pasmar seria os crioulos virem matar
portugueses em Portugal, para tomarem as terras deles.
— Vossência não conhece o problema, Sr. Van Loon.
O Governo do Dr. Oliveira Salazar tem procurado resolva-
lo com o máximo de respeito pelos direitos dos negros. Se
o Dr. Salazar comete erros, devemos atribuí-los, mais, aos
defeitos naturais do regime republicano do que à sua
magnífica atuação como Presidente do Conselho. Chamá-
lo de fascista é uma calúnia, pois ele jamais empunhou
fáscio!
— O senhor é salazarista, Dr. Beça?
Tanto quanto um português honrado e conservador! A
política do nosso Governo é de conciliação. Angola sempre
mereceu, do Ministério do Ultramar, a maior atenção e o
mais desvelado interesse! Há séculos que merece uma e
outro. Agora mesmo, esperávamos um decreto que ia
transformar todos os angolanos em mestiços, afastando o
perigo do radicalismo negro. — Meu interlocutor indicou
um mapa, pendurado numa das paredes do gabinete, onde
se via uma gigantesca planta topográfica de Angola. — É
preciso mostrar que, no caso das províncias ultramarinas,
Portugal tem em mente uma política esclarecida, honesta,
sã, bem-intencionada, e os angolanos deviam cooperar com
as autoridades constituídas, respeitando as suas sábias leis
e os seus justos privilégios! De qualquer maneira, com o
poder das palavras ou a força das armas, Portugal manterá
a sua soberania sobre o território que lhe pertence, por

— 39 —
direito de conquista! As tropas lusitanas estão bem melhor
equipadas do que os pretos com suas lanças e seus facões!
— Isso é verdade — admiti, bebendo um gole de
uísque. — Concordo inteiramente com a sua tese filosófica.
— Mas a obra de Portugal, em Angola — continuou ele,
sem perceber a minha ironia — é tão honesta que até mesmo
o Governador Civil Norton de Matos, no seu tempo,
obrigou a voltarem para a metrópole os europeus que se
tinham identificado com a vida dos indígenas, pois não se
admite que portugueses deem maus exemplos ao gentio e,
em vez de assimilarem os pretos, sejam assimilados por
eles! O exemplo dignificante de Norton de Matos não pode
ser esquecido! Ele só usava a força militar para preparar o
terreno para a sábia e benéfica administração civil, que
sempre foi recebida pelo povo com gritos de júbilo e
desafogo. O Governo da Província não tinha culpa de que
alguns arrendatários recebessem grandes porções de terra
para criar gado e, cm vez disso, as revendessem com lucros
de mil por cento. Também não teve culpa, o Governo
Norton de Matos, de gastar tanto dinheiro em divisões
administrativas dispensáveis e funcionários públicos em
excesso, alguns com famílias legalizadas à última hora, por
causa dos subsídios. Era preciso povoar Angola, Sr. Van
Loon! E, em última análise, a culpa é do homem, do povo,
e não do Governo! Basta lhe dizer que, hoje em dia, há
muito menos negros em Angola; isso prova o sucesso da
política de integração multirracial do Dr. Oliveira Salazar,
interessado em bem resolver os problemas do ultramar.
— Ou prova que têm sido mortos, ou têm fugido para o
Congo, um bocado de crioulos!
O paralítico deixou de sorrir. Mas, em vez de se mostrar
irritado, meneou tristemente a cabeça.

— 40 —
— Torno a dizer-lhe, sem ofensa, que vossência não
conhece o problema, Sr. Van Loon. Mas isso pouco
importa. Não estou sendo pago para fazer o elogio do
Governo Português. Já lhe disse o que era a coligação
APERTA-SANGRA e o prejuízo que nos causou a
revolução nacionalista do Sunda, reduzindo a zero os lucros
das empresas que tenho a honra de dirigir. É evidente que,
enquanto o Governo da Metrópole não recuperar aquela
área perdida, nosso trust não abriga esperanças de explorar
o petróleo, numa nova concessão.
— E o que é que o senhor sabe sobre vampiros, Dr.
Beça?
A pergunta foi tão inesperada que o banqueiro titubeou.
— Vampiros? Vossência disse “vampiros”?
— Disse. Fui informado de que existem vampiros em
Angola.
O Dr. Alves Beça deu uma risada forçada.
— Essa é boa! Vampiros... Vossência acredita nisso?
— Acredito. Não em vampiros que suguem o sangue
das crianças, mas em criminosos pagos para espalhar o
terror em determinadas áreas africanas. O senhor já ouviu
falar nesses vampiros, doutor? Disseram-me, também, que
eles são pigmeus do interior do Congo...
— Não — asseverou o capitalista, voltando a sorrir
como um querubim. — Não ouvi falar, antes, em tal
absurdo! Sou um entrevado, Sr. Van Loon, e raramente saio
de entre as quatro paredes do meu castelo. Vivo aqui,
isolado, e só conheço o mundo pelo que leio nos jornais e
pelo que ouço na telefonia. Mas não acredito em vampiros,
nem lobisomens! Minha formação católica impede-me de
acreditar nessas criações do demônio. Sejamos práticos, Sr.
Van Loon. Com ou sem vampiros, o Presidente Natanga
precisa ser deposto, para que o Sunda volte à paz anterior,

— 41 —
sob a proteção benfazeja de Portugal. Mas, se os pratos
continuarem senhores da situação... o que me parece cada
vez mais provável... é absolutamente necessário que a
SANGRA, rompendo seus laços com a. APERTA,
restabeleça no Sunda o seu monopólio petrolífero! Nosso
prejuízo é tremendo, Sr. Van Loon, e cada dia que passa
maia desesperados ficam os nossos acionistas! Estamos
dispostos a qualquer tipo de negociações com o novo
Governo Nacionalista, desde que ale não seja inspirado por
Moscou. Agora mesmo devo mandar ao Suada minha
secretária, Miss Sandra Deutch-Brown, para entrar num
acordo com o Presidente Natanga. Se não houver
esperanças de que Portugal volte a conquistar o Sunda, é
imprescindível que os pretos concedam à minha empresa o
direito de continuar a exploração do subsolo de Lochas e
Tchibungo. Por falar nisso, Sr. Van Loon: poderia me fazer
um grande obséquio?
— Qual? — perguntei, na defensiva.
— Minha secretária ainda não conseguiu passagem para
Angola, devido à suspensão temporária das linhas aéreas
portuguesas. Poderia vossência levar Miss Deutch-Brown
até Luanda?
Imaginei logo a figura da eficiente secretária britânica:
uma mulher alta e magra, sardenta, de óculos e nariz de
papagaio.
— Lamento, excelência, mas o avião que me alugaram
tem apenas dois lugares e eu já viajo com minha própria
secretária, que é uma negra do Sudão. Infelizmente, não
posso ser gentil nesse particular.
Através dos óculos-rádio, M’bata devia estar ouvindo
tudo quanto eu dizia. O Dr. Alves Beça suspirou.
— Paciência! Terei, então, que alugar um avião especial
para Miss Brown. A propósito: gostaria de conhecê-la, Sr.

— 42 —
Van Loon? Ela está, neste momento, na minha biblioteca.
Não me custa chamá-la.
E, antes que eu protestasse, o paralítico voltou a tocar a
cigarra da cadeira de rodas. Ouviram-se alguns compassos
do fado-canção “Coimbra é uma lição de amor”. Meio
minuto depois, abriu-se silenciosamente uma porta e entrou
no gabinete uma das mais belas louras que eu já vira na
minha vida. Não era muito alta, nem usava óculos, e tinha
o beiço inferior (cor-de-rosa) graciosamente espichado para
fora, num eterno ar de desprezo que lhe ficava muito bem.
Parecia uma rainha passando por um beco malcheiroso.
— Esta é Miss Sandra Deutch-Brown — disse o Dr.
Alves Beça, sorrindo diante do meu espanto.
— Eu não seria ninguém sem ela, Sr. Van Loon, Sandy
é o meu braço direito! — Transferiu o sorriso para a
secretária, enquanto me indicava com um dedo comprido.
— Este é o Sr. Olivérius Vau Loon, Sandy. Um agente
secreto de passagem por Lisboa. Seu destino é Angola.
A loura cumprimentou-me polida e friamente, mas seus
olhos azuis pestanejaram duas vezes, ao encararem os meus
olhos verdes. Tive a impressão de que ela procurava
imaginar como seria o meu rosto, sem os óculos de aros de
tartaruga.
— Seu passaporte e suas passagens estão prontos? —
inquiri, com voz rouca. — Tenciono continuar a viagem
amanhã, pois sou esperado no Sunda com a maior
ansiedade. — Voltei-me para o ricaço. — É com prazer que
levarei Miss Sandy no meu avião, excelência.
O Dr. Alves Beça franziu uma sobrancelha.
— Homessa! Eu tinha entendido...
— Será um prazer — atalhei. — Na verdade, levo pouca
bagagem no Fantom-13, que é um pequeno jato prodigioso.
Um pedido do Dr. Alves Beça é uma ordem para mim!

— 43 —
Tenho a certeza de que meus empregadores gostarão de
saber que fui útil ao famoso banqueiro lisboeta...
A loura sorriu e vi que tinha covinhas nas faces. Sempre
me apaixonei, à primeira vista, por mulheres com dentes
certinhos e covinhas nas faces. E elas sempre gostaram de
meus olhos verdes e de meu físico privilegiado...
Quinze minutos depois, quando fomos para o salão de
jantar do castelo. Sandy Deutch-Brown ainda não perdera o
seu arzinho petulante mas tinha uma nova chama de
curiosidade nos grandes olhos azuis. Eu também devia tê-la
impressionado favoravelmente.
Éramos apenas quatro ao almoço: o dono da casa, sua
secretária, seu secretário e eu. A mesa, muito larga e
comprida, ocupava o centro do salão, decorado com um
luxo asiático; o lustre também era enorme, cheio de
pingentes do mais puro cristal. Duas garçonetes robustas
serviram-nos caviar com biscoitos, presunto com melão,
enrolados de peixe com creme húngaro, salada de abacates
e carne assada com batatinhas soutê, tudo regado com uni
razoável vinho branco do sul e um excelente vinho verde do
norte de Portugal. Às duas horas, depois dos licores e do
charuto, o Dr. Alves Beça pôs-se a tamborilar com os dedos
Longos no braço de sua cadeira de rodas (motorizada) e eu
percebi que estava na hora de me despedir. A loura Sandy
Brown (que me interrogara, durante toda a refeição, em voz
bastante alta para que o milionário nos ouvisse) entregou-
me a mão quente e macia, que eu retive entre as minhas
meio minuto além do tempo regulamentar.
— Então, até amanhã — disse a garota, numa voz
também quente e macia. — Irei Procura-lo, no Hotel Real
Família, às primeiras horas da manhã. De forma alguma
quero atrasar a sua viagem! E acredite que me sinto muito
feliz em poder viajar a seu lado...

— 44 —
Eu também me sentia muito feliz. A mistura dos vinhos
tinha me deixado num agradável estado de euforia.
Curveime para o Dr. Alves Beça e também lhe apertei
carinhosamente a mão.
Vocês são ótimos, meus amigos! Vocês são ótimos!
O milionário, sorrindo, acionou a cadeira de rodas,
rodando até à porta da antecâmara. Só então notei que, ao
se mover, a cadeira chilreava o fado “Perseguição”, em solo
de cravo.
— Estimo que seja feliz — disse-me o magnata,
convidando-me para passar. — Sandy me dará notícias a
seu respeito. Também lhe peço que a ajude, Sr. Van Loon,
se isso se tornar necessário. Ela tem que se entrevistar com
o Presidente Natanga e obter o contrato de concessão para
a exploração do petróleo! É isso, apenas, o que me
interessa!
Também me despedi do secretário Américo da Silva e
saí do castelo de Cascais ainda com a agradável impressão
da mãozinha aveludada de Miss Sandy apertando os meus
dedos grosseiros, calejados na prática do caratê. Desci a
escadaria e entrei no carro alugado, voltando para Lisboa.
E, no caminho, para poder pensar na loura do beicinho
arreganhado sem ouvir a voz de M’bata, desliguei o rádio
dos óculos.
Cheguei à capital antes das quatro horas e apanhei
minha noiva no hotel, onde a encontrei cercada de
admiradores; pedi desculpas aos jovens lusitanos e arrastei-
a para a rua. Ficamos fazendo compras até as seis horas e,
depois, regressamos ao hotel. À noite, fomos ao teatro (ver
uma comédia musical) e dormimos, de madrugada, depois
de repetirmos, no hotel, algumas das sugestões eróticas da
peça teatral.

— 45 —
Por volta das oito horas da manhã seguinte (sábado, dia
de M’bata), Sandy Deutch-Brown apareceu no hotelzinho,
com sua mala de viagem e suas covinhas nas faces. Vinha
radiosa, num vestido claro e primaveril, os cabelos louros
refulgindo ao sol; recendia a perfume francês e tinha os
olhos mais azuis do que nunca. Apresentei-a a M’bata
(dizendo que se tratava da secretária executiva do insigne
capitalista Alves Beça) e fomos para bordo do Fantom-13.
Uma hora depois, estávamos no ar.
Ao sobrevoarmos o Atlântico, deixei o avião sob o
controle do piloto automático e prestei atenção à palestra de
minhas duas companheiras de viagem, sentadas atrás de
mim.
— Pelo que me disseram no hotel — comentava M’bata
— seu chefe é um dos homens mais ricos de Portugal... não
é?
A loura suspirou.
— Um dos mais ricos e mais infelizes, miss. O Dr. Beça
não é paralítico de nascença; ficou assim, aos dez anos, num
desastre de bicicleta. É descendente de uma das mais
conceituadas famílias da Extremadura e, como era filho
único, herdou toda a fortuna dos pais. Tem um grande
tirocínio financeiro, que o tornou dono de uma das mais
sólidas fortunas da Europa. Seus dividendos sobem a
milhares de libras. Mas, no fundo, continua sendo infeliz.
Muito infeliz, mesmo.
— Compreendo — disse M’bata. — Ele é... como
direi?... outro daqueles homens que não podem amar... não
é?
— Ele não pode — volveu Sandy — mas quer.
— Então, sua agonia deve ser maior.

— 46 —
— O Dr. Beça é um cavalheiro muito gentil, mas... Eu
o admiro muito, mas... Enfim, tenho sempre lhe
demonstrado o meu apreço, mas...
Neste momento, eu também entrei na conversa.
A senhorita é inglesa, Miss Sandy?
Ela fez uma pequena pausa. Sua voz se tornou mais fria.
— Sandy é meu apelido. Sim, sou inglesa. Fui
contratada pelo Dr. Beça, em Londres, há cinco anos. Foi
Américo da Silva quem me contratou, numa de suas viagens
ao Reino Unido. Creio que, depois que assumi as funções
de secretária do Dr. Beça, os seus negócios passaram a
marchar bem melhor... Por sugestão minha, o Dr. Beça
adquiriu terrenos devolutos no Alentejo, transformando-os
numa riquíssima estância balneária, que está dando altos
dividendos. Américo da Silva é fiel e honesto sem dúvida,
mas tem a visão muito estreita. Seu trabalho, nestes últimos
cinco anos passou a ser puramente burocrático.
— Foi à senhorita que o Dr. Beça ficou devendo,
também, a coligação APERTA-SANGRA?
A loura encarou-me, preocupada. Depois, sorriu,
mostrando outra vez as encantadoras covinhas das faces. —
Suspeita de mim, Keith Oliver Durban? M’bata estremeceu
visivelmente, mas eu já esperava por aquilo. E estava
preparado para revidar o golpe.
— Imaginei que você tivesse me reconhecido, Sandy.
Eu também a reconheci.
— Sério?
— Sério. Por isso, suspeito que você tenha levado as
firmas inglesas da APERTA à união com a SANGRA. Você
continua trabalhando para o Intelligence Service, não é
verdade?
— Não, Durban. Realmente, já fui membro do serviço
secreto, mas atualmente estou de fora.

— 47 —
— Eu também estou fora da CIA. Contudo, quem foi
rei nunca perde a majestade...

Tem razão. E, quem já espionou uma vez, não pode


deixar de espionar sempre, para o resto de seus dias; é uma
coisa que fica no sangue...
— Por isso você estava espionando a minha entrevista
com o seu chefe, atrás daquela porta do gabinete...
— Como sabe disso?
— Não sei. Tenho a certeza.
— Sim — tornou ela, mudando de tom — eu aproximei
o Dr. Alves Beça das firmas britânicas, norte-americanas e
holandesas. Estas últimas, como você sabe, formam um
conhecido truste petrolífero mundial. A
APERTASANGRA deve sua existência aos meus bons
ofícios... — Ela espichou o beicinho, num ar de desdém. —
Mas não pertenço mais à polícia secreta de Sua Majestade.
Onde foi que você me conheceu?
Sorri para ela.
— Um dia, há seis anos, estive de visita à Scotland Yard
e vi você no gabinete do Superintendente Horace
Butterfield; nunca poderia esquecê-la! E você? Onde foi
que me conheceu?
— Nesse mesmo dia — respondeu ela, encolhendo o
lábio para poder sorrir. — Também fiz perguntas a seu
respeito. Para quem você está trabalhando agora, Nocaute
Durban? Não é para a PIDE, é?
— Não, não é. Vou ao Sunda a chamado do Presidente
Natanga, para acabar com os vampiros de Angola.
Ela arregalou os olhos azuis.
— Oh, não!
— Por que não?

— 48 —
— Você disse ao Dr. Beça que ia enfrentar o Presidente
do Sunda. Pois é isso mesmo. Tenho que enfrentá-lo,
realmente; de outra maneira não poderei conversar com
ele...
Nocaute Durban pode falar por metáforas e fugir pelas
escadas de incêndio, mas nunca disse uma mentira!

— 49 —
COMEÇAM AS COMPLICAÇÕES

Após sobrevoar o Atlântico em frente a Tanger, o


Fantom-13 cruzou a costa de Marrocos e internou-se nos
céus que cobriam o interior do Continente Africano.
Durante sete das nove horas de viagem, só vimos passar
debaixo de nós (em rápida sucessão) os verdes matagais ou
os áridos desertos do Saara, do Mali, da Nigéria, do
Camerun e do Gabon.
— Qual é o seu pretexto para ir a Angola? —
perguntou-me Sandy Brown, em dado momento. — Eu
viajo na qualidade de caçadora de feras.
— Vai fazer um safári no Sunda? — retruquei
ironicamente.
— Sim E você? Que vai fazer?
— Não sei. A morte do Dr. Catinga truncou o rumo das
negociações. Mas tenho um salvo-conduto que me dá o
direito de entrevistar o Presidente Natanga, como
representante de uma agência telegráfica norte-americana.
— Isso de pouco lhe servirá, se você descer em Angola.
As autoridades militares portuguesas estão alerta, em busca
de espiões. E é isso o que você é, Durban, quer queira ou
não queira!
Virei o rosto sobre o ombro, para encarar seus olhos
azuis.
— Então, o que é que você sugere?

— 50 —
— Entre na minha expedição venatória. Posso
empregá-lo, a você e sua noiva. Vocês serão meus
caçadores profissionais. Que tal?
— Eu nunca peguei numa espingarda! — protestou
M’bata. — Só sei usar bazucas! E não fica bem, caçar leões
com bazuca!
A loura sorriu.
— Você será uma “batedora”, querida. Também há
mulheres nesse ramo de atividades. Creio que essa é a
melhor maneira de chegarmos a salvo ao Sunda. Eles estão
em guerra, vocês sabem... e a pena de um espião, em tempo
de guerra, é a morte!
— Não tenho o que escolher — respondi. — Agradeço
o emprego que você me oferece.
Às cinco da tarde, atravessamos por cima da República
do Congo e pedimos licença, pelo rádio, para descer em
território angolano. Meu jato vermelhinho baixou, a 30
quilômetros da cidade do Uije, no Aeroporto Militar de
N’Gage. Logo que a torre de comando deu permissão para
a descida, manobrei o manche e pousei, com grande perícia,
na última pista da esquerda. Imediatamente, fui cercado por
soldados portugueses de calças curtas, armados com
metralhadoras portáteis Bren.
— Siga em frente! — gritou um deles. — Esquinando
para a direita!
Taxiei o avião para um hangar (de acordo com as
instruções de um capitão com cara de pedra) e saltamos,
com nossas bagagens. Visto de perto, o capitão não era tão
feio como parecia. Falava um inglês fluente e agradável:
— Miss Sandra Deutch-Brown, de Lisboa?
A loura mostrou-lhe seus documentos, sorrindo. Eu e
M’bata também lhe mostramos os nossos passaportes. Pie
chegou a cheirar o salvo-conduto.

— 51 —
— Não tínhamos conhecimento da vinda do Sr. Van
Loon e Miss M’bata — disse, depois, desconfiado. —
Por obséquio, queiram me acompanhar ao prédio da
Administração. Os senhores terão que sofrer um rápido
interrogatório das autoridades da Imigração e dos agentes
da Polícia. Simples serviço de rotina... Estamos em guerra,
como sabem.
Eram sete horas da tarde quando enfrentamos as
perguntas dos militares e as suspeitas dos detetives secretos
da PIDE, e só às dez e meia da noite ficamos livres do
aeroporto. Desse momento em diante eu e M’bata passamos
a pertencer à expedição de caça de Miss Deutch Brown. A
presença da loura, afinal, fora muito útil. Antes de nos
deixar em paz, um dos nossos inquisidores (o Capitão Souto
Menor) resolveu fazer um último teste comigo:
— O Sr. Van Loon é um caçador experimentado? —
perguntou ele, sorrindo.
— Bastante, capitão. Já cacei no Congo e na Nigéria.
— Entendo... Teria dificuldade em nos mostrar a sua
pontaria?
— Todas as minhas armas estão nas malas. Uso, de
preferência, um rifle militar norte-americano, adaptado.
— Também temos rifles americanos na guarnição do
aeroporto. Gostaria o Sr. Van Loon de experimentar um
deles?
E continuava a sorrir ferozmente.
— Com todo o prazer — suspirei. — Qual dos soldados
servirá de alvo?
Ele deixou de sorrir.
— Não é necessário que seja um soldado. Olhe para
cima, Sr. Van Loon. Os céus do Uije estão cheios de urubus.
Realmente, as aves negras e agourentas voavam em
círculos sobre o aeroporto. Aquilo fez-me lembrar de minha

— 52 —
aventura em Tokaimura, no Japão. Pedi emprestado o rifle
de um soldado e perguntei ao Capitão Souto Menor quantos
urubus desejava caçar para a ceia. Ele fez uma careta.
— Basta-me um, Sr. Van Loon. Quero apenas ver o seu
estilo.
— Derrubarei dois com um tiro só — anunciei
presunçosamente.
A arma era boa e eu já conhecia o seu modelo. Fui para
o pátio do edifício da Administração e, diante dos militares
boquiabertos, apontei para o alto e esperei, dormindo na
pontaria. Logo que dois urubus se colocaram numa posição
favorável, apertei o gatilho. A bala atravessou o primeiro
abutre e foi atingir o segundo, derrubando os dois. Diante
dessa demonstração eloquente, o Capitão Souto Menor viu
que não podia me negar os seus cumprimentos.
— Parabéns, Sr. Van Loon — disse ele, contrafeito. —
Vejo que estou a tratar com um legítimo caçador! Notei isso
logo que o amigo apanhou o rifle. Por mim, estão livres.
Agradeci a gentileza, devolvi a arma ao soldado
boquiaberto e dei o braço direito a M’bata e o esquerdo a
Sandy Brown. Dois outros soldados (também boquiabertos)
encarregaram-se de transportar nossas malas. Uije ficava
apenas a 300 quilômetros da fronteira do Sunda, rumo
norte, e Sandy já sabia como alcançaríamos o nosso destino.
Saímos do Aeroporto de N’Gage (num jipe oferecido
pelo Capitão Souto Menor) e fomos nos hospedar num
hotelzinho da cidade. Às onze e meia estávamos
completamente livres dos soldados e pudemos jantar e ir
para a cama. Sandy ficou num quarto separado, enquanto
eu e M’bata elegemos um conjugado, para passar a noite.
Por volta de uma e meia da madrugada, quando eu e minha
noiva nos preparávamos para dormir, bateram à porta do
quarto. Era Sandy. A loura vestia apenas um peignoir azul

— 53 —
sobre o corpo espetacular; cada vez que dava um passo,
mostrava metade das coxas redondas e cor-de-rosa.
— Que aconteceu? — perguntei, com voz rouca. —
Está sem sono?
— A janela do meu quarto dá para o quintal — disse
ela, preocupada. — Vi dois homens nas sombras, com
binóculos, espiando através dos vidros!
— Devem ser agentes da PIDE. Eles ainda não estão
satisfeitos.
— Ou, então, são dois tarados!
— Você quer que eu vá dormir no seu quarto? — sugeri
gentilmente. — Talvez, vendo um homem ali, os espiões
percam o entusiasmo.
M’bata deu-me um beliscão que me fez ficar verde de
dor.
— Não — disse Sandy, espichando o beicinho. — Não
quero ninguém no meu quarto. Quis apenas prevenir você,
Durban. Eles estão de olho! Vou apagar a luz e encostar um
móvel na janela. Eles não terão coragem de entrar no quarto
de uma moça solteira!
Não deixavam de ser estranhas (e agradáveis) as
preocupações da loura das covinhas nas faces... Tive a
impressão de que, dentro de alguns dias, ela estaria em
condições de me mostrar o resto de suas virtudes
anatômicas e a potencialidade de seus carinhos. Tudo
dependia da atitude de minha noiva. M’bata já estava alerta,
mordida pela mosca do ciúme; eu precisava neutralizar o
egoísmo intransigente da sudanesa, se quisessem conhecer
mais intimamente os sentimentos amorosos da inglesinha...
— Outra coisa — disse, ainda, Sandy. — Eu tenho um
helicóptero. Você não precisa se preocupar com a travessia
da jungle. Sua penetração será facilitada.
Senti um arrepio. No primeiro momento, não entendi.

— 54 —
— Você tem o que?
— Um helicóptero. Está à minha espera, no bairro de
Maganga. Foi fretado por um preposto do Dr. Alves Beça.
Esse aparelho nos levará, amanhã de manhã, para o Sunda.
O piloto é um conhecido guia nativo, acostumado aos
safáris africanos. Mas, desta vez, ele agirá como nosso
agente de ligação.
— Isso é bom. Eu estava pensando como é que nós
iríamos atravessar a fronteira conflagrada. Como lhe disse,
o contato do Presidente Natanga morreu, em Abana, antes
de me dar todas as formações.
— Segundo me contou o Capitão Souto Menor, os
rebeldes do Sunda já derrubaram um helicóptero militar
português, cheio de armas e pára-quedistas. Nosso aparelho
terá que viajar com a bandeira azul e branca.
— Que bandeira é essa? — inquiri, curioso.
— Você não a viu, no alto do Castelo de Cascais? É a
bandeira das Organizações Beça. O dinheiro pode muito,
Durban! Aquela bandeira azul e branca é o símbolo do
Poder Econômico; graças a ela, teremos trânsito livre em
Angola e no Sumia!
— Que beleza! — exclamou M’bata. — Não há nada
como viajar debaixo da proteção de um banqueiro.
A loura sorriu, mostrando as covinhas das faces.
— Agora, vamos dormir. Amanhã de manhã, o piloto
do helicóptero deve aparecer por aqui, à minha procura.
Boanoite, queridos amigos.
— Boa-noite, querida amiga — respondemos, em coro.
Só depois disso cada um voltou para a sua cama. E
adormecemos. Não sei se havia espiões da PIDE na minha
janela, mas, se havia, passaram a noite em brancas nuvens.
De manhã, por volta das cito horas, M’bata me acordou
com um beijo no ouvido. Sentei-me na cama e bocejei,

— 55 —
coçando distraidamente o colete-arsenal. Minha noiva
crioula já estava completamente vestida, com uma espécie
de sari indiano, estampado de flores coloridas.
— Sandy já deu sinais de vida? — perguntei.
— Ainda não. Você vai pedir o café no quarto?
— Sim, é melhor. O refeitório deve estar atulhado de
agentes secretos. Abomino espiões sem imaginação!
Serviram-nos um café modesto, complementado por
fatias de mamão que eu devorei prazerosamente. Mal
acabara de comer quando bateram à porta e Sandy voltou a
fazer sua entrada triunfal. Dessa vez, a inglesinha usava um
par de culotes bege, botas de montaria e um blusão de pelica
(castanho) que lhe escondia os encantos do busto. Na
cabeça, trazia um capacete colonial branco, de cortiça, que
me fez recordar o chepen de Jeremias e me deu saudades de
Alana.
— Prontos? — perguntou a garota, as mãos nas ancas.
M’bata estava pronta, mas eu ainda fui fazer a barba e me
vestir, no banheiro. Também enverguei um trajo completo
de caçador inglês (inclusive com um cantil cheio de uísque)
que me tornou ridiculamente parecido com um domador de
leões. Mas era preciso respeitar os costumes da terra e
confirmar a nossa qualidade de caçadores de feras. Voltei
para o quarto e juntei as malas.
— Fernando Tahí já chegou — disse Sandy, espichando
o lábio inferior. — Está à nossa espera, na porta do hotel.
— Quem é Fernando Tahí?
— O piloto do helicóptero. Em menos de três horas
estaremos no Sunda. Fernando é um excelente piloto. Ele
nasceu em Tchibungo.
Chamamos dois empregados, para carregarem as malas,
e fomos para a porta do hotel. No living havia três ou quatro
homens brancos, com cara de detetives tresnoitados, que

— 56 —
nem sequer ergueram os olhos para nós, sinal de que
estávamos sob severa vigilância. Na calçada, em frente ao
hotelzinho, encontramos um negro musculoso,
modestamente trajado à moda ocidental, sem gravata. Seus
cabelos crespos, grandes e gordurosos, sujavam-lhe toda a
gola da camisa branca.
— Este é Fernando Tahí — apresentou Sandy. — Está
sendo pago pelo Dr. Beça, também. O petróleo compra
tudo.
— Não é bem assim — replicou o crioulo, em voz
baixa. — Sou cidadão sundaense e trabalho para o
Presidente Natanga! Tenho ordens para levá-los a Lochas
do Norte e responder pela vossa segurança. O dinheiro
português não compra a fidelidade de um negro de Angola!
Sou fiel ao meu Presidente!
— Ficam-lhe muito bem esses sentimentos — disse eu,
sorrindo. — Mas você não está admirado de que Miss
Deutch-Brown tenha chegado acompanhada a Angola?
— Não, Mr. Durban. O Presidente Natanga falou-me a
seu respeito. Eu já sabia que nosso irmão Carlos Catinga
tinha ido ao Havaí buscar o senhor. Será uma honra levá-lo
comigo para o Sunda. Não tenha medo. Atravessaremos a
fronteira em Culongo ou Cuduzé, sob a proteção da
bandeira azul e branca. Os soldados do Exército
Expedicionário Português não atirarão, para não
derrubarem um aparelho protegido pelo Poder Econômico,
e os nossos guerrilheiros também nos respeitarão, porque
conhecem o helicóptero do Presidente Natanga. Podemos
partir quando quiserem.
— Então — disse Sandy alegremente — partiremos já!
Por favor, Durban, pague o hotel e mande os carregadores
trazerem as malas para o jipe. Maganga não é longe daqui,
segundo me disseram.

— 57 —
Havia um jipe em frente ao hotel, com outro crioulo
mal-encarado ao volante. Nossas bagagens foram colocadas
na parte traseira do carro e nós nos amontoamos na frente.
Logo, o veículo partiu, sacolejando, seguido por um jipe do
Exército Nacional cheio de soldados com óculos escuros,
que olhavam para o céu e fingiam que não estavam nos
seguindo. Foi uma delícia, viajar com as nádegas de Sandy
em cima da barriga! Quinze minutos depois, chegamos a
uma pracinha, no bairro de Maganga, e vimos um
helicóptero verde à nossa espera. Era do tipo Cheyenne,
com acomodações para quatro passageiros, além do piloto
e da bagagem. As malas foram postas a bordo e subimos
para a carlinga.
— Por favor — admoestou-me M’bata. — Você não
pode se desgrudar das costas de Miss Sandy?
— Desculpe, querida. Fiquei de pescoço duro, com essa
viagem de jipe!
O chofer do jipe permaneceu em terra, ao lado do jipão
cheio de soldados distraídos. Fernando Tahí era, realmente,
um exímio piloto; num minuto, esquentou o rotor do
helicóptero, manobrou a alavanca, desfreou o aparelho e
decolou, em linha vertical, como um elevador. Na cauda do
engradado de aço tremulava uma bandeira azul e branca.
— Parece que estamos livres — disse eu, acendendo um
cigano. — Por enquanto, pelo menos. A viagem está
correndo melhor do que eu esperava. É muito gostoso
ganhar dinheiro sem complicações.
— Não fume — retrucou o piloto, pedalando para que
o helicóptero dobrasse para a direita. — Este aparelho está
cheio de pólvora e gasolina. E temos uma metralhadora
Stein na parte traseira. É melhor não fumar agora.
Apaguei o cigarro e encostei distraidamente a perna às
coxas volumosas de Sandy; apesar dos nossos grossos

— 58 —
culotes, senti o calor benfazejo de seu corpo. Mas,
imediatamente, M’bata puxou minha perna, exigindo
tacitamente que eu lhe proporcionasse um pouco de meu
próprio calor.
— Como está a situação no Sunda? — perguntei,
dirigindo-me a Fernando Tahí. — Os serviços públicos
foram restabelecidos?
O piloto acendeu um cigarro, que parecia ridiculamente
pequeno entre os seus monstruosos beiços arroxeados.
Depois:
— Pode fumar agora. A situação no Sunda continua
confusa, Mr. Durban. O Presidente Natanga está tendo
grandes dificuldades em combater os vampiros. Eles já
mataram quase um terço dos mercenários que defendem o
Palácio do Governo. É evidente que o alvo dos pigmeus é o
próprio Presidente! Os vampiros querem assassiná-lo!
— Então, esses pigmeus existem mesmo?
— Claro que existem, Mr. Durban. Matamos um deles.
— Não diga! Quando?
— Anteontem à noite. Cerca de seis ou sete vampiros
atacaram as sentinelas do Palácio, na capital de Lochas do
Norte, mas, dessa vez, um dos atacantes ficou estirado, com
uma bala na cabeça. Era um pigmeu do Congo, só de tanga,
com menos de um metro e meio de altura. Tinha os dentes
aguçados artificialmente. eles afiam os dentes, limando-os,
até transformá-Los em armas perigosíssimas. No entanto, a
morte do pigmeu serviu apenas para provar que os vampiros
são reais, mas não nos deu nenhuma indicação do lugar
onde se escondem. Talvez o senhor tenha mais sorte do que
nós, Mr. Durban, e descubra quem chefia os vampiros. Se
pudéssemos agarrar o chefe deles, teríamos liquidado a
organização terrorista. Também não sabemos quem
financia o grupo.

— 59 —
— Será o próprio Governo de Salazar?
— Não acredito, mas pode ser. O Exército
Expedicionário, mandado pelos portugueses para
sufocar a rebelião do Sunda, encontrou uma barreira nas
casamatas das formigas salale’s. Sunda está sitiada, mas
não se rende!
Os combates continuam, ao longo da fronteira sul,
desde Culongo até Olhete. Eles já perderam um helicóptero
Boeing UH-46, cheio de armamentos, e dezenas de
soldados, O Governo da Metrópole não quer bombardear o
Lochas, para não destruir as instalações petrolíferas, pois o
Palácio do Governo e o Quartel-General do Presidente
Natanga estão situados entre as duas torres que fornecem
gasolina purificada.
— Sei disso. Foi uma boa iniciativa dos rebeldes. Os
portugueses, sob o regime salazarista, tornaram-se muito
econômicos e preferem perder a guerra a escangalhar as
instalações técnicas que eles próprios construíram. Resta
saber até quando irá a paciência do Ministério do Ultramar.
Espero que não haja nenhuma ordem para arrasar a capital
do Sunda justamente quando eu estiver dentro dela!
— O senhor não ficará em Lochas — retorquiu o piloto.
— Se tem a missão de acabar com os vampiros, deverá ir
para a fronteira norte, junto do Congo. O esconderijo dos
pigmeus fica do lado de lá, na altura de Mataíbebe, muito
acima da capital. Além disso, não acredito que o Exército
Nacional chegue a bombardear, algum dia, o Palácio do
Governo Nacionalista. Os portugueses têm esperanças de
resolver tudo com astúcia, pois infiltraram um espião no
Sunda.
— Um espião?
— Sim, Mr. Durban. Fomos informados disso. Sua
conversa com o Presidente Natanga lhe dará uma idéia

— 60 —
exata da situação. Mas sabemos que existe um traidor no
Sunda, pago pelo Governo de Lisboa! É o ex-alferes
Henrique Costa de Sousa!
— Se vocês o conhecem, por que ainda não o
fuzilaram?
— Não o conhecemos, Mr. Durban. Só sabemos que ele
se infiltrou no Sunda e mantém contato, pelo rádio, com as
forças legalistas que sitiam o território independente. Mas
não sabemos como e a cara dele, que nome adotou, nem que
cargo exerce no Governo Revolucionário.
— Ele exerce algum cargo importante?
— É provável. Só assim poderia saber de tantas coisas
sigilosas, que só são discutidas no Estado-Maior e na
reunião dos Ministros. O nome de código do espião é Maria
da Fonte. Já por duas vezes nosso serviço de escuta
surpreendeu as emissões de rádio do traidor, mas não
pudemos localizar a emissora clandestina. O ex-Alferes
Henrique de Sousa é mais escorregadio do que uma
enguia... Mas o senhor vai desmascará-lo, Mr. Durban!
Temos toda a confiança no senhor!
— Sim — disse eu, suspirando. — Também gosto de
caçar espiões. Principalmente quando eles são velhacos e
traidores!
E pus-me a olhar, pensativamente, para o aparelho de
rádio do helicóptero. O engradado de aço voava
maciamente por cima das grandes savanas, ao norte de
Angola. De vez em quando, cruzávamos um rio de águas
barrentas. Ao longe, ouvia-se um ribombar constante, que
repercutia no céu azul puríssimo. Desviei os olhos,
interrogativamente, para Fernando Tahí.
— Não, não é uma trovoada — respondeu o piloto. —
São os soldados portugueses tentando destruir, com cargas
de dinamite, as altas construções de cimento das formigas

— 61 —
brancas. eles só poderão passar, com seus carros blindados,
depois que arrasarem a Linha Salalé. Mas vai ser difícil,
porque os franco-atiradores não os deixam trabalhar em
paz.
Volta e meia, morre um soldado ou vai pelos ares um
grupo de engenheiros.
À medida que nos aproximávamos da fronteira, a oeste
da cidadezinha de Culongo, o bombardeio tornava-se mais
intenso. O céu parecia estremecer sob o impacto dos tiros
dos canhões e das explosões dos morteiros.
— Não tenham medo — continuou o piloto,
preocupado. — Eles ainda não nos viram. É preciso que
identifiquem a bandeira azul e branca.
Pouco depois, com efeito, o tiroteio cessou como que
por milagre. Sobrevoamos uma extensa planície, cheia de
caminhões, morteiros, tanques, canhões de 30 milímetros e
barracas de campanha; eram as tropas portuguesas,
acampadas em frente à fronteira da província separatista.
Fernando Tahí baixou o helicóptero, para que os soldados
legalistas vissem a bandeira das Organizações Beça. Fomos
recebidos com uma ovação. Mas o helicóptero continuou
seu vôo sereno, atravessando por cima dos altos
formigueiros das salalés. Era impressionante aquela série de
castelos de cimento, fechando a fronteira do Sunda! Por trás
das construções das formigas, havia diversos crioulos
maltrapilhos, empunhando espingardas e facões, que
também nos receberam com demonstrações de simpatia,
gritando:
— Mungu mba wungurind ‘Ngola uondo biluka!
(“Amanhã ou depois, Angola há de mudar!”) Soube,
depois, que esse era o lema favorito do Partido de
Libertação Nacional.

— 62 —
— Agora — disse Fernando Tahí — já estamos em
território sundaense. Espero que todos os franco-atiradores
tenham recebido ordens para não atirar. Mas, pelas dúvidas,
vou voar um pouco mais alto...
Meia hora depois, descemos num campo de pouso
improvisado, nos arredores de uma cidade limpa, cheia de
casas no estilo alentejano; aquela devia ser Lochas do
Norte, a capital do distrito.
— Há uma bicicleta à espera de Miss Sandra
DeutchBrown — avisou o nosso guia. — Nós outros
teremos que ir a pé para o Palácio. Infelizmente, não há
muitos veículos motorizados no Sunda e todos os que havia
estão sendo usados em operações de guerra. Até os obuses
são transportados em lambretas.
— Pelo menos — repliquei, sorrindo — vocês têm a
vantagem de extrair a gasolina já refinada. É só despejá-la
nos tanques e deixar andar...
Saltamos do helicóptero e fomos cercados por uma
multidão de negros esfarrapados, subnutridos, que simulava
um pelotão de infantaria. Apenas dois deles tinham
submetralhadoras modernas; os outros se contentavam em
usar espingardas, clavas, facões e uma espécie de
machadinha chamada qsicesso.
— Puxa vida! — exclamei, admirado. — É preciso ter
muito amor à liberdade, para enfrentar o poderio militar
salazarista com espingardas e machadinhas! Esses malucos
merecem a independência!
Fernando Tahí apenas suspirou, mas não disse nada.
Sandy e M’bata ajeitaram-se na bicicleta (uma no selim
e a outra no quadro) e iniciamos a marcha, rumo ao campo
petrolífero. Meia dúzia de negros prestativos carregava as
nossas malas na cabeça; reparei que as cabeças deles eram
chatas por cima, como se tivessem sido criadas

— 63 —
especialmente para aquele mister. Naturalmente, desde
guris que eles carregavam no coco as bagagens dos
portugueses...
Andamos cerca de vinte minutos, através das ruas
desertas (policiadas pelo Exército Revolucionário) e
alcançamos o subúrbio de Lochas (Petrolina) onde se viam
os derricks e os grandes armazéns da Companhia de
Petróleo. Entre dois derricks (pintados de alaranjado) ficava
o edifício da sede da empresa de mineração, que fora
transformado em Quartel-General das forças rebeldes e
Palácio do Governo Revolucionário. Era uni prédio de
sobrado, caiado de branco, com uma pequena escada de
pedra na frente e duas sentinelas negras na porta; essas
sentinelas estavam elegantemente fardadas de cinzento.
Fernando Tahí despediu-se de nós, na entrada do Palácio, e
deu ordens aos carregadores para depositarem as malas na
escada; em seguida, girou nos calcanhares e desapareceu.
Havia outros dois crioulos, altos e fortes, do lado de dentro
da porta principal do edifício; estavam na sombra, mas,
apesar disso, reparei que olhavam para nós com ar curioso.
Um oficial rebelde também saiu das sombras do pórtico e
veio nos dar as boas-vindas.
— O Presidente Natanga está à espera dos senhores —
disse ele. — Sou o Capitão Banguela. Quero lhes apresentar
o nosso Primeiro-Ministro, Dr. Joaquim Confusa de
Oliveira, e o nosso chefe das Forças Armadas,
TenenteCoronel Manuel Caxumbela.
Os dois negros altos adiantaram-se, sorrindo, e
apertaram nossas mãos. Uni deles estava vestido de civil,
usava óculos e tinha dentes pequenos, de rato; o outro,
fardado de cinzento, com diversas condecorações no peito
da túnica, tinha bigode, olhos grandes e cabeça raspada à
escovinha. Quando sorriu, exibiu uma dentadura suja de

— 64 —
nicotina, com os dentes muito separados; parecia uma
caraça cortada numa abóbora.
— Sua Excelência, o Presidente, está no seu gabinete
— anunciou o Primeiro-Ministro. — Tenham a bondade de
entrar. Ainda há pouco, houve uma reunião do Ministério e
Sua Excelência não se encontra de muito bom humor.
Agarrei nos braços de M’bata e Sandy e empurrei-as
para um hall fresco e hospitaleiro, parcamente mobiliado
com bancos de pau. O Tenente-Coronel Caxumbela
deixouse ficar para trás, acendendo um cigarro.
— Subamos — convidou o Primeiro-Ministro, que
parecia o mais jovial dos dois. — É uma tranqüilidade,
contar com a colaboração de Nocaute Durban em nossa
marcha para dias melhores!
O Presidente teve uma excelente idéia, ao contratar um
espião tão famoso!
O Capitão Banguela ficou no andar térreo. Acabamos
de subir a escada interna e enfrentamos um corredor
sombrio e gelado; até ali não ia o ardente sol africano. No
fundo do corredor, havia uma porta fechada, com outro
soldado de guarda; também essa sentinela estava fardada
com elegância. O chefe do Estado-Maior pediu licença,
adiantou-se e abriu a porta, com um sorriso nos beiços
grossos.
E nós vimos, deitado em cima da secretária, entre
papéis sujos de sangue, o cadáver do Presidente João
Natanga. Começavam as complicações.

— 65 —
O BILHETE DO PATRÃO

Sim, começavam as complicações! Com a morte do


Presidente, quem ia me pagar as duzentas mil libras
prometidas? Senti um frio na boca do estômago. Na mesma
hora, tinha tirado a Magnum do coldre (debaixo do sovaco)
e pulado para o meio do gabinete.
— Não toquem em nada! O assassino ainda pode estar
aqui dentro!
A janela, ao fundo da sala, estava aberta para o sol.
Enquanto o Primeiro-Ministro e o chefe do Estado-Maior
corriam a examinar o corpo do Presidente, dei uma busca
no escritório, sem encontrar ninguém. Então, debrucei-me
sobre o parapeito da janela. Dava para um pátio cimentado,
que separava o prédio de uma das torres de petróleo; não
havia nenhuma sentinela à vista. A janela ficava apenas a
cinco metros do solo e havia um cano de águas pluviais ao
alcance da mão; qualquer pessoa, mais ou menos ágil,
poderia ter entrado e saído por ali.
— Foram os vampiros! — anunciou lugubremente o
Primeiro-Ministro. — O Presidente morreu!
M’bata não se conteve e caiu, chorando, aos pés do
cadáver.
— Titio! Pobre titio! Por que fizeram isso com ele? Por
quê? Por quê?

— 66 —
Sandy Brown debruçou-se sobre a crioulinha e
procurou serená-la.
— Política — respondi eu, guardando outra vez a
pistola no coldre. — Agora, suponho que o Sunda deixe de
ser socialista.
— Nada disso — retrucou o Primeiro-Ministro, com
voz firme. — A morte de Sua Excelência não alterará, em
nada, a política do Governo! Não é verdade, coronel?
E voltou-se para o chefe do Estado-Maior. Este anuiu,
sem tirar o cigarro da boca. E acrescentou, com voz não
menos firme:
— Sou um soldado, Sr. Ministro! Apenas recebo
ordens! E continuo fiel aos meus sagrados princípios de
servir ao que está por cima! Contudo, nestas circunstâncias,
terei que depor nas mãos de quem está por cima, o meu
pedido de exoneração. Apenas pró-forma.
— E quem está por cima? — perguntei, desconfiado.
— Não haverá modificações sensíveis na nossa política
— repetiu o Primeiro-Ministro. — O Vice-Presidente
prestará juramento e assumirá o cargo imediatamente, para
não prejudicar o esforço de guerra. A orientação que o Dr.
Antônio Cazumbuca dará ao Sunda será sensivelmente a
mesma de seu antecessor. As Forças Armadas continuarão
fiéis à política independente do Governo, adotada desde a
vitória da revolução! Certo, coronel?
— Certo — disse o Tenente-Coronel Caxumbela. —
Meus soldados continuarão unidos pelo ideal de dar ao
Sunda um regime eminentemente democrático, sem a
influência do capitalismo ocidental.
— Também não queremos a influência do comunismo
ateu — retorquiu o Primeiro-Ministro friamente. — O
falecido Presidente era muito simpático à política de

— 67 —
Moscou. Por isso, às vezes tínhamos atritos, nas reuniões
do Ministério. Hoje mesmo, tivemos um.
O chefe do Estado-Maior acenou gravemente.
— Sua Excelência, o Vice-Presidente, não é simpático
à esquerda.
— Tem certeza?
— Absoluta. Agora, com a morte do ditador vermelho,
obteremos a nossa verdadeira independência! As tendências
do Vice-Presidente são bem conhecidas; ele pugna por um
Governo Socialista morigerado.
— Isso é ótimo — exultou o Primeiro-Ministro.
— Assim, poderemos reatar as relações com o resto do
mundo, além da França e da União Soviética. É preciso não
esquecer que precisamos do mercado internacional, para
vender o nosso petróleo.
— Agrada-me ouvir isso — disse Sandy Deutch-
Brown, largando M’bata e olhando para o Primeiro-
Ministro. — Vim ao Sunda para negociar o petróleo com o
Presidente Natanga, em nome da SANGRA de Lisboa;
agora, que o Presidente está morto, talvez seja mais fácil
entrar em entendimentos com o novo Presidente
Cazumbuca...
— Certamente — disse o crioulo de óculos. —Logo que
Sua Excelência assumir o Governo, estará apto a assinar um
tratado com a SANGRA, restabelecendo a concessão para
a exploração do petróleo. Esse sempre foi o desejo de Sua
Excelência. E nem eu, nem o Tenente-Coronel
Caxumbela... se nossos pedidos de resignação não forem
aceitos... nos oporemos a esse tratado. Um contrato desses,
firmado com as Organizações Beça, será considerado de
interesse nacional.
Aquela conversa, diante do cadáver ainda quente do
Presidente Natanga, era profundamente chocante. M’bata,

— 68 —
que chorava o falecimento do tio, acabou se exaltando;
engoliu as lágrimas e pôs-se de pé, o rostinho cinzento de
ódio:
— Urubus! — gritou. — Em vez de lamentarem a morte
de seu líder, vocês só pensam nas vantagens que terão no
novo Governo! Gente sem coração! E dizer-se que milhares
de jovens se matam, nos campos de batalha, para
defenderem os privilégios de meia dúzia de políticos e
militares que só pensam no seu próprio bem-estar! Uma
cambada de urubus, é que vocês são!
E ameaçou enfiar as unhas nos olhos dos crioulos.
— Calma! — bradei, agarrando-a pelos braços. — Não
fica bem você agredir a alta cúpula do Governo do Sunda!
Fique quietinha e deixe-nos investigar a morte de seu tio!
Minha noiva ainda esperneou um pouco; depois, os
soluços voltaram à sua garganta e ela se atirou outra vez,
chorando, aos pés do cadáver. Sandy, depois de um
momento de estupor, voltou a abraçar a companheira,
procurando serená-la. Circulei os olhos pelo gabinete e vi
que só tinha uma porta e uma janela.
— O assassino fugiu pela janela — anunciei. — E
talvez não esteja longe! Vamos ver o que nos sugere o local
do crime...
A um canto, havia um cofre-fone, com a porta meio
aberta. Pedi ao Primeiro-Ministro e ao Tenente-Coronel que
fossem testemunhas e acabei de abrir o cofre. Lá dentro
encontrei documentos de toda espécie, mas pouco dinheiro.
Um amarrado de cédulas, capeado por uma tira de papel,
chamou-me a atenção. Eram libras. Na tira de papel havia a
indicação escrita com tinta verde:

“200 mil Libras. Prêmio destinado a K. O. Durban.”

— 69 —
— Este dinheiro é meu — anunciei, desafogado. — Sua
Excelência foi previdente e evitou que eu fosse roubado em
minha excursão a Angola. Pensei que iam me passar um
calote.
— Ainda não — retorquiu o chefe do Estado-Maior.
Esse dinheiro ainda não é seu, Mr. Durban! Pertence ao
Erário do Sunda e só poderá ser liberado depois do
consentimento do Ministro das Finanças.
— Esse dinheiro — continuou o Primeiro-Ministro,
com voz seca — pertencia à Companhia de Petróleo
APERTASANGRA. Foi confiscado pelo Presidente
Natanga quando invadimos a sede da empresa.
— Nesse caso — volvi, com o pacote de cédulas na mão
— o dinheiro da companhia, encampada pelo Governo,
passou a fazer parte da presa de guerra. O Presidente era o
chefe supremo das Forças Armadas e podia dispor dele,
durante a conflagração. Já sabemos que destino ele deu às
libras e não vejo inconveniente em ser o depositário delas,
até que não existam mais vampiros em Angola. Minha
missão é acabar com os vampiros.
— Não sei — obtemperou o Primeiro-Ministro.
— Não sei se, agora, ainda existem motivos para a sua
presença no Sunda... O senhor foi contratado pelo
Presidente Natanga, mas o Presidente morreu. Sua missão,
Mr. Durban, só terá prosseguimento se assim forem os
desejos do Vice-Presidente elevado ao cargo de maior
dignitário da Nação,
— Enquanto isso — concluí, metendo o dinheiro no
bolso — ficarei responsável pela recompensa. Se eu não
liquidar os vampiros, terei prazer em devolvê-la.
— Talvez os vampiros não mais deem sinais de vida —
ruminou o chefe do Estado-Maior. — Talvez esses malditos
pigmeus só quisessem matar o Presidente!

— 70 —
— Foram eles? — inquiri, aproximando-me outra vez
do corpo caído sobre a secretária.
— Sim — respondeu o Primeiro-Ministro. — Foram os
vampiros. Mas nossa polícia saberá descobrir os culpados!
Sorri para ele.
— Não incomode a polícia, excelência. Eu os
descobrirei, sejam eles quem forem! Talvez os culpados
estejam altos demais para que a polícia os alcance.
Os dois negros se entreolharam, incomodados, e o
Tenente-Coronel quase engoliu o cigarro. Curvei-me sobre
o cadáver e examinei-o superficialmente, evitando deslocá-
lo de sua posição. M’bata e Sandy observavam-me, os olhos
arregalados. O Presidente Natanga era uni crioulo alto,
forte, de origem evidentemente sudanesa. Estava sentado na
cadeira giratória, debruçado sobre o tampo da secretária
atulhada de papéis. Um tinteiro, de tinta’ verde, tombara
com a queda do corpo, e manchara muitos documentos. Nas
costas do morto via-se espetado o cabo de um punhal, cuja
lâmina devia ter-lhe atravessado o coração.
— Um punhal nativo — comentou o Primeiro-Ministro.
— Deve ter sido feito em Luanda. Há milhares deles
espalhados por Angola.
Ergui delicadamente a cabeça do Presidente e vi as
marcas de uma dentada no seu pescoço. Não havia dúvida:
as duas carreiras de depressões, grandes e perfeitamente
iguais (em forma de meia-lua) atestavam que o vampiro
tinha uma dentadura forte e perfeita. Mas não havia mais
nenhum ferimento, entre as duas séries de marcas de dentes.
O vampiro apenas mordeu a vítima — murmurei. —
Não lhe chupou o sangue. Naturalmente, não teve tempo
para isso. Ou, então, não é um vampiro cem por cento...
— O corpo ainda está quente — disse o chefe do Estado
Maior, mordendo o cigarro entre os dentes separados. —

— 71 —
Com certeza, o crime ocorreu pouco antes de subirmos. A
reunião do Ministério terminou ao meio-dia e nós deixamos
o Presidente, com saúde, descendo ao andar térreo. Todos
os Ministros foram embora; apenas eu e o Dr. Confusa
permanecemos no Palácio. Nenhum de nós poderia ser o
assassino.
— Mas algum dos Ministros poderia — retruquei, com
voz seca. — Bastava que um deles saísse pela porta, desse
a volta ao prédio e entrasse pela janela. Não há sentinelas
nos fundos do Palácio.
Continuei as investigações, sem dar atenção aos olhares
contrariados dos crioulos. A cesta de papéis velhos foi o
meu alvo seguinte. Por cima de vários documentos
amarrotados, havia uma folha de papel carbonizada.
Felizmente estava inteira.
— Queimaram este papel há pouco tempo — anunciei.
— Pode ter sido obra do vampiro.
O Primeiro-Ministro e o Tenente-Coronel gemeram
qualquer coisa, irritados; via-se que, apesar do respeito que
lhes merecia o falecido Presidente, estavam ansiosos por se
verem livres de mim. Desabotoei o paletó, abri a camisa e
pus à mostra o colete-arsenal. Então, diante do espanto dos
dois crioulos, comecei a agir como um detetive em serviço
de rotina. Tirei, dos bolsinhos do colete, o material
necessário (duas placas de vidro, um pincel, um vidro de
colódio ricínico, um vaporizador com éter e uma latinha de
parafina) e instalei um pequeno laboratório de análises num
canto da secretária. Com o auxílio de um cartão, agitado
com arte, destaquei e retirei a folha de papel carbonizado da
cesta, pousando-a numa das placas de vidro; em seguida,
apliquei sobre ela uma leve camada de colódio e deixei
secar. Voltei a folha e fiz o mesmo do outro lado. Por fim,
amoleci o papel com vapores de éter e prensei-o, entre as

— 72 —
placas de vidro, tapando as margens com parafina. Isto
feito, não foi difícil ler a mensagem, que surgiu no papel em
letras castanhas sobre um fundo negro:

Nocaute Durban está a caminho do Sunda. Liquide o


Presidente e assuma o controle do Governo.
O Patrão.

Mostrei o bilhete ao Primeiro-Ministro e ao chefe do


Estado-Maior; ambos demonstraram o mesmo assombro.
— O Patrão? — resmungou o Tenente-Coronel
Caxumbela. — Quem será o Patrão?
— Isso — retorqui, com um sorriso perverso — é o que
vou descobrir! Quem assumirá o controle do Governo, com
a morte do Presidente? Os senhores falavam no Vice-
Presidente, mas... será ele, mesmo?
Os dois negros trocaram um olhar de apreensão.
— Bem — respondeu o Primeiro-Ministro, contrafeito.
— É difícil dizer-se quem assumirá o controle real do
Governo. Há várias maneiras de encarar o assunto. Eu, na
qualidade de Premier, não deixarei de assumir o controle
sobre o elemento civil, ao passo que o Tenente-Coronel
Caxumbela continuará como chefe do Estado-Maior. Sob o
ponto de vista militar, será ele quem assumirá o controle do
Governo, pois ainda estamos em guerra. Mas será o Vice-
Presidente quem, depois de tomar posse, ficará no lugar do
ditador assassinado.
O chefe do Estado-Maior chupou o cigarro.
— Sim, é difícil dizer-se quem assumirá o controle
geral... Qualquer um de nós, dirigentes, pode ser suspeito
de estar envolvido no complô. Eu me inclino, mais, para o
Vice-Presidente. Pessoalmente, não gosto muito do Dr.
Cazumbuca.

— 73 —
— Pois eu — retorquiu o Primeiro-Ministro — prefiro
não apontar nenhum de meus companheiros de Governo.
Considero esse bilhete uma simples falsificação! Ou
melhor: foi forjado para lançar a confusão na área
governamental! Vou convocar uma reunião de urgência do
Ministério, com a presença do Vice-Presidente, e sugerir
que sejam suspensas todas as investigações sobre a morte
do Presidente, a fim de preservar a harmonia na alta cúpula
do Governo!
— Se o senhor fizer isso — disse eu, encarando-o —
estará admitindo tacitamente sua culpa no assassínio! E,
agora, eu não estou no Sunda apenas para acabar com os
vampiros; com a morte de meu empregador, ficarei até
descobrir quem o matou! Tomem nota disso, excelências!
Os dois negros entreolharam-se e não disseram nada;
não tinham mais nada para dizer.
— O Presidente era solteiro? — perguntei, de repente,
varado por uma suspeita.
Houve uma pausa. Depois, o Primeiro-Ministro
pigarreou.
— Bem... Sua Excelência vivia com uma senhora,
embora ainda não fosse legalmente casado... Ela chama-se
Cauína Caçula e mora numa casa própria, aqui mesmo em
Lochas. Mas não acredito que a Sra. Cauína saiba de
alguma coisa que...
— Veremos — atalhei, examinando os papéis em cima
da secretária. — Gostaria que me dessem o endereço da
viúva. Depois do almoço, quero interrogá-la. Eu, pelo
contrário, acredito que ela saiba de alguma coisa!
Os dois negros voltaram a trocar um olhar de
entendimento e suspiraram, concordando. Depois, o
Tenente-Coronel Caxumbela jogou no cinzeiro a ponta de
cigarro apagada.

— 74 —
— Vou pôr um soldado ao seu dispor, Mr. Durban. Até
segunda ordem, o senhor poderá transitar livremente pelo
Sunda e fazer as perguntas que achar necessárias. Mas, se o
Vice-Presidente considerar que as suas pesquisas atentam
contra a soberania nacional, o senhor terá que voltar para o
Havaí!
— Sem descobrir o assassino do Presidente?
— Sem descobrir o assassino! este é um problema
sundaense, Mr. Durban, e as autoridades do Sunda se
encarregarão dele! Trata-se de um crime político,
perfeitamente caracterizado, e a maioria desses crimes fica
para sempre envolta em mistério. Assim aconteceu na
morte de Patrice Lumumba. E do Presidente Kennedy.
Quando há muitos interesses em jogo, prevalecem os
interesses do Governo. Não queremos que a morte do major
Natanga sirva de pretexto para deixar o novo Governo
Nacionalista do Sunda em má posição no cenário mundial.
Natanga foi apenas um oficial angolano que traiu os seus
camaradas portugueses e assassinou friamente o
Administrador-Geral, que era seu amigo! Pessoalmente,
considero a morte do ditador um alívio para todos nós!
Essas palavras encerraram a minha entrevista com os
dois dirigentes sundaenses e as minhas investigações no
local do crime. Entreguei as chapas de vidro com o bilhete
do “Patrão” ao Tenente-Coronel Caxumbela (a pedido dele)
e disse que ia levar minha noiva e minha companheira de
viagem para o hotel. Contudo, atendendo a um convite
gentil do Primeiro-Ministro, fomos almoçar no refeitório do
Palácio. Aí, nos serviram algumas iguarias típicas africanas,
quase intragáveis. Às duas horas da tarde, o Tenente-
Coronel Caxumbela (que fora almoçar com seus camaradas
de armas) voltou a aparecer, cercado por meia dúzia de
oficiais de alta patente, e anunciou que o Vice-Presidente

— 75 —
Antônio Cazumbuca convocara uma reunião urgente de
todo o Ministério.
— Eu convoquei a reunião — retrucou o Primeiro-
Ministro, com voz seca. — Antes disso, porém, é preciso
que o Vice-Presidente preste juramento e assuma o cargo,
deixado vago pela morte do ditador. Só haverá reunião, para
deliberar sobre o destino do Sunda, depois que o novo
Presidente for legalmente empossado!
— O ato da posse pode ser marcado para daqui a pouco
— disse o chefe do Estado-Maior. — Minhas tropas
permanecem fiéis ao regime e estão preparadas para sufocar
qualquer movimento dos comunistas, amigos do falecido
Natanga! Não correrá, no Sunda, o sangue generoso dos
militares.
Sandy, que acabara de bebericar um cálice de licor,
sorriu encantadoramente para o Primeiro-Ministro.
— Excelência, posso lhe fazer uma pergunta?
— Até duas, senhorita — disse o Dr. Confusa
galantemente.
— Quando será debatido o meu caso? Como lhe disse,
represento os interesses do Dr. Moisés Alves Beça,
Presidente da SANGRA, e estou aqui para assinar um
contrato com o Governo, contrato que nos permita voltar à
exploração do petróleo.
— Eu sei, senhorita. E a APERTA?
— Não queremos mais negócios com a APERTA,
excelência. O capital estrangeiro não entrará no Sunda! O
Dr. Alves Beça resolveu ficar, sozinho, no monopólio do
petróleo.
— Ótimo! Logo após a reunião do Ministério, ainda
esta tarde, a senhorita poderá se avistar com o novo
Presidente. Tenho certeza que a proposta do Dr. Alves Beça
será recebida com agrado, principalmente se for

— 76 —
acompanhada de um presentinho para os dirigentes
sindicais... São, sempre, os sindicatos que perturbam as
negociações. A verdade é que não temos recursos para
explorar o petróleo e, para nós, será mais útil receber uns
royalties sobre os lucros da Companhia do que tentar a
exploração por meios primitivos e inadequados. A proposta
do Dr. Beça será recebida com carinho.
— Obrigada — disse Sandy, com outro sorriso
encantador. — Todos nós, afinal, ganhamos alguma coisa
com a morte do ditador...
Também eu tinha chegado a essa conclusão.

— 77 —
O NOVO PRESIDENTE

Nessa altura, eu e M’bata nos despedimos da loura


inglesinha e dos sundaenses. E saímos do palácio,
acompanhados por um soldado negro (com cara de mico)
que o chefe do Estado-Maior pôs à nossa disposição. Sandy
ficou no palácio, para assistir à posse do novo Presidente, e
disse que iria ao nosso encontro, mais tarde, no hotel.
Atendendo a uma sugestão do Primeiro-Ministro, tínhamos
combinado hospedarmo-nos no Hotel Central; foi para lá
que seguiram as nossas malas.
A casa da Sra. Canina Caçula (companheira do falecido
Presidente) ficava num bairro familiar de Lochas do Norte.
Era um pequeno prédio de alvenaria, com um jardinzinho
na frente. Deixei o soldado no portão e entrei, com M’bata;
minha noiva crioula poderia me servir de intérprete, no caso
de alguma dificuldade com o dialeto Sunda.
Mas a jovem negra que nos atendeu era muito educada
e falava correntemente o inglês. Tratava-se de uma
crioulinha chorosa, tipo mignon. com uns olhos grandes e
luminosos; trajava um vestido caseiro, simples, e tinha um
lenço na cabeça, ocultando os cabelos esticados à força.
— Pobre e querido João! — lamentou-se ela,
aumentando os soluços quando nos viu. — Agora, meu
filho... se chegar a nascer... não conhecerá o pai! E ele ia se
casar comigo, Mr. Durban! Ele ia se casar!
— Claro — disse eu. — Claro que ia se casar com a
senhora.
— Quem fez isso, Mr. Durban? Quem apunhalou o meu
pobre João? Eu sempre disse a João que ele precisava tomar
cuidado com os políticos que o cercavam! Os vampiros

— 78 —
mataram uma porção de soldados brancos, para chegarem
ao meu João... mas acabaram chegando!
— Não sei — retruquei, com voz grave. — Não sei se
foram os vampiros.
Os olhos dela brilharam ainda mais.
— O senhor também acha que não? Eu sei que os
vampiros existem, mas... Sempre antipatizei com o
Primeiro-Ministro Confusa de Oliveira! Acho que ele seria
muito capaz de matar meu marido, depois de uma briga
numa das tais reuniões ministeriais! João estava cercado de
gente ruim, Mr. Durban! Teriam sido os vampiros,
realmente?
— Não sei, minha senhora. Seu marido foi mordido no
pescoço sem dúvida, mas aquela única dentada não parece
ter sido feita por um pigmeu, nem por um vampiro. A
arcada dentária é muito grande e os dentes muito iguais. No
mínimo, aquela dentada foi feita no cadáver pre-
concebidamente, para pôr a culpa nos vampiros... O que é
que a senhora sabe a respeito desses pigmeus?
— Nada — confessou a jovem negra, assoando-se num
lencinho. — Só ouvia João falar neles, mas nunca vi
nenhum. Sei, no entanto, que os mercenários mataram um
dos pigmeus anteontem e provaram que era um vampiro.
João achava que os pigmeus teriam sido contratados pelos
seus inimigos, os portugueses, para matá-lo e enfraquecer a
revolução socialista. Eu não sei o que pensar.
A senhora acompanhou de perto a revolução?
— De bem perto. Nós já nos conhecíamos, desde que
João era simples major da guarnição portuguesa do Sunda.
João foi o líder do movimento separatista, mas é claro que
tinha um patrão.
— Tinha um patrão? — perguntei, interessado.

— 79 —
— Sim, nenhuma revolução se faz sem dinheiro, Mr.
Durban. Os mercenários do Sargento Francisco Macundo,
que ajudaram meu marido, foram pagos pelo patrão. Eu
mesma vi um bilhete que João queimou logo depois da
tomada de Lochas do Norte. Era um bilhete perfumado,
ordenando a João que assassinasse o Administrador-Geral
do distrito, Tenente-Coronel Manoel Botucatu, e assumisse
o controle do Governo. Esse bilhete estava assinado: “O
Patrão”.
— Isso é muito interessante! E um bocado confuso... —
Confuso por quê?
— Porque, se o “Patrão” provocou a revolução
socialista, por que, agora, teria mandado matar o líder
revolucionário? Sim, eu encontrei outro bilhete do
“Patrão”, queimado, nu gabinete de seu marido! Quem será
esse “Patrão”?
— Não sei, Mr. Durban. Só posso lhe dizer o que sei.
João também queimou um contrato, logo depois de ter
declarado a independência do Sunda. Chegou aqui em casa,
irritado, e rasgou o documento em pedacinhos, tocando-lhe
fogo no quintal. Suponho que fosse algum convênio
assinado com as autoridades portuguesas.
— Não sobrou nada do papel?
— Nada. As cinzas foram levadas pelo vento.
— Engraçado — resmunguei. — O tal “Patrão” pagou
aos mercenários, para ajudarem o Major Natanga e, depois,
pagou ao assassino, para que o liquidasse... Não me
admiraria nada se o “Patrão” também tivesse pago aos
vampiros, para fazerem essas arruaças na terra! Pelo jeito,
ele não sabe o que quer!
Ou então — disse a Sra. Cauína em voz baixa — quer
apenas a morte e a desgraça! João não confiava em ninguém
— continuou choramingando. — Ele me disse que queriam

— 80 —
matá-lo. Ficou muito nervoso, depois que nacionalizou os
poços de petróleo e declarou a independência. Creio que
tinha medo dos comunistas da Linha de Moscou.
— Por quê?
— Os comunistas estão de olho no petróleo do Sunda
há muito tempo, Mr. Durban. João me disse que tinha de
agir com tato para não escapar dos portugueses e cair nas
garras dos russos. Meu marido era um idealista, Mr.
Durban, e queria um Sunda independente, na linha de
Pequim. Olhei para M’bata e vi que ela estava grogue, com
tanta confusão; eu também não me encontrava em melhores
condições, pois a política me dá dor de cabeça.
— Enfim — concluí, sorrindo para a Sra. Cauína — é
muito possível que o tal “Patrão” também seja comunista.
Da linha do Marechal Tito.
— E a meu respeito? — perguntou M’bata, dirigindo-
se à Sra. Cauína. — Tio João não lhe disse nada a meu
respeito?
— Sim — respondeu a crioulinha, enxugando as
lágrimas. — João me falou que tinha chamado Mr. Durban
e sua noiva sudanesa. Para você, querida, ele deixou um
“breve”, que a fará muito feliz. Vou buscá-lo lá dentro, no
meu quarto; está no cofrezinho das jóias.
A jovem senhora saiu da sala (modestamente
mobiliada) e demorou-se alguns minutos no interior da
casa.
— Um “breve”? — estranhou M’bata. — Que diabo é
que vou fazer com um “breve”?
Isso dá sorte — respondi, sorrindo. — E nós vamos
precisar de muita sorte, meu bem. Não se esqueça de que
teremos de enfrentar os interesses políticos sundaenses;
qualquer distração pode significar um fuzilamento sumário!
É~ muito desagradável ser espião em tempo de guerra!

— 81 —
Nesse momento, a Sra. Cauína voltou para a sala,
trazendo um pacotinho que entregou a M’bata. Minha noiva
abriu-o e contemplou assombrada, um pequeno colar de
dentes humanos, uma figa da Guiné cheirando a alecrim e
um punhado de sal grosso.
— Este “breve” — disse a Sra. Cauína — é excelente
para fechar o corpo! Você deve pendurá-lo no pescoço e
não se separar nunca dele! Eu própria tenho um feitiço
semelhante, que João também me ofereceu. Só não
compreendo por que foi que ele morreu, se também usava
um “breve” no peito!
— A explicação é simples — disse eu, muito sério. —
Mataram-no pelas costas.
Ainda palestramos mais alguns minutos com a jovem
viúva e nos despedimos, pedindo-lhe que nos avisasse no
caso de se lembrar de alguma coisa que nos pudesse ser útil.
Dali, eu e M’bata (sempre seguidos pelo guia posto à nossa
disposição) fomos para o Hotel Central, numa rua
comercial de Lochas. O estabelecimento era pequeno, mas
muito limpo. Escolhemos dois quartos contíguos, com porta
de comunicação e, depois de instalados, despedi o soldado
que nos seguia como uma sombra. O crioulinho com cara
de mico não demonstrou muita satisfação em se separar de
nós (já andava de olho nos seios de M’bata) mas eu o pus
para andar. Eram seis e meia de uma tarde serena quando
apareceu um mensageiro no hotel, anunciando que o novo
Presidente do Sunda tomara posse e, depois de uma reunião
ministerial, desejava se entrevistar comigo. Pedi a M’bata
que pusesse os óculos e me esperasse para jantar. Eu próprio
pus no nariz o meu aparelho de rádio.
— Não — disse o mensageiro, que era um crioulo
magro, fardado de tenente. Sua secretária deve ir com o

— 82 —
senhor ao Palácio, Mr. Van Loon. Não é conveniente, nem
seguro, que ela fique sozinha no hotel.
Diante da ameaça, fui com minha noiva ao encontro do
novo dirigente da República Socialista do Sunda. Sua
Excelência, o Dr. Antônio Cazumbuca, era um congolês
baixo e forte, educado na Europa, com tendências fascistas
disfarçadas por um nacionalismo de fachada. Tinha o nariz
chato, a testa fugidia, e usava óculos e dentadura postiça; a
caixa de seus óculos, pendurada no cinto, parecia um coldre
de arma vazio. Fomos recebidos por ele no gabinete do
sobrado, onde morrera o líder Natanga; a sala, lavada e
varrida escrupulosamente, não tinha mais nenhum sinal do
episódio sangrento ali desenrolado.
— Sente-se, Mr. Keith Durban — disse o Presidente
Cazumbuca afavelmente. — Tenho imenso prazer em
conhecê-lo, bem como à sua gentil noivinha africana...
Acabamos de discutir o seu caso, na reunião do Ministério,
e decidimos concordar com a sua permanência no Sunda.
Expulsá-lo daqui, nesta altura, poderia ser má política... O
senhor sabia que sua viagem a Angola já não é mais
segredo?
— Não, não sabia. Quem me delatou?
— Os jornais de todo o mundo falam nisso, Mr. Keith
Durban. Provavelmente, o senhor foi delatado pelo próprio
e saudoso Presidente Natanga, que era muito vaidoso. Seu
prestigio é grande, Mr. Keith Durban, e seus serviços
profissionais podem ser de imensa utilidade para nós. O
senhor foi contratado, pelo meu antecessor, para acabar
com os vampiros, não é verdade?
— É. E, agora, estou interessado em descobrir quem
apunhalou o Presidente! Vossa Excelência sabe quem foi?
— Não, não sei. — O novo Presidente estreitou os olhos
negros. — Esqueça-se disso, Mr. Keith Durban. Nossa

— 83 —
polícia se encarregará de descobrir os culpados. Prefiro que
o senhor continue agindo contra os vampiros, até expulsá-
los do território nacional. A verdade, Mr. Keith Durban, é
que os pigmeus do Congo acabam de atacar outros
mercenários, no Alto Chingaqui! Isso vem provar que a
morte de Natanga não bastou para que os bandidos se
dessem por satisfeitos! Não quero que os vampiros
continuem a criar problemas no Sunda!
— É provável que eles tenham recebido ordens de
acabar, também, com os mercenários brancos que ajudaram
o falecido Presidente...
— Ou então — retrucou o negro, semicerrando os olhos
— estão agindo de motu próprio, animados pelo seu ódio
aos brancos. De qualquer maneira, não queremos vampiros
por aqui! Até o nosso Primeiro-Ministro, que parecia
simpático à atuação dos vampiros, acabou admitindo que
esses pigmeus representam um perigo para a segurança
nacional. O senhor sabia, Mr. Keith Durban, que o
Primeiro-Ministro pediu demissão?
— Imaginava que ele fizesse isso, excelência. Pró-
forma, não?
— Pro-forma, exatamente. Eu não podia prescindir de
seus serviços e rasguei o seu pedido de demissão. Tudo de
acordo com a pragmática... O mesmo aconteceu com o
Tenente-Coronel Caxumbela. Continuamos todos unidos,
pelo futuro do Sunda! O senhor gostaria de continuar
trabalhando para o meu Governo, Mr. Keith Dudian? É
evidente que o senhor não receberá mais nenhum auxílio
pecuniário, além das duzentas mil libras que já se
encontram em seu poder. Nossa política é a mesma de antes;
não houve alterações fundamentais no nosso Governo.
— Compreendo — respondi. Sim, claro. Aceito o
oferecimento, excelência. Mas não acabarei apenas com os

— 84 —
vampiros; também acabarei com o matador do Presidente
Natanga! E de graça, excelência!
O Presidente sorriu, sacudiu a cabeça e pousou a mão
direita no queixo e a esquerda em cima da caixa dos óculos,
na cintura.
— Muito bem, Mr. Keith Durban. Não é boa política
expulsá-lo, nem o proibir de fazer investigações. Mas não
acredito que chegue a descobrir o assassino de Natanga. A
maioria dos meus Ministros é partidária do esquecimento.
Não poderíamos, nunca, suspeitar de homens ilustres, como
o Primeiro-Ministro Confusa de Oliveira ou o Tenente-
Coronel Caxumbela!
— Também não suspeito deles — retorqui, encarando-
o. — Mas alguém matou o Presidente. Conte comigo,
excelência! Iniciarei, a partir deste momento, o meu
combate aos vampiros! Agora estou livre?
— Sim — concluiu o crioulo, curvando friamente a
cabeça. — Agora, está livre. Sua noivinha também. Espero
que não aconteça nada desagradável à Srta. M’Bata, em sua
temporada no Sunda...
Não gostei do tom de voz do novo Presidente. Mas, de
qualquer maneira, não podia ir embora sem ter cumprido
integralmente minha missão de acabar com os vampiros. E
também não podia deixar de descobrir a identidade do
patife que mordera o pescoço do tio de M’Bata.

— 85 —
CAÇA AOS VAMPIROS

O Hotel Central tinha um pátio de terra batida, nos


fundos do prédio, com meia dúzia de mesinhas à sombra
das mangueiras. Foi numa dessas mesas que eu e M’Bata
jantamos, por volta das oito horas da noite. Sandy não
apareceu. Após a refeição, resolvemos ficar conversando
alguns minutos ao ar livre, sob a luz de um lampião
pendurado numa das árvores frutíferas. Nisso, uma sombra
se destacou do mangal e avançou em nossa direção, O
garçom tinha ido lá para dentro. Pousei a mão,
displicentemente, no coldre da Magnun (por baixo do
paletó) e esperei a chegada do visitante. Era um rapaz de
seus vinte e cinco anos, mulato, com grandes olheiras e
barba por fazer. Usava unia espécie de farda cáqui,
composta de blusão, culotes e botas altas. Na cintura,
ostentava uma pistola belga 45.
— Boa-noite, Mr. Durban — saudou ele, antes que eu
lhe perguntasse o que desejava. — Perdoe-me se
interrompo o seu idílio... Sou o Sargento Francisco
Macundo.
Assim, de chofre, não liguei o nome à pessoa. Depois,
lembrei-me de tudo. Francisco Macundo era o chefe dos
mercenários que tinham ajudado o Presidente Natanga a
fazer a revolução separatista. Sorri para ele.

— 86 —
— Sente-se, sargento. Alegra-me saber que você está
vivo. Dizem que esses vampiros são de amargar!
O rapaz cumprimentou galantemente M’Bata e sentou-
se, olhando ao redor. Não havia mais nenhum hóspede nas
outras mesas do pátio.
— O Presidente Natanga — volveu o mercenário, em
voz baixa — falou-me a seu respeito. Eu é que me alegro
em saber que o senhor chegou bem. Aceitou, então, a
proposta do Dr. Carlos Catinga? Onde está ele? Não veio
com o senhor, do Havaí?
— O Dr. Catinga morreu — respondi, também em voz
baixa. — Foi mordido por um escorpião que alguém pôs na
sua valise. O Presidente também morreu. É impressionante
como morre gente na África!
— Tem razão. Eles conseguiram!
— Eles, quem?
— Os vampiros, Mr. Durban! Atualmente, nossa luta é
contra esses malditos pigmeus do Congo! Já perdi mais de
sessenta homens, vítimas das ciladas dos vampiros! Os
pretos chegam por trás deles, no silencio da noite, e...
crack... quebram-lhes o pescoço! O senhor veio ajudar-me
a acabar com esses terroristas, segundo me disse o saudoso
Presidente...
— Sim, é essa a minha obrigação. Aliás, foi bom ter
encontrado você, sargento. Qual é a sua cor política?
O mulato piscou várias vezes. Depois:
— Sou nacionalista autêntico, Mr. Durban! Nem da
direita, nem da esquerda! Antes de pensar em extremismos,
a África precisa pensar em liberdade!
O Presidente Natanga sabia disso, mas sempre me
respeitou. O “Patrão” também deve saber que eu não sou
comunista. Nenhum de nós é comunista.

— 87 —
— Folgo muito em ouvi-lo falar no “Patrão”. Quem é o
“Patrão”?
— Não sei.
— Como, não sabe? Não foi o “Patrão” que o contratou,
e aos outros mercenários, para fazerem a revolução?
— Foi, Mr. Durban. Mas nenhum de nós chegou a ver
a cara do “Patrão”. Fomos contratados através de um
bilhete, perfumado com essência de rosas, que um
intermediário nos levou ao Congo. Um bilhete e meio
milhão de dólares, Mr. Durban... Eu estava refugiado em
Katanga, depois de ter sido condenado à morte pelos
portugueses, quando recebi a proposta. Havia outros
trezentos mercenários comigo, gente experimentada em
guerrilhas que já tinha combatido ao lado de Tchombe.
Reunimos um batalhão de 200 homens e descemos no
Sunda, pulando de bordo de um quadrimotor Super VC-19,
alugado em Kinshasa. Isto é, cem homens pularam de pára-
quedas e os outros cem avançaram pela selva, a pé, tomando
uma aldeia atrás da outra. Fuzilamos facilmente quinhentos
crioulos reacionários, que se diziam assimilados pelas
autoridades portuguesas. Foi assim que demos a
independência ao Sunda e pusemos o Major João Natanga
na Presidência da nova República. Pressionado por nós, ele
encampou os poços de petróleo e expulsou os estrangeiros.
Mas, ai, apareceram os vampiros e começaram a dizimar os
meus soldados! Aparentemente, esses pigmeus do diabo
foram contratados pelos portugueses para fazerem abortar a
revolução! Distribuímos armas pelos sundaenses leais e
criamos uni exército de franco-atiradores, que defende a
fronteira do Sunda com Angola: provavelmente, os
portugueses lançaram mão dos vampiros, já que não
puderam entrar em Lochas com a força de seus canhões...
Mas há uma coisa esquisita, nisso tudo.

— 88 —
— Só uma? Para mim, tudo é esquisito! Ainda nem sei
direito de que lado estou combatendo!
— O senhor foi contratado pelo Presidente Natanga,
Mr. Durban, e está do nosso lado, do lado dos verdadeiros
nacionalistas! “Mungu, rnba wun. gurintf ‘ngola uondo
biluka!” Havemos de vencer! E a morte do Presidente não
deve nos tirar o entusiasmo! O Vice-Presidente
Cazumbuca, já empossado, continuará a obra do Major
Natanga, quer os vampiros queiram ou não! Agora, será
difícil andar para trás! Angola será livre! O senhor não
acha?
— Sei lá. Talvez vocês percam, na paz, o terreno
conquistado na guerra. Por exemplo: você sabia que a
SANGRA vai voltar à exploração do petróleo, depois de
assinar um novo contrato de concessão com o Governo
Cazumbuca?
— Oh, não! — exclamou o mulato, ficando cinzento.
— Não é possível!
— É, sim. A representante das Organizações
Financeiras Beça viajou comigo, de Lisboa para Angola. Se
ela ainda não obteve a assinatura do novo Presidente, não
tardará a obtê-la. E o capital colonizador português voltará
ao Sunda, embora livre do capital estrangeiro da APERTA.
Seja como for, o Sunda continuará a ser asfixiado pelo
Poder Econômico do Dr. Alves Beça!
— Essa notícia me entristece — suspirou o rapaz. —
Sou um nacionalista convicto e não hei de morrer sem ver
a independência de minha terra! Não haverá um jeito de
evitar a assinatura desse contrato, Mr. Durban? Talvez, se
eu assassinasse a representante da SANGRA...
— Não adiantaria nada, Macundo. Eles são muito
fortes. Não dou uma semana para que você e seus

— 89 —
companheiros de aventura sejam expulsos do Sunda, como
indesejáveis
— Depois de tanta luta? — protestou o mulato. —
Depois de termos dado a liberdade à nossa terra? Isso seria
uma injustiça!
— A política é uma coisa injusta, rapaz. Ninguém está
seguro, em política. Nem você, nem eu. Quanto a mim, vou
me limitar a cumprir a minha obrigação, combatendo os
vampiros e descobrindo quem matou o Presidente Natanga.
Por falar nisso: não foi você, foi?
Ele arregalou os olhos negros e pestanudos.
— Não, Mr. Durban! O major era meu amigo! Também
quero descobrir quem foi que fez aquilo com ele! Mas
fiquei muito preocupado com o que o senhor me disse.
Ainda tenho cento e quarenta homens no Sunda, mantendo
a ordem e defendendo a liberdade, mas... se o Governo
entregar o petróleo à SANGRA, de que adiantou o nosso
sacrifício? Isso não está direito, Mr. Durban! Esse tratado
não pode ser assinado! Tenho certeza que o Presidente
Natanga jamais o assinaria!
Mudei de conversa:
— Onde é que você está acampado, com seus soldados?
Talvez eu precise de auxílio, para combater os vampiros.
Creio que posso requisitar um pelotão de mercenários, pois
também trabalho para o Governo.
— Creio que não pode — retrucou ele, com voz dura.
— Nem eu nem meus homens estamos trabalhando
oficialmente para o novo Governo. Não fomos chamados,
depois da morte do Presidente, e talvez nunca mais
recebamos os nossos honorários! De qualquer maneira, Mr.
Durban, conte comigo. Conversarei com os rapazes. Os
pigmeus liquidaram sessenta dos nossos companheiros e
não seremos expulsos daqui sem liquidar os vampiros!

— 90 —
Conte comigo! O senhor me encontrará acampado no bairro
do General Delgado, aqui mesmo em Lochas. Tenho
cinqüenta e oito homens, bem equipados, prontos para
qualquer sortida! Felicidades, Mr. Durban!
— Felicidades para você, amigo Macundo!
O jovem sargento cumprimentou tristemente M’bata e
desapareceu nas sombras das mangueiras, arrastando as
botas com ar infeliz. Eu e minha noiva também nos
levantamos e fomos para os nossos quartos, deixando aberta
a porta de comunicação. Esperamos notícias de Sandy
Brown até à meia-noite, mas a inglesinha não voltou a
aparecer. Dormimos, preocupados com o rumo dos
acontecimentos, e acordamos com o sol alto. Eram dez
horas da manhã de segunda-feira, Dia de Gerda. Fiz a barba,
tomei banho e lubrifiquei a Magnum 357, preparando-me
para a caça dos pigmeus. Mas ainda não sabia por onde
começar. Compreendi que necessitava, realmente, do
auxílio do Sargento Macundo; os mercenários deviam ter
alguma pista de seus adversários.
— Não entendo uma coisa — disse M’bata, enquanto
perfumava o corpo nu, frente ao espelho da penteadeira. —
Esse “Patrão” também contratou os soldados do Sargento
Macundo?
— Também — respondi, ferozmente. — O “Patrão”
está por trás disto tudo! Ele solta os foguetes, bate palmas e
corre para apanhar as varetas. Se você não entendeu uma
coisa, filhinha, eu não entendo nada!
O relógio do hotel estava batendo meio-dia quando
Sandy reapareceu, vestida de caçadora, com uma pasta de
couro debaixo do braço. Eu e M’bata tínhamos ido almoçar
no refeitório; foi ali que nos encontramos.
— Tudo terminado — anunciou a loura, sorrindo e
mostrando as covinhas das faces. — Minha missão foi

— 91 —
cumprida! Acabei de assinar o contrato com o Governo.
Afinal, não era tão difícil como parecia... O Dr. Beça vai
ficar radiante! É possível, até, que me aumente o ordenado!
— Sente-se, querida — propôs M’bata. — Você ainda
não almoçou.
A loura acentuou o sorriso.
— Engana-se. Almocei no Palácio, com o Presidente
Cazumbuca e o Primeiro-Ministro Confusa de Oliveira.
Eles ficaram meus fãs. Agora, vou procurar Fernando Tahí,
para que me leve, de helicóptero para Uije. Vocês ficam em
Lonchas? Você fica, Durban?
E seus lábios, entreabertos, prometiam beijos
alucinantes.
— Sim — respondi, aborrecido. — Tenho que ficar, até
desembrulhar o fio desta meada!
— Que pena! — suspirou a inglesinha, assumindo um
ar de vamp. — Nem chegamos a nos conhecermos bem...
M’bata pôs-se a bufar. Eu engoli em seco, como um
bode; minha voz estava tensa:
— Parabéns, Sandy! Leve os meus cumprimentos ao
banqueiro lisboeta. O Dr. Beça foi outro que ganhou
bastante com a morte do Presidente. O dinheiro sempre
vence, principalmente quando aliado à beleza...
Ela deu uma risada e foi para o seu quarto, despindo o
blusão pelo corredor. Senti um frio na boca do estômago;
aquela garota deliciosa ia me escapar! Acabei de comer,
aereamente, mastigando o café e bebendo o charuto, e levei
M’Bata para o nosso dormitório, decidido a fazer a sesta.
Minha noiva despiu-se completamente e deitou-se no meu
peito, começando a desabotoar minha camisa. Nisso, tive
um pressentimento.
— Espere, meu bem! Para maior segurança do tratado
secreto, é conveniente que eu fique no quarto de Miss

— 92 —
Sandy, com todas as portas fechadas! Só a largarei depois
que ela embarcar, de volta, para Uije! Não saia daqui,
aconteça o que acontecer!
E, antes que a crioula me segurasse pelos fundilhos das
calças, saí para o corredor e fui bater à porta do quarto da
loura. Ninguém me respondeu. Arrombei a porta e vi o
quarto vazio, O blusão e os culotes de Sandy estavam
atirados no meio da alcova e a janela, escancarada, deixava
entrar o sol, quase ao nível do quintal. Em cima da
penteadeira, encontrei um tubo de batom, aberto, todo
lambuzado. Afastei o paninho bordado do tampo da
penteadeira e vi uns garranchos feitos com a massa
vermelha do batom.

“Dois negros baixinhos. A pasta está escondida.”

Apenas isso. Dois pigmeus! Com certeza, a linda garota


fora raptada pelos vampiros! O que é que eles não iriam
fazer com ela?!
— Que aconteceu, meu soba?
Era M’Bata, de peignoir, no vão da porta que eu
arrombara. Mostrei-lhe a mensagem, escrita a batom, e
pedi-lhe que se metesse em seu quarto, não abrindo a porta
para ninguém. Minha noiva estava assustada.
— Onde é que você vai?
— Vou atrás deles — respondi com voz rouca.
— Eu estava apenas à espera de um estímulo, para
começar a caçada! Tranque-se bem, meu amor, e só abra a
porta quando ouvir a minha voz. Ficaremos em contato pelo
rádio dos óculos. Não confie em ninguém! Nem no
Primeiro-Ministro, nem no chefe do Estado-maior, nem no
Presidente Cazumbuca! Nenhum desses crioulos merece
confiança! Adeus, luz da minha vida!

— 93 —
Beijei-a nos lábios grossos e generosos, pus os óculos-
rádio no nariz e saí do hotel com a rapidez de um raio. Na
rua, um transeunte de ceroulas e camiseta indicou-me o
bairro de General Delgado. Encontrei facilmente o Sargento
Francisco Macundo, num pardieiro caindo aos pedaços.
Havia outros mercenários em sua companhia, tornando
cerveja “Nova Lisboa” e cantando canções nostálgicas.
Aventureiros franceses, ingleses, belgas e espanhóis, todos
com saudades de seus rincões natais... Depois de ouvir as
minhas razões, o sargento afivelou a cartucheira e
empunhou uma submetralhadora Thompson.
— Preciso de voluntários! — bradou, dirigindo-se aos
homens barbudos que o cercavam. — Vamos caçar
vampiros no Alto Chingaqui! Algum de vocês tem motivos
para não ir?
Todos os mercenários se mostraram dispostos a
cooperar. Em menos de uma hora, tínhamos reunido uma
tropa de sessenta e cinco soldados, valentes e treinados,
ansiosos por passarem pelas armas o maior número de
crioulos de baixa estatura. O Sargento Macundo tornou a
frente do grupo e distribuiu os homens pelos veículos que o
antigo Governo Natanga pusera à sua disposição. Saímos
de Lochas em dois caminhões Ford, quatro jipões Willys e
meia dúzia de jipes Toyota. Todos os carros estavam
camuflados com galhos de árvores. Também não nos
faltava gasolina.
Viajamos pelo meio do mato, ao norte do Sunda,
durante a tarde toda, atravessando uma ou outra aldeia
sossegada. A noite caiu, negra e sem luar. À medida que
nos aproximávamos da fronteira do Congo, as povoações
iam se tornando mais selvagens e os negros menos
hospitaleiros. Na altura do Baixo Chingaqui, em plena
escuridão, tivemos que enfrentar um grupo de reacionários,

— 94 —
dominados pelo Soba Karango-ukala, que tentou nos fuzilar
cora suas espingardas pica-pau. Perdemos cinco homens,
mas liquidamos todos os crioulos, com rajadas de
metralhadoras. Mais adiante, ficava a fronteira e uma
Estrada de Ferro (bitola estreita) que ia dar a Matadi, do
outro lado do rio.
— O ramal do Sunda da Zaire Railway — explicou o
Sargento Macundo, que viajava comigo no mesmo jipe. —
A Estrada pertence à Congo Concessions Co. e não está
mais sendo utilizada desde que o Sunda se tornou
independente. O petróleo e o minério de ferro eram
embarcados na estação de Até-Coando, junto de Brazaviva,
e remetidos para o porto de Cabinda. Também havia uma
pipeline direta, de Lochas e Tchibungo para Luanda e
Ambrizete, mas foi destruída pelos meus homens, quando
tomamos Mãe Joana e Salvador da Pátria. Estamos no Alto
Chingaqui, Mr. Durban. Segundo dizem, foi por estas
bandas que os vampiros se infiltraram em Angola...
— Okay — respondi, pondo-me de pé no jipe.
— Ali adiante há uma colina. Vamos deixar os veículos
na savana e subir até lá acima. Quero ter uma visão geral da
topografia.
Assim foi feito. Saltamos dos carros e nos dividimos.
Metade dos mercenários ficou entrincheirada nos
caminhões e nos jipes, enquanto a outra metade (comigo e
o sargento à frente) escalava a colina de pedra. A
madrugada ia alta, mas a noite continuava escura e sem luar.
Espalhamo-nos pelo cume da colina e tivemos uma visão
panorâmica da região. Do outro Lado do morro estendia-se
uma aldeia indígena, formada por algumas cubatas de pau-
a-pique e casas de barro vermelho, cobertas de sapa. Tudo
estava imerso na escuridão; não havia, sequer, o resplendor
de uma fogueira.

— 95 —
— Mataíbebe — anunciou o jovem Macundo.
— Essa aldeia pertence à tribo do Soba Mabunda. Já
estivemos lá duas vazes, dando bordoada nos negros, mas
não encontramos nenhum pigmeu.
Entretanto, eu começava a desconfiar do próprio
terreno que pisávamos. Aquelas rochas porosas eram muito
suspeitas! Não haveria, por ali, alguma caverna? Era
estranho que as pedras fossem tão lisas e iguais. Ainda por
cima, aqui e ali, ouvia-se o pio de uma ave noturna; parecia
que as corujas estavam conversando umas com as outras.
— Procurem buracos na rocha! — ordenei. — Batam
nas pedras, com os cabos das armas, até encontrarem
lugares soando a oco! Tem que haver uma gruta nesta
colina!
A busca começou, no escuro, com imensas
dificuldades. Mas, de repente, vimos várias pedras que se
moviam ao nosso redor. As “corujas” apertavam o cerco!
— Alerta! — gritou o Sargento Macundo, erguendo a
submetralhadora. — Estamos cercados pelos pretos! Fogo
neles, pessoal!
Estourou o tiroteio. As pedras rolaram e os negros
apareceram, ululando, armados com chuços e zarabatanas.
Nossas metralhadoras dizimaram uma dúzia de crioulos
baixinhos, vestidos com tangas, todos de barba na cara.
Eram anões! Tínhamos encontrado o esconderijo dos
pigmeus!
— Vamos buscar reforços! — gritou o jovem Macundo,
procurando fazer-se ouvir no meio do pandemônio. — Eles
são mais de cem! Vamos chamar o resto do batalhão!
Mergulhamos por entre as rochas e começamos a descer
a colina, fazendo funcionar ininterruptamente as
submetralhadoras. Felizmente, éramos os mocinhos e
nossas armas nunca se descarregavam. Súbito, um negro

— 96 —
suicida pulou nas minhas costas e tentou deslocar o meu
pescoço, provocando a ruptura do bulbo raquideano. Era o
método recomendado pela escola de terroristas de Praga,
sob a competente direção do instrutor Farka. Tirei o meu
punhal do cinto e espetei a barriga do pigmeu, abrindo um
rombo por onde os seus intestinos se derramaram; era o
método recomendado pelas Forças Especiais treinadas no
Forte Bragg e no Forte Gulick do Canal do Panamá. O
vampiro perdeu as forças e caiu do meu pescoço.
Mas a batalha era desigual; mal me libertei do cadáver
e dois outros pigmeus, ágeis como macacos, morderam-me
os ombros, tirando-me a submetralhadora das mãos. Pouco
adiante, o Sargento Macundo também lutava corpo a corpo
com cinco negrinhos desesperados. Rolamos, todos, pelo
meio das pedras, trocando socos e pontapés. A lâmina de
meu punhal partiu-se em duas e não cortava mais nada;
então, em vez de ferir os adversários, passei a fazer-lhes
cócegas. As risadas nervosas dos pretos ecoavam na noite
funda e seus protestos podiam ser ouvidos longe.
Afinal, o combate terminou, quando meia dúzia de
pigmeus cabeludos me derrubou, de costas, e sentou-se em
cima de meu corpo magoado. Eu já estava sem os óculos e
com a roupa de caçador feita em frangalhos. Ao longe, no
alto da colina, ainda havia tiros e gritos, mas, no local onde
eu e o Sargento Macundo tínhamos caído, o silêncio era
impressionante. Passaram-se alguns minutos, até que um
pigmeu mais alto do que os outros (ornamentado com uma
calça vermelha e uma cartola velha e amarrotada) surgiu por
entre as pedras e sorriu para mim. Seus dentes eram longos
e pontudos como pregos.
— Mr. Keith Oliver Durban? — perguntou.
Respondi com um palavrão em inglês. O jovem
Francisco Macundo, poucos metros adiante, também estava

— 97 —
dizendo nomes feios em português. Mas, quando vi o
tucano que o negro da cartola tinha no braço, calei-me,
impressionado; aquele crioulo era um chefe de tribo!
— Chamo-me Mabundo — prosseguiu ele, tirando a
cartola. — Sou o Muatianvia do Mataibebe. Fui eu quem
buscou os meus irmãos do Congo, por ordem do “Patrão”,
e os ajuda a se esconderem. Não sou um pigmeu, mas eles
são. Agora, os vampiros trabalham para mim, pagos pelo
“Patrão” ... e não pararemos enquanto houver mercenários
brancos no Sunda, ajudando o Presidente Natanga!
— Você está atrasado, negro — respondi, falando por
entre as pernas de um pigmeu pouco asseado. — O
Presidente Natanga morreu. Será que vocês não sabem? Foi
assassinado, ontem, em seu gabinete de trabalho... e tinha,
no pescoço, uma dentada típica de um vampiro!
— Só hoje soubemos — retrucou o Soba Mabundo,
sorrindo alvamente. — Mas ainda não recebemos ordens do
“Patrão” para parar. Não fornos nós que matamos o
Presidente Natanga, embora tentássemos fazer isso há
muito tempo. Alguém matou o Presidente e quis pôr a culpa
em cima dos vampiros. Pouco importa, Mr. Durban. Sua
companheira loura, de olhos azuis e coxas cor-de-rosa, já
está em nosso poder, na bariza de Mataibebe. Ela foi
seguida, ao sair do Palácio, e apanhada no hotel. Todos os
quiocos de Mataibebe ajudam os vampiros; por isso, tem
sido difícil as autoridades encontrá-los... O senhor e o
Sargento Macundo, chefe dos matadores de negros, são
nossos prisioneiros de guerra e serão tratados como tal.
Sabe qual é o castigo para os espiões?
— Sei. Mas nós somos soldados, não somos espiões!
— O senhor é um espião, Mr. Durban! Sua fama chegou
até o interior da África. Teremos muito gosto em acabar
com o cartaz de Nocaute Durban! Quanto à sua loura amiga,

— 98 —
das coxas cor-de-rosa, será sacrificada, de acordo com o rito
dos vampiros congoleses, e seu corpo violado por uma
dúzia de pigmeus privilegiados. É assim que tratamos os
nossos inimigos, com ou sem coxas cor-de-rosa!
— Quem vai sugar o sangue de Miss Sandra Deutch
Brown? — perguntei, com a íntima esperança de que fosse
eu.
O Soba voltou a mostrar os dentes.
— Eu mesmo, Mr. Durban. Não sou um vampiro, como
lhe disse, porém, na qualidade de Melopo, também gosto de
chupar o sangue das muaris louras, de coxas cor-de-rosa...
Vamos para a banza! O senhor gostará das coxas... digo, do
espetáculo! Perdoe-me! Fiquei com as coxas na cabeça!
Apesar de minha situação aflitiva, não perdi o sangue-
frio. E, enquanto os pigmeus me puxavam as pernas,
arrastando-me por cima das pedras, minha mão tateou o
terreno e encontrou os óculos-rádio que me ligavam a
M’Bata. Os vidros estavam rachados, mas a armação
perfeita. Afinal, eu não estava completamente desarmado!

— 99 —
MORRE UMA CRIOULA

Desci a colina como um novo Gulliver (metade nas


costas dos pigmeus e metade arrastado pelas pernas) e me
encontrei na planície, do lado oposto àquele em que
estavam os veículos com os outros mercenários. Fui
amarrado a uma nzelemba (árvore sagrada) de acordo com
o costume tradicional dos bailundos e ganguelas, herdado
dos antigos feiticeiros do Daomé. O Sargento Macundo,
aprisionado junto comigo, teve o mesmo destino.
Estávamos numa anhara (clareira) em frente ao muxito
(floresta) de Mataibebe. De uru lado, erguia-se um matagal
cerrado; do outro, começavam as casas da banza, na maioria
choças de adobe, com telhados de colmo. Próximo de nós,
vi um barracão, de madeira, com dois pigmeus (armados
com espingardas) montando guarda à porta. Logo que o
Soba Mabunda desapareceu no interior da aldeia, tentei tirar
os óculos do bolso das calças, mas não consegui. Meu peito
estava nu (pois perdera o resto da roupa na luta com os
vampiros) e era com angústia que via o meu colete-arsenal
brilhando ao sol nascente, sem poder abrir nenhum de seus
vinte e três bolsinhos! Naquele colete secreto eu guardava
explosivos bastantes para fazer ir pelos ares metade de
Matai-bebe! Quanto à Magnum 357, continuava debaixo do
meu sovaco; os negros deviam ter confundido o coldre com
uni “breve” contra o mau olhado... Além disso, ainda tinha,

— 100 —
na liga, por baixo do culote, o pequeno revólver S & W 38.
Difícil seria alcançar todo esse arsenal.
O dia nasceu, pintando a paisagem de branco. Pouco a
pouco, foram saindo crioulos de todas as cubatas e
reunindo-se ao redor das árvores em que eu e o Sargento
Macundo nos retorcíamos como minhocas. Grande parte
dos pretos era de estatura normal (membros da tribo
chefiada pelo Soba Mabunda) mas também havia, entre
eles, alguns pigmeus do Congo, que sorriam horrivelmente.
Pude comprovar que, realmente, aqueles malucos lixavam
os dentes, transformando-os em lâminas aguçadas! O soba
foi o último a chegar à clareira, com sua cartola amarrotada
e suas calças vermelhas. Também sorriu e bateu palmas. Os
pigmeus que montavam guarda à casa de madeira entraram
no barracão e voltaram arrastando uma figura branca e cor-
de-rosa, com os braços amarrados atrás das costas, que
guinchava como um porco. Era a loura Sandra Deutch
Brown, representante plenipotenciária do banqueiro Alves
Beça; usava apenas calcinhas e Sutiã e tinha marcas de
unhas nas pernas bem torneadas. Berrei que a deixassem em
paz, mas ninguém me ouviu. O soba tirou a cartola e as
calças vermelhas e, nu como um urubu pelado, começou a
dançar em volta da prisioneira; depois, a boca coberta de
espuma, atirou-se sobre o busto da inglesinha e fingiu que
ia morder-lhe a nívea garganta. Sandy atirou a cabeça para
trás, fazendo os cabelos louros esvoaçarem, e gritou, gritou
como uma desesperada! Os negros aplaudiram a cena
brutal, batendo palmas cadenciadamente; um deles chegou
ao cúmulo de tocar um bolero num melangue, pequeno
tambor que f ai às vezes de rádio no sertão. Nisso, um
crioulo suado, a língua de fora, apareceu trotando no meio
da anhizra e gritou qualquer coisa no dialeto lunda. O soba
largou Sandy e foi ao encontro do recém-chegado. Este lhe

— 101 —
mostrou dois papéis que trazia na mão. Um deles era uma
mensagem e, o outro, uma nota de cem libras. Os dois
crioulos examinaram os papéis e sorriram.
— A muári está livre — disse o soba, desatando as
cordas que prendiam os pulsos da inglesinha.
— Recebi novas ordens do “Patrão”. Mas o espião
Nocaute Durban ficará no seu lugar e sofrerá o mesmo
sacrifício que a ela estava destinado!
Senti um frio na boca do estômago. Seria horrível ser
mordido por um crioulo xexelento e seviciado por uma
dúzia de vampiros privilegiados! Com grande esforço,
consegui enfiar a mão mim dos bolsinhos do colete. Tive
sorte. Senti, sob os dedos, o fio de uma lâmina de barbear.
Disfarçadamente, tirei-a para fora e cortei as cordas que me
prendiam à melemba. Sandy já estava sorrindo, aliviada, e
perguntando aos crioulos onde havia um ônibus para
Lochas. Libertei os braços e procurei, noutros bolsinhos do
colete, as ampolas de nitroglicerina, gás hilariante e
lacrimogêneo, e o isqueiro lança-chamas. Em seguida, antes
que os negros se levantassem, atirei no meio da roda duas
ampolas de explosivos e quatro de gás, matando alguns
pigmeus e afugentando os outros. O terreno ficou
momentaneamente deserto. Ao compreender minhas
intenções, Sandy correu para a árvore onde o Sargento
Macundo estava pendurado e desatou os nós da embira que
o tolhiam. Os crioulos voltaram a aparecer, chorando e
rindo (devido aos efeitos do gás) e brandindo azagaias; era
estranho ver aqueles homens, que pareciam tão contentes,
ou tão sentimentais (conforme o tipo de gás aspirado)
erguerem as lanças contra nós, no firme propósito de nos
espetarem a barriga. Acendi o isqueiro lança-chamas e fiz o
jato de fogo circular pelas figuras saltitantes, fazendo-as

— 102 —
saltarem ainda mais. Outra vez a anhara se esvaziou de
pigmeus.
— Agora! — gritei. — Para o muxito! Depressa! Para
o muxito!
— Que muxito? — perguntou Sandy. — O que é
muxito?
Interrompi a carreira, irritado, com vontade de lhe dar
uma bolacha na cara. Deviam proibir as mulheres de
caçarem na África!
— A florestal — explicou o mulato Macundo.
— Depressa!
— Não posso! — gemeu a loura. — Estou descalça! Os
gravetos machucam meus pezinhos!
Ergui a mão, para lhe dar a bofetada. Mas o jovem
Macundo, num gesto oportuno e cavalheiresco, agarrou nos
seios e nas coxas da garota e ergueu-a no ar, correndo com
ela para o mato. Corri atrás deles, disparando contra os
nossos perseguidores toda a carga da Magnum. Entramos
pela floresta, em desabalada correria, e só fomos parar na
beira de um rio, largo e caudaloso. Aí, nos sentamos para
descansar.
— Este é o Matungo — disse o Sargento Macundo. —
Corre na direção do centro do Sonda. Se tivéssemos uma
piroga, poderíamos descer até Samba-Bamba e, daí, seguir
a pé para Lochas do Norte.
Sandy passava cuspe nos arranhões dos braços e das
pernas, preocupada com a sua aparência. Afinal, havia ali
dois homens olhando para ela.
— Não temos uma piroga — respondi, semicerrando os
olhos — mas talvez eu e Sandy possamos escapar pelo rio,
graças ao meu colete salva-vidas. Infelizmente, o coletinho
só dá para dois... Você será sacrificado, sargento. Apelo
para o seu espírito de renúncia.

— 103 —
E encarei-o, com firmeza, pronto para adormecê-lo com
um soco, se ele teimasse em ir atrás de nós. Na verdade, eu
estava doido por me ver livre daquele chato! E Sandy
também parecia pensar a mesma coisa, pois olhava para a
minha musculatura e suspirava. O sargento também
suspirou, olhando de esguelha para as coxas da loura, e
respondeu que ficaria sozinho, ainda que isso representasse
a sua morte.
— Dê a volta à colina — sugeri. — Logo, encontrará os
seus homens, entrincheirados nos jipes e nos caminhões.
Contra-ataque os pigmeus e veja se acaba com eles! Arrase
Mataibebe, se for preciso, mas traga-me a cabeça do Soba
Mabunda! Agora, também estou furioso!
Dito isso, agarrei nos seios e nas coxas de Sandy e
arrastei-a para o rio. A água estava morna. Inflei o colete-
arsenal, transformando-o num barco salva-vidas, e fiz a
loura sentar-se no meu colo. Na mesma hora estávamos
navegando, como dois cisnes, pelo rio abaixo. Sozinhos, os
dois! Felizes como Adão e Eva, no Paraíso, depois da maçã!
— Querido — disse a garota, pouco adiante, num ponto
onde o rio cruzava um bosque fechado. — Você não acha
melhor descansarmos alguns minutinhos fora d’água? Na
grama por exemplo. Boiando, assim, não dá jeito...
Achei a sugestão razoável e nadei para a margem do
Matungo. Aí, tirei o colete salva-vidas e os culotes
encharcados d’água. Sandy também se desfez das reduzidas
peças de seu vestuário. Era meio-dia e a floresta estava
quente e silenciosa. Apenas os mosquitos e as matacanhas
foram testemunhas do que aconteceu depois; testemunhas e
participantes do banquete, pois eu e Sandy ficamos com as
costas todas mordidas...
Uma hora depois, satisfeitos com a viagem, vestimos as
roupas (ainda molhadas) e voltamos para dentro d’água.

— 104 —
— Você não me pergunta como fui aprisionada? — quis
saber a loura, evitando pudicamente comentar o que
tínhamos feito na floresta.
— Claro, filhinha. Como é que você foi aprisionada?
— Os negros me seguiram, quando saí do Palácio com
o tratado na pasta, e entraram no meu quarto pela janela! Eu
acabara de esconder a pasta atrás da penteadeira... onde
ainda deve estar... e só tive tempo de escrever aquela
mensagem com o batom. Felizmente você leu e foi me
resgatar. Era isso mesmo que eu esperava. Ser apanhada por
você... e delirar de prazer nos seus braços! Você é uma coisa
louca, meu amor!
— Você deve a vida ao “Patrão” — retruquei fingindo
que não sentia os seus beijos no meu umbigo. — Eu só
queria acabar com os vampiros; foi o “Patrão” quem evitou
o seu trucidamento. E também foi ele quem mandou o Soba
Mabunda me sacrificar no seu lugar. Agora, jurei a mim
mesmo também descobrir a identidade desse “Patrão”!
Descemos ainda um longo trecho do rio, até
encontrarmos a primeira povoação em poder dos insurretos
sundaenses. Era a aldeia de Samba-Bamba, a oeste de
Lochas. Chegamos ali ao anoitecer. Alguns crioulos
espantados nos deram comida e bebida (infelizmente, não
havia uísque e tive que beber marujo com Coca-Cola) e nos
arranjaram um guia. Decidi não perder tempo em Samba-
Bamba, pois outros crioulos atrevidos já começavam a
olhar, com expressão canibalesca, para as pernas de Sandy;
agarrei na minha loura e ordenei ao guia que se pusesse a
caminho. Foi uma marcha cansativa, pelos meandros da
floresta (com Sandy no meu colo ou nas costas do guia) mas
conseguimos chegar a Lochas pela madrugada. Fomos para
o Hotel Central, onde paguei cinco dólares ao guia, e

— 105 —
despedi-me de Sandy com um beijo longo e ardente. A
lourinha ficou outra vez em ponto de ebulição.
— Você embarca, hoje, para Uije? — perguntei, à porta
de seu quarto, evitando estoicamente arrastá-la para dentro.
— Não sei — respondeu ela, abrindo maliciosamente a
porta, para que eu visse a cama e sentisse o perfume da
alcova. — Agora, não sei! Gostaria que você voltasse
comigo. O dever me chama a Lisboa, mas... tenho a
impressão de que não poderei me separar mais de você!
— Fale baixo — retorqui, arrepiado. — Minha noiva
não deve saber do que aconteceu entre nós! Perdi a cabeça,
na margem do rio!
— E está arrependido? — inquiriu ela, mordendo o
beicinho inferior.
— Não. Mas não posso perder a cabeça, outra vez, aqui
no hotel!
Sandy fez uma careta e entrou no quarto, batendo com
a porta. Fui para o meu dormitório e encontrei M’Bata
sentada na beira da cama, com cara de quem não tinha
dormido a noite toda.
— Meu amor! — exclamei, caindo nos braços dela. —
Você está bem? Ficou muito preocupada com a minha
demora?
— Mais do que isso — respondeu a crioulinha,
erguendo a mão direita. — Seus óculos-rádio estavam
ligados, no bolso da calça. Ouvi grande parte de sua
conversa com essa inglesa sem-vergonha! O que foi que
vocês fizeram na grama, que não dava jeito dentro d’água?
E recebi uma bofetada na cara. Eu estava tão cansado
que o golpe me derrubou em cima da cama; no mesmo
momento, tinha adormecido. Suponho que M’bata se
espantasse (e se alarmasse) com a violência do bofetão; por
mais que me sacudisse, não conseguiu me acordar!

— 106 —
Só voltei a dar acordo de mim às dez horas da manhã.
Minha noiva deu-me banho e ajudou-me a fazer a barba,
arrependida de sua violência anterior.
— Perdoe-me o acesso de ciúmes — choramingou,
enchendo-me de talco as dobras do corpo moreno e
musculoso. — É porque o amo, meu soba, e não posso
conceber que você tenha se feito de saliente com outra
mulher!
— Não diga bobagens — retruquei, virtuosamente. —
Eu não faria nada com Miss Sandy num sábado! Mas,
ontem, foi terça-feira. E a terça-feira como você sabe, não
é o seu dia! Não abuse dos seus direitos!
— Onde encontrou a inglesa? — volveu M’bata,
curiosa. — Ela foi raptada, mesmo?
Contei-lhe tudo e recebi, com modéstia, as suas
expressões de admiração pela minha coragem. Por fim, a
crioulinha anunciou:
— Pouco antes de você acordar meu soba, esteve no
hotel um mensageiro do Governo. Você tem que ir ao
Palácio às onze horas. Precisa se apressar, pois já são dez e
quarenta.
Acabei de me vestir (roupas de caçador), pus os óculos-
rádio e corri para o bairro de Petrolina. O Capitão Banguela
recebeu-me no hall do Palácio e fez-me subir ao gabinete
do sobrado. Aí, encontrei o Presidente Cazumbuca,
acompanhado pelo Primeiro-Ministro e pelo chefe do
Estado-Maior. Os três tinham expressão severa. O Tenente-
Coronel Caxumbela fumava nervosamente um cigarro.
— Onde esteve, Mr. Keith Durban? — perguntou o
Presidente, sentado à secretária. O senhor desapareceu da
cidade ao mesmo tempo em que Miss Sandra
DeutchBrown. Podemos saber o que aconteceu?

— 107 —
Narrei-lhes tudo, com abundância de detalhes,
ocultando apenas o episódio extra ocorrido na beira do
Matungo, entre mim e a lourinha; esse episódio poderia
assanhar os três crioulos, o que não seria aconselhável
naquelas circunstâncias.
— Então, os pigmeus estavam escondidos no Alto
Chingaqui? — ruminou o Tenente-Coronel Caxumbela. —
Nunca esperei que o Soba Mabunda fosse um traidor!
Então, é ele quem protege os vampiros? — E também
recebe bilhetes do “Patrão” — acrescentei.
— O “Patrão” quem está por trás dos vampiros, assim
como estava por trás do Presidente Natanga e do homem
que o assassinou! O “Patrão” está por trás de tudo!
— Exato — disse o Presidente, com voz grave. — Por
isso, resolvemos lhe dar um conselho, Mr. Keith Durban:
desista! Não precisamos mais dos seus serviços. Os
próprios mercenários do Sargento Macundo se
encarregarão de liquidar os vampiros, antes de serem
expulsos do Sunda. Sim, porque também não queremos
mais mercenários brancos matando nossos irmãos negros
em nome da liberdade! O senhor deve ir embora do Sunda,
Mr. Keith Durban!
— Isso é uma ordem de expulsão? — inquiri com voz
macia.
— Tome-a como entender! A partir deste momento, o
senhor não faz mais parte da nossa polícia especializada em
caçar vampiros!
— Então — volvi, com voz mais dura — o “Patrão”
também dá ordens ao Governo do Sunda?
Os três negros se entreolharam, assustados. Depois, o
Primeiro-Ministro tornou a palavra:
— O Governo do Sunda é independente, Mr. Durban.
Não queremos expulsar o amigo, oficialmente, do território

— 108 —
nacional, para não chamar a atenção sobre a morte do
ditador. Mas o amigo faria melhor em sair daqui e voltar
para Alana. Aproveite a viagem de Miss Sandra Deutch
Brown e vá-se embora!
— Lamento, excelência, mas não posso.
— Não pode por quê? — irritou-se o Presidente,
levantando-se e dando um murro na mesa. — Tem que ir
embora! Está despedido!
Ainda não acabei com os vampiros — retruquei,
cerrando os punhos. — E ainda não descobri quem matou o
Presidente! Só irei embora depois de ter cumprido
integralmente as minhas missões!
— Quem matou o ditador — disse o Primeiro-Ministro,
com voz suave — foi um vampiro. Temos provas disso. Foi
um pigmeu, que entrou pela janela!
— Não, não foi! Aquela dentada é falsa! Quem matou
o Presidente foi um de seus companheiros de Governo!
A acusação fez os três negros ficarem cinzentos.
— Como ousa? — rugiu o Presidente Cazumbuca. —
O senhor pretende insinuar que eu ou algum dos meus
Ministros...?
— Pretendo, excelência! Mas não insinuo, garanto!
— É inaudito! Nenhum de nós é um assassino! O senhor
está indo longe demais, Mr. Keith Durban! Exijo que... que
vá embora daqui!
Seus dedos tamborilavam nervosamente sobre a caixa
dos óculos, pendurada na cintura.
— O senhor está livre de qualquer obrigação — volveu
o chefe do Estado-Maior, procurando serenar os ânimos. —
Sua Excelência, o Presidente, permite que vá embora com
as duzentas mil Libras que retirou do cofre-forte. Pode
embarcar agora mesmo para o Havaí. Vai?

— 109 —
— Não — retruquei teimosamente. — Não vou! Só irei
depois de agarrar o patife que apunhalou e mordeu o
Presidente!
Os três figurões voltaram a trocar um olhar de
apreensão. Depois, o Primeiro-Ministro sorriu
maldosamente, como se tivesse encontrado outro pretexto
para me considerar persona non grata.
— Seus óculos são muito interessantes, Mr. Durban...
Parecem iguais aos meus. Posso examiná-los um instante?
Têm as lentes quebradas, não têm?
Senti um frio na boca do estômago. Se eles
examinassem os óculos, descobririam o radiotransmissor!
E isso poderia ser o golpe decisivo; com essa prova nas
mãos, eu seria expulso do Sunda, como espião, se não me
acontecesse coisa pior!
— Meus óculos são diferentes dos seus — retruquei. —
O senhor é míope, ao passo que eu tenho apenas horror ao
sol. Não falemos de óculos, excelência; falemos de política!
Se os senhores me entregarem o assassino do Presidente
Natanga, prometo que irei embora imediatamente. Antes
disso, nada feito! Nunca deixo pela metade as missões que
me confiam!
— Não sabemos quem é o assassino — insistiu o
Tenente-Coronel Caxumbela. — Mas temos medo de que
seja, realmente, um de nós. Essa é a verdade verdadeira. E
por isso que não queremos o prosseguimento das
investigações. Por favor, Mr. Durban, vá-se embora!
— Não, não vou!
— O senhor é cabeçudo, hem? — rugiu o Presidente.
— Sabe que posso mandar prendê-lo por desacato?
— Experimente. Todos os jornalistas saberão disso.
— Não queremos escândalos — interpôs-se o Primeiro-
Ministro. — Não queremos chamar a atenção para as

— 110 —
desinteligências na alta cúpula governamental. Vá-se
embora por bem, Mr. Durban! Estamos dispostos a pagar-
lhe outras duzentas mil libras, se o senhor desistir das
investigações. É uma proposta do Ministro das Finanças.
— Não aceito. Quero o assassino! E o “Patrão”!
Muito bem — berrou o Presidente. — Investigue! Mexa
com fogo e sairá queimado! O senhor foi prevenido, Mr.
Keith Durban! De hoje em diante, não conte com a
cooperação das autoridades! Se quiser descobrir quem
matou o Major Natanga, faça-o sozinho! Isto é tudo!
— É tudo! — ecoou o Primeiro-Ministro.
— Tudo! — concluiu o chefe do Estado-Maior,
cuspindo fora a ponta de cigarro mastigada.
Cumprimentei friamente os três governantes e girei nos
calcanhares, saindo do gabinete. Atrás de mim, ouvi o
zumbido de suas confabulações; aqueles homens estavam
com medo! E não descansariam enquanto não se livrassem
de mim!
Atravessei por entre os derricks dos poços de petróleo
(verificando que a gasolina jorrava, ininterruptamente, em
grandes depósitos metálicos) e dirigi-me para a casa da Sra.
Cauína Caçula. A viúva-solteira estava no quintal, vestida
de preto, dando ordens a um negrinho que carregava uma
grande mala na cabeça.
— Que aconteceu? — perguntei. — A senhora está de
mudança?
A pequenina crioula ergueu os grandes olhos
assustados.
— Sim, estou de mudança. Recebi ordens do Governo
para sair do Sunda, sem me comunicar com ninguém. Não
posso conversar com o senhor, Mr. Durban. Se fosse vivo,
João me diria que...
— Por que tanto medo? Eles a ameaçaram?

— 111 —
— Demais! Disseram que, se eu falasse, poderia me
acontecer o mesmo que aconteceu ao João! Deixe-me ir
embora, Mr. Durban! Não sei de nada, mas eles pensam que
eu saiba de alguma coisa! Tenho medo!
Tem certeza de que não sabe, mesmo, de nada? —
volvi, com expressão suspeitosa. — Aquele tratado secreto,
por exemplo. A senhora me disse que seu marido queimou
o documento no quintal. Tem certeza de que não chegou a
ler o nome do beneficiário no documento?
— Tenho. Não vi nada, não sei de nada! Nunca me meti
nos negócios políticos de meu saudoso João! Adeus, Mr.
Durban! Vou seguir os conselhos do Tenente-Coronel
Caxumbela e sair do Sunda pela fronteira sudeste, rumo a
Katanga. Tenho parentes em Katanga, que me receberão.
— Vai sozinha?
— Eu e Deus — respondeu a pobre crioulinha. —
Ninguém quer me ajudar, Mr. Durban. Só encontrei esse
moleque, para levar a mala até a. fronteira. Mas não ficarei
nem mais um minuto nesta terra de selvagens! Adeus!
— Espere! A senhora não pode ir assim, nem uma arma.
Sabe usar um revólver?
— É possível que saiba. Nunca experimentei.
Arregacei a perna do culote e tirei o Smith-and-Wesson
38 da liga, entregando-lhe. Ela agarrou no revólver com a
ponta dos dedos, como se tivesse receio de que a arma lhe
desse uma dentada.
— Como é que eu faço? Onde é que eu aperto?
— Aqui, no gatilho. Se aparecer algum assaltante pelo
caminho, defenda a sua vida! Infelizmente, não posso
acompanhá-la. Mas desconfio que eles lhe armaram uma
cilada. Se tentarem prendê-la, atire para matar! Mais cinco
ou seis mortos não fazem diferença.

— 112 —
— Sim, senhor — gemeu a jovem crioula, segurando o
revólver pelo cano. — Defenderei minha vida, com a ajuda
de Deus!
Mas, pela sua maneira de empunhar a arma, vi que Deus
não parecia muito disposto a ajudá-la. Em todo caso, eu não
podia deixar que ela fosse embora sem nada nas mãos.
Fiquei de pé, na beira da calçada, enquanto a crioulinha e o
moleque (com a mala) desapareciam na primeira esquina;
depois, suspirei e voltei para o hotel. Sandy tinha acordado
e estava almoçando com M’Bata, no refeitório. Sentei-me à
mesa e também comi as iguarias nativas, chorando
amargamente por causa do excesso de pimenta.
— Conversei com Miss Sandra a seu respeito — disse
M’Bata, sorrindo. — Ela me confessou que ainda não
houve nada entre vocês. Foi um alívio, meu soba! Aqueles
rádio-óculos mentiram.
— Claro que mentiram — disse eu, também aliviado.
— Você ouviu coisas que só existiam na sua imaginação.
Não existe nada, entre mim e Miss Deutch-Brown, senão
um profundo afeto espiritual.
E, por baixo da mesa, meu joelho cutucava
deliciosamente as coxas da lourinha. Esta começou a falar
com a voz esganiçada pela emoção:
— Encontrei a pasta e o tratado, intactos. Estavam no
mesmo lugar onde os deixei. Agora, estou à espera de
Fernando Tahí com o helicóptero. Já mandei um recado
para ele, mas o aparelho está em Tchibungo. Deve regressar
amanhã. Vocês vão embora comigo, não vão?
— Não — respondi, suspirando. — Não irei embora
sem ter agarrado o assassino do Presidente Natanga! Nunca
deixei um serviço pela metade! E, agora, tenho certeza que
o culpado é um dos Três Grandes do Governo; resta saber
qual deles. Tenho a impressão que dois dos crioulos não têm

— 113 —
nada a ver com o crime, e existe alguma coisa que os
inocentam, mas não consigo me lembrar do que é! A
qualquer momento me lembrarei... e, por eliminação,
descobrirei o culpado! Esse culpado me levará ao “Patrão”!
— Esse culpado — acrescentou Sandy pensativamente
— também pode ser o espião português!
— Que espião português?
— O Alferes Henrique Costa de Sousa. Já se esqueceu.
meu bem? Fernando Tahí disse que os legalistas infiltraram
um espião no Governo Revolucionário. Talvez esse homem
maquiavélico seja o assassino do Presidente! De qualquer
maneira, vou-me embora. Tenho ordens, do Dr. Alves
Beça, para lhe levar o contrato, assinado com o novo
governo. E primeiro, os negócios, meu amorzinho!
— Tem razão — suspirei. — Primeiro os negócios.
Olhei para M’Bata e vi que minha noiva estava
cinzenta.
— Que tem você, querida? — perguntou Sandy,
alarmada.
— Nada — disse a crioula, mordendo os lábios.
— Mas achei estranho que você chamasse meu noivo
de
“meu bem” e “meu amorzinho” ... Não acha que está
sendo um pouco atrevida, queridinha?
Deixei as duas garotas discutindo e fui para o quarto.
Dez minutos depois, M’Bata apareceu, com uma das faces
vermelhas e os cabelos (alisados com hené) mais espetados
do que os de um porco-espinho.
— Briguei com a inglesa — anunciou, com voz rouca.
— A sem-vergonha me deu uma bofetada e eu lhe dei um
soco no nariz! Você é um traidor, Keith Oliver Durban! É
favor nunca mais pôr as mãos em cima de mim!

— 114 —
Nossa reconciliação demorou uma hora, mas veio.
Quando bateram o gongo, anunciando o jantar, eu estava
com as mãos, os pés e a cabeça em cima do corpo cor de
chocolate de minha noiva, é dormia a sono solto. Acordei
apenas para comer e voltei à reconciliação, no quarto, com
grande entusiasmo de M’Bata. O resto da noite passou-se
assim conosco (ora dormindo, ora nos reconciliando) e, às
oito e meia da manhã, estávamos completamente
apaziguados.
— Espero que Miss Sandra já tenha embarcado de volta
para Lisboa — disse M’bata. — Nunca mais quero ver a
cara daquela pistoleira!
Nisso, bateram à porta. Ao mesmo tempo, ouvi um
tilintar de armas do lado de fora da janela. Aquilo era
estranho. Seriam os mercenários, de volta do Alto
Chingaqui? Abri a porta e vi-me diante do cano de uma
submetralhadora Thompson.
— Mr. Olivérius Van Loon? — perguntou uma voz
grave. — Seu verdadeiro nome é Keith Oliver Durban! O
senhor está preso em nome da lei!
Era o Capitão Benguela, acompanhado por um pelotão
de soldados mal ajambrados.
— Preso? Por quê? Todo mundo sabe que eu sou
Durban!
— Assassinato — respondeu o oficial, fugindo com os
olhos de meu rosto afogueado pela ira. — O Governo do
Sunda o acusa de ter matado, a tiros de revólver Smith-
andWesson 38, Special Centennial Airweight, a Sra. Cauína
Caçula e o menor Chico Dumba! Os corpos das vítimas
foram encontrados a leste de Lochas, no meio do mato, nus
e com vestígios de atentados sexuais! A arma do crime lhe
pertence, Mr. Durban, e o senhor não poderá negar o fato!
Como sabe — concluiu, de olhos baixos e expressão de

— 115 —
desgosto — o castigo para um crime destes é a morte! O
senhor será fuzilado, por ordem do Ministro da Justiça!
Vamos?
— Oh, não! — gritou B’bata, atirando-se ao meu
pescoço. — Ele é inocente! Ele estava comigo, no quarto,
fazendo... Não importa o que estávamos fazendo! Ele não
podia ter matado ninguém!
Afastei do meu pescoço, delicadamente, os braços
roliços de minha noiva e enfrentei o Capitão Benguela com
o olhar sereno de um novo Capitão Dreifus, vestido de
domador de feras.
— Vamos, capitão! Não sou culpado, mas não posso
provar o que fazia, na noite do crime, para não envergonhar
minha noiva! Sou inocente! E a História me fará justiça!
Às vezes, também gosto de cenas melodramáticas. O
pior era que não via um jeito de me livrar da pena de morte!
Embora soubesse que toda aquela trama fora arquitetada,
pelos governantes do Sunda, para se verem livres de mim!

FIM DO PRIMEIRO VOLUME

— 116 —
AO LEITOR

Como escapará nosso herói do fuzilamento? Quem pôs


o escorpião negro na valise do Dr. Catinga? Quem será o
Alferes Henrique Costa de Sousa, espião português
infiltrado no Governo do Sunda? Quem matou o Presidente
Natanga? E quem será o misterioso “Patrão”? — Todas
estas perguntas serão respondidas no próximo volume desta
série. Procure, já, em sua banca de jornais preferida, em
qualquer parte do País, “CONTRA OS VAMPIROS DE
ANGOLA” (VOLUME SEGUNDO) com a conclusão
desta nova aventura de K. O. Durban.

UM “XODÓ” PARA VOCÊ

Xodó quer dizer namoro. E você vai ficar realmente


enfeitiçado se começar a ler nossa nova publicação, que se
intitula XODÓ.
Não é um livro de bolso. É uma revista, semanal. Um
folhetim, como os de antigamente, contando a história de
uma linda mulher do povo que se transformou na mais
famosa das cortesãs, conheceu pessoas estranhas, derrubou
políticos, construiu e arrasou reputações, viciou-se em
drogas, esteve nas malhas da Zwig Migdal, depois
regenerou-se e chegou a ser grande dama da alta sociedade
do Rio de Janeiro, onde até hoje vive.

— 117 —
A história empolgante da vida desta mulher é contada
por ela própria, nas páginas de XODÓ. Procure hoje
mesmo, no seu jornaleiro, esta revista sensacional ou nos
peça pelo Reembolso Postal para:

EDITORA MONTERREY LTDA.


av. Calógeras n.º 15 — 12.°
Rio de Janeiro — GB. — ZC-39
Tel. 32-2721

— 118 —
VOCÊ JÁ LEU AVEC?

Muita gente não sabe ainda o que é AVEC, a nova


coleção da Editora Monterrey que está obtendo os maiores
aplausos da Imprensa, dos meios inteligentes de todo o País
e até de Portugal.
AVEC é uma publicação quinzenal, encontrável em
qualquer banca de jornal através do Brasil, contendo os
melhores contos e noveletas da literatura mundial antiga e
moderna.
Lendo AVEC você se encontra cada duas semanas, com
os grandes autores da Humanidade, desde Gogol, Tolstoi e
Dostoiewski até Washington Irving e Faulkner, passando
por Maupassant, Gauthier, Verlaine, Dickens, Kipling e
Conan Doyle.
AVEC é um livro de contos do melhor gabarito a um
preço reduzidíssimo. Pode ser lido com prazer, na cama, na
sua poltrona favorita, no ônibus, no trem ou no avião,
porque é fácil de pegar (100 gramas de papel, apenas, entre
os seus dedos) e fácil de guardar (cabe até no seu bolso).
Tem outra vantagem, AVEC. Sendo, cada volume, um
buquê de cinco, seis, às vezes até oito contos variados e bem
escolhidos, proporciona a você uma leitura intermitente das
melhores. Se o tempo é escasso, leia um conto hoje, outro
amanhã, um logo mais, outro daqui a pouco. Havendo lazer,
leia o livro inteiro.
AVEC é uma experiência nova. A de levar a cultura ao
alcance de todos. Nossa apresentação é popular, mas o
conteúdo é principesco. Procure, hoje mesmo, no
jornaleiro, seu exemplar de AVEC. Ou nos peça pelo
reembolso postal. Não vai se arrepender.

— 119 —
O TIRO E A HISTÓRIA

É um fato indiscutível que o homem sempre viveu em


estado de guerra, desde os tempos imemoriais, anteriores a
Cristo, até os nossos dias, quando procura descobrir o
caminho das estrelas. Ontem como agora, a qualquer
momento, em alguma parte do mundo, certo número de
pessoas está procurando matar ou exterminar outro tanto.
Parece que há uma explicação para esse delírio
sanguinário do homem, através dos tempos.
Individualmente, cada um de nós louvará a Paz e dirá que a
Guerra é uma insensatez. Coletivamente seremos os
mesmos assassinos de sempre, empenhados em
conflagrações fratricidas. Dizem que os homens se entre-
matam a fim de manter o equilíbrio da espécie, assim como
os salmões que desovam nas nascentes dos rios ou as
baleias que se suicidam, coletivamente, nas praias dos
mares do sul. Uma questão puramente genética. Mais
inteligente que qualquer outro bicho sobre a terra, o ser
humano não tem, sobre ele, a ameaça dos predadores.
Converte-se, portanto, no lobo de si mesmo. Havendo
praticamente controlado o perigo dizimador das epidemias
e das pestes, reduzido a taxa de mortalidade infantil e
melhorado sua média de vida para 70 anos, o bicho homem,
diante da explosão populacional que lhe ameaça a espécie,
vai inventando armas cada vez mais destruidoras, a fim de
se liquidar a si mesmo, em escala crescente. Ou seja, as
guerras parecem que têm, de cada vez, uma taxa de
correção. O morticínio aumenta.
Você deve se preocupar com estas idéias e estudar a
história do mundo através das histórias das guerras. Nós
temos uma coleção que lhe dá tudo isso, em linguagem
acessível e a preços populares.

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— 122 —
desta nova aventura de K. O. Durban.

CONTINUA...

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