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adentravam as casas daquelas pessoas que podiam comprá-las, como é o caso dos
eletrodomésticos. Em retrospectiva, no final dos anos de 1920, refrigeradores elétricos
eram consumidos por clientes bastante específicos, significavam máquinas caras e
importadas direto dos Estados Unidos, e geralmente só poderiam ser obtidas através
de encomenda4.
Com o passar dos anos o desenvolvimento industrial do país e a expansão de
empresas de energia, que distribuíam gás e eletricidade, a produção e o consumo de
utensílios domésticos aumentou. A empresa nacional Walita em 1956 chegou a
fabricar um milhão de aparelhos eletrodomésticos5, embora caiba ressaltar que o
consumo desses itens ainda era restrito a uma parte menor da população que poderia
pagar por eles.
As mudanças sentidas pela população não decorriam apenas da economia
e do aumento da população urbana, novas formas de saber e seus grupos de
profissionais, cada vez mais organizados, como é o caso dos engenheiros e,
posteriormente, os arquitetos, passaram a interpretar e estudar a cidade de acordo com
dados específicos utilizados para resolução de problemas urbanos através de suas
técnicas.
4
FARIAS, Claudio L. de; AYROSA, Eduardo; CARVALHO, Gabriela; et. Al. Eletrodomésticos:
Origens,História & Design no Brasil. Rio de Janeiro: Frahia, 2006. p. 60.
5
Ibidem, p. 78.
6
BASSANEZI, C. B. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homem-
mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
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ainda mais plausível depois do descobrimento do livro de Inés Pérez7. Se trata de
um estudo sobre Mar del Plata entre os anos de 1940 e 1970, ou seja, entre o
peronismo e a ditadura, sobre os modos de habitar através da chegada dos
eletrodomésticos. O material escolhido pela pesquisadora foram revistas, anúncios
publicitários, dados demográficos, políticas habitacionais e entrevistas de antigos
moradores da cidade. Através das experiências de homens e mulheres Pérez procurou
entender o processo que tornava a habitação mais repleta de máquinas e novas
tecnologias, dessa forma pretendia demonstrar como os mais diversos modos de viver
passaram a ser influenciados pelo modelo familiar nuclear que se baseia em uma
diferenciação dos papeis de gênero.
7
Inés Pérez é professora licenciada m História pela Universidad Nacional de Mar del Plata e doutora em
Ciências Sociais e Humanas pela Universidad Nacional de Quilmes, atualmente é docente da Universidad
deMar del Plata onde também faz parte do Grupo de Estudios sobre Familias, Géneros y Subjetividades.
O livro em questão é: PÉREZ, Inés, El hogar tecnificado. Familias, género y vida cotidiana. 1940-1970.
Buenos Aires: Biblos, 2012.
8
Ibidem, p. 27. Tradução livre: Este trabalho sustentará a hipótese de que a partir de meados dos anos 40
se popularizou um modelo de domesticidade que, apesar de já estar presente em décadas anteriores,
introduziu certos elementos novos. Especificamente, centrou-se numa imagem da casa como lugar
confortável de maneira que era central o consumo e uso de novas tecnologias. Em boa medida a família
(nuclear e afetiva) e o lugar (confortável) constituíram as principais referências nos discursos que
estimulavam o consumo nesses anos. Estereótipos distintos de gênero acompanharam esse modelo. De
um lado se observa uma reedição do modelo de mulher doméstica que havia se cristalizado no começo do
século XX, no qual a profissionalização da dona de casa se apoiou na mecanização das tarefas domésticas
e em uma nova definição de responsabilidades. Ao passo que a democratização da casa própria e o tempo
livre possibilitaram a extensão de masculinidades domésticas nas quais o lugar era ao mesmo tempo
espaço e objeto de práticas que podem ser nomeadas com o paradoxo "ócio produtivo”.
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divisão de papeis de gênero na família. A pesquisadora não apenas centra sua
pesquisa nos ambientes e afazeres femininos, como também em espaços e objetos
masculinos que, de acordo com o parágrafo citado, tinham maior relação com o
“ócio produtivo”, o descanso, do que com trabalho.
A mulher seria a dona de casa, aquela que cuida dos filhos e do marido, uma
figura pertencente à cozinha e à sala de estar, aquela que está em harmonia ou
camuflada no interior doméstico. Ao passo que o homem seria provedor e chefe da
família, a ele pertencem o escritório e a sala de jantar, os objetos desses cômodos
serviriam para individualizar ainda mais o homem. Essa desigualdade ressaltada
entre a mulher parecer atrelada ao espaço doméstico enquanto outros objetos
serviriam para destacar o homem como centro do ambiente e da família foi a tese
defendida no doutorado de Vânia Carneiro de Carvalho, chamada Gênero e Artefato9,
Carvalho denomina essas diferenças de ações centrífugas para as mulheres, e ações
centrípetas para os homens.
Em resumo, as ações femininas e masculinas no espaço doméstico, descritas
respectivamente como ações centrífugas e centrípetas, produziram
repertórios materiais e formas de mobilização diferenciados. As ações
femininas – alargadas por toda a casa, porém sem comprometer a identidade
específica de seus espaços e objetos e concentradas em representações
artísticas de elementos da natureza – contribuíram para a formação de um
perfil pessoal incentivado a abrir mão da própria individualidade a favor
de uma atuação como integradora das diferenças de seus membros. As
ações masculinas, por sua vez, nos mostram uma forma de apropriação
material voltada para o fortalecimento de um perfil individualizado. Em
última instância, podemos dizer que para o homem convergem todas as
coisas da casa, inclusive sua mulher. Tal força centralizadora não excluiu a
existência de territórios sexualmente marcados. Pelo contrário, estimulou um
ideal de convivência complementar entre marido e esposa.10
Carvalho centrou seu estudo até a década de 1920, porém é interessante observar
como alguns aparelhos ligado ao trabalho doméstico ainda estavam atrelados a figura
feminina, ao passo que outros objetos, como os aparelhos de som e televisão são
associados a imagens de homens. Isso é o que ocorre nessas duas propagandas veiculas
no jornal Estado de S. Paulo em 1960. Na primeira imagem a lavadora de roupas é
dedicada a “dona de casa” e há a figura de uma mulher bem vestida ao lado do
eletrodoméstico. O texto esclarece para quem e porque veio a máquina: “Para a dona-
de-casa, os tempos mudam para melhor… Melhor vida… maior eficiência… estilo
9
CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura
material – São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008.
10
Ibidem, p. 114.
4
atual… técnica de vanguarda… com a bossa nova da lavadora automática da
Brastemp.” Ou seja, a dona de casa ao mesmo tempo se preocupa com os serviços
domésticos e a modernidade, utiliza para seu trabalho o que existiria de mais atual e
eficiente. A imagem feminina embora seja atrelada à aspectos da vida privada pode não
ser necessariamente a mulher submissa, ela se preocupa com a aparência e busca
alternativas modernas para suas tarefas. Ainda é uma imagem ligada ao ambiente
doméstico? Sim, com certeza. Mas, podemos questionar o quanto de submissão há nessa
imagem, afinal ela ainda pode ser atraente e livre para buscar seus meios de trabalho,
mesmo que este seja o doméstico.
5
O Estado de S. Paulo, São
Paulo, 11, 23 de mar. de 1960.
6
mostra para a mulher. Ele é quem tem o domínio dessa máquina, ele é quem está
sorrindo ao olhar a expressão de admiração da mulher. As palavras usadas para
descrever o aparelho se remetem a “pureza do som” e também a adjetivo usado
principalmente para descrever carros, como “possante”, objeto que também tem busca
bastante apelo da figura masculina.
7
Ou os meios de comunicação e venda de eletrodomésticos, como as revistas e
anúncios de jornais, reafirmariam o papel da mulher como responsável pelos afazeres
domésticos? Existiram discursos, contrários aos estabelecidos, que enfatizariam a
eficácia dos eletrodomésticos como forma de economizar o tempo do indivíduo e não
da mulher especificamente?
A partir dessas questões deu início a possibilidade de uma pesquisa que
envolvesse um cruzamento de informações entre eletrodomésticos, habitação e
relações de gênero, para entender como a habitação tradicional e ideal se dividiria
não apenas em espaços funcionais como também em ambientes masculinos e
femininos.
No período escolhido para trabalhar, que foi a década de 1960, as instalações
elétricas e sanitárias estavam mais presentes nas moradias das grandes capitais, como
Rio de Janeiro e São Paulo. Em 1960 também se iniciaram a produção de fontes
importantes como a revista Casa & Jardim que começou a circular em 1952. Uma
publicação que focava a decoração e construção voltada para o grande público e não
apenas para profissionais e especialistas do ramo. Essa revista tinha objetivo de expor
os novos utensílios domésticos do mercado e a modernização do lar. Além disso, a
pesquisadora Marinês Ribeiro dos Santos, que em sua tese explorou as publicações do
periódico na década de 1970, afirma ser característica da revista a exposição das
tecnologias modernas para moradias, daquilo que deveria ser objeto de desejo e de
consumo da classe média, porém não deixava espaço para a modificação da família
tradicional.
A revista surgiu como guia para o consumo doméstico de classe média
durante um período de urbanização e industrialização acelerada. A missão
do periódico era, justamente, apresentar soluções capazes de conciliar a
preservação dos valores tradicionais da família com a modernização do
espaço doméstico. Num cenário de transformações sociais e culturais, as
donas de casa podiam orientar suas escolhas quanto às práticas cotidianas
conforme a opinião de especialistas. O contato com a voz da autoridade
oportunizava a atualização dos modos de viver conforme o novo “espírito
dos tempos”. Com relação às identidades coletivas e à marcação de
posições de classe, ao mesmo tempo em que Casa & Jardim construía estilos
de vida mediante práticas de consumo, o periódico também funcionava
como um espaço de visibilidade para o estilo de vida da classe média. Um
tipo de reportagem característico da revista consistia em apresentar imagens
e comentários sobre a arquitetura e/ou a decoração de residências
pertencentes às pessoas de “bom gosto” da sociedade brasileira. 11
11
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O Design Pop no Brasil dos Anos 1970: domesticidades e relações
de gênero na revista Casa & Jardim. Florianópolis, SC, 2010. P. 63.
8
Além da revista Casa & Jardim e as propagandas publicitárias também se
iniciava na década de 1960 uma feira que pretendia mostrar todas as inovações no
âmbito de utilidades domésticas. De esponjas e flores de plástico12 até máquinas de
lavar a UD (Feira Nacional de Utilidades Domésticas) atraía não apenas industriais
como uma parcela da classe alta e média da sociedade que poderiam consumir o que
seria o melhor da produção nacional para a modernização da decoração e tarefas
domésticas. Por esse motivo a feira tinha como público alvo a mulher que, segundo
Santos, seria uma dona de casa que buscava os mais modernos utensílios.
Além do setor comercial, Casa & Jardim também reconhecia as donas de
casa como público privilegiado das Feiras de Utilidades Domésticas. Um
texto de março de 1962 comenta que a organização do evento dedicava
atenção especial às donas de casa, oportunizando a atualização quanto às
novidades da indústria que poderiam contribuir com melhorias na rotina
doméstica. Em alguns textos, esta atualização é relacionada de forma direta
com a figura da dona de casa moderna.13
12
O Suplemente Feminino do jornal Estado de S. Paulo de 25 de março de 1960 trouxe uma dura crítica
à I Feira Nacional de Utilidades domésticas, apesar da crítica é possível entender que além da
preocupação com a tecnologia e eletrodomésticos de luxo o feira também mostrava objetos variados:
“Salvem-se, por exemplo, peças de cozinha e aparelhos de café, chá e jantar em plásticos
inquebrantáveis, produtos de espuma destinados a limpeza e ao estofamento de móveis; alguns
refrigeradores, peças sanitárias e um ou outro “stand” a apresentar um conjunt perfeito – e bem
planificado [...]. A prateria e os talheres, louças, cristais, enfim, toda uma gama de utensilios domésticos
reunidos em um só local oferecem ao visitante um espetáculo caótico e desastroso.” R. A. “Arte e
forma”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25, 20 de mar. de 1960.
13
SANTOS, Marinês Ribeiro dos. Domesticidade moderna e relações de gênero: o discurso funcionalista
na revista “Casa & Jardim” durante as décadas de 1950 e 1960. In: Congresso Ibero Americano de
Ciência, Tecnologia e Gênero n. 8, 2010, Curitiba. P. 6.
14
O trecho analisado pela autora é esse: “O homem civilizado do século XX perdeu o contato com o
problema de sua habitação, enquanto que o homem primitivo sempre procurou construir o seu abrigo
com toda a simplicidade, sem pretensão, sem ênfase e sem falsidade. O Homo sapiens do século XX
vive, em sua maior parte, em habitações mal projetadas técnica e economicamente, construídas em
desacordo com a escala humana, de nível sanitário inferior, sem ar, sem luz, sem vista e quase sempre
atulhadas de moveis incômodos, imensos e inúteis. Habitações que fizeram da mulher uma escrava
doméstica, sempre preocupada com sua limpeza e conservação, onde o luxo, num desperdício chocante,
substitui frequentemente o conforto. Parece-nos que já é tempo de oferecermos a este homem da era
maquinista (…) uma habitação digna dele e de sua época. Uma máquina de habitar, bem equipada e
organizada, que lhe possa restituir essa coisa inestimável, hoje quase perdida, que é a liberdade
individual. Construamos o abrigo do homem como se constrói o seu automóvel ou o vagão da estrada
de ferro em que viaja. Adaptemos a habitação à economia moderna”. PORTINHO, Carmem in: Revista
Municipal de Engenharia, janeiro de 1942. Apud NOBRE, Ana Luiza. Carmen Portinho. O moderno
em construção. Perfis do Rio, volume 25, Relume Dumará, Rio de Janeiro; 1ª edição, 1999. P. 44.
9
Na visão reformista da diretora do Departamento de Habitação Popular, a
habitação era “um serviço de utilidade pública, com a principal função de
reeducação completa do operário brasileiro, que […] deveria estar incluída
entre os serviços obrigatórios que o governo deve oferecer, como água,
luz, gás, esgoto etc.”. Sem dúvida essa postura se inseria num projeto
mais amplo de construção de uma nova sociedade para a qual, entre
outras coisas, se previa um novo modo de morar, condicionado à revisão
de um conjunto de valores considerados ultrapassados, entre eles o culto
secular à dita “vocação natural” da mulher para a maternidade e as
tarefas domésticas. Redefinir a posição da mulher na sociedade, romper a
clausura do lar são ideais feministas que estão por trás da concepção de
habitação defendida por Carmem Portinho em artigo publicado na Revista
Municipal de Engenharia (janeiro de 1942).15
Lina Bo Bardi projetou sua própria casa, que foi construída em 1951, uma
moradia moderna com a cozinha munida de máquinas eficientes e sofisticadas.
Segundo Rubino, foi em um verbete da Enciclopédia da mulher que Lina Bardi
além de mostrar toda a modernidade de sua cozinha, ela própria é apresentada
como mulher moderna que sabe se utilizar desses ambientes. Até mesmo as roupas
usadas pela arquiteta rompem com a imagem tradicional da mulher no período.
15
NOBRE, Ana Luiza. Carmen Portinho. O moderno em construção. Perfis do Rio, volume 25, Relume
Dumará, Rio de Janeiro; 1ª edição, 1999. P. 43 – 44.
16
Lina Bo era como a chamavam, seu nome completo era Acchilina di Enrico Bo, foi uma arquiteta
italiana que atuou em São Paulo.
17
RUBINO, Silvana. “Corpos, cadeiras, colares: Charlotte Perriand e Lina Bo Bardi” in: Cad. Pagu,
no.34. Campinas jan./jun. 2010.
10
E nessa casa, usada como exemplo de um morar moderno (os outros
exemplos são casas projetadas por Vilanova Artigas), as imagens mostram
uma mulher "moderna" que escapa ao padrão iconográfico do período.
Lina está de calças compridas, de relógio, não porta vestidos ou aventais.
A cozinha poderia se assemelhar à funcional cozinha americana, uma
versão mais espaçosa e mais equipada da cozinha de Frankfurt –
afinal era uma casa burguesa, enquanto a segunda destinava-se a conjuntos
habitacionais – mas ela não representava a dona de casa suburbana do
Kitchen Debate que ocupou a América do Norte no auge da guerra fria.
Fontes:
- Casa e Jardim, n. 54, julho de 1959.
- Casa & Jardim, n. 161, junho de 1968.
- O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25, 20 de mar. de 1960.
- O Estado de S. Paulo, São Paulo, 11, 23 de mar. de 1960.
11
Referências Bibliográficas:
- SANTOS, Marinês Ribeiro dos. O Design Pop no Brasil dos Anos 1970:
domesticidades e relações de gênero na revista Casa & Jardim. Florianópolis,
SC, 2010.
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