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Literatura Infanto-Juvenil Brasileira – Profa.

Ermelinda Ferreira  

A disciplina
 
Caros Alunos e Alunas:

É com grande satisfação que apresento a vocês o Curso de Literatura Infanto-Juvenil Brasileira,
convidando-os a ler este material com o mesmo entusiasmo com que ele foi produzido, e a
ingressar no fascinante universo das fábulas, dos contos de fadas e da literatura especificamente
voltada para essa faixa etária. A história do percurso da formação deste gênero, que vai da
oralidade à palavra, e da palavra à imagem, perseguindo o mistério do homem numa fase de
indefinição e descobertas, é relatada nestas páginas, ao lado de uma discussão sobre as
especulações que reformularam esse tipo de literatura na modernidade, trazendo-a para mais
perto do público em geral e afastando-a de uma percepção redutora que a entendia como veículo
de ensinamentos moralistas e/ou como mero suporte didático. Focalizamos, neste módulo, o perfil
como educador do “pai da literatura infanto-juvenil brasileira” – Monteiro Lobato – ao lado das
concepções de outros grandes escritores que a ele se seguiram, dando continuidade a sua
proposta: Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Osman Lins. O inesgotável universo do Sítio do
Picapau Amarelo, com sua imensa variedade de provocações e ideias, será o desafio de leitura e de
atividades lançado a vocês: a partir das temáticas instigantes e altamente contemporâneas que
caracterizam essas obras, sugerimos a todos que leiam Lobato, que conheçam diretamente o seu
texto para além das muitas adaptações multimídia hoje disponíveis, e que o repassem e ao seu
encantamento a seus filhos, alunos e às crianças de todas as idades.

Bom trabalho!

Profª Drª Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Referências bibliográficas
 
AMARAL JÚNIOR, Amadeu. “Monteiro Lobato adere à segunda semana de Arte Moderna”, Jornal da
Manhã, São Paulo, recorte s/d, citado por Carmen Lucia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir
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Versão provisória em PDF do conteúdo da disciplina. O autor é o titular dos direitos autorais desta obra. Reprodução não autorizada. Uso
estritamente pessoal. Para outra utilização, solicitar autorização prévia do titular dos direitos autorais.

 
Literatura Infanto-Juvenil Brasileira – Profa. Ermelinda Ferreira  

ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Hans Christian Andersen. São Paulo: Paulinas, 2011.

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BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
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escrevendo Lobato. Organização de Eliane Marta Teixeira Lopes e Maria Cristina Soares de Gouvêa.
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
BLOOM, Harold. Contos e poemas para crianças extremamente inteligentes de todas as idades.
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CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

CASTLE, Gregory. Reading the modernist Bildungsroman. Florida University, 2006.


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CHIARELLI, Tadeu Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp, 1995.

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_____. “A dama e o unicórnio: exercícios de imaginação”, in: Hugo Almeida (org.). Osman Lins: o
sopro na argila. São Paulo: Nankin Editorial, 2004.

GRIMM, Irmãos. Obra completa. Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Itatiaia, 2008.

HEYWOOD, Colin. Uma história da infância. Porto Alegre: Artmed, 2004.

HOLANDA, Chico Buarque de. Chapeuzinho Amarelo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

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KLINKE, Karina. “Um faz-de-conta das meninas de Lobato”, in: Lendo e escrevendo Lobato.
Organização de Eliane Marta Teixeira Lopes e Maria Cristina Soares de Gouvêa. Belo Horizonte:
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LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato, um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2000.
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Organização de Lourenço Dantas Mota e Benjamin Abdala Júnior. São Paulo: Senac, 2001.
_____. “Negros e negras em Monteiro Lobato”, in: Lendo e escrevendo Lobato. Organização de
Eliane Marta Teixeira Lopes e Maria Cristina Soares de Gouvêa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

LAWE, Lawe, Marie-José. Um outro mundo: a infância. São Paulo: Perspectiva, 1991.
LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.- - LOBATO,
Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1971.

_____. “Negrinha”, in: Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1994.


_____. A barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência entre Monteiro Lobato e Godofredo
Rangel. São Paulo: Brasiliense, 1957. Vol. 2.

LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977.

_____. Evangelho na taba – outros problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1979.

_____. O diabo na noite de Natal. São Paulo: Pioneira, 1977.


_____. “Exercício de Imaginação”, in: Julieta de Godoy Ladeira (org.). Licões de Casa – exercícios
de imaginação. Feitos por Affonso Romano de Sant’Anna, Antonio Callado, Ferreira Gullar, José J.
Veiga, Julieta de Godoy Ladeira, Lygia Fagundes Telles, Marina Colasanti, Osman Lins e Ricardo
Ramos. São Paulo: Novo Norte, 1979.

MONTEIRO LOBATO, José Bento Renato. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1971.

_____. “Negrinha”, in: Negrinha. São Paulo: Brasiliense, 1994.


_____. A barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência entre Monteiro Lobato e Godofredo
Rangel. São Paulo: Brasiliense, 1957. Vol. 2, p. 104.
MACHADO, Ana Maria Machado. Como e porque ler os clássicos universais desde cedo. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002

MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, 1978, v. 6.


NUNES, Cassiano. Monteiro Lobato, o editor do Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto/Petrobrás,
2000.
ORENSTEIN, Catherine. Riding hood uncloacked. Sex, morality and the evolution of a fairy tale.
New York: Basic Books, 2002.
PENTEADO, José Whitaker. Os filhos de Lobato: o imaginário infantil da ideologia do adulto. Rio de
Janeiro: Qualitymark/Dunya Editora, 1997.
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PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Belo Horizonte: Vila Rica, 1996.

POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.


RAMOS, Ricardo. “Tremebrilhos e singelezas”, in: Osman Lins. Um mundo estagnado. Recife:
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ROSA, Guimarães. Ave, Palavra! Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

_____. Fita verde no cabelo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

_____. Zoo, de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

ROWLING, J. K. Harry Potter e a pedra filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

SALINGER, J. D. O apanhador no campo de centeio. São Paulo: Ed. do Autor, 1999.


SÉGUR, Condessa de. Sofia, a desastrada; As meninas exemplares; As férias. Tradução e
adaptação de Herberto Sales. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
SANDRONI, Luciana (adaptação) e OLIVEIRA, Rui de (ilustrador). Chapeuzinho Vermelho e outros
contos por imagens. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
STRÖER, Carlos Eduardo e KREMER, Cássia Simone. A infância na Idade Média (séc. XIV ao séc.
XVI): discussões pertinentes. Revista Travessias, n. 1. www.unioeste.br/travessias.

VIRILIO, Paul. O espaço crítico. São Paulo: 34 letras.

Sumário
1. Literatura infanto-juvenil: conceito e história
1.1 O nascimento da infância
1.2 Da fábula ao conto de fadas: sobre as origens da literatura infanto-juvenil
2. Paradigmas tradicionais e modernos da literatura infanto-juvenil
2.1 A “lição” de Clarice Lispector
2.2 A “lição” de Osman Lins
2.3 O “caso” Chapeuzinho Vermelho
2.3.1 O clássico Chapeuzinho Vermelho de Perrault e dos irmãos Grimm
2.3.2 Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda
2.3.3 Fita verde no cabelo, de Guimarães Rosa
3. Monteiro Lobato: o “pai da literatura infanto-juvenil brasileira”
3.1 Monteiro Lobato educador

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1 Literatura infanto-juvenil: conceito e história

1.1 O nascimento da infância

Nem sempre a infância foi vista como uma faixa etária peculiar, com suas especificidades e
demandas próprias. Os termos criança e infância, em diferentes espaços e tempos, possuem
significados distintos de acordo com a ideologia vigente. Hoje, dedicamos às crianças algumas
características psicológicas que, além das evidentes distinções físicas, as diferenciam
fundamentalmente de um adulto. Essa idéia de infância, porém, resultou de uma transformação
social e histórica, e segundo Philippe Ariès, surgiu apenas por volta do século XIII. Em História
social da criança e da família, o autor problematiza como o conceito de infância foi-se modificando
nas construções sociais através de três períodos históricos: na Antiguidade; do século XIII ao
século XVIII; e do século XVIII à atualidade.

1º PERÍODO (Antiguidade)

No primeiro período, segundo ele, a criança era considerada um adulto em miniatura, por não
haver distinção entre o mundo adulto e o mundo infantil; ou seja, a criança ingressava na
sociedade dos adultos tão logo era capaz de se alimentar por conta própria. Etimologicamente, o
termo infância é originário do latim infans, que significa “aquele que não fala”, pois, segundo a
compreensão da época, nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente as
palavras porque os dentes não estão devidamente ordenados e firmes. A “primeira idade humana”,
portanto, começaria no nascimento e duraria até os sete anos, quando da segunda dentição e do
estabelecimento da linguagem. O estudo de Ariès possui dois fios condutores: o primeiro é a
constatação de que, até o fim da Idade Média, a ausência do sentido de infância como um estágio
específico do desenvolvimento do ser humano abre as portas para uma interpretação das
chamadas sociedades ocidentais tradicionais. O segundo é que este mesmo processo de definição
da infância como um período distinto da vida adulta também abre as portas para uma análise do
novo lugar assumido pela criança e pela família nas sociedades modernas. Sua obra foi precursora,

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portanto, de um importante campo de pesquisa que ficou conhecido como “história da infância” e
gerou diversos trabalhos subsequentes.

Para Ariès e Heywood, a idéia de infância estava ligada à idéia de dependência. Os termos
relacionados à infância (pueri, adolescens, efebo, kneht, enfant, poupart, bambini, valet, boy) não
eram originados de fatores biológicos. Ariès afirma que só se saía da infância ao se sair da
dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos da dependência. Essa é a razão pela qual as
palavras ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente, na língua falada, os homens
de baixa condição, cuja submissão aos outros continuava a ser total: por exemplo, os lacaios, os
auxiliares e os soldados. Outros teóricos, porém, afirmam que a ausência de uma terminologia
específica para a infância na Idade Média não pode ser tomada como uma justificativa para a
suposta alegação de sua “inexistência” no contexto social. Observa-se, portanto, que, ao invés de
esquecida ou ignorada, a infância na Idade Média talvez tenha sido definida de forma imprecisa, já
que a própria noção de tempo, para os medievais, não era relevante.

Peter Brueghel, o Velho (1560).


Brincadeiras de criança. Estudiosos
apontam o valor documental desta
pintura, que elenca uma variedade de
jogos infantis medievais, ainda hoje
conhecidos, como cabo-de-guerra, pula-
sela, cabra-cega, esconde-esconde, pega-
pega, corrida com aros, plantar bananeira,
jogar pião, bafo, andar com pernas de pau
e com cavalinhos de pau. Um ótimo
exercício em sala de aula é sugerir às
crianças que identifiquem na pintura a
representação dessas brincadeiras, a fim
de estimular um debate sobre o tema. No
entanto, os pesquisadores observam que o
retrato das crianças não revela alegria
nem leveza, suas fisionomias são tristes e
seus corpos rígidos, e elas estão vestidas
como os adultos. Para alguns estudiosos, a
arte medieval desconhecia a infância. É
provável que não houvesse lugar para as
crianças nesse mundo. Por isso, na arte, a imagem das crianças se assemelha a de homens em tamanho
reduzido. Essa recusa em aceitar na arte a morfologia infantil é encontrada na maioria das civilizações arcaicas.
Para Ariès, “tudo indica, de fato, que a representação realista da infância, ou a idealização da infância, tenham
sido próprias da civilização grega. A infância desapareceu da iconografia junto com outros temas helenísticos.”
Isso faz pensar que no domínio da vida real, a infância era um período de transição, logo ultrapassado, e cuja
lembrança também era logo perdida.

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2º PERÍODO (Século XIII – Século XVIII)

No segundo período estudado por Ariès, observa-se uma mudança na perspectiva social sobre a
criança. A sociedade passa a prezar valores atribuídos às crianças, como a inocência, a pureza e a
ingenuidade, e dá-se início a um movimento de idealização dessa faixa etária. A constituição de um
novo conceito de infância surge na transição dos séculos XVII para o XVIII, quando ela passa a ser
entendida como um período de extrema fragilidade do ser humano, devendo receber toda a
proteção e incentivo possíveis. O início do processo de mudança, por sua vez, anuncia-se já nos
fins da Idade Média, e é identificado no ato de mimar e paparicar as crianças, um tratamento que
passa a ser reservado a elas em seus primeiros anos de vida, enquanto ainda são “coisinhas
engraçadinhas” com as quais as pessoas podem se divertir – “como com animaizinhos ou
macaquinho impudicos”, segundo Ariès. A atenção dada às crianças, portanto, ainda não se dirigia
a elas mesmas, mas ao interesse que despertavam no entretenimento dos adultos (especialmente
da elite), hábito criticado por Montaigne e por outros escritores da época. Já a perda dos filhos,
tolerada de modo mais natural pelos pais até a Idade Média – quando tanto as taxas de natalidade
como as de mortalidade infantil eram muito altas – também passa a ser recebida com dor e
abatimento.

No século XVII, as perspectivas sobre a infância transitam para o campo da moral, sob forte
influência de um movimento promovido pela Igreja e pelo Estado, onde a noção de educação
ganha terreno: trata-se de um instrumento que surge para colocar a criança "em seu devido
lugar”, assim como se fez com os loucos, as prostitutas e os miseráveis. Embora com uma função
disciplinadora, a escola não preconizava uma idade específica para o seu ingresso. Os referenciais
para a educação, na época, não eram o envelhecimento (ou o amadurecimento) do corpo. A ciência
moderna ainda não havia triunfado e a educação nascia, portanto, com uma função prática, ora de
disciplinar, ora de proporcionar conhecimentos técnicos, que posteriormente viriam a configurar
uma escola para a elite e outra para o povo. É provável que a importância pessoal da noção de
idade tenha se afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos
documentos, começando pelas camadas mais instruídas da sociedade. A partir de então, móveis,
retratos, diários de família apresentavam datas importantes, registrando a cronologia histórica
familiar como um valor a ser preservado. Antes disso, no entanto, a vida humana não era pensada
em termos de etapas biológicas, mas de funções sociais: a idade dos brinquedos, a idade da
escola, a idade do amor, etc.

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Peter Brueguel, o Velho. O Burro na Escola
(1556). A escola é duramente criticada
pelo pintor: o mestre é representado pela
imagem de um burro, a figura de
destaque é a do carrasco, que dá vazão
aos castigos corporais tão comuns na
época, e as crianças amontoam-se
desordenadamente no espaço, nada
parecendo apreender dos livros que as
cercam. A idade da escola é marcante no
segundo período estudado por Ariès,
quando as crianças são enclausuradas em
estabelecimentos específicos voltados para
a sua “formação”. A temática escolar
torna-se um assunto de destaque na
literatura romântica ocidental,
determinando a criação de um gênero
específico, o “romance de formação”
(Bildungsroman), no qual o protagonista é
um personagem jovem, do sexo masculino
(as mulheres não iam à escola e não
tinham a liberdade de movimentos dada ao herói desses romances, em contato com múltiplas experiências
sociais decisivas no percurso de seu auto-conhecimento), que começa sua viagem de formação em conflito com
o meio em que vive, determinado a afrontá-lo e recusando-se a assumir uma atitude passiva. Rebelando-se
contra as instituições, tem por mestre o mundo e atinge a maturidade integrando ao seu caráter as
experiências pelas quais vai passando. Em constante demanda de sua identidade, representa diferentes papéis
e usa diferentes máscaras, sofrendo pelo imenso contraste entre a vida que idealizou e a realidade que terá de
enfrentar. A modernidade traz uma nova perspectiva para a questão da escola, tal como é representada na
literatura.

Ilustração de Nelson Cruz para o Conto de Escola, de


Machado de Assis (2002). Toda uma tradição de
escritores brasileiros dedicou ao tema da escola
romances na linha do Bildungsroman, a exemplo de
Raul Pompéia, com O Ateneu; José Lins do Rego, com
Menino de Engenho, e Viriato Correia, com Cazuza. Em
todas essas obras sobressai o retrato de uma
instituição opressora, com figuras terríveis de mestres
dogmáticos e cenas de uma pedagogia do
constrangimento e da violência. A escola confiscou
uma infância outrora livre num regime disciplinar cada
vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX resultou
no enclausuramento total do internato. A solicitude da
família, da Igreja, dos moralistas e dos
administradores privou a criança da liberdade que ela
gozava entre os adultos. Infligiu-lhe o chicote, a
prisão, em suma, as correções reservadas aos
condenados das condições mais baixas. Mas esse rigor
traduzia um sentimento muito diferente da antiga indiferença: um amor obsessivo que deveria dominar a
sociedade a partir do século XX.

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Jean-Siméon Chardin. Mãe e filha lendo.

Jéan-Baptiste Debret. Uma senhora brasileira em seu lar.

Na iconografia ocidental deste período, as cenas


domésticas passaram a representar as mulheres
burguesas em atividades como a costura, a
pintura e a música, mas também a literatura. Ao contrário do retrato dos ambientes escolares voltados para a
formação masculina, o espaço da casa parecia sereno e propício ao aprendizado e ao convívio feminino com a
leitura, embora na cena doméstica brasileira já se instaurasse claramente a diferença entre a cultura da elite e
a cultura do povo.

LEITURA COMPLEMENTAR

O Bildunsroman e a literatura para jovens na contemporaneidade:


O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger e Harry Potter,
de J. K. Rowling

O apanhador no
campo de centeio

Harry Potter

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Na linha do gênero Bildungsroman, The catcher in the rye ou O apanhador


no campo de centeio (1950), do americano J.D. Salinger; e a série Harry
Potter (2000-2007), da inglesa J.K. Rowling, consistem nas versões
moderna e pós-moderna dos romances de aprendizagem/formação do
século XIX e do início do século XX. A jornada de amadurecimento (física,
emocional, intelectual e espiritual) de um jovem personagem, presente
em obras como Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (Goethe),
Em busca do tempo perdido (Proust) e O retrato do artista quando jovem
(Joyce), foi relida para manter o espírito principal desse tipo de romance:
representar, o mais fielmente possível, os anseios e as angústias de um
jovem extremamente conectado com o seu tempo. Se, para Marcel
Proust, as preocupações se centralizavam nos campos de batalha da
primeira guerra mundial e para Holden Caulfield eram resultantes do
artificialismo perfeccionista da burguesia americana em ascensão logo
após a segunda guerra mundial; para Harry Potter, os conflitos residem
na instabilidade de um mundo globalizado pela economia e pelos discursos
politicamente corretos e inclusivos, mas re-territorializado em dois novos
universos: o real e o virtual (ou o território dos “trouxas” e o dos
“bruxos”), nos quais ele circula como uma figura híbrida ou mutante,
lutando contra a ameaça de uma guerra sempre iminente, a ser
deflagrada por um Mal resistente e impreciso, gradualmente corporalizado
na figura “daquele cujo nome não se pronuncia” – a própria morte,
fronteira última e definitiva vedada ao conhecimento humano.

Indubitavelmente, o que há de mais expressivo no romance de formação


é a relação obra/leitor. No decorrer do século XX, The catcher in the rye
foi referido e mencionado em diferentes áreas da produção artística
mundial. Apesar de ter sido censurado nos EUA por mais de vinte anos, foi
adotado como literatura obrigatória em diversas escolas européias. O anti-
herói Holden Caufield é um jovem da classe média de Nova York, que tem
família equilibrada financeira e emocionalmente, é cercado de amor e
atenção, freqüenta ambientes culturalmente estimulantes e as melhores
escolas particulares do país, e ainda dispõe de tempo ocioso suficiente
para divagações existencialistas. Com mais de 55 milhões de cópias
vendidas e inúmeras traduções, a obra conquistou a devoção de várias
gerações de leitores ao longo do século XX em todo o mundo, uma
constatação que se torna ainda mais interessante quando se percebe que
The catcher in the rye – frustrando todas as expectativas – revela-se
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como a antítese do conto de fadas americano: apesar de sua ingenuidade


e espontaneidade, Holden não acredita na família, não se ajusta à escola,
não se adapta à sociedade e apresenta sérias reservas para com Deus,
tornando-se assim o mais enigmático outsider da rara literatura
especificamente destinada à faixa etária adolescente, justamente por
rebelar-se interiormente, sem uma causa aparente, contra os modelos
padronizados da família e das instituições de ensino e religiosas
propagados pelo “American Way of Life” dos anos 50 nos Estados Unidos.
Assim, The catcher in the rye é, até os dias de hoje, um dos romances
modernos com maior apelo midiático jamais publicados. O tom satírico, o
cinismo ingênuo e a honestidade de um grande mentiroso moldaram toda
uma geração de jovens leitores e espectadores a partir da década de 50.

Outro fenômeno literário ainda mais instigante, com mais de 350 milhões
de cópias vendidas em todo o planeta no espaço de uma única década, e
convertido no produto multimídiático mais diversificado e multifacetado de
que se tem notícia até hoje, a série Harry Potter dispensa apresentações.
A saga de sete livros narra o período da adolescência do protagonista no
ambiente familiar e escolar, numa realidade fluida de contínuas migrações
do universo real para o virtual, descrito como um mundo de magia e de
possibilidades interditas ao ser humano comum: o “trouxa”, entendido
como uma versão prévia e “hard” deste ser “pós-humano” e “soft” que se
anuncia nos choques contínuos com a parafernália digital e na
promiscuidade com a tecnologia que marcam a experiência do jovem na
atualidade. Ao contrário de Holden Caulfield, a quem nada aparentemente
falta, as experiências de constantes e dolorosas perdas e privações
materiais e emocionais de Harry Potter assinalam uma guinada na
concepção da família e da escola no mundo pós-moderno. Neo-
conservador sob todos os aspectos essenciais, o jovem pós-moderno é
retratado como um ser aparentemente frágil mas verdadeiramente
heróico, de quem se exige uma coragem sobre-humana e uma autonomia
jamais cobradas antes a essa faixa etária. Daí o significado da orfandade
desde o nascimento, da rejeição dos parentes e das repetidas mortes dos
substitutos eventuais no papel de orientadores e guias, como o padrasto e
o diretor da Escola Hogwarts, todos desaparecidos antes mesmo de
consolidado o processo de amadurecimento do personagem.

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O romance de formação do século XXI, ao que parece, surge para


reconstruir, ou tentar reconfigurar o que o do século XX teria trabalhado
para demolir. Harry anseia por se enquadrar e por ter referências sólidas
num mundo excessivamente liberal, mas nem por isso menos ameaçador.
Curiosamente, apesar de estar na contramão da maioria dos personagens
adolescentes, em geral rebeldes e contestadores da ordem nos romances
de formação tradicionais, seu impacto no público jovem deste século foi
provavelmente maior e mais expressivo do que os demais livros do gênero
em seus respectivos contextos, em termos de produção e de resposta dos
leitores. Assim como é gritante a oposição entre Harry e Holden, a autora
J.K Rowling também se apresenta como o oposto de J.D. Salinger. Além
do mérito de haver conseguido reacender o hábito pela leitura da palavra
não ilustrada ao longo de sete bem sucedidos romances (traduzidos para
a maioria dos idiomas) de mais de 500 páginas, destinados ao público
adolescente (jovens de onze a dezessete anos) – ainda desassistido
mesmo em tempos da avalanche editorial na área da literatura “infantil” –
, a autora britânica, desde o início, permitiu a utilização de seu universo
ficcional por outras mídias, do cinema ao videogame, de brinquedos a
artigos de vestuário, de parques de diversão temáticos à parafernália das
festas infantis.

Neste contexto, e em consonância com a temática da própria série, a


Internet tornou-se, inegavelmente, a maior aliada do sucesso potteriano,
pois viabilizou a criação de todo um sistema literário paralelo e virtual,
simulacro do sistema real, no qual comunidades de fãs da saga se reúnem
voluntariamente para “ler de maneira produtiva”, o que significa ler,
comentar, criticar, escrever, traduzir e recriar intensiva e
diversificadamente as histórias e os personagens da trama. Através do
Fandom (domínio de fãs), e de forma totalmente espontânea, anônima e
gratuita, os jovens leitores formaram uma poderosa rede de produção
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cultural ainda inexplorada do ponto de vista acadêmico, uma vez que a


Academia, sistematicamente, repudia o fenômeno como “massificado e
menor”. Indiferentes a isso, os jovens leitores escrevem histórias,
produzem vídeos e músicas, pintam e desenham inspirados no universo
de Harry Potter. Este mundo mágico tem obtido um surpreendente
sucesso exatamente onde a escola, muitas vezes, tem falhado,
conseguindo estimular poderosamente a leitura, a produção textual e a
criatividade em geral entre crianças e adolescentes. Não obstante as
diferenças ideológicas quase paradoxais entre Holden Caufield e Harry
Potter, ambas as obras causaram grande repercussão no público jovem,
influenciando e estimulando a livre produção cultural do final do século XX
e do início do XXI.

(Fonte: CRUZ, Rafaela. Projeto de Iniciação Científica, UFPE, 2009.


Orientação: Profª Drª Ermelinda Maria Araújo Ferreira)

3º PERÍODO (Século XVIII - Atualidade)

Por fim, o terceiro período estudado por Ariès é caracterizado pela consolidação do conceito de
infância. O autor destaca que, nesta fase, a criança começa a ocupar o lugar central na família
devido à sua ligação com a figura dos anjos, que são tidos como seres puros e divinos. Os retratos
são particularmente representativos desse gosto burguês: mas o realismo de seus modelos afasta-
os da trilogia proposta por Ariès para o segundo período por ele analisado: o anjo adolescente, o
menino Jesus e a criança nua. Esta última, contudo, perdura na sua nudez decorativa até a foto de
arte dos álbuns de família do século XX. Desde os séculos XV e XVI, uma iconografia laica e
burguesa da infância substitui assim, progressivamente, a iconografia religiosa, investindo nas
representações estáticas de personagens e cenas de gênero. A multiplicação de retratos de
crianças sozinhas (sem a presença de seus ascendentes na tela) constitui a verdadeira evolução
própria dos séculos XVII e XVIII; o caráter efêmero e transitório desse período da vida humana
torna-se um dos temas favoritos dos artistas à cata de novidades. É também no século XVII que os
retratos de família tendem a se organizar em torno da criança, que se torna o centro da
composição. O pintor barroco conta com ela para dar ao retrato de grupo o dinamismo que lhe
faltava. Ainda no século XVII, a cena de gênero reservará à infância um lugar privilegiado.

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A criança e o jovem, nas imagens idealizadas ou nos retratos


realistas, passam a ser, a partir do século XVIII na Europa, o
centro das atenções da arte, sendo mostradas sozinhas e
associadas a valores sublimes: beleza, pureza, perfeição.

Diego Velázquez. As meninas. Nesta famosa obra, o pintor espanhol


ilustra bem o deslocamento do foco de atenção dos adultos para a
criança. A infanta Margarita domina a cena, tornando-se o centro para
onde convergem todos os olhares. Já os pais, apesar de reis, aparecem
refletidos num espelho embaçado ao fundo, e embora estejam
supostamente sendo retratados pelo pintor em cena, já não são vistos,
uma vez que o quadro em primeiro plano encontra-se de costas para o
espectador.

A profunda mudança que se operou na Idade Moderna no modo de encarar a infância deve-se a
alguns fatores. A constituição da família burguesa talvez seja o principal deles, revelando o
surgimento de uma nova lógica nos relacionamentos familiares, agora voltados para o
fortalecimento dos laços afetivos, onde as crianças tornam-se alvo das preocupações dos adultos
envolvidos na sua criação e diretamente responsabilizados pelo seu encaminhamento no mundo.
Com a industrialização, o modo de sobrevivência também muda radicalmente. A vida no campo é
substituída pela vida urbana e a subsistência deixa de ser agrícola, passando a demandar cada vez
mais uma habilitação profissional especializada, o que também condiciona a busca por uma
educação adequada para os jovens, voltada para os novos mercados de trabalho, a fim de atender
ao crescente perfil consumista da sociedade moderna. Deste cenário, emerge um novo paradigma,

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que tem como pressuposto um ideal humano empreendedor e autônomo. O progresso da medicina
e da psicologia contribuem decisivamente para a redefinição moderna da infância. Se até o século
XVIII a criança era percebida e tratada como “um adulto em miniatura”, a partir daí ela passa a ser
percebida como um ser especifico, com um modo único de ver a realidade; e como um futuro
cidadão, cujos talentos devem ser cultivados, cujo comportamento deve ser moldado e cujos
direitos devem ser reconhecidos. Aparecem, então, as primeiras leis voltadas para a infância.
Surgem também os estabelecimentos, os bens e os mais diversos serviços a ela dedicados. Pode-
se dizer, então, que o nascimento da infância como a conhecemos hoje coincidiu com o nascimento
do mundo moderno.

Doris Lee. Uma cozinha movimentada (1935). A pintura retrata


uma família burguesa em plena agitação de preparo da festa de
Ação de Graças. As crianças são atendidas e cuidadas, usam
roupas e móveis adequados ao seu tamanho e necessidades, e
parecem felizes e acolhidas num caloroso ambiente doméstico. Se
compararmos esta imagem com a do quadro abaixo poderemos ter
uma ideia da mudança ocorrida na percepção social da infância
com a passagem dos séculos. Na festa medieval, os adultos
comem e se divertem, enquanto em primeiro plano aparece uma
criança sozinha, mal vestida, usando uma boina grande demais
para a sua
cabeça, e
lambendo
um prato vazio, sem que ninguém lhe dê a menor
atenção. Um rápido olhar para estas imagens é suficiente
para nos dar uma noção das mudanças operadas na
sociedade com relação à percepção da singularidade da
faixa etária conhecida como “infância” ao longo das eras.

Bruegel, o Velho. Banquete de casamento camponês


(1550).

Mas não podemos esquecer que as concepções modernas da infância e de sua educação,
escondidas atrás dos rostos felizes dos retratos e outras cenas de gênero, ocultam muitas vezes
uma realidade talvez mais brutal do que a vigente na Idade Média. As novas condições econômicas
e sociais geradas pela Revolução Industrial tiveram impactos na organização familiar,
principalmente por meio do trabalho das mulheres e das crianças menos abastadas. Para

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complementar a renda do chefe de família, muitas eram empregadas 14 horas por dia em
trabalhos pesados. As conseqüências dessas longas ausências sobre a educação são inevitáveis.
Elas incitam outro filantropo, Daniel Legrand (1783-1859), precursor das leis internacionais sobre
os direitos da criança, a fazer votar, em 1841, uma lei que restringe o emprego de crianças nas
fábricas.

A luta para "salvaguardar a infância" continua até o fim do século XIX, como mostra a diatribe de
Pauline Kergomard (1838-1925), fundadora da escola maternal francesa, contra a negligência, o
desprezo, a indigência intelectual e material que é o fado dos filhos das classes trabalhadoras. Com
indignação, ela comenta: “sob o pretexto de que, durante toda a sua vida, o homem é exposto ao
padecimento físico, às provações, aos dissabores, estão quase a ponto de inventar sofrimentos
físicos, provações, dissabores para a criança... Levar esse sistema a suas últimas conseqüências
exigiria uma coisa: matá-las primeiro, sob pretexto de que acabarão morrendo um dia.”.

A literatura realista, na passagem do século XIX para o século XX, mostrou muitas vezes as contradições das
propaladas mudanças na concepção social da infância, retratando a realidade de muitas crianças alijadas dos
direitos que começavam a ser discutidos como inalienáveis desta faixa etária. A obra do escritor inglês Charles
Dickens é emblemática a esse respeito, por ter sido escrita na Inglaterra em plena Revolução Industrial.
Londres tinha mais de um milhão e meio de habitantes, devido à explosão demográfica e a um êxodo rural que
expulsava os camponeses de suas terras. A indústria
têxtil serviu de emprego para estes espoliados. O
trabalho infantil tornou-se uma das características mais
pungentes da economia inglesa. Dickens aflorará estes
problemas, é certo, mas conquistará o público burguês
porque não se assumirá nunca como um revolucionário.
As suas personagens, quando melhoram de vida, devem
essa melhoria a acasos e circunstâncias, mais que à sua
luta pela justiça social. Por outro lado, a população
anglófona é a mais alfabetizada do mundo. Por isso,
Dickens terá um público potencial muito alargado, não só
na Grã-Bretanha como além do Atlântico. Romances
como Oliver Twist, David Copperfield, Nicholas Nicleby e
A pequena Dorrit oferecem eloquentes retratos literários
da cena social nos primórdios da era moderna.

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1.2 Da fábula ao conto de fadas: breve história


das origens da literatura infanto-juvenil
A célula máter da literatura infanto-juvenil, hoje conhecida como “clássica”, encontra-se na
Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia. Descobriu-se que desde essa época a
palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia
proteger e construir, como ameaçar e destruir. São também de caráter mágico ou fantasioso as
narrativas conhecidas, hoje, como “literatura primordial”. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das
narrativas orientais, que se forjaram durante séculos antes de Cristo, e se difundiram por todo o
mundo através da tradição oral.

Nas primeiras idades do mundo, os homens não escreviam. Conservavam suas lembranças na
tradição oral. Onde a memória falhava, entrava a imaginação para supri-la e a imaginação era o
que povoava de seres o seu mundo. Todas as formas expressivas nasceram, certamente, a partir
do momento em que o homem sentiu necessidade de procurar uma explicação qualquer para os
fatos que aconteciam a seu redor: os sucessos de sua luta contra a natureza, os animais e as
inclemências do meio ambiente, uma espécie de exorcismo para espantar os espíritos do mal e
trazer para sua vida os atos dos espíritos do bem. A lenda, em especial as mitológicas, constitui o
resumo do assombro e do temor do homem diante do mundo e uma explicação necessária das
coisas. A lenda, assim, não é mais do que o pensamento infantil da humanidade, em sua primeira
etapa, refletindo o drama humano ante o cenário que o cerca, e no qual atuam os astros e as
intempéries, forças da natureza ocultas ao seu entendimento.

A lenda, do latim legenda/legen (ler) é uma antiga forma de narrativa cujo argumento advém da
transmissão oral, e em cujos relatos de acontecimentos o maravilhoso e o imaginário superam o
histórico e o verdadeiro. Geralmente, a lenda está marcada por um profundo sentimento de
fatalidade. Este sentimento é importante, porque fixa a presença do Destino, aquilo contra o que
não se pode lutar e sob cujo poder o homem precisa se curvar. De origem anônima, a lenda é
transmitida e conservada pela tradição oral.

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Já a fábula, do latim fari (falar) e do grego Phao (contar algo), é uma forma narrativa de natureza
simbólica que representa situações humanas em geral transpostas para personagens alegóricos,
como os animais, e que alude a situações da vida com o objetivo de transmitir um ensinamento
moral. Nascida no Oriente, será reinventada no Ocidente pelo grego Esopo (séc. VI a.C.) e
aperfeiçoada, séculos mais tarde, pelo escravo romano Fedro que a enriqueceu estilisticamente.
Supõe-se que Fedro tenha vivido no século I d.C., filho de escravos, mas liberto. Inspirou-se nas
histórias de Esopo, acrescentando algumas melhorias. Entretanto, somente no século X as fábulas
latinas de Fedro começaram a ser difundidas.

Jean de la Fontaine (1621-1695), o mais conhecido fabulista moderno, nasceu na França e


conquistou a celebridade através de suas histórias. Passou praticamente toda a sua vida como
hóspede de personagens ilustres (duques e condes) que o admiravam. Apesar de La Fontaine
contar histórias de outros mestres, ele também as escrevia, e preferia utilizar o verso do que a
prosa. Para ele, os animais simbolizavam os homens, suas manias e seus defeitos. A ele coube o
mérito de dar a forma definitiva a uma das espécies literárias mais resistentes ao desgaste dos
tempos: a fábula, introduzindo-a definitivamente na literatura ocidental. Embora escrevendo para
adultos, La Fontaine tem sido leitura obrigatória para crianças de todo mundo. Não há quem
desconheça histórias como “A cigarra e a formiga”, “O lobo e o cordeiro”, “O leão e o rato”, “A
lebre e a tartaruga”, “A leiteira”, entre tantas outras. Para quem as inventa, a fábula é um jogo de
raciocínio. Um jogo ágil e lógico, cujo resultado é um ensinamento.

A literatura infanto-juvenil apareceu no século XVII, época em que as mudanças na estrutura da


sociedade desencadearam repercussões no âmbito artístico, que persistem até os dias atuais. Este
gênero tem características próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo
“status” concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola. Sua emergência deveu-
se, antes de tudo, à sua associação com a Pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se
converterem em instrumento didático.

É a partir do século XVIII que a criança passa a ser considerada um ser diferente do adulto, com
necessidades e características próprias, pelo que deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e
receber uma educação especial, que a preparasse para a vida adulta. O caminho para a
redescoberta da literatura infanto-juvenil, em nosso século, foi aberto pela Psicologia Experimental
que, revelando a inteligência como um elemento estruturador do universo que cada indivíduo

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constrói dentro de si, chama a atenção para os diferentes estágios de seu desenvolvimento (da
infância à adolescência) e sua importância fundamental para a evolução e formação da
personalidade do futuro adulto. Segundo as pesquisas na área, a sucessão das fases evolutivas da
inteligência (ou estruturas mentais) seria constante e igual para todos. As idades correspondentes
a cada uma delas, no entanto, poderiam mudar, dependendo da criança e do meio em que ela
vive.

O conto de fadas tem sua origem na França de Luís XIV, mas vai adquirir sua pujança através de
Charles Perrault (1628-1703), advogado e superintendente do rei, que foi o primeiro autor a
escrever especialmente para as crianças. Perrault transformou inúmeros contos do folclore popular
em histórias infantis, ajustando seus enredos ao gosto e aos propósitos da classe aristocrática; na
época, a corte francesa. Os mais conhecidos são: “A Bela Adormecida”, “O Barba Azul”, “O
pequeno Polegar”, “O Gato de Botas”. Ao aposentar-se, em 1697, Perrault publicou suas Histoires
ou contes du temps passé – As estórias de Mamãe Ganso – reunindo a sua produção. Ficou por
isso conhecido como o “Pai dos contos de fadas”.

Os irmãos alemães Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm vieram a seguir. Após a
morte dos pais, os irmãos Grimm começaram a viajar muito a trabalho e a ouvir muitas histórias
do povo: antigas narrativas, lendas ou sagas germânicas, que recolheram e adaptaram para as
crianças. Ao contrário de Perrault, que se dirigia ao nobre público da corte em defesa de rígidos
valores morais, as histórias de Grimm, buscando resgatar as origens da realidade histórica
germânica, amenizam os enredos populares e recriam a linguagem da oralidade, conferindo-lhe um
aspecto mais fantasioso, simbólico e mítico, garantindo a consolidação da literatura infanto-juvenil
como um grande gênero literário. Suas histórias mais famosas são: “Cinderela”, “Rapunzel” e
“Branca de Neve e os Sete Anões”.

Outro autor de destaque no gênero do conto de fadas é Hans Christian Andersen (1805-1875), que
nasceu na Dinamarca, proveniente de uma família sem posses. Escreveu cerca de 156 contos,
traduzidos em mais de cem idiomas, como “A Roupa Nova do Imperador”, “O Patinho Feio” e a
“Pequena Sereia”. Célebre poeta e novelista, Andersen nasceu no mesmo ano em que Napoleão
Bonaparte obteve suas primeiras vitórias decisivas. Assim, desde menino, vai respirar a atmosfera
de exaltação nacionalista. A Dinamarca também se entrega à descoberta dos valores ancestrais,
não com o espírito de auto-afirmação política, mas no sentido étnico, de revelar o caráter da raça,

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tal como fizeram os Irmãos Grimm. Andersen foi um escritor que se preocupou, essencialmente,
com a sensibilidade exaltada pelo Romantismo

Quem lê “Cinderela” não imagina que há registros de que essa história já era contada na China,
durante o século IX d. C. E, assim como tantas outras, tem-se perpetuado há milênios,
atravessando toda a força e a perenidade do folclore dos povos, sobretudo através da tradição oral.
Pode-se dizer que os contos de fadas, na versão literária, atualizam ou reinterpretam, em suas
variantes questões universais, como os conflitos do poder e a formação dos valores, misturando
realidade e fantasia, no clima do “Era uma vez...”. Por lidarem com conteúdos da sabedoria
popular – e, portanto, com conteúdos essenciais da condição humana, é que esses contos de fadas
são importantes, perpetuando-se até hoje. Neles encontramos representados sentimentos
universais, como o amor, o medo, a dificuldades de crescer, a fome e as carências (materiais e
afetivas), as auto-descobertas, as perdas, as buscas, a solidão e o encontro.

Os contos de fadas caracterizam-se, ainda, pelo acréscimo, às narrativas populares e folclóricas, de


um elemento fundamental: a “fada”. Etimologicamente, a palavra fada vem do latim fatum
(destino, fatalidade, oráculo). Tornaram-se conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, de
grande beleza, que se apresentam sob forma de mulher. Dotadas de virtudes e poderes
sobrenaturais, interferem na vida dos homens, para auxiliá-los em situações-limite, quando já
nenhuma solução natural seria possível. Podem, ainda, encarnar o Mal e se apresentarem como o
avesso da imagem anterior, isto é, como bruxas. Vulgarmente, se diz que fada e bruxa são formas
simbólicas da eterna dualidade da mulher, ou da condição feminina. O enredo básico dos contos de
fadas expressa os obstáculos, ou provas da vida que precisam ser vencidas, como um verdadeiro
ritual iniciático, para que o herói alcance sua auto-realização existencial, seja pelo encontro de seu
verdadeiro “eu”, seja pelo encontro da princesa que encarna o ideal a ser alcançado.

(Fonte de pesquisa: http://denizze.sites.uol.com.br/)

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2. Paradigmas tradicionais e modernos da


literatura infanto-juvenil

2.1 A “lição” de Clarice Lispector

OS DESASTRES DE SOFIA

Para dar início à nossa discussão sobre a concepção tradicional e a concepção atual de literatura
infanto-juvenil, começaremos por analisar um conto de Clarice Lispector que aborda a questão com
muita sensibilidade: “Os desastres de Sofia”, publicado no livro Felicidade Clandestina, de 1971.
Logo em seu título, o conto nos remete a uma obra clássica dos primórdios da literatura infanto-
juvenil: Os desastres de Sofia, da Condessa de Ségur, grande sucesso na França e no Brasil até
meados do século XX. A alusão não é gratuita. Muitos elementos deste livro são de importância
fulcral para a autora. O nome da menina, por exemplo, que significa “sabedoria”, entra em choque
com a sua atuação dita “desastrosa” no mundo, narrada sob a forma de episódios nos quais a
efabulação conduz a uma inevitável “moral da história”, de cunho fortemente religioso e repressor.
Expressa por um adulto - em geral a mãe, que ocupa o lugar da educadora –, esses ensinamentos
direcionam-se sempre ao julgamento e à condenação dos atos da criança, desfiando os itens de
uma cartilha de normas sobre a formação de uma “menina exemplar”. As meninas exemplares é,
aliás, o título do segundo volume da “edificante” série desta autora, um gênero que durante
décadas foi considerado de eleição para a leitura do público infantil. Neste livro, reforça-se o
contraste do comportamento de duas irmãs “perfeitas”, Camila e Madalena, e da “pobre Sofia”,
agora órfã de mãe, que após um breve período de castigos e sofrimentos atrozes com a madrasta,
passa a viver com uma nova família, a fim de continuar o seu aprendizado para a vida.

Numa pedagogia que se pretende moderna e menos repressora, a Condessa sublima a agressão
física, descrevendo técnicas variadas de tortura psicológica para refrear os impulsos indesejados
das crianças. Os livros deixam clara a noção de treinamento: a literatura infantil deveria ser um
aliado importante na árdua tarefa da família e da escola de criar o adulto ideal, obedecendo a

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parâmetros pré-estabelecidos. Assim, o leitor da obra da Condessa de Ségur poderá acompanhar a


transformação da alegre e irreverente Sofia, uma menina interessante e curiosa, cheia de vida e de
ideias, numa pálida versão de si mesma, irreconhecível na criaturinha tímida e oprimida, silenciosa
e submissa que aparece, em papel exemplarmente secundário, no terceiro volume da série, As
férias.

No livro resgatado por Clarice, portanto, a pequena Sofia tem inacreditáveis três anos de idade
para a severidade do exercício de doutrinamento ao qual é submetida, e que deve ter atingido a
jovem leitora Clarice de perto, pois menciona questões que lhe são pessoalmente caras. Como a
vaidade da menina, por exemplo. Num dos episódios que começa, como os demais, definindo o
“pecado” de Sofia que se vai procurar corrigir – “Sofia era vaidosinha. Gostava de estar sempre
bem arrumada e de que a achassem bonita. No entanto, ela não era bonita.” -, a Condessa narra a
admiração de Sofia pelos cabelos cacheados, um tópico importantíssimo para a menina Clarice,
cujos cabelos irremediavelmente lisos causavam-lhe tristeza. Como diz no conto “Os desastres de
Sofia”: “Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre
cambaios, humilhada por não ser uma flor, e sobretudo, torturada por uma infância enorme que eu
temia nunca chegar a um fim – sacudia com altivez a minha única riqueza: os cabelos escorridos
que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que por conta do futuro eu já
exercitava sacudindo-os”.

No livro da Condessa, a condenação de Sofia por haver molhado os cabelos na chuva para
encrespá-los vem sob a forma de um castigo humilhante. A mãe a expõe, deliberadamente, ao riso
e às pilhérias dos outros, obrigando-a a comparecer ao jantar toda suja e molhada. O resultado é
sempre definido numa frase de arremate, onde a Condessa resume o sucesso do seu método
educacional: “Desde esse dia Sofia nunca mais se expôs à chuva para encrespar o cabelo”. Em
outros episódios: “Nunca mais procurou fazer nada para ficar com sobrancelhas bonitas”; “Nunca
mais foi aonde não devia ir”; “Nunca mais disse o que não devia dizer”; “Nunca mais fez o que não
devia fazer”. Assistimos, assim, à paulatina destruição da auto-estima da criança, à amputação do
seu intelecto, ao cerceamento da sua criatividade e ao encaminhamento de sua história para um
fim previsível e insípido, onde a “sabedoria” impressa no nome da menina é associada à mera
habilidade de repetir as regras ditadas, obedecendo-as para corresponder às expectativas dos
adultos.
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Em seu estudo Literatura infantil – teoria, análise, didática, Nelly Novaes Coelho discute a radical
mudança dos valores tradicionais da sociedade, ocorrida no século XX, e determina quais os
principais aspectos temáticos e formais que diferenciam as literaturas destinadas ao público
infanto-juvenil de ontem e de hoje. No quadro abaixo transcrito, ela oferece um resumo das
características dos dois paradigmas de representação da criança vigentes nas obras para e/ou
sobre a infância, que podem ser úteis para analisarmos os seus princípios nas autoras aqui
consideradas:

PARADIGMA TRADICIONAL NOVO PARADIGMA

Espírito individualista Espírito solidário

Obediência absoluta à autoridade Questionamento da autoridade

Sistema social fundado na valorização do ter Sistema social fundado na valorização do


e do parecer, acima do ser fazer como manifestação autêntica do ser

Moral dogmática Moral da responsabilidade ética

Sociedade sexófoba Sociedade sexófila

Reverência pelo passado Redescoberta e reinvenção do passado

Concepção de vida fundada na visão cósmica, Concepção de vida fundada na visão


transcendental da condição humana existencial e mutante da condição humana

Racionalismo Intuicionismo fenomenológico

Racismo Anti-racismo

A criança: adulto em miniatura A criança: ser em formação

Fonte: Nelly Novaes Coelho. Literatura Infantil – teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000, p.
19. Sobre o mesmo assunto, ver o capítulo “A literatura infantil: um objeto novo”, da mesma autora, no
livro Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis, 2000.

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Essa dicotomia de valores aparece de maneira evidente quando contrastamos a Sofia da Condessa
e a “Sofia” de Clarice. Sofia também era curiosa – explica a Condessa num outro episódio,
intitulado “Os peixinhos”, no qual, sem querer, e imitando a cozinheira, a menina salga e pica os
peixinhos do aquário, sem perceber que os estava matando. Esse episódio terá sido de tal maneira
marcante para Clarice que ela o retoma numa narrativa expressamente dirigida às crianças,
intitulada: A mulher que matou os peixes. A relação das crianças com os animais é muito
importante para a autora, sobretudo com os bichos de estimação, e são diversas as vezes em que
menciona os efeitos desastrosos não da violência, mas do amor humano sobre os seres indefesos.
O que, de certa forma, funciona como metáfora do tratamento dado pelos adultos às crianças
indefesas. Salgamos e cortamos os “peixinhos do aquário”, cheios de boas e nobres intenções, sem
perceber que os estamos matando. Esmagamos os “pintinhos” nas mãos, por apertá-los demais,
cheios de tanto encantamento e afeição, sem perceber que os estamos sufocando. E assim por
diante.

Essa é, portanto, a temática do conto “Os desastres de Sofia”, que focaliza o ambiente escolar; ao
contrário da Condessa, que se centra no ambiente familiar, talvez porque as meninas, à época em
que foi escrito o livro, não freqüentassem as escolas. A menina Clarice é mais velha que Sofia, tem
nove anos. Como Sofia, ela também trava uma disputa com um adulto, não a mulher e mãe, mas
um homem e professor. E como Sofia, também sai derrotada, mas por razões diferentes. Enquanto
a Condessa derrota a criança com o seu modelo de adulto perfeito e ideal, Clarice mostra como o
seu esboço de criança imperfeita e rebelde acaba triunfando sobre o adulto falho e incompetente
que ela tenta corrigir, para que ele a ensine a contento. Sua vitória é experimentada, portanto,
como uma derrota: descobrindo-se mais forte do que o adulto, a criança sente-se desamparada e
aterrorizada num mundo sem regras e sem certezas.

A ação pedagógica da Condessa obedece a uma esmagadora verticalidade e unilateralidade: do


alto, a mãe rotula a criança e escreve o roteiro correto para a sua vida. Nada aprende com Sofia,
porque nada tem a aprender. Já a ação pedagógica de Clarice opera na horizontal e nos dois
sentidos: tanto a criança como o adulto, nivelados num desconhecimento mútuo, aprendem com
os choques do convívio e se surpreendem com a descoberta um do outro. A relação entre eles é
descrita como uma relação de amor, com todos os percalços, asperezas e delicadezas a que essa

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relação obriga, o que não se percebe na fria e quase indiferente relação de Sofia com a mãe,
sempre muito distante e inacessível.

A relação professor-aluno é um tema de predileção, e mesmo recorrente na obra de Clarice


Lispector, desde o seu primeiro romance Perto do coração selvagem. Neste conto, a relação da
menina Clarice com o professor é intensa. Começa como um desafio de sua parte, que gera um
aborrecimento da parte dele. As provocações da criança vão aumentando, e a irritação do homem
vai ficando maior e mais forte, como num jogo de sedução erótica sem envolvimento sexual. Como
diz Clarice: “Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que
tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um
homem forte de ombros tão curvos”. A menina Clarice também tem a sua sophia: “sem saber que
obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os ruins já nascem, eu estava sendo
a prostituta e ele o santo”.

A crítica ao sistema educacional que diviniza um dos pólos do aprendizado e demoniza o outro é
tão forte que a própria Clarice recua: “Não, talvez nem seja isso. As palavras me antecedem e
ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas
serão ditas sem eu as ter dito.” Mas a dicotomia está estabelecida nesses termos. O “santo”
professor e a menina “prostituta”, disposta a vender o seu amor por uma promessa de aceitação,
ainda que precisando pagar por isso o alto preço já pago pela Sofia da Condessa: a perda de si
mesma. Para ser amada, a menina Clarice – como todas as crianças em geral, “ávidas matérias de
Deus” –, pujante de afeto em estado bruto, estava disposta a se entregar inteiramente, e nesta
entrega se perder para sempre. Ela aguardava, com esperança e total confiança, entrar no mundo
dos adultos, no qual pensava poder se libertar de suas angústias e medos infantis. Daí a revolta
contra o professor, um homem cujas fraquezas eram por demais evidentes: “Qualquer que tivesse
sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e passara pesadamente a
ensinar no curso primário”. Daí também a atração por ele, como se intuísse que precisava arrancar
a sua máscara para revelar o desconhecido que ali se ocultava, a fim de que ele lhe revelasse a
verdade que seria a derrota de sua própria ilusão.

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Não há neste conto, como nos outros, referências explícitas às ruas do Recife, mas ao sobrado
onde Clarice morou na Praça Maciel Pinheiro. Do colégio também não há referências, exceto
algumas descrições da ampla e arborizada área do recreio, mas sabe-se que a autora estudou na
escola pública João Barbalho e freqüentou o Ginásio Pernambucano em Recife. A referência ao
sobrado aparece como uma ruptura na evolução temporal da narrativa. A autora interrompe o
relato e salta quatro anos à frente da história, mostrando a menina Clarice já aos treze anos, “toda
composta e bonitinha como um cromo de Natal”, desmoronando “como uma boneca partida” ao
receber a notícia da morte do professor. Após esse ligeiro flash, que mostra a importância do
professor na vida da menina, e conseqüentemente a importância do aparentemente banal episódio
que se vai narrar, o conto atinge o seu clímax, que também se relaciona, como em Felicidade
Clandestina, com uma revelação de ordem literária. Essa revelação é feita através de um longo
diálogo, tecido de maneira muito similar à técnica cinematográfica do slow-motion ou câmara
lenta, no qual se assiste ao desmoronamento das máscaras dos personagens. Assim, uma
inesperada criança aparece sob a máscara do professor e uma inesperada mestra aparece sob a
máscara da criança.

A revelação do aprendizado é profunda. Descrita como um verdadeiro e desentranhado parto, com


vísceras expostas e tudo, o homem se percebe, com imprevista alegria, como aprendiz e liberto, e
a menina se descobre, com surpresa e pavor, como mestra e libertadora. Os papéis tradicionais da
relação educador-educando se invertem, já não mais relacionados ao mero repasse/recepção de
informações, que seriam esperados na relação convencional, e os indivíduos envolvidos mergulham
numa radical descoberta de si mesmos.

Tudo se passa em torno de uma redação. O professor solicita à classe que reescreva “com suas
próprias palavras” uma dessas histórias de cunho edificante, que ele acaba de ler em voz alta, na
qual um homem, após buscar um tesouro em terras estrangeiras, consegue ficar rico no próprio
quintal, através do seu trabalho. A moral da história, portanto, recaía na clássica conclusão de que
o trabalho árduo era o único meio de se chegar a ter fortuna.

Para desafiar o professor, como de hábito, a menina escreve a sua composição invertendo
deliberadamente o final da história: “Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu
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exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que
arbitrariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometera por
escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a
que eu aspirava. Eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por
nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros todos os
deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão”.

De que maneira aquilo atingiu o professor infeliz, “monte de compacta tristeza” que trabalhava por
obrigação, com indisfarçável aborrecimento, e que ocultava um passado misterioso, não se pode
saber. Mas certamente atingiu-o, a ponto de ele, que jamais se alegrava e jamais se dirigia a ela,
falar-lhe com atenção e carinho, e esboçar o sorriso mais sacrificado que Clarice jamais terá visto
na vida, tal é a maneira como o descreve: “E bem devagar vi o professor todo inteiro, vi que era
muito grande e muito feio, e que ele era o homem da minha vida. Aquilo que eu via era anônimo
como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara –
o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, era a careta vagarosamente hesitando
e quebrando uma crosta – mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa
ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei.
(...) Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou,
pérola arrancada da barriga aberta – que estava sorrindo”.

O processo inverso acontece com a menina, que, afogueada pela corrida e sorridente pelo hábito,
diante da transformação do professor sente-se recuar e colar-se à parede, enquanto seu corpo
inteiro vai-se reduzindo, como o do gato da história de Alice no país das maravilhas, a um sorriso
sem rosto. Acompanhamos lentamente o seu processo de desaparecimento enquanto criança: o
riso despreocupado e confiante amarelando-se, artificial; uma gota de suor escorrendo lentamente
pela testa e pelo nariz até dividi-lo ao meio, e finalmente o seu completo desaparecimento numa
desusada, inusitada e madura seriedade.

A transformação atinge a ambos com inesperada violência. Enquanto a menina, num insight
precoce, percebe a sua missão no mundo como escritora – “Mas se antes eu já havia descoberto
em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida – só naquele instante de
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mel e flores descobri de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu curaria quem sofresse
de mim” -, o professor se revela desamparadamente feliz “como um menino que dorme com os
sapatos novos”. Um tremendo bem havia feito a composição de Clarice àquele homem, sem que
ela desse por isso ou tencionasse fazê-lo. Era à revelia de si mesma que suas palavras atingiam os
outros e os transformavam, e a consciência desse poder advindo de um estranho talento conduz a
menina à terrível conclusão: “Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro”.

A revelação para ela é tão forte que terá crises de vômito em casa. O que o professor lhe ensinava,
sem querer, era sério demais para ser apreendido com tranqüilidade pelos seus nove esperançosos
anos. A partir daí passava a saber que não haveria segurança mais adiante, porque não havia uma
verdade interditada, na posse da qual sairia confiante pelo mundo dos adultos – ilusão que a escola
e a literatura infantil edificante se compraziam em reforçar: “Na minha impureza eu havia
depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade
futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem
de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E
tudo isso o professor agora destruía, e destruía o meu amor por ele e por mim”.

Ao lado dessa revelação, há outra relacionada com a sua profissão. A literatura seria para ela uma
penitência, o exercício de um apostolado onde se faria amada para curar os que sofrem. Curar com
as belas mentiras da invenção, avançando lentamente para perceber que, muitas vezes, essas
mentiras são mais verdadeiras do que as verdades do senso-comum. O professor terá sido, talvez,
o seu primeiro contato com o efeito dessa sua irreverente escritura, nascente no mundo; daí a sua
importância para a menina e a importância desse episódio, tão longamente rememorado, para a
autora.

No final do conto, Clarice parodia a clássica história infantil de Chapeuzinho Vermelho – também
permeada de erotismo e admoestação às jovens sobre os perigos relacionados ao crescimento –,
mas descreve os seres humanos, indistintamente, como feras, feras que se interrogam assustadas.
Na sua narrativa destituída de maniqueísmos já não há a menina ingênua e o lobo malvado,
apenas duas feras numa relação de ódio e amor – cujas longas unhas tanto servem “para arranhar
de morte” como para “arrancar espinhos mortais”; cuja boca de fome tanto serve para “morder”
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como para “soprar”; cujas mãos “ardem” e “prendem”. O caçador e o lobo, a santa e a prostituta
convivem em cada homem e em cada mulher, em todas as suas idades ao longo da vida. Na
conclusão do Chapeuzinho Vermelho de Clarice, portanto, as duas feras olham intimidadas para as
suas próprias garras, “antes de se aconchegarem uma à outra para amar e dormir”.

No conto “Os desastres de Sofia”, Clarice se reporta à infância para falar, com extrema
sensibilidade, da sua descoberta como escritora, homenageando com carinho o mestre, que só
atuou como tal quando procedeu como aprendiz, fazendo-a perceber o poder das palavras: o de
suavizar a dor de quem não ama, no sentido erótico e esotérico que confere ao termo. Escrever
como Clarice, invertendo a moral das histórias, é um duro ato de amor, porque pode libertar, fazer
desmoronar, desentranhar o ser que se esconde sob as máscaras impostas pela sociedade e
reforçadas por todos os sistemas pedagógicos do mundo, e isso não se faz sem medo e sem
sofrimento. No pátio da escola, cercada pelos desenhos gravados a canivete nas cascas das
árvores pelos namoradinhos, a menina Clarice descobre que, se o papel de Eros é fincar a flecha do
ilusório amor nos corações humanos, o papel da Rosa será o inverso: arrancar amorosamente, dos
humanos corações, a flecha farpada – e sem nojo do grito.

FELICIDADE CLANDESTINA

O amor aos livros é traduzido no conto de Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, incluído numa
coletânea que leva o mesmo nome. Trata-se de um título sugestivo, que homenageia o Pai da
literatura infanto-juvenil brasileira de maneira entusiástica: através da paixão de uma menina (que
se supõe ser a própria Clarice) pelo primeiro volume da série d’O Sítio do Picapau Amarelo: As
Reinações de Narizinho. Provavelmente não foi casual a alusão a esta obra por Clarice, uma vez
que ela centraliza a ação numa menina de sete anos – Lúcia, a “Narizinho” -, órfã como ela,
Clarice, e que é criada pela avó. A famosa Emília ainda aparece como boneca de pano, muda, que
só ganhará voz e destaque ao longo do tempo. Os principais episódios de abertura da série
dialogam com a temática clássica dos contos de fadas dirigidos sobretudo às meninas: a espera do
príncipe encantado, que levará ao inevitável “final feliz” desse gênero de história: o casamento. Os
principais eventos do livro de Lobato, portanto, são dois casamentos “arranjados”: o de Narizinho
com o “Príncipe Escamado”, rei do maravilhoso Reino das Águas Claras, situado no ribeirãozinho do
sítio; e o de Emília com o porco do quintal, o célebre “Marquês de Rabicó”. A fina ironia de Lobato

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com relação aos temas ligados à mulher sugere com irreverência às suas pequenas leitoras
atitudes de independência e liberdade.

O senso crítico com que Lobato relê os textos dedicados à infância, não deve, certamente, ter
escapado à percepção de Clarice. Um dos príncipes “encantados” aparece “escamado”, o outro é
emporcalhado e indigno sequer da alcunha de “marquês”. Após o casamento, as meninas
abandonam os “maridos” e seguem suas vidas. Emília cogita em “divórcio” ao longo da série, numa
época em que o divórcio era proibido no Brasil, razão pela qual os livros de Lobato chegaram a ser
queimados e proibidos nos colégios católicos para moças. A busca da verdade para além da
convenção é uma constante na narrativa infantil de Lobato, e a marca de sua originalidade e
pioneirismo na reformulação do gênero e na redefinição da imagem da criança na sociedade
moderna, até então “esculpida” pelos textos moralistas, perpassados pelas noções de culpa e de
castigo.

O enredo de Clarice é muito simples. Uma menina deseja ler o livro de Lobato, sensualmente
descrito como “um livro grosso, meu Deus, para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-
o”. O livro pertence a uma colega, cujo pai é dono de uma livraria. Essa garota tiraniza a
amiguinha longamente, criando uma expectativa nunca satisfeita de empréstimo, e estabelecendo
uma relação cruel de dependência que só terminará quando sua mãe descobrir o fato e entregar o
livro à menina desesperada, que todos os dias “batia à sua porta, exausta, ao vento das ruas de
Recife”. Desde o início, porém, o relato ressalta as características físicas das meninas, valorizando
o estereótipo da “bonitinha, esguia, altinha, loura e de cabelos livres”, que provocava a inveja da
“gorda, baixa, sardenta e de cabelos crespos”, que se vingava impondo à outra o suplício da
esperança. A rivalidade que se estabelece entre ambas aproxima-se, assim, de uma disputa pelo
ser amado, objeto do amor real de uma, e da simples posse interesseira de outra, que culmina
com a revelação da alegoria, quando da descrição da “felicidade clandestina” da criança que obtém
o objeto amado: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”.

A descrição do amor para Clarice Lispector ultrapassa o convencional. O amor em sua obra é quase
sempre visto como um instrumento de elevação espiritual, uma gestação iniciática, um ritual de
passagem de um estágio de compreensão para outro mais sutil e delicado. Não é algo que se dirige
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a outro, ou que exige do outro alguma coisa. É algo que o outro provoca, mas que se desenvolve e
é vivenciado em si. Suas personagens experimentam as aflições e as delícias do amor em muitos
estágios da vida e sob formas diversas: o amor pode acontecer, com ou sem carga erótica, entre
seres da mesma espécie, de qualquer idade; entre seres de espécies diferentes; e mesmo entre
uma pessoa e um objeto, como no caso deste conto. Por ser um livro, objeto muito específico, o
amor neste conto reifica a importância da atividade literária como objeto de amor para a autora,
no sentido mais profundo da palavra – como razão de viver, atividade missionária, rendição feliz,
doação, às vezes até mesmo maldição. Por haver identificado o livro, o amor ultrapassa a
referência ao objeto e atinge o seu conteúdo, o seu criador. Quando Clarice Lispector, tornada
criança, abraça apaixonadamente o livro de Monteiro Lobato, é como se expressasse o gesto
desejado para todas as demais crianças: o de se tornarem, como ela, leitoras daquelas idéias; às
quais, em suma, ela abraça com indisfarçável emoção. A felicidade de encontrar um interlocutor
para os seus sentimentos mais profundos torna-se um amor clandestino, que se comunica num
clandestino intercâmbio de palavras, e acaba se confessando, secretamente, nas entrelinhas de sua
história.

Também “filha de Lobato”, Clarice Lispector deixou uma pequena e significativa obra literária para
crianças, centrada nos animais que ela tanto amava.: A vida íntima de Laura, O coelho pensante, A
mulher que matou os peixes, Quase de verdade e Como nascem as estrelas.

(Fonte: FERREIRA. Ermelinda Maria Araújo. Clandestina felicidade. Infância e renascimento na obra
de Clarice Lispector, in: Revista Cerrados. Brasília, n. 24, ano 16, 2007, pp. 73-95.)

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2.2 A “lição” de Osman Lins

O DIABO NA NOITE DE NATAL

Escrever sobre crianças foi para Osman Lins um processo quase sempre sofrido e angustiado,
perpassado por uma culpa atroz e sem alívio. Não há em seus contos e romances muitas crianças
felizes, e o convívio constante, ameaçador e pouco natural dessa fase tão tenra da vida com a
realidade crua e final da morte infunde às suas narrativas um sentimento de desesperança, quando
não de desespero. Se a figura do menino na literatura funciona em geral
como uma metáfora de renovação, a figura do menino morto, freqüente
na obra osmaniana, avoluma-se como um topos negativo, um lugar
mórbido do qual o autor não consegue ou não deseja se libertar.

Não surpreende, pois, que nas duas vezes em que se dirigiu a outras
crianças que não àquela amargurada que conservava em seu coração, o
tenha feito a pedido das próprias crianças. O pequeno texto “Exercício
de Imaginação”, sobre dois personagens imaginários, a Pastomenila e o
Bonagásaro, que lhe foi solicitado pela filha de um amigo, Luiza Helena Lauretti, e o pequeno conto
“O diabo na noite de Natal”, que escreveu para atender ao pedido da própria filha Letícia, quando
criança, são talvez os únicos exemplares desse tímido ensaio osmaniano no campo da literatura
infantil.

Tímido, mas não menos significativo. Sobre o primeiro, tivemos a oportunidade de comentar
anteriormente no ensaio “A dama e o unicórnio: exercícios de imaginação” (FERREIRA, 2004),
mostrando a importância deste texto para a discussão sobre a gênese plástica da narrativa
osmaniana. Construído a partir da ilustração de um caderno de escola, e publicado com outros
exercícios do gênero no livro Lições de casa (LINS, 1979), uma coletânea sugerida por ele, o texto
antecipa muitas de suas experimentações com a palavra, que ele levaria a cabo em seus
romances. O segundo, O diabo na noite de Natal (LINS, 1977), publicado em 1977, embora escrito
muitos anos antes, é um texto mais bem acabado, onde os dois temas recorrentes de sua obra, o
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da mãe e o do menino morto, têm a oportunidade de se reunir, simbolicamente, na sugestão


oferecida pela ocasião das festas natalinas. É até mesmo possível que Osman Lins tenha
encontrado neste pedido de sua filha uma oportunidade de redimir o seu amargurado menino
interior, escrevendo alegremente, e pela primeira vez, para as suas três meninas, Litânia, Letícia e
Ângela, às quais dedica a obra, estendendo posteriormente a dedicatória aos netos que chegavam,
Alexandre e a “nova” Joana Carolina.

Concebido inicialmente como peça de teatro , o conto “O diabo na noite de Natal” narra como
Nossa Senhora e o menino Jesus aparecem, disfarçados, numa excêntrica festa de Natal, para
salvar um grupo de amigos da presença indesejada do diabo. O próprio título já incomoda, pois o
“diabo” não é exatamente um personagem que se espera encontrar num conto natalino, sobretudo
dirigido ao público infantil, e o próprio Osman Lins atenta para este fato no prefácio que escreve
para a peça .

1ª NOTA

O conto foi inicialmente concebido como peça teatral, com o título “Capa
Verde e o Natal - peça infantil em 2 atos”, premiada em 1967 no
“Concurso Narizinho” instituído pelo Conselho Estadual de Cultura e a
Comissão Estadual de Teatro de São Paulo, e publicada em 1967 no
segundo volume da coleção organizada pela CET, dentro de uma política
de estímulo ao setor da dramaturgia infanto-juvenil. Diz Nagib Elchmer,
diretor do CET, em texto que acompanha a publicação: “O Concurso
Narizinho nasceu da necessidade de se estimular uma dramaturgia
pedagogicamente acertada, tirando dos espetáculos dirigidos à infância a
irresponsabilidade de encenações sem o mínimo cuidado quanto à
mensagem – quando havia – como quanto à forma do comportamento
diante do Bem e do Mal. É para a CET sumamente significativo que o
segundo volume da coleção seja de autoria de Osman Lins. Ele, como nós,
também vem lutando para levar a cultura às ponderações maiores do
poder público.”

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2ª NOTA

Diz Osman Lins em prefácio para esta peça, contido na edição de 1967:
“Quis povoar esta peça com personagens que, de algum modo,
encantaram a minha infância e a daquelas três espectadoras a quem
dedico o presente trabalho. São personagens brasileiros ou universais; e
em nenhuma circunstância devem ser admitidos, na montagem, nem
mesmo como simples figurantes, entidades folclóricas estranhas à nossa
formação, tais como gnomos, guelfos, etc. Para que o espetáculo alcance
todo seu rendimento, será indispensável a participação do Pastoril,
folguedo popular do Nordeste, altamente alegre e poético. Admite-se
todavia, excepcionalmente, a sua ausência. Para facilitar esta última
opção, as falas que seriam distribuídas entre algumas figuras do Pastoril
ficam limitadas à Diana e à Pastora, personagens neutras, sem nenhum
esboço de caratês e que apenas falam pelo Grupo de Pastoras, participe
este ou não da montagem. Outras indicações a respeito das duas soluções
possíveis constam do texto. Será o Diabo, aqui, um personagem terrífico?
Talvez... Mais do que isto, porém, é ridículo em sua jactância; e as
ameaças que espalha a torto e a direito dissolvem-se no vento. Há, na
peça, algumas expressões que parecem irreverentes. Fazem parte do
colorido geral e são absorvidas pelo enredo, pouco a pouco dominado
pelas figuras da Mulher e do Menino, cuja poderosa brandura acaba por
vencer a prepotência do Capa-Verde, que não passa, afinal, de um pobre
diabo como tantos outros. Este, é certo, não encantou nem encanta a
infância de ninguém. Mas o que seria dos encantamentos, se nada os
ameaçasse?”.

Apesar deste imprevisível personagem, a história como um todo pode ser considerada uma
homenagem explícita a Monteiro Lobato, pois é concebida como uma paráfrase ou recriação de um
capítulo bastante conhecido das Reinações de Narizinho, intitulado “Cara de coruja” (MONTEIRO
LOBATO, 1971), o que nos permitiria incluir Osman Lins na lista dos inúmeros “Filhos de Lobato”,

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título do livro em que José Whitaker Penteado (1977) – num dos raros trabalhos brasileiros de
pesquisa empírica de leitura – investiga a presença da obra lobatiana na memória de seus leitores.

Escrito entre 1927 e 1929 em Nova Iorque, este capítulo apresenta muitas inovações, entre as
quais se destaca uma verdadeira promiscuidade intertextual ocorrendo num cenário de
carnavalização. O carnaval de Lobato põe em prática as estratégias de celebração e
desmoronamento dos gêneros, discutidas por Bakhtin quando da aplicação do termo aos estudos
literários, misturando personagens de histórias clássicas e modernas, provenientes não apenas da
literatura, mas também do cinema de animação, com o qual Lobato se encontrava absolutamente
encantado na época.

Embora não fale em carnaval, a história narra uma inusitada festa, como as muitas que ocorrem ao
longo deste livro, organizada por iniciativa das crianças. A idéia é reunir às figuras lobatianas de D.
Benta, Tia Nastácia, Pedrinho, Narizinho, Emília e o Visconde, os protagonistas de histórias infantis
mais queridos de todos os tempos e lugares, na grande e generosa praça pública que é o Sítio do
Picapau Amarelo. Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, o Pequeno Polegar, as princesas Cinderela,
Branca de Neve e a Bela Adormecida, o Barba Azul, o Soldadinho de Chumbo, o Gato de Botas,
Peter Pan, Alice no País das Maravilhas, Sherazade, Aladim da Lâmpada Maravilhosa, Sindbad, o
marujo, Ali Babá e os quarenta ladrões, Teseu e o Minotauro, o Saci Pererê, a Cuca e o Gato Félix,
criaturas arrancadas de lugares tão imprevisíveis como o universo das fábulas européias de Esopo,
La Fontaine, Perrault, Grimm e Andersen, os modernos livros ingleses para crianças, as histórias
das Mil e uma noites orientais, a Mitologia greco-romana, as lendas populares brasileiras e os
desenhos de Walt Disney para o cinema, chegam ao lugar agregador, apaziguador e ecumênico por
excelência que é o texto lobatiano, onde o futuro e o passado, a realidade e a ficção expressas em
vários idiomas provenientes de culturas, raças e credos os mais diversos reúnem-se para tomar o
café e comer os bolinhos de Tia Nastácia.

Inspirado por esta proposta altamente vanguardista de entrelugar físico, social e cultural criada por
Monteiro Lobato ainda nos primórdios do século XX, Osman Lins também sugere, para as suas
crianças, uma festa especial onde o sagrado natalino funde-se ao profano carnavalesco. Osman
Lins gostava de fazer referências à temática litúrgica cristã da morte e do renascimento. Além da
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referência ao Natal neste conto infantil, escreveu também um conto intitulado “Domingo de
Páscoa”, no qual aparece uma menina, uma “negrinha”. É possível que o Natal, como a Páscoa, por
serem datas simbólicas de cunho positivo, aludissem ao nascimento, ou ao renascimento desejado
pelo autor para aquele menino morto tão presente em seu coração. No entanto, a religiosidade
osmaniana é certamente o aspecto que faz o conto do escritor pernambucano entrar em choque
com as histórias do escritor paulista.

Monteiro Lobato evitava francamente o tema da religião em sua obra infantil. No Sítio do Picapau
Amarelo não há lugar para práticas religiosas ou alusões à fé, exceto, esporadicamente, alusões
pitorescas, como a menção a São Jorge, que aparece em aventuras com o dragão na lua, em
Viagem ao céu, concebido muito mais como lenda popular; ou ao “anjinho da asa quebrada”, que é
capturado por Emília na sua viagem à Via Láctea, no mesmo livro, e descrito como uma deliciosa
curiosidade e um símbolo pagão da inocência, mais parecido com um pequeno Eros da mitologia
grega ou com os anjinhos decorativos das igrejas barrocas do que com as imagens dos severos
anjos anunciadores da Bíblia.

As histórias de Lobato, embora profundamente éticas, escapam, portanto, ao sentido pedagógico


do moralismo religioso cristão, revelando os princípios do humanismo científico que professava o
autor. Já Osman Lins não abdica de sua formação religiosa, embora questione alguns princípios da
Igreja Católica e pareça buscar um credo mais ecumênico através da citação constante a outras
filosofias e crenças, sobretudo orientais, e à astrologia, à quiromancia, à numerologia, à
cartomancia, práticas adivinhatórias absolutamente inconcebíveis para o pragmático Monteiro
Lobato. Daí a atmosfera mística e espiritual que envolve a obra osmaniana, e que também se
reflete nesta pequena fábula infantil, provocando um forte estranhamento no contraste que
estabelece com a filosofia lobatiana.

O espaço convocado para a história de Osman Lins, contudo, parece ser o próprio Sítio do Picapau
Amarelo, já que a festa é organizada por uma “boneca falante” chamada “Lúcia”, verdadeiro nome
de Narizinho, que convida para a sua comemoração de Natal os mais diversos personagens do
universo infantil. Apesar desta referência explícita, o primeiro convidado a chegar, o Capitão
Gancho, que vem acompanhado de Chapeuzinho Vermelho, entra em choque com a anfitriã ao
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identificar o espaço do encontro como um “albergue”: “hospedaria, mas também lugar onde se
recolhe alguém por caridade”. Lúcia, indignada, diz que se trata de uma “casa de família”.

Apesar da temática natalina, aqui também assistimos a uma concepção carnavalizadora da festa,
através de uma promiscuidade de gêneros, épocas e lugares semelhante à da história de Lobato,
embora com atores diferentes, pois, como o escritor anuncia, serão convidados os personagens “de
sua predileção”, alguns coincidentes com os de Lobato, outros não. Fazem parte da biblioteca
infantil de Osman Lins, além dos clássicos de La Fontaine, Perrault, Grimm, Andersen e do próprio
Monteiro Lobato, personagens do folclore brasileiro, como o gaúcho Negrinho do Pastoreio, citado
por Lobato; mas também o “Amarelinho”, cantado em versos nos folhetos de cordel, e as
Pastorinhas, personagens do Pastoril, folguedo popular natalino comum no norte e nordeste do
país, não mencionados pelo escritor paulista em seus livros. Osman Lins convoca ainda a figura de
Mangaba, um Palhaço, lembrando o lugar significativo que o circo ocupa em sua obra. Quanto aos
estrangeiros, Osman Lins prefere o Capitão Gancho a Peter Pan, menino que fascinava Lobato; e
dentre as figuras do cinema americano prefere o Super-Homem ao Gato Félix, para ridicularizá-lo;
e Carlitos, para exaltá-lo, numa aparição que homenageia Charles Chaplin ao lado do menino de
seu filme mais pungente, O garoto.

Já os personagens religiosos são transfigurados em personagens literários. O diabo, que não foi
convidado para a festa, aparece ao lado do dragão, e exerce a função tradicional do lobo ou da
bruxa, caricaturas do Mal comuns ao repertório maniqueísta dos contos infantis. Na história de
Lobato, a festa também é ameaçada por convidados indesejados, primeiro o Barba Azul, assassino
das esposas, que é expulso pelo “Pé-de-Vento” da Emília; e finalmente o Lobo da história de
Chapeuzinho Vermelho, que é expulso a vassouradas por Tia Nastácia. As mulheres assumem a
defesa da festa, na ausência dos heróis masculinos, Pedrinho e os Príncipes, que “minutos antes
haviam saído para o terreiro”.

Na história de Osman Lins, o Mal aparece como um “sujeito de chifres com bengalinha na mão” e
tem muitos nomes: o Não-sei-que-diga, o Fute, o Maleva, o Belzebu, o Satanás, o Cão do Segundo
Livro, o Tinhoso, o Canhoto. Anuncia que está ali para dar uma “lição de moral” no grupo, em
represália ao fato de não haver recebido convite, um expediente comum aos contos de fadas, como
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a história da bruxa que lança uma maldição sobre a criança recém-nascida, por não haver sido
convidada para o batizado.

Nossa Senhora também aparece de surpresa na festa, acompanhada do filho: “A Mulher, que era
linda, trazia um longo vestido azul, de algodão”. É uma mulher suave, mas também corajosa, e
não se espanta com a bravura do filho, que acaba se revelando o verdadeiro herói da história:
“Não temos medo de feras”, diz ela. Já a descrição do Menino Jesus confunde-se com a do Pequeno
Príncipe, de Saint-Exupéry: “A Criança, num macacão pardo, lourinha, calçava sapatos roxos e
trazia, ao pescoço, um cachecol amarelo.”

Na história de Lobato, a festa tem como propósito exibir a insurreição dos personagens dos contos
de fadas, ou Contos da Carochinha, do universo de seus enredos. Liderados pelo Pequeno Polegar,
inúmeras figuras da fantasia estrangeira invadem o Sítio do Picapau Amarelo trazendo para perto
das crianças brasileiras toda a sua magia milenar com um sabor peculiar de atualização e de
ambientalização, que fazia parte da proposta educativa revolucionária do autor. Sem abdicar das
histórias tradicionais, Lobato faz seus personagens dialogarem com essas figuras clássicas,
discutindo pontos duvidosos e passagens incongruentes de suas histórias, atualizando seus
enredos face às expectativas do público infantil brasileiro da época, misturando-as umas às outras
e fazendo-as valorizar as histórias do Sítio no mesmo patamar, reconhecendo para sua obra um
lugar de destaque na tradição da literatura infantil universal.

Ciente deste projeto, Osman Lins o homenageia em seu conto, recuperando o espírito intertextual
e modernizador de Lobato, mas inserindo na sua festa um propósito moralizador, mais ao estilo
das fábulas ortodoxas do que da ideologia vigente no Sítio. O enredo é simples, e mistura
referências de várias origens: o diabo, revoltado por não poder participar da festa natalina, faz
uma ameaça aos personagens. Ou eles se decidem, até a meia-noite, entre o fogo do inferno ou as
chamas do dragão, ou o próprio diabo e o dragão se encarregarão da tarefa de condená-los.

Em meio às divertidas intervenções do palhaço e de Carlitos, e às cômicas demonstrações de


vergonhosa covardia do Super-Homem e do Capitão Gancho, surge a solução através da

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encomenda trazida num cofre pelas pastorinhas, num encontro com São Francisco. O cofre contém
a semente da Rosa Azul, que se alimenta de “juramentos quebrados”. O dragão deseja essa rosa
acima de tudo, para controlar a mulher, que “jura” fazer todo o serviço doméstico na sua ausência,
mas não cumpre o juramento, inventando desculpas para a sua preguiça.

Analisar a questão feminina na ótica de Monteiro Lobato e de Osman Lins seria tema para uma
tese. É verdade que, como estuda Karina Klinke em “Um faz-de-conta das meninas de Lobato”
(2001), o escritor paulista reproduz, nas histórias de Reinações de Narizinho, um dos sonhos
cultivados pelas “meninas” da história, Narizinho e Emília, que reproduz, por sua vez, o das
meninas de sua época e o das princesas dos contos de fadas: o casamento com um príncipe
encantado. Também é importante ressaltar que os “meninos” da história, Pedrinho e o Visconde,
jamais sonham em casar. Preferem ser aventureiros ou cientistas.

Apesar disso, em Reinações de Narizinho, a instituição do casamento é freqüentemente


apresentada sob um enfoque crítico, através do qual o divórcio – inexistente no Brasil na época em
que os livros foram publicados – é apresentado como socialmente aceitável e até necessário.
Assim, desgostosa do marido “porco” (Rabicó) e da imposição de sua “mãe” Narizinho, Emília se
divorcia e passa a cobiçar abertamente outros pretendentes mais interessantes, atentando sempre
para questões práticas, como a posição social e financeira que ocupam, e para as vantagens que
poderia obter com um novo casamento. Na festa à qual me refiro, Emília fica seduzida pelo
Pequeno Polegar, e contrariando as suas regras, oferece a ele o único presente que jamais deu a
alguém em sua vida, o pito de Tia Nastácia, ficando depois a lamentar para sempre aquele impulso
de generosidade.

Em sua obra “adulta”, povoada de fortes personagens femininas, Osman Lins revela uma posição
extremamente sensível na captação da alma, dos desejos e do discurso da mulher. Muitas vezes,
porém, essa posição “literária” entra em choque com uma posição ideológica incompatível, que
revela a presença concomitante, em seus textos, de uma voz masculina autoritária e impositiva,
real ou imaginária, que se comporta como o “dragão” de sua história infantil. O dragão exige,
portanto, a roseira florida, para melhor controlar a mulher em casa, e isso dá ensejo a uma
divertida disputa entre o diabo e os convidados da festa, que o desafiam a fazer juramentos,
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antecipando que, por sua própria natureza, os quebraria, contribuindo assim para o florescimento
da roseira.

A história termina com a simbólica e vitoriosa luta do Menino Jesus, vulgo Pequeno Príncipe, contra
o Mal, ou o diabo, restituindo assim a alegria à festa natalina. Ele e a mãe deixam a casa de Lúcia
após o evento, pois o Menino precisava estar presente às Missas do Galo, “e em todo lugar onde
houver um coração amedrontado, ou alguém precisando de auxílio e de esperanças”.

(Fonte: FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo. Osman Lins e a Literatura Infantil, in: Revista Outra
Travessia. Arte e literatura: Osman Lins, oitenta anos. Santa Catarina, n. 4, 2005, pp. 69-84)

2.3 O “caso” Chapeuzinho Vermelho

2.3.1 O clássico de Perrault e dos irmãos Grimm

Ilustração da primeira edição de Chapeuzinho Vermelho de Charles Perrault

Dentre a imensa variedade dos clássicos contos de fadas, nenhum será


talvez mais famoso no mundo do que “Chapeuzinho Vermelho”. Sua
origem é remota e imprecisa. Uma das primeiras versões impressas é
assinada por Perrault, e parece, segundo os críticos, constituir um alerta
à conduta das jovens donzelas da corte, para as quais a virgindade era
um valor vital, socialmente demandado como pré-requisito para o
contrato do matrimônio, única opção de subsistência e reconhecimento
social reservada às mulheres da época. A primeira ilustração que acompanha a publicação deste
conto no séc. XVII nada tem de infantil nem de sublimada: uma moça é atacada em seu leito por
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um “lobo” muito humanizado. Não por acaso, na França, quando uma moça perdia a virgindade,
dizia-se “elle avoit vû le loup” – “ela viu o lobo”, mostrando a repercussão dessa história no
imaginário cultural e até mesmo linguístico. Em seu “lobo”, Perrault constrói um retrato social de
denúncia de um tipo freqüente na corte francesa, o jovem sedutor, que, valendo-se da ingenuidade
das mocinhas bem criadas, insinuava-se nos melhores leitos e deflorava-as, destruindo muitas
vezes suas vidas e as de muitas famílias aristocráticas.

Em seu livro Psicanálise dos contos de fadas, Bruno Bettelheim amplia a questão das motivações
históricas que subjazem às origens dos contos de fadas, mostrando a importância psicológica da
leitura deste gênero narrativo na formação das crianças de todos os tempos. Surgido numa época
em que os contos de fadas pareciam desprezados e banidos sob a alegação de irreais e muitas
vezes selvagens, em vista de suas tramas altamente dramáticas, este livro realiza um estudo que
resgata, a partir da desmitificação moderna de noções românticas sobre a “inocência” infantil, a
importância dos contos de fadas, que voltaram a ser lidos e discutidos justamente por descreverem
um mundo pleno de experiências e amor, mas também de ameaças, medo, destruição e
ambivalências. A psicanálise provou que os pais modernos temiam que, ao serem identificados com
bruxas e monstros, ogros e madrastas, os filhos deixassem de amá-los. Mas na verdade, como
mostra o psicólogo em sua obra, a leitura desses contos ajuda a criança a compreender a realidade
como ela se apresenta, e que quase nunca é tão tranqüila como se idealiza. A identificação da
criança com as figuras e situações ambíguas e problemáticas das histórias pode resultar, segundo
o autor, numa diminuição da agressividade infantil, permitindo que a afetividade familiar possa fluir
de maneira mais sadia. Os contos, assim, contribuiriam para um melhor relacionamento em casa,
desmanchando as fontes de pressão e conflitos que, noutras circunstâncias, seriam direcionadas
aos pais.

Para Bettelheim, a maior contribuição dos contos de fadas é emocional, na medida em que eles se
propõem e realizam concretamente quatro objetivos: 1. desenvolvem a capacidade de fantasia
infantil; 2. fornecem os escapes necessários falando aos medos internos das crianças, às suas
ansiedades e ódios (seja sobre a rejeição parental, como em “João e Maria”; seja sobre os conflitos
edípicos com a mãe, como em “Branca de Neve”; seja sobre a rivalidade entre irmãos, como em
“Cinderela”); 3. aliviam as pressões e tensões emocionais exercidas por esses problemas; e 4.
favorecem a recuperação, incutindo coragem na criança, mostrando que é sempre possível
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encontrar saídas para os problemas, e consolando-as. Para o autor, os “finais felizes” que tantos
pais consideram irreais e falsos constituem a grande contribuição dos contos de fadas às crianças,
encorajando-as à luta por valores amadurecidos e a uma crença positiva na vida.

A versão de “Chapeuzinho Vermelho” dos Irmãos Grimm já não apresenta as claras alusões de
Perrault ao perigo social de perda da virgindade enfrentado pelas donzelas da corte francesa do
séc. XVII, mas não deixa de evocar uma angústia que é comum a todas as meninas no início da
puberdade, em qualquer tempo ou lugar: o receio de ter que lidar com as violentas transformações
físicas que converterão seu corpo de criança num corpo de mulher, além da sensação aflitiva de
enfrentar situações tão assustadoras quanto o “lobo” da história: seja ele a imagem do apelo
sedutor do sexo; seja a sua própria imagem ao espelho, um reflexo de seu espírito atravessado por
estímulos e sensações até então desconhecidos, e que causam estranhamento à criança nesta fase
de transição.

Ilustração de Gustave Doré para Chapeuzinho Vermelho, dos


Irmãos Grimm. O desenho dos personagens é abrandado, as
figuras são adoravelmente infantis e parecem muito menos
ameaçadoras do que na ilustração do conto de Perrault. No
entanto, não há como negar que a menininha está deitada
numa cama ao lado do lobo, e que seu olhar para ele não é de
medo, é de extrema curiosidade, talvez até de atração – um
sentimento diferente do que teria se de fato ele fosse um bicho
assustador ou se fosse a vovó na qual ele se disfarça. Na
imagem original, a menina está inclusive ruborizada, sugerindo
um sentimento de vergonha, inconcebível se o personagem em
questão fosse realmente o que a história diz ser: um lobo. As
motivações inconscientes e arquetípicas que são acionadas nas
leituras dos contos de fadas pelas crianças permitem muitas vezes a reelaboração de seus sentimentos mais
íntimos e contribuem para a solução de conflitos que, muitas vezes, as crianças não conseguem verbalizar.

     
Ilustração de Rui de Oliveira para a edição brasileira de Chapeuzinho
Vermelho e outros contos por imagens, adaptação de Luciana Sandroni
e prefácio da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. De todas as versões
disponíveis para o público brasileiro, esta é a que mais se aproxima do
original de Perrault e de suas motivações, sem a atenuação proposta
pelos irmãos Grimm e pelo ilustrador Doré. A história é visualmente
narrada com crueza, tal como surgiu, como a alegoria do perigo da
perda da virgindade para o público feminino da corte francesa do séc.
XVII. À parte seu valor histórico e de resgate, e seu inegável valor
artístico, essa interpretação talvez se comunique menos com o público
infanto-juvenil brasileiro do que as versões mais atualizadas propostas
por Chico Buarque e Guimarães Rosa.
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LEITURA COMPLEMENTAR

Análise de Bruno Bettelheim do conto “Chapeuzinho Vermelho”

“Chapeuzinho Vermelho é na realidade uma criança que já luta com


problemas pubertais, para os quais ainda não está preparada
emocionalmente, pois ainda não dominou os problemas edípicos.
Chapeuzinho deseja descobrir as coisas, como indica a advertência
materna para que não vá pela floresta. Ela observa que algo está errado
quando encontra a avó parecendo muito estranha, mas que se confunde
com o disfarce do lobo nas roupas da avó. Chapeuzinho está tentando
entender, quando pergunta à avó sobre suas orelhas grandes, quando
observa os olhos grandes e questiona as mãos enormes e a boca horrível.
Aqui temos uma enumeração dos quatro sentidos: audição, visão, tato e
paladar que a criança púbere usa para compreender o mundo.
“Chapeuzinho Vermelho”, de forma simbólica projeta a menina nos
perigos do conflito edípico durante a puberdade, e depois salva-a deles,
para que ela possa amadurecer livre de conflitos. As figuras maternais, a
mãe e a bruxa, que eram tão importantes em outras histórias como “João
e Maria” são insignificantes em Chapeuzinho, onde nem a mãe nem a avó
podem fazer nada – nem ameaçar nem proteger. O macho, em contraste,
é de importância capital, dividido em duas figuras opostas: a do sedutor
perigoso que, se cedermos a ele, se transforma no destruidor da avó boa
e da menina; e a do caçador, a figura paterna responsável, forte e
salvadora. É como se Chapeuzinho tentasse entender a natureza
contraditória do homem vivenciando todos os aspectos da personalidade
dele: as tendências egoístas, associais, violentas e potencialmente
destrutivas do id (o lobo), e as propensões altruístas, sociais, reflexivas e
protetoras do ego (o caçador). Chapeuzinho é amada universalmente
porque, embora virtuosa, sofre a tentação; e porque sua sorte nos diz que

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confiar nas boas intenções de todos, que nos parecem tão bons, na
realidade deixa-nos sujeitos a armadilhas. Se não houvesse algo em nós
que aprecia o lobo mau, ele não teria poder sobre nós. Por conseguinte, é
importante entender sua natureza, mas ainda mais importante é aprender
o que a torna atraente para nós. Por mais atraente que seja a
ingenuidade, é perigoso permanecer ingênuo toda a vida.

Em “Chapeuzinho Vermelho”, tanto no título como no nome da menina,


enfatiza-se a cor vermelha, que ela usa declaradamente. O vermelho é a
cor que significa as emoções violentas, incluindo as sexuais. O capuz de
veludo vermelho que a avó dá para Chapeuzinho pode então ser encarado
como o símbolo de uma transferência prematura da atração sexual, que,
além disso, é acentuada pelo fato de a avó estar velha demais até para
abrir a porta. O nome indica a importância capital desta característica e
cor na estória. Ele sugere que não só o chapeuzinho vermelho é pequeno,
mas também a menina. Ela é demasiado pequena, não para usar um
chapéu, mas para lidar com o que ele simboliza e com o que o uso dele
atrai. O perigo para Chapeuzinho é a sua sexualidade em botão, para a
qual ela não está ainda emocionalmente madura. Pessoas
psicologicamente preparadas para as experiências sexuais podem dominá-
las e crescer com isto. Mas uma sexualidade prematura é uma experiência
regressiva, despertando tudo que ainda é primitivo dentro de nós e que
ameaça nos engolir. “Chapeuzinho Vermelho” fala de paixões humanas,
voracidade oral, agressão e desejos sexuais pubertais. Opõe a oralidade
educada da criança em maturação (levar os doces a vovó) à sua forma
canibalística primária (o lobo que engole a menina e a avó). Com sua
violência, incluindo a que salva as duas mulheres e destrói o lobo quando
o caçador abre a barriga do animal e coloca pedras dentro, o conto de
fadas não mostra o mundo cor de rosa. A estória termina quando todas as
figuras fazem o que é devido: o lobo tenta escapar e cai morto, o caçador
tira a pele do lobo e a leva para casa, a avó come o que Chapeuzinho
trouxe, e a menina apreende a sua lição. Não existe uma conspiração de

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adultos para forçar o herói a emendar-se como exige a sociedade – um


processo que nega o valor da autodireção interna. Em vez dos outros
fazerem as coisas por ela, a experiência de Chapeuzinho leva-a a
modificar-se, já que pormete a si própria “nunca mais sair do caminho
para entrar na floresta”...”

(Fonte: BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 203).

Diz Ítalo Calvino (em Por que ler os clássicos) que um clássico “é um livro que nunca acaba aquilo
que tinha para dizer”. Isto significa que a riqueza simbólica da história nele narrada é tamanha que
vai se ajustando às mudanças dos horizontes de expectativas dos diferentes lugares e tempos por
onde ele passa. Assim acontece com o conto de fadas “Chapeuzinho Vermelho”. Transposto para o
novo mundo e para uma nova era, ele continua a ser lido, relido e sobretudo “deslido”. A desleitura
é um fenômeno de revisionismo ideológico e cultural, que busca dialogar com as obras do passado
inoculando em seus contextos discussões sobre as novas perspectivas que vão se apresentando ao
homem. Muitos textos modernos dedicados às crianças caracterizam-se pela releitura dos clássicos
infantis, parodiando-os ou recriando-os, mostrando que nenhuma obra nasce a partir do nada, e
que nenhuma obra se esgota enquanto continua a responder às perguntas e aos desafios que lhe
propõem as novas eras.

No Brasil, “Chapeuzinho Vermelho” ganhou versões ilustres e atualizadas na pena de autores


importantes como Chico Buarque de Holanda e Guimarães Rosa. Essas recriações brincam com o
recurso semiótico da cor para indicar a natureza de suas paródias: em vez do vermelho, usam o
amarelo e o verde, respectivamente, em seus títulos. O vermelho, que no conto original significa
um alerta contra a sedução erótica da menina pelo lobo, transforma-se no amarelo, metáfora do
medo infantil em geral, no conto de Chico Buarque – intitulado “Chapeuzinho Amarelo”; e no
verde, metáfora da juventude, que Guimarães Rosa utiliza para falar de um medo mais filosófico,
presente na menina que vê a sua velha avó morrendo em “Fita verde no cabelo”. Como mostram
os exemplos das belíssimas ilustrações destes livros aqui reproduzidas, a imagem numa obra
voltada para o público infanto-juvenil pode ser tão rica quanto o texto, dialogando com ele e
contribuindo para desenvolver o imaginário das crianças.

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2.3.2 Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de


Holanda

Era a Chapeuzinho Amarelo/Amarelada de medo./Tinha medo de


tudo,/Aquela Chapeuzinho./Já não ria./Em festa, não aparecia./Não subia
escada/nem descia./Não estava resfriada/mas tossia./Ouvia conto de
fada/e estremecia./E de todos os medos que tinha/o medo mais que
medonho/era o medo do tal do LOBO.

Chico Buarque de Holanda. Chapeuzinho Amarelo

Ilustração de Ziraldo para o Chapeuzinho


Amarelo, de Chico Buarque de Holanda

Retirando as implicações eróticas do conto original de


Perrault e Grimm, Chico Buarque seleciona nesta
história o aspecto da ansiedade que ela provoca, para
tratar de uma questão mais premente e atual – o pânico da vida urbana – que, com suas ameaças
crescentes e perigos a cada esquina, acaba virando uma “síndrome” generalizada entre os adultos,
e atingindo as crianças das mais diversas maneiras. Com bom-humor e leveza, o autor aproveita-
se da carga simbólica da cor “amarela” (associada ao medo, como no verbo “amarelar”: que
significa desistir, voltar atrás, acovardar-se diante de um desafio) para conversar com a criança e
mostrar alternativas saudáveis de lidar com este sentimento. As ilustrações de Ziraldo,
inteligentemente concebidas sobre o modelo das gravuras paradoxais de M. C. Escher,
acompanham o movimento do texto com grande eloqüência visual, transformando a imagem
assustadora de um “lobo que devora a menina” num “bolo que pode ser devorado por ela”. A
brincadeira linguística LOBO-BOLO é reforçada pela figura da transformação do lobo num bolo, uma
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imagem muito concreta, de forte impacto visual e emocional, uma vez que o doce está associado a
um contexto simbólico de festa, alegria, comemoração e prazer. Os doces e bolos que estavam na
clássica cesta de Chapeuzinho, e que acabaram esquecidos quando do ataque da fera e da tragédia
em que se converteu a sua história, vêm à tona nesta versão moderna para fazer o seu papel de
resgate da confiança, da esperança e do prazer na vida, apesar de todos os desafios e problemas
que precisamos enfrentar.

2.3.3 Fita verde no cabelo, de Guimarães Rosa

Fita-Verde entrou e olhou. A avó estava na cama, rebuçada e só.


Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um
ruim defluxo. Dizendo: - Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para
perto de mim, enquanto é tempo. Ela perguntou: - Vovozinha, que braços
tão magros, os seus, e que mãos tão trementes! – É porque não vou
poder nunca mais te abraçar, minha neta... – Vovozinha, mas que lábios,
aí, tão arroxeados! – É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha
neta. – Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto
encovado, pálido? – É porque já não estou te vendo, nunca mais, minha
netinha... Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela
primeira vez. Gritou: - Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!... Mas a avó
não estava mais lá.

Guimarães Rosa. Fita-Verde no Cabelo

Um exemplo mais radical de revisionismo literário é oferecido por este conto de Guimarães Rosa
que, muito ao seu estilo, vai resgatar nesta antiqüíssima história um de seus aspectos mais
dramáticos e menos comentado: a questão da perda de um ente querido. Tema de difícil
tratamento na literatura infanto-juvenil, embora extremamente necessário por se constituir um dos
assuntos mais árduos de se lidar com uma criança – uma vez que os próprios adultos não têm

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respostas para esse enigma –, a morte adquire uma feição muito realista nesta história. As
surpreendentes ilustrações de Roger Mello conseguem ombrear em qualidade estética com a
narrativa, enfatizando a extrema solidão da velhice, que abre entre as gerações um abismo quase
intransponível; e capturando o frescor da juventude em seu primeiro impacto com a
implacabilidade da existência. O verde é uma cor
importante nesta história, por ornar os cabelos da
menina que será “deflorada” pelo “lobo” de uma
maneira mais devastadora do que jamais poderiam
imaginar os leitores de “Chapeuzinho Vermelho”.
Por que o “lobo”, nesta história, é a morte.

Ilustração de Roger Mello para Fita verde no cabelo, de


João Guimarães Rosa

Atente-se para a percepção do ilustrador que, ao capturar as imagens da vovó na penumbra, apela
para o conhecido jogo de sombras chinesas que as crianças tanto gostam de fazer na parede, para
dar forma a esse “lobo” que avança pelas mãos descarnadas da velhinha, até devorá-la
completamente. Mas se ele é uma sombra, morrer será uma brincadeira? ... Vida e morte se
encontram nesta fita de Moebius rosiana, como os dois lados de uma mesma realidade misteriosa e
lúdica. A morte faz sofrer, mas acontece, e é assim que as coisas são. Guimarães Rosa não
sublima nem disfarça a realidade para a criança. Mas a sua extrema sinceridade é doce, porque
não mente; e consola, apenas porque arrisca-se a falar a respeito daquilo que todos preferem
calar. Ao fazê-lo, compartilha a dor de quem sofre, por reconhecê-la. O autor não oferece uma
explicação para a morte, nem abre espaço para nenhuma esperança. Mas fala ao coração da
criança estarrecida com esta que será a maior e a mais terrível descoberta que nos reserva a vida,
confessando-se também devastado, e por isso humano, fraterno e solidário com essa experiência
tão difícil da perda, quase sempre cercada por um grande e incômodo silêncio.

Mas nem toda produção de Guimarães Rosa para crianças é triste. É que ele não distinguia a
literatura por faixas etárias, mas podemos encontrar em sua obra pequenas e primorosas peças
que, publicadas de acordo, proporcionam belos livros para os jovens. É o caso de Zoo, verdadeiro
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álbum de retratos literários dos animais que ele tanto amava, e que descrevia em suas muitas
visitas aos zoológicos do mundo, em suas andanças como diplomata. Organizado por Luiz Raul
Machado a partir dos textos publicados em Ave, palavra!, e com as maravilhosas ilustrações de
Roger Mello, foi publicado como livro brinquedo, cheio de surpresas.

Alguns exemplos destes instantâneos rosianos:

O leão ruge O leão: Girafa: a indecaptável A girafa de Pisa.

a plenos trovões. espalhafatal. a olho nu.

Elefante: há pouco, a ponta da tromba era O elefante caminha sobre


um polegar, agora virou dedo mindinho. dúzias de ovos?

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3. Monteiro Lobato: o pai da literatura infanto-


juvenil brasileira

3.1 Monteiro Lobato: educador

Nos livros as crianças querem que lhes demos cartolas –coisas


mais altas do que elas podem compreender. Isso as lisonjeia
tremendamente. Mas se o tempo inteiro as tratamos puerilmente, elas nos
mandam às favas.

Monteiro Lobato

O livro didático parece obedecer ao conceito de que o aluno não


está apto, jamais, a qualquer esforço sério, só sendo motivado numa
atmosfera de puerilidade, de gracejo perpétuo. E isso me parece errado:
errado porque finge ignorar (compactuando com quem, com quem?) que
crianças sabem coisas e manejam um vocabulário que ultrapassa
largamente esse mundo caviloso, bobinho e asséptico – essa Disneylândia
pedagógica.

Osman Lins

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Monteiro Lobato com seus leitores

Quem lê as cartas de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel,


reunidas no livro A barca de Gleyre, e a série de artigos escritos
por Osman Lins para jornais e periódicos, reunidos no volume Do
ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros percebe que,
apesar da distância que os separa no tempo (Monteiro Lobato
viveu entre 1882 e 1948; Osman Lins entre 1924 e 1978), são
escritores da mesma cepa. Uma cepa rara, apaixonada e
combativa, com fôlego e inspiração para criar uma vasta obra
projetada em torno de suas próprias utopias reformadoras da humanidade, e para lançar sua
indignação aos quatro ventos, com a fé dos fanáticos ou com a ingenuidade das crianças,
mostrando ao mundo que o rei está nu.

Quem lê esses textos, percebe ainda que o “fanatismo” dos dois escritores não é de ordem
religiosa ou política, embora adquira muitas vezes os contornos de um misticismo pessoal ou de
uma militância individual. Ambos partilham de uma mesma causa, à qual dedicam, com todas as
fibras de seu ser, o seu talento e a sua vida: a literatura. É impossível não ser atingido, de alguma
maneira, pelo ímpeto do amor de Monteiro Lobato e de Osman Lins pela literatura, expresso
nessas páginas de intervenção, e não usufruir do
encantamento que a emanação desse amor produz
nas suas páginas de criação. Monteiro Lobato e
Osman Lins trabalham intensamente no sentido de
ampliar e estender o alcance da literatura,
contagiando a sociedade com os seus projetos,
coletivizando o ato solitário da escrita e
transformando-o num gesto de solidariedade
humana, numa causa pública.

Essa causa confunde-se com uma constante preocupação com os rumos do país, que se entrelaça
às questões postas pela modernidade: a busca de uma identidade nacional sem nacionalismos
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ufanistas, o resgate do regionalismo sem perder de vista o universal, o interesse ora entusiasta ora
cauteloso pela tecnologia e pelos avanços da ciência, e, sobretudo, a valorização da educação.
Embora o nome de Monteiro Lobato seja rapidamente associado à literatura infantil, à luta em
favor da nacionalização do petróleo e às campanhas sanitárias lideradas pelo personagem Jeca
Tatu, pouco se conhece efetivamente sobre o seu pensamento a respeito da arte e da cultura
brasileiras. Algo semelhante acontece com Osman Lins, tido como um escritor difícil e hermético, e
praticamente não se conhece a sua obra nem as suas idéias fora do circuito acadêmico.

No que diz respeito a Lobato, o processo de sua desautorização como intelectual brasileiro do
Modernismo, iniciado pelos escritores Menotti Del Picchia e Mário de Andrade a partir do malfadado
artigo “À propósito da exposição Malfatti” , e perpetuado por historiadores engajados na
construção de uma história ideal do Modernismo, acabou cristalizando-se em preconceito. Apesar
do surgimento de estudos que repensam o caso de um ângulo menos comprometido com o
Modernismo, como afirma Tadeu Chiarelli (1995) - ele mesmo autor de um desses estudos - o
preconceito ainda permanece intocado. Servindo de arma para os modernistas da Semana de 1922
criticarem a competência de Lobato no campo das artes plásticas, o imbróglio assumiu proporções
injustificadas, responsabilizando o crítico pela desistência de Malfatti da pintura de vanguarda e
pelo “declínio” de sua produção.

NOTA

Publicado em 20/12/1917 em O Estado de São Paulo, e republicado em


1919 na coletânea de textos sobre arte e cultura de Lobato, Idéias de Jeca
Tatu, onde o texto foi intitulado “Paranóia ou Mistificação?”.

Fosse ou não verdade – o que os críticos, hoje, provam que não foi - a atitude dos modernistas
e de seus seguidores contribuiu definitivamente para o esquecimento da crítica lobatiana em sua
especificidade, enquanto fração inicial de um projeto nacionalista para o Brasil, que o autor
posteriormente tentaria expandir para as diversas áreas da vida brasileira. Aparentemente, Lobato
não levou a disputa muito a sério. Como ironizou mais tarde em depoimento a Amadeu Amaral
Júnior, no Jornal da Manhã (2000), o principal mérito da Semana de Arte Moderna, realizada no

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Teatro Municipal de São Paulo em fevereiro de 1922, foi o de divertir Oswald de Andrade durante
sete dias:

Se eu participasse da Semana, talvez me tivesse contaminado


com a inteligência nela manifestada. Preferi ficar na minha honesta
burrice”, explicou, dizendo-se, porém, partidário de uma Segunda
Semana, correta e aumentada, na qual se contentaria com o posto de
vice-papa, logo abaixo do ‘Papão’ Oswald de Andrade. ‘Como preparo a
minha entrada nas hostes modernistas, estou fazendo uma aquarela para
derrotar Picasso: uma mulher com cinco olhos, seis cristas, e um bico de
galo’. Com a obra, Lobato afirmava pretender abocanhar o primeiro
prêmio e, ao mesmo, tempo, cair nas boas graças dos seus opositores.
‘Por causa da arte moderna já fui assassinado pelo Mario de Andrade, que
escreveu o meu necrológio’, diz ele. ‘Tenho esperança agora de que com a
minha adesão à Segunda Semana eu ressuscitei’.
Carmen Lucia de Azevedo, Márcia Camargos e Vladimir Saccheta.
Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, São Paulo: Senac, 2000, p. 87.

NOTA

Estudos recentes mostram que, antes mesmo da exposição de 1917, que


exibia trabalhos da pintora concebidos sob a influência do Expressionismo
adquirida durante a sua especialização na Alemanha, e posteriormente
desenvolvida em Nova Iorque, Anita Malfatti já procurava um caminho
próprio e colocava em dúvida os postulados da arte moderna. “Se forem
analisados os títulos de algumas das telas que produziu entre agosto de
1916 e dezembro de 1917, percebe-se que a artista escolheu um tema
determinado para tratar: o Brasil ou a paisagem física e humana do país.
Pinturas como A palmeira, Rancho de sapé, Capanga, Caboclinha, O saci –
hoje desaparecidas – e Tropical – pertencente ao acervo da Pinacoteca do
Estado de São Paulo – atestam que Malfatti, ao contrário das pinturas que
realizou em Nova Iorque, não parecia mais preocupada com as questões

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intrínsecas do campo plástico, que a fizeram realizar obras como O


homem amarelo e A mulher de cabelos verdes – pintadas entre 1915-16,
o que tornaria improcedente a atitude dos modernistas em querer culpar o
artigo de Lobato pelo recuo de Malfatti. No entanto, a realidade da
produção de Malfatti não foi capaz de suplantar a força da acusação feita
por alguns modernistas contra Lobato, um ataque aos “futuristas” e não à
Anita. Para os modernistas históricos, empenhados na transformação do
ambiente artístico-cultural de São Paulo e do Brasil, não seria interessante
reconhecer que aquela que era considerada a primeira artista moderna
brasileira já se desviara desse caminho antes de protagonizar a mostra de
1917, optando por uma produção mais convencional. Reconhecer tal
situação era evidenciar uma contradição interna no movimento, capaz de
obstruir a construção da sua história ideal. Já que Lobato não revira seus
posicionamentos para aderir ao grupo, vinha muito a calhar a
possibilidade de imputar-lhe a responsabilidade pelo recuo de Malfatti,
uma vez que ele externara suas opiniões contrárias em relação à arte
moderna. Com essa estratégia, Malfatti não corria o risco de ser vista
como uma artista moderna arrependida, mas como a mártir do
movimento.” Tadeu Chiarelli, op. cit., pp. 21, 27.

Como diz Wilson Martins, é de se lamentar essa ausência de Monteiro Lobato em um


acontecimento que teria nele um chefe natural: “Sabe-se que, por um mal-entendido inexplicável
do destino, os jovens turcos de 1922, em busca de respeitabilidade, foram bater à porta de Graça
Aranha, que nada tinha com o assunto, em vez de procurar Monteiro Lobato.” Isso, para Martins
(1978, p. 14), “criou entre eles o abismo fatal que jamais se pôde transpor, malgrado o fato de
Monteiro Lobato ter sido, no campo da ação e das idéias sociais, econômicas e políticas, o
praticante mais sistemático e característico do programa modernista.”

Mas não apenas nestes campos. Considerando o seu projeto absolutamente revolucionário de uma
literatura infantil brasileira, Monteiro Lobato terá sido um dos mais eficientes praticantes das
propostas modernistas, também nos campos cultural e literário. Segundo Ana Maria Machado:

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Como fino exemplo da antropofagia cultural que os modernistas


da Semana de 1922 pregavam e ele conscientemente combateu, o criador
do Sítio do Picapau Amarelo nunca hesitou em traçar e deglutir tudo o que
lhe ocorresse, originário das criações alheias, para alimentar a sua
própria, viesse de onde viesse. Com a maior sem-cerimônia, por exemplo,
pegou o pó-das-fadas que James M. Barrie inventou para fazer Peter Pan
voar, batizou-o com o som da fada Sininho e criou o pó-de-pirlimpimpim,
mudando apenas o modo de usar. Aproveitou outro achado genial de
Barrie, o “de-mentirinha”, e desenvolveu o recurso do faz-de-conta para
resolver as grandes dificuldades intransponíveis que de vez em quando
ameaçassem emperrar a história. Inspirou-se na popularíssima e sem-
graça boneca de trapo norte-americana ‘Raggedy Ann’ (por sua vez,
provavelmente inspirada no maltrapilho inglês ‘Raggedy Dick’), e a
metamorfoseou por completo na boneca Emília, a mais fascinante
personagem da literatura infantil brasileira, com sua irreverência
demolidora, sua ética exigente e rigorosa, sua independência
indomável.
Ana Maria Machado. Como e porque ler os Clássicos Universais desde
cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 127. Ver também, de Marisa Lajolo,
“Emília, a boneca atrevida”, in: Personae – grandes personagens da literatura
brasileira. Organização de Lourenço Dantas Mota e Benjamin Abdala Júnior. São
Paulo: Senac, 2001.

Além de alter-ego de Lobato, a boneca Emília, do livro Narizinho


arrebitado, de 1921 – que iniciou a série de aventuras dos habitantes do
Sítio –, estabelece um contraponto com o conto Negrinha (LOBATO,
1994), de um livro anterior, que também narra a história de uma menina
cuja vida é transformada por uma boneca. Em seu estudo “Duas leituras
da infância segundo Monteiro Lobato”, Cilza Carla Bignotto aponta as
relações:

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No conto Negrinha, o cenário é uma fazenda. Esta fazenda


pertence a uma velha senhora, Dona Inácia, que cria uma menina órfã, a
Negrinha do título. As Reinações de Narizinho acontecem em um sítio, que
pertence a outra velha senhora, Dona Benta, que cria a menina órfã e
reinadora do título. Narizinho, a encantadora, é neta da dona do sítio.
Negrinha, a peste, é filha de escrava da dona da fazenda. Uma menina é
apresentada como Lúcia, e depois como Narizinho. A outra é apresentada
como Negrinha, e se tem nome, não é dito no conto. O apelido Narizinho
tem origem em uma característica física, o nariz arrebitado. Negrinha
também tem sete anos, e seu apelido também tem origem em uma
característica física, a cor. Nas histórias, as meninas ganham bonecas. A
boneca loira chegou às mãos de Negrinha por meio de uma mulher branca
e rica – Dona Inácia. Emília chega às mãos de Narizinho por meio de uma
mulher negra e pobre – Tia Nastácia. Esse fato singular, que passa quase
despercebido no meio do imenso desfile de narrativas maravilhosas que
compõe o universo do Sítio do Picapau Amarelo é importantíssimo. A
boneca que iria virar mania infantil, símbolo da obra de Lobato e portanto
símbolo da literatura infantil brasileira, foi feita por uma velha negra.
Levando em conta os valores ideológicos que uma boneca representa, e
que o público-alvo de Lobato era formado por escolares, é simples
entender o que isto significa: para Lobato, “o brinquedo infantil não atesta
a existência de uma vida autônoma e segregada, mas é um diálogo mudo,
baseado em signos, entre a criança e o povo.
Cilza Carla Bignotto. “Duas leituras da infância segundo Monteiro Lobato”,
in: Lendo e escrevendo Lobato. Organização de Eliane Marta Teixeira Lopes
e Maria Cristina Soares de Gouvêa. Belo Horizonte: Autêntica, 2001 .

NOTA

O destaque que a autora confere à “maternidade” da boneca Emília posta


por Lobato na pessoa de Nastácia, carinhosamente chamada de “tia” pelas

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crianças, é realmente importante quando se considera outro preconceito


que também se cristalizou sobre o autor: a acusação de racismo. É
inegável que Monteiro Lobato reproduz em sua obra, sem nuances, o
preconceito contra os negros existente em sua época, em momento algum
mascarando as contradições da sociedade. E que chega a utilizar, no
enredo da folhetim O choque das raças ou O presidente negro – romance
americano do ano 2228, de 1926, a questão do preconceito racial como
trampolim para se lançar no mercado editorial americano, onde pretendia
abrir a Tupy Publishing Company. No entanto, não se pode esquecer que
ele também reflete sobre esse preconceito. A estrutura familiar e escolar
que ele imagina para o seu universo infantil, por exemplo, tem como
mentoras duas figuras femininas e idosas, uma de cor branca e uma de
cor preta. Ambas têm voz no corpo da obra como narradoras: há os
Serões de D. Benta e os demais livros onde a cultura erudita é repassada
na voz de sua intérprete oficial, e há as Histórias de Tia Nastácia, onde a
cultura popular é resgatada na voz de sua representante mais abalizada.
Pais e mães convencionais não aparecem no Sítio, o que confere às duas
senhoras um papel decisivo na educação das crianças. Além disso, há
contos de Lobato como “Negrinha” e “A violeta orgulhosa”, nos quais a
questão do preconceito racial é frontalmente atacada. Em “Negrinha”, ele
focaliza o direito da criança de brincar, de sonhar, independente de sua
raça, cor, classe social, etc., e mostra a perversidade do regime da
escravidão através desta bela personagem infantil, num enredo
provavelmente inspirado pelo conto “Um coração singelo”, de Flaubert. E
em “A violeta orgulhosa”, do volume Histórias Diversas, ele oferece uma
explicação científica sobre o que determina a cor da pele das pessoas,
como as cores das flores, refletindo que não há razão plausível para se
justificar qualquer hierarquia entre as raças a partir deste critério. A
respeito do assunto, ver, de Marisa Lajolo, “Negros e negras em Monteiro
Lobato”, in: Lendo e escrevendo Lobato. Organização de Eliane Marta
Teixeira Lopes e Maria Cristina Soares de Gouvêa. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.

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Quando Monteiro Lobato entra em cena, o modelo europeu de um


“projeto educativo e ideológico que via no texto infantil e na escola
(e, principalmente, em ambos superpostos) aliados imprescindíveis
para a formação de cidadãos” havia sido apropriado por vários
escritores e educadores e adaptado à realidade brasileira (ARIÈS,
1981, p. 50). Com a industrialização, algumas crianças pobres
puderam passar a freqüentar escolas. Porém, como comenta
Bignotto, a literatura infantil da época, se pudesse ser traduzida
em forma de brinquedo, seria muito mais parecida com a boneca
loira do que com Emília. “Basta lembrar o sucesso dos livros Le tour de France par deux garçons
(1877), de G. Bruno, e Cuore (1886), de
Edmundo de Amicis. Em 1901, Afonso Celso
publicaria Por que me ufano de meu país,
proclamando em português o patriotismo
tematizado pelos escritores europeus. Em 1930,
quando Narizinho e Emília já eram sucesso,
Cuore continuava best-seller no Brasil.”

NOTA

Bignotto, op. cit., p. 110. O livro “Coração” narra um ano escolar na vida
de um menino italiano, morador de província, através de exemplos
edificantes e melodramáticos, onde a comoção, a culpa, o dever e o medo
são utilizados, apelativamente, para incutir no leitor valores como o temor
a Deus, a devoção à pátria, a servidão ao rei e a obediência aos pais e
professores.

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É importante assinalar que o subtítulo do primeiro livro de Lobato para crianças, Narizinho
arrebitado, é “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias”. Embora procurasse atingir
as crianças em geral, dirigia-se aos “escolares” em particular. Se o seu interesse pelo tema surgiu
de uma preocupação pessoal - pois, como queixava-se a Godofredo Rangel: “Que é que nossas
crianças podem ler? Não vejo nada. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil que
nada acho para a iniciação de meus filhos...” (MONTEIRO LOBATO, 1957, p. 104) - ao inaugurar a
literatura infantil brasileira, Monteiro Lobato transformou essa preocupação num ambicioso projeto
pedagógico e artístico. Um projeto que justifica a sua frase tornada clichê “Um país se faz com
homens e livros” -, e no qual, como diz Marisa Lajolo (2000): “as críticas à escola tradicional são
freqüentes e impiedosas, mas nem por isso comprometem – antes reforçam – o valor formativo da
obra infantil lobatiana. Se seus livros têm alguma grande lição, esta é a da irreverência, da ironia,
da leitura crítica e do questionamento, da independência e do absurdo”.

Lobato em família, com seus quatro filhos

É neste aspecto, provavelmente, que residem as


semelhanças mais estreitas nas atitudes e nos
pensamentos do escritor paulista e de Osman Lins. A
preocupação do escritor pernambucano com o modo
como o livro didático de “Comunicação e Expressão em
Língua Portuguesa” prestava um desserviço à formação
cultural dos nossos jovens é notória e rendeu duas séries de ensaios bombásticos publicados
originalmente em O Estado de S. Paulo, o Jornal do Brasil e o Jornal da Tarde. A primeira delas,
contendo artigos de 1965, foi reunida no plaquete Um mundo estagnado (Imprensa Universitária
de Pernambuco, 1966), com um adendo de Ricardo Ramos, “Tremebrilhos e Singelezas”; e
reeditada, juntamente com a segunda série, contendo artigos de 1976, no livro Do ideal e da
glória: problemas inculturais brasileiros (São Paulo: Summus, 1977). Além de artigos sobre os
livros didáticos adotados nas escolas de ensino médio, Osman Lins apresenta ainda uma série de
ensaios sobre “O ensino universitário”, escritas após o seu afastamento da universidade, onde
lecionou por algum tempo – “decisão a que não terá sido alheio o meu compromisso com a
literatura” –, atacando, entre outras coisas, o uso das apostilas nos cursos de Letras.

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O tom combativo desses ensaios, que às vezes torna-se pensativo e melancólico, é semelhante ao
que emana das cartas de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel, e revela a natureza desses grandes
autores que não se conformaram com a atividade isolada da escrita e fizeram numerosas incursões
no mundo dos homens práticos. Tomo de empréstimo as palavras de Cassiano Nunes (2000, p. 32)
sobre Lobato e estendo-as a Lins: “suas preocupações foram as de brasileiros que não se
resignavam ao conservantismo imobilista nem ao atraso ou primitivismo que às vezes marcam a
nossa História. Essas arremetidas para a vida exterior, provindas de homens tão bem-dotados para
criar uma obra literária – a quem ficaria bem, com freqüência, a solidão do gabinete – fazem com
que ainda hoje os procuremos, em busca de conselhos ou sugestões, diante de velhas dificuldades
ainda não resolvidas”.

A indignação osmaniana é semelhante à lobatiana no que concerne ao descaso das instituições de


ensino para com a literatura:

Todos os brasileiros que ultrapassam os primeiros anos de escola


passam anos às voltas com os seus manuais de Comunicação e
Expressão; e dificilmente, vê-se pela amostra, terão a sorte de estudar
em compêndios feitos com inteligência, sensibilidade, respeito, zelo e,
principalmente, por mestres que conheçam e amem a nossa literatura.
Note-se que, para a imensa maioria dos alunos são esses textos os
primeiros e até, às vezes, os únicos que vêm a conhecer. Pode ser, não
discuto, que esses livros ensinem Português com eficiência. Mas os que
neles estudam, fatalmente, a não ser por um milagre, passarão a
considerar a literatura, esse importante produto do espírito humano, como
algo desprezível e secundário. E se tal situação não for modificada,
seremos, até o fim dos tempos, um povo avesso à leitura, continuando a
ignorar, como ignora, os seus próprios escritores. Um povo surdo à sua
própria alma.
Osman Lins. “Escolha um animal qualquer”, in: Do ideal e da glória:
problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977.

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Nesses artigos, Osman Lins empreende, em momentos distintos, um cuidadoso levantamento dos
textos literários citados nesses compêndios de ensino de Português, fazendo denúncias
estarrecedoras sobre o processo irresponsável, quando não desonesto, de organização das
antologias, que revelam o modo como seus autores encaram a literatura como coisa morta e sem
nexo com o real. Como diz Ricardo Ramos (1996) ao comentar os ensaios de Osman Lins, o
patriotismo que os autores dos livros didáticos revelam “não é aquele sentimento de que
testemunham os versos de Drummond – ‘que lembrança darei ao país que me deu tudo que
lembro e sei, tudo quanto senti?’ –, será antes o velho ritmo de saudação à bandeira, que um
desses professores realiza num acendrado poema em prosa de sua autoria, que imodestamente
inclui no livro, e assim começa: ‘Verde e amarelo e azul! Pobre algodão ou rica seda, tremebrilhos
de ouro ou singela alvura’.”

Num de seus ensaios, Osman Lins cita um documento elaborado pela Divisão de Assistência
Pedagógica da Coordenadoria do Ensino Básico e Normal de São Paulo, com a colaboração de 42
professores, que recomenda, na sua introdução: “Não se quer ênfase para textos literários, mas
sim equilíbiro entre estes e outros tipos de textos”, contra o qual lança a sua pena arguta e
revoltada:

Discordo das 42 sumidades e da Coordenadoria, por uma razão


muito simples: os “outros tipos de textos” o aluno já recebe e busca fora
da classe, durante todas as outras horas do dia e nos períodos de férias.
Dever-se-ia buscar o equilíbrio, justamente, procurando intensificar, na
escola, o convívio dos alunos com os textos literários. Incrementar o
ingresso, nas poucas horas de aulas de Comunicação e Expressão, de
“outros tipos de textos”, é reduzir praticamente a zero as possibilidades
de convívio – e, em conseqüência, de compreensão da literatura.
Osman Lins, op. cit., p. 140.

Para Osman Lins, a breve recomendação expressa, com a força e o poder que se irradia de um
documento oficial, a incapacidade que as instituições têm revelado de alcançar a importância do
convívio com a literatura, e que se projeta, embora sem a mesma intensidade, na atitude daqueles

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que seriam, em princípio, seus divulgadores naturais: os mestres de Português. Mestres que, em
sua maioria, ignoravam completamente a obra lobatiana nas suas citações de textos literários
considerados “exemplares” para o público infantil e juvenil, tanto na seleção de 1965 como na de
1976.

Pode-se dizer que, enquanto Osman Lins se lançou com bravura na defesa do ensino da literatura
nas escolas e nas faculdades, insistindo na necessidade de reformas, que começariam pela revisão
urgente dos manuais, Monteiro Lobato partiu, com igual bravura, para a redação, ele mesmo, de
seus próprios “manuais”:

Tornou-se amado pelas crianças, com elas se correspondia,


visitava-as em escolas e bibliotecas, quando submergia em abraços e
perguntas. Mas sua obra infantil foi proibida em bibliotecas, banida de
escolas públicas, queimada em colégios religiosos. A marca de escritor
infantil maldito foi ficando tão forte, que Monteiro Lobato acabou
transferindo seus títulos da Companhia Editora Nacional para a Editora
Brasiliense; Octales Marcondes, proprietário da Companhia Editora
Nacional temia que a campanha sistemática contra os livros de seu ex-
sócio afetasse a venda dos outros livros da casa.
Marisa Lajolo, op. cit., p. 83.

A preocupação de Osman Lins, contudo, não era a de criar uma literatura especificamente para
crianças, como a do notável visionário Lobato, mas a de tornar acessível aos jovens o que de
melhor a poesia e a narrativa brasileiras tinham a oferecer aos leitores, independente de sua faixa
etária; e com a formação de um público exigente e capacitado desde cedo. É possível que nutrisse,
inclusive, um certo preconceito pelo gênero infanto-juvenil, ainda encarado pela crítica dos anos 60
e 70 como secundário, como atestam algumas de suas observações:

Claro, não é apenas a crônica que atrai os professores: também


os autores de histórias infantis. Esta a razão por que Orígenes Lessa, que
em 1966 nem sequer era nomeado, é agora um dos nomes mais cotados:
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nos últimos anos passou a escrever livros para crianças. Não alcança
ainda a marca de Monteiro Lobato, mas segue-o de perto. Pelo mesmo
motivo, por ser o criador de Tibicuera, e não por ser um dos mais
fecundos romancistas brasileiros, é que Érico Veríssimo compete com
Millôr Fernandes. Assim, se o escritor nacional, no momento, aspira
ingressar nesses compêndios, tem duas vias a seguir: ou escrever
crônicas em jornal ou escrever para a infância. Esta é a regra de ouro, e,
fora disso, a não ser por milagre ou acaso, ele está condenado, não
importa a obra que realize.
Osman Lins. “Uma estatística melancólica”, in: op. cit., p. 147.

Como explica Nelly Novaes Coelho (2000), “a valorização da literatura infantil como fenômeno
significativo e de amplo alcance na formação das mentes infantis e juvenis, bem como dentro da
vida cultural das sociedades, é conquista recente. Vulgarmente, a expressão “literatura infantil”
sugere de imediato a idéia de belos livros coloridos destinados à distração e ao prazer das crianças
em lê-los, folheá-los ou ouvir suas histórias contadas por alguém. Devido a essa função básica, até
bem pouco tempo, a literatura infantil foi minimizada como literária e tratada pela cultura oficial
como um gênero menor.”

Apesar dessa homenagem a Monteiro Lobato, onde se percebe o reconhecimento e a admiração de


Osman Lins pelo pai da literatura infantil brasileira, é possível que o autor pernambucano não
compartilhasse algumas de suas opiniões sobre pedagogia, como se percebe na sua descrição de
uma “escola ideal”.

A pedagogia lobatiana, fundada no princípio da liberdade e do estímulo à participação crítica da


criança no processo de produção do conhecimento, é exercida num ambiente rural, profundamente
enraizado na realidade cultural brasileira. O Sítio do Picapau Amarelo – metáfora do Brasil? – é um
território livre, onde tudo é permitido. É um local amplo, seguro e acolhedor, de onde é possível
partir para muitas viagens, através das quais espaço rural de origem é transposto e transfigurado
pelos personagens. Assim, a “escola ideal” de Lobato nasce nas terras de Dona Benta, no interior,
onde o Brasil arcaico de Tia Nastácia, de Tio Barnabé e do coronel Teodorico, de lendas populares
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como as do Saci Pererê e da Cuca, e de bichos da mata, naturais ou importados, como a onça e o
rinoceronte, funde-se com o Brasil moderno que encontra petróleo, fala ao telefone e viaja à Lua.

Lobato concebe o ensino das principais disciplinas


através de constantes passeios a lugares
desconhecidos, e de não menos constantes visitas
de lugares desconhecidos ao Sítio: assim, a
turma viaja no lombo de Quindim para o país da
Gramática; e é visitada pelo país da Aritmética,
que viaja para o Sítio com o objetivo de se
apresentar no picadeiro de um circo montado
especialmente para este fim. Nas aulas de
Ciência, as crianças viajam para o céu, a fim de
aprender astronomia; ou são visitadas por monstros produzidos por suas próprias experiências
genéticas, realizadas no laboratório do Visconde ou no quintal da vaca Mocha. Nas aulas de
Geografia, as crianças viajam na leitura de D. Benta, e nas aulas de História viajam num navio
para a Grécia moderna, invadindo a antiga através do pó-de-pirlimpimpim. Enquanto as crianças
visitam o Olimpo com seus deuses, em busca de Tia Nastácia, presa no labirinto do Minotauro;
filósofos e escultores gregos antigos visitam o barco de D. Benta, num proveitoso intercâmbio de
encantamento onde o passado influencia o presente, mas também é por ele influenciado.

A “escola ideal” de Osman Lins, ao contrário, é descrita de maneira muito mais pragmática e
pontual, num artigo de título surpreendente: “Por uma escola sem verde e sem quintal”, publicado
no livro Evangelho na taba – outros problemas inculturais brasileiros (São Paulo: Summus, 1979).
Num flagrante contraponto à modernizadora idéia de Lobato, que pensa a sua pedagogia lúdica
numa escola rural, cercada de árvores e de animais, e plena de deslocamentos, Osman Lins
defende uma pedagogia rigorosa, baseada no aprendizado e no exercício de regras de convívio
social, orientada pela severidade dos horários e das obrigações, a ocorrer nos estreitos e bem
delimitados espaços de um “arranha-céu”, mais condizente com a vida nas cidades grandes. Daí à
crítica à pedagogia moderna:

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O sonho metropolitano do retorno (ou da busca) a tipos de vida


com características campestres gera toda uma indústria: são as granjas,
as casas de praia, o turismo. Um dos aspectos dessa indústria que me
intriga bastante liga-se à educação. Gente de posse, residente na capital e
que sonha com paragens mais amenas, convence-se de que seus filhos
necessitam de ar puro, de contato com a natureza. Ora, as crianças não
podem viver passeando, precisam freqüentar a escola. Surge, com isto, a
solução fatal: escolas campestres, escolas ecológicas, com gramado e
árvores, em lugares afastados, longe do fumaceiro da cidade e onde, em
certos casos, os alunos até fazem jardinagem, plantam alface,
etc.
Osman Lins. “Por uma escola sem verde e sem quintal”, in: Evangelho na
taba, p. 89.

Essa quase descrição do Sítio do Picapau Amarelo parece a Osman Lins uma opção nada inteligente
nem saudável, porque completamente desvinculada da realidade da vida numa metrópole, onde,
apesar de todos os sonhos paradisíacos, a tendência de moradia dominante para a maioria da
população é o prédio de apartamentos. Estudar numa escola com verde e com quintal, portanto,
seria alienante e profundamente negativo para as crianças urbanas, pois não ofereceria o
treinamento necessário para a convivência social no sistema de habitação coletiva. “Que proporia
então?”, indaga ele. E responde:

Que, desde criança, em vez de sair de manhã cedo para uma


escola rodeada de árvores, onde se respira um ar muito mais puro, deva,
para acostumar-se, estudar em escolas semelhantes a um apartamento.
Acho muito mais certo e mais educativo do que essa ficção das escolas
campestres. Como seria a minha escola? Um edifício de quinze ou vinte
andares. Um ou dois andares funcionariam como ponto de reunião dos
professores e ali ficaria a administração. O resto seriam salas de aula.
Claro que esse edifício não seria construído como um edifício qualquer de
apartamentos ou de escritórios, nem deveria ser adaptado de um prédio

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já existente. O projeto levaria em conta a atividade a que se destinaria a


construção. Grande número de elevadores, vários sanitários, etc. Um
complexo escolar como este deveria ser construído em área ampla, com
parques de recreio e talvez até uma ou duas piscinas. As horas de recreio
poderiam ser alternadas. Não precisaria o prédio em peso descer para o
recreio às dez horas, por exemplo.
Idem, ibidem, p. 90.

E se justifica:

Estariam as crianças, desse modo, fazendo a mais urgente e


necessária das aprendizagens. Pois, embora a vida em apartamento seja
coisa comum nas grandes cidades, não é comum encontrarmos pessoas
que saibam viver em apartamentos. Estamos ainda totalmente
deseducados para esse tipo de vida. Quem vive em apartamento sabe
que, até hoje, há gente que passa por educada e não sabe usar nem a
lixeira: põe os sacos de lixo no elevador de serviço. ... Com a minha
escola-apartamento, os alunos talvez não respirassem tão bem como nas
escolas campestres. Mas seriam, mais tarde, melhores vizinhos e
melhores cidadãos. Ou, na pior das hipóteses, melhores
condôminos.
Idem, ibidem, p. 91.

Claro está que a preocupação do autor com esse curto e despretensioso artigo é muito mais criticar
o mau comportamento dos moradores dos prédios do que efetivamente propor, a sério, um modelo
pedagógico específico ou pensar amplamente na formação educacional da criança, como se
percebe no projeto literário de Monteiro Lobato. Mas é possível que Osman Lins, involuntariamente,
tenha vislumbrado com mais precisão o futuro arquitetônico das escolas nos espaços cada vez mais
restritos e verticalizados das cidades, e intuído que o excesso de liberdade da pedagogia moderna
acabaria conduzindo à ameaça da permissividade, que hoje se transforma num grande problema
para pais e professores envolvidos com a educação de jovens; exigindo, portanto, o treinamento
de regras de civilidade específicas como uma atitude imprescindível de cidadania. Ao denunciar,
ironicamente, em seu modelo futurista de escola urbana, o presente cada vez mais árido reservado
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à vida das crianças modernas, o estreitamento dos horizontes, a passividade em frente às telas da
informação, que transformam os deslocamentos reais em viagens virtuais, Osman Lins parece
apontar com veemência para a urgência de releitura das propostas lobatianas por uma escola da
abertura e da trajetividade - do aqui até o além e de um até o outro -; apelando, talvez, para a
necessidade de se instaurar, como diz Paul Virilio, ao lado da ecologia verde, uma ecologia cinza,
capaz de livrar nossas crianças “de uma sedentarização terminal e definitiva”, de uma “civilização
do esquecimento”, e de uma “sociedade de um ao vivo sem futuro e sem passado, posto que sem
extensão” .

NOTA

“Uma vez que a cidadania e a civilidade dependem não somente, como é


incansavelmente repetido, do “sangue” e do “território”, mas também e
sobretudo da natureza da proximidade entre os grupos humanos, não
seria conveniente propor um outro tipo de ecologia? Uma disciplina menos
preocupada com a natureza do que com os efeitos do meio artificial da
cidade sobre a degradação desta proximidade física entre os seres e as
diferentes comunidades? Proximidade da vizinhança imediata dos bairros.
Proximidade “mecânica” do elevador, do trem ou dos carros e, finalmente,
a recente proximidade “eletromagnética” das telecomunicações
instantâneas. A velocidade mata a cor: quando o giroscópio gira
rapidamente, ele produz o cinza. Atualmente, no momento em que a
extrema proximidade das telecomunicações ultrapassa o extremo limite
de velocidade dos meios de comunicação supersônicos, não seria oportuno
instaurar, ao lado da ecologia verde, uma ecologia cinza?” Paul Virilio. O
espaço crítico. São Paulo: 34 letras, p. 115.

(Fonte: FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo. Osman Lins e a Literatura Infantil, in: Revista Outra
Travessia. Arte e literatura: Osman Lins, oitenta anos. Santa Catarina, n. 4, 2005, pp. 69-84).

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ATIVIDADES

O UNIVERSO DO SÍTIO DO PICAPAU AMARELO: ATIVIDADES DE


LEITURA E PRODUÇÃO

Como sugestão de atividades a serem desenvolvidas durante esta


disciplina, e pensando em propostas que estimulem a leitura dos textos de
Monteiro Lobato, elencamos alguns temas gerais e atuais, e indicamos
alguns livros de sua autoria, propondo que sejam fichados e analisados,
comentados em ensaios, comparados com obras mais recentes e/ou
transformados em recursos a serem usados em sala de aula, não só na
área de língua portuguesa, mas das mais diversas disciplinas: geografia,
história, matemática, ciências, artes, idiomas, a critério do professor.

Os temas propostos:
a) Da celebração da fantasia e do imaginário (Reinações de Narizinho, O Picapau
Amarelo, Histórias Diversas);
b) Do resgate das raízes culturais brasileiras (Fábulas, O saci, Caçadas de Pedrinho,
Histórias de tia Nastácia);
c) Da proposta pedagógica (Serões de D. Benta, História do mundo para crianças,
História das invenções, Aritmética da Emília, Geografia de D. Benta, As aventuras
de Hans Staden, Memórias da Emília);
d) Das ideias futuristas e de ficção científica (Viagem ao céu, A chave do tamanho,
A reforma da natureza);
e) Da necessidade de ampliar os horizontes do conhecimento do público infanto-
juvenil brasileiro – o investimento na tradução e na adaptação de obras clássicas e
modernas para as crianças (Alice no país das maravilhas/dos espelhos, Peter Pan,
D. Quixote das crianças; Robinson Cruzoé; O minotauro, Os doze trabalhos de
Hércules, Contos de Grimm e Andersen);
f) Das questões sociais e políticas (O poço do Visconde, A chave do tamanho, Ideias
de Jeca Tatu, O presidente negro) ;
g) Os filhos de Lobato e o boom da literatura infanto-juvenil brasileira: alguns
autores contemporâneos em prosa, poesia e teatro;
h) Imagem e Palavra: a importância da ilustração na literatura infantil;
i) As revistas em quadrinhos e os jogos eletrônicos;
j) As adaptações para séries televisivas;
k) As trilhas sonoras.
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