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PESQUISA TEÓRICA
ca para aqueles que, conscientes do projeto ético- definem o ‘status’ da pessoa dentro do sistema de
político da profissão, buscam viabilizar ações com- relações familiares.
patíveis com a conquista de autonomia e de cidada-
nia de indivíduos e famílias. As famílias de camadas populares, que são orga-
Neste artigo, buscamos levantar algumas consi- nizadas em rede (participação de outros parentes e
derações sobre família e trabalho social, evidencian- de pessoas da comunidade no convívio e em prol da
do aspectos predominantes do ponto de vista social. sobrevivência) e que têm como foco o sistema de
Para melhor compreensão, essas questões serão tra- obrigações, diferenciam-se das de camadas médias,
tadas em tópicos específicos, não obstante a articu- que se organizam em núcleos centrados no paren-
lação entre ambas no texto. tesco. Esse conhecimento é relativamente difundido.
Além de constar em marcos legais, como no PNCFC,
Sarti (1996) e Fonseca (2002) enfatizam essa pers-
Família e rede de relações sociais pectiva de análise e, de modo geral, pesquisadores
que trabalham com famílias pobres ou abaixo da li-
A noção de família remete a relacionamento en- nha de pobreza assumem essa concepção.
tre pessoas, que não necessariamente compartilham Diante disso, uma das questões que se impõe é a
o mesmo domicílio e os mesmos laços sanguíneos ou de compreender como essa organização da família
de parentesco. Essa ampliação da ideia clássica des- em rede poderia ser oficialmente assumida pelas ins-
se agrupamento humano4 parece claramente assu- tituições – sem necessariamente passar pela legali-
mida na literatura, nos marcos legais e no discurso zação do vínculo ou da responsabilidade, como é ge-
cotidiano das pessoas. Contudo, talvez ainda não es- ralmente exigido pelo sistema judiciário – com vistas
teja suficientemente incorporada nas ações a contribuir para o fortalecimento de certas estraté-
institucionais. gias de sobrevivência dessa população e da própria
Nesse sentido, uma participante de recente pes- prevalência da convivência familiar e comunitária.
quisa sobre famílias de crianças abrigadas5, ao Nessa perspectiva, podemos entender que pais,
explicitar os motivos do acolhimento institucional de sobretudo mães, criam vínculos mais estáveis com
seus filhos, indicou como uma das causas a instabili- algumas pessoas de sua rede de relações primárias,
dade de trabalho e de domicílio por ela vivida e as com as quais estabelecem trocas recíprocas, para
rupturas daí decorrentes. Esclareceu que, num dado favorecer tanto o cuidado e a proteção de seus filhos
momento, com o intuito de manter os filhos consigo, quanto a possibilidade de inserção social, aspectos
retornou à casa dos pais, em outro estado, porque es- classicamente assumidos como funções básicas da
tava separada do companheiro e, para continuar a tra- família. Contudo, para se pensar a influência das re-
balhar em São Paulo, precisava deixar suas crianças, des de relações primárias no processo de inclusão
durante o dia, com uma vizinha. Porém, foi alertada social ou de reenraizamento social (GUEIROS, 2007),
por outras mulheres que esse arranjo poderia resultar necessário se faz examinar as particularidades de
na perda de seus filhos. A fala dessa mãe parece cada família em termos de tempo e espaço sociais,
ilustrativa de como a população não se sente segura principalmente no que se refere à sua configuração
quanto ao respeito, por parte dos “agentes” de um sis- e organização, ao seu percurso transgeracional6 e à
tema cujo objetivo é ser protetivo, a suas estratégias sua localização territorial.
de sobrevivência, que incluem, por exemplo, relações A experiência tem mostrado que o grau de cone-
de obrigações mútuas com a vizinhança. xão, as direções, a quantidade e a qualidade das tro-
Considerando esse exemplo é de se perguntar cas presentes em uma rede social estão associados
como é que os profissionais do sistema sociojurídico, ao percurso da família e repercutem em suas rela-
da educação e da saúde, entre outros, traduzem no ções internas e na interação com o meio social. De
cotidiano de sua prática profissional a concepção modo geral, entende-se que as redes sociais exer-
proposta no Plano Nacional de Promoção, Prote- cem um papel de suporte, e também de controle, ao
ção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescen- indivíduo e ao seu núcleo social imediato.
tes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) Todavia, podemos supor que nos segmentos po-
(BRASIL, 2006, p. 130), a partir da qual a família pulares o desemprego e a precarização dos vínculos
pode ser pensada como: de trabalho – que se configuram como expressões
poderosas das transformações societais e têm sido
Um grupo de pessoas que são unidas por laços de apontados como fatores preponderantes na
consanguinidade, de aliança e de afinidade. Esses esgarçadura dos vínculos familiares e sociais – afe-
laços são constituídos de representações, práticas tam o conjunto de indivíduos que compõe essa rede
e relações de obrigações mútuas. Por sua vez, es- social7. Portanto, em que pese a solidariedade pre-
tas obrigações são organizadas de acordo com a sente entre esses segmentos, a entreajuda é insufici-
faixa etária, as relações de geração e de gênero, que ente para fazer frente a momentos de crise ou de
acentuação da vulnerabilidade social em que vivem, enfrentamento das causas estruturais da paupe-
em decorrência dos efeitos da colossal desigualdade rização, no planejamento e na execução de um tra-
social brasileira. balho social, há de se direcionarem esforços para a
Especialmente nessas circunstâncias, cabe ao pro- articulação entre bens e serviços públicos como for-
fissional de Serviço Social direcionar sua ação para ma de assegurar os direitos individuais e sociais à
inserir as famílias nas redes sociais secundárias (or- família. Desse modo, torna-se imprescindível a orga-
ganizações do poder público e da sociedade civil). Por nização da rede de serviços do território, que inclui o
meio da oferta de serviços de qualidade e de suficien- constante diálogo entre as diferentes organizações,
tes recursos sociais, que devem ter como princípios a na perspectiva de evitar descontinuidades, lacunas
universalidade e a integralidade, essa rede de serviços ou sobreposições de ações.
tem a responsabilidade de assegurar condições Uma eficiente organização da rede de serviços
protetivas às famílias, na perspectiva da efetivação de pode proporcionar o atendimento em tempo hábil às
direitos e de fomentação de processos emancipatórios, necessidades apresentadas pela família. A prática tem
com vistas a promover a justiça social. mostrado que, em prol da efetividade e eficácia do
A experiência obtida nos campos da saúde men- trabalho social, certas demandas precisam ser res-
tal e do sistema sociojurídico indicou a importância pondidas com a maior brevidade possível, inclusive
de o profissional reconhecer a família como sujeito porque disso depende o não agravamento da questão
de direitos e trabalhar na defesa da garantia de seus em foco. Se esse aspecto não for considerado, o que
direitos sociais, inclusive por meio da promoção do emergiu como sendo de média complexidade pode
acesso a políticas públicas – que tenham como obje- se transformar em situação de alta complexidade e,
tivo final a inclusão produtiva. Isso implica assumir a por conseguinte, exigir mais tempo e recursos para
família como uma referência social, concebendo-a seu equacionamento, além de ocasionar maior sofri-
em sua historicidade, em sua localização territorial e mento e até danos à pessoa ou à família.
como mediadora entre seus membros e a coletivida- Na prática com a população de segmentos popula-
de. Compreender a pluralidade em suas formas de res, foi possível constatar que um outro desdobramento
organização e as particularidades que emergem da da não efetividade das ações é a descrença nos servi-
condição de classe social e das relações de gênero e ços oferecidos, o que pode repercutir negativamente na
de geração, bem como da singularidade relativa a forma como a família participa da proposta do trabalho
questões étnicas e culturais, são aspectos também e no próprio sentimento de “ter direito a direitos”. Nes-
preponderantes para o assistente social lidar com o se sentido, cabe indagar se houve o necessário exame e
trabalho social direcionado às famílias. a devida contextualização da(s) questão(ões)
apresentada(s) pela família, bem como do caminho que
ela já percorreu na tentativa de ver suas demandas aten-
Trabalho social com famílias socialmente didas, de modo a evitar sua culpabilização ou
vulnerabilizadas responsabilização, sobretudo nos casos em que o
envolvimento do usuário naquele dado projeto não este-
A Política Nacional de Assistência Social apre- ja atendendo ao inicialmente planejado.
senta a matricialidade sociofamiliar como um dos tó- O rigor na análise da situação apresentada pela
picos relativos ao “Conceito e a Base de Organiza- família e de seu percurso de vida permite a compre-
ção do Sistema Único de Assistência Social”. A im- ensão desse núcleo para além do tempo presente e
plicação disso é a necessidade de se conhecer, em das demandas emergenciais e pode favorecer a for-
profundidade, as famílias às quais estão direcionadas mulação de programas eficazes. Assim sendo, a iden-
as ações, pois pela própria multiplicidade de configu- tificação, a valorização e a potencialização das ca-
rações, formas de convivência – diretamente relaci- pacidades ou competências8 dos sujeitos, se realiza-
onadas a suas condições sociais, crenças e hábitos da de forma que eles se sintam partícipes desse pro-
culturais – e por constituírem espaço de contradi- cesso, podem, com o devido apoio técnico e acesso
ções e conflitos, tais famílias apresentam significati- às políticas públicas de proteção social, contribuir para
vas diferenças entre si, mesmo fazendo parte de um a emancipação da família e, consequentemente, para
mesmo segmento social. Identificar no que as famíli- o equacionamento de suas adversidades cotidianas.
as se igualam e no que elas se diferenciam parece Uma análise cuidadosa das questões apresenta-
ser um dos primeiros desafios que se apresenta para das por indivíduos e famílias pode evitar também jul-
os serviços cuja responsabilidade é a de imple- gamentos precipitados sobre seus modos de vida. É
mentação de políticas sociais, por meio da interessante que se indague, por exemplo, quais são
estruturação de ações que possam ser efetivas e efi- os motivos que levam uma mulher-mãe a buscar, de
cazes para a população alvo. forma repetitiva, novos parceiros. Seria essa uma
Tendo sempre presente a importância de coleti- tentativa de obter proteção em territórios cuja vio-
vamente mobilizarem-se forças em prol do lência é muito grande? Ou seria também uma forma
de conquistar, por meio da troca afetiva, algum forta- do território e atenção individualizada e coletiva à
lecimento para enfrentar as agruras de seu dia a dia? população usuária, realizados de forma regular e
Será que o homem continua frequente. Deve contemplar
ocupando, nesse segmento igualmente a interdisciplina-
social, o papel de principal Um trabalho que abarque esse ridade e intersetorialidade (ar-
mediador entre a família e o processo conjunto com a ticulação das políticas de saú-
meio social imediato? Presu- de, educação, assistência e
mimos que o exame dessa e família deve estar diretamente habitação, entre outras) e ze-
de outras questões pode con- lar pela permanência a mé-
tribuir para que o profissional associado às necessidades dio e longo prazo dos progra-
efetive ações concernentes mas e serviços oferecidos,
às demandas da população apresentadas por ela, mas, via posto que as famílias já vivem
usuária daquele dado progra- múltiplas instabilidades (de
ma ou serviço. de regra, é importante que se trabalho, de domicílio, da rede
Um trabalho que abarque de suas relações sociais pri-
esse processo conjunto com realizem, além de sua inclusão márias, por exemplo) e não
a família deve estar direta- em políticas de proteção social, podem ser submetidas tam-
mente associado às necessi- bém a projetos que não se
dades apresentadas por ela, diferentes modalidades de constituam em políticas de
mas, via de regra, é impor- longo alcance, em termos dos
tante que se realizem, além atendimento, algumas de recursos necessários e de um
de sua inclusão em políticas tempo viável ao processo de
de proteção social, diferentes caráter individualizado e autonomia e de emancipação
modalidades de atendimento, da família.
algumas de caráter individu- outras de caráter coletivo. Com a clareza de que as
alizado e outras de caráter considerações feitas neste ar-
coletivo. Esse cuidado é ne- tigo não contemplam a com-
cessário porque um indivíduo, ou uma família, pode plexidade inerente a uma prática social com famílias,
melhor se expressar em uma determinada modalida- salientamos, por último, a necessidade de permanente
de do que em outra e, assim, ampliam-se as possibi- avaliação e monitoramento10 do trabalho social como
lidades de identificação de suas questões e de suas forma de torná-lo condizente com as demandas da po-
potencialidades. pulação em foco, eficaz em suas ações e efetivo em
A atenção individualizada visa abordar as ques- seus objetivos. Nessa perspectiva, um aspecto que
tões que são singulares àquela família, sobretudo as pode e deve ser contemplado é a reflexão, e redefinição
relativas às vicissitudes de seu percurso de vida, ao se for o caso, de conceitos que orientem os gestores e
convívio de seus vários membros e ao processo profissionais no planejamento e execução do trabalho,
socioeducacional de crianças e adolescentes. Os pro- com vistas a implementar as premissas conceituais e
cedimentos de caráter coletivo envolvem diversas legais das questões em foco, fazer a devida articula-
famílias e têm o objetivo de trabalhar as particulari- ção das condições vividas pela população com as re-
dades daquele conjunto de sujeitos e de estimular a lações sociais mais amplas e a defesa intransigente da
articulação entre eles, inclusive em prol da reivindi- garantia dos direitos fundamentais dos sujeitos em prol
cação de seus direitos sociais. de sua autonomia e cidadania.
Entre as atividades coletivas, observamos que as de
cunho sociorrecreativas (programações realizadas em
parques e espaços culturais, por exemplo, definidas a Considerações finais
partir das aspirações dos participantes) eram muito bem
aceitas e favoreciam um efetivo entrosamento intra e Nos diversos campos de atuação do assistente
inter familiar. Tinham também o objetivo de ampliar o social, é notória a complexidade das questões que
conhecimento e acesso das famílias a bens e serviços se apresentam cotidianamente. As demandas –
de seu território e da cidade onde residem e de possibi- advindas de um processo de exclusão social cada
litar a qualificação da vinculação entre os participantes vez mais agudizado, decorrente sobretudo do de-
e desses com o programa social, além de possibilitar semprego e da precarização do trabalho – exigem
melhores condições para a reflexão sobre sua proble- respostas que estejam embasadas na análise da ar-
mática, inclusive porque o lazer concorre para o exercí- ticulação entre os processos econômicos, políticos
cio intelectual (WEIL, [1949] 1996). e culturais preponderantes na sociedade naquele
Desse modo, o trabalho social com famílias9, abar- dado momento, aos quais a população está subme-
ca procedimentos relativos à rede de bens e serviços tida e, portanto, vivendo seus reflexos.
Nesse sentido, as intervenções no âmbito do Ser- VITALE, M. A. F.; BAPTISTA, M. V. Famílias de crianças
viço Social devem resultar de uma análise criteriosa e adolescentes abrigados: quem são, como vivem, o que
das demandas e do percurso de vida dos sujeitos ou sentem, o que desejam. São Paulo: Paulus, 2008. p. 143-
das famílias a quem está direcionada a ação profissi- 174.
onal, inclusive para obter uma compreensão mais
apurada das estratégias de enfrentamento das MIOTO, R. C. T. Novas propostas e velhos princípios: a
vulnerabilidades sociais da população alvo, tendo sem- assistência às famílias no contexto de programas de
pre em vista as causas estruturais de sua orientação e apoio sociofamiliar. In: SALES, M. A.; MATOS,
pauperização e de seu desenraizamento social. M. C.; LEAL, M. C. (Org.). Política social, família e
Entendemos também como peculiar a um traba- juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2004.
lho social com famílias, além da consideração às p. 43-60. (v. 1).
condicionalidades já referidas, um entendimento da
política assistencial como política de seguridade so- SANICOLA, L. As dinâmicas da rede e o trabalho social.
cial e uma direcionalidade para a efetivação de direi- São Paulo: Veras, 2008.
tos sociais.
Desse modo, consideramos imprescindível que os SARTI, C. A. A família como espelho: um estudo sobre
assistentes sociais gestores ou executores de proje- a moral dos pobres. Campinas: Autores Associados,
tos sociais avaliem constantemente se as ações em 1996.
curso estão trazendo algum impacto para a supera-
ção das vulnerabilidades sociais e em prol do proces- SINGLY, F. Sociologia da família contemporânea.
so de emancipação e de cidadania daqueles indivídu- Tradução de Clarice Ehlers Peixoto. Rio de Janeiro: FGV,
os e famílias. 2007.
4 A ideia clássica de família é a de que os pais vivem juntos e quanto a propósitos, processos de ação e alocação de
no mesmo domicílio com os filhos, havendo clara distinção recursos [...]”.
entre os papéis atribuídos ao homem e à mulher e uma relação
hierárquica e pouco democrática entre as gerações (família
nuclear patriarcal). Essa noção foi-se modificando Dalva Azevedo Gueiros
principalmente a partir da segunda metade do século 20. dalazg@uol.com.br
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universi-
5 O conjunto das questões apresentadas por essa participante dade Católica de São Paulo (PUC-SP)
pode ser visto em Gueiros, Vitale e Sette (2008, p. 153-160). Assistente Social do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo
6 Gueiros, Vitale e Sette (2008) discutem percursos de famílias Professora da Graduação em Serviço Social e do
que tiveram filhos abrigados e um instrumento de pesquisa, Mestrado em Políticas Sociais da Universidade Cru-
o genograma, para captar e compreender tais percursos. zeiro do Sul (Unicsul, São Paulo)