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EXPEDIENTE
13 A 18 de setembro de 2009
Anais
Organizado por
ABRAPLIP
Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa
Região Sul 1 (RS e SC) – Profa. Dra. Simone Schimidt (UFSC) e Prof. Dr. Pedro Brum (UFSM)
Região Sul 2 (SP, PR e MS) – Profa. Dra. Anamaria Filizola (UFPR) e Profa. Dra. Rosana Cristina Zanelatto Santos
(UFMS)
Região Sudeste 1 (RJ e ES) – Prof. Dr. Sílvio Renato Jorge (UFF) e Prof. Dr. Sérgio Nazar David (UERJ)
Região Sudeste 2 (MG, GO e TO) – Profa. Dra. Marli Fantini Scarpelli (UFMG) e Profa. Dra. Osmar Oliva
(UNIMONTES)
Região Nordeste 1 (BA, SE e AL) – Prof. Dr. Marcello Moreira (UESB) e Profa. Dra. Márcia Mirella Longo Vieira
Lima (UFBA)
Região Nordeste 2 (PE, PB, RN, CE, MA e PI) – Prof. Dr. José Rodrigues Paiva (UFPE) e Profa. Dra. Elizabeth Dias
Martins (UFC)
Região Norte (AM, AC, PA, RO, RR e MT) – Prof. Dr. Gabriel Albuquerque (UFAM) e Prof. Dr. Silvio Augusto
Oliveira Holanda (UFPA)
Comissão Científica:
Adriano Eysen
Francisco Ferreira de Lima
Marcello Moreira
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Maria de Fátima Maia Ribeiro
Maria de Pompéia Santana e Sousa
Maria do Céu Martins Bahiense Bezerra Bauler
Maria Thereza Abelha Alves
Olímpia Ribeiro de Santana
Sandro Santos Ornellas
Sérgio Nazar David
Mesas Plenárias
APRESENTAÇÃO DOS ANAIS DO
XXII CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO
BRASILEIRA DE PROFESSORES DE LITERATURA
PORTUGUESA
I
Estes Anais são uma conclusão e a fixação material, em suporte eletrônico, de quase
tudo o que se ali viveu. A memória nos guarda, o presente nos orienta, o futuro nos
inspira.
Apoiaram-nos e tornaram possível a realização do XXII Congresso Internacional
da ABRAPLIP um grande número de entidades e instituições públicas e privadas e
órgãos de fomento ao ensino e à pesquisa, nacionais e estrangeiros. A todos – indicados
abaixo – nossos mais sinceros agradecimentos.
A opção eletrônica destes Anais deve-se ao desejo de maior acessibilidade e,
consequentemente, de mais fácil e rápida divulgação dos frutos produzidos. A estrutura
da publicação segue a organização assumida pelo congresso – trabalhos em Mesas
Plenárias, em Mesas Temáticas e em Mesas de Comunicações. Estão publicados os
textos que nos foram enviados pelos participantes. Todos os textos foram submetidos a
um processo de sistematização formal. A revisão linguística dos textos, todavia, é de
inteira responsabilidade de seus autores.
Boa leitura a todos!
II
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Senhoras e Senhores:
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“Faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A
Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e
nosso orgulho; a obra monumental de Édison Carneiro, pioneiro dos estudos
sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico literário, o grande
Édison; os Sonetos do Malquerer e os Sonetos do Bem-querer, de Alves
Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos;”
“os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos
Aflitos; os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Massapê; o
romance de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho
mudou-lhe o título para Corja; as coletâneas de poemas de Aydano do Couto
Ferraz; a de sonetos de Da Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira
sobre cinema — some-se com meus livros, tire-se os nove fora, o saldo,
creio, é positivo.” (Amado, 1992, p. 85)
4
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1
Ivia Alves: Arco & Flexa. Contribuição para o estudo do modernismo. Salvador, Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1978, p. 123.
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que esta busca de identidade, distante da eugenia racial e sustentada em culturas plurais
era uma tendência dos anos 20 em outros países da América Latina. A vertente moderna
a partir do regional só ganhou dimensões nacionais a partir do regionalismo de 30,
nascido no contexto modernista do Nordeste. O mesmo Jorge Amado, que rejeitava as
propostas da Semana de 22, chegou à realização estética moderna, capaz de traduzir o
seu contexto cultural, com o romance que caracterizou o regionalismo de 30.
Convém acrescentar que a idéia de modernidade artística comprometida com as
novas invenções industriais, o fervilhar e a velocidade feérica das grandes cidades, era
uma idéia européia que seduzia o espírito industrial paulista, mas não era uma constante
no pensamento baiano e do nordeste. Poetas modernos marcados pela força da terra
viram algumas marcas dos novos tempos como forma de empobrecimento cultural, ou
como aniquilamento de uma visão do paraíso.
Eurico Alves, do grupo Arco & Flexa, na “Elegia a Manuel Bandeira”, convida o
poeta a ir a Feira de Santana, onde:
Mas o que parece um abismo entre o modernismo da Bahia e o de São Paulo pode
se restringir ao impacto causado pelas idéias da Semana de 22. Como o progresso de
São Paulo trouxe, primeiro, a inquietação, lá o modernismo logo conheceu o
deslumbramento pelas novidades vindas de fora; depois trocadas pelo mergulho dos
seus escritores nas raízes nacionais, especialmente a partir de 1928.
Voltando à Bahia, o crítico Eugênio Gomes, praticante de poemas de amor
surgidos na revista Arco & Flexa, e considerado como autor do primeiro livro
modernista editado na Bahia2, transfere esta primazia a Godofredo Filho. Com efeito,
em 1925, Carlos Chiacchio escreveu na sua coluna “Homens e Obras” um comentário
2
Carlos Chiacchio: O nosso primeiro livro modernista. A Luva, 5 out. 1928, n. 82.
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“Na Bahia, nós tínhamos fundamentos que não podíamos abandonar de todo.
Daí o “Tradicionismo Dinâmico”, porque nós queríamos ir para adiante, mas
sem renegar o passado. E não era fazendo tábula rasa como a revista
Antropofagia, de Oswald de Andrade, porque, na verdade, nesse primeiro
momento é Oswald que tem maior realce, Mário de Andrade apareceu
posteriormente.
“Eles queriam fazer tábula rasa de tudo. Então inventamos esta expressão de
“tradicionismo dinâmico” que era tradição, sim, porque respeitávamos as
tradições baianas, mas não ficávamos presos a elas, queríamos sob a base
dessa tradição construir o futuro, uma coisa nova, porque também tínhamos a
nossa idéia nacionalista.” 4
Nesse artigo de abertura da revista Arco & Flexa, Chiacchio esclarece, em tom de
manifesto, que toda cultura se vale da tradição para encontrar novos caminhos, se vale
do regional para chegar ao universal – “sem perder o contato com a terra”. 5 Ao afirmar
que a cultura universalista refina a sensibilidade local, ele rejeita o apego ao que chama
3
Carlos Chiacchio: Poesia Nova. A Tarde, Salvador, 10 jan. 1925. A nota não vinha assinada, mas como
figurava na seção mantida nesse jornal pelo conceituado crítico, a autoria não oferece dúvida.
4
Ivia Alves: Arco & Flexa. Contribuição para o estudo do modernismo. Salvador, Fundação Cultural do
Estado da Bahia, 1978, p. 119-120.
5
Carlos Chiacchio: Tradicionismo dinâmico. Arco & Flexa. Mensário de cultura moderna, n. 1,
Salvador, nov. 1928, p. 4.
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6
Carlos Chiacchio: op. cit., p. 6.
7
Ivia Alves: op. cit., p. 123.
8
Gabriel Alomar Villalonga: Futurismo. In Héctor Olea: O futurismo catalão antes do futurismo. São
Paulo, Edusp / Giordano, 1993, p. 13.
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Escrever sobre alguém que muito se estimou, com quem se conviveu bem
proximamente, é sempre um tanto autobiográfico, por vezes confessional, sobretudo se
esse convívio deixou marcas indeléveis. É de dois convívios assim que venho, pois, dar
meu testemunho, neste espaço privilegiado em que se lembra o que devemos aos
mestres que nos antecederam.
Ouçam-me, por favor, e perdoem se a voz às vezes se enrouquece, se afoga na
emoção que ainda me invade, à distância de sete décadas. Por isso, o meu discurso é
altamente modalizante, um discurso que tem um referente real, mas que é temperado
pela minha subjetividade, pela minha ternura.
Em 1935, em São Paulo, um punhado de estudantes descobria a existência de
uma nova Faculdade recém-criada na USP: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
–, cujo corpo docente se constituía quase exclusivamente de jovens mestres europeus,
que já então faziam prever as alturas a que subiriam mais tarde. Entre estes cito Lévi-
Strauss, Fernand Paul Braudel e Roger Bastide. Outros nos chegavam em plena
maturidade; dois deles eram da área das Letras – Giuseppe Ungaretti e Fidelino de
Figueiredo. Foi assim que os alunos de Letras Clássicas ou de Línguas Estrangeiras (tal
era o nome do curso que passou a ser, durante longos anos, de Letras Neolatinas)
fizeram a sua formação universitária à sombra de jovens e talentosos docentes que
andavam pelos trinta anos, ou dos que, à volta dos cinqüenta, nos traziam a fina
sensibilidade, o saber adquirido pelo “honesto estudo” “com longa experiência
misturado”– experiência no trato dos textos, mas também no das gentes, o que me
parecia naquela altura, e me parece, ainda e sempre, qualidade imprescindível ao
professor. De todos me lembro com respeitosa admiração, grata pelo muito com que
me enriqueceram a mente; dentre tantos mestres, um ficou sendo o Mestre: Fidelino de
Figueiredo.
Chegou ele a São Paulo em 1938, para assumir a Cadeira de Literatura
Portuguesa, precedido da fama de uma obra já realizada e de uma vida que se poderia
dizer “pelo mundo em pedaços repartida”, perseguido por um regime político a que não
podia submeter-se, dada a forma como respeitava o homem e o direito à livre expressão.
O desejo de conhecê-lo se misturava a uma certa apreensão: como reagiria
diante de nossa natural inexperiência? No primeiro dia de aulas entrei na pequenina
biblioteca da Faculdade e lá encontrei alguém cuja cabeça não via, pois estava metida
no guichê da sala de consultas. Falava com a bibliotecária, queixando-se da falta de
livros disponíveis para o curso, com uma pronúncia que não admitia dúvidas... Surpreso
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com as respostas evasivas que lhe davam, alteava a voz, cortês, mas severo. E foi uma
expressão severa que enfrentei: olhos sérios, lábios selados por um bigode espesso.
Olhou-me e algo em mim lhe revelou o espanto quase temor que me causava. Sorriram-
lhe os olhos e logo se lhe descerraram os lábios, revelando dentes fortes e brancos, e,
mais que isso, toda a capacidade de simpatia humana de que era dotado. Sorri também
eu e lhe disse que seria sua aluna. Quebrara-se o encanto. Conduzi-o à sala de aula e o
apresentei à pequena turma que éramos, naquele longínquo ano de 1938, em que a USP
ia dando seus primeiros passos.
Sua imensa cultura, sua extraordinária sensibilidade, sua reflexão profunda
foram-nos rasgando horizontes que desvendavam um novo mundo de conhecimentos
em que podíamos penetrar por sua mão.
Deu aos estudantes de São Paulo o máximo a que podiam aspirar – suas lições
modelares transmitiam-nos o conhecimento dos fatos, faziam-nos pensar na significação
que tinham –; o professor de Literatura nunca deixava de ser o pensador especulativo,
atento à interpretação dos problemas individuais ou sociais. Dele escreveria, cinqüenta
anos mais tarde, e com plena justiça, Jorge de Sena:
Em sua sala de trabalho na USP, guardava num armário alguns livros que nos
seriam necessários ao curso de Literatura Luso-Brasileira e nomeou-me sua agente de
ligação entre ele e os alunos, para o empréstimo dos livros. O cargo me proporcionava
um contacto quase diário com o mestre, a oportunidade de fazer-lhe perguntas e de
ouvir-lhe as respostas sábias que me abriam caminhos insuspeitados.
Não terá sido fácil para ele ministrar, em um ano, um curso de Literatura
Portuguesa e outro de Literatura Brasileira; para nós foi muito difícil, pela quantidade
de leitura exigida.
Uma manhã, já ao fim do curso, chamou-me a sua sala e, sem mais
preâmbulos, perguntou-me: “Cléo, quer ganhar uns dinheiritos trabalhando comigo?”
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Não entendi nada. Eu pensava já estar trabalhando com ele, sem ganhar nada e sem
pensar minimamente em dinheiro. Disse-lho. Ele sorriu, com seu doce sorriso, e
explicou-se: convidava-me a trabalhar ao seu lado, a sério, como sua assistente. Era
quase demais para mim. Respondi-lhe: “Claro! Nada me faria mais feliz! Obrigada,
muito obrigada...”
Estava radiante. Corri para casa a dar a notícia à família. Contei-lhes, o
convite que recebera e a felicidade de que estava plena. Não vi, porém, nos olhos de
meus pais e irmãos a expressão que esperava. E a resposta veio de minha mãe: “Teu pai
foi transferido para o Rio. Logo que acabares as provas, viajaremos.” Minha face lhes
terá revelado o estado em que eu me sentia. Consternados por mim, tentaram consolar-
me. Mas eu me sentia só, acabrunhada pela decepção. Desabara do alto dos meus
sonhos.
Voltamos ao Rio. Sentia-me perdida. Nem mestres, nem colegas, nem amigos.
Os antigos laços tinham-se rompido. Reagi e pus-me à caça de uma ocupação. Duas
alunas particulares, um colégio secundário, já não era mau. Próximo à nossa casa, a
Universidade do Distrito Federal; lá, um filólogo notável, Sousa da Silveira, orientava
teses de doutorado. Aceitou-me como discípula e comecei a pesquisa nas cantigas
trovadorescas.
Nesse ínterim, o Professor Fidelino de Figueiredo aceitara lecionar também no
Rio; fui ouvir-lhe as aulas, matar saudades. De novo me convidou a ser sua assistente,
sem conseguir, no entanto, a minha nomeação, pela qual lutou empenhadamente.
O clima do Rio não foi favorável ao meu querido Mestre e ele voltou à USP.
Mais uma decepção; mais uma vez eu perdia a ocasião de começar uma carreira que me
atraía mais e mais, à medida que me fugia.
Viveu ainda bastantes anos no Brasil, mas sempre em São Paulo, aonde não
voltei. O Mestre, no entanto, não me esquecera: mantivemos uma correspondência não
muito assídua, mas sempre afetuosa; fui tomando conhecimento de que uma estranha
moléstia se ia apoderando do seu organismo, tolhendo-lhe gradativamente os
movimentos e a fala. Assim fui encontrá-lo, em 1959, em sua casa de Alvalade, em
Lisboa. Levava-me lá o grande amigo, seu e meu, o Professor Hernâni Cidade. Uma
grande emoção me fez parar à porta, ao vê-lo tentar erguer-se penosamente e em vão da
cadeira, à cabeceira da mesa, para me receber: o esforço lhe contraía a face e lhe dava o
ar severo do nosso primeiro encontro. Ao ver-me, porém, como naquela já distante
manhã paulista, descerraram-se-lhe os lábios num sorriso de dentes brancos e sãos. Só
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não veio a palavra amiga, que eu nunca mais poderia ouvir. Para provar-lhe o meu
carinho e para que ele não me visse os olhos molhados, curvei-me e beijei-lhe a mão,
filialmente.
Era preciso quebrar a tensão, e foi ele o primeiro a reagir, fazendo-me sentar ao
seu lado. Em seguida, com dedos tolhidos, datilografou: “Cléo, que fez dos vinte anos
que passámos separados?” E o nosso diálogo fluiu naturalmente, como se nos
tivéssemos falado na véspera; com uma prodigiosa memória, perguntava por tudo. Mas
eu também perguntava: “Que estava escrevendo, que projetos tinha?” Aquele homem
admirável, privado de sua magnífica expressão oral, concentrara-se todo na mensagem
escrita que, sem cessar, transmitia à humanidade. Na sala discreta e acolhedora, a tarde
de Primavera ia escoando-se. Era preciso partir, dizer-lhe adeus. “Por que não volta ao
Brasil? Seus filhos e netos lá estão e tantos amigos...” “Minha filha, uma árvore velha
tem raízes profundas, não é possível arrancá-la...” Ao lado a esposa incomparável sorria
meigamente: sua missão era estar com ele, ser a sua voz...
Em 1962 li a notícia de que o casal Fidelino de Figueiredo vinha para o Brasil.
Feliz, escrevi-lhe imediatamente. Veio-me a resposta – a última que recebi
dactilografada por ele:
Nos anos seguintes, era D. Dulce que me respondia, transmitindo recados seus.
Ele continuava a trabalhar, escrevendo dificultosamente à máquina o que tumultuava em
sua mente iluminada, sentindo-se emparedado na impossibilidade crescente de
comunicar-se. E tinha tanto a dizer!
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Muitas vezes tenho escrito ou falado sobre Fidelino de Figueiredo, pois ele é
referência indispensável em todos os momentos nos quais, entrevistada ou convidada a
escrever ou falar sobre minha vida universitária, repito que, tal como, no Gênesis, se diz
da criação do mundo, “no início era o Verbo”, digo, sem hesitação, para definir a o
início da minha paixão pela Literatura Portuguesa: “no início era Fidelino de
Figueiredo”.
Achei, no entanto, que deveria ir além do depoimento da discípula,
acrescentando algumas impressões da leitora de seus inúmeros, variados e sempre
atraentes ensaios. Fui buscá-los na prateleira em que estão enfileirados, alguns dos quais
escritos na extrema juventude. Foi um escritor muito precoce, começando a publicar aos
dezesseis anos, tendo a ousadia de, aos vinte e um, escrever uma breve História da
Crítica Literária em Portugal e, aos vinte e três, um texto arguto e refletido, A Crítica
Literária como Ciência; no ano seguinte, 1913, lança a sua História da Literatura
Romântica, seguida, em 1914, da História da Literatura Realista, e, em 1917, da
História da Literatura Clássica. Estas histórias parciais, somadas num conjunto ao qual
falta (e é pena) a Idade Média, embora escritas por um autor de menos de trinta anos,
ainda constituem fonte a ser consultada com proveito por estudiosos dos anos 2000.
Também em 1914 editou “Características da Literatura Portuguesa”.
Aos vinte e nove anos é diretor da Biblioteca Nacional, em Lisboa, e publica
Como dirigi a Biblioteca, a prestar contas de um trabalho nela exercido com a máxima
competência. Há alguns anos, entrando na sala onde são recebidos os novos leitores,
para que se inscrevam e sejam orientados, ao erguer os olhos em direção à parede,
deparei-me com o seu retrato – não o do jovem que a dirigiu, mas o do homem maduro
que conheci. Foi uma suave emoção, percebida pela funcionária, a quem expliquei, com
justo orgulho: “Foi meu Mestre.”
Por volta dos quarenta, publicou Torre de Babel, Sob a cinza do tédio e
Donjuanismo e anti-donjuanismo em Portugal, no qual aborda um aspecto marcante da
personalidade de Garrett, reencontrada no Carlos das Viagens na minha terra: o
donjuanismo.
Aos quarenta e seis, lança Pyrene, um estudo de Literatura Comparada, cujo
título foi tirado do nome da ninfa Pyrene, moradora dos montes que por ela se
chamaram Pyreneus, já que constituem a pétrea fronteira entre a Europa e a Península
Ibérica. Desta se ocupará o autor, estudando-lhe as literaturas e as culturas, com
propósito comparativo.
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[...] porque a obra de Eça constitue uma interpretação total da vida, com seus
problemas e suas soluções, é um mundo ideal, em que a ironia carrega as
cores tristes do que é, para nos fazer anelar o que deveria ser. É uma filosofia
em acção, não em ideias, mas em formas e cores.
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para ser sua assistente a corroboraria; o ter continuado por setenta anos a tradição por
ele inaugurada, mantendo e propagando a devoção que me inspirou o professor, o
cidadão, o homem total, também seria significativo. Um único nome poderia competir
com o meu, mas, infelizmente, Antonio Soares Amora deixou-nos há pouco mais de dez
anos. Companheiros de turma, tomados da mesma admiração pelo Mestre, fomos ambos
convidados a trabalhar a seu lado, demos origem a uma plêiade de professores
competentes de Literatura Portuguesa, respeitados no Brasil e fora dele, por alunos e
colegas, a quem passamos o facho que de suas mãos recebemos. Honramo-lo ambos e
acredito que ele esteja contente conosco.
* * * * * * *
Se pouco atrás lhes disse que no princípio da minha paixão pela Literatura
Portuguesa era o Prof. Fidelino de Figueiredo, posso dizer-lhes agora que na origem do
meu magistério universitário era o professor Thiers.
Conheci-o já formada em Letras pela USP, professora em dois colégios do Rio de
Janeiro. Num deles, o Colégio Melo e Sousa, tive um colega que ainda cursava Letras
Neolatinas na Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, onde
era aluno do Prof. Thiers. Num intervalo entre aulas, Florindo Vill’Álvares disse-me
que o Catedrático estava buscando estudantes com aptidão para o teatro, a fim de tornar
possível a montagem de um espetáculo vicentino. Eu estava matriculada no doutorado
e, portanto, poderia participar. Gostei da idéia, fui à Faculdade, onde Florindo me
apresentou ao professor e comecei a ensaiar.
Com alguma prática adquirida na USP, representando Molière, não me foi difícil
interpretar dois papéis em autos vicentinos. Um pouco mais velha que os colegas-atores,
pude ajudá-los, por conhecer melhor a língua arcaica, o sentido por vezes difícil de
apreender. De meramente atriz, passei a coorientadora da representação, prestigiada
pelo nosso ensaiador, Sadi Cabral. Esse trabalho conjunto me aproximou mais e mais do
Prof. Thiers, levando-o a conhecer-me melhor e a fazer de mim um julgamento
suficiente para que, no dia seguinte ao da nossa representação, me telefonasse, pedindo-
me que fosse encontrá-lo na Faculdade.
Cheia de curiosidade, estava lá no dia seguinte. Depois de uma conversa
preambular, em que ele exprimiu a sua satisfação pelo sucesso do nosso espetáculo,
passou a dizer-me que estava autorizado pela Universidade a pedir a nomeação de um
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O que se vai ler, desde a Introdução às Notas e Comentários, foi escrito sob o
signo da ironia, velha figura de retórica que ao seu modo, parecendo rir,
nunca deixou de servir à verdade. Ela afirma pela negação ou nega pela
afirmativa, e conserva sempre uma larga margem indefinida acerca do que se
quis dizer. Nesta margem o leitor intervém com a sua participação. É campo
seu. Ora, Quincas Borba realiza a personagem ideal para o exercício dessa
arte dos contrários e do duvidoso. Podemos aceitar que suas verdades não
são verdades ou que, sendo verdade, bem poderão não ser. Cabe ao leitor a
decisão. A mais coube a advertência.
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Eu, Quincas Borba, dei nome a um livro, dei nome a um cão. Nasci, vivi e
morri: logo existo. E sou um otimista. Mas como Machado de Assis é um
pessimista, utilizou essa realidade para desfazer o otimismo e não se
interessou em dar destaque à minha doutrina [...]
A amarga nebulosa inicial de onde vieram Braz Cubas e Quincas Borba é, claro
está, Machado de Assis.
Isso dizia o Brás Cubas de Thiers Martins Moreira em 1964, três anos antes de
surgir a obra bastante revolucionária sob vários aspectos, L’écriture et la différence, de
Jacques Derrida, onde se diz que
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levemente erótico, vejamos: “a casa, como um vulto distante que se aproxima, começou
a mostrar sua forma aos olhos que até então não a viam”; [...] o Menino “caminhou
para as descobertas como quem procura”.
“Foi, então a grande fase da posse consciente”. Como numa paixão infantil, na
primeira, sobretudo, “dificilmente comunicava a alguém o fato que lhe fora revelado ou
a emoção que tivera”; “o Palacete se entregava ao Menino”. E, para terminar a
realização da Amizade, assim se diz: “São dois seres que se encontram e que repousam
um no outro num instante essencial de suas vidas”.
Curiosamente, no conjunto final do capítulo intitulado “A compreensão”, depois
do Abandono (pelo Menino) vem o Reencontro (pelo adulto) em que este, comparando
as imagens que, “dia a dia, se impunham na [sua] memória”, via que eram todos
menores que a do Palacete, terminando por reconhecer que “em verdade não era a casa
que ressurgia em mim pelos caminhos da compreensão, mas eu que ainda nela vivia,
dependendo de seu calor como de um aconchego materno.” Relação edipiana entre o
Menino e o Palacete? Por que não?
Voltamos atrás. Depois dos quatro capítulos – “do Encontro” à “Amizade” –
vem um grupo de quatro sub-capítulos enfaixados sob o nome de “Mistério e fantasia”.
Na verdade, nenhuma coisa extraordinária acontece ou se revela: o pequeno quarto
apenas continha canos de chumbo espalhados pelo chão; o cofre enterrado era uma
velha caixa sem fundo e, portanto, vazia. Foi a fantasia do Menino que lhes emprestou
o mistério. Do presente da narração, o adulto olha o passado e se enternece com “a
caixa de ferro mergulhada na terra”, “que lhe trouxe essa pequena história maravilhosa,
sem princípio e sem fim.”
É isso mesmo: sem princípio e sem fim. O adulto não a arranjou, não a retocou.
Não lhe faltava imaginação para tal. Deixou-a ficar intacta e despida, com a só
roupagem do fascínio exercido sobre o Menino, nessa troca em que este e o Palacete se
entregavam mutuamente.
Ao fim dos “Fragmentos do Diálogo”, um capítulo se situa, como diz o autor,
“entre o Encontro e o início do Abandono” – é a “Nota sobre o tempo”, com reflexões
de rara beleza sobre a densidade do tempo recuperado, em que lhe parece que os dez
anos duraram um dia, mas um dia tão rico como o que está no Gênesis. Nele se chega ao
momento em que, à beira da adolescência, o Menino vai sentindo que “Lentamente
morria o diálogo entre os dois. Chegava ao fim o tempo das impressões.”
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Talvez, se não fosse o Menino, um grande olvido caísse sobre os seus muros.
Alguém precisava, pois, de vir contar o que o Palacete foi, o que foi a sua
beleza e a decadência que estranhos lhe impuseram. Alguém que, tendo
convivido com ele, restasse fiel à sua memória para narrar, como Horácio, no
fim do Hamlet, a triste vida de um príncipe infeliz.
Quando li pela primeira vez este livro primoroso, experimentei emoções várias: a
surpresa de me deparar com um especialíssimo livro de memórias que eu não sabia
como qualificar; o encantamento pelo que nele estava – o referente fugidio transposto
por um discurso original e conciso, ao mesmo tempo que extremamente poético.
Nove anos depois, vieram Os seres. Li-os já com outro espírito, sabendo ou
imaginando o que lá iria encontrar. Não me decepcionei. Os seres são, pelo menos, um
livro tão belo e bem realizado como o anterior. O processo de narrar é que muda ou
simula mudar. No primeiro, o adulto procurava apagar-se; neste, está presente todo o
tempo.
Chegamos ao fim do livro: “Da narrativa”. Concluída esta, o narrador se
concentra para tomar plena consciência de como procedeu, por artes da memória.
Recriou os seres e agora escreve “[...] vou novamente deixá-los. Conscientemente. Vou
deixá-los ali. Talvez deixá-los aqui, neste livro. Não sei bem. Ou casa e livro são uma
só coisa, um só mundo, o imprescindível a suas existências escritas.” Vai, pois,
enumerando-os e pondo-os em seus lugares, para concluir: “Os sem espaço, esses
flutuam pela atmosfera da casa. Têm dela o senhorio abstrato.”
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1. PERFIL BIOGRÁFICO
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Europa – cujas atividades culminaram com a que foi considerada importante exposição
iconográfica e documental levada a Lisboa e mostrada no Palácio Foz. Durante um mês,
Jordão Emerenciano participou de atos oficiais e de atividades acadêmicas alusivas à
literatura e à passagem da relevante data da história pernambucana, de tudo prestando
contas no livro Missões na Europa (1956).
Em 1970, em pareceria com o Gabinete Português de Leitura de Pernambuco,
então sob a presidência de Alfredo Xavier Pinto Coelho Afonso, Jordão levaria a
Portugal mais uma das suas iniciativas: a “Primeira Exposição sobre o Norte e o
Nordeste do Brasil”, igualmente montada no Palácio Foz. Em retribuição, o Governo
português enviou ao Recife, por uma delegação de historiadores, documentação
portuguesa do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico
Ultramarino, constituindo exposição alusiva ao Tricentenário da Restauração
Pernambucana.
Entre os muitos cargos de natureza política ocupados por Jordão, estiveram o de
Secretário do Governo do Estado (1954-1955) e o de Chefe da Casa Civil do Governo
de Pernambuco (1959-1963). No exercício destas funções, pôde ele expandir uma outra
das suas muitas vocações: a de cerimonialista. De espírito francamente conservador,
tradicionalista e confessadamente monarquista, Jordão Emerenciano apreciava a pompa
dos grandes atos, das recepções brilhantes, das cerimônias solenes. Cultivou esse traço
de personalidade na sua vida pública – fosse no ambiente da Universidade, na Academia
de Letras, no Arquivo Estadual ou nos cargos que circunstancialmente exerceu na
administração política – e cultivou-o, também, na vida privada, na intimidade da família
e nas reuniões que costumava realizar em sua casa (e que se tornaram famosas, até pelo
requinte da culinária e dos grandes vinhos servidos) para receber amigos e altas
personalidades nacionais e internacionais do mundo intelectual e político: escritores,
professores, jornalistas, artistas, homens de Estado...
Ao Chefe da Casa Civil do Governo Cid Sampaio, que não delegava as funções
de cerimonialista, sobretudo em ocasiões especiais, coube receber em Pernambuco o
General Craveiro Lopes – quando Presidente da República Portuguesa (em 1957) – e o
Imperador da Etiópia, Hailé Selassié I (em 1960), que pelo Estado passaram em visitas
oficiais.
O desempenho do cerimonial e o brilho das recepções marcaram a crônica da
época. Jordão vivia intensamente essa atmosfera de brilho e de fausto, cuidava
pessoalmente de cada detalhe das recepções, elaborando croquis localizando
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descansado com que se portava no convívio social, imagino quão intenso devia ser o
uso das ‘aparas’, serradas antes do sono, raspadas ao repouso”.
Nelson Saldanha detalhou, no seu in memoriam, a diversidade de aspectos da
personalidade de Jordão: “Empreguei a palavra ‘fidalgamente’. E todos sabemos que ela
se aplica ao tipo que Jordão Emerenciano personificou, à concepção do mundo que foi a
sua. [...]. Barroco na figura, gótico nas raízes, clássico na forma de exprimir-se: [...] se
se permite esta comparação tríplice, para aludir à variedade do homem. Ensinando
literatura portuguesa, não resvalava pela superfície da disciplina, deslizando para outras;
nem a carregava como um peso atado aos pés. Também não ensinava uma literatura
nominativa, formal ou cronológica: sentia e transmitia a problemática cultural da
história literária, como história de experiências, de situações, de manifestações de vida”.
Para identificar os livros que integravam a sua vasta biblioteca, Jordão
Emerenciano criou para si um ex-libris. Era um escudo externamente ornado de
folhagens que terminavam numa faixa onde se lia o seu nome. No interior, como
símbolo do seu apego à lusitanidade, uma Cruz de Cristo sobre a qual se desenrolava
uma folha de papel, em branco, certamente à espera da escrita. Logo abaixo,
acompanhando a curvatura redonda do escudo, lia-se a inscrição do seu lema,
provavelmente tomado de empréstimo a Goethe ou aos místicos: “sem pressa e sem
descanso”. Tal divisa significava bem, segundo os que, como Nelson Saldanha,
privaram da sua companhia social e intelectual, a sua maneira de estar na vida: fidalga e
pausadamente descansado, “sem pressa”, mas “sem descanso” no aproveitamento das
“aparas do tempo” para a realização do seu trabalho. Por isso pôde realizar tanto em
vida tão relativamente curta.
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conseguidos por Sáfady com as editoras, distribuídos após uma sessão plenária aos
participantes, os quais circulavam alegremente em torno de uma grande mesa carregada
de publicações, escolhendo uma de cada vez.
Bem, o fato de ser esta rememoração guiada pela emoção explica talvez a sua
heterodoxia, pois creio que me competia falar inicialmente da formação acadêmica de
nosso homenageado, que fez parte de um grupo reunido em torno de Fidelino de
Figueiredo, na Universidade de São Paulo, e que incluía vários dos professores
justamente homenageados neste congresso: António Soares Amora, Segismundo Spina,
Cleonice Berardinelli e Massaud Moisés.
António Soares Amora trouxe-me aliás grande auxílio para esta homenagem,
pois a encontro praticamente organizada no prefácio que fez para a primeira edição da
Introdução à análise de texto, de Naief Sáfady, publicada em 1961. Por si só, esse
prefácio seria suficiente para justificar a presença do Professor Sáfady entre estes
professores que, em tão boa hora e com tanta justiça, a ABRAPLIP decidiu homenagear
neste seu XXII Encontro.
Antônio Soares Amora lembra aí o aluno brilhante: “ávido de saber, sistemático
nos estudos, invulgarmente produtivo em todas as tarefas que o curso de Letras lhe
impôs”. Recorda também a rápida carreira com que Sáfady chegou ao magistério
superior, ao Doutorado e à Livre-docência na Universidade de São Paulo e à cátedra de
Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia de Assis / SP, e também à cátedra de
Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Fafich, da
UFMG –, de onde posteriormente se desmembrou a Faculdade de Letras, poderíamos
acrescentar. O grande professor e crítico Soares Amora (que tive a honra de ter em
minha banca de doutorado, na USP, e também na banca de meu concurso para professor
titular, na UFMG, em 1991), fala também, nesse prefácio, das qualidades de Naief
Sáfady como crítico e autor de obras didáticas. Ressalta nesse texto as qualidades do
livro despretensioso que apresentava, e cujo objetivo seria apenas o de ajudar estudantes
de Letras nos primeiros passos de análise e interpretação literária. Mas na realidade,
acrescenta o Professor Amora, era fruto de saber doutrinário e de experiência
profissional cheio de responsabilidade, avançando no sentido de superar a preocupação
com a historiografia literária para focalizar a trama do texto (numa atitude precursora de
grandes estudos da atualidade, devemos acrescentar).
Soares Amora acentuava assim o caráter pioneiro e avançado do livro de Sáfady,
o qual superava a tradição dos estudos literários baseados na historiografia, com a
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O estudioso mostra o seu avanço relativamente à grande maioria dos estudos literários
de seu tempo:
Naief Sáfady avisa assim, numa perspectiva avançada que nem todos seguiam, à época,
que o seu estudo pretende ler a obra de Garrett em si, para observar a linguagem com
que ela se constrói e a riqueza interior que a caracteriza, sem negar entretanto a emoção
que impulsiona a construção textual.
Outro aspecto importante e que revela o avanço de Naief Sáfady relativamente à
crítica feita à obra de Garrett, na época, tem a ver com o que hoje se estuda como “o
testemunho” que a obra de arte literária apresenta, relativamente à negatividade e à
incompletude que caracterizam o ser humano, ser de desejos insatisfeitos – ser-para-a-
morte. Como diz Márcio Seligmann-Silva, no terceiro livro do grupo de pesquisa da
Perséfone:
Outro livro importante de Naief Sáfady foi O sentido humano do lirismo de João
de Deus, publicado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, em 1961.
Se a análise das Folhas caídas levou o estudioso a definir aquele lirismo de Garrett
como “lirismo em masculino”, a crítica do Campo de flores, de João de Deus, o fez
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Guarulhos e de Taubaté, e também de Assis, em São Paulo. Tudo isso sem esquecer da
Universidade Federal de Minas Gerais e do Colégio Estadual de Minas Gerais, onde
fortaleceu extraordinariamente os estudos de Literatura e onde deixou seguidores que
procuraram sempre pautar-se pelo seu exemplo de entusiasmo e seriedade no exercício
da educação.
Disponível e generoso, Naief Sáfady estava sempre pronto a apoiar seus
assistentes em seus projetos de cursos e nas tarefas afins, como definição de
metodologias e bibliografias e preparação de aulas e cronogramas. Ajudava também
assistentes, colegas e alunos nas suas pretensões de crítica literária, fossem elas relativas
à publicação de estudos em revistas ou livros, fosse na orientação de teses e
dissertações. Privilegiada por contar com essa disponibilidade, tive o prazer de ter a sua
apresentação em um estudo sobre Camões e Sá-Carneiro, que publiquei num livrinho,
em 1973 (Belo Horizonte, Ed. Andrade), tendo tido também o privilégio de ser sua
orientanda no mestrado, realizado na UFMG. Depoimento semelhante me faz Lani
Goeldi, que também foi sua assistente, em São Paulo e também teve livro prefaciado
pelo Sáfady.
Será importante reforçar aqui a preocupação do Professor em impulsionar os
seus alunos, especialmente os assistentes, a desenvolver pesquisas e a divulgá-las, em
cursos e publicações. Creio mesmo ter aprendido com ele essa qualidade (perdoem-me
o convencimento!...), pois estou sempre querendo entusiasmar os estudantes a
aprofundar estudos e a divulgar os seus resultados. Certamente por isso já organizei
tantas publicações (na UFMG foram diversos números do Boletim do CESP e do
Caderno do NAPq (o núcleo de pesquisa), além de Anais de congressos da ABRAPLIP
e de Semanas de Estudos sobre Camões e Sá-Carneiro; só da revista Scripta, da PUC
Minas, dezoito números com estudos de literatura foram organizados por mim; preparei
também três volumes das Veredas de Rosa e seis Cadernos CESPUC de Pesquisa
(trouxe o último para lançamento neste congresso; constam dele trabalhos de alunos de
pós-graduação, mas também de graduação). E é certamente como uma homenagem ao
querido Mestre que me desdobro para bem orientar meus estudantes e para bem
coordenar a pesquisa de um grande grupo (De Orfeu e de Perséfone: figurações da
morte nas literaturas portuguesa e brasileira contemporâneas), que já publicou três
volumes de ensaios.
Bem, creio que é momento de encerrar. E é com tristeza que concluo, dizendo
que, infelizmente, problemas de saúde levaram o Professor Sáfady a se aposentar
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é o que seu coração pede, não há necessidade de Orientador, você vai sozinha. O difícil
é dedicar-se ao que não é aptidão e, por decorrência, não tão prazeroso, mas
indispensável a uma formação intelectual completa, ampla, que reconheça os vários e
diferenciados ângulos do Saber, a complexidade do Conhecimento, por mais
especializado que seja nosso objeto de estudo." Foi assim que, antecipando a enfática
diretriz moderna das Ciências Humanas, eu ouvi falar, com singeleza, da feição
multidisciplinar da crítica literária.
As convicções transmitidas aos alunos foram testadas ao longo de uma brilhante
carreira de pesquisador, sediada na USP. Na primeira etapa dela, defendeu o Doutorado,
em 1954, aos 25 anos de idade, com tese em torno do "Memorial das proezas da
Segunda Távola Redonda, de Jorge Ferreira da Vasconcelos", uma das novelas de
cavalaria do Quinhentismo português. Acerca deste trabalho, importa ressaltar dois
aspectos: 1) Massaud sempre advogou pela importância de remontar às raízes, às fontes,
tanto da Literatura Portuguesa como da Brasileira - em respeito às nossas origens
comuns, mais do que luso-brasileiras, ocidentais. Preocupado com um conceito
deformado de "modernidade" excessivamente centrado nos séculos XIX e XX - de
atrativos mais imediatos - em detrimento do Passado que os constitui como coisa ainda
Presente (raciocínio que vale para qualquer período histórico em qualquer momento),
nunca deixou de refazer, em seus cursos, a "trajetória" de escritores e de movimentos -
atrás de "identidades", ora próximas, ora muito mais recuadas do que se supõe. Por
isso, sempre sugeriu à sua equipe de "assistentes" outra das ponderações memoráveis:
"procurem fazer 'rodízio' na escalação das aulas a serem ministradas, evitem trabalhar
ad semper com mesmos autores, obras e períodos, busquem compreender as dimensões
de uma literatura dos primórdios à realidade nossa contemporânea: nada se explica num
estalar de dedos... "; 2) fornecendo ele próprio o exemplo, mergulhou fundo nas
novelas de cavalaria portuguesas, escrevendo com regularidade sobre a Demanda do
Santo Graal, a Crônica do Imperador Clarimundo, o Palmeirim de Inglaterra. Dessa
época é um seu artigo que até hoje rende frutos em Portugal e Espanha ("A novela de
cavalaria portuguesa - Achega bibliográfica"), por ter tornado pública a listagem de
vários manuscritos de novelas então inéditas, tanto na Torre do Tombo quanto na
Biblioteca Nacional de Lisboa, abrindo importante caminho para futuros investigadores,
como os que hoje se reúnem no Centro de Estudos Cervantinos da Universidade de
Alcalá de Henares (Madri).
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1
Uso o termo na acepção que lhe deu Marc Bloch. Cf. o "Prefácio" de Jacques Le Goff a Apologia da
História ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
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Camões ou Fernando Pessoa (de todos eles alguma editora, em algum momento, lhe
encomendou a "seleção" e a "apresentação" da opera omnia), surpreendeu nesses
autores de superior inspiração o seu viés psicanalítico e/ou metafísico, levando a um
mergulho vertical e profundo nos desvãos de seus enigmas, aqueles muito bem ocultos
do leitor desavisado e à espera da sagacidade do crítico. A título de exemplo, dentre
tantos, atente-se para o artigo "Fernando Pessoa e a cantiga trovadoresca": com muita
originalidade, Massaud examina o fenômeno do "mascaramento" pessoano, sua atuação
performática de travestir-se heteronimicamente em outros, como atitude estética que
poderia remontar às cantigas de amigo medievais, onde, em outro registro, mas não
menos dual ou mesmo polissêmico, o trovador se faz passar pela mocinha abandonada
pelo amante, "transformando-se" na voz dela para compor seu canto de lamento à
ausência do amado. Segundo o Professor e referindo-se a essas "máscaras",
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Assinale-se, para quem tiver "olhos de ver": a obra volta-se para a "permanência de um
núcleo" em cada uma das modalidades narrativas, porém sem negar que esse "núcleo"
está submetido à "lei da transformação", o que significa que a perspectiva analítica em
que se coloca o crítico contempla o "substantivo" mas não omite o "adjetivo". Ou seja, a
velha equação da "unidade na diversidade", o casamento do "antigo" e do "novo", que
amalgama, em qualquer esfera do Conhecimento, o estrutural e o contingente. Basta a
acuidade metodológica com que se procura colocar em paralelo tais extremos,
2
Para o sentido muito especial que a Antiguidade e a Idade Média atribuíam à "poesia" e à função do
"verso", cf. CURTIUS, E. R. Literatura européia e Idade Média latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional
do Livro, 1957.
*
Mantém-se obrigatoriamente o acento circunflexo da palavra, porque usada no sentido específico que o
crítico lhe atribuiu.
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saudosa rememoração. A clareza era o seu distintivo mais eloqüente. Antes de tudo,
clareza de linguagem, castiça, fluente, numa voz sempre agradável, já então pontilhada
pelos lusitanismos que lhe vinham da opção intelectual, que o distinguiria
indelevelmente, e da convivência com os seus familiares, oriundos do casamento e da
sua filiação à estirpe de Fidelino de Figueiredo. Era um prazer a mais ouvi-lo dissertar,
num estilo que se abeberava na linfa mais cristalina do idioma e, sobretudo, ouvi-lo ler
os poemas e os trechos de prosa com que ilustrava as explanações ou referências
históricas E sempre no nível sintático e vocabular mais adequado ao preparo dos alunos.
Clareza de pensamento, que desencadeava a imediata adesão dos alunos,
hipnotizados pela admiração com que recebiam os ensinamentos. Clareza, enfim,
evidenciada pela postura assumida ante a classe, fazendo de cada um dos alunos um
cúmplice da imersão no mundo das letras, por meio da informação, análise e
interpretação do fato literário, fossem elas as brasileiras, isso quando ainda ministrava
aulas no ensino colegial, fossem as portuguesas, não só ali como no curso universitário.
Clareza de horizontes, de objetivos, transformando cada aula num ritual que se
cumpria religiosamente, dentro do espaço de tempo regular, como se oficiasse o culto
diário do saber que, ampliando o conhecimento das coisas e dos seres, engrandece os
ouvintes. Clareza, por fim, da letra uniforme com que utilizava a lousa para gravar as
noções e as minúcias que demandassem alguma dificuldade de retenção ou guardassem
especial relevância. Por vezes, quando faltava algum professor, íamos assistir a uma de
suas aulas em outra classe, e o espetáculo repetia-se, mas era como se o
presenciássemos pela primeira vez, graças à recorrência, sempre nova e surpreendente,
da celebração em tributo ao conhecimento.
Outra dimensão do perfil de Antônio Soares Amora é a do gestor, do executivo,
ou, em termos dos nossos dias, o do empreendedor. Recordo-o, ao começo, como
funcionário do departamento de cultura da Reitoria da Universidade de S. Paulo, e logo
depois, assumir a direção da cátedra de Literatura Portuguesa em razão do afastamento
de Fidelino de Figueiredo, em 1951, por motivo de saúde, e ser empossado catedrático,
por concurso, em 1955. E como tal, numa época em que o catedrático tinha amplos
poderes, geria a cadeira de Literatura Portuguesa com a sua elegância característica e
respeito pelos assistentes: além de estimulá-los, dando-lhes todo o apoio e incentivo
possível, emprestava ao convívio um clima de à-vontade e liberdade de ação que
tornava ainda mais agradável a atividade comum, permitindo que todos se sentissem co-
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todo o cabedal de experiência que havia amealhado ao longo dos anos, sempre apoiado
nas características de personalidade que vimos apontando. Cumprido o período à frente
da Fundação Anchieta, passou a desempenhar altas funções junto à Editora Abril, onde
realizou notável trabalho editorial em prol da cultura. Decorrente da impossibilidade de
acumular os trabalhos docentes, derivados da cátedra, agora denominada área de
conhecimento, e outras atividades estranhas à Universidade, a precoce aposentadoria
veio pôr fim, em 1972, a esse significativo elenco de notáveis realizações
administrativas.
Ao longo dessa intensa e frutífera atividade docente e administrativa, Antônio
Soares Amora em momento nenhum descurou da terceira dimensão da sua
personalidade, tão brilhante e produtiva quanto às demais, -- a de intelectual, ora por
decorrência das expectativas acadêmicas, ora para levar ao público em geral os frutos
dessa feliz concentração de tirocínio, experiência e lucidez crítica.
A sua trajetória intelectual principia com a Teoria da Literatura, editada em
1944. Ecoando por certo o ambiente universitário que respirava, com destaque para a
bagagem literária de Fidelino de Figueiredo, mas a um só tempo dando mostras da sua
tendência mais íntima, dava a lume uma obra que se destinava aos estudantes que lhe
acorriam às aulas e aos professores do segundo grau, bem como, senão precipuamente,
ao público em geral. Evidenciava, num e noutro aspecto, a inclinação pioneira da sua
atividade, tanto docente e investigativa, quanto a orientação metodológica dessa obra
inaugural.
Era uma obra pioneira: sustentada na melhor bibliografia, notadamente
estrangeira, centrava-se num assunto que até aquela época pouca atenção havia
recebido, e, mesmo assim, de uma forma amadorística ou esquemática. Quase se diria
que não apresentava antecedentes entre nós, e no estrangeiro, ainda não havia surgido
uma obra homônima de René Wellek e Austin Warren, Theory of Literature, publicada
em 1949, que constituiria, como se sabe, mercê de suas invulgares qualidades,
resultantes de apoiar-se na linha mais moderna da pesquisa e da crítica nessa área, um
manual de renome internacional.
A obra de Antônio Soares Amora distinguia-se, à partida, pelo fato de ser a
primeira vez que, entre nós, a matéria teórica recebia tratamento orgânico, propriamente
universitário, além de ancorar o seu pólo irradiador no pensamento crítico de Benedetto
Croce e de Fidelino de Figueiredo. Em 1970, publicaria Introdução à Teoria da
Literatura, um breviário estético, com o essencial dessa matéria, uma espécie de síntese
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do que fora amplamente discutido na obra anterior, breviário esse que continua a
reeditar-se em nossos dias.
Seguindo outra vertente das suas inclinações, em 1955 veio a lume a História da
Literatura Brasileira, um pequeno volume, ampliado e atualizado ao longo de
sucessivas edições, abarcando a nossa atividade literária desde os primórdios, no século
XVI, até a modernidade. Vinha substituir, de certo modo, a Pequena História da
Literatura Brasileira (1919), de Ronald de Carvalho, que gozara de larga fama, como
indicavam as sucessivas edições. Escrita em linguagem poética, transmitia uma visão
literária do nosso passado menos afeita ao rigor informativo no que dizia respeito aos
fatos históricos e às obras que comentava. E a subjetividade vinha ocupar o espaço da
secura crítica de Sílvio Romero ou, mais proximamente, de José Veríssimo.
A obra de Antônio Soares Amora evidenciava características análogas à obra de
1944, dentre as quais se distinguiam os fundamentos universitários, postos a serviço da
ordenação dos materiais históricos, e o rigor crítico, observado na análise e
interpretação das obras literárias, de onde resultaram achados que distinguiam o livro
em face dos seus antecessores. Assinale-se, de permeio a tais novidades, uma linguagem
que aliava a elegância e a precisão, sustentada pela leitura dos clássicos do idioma e
pelo compromisso “científico” que a Universidade tinha com a objetividade e a verdade
dos fatos.
Tanto quanto a Teoria da Literatura, o livro alcançou sucessivas edições, graças
aos leitores que ali procuravam, e encontravam, um panorama histórico delineado com o
apuro decorrente do clima universitário e de uma sensibilidade crítica nova, apta a
sintetizar com precisão os acontecimentos e o patrimônio literário nacional, sem
prejuízo da sua dimensão crítica. Antes pelo contrário: eram ingredientes inovadores
que atraíam os leitores e consulentes ávidos de possuir uma bússola confiável ou um
estalão moderno para avaliar a nossa trajetória literária. Decorrido mais de meio século
do aparecimento das duas obras mencionadas, é patente o seu pioneirismo.
Em 1967, colabora com um volume acerca do Romantismo, numa História da
Literatura Brasileira coletiva, elaborada por seis autores, que também alcançaria várias
edições. Outras obras se seguirão, já agora fruto da opção pelas letras lusitanas como
área de trabalho universitário. Em 1961, coordenou e organizou a publicação de
Presença da Literatura Portuguesa, uma antologia em 3 volumes, abrangendo a
atividade literária em Portugal desde o século XII até o século XX, realizada em moldes
inovadores. A ele também coube fazer a parte referente ao Classicismo, ao Barroco, ao
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É sempre com imenso gosto que nos reunimos para falar de Literatura e estar em
Literatura. Esse é um estado que os espíritos radicalmente lógicos definem como não
utilitário, e que exige, para a sua própria sobrevivência no mundo prático, uma estranha
sensação de estar seguidamente autojustificando-se. Retrucaríamos, por um lado,
fazendo eco a Guimarães Rosa, que “a lógica é a prudência convertida em ciência” e,
por outro, que fazer literatura, ou filosofia ou arte em geral é possivelmente a forma
mais segura de criar o solo fértil do pensamento, para que, então, as obras da ciência e
da técnica, para que a política e a economia, enfim, para que as produções humanas
visivelmente utilitárias possam acontecer inscrevendo-se necessariamente em modelos
éticos, de modo a agirem em nome do bem comum. Vivemos evidentemente num
mundo carente de literatura. Mas cá estamos outra vez a nos justificar.
Pois nesse encontro de Literatura – XXII CONGRESSO INTERNACIONAL
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA PORTUGUESA – cujo
numeral aponta para a tradição dos estudos de literatura portuguesa na universidade
brasileira, uma emoção nos assalta: é tempo de fazer homenagens. Essa idéia ganhando
corpo, a equipe de coordenadores que preparou este nosso encontro, com o esforço
necessário para que tudo corresse da melhor maneira possível – e por isso desde já lhes
agradecemos –, imaginou um formato generoso que, ao lado da produção do presente –
que inclui professores, pesquisadores, estudantes de letras –, ficasse registrada nos anais
deste congresso a reverência àqueles que fundaram no Brasil os estudos de literatura
portuguesa. Nada mais justo, nada mais apropriado do que recuperar do passado e
assinalar no presente aqueles nomes de professores que se tornaram, ao longo dos
últimos 70 anos, nossas referências intelectuais.
Coube-me, por deferência da comissão, saudar a professora Cleonice
Berardinelli. O meu agradecimento, que ficou deslocado do seu lugar mais óbvio, que
seria o do início da minha fala, não pode ignorar que alguns outros colegas poderiam ter
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ocupado esse lugar de honra. Por isso, porque entendo que foi mister escolher um de
nós, falarei agora necessariamente em metonímia, por representação não autorizada por
leis, mas, tenho a certeza ou pelo menos espero, consentida com o coração. Em nosso
nome é que falo.
Na linha da tradição, do alto dos seus hoje 93 anos de vida intensa, feliz,
realizada, está hoje aqui presente a professora Cleonice Berardinelli, que, a partir de
agora, será, como todos a conhecem, apenas referida como D. Cleo. É assim que
afetivamente a nomeamos, é assim que mesmo os amigos portugueses – em geral, mais
cerimoniosos no tratamento e nas hierarquias – também a chamam. Batizada foi,
batizada está.
D. Cleo é nome que já virou parte de um poema, desses que são instantes de
carinho, cenas-fulgor de nomeação, de autoria filial – Jorge Fernandes da Silveira de
seu nome – e que, glosando o grande cronista Fernão Lopes, dizia: “Cleo / clara / em
sua geração”. Daí virou título do livro-homenagem que para ela organizamos, a fim
deixar inscrita a marca de um tempo: cinqüenta anos de magistério superior na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, durante os quais, em parte, também pertenceu à
PUC-Rio. Era o ano de 1994.
D. Cleo. Não quero saudá-la com inventário de produções. Isso não rima com
Cleo, e eu queria, a meu modo, fazer-lhe também o meu poema. Não esperem de mim,
pois, o seu Curriculum Vitae. Os bancos de dados estão aí para isso e cumprem à risca o
seu papel. Prefiro falar, academicamente sim, mas não a partir deles. A partir da minha
experiência de ex-aluna e, já há mais de 30 anos, colega de profissão, colega no que
etimologicamente essa palavra significa, aquela que lê junto, que está ao lado, porque
foi assim que D. Cleo sempre nos teve: ao seu lado.
Ao seu lado por generosidade própria, porque foi ela que nos introduziu no gozo
de ler seus autores de eleição: Camões, Gil Vicente, e também Antero, Camilo, Eça de
Queirós, Fernando Pessoa. Ela era a grande referência em tempos que exigiam do
professor e pesquisador mais que uma especialidade. Exigia-se deles uma cultura
humanística, que lhes permitia navegar por variados autores e tempos e escolas
literárias; que lhes garantia um domínio lingüístico que nos dava a nós uma segurança
quase abusiva de não hesitar em pegar o telefone e conferir uma regência ou uma
concordância ou uma etimologia ou até, pasmem, uma ortografia, se o dicionário não
estivesse ao pé.
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Mas com ela, com as suas aulas ministradas sedutoramente em bela voz, na
leitura de seus ensaios críticos, que não raro partiam de uma leitura amadurecida na sala
de aula, fomos atravessando sobretudo os mistérios dos seus eleitos. Acompanhamos,
por exemplo, a sua edição dos Sonetos de Camões, fruto de uma pesquisa cuidadosa que
apostou conscientemente numa proposta ousada não de estabelecer um cânone, mas de
alargar o espectro dos textos de modo a incluir, no grande conjunto, todos os sonetos
que um dia tivessem sido atribuídos ao Poeta. Não estava ali a disputar o lugar de quem
quer estabelecer uma outra lógica para o “verdadeiro” corpus literário de Camões (quem
o ousará algum dia sem temor de erro!), mas oferecia generosamente aos pesquisadores,
com notas.
D. Cleo exige outro falar. O falar de uma sedução. Já um dia descrevi, com a
ajuda de metáforas de alto preço, ditas por outro a um outro, que nós somos sempre seus
alunos, “alunos seduzidos, que repetimos o gesto antigo de colocar o nosso coração de
joelhos diante dela e assim permanecer por toda a vida”.
Apresentá-la, portanto, seria tentar dizer com palavras o que é essa sedução, esse
fascínio que nos faz etimologicamente escapar do caminho convencional das relações
da academia, para ir encontrá-la num espaço desejante e desejado que é o do encontro
amoroso. A palavra é mesmo esta: amor.
Amor que reúne à volta, à maneira dos contadores de estórias. Professora atuante
até hoje na UFRJ e na PUC, somos nós que não a deixamos ir. Queremos continuar
sentados em torno dela como os ouvintes de uma roda também se sentam, desejosos de
ouvir, numa ciranda em que é sempre possível intervir, perguntar, sugerir. Ela é uma
maravilhosa contadora de estórias e a comoção e o encantamento de que são tomados os
seus ouvintes é semelhante ao que se tem diante dos griots africanos, cuja autoridade só
existe na exata medida em que gosta de dar e não cala para si. Uma autoridade que é
toda generosidade e troca festiva.
Cada um tem suas paixões. Eu tenho as minhas e as confesso sem pudor quase
sempre. Paixões intelectuais têm para mim um nome – Roland Barthes - e um texto,
entre muitos: “No Seminário” cuja aura gostaria de recuperar para falar de D. Cleo. É
ali que, referindo-se aparentemente a uma simples descrição do sistema de trocas no
grupo de estudos que dirigiu durante anos em Paris, Barthes ultrapassava a questão
pontual para falar das relações de poder e de saber. Ora, quando vejo que ainda hoje,
quando um qualquer de nós arranja uma brecha em seus horários, desliza pelos
corredores em busca do prazer de ir assistir aos seminários de D.Cleo, a explicação mais
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óbvia e não menos verdadeira é a de que é uma delícia a sensação de voltar a ser aluno.
Mas é muito mais do que isso, e Barthes apontou esse segredo, de forma muito sutil, ao
lembrar que o seminário é antes de tudo um espaço de circulação do saber em que nem
sempre “tomar a palavra” é o gesto mais feliz. Nos seminários de D. Cleo, todos, em
dado momento, tomam certamente a palavra, mas o que aí se descobre também é o
prazer de “tomar a escuta”: “é a escuta – e eu cito Barthes – que embriaga, que desloca,
que subverte; é na escuta que está a falha da Lei”. Nesses encontros nós e também ela
aprendemos como é bom “tomar a escuta”.
Continuo por aí, a pensar na sedução pelas trilhas do “Seminário”. Seminário,
sementeira, lugar da semente. D. Cleo plantou sementes e hoje gosta de olhar para o
jardim. Isso pode ser uma imagem de felicidade. Porque esse olhar não é o do dono que
dominou à matéria, que se impôs a ela, que a planejou e mediu, mas é o olhar de quem
seduziu a terra para que ela germinasse, e depois, em contrapartida, se deixa seduzir
pelo perfume das flores que nasceram. Caminho de mão dupla, como deve ser o do
amor.
Certamente, ao longo desses mais de cinqüenta e cinco anos de sedução, D. Cleo
se deve ter perguntado: qual é o meu lugar entre eles? Porque também, como pressentia
o texto de Barthes, o seu lugar se funda numa diferença que vagamente é ainda a da
autoridade. Porque escreveu antes de todos os livros que lemos, porque deu as aulas que
um dia passamos a dar, porque desvelou conhecimentos que não tínhamos, como a dizer
que há sempre coisas a buscar. Enfim, passou de mão em mão o anel do saber e do
sabor de ensinar, num jogo que tem mais que o objetivo de transmitir ao outro um valor
inestimável e inequívoco, porque é um jogo que descobre o amor do próprio ato de
jogar, no ato simples de passar as mãos entre outras mãos, numa circulação de desejos.
Esta homenagem, tal como eu a vejo, é a nossa forma de dizer que fomos
seduzidos por ela.
Seduzidos como o foi Manuel Bandeira, que lembra “como ficou bem no
português de nossos dias uma cantiga de amor de D.Dinis”por ela traduzida em versos
que ele transcreve: “Senhora, nem vos lembrais / De quanto por vós chorei / E choro, e
vos digo mais: / Peço a Deus, pois já não sei / Tamanha pena sofrer, / Que parte vos
faça ter / Da pena que me causais”; e depois encerra essa sua crônica dizendo: “Meus
amigos, meus inimigos, aos sábados, às 15h45 sintonizem pois os seus rádios com a
PRA-2 e ouçam Camões, poeta de todos os tempos na voz bonita e no comentário claro
e sábio de Cleonice Berardinelli” . Era o ano de1968.
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Seduzidos fomos nós como o foi Carlos Drummond de Andrade, que se refere
ao mesmo trabalho de transcrição dos poemas medievais para o português atual, que D.
Cleo publicou em 1953, em jogo duplo de sedução e de modéstia que desloca em
importância a sua própria obra de poeta e fazendeiro do ar em dedicatória que diz:
Seduzidos fomos em cada aula como aqueles que a ouviram no teatro da Faculdade de
Filosofia a representar Gil Vicente, porque a sala era sempre um palco quando ela lia
Camões ou Pessoa, mas também Antero, e Bocage, e Gil Vicente ou Fernão Lopes.
Certa feita uma ousadia entre muitas: a esta assistiram alguns alunos que depois
formaram a primeira equipe de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ.
Era aula do Prof.Thiers Martins Moreira acompanhado de sua jovem assistente que,
naquela época devia em princípio justificar a justeza entre as palavras e as coisas e
“assistir” às aulas, acompanhando o professor. Tinham os alunos acabado de estudar a
Poesia Trovadoresca e o Professor Thiers iniciava a sua aula sobre o Cancioneiro Geral,
e não sem alguma razão, possivelmente, sinalizava para o fato de que essa produção não
teria o peso e a qualidade das dos séculos anteriores. A jovem assistente assistia. Mas
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Professora titular de Literatura Portuguesa, aposentada, Departamento de Teoria Literária, Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
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dificuldade a sua própria biblioteca, adquirindo as obras que lhe eram necessárias para o
seu trabalho, ou obtendo a microfilmagem de obras raras através dos serviços do
Instituto de Bibliografia e Documentação do Rio de Janeiro, ou ainda através da
reprodução de obras em bibliotecas de pesquisadores amigos.x
Tendo finalmente conseguido entrar na Universidade, fez o curso de Letras
Clássicas e, em 1946, quando se iniciam na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras os
cursos de especialização, inscreve-se na disciplina oferecida por Fidelino de Figueiredo,
“Prolegômenos para uma Filosofia da Literatura”. Aí entra em contacto com as obras
mais recentes do professor português e começa a trabalhar na sua tese de doutoramento,
feita, como nos relata, de forma espontânea, sem orientação superior e desprovida de
aparato técnico de apresentação material – como se faziam as teses naquele período.
Defendida em 1950, intitulava-se Fenômenos Formais da Poesia Primitiva, e foi
posteriormente publicada, com o título Na madrugada das formas poéticas, em primeira
edição em 1982 e em segunda, em 2002.xi
Em 1956, presta concurso para Livre-Docência, defendendo a tese intitulada
“Tópica no lirismo galego-português”, que também sai publicada em livro: Do
Formalismo Estético Trovadoresco”. A sua carreira na Universidade de São Paulo
começa, porém, enquanto ainda aluno, sendo articulado à cadeira de Literatura
Portuguesa já em 1941. Paralelamente, ensinou ainda Literatura Portuguesa na
Universidade Mackensie, de São Paulo, e regeu a cadeira de Filologia e Língua
Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras “Sedes Sapientiae”, da PUCSP,
de 1951 a 1957. Em 1962, foi nomeado Professor Adjunto na Cadeira de Literatura
Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
onde permaneceu até 1986, na disciplina de Camonologia, por ele criada. Em 1973,
tornou-se titular da Área de Filologia e Língua Portuguesa da USP, até 1986, quando se
aposentou. É, desde 1989, professor emérito dessa universidade, que lhe prestou assim
justa homenagem pela sua atividade na vida acadêmica, na investigação e consequente
produção de conhecimentos novos e especializados. Basta ver, para se ter uma ideia do
impacto que a sua participação teve, ao longo dos anos transcorridos naquela instituição,
o volume de homenagem que lhe foi dedicado por colegas e ex-alunos.xii
A partir da disciplina de Camonologia, iniciada em 1961, criou em 1963 a
Revista Camoniana, que merece tratamento à parte, não apenas por ser única na sua
especialidade e internacionalmente reconhecida pelo alto nível das suas colaborações
nacionais e estrangeiras, mas também por ter sobrevivido heroicamente a dificuldades
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de ordem vária, que são familiares a todos os que lidamos nesse campo nas instituições
brasileiras: os 3 primeiros números saíram de forma irregular, financiados por alguns
empresários portugueses, até 1978; nessa altura, o Centro de Estudos Portugueses da
USP, então dirigido pelo Prof. Massaud Moisés, acolheu-a, indicando como sua diretora
a Profa. Maria Helena Ribeiro da Cunha, que levou adiante a 2ª série, com mais 10
volumes; em 1994, a nova direção do Centro de Estudos Portugueses interrompeu a sua
publicação, que só foi retomada, ainda graças à dedicação e ao empenho da Profa.
Maria Helena, quando a Universidade do Sagrado Coração de Jesus, de Bauru, dela se
incumbiu, trazendo à luz a 3ª série, com mais oito volumes em belo aparato gráfico e
uma ampliação dos temas da revista, que agora incluía também uma secção dedicada à
poesia contemporânea portuguesa, intitulada Travessias. Infelizmente, também essa
instituição retirou em 2007 o seu patrocínio, de modo que agora a revista está
novamente em transição, mas, se depender da sua indômita diretora, continuará viva e
de cabeça erguidaxiii.
A produção bibliográfica do Prof. Spina, no que diz respeito à literatura
portuguesa, abrange principalmente os seguintes campos: os estudos medievais, a
edóticaxiv, a camonologia, estudos sobre o classicismo, o barroco, o romantismo e o
modernismo. O próprio Autor considera como suas obras capitais os estudos Do
Formalismo Estético Trovadoresco e Apresentação da Poesia Barroca Portuguesa
(1967)*. É ainda autor de livros como a Presença da Literatura Portuguesa (Era
Medieval), para uso no ensino secundário. Como se trata de uma produção que abrange
áreas diversas e eu me sinto mais à vontade, como é natural, para falar dos trabalhos
ligados à literatura medieval, vou pedir licença para me concentrar apenas neles, nesta
oportunidade. Outras pessoas presentes poderão falar, com mais conhecimento e
autoridade, da sua contribuição aos estudos clássicos, camonianos e românticos.
A sua primeira produção nesse campo foi, portanto, a tese de doutoramento de
1950, a que já nos referimos, sobre os fenômenos formais da poesia primitiva, tema que
lhe foi sugerido pela leitura do capítulo “Problemas de origem – o fato literário”, do
livro A Luta pela Expressão, de Fidelino de Figueiredo.xv Nesse capítulo, a partir de
dados fornecidos pela estilística, poética e retórica, o professor português afirmava que
“a obra literária mais rica é um conjunto de artifícios ou processos artísticos simples” e
que “a inspiração do artista sublima ou requinta esses processos, no seu uso espontâneo
*
De acordo com curriculum vitae de próprio punho, que me foi fornecido pelo Autor.
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Pesa bastante sobre a sua concepção tanto a tradição filológica, como a estética,
preocupada em identificar os aspectos propriamente literários dos textos. Ambas tornar-
se-ão mais claras nos dois próximos trabalhos sobre o assunto, ambos de 1956, e
focados especialmente sobre o lirismo trovadoresco: a tese de livre-docência, Tópica no
lirismo galego-português (mais tarde publicada como Do Formalismo Estético
Trovadoresco (1966) e a primeira edição da Apresentação da Lírica Trovadoresca,
depois revista e ampliada, com o título A Lírica Trovadoresca, em mais três edições
(1973, 1992 e 1996).
Comecemos por esta Antologia, que vem oferecendo aos estudantes brasileiros
há quase 60 anos um contacto bem informado e amplo com o lirismo medieval, não só
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em língua românica, mas também em alemão, latim e árabe. O Autor, embora revele
sólido conhecimento filológico do assunto e contínua atualização bibliográfica, afirma
que “[e]m prejuízo algumas vezes dos aspectos históricos, subiu para primeiro plano a
apreciação estética desse movimento poético”.xxv Assim, ao tratar do lirismo galego-
português, adverte em nota que
Algumas das análises que oferece iluminam particularmente essa linguagem que,
como observa, às vezes desafia certas predisposições dos leitores da poesia romântica e
pós-romântica: assim, no comentário aos difíceis poemas de Raimbaut d’Aurenga,
chama a atenção para a frequência dos morfemas de valor conclusivo ou causal – don,
quar, que – fenômeno que, como lembra, é também comum na lírica galego-portuguesa
e se explica “pela natureza desse lirismo, em que o trovador se apresenta quase sempre a
analisar a sua coita, os seus estados de inquietação, procurando a todo instante as ilações
dessa especulação psicológica”.xxvii
É a sua familiaridade com o mundo poético medieval, nas suas várias
manifestações tanto latinas como vernáculas, que lhe permite também reconhecer
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branco um material riquíssimo para comprovar a sua própria tese, encontrável na lírica
trovadoresca ocidental. O livro de Curtius foi publicado em alemão em 1948; uma
tradução em inglês foi publicada em 1953, na prestigiosa série Bollingen da Princeton
University Press; e, conforme observa Norman Cantor, o livro tornara-se mais
significativo em terras americanas do que na Europa, uma vez que no novo continente
um projeto de ensinar a literatura com base nos grandes textos da civilização ocidental,
criados ou transmitidos através da cultura medieval, era uma tarefa mais inovadora e
controversa.xxix O caso do Brasil é semelhante: um dos propósitos do livro de Spina é,
declaradamente, tornar explícito o parentesco entre a poesia galego-portuguesa (que nos
diz diretamente respeito) e o mundo poético da Provença; através dessa relação,
demonstrar que o patrimônio expressivo da poesia trovadoresca peninsular não se reduz
à “miséria de duas ou três imagens poéticas como tradicionalmente se pensa” e que ver,
naquelas repetições de forma e conteúdo uma tautologia monótona é não compreender o
fenômeno trovadoresco, submetendo-se aos preconceitos ainda vigentes contra a beleza
dessa poesia.xxx
Dentre os tópicos estudados no livro, convém ressaltar alguns, pela riqueza do
material recolhido e pela contribuição que trazem para o esclarecimento de certos
pontos problemáticos da lírica galego-portuguesa. Assim, o tópico que Spina chama, em
latim, domina candore mixtus rubor, no qual examina especialmente a expressão da
cantiga da guarvaia, “branca e vermelha”, através do cotejo com exemplos da lírica
provençal, do romance cortês, da lírica andaluza, da poesia ovidiana, da italiana,
inglesa, da poesia do séc. XV e mesmo da poesia romântica; e os comentários que faz
aos possíveis significados da expressão “fazer ben”, tão frequente nas cantigas galego-
portuguesas.
Não tenho tempo para examinar aqui outros trabalhos do Autor, importantes
para os estudos medievais, como o Manual de Versificação Românica Medieval (1971),
a Introdução à Edótica (1977) a edição das Cantigas de Pero Mafaldo (1983) e ainda A
Cultura Literária Medieval (1973) e Da Idade Média e outras idades (1964).
Espero que este bastante limitado excurso tenha dado uma ideia, ainda que
modesta, das contribuições de Segismundo Spina para os estudos da literatura medieval
galego-portuguesa, em especial, mas também da literatura portuguesa, em geral.
E gostaria de concluir, voltando novamente aos seus relatos autobiográficos, de
que já tiramos algumas informações preciosas. Num dos últimos capítulos do livro,
intitulado “Os Intelectuais e os Homens de Negócio”, Spina conta um episódio em que
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estão envolvidos ele, como professor titular de Língua Portuguesa da USP, e a empresa
administradora do Metrô de São Paulo. Quando começou a funcionar a primeira linha
do Metrô, o Prof. Spina recebeu um ofício da Presidência da Companhia do
Metropolitano, solicitando-lhe um parecer a propósito da grafia que se devia utilizar
corretamente para esse sistema de transporte, uma vez que já se via por todo lado a
designação METRO, sem acento circunflexo. Para encurtar a história, resumo-a,
dizendo que, no parecer apresentado em resposta à consulta, foram expostas
minuciosamente as razões pelas quais o emérito professor da USP julgava que se devia
grafar a forma abreviada METRÔ, com acento circunflexo, em vez de METRO. Tendo
sido aceito o parecer, conclui o Prof. Spina:
O resultado de nossa opinião parece ter surtido efeito; e hoje podemos nos
orgulhar de alguma coisa com relação a São Paulo: aqui moramos 50 anos,
aqui ensinamos outros 50 anos, aqui publicamos mais de duas dezenas de
obras pretensamente sérias, e, no entanto, a única marca que vamos deixar na
história da cidade será o acento circunflexo, o chapeuzinho, metido no
metrô.xxxi
REFERÊNCIAS
AA.VV. Para Segismundo Spina. Língua, Filologia e Literatura. São Paulo: Edusp,
1995.
AZEVEDO, Fernando de. Introdução ao estudo da cultura no Brasil. 4ª. ed. rev. e aum.
São Paulo: Melhoramentos, 1964.
72
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CANTOR, Norman F. Inventing the Middle Ages. New York: William Morrow and Co.,
1991.
______ Trad. inglesa de Willard R. Trask. European Literature and the Latin Middle
Ages. Princeton University Press, 1953. (Bollingen Series XXXVI)
FIGUEIREDO, Fidelino de. A Luta pela Expressão: prolegômenos para uma filosofia
da literatura. Coimbra: Nobel, 1944. (2ª. ed. Lisboa: Ática, 1960)
_____ Trad. francesa de Nicolas Ruwet. Essais de linguistique générale. Paris: Éd. de
Minuit, 1963.
PRETI, Dino. Câmera Aberta sobre o Passado: Algumas Cenas da Vida de Segismundo
Spina. AA.VV. Para Segismundo Spina. Língua, Filologia e Literatura. São Paulo:
Edusp, 1995.
____ Presença da Literatura Portuguesa (era medieval). São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1961. (Última ed. em 2006)
____ Da Idade Média e Outras Idades. São Paulo: Conselho Estadual da Cultura, 1964.
____ Iniciação na Cultura Literária Medieval. Rio de Janeiro: Grifo Edições, 1973. (3ª.
ed. São Paulo: Ateliê, 2007)
73
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____ As cantigas de Pero Mafaldo. (Texto estabelecido, com notas e glossário). Rio de
Janeiro, Fortaleza: Tempo Brasileiro, Universidade Federal do Ceará, 1983. (Coleção
Oskar Nobiling, no. 3)
____ Introdução à Edótica. 2ª. ed. Ars Poetica/Edusp, 1994. (1ª. ed. São Paulo: Cultrix,
1977)
____ Episódios que a Vida não Apaga (Itinerário de um Pícaro Poeta). São Paulo:
Humanitas, 1999.
____ Na Madrugada das Formas Poéticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. (1ª. ed.:
São Paulo: Ática, 1982)
NOTAS
1
Azevedo, 1964, p. 679.
2
Amora, 1962.
3
Spina, 1999, p. 11.
4
Ib., p. 13.
5
Ib., p. 26-7.
6
Preti, 1995, p. 279.
7
Spina, 1999, p. 9.
8
Spina, 1983, p. 12.
9
Spina, 1999, p. 38.
10
Ib., p. 138.
11
Spina, 2002.
12
AA.VV., 1995.
13
Na altura em que apresentei este trabalho, não sabia que a publicação da Revista estava a ponto de ser
assumida pelo Mestrado em Letras da Universidade de Viçosa, como se pode verificar no site
http://www.posletras.ufv.br/docs/Mestrado_em_Letras_editara_Revista_Camoniana.pdf (consultado em 1
de dezembro de 2009).
14
Conforme a ortografia adotada por Spina e que ele defendeu, aliás, no “Prefácio-Resposta (Ecdótica ou
Edótica? Edótica ou crítica textual?) à 2ª ed. da Introdução à Edótica, 1994, p. 11-20.
15
Figueiredo, 1944.
16
Pereira, 1962, p. 313.
17
Spina, 2002, p. 15.
18
Ib., p. 42.
19
Ib., p. 71-72.
20
Reckert e Macedo, 1976, p. 12-3.
21
Spina, 2002, p. 74.
22
Ib., p. 127.
23
Jakobson, 1960, p. 235.
24
Spina, 1994, p. 17-8.
25
Spina, 1996, p. 12.
26
Spina, 1996, p. 43, n. 43.
27
Ib., p. 130.
28
Spina, 1966, p. 7.
29
Cantor, 1991, p. 201.
30
Spina, 1966, p. 8-9.
31
Spina, 1999, p. 150.
32
Curtius, 1953, p. 597.
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Mesas Temáticas
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1 INTRODUÇÃO
Este estudo parte de algumas escritas de pesquisa cuja especificidade precisa ser
explicada. A idéia deste texto teve início na tese de doutorado Uma história da
Literatura de Jornal: O Imparcial da Bahia. Propus uma nomenclatura para os estudos
literários: a literatura de jornal. Nascidas nos periódicos, as criações pertencentes à
literatura assumem identidade, motivações e formatos diversos, acompanhando,
dialogando ou criticando as feições culturais do suporte no qual é impresso.
Na leitura de pesquisa dos periódicos, há um fato constante e provocador: a
Bahia sempre está intimamente ligada à cultura portuguesa, muitas vezes, acima e
questionando os modelos políticos nacionais ou ufanistas. Significa dizer que ela, em
seus vínculos identificadores, nem sempre obedece ao manual de cultura que rege o
país. Aponto esta questão no intuito de visualizar e discutir certas verdades históricas e
culturais, como a lusofobia do século XIX, o isolamento intelectual do século XX.
(vinculado ao atraso).
Com isso, pretendo defender a importância do periódico numa conceituação da
narrativa histórica e na interpretação dos acontecimentos fora e à revelia da história. Tal
demanda “fora” é o que anima a uma construção teórica e interpretativa empenhada em
valorizar e fortalecer a literatura e a cultura construídas no aqui – Bahia – normalmente
reconhecido como o antiquado, atrasado, fora de compasso com as inovações modernas,
modernizadoras, da modernidade. No estudo empreendido no jornal O Imparcial da
Bahia, alguns acontecimentos tanto anteriores, posteriores quanto na época de existência
do jornal atentaram para compreender a imaginação portuguesa em geral no Brasil e na
Bahia. A cultura portuguesa é vista como a menção lusa no Brasil, o trânsito entre
1
Doutor; Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.
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Outra questão posta pela citação do célebre biógrafo e político Luiz Viana Filho
é a dupla presença portuguesa: a menção de prestígio ao cronista Júlio Dantas e ao
gerente Carvalho (Provavelmente José Dias de Carvalho, um dos proprietários de O
Imparcial, na década de 1920). O jornalista e poeta Júlio Dantas tem presença garantida
na literatura do período, pelas crônicas, fragmentos, poemas e artigos nunca esquecidos
no período. Por outro lado, o sotaque lusitano permanece forte na construção cultural,
2
Em capítulo anterior, ofereço outras mostras das campanhas em que essas três folhas estão sempre do
mesmo lado da contenda.
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3
TIGRE, Manuel Bastos (Recife, 12 de março de 1882 - Rio de Janeiro, 1 de agosto de 1957) foi um
bibliotecário, jornalista, poeta, compositor, humorista e destacado publicitário brasileiro.
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Parece efetivamente uma miséria o que paga o editor por uma edição de
livro: 10% sobre o preço da venda ao público! Ele, porém, explicará que a
confecção do livro lhe custa 25% do referido preço (com tendências a mais,
devido ao custo do papel cujo “Trust” é outro grande inimigo do livro), o
revendedor recebe a mercadoria encalhada; com os 10% dados ao autor,
restam 35% para atender a embalagem, transporte, serviço bancário, despesas
gerais da casa e o risco de calotes e encalhes.
Falemos francamente: o lucro não pode ser do outro mundo...( TIGRE, 1937,
p. 4).
Pelo perfil exposto, a indústria do livro pressupõe uma complexa rede capitalista
indispensável nos anos 1930 para que o seu sistema se torne uma prática e não somente
uma elucubração provinda do século romântico. O Brasil ainda não está preparado para
a modernização que anuncia e pelas quais acusa e distingue as localidades. A simples
apresentação dos números de nada adianta sem uma devida reflexão sobre eles, tendo
em vista um contexto como parâmetro.
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REFERÊNCIAS
VIANA FILHO, Luiz. Alguns aspectos do jornalismo baiano. In: TAVARES, Luís
Guilherme Pontes (Org.). Apontamentos para a história da imprensa na Bahia.
Salvador: Academia de Letras da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia,
2005. p. 103-104.
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1 INTRODUÇÃO
1
Adriano Eysen é professor de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado da Bahia – Campus
XXII – Euclides da Cunha e doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa (PUC – Minas). Email:
adrianolittera@hotmail.com
2
Destacando-se dos poetas da geração órphica, ainda envolvidos por uma aura naturalista-amorosa,
Fernando Pessoa cria seu primeiro heterônimo, Chevalier de Pás, aos seis anos de idade. Aos sete, ele
escreve seu poema inaugural: uma quadra intitulada “A minha querida Mamã”.
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3
Este poema foi publicado pela primeira vez na Revista Orpheu, n.º 2, em junho de 1915. O texto, além
de retratar o salto na aventura marítima, traz também um saudosismo à infância.
4
Referimo-nos ao Lisbon Revisited (1923)
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[...]
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5
Poema de Alberto Caeiro composto de quarenta e nove cantos cujo universo bucólico se faz cenário de
um eu lírico envolvido pela tranqüilidade da natureza.
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O próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a
natureza humana. Essas centenas de milhares de pessoas de todas as classes
e situações, que se empurram umas às outras, não são todas seres humanos
com as mesmas qualidades e aptidões com o mesmo interesse em serem
felizes?... E, no entanto, passam correndo uns pelos outros, como se não
tivessem absolutamente nada em comum, nada a ver uns com os outros; e,
no entanto o único acordo tácito entre eles é o de que cada um conserve o
lado da calçada à sua direita pra que ambas as correntes da multidão, de
sentidos oposto, não se detenham mutuamente; e, no entanto, não ocorre a
ninguém conceder ao outro um olhar sequer. Essa indiferença brutal, esse
isolamento invencível de cada individuo em seus interesses privados,
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6
Ver o poema Perda da auréola de Charles Baudelaire.
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Importa destacar que no início das cinco estâncias, ao estilo das cantigas
medievas, aparece o refrão “Outra vez te revejo”, forma estilística de enfatizar a
aproximação entre o poeta e Lisboa. Estreita-se, portanto, uma dialética entre homem e
cidade, impossibilitando-lhe de viver em equilíbrio com a realidade vigente. Na
verdade, firma-se um tom nostálgico por não se encontrarem mais ali, nem ele e nem
tampouco a antiga Lisboa, agora só revivida por meio do “fio-memória”.
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3 EM TOM ELEGÍACO
qualquer.
O que fui – ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
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Nossa duração não é um instante que substitui outro instante: nesse caso,
haveria sempre apenas presente, não haveria prolongamento do passado no
atual, não haveria evolução, não haveria duração concreta. A duração é o
progresso contínuo do passado que rói o porvir e incha à medida que avança.
[...] Na verdade, o passado se conserva por si mesmo, automaticamente.
Inteiro, sem dúvida, ele nos segue a todo instante: o que sentimos, pensamos,
quisemos desde nossa primeira infância está aí, debruçado sobre o presente
que a ele irá se juntar, forçando a porta da consciência que gostaria de deixá-
lo de fora (2006, p. 47-8).
7
Não transcrevemos o poema na íntegra devido a sua extensão. Desse modo, procuramos selecionar as
estrofes que melhor atendem a temática em discussão.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
8
É relevante dizer que em diversos poemas de Campos aparecem estes sinais de pontuação.
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REFERÊNCIAS
DUARTE, Lélia Parreira Duarte. Fernando Pessoa, rei da nossa Baviera: um jogo no
limite do silêncio. In: Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: Editora PUC Minas;
São Paulo: Alameda, 2006.
PERERONE-MOISÉS, Leyla. Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
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1
Doutor em Teoria da Literatura (Literaturas Africanas de Línguas Portuguesa e Espanhola), pela
Universidade Federal de Pernambuco. Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, campus de Currais Novos. Contato: amarinoqueiroz@gmail.com
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Quem, no calado tempo, ciciou a senha? Quem, sob os céus da praça, içou a
inquietude na asa do poema, verso a verso amarrando a alça do alforje aos
nossos ombros?
Quem, um por um, revelou o tronco e a voz dos pássaros e os pés das
palayês, nomeou as lavadeiras do Água Grande, as trepadeiras, ressuscitou no
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vivificado através da poesia de Conceição Lima em “Raúl Kwata Vira Nigwya Tira
Ponha”, poema que transcreveremos a seguir:
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Mais do que servir de abertura para o seu segundo livro, A dolorosa raiz do
micondó, o poema “O Canto Obscuro às Raízes” é um texto de grande fôlego que
realiza, em sua reescrita da História, a necessária inscrição de histórias outras, próprias e
apropriadas poeticamente, tal qual um micondó que ao germinar após um silêncio de
séculos, fincasse as poderosas raízes no movente território da criação literária.
Distendendo-se, pois, em variadas direções, o verbo enunciado em Conceição Lima nos
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coloca diante de um sujeito poético cuja voz, por vezes solitária, se confunde com a
trajetória individual da própria escritora, mas que ao mesmo tempo se coletiviza,
reverberando um lugar de fala transnacional e múltiplo. Se assim é “a que agora não
cala”, conforme se faz anunciar o sujeito lírico no poema em questão, ouçamo-la, pois,
em sua “Carta à Maria Odete Costa Semedo” iv, delicada crônica endereçada à amiga e
escritora da Guiné-Bissau cujas palavras inaugurais já remetem o leitor, informal e
sinestesicamente, ao inspirado universo criativo de ambas as autoras:
Querida Detinha:
Venho falar-te da doçura das mangas, as mãos das nossas mães, aromas: os
que sobem dos esburacados tectos das cozinhas, a caminho das nuvens.
Venho falar-te da justeza e da generosidade dos frutos. Amo os sofisticados
cheiros e sabores da Guiné.
Amo o chabéu que é vermelho, sem ser sangue, soufflé e dendém. Amo o
aroma da cafriela, os pedaços de frango corados em manteiga, de volta ao
molho de limão e fartas rodelas de cebola.
A escalada faz escancarar portas e janelas, mas todos sabemos que é muito
nham-nham o seu arroz. Kandja e badjiki estão entre as minhas imortais
memórias de Bissau. E olha que não mencionei a carne corada, essa iguaria
da quadra natalícia que a saudosa Ivete um dia me serviu com tanto carinho.
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Porque amor com amor se paga, quero, amiga, que tu e todos os teus irmãos e
irmãs visitem as minhas ilhas. São ricas e verdes, as ilhas; os ilhéus,
quezilentos. As quezílias cegas, sabes bem, tolhem a acção e candrezam,
atrofiam, os frutos. Tal como na tua amada Guiné, também os nossos frutos
são bondosos e os aromas pacíficos. Diz um velho provérbio são-tomense,
que a casa nunca é estreita para a família. Venham pois!
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O vinho de palma, de tão fresco e doce será verde, como a decisão da poetisa
e seu povo. Haverá uma bandeja enfeitada com folhas: todos os frutos de
África e bananas, felizes nas suas variações de tamanho, feitio, de nomes, de
cores e sabores. As crianças trarão alfarrobas e tamarindos, um ramo de
salambás, o mesmo que veludo na Guiné. Cuidado com o safú: se o trincares,
ficarás nas ilhas.
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organizada, pela utilização dos sentidos e da intuição. Um entendimento mais amplo das
duas palavras poderá levar-nos a sabura, expressão usual nos contextos culturais da
Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Como substantivo em flutuante significação, o termo
sabura acumula, grosso modo, várias possibilidades de interpretação, abarcando um
conjunto de prazeres e delícias especialmente vividas, de onde por fim se traduzirá a
alegria de saborear as coisas e saber apreciá-las pelo que contêm de bom ou de útil. No
desfecho dessa “Carta a Odete Costa Semedo”, saberes, sabores e saburas se revesam,
se repartem e se aguçam pelo sentido do paladar, projetando-se na direção de um futuro
tanto promissor quanto possível. As palavras finais da carta-crônica de Conceição Lima
parecem querer provocar, tal como o canto do tchintchor e do ossobó, vozes
transnacionais e cúmplices que prenunciem, em harmonioso concerto, a permanência de
uma inadiável palavra, firme e necessária, porque poética: “Sei que em Bissau,
beberemos juntas, um dia, o fresco sumo da kabasera, sentadas em redor do fogo”.
REFERÊNCIAS
LIMA, Conceição. “Carta à Maria Odete Costa Semedo”. In: Revista África 21.
Luanda: maio de 2009. Disponível em:
http://www.africa21digital.com/noticia.kmf?cod=8499299&indice=30&canal=405Aces
so em: 04 ago 2009.
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NOTAS
1
MATA, Inocência; PADILHA, Laura (Orgs). A Poesia e a Vida – Homenagem a Alda Espírito Santo.
Lisboa: Colibri, 2006.
2
Dirigida pelo escritor e jornalista angolano João Melo, a revista África 21 tem como colunistas diversos
outros autores e autoras lusógrafos como a guineense Odete Costa Semedo, a santomense Inocência Mata,
o angolano Pepetela, o moçambicano Mia Couto, o cabo-verdiano Germano Almeida, o timorense Luís
Cardoso ou o brasileiro Luis Ruffato. Pode ser conferida em sua versão digital através do endereço:
http://www.africa21digital.com
3
LIMA, Conceição. “Um arquipélago em busca de uma rota”. Disponível em:
http://africa.expresso.clix.pt/common. Acesso em: 16 ago 2005.
4
LIMA, Conceição. “Carta à Maria Odete Costa Semedo”. In: Revista África 21. Luanda: África 21,
maio de 2009. Disponível em:
http://www.africa21digital.com/noticia.kmf?cod=8499299&indice=30&canal=405. Acesso em: 04 ago
2009.
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1
Professora Auxiliar no Centro de Competência Artes e Humanidades da Universidade da Madeira,
Portugal e Membro do Centro de Estudos Comparatistas (CEC) – Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
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[…] pensar que parti tantas vezes na ilusória certeza de que nada se alteraria
na minha ausência nem o tempo se recusaria a acompanhar o ritmo dos meus
desejos, Raquel dizia que eu [Marcos] fugia do tédio, talvez fugisse do tédio
mas o tédio não era Raquel, penso agora que fugia do pavor, interiorizado
mas ainda não apercebido, de engravidá-la, fugia daquela quase morte em
que a vi soçobrar quando nasceu o nosso terceiro filhox.
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época lhe impunha, esperando, assim, alcançar uma das múltiplas possibilidades por ela
oferecida, e que o acaso lhe reserva, podendo já sugerir a eventualidade de uma
transformação decorrente desse soltar de amarras que a tópica da viagem pressupõe.
Embora com vertentes diversificadas, o universo ficcional de Helena Marques
apresenta uma certa unidade, resultante dessa configuração temática comum a todos os
seus romances, que é a viagem, uma preferência que a autora reconhece quando afirma:
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Raquel é feliz na ilha, apesar do isolamento característico dos ilhéus. Estes “têm
uma carga de claustrofobia muito grande, embora simultaneamente se sintam muito
felizes lá na sua terra”xix, afirma a autora. Transpor o mar, fronteira proibida do desejo,
significaria, pois, escapar à submissão dos limites implacáveis do oceano, como
também à existência a que se encontravam predestinadas as mulheres do remoto século
XIX. E Raquel concretizará o sonho. Fá-lo-á acompanhada por Marcos, aquando de
uma imprevista viagem de serviço como médico de bordo, a Georgetown, na Guiana
Britânica, em substituição de um colega:
E é o mar esse espaço que levará Raquel a concretizar o sonho, numa das várias
modalidades que a viagem assume no imaginário da autora. Viagem que se abre a
múltiplas possibilidades, à revelação, mas também, e sobretudo, viagem de ruptura com
as limitações sociais imposta à mulher, num século fascinante para Helena Marques,
uma preferência que justifica pelas “lutas ideológicas e pela grandeza dessas lutas […] o
século em que as mulheres abriram caminho para a sua plena cidadania”xxi. Uma
viagem sonhada, de onde, contudo, Marcos regressará só, com “um berço e um
caixão”xxii. A única vez que viaja, Raquel morrerá ao dar à luz uma menina, Clara,
concebida na esplendorosa madrugada do regresso da missão, “num encontro de amor
quase absoluto”xxiii.
Apesar da tragédia, a obra de Helena Marques impõe-se como “desafio à
negatividade do mundo”, abrindo-se à leitura de um certo “optimismo trágico”xxiv, nas
palavras de Ramos Rosa.
Anos depois, ultrapassando as fronteiras da solidão, Marcos irá refazer a
vida amorosa, mostrando que se pode ser feliz com mais de uma mulher, mas não sem
deixar de marcar as diferenças:
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complexo processo de evocação retrospectivaxxxiii, mas antes colabora com ela no modo
como enforma um conjunto de procedimentos e instrumentos mentais que tornam viável
a sua reconstituição de que os documentos historiográficos, os registos oficiais,
testemunhos de pessoas, entre outros, podem ser exemplo. Trata-se de um livro que
“mexeu muito com as minhas recordações de infância. É um livro muito enraizado
nessa época”xxxiv, dirá a escritora numa entrevista concedida ao Jornal de Letras, ao
destacar a presença da ilha e das memórias na sua produção ficcional. Nela, as
estruturas espaciais não se reduzem a um simples inventário de lugares representados,
com um estatuto puramente descritivo e ornamental, mas antes cooperam com ela, de
certo modo orientando-a, abrindo ao leitor as vias da sua compreensão, ao se afirmarem
como testemunhos privilegiados de outros tempos e de outros lugares, embora a
memória, como lembra Clara Rocha, sempre esteja sujeita à filtragem subjectiva de
quem a produzxxxv.
Mais do que mero suporte da narrativa, o espaço irá funcionar como seu
princípio organizador, permitindo-nos captar o imaginário de Helena Marques não só
através da recorrência dos lugares representados como também da dinâmica que os
trabalha, não deixando de manter um diálogo com os espaços que emergem à superfície
da sua memória, nomeadamente com a Ilha da Madeira, “uma Madeira que no final do
século XIX teve uma grande qualidade de vida”xxxvi, mas também com outros espaços
marcados pela aventura da viagem e da emigração, de que podem ser exemplo
Inglaterra, Guiana Britânica, Ilha de Malta, entre outros.
Títulos como O Último Cais, Os Íbis vermelhos da Guiana e Ilhas Contadas,
três dos cinco livros publicados até à dataxxxvii, demonstram o privilégio que a autora
concede ao espaço onde decorre a aventura do herói numa estreita correlação com ele.
Entre o espaço, entre as paisagens e as personagens, estabelece-se uma harmonia logo a
partir do paratexto com o título, permitindo à partida, anunciar o equilíbrio das suas
funções.
A memória de que Helena Marques nos dá conta pressupõe uma busca de
identidade enquanto viagem de um sujeito que, nos percursos da sua experiência,
procura a plena realização - o amor, a felicidade, a sabedoria de viver, a harmonia entre
o mundo interior e o mundo exterior. Inventariar lugares e outros tempos enquanto
testemunhos de etapas e percursos de vida, bem como de circunstâncias que enquadram
experiências conduz o escritor, o sujeito que (se) (d)escreve a uma eventual e simbólica
reconstituição de experiências. De forma consciente ou não, o autor sempre parece
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destinado a deixar marcas da sua experiência nas (entre)linhas dos seus textos: “[…]
quelque personnage que l’homme entrepraigne, il joue toujours le sien parmis”xxxviii, diz
Michel de Montaigne no seu Livro I, no já remoto século XVI, uma afirmação que
parece encontrar ecos na obra de Helena Marques quando, pela voz da narradora inicial,
se refere às “memórias desse tempo donde eu provinha afinal, desse lado de lá do tempo
onde mergulhava a minha própria individualidade, a minha essência, a minha alma”xxxix.
REFERÊNCIAS
LETRIA, José Jorge. “Helena Marques, Último cais nova aventura”. Tempo Livre,
Junho 1992, p. 91-93.
MONTAIGNE, Michel de. “Que philosopher, c’est apprendre à mourir », Livre I (Cap.
XX). Paris: Librairie Générale Française, Collection Livre de Poche, 1972.
MORÃO, Paula. «Quel œil peut se voir soi-même ? - Stendhal au miroir», in Orlanda
Azevedo et al. Identidade com/sem fronteiras. Lisboa: Edições Colibri, 2005.
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NOTAS
1
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade Estadual da Bahia (UNEB),
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahía (UESB), Universidade Católica de Salvador (UCSal) e
Universidade Jorge Amado (UniJorge).
2
Letria, 1992, p. 91-93.
3
Quintino, 1993, p. 9.
4
Moniz, 2005, p. 172.
5
Marques, 1992, p. 3 (entrevista de Mª Teresa Horta).
6
Ibidem.
7
Elfriede Engelmayer, “Tempo das Ilhas, Tempo de Mulheres – sobre O Último Cais” de Helena
Marques, Coimbra, 1993.
8
Marques, 1992, p. 8.
9
Marques, 1992, p. 3 (entrevista de Mª Teresa Horta).
10
Marques, 1992, p. 150-151.
11
Marques, 1992, p. 3 (entrevista de Helena Marques ao DN Lisboa).
12
Marques, 2005, p. 173-174.
13
Marques, 1992, p. 11.
14
Ibidem.
15
Ibidem, p. 25.
16
Ibidem, p. 21.
17
Marques, 1992, p. 10 (entrevista de Maria João Martins).
18
Marques, 1992, p. 54.
19
Marques, 1992, p. 11 (entrevista de Maria João Martins).
20
Marques, 1992, p. 86.
21
Marques, 2002 (entrevista de Mª Teresa Horta).
22
Marques, 1992, p. 101.
23
Júlio, 2004, p. 8.
24
Rosa, 1994, p. 27.
25
Marques, 1992, p. 185.
26
Marques, 2002 (entrevista de Ana Vitória).
27
Marques, 1998, p. 48 (entrevista de Mª Teresa Horta).
28
Ibidem.
29
Marques, 1992, p. 30 (entrevista de Mª Teresa Horta).
30
Entrevista, 1993, p. 8 (entrevista de Lília Bernardes).
31
Marques, 1992, p. 3 (entrevista de Helena Marques ao Diário de Notícias, Lisboa).
32
Marques, 2005, p. 171.
33
Paula Morão, 2005, p. 37.
34
Marques, 1992, p. 10 (entrevista de Maria João Martins).
35
Rocha, 1992, p. 39.
36
Marques, 1992, p. 3 (entrevista de Helena Marques ao Diário de Notícias, Lisboa).
37
Está previsto o lançamento de um novo livro de Helena Marques para 2010.
117
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38
Montaigne, 1972, p. 128.
39
Marques, 1992, p. 9.
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1 INTRODUÇÃO
∗
Professora Adjunta do Departamento de Literatura e do Mestrado em Letras da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Ceará (UFC).
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2 DELIMITAÇÃO DE CONCEITOS
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determinadas sociedades. Por outro lado, essa produção também inclui o conceito de
oralidade, isto é, de procedência de uma manifestação da voz.
Segundo Zumthor6, oralidade compreende um campo semântico mais abrangente que o
simples conceito de algo transmitido pela palavra. A função da voz, “o exercício de seu poder
fisiológico, sua capacidade de produzir a fonia e organizar a substância”7, constitui o aspecto
fundamental desse conceito, que se sustenta na relação entre enunciador (intérprete /narrador)
e destinatário (ouvinte), considerada como fonte primeira de toda forma de comunicação.
Em outro estudo, o pesquisador suíço esclarece que “a voz é querer dizer e vontade de
existência. A voz é lugar de uma ausência que nela, voz, se transforma em presença. (...) é em
torno da voz que se fecha e se solidifica o laço social, enquanto toma forma uma poesia. (...)
O sopro da voz é criador”8. Em conseqüência, “obra” é definida como aquilo que é
poeticamente comunicado em uma performance: a união entre texto, sonoridade, ritmos,
gestos e elementos visuais. Nessa perspectiva, Zumthor destaca a relação dialógica entre
intérprete e ouvinte, já que “a manifestação da poesia pela voz postula um acordo coletivo (e
sua contrapartida, a censura), sem o que a performance não poderia se concretizar
inteiramente”9.
Por outro lado, oralidade não implica em improvisação. Isto é, para ser tomada como
oral, a obra, não necessita ser criada no exato momento da performance. Ela pode ser
originária de uma tradição oral herdada. A propósito, o autor salienta que não se deve
confundir tradição oral com transmissão oral, já que esta última se concretiza no momento da
performance, e a oralidade, em uma tradição oral, pode ser considerada como processo de
“produção, conservação e repetição”10 de conteúdo através da voz.
Ressalte-se ainda que, para Zumthor, quase todo texto poético escrito revela marcas de
oralidade, na medida em que se serve de estratégias como a estrutura formular, os recursos
mnemônicos ou prosódicos, a pontuação e as rimas, que identificam pausas rítmicas, etc.
Revelando, dessa forma, a intervenção da voz humana na estruturação da escrita. Ou seja, o
oral passa a ser visto como um conjunto de procedimentos poéticos próprios da poesia
transmitida pela voz.
A esse respeito, Maués salienta que “nem tudo o que é popular e/ou oral é ‘tradicional’.
Se o popular diz respeito à difusão e o oral aos mecanismos de transmissão – a voz – e seus
condicionantes formais, a tradicionalidade é determinada pelo relacionamento do objeto
cultural com a comunidade na qual circula” 11.
Ou seja, a tradicionalização constitui um longo processo, no qual uma composição
poética, inicialmente elaborada de forma individual, passa a ser difundida e reinterpretada, de
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voz em voz, ao longo de gerações. Fato que motiva a perda da assinatura, dando azo a uma
maneira de sentir coletiva, porque seu verdadeiro detentor passa a ser a comunidade em que
circula. As marcas pessoais e individuais dessa composição são diluídas na dialética entre
emissor e receptor à medida que a transmissão se sucede de geração em geração.
Vale lembrar que a oralidade e a escrita constituem diferentes processos de produção e
transmissão da tradição que, geralmente interagem, visto que muitos textos, antes de
circularem como um registro escrito, foram divulgados de forma oral; o contrário também se
observa. Um interessante exemplo são os cancioneiros populares ou cordéis, que são fixados
por escrito, mas, geralmente, nascem como composições orais. Estas, por sua vez, são lidas
por intérpretes que as memorizam e as transmitem oralmente.
Para Menéndez Pidal, o trabalho da tradição produz uma seleção ao gosto popular. Os
romances vão sofrendo modificações ao serem memorizados e repetidos inúmeras vezes. A
engenhosidade popular vai eliminando tudo que neles parece desnecessário e acrescentando
algo de que gosta mais, procurando a simplicidade e uma maior intensidade. Assim, “...la
12
tradición oral obra como la corriente del río, redondeando las guisas de su lecho.” . Por
outro lado, Zumthor explica a tradição como “um continuum de memória que carrega a marca
dos textos sucessivos que realizaram um mesmo modelo nuclear, ou um número limitado de
modelos funcionando como norma”13.
Norma, na verdade, diz respeito a uma estruturação que media emissão e recepção da
mensagem poética em termos de significantes (vocábulos, fórmulas, ritmos) e significados
(temas, fábulas). O que permanece é um núcleo comum, ligado à memória coletiva14, que
permite uma identificação cultural entre os indivíduos da comunidade, já que o intérprete
além de seguir a tradição para ser aceito, funciona também como um canal de expressão da
comunidade e, por isso, normalmente pouco realiza de intervenção individual. Todavia, ao
introduzirem variações no texto recebido, os sucessivos enunciadores tornam-se também
produtores15 do poema. Nas palavras de Menéndez Pidal:
Encarado como patrimônio cultural de todos, cada um se sente dono dele por
herança, repete-o como seu, com autoridade de co-autor; ao repeti-lo, ajusta-o e o
amolda espontaneamente à sua maneira mais natural de expressão, e assim, ao
propagar-se no canto de todos, vão sendo fixados no texto da canção algumas
modificações [...] todas decisivas para ir acomodando-a à índole mais natural do
povo inteiro. 16
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Com efeito, a análise das hipóteses sobre a origem do gênero romance18 – derivação
dos cantares de gesta ou das baladas européias medievais que sofreram paulatinamente um
processo de transmissão recriadora, própria da poesia tradicional – aponta para o caráter
dinâmico das formas transmitidas pela tradicionalidade, desqualificando o pensamento de
muitos, que vêem a tradição como uma herança solidificada, fechada, inerte que deveria ser
registrada para não ser perdida.
Diego Catalán, explanando sobre a natureza dual do romance, destaca o binômio
tradição / inovação como gerador de sua atualidade:
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Embora esse contexto medieval não corresponda mais ao cotidiano do público e dos
enunciadores dos romances, eles permanecem funcionais justamente porque cada enredo está
ancorado mais nos significados profundos, em verdades humanas universais e atemporais, que
na ação narrativa em si. Os excertos a seguir, retirados de diferentes versões do romance
Conde Claros recolhidas por Nascimento25, demonstram a atualização constante de aspectos
temporais da história, bem como de alguns vocábulos; o núcleo temático, porém, permanece
inalterado:
Na versão portuguesa mais antiga, de 1905, a expressão “vassalos, que estão ao meu
mandar” e o título de nobreza “Conde” remontam ao ambiente medieval e às relações de
vassalagem; na versão de 1955, são usados os termos “dom”, indicação indireta de nobreza, e
“criados”, denotando uma relação de trabalho não mais ligada necessariamente ao contexto
medieval. Por sua vez, a versão brasileira, recolhida no Maranhão, apresenta mais
modificações: não há referência a vassalos ou criados, o auxílio não advém de uma obrigação,
mas de uma ajuda ligada ao costume muito comum, no interior do Brasil, de se utilizar os
préstimos de meninos para levar recados. Outro fato comum retratado é o costume de as
jovens postarem-se na janela. Acrescente-se que o léxico está adaptado ao contexto local,
indicado inclusive pela expressão “por caridade”.
A sobrevivência de elementos aparentemente desatualizados – os títulos de nobreza, o
contexto feudal ou a irrupção de intervenções divinas – não contradiz a atualidade permanente
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da mensagem, porque essa desarmonia permite aos transmissores viver um mundo verossímil,
com soluções válidas que subvertem a ordem estabelecida, as quais pareceriam falsas, caso
estivessem ancoradas na realidade cotidiana.
Os Romanceiros normalmente são adaptados à ideologia da comunidade que canta,
transmite e recria suas composições, almejando sempre uma reflexão sobre a realidade social.
Eles persistem porque continuam a responder, com preceitos válidos, aos conflitos e desejos
dos seus transmissores e portadores.
Geralmente com relatos centrados numa única cena, situada in media res, por força da
economia característica da literatura oral, os romances também podem apresentar uma
preocupação de utilidade moral; fato que justifica a ocorrência de desfechos contundentes e
explícitos, formalizados em advertências ou conselhos dirigidos aos ouvintes-destinatários,
para evitar qualquer ambigüidade interpretativa da mensagem.
As duas versões de Angelina recolhidas por Leite de Vasconcelos26 que, na verdade,
constituem variantes reduzidas e contaminadas dos romances: D. Branca e de Dom Claros
d´além mar; Carlos de Montealbar, Dona Lisarda, Dona Areria, Marianinha, Claralinda,
com conclusões distintas, permitem ilustrar essa tendência:
1. Versões recolhidas por Vasconcelos:27
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- Prepara-te, ó Claralinda
Que amanhã vais a queimar.
- Não se me dá que me matem,
Que me levem a queimar,
Dá-se-me deste meu ventre
Que é de sangue real!
Excetuando o primeiro excerto, no qual a voz que se dirige aos ouvintes aconselha os
pais das jovens a consentirem nos casamentos para evitar a gravidez indesejada, todos os
outros reproduzem a voz das jovens lamentando a morte das crianças ainda não nascidas, a
despeito de suas próprias vidas estarem também condenadas. De qualquer forma, o enfoque é
dado às conseqüências da desobediência a um interdito e não às particularidades de cada
história ou protagonista.
A guisa de conclusão
Como pesquisa inicial que pretende investigar o desenvolvimento e a transformação
de temáticas específicas de alguns romances, não dispomos, ainda, de material suficiente para
enunciar conclusões. Contudo, a partir dos elementos discutidos, podemos considerar que os
romances, espécies legitimadas pelo universo poético, versam contornos das paixões humanas
e de sua simbologia que, na realidade extraliterária, são freqüentemente censurados, porque,
como paixões, têm por regra ignorar interditos ou costumes, abalando, assim, a estrutura
estabelecida pela comunidade. Ao julgarem e valorarem a realidade através de um sistema
poético, essas composições sancionam ou refreiam condutas e transgressões, como também
moralizam, exemplificam, levam à reflexão e organizam um sistema social.
Influenciados pelo quotidiano dos intérpretes-transmissores, os romances privilegiam
protagonistas universais, apesar do uso de nomes próprios, usados para imprimir
autenticidade ao relato e facilitar a perduração da memória dos heróis recordados pelos seus
atos positivos ou negativos, ou pelas situações em que surgem como vítimas. Apesar da
ocorrência de datas e de topônimos, igualmente com a função de sublinhar a veracidade
dessas composições, as histórias tornam-se assim atemporais, enredos aplicáveis, ou
verossímeis em qualquer tempo e espaço.
A força social desta literatura muito deve ao poder encantatório ou simbolicamente
transformador da palavra poética. Cantar um romance é um acontecimento que produz a
fruição de um manancial de temas, motivos, sutilezas e novas combinatórias literárias –
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REFERÊNCIAS
CATALÁN, Diego. Arte poética del romancero oral. Madrid: Siglo Veintiuno, 1997, 2v.
DUBY, Georges. “A vulgarização dos modelos culturais na sociedade feudal” in: A sociedade
cavaleiresca. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p.145-153.
FRANCO JUNIOR, Hilário. Meu, teu, nosso: reflexões sobre o conceito de cultura popular.
In: Revista USP. n0.11, p.18-25, (set./out./nov.), 1991.
____________. Flor nueva de romances viejos. 45ª ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1985.
VASCONCELOS, José Leite de. Romanceiro Português. (Ed. Viegas Guerreiro et all.)
Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis- Universidade de Coimbra, 1960.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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NOTAS
1
Menéndez Pidal, 1953.
2
Franco Júnior, 1991, p. 20.
3
Idem, ibidem, p.20.
4
Duby, 1989, p.148.
5
Franco Júnior, 1990, p.20-21.
6
Zumthor, 1993.
7
Idem, ibidem, p.21.
8
Zumthor, 1997, p.30.
9
Idem, ibidem, p.33.
10
Idem, ibidem, p.33-34.
11
Maués, 2001, p.19.
12
Menéndez Pidal, 1953, v.1, p.61.
13
Zumthor, 2000, p.97.
14
De acordo com Halbwachs (1990, p.27), a memória do indivíduo não é um processo solitário, mas que se dá
através da interação social, interação que permite a construção de uma memória mais ampla, representada pela
memória da própria sociedade na qual o indivíduo se faz presente. Ou seja, a memória individual e a coletiva
interpenetram-se e se completam, tecendo a malha da memória comum, de onde advém a possibilidade de uma
comunicação permanente entre as sucessivas gerações. Tanto uma como outra recorrem à reconstrução das
lembranças, já que as recordações permanecem adormecidas no repertório coletivo de tradições.
15
Pinto Correia (1993) propõe o termo “produtransmissores” para designar esses enunciadores.
16
Menéndez Pidal, 1953, v.1, p.45.
17
Pinto Correia, 1984, p.19.
18
Romance, considerado como o representante ibérico da balada européia, tem como definição obrigatória a
primeira feita por Menéndez Pidal (1985, p. 9): “poemas épico-líricos breves que se cantam ao som de um
instrumento, quer em danças corais, quer em reuniões efetuadas para simples recreio ou para o trabalho em
comum”. A despeito da dificuldade de se abarcar a complexidade e variedade desse gênero em uma definição
por natureza sintética, muitos estudiosos propuseram definições próprias. Dentre estas, consideramos mais
abrangente a de Pinto Correia (2003, p.23) por caracterizar vários aspectos deste gênero: “[o romance tradicional
é] uma prática significante de manifestação lingüístico-discursiva oral de curta extensão, com natureza e
manifestação poética (em verso longo com dois hemistíquios e acompanhada de música), de organização
predominantemente narrativo-dramática ou só dramática, embora por vezes muito contaminada pela componente
lírica, altamente variável (versões e variantes) em cada uma das componentes textuais (expressão e no conteúdo)
e que, situada na literatura oral tradicional, se insere no extracontexto da vida social quotidiana de uma
comunidade popular (nos momentos de trabalho ou de lazer).”
19
Catalán, 1997, v.1, p.114.
20
Halbwachs, 1990, p.82.
21
Segundo Franco Júnior (2003, p. 89), mentalidade é “um conjunto de automatismo, de comportamentos
espontâneos, de heranças culturais profundamente enraizadas, de sentimentos e formas de pensamentos comuns
a todos os indivíduos, independentemente de suas condições sociais, políticas econômicas e culturais”.
22
Franco Júnior, 2003, p.95.
23
Menéndez Pidal (1985) descreve detalhadamente esse processo. Contudo, a consideração deste processo como
o único gerador de gênero tão complexo não é plenamente aceito. Para mais informações, Maués, 2001, p. 27.
24
Maués, 2001, p.25.
25
Nascimento, 2004, p.241-242.
26
Vasconcelos, 1960.
27
Idem, ibidem, p.462.
28
Alcoforado e Albán, 1996, p.80.
29
Pinto Correia, 1984, p.180.
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À citação com que abrimos este texto podemos ainda acrescentar a ideia de que,
no caso concreto de António Lobo Antunes, escrever é também tentar vencer-se a si
próprio, é tentar ultrapassar os limites de uma constante insatisfação com o que escreve
e, em particular, com o como escreve. A luta consigo mesmo e com o acto de escrever é
exposta, essencialmente, e ainda num nível geral, em diversas entrevistas onde o autor
dá conta de que vários dos seus romances não deveriam ter sido publicados.
Assim sucede, em 1997, com o comentário tecido em entrevista a Francisco José
Viegas a propósito de Memória de Elefante. Este livro, apesar de ser visto como o lugar
“onde começam a aparecer, ainda que timidamente, todos os processos que eu depois
comecei a tentar desenvolver melhor nos livros a seguir”, é considerado pelo autor
como “provavelmente o mais fraco de todos” os romances escritos até ao momento. Por
isso, acrescenta que, “se eu voltasse atrás, teria começado a publicar com Explicação
dos Pássaros” (1981)1. Esta afirmação é posteriormente reformulada e, em 20002, o
romance escolhido é Fado Alexandrino. Neste mesmo ano, em entrevista a Rodrigues
da Silva sobre Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, afirma ainda: “Nunca hei-
de escrever o livro que gostaria de escrever. Nunca. Nunca”3. Num claro indício da
busca de uma perfeição (im)possível, António Lobo Antunes aponta, em 2004, O
Manual dos Inquisidores (1996) e, depois, em 2006, O Esplendor de Portugal (1997)
como os romances a partir dos quais deveria ter começado a sua carreira de escritor4.
Em tempo mais recente, já afirmou estar “muito contente com o livro” Que Cavalos São
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Professora Auxiliar com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal).
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Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?; um livro que, ainda segundo o autor, “marca um
grande progresso em relação aos anteriores”5.
Estas afirmações relativas a uma sistemática – e quiçá infindável – procura de
uma obra perfeita ligam-se de forma próxima, mas não exclusiva, à obsessão de “chegar
a um livro onde o silêncio seja completo”, porque, “Se calhar, toda a arte devia tender
para o silêncio. Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é”6. E o silêncio a
que se refere António Lobo Antunes só pode resultar da tentativa de despir a sua prosa
ficcional de tudo o que vê como acessório, logo como desnecessário a uma escrita
límpida. Límpida porque reduzida ao osso, porque despojada do que classifica como
“banha” ou “gordura”, referindo-se ao uso excessivo de adjectivos, de advérbios de
modo, de metáforas, de palavrões, etc.7.
Ora, se nos parece remota a probabilidade de algum dia o autor se sentir
plenamente satisfeito com uma sua obra, o mesmo não nos parece suceder, como
veremos, relativamente ao objectivo de silenciar aqueles ruídos.
Note-se, a propósito, e em primeiro lugar, que a recorrência inicial dos aspectos
mencionados, largamente apontados como negativos por alguma crítica dos anos
oitenta, constitui já, em nosso entender e por si só, um singular caminho de fuga a um
certo romance de índole tradicional, ou àquilo que se designa(va) por Literatura. Por
outras palavras, parece-nos corresponder a uma pulsão que, em início de carreira, talvez
não fosse ainda inteiramente consciente e, por isso, voluntária, de “mudar a arte do
romance”, de acordo com o que afirmará, por exemplo, a María Luisa Blanco8.
Não por acaso, pois, em texto crítico sobre Memória de Elefante e Os Cus de
Judas, Isabel Margarida Duarte se, por um lado, aponta o sucesso destas obras junto do
público, por outro lado sublinha que elas destroem “uma certa sacralidade inibidora da
linguagem literária” reduzida “à poeticidade diária da comunicação nua e crua”9. É
verdade que, tal como diz a autora da crítica, este aspecto se consubstancia em atractivo
para um certo tipo de público. Não é menos verdade, porém, que a utilização de um
certo prosaísmo linguístico, onde se inclui o uso do palavrão, ou o recurso a imagens
banalmente inusitadas, chocou e ainda choca, seguramente, um determinado tipo de
mentalidade literária conservadora. Isso mesmo pode ser exemplificado pelos seguintes
excertos de Os Cus de Judas:
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existirem nas suas obras, “sentidos exclusivos nem conclusões definidas”, assim
exigindo “que o leitor tenha uma voz entre as vozes do romance (…) a fim de poder ter
assento no meio dos demónios e dos anjos da terra”13.
Não se pense, contudo, que a polifónica música das vozes que compõem a pauta
de cada um dos livros se consubstancia em ritmos totalmente diferentes, dissonantes e
estanques entre si. É verdade que se derroga o conceito tradicional de narratividade, no
sentido em que não existe uma dinâmica de sucessividade temporal, isto é, uma
linearidade na apresentação do relato (não obstante o eventual recurso a procedimentos
que envolvem o recuo ou o avanço no tempo)14. Mas também é verdade que, no lugar
dessa dinâmica, as ficções de António Lobo Antunes apresentam, impondo, o que
pensamos poder designar por micro-narratividades, ou por teia de linearidades, que, em
derradeira instância, acabarão por fazer sentido(s).
Numa prática post-modernista que vemos como exercícios extremos de
metaficcionalidade15 – e parece-nos ser em mais este diálogo com os limites que a
novidade da obra antuniana também se constitui –, não só o texto se (re)constrói em
blocos, como a própria linguagem parece ser exponencialmente gerada por vozes que
lhe dão corpo e alma, trazendo as suas ou outras histórias à superfície da narrativa.
Todavia, ao contrário do que uma leitura rápida e de superfície poderia levar a supor,
estas micro-narrativas só na aparência surgem isoladas e independentes. Deste modo, é
sempre possível verificar que as malhas soltas que vão sendo deixadas pelas várias
vozes, ou por uma mesma voz, acabam por poder ser recuperadas por uma leitura
atenta, profunda. Recordamos, por exemplo, de O Arquipélago da Insónia, os relatos
dispersos mas de fio condutor recuperável, sobre o mulo que manca, sobre o assassinato
do padre ou sobre o passado do ajudante do feitor.
Como escrevemos em outro momento16, a questão essencial é que a ficção de
António Lobo Antunes vive muito de histórias e de tempos que engordam17, isto é, de
movimentos retrospectivos e laterais, de olhares que se estendem para trás e para os
lados, e que são, sem dúvida, indispensáveis a uma melhor compreensão do mundo e
das personagens do romance. Não esqueçamos que, na ausência de uma instância
narrativa tradicional, são justamente esses movimentos e esses olhares que também
permitem completar (tanto quanto possível) a composição e a caracterização dos seres
que povoam os universos (re)criados. Não por acaso, é o próprio autor quem, a
propósito, sublinha que “«O que os estrangeiros dizem que eu trago de novo para a
literatura não é mais do que a adaptação à literatura de técnicas de psicoterapia: as
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tem o “arame na garganta” (p. 166, 175) que o impede de falar (p. 113), sabemos
também que esse arame atravessa a garganta de outras personagens, dificultando-lhes as
palavras (p. 164, 173).
Esta estratégia, aliada a crescentes e intensas alusões ao silêncio, recorre em Que
Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? quer em momentos em que das
personagens se diz comunicarem sem palavras, quer porque se admite que elas não
conseguem falar. Mercília, por exemplo, tenta explicar, “calada”, a diferença nos olhos
de Ana; esta, por sua vez, pede-lhe, também “calada”, que o não faça (p. 50). O mesmo
sucede no exemplo em que Ana não usa a boca para dizer “ – Tenho frio” quando, no
“baldio sobre o Tejo” se encontra com o homem que lhe vende a droga (p. 68). Num
outro exemplo, que ecoa o arame na garganta das personagens de O Arquipélago da
Insónia, sabemos não só da dificuldade na garganta de Francisco ou da sua incapacidade
para a explicar (p. 111-112), como, ainda, encontramos João a interrogar-se sobre “que
dobradiças temos na garganta senhores” (p. 216).
Em outros momentos, sabemos também que o pai não está certo de falar (p. 89-
90); que o bisavô Marques (posteriormente revelado como o pai de Mercília, p. 240)
tem uma “fenda do lábio” (p. 132), deformação que traz à memória o lábio leporino de
Hiena, um dos rapazes do gang de O Meu Nome É Legião, e que pode apontar para
alguma dificuldade de articulação verbal, logo de comunicação. O mesmo efeito se
retira, indirectamente, da menção ao facto de a placa de dentes postiços de Mercília lhe
impedir a língua (p. 142-143) ou, directamente, da constatação de Maria José de que
“não há sons para além de um gorgolejo que se interrompe e prossegue” (p. 290, cf.
297)21.
De acordo com o exposto, mas não só por isso, pensamos que o duplo lugar na
evolução da ficção antuniana que anteriormente propusemos para O Arquipélago da
Insónia22 deve, preferencialmente, reduzir-se à hipótese que vê a obra como o início de
um novo ciclo23 e não como o encerramento do anterior – o das contra-epopeias líricas,
isto é, do conjunto de romances publicados a partir de Não Entres Tão Depressa Nessa
Noite Escura (2000). Um ciclo de romances de onde julgamos poder retirar Boa Tarde
Às Coisas Aqui em Baixo (2003) que, pela sua semântica interna, deslocamos para o
ciclo anterior, denominado pelo autor como o ciclo dos romances sobre o poder (em
Portugal). Para esta nova fase de produção romanesca propomos a designação de ciclo
do silêncio, isto é, de uma outra maneira de dizer as coisas, as pessoas, as vidas, as
emoções ou a ausência delas. A justificação decorre, pois, tanto do facto de nas páginas
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deste livro se levar a um (quase) extremo o intimismo presente nos romances anteriores
quanto da constatação de que nele encontramos, como já dissemos, páginas silenciosas
de arrojos metafóricos e de elaborações linguísticas afins.
Cumpre explicitar que a designação utilizada de contra-epopeias líricas, de acordo
com expressão, que completamos, do próprio autor24, resulta quer da existência da
vertente intimista que dominará o tom e a cor do ciclo do silêncio, quer do mais
sistemático uso de uma linguagem reveladora de inegáveis dimensões poéticas. Não
pretendemos afirmar que nas outras obras não seja possível encontrar uma enorme carga
de expressão dos mais íntimos sentimentos das vozes – e das pessoas – que os povoam e
que os percorrem. É-o, sem dúvida. Mas a isso sobrepõem-se outros interesses e outras
preocupações decorrentes dos objectivos específicos e intrínsecos a cada um dos ciclos:
a reduplicação de parcelas da sua própria vida, no ciclo dos romances de aprendizagem;
a necessidade de fazer do país a personagem principal, no ciclo das contra-epopeias; o
retrato a várias cores da Benfica da sua infância, no ciclo de Benfica; e, finalmente, a
denúncia de atrocidades de vária espécie causadas pelas várias faces do poder, no ciclo
dos romances com a mesma designação.
A partir de Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura torna-se subordinante o
que até então era uma linha de subordinação aos aspectos que acabamos de enunciar. A
expressão dos mais recônditos pensamentos e sentimentos de almas sempre deficitárias
de afectos instaura uma nova dinâmica de predominância temática. Mas uma dinâmica
que, no âmbito dos diversos jogos de subversão extrema sempre caros a António Lobo
Antunes, e também no âmbito de uma procura de novos caminhos para o romance,
exige que adicionemos o prefixo de negação ‘contra-’.
Por conseguinte, não interessa tanto que, num primeiro nível, o jogo subversivo
esteja desde logo patente na junção (tão post-modernista) dos conceitos de épico e de
lírico, respeitantes a géneros diferentes (narração de acontecimentos sublimes e heróicos
de um povo ou de um herói versus exteriorização do mundo interior). Não é também tão
importante que, num segundo nível, possamos apontar, ainda, quer a ausência da
chamada distância épica25, quer a diferença entre a forma de expressão que esses
conceitos implicam e aquela que é praticada pelo escritor (prosa e não verso). O que
sobremaneira chama a nossa atenção, e exige o prefixo, é o facto de, ao contrário do que
sucede na epopeia, não se celebrar nenhuma acção grandiosa de heróis não menos
grandiosos, ou, de acordo com a mistura genológica proposta, não se celebrar, no limite,
nenhum íntimo acontecimento, nenhum íntimo pensamento sublime e elevado. Ao
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invés, as personagens são pessoas singularmente comuns (e não superiores), por vezes
pessoas singularmente grotescas e sórdidas, ensombradas pela incapacidade de fugir a
presentes sem futuro ou a passados sem presente.
Não se pense, contudo, que o facto de compartimentarmos a ficção de António
Lobo Antunes pressupõe que a entendamos fora de um continuum. Além de ele próprio
ter já reconhecido essa impossibilidade26, não nos parece problemático identificar vários
tipos de continuidade – na diversidade – presentes nas ficções publicadas até ao
momento. Pelo menos para um leitor atento e interessado no conhecimento da
globalidade da obra antuniana.
Aliando-se à já mencionada prática de jogos polifónicos de índole diversa, cumpre
ainda chamar à colação um aspecto já assinalado por Maria Alzira Seixo, em 1996, a
propósito de O Manual dos Inquisidores mas passível de aplicação a romances
anteriores e posteriores. Referimo-nos a uma técnica de diálogo que, fugindo ao
conceito e ao exercício canónico, tradicional, “nunca é troca de palavras, mas apenas
enunciado de réplicas que obsessivamente se repetem na sua significação simbólica
remissiva a um tempo de sentido lapidar”27. Cumpre, também, dar conta da série de
inovações formais, pormenorizadamente assinaladas pela mesma ensaísta no estudo
fundacional sobre o autor, Os romances de António Lobo Antunes. Recordamos, para o
efeito, principalmente a partir de O Manual dos Inquisidores o aumento – em grau e em
número – do desmembramento de frases, resultado de estranhas translineações, e, por
consequência, de suspensões semânticas inusitadas: frases entrecortadas por falas de
outras personagens ou por comentários da voz que então fala, num jogo que pode ou
não envolver parêntesis e itálicos; e num jogo, ainda, que não corresponde,
necessariamente, a diferentes interlocutores.
No que se refere ao nível da semântica interna das obras, não podemos deixar de
apontar esse que, segundo julgamos, constitui mais um exemplo do exercício de uma
arte romanesca singular e peculiar: a permanente presença de intertextualidades
homoautorais. E não nos referimos apenas à presença continuada de determinados
motivos (também já devidamente assinalados e estudados por Maria Alzira Seixo),
como o acto de escrever, os relógios, os retratos, o voo, o poço, as flores, etc.. Estes
motivos, aliás, são com frequência usados para muito mais do que (re)criar ou decorar
ambiências específicas ou facultar certas sugestões.
Em larga maioria das menções feitas à existência de retratos, por exemplo, é
possível verificar que eles interferem no relato dos episódios em que surgem integrados,
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ora pedindo ajuda, ora indignando-se com o desleixo, ora levando a supor que as coisas
estão mudadas, ora dando ordens, ora, ainda, e sem esgotarmos os exemplos e as
funções que desempenham, censurando comportamentos e modos de vida de
personagens. Assim acontece, respectivamente, em A Ordem Natural das Coisas, com o
pedido de ajuda do retrato da mãe de Orquídea (p. 127); em O Manual dos Inquisidores
com o “retrato da rainha, examinando indignada as cascas do tapete” (p. 16); em Não
Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura, com “ um retrato a examinar-se, a estudar-se
(...) a achar a casa mudada” (p. 505); em Eu Hei-de Amar Uma Pedra, com a mãe que
continua “a mandar na pensão a partir do retrato” (p. 464); ou em O Meu Nome É
Legião, com “(...) as fotografias que (...) censuram” a falta de juízo de um dos homens
assaltados pelo gang de miúdos (p. 164).
Mas é também por outros aspectos que da leitura da ficção de António Lobo
Antunes ressalta a constatação de que, como em nenhum outro autor, os vários
romances dialogam entre si, mesmo quando um novo ciclo parece prenunciar o
substancial abandono de algumas reconhecidas obsessões temáticas. Parece-nos ser o
que sucede, exemplarmente, com o tema de África (progressivamente diluído mas
nunca ausente) e, por extensão, da guerra colonial e dos seus efeitos e consequências28.
Parece-nos ser também o caso de outros diálogos intertextuais. Reportamo-nos,
agora, à reutilização (ainda que pontual) de personagens, de ambiências e,
principalmente, do que podemos designar por micro-linhas de obsessão temática.
Desta forma, entre tantos exemplos, o sargento Eleutério, que em Tratado das
Paixões da Alma (1990) evoca diversos episódios da guerra colonial (p. 356-358),
recupera, sem dúvida, o alferes Eleutério que encontramos nas páginas de Os Cus de
Judas (1979) (p. 76, 103, 114); o homem do violino, pai de uma das personagens do
primeiro título que apontámos (pai do Homem, Antunes), é retomado em A Ordem
Natural das Coisas no “homem barbudo” que tocava violino (p. 37). Este romance liga-
se ainda ao anterior, entre outros aspectos, pela menção ao ninho das cegonhas no
celeiro dos Antunes (p. 148). Além disso, a chuva-“toalha de pólen cor de prata sob o
céu azul”, presente quase nas linhas finais do livro (p. 310), cria uma ambiência similar
a um dos quadros iniciais de A Morte de Carlos Gardel (1994), trazendo à memória o
“pólen da acácia que chovia nas pálpebras do avô de Álvaro” (p. 14)29. Trazendo à
memória, também, julgamos, a “chuvinha de outubro,” [as] gotas que não caíam,
trocavam de posição sob um céu de barrela”, de O Arquipélago da Insónia (p. 14).
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REFERÊNCIAS
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Lisboa: Dom Quixote, 2005 [1990].
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Lisboa: Dom Quixote, 2008 [1992].
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Dom Quixote, 2008 [1994].
ANTUNES, António Lobo, O Manual dos Inquisidores. 10ª ed./1ª ed. ne varietur.
Lisboa: Dom Quixote, 2005 [1996].
ANTUNES, António Lobo, Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura. 6ª ed./1ª ed.
ne varietur. Lisboa: Dom Quixote, 2008 [2000].
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ANTUNES, António Lobo, Eu Hei-De Amar Uma Pedra. Lisboa: Dom Quixote, 2004.
ANTUNES, António Lobo, O Meu Nome É Legião. 2ª ed. ne varietur. Lisboa: Dom
Quixote, 2007 [2007].
ANTUNES, António Lobo, Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?.
Lisboa: Dom Quixote, 2009.
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Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008.
ARNAUT, Ana Paula, António Lobo Antunes. Lisboa: Edições 70, 2009.
BLANCO, María Luisa, Conversas com António Lobo Antunes. Trad. Carlos Aboim de
Brito. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
COELHO, Alexandra Lucas [2000], “António Lobo Antunes, depois da publicação de
‘exortação aos crocodilos’ – ‘Agora só aprendo comigo’”, in Ana Paula Arnaut (ed.),
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COTRIM, João Paulo [2004], “«Ainda não é isto que eu quero»”, in Ana Paula Arnaut
(ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-2007. Confissões do Trapeiro.
Coimbra: Almedina, 2008, p. 473-484.
DIAS, Ana Sousa [1992], “Um escritor reconciliado com a vida”, in Ana Paula Arnaut
(ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-2007. Confissões do Trapeiro.
Coimbra: Almedina, 2008, p. 147-156.
GOMES, Adelino [2004], “Um quarto de século depois de Os Cus de Judas. ‘Acho que
já podia morrer’”, in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes.
1979-2007. Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 433-450.
GOMES, Adelino [2004b], “‘Não sou eu que escrevo os livros. É a minha mão,
autónoma’”, in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-
2007. Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina, 2008, p. 463-471.
JÚDICE, Nuno, “Uma obra imensa”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 15 de
Outubro, 2003, p. 20.
REIS, Carlos e LOPES, Ana Cristina M., Dicionário de Narratologia. 5ª ed. Coimbra:
Almedina, 1996 [1987].
SEIXO, Maria Alzira, “As várias vozes da escrita”, in Jornal de Letras, Artes e Ideias,
Lisboa, 6 de Novembro, 1996, p. 8-9.
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SEIXO, Maria Alzira, Os romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote,
2002.
SILVA (b), João Céu e, “«Daqui a dois anos acaba tudo e não publico mais»”, in Diário
de Notícias, Lisboa, 16 de Fevereiro, 2009, p. 28.
SILVA, Rodrigues da [1999], “Mais perto de Deus”, in Ana Paula Arnaut (ed.),
Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-2007. Confissões do Trapeiro. Coimbra:
Almedina, 2008, p. 305-323.
VIEGAS, Francisco José [1997], “Nunca li um livro meu”, in Ana Paula Arnaut (ed.),
Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-2007. Confissões do Trapeiro. Coimbra:
Almedina, 2008, p. 275-304.
NOTAS:
1
Viegas, 1997, p. 32 e Arnaut, 2008, p. 282.
2
Pires e Stilwell, 2000, p. 34 e Arnaut, 2008, p. 355.
3
Silva, 2000, Génesis de um romance”, p. 8. Em entrevista a Alexandra Lucas Coelho considera
Exortação aos Crocodilos como o melhor livro “até agora”, cf. Coelho, 2000, p. 28 e Arnaut, 2008, p.
330.
4
Gomes, 2004, p. 3 e Arnaut 2008, p. 438; Coelho, 2006, p. 47 e Arnaut, 2008, p. 540.
5
Silva (b), 2009, p. 28.
6
Silva, 1999, p. 5 e Arnaut, 2008, p. 307; Gomes, 2004 e Arnaut, 2008, p. 435.
7
Gomes, 2004 e Arnaut, p. 436 p. 3; Silva, 1994, p. 17 e Arnaut, 2008, p. 215.
8
Blanco, 2002, p. 66 e 125. Esta convicção é repetida em várias entrevistas.
9
Duarte, 1980, p. 8.
10
Alves, 1985, p. 58.
11
Barthes, 1997 [1973], p. 49-50.
12
Ver Gomes, 2004b, p. 12 e Arnaut, 2008, p. 464. A mesma linha de leitura é adoptada por Cotrim,
2004, p. 34.
A diferente leitura que fazemos baseia-se, essencialmente, em excertos das p. 265-266 e 290.
13
Antunes, 2007 [2002], p. 114. Em entrevista a Silva, 1999, p. 5 e Arnaut, 2008, p. 307, afirma que “o
livro bom” “é aquele que cada leitor pensa que foi escrito só para ele, como se pensasse que os outros
exemplares tinham palavras diferentes”.
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14
Reis e Lopes, 1996, p. 275 (“narratividade”).
15
Modo linguístico das formas manifesta e dissimulada. O modo diegético da forma manifesta, isto é,
diversos comentários sobre o modo como romance está a ser escrito, surge cada vez com maior
frequência na prosa antuniana. Ver, a propósito de formas de metaficção, Arnaut, 2002, p. 262-264.
16
Arnaut, 2009, 32.
17
Cf. Dias, 1992, p. 24 e Arnaut, 2008, p. 148.
18
Silva, 1996, p. 14 e Arnaut, 2008, p. 237.
19
Blanco, 2002., p. 55.
20
Seixo, 2002, p. 241.
21
Ver, ainda, p. 170 (“na aba do chapéu [do pai] a mudez ensurdecia”), 175 e 184 (Francisco não usa a
voz para chamar a mulher ao quarto, mas um gesto, porque é uma “maçada falar”), 190 (a mãe tosse
“com o corpo, não com a garganta”), 194-195 (a mãe diz a Beatriz que não a ouve, como se ela não
tivesse voz), 200 (as cartas sem palavras que Ana recebe de si mesma), 209 (a boca tapada de João), 220 e
224 (Rita não tem “ganas de falar” / perdeu “o hábito de falar”), 222 (Ana, no quarto de Rita, quer falar e
não consegue), 270 (uma voz que se extingue), 320 (a boca de Ana impede-a de gritar), 325 (todos
mudos). Na p. 58 Ana menciona o “defeito no lábio” do afilhado do avô.
22
Ver Arnaut, 2008 e Arnaut, 2009, p. 22.
23
O próprio autor fala de uma trilogia constituída por O Arquipélago da Insónia, passado no Alentejo,
Que Cavalos São aqueles Que Fazem Sombra No Mar?, passado no Ribatejo, e um romance ainda a
escrever, passado na Beira Alta – ver Silva (b), 2009, p. 28.
24
“Não sei se estou certo ou não, mas creio que o que escrevo são «epopeias líricas»” (cf. Blanco, 2002,
p. 118).
25
Segundo Mikhaïl Bakhtine, 1978 [1975], p. 452-453, a epopeia, em relação ao romance, caracteriza-se
por três aspectos fundamentais: 1) o objecto da epopeia é “o passado épico” nacional; 2) as fontes são as
tradições nacionais (em detrimento de experiências individuais); 3) o “passado épico” separa-se e
distingue-se do presente de forma absoluta (“distância épica absoluta”). Veja-se, a propósito, Aristóteles,
1994, p. 109-113, 140-142.
26
Cotrim, 2004, p. 29-30 e Arnaut, 2008, p. 475.
27
Seixo, 1996, p. 8-9.
28
Ver Arnaut, 2009, p. 29-35
29
Imagem que também encontramos na crónica “Elogio do subúrbio”, in Antunes, 2006 [1998], p. 16.
30
Júdice, 2003, p. 20.
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1
Professora de Teoria Literária, Literaturas Brasileira e Portuguesa – UNEB. Dr.ª em Comunicação e
semiótica – PUC/SP.
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A primeira leitura mostra o livro como escrito literário casado com pelo menos dois
tipos de história – a que recebe estatutos ditos oficiais e a que passa da boca ao ouvido
incessantemente.
E a primeira impressão que se confirma ao longo das páginas do livro é a de que
se trata de uma história construída sobre vozes de personagens que, de saída, são como
que representantes dos povos ditos crioulos; estes, por sua vez, resultam da união de
inúmeras castas e descendências africanas, não só em terras de África.
A partir de recentes pesquisas no campo da Antropologia e da Lingüística
principalmente, tem-se reelaborado o entendimento em relação ao termo ‘crioulização’,
que hoje gira em torno dos sentidos de criatividade e mistura em contínuo processo,
além de também representar sobreposição de traços da língua do dominador sobre a
base/matriz da língua dos dominados – indício de resistência.i
Um dos textos-memória dado à leitura informa, de modo indireto, o entrelace
estabelecido entre Agualusa e Eça de Queiroz, a partir da retomada ou migração
(artístico/cultural) de Fradique Mendes, personagem que passa da autoria do escritor
português para a autoria do escritor africano.
Uma espécie de "heterônimo coletivo", daqueles que em Portugal foram
chamados “os vencidos da vida” (Oliveira, 2000 e 2004), Carlos Fradique Mendes, ao
ser recriado, traz consigo uma bagagem de memórias alheias que casa perfeitamente
com o projeto literário que pode ser identificado entre Eça e Agualusa: o que mostra as
feições de uma literatura pautada não na autoria clássica, mas no plurivocalismo, ao
apresentar outras vozes que emanam de uma nação movente e que se faz fortemente
presente pelo mundo e não em apenas um continente.
Em se tratando de memória e autoria compartilhada, vale dizer que Fradique
constitui-se em excelente exemplo dado a público por meio das letras portuguesas.
Sobre isso informa um dos compiladores do livro póstumo de Eça de Queiroz e
Ramalho Ortigão, Os brasileiros, Zetho Cunha Gonçalves, ao tratar da autoria d’As
Farpas:
As Farpas ou mais exatamente: As Farpas – Crônica Mensal da Política das
Letras e dos Costumes, é obra concebida e materializada a duas cabeças e
quatro mãos, cuja assinatura autoral, ladeando, na capa da edição original, o
diabo Asmodeus, é de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.
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– Não! Não subam! – gritou Bacalhau – Não subam porque eu vou descer.
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óbvio dizer que uma nação é sempre composta por muitas, como bem o demonstra o
livro em questão, e os trânsitos, viagens e movimentação das gentes/personagens ainda
mais destacam o caráter migrante da literatura de Agualusa.
Dentro da possibilidade intemporal da literatura, Eça de Queiroz e Fradique
Mendes, ganham, uma vez mais, voz e expressão literárias para tratar da urgência não
só temática que gira hoje em torno das nações crioulas: a presença, configurações e
implicações de uma nação desterritorializada que (co)existe em outras nações pelo
mundo.
Ao chamar atenção para a polissemia do título (que na obra dá nome a uma
embarcação/navio), Agualusa fala/conta/registra uma memória ativa/móvel que é
crioula e que não está só e necessariamente na África, mas que, ao ser posta a caminhar
forçadamente pelo mundo, quando do “comércio” escravocrata, oferece, recebe e filtra
os influxos de vida encontrados em outros povos e nações.
Tais movimentos, impostos de modos diferentes em cada ato colonizador,
revelam o traçado de processos de migração que, por sua vez, resulta em mestiçagem,
sobretudo a cultural, que se faz não só pela troca ou mistura, mas também pela
(re)elaboração do que vem do ‘outro’ e, muitas vezes, pelo descarte, negação ou não
aceitação (Branco, 2007).
Aqui se pode falar (aligeiradamente) sobre composição de identidades, pelo que
aponta Serge Gruzinski, ao dizer que:
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afirmar que (...) “texto não é apenas o gerador de novos significados, mas um
condensador de memória cultural” (2003, p. 82).
Vindo da África para o Brasil, a personagem Fradique e seus companheiros de
viagem, Ana Olímpia (sua amada) e Arcénio de Carpo (filho de personagem de mesmo
nome, morto ao longo da narrativa) foram conduzidos ao Porto das Galinhas. A partir
da curiosidade demonstrada por Fradique, a narrativa promove um encontro de
histórias:
Quis saber o nome daquela região: <<Porto de Galinhas>>, esclareceu o
comandante. <<É o paraíso.>> Tinha aquele nome porque de todas as vezes
que um navio ali descarregava escravos, corria pelos sertões, entre os
fazendeiros, a senha secreta: <<>há galinhas no porto>. (Agualusa, 2004, p.
74)
Por esta passagem se vê que, entre Áfricas e Brasis, os elementos históricos ditos
oficiais e os de tradição oral se mesclam, compondo outras histórias.
No caminho de Castro Alves (em Navio Negreiro), de Machado de Assis
revisitado (em antologia que reúne vários de seus textos sobre a condição afro-
descendente, intitulada Escritos de caramujoii) e Jorge Luiz Borges (em El Aleph, no
conto ‘A escritura do Deus’) para citar apenas alguns, Nação crioula dá continuidade a
uma importante via literária que vem conseguindo se expressar a partir da força dos
registros de voz que emanam dos povos que um dia tiveram a liberdade roubada e seus
espaços genuínos de vivência, expressão e comunicação invadidos. É a voz das colônias
e as vozes dos povos que foram quase completamente silenciados, obrigados a migrar,
quando da escravatura, que ganham tratamento literário na escrita também migrante de
Agualusa, que traz, já no sobrenome, nação e língua portuguesas.
O livro que carrega a nomenclatura de uma nação quase transparente, ainda, faz
às vezes de “arquivo” aberto ou museu vivo. E ao trazer (à baila literária) contextos e
significações crioulas, traz também a voz desses povos, fazendo-a migrar para além dos
continentes ou dos espaços da página. Com isso, o livro faz-se lembrança coletiva
significativa, capaz de operar mudanças a partir do plano da recepção leitora ou, nas
palavras de Paul Zumthor:
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REFERÊNCIAS
BRANCO, José Amálio Pinheiro. Anotações em classe. São Paulo: PUC – Doutorado
em Comunicação e Semiótica. Disciplina: “Ambientes midiáticos e espaços culturais:
mídia e mestiçagem”, 2007.2.
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
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QUEIROZ, Eça de, ORTIGÃO, Ramalho. Os brasileiros. Rio de Janeiro: Língua Geral,
2007 (Col. Sal da língua). Organização, seleção e notas de Eduardo Coelho e introdução
de Zetho Cunha Gonçalves.
NOTAS
1
ROCHA, Cristina. Zen in Brazil. The Quest for Cosmopolitan Modernity, Honolulu: Hawai’i Press,
2006, 256 p. ISBN: 8-8248-2976-X. Neste livro, Cristina Rocha, antropóloga de formação, se detém mais
sobre o assunto.
2
Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo. 2. ed. Antologia que traz organização, ensaio
e notas Eduardo de Assis Duarte. Rio de Janeiro: Pallas; Belo Horizonte: Crisálida, 2008. ISBN-13:
9788587961297
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1 INTRODUÇÃO
A abordagem de uma edição crítica de uma obra como as Barcas de Gil Vicente
é tarefa da máxima complexidade, pois às complicações gerais de qualquer edição
crítica – desde que feita segundo os parâmetros do maior rigor – vêm somar-se algumas
complicações específicas, quer relativas à obra de Gil Vicente, em geral, quer atinentes
ao caso mais particular das Barcas. Entre as mais salientes destas complicações avulta
especialmente a antiga e célebre suspeita em relação à falta de fidelidade do texto da
mais importante coletânea de dramas do autor, a Copilaçam de 1562 e, na sua
sequência, a Copilaçam de 1586. Havemos de falar em pormenor, mais adiante, sobre
este assunto; vamos antes, porém, abordar algumas outras questões que nos parecem
fulcrais; questões que, além do mais, não têm merecido, por parte dos estudiosos, de
toda a atenção que, do nosso ponto de vista, merecem.
Uma delas é a necessidade de estabelecer, pelo menos, duas diferentes edições
das Barcas (também das outras obras do autor, em geral), relacionadas com a natureza,
essencialmente dupla, do texto vicentino, e que compreende: 1) as obras vicentinas
como textos dramáticos, e 2) estas mesmas obras, enquanto documentos preciosos para
a História da Língua Portuguesa. Estas duas feições da obra vicentina concitam dois
tipos diferentes de edição, com objetivos diferentes, estratégias e metodologias de
edição diferentes, e mesmo uma destinação a públicos diferentes.
Talvez que, na edição de obras de Gil Vicente, se deva dar prioridade ao carácter
delas como textos dramáticos e, daí, editá-las como tais – portanto, elaborar uma edição
visando a sua representação num palco. Este tipo de edição requererá estratégias de
edição muito diferentes daquelas que requerem as edições críticas strictiore sensu, quer
dizer, as edições das obras de Gil Vicente como documentos históricos da Língua
Portuguesa. Peculiaridades da língua escrita de Quinhentos, tais como a ortografia,
muito importantes para uma História da Língua Portuguesa, não se acham revestidas,
evidentemente, de grande interesse, numa edição visando a representação teatral, onde a
1
Universidade de Extremadura (Espanha).
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língua falada é que interessa especialmente, e não a sua maneira de se consignar por
escrito. De facto, num texto dramático pensado apenas como suporte para uma
encenação, é sem dúvida conveniente uma edição que contenha alguma modernização
ortográfica, que possa ajudar à melhor compreensão, da parte de diretor e atores, para
estes poderem pronunciar, e aquele dirigir corretamente, as diversas intervenções nos
diálogos dramáticos. É claro que atores e encenador não podem ser obrigados a
conhecer a ortografia do século XVI! Por contra, numa edição endereçada à encenação,
será preciso desenvolver aspectos como as didascálias (muito breves, e insuficientes, no
texto vicentino, porém absolutamente necessárias para uma correta representação), as
indicações de “apartes”, alguma informação a respeito do cenário, vestuário, etc. (ainda
que estes pormenores últimos possam ser deixados, como se faz geralmente, ao livre
exercício da imaginação do encenador). Ainda assim, numa edição que, embora visando
a encenação, almejar o mínimo rigor literário, será sem dúvida conveniente conservar os
traços arcaicos na dicção (certas pronúncias, vocabulário, morfologia...) – o que quer
dizer, convirá modernizar a ortografia, mas respeitando estritamente o estado de língua
que lhe subjaz.
Um caso muito diferente tem a ver com a edição dos textos de Gil Vicente como
documento histórico, pertencendo a uma época fundamental na História da Língua. É
claro que, para a citação dos textos vicentinos, em obras de investigação sobre
Literatura, ou Língua, precisamos de um texto devidamente estabelecido, a cumprir
certos requisitos de qualidade e rigor, e tão fiel quanto possível ao texto original
quinhentista. Do nosso ponto de vista, estes dois tipos de edição não devem contemplar-
se como entidades isoladas, mas antes como realidades complementares – de facto, do
nosso ponto de vista, as edições visando a representação das peças vincentinas, podem,
e deveriam, ser feitas com base em edições críticas rigorosas.
Não serão objeto de estudo, na presente dissertação, as edições de textos
vicentinos que têm como intuito a encenação; ainda que sejam estas, precisamente,
aquelas que talvez revestem um maior interesse, porquanto a obra vicentina é,
evidentemente, teatro, temos porém a certeza de ser necessário um texto básico, em
edição crítica, para nele basear as edições que com posterioridade se fizerem, para a
encenação. É claro que, no momento de se elaborarem estas últimas sobre as edições
críticas, será mister atualizar ortografia, retirar o aparato crítico, acrescentar didascálias
e indicações sobre vestuário, cena, etc. Mas, como dizia há um momento, não será deste
tipo de edições, mas sim das edições críticas, que aqui iremos falar.
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preferindo-se porém, para os outros dois autos, o texto da Copilaçam de 1562. A razão é
que, para estes, não possuímos folhetos a cumprir as características que reúne o avulso
da Barca do Inferno, e de que mais adiante falaremos. A presença, para Inferno, de um
documento tão precioso como o folheto de c. 1518 (talvez o mais fidedigno testemunho
da criação teatral vicentina), obriga, por muito diversas razões, a tomar este como base,
criando-se porém uma como que “descompensação” em relação aos textos de
Purgatório e Glória, para os quais não possuímos testemunhos semelhantes. É claro que
não podemos “inventar” textos, mas também não podemos interpretar a falta de
documentos como um obstáculo para a edição: simplesmente, para os dois últimos
autos, o texto básico de referência deverá ser a Copilaçam de 1562, que deverá, sem
dúvida, ser lida com reservas, e em confronto sempre com a de 1586; a inexistência de
fontes anteriores poderá certamente provocar diferença de estilo, ou doutro teor, em
relação à Barca Primeira, mas tais diferenças, havemos de o reconhecer, são
absolutamente inevitáveis. É claro que as prevenções em relação as duas espécies da
Copilaçam são conhecidas apenas dos especialistas em ecdótica vicentina (e nem
sempre partilhadas por todos), por isso serão requeridas certas explicações ulteriores,
que deixaremos para mais adiante.
Tal maneira de editar as Barcas, implica necessariamente uma tarefa complexa,
onde se requerem escolhas entre textos, ou entre variantes presentes nos diferentes
textos. Escolhas que são desnecessárias no caso das edições “bédierianas”, que
abundam no caso de Gil Vicente, sobretudo no caso das Barcas. A edição “à Bédier”
consiste em editar avulsamente os diversos documentos que existem para cada peça, e
reuni-los todos, um após outro, na edição final, deixando ao leitor o trabalho de
comparar, se estiver interessado nisso, os diferentes textos. Tal prática foi iniciada pelo
ilustre filólogo francês, Joseph Bédier, para editar textos da épica francesa, para os quais
eram tantas, e tão profundas, a divergências existentes de espécie para espécie, que se
fazia impossível coordenar as fontes, ou decidir quais textos deveriam ser usados como
base. Ora, sendo tão poucas as diferenças visíveis entre as diversas fontes quinhentistas
dos textos das Barcas, não vemos a necessidade de se editarem separadamente três
Barcas do Inferno, duas Barcas do Purgatório e outras tantas da Glória. Para mais, que
tais divergências, no caso das Barcas, não são, em geral, muito profundas e, o que é
mais importante, não é assim tão difícil a escolha entre as variantes, pois que o estilo,
umas vezes, a coerência interna, outras, ou a suspeita de alterações censórias, em não
poucos casos, evidenciam, na maior parte dos casos, qual variante deverá ser preferida.
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A minha primeira reflexão tem a ver com a natureza dos textos a ser editados. A
natureza das edições quinhentistas a recolher autos de Gil Vicente difere notavelmente
daquela que costumam ter os textos dramáticos propriamente ditos. Concebe-se como
texto dramático um suporte para uma encenação, portanto um texto prévio à
representação. O autor dramático redige uma peça, que é dada a um diretor e aos atores,
para eles a partir daí encenarem a peça. Diríamos, usando uma expressão latina, tratar-se
de um opus agendum, de uma obra anterior, prévia, à sua realização, à sua atualização.
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Não é outro o sentido da palavra “agenda”: numa agenda figuram as coisas que alguém
deve fazer, há de fazer – indicam algo a realizar no futuro.
Ora no caso das peças de Gil Vicente, que conservamos, verifica-se exatamente
o contrário. As peças de Gil Vicente foram representadas perante a corte, e só depois
disso é que alguém se lembrou de as consignar por escrito. Todos os textos que
conservamos de Gil Vicente recolhem os resultados de encenações tidas no passado.
Sem dúvida que estava na mente do editor quinhentista a possibilidade de alguém
querer voltar a encenar aquelas obras; contudo a representação primeva – não apenas a
sua estreia, mas a representação original, perante os Reis de Portugal, portanto aquela
encenação que se apresenta como revestida de especial e irrepetível prestígio – pertence
já ao passado, na hora da sua redação. Está a recolher-se, quer nas folhas volantes
(como o folheto avulso de c. 1518), quer na Copilaçam, uma coisa que já foi. Trata-se
não de um opus agendum, como deve em rigor ser todo bom texto dramático, mas de
um opus actum – o registo de uma ação acabada, feito para conservar a memória dela.
Um opus actum, pois: não é outro o sentido da palavra “actas” (ou “atas”), isto é, o
texto em que se recolhem as comunicações de um Congresso, depois de proferidas, para
guardar delas a memória.
Como dissemos, todas as espécies que nos transmitem a Barca do Inferno,
mesmo o próprio folheto de c. 1518, consistem em opera acta, e não em opera agenda.
Não são, pois, textos dramáticos no sentido estricto do termo. Ora destes, é o texto de
1518, pela proximidade temporal à data da sua representação (ainda que esta fosse, já na
altura, um tempo passado) conserva ainda uma certa frescura, pode melhor do que os
outros textos fornecer-nos uma imagem da encenação, tal como foi vista pelos membros
da Corte Real portuguesa. Mais adiante havemos de voltar sobre isto. Importa agora
discutir sobre a natureza da Copilaçam.
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De facto, o “Privilégio” concedido pelo Rei D. Sebastião (ou, melhor, por sua
avó, a regente D. Catarina de Áustria) a Luís e Paula Vicente para a publicação das
obras do pai, abre-se com as palavras “eu el Rey faço saber aos que este alvará virem,
que Paula Vicente [...] me disse que ella queria fazer empremir hum livro &
cancioneyro de todas as obras de Gil Vicente seu pay” i (sublinhado nosso); no resto do
alvará, aparcem mais do que cinco referências ao livro publicado, nomeando-o como “o
dito cancioneyro”. Por outro lado, no Prólogo de Luís Vicenteii à mesma Copilaçam,
manifesta-se que o desejo a mover os filhos de Gil Vicente à publicação dela, é o não
querer que se percam as obras do pai; para defender este ponto de vista, recorre-se aos
exemplos dos grandes homens de letras, que deixaram os seus escritos para que se
guardasse memória deles. O prólogo começa: “He tam gloriosa cousa, altissimo Rey &
senhor nosso, a fama daquelles que a tem & a teveram, que a toda pessoa geralmente faz
desejo de a acrecentar & resucitar suas obras”, declarando-se depois que, muito embora
as obras de Gil Vicente serem de muito menor qualidade do que muitas outras, dos
maiores literatos do mundo (lugar comum da captatio benevolentiae), “por serem
cousas algũas dellas feytas por serviço de Deos, & todas em serviço de vossos avoos, &
de que elles muyto gostárão, era razam que se empremissem”iii (sublinhados nossos).
Ora, é impossível não lembrar imediatamente, com estas palavras, o prólogo de Garcia
de Resende ao seu Cancioneiro Geral, onde se declaram ser idênticas, ou muito
similares, as razões que moveram o poeta e cortesão português a compilar o
cancioneiro, publicado em 1516.
NOTAS
1
VICENTE, 1562: f. 2 r. (dos preliminares). As citações da Copilaçam de 1562 fazem-se pela edição
facsímile incluída no volume III da edição de Todas as Obras, devida aos cuidados de José Camões
(VICENTE, 2002), respeitando a ortografia do original ao máximo e citando pelo número de fólio,
seguido da indicação “r.” (folium rectum), ou “v.” (folium versum).
2
VICENTE, 1562: f. 3 v. (dos preliminares).
3
Ibidem.
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canário”), o pai (considerado “idiota” pelo avô, principalmente pelo fato de ter escolhido
uma empregada que servia na cozinha para habitar com ele no andar de cima e que veio a
traí-lo com o ajudante do feitor), a avó ( vista como uma “chávena a tremer no pires”, ao
constatar os desmandos do marido e ao vivenciar o desafeto) e tantas outras. Todas, aliás,
surgem representadas por objetos ou gestos residuais, por falas recorrentes, lembranças
obsedantes, silêncios impostos ou assumidos. À proporção que o romance se desenvolve,
algumas ocupam os diversos capítulos e pronunciam-se, isoladamente, revelando o
desconhecimento do outro com quem se convive (“não sei quem você era, senhora” – AI,
16), a violência contida ou manifesta, assinalada pelos atos de esventrar animais, tramar
assassinatos, cometer suicídios, impor ordens arbitrárias; a submissão, o medo, a
impotência, gestos de afeto esboçados e não concretizados, gestos de afeto pressentidos e
rejeitados (“uma ocasião pegou-me na cara, tive medo que me desse um beijo – Chega cá
e graças a Deus não me deu um beijo, largou-me desgostosa de mim”).(AI,16).
“Um rosto sem feições a dissolver-se no muro” (AI, 23) e espectros a rondar a casa
apontam a desaparição iminente dos sujeitos e a ausência de uma identidade sólida,
inerente às estéticas da descontinuidade e da negatividade: “quem habitou aqui antes de nós
e não nos procura como as pessoas da sala esqueceu-nos e ao esquecer-nos deixamos de
existir, não somos, não éramos, não chegamos a ser, a minha mãe não foi, eu não sou, o
meu irmão não é” (AI,18). Ou ainda: “o meu irmão e eu debruçados para o poço”
(elemento que reflete a obsessão abissal) “comparando-nos com os afogados que éramos”
(AI, 67). A solidão dos sujeitos faz com que se enredem, cada vez mais, nos jogos infinitos
do lembrar, que parecem constituir uma luta contra a morte. Tais constatações levam-nos a
transpor, para o romance de Lobo Antunes, algumas reflexões críticas de Jeanne Marie
Gagnebin, presentes em História e Narração em Walter Benjamin:
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complacente e infinito do qual o sujeito não mais quer emergir”, uma vez que insere a noção
do “despertar” - exigência política e ética, capaz de confrontar o sonho e a vigília e agir, em
conseqüência, sobre o real. A dimensão individual do sujeito amplia-se em uma rede social e
coletiva e alude aos acontecimentos da História recente de Portugal ou, mais especificamente,
ao período pós-revolucionário português, exemplificado pelas ações de barbárie perpetradas
pela tropa e pelos camponeses, por ocasião do processo de desapropriação de terras, pelo
sistema vigente, tais como, a queima do celeiro, a degola das criações, a quebra das patas dos
borregos e das vacas, a tentativa de furtar a casa da família de latifundiários perpetuada na
paisagem (AI, 15). A voz do avô, dirigida aos “comunistas” - “proíbo-os de me tirarem o que
me pertence, o que fabriquei palmo a palmo para me defender de vocês” (AI, 99) - revela a
sua prepotência e a tensão entre as classes sociais. Este fato, uma vez registrado em O
arquipélago da insônia, suscita-nos a conjectura sobre a intencionalidade autoral. Isso
desperta-nos uma primeira hipótese de interpretação a ser investigada: haveria, no início do
século XXI, uma recuperação da proposta literária do Neo-realismo português, resguardando-
se, é claro, as devidas diferenças? Lembremo-nos de que o romance O meu nome é legião,
também da autoria de António Lobo Antunes, aproxima-se de Esteiros de Soeiro Pereira
Gomes e de Capitães de areia de Jorge Amado, ao focalizar a infância e/ou a adolescência
delinqüente da periferia de Lisboa, formada por descendentes de africanos marginalizados
pelo sistema social. A ficção assume-se, portanto, como testemunho da História e
representante da memória da coletividade, uma vez que denuncia os conflitos entre as classes
sociais, a partir de pontos de vista ideológicos que endossam o status quo vigente: “estes
camponeses silenciosos, sem pensarem ou escondendo de si mesmos o que pensam seguros de
que não lhes serve de nada pensar, obedecendo não da forma que a gente obedece mas da
forma que os bichos se submetem por hábito ou por medo” (AI, 238). Ou, ainda: “os
camponeses todos idênticos senhores, nascidos para terem fome e serem escravos da
gente”(AI, 255). No entanto, a própria narrativa alude, sutilmente, ao fato de que tal
continuum histórico poderá vir a ser modificado, em surdina (representante do proletariado, o
ajudante do feitor apara arestas de madeira com a faca, de forma recorrente). Assim,
prenuncia-se, no espaço textual, o processo dialético da práxis social, a partir da
conscientização e da reação dos oprimidos economicamente... . Logo, “o momento da
construção consciente, o Kairos da intervenção decisiva que pára o curso do tempo, que
iv
quebra o mau infinito do desenrolar histórico” encontrar-se-ia na gênese da ficção
antuniana.
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Outra hipótese que nos ocorreu, durante o processo de leitura do romance citado:
aproximar-se-ia a literatura de António Lobo Antunes da literatura dos testemunhos dos
espaços concentracionários? Aprendemos, com Márcio Seligmann-Silva, em O Local da
Diferença, que o campo de concentração, na época do Holocausto ou Shoa, constituía para os
prisioneiros “a sua única realidade”, e, ao mesmo tempo, a afirmação da impossibilidade de
saída e de libertação dele: “não existe mais mundo do lado de fora da cerca”. v Em O
Arquipélago da Insônia, personagens confinados a um espaço assinalado pela desertificação e
ausência de vida, manifestam-se: “para além da vila e da herdade só tem mato” (AI, 48).
Colocadas em situações-limite de segregação e sentindo-se rejeitadas, pronunciam-se, entre
parênteses, uma vez que as suas vozes não serão audíveis: “(nunca virão buscar-nos para a
vila, que criatura nos quer?”) (AI,61) Cristalizadas na paisagem, por absoluta falta de opção,
desenvolvem expectativas que se frustram: “amanhã pego no braço do meu irmão e partimos
destas sobras de casa porque há-de haver seja o que for para além do ribeiro e dos cactos, uma
estrada, pessoas, nenhum mulo a mancar” (AI,80).
Segundo Márcio Seligman-Silva, na narrativa de testemunho, cada personagem tem “a sua
verdade” e pode narrá-la:
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imagem e escritura. Os “arabescos”, por sua vez, significam a exposição do indizível através
do sentido e da fantasia. Nela os significantes valem mais do que um improvável significado
final. vii
Essa arte da escritura imagética da memória, baseada nas estratégias citadas, apresenta
“largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam”viii e
consubstancia-se em “traços ” e rastros” de escrita, como atestam as ambivalências de
sentido, as fragmentações discursivas, as elipses ou omissões, as citações que revelam o
entrecruzar do ocorrido e do agora, presentes no romance em questão. As personagens não
possuem, como vimos, uma “identidade sólida” que lhes permita recuperar, com precisão,
através do relato, as memórias da sua existência, e, por isso, inventam e transfiguram o real,
com exceção do ajudante do feitor, que afirma dizer a “verdade” e assume ser o pai do autista.
Talvez não seja gratuito o fato de esta personagem pertencer a uma classe social que não
simula ser o que não é. No espaço textual, surge a “remexer na memória”, “a olhar lápides do
cemitério à procura de seus mortos” sem encontrá-los e “a pensar” que “se uma pessoa não
tem mortos não tem vivos também”. (AI, 48).
Os fragmentos mnemônicos das personagens e que compõem o romance assemelham-se
a estilhaços que penetram em suas mentes; suas lembranças metamorfoseiam-se em um
campo de ruínas de imagens e acontecimentos isolados, incapazes de serem reunidos segundo
uma perspectiva lógica. As ilhas de sentido que afloram à superfície, formando arquipélagos,
deixam entrever traumas residuais e afetos segregados, resultantes de uma total
incomunicabilidade e comunhão entre os sujeitos. O fato de não conviverem com o olhar do
outro impede que lhes seja devolvida a sua verdadeira face, uma vez que se isolam em si
mesmos, enredados nas dobras da memória:
O que lhe dói por dentro, porquê tanta desolação nesta casa onde as pessoas não se
olham, não se juntam, não falam, imensos coelhos nus e imensos alguidares de
pêlos, baús de que o perfume se evaporou, só a bomba dá água a acordar-me e ao
meu irmão no poço a perguntar ao lodo quem era” (AI, 96).
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insônia, nos são transmitidas inúmeras versões das imagens e dos acontecimentos que se
anulam umas às outras, através de uma escrita movente e oscilante, que se desfaz e se refaz.
Porque inexistem “verdades” estabelecidas ou certezas definidas, uma das personagens ( o
autista) confessa, através de sua dicção fraturada, decorrente da presença imaginária de um
“arame na garganta” a impedir o contar (AI, 170) ou a elocução das frases (AI,175): “Não há
nenhuma Maria Adelaide no bairro, inventei-a, inventei-vos a vocês e inventei tudo isso
porque tenho medo de”. Em seguida, a manifestação de uma outra voz, situada em um outro
contexto espácio-temporal, ratifica a invenção citada, ao inserir outra versão para os episódios
relatados: a herdade rural, citada no primeiro capítulo, e, símbolo de abundância, mando,
prestígio e influência do avô em uma determinada localidade rural que se supõe alentejana,
por sua vez, será substituída, no segundo capítulo, por um bairro pobre da periferia de Lisboa
(Trafaria) e pela situação de penúria da família. O mesmo topos retorna nos capítulos finais e
espelha a desolação da paisagem, povoada por defuntos e marcada pelas “ruínas de segadora”
e “campos ressequidos” (AI,77). Maria Adelaide, até então, um espectro da menina morta por
quem o menino era apaixonado na infância, retorna, ao final do romance, como a mulher do
irmão que o abriga em casa, após a saída do hospital psiquiátrico e que é perseguida por ele.
No romance citado, a própria questão da autoria ficcional é posta em dúvida: “o meu
irmão a escrever esta história” (AI, 100); “(foi o meu irmão que escreveu estas páginas muito
mais devagar do que se passou de fato, não fui eu quem o disse)” (AI, 104). A auto-
referencialidade e a autoreflexividade recorrentes deixam transparecer a materialidade da
escrita, assim como a distribuição dos signos lingüísticos e caracteres gráficos, de forma
inusitada, pelas páginas em branco do papel (AI, 106). A alusão ao lápis (“o lápis completo a
meditar”- AI,119), na mão do menino, revela-se como um instrumento que possibilitava a
ele desenhar seres, locais e objetos, em seu processo onírico de criação e de representação do
mundo, o que anula, totalmente, a escritura anterior e a “verdade” dos acontecimentos
relatados pela personagem:
-Qual herdade?
Uma pergunta tão injusta a mim que a construí sozinho às escondidas de todos
quando tinha a certeza que dormiam se calhar acordados a espiarem-me, um
trabalhão com a serra, a lagoa, o pomar, galinhas feitas a lápis uma a uma, cada
pena, cada bico, cada cor eu que apenas concebia o cinzento e o branco e as inventei
a custo (AI, 99).
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Morte, não seria bem-sucedida em seu intento. Assim, o responsável pela enunciação
discursiva, descobre que não há redenção possível e que continuará imerso na noite da
memória:
-Daqui a nada é manhã
REFFERÊNCIAS
_______. Receita para me lerem. In: _____. Segundo Livro de Crónicas. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 2002. pp.109-111.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. A criança no limiar do labirinto. In: _____. História e narração
em Walter Benjamin. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1999. pp. 73-92.
SEIXO, Maria Alzira. António Lobo Antunes: Isto não é um livro, é um sonho. JL: Jornal de
Letras, Artes e Idéias. Ano XXVIII / No. 992, de 18 a 21 de outubro de 2008. pp.18-19.
NOTAS
1
SEIXO, 2008,p.18
2
GAGNEBIN, 1999, p.78.
3
GAGNEBIN, 1999, p.79.
4
GAGNEBIN, 1999, p.90.
5
SELIGMAN-SILVA, 2005, p.110.
6
SELIGMAN-SILVA, 2005, p.114.
7
A esse respeito, ver o capítulo “Hieróglifo, alegoria e arabesco: Novalis e a poesia como poiesis”,
inserido em O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução, da autoria de Márcio
Seligmann-Silva. São Paulo: Editora 34, p.309-316.
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8
ANTUNES, 2002,p.109.
9
ANTUNES, 2002, p.110.
10
Parece-nos que a inscrição latina recorrente na ficção antuniana – FINIS LAUS DEO – (FIM DO
LOUVOR A DEUS) evidencia a decadência da compaixão e do humanismo, em uma época marcada
pela barbárie. Última frase do romance, O esplendor de Portugal (1997), surge no momento em que os
“tropas do Governo” disparam as metralhadoras contra a personagem Isilda, uma das últimas
representantes do colonialismo português em uma Angola, prestes a se tornar independente.
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1
Professor Adjunto da Universidade Federal de Viçosa.
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Não creio que se possa chegar a qualquer plano de liberdade sem transpor as
paragens da ficção. Neste sentido entendo que, operando uma inventiva
permanentemente aberta, e avessa a toda a cristalização, o romanesco se
sobrepõe ao histórico. Quero dizer que a verdade, ou um certo rosto da
verdade, poderá ser extraído mais facilmente dos relatos da imaginação,
sempre multiformes, do que dos compêndios historiográficos, sempre
tendentes à anquiloseiv.
Cada constelação conta sete estrelas, e sete é o número dos personagens que
intervêm em cada romance da trilogia. Procurei aproveitar os três conjuntos
de sete estrelas como horizontes desejáveis para as três tribos de fragilizados
que peregrinam ao longo das várias históriasv.
De acordo com a Mitologia grega, Oríon era um belo gigante caçador, filho de
Netuno, e favorito de Diana, com quem quase se casou. O irmão de Diana, Apolo, com
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ciúmes da irmã e censurando seu envolvimento com Oríon, fez com que ela matasse o
amado, com um dardo mortal. Ao perceber que enganadamente tirara a vida ao seu
preferido, Diana colocou-o entre as estrelas, onde aparece como um gigante, de arma
em punho, acompanhado por seu cãovi.
O pano de fundo para a construção de Oríon é um dos episódios dramáticos
ocorrido nos anos finais da livre presença judaica em Portugal e que antecedeu a
expulsão dos judeus do reino, transformada, no último momento, em conversão forçada
destes ao catolicismo, em fins do século XV. Trata-se de uma das inúmeras estratégias
de convencimento e persuasão utilizadas para convencer a permanência dos judeus no
reino – embora como católicos -, fundamentais para os interesses portugueses de então.
Com detalhes, o autor descreve os planos mais diversos em que vai se
desenrolando a história: os afazeres do cotidiano, tanto em Portugal quanto nas ilhas, o
trabalho nos engenhos e a produção de açúcar, a povoação, o comércio de escravos, a
chegada e a partida de embarcações, as ameaças daquele ambiente inóspito, a vida nos
quilombos, os criatórios de lagostas. Também a linguagem utilizada para ambientar os
fatos é dotada de especial cuidado com o processo de narrativa, utilizando termos e
expressões de época, permitindo não apenas um maior refinamento do texto, mas a
reconstituição de diálogos que poderiam ter ocorrido em moldes muito semelhantes ao
que apresenta o livro. Maria de Deus Beites Manso chama a atenção para a importância
da obra ao tratar de temas pouco visitados pela historiografia:
é com agrado que vemos abordados temas como: a questão judaica, a vida a
bordo das naus portuguesas, o degredo e, através do percurso/perfil destes
sete meninos, podemos também conhecer e compreender parte da história
quotidiana das Ilhas, tais como o tipo de população que para aí se dirigia, a
relação com os diferentes poderes e como todos estes grupos se relacionavam
entre si, isto é, que tipo de sociedade e, consequentemente, que forma de
cultura aí desenvolveramvii.
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A ordem real para retirar os filhos menores das famílias judaicas foi, infelizmente,
atitude adotada mais de uma vez na tentativa de controle sob a crença dos judeus
portugueses. Também Dom Manuel, seu sucessor, repetiria a dose e tomaria medida
semelhante, durante o processo de expulsão dos judeus do reino, como uma das
estratégias de convencimento dos pais judeus para que se convertessem ao catolicismo,
permitindo-lhes, assim, manter a posse sobre os filhos. O desespero que tomou a
população hebraica com a subtração da prole e a indignação e assombro causados às
famílias cristãs de bom senso dão noção da dor e agonia enfrentados por estes pais. O
fato é que muitos tomariam atitudes extremadas, preferindo a morte – suas e dos
próprios filhos - à humilhante conversão:
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Em vários momentos do texto, a má sorte das crianças judias portuguesas serve como
ponto de ligação à representação do destino judaico, refletido em significados na
constelação de Oríon, ela própria a iluminar este drama:
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Quem poderá descrever aquela Praça da Ribeira no dia nefasto em que ali se
reuniam as crianças? Originárias das mais distantes regiões do Reino de
Portugal, juntavam-se elas em magotes que os grandes fiscalizavam,
agregando-se às resultantes de Lisboa, as quais em geral se faziam
acompanhar por basta parentela. Era uma manhã de Abril, tão suave que mais
parecia um agouro de acontecimentos festivos do que o limiar de um
holocausto que se preparasse. E os gritos das judias, descabeladas diante da
tragédia do furto dos seus rebentos, apegavam-se aos guinchos das gaivotas
na luz da beira-Tejo. Eu chegara com os restantes, estremunhado e dorido,
assarapantado pela riqueza dos palácios, pela cópia de gentes variegadas que
enchiam as ruas. Durante a comprida viagem limitara-me a roer alguma
côdea de pão, a beber água salobra, a repousar os músculos e os ossos num
estrado emporcalhado pelo vómitoxiv.
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diversos exílios. Mais do que uma narrativa da diáspora das crianças que foram
mandadas para as ilhas desertas de São Tomé, aponta as mazelas do povo judeu ao
longo dos séculos. O entrelaçamento entre as narrativas – o drama das crianças e o
drama do povo judeu – é representado pelo local utilizado para registrar as histórias: as
entrelinhas da Torá, o livro sagrado dos judeus, a história das crianças a se fundir (e se
confundir) com a história dos judeus: “As linhas da minha escrita atravessaram agora as
páginas da Tora, apertadinhas umas de encontro às outras, e não conservasse eu na
memória o que lá se diz, não alcançaria ler os versículos sagrados”xix.
Ao assumirem o drama judeu como parte integrante de sua própria epopéia,
enfrentam também a responsabilidade pela escrita de sua própria história, guardando-a
para que as novas gerações a compreendam. Mais: nela se identificam, se vêem
representados, compreendendo o papel que a escrita tem sobre si e do domínio que
exercem sobre ela.
CONCLUSÃO
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Se a ficção bem escrita permite imaginar o que teria sido, a História agradece,
enxergando nas frases que compõem a narrativa uma oportunidade de se olhar no
espelho. Afinal, também elas – História e Literatura – formam, juntamente com outras
áreas do conhecimento, constelações tão brilhantes quanto a luz das sete estrelas de
Oríon sob a duradoura noite das ilhas perdidas no infinito e na história.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Nélson. 1591, A Santa Inquisição na Bahia e outras estórias. Rio de Janeiro:
Record, 1991.
KAYSERLING, Meyer. História dos Judeus em Portugal. São Paulo: Pioneira, 1971.
MANSO, Maria de Deus Beites. “Mário Cláudio. Oríon. Lisboa, Dom Quixote, 2003”.
Diana. Revista do Departamento de Linguística e Literaturas. Évora: Conselho
Editorial da Universidade de Évora, 2004.
NOTAS
1
Franco, 2009, p. 396.
182
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2
“Obras de ficção revelam características de momento histórico” (entrevista com Izabel Andrade
Marson). In: Revista Comciência. 2003. www.comciencia.br/entrevistas/2004/10/entrevista2.htm.
Acesso em 13 de julho de 2009.
3
Hutcheon, 1991, p. 22.
4
“«Oríon». Escolha da luz, escolha da sombra”. Entrevista com Mário Cláudio. In: Círculo de Leitores
on-line. Disponível em www.circuloleitores.pt/cl/artigofree.asp?cod_artigo=119579. Acesso em 14 de
julho de 2009.
5
Idem.
6
Bulfinch, 1999, p. 248.
7
Manso, 2004, p. 264.
8
Mário Cláudio, 2003, p. 167.
9
Kayserling, 1971, p. 112.
10
Idem, p. 168.
11
Idem, p. 169.
12
Idem, p. 75-77.
13
Idem, p. 13.
14
Idem, p. 15.
15
Idem, p. 30.
16
Idem, p. 14.
17
Idem, p. 183.
18
Idem, p. 169.
19
Idem, p. 12.
183
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1 INTRODUÇÃO
2 FERNÃO LOPES
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Por isso, “o autor da estoria nom deue de seer emmijgo, mas escpriuam da uerdade”ix. O
“Prólogo” à Crónica de D. João I, I Parte, expõe o princípio do primado da verdade,
acima da estética ou motivação literáriax, oposto à prática vigente da chamada
“mundanal afeiçom”xi. Esta procura incessante e denodada da verdade não exclui o erro,
como humildemente reconhece, mas simplesmente a vontade de errarxii. A “clara
çertidom da verdade” é aferida pela busca de consensosxiii, com o recurso abundante aos
testemunhos orais e escritos, a que chama “garfos”, corroborantes ou nãoxiv, de modo a
conferir fidedignidade ao texto (escprituras vestidas de fé). Por isso, o silêncio é
preferido à manifesta exposição da falsidadexv.
Estribando-se na Cidade de Deus, de S. Agostinho, o cronista e investigador
abre o leque do discurso da memória tanto ao registo de feitos épicos como à crítica dos
aspectos negativosxvi.
O Rei da Boa Memória é situado nos píncaros dos heróis de Fernão Lopes, como
arquétipo das maiores virtudesxvii, sendo, por isso, comparado ao próprio Cristo,
enviando os apóstolos como “pescadores dos homeens”xviii, a ponto de inaugurar, na sua
perspectiva, a chamada “sétima idade”xix, associada ao mito propagado por Joaquim de
Flora. Todavia, a mitificação do fundador da dinastia de Avis, já prognosticada pelo pai,
D. Pedro I, ao ser investido com mestre da Ordem de Avisxx, e corroborada pelo sonho
profético do incêndio por ele apagado em toso o reinoxxi não ofusca os defeitos e
limitações do herói.
Mas é o condestável D. Nuno Álvares Pereira o herói modelarxxii, segundo o
paradigma das novelas de cavalaria: predestinado desde o nascimento como
invencívelxxiii; vocacionado para uma missão divinaxxiv; escolhido pelo Mestre a pregar
o chamado “evangelho português”xxv, do qual provinha a maior honraxxvi.
Por sua vez, todo o Reino se encontra envolvido numa onda de participação
popularxxvii, profundamente dividido e dilaceradoxxviii, enquanto a cidade de Lisboa é
exaltada como a cidade mártirxxix, digna de memóriaxxx.
3 JOÃO DE BARROS
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três países. Plotino destaca a relação dinâmica entre o passado, o presente e o futuro xlix.
E, se o conhecimento do passado clássico, como buscam os humanistas, é importante,
também se não deve descurar a busca das próprias raízes, como o das linhagens
aristocráticasl. Mas, na busca da verdade históricali, Barros coloca reservas a dois
excessos referenciados na Antiguidade: o elogio desmedido dos senhores, como aponta
a Aristóbulo em relação a Alexandrelii; a crítica acerba aos defeitos dos príncipes, como
Suetónio, em relação aos Césaresliii, ou António de Nebrija em relação ao rei D.
Henrique e à rainha D. Joanaliv. O próprio Tito Lívio é louvado pela imparcialidade
demonstrada na tomada de Roma pelos Gauleses, mas criticado por referenciar o seu
estado de embriaguezlv. De qualquer modo, será preferível a hipérbole à calúnialvi. A
abordagem pedagógica da História acaba por envolver de tal modo o humanista João de
Barros que a verdade parece ficar subalternizada neste discurso. Assim, as fábulas e os
exemplos constituem tesouros a explorar. Homerolvii, Cebeslviii, Xenofontelix, Esopolx,
Apuleiolxi e o próprio Thomas Morelxii são aduzidos como referências positivas: “Platão
e Ariftoteles entenderam que os Efcritores que feguíram efte genero de efcritura tiveram
por fim dar na doçura da fabula o leite da doutrina”lxiii. Exemplos negativos são
denunciados como os que “barbarizam o engenho” e fazem perder tempolxiv. Mais valia
embrulhar cominhos em tais escritos do que serem lidos, como aconselhava Pérsio aos
fracos poetas do seu tempolxv.
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o primeyro edificio dos que disse que vy mais notaueis & dignos de
memoria, foy hũa prisaõ a q. elles chamaõ Xibanguibaleu, que quer dizer,
encerramẽto dos degradados […]. A segunda cousa […] he outra cerca […],
que se chama Muxiparaõ, que quer dizer Raynha do Ceo […], das officinas q.
vimos neste edificio, os quais saõ cento & quarenta mosteyros desta maldita
religião […]. Neste edifício […] se apresentou […] o Rey dos Tartaros,
quãdo pôs cerco a esta cidade […], no qual por sacrificio diabolico &
sanguinolento, mandou degolar trinta mil pessoas; E […] vimos hum que me
pareceo mais notauel foi hũa cerca […] na qual nos deziãoos Chins que
estauão as ossadas destes cento & treze Reys”lxxi.
Esta casa […] affirmo em verdade que representaua hũa tão rica, tão hõrosa,
& tão extraordinaria magestade, que a todos nos encheo de espanto, de tal
maneira que ao proprio Embaixador, tratando algũas vezes disto, ouuimos
dizer, se me Deos leua a Peguu, eu não direy nada disto a el Rey, assi pelo
não entristecer, como por me não ter em conta de homem que finjo cousas a
que se não pode dar creditolxxvi.
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4 LUÍS DE CAMÕES
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5 DIOGO DO COUTO
Soldado e homem de letras, como seu amigo Luís de Camões, a quem acolheu
na Ilha de Moçambiquexcix, Diogo do Couto é o continuador de João de Barros, na
escrita das suas Décadas Da Ásia, refazendo a quarta e acrescentando desde a quinta à
duodécima. Ao contrário de João de Barros, foi guarda-mor da Torre do Tombo do
Estado da Índiac. Ao contrário dele também, não procura suavizar os pontos negativos
da Expansão. Pelo contrário: como Camões também, é arauto pedagógico da decadência
do Império, e não apenas na segunda versão d’ O Soldado Práticoci.
O discurso coutiano da memória é ancorado na explicitação das suas fontes,cii
escritas e oraisciii, procurando apresentar várias versões dos acontecimentos. A sua
intervenção ético-política abrange todas as classes, do clerociv ao povocv, passando de
modo mais veemente, pela nobrezacvi.
A glória das armas e das letras, de inspiração clássica e humanista, constitui um
vector importante do discurso coutiano da memória, em contraste com a denúncia dos
vícios e misérias sociais.
Intrépidos governadores e capitães expõem denodadamente as vidas em
combates singulares, designadamente em cercos prolongados e esgotantescvii, em busca
da honra, demonstrando paixão guerreira, tenacidade de carácter, autodomínio e
loucura, qualidades que, segundo o cronista, se encontravam em declíniocviii. Heróis
anónimos, como cantou Camõescix, compõem também a sua brilhante galeria de bravos
combatentescx. Nomes de valentes heroínas são inscritos pelo cronista nos seus anaiscxi,
enquanto bandos de amazonas ajudam nos combatescxii e na resistência aos cercoscxiii.
Conscientes da escassez de recursos militares, os Portugueses usam muitas vezes as
armas da diplomacia, tirando partido de alianças e intrigas, segundo costume asiático cxiv.
O código de honra, o ethos militar, aliados à ciência e à experiência, fazem destes
heróis, apesar de seus defeitos, modelos de virtudecxv.
A glória das letras impulsiona o cronista como o melhor dos galardões que
poderá receber da posteridade, à semelhança de Homero, de Virgílio ou de Camõescxvi.
A sua obra, que considerava como seus filhos e a sua razão de vivercxvii, apesar da
injusta retribuição que lamentavacxviii, ultrapassou a História para se inscrever em outros
domínios do saber renascentista, como a Geografia, a fauna e flora, os climas, as
informações culturais sobre a alimentação, o vestuário, os modos de vida, os idiomas e a
religião dos povos asiáticos. Emite comentários pessoais, regista momentos
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6 JOSÉ SARAMAGO
Dando um salto do século XVI para o XX, resta-nos aflorar uma outra
perspectiva do discurso da memória, precisamente na sua obra-prima Memorial do
Convento, título que remete para esse registocxxii.
De acordo com a tendência pós-modernista da desconstrução da historiografia
oficial, o Nobel da literatura portuguesa escolhe a construção do convento de Mafra e o
pioneirismo inventivo da passarola do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão para
estabelecer um contraste ideológico entre o rei absolutista D. João V e um par ficcional,
oriundo da classe trabalhadora, mas dotado de qualidades humanas notáveis, Baltasar e
Blimunda. Instaura-se, assim, um novo discurso, segundo o qual a história é, sobretudo,
construída pelos membros da classe popular, muito mais do que pelos homens do poder.
Daqui a ironia e o sarcasmo que indiciam um distanciamento crítico, brechtiano, em
relação a essas figuras maiores, em contraste com a ternura e a admiração para com as
figuras populares.
Se a figura real está associada à construção do Convento, ainda que dependente
da promessa da descendência, o seu comportamento como homem e governante é
pautado pela vaidade, pela luxúria e pela prepotência. O monólogo na procissão do
Corpus Christi expressa, em caricatura, tais defeitos, chegando a esboçar uma ridícula
comparação entre poder temporal e espiritualcxxiii. A sátira política ao imperialismo e ao
colonialismo é subtilmente delineada a partir da comparação entre a figura do infante D.
Henrique, no anúncio proléptico da Mensagem, de Fernando Pessoa, e o monarca
setecentistacxxiv. A faceta que faz jus ao seu cognome, a da magnanimidade, está patente
na sua distribuição de moedas de ouro, como no milagre da multiplicação dos pães, para
reconstrução da igreja de madeira, destruída pelo vendavalcxxv. Tal magnanimidade
volta a verificar-se no momento do balanço financeiro da inauguração e continuará até
final da obra, agora sem qualquer registo de despesa, incluindo o que não tem
possibilidade de avaliação material, como as mortes e sacrifícioscxxvi. Da descrição da
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cerimónia solene de inauguração, ao gosto barroco da época, tudo contribui mais para
demonstração da grandeza do monarca do que para louvor divinocxxvii.
A sátira à corrupção da Justiça, já patente em Gil Vicente, também é um registo
do discurso da memória. A ironia com que o narrador responde à objecção dos que se
queixam contra a falta de justiça no Reino é facilmente desmontável na interpelação que
faz à rabulice, à trapaça, à apelação. Os símbolos clássicos da justiça são, então,
satiricamente desconstruídos. A cegueira da Justiça, em vez de significar isenção ou
objectividade, sem acepção de pessoas, passa a significar inoperânciacxxviii.
Em contraste com esta inoperância, o Tribunal do santo Ofício, que simbólica e
tragicamente abre e fecha a narrativa, “tem bem abertos os olhos”, isto é, não deixa de
perseguir tudo e todos. E aqui o símbolo do ramo da oliveira, em vez de significar a paz,
mais não serve senão para atiçar a fogueira. Então, num e noutro caso da administração
da Justiça, como diz o ditado “quem não tem padrinhos não se baptiza” e o castigo é
reservado apenas aos desprovidos de “cunhas”, “aderências” e subornos, sem contar
com o atraso dos julgamentos e dos recursoscxxix. Num e noutro caso, ainda, o Tribunal é
uma grande fonte de proventos económicos para todos os funcionários da Domus
Justitiae, citando-se o padre António Vieira, no “Sermão de Santo António aos peixes”
como fonte intertextual inspiradoracxxx.
O protagonismo colectivo, numa série impressionante de especialidades
profissionais, muitas delas em vias de extinção actual, é o verdadeiro responsável pela
construção do Convento, apesar de alguns nomes associados a Baltasar como seus
companheiros de trabalho: Francisco Marques, José Pequeno, Joaquim Rocha, Manuel
Milho, Julião Mau-Tempo. São figuras ficcionais, mas reflectem, na sua história e no
seu discurso, uma identidade bem portuguesacxxxi. São figuras setecentistas cuja história
se repete, no essencial, pelos séculos fora, algumas contadas com amarga ironiacxxxii.
São figuras talhadas de acordo com a paisagem que as viu nascer e são tão fortes os
laços que os prendem à terra que, uma vez desenraizadas, parece que deixam de viver
ou perdem a identidadecxxxiii. Um vem do Norte, outro do Sul, uns são especializados,
outros não, todos vieram por necessidade, quase todos com a miragem de melhorarem a
vida. “Cruzados duma nova cruzada”, como pregou o frade, “entre soldados e
quadrilheiros”, o “cortejo de maltrapilhos” constitui um novo tipo de heróis, também
cantado no romance épico de Saramago. A expressão latina da consagração eucarística
do Corpo de Cristo, renovação litúrgica da sua entrega à morte, Hoc est enim corpus
meum, veicula emblematicamente este sentido do novo martírio destes heróis anónimos
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cujo sacrifício é proclamado sem disso terem consciênciacxxxiv. Mas a saga heróica do
transporte do megálito de Pêro Pinheiro para Mafra, durante oito dias, que culmina com
o acidente trágico de Francisco Marquescxxxv, como o trabalho de escravos numa obra
faraónica, representa o cume deste romance épico do homo faber.
CONCLUSÃO
194
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REFERÊNCIAS
BARROS, João de, Da Ásia, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1778, ed. facsimilada
Livraria Sam Carlos, 1973.
COUTO, Diogo do, Da Asia, Déc. VIII, facsimilada da edição de 1778-88, da Regia
Officina Typografica, Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1973.
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NOTAS
1
Professor auxiliar de nomeação definitiva da Universidade Nova de Lisboa.
2
Cf. Lopes, 1994, cap. XXIX, p. 136.
3
Beirante, 1995, p. 40.
4
“Ca sse o escorregamento dos gramdes tempos, gasta a fama dos exçellemtes primçipes, mujto majs a
lomgua Jdade, soterra os nomes das outras pessoas, demtro no moimento com elles” (Lopes, 1995, Cap.
CLIX, p. 396).
5
“E porque em começo de seus boons feitos, o meestre ouue fidallgos e cidadãos, que o bem e lealmente
servirom, poemdo os corpos e vidas por homrra do Reino: Jmjuria nos parece que lhe foi feita leixa llos
cahir em perpetuu esqueçjmento” (Ib.).
6
“porque emuelheçendo os nomes de taes morreo a claridade da sua nobreza, / Quem quer<e>es vos que
tirre Já <a>gora d escorridom de tamtos annos, os nomes daquelles, que outras testemunhas nom tem,
saluo esquecimento e cimza, que adur pede [sic] seer achada” (Ib.).
7
“Quem cujdaães que sse nom emffade, Reuoluer cartorios de podres escprituras, cuja uelhiçe e
desfazimento, nega o que o homem queria saber, / Quem achara tamtos bitafes amtijgos, que os
muimentos em que som escrpritos, dem testemunho de quem Jaz em elles” (Ib.).
8
“Oo com quanto cujdado e diligencia vimos grandes uollumes de liuros, de desuairadas limgoageens e
terras, E Jsso meemo pubricas escprituras de mujtos cartarios e outros logares nas quaães depojs de
lomgas uegilias e grandes trabalhos, majs çertidom auer nom podemos: da conteuda em esta obra” (Ib.
“Prólogo”, p. 112.
9
Lopes, 1994, cap. XXX, p. 141.
10
Lopes, 1995, Crónica de João I, I Parte, Cap. XCV, p. 264.
11
“noso desejo foy em esta obra, escpreuer verdade, sem outra mestura, leixando nos boons
aqueçimentos, todo fingido louuor e nuamente mostrar ao poboo, quaesquer contrairas cousas da guisa
que aueherom” (Ib., “Prólogo”, p. 111).
12
“Grande licença deu a afeiçom a mujtos, que teuerom carrego d ordenar estorias mormente dos
Senhores em cuja merçee e terra uiuiam e hũ forom nados seus antijgo<s> auoos: seendo lhe mujto
fauorauees no rrecontamento de seus feitos, E tal fauoreza como esta naçe de mundanal afeiçom, a quall
nom he: saluo comformidade d alguũa cousa ao emtemdimento do homem” (Ib.).
13
“E sse o senhor deus a nos outorgase o que a algũs escpreuendo nom negou.s. [scilicet] em suas obras,
clara çertidom da verdade. Sem duujda nom soomente mentir do que sabemos mas ajnda errando: falsso
nom quiriamos dizer, E o meo asi sea que outra cousa nom he errar: / saluo cuidar que he verdade aquelo
que he falsso, E nos emgando [sic] [emganando] per Ignorançia de velha<s> escpreturas e desuairrados
autores, bem podíamos ditando errar Porque scpreuendo homem do que nom he certo: ou contara majs
curto do que foy: ou falara majs largo do que deue. Mas mentira em este volume: he mujto afastada da
nossa vontade” (Ib.).
14
“Nem enmtendaes que çertificamos cousa saluo de mujtos aprouada” (Ib, p. 112)
15
“E dizem aqui alguũs comtando em breue esta estoria […] / Mas huũ outro copillador [sic] destes
feitos, de cujos garfos per majs largo estillo exertamos nesta obra segundo que compre, Reconta Jsto per
esta maneira” (Ib., cap. CLII, p. 380).
16
“Doutra guisa, ante nos callariamos que escpreuer cousas falssas” (Ib.”Prólogo”p. 112).
17
“E porem quem mujtas estorias quiser leer, moormente outemticas [sic] [autemticas] e aprouadas, end
cuja obra e autoridade nom he de prasmar, E nos nesta parte seguimdo sua ordenamça, forçado he que
luxemos algũas pessoas, fallamdo dellas em certos logares moormente pois Ja seus excessos per outros
ante que nos, som semeados em taes estorias, Cuja nódoa porem segumdo, dereito escprito e auamgelica
doutrina, nom pos magoa em seu / linhagem quando os decemtes [sic] [decemdemtes] della, nom forom
seguidores de suas peruerssas peegadas” (Ib., cap. CLXXV, P. 424).
18
“Oo muy nobre princepe, frol e excelemçia dos reis que em Portugall reinarom, bem escpreuerom os
que diserom que todallas humanaaes virtudes floreçerom em ty per espeçiall graça” (Lopes, 1983, II
Parte, “Prólogo”).
19
“E assi como o filho de deus chamou os seus apostollos, dizendo que os faria pescadores dos homeens:
ssi mujtos destes que o meestre acreçemtou, pescarom tamtos pêra si per seu grande e homrroso estado:
que taes ouue hi que tragiam comthinuadamente conssigo vimte e trinta de cauallo” (Lopes, 1995, cap.
CLXIII, p. 404).
20
“Da septima hidade que sse começou no tempo do Meestre” (Ib. cap. CLXIII): “Assi que doutra,
hidade desta presemte uida, nenhuũ sse trmeteo de fallar, saluo quanto alguũs disserom, que assi como
deus criara o mundo per espaço de seis dias, e no seitimo folgara, que assi a folgança das sprituaães almas
que no paraiso aueriam, seria a seitima hidade, Mas taaes opinioões bem som d emgeitar acerca dos
emtemdidos, Ca pois Jesu christo no euangelho disse, que do postumeiro dia, nenhuũ era sabedor, nem
196
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aJmda, os ang<i>os do çeeo, senom soomente o padre, taees fallamentos pouca parte teem de verdade, /
Mas nos com ousamça de fallar, como que Jogueta, per comparaçom fazemos aqui a septima hidade, Na
qual se leuantou outro mundo nouo e noua geraçõom de geentes” (Ib.).
21
“ca a mim disserom que eu tenho huum filho Joanne, que ade montar muito alto, e per que o reino de
Purtugal adaver mui gramde honma” (Lopes,1994, cap. XLIII, p. 196).
22
“por que eu sonhava huuma noite o mais estranho sonho que vos vistes: a mim pareçia em dormimdo,
que eu viia todo Portugal arder em fogo, de guisa que todo o reino pareçia huuma fogueira; e estamdo assi
espamtado veemdo tal cousa, viinha este meu filho Johanne com huuma vara na maão, e com ella
apagava aquelle fogo todo.” (Ib.
23
“Omde nom escpreruemdo per ordem de fidallguia, Mas como a maão quiser mouer a pena, O primero
nesta ladainha, seja, O muj nobre nun alluarez pereira, gloria e louuor de todo seu linhagem, cuja
claridade de bem seruir, nunca foi eclipsi nem perdo seu lume” (Lopes, 1995, cap. CLVIX, pp. 396-397)
24
“Este dom aluoro goncalvez pereira prioll, segumdo contam alguũs em seus liuros como era sesudo e
emtemdido ssi dizem que era astrollogo e sabedor, E quamdo lle alguũs filhos naçiam, trabalhaua sse uer
as naçenças delles, E per sua sçiemçia emtemdeo que auia d auer huũ filho, o quall seeria sempre
uemçedor, em todollos feitos d armas em que se açertasse, e que nunca auia de ser vemçido” (Lopes,
1995, cap. XXXIII, cap. 162).
25
“Ca tem coraçom e rrazom de o fazer, e nenhuũ outro há em portugall, pêra ello pertemçente senom
elle, E todollos boos portugueeses tem rrazoom de o seruir e ajudar e seguir o que começado tem,
despendendo com elle os corpos e aueres ataa morte, / E deus que a esto chamou, emcaminhara seus
feitos de bem em melhor, e o tragera em sua guarda, e aa fim que elle deseja.” (Ib., cap. LXXV, p. 231).
26
“Porque assi como o filho de deus depois da morte que tomou por saluar a humanal linhagem, mandou
pello mundo os seus apostollos preegar o euamgelho a toda creatura, Assi o meestre, depois que sse
despos a morrer sse comprisse, por saluaçom da terra que seus auoos gaanharom, Emuiou nun alluarez e
seus companheiros, preegar pello Reino ho euangelho portugees, O qual era que todos creesem e
teuessem firme ho papa vrbano seer verdadeiro pastor da igreja, […] A qual preegaçom, nun alluarez e os
seus, por pallaura e por obra, fezerom tam compridamente, que alguũs delles como depojs verees, forom
mortos polla defender” (Ib.,cap. CLIX, P. 397).
27
“Outros homrrados diçipullos, se chegarom depojs a nun alluarez pêra lhe ajudar a preegar este
euangelho português, cuja perseueramça fez a elles e a seu linhagem sobjr em gramde homrra, e
acreçemtamento” (Ib., p. 398).
28
Cf. Ib., cap. XI.
29
“Oo que forte cousa e mortall guerra de ueer, huũs portugueeses, quererem destrojr os outros, E
aquelles que huũ uentre geerou e huũa terra deu criamento, desejarem de sse matar de uoontade, e
esparger o samgue de seus diuedos e parentes” (Ib. Cap. LXVIII. p. 220).
30
“Per semelhauel, comparaçom podemos em outra hordem nomear por marteres os moradores de lixboa,
eaquelles quem com o meestre seemdo cercado, esteuerom em sua companha, e esto com Justa Razoom,
Porque, nom soomente som mártires, os que padecem por nom adorar os Jdollos, Mas aJmda aquelles que
dos hereges scismaticos som perseguidos por nom desemparar a verdade que tem, E sse mártir quer dizer
testemunha, bem testemunhas som os de lixboa, dos que do cerco della morrerom, e de suas tribullaçooes
e padecimentos, / E porem a ella como cidade uehuua de rei, teemdo o meestre por seu defemsor, e
esposo, podemos fazer pregumta dizendo: / Oo cidade de lixboa, famosa amtre as cidades, forte esteo, e
collumpna, que sostem todo portugall, Quegamdo he o teu esposo, e quaaes foram os mártires que te
acompanharom em tua persseguiçom e dorido cerco, /E ella Respomdendo, pode dizer, / Se me
preguntaaes de que paremtes, desçemde d el rei dom affomsso o quarto he neto” (Ib. Cap. CLX, p. 399).
31
“Outra maneira dos mártires que me acompanharom cuja Renembrança deue durar por sempre, forom
aquelles que com limpa enteençom sem dobreza de pallauras, esteuerom fortes om grande firmeza, nom
sse mouendo, per nenhuũas pressas nem ameaças do que tijnham, Os quaães se Já todos nom podem
achar, por ficarem em memoria. E posto que sse todos achar podessem, fariam tam gram processo, que
majs seria de sobeio, que neçessario e bem hordenado” (Ib., cap. CLXI, p. 401).
32
Cf. João de Barros, 1973.
33
“Todalas coufas, muito poderoso Rey, e senhor nosso, tem tanto amor á consfervação de feu proprio
fer, que quanto lhe he poffivel trabalham em feu modo por fe fazerem perpétuas. As naturaes, em que
fomente obra a Natureza, e não a induftria humana, cada huma dellas em fi mefma tem huma virtude
generativa, que quando Divinamente são difpoftas, ainda que periguem em fua corrupção, effa mefma
Natureza as torna renovar em novo fer, com que ficam vivas, e confervadas em fua própria efpecie. Eas
outras coufas, que não são obras da Natureza, mas feitos, e actos humanos, eftas porque não tinham
virtude animada de gerar outras semelhantes a fi, e por a brevidade da vida do homem, acabavam com feu
author: os mefmos homens por confervar feu nome em a memoria dellas, bufcáram hum Divino artificio,
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pero que a invenção delle fe dê a diverfos Authores, mais parece per Deos infpirado, que inventado per
algum humano entendimento” (Ib., Dec. I, “Prologo”).
34
“E porque o fruto deftes actos humanos he mui differente do fruto natural, que fe produz da femente
das coufas, per efte natural fenecer no mefmo homem, pera cujo ufo todas foram creadas; e o fruto das
obras delles he eterno, pois procede do entendimento, e vontade, onde fe fabricam, e aceptam todas, por
ferem partes efpirituaes, as fazem eternas” (Ib.).
35
“affi quis, que mediante os caracteres das letras, de que ufamos, difpoftas na ordem fignificativa da
valia, que cada Nação deo ao feu Alfabeto, a vifta, objecto receptivo deftes caracteres, mediante elles,
formaffe a effencia das coufas, e os racionaes conceptos ao modo de como a falla em feu officio os
denuncia. E ainda quis, que efte modo de elocução artificial de letras, per beneficio de perpetuidade,
precedeffe ao natural da falla; porque efta, fendo animada, não tem mais vida, que o inftante de fua
pronunciação, e paffa á semelhança do tempo, que não tem regreffo; e as letras, fendo huns caracteres
mortos, e não animados, contém em fi efpirito de vida, pois a dam ácerca de nós a todalas coufas. […]
pois vemos, que efta Natureza pêra gerar alguma coufa, corrompe, e altera os elementos de que he
compofta; e as letras, fendo elementos de que fe compõe, e forma a fignificação das coufas, não
corrompem as mefmas coufas, nem o entendimento, (pofto que feja paffivo na intelligencia dellas pelo
modo de como vem a elle;) mas vam-fe multiplicando na parte memorativa per ufo de frequentação tão
efpiritual em habito de perpetuidade, que per meio dellas no fim do Mundo tão prefentes ferão áquelles
que então forem, noffas peffoas, feitos, e ditos, como hoje per efta cuftodia literal he vivo o que fizeram,
e differam os primeiros, que foram no principio delle” (Ib.).
36
“fica daqui a cada hum de nós huma natural, e justa obrigação, que sffi devemos fer diligentes, e
folícitos em guardar em futuro noffas obras, pera com ellas aproveitarmos em bom exemplo, como
promptos, e conftantes na operação prefente dellas pera commum, e temporal proveito de noffos
naturaes” (Ib.).
37
Cf. Garcia de Resende, Cancioneiro Geral, 1516 (Prólogo).
38
Cf. Os Lus., V, 95-98.
39
“E vendo eu que nefta diligencia de encommendar as coufas á cuftodia das letras, (confervadores de
todalas obras,) a Nação Portuguez he tão defcuidada de fi, quão prompta, e diligente em os feitos, que he
tão defcuidada de fi, quão prompta, e diligente em os feitos, que lhe competem per milicia, e que mais se
preza de fazer, que dizer” (Barros, 1973, Prologo).
40
“Pois havendo cento e vinte annos, (porque de tantos trata efta efcritura,) que voffas armas, e padrões
de victorias tem tomado poffe não fomente de toda a terra marítima de África, e Afia, mas ainda de outros
maiores Mundos, do que Alexandre lamentava, por não ter noticia delles, não houve alguem, que fe
antremeteffe a fer primeiro nefte meu trabalho, fómente Gomes Eanes de Zurara Chronifta mór deftes
Reinos em as coufas do tempo do Infante D. Henrique” (Ib.).
41
“do qual nós confeffamos tomar a maior parte dos feus fundamentos, por não roubar o feu a cujo he”
(Ib.).
42
“pois não tendo eu outra caufa mais viva pera tomar esta empreza, que hum zelo da gloria, que fe deve
a Voffas armas, e fama a meus naturaes, que militando nellas vertêram feu fangue, e vida” (Ib.).
43
“fui o primeiro, que brotei efte fruto de efcritura defta Voffa Afia, fe he licito, por fer de arvore agrefte,
ruftica, e não agricultada” (Ib.).
44
“Escreve Platão em o feu Timéo, contando a prática, que hum Sacerdote Egypcio tinha com Sólon
fobre a antiguidade, e noticia das coufas della, que lhe diffe o Sacerdote com grande indignação: ‘Ó
Solon, Sólon, fempre vós-outros, os Gregos, haveis de fer moços, e o voffo animo fempre mancebo, em o
qual não ha conhecimento da antiguidade, nem sciencia de caens?’ Nas quaes palavras quis dizer, que
todos aquelles, que fe não davam ao conhecimento da antiguidade das coufas, as quaes fe alcançam pela
lição da Hiftoria, tinham entendimento de meninos, porque como eftes confufamente recebem o objecto
de qualquer coufa que vem, e a todo homem chamam pai, por não terem noticia perfeita pera distinguir
qual he o feu próprio: affi os que carecem do conhecimento da Hiftoria eftam póftos em vida de confusão.
“ (Barros, 1973, Déc. III, Prologo).
45
“E ainda (como diz Tullio) pella falla diffirimos dos brutos quanto ao difcurfo do juizo: os homens, que
totalmente ignoram a Hiftoria, e aborrecem as letras, são a elles mui conformes. Cá nunca o feu juízo fe
eftende a mais, que ao prefente a olhar fe lhe traz damno, ou proveito a vida, e do entendimento das
outras coufas fazem pouca conta, como fe nafcêram fomente pera contentar o corpo em feus affectos, e
defejos” (Ib.).
46
“Quafi como gente, que vem a degenerar da natureza humana, moftrando que não há nelles natural
defejo de faber; o qual he tão proprio do homem, (como diz Ariftoteles,) que lhe vieram chamar
inveftigador, e inventor das coufas” (Ib.).
198
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47
“E como a Hiftoria he hum agro, e campo, onde eftá femeada toda a doutrina Divina, Moral, Racional,
e Inftrumental, quem paftar o feu fruto, convertello-ha em forças de entendimento, e memoria pêra ufo de
jufta, e perfeita vida, com que apraz a Deos, e aos homens” (Ib.)
48
“Em a qual eleição parece que a gente Veneziana tem muito acertado, porque affi pera o governo
próprio, como público da patria, he mui dada á lição de feus próprios Annaes, e Hiftoria, e atoda outra, de
que podem tirar exemplo pera adminiftrarem os Magiftrados, e officios, de que a fua Republica os pode
prover, e principalmente pera faberem aconfelhar quando forem admittidos no Confelho público, no qual
fe hum homem entrar fem doutrina da Hiftoria, he como hum mudo entre doutos oradores, ou furdo ante a
harmonia das vozes. O fruto do qual ufo, que elles tem, fe vê na perpetuidade da fua Republica, a duração
da qual ainda não temos vifto fer contaminada per tantas centenas de annos em outra Nação” (Ib.).
49
Ib.
50
“Plotino em o livro de Sapiencia:) que não convem olhar fempre as coufas prefentes, mas a revolução
que ellas tem do pretérito pera o futuro, porque o feu curfo natural he hum bem refponder ao outro, e hum
mal ao outro mal, por eftarem as coufas futuras fujeitas a terem as vezes que já tiveram, quafi como hum
curfo circular” (Ib.).
51
“Por iffo não louvamos muito a homens, que dam razão de toda a hiftoria Grega, e Romana; e fe lhe
perguntais pelo Rey paffado do Reyno, em que vivem, não lhe fabem o nome, ainda que coma os bens da
Coroa, que o proprio Rey dá a feu avô. E não he muito, porque outro tanto fazem os taes ao nome do
primeiro inftituidor do Morgado ou Capella, que poffuem, no qual efquecimento parece que o tal
inftituidor do Morgado o adquirio, e ajuntou per tal modo, que o conta Deos em numero daquelles per os
quaes a Efcritura diz: E a lembrança delles fera deferta, quafi como fe não foram no Mundo: por fer jufta
coufa efquecerem aquelles, que por ferem lembrados na terra, fe efquecêram do Ceo” (Ib.).
52
“A primeira, e mais principal parte da Hiftoria he a verdade della; e porém em algumas coufas não ha
de fer tanta, que fe diga por ella o dito da muita juftiça, que fica em crueldade, principalmente nas coufas,
que tratam de infâmia de alguem, ainda que verdade fejam” (Ib.).
53
“E melhor fera a hum Author per efte modo diffimular os taes defeitos, que louvar os Príncipes de
maneira, que vendo elles tanta lifonjaria, façam o que fez Alexandre; o qual offerecendo-lhe Ariftobolo
hum livro de muitos louvores, deo com elle em hum rio, dizendo, que defejava depois de morto tornar ao
Mundo, para ver fe o louvavam tanto” (Ib.).
54
“Cá deftes taes exemplos mais procede licença dos vícios, que abftinencia delles; porque como evitara
a hum homem o ímpeto de má inclinação, quando Suetónio lhe põe o exemplo de muitos em Príncipes
illuftres, como foram os Emperadores; e taes vícios, que a mefma Natureza fecha os olhos, efconde o
rofto, e tapa os ouvidos por não ouvir taes torpezas de fi” (Ib.).
55
“e Antonio de Nebriffa por comprazer na Chronica, que compoz d’ElRey Dom Fernando de Caftella,
diffe taes abominações d’ElRey D. Henrique, e da Rainha D. Joanna fua mulher, que pera tão douto
Barão fora mais feguro a fua confciencia, e nome por dizer, que ditas” (Ib.).
56
“Se na primeira Tito Lívio he louvado na relação, que fez como os Francezes tomaram Roma, na
fegunda não ganhou muito em dizer delles, que por caufa do vinho, que havia em Italia, entraram nella, e
ifto em modo de infâmia.” (Ib.).
57
“Cefar cahio por abonar feus propofitos, ifto he tão eftranhado na Hiftoria, que melhor fofre hum
hyperbole, dizendo era tamanha a grita da gente, rugido das armas, quebrar das lanças, que chegava o
eftrondo até o Ceo. Nem menos convem á fé da Hiftoria dizer, que dos imigos morreram tantos mil,
feridos fem conto, e dos noffos mortos foram dous, ou três, e feridos doze.” (Ib.).
58
“Fabulas são as de Homero em nome, e argumento; mas nellas vai elle enxertando o difcurfo da vida
activa, e contemplativa, e por iffo no proemio das Pandectas do Direito Civil lhe chama o Emperador
Justiniano pai de toda virtude. E Macrobio diz delle, que he fonte, e origem de todalas divinas invenções,
porque deo a entender a verdade aos fapientes debaixo de huma nuvem de ficção poética.” (Ib.).
59
“Fabula he a Taboa do Filofofo Cebes; mas nefta pintura eftá todo o proceffo da vida justa, e perfeita”
(Ib.).
60
“Fabula he a Cyripedia de Xenofon; mas nella quis elle debuxar, que tal havia de fer hum Rey em o
governo de Feu Reyno, e por iffo era efte livro o familiar per que eftudava Scipião, e Cícero andando na
guerra” (Ib.).
61
“Fabula he a multidão das que efcreveo o Filofofo Esopo; mas nellas eftam pintados todolos affectos
humanos, e como nos havemos de haver nelles” (Ib.).
62
“Fabula he o Afno de ouro de Apuleio; mas no difcurfo delle moftra quão brutos animaes fão os
homens, que andam occupados, e envoltos em vícios, e fora delles ficam racionaes em vida” (Ib.).
63
“Fabula moderna he a Utopia de Thomaz Moro; mas nella quiz elle doutrinar os Inglezes como fe
haviam de governar” (Ib.).
64
Ib.
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65
“Mas efcrituras, que não tem efta utilidade de lição, além de fe nellas perder o tempo, que he a mais
preciofa coufa da vida, barbarizam o engenho, e enchem o entendimento de cifco com a enxurrada dos
feitos, e ditos que trazem. E o qur he mais pera temer, efcandalizam a alma, concebendo ódio, e má
opinião das partes infamadas per elles” (Ib.).
66
“Por caufa de evitar os quaes damnos, parece que feria coufa mui justa, per edito público, a papelada
das taes escripturas fer entregue ás tendeiras pera embrulhar cominhos, como dizia Perfio pólos verfos de
alguns fracos Poetas do feu tempo” (Ib.).
67
Cf. Moniz, António, 1999.
68
Pinto, Fernão Mendes, 1983, cap. CV, p. 301.
69
“as mais caueyras que aly viramos […] foraõ também de capitaẽs q. na restituição daquelle império
fazendo feitos heróicos acabaraõ as vidas honradamente, pelo qual era razão que já que a morte lhes tinha
tirado o premio que mereceraõ por suas obras, lhe não tirasse o mundo a memoria que se lhes deuia, o
qual a os bõs & animosos faria inueja com que se lhes acrecentasse o animo, & os fracos & couardes seria
confusaõ de sua fraqueza” (Ib., cap. CLXIII, p. 493).
70
“paraque fique em memoria aos que vierem despois de nós daquy ate o fim do mundo” (Ib., cap. XCIV,
p. 263).
71
Ib., cap. LXV, p. 184.
72
Ib., cap. CVIII, p. 312. cap. CIX, p. 316. cap. CX, p. 319. cap. CXI, p. 322.
73
Cf. Ib., CXII, pp. 325-326.
74
“Assi que em todas as cousas ha neste reyno hum taõ excellente gouerno […] que […] aquelle
bemauenturado padre mestre Francisco Xavier […], espãtado […] dezia, que se Deos algũa hora o
trouxesse a este reyno, auia de pedir esmolla a el Rey nosso Senhor q. quisesse ver as ordenaçoẽs, & os
estatutos da guerra & da fazenda, porque esta gẽte se gouernaua, porque tinha por sem duuida que eraõ
muyto milhores que os dos Romanos no tempo de sua felicidade, & que os de todas as outras naçoens de
gentes de que todos os escritores antiguos tratarão” (Cf. Ib., cap. CXIII, p. 328).
75
“Historia uero testis temporum, lux ueritatis, uita memoriae, magistra uitae, nuntia uetustatis, qua uoce
alia nisi oratoris immortalitati commentatur” (M. T. Cícero, De Oratore, II, 9.36.
76
Cf. Le Goff, Jacques, 1977, p. 193.
77
Ib., cap. CLXIII, pp. 495-496.
78
Ib., cap. LXXXVIII, p. 247.
79
Cf. Moniz, António et alii, 2001.
80
Os Lus., I, 11.
81
“Em vos se vêm da olímpica morada / Dos dous avós as almas cá famosas; / Uma na paz angélica
dourada, / Outra pelas batalhas sanguinosas” (Ib., I, 17: 1-4).
82
“Em vós esperam ver-se renovada / Sua memória e obras valerosas; / E lá vos tem lugar, no fim da
idade, / No templo da suprema Eternidade” (Ib., 5-8).
83
“Mandas-me, ó Rei, que conte declarando / De minha gente a grão genealogia: / Não me mandas contar
estranha história, / Mas mandas-me louvar dos meus a glória. // […] Primeiro tratarei da larga terra, /
Depois direi da sanguinosa guerra” (Ib., III, 3: 5-8; 5: 7-8).
84
“Estas figuras todas que aparecem, / Bravos em vista e feros nos aspeitos, / Mais bravos e mais feros se
conhecem, / Pela fama, nas obras e nos feitos. / Antigos são, mas ainda resplandecem / Co nome, entre os
engenhos mais perfeitos.” (Ib., VIII, 2: 1-6). “Assi está declarando os grandes feitos / O Gama, que ali
mostra a vária tinta, / Que a douta mão tão claros, tão perfeitos, / Do singular artífice ali pinta. / Os olhos
tinha prontos e direitos / O Catual na história bem distinta; / Mil vezes perguntava e mil ouvia / As
gostosas batalhas que ali via” (Ib., 43).
85
“Outros muitos verias, que os pintores / Aqui também por certo pintariam; / Mas falta-lhe pincel,
faltam-lhe cores, / Honra, prémio, favor, que as artes criam: / Culpa dos viciosos sucessores, / Que
degeneram, certo, e se desviam / Do lustre e do valor dos seus passados, / Em gostos e vaidades atolados”
(Ib., 39). Cf. Ib., 40. 41. X, 145. 146.
86
( Ib., VIII, 42).
87
“Até aqui, Portugueses, concedido / Vos é saberdes os futuros feitos / Que pelo mar já deixais sabido, /
Virão fazer barões de fortes peitos. / Agora, pois que tendes aprendido / Trabalhos que vos façam ser
aceitos / As eternas esposas e fermosas, / Que coroas voa tecem gloriosas” (Ib., X, 142.).
88
Ib., I, 1: 1.
89
Ib., I, 1: 3.
90
Ib., I, 2: 1-3.
91
Ib., I, 2: 5-6.
92
Ib., III, 21: 1.
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93
“Eis aqui, quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusitano, / Onde a terra se acaba e o mar
começa, / E onde Febo repousa no Oceano. / Este quis o Céu justo que floreça / Nas armas contra o torpe
Mauritano, / Deitando-o de si fora, e lá na ardente / África estar quieto o não consente” (Ib., III, 20).
94
“Da boca do facundo Capitão / Pendendo estavam todos embebidos, / Quando deu fim à longa narração
/ Dos altos feitos grandes e subidos. / Louva o Rei o sublime coração / Dos Reis em tantas guerras
conhecidos; / Da gente louva a antiga fortaleza, / A lealdade de ânimo e nobreza” (Ib., V, 90).
95
“Sustentava contra ele Vénus bela, / Afeiçoada à gente Lusitana, / Por quantas qualidades via nela / Da
antiga, tão amada, sua Romana; / Nos fortes corações, na grande estrela, / Que mostraram na terra
Tingitana, / E na língua, na qual quando imagina, / Com pouca corrupção crê que é a Latina” (Ib., I, 33).
96
“Não sabia em que modo festejasse / O Rei Pagão os fortes navegantes, Para que as amizades
alcançasse / Do Rei Cristão, das gentes tão possantes; / Pesa-lhe que tão longe o aposentasse / Das
Europeias terras abundantes / A ventura, que não no fez vizinho / Donde Hércules ao mar abriu caminho”
(Ib., VI, 1).
97
“A vós, ó geração de Luso, digo, / Que tão pequena parte sois no mundo; / Não digo linda no mundo,
mas no amigo / Curral de quem governa o céu rotundo; / Vós, a quem não somente algum perigo /
Estorva conquistar o povo imundo, / Mas nem cobiça, ou pouca obediência / Da Madre, que nos céus está
em essência; // Vós, Portugueses, / Que o fraco poder vosso não pesais; / Vós, que à custa de vossas
várias mortes / A lei da vida eterna dilatais: / Assim do céu deitadas são as sortes / Que vós, por muito
poucos que sejais, / Muito façais na santa Cristandade: / Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!” ( Ib.,
VII, 2. 3)./
98
“ Mas entanto que cegos e sedentos / Andais de vosso sangue, ó gente insana, / Não faltarão Cristãos
atrevimentos / Nesta pequena casa Lusitana. / De África tem marítimos assentos, / É na Ásia mais que
todos soberana, / Na quarta parte nova os campos ara, / E se mais mundo houvera, lá chegara” (Ib., VII,
14).
99
Ib., IX, 90.
101
“Em Moçambique, achámos aquelle Príncipe dos Poetas de feu tempo, meu matalote, e amigo Luís de
Camões, tão pobre, que comia de amigos, e pera fe embarcar pera o Reyno, lhe ajuntámos os amigos toda
a roupa que houve mifter, e não faltou quem lhe déffe de comer, e aquelle inverno que efteve em
Moçambique, acabou de aperfeiçoar as fuas Lufiadas pera as imprimir, e foi efcrevendo muito em hum
livro que hia fazendo, que intitulava Parnafo de luís de Camões, livro de muita erudição, doutrina, e
filofofia, o qual lhe furtaram, e nunca pude faber no Reyno delle, por muito que o inquiri, e foi furto
notavel: e em Portugal morreo efte excelente Poeta em pura pobreza” (Couto, Diogo do, Déc. VIII, cap.
XXVIII, p. 233).
102
A partir das suas reclamações quanto à incúria a respeito da documentação histórica, Filipe II nomeia-
o Guarda-mor da Torre do Tombo do Estado da Índia: “ e por eu lembrar eftes defcuidos, ElRey D. Filipe
, que efta em gloria, quando me commeteo efta hiftoria da Índia, mandou logo ordenar efta Torre do
Tombo, aonde mandou fe recolheffem todos os papeis, livros, e coufas que houveffe em cafa do
Secretario, e na Chancellaria, e todas as inftruções, e regimentos que vem do Reino todos os annos, o que
nunca pude acabar com os Vifo Reys que o fizeffem affim executar, e quafi que eftá efta cafa por forma
fó com o titulo de Torre do Tombo, fem ter mais que huns poucos de livros velhos, que aqui lançaram os
Officiaes por lhe não aproveitarem, nem fervirem de coufa alguma” (Déc. IX, cap. XIII, pp. 84-85).
103
“Na Índia […], o peor que lá há, fomos nós, que fomos danar terra tão maravilhosa com nossas
mentiras, falsidades, bulras, trapaças, cobiças, injustiças, e outros vícios que calo” (Couto, 1937, p. 215).
104
“ElRey lhe mandou paffar huma larga carta de vaffalagem, que alguns moradores antigos de Cochim
nos differam que viram, de que hoje nos parece que não ha ja memoria; porque nem na Secretaria, nem
em alguma outra parte a pudemos achar pera lançar o traslado della na Torre do Tombo, de que temos
cuidado, e fomos Guarda mor; porque eftas coufas, e outras muitas defta qualidade são perdidas, e
acabadas pela pouca conta que nefte Eftado fe faz de tudo o que não são drogas, e fazendas” (Déc. VII,
Segunda Parte, Livro VIII, Cap. XIV, pp. 286-7).
105
“Couto, de facto, parece não se ter poupado a esforços na busca de informação que lhe fornecesse
material credível para o seu trabalho de cronista: troca de correspondência com pessoas graves nas mais
variadas partes do Estado da Índia, incluindo “gentios” e mouros, conversa com embaixadores e
príncipes, piratas e condenados no tronco de Goa, gente do povo, médicos especialistas em botânica,
pessoas versadas nas religiões locais, estuda com elas obras da sua tradição cultural, lê escritores italianos
com um príncipe mouro em Baroche, desloca-se pessoalmente ao hospital de pássaros de Cambaia”
(Moniz, M. Celeste, 2004, pp. 18-19).
106
Do padre Francisco de Monclaros diz expressamente o seguinte, a propósito do itinerário a seguir até
às minas de Monomotapa: “o que fe affentou em hum Confelho tão authorizado, como fe convocou para
efta materia de hum Viso-Rey, dous Governadores, e mais de vinte Padres de S. Domingos, theologos,
querendo que feu parecer fó venceffe a todos eftes, paixão muito natural em muitos Religiofos, pela qual
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deitáram a perder na India grandes occafiões, e fe arrifcáram, e ainda perdêram algumas fortalezas” (Déc.
IX, Cap. XXIII, p. 199).
107
“e certo que fegundo a pouca difciplina da soldadefca da India, he mais trabalhofo a feus Capitães
domar-lhes feus apetites, que desbaratar feus inimigos, porque eftes vencem-fe com as armas; e aos
soldados nem com ellas, nem com a razão fe podem domar” (Déc. VIII, Cap. II, pp. 11-12).
108
São muitos os vícios denunciados à nobreza nas Décadas coutianas: a cobiça e ambição, o egoísmo, a
vaidade e a inveja, a covardia e a traição, a injustiça e a ingratidão. Cf. Moniz, M. Celeste. 2004, Parte III
(“A Miséria”).
109
Destacam-se: António da Silveira ( I cerco de Diu, D. João de Mascarenhas (II cerco e Diu), D. Pedro
de Ataíde (cerco de Cota), Leoniz Pereira (cerco de Malaca), Luis Freire de Andrade (cerco de Chaul),
Tristão Vaz da Veiga (capitão de Malaca nos cercos consecutivos, postos pela rainha de Japará e pelo
Achem), João da Silva (bloqueio a Malaca pelo Rajale de Jor), João Correia (cerco de Colombo).
110
“Trocaram-fe os ardís da guerra em ardís de fazenda, e recolher os foldados tem-fe já por doudice, e
por iffo andam muitos pelas portas dos Mofteiros. Coftumava a dizer D. Antonio de Noronha, fendo Vifo-
Rey da India: Que ella não duraria mais, que em quanto nella houveffe doudos. E perguntando-lhe que
doudos haviam de fer, refpondeo: Que Fidalgos que fahiam ricos de fuas fortalezas, e tudo o quellas
traziam, tornavam a defpender no ferviço d’ElRey; e praza a Deos que não venha a fer verdadeira fua
opinião, porque hoje affim fe fecham os Capitães com feu dinheiro, que não ha poder entrar com elles
mais que a morte” (Ib., Déc. IV, Parte Segunda, Liv. VIII, Cap. X, pp. 273-4).
111
Cf. Os Lus., I, 2: 5-6.
112
“não ficando alli mais que elle [Antonio Moniz], e dous foldados, que pelejáram como leões” (Déc.
VII, Parte I, Liv. III, Cap. IV, p. 197.
113
Contam-se os nomes de Isabel Fernandes, a Velha de Diu (Cf. Déc. VI, Parte I, Liv. II, Cap. IV, p.
108); Ana Fagundes, heroína dos dois cercos de Diu (cf. Déc. V, Parte I, Liv. V, Cap. II, pp. 423-4),
Isabel Madeira (cf. Déc. VI, Parte I, Liv. II, Cap. X, pp. 166-7).
114
Cf. Ib., Cap. VI, pp. 121-5.
115
Cf. Déc. V, Parte I, Liv. IV, Cap. VIII, pp. 352-3.
116
Cf. Déc. VII, Parte I, Liv. I, Cap. IX, pp. 84-8; Déc. VII, Parte II, Liv. IX, Cap. VIII, pp. 353-61; Déc.
VIII, Cap. XXII, pp. 144-5; Déc. XII, Liv. V, Cap. IX, pp. 514-6.
117
Citem-se os nomes de D. João de Castro (Cf. Déc. VI, Parte II, Liv. VI, Cap. IX, pp. 63-72), Francisco
Barreto (Cf. Déc. IX, Cap. XXIII, p. 203), D. Paulo de Lima Pereira (Cf. Déc. X, II Parte, Liv. VIII, Cap.
XVII, pp. 378-80).
118
“e que me haja eu por muito ditofo caber-me a forte de efcrever a hiftoria da India, que me he
encommendada por fua Mageftade, pêra que pelas grandezas que de Voffa Senhoria efpero efcrever,
venha a fer tão conhecido, e celebrado no mundo, como foi Homero por efcrever de Aquiles” (Déc. XII,
Liv. I, Cap. XV, p. 119.
119
“E lhe escrevi que de tudo desse a V.S. os trelados sobre o que V.Sª me não responde nada, por onde
não sey se pe se descurou, o que muyto sinty, e muito mais não me escrever V.Sª se se me te respondido
a meus negocios, ne se se trata da impreção dos meus liuros, que he cousa em que eu tenho mais os olhos,
que em tudo” (Carta a D. Francisco da Gama, datada de Goa, a 17 de Dezembro de 1608, pp. 9-10).
120
“entre tanto desgosto quanto tenho, em ver o descuido, que nesse reino he com hum home como eu,
que ferve a Sua Magestade, e a todos os homes em geral com tanto trabalho, zelo, e amor, porque depois
que Sua Magestade me encarregou de todas estas cousas, em que sirvo, não tenho até hoje mais
melhoramento, que de trinta mil reis de ordenado, cousa que se não da nem a hum Escrivão dos Contos, e
certo que não sei mor portento, ou signal de tudo se hir acabando, que os descuidos que se usa com hum
home, que está com huma penna na mão escrevendo dos homes, que em todas as nações do mundo se
costumárão honrar, e favorecer” (Carta a D. Francisco da Gama, datada de 27 de Dezembro de 1607, fl.
4).
121
“e lá eftá efte valerofo cavalleiro padecendo notaveis miferias, e deftas ha cada hora muitas nos que
nos governão, pela qual razão não fei com que coração os homens hão de aventurar as vidas em feitos
arrifcados, fe lhes hão de remunerar feu favor com ingratidões; mas fe não alcançou o galardão merecido
por feus heroicos feitos, o terá feu efforço nefta minha hiftoria, onde lhe durará mais que os defpachos
temporaes que lhe não chegaram, porque ha de permittir Deos noffo Senhor que quem affim fe arrifca por
feu ferviço, e pelo de feu Rey, e Patria, que por huma, ou por outra o venha a ter, como agora te nefta
hiftoria efte Fidalgo Francifco de Soufa Pereira” (Déc. IV. Parte Primeira, Liv. V, Cap. I, p. 330).
122
“Estou envergonhado com os hommes da pouca conta que nesse Reino se tem com minhas cousas,
porque quando espero por mil pardaos do ordenado então me respondem com sem Xes. que se não dão
senão a huma viuva muito pobre, tendo eu cartas de Sua Magde. e de todos os do conselho de muita
satisfação de minhas cousas e vejo tresentos homens que não servem Sua Magde. em cousas tão
importantes como eu o faço, e só por huma sertidão dos Contos de como acressentarão des Reis, lhe dão
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tantos abitos e tantas tenças e tantos alvaras de fidalgos, que vendo eu na fazenda del Rey nrnhumas
cressenças se não tudo mingoantes, ou me amym andem fazer merce, ou eu não ey de servir e largar tudo
e meter me num canto onde ninguem me veja” (Carta a D. Francisco da Gama, de 23 de Dezembro de
1605, pp. 7-8).
123
“que se me não faze honrras, que ningue se hade lograr dos meus papeis, porque antes da ora da minha
morte os eyde mandar queimar diante de mi, como cudo e já tenho escrito a V.Sª outra vez feguro lhe que
não aja outro Diogo do Couto que torne a reouar a historia, porque não sey se a minha facilidade e
presteza me fez nojo” (Carta a D, Francisco da Gama, datada de 27 de Dezembro de 1608, p. 9).
“quando me derem alguma cousa será a tempo que seja enterrado em São Francisco sobre as cinzas dos
meus livros, e papeis, e lembranças que hei de mandar queimar antes que morra, porque se não logrem
outros do suor de meus trabalhos” (Carta, de 27 de Dezembro de 1607, fl. 4).
124
Cf. Moniz, António, 1995.
125
“E eu, vosso rei, de Portugal, Algarves e o resto, que devotamente vou segurando uma destas
sobredouradas varas. Vede como se esforça um soberano para guardar, no temporal e no espiritual, pátria
e povo, bem podia eu ter mandado em meu lugar um criado, um duque ou um marquês a fazer as vezes,
porém, eis-me em pessoa, e também em pessoa os infantes meus manos e senhores vossos, ajoelhai,
ajoelhai lá, porque vai passando a custódia e eu vou passando, Cristo vai dentro dela, dentro de mim a
graça de ser rei na terra, ganhará qual dos dois, o que for de carne para sentir, eu, rei e varrasco, bem
sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me
recebem nas suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na mão o rosário, carne
mística, misturada, confundida” (Saramago, José, 1983, pp. 155-156).
126
“Em seu trono entre o brilho das estrelas, com seu manto de noite e solidão, tem aos seus pés o mar
novo e as portas eras, o único imperador que tem, deveras, o globo mundo em sua mão, este tal foi o
infante D. Henrique, consoante o louvará um poeta por ora ainda não nascido, lá tem cada um as suas
simpatias, mas, se é de globo mundo que se trata e de império e rendimentos que impérios dão, faz o
infante D. Henrique fraca figura comparado com este D. João, quinto já se sabe de seu nome na tabela dos
reis, sentado numa cadeira de braços de pau-santo, para mais comodamente estar e assim com outro
sossego atender ao guarda-livros que vai escriturando no rol os bens e as riquezas, de Macau as sedas, os
estofos, as porcelanas, os lacados, o chá, a pimenta, o cobre, o âmbar cinzento, o ouro, de Goa os
diamantes brutos, os rubis, as pérolas, a canela, mais pimenta, os panos de algodão, o salitre, de Diu os
tapetes, os móveis tauxiados, as colchas bordadas, de Melinde o marfim, de Moçambique os negros, o
ouro, de Angola outros negros, mas estes menos bons, o marfim, que esse, sim, é o melhor do lado
ocidental da África, de São Tomé a madeira, a farinha de mandioca, as bananas, os inhames, as galinhas,
os carneiros, os cabritos, o índigo, o açúcar, de Cabo Verde alguns negros, a cera, o marfim, os couros,
ficando explicado que nem todo o marfim é de elefante, dos Açores e Madeira os panos, o trigo, os
licores, os vinhos secos, as aguardentes, as cascas de limão cristalizadas, os frutos, e dos lugares que hão-
de vir a ser o Brasil o açúcar, o tabaco, o copal, o índigo, a madeira, os couros, o algodão, o cacau, os
diamantes, as esmeraldas, a prata, o ouro, que só deste vem ao reino, ano por ano, o valor de doze a
quinze milhões de cruzados, em pó e amoedado, fora o resto, e fora também o que vai ao fundo ou levam
os piratas, claro está que este todo não é o rendimento da coroa, rica sim, mas não tanto, porém, tudo
somado, de dentro e de fora, entram nas burras de el-rei para cima de dezasseis milhões de cruzados, só o
direito de passagem dos rios por onde se vai às Minas Gerais rende trinta mil cruzados, tanto trabalho teve
Deus Nosso Senhor a abrir as valas por onde as águas haviam de correr e vem um rei português cobrar
portagem gananciosa” (Ib., cap. 18, PP. 227-8).
127
“Uns dias antes dera-se em Mafra um milagre, que foi ter vindo do mar uma grande tempestade de
vento e deu com a igreja de madeira em terra, mastros, tábuas, vigas, barrotes, de confusão com os panos,
foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e
nossos trabalhos, e a quem se escandalizar por dar a isto nome de milagre, sendo destruição, que outro
nome se lhe havia de pôr, sabendo que el-rei, chegado a Mafra e informado do sucesso, se pôs, ele, a
distribuir moedas de ouro, assim, com esta mesma facilidade com que o contamos, porque os oficiaia da
obra em dois dias tinham tornado a levantar tudo, multiplicaram-se as moedas, que foi bem melhor que
terem-se multiplicado os pães. É el-rei um monarca previdente que sempre leva arcas de ouro para onde
vá, na previsão destes e outros temporais” (Ib., cap. 12, pp. 131-2).
12
8 “Mas em Lisboa dirá o guarda-livros a el-rei, Saiba vossa real majestade que na inauguração do
convento de Mafra se gastaram, números redondos, duzentos mil cruzados, e el-rei respondeu, Põe na
conta, disse-o porque ainda estamos no princípio da obra, um dia virá em que queremos saber, Afinal,
quanto terá custado aquilo, e ninguém dará satisfação dos dinheiros gastos, nem facturas, nem recibos,
nem boletins de registo de importação, sem falar de mortes e sacrifícios, que esses são baratos” (Ib., pp.
136-7).
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129
“É aqui que estão os paramentos de que D. Tomás de Almeida, o patriarca, se revestirá, e muita
prataria para o serviço divino, tudo demonstrando a suma grandeza deste monarca que vem entrando”
(Ib., p. 133).
13
0 “Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ela está
como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que
faltava, sermos os tecelões da faixa, os aferidores dos pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente
remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai
contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito” (Ib., Cap. XVI, p. 189).
131
“Dos julgamentos do Santo Ofício não se fala aqui, que esse tem bem abertos os olhos, em vez de
balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas. Há quem julgue que
o raminho é oferta de paz, quando está muito patente que se trata do primeiro graveto da futura pilha de
lenha, ou te corto, ou te queimo, por isso é que, havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher,
por suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter padrinhos que desculpem o
homicídio e mil cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão. […]
venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justiça
deveria vencer cedo, para que tarde perca quem deveria perder logo” (Ib., pp. 189-190).
13
2 “É que, entretanto, vão-se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso,
supremo queijo, manjar de meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se
falta algum é porque o esqueceu o padre António Vieira e agora não lembra” (Ib., p. 190).
13
3 “O meu nome é José Pequeno, não tenho pai, nem mãe, nem mulher, que minha seja, nem sei sequer
se o nome certo é este, ou se tive algum antes, apareci numa aldeia ao pé de Torres Vedras, pelo seguro, o
vigário baptizou-me, José é o nome de pia, o Pequeno puseram-mo depois, porque não cresci muito, com
esta corcunda às costas nenhuma mulher me quis para viver” (Ib., Cap. 18, pp. 233-4).
13
4 “Chamo-me Joaquim da Rocha, nasci no termo de Pombal, lá tenho a família, só a mulher, filhos tive
quatro, mas todos morreram antes de fazerem dez anos, dois de bexigas negras, os outros de espinhela
caída e sangue chupado, tinha lá um cerrado de renda, mas o ganho não dava para comer, então disse à
mulher, vou para Mafra, é trabalho garantido e por muitos anos, enquanto durar durou, agora há seis
meses que não vou a casa, se calhar nem volto mais, mulheres não faltam, e a minha devia ser má de casta
para assim ter parido quatro filhos e deixado morrer todos” (Ib., p. 234).
13
5 “O meu nome é Manuel Milho, venho dos campos de Santarém, um dia os oficiais do corregedor
passaram por lá com pregão de haver bom jornal e bom passado nestas obras de Mafra, vim eu, e mais
alguns, […] não gosto dos sítios daqui, […] ao homem não é dado escolher o lugar onde há-de morrer,
salvo se é ele a escolher a sua própria morte, mas porque sinto a falta do rio da minha terra, bem sei que
água tem-na o mar de sobra, vê-se daqui, mas digam-me o que pode um omem fazer daquela imensidão,
sempre a onda a marrar nas pedras, sempre a bater na areia, ao passo que o rio corre entre duas margens, é
como uma procissão penitente, ele é que vai rasteirinho, e nós, de pé, olhando, somos como os freixos e
os choupos, e quando um homem quer ver como está a sua cara, se envelheceu muito, a água é o espelho
que passa e está parado, e nós que estamos parados é que vamos passando” (Ib., pp. 234-5).
136
“Pode cair fulminado por um ataque, espumando pela boca, ou nem isso, apenas derrubando-se e
arrastando na queda o companheiro da frente e o companheiro de trás, subitamente e em pânico atados a
um morto, pode adoecer no descampado e vai de charola, […] enquanto os degredados esperam sentados
no chão que o caso se deslinde, Hoc est enim corpus meum, este corpo cansado de tantas léguas andadas,
este corpo esfolado dos atritos da corda, este corpo gastado da comida ainda menos que a pouca
costumada. As noites são dormidas em palheiros, em portarias de conventos, em tercenas despejadas, […]
De madrugada, muito antes de nascer o Sol, e ainda bem, porque estas horas são sempre as mais frias,
levantam-se os trabalhadores de sua majestade, enregelados e famintos, felizmente os libertaram das
cordas os quadrilheiros, porque hoje entraremos em Mafra e causaria péssimo efeito o cortejo de
maltrapilhos, atados como escravos do Brasil ou récua de cavalgaduras” (Ib., Cap. 21, pp. 294-5).
137
“Distraiu-se Francisco Marques, […] fugiu-lhe o calço da mão no preciso momento em que a
plataforma deslizava, não se sabe como isto foi, apenas que o corpo está debaixo do carro, esmagado,
passou-lhe a primeira roda por cima, mais de duas mil arrobas só a pedra, se ainda estamos lembrados. “
(Ib., Cap. 19, p. 259).
138
Os Lus., I, 1:8.
204
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i
Cf. Lopes, 1994, cap. XXIX, p. 136.
ii
Beirante, 1995, p. 40.
iii
“Ca sse o escorregamento dos gramdes tempos, gasta a fama dos exçellemtes primçipes, mujto majs a
lomgua Jdade, soterra os nomes das outras pessoas, demtro no moimento com elles” (Lopes, 1995, Cap.
CLIX, p. 396).
iv
“E porque em começo de seus boons feitos, o meestre ouue fidallgos e cidadãos, que o bem e lealmente
servirom, poemdo os corpos e vidas por homrra do Reino: Jmjuria nos parece que lhe foi feita leixa llos
cahir em perpetuu esqueçjmento” (Ib.).
v
“porque emuelheçendo os nomes de taes morreo a claridade da sua nobreza, / Quem quer<e>es vos que
tirre Já <a>gora d escorridom de tamtos annos, os nomes daquelles, que outras testemunhas nom tem,
saluo esquecimento e cimza, que adur pede [sic] seer achada” (Ib.).
vi
“Quem cujdaães que sse nom emffade, Reuoluer cartorios de podres escprituras, cuja uelhiçe e
desfazimento, nega o que o homem queria saber, / Quem achara tamtos bitafes amtijgos, que os
muimentos em que som escrpritos, dem testemunho de quem Jaz em elles” (Ib.).
vii
“Oo com quanto cujdado e diligencia vimos grandes uollumes de liuros, de desuairadas limgoageens e
terras, E Jsso meemo pubricas escprituras de mujtos cartarios e outros logares nas quaães depojs de
lomgas uegilias e grandes trabalhos, majs çertidom auer nom podemos: da conteuda em esta obra” (Ib.
“Prólogo”, p. 112.
viii
Lopes, 1994, cap. XXX, p. 141.
ix
Lopes, 1995, Crónica de João I, I Parte, Cap. XCV, p. 264.
x
“noso desejo foy em esta obra, escpreuer verdade, sem outra mestura, leixando nos boons
aqueçimentos, todo fingido louuor e nuamente mostrar ao poboo, quaesquer contrairas cousas da guisa
que aueherom” (Ib., “Prólogo”, p. 111).
xi
“Grande licença deu a afeiçom a mujtos, que teuerom carrego d ordenar estorias mormente dos
Senhores em cuja merçee e terra uiuiam e hũ forom nados seus antijgo<s> auoos: seendo lhe mujto
fauorauees no rrecontamento de seus feitos, E tal fauoreza como esta naçe de mundanal afeiçom, a quall
nom he: saluo comformidade d alguũa cousa ao emtemdimento do homem” (Ib.).
xii
“E sse o senhor deus a nos outorgase o que a algũs escpreuendo nom negou.s. [scilicet] em suas obras,
clara çertidom da verdade. Sem duujda nom soomente mentir do que sabemos mas ajnda errando: falsso
nom quiriamos dizer, E o meo asi sea que outra cousa nom he errar: / saluo cuidar que he verdade aquelo
que he falsso, E nos emgando [sic] [emganando] per Ignorançia de velha<s> escpreturas e desuairrados
autores, bem podíamos ditando errar Porque scpreuendo homem do que nom he certo: ou contara majs
curto do que foy: ou falara majs largo do que deue. Mas mentira em este volume: he mujto afastada da
nossa vontade” (Ib.).
xiii
“Nem enmtendaes que çertificamos cousa saluo de mujtos aprouada” (Ib, p. 112)
xiv
“E dizem aqui alguũs comtando em breue esta estoria […] / Mas huũ outro copillador [sic] destes
feitos, de cujos garfos per majs largo estillo exertamos nesta obra segundo que compre, Reconta Jsto per
esta maneira” (Ib., cap. CLII, p. 380).
xv
“Doutra guisa, ante nos callariamos que escpreuer cousas falssas” (Ib.”Prólogo”p. 112).
xvi
“E porem quem mujtas estorias quiser leer, moormente outemticas [sic] [autemticas] e aprouadas, end
cuja obra e autoridade nom he de prasmar, E nos nesta parte seguimdo sua ordenamça, forçado he que
luxemos algũas pessoas, fallamdo dellas em certos logares moormente pois Ja seus excessos per outros
ante que nos, som semeados em taes estorias, Cuja nódoa porem segumdo, dereito escprito e auamgelica
doutrina, nom pos magoa em seu / linhagem quando os decemtes [sic] [decemdemtes] della, nom forom
seguidores de suas peruerssas peegadas” (Ib., cap. CLXXV, P. 424).
xvii
“Oo muy nobre princepe, frol e excelemçia dos reis que em Portugall reinarom, bem escpreuerom os
que diserom que todallas humanaaes virtudes floreçerom em ty per espeçiall graça” (Lopes, 1983, II
Parte, “Prólogo”).
xviii
“E assi como o filho de deus chamou os seus apostollos, dizendo que os faria pescadores dos
homeens: ssi mujtos destes que o meestre acreçemtou, pescarom tamtos pêra si per seu grande e homrroso
estado: que taes ouue hi que tragiam comthinuadamente conssigo vimte e trinta de cauallo” (Lopes, 1995,
cap. CLXIII, p. 404).
xix
“Da septima hidade que sse começou no tempo do Meestre” (Ib. cap. CLXIII): “Assi que doutra,
hidade desta presemte uida, nenhuũ sse trmeteo de fallar, saluo quanto alguũs disserom, que assi como
deus criara o mundo per espaço de seis dias, e no seitimo folgara, que assi a folgança das sprituaães almas
que no paraiso aueriam, seria a seitima hidade, Mas taaes opinioões bem som d emgeitar acerca dos
emtemdidos, Ca pois Jesu christo no euangelho disse, que do postumeiro dia, nenhuũ era sabedor, nem
aJmda, os ang<i>os do çeeo, senom soomente o padre, taees fallamentos pouca parte teem de verdade, /
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Mas nos com ousamça de fallar, como que Jogueta, per comparaçom fazemos aqui a septima hidade, Na
qual se leuantou outro mundo nouo e noua geraçõom de geentes” (Ib.).
xx
“ca a mim disserom que eu tenho huum filho Joanne, que ade montar muito alto, e per que o reino de
Purtugal adaver mui gramde honma” (Lopes,1994, cap. XLIII, p. 196).
xxi
“por que eu sonhava huuma noite o mais estranho sonho que vos vistes: a mim pareçia em dormimdo,
que eu viia todo Portugal arder em fogo, de guisa que todo o reino pareçia huuma fogueira; e estamdo assi
espamtado veemdo tal cousa, viinha este meu filho Johanne com huuma vara na maão, e com ella
apagava aquelle fogo todo.” (Ib.
xxii
“Omde nom escpreruemdo per ordem de fidallguia, Mas como a maão quiser mouer a pena, O primero
nesta ladainha, seja, O muj nobre nun alluarez pereira, gloria e louuor de todo seu linhagem, cuja
claridade de bem seruir, nunca foi eclipsi nem perdo seu lume” (Lopes, 1995, cap. CLVIX, pp. 396-397)
xxiii
“Este dom aluoro goncalvez pereira prioll, segumdo contam alguũs em seus liuros como era sesudo e
emtemdido ssi dizem que era astrollogo e sabedor, E quamdo lle alguũs filhos naçiam, trabalhaua sse uer
as naçenças delles, E per sua sçiemçia emtemdeo que auia d auer huũ filho, o quall seeria sempre
uemçedor, em todollos feitos d armas em que se açertasse, e que nunca auia de ser vemçido” (Lopes,
1995, cap. XXXIII, cap. 162).
xxiv
“Ca tem coraçom e rrazom de o fazer, e nenhuũ outro há em portugall, pêra ello pertemçente senom
elle, E todollos boos portugueeses tem rrazoom de o seruir e ajudar e seguir o que começado tem,
despendendo com elle os corpos e aueres ataa morte, / E deus que a esto chamou, emcaminhara seus
feitos de bem em melhor, e o tragera em sua guarda, e aa fim que elle deseja.” (Ib., cap. LXXV, p. 231).
xxvi
“Outros homrrados diçipullos, se chegarom depojs a nun alluarez pêra lhe ajudar a preegar este
euangelho português, cuja perseueramça fez a elles e a seu linhagem sobjr em gramde homrra, e
acreçemtamento” (Ib., p. 398).
xxvii
Cf. Ib., cap. XI.
xxx
“Outra maneira dos mártires que me acompanharom cuja Renembrança deue durar por sempre, forom
aquelles que com limpa enteençom sem dobreza de pallauras, esteuerom fortes om grande firmeza, nom
sse mouendo, per nenhuũas pressas nem ameaças do que tijnham, Os quaães se Já todos nom podem
achar, por ficarem em memoria. E posto que sse todos achar podessem, fariam tam gram processo, que
majs seria de sobeio, que neçessario e bem hordenado” (Ib., cap. CLXI, p. 401).
xxxi
Cf. João de Barros, 1973.
xxxii
“Todalas coufas, muito poderoso Rey, e senhor nosso, tem tanto amor á consfervação de feu proprio
fer, que quanto lhe he poffivel trabalham em feu modo por fe fazerem perpétuas. As naturaes, em que
fomente obra a Natureza, e não a induftria humana, cada huma dellas em fi mefma tem huma virtude
generativa, que quando Divinamente são difpoftas, ainda que periguem em fua corrupção, effa mefma
Natureza as torna renovar em novo fer, com que ficam vivas, e confervadas em fua própria efpecie. Eas
outras coufas, que não são obras da Natureza, mas feitos, e actos humanos, eftas porque não tinham
virtude animada de gerar outras semelhantes a fi, e por a brevidade da vida do homem, acabavam com feu
author: os mefmos homens por confervar feu nome em a memoria dellas, bufcáram hum Divino artificio,
pero que a invenção delle fe dê a diverfos Authores, mais parece per Deos infpirado, que inventado per
algum humano entendimento” (Ib., Dec. I, “Prologo”).
xxxiii
“E porque o fruto deftes actos humanos he mui differente do fruto natural, que fe produz da femente
das coufas, per efte natural fenecer no mefmo homem, pera cujo ufo todas foram creadas; e o fruto das
obras delles he eterno, pois procede do entendimento, e vontade, onde fe fabricam, e aceptam todas, por
ferem partes efpirituaes, as fazem eternas” (Ib.).
xxxv
“fica daqui a cada hum de nós huma natural, e justa obrigação, que sffi devemos fer diligentes, e
folícitos em guardar em futuro noffas obras, pera com ellas aproveitarmos em bom exemplo, como
promptos, e conftantes na operação prefente dellas pera commum, e temporal proveito de noffos
naturaes” (Ib.).
xxxvi
Cf. Garcia de Resende, Cancioneiro Geral, 1516 (Prólogo).
xxxvii
Cf. Os Lus., V, 95-98.
xxxviii
“E vendo eu que nefta diligencia de encommendar as coufas á cuftodia das letras, (confervadores de
todalas obras,) a Nação Portuguez he tão defcuidada de fi, quão prompta, e diligente em os feitos, que he
tão defcuidada de fi, quão prompta, e diligente em os feitos, que lhe competem per milicia, e que mais se
preza de fazer, que dizer” (Barros, 1973, Prologo).
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xxxix
“Pois havendo cento e vinte annos, (porque de tantos trata efta efcritura,) que voffas armas, e padrões
de victorias tem tomado poffe não fomente de toda a terra marítima de África, e Afia, mas ainda de outros
maiores Mundos, do que Alexandre lamentava, por não ter noticia delles, não houve alguem, que fe
antremeteffe a fer primeiro nefte meu trabalho, fómente Gomes Eanes de Zurara Chronifta mór deftes
Reinos em as coufas do tempo do Infante D. Henrique” (Ib.).
xl
“do qual nós confeffamos tomar a maior parte dos feus fundamentos, por não roubar o feu a cujo he”
(Ib.).
xli
“pois não tendo eu outra caufa mais viva pera tomar esta empreza, que hum zelo da gloria, que fe deve
a Voffas armas, e fama a meus naturaes, que militando nellas vertêram feu fangue, e vida” (Ib.).
xlii
“fui o primeiro, que brotei efte fruto de efcritura defta Voffa Afia, fe he licito, por fer de arvore agrefte,
ruftica, e não agricultada” (Ib.).
xliii
“Escreve Platão em o feu Timéo, contando a prática, que hum Sacerdote Egypcio tinha com Sólon
fobre a antiguidade, e noticia das coufas della, que lhe diffe o Sacerdote com grande indignação: ‘Ó
Solon, Sólon, fempre vós-outros, os Gregos, haveis de fer moços, e o voffo animo fempre mancebo, em o
qual não ha conhecimento da antiguidade, nem sciencia de caens?’ Nas quaes palavras quis dizer, que
todos aquelles, que fe não davam ao conhecimento da antiguidade das coufas, as quaes fe alcançam pela
lição da Hiftoria, tinham entendimento de meninos, porque como eftes confufamente recebem o objecto
de qualquer coufa que vem, e a todo homem chamam pai, por não terem noticia perfeita pera distinguir
qual he o feu próprio: affi os que carecem do conhecimento da Hiftoria eftam póftos em vida de confusão.
“ (Barros, 1973, Déc. III, Prologo).
xliv
“E ainda (como diz Tullio) pella falla diffirimos dos brutos quanto ao difcurfo do juizo: os homens,
que totalmente ignoram a Hiftoria, e aborrecem as letras, são a elles mui conformes. Cá nunca o feu juízo
fe eftende a mais, que ao prefente a olhar fe lhe traz damno, ou proveito a vida, e do entendimento das
outras coufas fazem pouca conta, como fe nafcêram fomente pera contentar o corpo em feus affectos, e
defejos” (Ib.).
xlv
“Quafi como gente, que vem a degenerar da natureza humana, moftrando que não há nelles natural
defejo de faber; o qual he tão proprio do homem, (como diz Ariftoteles,) que lhe vieram chamar
inveftigador, e inventor das coufas” (Ib.).
xlvi
“E como a Hiftoria he hum agro, e campo, onde eftá femeada toda a doutrina Divina, Moral, Racional,
e Inftrumental, quem paftar o feu fruto, convertello-ha em forças de entendimento, e memoria pêra ufo de
jufta, e perfeita vida, com que apraz a Deos, e aos homens” (Ib.)
xlvii
“Em a qual eleição parece que a gente Veneziana tem muito acertado, porque affi pera o governo
próprio, como público da patria, he mui dada á lição de feus próprios Annaes, e Hiftoria, e atoda outra, de
que podem tirar exemplo pera adminiftrarem os Magiftrados, e officios, de que a fua Republica os pode
prover, e principalmente pera faberem aconfelhar quando forem admittidos no Confelho público, no qual
fe hum homem entrar fem doutrina da Hiftoria, he como hum mudo entre doutos oradores, ou furdo ante a
harmonia das vozes. O fruto do qual ufo, que elles tem, fe vê na perpetuidade da fua Republica, a duração
da qual ainda não temos vifto fer contaminada per tantas centenas de annos em outra Nação” (Ib.).
xlviii
Ib.
xlix
“Plotino em o livro de Sapiencia:) que não convem olhar fempre as coufas prefentes, mas a revolução
que ellas tem do pretérito pera o futuro, porque o feu curfo natural he hum bem refponder ao outro, e hum
mal ao outro mal, por eftarem as coufas futuras fujeitas a terem as vezes que já tiveram, quafi como hum
curfo circular” (Ib.).
l
“Por iffo não louvamos muito a homens, que dam razão de toda a hiftoria Grega, e Romana; e fe lhe
perguntais pelo Rey paffado do Reyno, em que vivem, não lhe fabem o nome, ainda que coma os bens da
Coroa, que o proprio Rey dá a feu avô. E não he muito, porque outro tanto fazem os taes ao nome do
primeiro inftituidor do Morgado ou Capella, que poffuem, no qual efquecimento parece que o tal
inftituidor do Morgado o adquirio, e ajuntou per tal modo, que o conta Deos em numero daquelles per os
quaes a Efcritura diz: E a lembrança delles fera deferta, quafi como fe não foram no Mundo: por fer jufta
coufa efquecerem aquelles, que por ferem lembrados na terra, fe efquecêram do Ceo” (Ib.).
li
“A primeira, e mais principal parte da Hiftoria he a verdade della; e porém em algumas coufas não ha de
fer tanta, que fe diga por ella o dito da muita juftiça, que fica em crueldade, principalmente nas coufas,
que tratam de infâmia de alguem, ainda que verdade fejam” (Ib.).
lii
“E melhor fera a hum Author per efte modo diffimular os taes defeitos, que louvar os Príncipes de
maneira, que vendo elles tanta lifonjaria, façam o que fez Alexandre; o qual offerecendo-lhe Ariftobolo
hum livro de muitos louvores, deo com elle em hum rio, dizendo, que defejava depois de morto tornar ao
Mundo, para ver fe o louvavam tanto” (Ib.).
liii
“Cá deftes taes exemplos mais procede licença dos vícios, que abftinencia delles; porque como evitara
a hum homem o ímpeto de má inclinação, quando Suetónio lhe põe o exemplo de muitos em Príncipes
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illuftres, como foram os Emperadores; e taes vícios, que a mefma Natureza fecha os olhos, efconde o
rofto, e tapa os ouvidos por não ouvir taes torpezas de fi” (Ib.).
liv
“e Antonio de Nebriffa por comprazer na Chronica, que compoz d’ElRey Dom Fernando de Caftella,
diffe taes abominações d’ElRey D. Henrique, e da Rainha D. Joanna fua mulher, que pera tão douto
Barão fora mais feguro a fua confciencia, e nome por dizer, que ditas” (Ib.).
lv
“Se na primeira Tito Lívio he louvado na relação, que fez como os Francezes tomaram Roma, na
fegunda não ganhou muito em dizer delles, que por caufa do vinho, que havia em Italia, entraram nella, e
ifto em modo de infâmia.” (Ib.).
lvi
“Cefar cahio por abonar feus propofitos, ifto he tão eftranhado na Hiftoria, que melhor fofre hum
hyperbole, dizendo era tamanha a grita da gente, rugido das armas, quebrar das lanças, que chegava o
eftrondo até o Ceo. Nem menos convem á fé da Hiftoria dizer, que dos imigos morreram tantos mil,
feridos fem conto, e dos noffos mortos foram dous, ou três, e feridos doze.” (Ib.).
lvii
“Fabulas são as de Homero em nome, e argumento; mas nellas vai elle enxertando o difcurfo da vida
activa, e contemplativa, e por iffo no proemio das Pandectas do Direito Civil lhe chama o Emperador
Justiniano pai de toda virtude. E Macrobio diz delle, que he fonte, e origem de todalas divinas invenções,
porque deo a entender a verdade aos fapientes debaixo de huma nuvem de ficção poética.” (Ib.).
lviii
“Fabula he a Taboa do Filofofo Cebes; mas nefta pintura eftá todo o proceffo da vida justa, e perfeita”
(Ib.).
lix
“Fabula he a Cyripedia de Xenofon; mas nella quis elle debuxar, que tal havia de fer hum Rey em o
governo de Feu Reyno, e por iffo era efte livro o familiar per que eftudava Scipião, e Cícero andando na
guerra” (Ib.).
lx
“Fabula he a multidão das que efcreveo o Filofofo Esopo; mas nellas eftam pintados todolos affectos
humanos, e como nos havemos de haver nelles” (Ib.).
lxi
“Fabula he o Afno de ouro de Apuleio; mas no difcurfo delle moftra quão brutos animaes fão os
homens, que andam occupados, e envoltos em vícios, e fora delles ficam racionaes em vida” (Ib.).
lxii
“Fabula moderna he a Utopia de Thomaz Moro; mas nella quiz elle doutrinar os Inglezes como fe
haviam de governar” (Ib.).
lxiii
Ib.
lxiv
“Mas efcrituras, que não tem efta utilidade de lição, além de fe nellas perder o tempo, que he a mais
preciofa coufa da vida, barbarizam o engenho, e enchem o entendimento de cifco com a enxurrada dos
feitos, e ditos que trazem. E o qur he mais pera temer, efcandalizam a alma, concebendo ódio, e má
opinião das partes infamadas per elles” (Ib.).
lxv
“Por caufa de evitar os quaes damnos, parece que feria coufa mui justa, per edito público, a papelada
das taes escripturas fer entregue ás tendeiras pera embrulhar cominhos, como dizia Perfio pólos verfos de
alguns fracos Poetas do feu tempo” (Ib.).
lxvi
Cf. Moniz, António, 1999.
lxvii
Pinto, Fernão Mendes, 1983, cap. CV, p. 301.
lxviii
“as mais caueyras que aly viramos […] foraõ também de capitaẽs q. na restituição daquelle império
fazendo feitos heróicos acabaraõ as vidas honradamente, pelo qual era razão que já que a morte lhes tinha
tirado o premio que mereceraõ por suas obras, lhe não tirasse o mundo a memoria que se lhes deuia, o
qual a os bõs & animosos faria inueja com que se lhes acrecentasse o animo, & os fracos & couardes seria
confusaõ de sua fraqueza” (Ib., cap. CLXIII, p. 493).
lxix
“paraque fique em memoria aos que vierem despois de nós daquy ate o fim do mundo” (Ib., cap.
XCIV, p. 263).
lxx
Ib., cap. LXV, p. 184.
lxxi
Ib., cap. CVIII, p. 312. cap. CIX, p. 316. cap. CX, p. 319. cap. CXI, p. 322.
lxxii
Cf. Ib., CXII, pp. 325-326.
lxxiii
“Assi que em todas as cousas ha neste reyno hum taõ excellente gouerno […] que […] aquelle
bemauenturado padre mestre Francisco Xavier […], espãtado […] dezia, que se Deos algũa hora o
trouxesse a este reyno, auia de pedir esmolla a el Rey nosso Senhor q. quisesse ver as ordenaçoẽs, & os
estatutos da guerra & da fazenda, porque esta gẽte se gouernaua, porque tinha por sem duuida que eraõ
muyto milhores que os dos Romanos no tempo de sua felicidade, & que os de todas as outras naçoens de
gentes de que todos os escritores antiguos tratarão” (Cf. Ib., cap. CXIII, p. 328).
lxxiv
“Historia uero testis temporum, lux ueritatis, uita memoriae, magistra uitae, nuntia uetustatis, qua
uoce alia nisi oratoris immortalitati commentatur” (M. T. Cícero, De Oratore, II, 9.36.
lxxv
Cf. Le Goff, Jacques, 1977, p. 193.
lxxvi
Ib., cap. CLXIII, pp. 495-496.
lxxvii
Ib., cap. LXXXVIII, p. 247.
lxxviii
Cf. Moniz, António et alii, 2001.
208
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lxxix
Os Lus., I, 11.
lxxx
“Em vos se vêm da olímpica morada / Dos dous avós as almas cá famosas; / Uma na paz angélica
dourada, / Outra pelas batalhas sanguinosas” (Ib., I, 17: 1-4).
lxxxi
“Em vós esperam ver-se renovada / Sua memória e obras valerosas; / E lá vos tem lugar, no fim da
idade, / No templo da suprema Eternidade” (Ib., 5-8).
lxxxii
“Mandas-me, ó Rei, que conte declarando / De minha gente a grão genealogia: / Não me mandas
contar estranha história, / Mas mandas-me louvar dos meus a glória. // […] Primeiro tratarei da larga
terra, / Depois direi da sanguinosa guerra” (Ib., III, 3: 5-8; 5: 7-8).
lxxxiii
“Estas figuras todas que aparecem, / Bravos em vista e feros nos aspeitos, / Mais bravos e mais feros
se conhecem, / Pela fama, nas obras e nos feitos. / Antigos são, mas ainda resplandecem / Co nome, entre
os engenhos mais perfeitos.” (Ib., VIII, 2: 1-6). “Assi está declarando os grandes feitos / O Gama, que ali
mostra a vária tinta, / Que a douta mão tão claros, tão perfeitos, / Do singular artífice ali pinta. / Os olhos
tinha prontos e direitos / O Catual na história bem distinta; / Mil vezes perguntava e mil ouvia / As
gostosas batalhas que ali via” (Ib., 43).
lxxxiv
“Outros muitos verias, que os pintores / Aqui também por certo pintariam; / Mas falta-lhe pincel,
faltam-lhe cores, / Honra, prémio, favor, que as artes criam: / Culpa dos viciosos sucessores, / Que
degeneram, certo, e se desviam / Do lustre e do valor dos seus passados, / Em gostos e vaidades atolados”
(Ib., 39). Cf. Ib., 40. 41. X, 145. 146.
lxxxv
( Ib., VIII, 42).
lxxxvi
“Até aqui, Portugueses, concedido / Vos é saberdes os futuros feitos / Que pelo mar já deixais
sabido, / Virão fazer barões de fortes peitos. / Agora, pois que tendes aprendido / Trabalhos que vos
façam ser aceitos / As eternas esposas e fermosas, / Que coroas voa tecem gloriosas” (Ib., X, 142.).
lxxxvii
Ib., I, 1: 1.
lxxxviii
Ib., I, 1: 3.
lxxxix
Ib., I, 2: 1-3.
xc
Ib., I, 2: 5-6.
xci
Ib., III, 21: 1.
xcii
“Eis aqui, quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusitano, / Onde a terra se acaba e o mar
começa, / E onde Febo repousa no Oceano. / Este quis o Céu justo que floreça / Nas armas contra o torpe
Mauritano, / Deitando-o de si fora, e lá na ardente / África estar quieto o não consente” (Ib., III, 20).
xciii
“Da boca do facundo Capitão / Pendendo estavam todos embebidos, / Quando deu fim à longa
narração / Dos altos feitos grandes e subidos. / Louva o Rei o sublime coração / Dos Reis em tantas
guerras conhecidos; / Da gente louva a antiga fortaleza, / A lealdade de ânimo e nobreza” (Ib., V, 90).
xciv
“Sustentava contra ele Vénus bela, / Afeiçoada à gente Lusitana, / Por quantas qualidades via nela /
Da antiga, tão amada, sua Romana; / Nos fortes corações, na grande estrela, / Que mostraram na terra
Tingitana, / E na língua, na qual quando imagina, / Com pouca corrupção crê que é a Latina” (Ib., I, 33).
xcv
“Não sabia em que modo festejasse / O Rei Pagão os fortes navegantes, Para que as amizades
alcançasse / Do Rei Cristão, das gentes tão possantes; / Pesa-lhe que tão longe o aposentasse / Das
Europeias terras abundantes / A ventura, que não no fez vizinho / Donde Hércules ao mar abriu caminho”
(Ib., VI, 1).
xcvi
“A vós, ó geração de Luso, digo, / Que tão pequena parte sois no mundo; / Não digo linda no mundo,
mas no amigo / Curral de quem governa o céu rotundo; / Vós, a quem não somente algum perigo /
Estorva conquistar o povo imundo, / Mas nem cobiça, ou pouca obediência / Da Madre, que nos céus está
em essência; // Vós, Portugueses, / Que o fraco poder vosso não pesais; / Vós, que à custa de vossas
várias mortes / A lei da vida eterna dilatais: / Assim do céu deitadas são as sortes / Que vós, por muito
poucos que sejais, / Muito façais na santa Cristandade: / Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!” ( Ib.,
VII, 2. 3)./
xcvii
“ Mas entanto que cegos e sedentos / Andais de vosso sangue, ó gente insana, / Não faltarão Cristãos
atrevimentos / Nesta pequena casa Lusitana. / De África tem marítimos assentos, / É na Ásia mais que
todos soberana, / Na quarta parte nova os campos ara, / E se mais mundo houvera, lá chegara” (Ib., VII,
14).
xcviii
Ib., IX, 90.
xcix
“Em Moçambique, achámos aquelle Príncipe dos Poetas de feu tempo, meu matalote, e amigo Luís de
Camões, tão pobre, que comia de amigos, e pera fe embarcar pera o Reyno, lhe ajuntámos os amigos toda
a roupa que houve mifter, e não faltou quem lhe déffe de comer, e aquelle inverno que efteve em
Moçambique, acabou de aperfeiçoar as fuas Lufiadas pera as imprimir, e foi efcrevendo muito em hum
livro que hia fazendo, que intitulava Parnafo de luís de Camões, livro de muita erudição, doutrina, e
filofofia, o qual lhe furtaram, e nunca pude faber no Reyno delle, por muito que o inquiri, e foi furto
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notavel: e em Portugal morreo efte excelente Poeta em pura pobreza” (Couto, Diogo do, Déc. VIII, cap.
XXVIII, p. 233
ci
“Na Índia […], o peor que lá há, fomos nós, que fomos danar terra tão maravilhosa com nossas
mentiras, falsidades, bulras, trapaças, cobiças, injustiças, e outros vícios que calo” (Couto, 1937, p. 215).
cii
“ElRey lhe mandou paffar huma larga carta de vaffalagem, que alguns moradores antigos de Cochim
nos differam que viram, de que hoje nos parece que não ha ja memoria; porque nem na Secretaria, nem
em alguma outra parte a pudemos achar pera lançar o traslado della na Torre do Tombo, de que temos
cuidado, e fomos Guarda mor; porque eftas coufas, e outras muitas defta qualidade são perdidas, e
acabadas pela pouca conta que nefte Eftado fe faz de tudo o que não são drogas, e fazendas” (Déc. VII,
Segunda Parte, Livro VIII, Cap. XIV, pp. 286-7).
ciii
“Couto, de facto, parece não se ter poupado a esforços na busca de informação que lhe fornecesse
material credível para o seu trabalho de cronista: troca de correspondência com pessoas graves nas mais
variadas partes do Estado da Índia, incluindo “gentios” e mouros, conversa com embaixadores e
príncipes, piratas e condenados no tronco de Goa, gente do povo, médicos especialistas em botânica,
pessoas versadas nas religiões locais, estuda com elas obras da sua tradição cultural, lê escritores italianos
com um príncipe mouro em Baroche, desloca-se pessoalmente ao hospital de pássaros de Cambaia”
(Moniz, M. Celeste, 2004, pp. 18-19).
civ
Do padre Francisco de Monclaros diz expressamente o seguinte, a propósito do itinerário a seguir até
às minas de Monomotapa: “o que fe affentou em hum Confelho tão authorizado, como fe convocou para
efta materia de hum Viso-Rey, dous Governadores, e mais de vinte Padres de S. Domingos, theologos,
querendo que feu parecer fó venceffe a todos eftes, paixão muito natural em muitos Religiofos, pela qual
deitáram a perder na India grandes occafiões, e fe arrifcáram, e ainda perdêram algumas fortalezas” (Déc.
IX, Cap. XXIII, p. 199).
cv
“e certo que fegundo a pouca difciplina da soldadefca da India, he mais trabalhofo a feus Capitães
domar-lhes feus apetites, que desbaratar feus inimigos, porque eftes vencem-fe com as armas; e aos
soldados nem com ellas, nem com a razão fe podem domar” (Déc. VIII, Cap. II, pp. 11-12).
cvi
São muitos os vícios denunciados à nobreza nas Décadas coutianas: a cobiça e ambição, o egoísmo, a
vaidade e a inveja, a covardia e a traição, a injustiça e a ingratidão. Cf. Moniz, M. Celeste. 2004, Parte III
(“A Miséria”).
cvii
Destacam-se: António da Silveira ( I cerco de Diu, D. João de Mascarenhas (II cerco e Diu), D. Pedro
de Ataíde (cerco de Cota), Leoniz Pereira (cerco de Malaca), Luis Freire de Andrade (cerco de Chaul),
Tristão Vaz da Veiga (capitão de Malaca nos cercos consecutivos, postos pela rainha de Japará e pelo
Achem), João da Silva (bloqueio a Malaca pelo Rajale de Jor), João Correia (cerco de Colombo).
cviii
“Trocaram-fe os ardís da guerra em ardís de fazenda, e recolher os foldados tem-fe já por doudice, e
por iffo andam muitos pelas portas dos Mofteiros. Coftumava a dizer D. Antonio de Noronha, fendo Vifo-
Rey da India: Que ella não duraria mais, que em quanto nella houveffe doudos. E perguntando-lhe que
doudos haviam de fer, refpondeo: Que Fidalgos que fahiam ricos de fuas fortalezas, e tudo o quellas
traziam, tornavam a defpender no ferviço d’ElRey; e praza a Deos que não venha a fer verdadeira fua
opinião, porque hoje affim fe fecham os Capitães com feu dinheiro, que não ha poder entrar com elles
mais que a morte” (Ib., Déc. IV, Parte Segunda, Liv. VIII, Cap. X, pp. 273-4).
cix
Cf. Os Lus., I, 2: 5-6.
cx
“não ficando alli mais que elle [Antonio Moniz], e dous foldados, que pelejáram como leões” (Déc.
VII, Parte I, Liv. III, Cap. IV, p. 197.
cxi
Contam-se os nomes de Isabel Fernandes, a Velha de Diu (Cf. Déc. VI, Parte I, Liv. II, Cap. IV, p.
108); Ana Fagundes, heroína dos dois cercos de Diu (cf. Déc. V, Parte I, Liv. V, Cap. II, pp. 423-4),
Isabel Madeira (cf. Déc. VI, Parte I, Liv. II, Cap. X, pp. 166-7).
cxii
Cf. Ib., Cap. VI, pp. 121-5.
cxiii
Cf. Déc. V, Parte I, Liv. IV, Cap. VIII, pp. 352-3.
cxiv
Cf. Déc. VII, Parte I, Liv. I, Cap. IX, pp. 84-8; Déc. VII, Parte II, Liv. IX, Cap. VIII, pp. 353-61; Déc.
VIII, Cap. XXII, pp. 144-5; Déc. XII, Liv. V, Cap. IX, pp. 514-6.
cxv
Citem-se os nomes de D. João de Castro (Cf. Déc. VI, Parte II, Liv. VI, Cap. IX, pp. 63-72), Francisco
Barreto (Cf. Déc. IX, Cap. XXIII, p. 203), D. Paulo de Lima Pereira (Cf. Déc. X, II Parte, Liv. VIII, Cap.
XVII, pp. 378-80).
cxvi
“e que me haja eu por muito ditofo caber-me a forte de efcrever a hiftoria da India, que me he
encommendada por fua Mageftade, pêra que pelas grandezas que de Voffa Senhoria efpero efcrever,
venha a fer tão conhecido, e celebrado no mundo, como foi Homero por efcrever de Aquiles” (Déc. XII,
Liv. I, Cap. XV, p. 119.
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cxvii
“E lhe escrevi que de tudo desse a V.S. os trelados sobre o que V.Sª me não responde nada, por onde
não sey se pe se descurou, o que muyto sinty, e muito mais não me escrever V.Sª se se me te respondido
a meus negocios, ne se se trata da impreção dos meus liuros, que he cousa em que eu tenho mais os olhos,
que em tudo” (Carta a D. Francisco da Gama, datada de Goa, a 17 de Dezembro de 1608, pp. 9-10).
cxviii
“entre tanto desgosto quanto tenho, em ver o descuido, que nesse reino he com hum home como eu,
que ferve a Sua Magestade, e a todos os homes em geral com tanto trabalho, zelo, e amor, porque depois
que Sua Magestade me encarregou de todas estas cousas, em que sirvo, não tenho até hoje mais
melhoramento, que de trinta mil reis de ordenado, cousa que se não da nem a hum Escrivão dos Contos, e
certo que não sei mor portento, ou signal de tudo se hir acabando, que os descuidos que se usa com hum
home, que está com huma penna na mão escrevendo dos homes, que em todas as nações do mundo se
costumárão honrar, e favorecer” (Carta a D. Francisco da Gama, datada de 27 de Dezembro de 1607, fl.
4).
cxx
“Estou envergonhado com os hommes da pouca conta que nesse Reino se tem com minhas cousas,
porque quando espero por mil pardaos do ordenado então me respondem com sem Xes. que se não dão
senão a huma viuva muito pobre, tendo eu cartas de Sua Magde. e de todos os do conselho de muita
satisfação de minhas cousas e vejo tresentos homens que não servem Sua Magde. em cousas tão
importantes como eu o faço, e só por huma sertidão dos Contos de como acressentarão des Reis, lhe dão
tantos abitos e tantas tenças e tantos alvaras de fidalgos, que vendo eu na fazenda del Rey nrnhumas
cressenças se não tudo mingoantes, ou me amym andem fazer merce, ou eu não ey de servir e largar tudo
e meter me num canto onde ninguem me veja” (Carta a D. Francisco da Gama, de 23 de Dezembro de
1605, pp. 7-8).
cxxi
“que se me não faze honrras, que ningue se hade lograr dos meus papeis, porque antes da ora da minha
morte os eyde mandar queimar diante de mi, como cudo e já tenho escrito a V.Sª outra vez feguro lhe que
não aja outro Diogo do Couto que torne a reouar a historia, porque não sey se a minha facilidade e
presteza me fez nojo” (Carta a D, Francisco da Gama, datada de 27 de Dezembro de 1608, p. 9).
“quando me derem alguma cousa será a tempo que seja enterrado em São Francisco sobre as cinzas dos
meus livros, e papeis, e lembranças que hei de mandar queimar antes que morra, porque se não logrem
outros do suor de meus trabalhos” (Carta, de 27 de Dezembro de 1607, fl. 4).
cxxii
Cf. Moniz, António, 1995.
cxxiii
“E eu, vosso rei, de Portugal, Algarves e o resto, que devotamente vou segurando uma destas
sobredouradas varas. Vede como se esforça um soberano para guardar, no temporal e no espiritual, pátria
e povo, bem podia eu ter mandado em meu lugar um criado, um duque ou um marquês a fazer as vezes,
porém, eis-me em pessoa, e também em pessoa os infantes meus manos e senhores vossos, ajoelhai,
ajoelhai lá, porque vai passando a custódia e eu vou passando, Cristo vai dentro dela, dentro de mim a
graça de ser rei na terra, ganhará qual dos dois, o que for de carne para sentir, eu, rei e varrasco, bem
sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me
recebem nas suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na mão o rosário, carne
mística, misturada, confundida” (Saramago, José, 1983, pp. 155-156).
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1
Professor doutor de literatura portuguesa na Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
212
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213
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Outra proposta era autores que tematizavam eventos portugueses com interesse
da comunidade lusa imigrante, como Francisco Xavier Ferreira e seu Relação dos
festejos, que fizeram os portugueses residentes na vila do Rio Grande do Sul, em
demonstração de seu júbilo pelo restabelecimento da paz, e da liberdade, na sua pátria
(1834)iii, e João Antonio de Carvalho e Oliveira (1806-1872), com seu Defesa dos
portugueses feito na província do Maranhão dedicada aos seus compatriotas residentes
no Brasil (1857), ou mesmo O Marquês de Pombal, de Clémence Robert, publicado
pela tipografia de Antonio Estevão, em 1857.
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REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Francisco Xavier. Hino que se cantou na noite do dia 24 do corrente, pela
feliz notícia da Gloriosa Elevação do Sr. Dom Pedro II ao Trono do Brasil. Rio
Grande: Tipografia de F. X. F., 1831.
HOBSBAWN, Eric. A era dos impérios. 1875-1914. Trad. Sieni Maria Campos e
Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1990.
MARTINS, Ari. Escritores do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. UFRAS/IEL,
1978.
MOREIRA, Maria Eunice (Coord.). Uma voz ao Sul. Os versos de Maria Clemência da
Silveira Sampaio. Florianópolis: Mulheres, 2003.
NEVES, Décio Vignoli das. Vultos do Rio Grande. Santa Maria: Palloti, 1981.
218
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VAZ, Artur Emilio Alarcon; BAUMGARTEN, Carlos Alexandre; CURY, Maria Zilda
Ferreira (org). Literatura em revista (e jornal): periódicos do Rio Grande do Sul e de
Minas Gerais. Belo Horizonte: FALE-UFMG; Rio Grande: Universidade Federal do
Rio Grande, 2005.
VAZ, Artur Emilio Alarcon. Formação do sistema literário no extremo sul do Brasil: o
início da imprensa em Rio Grande. Cadernos Literários. v. 15, p. 11-17, 2008. Rio
Grande: FURG.
VIEIRA, Cila Milano; JAEGER, Leila Maria Gama; CABERLON, Vera Isabel.
Levantamento bibliográfico de obras raras e/ou valiosas da Biblioteca Rio-Grandense.
Rio Grande: FURG, 1987.
NOTAS
i
Nascido em 23 de agosto de 1809 na cidade portuguesa de Viana do Castelo, teria, segundo Blake,
apresentado em 1837 o drama José II e os salteadores de Mulberg, em Niterói, e publicado no ano
seguinte. Em Rio Grande, levou ao palco a peça Os jesuítas ou o bastardo d’el Rey, no Teatro Sete de
Setembro em 21 de novembro de 1846, sendo impressa em 1848 pela tipografia de José Maria Perry de
Carvalho e preservada somente pelo exemplar existente na Biblioteca Nacional. Em 1864, a editora
baiana Tourinho, Dias & Cia. publicou sua obra Gabriel Malagrida ou A conjuração dos távoras:
crônica do século 18. Coutinho e Sousa (2001, v. 2, p. 1623) apontam outros textos seus, sem indicação
de local de apresentação ou publicação.
ii
Nascido em 23 de julho de 1791 em Lisboa, destacou-se – na região extremo-sul brasileira – como
poeta, latinista, professor público e defensor da monarquia. Grande parte de suas obras poéticas estão
reunidas na tese A lírica de imigrantes portugueses no Brasil meridional (1832-1922). Sua morte em
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1
As metamorfoses de Tertuliano Máximo Afonso e de António Claro”, comunicação apresentada no I
Colóquio “Vertentes do fantástico na literatura”, Universidade Estadual Paulista, campus Araraquara,
abril de 2009.
221
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2
Capítulo intitulado “ O Homem Duplicado: um relato espe ( ta ) cular”. Leituras do Duplo, no prelo.
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REFERÊNCIAS
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WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
227
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1
Os títulos que completam esse ciclo seriam O manual dos inquisidores (1996), O esplendor de Portugal
(1997) e Boa tarde às coisas aqui em baixo (2003).
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poética das relações entre poder e memória, entre vozes conflitantes que no poder
vivenciaram e por ele foram devastadas.
Poderíamos chamar a “exortação” antuniana uma polifonia desesperadora, uma
exortação, ou melhor, uma “obrigação”, na fala de Nuno Júdice, “à memória” (JÚDICE,
2000, p. 7). A escrita do autor português propõe a leitura de alguns acontecimentos
cruciais para a história de Portugal do século XX sob a voz de quatro mulheres. Mais
que uma polifonia, o leitor parece estar frente a uma sinfonia, uma escrita homogênea,
propulsora para a narração. Contar é um dever, não um “material” opcional. Porque
contar é o único gesto de participação nas mentiras da História. Trata-se de fragmentos
da linguagem que aspiram a uma tensão unitária, já que o fato acontecido é somente um,
embora sejam várias e destroçadas as interpretações sobre ele. Lobo Antunes constrói
uma narrativa que se liga ao testemunho da experiência de quatro mulheres (Mimi,
Fátima, Celina, Simone), envolvidas no tristemente célebre caso Camarate, como já fez
Faulkner, em The Sound and the Fury, relatando a história de um estupro por quatro
vozes diferentes. A linguagem utilizada em mais de 500 páginas é uma experiência do
limite. É como se a palavra fosse encarregada de re-escrever a História, embora esteja
disfarçada de fingimento, de seu ser ficcional, e embora se manifeste, conforme a leitura
de Maria Lúcia Lepecki, como um “discurso que finge a veracidade, que ficciona
formas de historicidade” (LEPECKI, 1984, p. 13). Mimi, Fátima, Celina e Simone se
alternam na fala, capítulo após capítulo, cúmplices de um crime, cuja reconstrução
servirá à talvez impossível e horrorosa reconstrução de suas vidas. Em um devaneio
constante, impetuoso e inquietante, “monologam ou dão conta dos seus pensamentos,
situações, actividades, desejos, medos, recordações de infância e fantasias” (SEIXO,
2002, p. 617).
São testemunhas excepcionais, como diria Márcio Seligmann-Silva, pois o
trabalho com a linguagem, embora fictícia, é o único ponto de comparação para o
entendimento (se houver um verdadeiro entendimento) do mundo, da História, do eu.
Cada uma dessas protagonistas, vítimas das circunstâncias e delas próprias, “desfaz os
lacres da linguagem que tentavam encobrir o 'indizível' que a sustenta” (SELIGMANN-
SILVA, 1999, p.40).
A literatura antuniana acentua não apenas a força do fragmento, mas também
atualiza a interrogação sobre uma nova “subjetividade” que re-propõe a pergunta
existencial de cada tempo, descrevendo, assim, um sujeito – animal – que se disfarça
atrás de uma máscara e que perdeu o uso da razão no sentido de ter deixado de buscar
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Não apenas a morte exterior, brutal e trágica, mas outra realidade mais
profunda, a nossa realidade de seres confrontados com qualquer coisa ainda
mais profunda que a morte, que é a do sofrimento, a da injustiça que nós
infligimos aos outros, a nossa própria miséria, os nossos terrores sepultos
(Lourenço, 2003, p. 352).
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mítica”, uma ficção ao espelho daquilo “que nós somos ou daquilo que nós imaginamos
realmente ser” (LOURENÇO, 2003, p. 352). Com efeito, a proposta antuniana insiste na
renúncia ao mito – qualquer tipo de mito, tanto como narração fabulosa quanto como
dimensão explicativa dos universais e, portanto, da História.
Com efeito, na produção literária das últimas décadas do século XX, os
mecanismos do mito não se limitam a re-propor um saber antigo, mas reescrevem as
histórias culturais de povos e imaginários. Esses mecanismos continuam dialogando
entre passado e presente. Como nas literaturas de expressão portuguesa pós-colonial,
que abarcam mitos das mais diversas proveniências (mitos indianos e caribenhos, mitos
da oralidade, de origem africana, e da cultura de massa), a produção literária de Lobo
Antunes está marcada profundamente pela subversão do mito e pela experiência
histórico-subjetiva dos personagens. Porém, longe de uma figuração mítica
apaziguadora ou de uma idealização positiva, salvadora, esses mitos nunca deixam de
revelar um caráter “mortífero”: a infância, a colônia, a nação portuguesa, o intelectual, o
registro autobiográfico – tudo é arrebatado pela potência negativa e destruidora do mito
que, não podendo responder mais de sua própria função, é lido ora cinicamente ora
desesperadamente. Em Lobo Antunes, o mito é um dispositivo destituído de toda força
explicativa da História. Nesse sentido, seguindo as proposta literárias de autores tais
como Joseph Conrad, Fiodor Dostoievski e Claude Simon, o narrador português faz da
experiência subjetiva o ponto norteador da busca de um sentido, enquanto faz da
memória o lugar privilegiado da escrita – um “lugar”, porém, “de morte”,– uma
“tanatografia” (uma “casa de mortos”, poder-se-ia dizer com Dostoievski), em que a
escrita se regenera a partir “da abominação da realidade” (Conrad).
Observar a hermenêutica do mito na literatura de António Lobo Antunes
significa entrar em contato com um sistema literário não apenas polifônico, mas
sinfônico que, apesar do espaço outorgado à história e ao passado, manifesta um
movimento contraditório e insolúvel para com a tradição. Os conflitos mitológicos, que
a proposta literária antuniana apresenta, “escrevem” o (não) conhecimento da
existência, instaurando-se, em um projeto de pôr em xeque o passado, através de
variações incessantes de mitologemas que formam um continuum que invoca mais a
desagregação que a unidade.
António Lobo Antunes, dialogando com Faulkner, Dostoievski e Conrad, afina,
portanto, o seu projeto literário como tanatografia, isto é, pulsão e tensão do Vazio para
o Texto.
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Quando por fim, o sol deixou de troçar-me, foi a vez do gás se divertir à
minha custa. Sinceramente, a maldade das coisas ultrapassa-me: já não falo
dos espelhos, sempre prontos a descobrirem-nos defeitos, falo das tampas de
caneta que rebolam sabe Deus para onde, do porta-moedas nunca no sítio
onde o deixamos, dos chinelos de que só encontramos o direito quando os
procuramos com o pé, das chaves de casa que saíram sozinhas da fechadura
da entrada e nos obrigam a despejar todos os bolsos e todas as carteiras na
mesa [...] A perfídia das coisas confunde-me: ali estão elas à nossa volta,
inocentes, alinhadas, caras, com seu falso ar de submissão e competência, a
sua pretensa utilidade, as suas fichas, os seus botões, os seus cromados, as
suas marcas estrangeiras, os seus desdobráveis em quatro idiomas [...] que
ensinam, prolixamente, a mexer-lhes e tudo o que conseguimos é que nos
aumentem para o triplo a conta de luz [...] ou que, na melhor das hipóteses,
nos eletrocutem de uma vez por todas (LOBO ANTUNES, 1999, pp. 59-60.
O grifo é meu).
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não sou capaz de dizer tu está a ver, por mais que tente não sou capaz de
dizer tu (LOBO ANTUNES, 1999, pp. 126-127. O grifo é meu).
Nós leitores não temos nada como conclusão, a não ser as ruínas de um
sonho, ou pesadelo, ou uma noite de insônia fruto de uma construção
lingüística sofisticada que tem um estranho poder de nos fazer participar
desse mundo a um tempo anódino e maravilhoso, uma linguagem
extremamente trabalhada, em que os seres e as coisas são finamente
articulados para simular uma desarticulação generalizada.
Com efeito, é difícil, e quase sem sentido, propor conclusões à escrita-limite de Lobo
Antunes. Também o leitor se encontra à margem de uma desarticulação existencial. Ele mesmo
é outro “crocodilo” que, chorando pelas incoerências, inconsciências e aberrações da existência,
se imerge numa imensa zoologia da palavra, se reconhecendo, para falar com as palavras de
Derrida, na passagem das fronteiras entre o humano e o animalesco: “ao animal em si, ao animal
em mim e ao animal em falta de si-mesmo, a esse homem de que Nietzsche dizia,
aproximadamente, não sei mais exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um
animal em falta de si-mesmo” (Derrida, 2002, p. 15).
O leitor pode ter vergonha de se identificar, talvez, com as vidas não-humanas das
personagens do romance, uma vergonha “especular, injustificável, inconfessável” (Derrida,
2002, p. 16). Porém essa vergonha é natural, zoológica, no sentido de uma percepção instintiva,
animalesca da falta que se é, e que, no espaço ambíguo e, ao mesmo tempo milagroso da
literatura, o romance permite desvendar. Com a “exortação” de Lobo Antunes, somos também
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culpados de uma História que não conseguimos nem entender nem modificar. Claro, modificar
os eventos é um ato não-humano. Mas poderia ser ainda possível. Pelo menos, nas trilhas da
ficção. As quatro mulheres do texto de Lobo Antunes não podem alterar nada porque elas vivem
uma liberdade atrofiada, sufocada. Como os leitores, elas também são nuas. Desnudadas /
desnudados do próprio racionalismo e reveladas na própria sensualidade (Eros) e na própria
pulsão à morte (Tanatos). Apagados também esses últimos mitos, o romance permite enxergar a
miséria de Mimi, Celina, Fátima e Simone, e também dos leitores – que se reúnem num único e
sinfônico: “querida Gisélia”. Saber-se “crocodilos” é a implicação de uma renascença
paradoxal: ser testemunha privilegiada e, ao mesmo tempo, perceber-se como pergunta
inextinguível:
Porque motivos as coisas morrem dentro de nós dado que não parece ser
lentamente, devagarinho, damos conta de súbito que estamos fartas, não
sentimos senão aborrecimento, fastio, vontade de ficar sozinha (Lobo
Antunes, 1999, p. 119).
REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Exortação aos crocodilos. Lisboa: Dom Quixote, 1999.
ARNAUT, Ana Paula. Entrevistas com António Lobo Antunes. Lisboa: Almedina, 2008.
BYLAARDT, Cid Ottoni. “O espaço babilônico da escritura antuniana”. In: Scripta.
Belo Horizonte, v. 11, n. 20, pp.309-348, 1º sem. 2007.
BLANCO, Maria Luisa. Conversas com António Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote,
2002.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo, UNESP, 2002.
DERRIDA, Jacques. Morada Maurice Blanchot. Lisboa: Vendaval, 2004.
JÚDICE, Nuno. “Um livro de excepção”. In: Jornal de Letras, Artes e Idéias de Lisboa.
Ano XX. N.º 783, 4 de outubro de 2000, p. 7
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Desde finais dos anos sessenta do século XX, foi se recuperando na Galiza a
atividade teatral em língua galega, atividade que conhecera importantes avanços nas
primeiras décadas de século, mas que o regime ditatorial nascido do golpe de Estado de
1936 reprimira até a extinção1 ―unicamente sobreviveram representações bilingues de
certos coros populares, em cujo mantimento participava a própria ditadura, que
transmitiam estereótipos consagradores da diglossia2 até chegar, nalguns casos, ao
escárnio dos galego-falantes3.
Foi precisamente no seio do movimento associativo de contestação ao
franquismo4 onde abrolhou este interesse pelo teatro, porquanto se via nele uma
magnífica ferramenta para a consecução de um espaço público de intercâmbio de ideias
e de participação cidadã que a ditadura negava. Assim, foram frequentes as associações
da Galiza que contavam com um grupo teatral que, ora representaram desde o seu
nascimento no idioma próprio da Galiza, ora deram rapidamente o passo para o
monolinguismo cénico nessa língua.
Aliás, o ativismo antifranquista que envolvia o realizado por estes
agrupamentos, levou-os ao re-encontro com a reivindicação nacional galega. O «clima
de opressão nacional»5 propiciado pela ditadura era também implicitamente contestado,
a começar pela reivindicação da língua galega.
O elemento aglutinador de todo este movimento teatral vinculado ao
associacionismo foi a celebração anual, entre os anos de 1973 e 1980, da Mostra de
Teatro Galego e do Concurso de Textos Teatrais de Ribadávia (Ourense), promovidos e
organizados pela Associação Cultural «Abrente», dessa localidade. Este festival
funcionou como catalisador e alto-falante deste fenómeno cénico e serviu para pôr em
contato os diferentes grupos de teatro que foram aparecendo por toda a geografia da
Galiza. Ignorantes até essa altura da existência de infinidade doutros agrupamentos do
mesmo teor, os grupos teatrais tomavam consciência do processo constituinte que se
*
Professor da Universidade da Corunha (Galiza – Espanha).
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«imperialistas», posto que trasladavam aos palcos galegos uma sociedade muito
diferente.
Com tudo, em Ribadávia apresentaram-se ao público até dezessete espetáculos
baseados numa tradução17, dos quais, como já vimos, quatro eram tirados da literatura
dramática luso-brasileira.
Se analisarmos os três grupos que encenaram os textos portugueses e brasileiros
―não apenas em Ribadávia, mas em todo o período 1973-1984―, vemos que se trata
de coletivos de muito diferente teor.
O primeiro deles, DITEA, era um pouco especial, posto que não se tratava
propriamente de um grupo teatral dos nascidos nas décadas de sessenta e setenta no seio
de uma associação. DITEA era um exemplo na Galiza dos «teatros de câmara», grupos
de elite culta que desejavam fazer um teatro muito afastado do que o regime franquista
autorizava realizar às companhias comerciais e que a ditadura consentia sempre que
ficasse garantida a nula incidência social do seu trabalho ―só estavam autorizadas a
realizar uma única função não comercializável dos seus espetáculos, número que, com a
pertinente permissão governativa, podia excepcionalmente chegar a três.
Como qualquer outro teatro de câmara, DITEA encenou textos das dramaturgias
contemporâneas e grandes clássicos. Porém, a sua incidência pública foi muito maior do
que qualquer outro coletivo deste teor a través dos autos sacramentais que representava,
em espanhol, nas grandes datas do calendário religioso nas praças de Santiago de
Compostela, com grande aparato cênico ―coros, balés, cavalos em cena, fastuosos
decorados…―, até o extremo de a Câmara Municipal os considerar mais um elemento
das festas. Em 1970 deram o passo de encenar em galego ―passo que resultou
definitivo até hoje mesmo― e somaram-se ao movimento refundacional da altura.
O grande dinamizador e alma mater de DITEA foi Agustín Magán, um home de
extensa cultura teatral conhecedor doutras literaturas dramáticas diferente da espanhola,
incluída a luso-brasileira ―algo não muito frequente na triste Espanha desses anos.
Dele eram as adaptações dos textos de Gil Vicente e João Cabral de Melo Neto ―este
último adaptado primeiro ao espanhol em 1970.
O segundo dos agrupamentos, o viguês Artello, contou durante um tempo entre
os seus integrantes com o galego-brasileiro Ramón Rodríguez Guisande18. Porém, a
única encenação realizada a partir da literatura dramática luso-brasileira semelha que foi
fruto do conhecimento que desse texto tiveram através do realizado um tempo antes por
DITEA.
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estreados, só na década de 90, mais de setenta autores não galegos procedentes de uma
vintena de dramaturgias ―francesa, inglesa, alemã, italiana, suíça, espanhola, catalã,
grega, latina, croata, norueguesa, checa, irlandesa, austríaca, norte-americana, sueca…
Como dado contrastivo diremos que em dez anos (1990-1999) foram encenados três
autores polacos ―Tadeus Rózewicz, Witold Grombowicz e Stanislaw Witkiewicz―,
em oposição a um único autor brasileiro e um único autor português em vinte e cinco
anos.
Surpreende também que a companhia institucional do teatro galego, fundada em
1984, não estreasse título nenhum das literaturas portuguesa e brasileira até 1995 e
surpreende mais ainda que não o tenha feito mais nunca. Nos seus vinte e cinco anos de
vida, o Centro Dramático Galego tem estreado títulos procedentes das dramaturgias
alemã, francesa, italiana, irlandesa, inglesa, austríaca, norueguesa e as clássicas grega e
latina. Por fornecer apenas um dado, foram estreados neste tempo pelo CDG títulos de
seis autores franceses ―Alfred Jarry, Molière, Roland Topor, Jean-Luc Lagarce,
Bernard-Marie Koltès e Albert Camus.
A indiferença secular da Galiza pelo que acontecia em Portugal ―e no Brasil―,
assim como a ignorância das suas dramaturgias nacionais, poderia ser corrigida
mediante uma inteligente política de intercâmbios e parcerias. Esta seria, ao nosso ver,
uma magnífica via para pôr em circulação sotaques e variedades linguísticas do «galego
no mundo» muito difíceis de escutar na Galiza por ficarem sempre fora dos médios
audiovisuais ―algo que não acontece com as variedades do espanhol, divulgadas
permanentemente.
As experiências, neste sentido, foram, nestes vinte e cinco anos, muito limitadas
e de muito diverso teor. Vamos nos deter em duas ―muito recentes― vividas no seio
do próprio Centro Dramático Galego.
A primeira foi a encenação em 2008 de A boa persoa de Sezuán, de Bertold
Brecht, dirigida pelo português Nuno Cardoso, com o também português Hugo Torres
no elenco e com uma importante equipa técnica lusa. Não houve permeabilidade. A
colaboração foi estritamente em termos de produção artística, excluída qualquer vontade
de diálogo real entre duas variantes lingüísticas de um tronco comum. O modelo de
língua apresentado nos palcos estava muito afastado do propósito de achegar o galego e
o português e sempre apresentava as soluções linguísticas que mais se achegam ao
castelhano, deixando de parte as que coincidem com o brasileiro ou o português.
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um problema ainda não resolvido e que não tem traças de se resolver. E, por isso, evita-
se o problema não encenando ―ou publicando― teatro luso-brasileiro.
Ainda hoje é muito longa ―e negra― a sombra dum franquismo que baniu de
vez as elites cultas galegas que durante o século XIX e começos do XX defenderam a
necessidade de um relacionamento estreito com Portugal e a lusofonia.
REFERÊNCIAS
Biscaínho Fernandes, Carlos Caetano. Un país desde as táboas. 125 anos de teatro
galego. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 2008.
Calvet, Louis-Jean. La guerre des langues et les politiques linguistiques. Paris: Payot,
1987.
Even-Zohar, Itamar. «Introduction». Poetics Today, Tel Aviv, v. 11, n.1, p. 1-6, 1990a.
Even-Zohar, Itamar. «Polysystem Theory». Poetics Today, Tel Aviv, v. 11, n.1, p. 9-26,
1990b.
Even-Zohar, Itamar. «The “Literary Sistem”». Poetics Today, Tel Aviv, v. 11, n. 1, p
27-44, 1990c.
Fernández Prieto, Lourenzo. Século XX. Unha economía: dúas sociedades. A Gran
Historia de Galicia XIII, vol. 2. Santiago de Compostela: La Voz de Galicia, 2007.
Lourenço e Vizcaíno. Talía na crónica de nós. Dez anos de teatro galego (1990-1999).
Ourense: Editorial Abano, 2000.
Lourenzo, Manuel. «La salida del callejón». Pipirijaina, Madrid, n. 6, p. 27-29, 1978.
Máiz, Bernardo. Galicia na IIª República e baixo o franquismo. Vigo: Xerais, 1988.
Tato, Laura. Historia do teatro galego das orixes a 1936. Vigo: A Nosa Terra, 1999.
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NOTAS
1
O franquismo executou uma intensa atividade repressiva contra qualquer elemento de coesão social
diferente dos que ele próprio apresentava como argumentos da «Sacrosanta Unidad de la Patria», a
começar pela língua castelhana. Procedeu-se à «destrución dunha sociedade civil traballosamente
articulada nos decenios previos a 1936» [Fernández Prieto 35] e ao desmantelamento da esfera pública,
fundamente molesta para as ditaduras. Nos territórios com língua própria, como a Galiza, à desarticulação
da sociedade civil praticada pela ditadura acrescentou-se o apagado sistemático de tudo aquilo que
pudesse operar na configuração da identidade nacional.
2
Para o termo diglossia: Payot, 1987, p. 43-49.
3
Cfr. Biscaínho, 2008, p. 67-73.
4
Os governos tecnócratas posteriores a 1959, com os que a ditadura almejou sacar Espanha da autarquia
em que vivira até entom, já não reprimiriam de uma maneira tão enérgica as tentativas de ganhar para a
cidadania algum espaço para o intercámbio de ideias [Máiz 134-135]. Desta maneira, en 1964 foi
promulgada uma Lei de Associações – Decreto de 25 de Janeiro de 1941 sobre a regulação do exercício
do direito de associação, publicado no Boletín Oficial del Estado o 6 de Fevereiro– que, embora fosse so
um estrito control governativo, propiciou o xurximento de associaciçons por toda Galiza.
5
Lourenzo, 1978, p. 27.
6
Para o conceito de sistema vid. Even-Zohar 1990a, 1990b e 1990c.
7
Biscaínho, 2007, p. 35-49.
8
«Segundo algúns membros de Abrente, os debates nacerían concretamente no ano 74, cando a brasileira
Nitis Jacom decidiu de xeito espontáneo subir ó escenario e provocar un coloquio co público. A partir de
entón sucederíanse outros que pasaron a ser algo tan importante como a propia Mostra […]» [López Silva
e Vilavedra 2002: 116].
9
O termo foi introduzido por Torres Feijó [2000 e 2004], no marco conceptual da Teoria dos
Polissistemas [Even-Zohar 1990a, 1990b e 1990c] aplicada á cultura.
10
Numa conversa sobre o mercado para o teatro editado, o dramaturgo Camilo Valdeorras sustinha em
Ribadávia que «acaso la solución esté en abrir mercado por el área galaico-portuguesa o incluso
brasileña» [M.P.C., 1978, p. 44].
11
López Silva e Vilavedra falam de «unha vontade de autolexitimación do propio traballo teatral a través
da opción por textos e autores simbólicos e canónicos» [López Silva e Vilavedra, 2002, p. 38].
12
Tato, 1999, p. 78-101.
13
O Centro Dramático Galego nasceu «como centro artístico técnico para o desenvolvemento da
actividade teatral de carácter profesional en Galicia» [Diario Oficial de Galicia 21.4.86].
14
López Silva e Vilavedra, 2002, 298-304.
15
Representaram-se, ademais, dois espetáculos trazidos a Ribadávia pelo grupo português Seiva Trupe,
único grupo não-galego convidado ao certame, no ano 1979 ―Restos, de Bernardo Santareno, e
Máquinas assassinas, de Miguel Barbosa.
16
Chegava-se a extremos como o de Pequeno Obradoiro de Teatro Galego, quando na autoria da sua peça
De ti, de min, de todos nós (1978), figurava: «Xosé Ruibal, Bertold Brecht, coletiva». Na verdade, era o
grupo inteiro o que definia uma dramaturgia ―sobre textos próprios ou não― e desejava-se deixar
constância deste facto.
17
Para além das obras portuguesas e brasileiras, em Ribadávia apresentaram-se dois clássicos gregos
―Teatro Circo encenou em 1973 Hipólito, de Eurípides, e em 1978 DITEA subiu ao palco A Paz, de
Aristófanes―, um Molière ―O menciñeiro á forza, pelo grupo de Teatro do I.E.M. de Vilalba, em 1973–
, um Shakespeare –o Macbeth apresentado por Teatro Circo em 1975–, um espetáculo com textos de
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Brecht, entre outros –De ti, de min, de todos nós, representado em 1978 pelo Pequeno Obradoiro de
Teatro–, um texto de Ingmar Bergman –O retábulo da peste, que O Facho levou em 1980–, uma peça do
catalão Jordi Teixidor –DITEA fez em Ribadávia O retábulo do flautista em 1976– e seis espetáculos
sobre textos da literatura espanhola ―Historia do home que se volveu can, de Oswaldo Dragún, encenada
em 1973 por Auriense e em 1978 por Alén; A pancarta e O xeneraliño, de Jorge Díaz, apresentadas
respetivamente por Histrión 70 e Máscara 17 em 1978 e 1979; Divinas verbas, de Valle Inclán, a cargo de
Xiada em 1978, e Pic-nic, de Arrabal, por Artello em 1979.
18
Ramón Rodríguez nasceu em Vigo em 1950 e morou no Brasil desde os três anos até o seu regresso a
Galiza em 1975 [Caderno do espectáculo da Companhia Luís Seoane, nº 1: 4].
19
Entre os objetivos da Companhia Luís Seoane figurava publicar uma série de boletins dedicados às suas
encenações, que recibiram o nome de Cadernos do espectáculo. Assim o explicavam no seu primeiro
número, publicado em 1980: «Por cada espectáculo programado pola Compañía Titular, ésta publicará un
Cuaderno do Espectáculo, (Sendo éste o primeiro número), que levará ademais do texto da obra
presentada, unha série de textos de “apóio”: desde estudo da obra e autor, posta en escena, etc., até
escritos teóricos e información, dentro dun rigoroso carácter monográfico». A série apenas conheceria
cinco números.
20
«Desde as primeiras entregas, os boletíns ―ao igual que os espectáculos que recenseaban―
evidenciaron algúns dos principios da Compañía Luís Seoane: monolingüísmo; apertura cultural ao
mundo lusófono e inclinación por un reintegracionismo lingüístico non traumático» [Biscaínho 2007:
226].
21
Vid. Biscaínho, 2007, p. 446-451.
22
Vid. Biscaínho, 2007, p. 440-445.
23
Cfr. Lourenço e Vizcaíno, 2000, p. 115-176.
24
Artello-Teatro alla Scalla 1:5, por exemplo, encenou em 1995 A do libro (Aventuras de Perello Chora-
que-logo-bebes), baseada nas narrações que o português José Gomes Ferreira agrupo sob o título João
Sem Medo. Mais recentemente Teatro Nu, co espetáculo Coa palabra na lingua, estreado en 2009 e
criado a partir de poemas galegos e portugueses.
25
Um dos atores brasileiros que chegaram na década de oitenta à Galiza com Arte Livre, Marcos Orsi,
incorporou-se deste então na mundo teatral –e audiovisual– galego e hoje é, a todos os niveis, um ator
galego mais.
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CAMÕES NO BORDEL
Estou bastante de acordo com Nickie Roberts, que assim se chama a citada. Talvez
deveria acrescentar apenas que, de facto, antigas putas a escreverem sobre o assunto vai
sendo uma das profissões mais novas do mundo. De resto, confesso estar mais obcecado
por Camões que pelas colegas de profissão de Roberts, sem deixar de reconhecer que elas
podem ser mulheres interessantes. O próprio Camões também deveu achar, como em breve
se verá.
Para acabar esta justificativa dos apelos, devo dizer que inúmeros autores das Letras
de Portugal nos reclamam aos galegos, de várias vertentes e para além da língua. Porque
estamos neles num mesmo carácter e sentimento geral de olhar o mundo; porque estão em
nós, nos nossos autores mais representativos, embora nem sempre isso tenha transcendido.
E, de entre eles, é sem dúvida Luís Vaz de Camões (1525?-1580), o maior poeta em
Português de todos os tempos, um dos que mais nos chama pelo seu alargado impacto, não
apenas como o autor do poema épico Os Lusíadas (1572), não apenas pela sua poesia lírica
postumamente publicada, mas também por ser um “descendente de emigrantes galegos”.
Quanto ao primeiro, o seu impacto literário está bem cedo na Galiza e talvez acima da
vasta influência inpinginda no resto de toda a literatura Ocidental. Passa por nomes que
vão do célebre “Soneto de Monterrei” (mesmo durante algum tempo atribuído a Camões),
ao soneto barroco de Gómez Tonel, recreia-se em Rosalia de Castro e em Curros, alarga-se
epicamente em Vaamonde Lores, vai estando aqui e ali em toques mais leves, e talvez
(*)
Professor Titular de Literatura Portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela, Galiza,
Espanha.
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chega a estar por trás, seguramente, até dos próprios sonetos de Avilés de Taramancos. Por
ele e para ele voltaram os olhos de Murguia até Pedrayo, por não mentar os Alfredos
Vicenti, Lugris Freire ou Filgueira, nem aludir a outros galegos e galegas que na
actualidade continuam revisitando-o de diversos pontos de vista para aprofundar no seu
conhecimento (Isabel Morám, Dasilva, Herminio Barreiro). Isso persegue também este
trabalho. Porque a apropriação do autor, e não só por motivos estéticos, resulta mais
legítima tendo em conta a raiz mencionada. Raiz que nos permitiu lançar um olhar oblíquo
à sua biografia, mas não despremeditadamente, pois é o espaço que vai servir aqui como
ponto de passagem ao resto da exposição. Nenhum planeta realmente novo pretendemos
comunicar, queremos apenas colocar ênfase na forma de olhar os que há, para ver bem, e
de modo natural contornar a ocultação que se tem praticado acerca da realidade, já não
digo histórica do tempo de Camões, mas dos referentes dela nos seus versos, no que se
refere à presença do sexo e da prostituição. Todos os dados foram já apresentados dispersa
ou pudorosamente antes, e até encontramos em Jorge de Sena ou Aquilino Ribeiro o olhar
do crítico –e ao tempo do criador– com pronunciamentos claros sobre o assunto e sem
moralismos na língua. Refiro-me, por exemplo, aos estudos de Sena sobre o vocabulário de
Os Lusíadas, em capítulos como “Amar, Amor, Amado, Amante e mais família”, ou “Da
pudícia e partes correlatas”, ou apreciações sintéticas que ainda citaremos do seu Trinta
anos de Camões (Sena, 1980 e 1982). Na mesma linha, e para um melhor entendimento da
obra camoniana neste século, achamos legítimo e perfeitamente provável retomar ênfases
deste teor: as prostitutas são mulheres interessantes e nelas aprendeu o autor muito sobre o
Amor; nas casas onde elas trabalhavam, assim como na cultura clássica que fornece essa
mesma realidade social assumida e ritualizada, está o referente do magnífico lupanar que é
a Ilha também dos Amores (agora em plural). As possibilidades de análise são mais das
que aqui podemos expor, mas poucas e boas gotas poderão mostrar que chove.
1. O SOLDADO E A PROSTITUTA
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documentos descobertos no século XIX, com alguma investigação acerca da sua família
desde então; e alusões muito abstractas à sua vida e obras. Provavelmente nasceu em
Lisboa (outras cidades o reclamam) quando a expansão portuguesa estava no auge. As
pesquisas modernas esclareceram que não foi um burguês promovido ou cavaleiro pícaro,
mas que estava bem aparentado com uma empobrecida aristocracia. A sua família tinha
emigrado da Galiza para Portugal com Vasco Pérez de Camões (tetra-avô de Luís Vaz e
ele mesmo poeta, tendo-se perdido as suas obras) por motivos políticos, no último quartel
do século XIV. Poucos poetas europeus do seu tempo atingiram tão vasto conhecimento de
cultura clássica e moderna, assim como de filosofia; e, sem embargo, não há provas de que
tenha estudado na universidade de Coimbra, ou sequer que tenha seguido quaisquer
estudos regulares. Na juventude teria estado nos territórios portugueses de Marrocos,
exilado ou apenas porque era onde os jovens portugueses iniciavam uma carreira militar
que os qualificava para os favores reais. Partiu para o Oriente quando era um jovem poeta
entre muitos; ausente de Portual dezassete anos, quando voltou, muitos dos seus grandes
contemporâneos tinham morrido e a prevalecente orientação da Contra-Reforma já não
estava de acordo com o aberto paganismo da sua obra. “Amor e Desconcerto do mundo”
citam-se até à saciedade como núcleos dela, e, quanto ao Amor, acham-se argumentos de
um neoplatonismo mas também de uma carnalidade evidente. A mulher é sempre
protagonista, mas
Seguramente assim foi. E para além de um amplo território onde cabe o devaneio
teórico existe outro em que cabem afirmações seguras. O devaneio tem mais espaço na
poesia lírica: a Caterina, crua ninfa, cujo nome se transformou no feliz anagrama de
Natércia –que não tem origem católica nem árabe, que nasce apenas da paixão de Camões–
, e que assim ficaria consagrado e perdurável e recolhido nos dicionáriosi, também pode
muito bem ter sido prostituta. Mas será difícil algum dia prová-lo. Sabemos, sim, pelas
redondilhas correspondentes, que outra das suas paixões teria sido preta, e a declarada
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Camões, com saudades das mulheres de Lisboa, manda a seguir recado para elas
nesta segunda carta, apesar de existir ainda alguma formalidade no trato com o
destinatário. Mas é nas outras duas, ambas escritas de Lisboa e ambas destinadas a um
amigo, onde se fala abertamente de mulheres e prostituição.
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A Carta III, após breve preâmbulo referido à vida rústica que teria abordado o seu
interlocutor, concentra-se quase exclusivamente nas mulheres em volta. Afirma que “há cá
dama tão dama que, pelo ser de muitos, se a um mostra bom rosto, porque lhe quer bem,
aos outros não mostra ruim, porque lhe não quer mal (Camões, 1973 p. 250). Trata-se de
um tipo de mulher ao redor da qual está “ua dúzia de parvos, tão confiados que cada um
jurara que é mais favorecido que todos”, parvos intermediados por “alcoviteiras”. Refere-
se ainda a um segundo tipo,
Outras damas há cá que, ainda que não sejam tão fermosas como Helena,
são altivas, como são uas beatas de São Domingos e outras que conversam os
Apóstolos. Estas se geraram de viúvas honestas e de casadas que têm os maridos
no Cabo Verde; assim que, uas por casar e outras por lhes Deus trazer os
maridos, de cuja vinda elas fogem, nunca lhes escapam as quartas-feiras em
Santa Bárbara, as sextas em Nossa Senhora do Monte, os sábados em Nossa
Senhora da Graça, dias do Espírito Santo. (Camões, 1973 p. 252).
Era aos Jesuítas que por antonomásia se dava, no tempo de Camões, a designação de
apóstolosiv. E por se existia alguma dúvida, informa-se que
Os Cupidos destas não são dos bem vestidos, que namoram com palavras,
mas uns de capuzes frisados e de pelotes de petrina ao olivel do umbigo, sem
pantufos. Estes medram por sisudos e dissimulados, afora as contas. (Camões,
1973 p. 253)
Também cozem neste forno frades de São Francisco, que andam com as
calças desatacadas e os lombos recheados, e assi os de Santo Elói, que têm que
dar, ainda que o Dr. Martim Vaz do Casal diz que são anexos a mulheres
fidalgas, pela comunicação e conversão das confissões, e eu digo que jogam de
tôdalas armas, porque todos somos del merino. (Camões, 1973 p. 253)
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não pode haver engano. Neste jogo digo que é ao contrário, porque vereis estar
um rosto que é a castidade de Lucrécia luxuriosa, ua testa de alabastro, uns olhos
de mordifuge, um nariz de manteiga crua, ua boca de pucarinho de Estremoz;
mas, o pueri, latet... E se vos disserem que estas pelam os que as têm, assentai
que é fábula, porque eu vi muitos não ter nada de seu, e agora os vejo com mulas
e cavalos. (Camões, 1973 p. 253)
Camões parece saber bastante sobre o assunto (“todo o destas senhoras é brando,
rostos novos e canos velhos”). E o destinatário da carta também, pois deve estar a par, pelo
menos, como para receber as novas concretas de algumas “conseguintes vossas amigas”,
A esta torre chamaram Acolheita, pela fortaleza dela. Mas o filósofo João
de Melo lhe pôs nome o Rompeu, porque é de três paus, a saber: de Francisca
Gomes, a Tarifa, e Antónia Brás, afora a bola, que é Maria da Rosa. Eu o crismei
há poucos dias e lhe pus o nome de Mal-cozinhado, porque sempre achareis nele
que comer, quer bem, quer mal. (Camões, 1973 p. 255)
A propósito de Antónia Brás, “a terceira ninfa”, que “foi levada à galera Nueva,
aonde foram atados seus cabelos de ouro ao pé do mastro”, ainda escreve
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a puta leu outra regra que está mais abaixo, que diz: Atenta bem o que fazes, não
te fies de rapazes. E dês que caiu no entendimento dela, disse ao seu homem:
–Não me sirvais, cavalheiro: i-vos con Dios, que eu mudarei o vinte a
parte onde não digam os de Alfama que não tenho guardador. De modo que já
hão deixado os três cupidos o Aleu. (Camões, 1973 p. 263)
O trato com damas cujos favores só por dinheiro se conseguia, damas de aluguer e
prostitutas, assim como familiaridade com casas onde o comércio sexual se praticava,
inclusive sem a prova das Cartas, seria uma realidade presumível na vida de um soldado
como Camões. Sobre os cálculos que se tem feito da necessidade das prostitutas segundo a
população, a presença de tropa de terra ou de mar altera notavelmente as contas. Seguindo
o método de Dugniolle, o respeitável médico português Santos Cruz (vice-presidente do
Conselho de Saúde Pública do Reino na época), depois de calcular o número provável de
prostitutas que Lisboa contém, e tendo em conta a existência de uma guarnição muito
variável nos diferentes tempos, escreve,
Podemos entretanto dizer com segurança que sempre deve ter um certo
aumento o número das casas públicas e das prostitutas para esta cidade, além do
que acima fica estabelecido; não só em atenção a que sempre aqui existe mais ou
menos tropa, que faz a guarnição da capital, como também que esta cidade é um
porto de mar dos da primeira ordem da Europa, e por isso muito comerciante, o
qual pelas considerações que expenderemos em lugar competente devem
aumentar mais as ditas casas e mulheres prostitutas. (Cruz, 1984, p. 122)
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2. VÉNUS E BACO
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da casa. E, quase em simultâneo, nasce a prostituição sagrada, que chega a ser a essência
de certos cultos de deuses e deusas, que a ordenavam, permitiam ou alentavam. Vénus é
uma desta deidadesvi.
A época da prostituição legal, organizada pelo estado, chegou já na Grécia de Sólon
(governador de Atenas na viragem do século V a. C.), mas a deusa continuava lá em lugar
principal. Segundo algumas interpretações pudorosas, a legalização teria motivos
preventivos,
A Vénus equivalente herda este papel e ainda ganha grandiosidade entre os romanos,
pois em paralelo à sua “estrutura elegante e lógica”, floresce “uma caótica profusão de
práticas sexuais”, de maneira que “Catalogá-los como perversos é pouco, porque eles
desprezavam toda e qualquer noção de moral ou convenção sexual e desviavam-se de todas
as normas inventadas até à data” (Roberts, 1996, p. 46). Até o imperador Constantino abrir
passagem ao cristianismo para se constituir em religião de Estado, as atitudes dos romanos
mantiveram-se relativamente estáveis, “La mayoría de la gente seguía considerando el sexo
un placer maravilloso, y el hecho de alcanzar el éxtasis con alguien hermoso, ya se tratara
de un hombre, de una mujer, de un adolescente o de un adulto, se concebía como un don de
los dioses y como uno de los momentos más importantes de la vida” (Clarke, 2003, p.
157). A infinidade de pinturas eróticas que se iam achando em Pompeia fazia que, até a
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descoberta do principal prostíbulo da cidade, cada vez que um arqueólogo dava com uma
pintura concluísse que o edifício era um prostíbulo, ou que pelo menos a dependência
estava destinada à prática da prostituição,
Não era assim, a pintura erótica era um indício da categoria do proprietário, ainda
que as inscrições anunciando este tipo de serviços aparecem em grande quantidade de
edifícios. Os preços, por certo, “oscilan entre 2 ases (el precio de una copa de vino
ordinario) y 16 ases” (Clarke, 2003, p. 63), o que demonstra que em Pompeia a
prostituição era asequível para todo o mundo. Entre as pinturas eróticas, não faltam
magníficas representações do deus Príapo, como a que preside (com dois enormes falos,
para enfatizar o seu potencial sexual) o citado Lupanar, dando a benção às prostitutas e aos
seus clientes. Príapo é o deus grego da fertilidade, filho dos ardores com que Afrodite
recebeu o vitorioso Dionísio, e teria nascido com a fálica deformidade (sempre é
representado com um pênis de tamanho exagerado) por causa das intrigas da ciumenta
Hera. Protetor dos rebanhos, produtos hortícolas, uvas e abelhas, alguma proximidade
guarda, portanto, também com Baco, o equivalente do seu pai Dionísio. Mas o papel
masculino já estava atribuído n’ Os Lusíadas, como vimos, e a personagem escolhida por
Camões para patrocinar a aventura náutica lusa, de entre o santoral romano, é a deusa
consentidora e até ordenante da prostituição. Um papel prostibular em que insiste a
história,
...a prostituição estava ligada ao culto da deusa Vénus que era vista como
a protectora das prostitutas. Segundo Barbara Walker, os templos de Vénus eram
“escolas de instrução nas técnicas sexuais, sob a tutela das venerii ou prostitutas-
sacerdotisas”, que ensinavam uma via sexual-espiritual aparentemente similar ao
tantrismo indiano. (Roberts, 1996, p. 58)
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tomar parte en ella, la cubrió en cierto modo con el velo de la diosa que la
protegía. (Dufour, 1999, p. 26)
Camões, como se fosse o sacerdote de um rito literário, também usou no seu poema o
véu da deusa para cobrir uma realidade marinheira que teria observado mais de uma vez,
ainda que Vénus tivesse outros nomes no seu tempovii. Esse véu desaparece na Ilha dos
Amores. Hernâni Cidade –ainda a braços com “as incongruências do mito no poema”–,
comenta o verso em que Camões risonhamente se refere à estranheza dos deuses marinhos,
vendo entrar no reino da água o rei do vinho, e afirma retoricamente que afim desta ironia
pode ser “a cautela com que o Poeta, até a ficção da Ilha dos Amores, mantém os deuses
invisíveis para os nautas”. Ele interpreta esta estratégia como uma maneira de prevenir
suficientemente o leitor “para as estrofes em que o mito se dissolve e a realidade surge
perante ele com sua intrínseca magnitude épica” (Cidade, 1995, p. 114). Com efeito, algo
se dissolve nesse ponto diante do leitor, mas não sei se todo o mundo concorda em chamar
do mesmo modo a realidade que surge clara nesta Ilha.
3. A ILHA DE VÉNUS
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Esta Astarté, que llama la Biblia diosa de los Sidonios, tuvo altares no
menos impuros en la isla de Chipre donde los fenicios de Ascalon importaron
muy a los principios con su industrioso comercio la prostitución sagrada.
Hubiérase dicho que Venus, nacida de la mar, como el brillane planeta Urano,
que los pastores caldeos veían salir de ella en las serenas noches del estío, había
elegido por terrestre imperio aquelloa isla de Chipre, que unos dioses le
asignaron a su nacimiento, como por boca de Homero nos lo dicen las
tradiciones griegas. Era la Astarté de los fenicios, la Urania de los babilonios:
tenía en su isla veinte famosos templos, de los cuales los más célebres eran los
de Pafos y Amatunta, donde la prostitución sagrada se ejercía en mayor escala
que en todas partes.
Y sin embargo, las jóvenes de Amatunta habían sido castas y aun
obstinadas en su misma castidad, cuando Venus apareció en sus playas entre la
espuma de la mar: las pobres Propétidas menospreciaron a aquella nueva diosa
que se les presentaba completamente desnuda: la diosa, indignada, les ordenó
prostituirse con todo pasajero para expiar la mala acogida que le hicieran, y las
castas vírgenes hubieron de obedecerla con tanta repugnancia, que Venus, la
protectora de los amores, más indignada aún, hubo de transformarlas en piedras.
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Os mistérios mas secretos da deusa tinham lugar no bosque sagrado que circundava o
templo, afirma Dufour, e comenta que “Esta isla afortunada tenía además otros templos en
que el culto de Venus seguía los mismo ritos: en Cinyria, en Tamasa, en Afrodisia, en
Idalia sobre todo, la prostitución religiosa tomaba los mismos pretextos, si no las formas
mismas” (Dufour, 1999, p. 25). Desde Chipre invadiria todas as ilhas do Mediterrâneo,
penetrando na Grécia e na Itália, levada pela marinha mercante dos fenícios. A propósito
disto, e apenas como curiosidade, quero comentar que neste mesmo Agosto de 2009, o
canal 1 da TVE anunciava um programa referido a Chipre com a frase “Um país ilha para
desfrutar dos prazeres da vida”.
No poema de Camões, no momento em que os nautas se afastam da ardente costa
asiática, aparece a sua divina protectora para meditar para eles uma “alegria”, e o nome
dado é de “Deusa Cípria”, IX-18 (volta repetir-se em IX-43). As anotações explicam que
Vénus “tinha muitos devotos em Chipre”, mas é que Chipre é a terra natal da deusa em
versão grega: dos testículos de Urano, atirados à água pelo seu filho Cronos –que o teria
castrado segundo o mito teogônico–, água que começaria a ferver erguendo da sua espuma
(aphros) a própria Afrodite, aportando depois à sua ilha. Que melhor oferta da deusa que
colocar ao dispor dos nautas, no sentido significante e simbólico que tem a Ilha dos
Amores, a sua própria casa? “Já trazia de longe no sentido,/ Pera prémio de quanto mal
passaram,/ Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,/ No Reino de cristal, líquido e
manso”, escreve Camões (IX, 19, 5-8). A deusa já trazia de longe o pensamento e Camões
usa o artido determinado, “No Reino de cristal”, não o indetermiando “Um Reino”ix. É na
estância 21 quando aparece o indefinido (“alguma ínsula divina”), e o Reino Marítimo em
geral, mas advertindo “Que muitas tem no reino que confina/ Da [mãe] primeira co terreno
seio,/ Afora as que possüe soberanas/ Pera dentro das portas Herculanas”. A palavra “mãe”
não existe na primeira edição, e tem causado alguma controvérsiax. Retirada do verso, a
palavra “primeira” tem uma leitura remissiva muito esclarecedora. Mas não vale a pena
entrar na discusão, pois não vamos defender Chipre como referente físico, apenas como
referente simbólico. Quando a deusa fala ao seu filho para aprestar a ilha e a acolhida dos
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nautas, indica que o seu desejo é que lá "Os esperem as Ninfas amorosas,/ De amor feridas,
pera lhe entregarem/ Quanto delas os olhos cobiçarem" (IX-41). E acaba a fala remetendo
tanto para esse reino da sua própria nascença como à prole consequente deste encontro
sexual que prepara: "Quero que haja no reio Neptunino/ Onde eu nasci, progénie forte e
bela" (IX-42).igualadoramente para a sua própria nascença
A propósito da ordem da deusa às Propétidas para prostituir-se, que se menciona
numa citação anterior, quero recordar o papel didáctico da Vénus d’ Os Lusíadas em
comparação com o das matronas dos prostíbulos. A formação das prostitutas (cujo
precedente estará nas “escolas” que as mais velhas organizaram nos arrabaldos de Atenas
para ensinar as suas artes, visto que já não podiam concorrer na prática do ofício), podia
alcançar grandes refinamentos já entre os gregos, só reservado às prostitutas da “classe
alta”xi. As hetairas sabiam animar e manter toda a vivacidade do desejo, usando tácticas
que evitassem a satisfação sexual, pelo menos imediata:
Las viejas cortesanas eran por lo común las que enseñaban estos
artificios de conquista a las novicias que tenían colegiadas por su propia cuenta.
La célebre Neera había sido formada así en la escuela de Nicarete,
liberta de Carisio y mujer de Hipias, cocinero del mismo Carisio. Nicarete
compró estas siete niñas: Antia, Estratole, Aristoclea, Metanira, Fila, Istmiade y
Neera; y era muy hábil en adivinar las que se distinguirían por su belleza.
(Dufour, 1999, p. 122)
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Artes de conquista que a Vénus de Camões também recorda às suas pupilas, porque
“Desde el inicio de la época clássica, le corresponde a Afrodita, a veces con la
colaboración directa de Eros, inspirar esas mismas escenas de persecución amorosa”
(Calame, 2002, p. 85). Por outro lado, a deusa, que é a única deidade a ter um jardim
próprio –obviamente em Chipre (Calame, 2002, p. 163)–, prepara um espaço aos nautas
que no plano florestal e culinário representa um autêntico espaço de Eros, desde o
primeiro “verde prado” que se anota à chegada da deusa, à disposição da flora e dos “mil
refrescos e manjares,/ Com vinhos odoríferos e rosas” em que a Cípria pensa e Camões
descreve (Calame, 2002, p. 159-169). O paraíso que prepara é o seu jardim,
Só num espaço assim pode ter lugar uma “recompensa” concedida a uns nautas
heroicos, no fim de contas seres humanos, soldados e marinheiros, muito mais uma
recompensa concebida por um poeta que conhece a realidade desses seres humanos,
soldados e marinheiros, porque também era um deles. A formulação deste entendimento
pode ser mais ou menos cautelosa ou metafórica, mas já está formulada cedo, como em
Hernâni Cidade,
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REFERÊNCIAS
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Sá da Costa Editora, 1972.
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Publicações Dom Quixote, 1984.
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DUCREY, Pierre. Prisonniers de guerre en Grèce antique 1968-1999. Guerres et sociétés
dans les mondes grecs à l’époque classique. Toulouse: Pallas (Revue d’ études antiques,
51) et Presses Universitaires du Mirail, 1999.
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FICALHO, Conde de. Flora d’Os Lusíadas. Lisboa: Hiena Editora, 1994. A edição original
é de 1880 (Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias).
GOMES, F. Casado. Baco e o ‘Desconcerto do mundo’ em ‘Os Lusíadas’. Actas da I
Reunião Internacional de Camonistas. Lisboa: Comissão Executiva do IV Centenário da
publicação de “Os Lusíadas”, 1973, p. 263-288.
RAMALHO, Américo da Costa. A Ilha dos Amores e o Inferno Virgiliano. Actas da I
Reunião Internacional de Camonistas. Lisboa: Comissão Executiva do IV Centenário da
publicação de “Os Lusíadas”, 1973, p. 211-220.
RAMALHO, Américo da Costa. Sobre a cultura de Camões. Revista Colóquio/Letras. Notas
e Comentários, n.º 47, Jan. 1979, p. 70-73.
RIBEIRO, Aquilino. Luis de Camões. Fabuloso, Verdadeiro. Vol. I. Lisboa: Livraria
Bertrand, 1974.
ROBERTS, Nickie. A prostituição através dos tempos –na sociedade ocidental. Lisboa:
Editorial Presença, 1996. (Título original, Whores in History, 1992).
SENA, Jorge de. Estudos sobre o Vocabulário de “Os Lusíadas”. Lisboa: Edições 70,
1982.
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Granada: Universidad de Granada, 1980, p. 439-459.
VERNEY, Luís António. Verdadeiro Método de Estudar. Vol. II. Lisboa: Livraria Sá da
Costa, 1950.
NOTAS
i
Segundo o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, Natércia é "anagrama de
Caterina, a forma de Catarina corrente no séc. XVI. Deve-se a Camões (…)". O Dicionário Enciclopédico
"Lello Universal" refere na correspondente entrada que Natércia é "anagrama de Caterina (Catarina),
usado por Camões. São várias as damas desse nome indicadas como inspiradoras do poeta e que
determinaram a imortalização de Natércia, nome usado hoje como antropónimo feminino".
ii
Hernâni Cidade reduz as cartas que se consideram do punho de Camões a 4, partindo das 7
aparecidas no V volume das Obras de Luís de Camões publicadas pelo Visconde de Juromenha (Cidade,
1986, p. 125). Essa é a opinião que ficou mais firme, tirando o protagonismo do fragmento anteriormente
editado por separado. Eis uma síntese neste último sentido: “A primeira a ser publicada, na 1ª ed. das
Rimas de Luís de Camões, logo em 1595, é apenas uma carta galante. Foi dirigida a D. Francisca de
Aragão, a beldade da Corte, a acompanhar umas glosas a um mote que esta senhora lhe propusera. Essas
glosas e essa carta não são mais que acabados modelos de ‘donear’ palaciano e nada provam sobre a
hipótese de ser essa dama uma das suas amadas. O que provam, sim, é a dualidade de meios e ambientes
em que Camões se movia: desde os severos salões do palácio real, até aos mais duvidosos antros da
estúrdia lisboeta. E o poeta, com a maleabilidade da juventude, ajustava o seu tom conforme a audiência.
Isto se vê em duas cartas escritas de Lisboa, sem data nem nome do destinatário, mas evidentemente de
época anterior à sua partida para a Índia; numa outra escrita de Ceuta, a que adiante mais nos referiremos;
e na já citada carta de Goa. Foram publicadas, com o referido fragmento, na 2ª ed. das Rimas, em 1958,
excepto duas que só foram descobertas e dadas à estampa neste século, em 1904 e 1925.” (Batalha, 1972,
p. 12)
iii
Só este Jorge da Silva, suposto inspirador da glosa já realizada, teria razão para pasmar (como
sugere agora Camões) diante da glosa que o autor faz por segunda vez do mote que lhe lembrava o delito
e a prisão por ele sofrida. Citamos pela anotação de Hernâni Cidade à edição da Livraria Sá da Costa
(Camões, 1973, p. 229).
iv
Consta também na anotação da edição da Sá da Costa (Camões, 1973, p. 252).
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v
Explica Pierre Ducrey que “Les femmes sont la ‘part de choix’ et la récompense suprême du
vainqueur, à la guerre comme dans un concours sportif. Cette réalité se reflète même dans le vocabulaire
des poèmes homèriques” (Ducrey, 1999, p. 14). E recorda-nos, como já tinha assinalado Moses I. Finley,
que os guerreiros da Ilíada tomam mais escravas femininas, cativas de guerra, que escravos de sexo
masculino (11 mulheres contra 1 homem); na Odisseia o reparto está mais equilibrado, mais ainda há
mais mulheres tomadas (46 contra 34 homens). Os métodos entre os romanos são similares: assalto das
muralhas, aniquilação da resistência armada e de quem porta e até pode portar armas, saque da cidade a
um sinal dado, toma de prisioneiros e fundamentalmente prisioneiras, e violação destas. O próprio Ducrey
fecha o seu trabalho aludindo ao caso próximo da pequena cidade croata de Srebrenitza, onde milhares de
pessoas em idade de portar armas foram executadas, sem suscitar a indignação da opinião pública por
tudo isso acontecer durante as férias de 1995. No século XXI, os comportamentos humanos, no que se
refere a violência bélica em geral e violações de militares a prisioneiros e prisioneiras em particular,
sabemos que infelizmente continuam sucedendo.
vi
“Vénus tenía en Grecia muchas otras denominaciones, que se referían a ciertas particularidades
de su culto, y los templos que se le dedicaban bajo estas denominaciones, ordinariamente obscenas, eran
más frecuentados y estaban más enriquecidos que los de Venus-Púdica” (Dufour, 1999, p. 71).
vii
“Vénus”, para além de dar nome a infinidade de estatuetas de mulheres desconhecidas, é um
nome que sempre teve uma possível leitura prostibular. As variações sobre o seu nome neste mesmo
sentido, que já se deram entre os gregos (ver nota anterior), continuam dando-se entre os romanos, assim
como outras deusas alternativas com a mesma função: «Venus Volgivava (Vénus, a Mulher da Rua) era
outro nome dado à deusa na sua faceta de prostituta; prostitutas e prostitutos celebravam o festival da
deusa a 23 de Abril de cada ano. Uma deusa conhecida como Fortuna Virilis era adorada pelos romanos
das classes baixas, que lhe prestavam culto enquanto se banhavam nos recintos públicos para homens.
Estes banhos públicos eram conhecidas casas de prostituição. Outro festival que era celebrado pelas
prostitutas, com entusiástico apoio e participação por parte do público, envolvia uma série de jogos e
tinha lugar todos os anos a partir de 28 de Abril. Eram festivais em honra da deusa Flora, uma prostituta
lendária que legou o produto de uma vida de trabalho e de tremendo sucesso a uma Roma agradecida e
fascinada. No dia 3 do mês de Maio tinha lugar no circo a cerimónia final e apoteótica dos jogos. “Em
grupo, as prostitutas romanas executavam danças que se iam tornando cada vez mais lascivas até que uma
multidão de jovens nus saltava para a arena e agia da forma mais óbvia que se podia esperar enquanto o
público aplaudia os seus esforços”» (Roberts, 1996, p. 58).
viii
A amplitude do convívio camoniano com a Antiguidade, extenso e por várias vias mais ou
menos directo e mais ou menos intermediado, está bem provado. Para o episódio da Ilha dos Amores, Cf.
Aguiar e Silva, J. Peres Montenegro ou Américo da Costa Ramalho.
ix
As origens, o “reino Neptunino/ Onde eu nasci”, são recordadas ainda na IX-42, quando a deusa
fala ao seu filho Cupido.
x
Vid. as anotações a esta estrofe (Camões, 1996, p. 544).
xi
“Había tres principales categorías, que se subdividían a su vez en otras muchas clases más o
menos homogéneas: las dicteriadas, las aulétridas y las hetairas. Las primeras eran en cierto modo las
esclavas de la prostitución; las segundas las auxiliares; las terceras las reinas. Las dicteriadas fueron las
que Solón reunió en casas públicas, donde mediante el precio fijado por el legislador, pertenecían a todos
los que entraban en estas casas llamadas Dicteriones, en memoria de Pasifae, mujer de Minos, rey de
Creta (Dictoe), la cual hubo de encerrarse en el vientre de una vaca de bronce para recibir fácilmente las
caricias de un verdadero toro. Las aulétridas o tocadoras de flauta tenían una existencia más libre, pues
iban a ejercer su habilidad a los festines, cuando eran solicitadas, penetrando en el interior del domicilio y
de la vida privada de los ciudadanos: su música, cantos y danzas no tenían más objeto que enardecer y
exaltar los sentidos de los convidados, los cuales les hacían muy luego sentarse a su lado. Las hetairas
eran cortesanas, sin duda, pues traficaban con sus encantos, abandonándose impúdicamente a los que las
pagaban; pero se reservaban, sin embargo, una parte de voluntad, pues no se vendían al primero que
llegaba, tenían preferencias y aversiones, no hacían jamás abnegación de su libre albedrío, ni pertenecían
más que al que había sabido agradarlas. Además, por su talento, instrucción y exquisita finura, podían
competir con los hombres más eminentes de Grecia.” (Dufour, 1999, p. 85-86)
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*
Professor Associado III da UFRJ. Docente de Literaturas Africanas. Pesquisador 1 C do CNPq.
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A partir de tal concepção a poesia pode ser entendida como “potência de afetos”,
algo que afeta o ser, profundamente, e, por isso, se revela prenhe de um erotismo
libertador. Erotismo, no sentido que lhe confere Georges Bataille, isto é, o de uma
pulsão interior que coloca o ser em questão, fazendo-o refletir acerca da vida e da
existência.
Também Octavio Paz associa a poesia à esfera do sensível, definindo o poético
como “testamento dos sentidos” 4 os quais, “sem perderem seus poderes, se convertem
em servidores da imaginação e fazem ouvir o inaudito e ver o imperceptível.”5
Nossa intenção é, com base num levantamento de traços recorrentes do lirismo
angolano produzido nas décadas de 1990 e 2000, investigar se começa a se firmar, em
Angola, uma vertente poética, que prioriza “as estratégias do sensível”, optando por
dizer e pensar, de modo inovador, os sentimentos, o erotismo, a beleza estética, os
afetos, a imaginação criadora. Para isso, elegemos alguns livros de poesia angolana
contemporânea: Novos Poemas de Amor (2008), de João Melo; Um voo de borboleta no
mecanismo inerte do tempo (2006), de José Luís Mendonça; Manual para amantes
desesperados (2007), de Paula Tavares; Ombela (2006), de Manuel Rui.
Quase todos esses poetas principiaram a publicar em 1980, exceto Manuel Rui
que editou seu primeiro livro de poemas, A Onda, em 1973. Entretanto, a maioria deles,
perseguindo um constante labor da palavra literária, seguiu, em diversos aspectos,
muitas das características da poética angolana dos anos 70, representada por quatro
grandes poetas: David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho, Manuel Rui, Arlindo Barbeitos.
Claro que um amargor profundo recobriu, em inúmeros momentos, o lirismo dos poetas
surgidos em 1980. Embora estes tenham optado por um mergulho no eu, desligando-se
do coletivo, há, em várias de suas produções, uma intensa alegorização do social, um
ecoar de sentimentos que expressam uma dor histórica profunda, sentida na carne de
seus poemas.
Desde Definição (1985), primeiro livro de poemas de João Melo, a poiesis do
autor tem um desenho plural: lírico-intimista; crítico-social; erótico-telúrico e erótico-
visceral. Em Novos Poemas de Amor (2008), obra que reúne poemas escritos entre 1990
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e 2000, seu erotismo apresenta uma “dupla chama”, feita de amor e paixão, conforme
conceitua Octavio Paz: “fogo primordial e original, a sexualidade, levanta a chama
vermelha do erotismo e, esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do
amor. Erotismo e amor: a dupla chama da vida.”6
Os poemas de João Melo se armam na tensão dessa “dupla chama”, mantida por
intrincadas redes de saudação ao sexo e à vida. Não é à toa que, em “Manifesto”,
espécie de profissão de fé, colocada como pórtico de seu livro Todas as palavras, o eu-
lírico confessa: “A linha da poesia é a linha/ da vida”7. Também, em “Oferenda”, poema
que abre Novos Poemas de Amor (2008), o sujeito poético fortalece sua confiança na
vida, dizendo: “Toma esta saudade que me aflige e faz crer na vida/ e aceita-a como a
humilde declaração do meu amor”8. É um amor especial, que percorre quase todas as
composições dessa obra do autor. Em muitas destas, esse sentimento encontra-se
metaforizado por elementos que fazem parte da natureza, como, por exemplo, o arco-
íris, que simboliza uma cosmicidade telúrico-amorosa capaz de energizar o sujeito lírico
na direção de um novo amor, cuja vastidão é comparada à do mar: “Vem comigo ver o
mar/ Deixa que a imensidão/ te envolva...” 9
Em Novos Poemas de Amor, a relação carne e pedra, ou seja, sexualidade e amor
viril, também está presente, sendo expressa pela “azagaia”, pela “flecha”, pela “lança”,
imagens que metaforizam o poder masculino enlaçando e dominando a fêmea, no jogo
da cópula amorosa: “O tempo pára, de repente/ quando a minha lança/sangrenta/
mergulha no teu corpo/ ardente e desvairado,/ violentamente entregue/ ao meu poder
diabólico./ E eu sinto-me um deus /furioso...”10. Escrever para o poeta converte-se,
assim, numa forma de ser eterno, como já disse Carlos Drummond de Andrade em
conhecido verso. Nesse poema de João Melo, a escrita poética se faz carne, prenhe de
sensações, indo à procura das matrizes fecundantes, por intermédio das quais o eu-lírico
busca se eternizar: “Tu penetras a minha túrgida extremidade/ na tua fonte/ assassina: eu
11
penso/que sou eterno” . O eu-lírico faz do amor um percurso de memórias através do
corpo da amada. Como erupção do desejo e da vida, seus versos se plasmam, escorrendo
sons, palavras líquidas como orgasmo.
João Melo, nos 40 poemas desse livro, faz da relação com o tempo poético uma
incursão erótica dos sentidos, por meio dos quais os cânticos da carne se misturam ao
cotidiano da vida. Apresenta um erotismo maduro, elaborado poeticamente pelo rigor da
linguagem e pela contenção do ritmo que explode sinestesicamente. Conforme
Margarida Paredes, refletindo sobre essa obra, “a paixão é atravessada pela
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Ombela é também esse falar na liquidez dos olhos, esse proferir através da
chuva, cantar e louvar a vida, como os mais velhos nos ensinaram. E foi o
que nos deixaram de herança... Tanto a vida, quanto a natureza que nos
testemunha a força vital. A palavra e a força da fala. 20
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A relação entre poesia e erotismo é tal, que se pode dizer, sem afetação, que o
primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. (...) A
imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que
transfigura o sexo em cerimônia e rito / e a linguagem em ritmo e metáfora. 26
Ombela é, pois, metáfora também dessa própria teoria. É fecundação, água que faz
germinar a semente na terra. É “chuva fêmea”, erotismo que desafivela os sentidos da
paixão, desperta o paladar da linguagem e, barthesianamente, se converte em “grão da
palavra”27, “grão da voz”. Voz do poeta que semeia a paz em meio a lembranças de
muitas tempestades.
À medida que cada palavra do umbundu diz um tipo de chuva, pois esta “não é
nada, sem as palavras que a nomeiam”28, o sujeito lírico vai reatando fios das tradições
culturais e dos costumes que as guerras interromperam em Angola. Assim, são por ele
enumeradas: a chuva de dia inteiro, “que amarra a família à volta do fogo”29 e da
oratura; a chuva que guarda os segredos dos rituais de iniciação e é chamada ombela
lyombela30; a chuva fininha e doce, olume31, que amacia “a cabeça das meninas para não
doer”32, quando lhes trançam os penteados. São também lembrados os tempos e ritos de
colheita, as práticas de feitiço para chamar ou amarrar as chuvas33.
Revisitando, poeticamente, tais crenças, hábitos e tradições, o eu-lírico envereda
pelo campo do sensível, onde se encontram a imaginação, os afetos e a “potência
emancipatória” capaz de fazer o sujeito buscar a liberdade plena que só a poesia possui,
pela capacidade perene de perseguir o novo, a linha do infinito, o inquietante “palpitar
da imensidão.” 34
Concluindo, observamos que, nas obras aqui analisadas, apesar do desencanto
reinante na esfera social, prevalece, por intermédio da arte, a procura de uma história-
invenção. Os poetas, ao mesmo tempo que repensam o passado e as tradições, refletem
acerca do presente, deixando entreabertas as portas do futuro e os umbrais da poesia.
REFERÊNCIAS
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FORTUNATO, Jomo. “Manuel Rui lança Ombela”. In: Jornal de Angola (edição
virtual). http:www.jornaldeangola.com/artigo.php?Seccao=cultura Acesso em
04/11/2007.
KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Entrevista com René Holenstein. Rio de
Janeiro: Pallas, 2006.
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mínima. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 2004.
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PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo:
UNESP, 1996.
SEMEDO, Maria Odete da Costa. Assim senti ´Ombela´... Uluai, chuva e palavra.
África 21, Lisboa; Luanda, n.31, p. 47, jul. 2009.
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NOTAS:
1
Ki-Zerbo, 2006, p.15.
2
Idem, p.17.
3
Pecoraro, 2006, p.5.
4
Paz, 1994, p. 11.
5
Idem, p. 11.
6
Idem, p.7.
7
Melo, 2006, p. 13.
8
Melo, 2008, p. 9.
9
Idem,, p. 10.
10
Idem,, p. 26.
11
Idem,, p. 27.
12
Prigogine, 1996, p. 9.
13
Mendonça, 2006, p.19.
14
Idem, p. 27.
15
Idem, p. 29.
16
Idem, p. 29.
17
Idem, p.52.
18
Idem, p.52.
19
Tavares, 2007, p. 11.
20
Semedo, 2009, p. 47.
21
Fortunato, 2007, site citado.
22
Idem, ibidem.
23
Monteiro, 2006, p. 8 e p. 12.
24
Idem, p.12.
25
Idem, p.26.
26
Paz, 1994, p.12.
27
Monteiro, 2006, p. 8.
28
Idem, p. 48.
29
Idem, p. 16.
30
Idem, p. 50 e p. 52.
31
Idem, p. 25.
32
Idem, p. 126.
33
Idem, p. 88.
34
Idem, p. 10.
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Moriconi também vai nela valorizar o reinvestimento no verso longo e discursivo, isto
é, numa poética da retórica e da eloqüência antagônica à excessiva rarefação própria a
certa herança do poeta francês presente tanto em nossa poesia vanguardista,
experimental, a partir dos anos 50, quanto no subjetivismo espontaneísta da poesia
“marginal” que a ela visava se contrapor na década de 70. Nesse reinvestimento, Ítalo
enxerga uma forma de fazer a poesia participar de um momento de expansão e
democratização do espaço e da fala públicos. E, embora reinvindique também que ela
se torne mais coloquial e ligada à experiência cotidiana, convulsiva, da beleza e da
vida, não deixa de reconhecer que uma linguagem mais formalmente elaborada,
mesmo que até ao ponto do sublime, pode influenciar positivamente na formação de
um leitor mais exigente, alimentado da releitura do cânone moderno, distinto daquele
legitimado pelo elogio à ligeireza expressiva e comunicativa da contracultura e da
cultura pop, como o suposto pela prática poética dos anos 70 (MORICONI, 1998).
Em Portugal, a contracultura e o pop não parecem ter afetado o estatuto da poesia
e de suas relações com o leitor a ponto de justificar uma postura dúplice como a de
Moriconi. Mas, até por isso mesmo, as considerações por este feitas sobre a situação
brasileira podem fornecer subsídios também para a avaliação dos pressupostos da atual
demanda portuguesa de desauratização e comunicabilidade. Pois a constatação de um
constante e diversificado retorno dessa demanda, bem como das que se lhe
contrapõem, em contextos e momentos distintos, ajuda a tornar mais claras suas
ambigüidades e tensões. No que concerne à relação entre poesia e vida, esse retorno
evidencia, paradoxalmente, a incontornável irresolução do real e dos realismos, bem
como das estratégias de subjetivação que, figuradas em sua contínua busca, serviriam
ainda à legitimação de diferentes concepções de escritura, de leitura e de relação entre
ambas. E impõe assim também a necessidade de problematizar valores como os de
aproximação, identificação e cumplicidade, de modo a que a função pública da poesia,
assim como as noções mesmas de função e publicidade, possam ser repensadas sempre
provocativamente.
A esse respeito, relembremos mais uma vez Baudelaire, que, se configura a
relação entre a arte e a vida de seu tempo de modo agônico, na tensão entre
experiência e memória, expressão e ficcionalização, somatização e formalização, o faz
também através de seu endereçamento a um leitor reconhecido como simultaneamente
íntimo e desconhecido, fraterno e hipócrita. Não por acaso, essa configuração é
mobilizada predominantemente através de experiências do e com o olhar, através das
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escultor de coisas mortas,/ e depois sorri terrivelmente amando a idéia:/ Unindo o amor
à idéia ao amor à matéria,/ como uma carta de amor que envia/ a si próprio...” , pois,
como “explica” no poema “O escultor de idéias”, “a vida é mesmo assim,/ espalhada
sobre mim como uma mulher invisível/ esperando/ um arrebatamento ardente./ Porque
as mulheres são como flechas/ tremendamente delicadas/ que o homem inteiramente
esquece/ entre outras idéias” .
Como se percebe nesses exemplos, a dicção auto-reflexiva dos poemas, típica da
poesia moderna, ao mesmo tempo em que se instala vai sendo turbada pelo
desdobramento do argumento em imagens visuais concretas, o mesmo ocorrendo, ao
contrário e quiasmaticamente, no desdobramento da concretude de imagens visuais em
argumentos abstratos. É o caso das mulheres/ flechas invisíveis esquecidas como outras
idéias do escultor, ou do cineasta tentando respirar como um escultor de coisas mortas,
nos versos de Sorrentino; ou o problema/coágulo sanguíneo em artérias com sabor de
detroit misturado às objeções platônicas e aristotélicas, nos versos de Jonas.
Nessa figuração irresolvida, performante, entre o ver, o pensar e o dizer se esboça
então uma semelhança pervertida, uma continuidade descontínua, reforçada ainda pela
disparidade semântica que se estabelece no “interior” de cada um desses campos. Isso
se dá através do modo como se entrecruzam, muitas vezes num mesmo poema, versos
de inflexão mítica, religiosa, científica ou prosaica, conduzindo a sintaxe argumentativa
e explicativa ao mais absoluto non-sense. Em Jonas, por exemplo, no poema “Cameo”,
lemos: “Não espero nenhum deus através duma máquina;/ sou eu, enfim, o afundador de
diques, confundidor do/ entendimento,/ como uma grande maré quebrando ou/ como
uma grande maré crescendo,/ e com luvas de pelica disponho o estojo de trepanação/ e
no crânio de Munch penso a broca/ mas é o cérebro do mundo que quero fender./ São
algumas árvores o arvoredo/ nesta práxis euclidiana modesta. Se bem/ que às vezes não
me chegue bem/ tudo neste teatro de espectros, se é que não é nada/ mas – como dizer –
por vezes sou guindado à penthouse do diabo/ mas não o entendo, não entendo a crise a
Satã.” (p.40).
Em Sorrentino, o poema “Vinha a natureza toda alterada com a questão Marcello”
relata que “Vinha a natureza toda alterada com a questão Marcello:/1)fumando vaga-
lumes, o vento vagava como um velho;/2)hibiscos viravam relógios de pólen nas tranças
das heras;/3)era tão tarde que nenhum relógio tinha horas pra quão tarde era./ O
problema não era Marcello. Marcello era a ponta do iceberg:/ entre sereias silentes, uma
estátua sonhando que se ergue./ Que mata elefantes e vai às igrejas fazer-se marfim/
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para dizer; Ó Deus, quero ser livre de Ti como Tu és de mim.” E conclui: “Não. O
problema de Marcello não era Marcello e sim/ pedir a Deus que lhe caísse o fogo todo
da terra e o marfim;/ ao Cristo, nos céus, carregando uma enorme cruz Louis Vuitton,/
passando fogos de artifício nos lábios como batom”.
Esse efeito pode ser acompanhado ainda mais pontualmente no modo como nos
dois poetas retornam constantemente imagens de um dado campo semântico, em
especial o da natureza, outro traço marcante que os distingue face à poesia
eminentemente urbana a partir da modernidade. Nos poemas acima referidos já se
percebe como ela é referida, interagindo com uma auto-reflexão angustiada e perdendo
assim qualquer valor originário ou utópico, associada agora, por exemplo, a “práxis
euclidiana”, “teatro de espectros”, “relógios de pólen”, “sereias silentes” ou a batom e
adereços “Louis Vuitton”.
Mais uma vez a aproximação do diverso suspende a oposição, sem no entanto
deixar de fugir também à mera identificação paradigmática. E a natureza passa a ser um
cronotopo no qual ao mesmo tempo se convoca e suspende irresolvido o caráter
analógico-metafórico característico de seu uso poético mais tradicional. Com ela se
esboçam relações de descompasso e descontinuidade entre palavras e coisas, entre as
próprias coisas – descompasso e descontinuidade que vão reger também as relações
espaciais e temporais através das quais a subjetividade poética tenta se identificar e
estabilizar. É o que podemos observar, por exemplo, nas imagens do mar que Sorrentino
e Jonas constroem. O primeiro assim conclui o poema “Perversa aerostação”: “Continua
porém a natureza a fazer pessoas como eu,/ mandando-as de encontro ao céu, numa
perversa aerostação./ Quem sabe o corpo enfim aprenderá sem perguntar?/ Mas de
pernas de fora, tento ainda interrogar o mar,/ Enlouquecendo porque o mar não pára de
responder,/ e vagas, e vagas são as respostas”. Do mesmo modo, no já referido poema
“Cameo”, Jonas constrói a partir do mar uma relação quiasmática entre o ver e o
ouvir/ser ouvido que torna vagas, irresolvidas as relações significativas que ele
tradicionalmente sustentaria: “Não adianta discutir com os deuses, isso é ponto assente./
Se o mar murmura não é que Posídon ficasse de repente rabugento/ nem sibilinas as
ervas marinhas. É tão só do tanto esperar,/ da solidez da solidão, por assim dizer,/ de
ansiar generosa fatia da tua boca com verbos lá de dentro,/ isto para ser definitivamente
mais claro. Mas não bem a tua boca/ que eu bem conheço,/ antes outra.” (p.38).
Em ambos, como se vê, a concretude física da natureza, como a do corpo nu, com
pernas que caminham ou bocas que comem e falam, é associada ao excesso discursivo,
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mesmo tempo sólidos e frágeis. Essa via comparativa pode ser estimulada pela
descoberta na poesia de Daniel Jonas, no poema “Nem um verbo nos move”, de uma
imagem que nomeia um importante poema de Ashbery, a do skater: “...Eu queria estar
mais contente/ se soubesse haver razões para isso,/ depor-te a aporia destes dias/ e
trabalhar com novas certezas./ Em vez disso skaters faíscam/ no centro da minha
passagem, no meio/ da minha vida/ e a sua navegabilidade incondicional/ desliza nesta
aspereza da retina.” (p.15).
Aí, mais uma vez, na interação de confessional, argumentativo e percepção
visual, patinadores inscrevem um movimento sem propósito, deslizando sobre a aporia
de dias, espaços, corpos e palavras infensos à ancoragem dos sentidos e do sentido.
Esse ludismo seria em princípio, segundo certa crítica, o único valor atribuível a uma
inflexão dita neobarroca - assim identificada também em Ashbery - marcada por um
gosto do excesso e do contrastivo. Nessa inflexão considerada também pós-moderna, se
esterelizaria a linguagem poética como estilo, esteticista, ornamental, no qual se
reduplicaria a trama espetaculosa, vazia da vida cultural contemporânea. Em Ashbery,
no entanto, conforme mostra Viviana, assim como em Jonas, a imagem do skater
aparece associada a uma situação de precariedade, incômodo e dor produzidos aqui
pelo retorno atritante, quiasmático, a olhos assim tornados ásperos, da imagem de
início por eles percebida em sua navegabilidade incondicional.
Tal navegação dolorida aparece também na poesia de Sorrentino. Diz-nos ele no
poema “Aceno de novo, repito”: “Encosto o queixo ao peito;/ penso dentro o som do
sangue,/ e as gotas explodindo contra o solo/ na caligrafia da partida./ Julgo já não mais
estar aqui./ Mas não parto, estou ancorado a todos os cantos:/ picam-me a veneno as
ruínas de carícias/ e paralisado, a noite passa demoradíssima.” Ou no “Poema de amor
anfetamínico”: “ dois cat-lovers na correnteza da noite: já são duas./ acima os vampiros
varam o vazio infinito das ruas./hoje somos marinheiros e uma boate é nosso
ancoradouro,/ onde dançamos e somos deuses, como todos os outros.” Esse movimento
de leitura, empreendido através da intertextualidade com a poesia de Ashbery, remete
ainda a um outro forte veio da modernidade - o do empenho e dos impasses da
navegação poética de Rimbaud em seu “bateau ivre”.
Sob esse viés, a poesia de Jonas e Sorrentino pode ser compreendida como
tentativa de reativação de uma intensidade subjetivante semelhante àquela com que o
poeta francês exercitou o ato poético para além da dicotomia entre a forma e o informe
que segundo Martin Jay enrigeceu a produção e a crítica da poesia moderna (JAY,
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2003). Essa intensidade pulsional sob vários aspectos se avizinha de uma força de
feição surrealista, - e o transbordamento de imagens simultânea e descompassadamente
afetivas, perceptivas e reflexivas encena uma constante e angustiada busca dos
sentidos, do sentido, não desestimulada pelo contínuo adiamento ou suspensão de seu
encontro. Não por acaso, o poeta surrealista português Alexandre O’Neill é um dos
interlocutores nomeados dos poemas de Jonas. E, também significativamente,
lembremos, é uma inflexão surrealista que Italo Moriconi, no ensaio já referido,
considera um dos principais fatores de vitalidade do reinvestimento discursivo na nossa
poesia da década de 90. Um e outro sugerem desse modo o interesse da reavaliação da
produtividade dessa força ao longo da poesia brasileira e portuguesa do século XX e
desse início do século XXI.
Em Jonas e Sorrentino ela se manifesta no uso emblemático da imagem da janela
como motivação visual e verbal de uma pulsão escópica na qual interagem
procedimentos de subjetivação, de experimentação da linguagem e de exploração de
uma realidade tanto perceptiva quanto intelectiva, tanto corriqueira quanto
estranhamente onírica. Diz Sorrentino no poema “A pergunta posta pela janela”: “Bela
é a minha janela/ que rasga o mundo em ângulos retos/ e por meios violentos contém o
céu./ Um tudo-nada em único plano/ confluente na base de um homem./ Janela onde
tudo passa, em corrente/ marinha, ou formando as fronteiras/ de objetos em guerra:
envelheço. [...] Janela onde jamais um pássaro envelhece,/ que é retrato que também
confunde/ o pássaro, janela-tangerina:/ eu nunca disse por que não sou aquela nuvem/
apesar dessa questão me interessar.”
Como se percebe, e lembrando as colocações de Georges Didi-Huberman, a poesia
se confunde aí com um espaço por onde o que vemos nos olha e nos interroga sobre
nossas próprias visão e consciência. Com ela a forma se oferece em formação,
articulando geometria e violência, enquadramento e fluxo, reflexão e desejo,
apresentando e transtornando a natural paisagem de céu, mar, pássaro e nuvem, num
tecido tão intensamente visível e problemático quanto essa inusitada composição de
janela e tangerina que o convoca mas só com ele se torna possível.
O mesmo ocorre no poema de Jonas que, à guisa de título, no sumário, apresenta o
verso inicial, “Não o previra. Fizeram-se à pressa sinais”: “.....ele empina o olhar,/ mas é
como se os olhos/ quisessem descer e não pudessem. O contra-picado/ deixa-o pouco à
vontade, mas de certa maneira sempre foi assim/ que os objetos o olharam. Mais acima,
a coroá-lo/ como um halo insólito uma placa toponímica: estamos no centro./ Ele é o
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centro solitário./ Agora outra coisa. A cortina que dispensa a conveniente opacidade/
esconde a alma. A alma é de veludo./ Os ramos emaranham-se reflectidos na vidraça
(ou são rugas do vidro?).......” (p.58) .Nesses versos percebe-se como uma sintaxe
discursiva se desdobra na construção em princípio clara de uma perspectiva visual em
que se confundem no entanto a placa toponímica e o halo insólito, a centralização e o
distanciamento, do mesmo modo como se confundem o olhar e o ser olhado, o sujeito, o
objeto e o dispositivo que os organizaria em perspectiva – ramos e rugas inscrevendo
uma corrosiva e agônica força de temporalidade na transparência e na imediatez
tornadas opacas de vidros, almas, palavras .
Essa poesia-janela performa então um empenho de acesso à realidade que, no
entanto, não se conforma a padrões pré-determinados de realismo e comunicabilidade.
Ao contrário, reafirma de modo insólito sua vontade de endereçamento e comunhão,
nos impondo a pergunta sobre o sentido do ser comum e estar em comum, apostando
numa força dos sentidos e de sentido que ao mesmo tempo aproxime e desafie o senso-
comum. Pois incorporando em sua linguagem procedimentos e discursos característicos
de seu tempo – o excesso visual e verbal, as mitologias da religião, da política, do
conhecimento, do entretenimento, – ela o faz de modo a investi-los do valor que,
segundo Jean-Luc Nancy é próprio de toda imagem, em que a atração nunca
apaziguada do desejo se diferencia do aliciamento uniformizante do espetáculo (2003,
p.20).
Desse modo, retoma e atualiza, desafiadoramente, como mostra o poema Shih, de
Sorrentino, o pacto lírico, a vontade de fazer do poema canção, apelo, mão estendida:
“Tenho um mapa na memória/ que no entanto muda de segundo a segundo,/ reescreve-
se sozinho, nunca forma o nome de um país/, um oceano, uma cadeia montanhosa./ E
como eu tremo no caminho dessa desordem./ Pois meus mortos não estão a salvo, e eu
canto./ Estou voltando por um caminho truculento/ às coisas simples. Eu canto.” Gesto
que reverbera insistente também na poesia de Jonas: “Que nos resta senão linguagem
para povoar o mundo?/ E no momento em que a linguagem defina o mundo/ esse
mundo é recusado/ que não cabe à linguagem achar a definição/ nem ao objecto ser
definível. A ausência/ embeleza o ausente/ e para o teu mel de lábio a incerteza do sabor
de cada gota,/ um outro lábio que sofre/ essa incerteza. Um insistente fim, o estudo
próximo,/ a reverberação da angústia;/ alguma coisa de importante foi esquecida./ Um
poema é: nunca me deixes sozinho comigo./ Um poema é: não pode ser doutra
maneira.” (p.82)
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REFERÊNCIAS
BOSI, Viviana. John Ashbery. Um módulo para o vento. São Paulo: EdUSP, 1999.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34,
1998.
MORICONI, Italo. A volta do sublime. In PEDROSA, Celia et alii. (org.). Poesia hoje.
Niterói: EdUFF, 1998.
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INTRODUÇÃO
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Como nos lembra Furet, o historiador “está consciente de que escolhe, nesse
passado, aquilo de que fala e, assim fazendo, coloca, a esse passado, questões seletivas”
(Furet, s/d, p. 84, grifos meus). O historiador (e por extensão o biógrafo ou o próprio
ficcionista) é então o próprio construtor do seu objeto de estudo/trabalho, uma vez que
se impõe a tarefa de delimitar “não só o seu período, o conjunto dos acontecimentos,
mas também os problemas colocados por esse período e por esses acontecimentos, e que
terá de resolver” (Furet, s/d, p. 84).
Ainda pensando na questão do tempo, vale colocar em pauta a idéia de Leonor
Arfuch a respeito da “comunidade temporal” que possibilita o próprio relato biográfico.
A pesquisadora argentina, ao comentar uma afirmativa do linguista Émile Benveniste,
escreve:
É nos termos teóricos apontados acima que se funda a idéia de ler os textos
teatrais de José Saramago como algo que parte de uma escrita biográfica (exceto em A
noite), ou seja, de uma escrita possível, tendo-se em mente que tal processo de escrita é
mediado pela subjetividade do biógrafo, enquanto sujeito que reflete sobre um objeto
construído a partir das fontes a que teve acesso e que deliberadamente escolheu algumas
em detrimento de outras. Soma-se a isso, no caso de Saramago, a intenção de remexer a
tradição cultural a partir de sua problematização na literatura.
Aponto agora algumas observações a respeito das três primeiras peças teatrais de
José Saramago.
1. A NOITE
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Ambientada no século XVI, entre 1570 e 1572, Que farei com este livro? trata de
Camões e da publicação de Os Lusíadas. O livro a que o título da obra se refere é,
portanto, o poema épico camoniano. Seu autor, o homem Luís Vaz (não o poeta, que
seria posteriormente reconhecido como um dos grandes nomes, senão o maior, da
Cultura Portuguesa), é personagem central da peça.
Em poema publicado em 1981, no livro Os poemas possíveis, o escritor trata
também de Camões: “Que sabemos de ti, se só deixaste versos” (Saramago, 1981, p.
23). O verso sugere que, sendo parca a documentação sobre a vida de Camões, o que
torna sua biografia obscura em vários pontos, restam apenas “papéis com versos”, ou
seja, sua obra. Dali seria possível, por falta de outras opções, obter dados sobre a vida
do poeta, para a sua reconstrução enquanto personagem. Com a intimidade que o uso da
segunda pessoa do singular no poema indica, o texto abre a possibilidade de ser a obra
escrita uma fonte para se preencher as lacunas da vida do homem, isto é, do homem que
Camões eventualmente tenha sido. Tal ideia também foi apontada por Jorge de Sena, ao
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afirmar que “revelar a arquitetura do poema [Os Lusíadas] era aproximarmo-nos, tão de
perto quanto possível, das intenções de Camões, e compreender não só o tema, mas ele
mesmo como poeta e homem” (Sena, 1978, p. 446). Na própria peça, surge a idéia de
que os versos por si só revelam algo do poeta:
FRANCISCA DE ARAGÃO:
Quero ler esses versos.
LUÍS DE CAMÕES:
Para quê?
FRANCISCA DE ARAGÃO:
De vós, sei o que éreis. Mais me dirão agora os versos de quem sois hoje, do
que vós narrando-me esses dezassete anos em outros dezassete (QFL, p. 44).i
É claro que isso não precisa ser encarado de forma literal, mas pode servir para
ilustrar uma técnica, um procedimento. Em texto publicado na primeira edição do livro,
Luiz Francisco Rebello observa que, na peça,
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O espaço que existe entre o autor e a narração por vezes é ocupado pelo
narrador, que age como um intermediário, por vezes como um filtro, que
existe para filtrar o que possa ser demasiado pessoal. Por vezes, o narrador
está aí para ver se se pode dizer alguma coisa sem demasiado compromisso,
sem que o autor se comprometa demasiado (Saramago, in Arias, p 26).
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A biografia deve ser entendida como uma construção discursiva, mediada pelo
manancial de informações a que o biógrafo teve acesso e pelas escolhas feitas pelo
mesmo ao redigi-la. O dramaturgo aqui ocupa de certa forma o lugar do biógrafo. Nesse
papel, Saramago parece trazer os fatos consagrados da vida dos personagens para, por
meio da escrita, dotá-los de grande complexidade. Pica e Clara, por exemplo, são
personagens que, na peça, estão a favor de Francisco, pelos laços antigos que os unem,
mas têm consciência da ingenuidade de seus objetivos. Estão também, por fidelidade
ideológica, dispostas a segui-lo sempre.
Segundo Pauline Hörmann, pode-se definir a biografia como um subgênero da
historiografia, pois, ao descrever a vida de um indivíduo particular, trabalha-se com a
pequena unidade de grandes períodos da história. Além disso, a biografia, gênero dos
mais antigos da historiografia, tinha função didática e exemplar. Contava-se a vida
ilustre de alguém para que a narrativa contribuísse com a educação moral das
sociedades. Todavia, o que a peça de José Saramago nos apresenta não pode se encaixar
nessa visão. Não há na peça uma preocupação em retratar qualquer personagem,
inclusive (e principalmente Francisco), como figuras exemplares. O grupo dos ditos
“gananciosos” é formado por aqueles que, de acordo com as narrativas medievais,
tomaram atitudes que autorizam a sua representação, hoje, nos termos em que José
Saramago o faz.
Além disso, sabe-se que o biógrafo atual, a princípio, está consciente de que seu
ofício consiste em conjugar o que é historicamente comprovável a uma necessária
criatividade capaz de transformar uma lista de acontecimentos em uma narrativa
plausível e interessante (Hörmann, 1996, p. 18). Trabalha então o biógrafo não mais na
base da oposição entre ficção / fatos reais, mas em termos de “fatos criativos” e “ficção
histórica”. Segundo o historiador I. Nadel, citado por Hörmann (1996, p. 36), o biógrafo
(assim como o historiador) seleciona subjetivamente os elementos que comporão seu
texto, de modo que a vida biografada possa ser compreendida pelos leitores numa
estrutura textual narrativa. O mesmo, como vimos, que foi postulado por François Furet,
justamente em um trabalho em que procura evidenciar a preponderância da história
enquanto problema, se comparada com a história-narrativa.
Em A segunda vida de Francisco de Assis, observa-se um procedimento de
representação comparável com o que foi acima exposto. No entanto, a plausibilidade da
história contada sob a forma de ação teatral está a serviço de um objetivo outro (senão
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No Brasil, em Portugal, onde quer que seja, esta segunda vida de Francisco
de Assis, surge como uma metáfora moderna de um mundo que precisa de
uma transformação humanística superior, de uma teoria do homem pelo
homem. Esta metáfora inspirada e apresentada por Saramago mostra como
teatro e literatura podem ser discursos ativos voltados para o realismo social.
No plano da ética política, o dinheiro e a riqueza devem ser controlados pelo
direito de todos a fim de que a ambição não provoque a exploração e o
aviltamento da consciência. Branca e luminosa, a prata, símbolo ocidental do
dinheiro (argentum, argent), indica pureza e no cristianismo, pureza e
purificação (Ferreira, s/d).
É a realidade dos pobres em confronto com a realidade dos ricos que dará ao
Francisco da peça a real dimensão do problema que se lhe coloca. O interessante é que
isso se dá justamente pelo confronto das idéias de Pedro, o representante dos pobres, e
Francisco. A pobreza de que trata Francisco, não é a mesma pobreza que Pedro
vivencia. Ao apelar por ajuda, Francisco tem a justa dimensão do abismo que separa seu
tempo do momento atual:
FRANCISCO:
Pedro, é um pobre que pede auxílio a outro pobre.
PEDRO:
Não somos pobres iguais. Tu tornaste-te pobre para poderes ganhar o céu.
Nós, que pobres fomos e pobres continuamos a ser, nem a terra conseguimos
conquistar. Nenhum pobre te agradeceu quando abandonastes as riquezas de
teu pai.
FRANCISCO:
Não esperava agradecimentos. Tratava-se de salvar almas.
PEDRO:
Não sei se salvastes alguma. Mas, ao louvares a pobreza, afirmaste a bondade
do sofrimento dos pobres. Este é o pecado de que nenhuma absolvição te
levará. (SVSF, p. 221).
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
NOTAS
i
QFL p. 44. Cito sempre as peças por meio das iniciais que compõem seus títulos: NA – A Noite, QFL –
Que farei com este livro? e SVSF – A segunda vida de Francisco de Assis.
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ii
Por mais questionável que possa ser a idéia de se conhecer o autor por sua obra, Jorge de Sena
desenvolveu uma reflexão a partir do que consistiria o projeto estético de Camões, que reflete, segundo o
autor, seu pensamento.
iii
Utilizo as palavras "halo" e "aura" exatamente na mesma acepção que Marshall Berman utilizou no
capítulo dedicado a Baudelaire em Tudo o que é sólido desmancha no ar. Ali, o autor aborda a
desmistificação da imagem do poeta, convertido em homem comum, desprovido de qualquer elemento
que o assinale e o diferencie dos outros indivíduos.
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As falas da cidade nos textos contemporâneos são tão características como as cidades,
são instáveis e precárias como uma estética singular de registros e fragmentos, de celeridade e
de imagens controversas. Assentadas em textos ficcionais e práticas culturais das mais variadas
natureza, tais como a literatura, o cinema, o teatro, as artes e a música, as falas remetem a um
modo de ver e sentir a cidade numa peculiar cartografia ficcional que interpreta e ao mesmo
tempo parece inviabilizar a representação geográfica. São textos palimpsestos, que se
confundem, que leem e podem ser lidos por dada sociedade. Assim, a re - codificação da cidade
é um permanente desafio aos estudos contemporâneos.
A cidade como entidade perceptível que se identifica no espectro da sensibilidade, tem
falas, traduzidas em discursos , estratégias e narrativas que a um só tempo a estruturam e a
leem. Sim, a cidade sujeito e objeto de uma mesma conjugação representacional.
Há um desenho de cidade reconhecível em sinais dos mais relevantes, naquilo que
Mário de Andrade chamou de “sentimento de cidade”, ou seja, uma configuração de
apropriação que é sentida muito mais que definida em suas delimitações topográficas. Portanto,
na construção da ficção contemporânea está em jogo o estatuto de um re-arranjo de categorias
tidas como sedimentadas, tal qual as práticas culturais que nos fazem pensar o verdadeiro
sentido da representação, e em que medida representação significa mentira, ou objetivamente,
em que medida a categorização da representação em termos de afastamento do real constitui um
mecanismo de exclusão e estratégia de detenção de poder.
Neste sentido, seguindo acompanhando Fredric Jameson, que nota nas práticas
culturais, ainda que na vigência do estatuto da representação, ordens de discursos que fundam o
real de outra natureza. Não são meras interpretações do real, embora à superfície possam nos
dar esta nítida impressão, mas sujeitos tão presentes como o real ontológico.
A condição pós-moderna aliada à noção de uma cultura contemporânea tem no eixo da
representação umas das suas vertentes sintomaticamente relevantes. Ora, os usos da cultura se
tornaram elementos discursivos dos mais tradicionais, pois vigoraram vinculados à noção de
representação construída numa perspectiva diacrônica. Mas se a condição pós-moderna
problematiza de forma dramática a representação, é concebível que haja um entendimento no
sentido de que a cidade se vê desafiada quanto à sua constituição.
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homem ou seja, de ser uma pessoa sem nomeação identificadora é um traço que deve
ser observada e que retornaremos mais adiante, em seu carro, no trânsito do que parece
ser uma cidade, pois cria-se uma atmosfera de muitos veículos trafegando , bem como
engarrafamentos e pressa, para diante de um sinal fechado. Ao abrir o sinal, o homem
não percebe, tendo apenas o sentido de sinal aberto dado pelas inúmeras buzinas
nervosas que lhe cobram uma ação. É então que subitamente este homem percebe que
não está enxergando e se percebe o inusitado da ocasião, a cegueira que ele se vê
acometido, é uma cegueira branca.
A epidemia se espalha por toda parte, numa escala assustadora que nos faz
absurdamente aceites de uma situação que parece familiar. A celeridade dos
acontecimentos se alinha com uma sociedade que produz eventos tão instantâneos
quanto superficiais, atenuando e por vezes anulando a capacidade de indignação, com
suas repercussão e conseqüência esvaziada.
A cegueira branca provoca reações imediatas de todos aqueles que zelam pela
sociedade. È assim que as autoridades de um governo instalado, se apressam em
restringir as ações dos que passam a ter a doença. É uma forma de vigiar e ter o controle
das ações de homens e de grupo potencialmente perigoso. A semelhança com o
panoptismo descrito por Michel Foucault é preciso neste momento. Trata-se de uma
forma estratégia invisível de controle social sob o argumento primeiro de defesa do
cidadão e mesmo sua salvaguarda.
Assim, as formas de defesa levadas a efeito pelas autoridades nada mais são que
autenticações de estratégias de controle, que se mostram eficazes e revelam um grau
perturbador de disciplina que visa, em última instância , a detenção cada mais apurada
de poder diante de grupo amplos da sociedade.
Deste modo as pessoas, personagens, que vão ficando cegas, e são muitas, vão
sendo gradualmente tiradas do convívio social. É neste ponto que o médico, que se
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A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua
coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e contavam. Depois levantou a
cabeça para o céu e viu-o todo branco. Chegou a minha vez, pensou. O medo
súbito fé-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava. (SARAMAGO, p.
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Assim, a mulher do médico é a única a permanecer com a visão, mas finge estar
cega e isto demonstra a distinção necessária que Saramago nos coloca. Na verdade nós
leitores estamos, tal qual a mulher do cego, enxergando a cegueira do Outro, que no
fundo somos nós.
O vazio ou a sensação de estranhamento experimentado na narrativa se dá em
diversas direções, como um sentimento de pertença que sublinha todas as ações
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projetadas. É o caso dos lugares, que estranhamente não tem nomes. As ruas não são
identificadas, mas sabemos que elas existem e perto de nós. A cidade projetada por
Saramago, é uma cidade que nos habituamos a viver e, descobrimos um tanto
espantados, que esta cidade é perversa nas suas complexas relações espaciais e de
convivência. O que são ruas sem nome se não o signo de uma cidade desconhecida, que
pensamos conhecer. Enxergamos a cidade, pois temos a visão, mas a ausência de nomes
da narrativa vem nos mostrar que esta visão é cega, de uma cegueira branca.
A ausência de nomes também dramatiza as relações pessoais que o Ensaio nos
oferece. O motorista, o médico, a mulher de óculos escuros, o rapazinho estrábico, mais
que nomeações genéricas, são marcas de um esvaziamento e superficialidade que regem
as vivências pessoais. Conhecemos de uma maneira impessoal os seres com que nos
relacionamos. Somos capazes de conversar, sair, jantar, morar, enfim, nos
relacionarmos com pessoas que desconhecemos essencialmente, sem que isto seja
corporificado como algo especialmente negativo. Sim, a cegueira nos acomete parece
dizer Saramago nesta alegoria da própria condição humana contemporânea.
REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São
Paulo: Ática, 2007.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
SILVA, Tomáz Tadeu da. O currículo como representação. In: O currículo como
fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
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Procuramos as escritoras
as vozes onde elas estão
teimamos nas suas vidas
No passado desvalido
INTRODUÇÃO
Este texto apresenta um breve panorama da escrita das mulheres portuguesas e resulta de
uma pesquisa iniciada em 1985. Durante anos, “procuramos as escritoras”, fomos “atrás das
palavras”, “seguimo-las” por bibliotecas e arquivos portugueses e reunimos cerca de duas mil
que apresentamos no Dicionário de escritoras portuguesas: das origens à atualidade (2009).
Falo aqui também em nome de Constância Lima Duarte e Zenóbia Collares Moreira, parceiras
queridas desta pesquisa/viagem pela escrita feminina portuguesa.
O dicionário reúne verbetes de escritoras consagradas pelo público e pela crítica e de
outras cujo nome é apenas conhecido em pequenas vilas ou pelos familiares. “Recriando a
própria história / perseguindo o interdito”, identificamos pseudônimos, “levantamos a poalha” e
reunimos informações dispersas de tempos diferentes sobre mulheres que ao longo dos séculos
1
Professora adjunta de Literatura Portuguesa da Universidade Potiguar (UnP).
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têm publicado ou deixado seus textos manuscritos. “Buscamos a sua sombra / o seu vulto face e
mão” seguindo princesas, infantas, damas da corte, religiosas, plebéias, anônimas e famosas,
algumas fizeram da escrita a sua profissão, outras foram apenas diletantes da palavra. “Partimos
pelas veredas” ao encontro de portuguesas nascidas no Brasil, nas antigas colônias de África, nos
Açores, na Madeira, em Portugal continental e até daquelas que, nascidas no estrangeiro, fizeram
de Portugal a sua pátria ou, nascidas em Portugal, no estrangeiro se fixaram e publicam(aram)
em língua portuguesa (HORTA, 2009, 45).
1 PIONEIRAS
2 BARROCAS
313
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A presença da mulher na literatura portuguesa começa a ser mais efetiva no século XVII,
tanto nos claustros como fora deles. Alguns textos foram produzidos como exercício espiritual:
são as autobiografias escritas a mando dos confessores como forma de controle da mente
feminina. Antónia Margarida de Castelo Branco, divorciada, freira para fugir à brutalidade do
marido, deixou uma Autobiografia, que foi escrita, destruída e reescrita, revelando a história de
um matrimônio imposto, infeliz, como tantos não desejados por essas mulheres de séculos
passados. Dos claustros, chega também a produção literária das Sórores Maria do Céu, Violante
do Céu e Madalena da Glória. Mas não há como esquecer outra religiosa, a Mariana Alcoforado,
autora do lamento de amor pungente que continua correndo mundo: as célebres Cartas
Portuguesas. Fora dos claustros, Bernarda Ferreira de Lacerda, autora de Soledades do Buçaco
(1634) e Maria Lara e Menezes, que escreveu Saudades de D. Inês de Castro, publicada na Fênix
renascida.
É no século XVIII que as mulheres começam a ousar uma escrita feminina. Até então, as
táticas tinham sido as de reduplicar o cânone masculino, assumindo o mesmo discurso patriarcal.
Nesse século, surgem mulheres que ousam assumir uma fala que se contrapõe ao discurso
masculino. Paula da Graça, em 1743, responde, passados quase dois séculos, ao célebre folheto
Malícia das mulheres, de Baltasar Dias2. Intitula seu folheto de Bondade das mulheres
vindicada, e malícia dos homens manifesta.
Em 1761, Dona Gertrudes Margarida de Jesus publica a Primeira carta apologética em
favor e defesa das mulheres, com argumentos colhidos na História, em resposta à obra de Frei
Amador do Desengano – Espelho no qual claramente se vêem alguns defeitos das mulheres, de
1761, que acusava o sexo feminino de ignorância, inconstância e formosura.
Esse é o século das Luzes e o Verdadeiro método de estudar (1746) propõe uma virada
no ensino português, com propostas pedagógicas iluministas. O autor reserva a última carta para
falar da educação feminina, o que elucida bem o lugar reservado à mulher. Intitulada “Apêndice
sobre o estudo das mulheres”, o autor mostra a opinião de seus contemporâneos quando afirma
que eles as consideram “como animais de outra espécie” (1952, p. 149).
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Houve sempre, contudo, mulheres que foram além do que lhes era permitido. E esse é o
caso da primeira mulher que escreveu e publicou um romance na língua portuguesa: Teresa
Margarida da Silva e Orta. Nascida em São Paulo, em 1711, filha de um emigrante português
que chegou ao Brasil em 1695, como criado de servir e de uma brasileira, teria 5 anos quando
chegou a Portugal de onde, ao que tudo indica, nunca mais saiu. Foi educada no Convento das
Trinas, pois estava destinada à vida religiosa, mas quis o destino que Teresa Margarida
conhecesse e se apaixonasse por Pedro Jansen Moeller, um dos frequentadores dos dias de grade
do convento.
Ela conseguiu que o pai a tirasse do convento, provavelmente com a ajuda do irmão
Matias Aires, que sabia ser o convento “um modo de tirar-se a liberdade aos homens e às
mulheres, e nestas veio a cair o rigor do excesso; [...] Prendem-se as feras, e também se prendem
as mulheres; aquelas por brabeza, estas por mansidão” (1980, p. 102-3). E, em 20 de janeiro de
1728, por procuração, mediante uma autorização especial da Igreja, Teresa Margarida casa com
o amado, à rebelia paterna. Em 1752, é publicado em Lisboa o romance Máximas de virtude e
formosura..., de autoria de Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira, pseudônimo anagramático da
escritora. O enredo é simples e serve de pretexto para apresentar a filosofia das luzes,
especialmente no que toca à educação feminina e à política. As personagens femininas são porta-
vozes do ponto de vista sobre a educação feminina. Climenéia3, rainha de Tebas, que no exílio
esconde-se sob a identidade de Delmetra4 para procurar o marido e a filha, afirma:
Há mulheres na Corte que, em oitenta anos que viveram, nunca tiveram mais aplicação
que a dos seus enfeites; e é coisa lastimosa que deixemos de enriquecer-nos dos
conhecimentos necessários com a leitura de bons livros, que são companheiros sábios
de honesta conversação. (ibidem, p. 90).
A autora parte da crítica à futilidade feminina para sugerir que o estudo, o conhecimento e
a leitura deveriam ser “companheiros” femininos, pois “Nós [as mulheres] não temos a profissão
das ciências nem obrigação de sermos sábias; mas também não fizemos voto de sermos
ignorantes.” Quanto às leituras, sugere que as mulheres escolham os livros e não leiam os
“perniciosos os que tratam das paixões” (ibidem, p. 90) por essas leituras impedirem de ver “as
luzes”.
O amor-paixão que levara a menina de 16 anos a desafiar a autoridade paterna e a casar-se
com o amado, atitude pouco comum no século XVIII, era visto como um perigo. Aos que “se
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metem pelas setas de Cupido” adverte para as penas que os aguardam. Considera que “a
perfeição dos casados consiste naquela generosa paixão de amor decente, que com sua boa
ordem esmalta as virtudes, e alegremente conserva a felicidade dos matrimônios, porque o gosto
sempre dá asas ao amor” (ibidem, p. 95). Em alguns momentos, o livro é uma carta de guia para
as mulheres casadas, sugerindo para o bom relacionamento do casal que “Sofram-se os casados
alternativamente, que se o silêncio não curar moléstias interiores, só a morte as acaba” (ibidem,
p. 94).
É sempre o bom senso, o equilíbrio entre os sentimentos e a razão, que é estimulado.
Afirma que “os homens vieram primeiro ao mundo, fizeram as leis, e tomaram para si as
regalias” (ibidem, p. 95), isto é, as mulheres são o “segundo sexo”, a obediência e os trabalhos
são o que lhes cabe neste mundo. Mas observa também que se
[...] não resplandece em todas a luz brilhante das ciências; [é] porque eles ocupam as
aulas, em que não teriam lugar, se elas as freqüentassem, pois temos igualdade de almas
e o mesmo direito ao conhecimento; e o dizerem que [...] não sabemos entender, ajuizar,
aprender e [que] queremos sempre o pior, é sobra de maldade, e insofrível sem razão,
quando neles há sempre mais que repreender, e nas mulheres muito que louvar, menos
naquelas, que muito os atendem, porque eles as arruínam. (ibidem, p. 92)
4 ROMÂNTICAS
No século XIX, mais escritoras marcam presença, seja através de textos publicados em
jornais, seja em edições de pequena tiragem que surgiam país afora. Relembro duas autoras:
Maria Browne (1797-1861), a Soror Dolores, poetisa que abria as portas da sua casa aos
intelectuais do Porto e por cujo salão passaram, entre outros, Faustino Xavier de Morais e
Camilo Castelo Branco; Ana Plácido (1831-1895), a companheira de Camilo, mais lembrada por
esse fato do que pela escrita.
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Presa por adultério, Ana Plácido escreve Luz coada por ferros na cadeia, livro publicado
em 1863. O que mais surpreende não é o tom confessional e angustiado da narradora, mas a
consciência que tem de se saber mulher e de pretender mudar a sua trajetória através da
literatura. Na sua lucidez e modernidade, conclama as “mulheres de Portugal” a pôr fim à
“inatividade”, a se desligarem “de certas apreensões, procurando no livro e no estudo dos bons
mestres um refrigério para os tristonhos dias da velhice” (PLÁCIDO, 1995, p. 91). As
“apreensões” seriam, provavelmente, o preconceito que a mulher instruída enfrentava na
sociedade e a velhice que, sabe-se, chegava bem cedo – por volta dos cinquenta. Esse é um
conselho que ela dá às leitoras, para si mesma reserva outra missão. Escutemos as suas palavras:
Sei que não podemos aspirar a um nome distinto como o de madame Staël, ou Georges
Sand. A estas dotou-as a subtileza do engenho, a grandeza do gênio, a vivacidade
sublime que não possuímos desde que a marquesa de Alorna, e Catarina Balsemão
passaram sem herdeiras. Não demos ao homem a fácil vitória da nossa inércia.
Entremos desassombradas nesse trilho em que os mesmos espinhos nos fazem esquecer
outras dores. (ibidem, p. 91-2).
A incitação feita por Ana Plácido às mulheres portuguesas foi um rastilho que começou
bruxuleante até eclodir no século das mulheres. No século XX, são muitas as mulheres que
escrevem e publicam; nos anos de 1920, a poesia feminina circula em jornais e salões literários
onde as mulheres lêem seus poemas. A maioria fez sucesso, no seu tempo, mas hoje seus poemas
já não despertam interesse a não ser entre investigadores interessados em reconstituir a história
das mulheres. Outras, como Florbela Espanca e Judite Teixeira, só postumamente tiveram seu
talento literário reconhecido.
5 FEMINISTAS
Um novo marco na trajetória das mulheres na literatura é a publicação das Novas cartas
portuguesas (1972), obra inovadora na sua concepção e na temática. As três Marias, Maria Isabel
Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, entraram desassombradas “nesse trilho”.
Expuseram desafiadoramente a fragilidade masculina, afirmando:
- Frágeis no entanto são os homens em suas nostalgias, medos, rogos, prepotências, fingidas
docilidades. Frágeis são os homens deste país de nostalgias idênticas e medos e desânimos.
Fragilidade em tentativas várias de disfarce: o desafiar touros em praças públicas, os carros de
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Em que mudou a situação da mulher? De objeto produtor, de filhos e trabalho dito doméstico,
isto é, não remunerado, passou também a objeto consumidor e de consumo; era dantes como
uma propriedade rural, para ser fecunda, e agora está comercializada, para ser distribuída.
(ibidem, p. 263).
Questionaram a sexualidade:
E o erotismo, senhores, e o erotismo? Em quase todos os livros chamados eróticos que por hoje
abundam il n’y a pas de femmes libres, il y a des femmes livrées aux hommes. É essa a
libertação que os homens nos oferecem, de repouso do guerreiro passamos a despojo de guerra.
(ibidem, p. 264).
Mostraram, então, que a mulher continuava a ser objeto, deixara apenas de ter um
estatuto de exclusividade, mas a liberdade continuava (ou será que continua?) a não existir.
Afirmavam “não há mulheres livres, há mulheres entregues aos homens”. As autoras foram
processadas, espancadas, presas, caluniadas por transgredirem a tecnologia de gênero vigente na
sociedade portuguesa dos anos de 1970. Naquele ano de 1972, a solidariedade dos movimentos
feministas mundo afora mobilizou a opinião pública e, no ano seguinte, as autoras foram
absolvidas.
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
AIRES, Matias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1980.
BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho da. Novas cartas
portuguesas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria da literatura. Trad. de
Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
MELO, D. Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Lisboa: Europa-América, 1992.
ORTA, Teresa Margarida da Silva e Orta. Obra completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993.
PLÁCIDO, Ana. Luz coada por ferros. Lisboa: Livraria de A. M. Pereira, 1863.
VERNEY, Luís António. Verdadeiro método de estudar. (vol. V). Lisboa: Sá da Costa, 1952.
NOTAS
1
Cf. MELO, D. Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1992,
319
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2
D. João III, por alvará de 20 de Fevereiro de 1537, concedeu a Baltasar Dias o privilégio de só ele poder mandar
imprimir e vender as obras, tanto as que já tinha feito como as futuras. Cf. GOMES, Alberto F.. Introdução a
Baltasar Dias. In: DIAS, Baltasar. Autos, romances e trovas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.
3
O nome da rainha remete para a figura mitológica de Climene, filha do Oceâno e de Tetis, pertencente à primeira
geração divina e mãe de Prometeu; noutra versão era casada com Prometeu e mãe de Helen, ancestral dos helenos.
4
O nome Delmetra, ou melhor Démeter, aponta para outra figura mitológica: a filha de Cronos e de Rea, portanto da
segunda geração de deuses; mãe de Perséfone percorria a terra em busca da filha, mulher de Hades.
5
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria da literatura. Trad. de Sérgio Tellaroli.
São Paulo: Ática, 1994.
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1
Professora Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente faz o Pós-
Doutorado em crítica textual contemporânea, com o projeto “Arquivo Baraúna: xadrez anterior ao campo
de batalha”, na área de Linguística Histórica, no Departamento de Filologia Românica, com bolsa da
FAPESB.
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eficiente, pois conseguiu fixar uma verdade poética mais ampla e elevada do que as
verdades ordinárias daquela época de mudanças.
Nesse sentido, a poética reivindicatória de Luiz José Junqueira Freire entra em
sintonia com a poesia de Alexandre Herculano, pelo entusiasmo da raiva que abundava
no poeta português, visível no poema “A Semana Santa”, no qual Herculano “[...]
lamenta com raiva e amaldiçoa com fúria” (1), tal como relata em sua Autobiografia, o
poeta baiano, em comentário sobre essa questão; embora não concordasse com a ideia
de Herculano que, para elevar-se, buscava sempre um sentimento horrível e lamentasse
o fato de que A Harpa do Crente não fosse a palavra do cristão, Junqueira Freire
utilizaria recursos análogos em seus poemas para levantar questões e fazer denúncias.
Assim se expressavam os dois poetas em sua revolta contra os tiranos:
Eu nunca fiz soar meus pobres cantos nos paços dos senhores!
Eu jamais consagrei hino mentido
Da terra aos opressores.
Alexandre Herculano, A Harpa do Crente (2)
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relação com o mundo interior, do qual o poeta Pedro Kilkerry retira uma energia
proveniente de forças demoníacas incontroláveis existentes no seu inconsciente
artístico, elaborado como uma usina produtora, faz com que, nesse poema, o ambiente
seja percebido pelos sentidos e pela consciência do poeta, que vê expandir o horizonte
de seu ser no fazer poético. O amálgama oriundo da mistura de elementos díspares com
o sujeito poético contribui para formar um todo lírico necessário ao magma em que se
transforma o poema, cuja origem é profunda
A segunda estrofe, de rica trama melopaica, como, aliás, é todo o poema,
apresenta o poeta no instante da criação, a perceber, através dos sentidos e da
consciência, o “bulir das cousas”, no conjunto de fenômenos que ocorrem no ambiente e
que se definem em oposição às leis abstratas e fixas que os ordenam. Tais elementos
fenomenológicos visíveis na composição poética demonstram a raridade do momento
que é apresentado ao leitor: a reflexão sobre a criação poética, poema sobre o poema. O
caráter singular de “É o silêncio...” é proporcionado pela potência e densidade das
palavras que provocam, de uma maneira inesperada e quiçá violenta, a descoberta
reveladora do instante consagrado, através da lírica.
A tensão proporcionada em “É o silêncio...” orienta o discurso poético por um
caminho, no qual as cadeias aliterativas e paronomásias são elementos condutores de
uma sonoridade intensa, que se desenvolve na segunda estrofe e resvala para o silêncio
oriundo da afonia dos versos da terceira estrofe, substituída pela alusão a um rufar de
tambor que anuncia algo: nela, o sujeito poético assume a imagem ilusória de um
fantasma concebido como sendo o de Sidharta Gautama – o Buda Novo, a quem se
referem os versos –, para receber o alto conhecimento proveniente do estado de
ausência total de angústia conquistada na paz e na plenitude alcançada pela evasão de si
que, para o poeta, se encontra na sabedoria revelada pelo poema. A atmosfera é densa e
mais se adensa com o enfolhamento da natureza circundante, pela natureza lírica do
discurso poético; porém, essa densidade se desvanece na penúltima estrofe, quando o
poeta abre finalmente a janela e recebe, da lua, as “últimas notas trêmulas” para compor
os versos que faltam.
Os seis versos finais do poema vêm precedidos de uma linha pontilhada, que foi
ali colocada para indicar uma interrupção do pensamento, uma ideia suspensa. O
recurso gráfico funciona como pausa para retomar, em outro ponto, o poema e, assim, o
sentido do que está escrito se completa em outro instante. “A ironia, que afasta o poema
do sentimentalismo, e a ocorrência de uma fanopeia inusitada, produzida pelas
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REFERÊNCIAS
BARAÚNA, Alberto Luiz. Quarenta quase sonetos e uma sextantina hexagonal para
viola d’amore. Capa e ilustração de Calasans Neto. Salvador: Macunaíma, 1973.
BLOOM, Harold. Cabala e crítica. Tradução de Monique Balbuena. Rio de Janeiro:
Imago, 1991.
CAMPOS, Augusto de. Revisão de Kilkerry. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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NOTAS
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INTRODUÇÃO
∗
Professora Associada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal Fluminense
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1. O SEGUNDO LIVRO
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acrescentar a esse tosco resumo de parte da trama política, que acaba por se constituir
como o fio condutor da narrativa, que tanto o Seabra quanto o Miguéis eram
funcionários dos escalões inferiores, sem nenhum destaque em suas apagadas e
submissas carreiras, espécies de fantoches incluídos, sem contestação ou vontade
própria, num esquema de corrupção que os ultrapassava em todos os sentidos: com os
respectivos egos afagados por seus chefes, incitados a acreditar na importância de sua
participação, eram, na verdade, bodes expiatórios dos que os manipulavam e que
permaneciam na sombra de sua atividade ilícita, confortavelmente instalados em seus
escritórios oficialmente destinados a outros fins, onde todos os planos ilegais e
criminosos – do contrabando a assassinatos – eram forjados. Através dessa complexa
rede de poderes paralelos, antiéticos e imorais – lentamente decifrada e recomposta pelo
leitor em meio à confusão fragmentária da narrativa -, o romance, contundentemente,
denuncia os desmandos do período pós-colonial, tanto em Portugal, quanto em Angola,
apagando, de forma radical, os traços de qualquer sentimento utópico relacionado aos
novos tempos: a sociedade descrita nessas páginas de Lobo Antunes é uma sociedade
em profunda crise de valores e de crenças, na qual os ideais revolucionários que
alimentaram não só as guerras de independência na África, como também a
reconstrução de Portugal, são pulverizados diante da miséria humana, social e política
com que travamos contato.
Dentro desse amplo quadro disfórico, projetamos nosso olhar sobre o Miguéis,
cuja aventura em África (tanto quanto para o Seabra e para outras personagens, aliás)
será uma experiência radical, na qual tem lugar uma vasta revisão de sua vida passada e
presente. Por entre incontáveis cortes e repetições, por entre suspensões e retomadas,
vamos, labirinticamente, acompanhado o monólogo interior em que a personagem,
como que a perder e a juntar fragmentos, vai recompondo diversos planos de seu
percurso existencial. Entendemos que ele se encontra em Luanda, envelhecido, solitário,
desnorteado, a tentar montar as peças do quebra-cabeça em que se configura sua tarefa
de encontrar o colega desaparecido, ao mesmo tempo em que mergulha em todas as
camadas de tempo e de espaços que sua memória, febrilmente, recupera. Todas as
misérias de sua vida apagada e desperdiçada vão, aos poucos, emergindo do caos de sua
fala dilacerada, na composição de um às vezes patético quadro de sofrimento e
desamparo: aos tropeços, vamos, com ele, redesenhando, por exemplo, os contornos de
um casamento feito de silêncios e ressentimentos, bem como a moldura de uma tensa e
frustrante experiência de paternidade, em que a rejeição da filha por ele e a inibição dele
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diante da filha podem assumir tons tragicômicos, em que alguma coloração incestuosa
parece se insinuar. Entremeadas a essas, repercutem memórias da infância, as relações
com os pais, imagens de espaços habitados, dentre os quais se destaca a paisagem
entrevista da janela da casa:
Misturando-se com vivências mais próximas, esta lembrança do que era visto da
janela da casa voltará muitas vezes à cena, sempre acompanhada das dúvidas da
personagem sobre a verdadeira identidade das árvores:
Não será por acaso a insistência nesta imagem, tomada aqui como um exemplo
do que acontece com muitas outras, em variados momentos do romance, em cada um de
seus livros, todas funcionando como centros irradiadores de sentidos, pistas (ou
obstáculos) que se oferecem às possíveis interpretações do texto. No caso deste recorte
da paisagem limitada pela moldura da janela, o que logo parece ressaltar é a idéia de
confinamento, de solidão, de carência de horizontes e de beleza: o que é visto são as
traseiras de prédios, sem presença humana, sem nenhuma claridade, sem “a miséria de
um candeeiro à noite”. A prometida beleza de uma magnólia num vaso é logo
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constituem o objetivo desta leitura. Assim é que a expressão “na matéria e na alma” foi
tomada de empréstimo a Gilles Deleuze que, por sua vez, a recolheu nos escritos de
Leibniz (1646- 1716), cuja filosofia é revisitada em A dobra – Leibniz e o barroco.
Neste livro, Deleuze associa de forma contundente Leibniz a aquele momento histórico
e artístico, demonstrando como o conceito de dobra, fundamental na construção do
sistema filosófico leibniziano, é a marca inegável da produção estética do barroco,
veiculadora de uma visão de mundo que coincide, de modo geral, com as idéias
expostas pelo pensador alemão do século XVII. As reflexões deste sobre a constituição
do mundo inorgânico e do mundo orgânico, sobre a matéria e a alma, sobre o conceito
de mônada, sobre o movimento infinito da linha sinuosa, flexível, que gera e mantém o
continuum da vida, sobre a metáfora da casa barroca, constituída por seus dois andares,
habitados, respectivamente, pela matéria e pela alma – enfim, os principais temas que
ocuparam Leibniz em sua vasta obra são relidos por Deleuze e evidenciam a
possibilidade de associarmos a idéia básica da dobra a conceitos e a produções
filosóficas e artísticas do mundo contemporâneo:
O pouco do que foi exposto sobre o romance de Lobo Antunes parece permitir
que o leiamos sob esta perspectiva barroca contemporânea, no mesmo patamar dos
autores mencionados por Deleuze e por tantos outros que estruturaram suas produções
numa configuração que tem no movimento da dobra sua maior evidência. A escrita de
Boa tarde às coisas aqui em baixo, como mencionamos, se faz de muitas idas e vindas,
de cortes e de retomadas, de simultaneidades temporais e espaciais: é uma escrita que se
dobra sobre si mesma, linha em espiral a compor as inúmeras entradas e saídas de uma
linguagem em labirinto, imagem barroca por excelência. Voltando a Deleuze:
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Boa tarde às coisas aqui em baixo. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2003.
338
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NOTAS
i
BARTHES, 1978, p. 17
ii
ANTUNES, 2003, p. 206.
iii
ANTUNES, 2003, p. 207.
iv
ANTUNES, 2003, p. 232/233.
v
ANTUNES, 2003, p. 264/265
vi
DELEUZE, 1991, p. 64
vii
DELEUZE, 1991, p. 18
viii
DELEUZE,1991, p. 66
ix
ANTUNES, 2003, p. 240
x
ANTUNES, 2003, p. 344/345
339
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1
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 3.
2
ANDRADE, Carlos Drummond de. Nosso Tempo. In: ____. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1976. p. 109.
340
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que está para nascer, ele será o primeiro a expressar essa inquietude, a insatisfação do
homem para com o seu tempo. Dessa forma, o eu-lírico da modernidade expressa um
descompasso do Ser com o seu tempo, e se muitas vezes ele faz apologia desse novo
tempo, essa apologia passa a constituir uma denúncia da sua não-aceitação da
automação do Ser, ou da sua fragmentação. Por ser tão fragmentado, o eu-lírico
moderno aparece, muitas vezes velado, expresso em forma de objeto, recusando-se a
assumir a sua condição de sujeito.
Fernando Pessoa é a própria encarnação desse eu-lírico moderno. Herdeiro de
uma tradição vasta, que vai das cantigas trovadorescas, passando por Camões,
Shakespeare, os escritores metafísicos ingleses, Walt Whitman, chegando até os seus
contemporâneos, ele, querendo negar essa tradição para firmar-se no programa
modernista português, faz exatamente o oposto em sua obra, de onde emana a essência
do antigo e do novo. Ele é, como o denominou Octávio Paz, o desconhecido de si
mesmo3, e o próprio Pessoa reconhecia ser ele um estrangeiro onde quer que habitasse a
sua alma:
Lídia, ignoramos.
Somos estrangeiros
Onde quer que estejamos. [...]
Onde quer que moremos.
Tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde escondermos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.5
3
1. PAZ, Otávio. Signos em Rotação.
4
2. PESSOA, Fernando. Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 286.
5
Ibid. p. 288
6
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 291.
341
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7
Ibid. p. 303.
8
Ibid. pp. 303-345
342
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Os deuses desterrados
Os irmãos de Saturno
Às vezes no crepúsculo
Vêm espreitar a vida11
E através desse declínio de deuses, o poeta busca o seu ponto de apoio naquilo que
passa a ser a razão de sua existência e dos companheiros da sua geração, ou seja, a
poesia que é levada à categoria de mito, equalizando vida e arte. Por não conseguir
transformar a vida em poesia, isto é, viver efetivamente a Poesia, seu companheiro, Sá-
Carneiro, suicida-se. Fernando Pessoa, contudo, opta pela vida enquanto arte, sabendo
do seu papel de artista, como ele próprio declara em uma das cartas a Armando Cortes:
Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu
esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da
minha vida. E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante cousa,
mais terrível missão – dever a cumprir àrduamente, monásticamente, sem
desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística. E por
isso o meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se;
exijo agora de mim muito mais perfeição e elaboração cuidada. Fazer arte
ràpidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à missão que me sinto
uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.
[...] Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras de sentir.
Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa
no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o
progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade.
9
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 285.
10
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 296.
11
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 254.
12
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 255.
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E para não percorrer o mesmo caminho de seu amigo, ele cria vida, gerando
heterônimos que são personagens/pessoas com vidas próprias, que são ele e não são. É a
forma que ele encontra de conviver com sua própria contradição, ou de enfrentar os
diversos “eus” que se guardavam em sua única “pessoa”.
A busca de um eu-uno universal, ou a vontade de assemelhar-se a Shakespeare
de quem muito recebeu influências, faz com que ele componha os poemas ingleses, que
ele próprio declara indecentes para a moral vigente na época.14 Cônscio do pouco valor
devotado à língua portuguesa pela crítica da época, compõem não só em inglês, como
em francês, numa tentativa de extrapolar nacionalidades e tornar-se universal, como que
querendo recuperar para si toda uma tradição, saindo das fronteiras do particular para o
universal, já que a crítica sempre se volta para as línguas de maior prestígio sócio-
político-econômico.
Não satisfeito com isso, ele mesmo, através de seus heterônimos, passa a exercer
a função de crítico, criticando a si mesmo, desenvolvendo teorias que avançam muito
além de onde a crítica de sua época conseguia chegar, como as suas considerações
acerca dos gêneros e da criação poética. Para comprovar suas teorias, escreve os poemas
dramáticos, mostrando que eles são tão líricos quanto dramáticos, compõe o livro
Portugal (depois denominado Mensagem), numa tentativa épica, retomando Camões, e
mostrando-nos que eles são tão líricos quanto épicos.
A lírica, como presentificação da recordação, implica a expressão de um eu-
lírico que desconhece o “eu” do poeta enquanto indivíduo. Esse era o grande dilema que
Pessoa enfrentava, buscando resolvê-lo através de sua heteronímia:
13
PESSOA, F. Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues. Lisboa, Inquérito, 1959. (Carta datada de
19/1/1915).
14
Ibid. (Carta datada de 4 de setembro de 1916)
15
PESSOA, F. O Livro do Desassossêgo. In: ___. Obra Poética. p.56.
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A consciência do tempo enquanto rio, que traduz o caráter efêmero da vida, aparece nos
seguintes versos, que se assemelham aos versos de Lamartine e aos de Shakespeare:
Há, aqui, uma perfeita semelhança com os versos de Shakespeare (“So should my
papers, yellow'd with their age”)20 e com o poema de Lúcio Cardoso “A Ismênia, num
certo domingo”:
16
PESSOA, F. Odes de Ricardo Reis. op. cit. p. 283.
17
Ibid. p. 284.
18
Ibid.
19
Ibid.
345
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Esse assassínio de deuses implica a orfandade do homem que passa a ser um filho
ignorado do Caos na solidão da vida:
20
SHAKESPEARE, William. Sonnets. In: ___. The Complete Works. op. cit.
21
CARDOSO, Lúcio. Poemas-Inéditos. p. 39.
22
PESSOA, F. Obra Poética. p. 288.
23
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 285.
24
PESSOA, F.Odes de Ricardo Reis. In:___. Obra Poética. p. 287.
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Dentro dessa solidão, o ser elege-se a si mesmo, da mesma forma que Whitman
proclamou a elegia do “eu” no poema “Song of Myself”:
O último verso mostra-nos a grande influência de Shakespeare sobre o poeta, pois ele
retoma um dos solilóquios do quinto ato de Macbeth, cena 5, onde aparece esse caráter
niilista da vida, quando ele compara a vida a um conto, contado por um idiota, cheio de
som e fúria, nada significando.
25
Ibid. p. 287-8.
26
Tradução nossa: “Celebro a mim mesmo e canto a mim mesmo / E o que eu assumo você deve assumir
/ Pois cada átomo pertencente a mim também pretence a você”. (WHITMAN, Walt. Song of Myself. In:
McQUADE, D. et al. (orgs.). The Harper American Literature. Compact Edition. New York: Harper &
Row, 1987. p. 1016).
27
Ibid. p. 288.
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Contudo, impera ainda a consciência da solidão e da 'queda', e ela é que motiva o poeta
a eleger o momento presente como o tempo da realização:
28
Tradução nossa: “Amanhã, amanhã e amanhã / rasteja neste paço insignificante dia a dia / Até a última
sílaba do tempo registrado; / E todos os nossos ontens iluminaram idiotas / O caminho para a morte
poeirenta. Apague, apague, breve chama! / A vida é apenas uma sombra andante, um péssimo ator / que
se pavoneia sobre o palco / e depois não é mais ouvido. É um conto / contado por um idiota, cheio de som
e fúria / significando nada”. (SHAKESPEARE, William. Macbeth Ato 5, cena 5, 19–28. In:___. The
Complete Works. pp. 1024-5).
29
MEYERHOFF, H. O tempo na literatura. p. 65.
30
PESSOA, F. Obra Poética. p. 289.
31
Ibid. p. 290.
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Apesar dessa eleição do momento, ela se esvanece posteriormente, pois o próprio poeta
a nega:
Essa negação é reafirmada através de seu outro heterônimo Álvaro de Campos, que se
declara convalescente do momento, sem poder com a vida e com uma persistente mágoa
de viver:
No “Cancioneiro”, Fernando Pessoa por ele mesmo trata do tema da “queda” e do caos
como idéia de um mundo exterior ao próprio ser, buscando uma resposta e um sentido
no plano metafísico, plano esse que o próprio ser não pode conceber. Essa visão é
expressa no poema “A Queda”:
32
Ibid. p. 290.
33
Ibid. p. 291.
34
Ibid. pp. 303-4.
349
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Por isso, Álvaro de Campos elege o presente, pois ele sabe que o presente contém
outros tempos, é o somatório da tradição com a modernidade:
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contraditório, que ama e ao mesmo tempo odeia a civilização e “o mundo e o sabor das
coisas tornam-se um deserto dentro de nós”44, como ele próprio declara em “Ode
Marítima”:
E eu, que amo a civilização moderna, que beijo com a alma as máquinas
[...]45
Esse deserto interior, causado pelo duelo entre o ódio e o amor ao instante, provoca o
estilhaçar do “eu” em múltiplos de ser, o ser que vive a velocidade de uma cavalgada, o
“eu-múltiplo” de “Passagem das Horas” e da “Ode Marítima”.47
Para entendermos a poética de Fernando Pessoa, antes de tudo temos que aceitar
a sua estranheza. Para entender a sua obra no todo, devemos analisar as partes em
separado. À primeira vista, parecem obras de autores diferentes. Contudo, se Fernando
Pessoa (ele mesmo) busca o tempo da não-diferenciação, a hora expulsa do tempo,
como em “Impressões do Crepúsculo”48, e Álvaro de Campos finca suas âncoras no
presente, ele também persegue o presente Sem-Tempo, ou seja, o tempo onde o passado
recorda o presente e o presente recorda o futuro. E isso constitui a sua unidade na
diversidade.
Apesar disso, sua obra sempre deixa um espaço aberto que nunca podemos
preencher por estarmos todos às margens da “floresta do alheamento”49.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olympio,
1976.
44
Ibid. p. 318.
45
Ibid. p. 319.
46
Ibid. p. 327
47
PESSOA, F. Obra Poética.
48
Ibid. p. 108
49
Ibid. p. 435
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As relações entre José Saramago e os seus leitores vêm conhecendo, a cada dia
que passa, os frêmitos crescentes de uma afetividade. Não há nelas lugar para a
indiferença ou, mais pontualmente, para um território descontaminado de sobressaltos
de múltipla natureza. O ficcionista prefere a interrogação e o desafio, o lado sonegado
do real, um imaginário perturbador, renunciando às lógicas conservadoras,
sedimentadas num jogo de previsão dos gostos correntes. E di-lo sem tibieza: "Os
escritores não têm que andar cá para tranquilizar, suponho mesmo que é nosso dever
intranquilizar toda a gente." Assim, o seu êxito não repousa num trabalho feito de
interdições, alheamentos, cômodos ou calculados dizeres, nem em um processo de
enunciação à medida do consumo imediato, mas, pelo contrário, do desassossego que os
seus livros transportam e fazem emergir. Apesar da serenidade de uma literatura que
recusa toda a espécie de disfemismos para dizer a elegia, o tormento e a angústia, tal
como para as notações do júbilo, do enlevo e da fruição apolínea.
No entanto, num como noutro irrompem figuras, articulações e micronarrativas
que, pela sua singularidade contagiante, acabam repondo, senão mesmo fixando,
temários fundamentais: o amor e a morte, o poder, a mentira, a intolerância e a
hipocrisia, o desengano, o fatalismo, a História enquanto movimento (com os seus
nexos e projeções na atualidade), a abolição das fronteiras do tempo, o tropismo
depredatório do homem em comunidade, o caráter mutável dos entes e das coisas, a
utopia de uma nova gênese que ao universo restitua o quanto fomos destruindo. E
também a contingência, a procura da verdade, o sortilégio do imprevisível, a
convocação lírica, o epigrama, um diálogo penetrante com o quotidiano, as tensões
dialéticas entre o efêmero de cada realização e a sua apetência de perenidade.
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excesso; a construir uma prosa cujo ritmo compassado, intercalando fatos e diálogos,
tem uma capacidade singular tanto de atrair admiradores quanto de semear detratores.
O ocorrido relatado é “verdadeiro”, segundo estudiosos, e na intensa pesquisa do
ficcionista, ele deu asas à imaginação e estabeleceu relações interessantíssimas. Igreja e
capitalismo são os alvos preferidos de Saramago, que não poupa sarcasmo na descrição
de cenas hilariantes. Numa das melhores do livro, salomão (o elefante, que assim como
as outras personagens é identificado com letras minúsculas) leva à comunidade ao
delírio quando protagoniza um milagre, meio falso, meio verdadeiro, mas um milagre.
O elefante é, na verdade, a porta de entrada a um mundo de fantasia. Em alguns
momentos, é ovacionado como criação divina, causando espanto e comoção por onde
passa – naquela época, boa parte dos europeus jamais havia visto um animal desses. Por
outro lado, não há metamorfose em salomão. Ainda que endeusado, ele não deixa de ser
o "bruto paquiderme de quatro côvados de altura a descarregar malcheirosas excreções"
entre Portugal e Áustria. Uma delícia é ver como Saramago aproxima a irracionalidade
da emoção. Não é que o elefante pareça um homem. É, sim, o homem que se assemelha
ao bicho, num jogo retórico digno de um Nobel de sua alta literatura. Longe de se
confundirem com uma possível identificação biográfica entre texto e autor, as noções de
ambiência, tanto física como cultural, justificam-se como lugares poéticos utilizados
com função metonímica no texto.
Entre salomão e o resto do mundo existe um homem. Subhro, o cornaca (como
se chama em bom português o tratador de elefantes), é uma personagem central na
trama. É pela voz do indiano intelectualizado que saem as críticas mais afiadas ao
sistema. Montado na nuca de salomão, ele observa as armações religiosas e políticas
que se estabelecem no decorrer do trajeto: “(...) o cornaca subhro, ou branco, prepara-se
para ser a segunda ou terceira figura desta história, sendo a primeira, por natural
primazia e obrigado protagonismo, o elefante salomão (...)”iii
O modo de narrar é outro aspecto importante de A Viagem do Elefante, pois há
um trabalho de narração executado com maestria por Saramago. A começar pela
estratégia visual adotada pelo autor, que abre mão de pontos finais e travessões e opta
pela vírgula, um intervalo breve, para separar os diálogos – o que dá tremenda agilidade
ao texto. Os nomes próprios são prescindidos de iniciais maiúsculas, igualando reis e
animais com letras minúsculas. Contudo, o melhor de tudo é que o autor não faz
mistério sobre seu processo criativo, chamando o leitor a todo instante para o método de
construção narrativa. Logo nas primeiras páginas, por exemplo, o narrador anuncia o
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uso de dois discursos paralelos que nunca se encontrarão – o dito e o não-dito: “No
fundo será como num filme, desconhecido naquele século dezesseis, estivéssemos a
colar legendas na nossa língua para suprir a ignorância ou um insuficiente conhecimento
da língua falada pelos atores.”iv E chama os leitores para esta aventura: “Teremos
portanto neste relato dois discursos paralelos que nunca se encontrarão, um este, quem
poderemos seguir sem dificuldade, e outro que a partir deste momento, entra no
silêncio. Interessante solução.”v Também chama a atenção para as soluções mágicas que
alguns episódios terão, relevando explicações nada lógicas para alguns fatos, no que
consiste a grande delícia da criação.
O fato histórico pode vir a sugerir outros fatos históricos e esta trucagem é o
ponto de partida para José Saramago criar uma ficção em que se encontram os episódios
narrados pelos caminhos da Europa entre Lisboa e Viena.
Os lugares poéticos, sempre carregados de tintas para descrever a inesgotável
generosidade da imaginação que preenche os espaços vazios deixados pelo mundo real,
e inventa “chaves para abrir portas órfãs de fechadura”. Vem nos dizer a todo momento
que o melhor lugar do mundo é mesmo o do mentiroso, do romancista. Uma resposta e
tanto para quem acha que o livro vai acabar e que a narrativa está à beira da morte. O
fato histórico pode vir a sugerir outros fatos históricos e esta trucagem é o ponto de
partida para José Saramago criar uma ficção que é repleta de fantasias, ironia e humor.
A estes recursos se referem o rei e o seu secretário logo no início da narrativa:
“... as fadas que presidiram ao meu nascimento não me fadaram para o exercício das
letras, Nem tudo são letras no mundo, meu senhor”, porém ironiza “ir visitar o elefante
salomão neste dia é, como talvez se venha a dizer no futuro, um acto poético.”vi
Obviamente e à propósito, o rei pergunta ao secretário o que é um acto poético, ao que
este lhe responde: “Não se sabe, meu senhor, só damos por ele quando aconteceu, Mas
eu, por enquanto, só tinha anunciado a intenção de visitar o Salomão, Sendo palavra de
rei, suponho que terá sido o bastante, Creio ter ouvido dizer que, em retórica. Chamam a
isso ironia.”vii.
Clara é, também, a metáfora executada nas 258 páginas de escrita precisa e
depurada: A Viagem do Elefante, por planícies abrasadoras, serras geladas, chuva e
nevoeiro, é a longa marcha dos homens, a Viagem de qualquer um de nós para o lugar
que sempre nos espera: a morte. “Custa é saber / como se emenda a morte”, uma poética
de espaço bastante cara à literatura, escreveu Luiza Neto Jorgeviii, e esta narrativa de
José Saramago parece responder-lhe, ao emendar a morte com o gesto da escrita que,
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sentir em casa, projetando-se que, um dia, no Algarve, “toda a praia que se preze, não é
praia mas é beach, qualquer pescador fisherman, tanto faz prezar-se como não, e se de
aldeamentos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquemos sabendo que é mais aceite
dizer-se holiday’s village, ou village de vacances, ou ferienorte.”xvi
Feita na primeira pessoa do plural, a narração é uma homenagem aos
companheiros de viagem, a epígrafe da gratidão, com destaque individual de José
Saramago à sua mulher, na Dedicatória: “A Pilar, que não deixou que eu morresse”.
“A meta é o esquecimento. / Eu cheguei antes”, escreveu Jorge Luís Borges em Rosa
Profundaxvii. Também a José Saramago se aplica a mesma certeza, por inscrever a
perenidade numa pujante obra literária, reiterando-a neste livro que, ao falar sobre a
morte, nos provoca um misterioso sentimento de felicidade. Talvez esta a ironia maior!
A escrita de Saramago é servida por uma notável capacidade especular que a
tudo confere consistência e apelatividade, cumpliciando, seduzindo, estabelecendo
dialogias e oposições. No seu jorro contínuo, estuante de ritmos, usa os ingredientes
técnicos sem os macerar pela desmesura ou pelo tédio, harmonizando uma grande
elaboração formal com a prática digressiva da oralidade. Desprogramada, embora nunca
inadvertida, incorpora o acaso, o pretextual, o que vem a propósito e irriga o tecido
narrativo de inflexões remodeladoras: o prazer da narração errante! Este prazer errante
na narrativa não cede, todavia, à tentação do fragmento.
Tomando como parâmetro o conceito "benjaminiano" pleno de "tempo de
agora", ou seja, "ao mesmo tempo surgimento do passado no presente" e "evento do
instante, daquilo que começa a ser... que deve pelo seu começo, nascer a si, advir a si,
sem partir de nenhum lugar"xviii e parafraseando Jeanne Marie Gagnebinxix , isso ocorre
devido ao fato de Benjamin opor à História a exigência do presente, para que o passado
não seja, na lembrança, uma simples enumeração oca, "mas a tentativa, sempre
retomada, de uma fidelidade àquilo que nele pedia um outro devir..."xx. É nessa
perspectiva que Saramago amarra a ficção dentro da história e a história dentro da
ficção, exercício e/ou processo de composição que irá romper justamente com o
historicismo de nexo causal, para se impor como narrativa de legitimação da História,
que, ao se lembrar do passado, é também sempre escrita no presente e para o presente.
Outrossim, é mister mostrar o processo pelo qual isso é feito, sob forma de forte
alegoria, pois a história oficial aparece justamente no texto ficcional em oposição às
omissões dos relatos históricos positivistas. É importante frisar que, nesse caso, a
tradição aparecerá sempre marcada pela história dos oprimidos e dos perseguidos,
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ponteiros encontrem uma nova sincronia; e o seu projeto passa, então, pelo retomar da
escrita como o sujeito desse movimento.
Na verdade, o que constitui o inusitado do romance de Saramago é essa
restituição do universo da ficção a uma alegoria, muito embora essa alegoria não seja
um fim, em si, como sucede na máquina barroca, em que o objeto final esvazia os
múltiplos significados que constituem cada um dos membros. Não há, em Saramago,
esse objeto final, dado que ele é, sempre, uma problematização do fato que lhe deu
origem. Há, então, algo de prometaico nesta escrita que procura, em cada novo
romance, levar até ao cimo a pedra do humano, para verificar a queda como o lado mais
prosaico do mito fundador do Homem; e, em paralelo, instalar a escrita como o motor
dessa ascensão, restituindo à estória o lugar cimeiro de onde a História a empurrara.
Por outro lado, a história literária, não por recusar reler o passado, mas por
desconhecer o endereço de determinados autores no tempo, obriga o passado a ser
alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado, como nos diz
Eliot.xxi
Saramago assim constrói o enredo alegre/perverso de A Viagem do Elefante.
Para tal, reconstrói imaginariamente o passado, tornando-o legível e confiável. O que,
de certa forma, sem querer comparar nada e ninguém, me faz lembrar Borgesxxii (1960),
que afirmou com muita agudeza: "O fato é que cada escritor cria seus personagens. Seu
labor modifica nossa concepção do passado, como há de modificar o futuro." Esse é o
chamado tempo da percepção, da intelecção, totalmente relativizado. O autor inclui na
sua história tudo o que da história oficial fora provavelmente excluso e
consequentemente marginal na tradição historiográfica. A narrativa passa, por
intermédio da relativização de valores morais e históricos, a remeter seu nexo e valia
literários a si própria ou a uma rede de acontecimentos-relações que se fecha na própria
narrativa, levando o processo histórico a uma circularidade temática bastante intensa, o
que confirma o caráter da trama: a história é arremessada numa narrativa ad infinitum a
significações relativas, nunca plenas, pela própria natureza da ficção e de sua
temporalidade, do seu suceder na História. Assim, há um papel crescente da
interpretação e dos interpretantes histórico-reflexivos apontados por interpretantes
ideológicos, pois estes, de sua parte, também têm os léxicos e a composição da
linguagem vinculados ao fluxo e ao contexto históricos e literários: “Não se pode
descrever. Realmente, o maior desrespeito à realidade, seja ela, a realidade o que for,
que se poderá cometer quando nos dedicamos ao inútil trabalho de descrever uma
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paisagem, é ter de fazê-lo com palavras que não são nossas, que nunca foram
nossas,(...)”xxiii para arrematar afirmando que “repare-se palavras que já correram
milhões de páginas e de bocas antes que chegasse a nossa vez de as utilizar, palavras
cansadas, exaustas de tanto passarem de mão em mão e deixarem em cada uma parte de
sua substância vital.”xxiv
Sua prosa (inter)age mais pela competência do ficcionista na construção da
ironia e do humor abundante, repito, desautorizando a tradição historicista e abusa desse
canal para conduzir o leitor ao modelo de história proposto por ele: mostrar via ficção a
verdadeira história. Assim, a parte visual da fantasia, portanto, o papel da imaginação, é
sempre precedida ou acompanhada da originalidade do discurso: a ficção nasce da
confluência e do entrechoque de dois de métodos de narrar. Não à toa seu texto nos
provoca para esta reflexão: “E o cronista destes acontecimentos não tem pejo em
confessar que teme não ser capaz de descrever o famoso desfiladeiro que mais adiante
nos espera,(...)”xxv, reiterando a construção dos lugares poéticos: “(...) ele que, já quando
do passo do isarco, teve de disfarçar o melhor que podia a sua insuficiência, divagando
por matérias secundárias, talvez de alguma importância em si mesmas, mas fugindo
claramente ao fundamental.”xxvi
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. A rosa profunda. In: Obras completas. Vários tradutores. Tomo
III, p. 99. São Paulo: Globo, 1999.
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JORGE, Luisa Neto. Apud COUTO, Teresa Sá. A Viagem do Elefante, José Saramago.
Orgia Literária. http://orgialiteraria.com/?p=169, dezembro/2008, acesso em
14/08/2009, às 22 h.
PERRONE-MOISÉS, Leila. Altas Literaturas. São Paulo: CIA. das Letras, 1997.
SARAMAGO, José. A Viagem do Elefante. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
____________. Memorial do Convento. São Paulo: Companhia das. das Letras, 1982.
NOTAS
i
Saramago, 2008.
ii
B! http://bravonline.abril.com.br/conteudo/literatura/livrosmateria_397851.shtml, acesso em 12/08/2009,
às 21 h.
iii
Saramago, 2008, p. 33.
iv
Ibid., p. 38.
v
Ibid.
vi
Ibid., p. 17.
vii
Ibid.
viii
Jorge, http://orgialiteraria.com/?p=169, acessado em 15/08/2009 às 21h30.
ix
Cardoso, ibid.
x
Saramago, 2008, p. 61.
xi
Ibid., p. 222.
xii
Ibid.
xiii
Ibid.
xiv
Ibid.
xv
Ibid.
xvi
Ibid., p. 233.
xvii
Borges, 1999, p. 96.
xviii
Gagnebin, 1994, p. 111.
xix
Ibid.
xx
Ibid.
xxi
Apud Perrone-Moisés, 1995, p. 30-31.
xxii
Borges, 1999.
xxiii
Saramago, 2008, p. 241.
xxiv
Ibid.
xxv
Ibid., p. 238.
xxvi
Ibid.
363
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*
Professora efetiva de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-
grandense (IFSul) – Campus Passo Fundo, RS.
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escreve e aquele que é enunciado não pode ser determinada com precisão. Qualquer
uma das três personagens poderia ser a escritora do diário ou, até mesmo, ser tripla a sua
redação.
Um dos motivos que desencadeia a escrita é o medo de estar sozinho,
significando assim uma tentativa de encher os momentos em que o narrador está
solitário. Em outro momento, afirma que a gravidade das palavras serve como uma
“roupagem metafísica” com que se pode cobri-las, para assim mascarar o pavor do
acaso, a contingência do destino17. Ao contrário das personagens de Robbe Grillet,
Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo se revelam pelo discurso, dramatizam suas
vidas. Não seria o diário uma espécie de palco para a expressão do eu? Até mesmo
Catarina, embora morta, está seguidamente presente entre o casal, a lembrar talvez não
o ciúme, como em Robbe-Grillet, mas a possibilidade de que o rumo de suas vidas
pudesse ser outro. O drama vivido pelas personagens soa falso, pois utilizam a
compreensão que possuem do mundo para justificar o desassossego, a frustração, a
infelicidade.
A narrativa desse romance é fragmentada, não se pode precisar a sequência dos
acontecimentos, já que é a memória que conduz a lógica do discurso e a ordenação dos
fatos. O leitor procura entrelaçar os fios narrativos, construir significados, que sempre
são colocados em xeque. A obra parece transformar-se a cada página, escorrendo por
entre os dedos do leitor, que busca em vão estabelecer significação. Como chama a
atenção Vilma Arêas, “o narrador não esconde seu gosto (desesperado?) pelos jogos
combinatórios, e por aquela “máquina de jogar às escondidas”, confessando-nos que
‘mente escandalosamente’ e que está a representar uma comédia, com todas as máscaras
de praxe”18.
Esse jogo narrativo tem como propósito problematizar a condição do sujeito
num mundo cujos pontos de referência foram profundamente abalados. Esse sujeito à
deriva, que procura dar unidade aos fatos relevantes de sua vida, acaba por reproduzir e
até mesmo intensificar o seu mal-estar no mundo. Um mundo provisório, do qual as
personagens estão cientes apenas das incertezas que caracterizam sua condição.
É comum tanto à obra de Robbe-Grillet como à de Abelaira a inquietação
provocada ao leitor em decorrência da falta de certezas que comprometem a construção
de um sentido. Não se sabe o que aconteceu no ano anterior em Marienbad nem mesmo
se algo efetivamente ocorreu; nem se houve a traição – o que justificaria o ciúme em O
ciúme; nem quem é o autor do diário em Bolor, se seus diálogos são autênticos ou fruto
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REFERÊNCIAS
ARÊAS, Vilma. Ficções da vida danificada. In: ABELAIRA, Augusto. Bolor. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 5-10.
NAMORA, Fernando. 1982. Ler e reler Abelaira. Jornal de Letras, Artes e Ideias.
Lisboa, ano II, n. 28, p. 2-316 a 29 març. 1982.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. O novo romance francês. São Paulo: São Paulo, 1966.
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NOTAS
1
PERRONE-MOISÉS, 1966.
2
ROBBE-GRILLET, 1969.
3
ALBÉRÈS, 1962, p. 407. Trad. Autor.
4
Id., p. 414.
5
PERRONE-MOISÉS, op. cit.
6
ROBBE-GRILLET, op. cit., p. 102.
7
BECKET, 1952.
8
PERRONE-MOISÉS, op. cit., p. 111.
9
ROBBE-GRILLET, op. cit., p. 91.
10
PERRONE-MOISÉS, op. cit., p. 53.
11
ROBBE-GRILLET, 1986.
12
Id., p. 57.
13
ROBBE-GRILLET, 1986, p. 11. Grifos meus.
14
Id., p. 84.
15
PEREIRA, 2006, p. 129.
16
NAMORA, 1982, p. 3.
17
ABELAIRA, 1999, p. 30.
18
ARÊAS, 1999, p. 5.
19
ROBBE-GRILLET, 1969, p.110.
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em suas casas, praças e ruas, pois estão cerceados em sua liberdade de ir e vir pelos
estranhos estrangeiros que transformam a localidade urbana em uma espécie de prisão
domiciliar. A pequena cidade é sitiada pelos forasteiros que a transformam num
ambiente hostil, cujo clima persecutório aflige a todos do povoado. Estão todos
rendidos pela nova conjuntura de poder e quem esboça qualquer reação é punido ou
banido da “urbe sertaneja”. Vejamos:
No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma
novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do
rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam,
chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a
cena nova (VEIGA, 1993, p. 4).
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atenção, no caso dos romances em tela, à ditadura reincidente no Brasil, o Golpe Militar
de 1964, e à ditadura renitente em Portugal, o regime salazarista que durou até 1974.
REFERÊNCIAS
ABDALA JR., Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ática, 1989.
CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. A educação pela noite e outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1987.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. 28 ed, Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.
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oposicionista Seara Nova e, nessa época, editou também os “Clássicos” pela editora Sá
da Costaii reeditadas, quando Rodrigues Lapa morava em Belo Horizonte, como
Historiadores. As edições “Textos Literários”, de cunho didático, são pequenos livros
iii
que posteriormente foram Quinhentistas, Quadros da história trágico-marítima etc.
Preso em 1949 e libertado após pagamento de fiança, em 1954, viajou, juntamente com
Miguel Torga e Adolfo Casais Monteiro para participar do Congresso Internacional de
Escritores, em São Paulo.iv Optou vir para Brasil em 1957, lecionando em diversas
universidades brasileiras na Bahia, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em Minas Gerais,
na Universidade Federal de Minas Gerais, permaneceu por mais tempo, pois a partir de
Belo Horizonte poderia se deslocar com mais facilidade para realizar suas pesquisas nas
cidades históricas. Além disso, realizou grande parte das pesquisas no Arquivo Público
Mineiro. Foram seus alunos Affonso Romano de Sant’Anna, Heitor Martins, Ivana
Versiani, Silviano Santiago, Terezinha Alves Pereira.v
Já se dedicava à pesquisa acerca dos inconfidentes mineiros quando morava em
Portugal. Em 1937, por exemplo, organizou a edição de Marília de Dirceu e mais
poesias para a editora Sá da Costa, e em 1942, revista e ampliada, editou-a com o título
Obras completas de Tomás Antônio Gonzaga, em São Paulo.
Recebe apoio intelectual no Brasil, provavelmente contou com uma bolsa de
pesquisador da CAPES, pois endereçou relatórios a esse órgão de fomento e às
autoridades universitárias, conforme afirma em depoimento no texto “Biobibliografia
do pesquisador”. No Brasil, tem uma produtividade intelectual bastante vasta, entre os
livros estão: As Cartas Chilenas: um problema filológico, publica em 1958, com
prefácio e colaboração do brasileiro Afonso Pena Júnior, Vida e obra de Alvarenga
Peixoto, saem, em 1960, as duas obras pelo Instituto Nacional do Livro. Cantigas
d’Escárnio e de Mal Dizer dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses, edição
crítica, em 1965, pela Vigo Editorial Galáxia, Miscelânea de língua e literatura
portuguesa medieval, publicada em 1965, pelo Instituto Nacional do Livro vi.
Manuel Rodrigues Lapa foi reconhecido pelo seu trabalho sobre o século 17 do
Brasil, em 1974. No dia 21 de abril, em Ouro Preto, é condecorado com a Medalha da
Inconfidência Mineira. O intelectual retorna a Portugal somente após o 25 de abril desse
mesmo ano, quando ocorreu a queda do salazarismo. Falece em Anadia, em 28 de
março de 1989.
Em Portugal, em 1983, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante.
Mereceu inclusive um instituto que leva seu nome, inaugurado em 31 de janeiro de
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1993, tendo vários fundadores, como sua viúva Inês Lapa, António Alçada Baptista,
David Mourão-Ferreira, Manuel Alegre, Mário Soares, Miguel Torga, Óscar Lopes,
entre tantos mais.vii
Ainda como prova desse reconhecimento, em 1º e 8 de março de 1975, Rui
Mourão organiza dois números especiais do Suplemento dedicados ao professor
Rodrigues Lapa. Nesses, intelectuais como Affonso Ávila, Afonso Pena Júnior, Antonio
Candido, Augusto de Campos, Francisco Iglesias, Melânia Silva Aguiar e outros
escrevem sobre a obra e o intelectual Manuel Rodrigues Lapa.
Mais ainda, a figura do professor português, que vai se delineando nos textos,
contribui para se tentar entender a relação que o brasileiro e o português mantêm.
Relação essa que, apesar de acontecer num período pós-colonial ainda traz resíduos de
um tempo em que imperava a hierarquia, conduzida por uma visão
colonizador/colonizado, centro/periferia.
No texto de apresentação do número especial, Rui Mourão escreve que:
Mais adiante, Rui Mourão enaltece sua luta pela liberdade, a busca incessante
pela verdade, o que, no seu ponto de vista, o tornou um intérprete autorizado da
Inconfidência Mineira, e observando que “Tiradentes é um dos mais felizes instantes de
sua identificação com a nossa emoção de brasileiros”. Destaca a atitude
desmistificadora de Rodrigues Lapa e salienta que, apesar possuir “aquela contundência
dos que amam a franqueza total, não exige diferença de tratamento para com ele”. ix
Assim, o leitor vai conhecendo um Manuel Rodrigues Lapa que o Brasil faz
questão de lembrar, pois, antes de tudo é amigo, nos dizeres de Mourão. Aparece como
aquele que vem rever a história do Brasil, afirma e confirma, por exemplo, através das
pesquisas, ser de Tomás Antônio Gonzaga a autoria das Cartas Chilenas, o que era
ainda motivo de dúvidas e polêmica antes de seu trabalho. A autoria das Cartas
Chilenas era atribuída por outros estudiosos, antes da pesquisa de Rodrigues Lapa, a
Cláudio Manuel da Costa em parceria com Tomás Antônio Gonzaga. Além disso, em
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seus estudos, Lapa retoma personagens do século 17 do país como Alvarenga Peixoto,
Bárbara Heliodora e Tiradentes.
Afonso Pena Júnior é outro brasileiro que também elogia o trabalho de
Rodrigues Lapa, informando inclusive que muitos dos documentos que trouxera de
Portugal foram esclarecedores para o estudo das Cartas Chilenas. Em “Prefácio às ‘As
cartas chilenas’: trecho”, apresenta alguns esclarecimentos quanto aos nomes, funções e
papéis de personagens que aparecem na obra satírica, os quais foram realizados a partir
dos documentos trazidos pelo professor português. x
Affonso Ávila em “O problema das Cartas Chilenas” destaca o valor histórico e
político das Cartas Chilenas e elogia também o rigor científico do professor português
para esclarecer a autoria dessa obra, aliado à análise estilística e à rigorosa pesquisa que
realizou Rodrigues Lapa nos arquivos em Minas. xi
E ainda, talvez, interessado mais pelo lado literário dos textos, Rodrigues Lapa
deixou de lhe apontar o caráter político, “prenúncio da nacionalidade em formação”,
observa Affonso Ávila.
Manuel Rodrigues Lapa é também lembrado por Rolando Morel Pinto e por
Tarquínio José Barbosa de Oliveira. O primeiro no ensaio “Vida e obra de Alvarenga
Peixoto”, e o segundo em “O livro que faltava”. Nesse último, Barbosa de Oliveira
disserta sobre Vida e obra de Cláudio Manuel da Costa, de autoria de Rodrigues Lapa e
aplaude o pesquisador pelos inéditos de Alvarenga Peixoto que descobrira e editara,
poeta esse que em vida só publicou três poemas. Vida e obra de Alvarenga Peixoto traz,
além da biografia, os poucos poemas publicados e outros inéditos do poeta inconfidente.
Pinto Morel lembra o trabalho de pesquisa do professor português e sua coragem de ir
em busca da verdade, desfazendo assim certezas em torno da vida e da obra de
Alvarenga Peixoto, pondo junto à obra anexa uma quantidade razoável de cartas e
documentos que comprovam suas hipóteses.
Assim, por exemplo, Rodrigues Lapa contesta afirmações anteriormente
expressas por outros críticos e põe a público poemas que se encontravam ainda
manuscritos, pois o que era publicado de Alvarenga Peixoto era a sua poesia laudatória,
ou por interesse do poeta ou por vaidade do “homenageado”. Entretanto, Rolando Morel
Pinto relembra que a retirada de três poemas do autor da edição elaborada pelo
professor Lapa vão ao encontro do texto apresentado por Domingos de Carvalho Silva,
“O homem e o estilo”, publicado no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo,
em 16 de setembro de 1961. Mas finaliza enaltecendo Rodrigues Lapa: “Se nesse caso a
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lição do prof. Lapa não chegou a convencer, o mesmo não se pode afirmar das demais
correções que ele propõe aos textos divulgados”.xii
A partir dos textos de brasileiros sobre Rodrigues Lapa é possível traçar uma
biografia intelectual do pesquisador, pois neles se informa desde seu nascimento, em
1897, em Anadia, passando pela vida de estudante, quando, vocacionado à pesquisa,
cabulava aulas para ir à cata de documentos em arquivos e acervos: “Nasceu com o faro
para rastrear acontecimentos e personagens históricos, possuindo aquele dom
divinatório dos verdadeiros pesquisadores”, afirma Pena Júnior em “Prefácio ‘Às Cartas
xiii
Chilenas’: trecho”. Os textos referem-se à vida acadêmica conturbada na
universidade, quando já se configurava como um intelectual que ousava criticar o
próprio ensino de seu país, na verdade um patriota que lutava por ideais de liberdade.
Mesmo após sua posterior prisão pelo regime ditatorial, não se cala, pois se dedica ao
jornal de oposição e a editar trabalhos de cunho literário. Escolhe vir para o Brasil, o
que não poderia ser diferente, pois já estudara a cultura brasileira quando residia em
Portugal. Aqui, realiza trabalhos não poupando esforços, diante das estradas precárias
de Minas Gerais, em busca de documentos e arquivos, pois a verdade está nos arquivos,
nos documentos, afirmam, por exemplo, Francisco Iglesias e Rui Mourão. xiv
Seus estudos são esclarecedores não só pelas consultas que realiza em nossos
acervos como também pelas que fez em Portugal. Nesse sentido, ele é apresentado
como aquele que vem rever a história cultural e literária do país, consertar erros,
esclarecer pontos obscuros e mesmo inovar, trazendo novas informações: “a revelação
dos cinco sonetos do ms 8.610 da Biblioteca Nacional de Lisboa por Rodrigues Lapa,
em 1959, deslocou os dados da partida: Alvarenga Peixoto, com esses sonetos, ombreia
com os maiores poetas brasileiros de seu tempo.” xv
Nos textos dos brasileiros, o perfil do pesquisador português vai se formando, se
por um lado há gratidão, dívida em relação a esse português que escolhe o Brasil para
morar, por outros há os que apontam alguns problemas nas suas análises, ainda, que de
maneira sutil e bastante elogiosa. Ele é apresentado como um ativista político que, por
discordar da política de opressão, escolhe o Brasil e aqui empreende um trabalho que,
para uns críticos, é científico, isento de posições pessoais e, para outros, ele se deixa
levar por posições deturpando, por exemplo, a imagem de Tomás Antônio Gonzaga, ou
cometendo enganos como no caso da data da escrita das Cartas Chilenas.
Entretanto, a despeito das discordâncias apontadas, o professor Manuel
Rodrigues Lapa, na maior parte dos textos críticos, figura como um pesquisador que
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vem ao país para desfazer lendas, enganos, esclarecer dúvidas, “corrigir a história”,
enfim, promover aquilo que em todos os textos do Suplemento Literário se reclama - o
diálogo entre os dois países. Ele representa pois uma possibilidade de estreitamento das
relações entre Brasil e Portugal. Nesse sentido, a gratidão e a dívida são palavras
recorrentes nos ensaios. Destaca-se ainda a maneira como conduz as pesquisas,
primando seus trabalhos pelo ineditismo, racionalidade, cientificismo, perfeccionismo
que o tornam um historiador que busca a verdade e um filólogo inovador.
Terá algum interesse a sua publicação, pois nela como que transluz o
pressentimento das ocorrências políticas que advieram do golpe militar de 25
de abril em Portugal, Tiradentes terá a sua estátua em Lisboa, assim como as
terá provavelmente em Luanda e em Lourenço Marques. Bem as merecexvi
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onde há discípulos que “desejam edificar novas Pátrias”. Certamente Rodrigues Lapa
considera-se um discípulo do Alferes pelo que já expôs no texto dizendo de sua
identificação.
Entretanto o final do discurso é surpreendente, pois apesar de ter Tiradentes até
como um herói português, contando inclusive com discípulos, expressa uma visão
arraigadamente portuguesa em relação ao Brasil. Ele escreve:
Esta velha semente portuguesa, lançada à terra por bons pomareiros, ainda
floresce e dá frutos de bom sabor. Criou o Brasil e há de criar outros Brasis
por esse mundo afora. Para a glória de todos nós, da língua e da cultura que
representamos e defendemos. E glória também a Tiradentes, que nos
mostrou, com sacrifício da vida, que assim é que deve ser. xxii
Nos trechos destacados, deixa-se entrever a contradição portuguesa diante dos países
colonizados. Por um lado, Rodrigues Lapa admira Tiradentes, tendo-o como um herói
nacional português, a ponto de exportá-lo, prevendo homenagem a ele nos países de
África como nas cidades de Luanda e Lourenço Marques, atual Maputo, ex-colônias
portuguesas, já independentes em 1975, quando da publicação desse texto. Por outro,
afirma a condição para que os países colonizados “sacudam a tutela e se governem por
si mesmos”: falar a mesma língua e seguir hábitos e cultura da metrópole. Nesse
sentido, Rodrigues Lapa apresenta como ilustração o fato de africanos da Guiné
declamarem em plena selva, versos de Camões. Não há distanciamentos para Lapa entre
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a mitificação de Tiradentes como herói que lutou por seu país e o desejo de
permanência de uma língua e cultura portuguesas nos países colonizados por Portugal.
Há um desejo de imortalidade aliado a um reconhecimento do direito à autonomia
desses países, ainda que essa autonomia seja uma concessão da metrópole para as
colônias, seja algo consentido, permitido. Assim, Brasil e Guiné têm para o português o
mesmo estatuto, são representações da língua e da cultura portuguesas num outro
continente.
Sem dúvida é o texto “Para uma boa compreensão entre portugueses e
brasileiros”, publicado primeiramente no Jornal do Brasil, em 13 de junho de 1957, que
mais esclarece e explicita essas posições portuguesas em relação ao Brasil já
independente, entretanto, ainda visto sob o ponto de vista do português que aqui esteve
para colonizar. Rodrigues Lapa inicia seu texto remetendo a uma conferência que
proferira havia três anos em Belo Horizonte em que um jornalista se retirara assustado
por ter ouvido o conferencista “demolir um por um os vultos de Alvarenga Peixoto e
Cláudio Manuel da Costa”. Segundo escreve, o jornalista temia que Tiradentes fosse
também demolido por Rodrigues Lapa. Narra esse fato para dissertar acerca dos mitos e
lendas que foram criados no Brasil em torno dos inconfidentes com a função de
heroicizar fatos e personagens brasileiros que se opuseram a Portugal.
Segundo Lapa, em “Biobibliografia do pesquisador”, a lenda tem funções, uma
delas é reforçar “os alicerces duma nação emancipada”. Entretanto, é necessário que as
lendas sejam desvendadas, pois a mentira e os desenganos não justificam “um
nacionalismo obcecado”. E prossegue referindo-se a uma visão tradicionalista e
passadista de alguns brasileiros que pensam que a dependência ainda perdura, visão essa
que se apega à língua comum entre Brasil e Portugal e dela faz bandeira de defesa
contra influências estranhas ao país, mas, em contrapartida desvalorizam a luta pela
emancipação do Brasil.
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Além disso, a identificação que tem com Tiradentes em muito diz do momento
político que vivia Portugal. Tendo vindo para o Brasil em razão de sua oposição à
ditadura salazarista, Rodrigues Lapa toma o Alferes como modelo de liberdade e luta
contra a tirania do poder. Entretanto, quando se expressa sobre o Brasil, sua posição é
de colonizador, de português na colônia. Nesse sentido, é interessante ressaltar sua
referência a Tiradentes, não como alguém que luta contra a Coroa Portuguesa, mas
como um herói da liberdade que, inclusive, fez discípulos em Portugal: “Senhor
Governador do Estado de Minas Gerais, a medalha que recebi de V. Exa., e com a qual
me sinto honrado, significa para mim, como é natural, uma identificação plena com os
ideais de justiça e liberdade que foram os de Tiradentes”. xxviii
REFERÊNCIAS
No Suplemento literário:
Suplemento Literário de Minas Gerais. Disponível em:
<http://www.letras.ufmg.br/websuplit/Lib/Html/WebSupLit.htm>.
ÁVILA, Affonso. O Problema das "Cartas chilenas". In: Suplemento Literário do Minas
Gerais, Belo Horizonte, v. 10, n. 444, p. 7, mar. 1975.
LAPA, Manuel Rodrigues. Para uma boa com compreensão entre portugueses e
brasileiros. In: Suplemento Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 10, n. 443, 1º
mar. 1975, p. 4.
MARTINS, Heitor. Algo de novo sobre o judeu. Suplemento Literário. v. 10, n. 444, 8
mar. 1975b, p. 11-12.
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OLIVEIRA, Tarquínio José Barbosa. O Livro que falta. In: Suplemento Literário do
Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 10, n. 443, 1º mar. 1975, p. 5.
PENA JÚNIOR, Afonso. Prefácio às "As cartas chilenas": trecho. In: Suplemento
Literário do Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 10, n. 443, p. 8-11, mar. 1975.
PINTO, Rolando Morel. Vida e obra de Alvarenga Peixoto. In: Suplemento Literário do
Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 10, n. 443, p. 12, mar. 1975.
Na internet:
NOTAS
i
CASTRO, 1995, p. 66.
ii
LAPA, 2006; 1975, p.2.
iii
IGLÉSIAS, 1975, p.1-2.
iv
Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989). Tábua Biográfica. Disponível em:
<<http://www.iel.unicamp.br/cedae/Exposicoes/Expo_JSena/lapa.html>. Acesso em: 5 jul. 2006.
v
MARTINS, 1975a, p.3; 1975b, p.11-12.
vi
RODRIGUES, 2006; LAPA, 1975, p.2.
vii
Alguns fundadores do Instituto Rodrigues Lapa. Disponível em: < http://www.irlapa.ua.pt/fund.html>
Acesso em: 5 jul. 2006.
viii
MOURÃO, apud LAPA, 1975, p. 2.
ix
idem.
x
PENA JÚNIOR, 1975, p. 8-11.
xi
ÁVILA, 1975, p. 7.
xii
PINTO, 1975, p.12.
xiii
PENA JÚNIOR, 1975, p. 8-11.
xiv
IGLÉSIAS. 1975, p. 1-2 ; MOURÃO, 1975, p.1.
xv
RAMOS, 1969, p.2.
xvi
1975, p.1.
xvii
Veja também a esse respeito o texto “O livro que faltava” de Tarquínio José Barbosa de Oliveira que
aborda sobre esse desejo de Rodrigues Lapa de nascer na mesma data da morte de Tiradentes. (1975, p.
5.)
xviii
PENAFORTE apud LAPA, 1975, p. 1.
xix
LAPA, 1975, p. 1.
xx
OLIVEIRA apud LAPA, 1975, p. 1.
xxi
LAPA, 1975, p. 1, grifos acrescentados.
xxii
Idem, p. 1.
xxiii
Ididem.
xxiv
Idem. p. 4.
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xxv
Idem.
xxvi
Idem, p. 4, destaque do autor.
xxvii
Idem. grifo acrescentado.
xxviii
ibidem, p. 1.
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[o] Atlântico foi o mar graças ao qual se revelaram relações íntimas entre os
oceanos, fazendo aparecer o grande oceano Pacífico (...). Esta mundialização
dos oceanos aparece aqui como o prefácio indispensável às operações que
permitiram a construção do mundo nosso contemporâneo.i
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oceânicas. Em razão desse novo momento, assiste-se, como assinala Luis Krus iii, às
novas representações do mar realizadas no interior dos templos das cidades portuárias,
que incorporavam temas e motivos marinhos, passando ainda a prestar culto e devoção
aos santos navegadores. As sereias antes vistas como seres tentadores e maléficos
ganham uma nova simbologia na iconografia portuguesa, sendo associadas ao peixe
representativo da cristandade, apontando ainda para fertilidade e prodigalidade do mar.
Nos templos do Portugal litorâneo, acentua-se o culto e a celebração aos santos
patronos viajantes como São Cristovão, Santo Amaro e Santelmo. Segundo Luís Krus,
os cultos objetivavam um “apaziguamento da angústia face a um oceano ainda há pouco
pensado como caos, desordem e cenário do fim dos tempos”.iv Os ataques da pirataria
mulçumana retomam o caráter amedrontador do Atlântico, daí buscar reforço celeste em
São Tiago e São Vicente, considerados mártires do mar, aquele patrono das cruzadas,
este, santo protetor do mar contra os supostos inimigos da fé.
O imenso terror do mar desconhecido, aliado aos relatos que davam conta de
fenômenos assustadores e maravilhosos que aconteciam no Atlântico, reforçou a ligação
entre a empresa portuguesa e a igreja católica por meio da devoção aos seus santos,
como aponta Luís Krus:
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mundo conhecido e o fim do mundo. Este fragmento, acima de tudo, reforça de maneira
ideológica a bravura, a tenacidade dos navegadores lusitanos que desafiam e desvendam
os enigmas da natureza, confirmando seu domínio sobre o mar e seus fenômenos, como
ilustra o fim da cena, quando o gigante começa a desaparecer
Com engenho e arte, o poeta construiu uma fonética do mar, que a princípio
rugiu assustadoramente e em seguida bramiu melancolicamente. Som convertido em
vozes, vozes das águas do oceano e, como assinala Gaston Bachelard; “A água tem
também vozes indiretas. A natureza repercute ecos ontológicos. Os seres respondem-se
imitando vozes elementares. De todos os elementos, a água é o mais fiel ‘espelho de
vozes’”.x
Se em uma das figurações do mar na épica clássica camoniana, ela surge como
monstruosa ameaça, porém estrategicamente superada pelos navegadores, o que em
última instância delineia a glória nacional; na épica modernista de Fernando Pessoa, a
representação do mar atenua os aspectos geográficos, históricos, conserva o fundo
patriótico e aprofunda-se nas dimensões míticas.
Na segunda parte de Mensagem, o poema “Mar português” reconfigura a ideia
do mar como possessão territorial de Portugal e promove uma releitura simbólica da
aventura marítima portuguesa. Não existem fronteiras, a dupla face do mar, perigo e
glória, abismo terrestre e espelho celeste, configura-se em projeto de caráter
nacionalista e transcendente.
Enquanto em Camões, singrar os mares figura como aventura poético-marítima
no plano da enunciação, em Fernando Pessoa, metáfora e hipérbole se aliam para
reafirmar o simbólico domínio lusitano sobre o mar: “Ó mar salgado, quanto de teu sal/
são lágrimas de Portugal!”xi. No imaginário lírico pessoano, a imensidão e os perigos
impostos pelo mar aos intentos portugueses convertem-se em infinitude da alma: “Valeu
a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”.xii
Se a água é signo de movimento, renovação, imagem de vida e morte, não há
dúvida de que para Fernando Pessoa, nas águas do Atlântico, se misturam ilusão e
sonho como revela o poema “Infante”:
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É provável que essa relação visceral da poetisa portuguesa com o mar tenha
inspirado a cantora brasileira Maria Bethânia a produzir o Cd Mar de Sophia, prestando
homenagem a Sophia de Mello ao declamar seus versos marítimos ao longo das faixas
do álbum:
Marinheiro, marinheiro
Quem te ensinou a navegar
Foi o tombo do navio
Foi o balanço do mar?xix
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O drama do mar
O desassossego do mar
(...)
O Mar! Dentro de nós todos
No canto da Morna
(...)
Este convite de toda hora
Que o mar nos faz para a evasão
Este desespero de querer partir
e ter de ficar.xxi
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Na adoração ao Índico
Meu mar se abrem
Meus segredos sedas e
Mitos
Se quebram missangas
Filigranas e búzios
Se tecem novos enleios
Veias do saber olhar e
Ver
De dentro para fora de ti e
Vice-versa
Entrelaçados voam
Garças e graças
Do erotisar e
Brincando recrias
O sentido
Singular do outro e
Do pródigo em ti.xxvi
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A poesia brasileira, por sua vez, apresentou múltiplas faces sobre o mar, contudo
foge a dimensão deste trabalho elencar estas diversas figurações. Daí selecionarmos
duas faces contrapostas, a imagem do horror perpetuada na poesia de Castro Alves e a
imagem de fluidez e transcendência dos versos marítimos de Cecília Meireles.
O romantismo brasileiro projetou na paisagem tropical seu diferencial identitário
em relação a outras nações literárias, proporcionando uma diversidade de textos que
exaltavam a paisagem brasileira, que se consagraram como topos patriótico, cujos
símbolos mais frequentes na poesia e no romance são o índio e a floresta tropical. A
fissura nesse ideário entra em curso pelo olhar perplexo de Castro Alves, ao incorporar
em seu discurso poético a imagem do escravo e da paisagem sinistra do navio tumbeiro
em alto mar. Pela primeira vez, entra em cena na poesia brasileira, o drama da diáspora
africana em curso, que marcará definitivamente sob o signo da tragédia a memória
negra no Brasil.
O drama poético do “Navio Negreiro” é anunciado no subtítulo “Tragédia no
mar”. Entretanto, os dois primeiros atos poéticos do poema, a beleza do mar é exaltada:
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REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética das águas e dos sonhos: ensaio sobre a imaginação
da matéria. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
COELHO, Maria Helena da Cruz. “Na barca da conquista” In: A descoberta do mundo.
(Org.). Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes Centro
de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
KRUS, Luís. “Os medos do mar” In: A descoberta do mundo. (Org.). Adauto Novaes.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LEMOS, Virgílio de. Para fazer um mar. Lisboa: Instituto Camões, 2001.
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MEIRELES, Cecília. Flor de poemas. 14.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
PESSOA, Fernando. Mensagem: obra Poética I. (Org.). Jane Tutikian. Porto Alegre: L&
PM Pocket, 2006.
SECCO, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro. (Coord.). Antologia do mar na poesia africana
de língua portuguesa do século XX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999, v. 2 e 3.
NOTAS
i
Henriques, 2004, p. 107.
ii
Coelho, 1998, p. 131.
iii
Krus, 1998, p. 101
iv
Krus, 1998, p. 102.
v
Krus, 1998, p. 102.
vi
Gilroy, 2001, p.15.
vii
Camões, 1998, p. 21.
viii
Camões, 1998, p. 149.
ix
Camões, 1998, p. 155.
x
Bachelard, 2002, p. 199.
xi
Pessoa, 2006, p. 75.
xii
Pessoa, 2006, p. 75.
xiii
Pessoa, 2006, p. 67.
xiv
Andresen, 2004, p.16.
xv
Andresen, 2004, p. 272.
xvi
Andresen, 2004, p. 15.
xvii
Bethânia, 2006.
xviii
Paz, 1982, p.104.
xix
Bethânia, 2006.
xx
Henriques, 2004, p.122.
xxi
Secco, 1999, p.168.
xxii
Secco, 1999, p.166.
xxiii
Secco, 1999, p. 229-230.
xxiv
Dáskalos, 2003, p. 91.
xxv
Secco, 1999, p. 28.
xxvi
Lemos, 2001, p. 40-41.
xxvii
Lemos, 2001, p. 39.
xxviii
Alves, 1997, p.132.
xxix
Alves, 1997, p.133.
xxx
Alves, 1997, p.135.
xxxi
Meireles, 1983, p.57.
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imagem é forma — gestalt — , logo, construção. De acordo com Bosi (2000), é aquilo
que é, simultaneamente, dado e construído:
A imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o
apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado,
enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não
depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo
provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de
organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância. (BOSI,
2000, p. 22).
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TAPEÇARIA NOTURNA
1
Conferir na página 453 do romance.
2
A clássica obra Melancolia I, de Albrecht Dürer (1471-1528), retrata o olhar perdido do melancólico,
mostrando-o como um ser prostrado diante das realidades diversas, que não lhe oferecem porto definitivo.
O humor melancólico ao qual nos referimos pode ser alusivo a essa cena. Conferir em KLIBANSK,
Raimond; PANOFSKY, Erwin; SAXL, Fritz (1989).
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A escrita da morte se configura como errância, trote trôpego que conduz o olhar
num território sem paragens definitivas. No esteio dessa escrita, não há um destino
determinado ou uma paisagem a ser fixada. Fundo infinito, sem superfícies e sem
margens, a trama da morte é tecida na bifurcação do problema, sempre proposto e
jamais resolvido.
No seu traçado sinuoso, Não entres tão depressa numa noite escura pode ser
vista como uma narrativa desse tipo, pois não traz respostas, caminhos concretos ou
destinos previsíveis. O arranjo disjuntivo do texto, elaborado na perspectiva isomórfica
de uma prosa-poética, associa surpreendentes efeitos (de)formativos a um refinado
lirismo. Não consideramos com exclusividade a referência a esse lirismo pela
disposição desconexa dos conjuntos enunciativos, sem dúvida uma marca importante
dessa narrativa antuniana e um aspecto que muito a aproxima da versificação, forma
tradicionalmente caracterizadora da poesia. Referimo-nos à associação de um traçado
disjuntivo com a sonoridade, a musicalidade do texto, efeito conseguido,
principalmente, pela performance oralizada do discurso — a narrativa se enuncia na
ótica da transmissão da fala humana, o que a aproxima do ritmo poético, do simbolismo
onomatopaico da poesia.
Já os efeitos de alteração da forma — (de)formações — podem dizer respeito,
com relação a essa produção antuniana, à violação aos moldes convencionais da prosa,
estrutura discursiva pela qual, geralmente, o engenho romanesco se constitui. Frases
“quebradas”, pontuação irregular, repetição intermitente de unidades enunciativas são
alguns desses aspectos. Associados aos efeitos da oralidade, dão-nos a reconhecer o
traçado “épico lírico3” que, na visão do autor, configura a forma discursiva dos seus
engenhos ficcionais. Daí, podemos considerar a disjunção como o “espírito” da obra, a
força motriz de sua pluralidade.
Em Não entres tão depressa nessa noite escura, a dinâmica disjuntiva parece se
colocar como encenação e experimentação, do ponto de vista de que apresenta uma
estruturação comunicativa e atuante. Podemos dizer desse modo de estruturação
desconexa pode ser considerada uma peça do jogo tão importante como a construção
das personagens e dos acontecimentos — as ações — da trama. A leitura do romance
nos levará a perceber estarmos diante de uma projeção diversa e poliédrica de formas,
que nos permite identificações difusas, mas nunca uma definição ou a fixação totalitária
3
De acordo com declarações do autor, seus textos configuram uma “epopéia lírica”. Conferir, por
exemplo, em Blanco (2005, p. 230).
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4
A “dedada azul” é uma expressão recorrente no texto, utilizada como referência à marca das digitais, aos
“borrões amarrotados”, em “maiúsculas de guardanapos” (p.437), capazes de exercer a função de tutela
do significante. A marca da digital equivale à assinatura, à identificação pessoal, alternando-se, assim,
à função requerida das palavras.
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modulação que não havia nas edições anteriores, significando uma interferência
constante no ponto de vista. Às vezes, essa repetição pode ser provisória, como parte de
uma cena, podendo a sua recorrência ser observada em uma ou outra cena posterior, não
mais que isto. Transcrevemos um trecho em que esse tipo de situação acontece:
5
Citamos a passagem como referendo à característica à qual nos referimos, presente no enunciado. Sobre
as personagens envolvidas — a Adelaide e o Luís Filipe — falaremos pouco adiante.
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6
Conferir, por exemplo, na página 462.
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Como parte desse jogo de aparências, tapeçaria inábil que lança às trevas o
leitor, podem ser considerados os ditos/não-ditos, tecidos em torno do suposto
acontecimento da morte. Uma passagem do texto, recortada de uma parte do relato da
personagem Ana Maria, pode nos mostrar isso. O enunciado dessa passagem inicia o
décimo quinto capítulo da trama, com a seguinte afirmativa: “E agora que o meu pai
morreu.” (p. 215). A sequência do próximo parágrafo, enunciada entre parênteses (um
artifício utilizado de maneira recorrente no texto, na indicação de variações de vozes e
tonalidades), mostra a posição revocatória do dito:
(não morreu nada, dentro de três ou quatro dias está em casa, vamos buscá-lo
com o fato da lavanderia novo em folha no saco de plástico, logo que se retira
do saco envelhece um bocado, os sapatos que engraxei sozinha, peúgas sem
riscas, uma camisa apresentável). (p. 215).
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Trapaceando com uma linguagem que obriga a dizer, essa arte literária
abandona deliberadamente a intenção de ser transparente e fica na superfície,
buscando a neutralidade e a impessoalidade. Afirma, assim, somente o que
não pode ser dito: o vazio da linguagem e da morte. (DUARTE, 2006, p.
153).
O neutro, como o vazio que se afirma nas fronteiras da negatividade, parece ser
o que compõe o jogo da enunciação, na trama de Não entres tão depressa nessa noite
escura. No espetáculo da sobreposição de planos, a imagem da falta é sempre aquilo
que se pode afirmar como presença. Com efeito, diversas são as máscaras que assume,
parece que no intuito de corroborar esse semblante negativo/afirmativo da simbologia
literária. No texto, temos sempre a indicação de elementos que faltam e que “não”
faltam. Nessa direção podemos citar, por exemplo, o piano ao qual “não” faltava uma
tecla, os cegos que não existem da garganta para cima, como também a ausência de um
losango no chão de azulejos, marcada pela iluminação: a luz que incide com mais ou
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Ao se pensar nas lacunas de um texto podemos dizer, com Deleuze (2007), que
uma história, por mais embaralhada que seja, tem como escopo a noção de estrutura.
Estruturas, na perspectiva desse ensaísta francês, são constituídas por séries, que são,
por sua vez, resultados da combinação de pontos singulares de acontecimentos com os
processos de significação. O processo da significação ocorre na via dupla e reversível
significante/significado e nessa reversibilidade está implicada a questão do sentido, que,
por sua vez, envolve as experiências e os processos interativos. No viés dessa ideia da
condição do sentido na dependência das relações subjetivas, diz Deleuze: “Concluímos
que não há estrutura sem séries, sem relações entre termos de cada série, sem pontos
singulares correspondendo a essas relações; mas, sobretudo, não há estrutura sem casa
vazia, que faz tudo funcionar.” (DELEUZE, 2007, p. 54).
A casa vazia do sentido, ou esse ponto de tensão entre a aspiração da completude
do sentido e a impossibilidade dela Deleuze define como “problemático”. O problema,
para Deleuze, implica a sobreposição de séries — significação, relações subjetivas,
enfim, pontos de singularidades aos quais chamamos acontecimentos. Uma série
qualquer participa num acontecimento qualquer quando é resgatada, isolada, o que não
quer dizer que esse isolamento seja perene, pois as séries serão sempre — e
inevitavelmente — distribuídas e redistribuídas em acontecimentos, sucessivamente.
Para Deleuze, o que funda e caracteriza o problemático não é exclusivamente a
sucessão, mas o confronto de intensidades, o combate entre as “objetividades ideais” ou,
por outras palavras, entre as “paixões”.
O problemático é a trilha sobre a qual a literatura caminha; realizar-se nessa
trilha é o seu mistério. Mas, se assim pode ser considerado, é na medida em que se
entenda que “realizar-se” não corresponde a “completar-se”. Porque a capacidade de
realização da literatura está não em resolver o problema, mas em propor a pergunta: “O
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esclarecê-las (as palavras)” (p. 101). Para esse universo da orfandade dos sentidos,
paisagem sem fundo ou forma, não há como delinearmos a ocorrência singular de um
sujeito ou objeto — é esse universo o espaço das singularidades intensas e inefáveis; a
tapeçaria de um sempre por vir.
Agamben (2006) constrói uma interessante analogia do pensamento, bem
próxima desse caminho sinuoso que este engenho de Lobo Antunes configura.
Relacionando o pensamento com um bosque imprevisto de imagens, diz-nos o autor:
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A poesia, pela ruptura que produz, pela tensão insustentável que cria, só pode
desejar a ruína da linguagem, mas esta ruína é a única chance que ela tem de
se realizar, de se tornar completa às claras, sob os dois aspectos, sentido e
forma, sem os quais é apenas longínquo esforço em direção a si mesma.
(BLANCHOT, 1997, p. 58).
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 2000.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,
1987.
BLANCO, María Luisa. Conversas com António Lobo Antunes. Tradução de Carlos
Aboim de Brito. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
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TIBURI, Márcia. Filosofia cinza: a melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto
Alegre: Escritos, 2004.
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VÍTOR VIÇOSO
Simbolismo e expressionismo na ficção brandoniana
Da primeira fase impressionista da carreira de Van Gogh, ávido por “uma arte de
homens”, oposta à pintura clássica com “gente que não trabalha” (PESSANHA, 1980,
p. 211), nasce a violência expressionista, aprofundada na sua segunda fase, em que
Pessanha conclui que: “A miséria não tem fim” (PESSANHA, 1980, p. 213).
Também em Brandão, as descrições de paisagens, cenas, seres e relações
interpessoais, emitidas pelo narrador de A Farsa, compõem violentas telas
expressionistas, distorcidas e atravessadas pelo grito de pavor do narrador diante da
desrazão humana, miserável e trágica, como num quadro da fase mais “furiosa e
produtiva” de Van Gogh: “Eu quero a luz que vem de dentro, quero que as cores
representem as emoções”, diz-nos Pessanha (1980, p. 213). Intensas emoções são
expressas, portanto, sem nenhuma preocupação com o padrão de beleza tradicional. A
vida é focalizada com pessimismo, angústia e dor, como nos quadros Os Comedores de
Batatas, Mulher cozinhando ao fogão, Retrato do Doutor Gachet, Retrato de um
homem ou Retrato de Armand Roulin, que bem poderiam representar personagens de A
Farsa, como Joana, Candidinha, Anacleto ou Antoninho, caracterizando a inadequação
do eu à realidade, traço, aliás, comum a expressionistas, a decadentistas e a simbolistas,
em maior ou menor grau:
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(...) Feia, rugosa, inútil, ela (Joana) parece-se com aquela fraga que sustenta
e ampara a cabana. É um penedo a que nem uma raiz se apega. Sobre ele
desabaram em vão os invernos, as levadas, os clamores. (...) A fraga
extasiada concentrou-se, dorida e feliz: a fraga sentiu-se mãe. Passaram-se
mais anos – dobaram-se os séculos. O tempo não importa – o sonho das
pedras é infinito e uma mealha de sonho alimenta-as uma eternidade. O
tempo passou – mas a pedra, apesar de sua imobilidade, existia, por baixo
daquela casca rugosa e dura latejava a vida. (...) Era a água que escavava a
rocha. Até que um dia, depois de séculos de obstinação e esforço, chegou à
superfície para rasgar as pedras. (AF, p. 113, grifos nossos).
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Alguns momentos capturados (“Um momento parece que tudo pára no mundo”)
pelo narrador, portanto, são quadros únicos, telas que jamais poderão ser repintadas, ou
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porque nenhum dos seus elementos constitutivos se repetirá, ou por ser impossível a
mesma sincronia, ou a reincidência do ponto de vista do artista.
A relativização e a análise minuciosa do subconsciente e até do inconsciente
dos personagens, através de símbolos, abstrações, associações subjetivas e sonhos, são
marcas típicas da literatura expressionista, que serão herdadas pela surrealista (PIRES,
2005): “Desde pequena que sinto isto aqui a remoer-me sem descanso, dia e noite,
sempre. A inveja é um veneno que me tem azedado toda a existência” (AF, p. 96).
Diferentemente dos “processos psíquicos inconscientes, que escapam à memória e à
consciência” do sujeito, o “subconsciente conta com o conjunto de processos psíquicos
que estão latentes no indivíduo e podem influenciar aflorar a qualquer momento e
influenciar o comportamento do sujeito” (FREUD, 1975) e podem ser observados no
fragmento em que se observa a auto-análise do personagem.
A denúncia de problemas sociais aparece como uma tendência herdada do
Realismo-Naturalismo (SARAIVA, 1989, p. 927-974), recorrente entre decadentistas e
expressionistas, com especificidades e motivos diferentes. Enquanto no Naturalismo o
narrador, como um cientista, analisa a deformação social com frieza, minúcia e
objetividade, no Expressionismo a crítica ao meio social se dá pela inadequação do
artista à realidade, de forma que, prevalecendo a subjetividade, o próprio artista
promove a deformação, a decomposição e a reconstrução da realidade em suas telas
(FURNESS, 1990): “Não! Essa mulher apupada não é a Candidinha, é o meu sonho (...)
Uma vida inteira passada a sonhar e no fim encontra-se a gente com o sonho
derrocado!” (AF, p. 140); “E a canalha apupa-a (a canalha apupa sempre o sonho)” (AF,
p. 141); Já em pequena trazia este mesmo xale, este mesmo trapo, que foi crescendo
comigo. E não creio – nunca cri em Deus, no Deus dos pobres que recomenda a
desgraça, a humilhação, a esmola, no Deus que aconselha a resignação e a fome (...)
(AF, p. 96)
Os cenários de A Farsa são grotescas telas expressionistas, coloridas com as
tintas da emoção, nas quais cada pincelada é uma reação ao convencionalismo, numa
estética do horror, bem ao estilo de O Grito, de Munch.
“O gosto do exótico no tempo e no espaço é constante, como uma das várias
formas tomadas pela evasão” (PEREIRA, 1975, p. 51), assim, aparecem variados
cenários pitorescos descritos nas narrativas de Raul Brandão, nunca banalizados, ainda
que mesquinhos e deteriorados, como o da serra, precário, humilde, mas revitalizador
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pelo contato mais caridoso, afetuoso e respeitoso entre os homens e com a natureza; o
da vila e o da cidade, com relações menos afetuosas.
Outro elemento, apreciado pelos simbolistas, que aparece muito nas obras
brandonianas, ganhando nuances expressionistas, é o sonho, a “quimera”, que preenche
o imaginário de muitos personagens. O sonho é encarado por personagens e narradores
de Brandão como mais importante do que a própria “realidade” ou, por vezes, substituto
da ação, da vida, como ocorre com a Candidinha, que vive seu sonho, seu projeto de
grandeza, por vezes adiando a ação para o futuro. Por outro lado, o pesadelo envolve
cenários e ambientes, conferindo um tom trágico e fantasmagórico à realidade, à vida e
à ação dos personagens:
Nota-se que o que vale à pena na vida é o sonho, mas o sonho anula a realidade,
pois incapacita o sonhador para a ação, tornando-o mero idealizador. As tintas em que
são pintados os sonhos são claras e as que colorem o pesadelo são escuras na obra de
Brandão. Por causa da dureza da vida, optam pelo sonho. É a dureza da realidade que,
portanto, paralisa a vida. Na obra, só vale à pena o sonho, todo o movimento é inútil
porque conduz à morte. Candidinha idealiza e sonha com o momento em que irá matar a
Cega, mas nunca mata, não é capaz de concretizar o sonho: “Em pensamento já a matou
assim muitas vezes; conhece todos os pormenores do crime. Nenhum lhe escapa e dir-
se-ia que na palma da mão retém a humidade dos seus dentes e o hálito da sua boca.
Mas na realidade não se atreve” (AF, p.110). Candidinha não tem coragem, vigor nem
ousadia suficientes para praticar um crime. Mesmo quando envolveu Sofia com seu
filho, tentando concretizar seu sonho de riqueza, usou ardis e empurrou o filho para a
ação, usando-o, uma vez que se mostra incapaz de ousar. Planeja, legisla e leva o filho a
executar, no máximo colaborando com manobras e simulações.
A realidade aparece na narrativa misturada ao fingimento, ou ainda, o real é um
somatório de meias-verdades, uma farsa: “Na tua idade, flor, o meu homem pôs-me na
rua como quem escorraça um cão. (Era mentira, mas a Candidinha começava a fazer
drama, a misturá-lo à realidade, para se engrandecer)” (AF, p.69). Aliás, outra nuance
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Para se entender melhor a passagem das “santas”, cabe uma reflexão sobre os
conceitos de lenda e de mito, que, segundo Câmara Cascudo (2000), têm sua distinção
pautada justamente no “fator tempo-espaço”.
O mito, para Eliade (1986, p. 12-13), é:
(...) uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e
interpretada em perspectivas múltiplas e complementares (...) conta uma
história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo
primordial, o tempo fabuloso dos começos (...) conta, graças aos feitos dos
seres sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer seja uma
realidade tetal, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha, uma espécie
vegetal, um comportamento humano, é sempre portanto uma narração de uma
criação, descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir.
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O narrador sugere que a história das “santas” é uma construção coletiva (“me
contaram essa história de duas santas”), invadida pela imaginação, que satisfaz uma
necessidade religiosa (“fez-se a lenda, começou a rezar-se de milagres”) e gera um
objeto de devoção, consolação e orientação popular, uma religação com o sagrado, uma
“religião primitiva ou sabedoria prática”: “afizeram-se a vir ajoelhar nas aflições a pedir
às santas que lhes valessem” (AF, p. 145), mitificando as personagens.
Lenda, originária da palavra latina legenda ou “coisas que devem ser lidas”,
segundo Lúcia Pimentel Góes, “originalmente designava histórias de santos, mas o
sentido estendeu-se para significar uma história ou tradição oriunda de tempos
imemoriais e popularmente aceite como verdade” e/ou “histórias fantasiosas ligadas a
pessoas verdadeiras, acontecimentos ou lugares que vivem na imaginação popular,
sustentadas oralmente ou cantadas e posteriormente escritas” (GÓES, 2005). No
fragmento anterior de A Farsa, o termo lenda foi empregado em sua significação
original, já que designa, na obra de ficção, uma história de santas (Cega e Sofia)
concebida pelo povo, iniciando seu processo de difusão, transmissão oral e
popularização.
Por isso, o que Brandão denomina na ficção de lenda, talvez para trazer
verossimilhança à passagem das “santas”, trata-se de uma mitificação de personagens,
já que “o mito [pode] vira[r] lenda e a lenda [pode] vira[r] conto”, segundo GUESSE &
VOLOBUEF (2008). Além disso, Câmara Cascudo (2000) ensina que “a lenda tem por
origem fatos que impressionaram o imaginário popular e é localizável no tempo e no
espaço”, “um ponto imóvel de referência”, “de ação remota”; enquanto “o mito está
acima do tempo e do espaço: o mito é universal” e é “uma narrativa de ação constante”
(CASCUDO, 1984). Trata-se de mitificação a passagem das “santas”, já que não
consiste em história de tempos imemoriais sustentada oralmente, mas de uma história
(ficcional) que se tornará lenda, segundo o narrador, que se comporta como um profeta
ou um visionário.
Aliás, mitificar os pobres parece uma tendência na obra de Brandão, sempre
convicta na defesa de que “ser despedaçado, oprimido, calcado, torna quase sempre o
homem grande, porque abala e acorda vozes adormecidas” (OP, p. 107), sustentando
que a pobreza engrandece o ser e o religa ao sagrado ou à “realidade primeva”,
arquetípica e/ou intuitiva (“vozes adormecidas”), como se nota também no conto O
mistério da árvore, nos “dois mendigos vindos de países lendários”: “Sorriam-se os
mendigos cheios de terra e erva, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando o
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que se passava em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos” (OMA, p. 249-258). No
fragmento, também há o emprego do termo lenda na passagem sobre os mendigos
mitificados. Nesse caso, para ressaltar a escassez de amor e de afeto nas relações
interpessoais, encontrados apenas em lendas, no tempo presente da ficção, marcada pela
solidão e pela perversidade.
A morte na obra não aparece apenas como símbolo da extinção da vida; muitas
vezes aparece também como entrada numa nova vida espiritual, desejada pela Cega:
- Vou morrer.
E como Sofia irrompesse em pranto:
- Chiu, baixinho... Temos chorado tanto!... Deus ouviu, enfim, as minhas
súplicas (...) (AF, p.145)
Sociedade e meio aparecem, quase sempre, como entorno sombrio que fere e
atormenta narradores e personagens, alargando o abismo entre o indivíduo e o espaço do
real e gerando incompatibilidade com a existência carnal, na obra de Brandão, ocupado
em “auscultar seu próprio mistério interior amorosa e languidamente” e “ferido por tudo
que o contorna” (PEREIRA, 1975, p. 33-35).
Assim, nessa narrativa, estabelecem-se oposições entre o espaço-tempo do real e
o da imaginação, que são coloridos em tons de claro-escuro. O “real”, vivido pelos
personagens, pinta-se em tons escuros; é o espaço sombrio do pesadelo, que horroriza o
narrador. O “espaço-tempo” luminoso é o da imaginação, do sonho (e da metafísica),
que abriga as “santas” e as “pobres mulheres do povo, fartas de trabalho e de lágrimas”,
representando os pobres que sofrem, por quem o narrador demonstra profunda
afetividade.
REFERÊNCIAS
------. Húmus. Edição crítica de Maria João Reynaud. Coleção Obras Clássicas da
Literatura Portuguesa. Século XX. Vol. 60. Porto: Campos das Letras, 2000.
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USP, 1984.
FERREIRA, Vergílio. “No limiar de um mundo, Raul Brandão”. In: Espaço do invisível
II. Lisboa: Arcádia: 1976, p. 171-224.
------. “Situação actual do romance”. In: Espaço do Invisível I. Lisboa: Arcádia, 1975, p.
225-272.
GOÉS, Lúcia Pimentel. “Lenda”. In: E-Dicionário dos Termos Literários. [Edição e
organização de Carlos Ceia.] Lisboa: http://www.fcsh.unl.pt/edtl, ISBN: 989-20-0088-9,
2005.
LOPES, Ana Maria Marques da Costa Pereira. “Do Mito aos Mitos Irrecicláveis:
Reflexões”. In: Millenium - Revista do ISPV. Número 31. Viseu:
www.ipv.pt/millenium, Maio de 2005.
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Edição. Porto: Porto Editora, 1989.
------. “Raul Brandão e o seu tempo”. In: BRANDÃO, Raul. Húmus (textos escolhidos).
Lisboa: Seara Nova, 1978.
------. “A escrita de uma crise”. In: BRANDÃO, Raul. Húmus (textos escolhidos).
Lisboa: Seara Nova, 1978.
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pior cego é o que quer ver”. Este desejo de ver e conhecer se realiza no amor por Sá
Justa, nome que se liga ao sentido platônico da busca humana: a Justiça, a Beleza e o
Bem.
Podemos tomar os personagens como desdobramentos do ser humano, de modo
que, ao cego, que apalpa o mundo para conhecê-lo, corresponda o mundo dos sentidos,
ou dos limites do corpo. Seu nome, Tomé, nos indica a atitude da figura evangélica,
capaz de aceitar apenas o que podia ser percebido pelos sentidos, conforme se lê no
episódio da ressurreição narrado no evangelho de São João iii.
De acordo com Shoepfliniv, a teoria platônica caracteriza a condição humana por
uma espécie de escravidão da alma com relação ao corpo, que se configura como uma
prisão, ou como um sepulcro, onde ela se encontra exilada após a queda desastrosa que
a fez despencar do Céu das Idéias para este mundo. Da mesma forma, o guia, a alma,
está presa a seu companheiro cego, o corpo, condição que estabelece situações de
conflito. A possibilidade de a alma se reunir novamente à transcendência, ou à Verdade,
para Platão, além da busca racional e filosófica do saber, se realiza através do amor, que
é escada entre os dois universos, entre o corpóreo e o espiritual, o Sensível e o
Inteligível.
No conto de Rosa, o cego Tomé não é capaz de reconhecer a verdadeira beleza
ou amor. Sem alcançar o invisível, detendo-se no prazer sensorial das formas, morre
Tomé: “Dia que deu má noite. Ele se errou, beira o precipício, caindo e breu que
falecendo”. (p.15). Mas o abismo, precipício ou despenhadeiro, representa, segundo
Chevalierv, a integração suprema na união mística, ou os estados informes da existência,
deste modo ligando começo e fim, caos primordial ou inferno. Segundo a doutrina
platônica, a morte é o retorno ao estado primordial, perdido periodicamente pela
reencarnação da alma. Rosa demonstra aqui que o suposto mal, feito a Tomé, é na
verdade o cumprimento do destino de alguém que, preso à terra e aos sentidos, imerge
no abismo para o perfeito conhecer.
Tomemos agora a via portuguesa: Sophia de Mello Breyner, ao trazer a figura
errante de Búzio para sua narrativa poética, insere-se na linhagem homérica da mesma
forma como agiam os Homéridas, ou descendentes de Homero, corporação de aedos
que se dedicava a transmitir os antigos poemas gregos. A autora narra a partir de uma
memória de criança, muitas vezes coberta pela bruma da indefinição do ato de recordar,
fato que liga ainda mais o personagem à esfera mítica.
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REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Heloísa Vilhena de. As Três Graças. São Paulo: Mandarim, 2001.
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CHEVALIER, Jean & Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José
Olímpio, 1996.
HARTOG, François. Memória de Ulisses: Narrativas sobre a fronteira na Grécia
Antiga. Trad. Jacyntho Lins Brandão.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004.
LUKACS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas
da grande épica. Duas Cidades: São Paulo, 2000.
PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.
SHOEPFLIN, Maurizio. (ed) O amor segundo os filósofos. Trad. Antonio Angonese.
Bauru: EDUSC, 2004.
NOTAS
i
Hartog, 2004. p.48.
ii
Araújo, 2001.p.139.
iii
Evangelho de João, Cap. 20:25.
iv
Shoepflin,2004. p.13.
v
Chevalier,1996. p.5.
vi
Paz, 1982. p.43
vii
Idem, 1982, p.142.
viii
Lucaks, 2000, p.25.
ix
Langrouva, 2002, p.431.
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*
Professor Adjunto da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da UNISUAM (Centro Universitário
Augusto Motta).
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Mas há, nas estratégias de construção narrativa adotadas pelo autor – primeiro leitor
privilegiado de sua própria escrita – no desenvolvimento de seu enredo, traços intratextuais,
marcas discursivas, elementos da linguagem, categorias narrativas – igualmente diferenciados
ao longo dos tempos –, que levam, semelhantemente, os seres de papel – narrador,
personagens e narratário3 – a também eles identificarem ou não a presença de eventos
insólitos no plano narrativo, denunciando-os, primeiramente, por vezes, ao leitor modelo 4,
entendido aqui tanto como aquele que habita o texto quanto como aquele que, fora dele, o
recepciona no ato efetivo de leitura.
Será essa categoria narrativa – o insólito ficcional –, por nós eleita como fio condutor
de nossas pesquisas, que orientará, mais uma vez, a leitura da obra de Mário de Carvalho que
apresentaremos neste XXII Congresso da Associação Brasileira de Professores de Literatura
Portuguesa – ABRAPLIP (2009). Nosso olhar crítico-interpretativo focalizará a narrativa
curta “O basilisco”5 nos tênues limites de consumação do Fantástico, conforme sugere
Todorov6, em que o insólito oscila entre ser ou não explicado pelas leis da natureza, de
fundamentação lógico-racional, ou simplesmente aceito como emersão do sobrenatural ou
extraordinário, rompendo com as regras de conduta quotidianas, conforme a racionalidade
empírica, em um jogo lúdico de impossível conclusão favorável a uma ou a outra
possibilidade pacífica de explicação.
No XVIII Encontro, em Santa Maria/RS (2001), tratamos de “Do Deus memória e
notícia”7, sob a égide do Realismo Maravilhoso8, destacando o amálgama harmonioso dos
realia com os marabilia presentes naquela narrativa9. No XX Encontro, em Niterói/RJ
(2005), detivemo-nos na antologia orgânica Casos do Beco das Sardinheiras10, apontada por
nós, naquele momento, como paradigma do outro e novo gênero literário da
Contemporaneidade, o Insólito Banalizado11. No XXI Encontro, em São Paulo/SP (2007),
aprofundamos a questão, solidificando nossa proposta de existência do novo gênero literário
no bojo das manifestações contemporâneas, com uma leitura de “O nó estatístico”12.
Em “O basilisco”, desde o título, o leitor, empírico ou modelo, é transportado para o
universo do insólito, em conformidade seja com as tradições do Maravilhoso – Clássico ou
Medieval – ou com as do Sobrenatural, encarado aqui, conforme sugere Todorov, como a
manifestação moderna daquele gênero13.
Em O livro dos seres imaginários, Borges dedica quase três páginas ao verbete que
trata desse “ser” 14. O escritor argentino, cultor do insólito em sua obra ficcional – também
importante ensaísta que se aventurou por reflexões acerca da narrativa dita fantástica ou
estranha –, inicia informando que, “no decorrer das eras, o basilisco se modifica, crescendo
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em fealdade e horror, e hoje é esquecido.”15 Desse modo, o autor remete para o campo da
fealdade e do horror, topoi próprios do universo do insólito, limítrofe de certa tendência
grotesca de matiz gótica, perpetuada nas literaturas moderna e contemporânea16. Borges ainda
situa o basilisco num tempo ancestral e infinito, marcado pelo “decorrer das eras”, tão distante
que “hoje é esquecido”. Mas o escritor português Mário de Carvalho, semelhante a seu colega
argentino, também cultor do insólito em sua obra de ficção, tenta, com esta sua narrativa,
resgatar aquele “ser imaginário” de seu esquecimento e trazê-lo desde as eras decorridas para
o seu tempo.
Borges descreve o basilisco em seus aspectos físicos:
o basilisco era uma serpente que tinha na cabeça uma mancha clara em forma de
coroa. A partir da Idade Média, é um galo quadrúpede e coroado, de plumagem
amarela, com grandes asas espinhosas e cauda de serpente que pode terminar em
gancho ou em cabeça de galo. (...) Uma das gravuras que ilustram a História Natural
das Serpentes e Dragões de Aldrovandi lhe atribui escamas, não penas, e oito
patas.17
E não deixa, ainda, de realçar, em ajuda à descrição horrenda e pavorosa que traz à baila, seus
poderes extraordinários ou sobrenaturais: “O que não muda é a virtude mortífera de seu olhar.
Os olhos das górgonas petrificam; Lucano conta que do sangue de uma delas, Medusa,
nasceram todas as serpentes da Líbia: a áspide, a anfisbena, a amódita, o basilisco.”18
Conforme Borges,
O basilisco vive no deserto; ou, melhor dizendo, cria o deserto. A seus pés caem
mortos os pássaros e apodedrecem os frutos; a água dos rios em que sacia a sede fica
envenenada durante séculos. Que seu olhar quebra as pedras e queima o pasto (...).
O cheiro da doninha o mata; na Idade Média, dizia-se que o canto do galo também o
matava. Os viajantes experientes se muniam de galos para atravessar comarcas
desconhecidas. Outra arma era um espelho: o basilisco é fulminado pela própria
imagem.19
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nomeando o que se abatera, utilizados pelo autor na construção de sua voz narrativa,
prenunciam o insólito, manifesto desde a primeira linha do texto. Tratava-se de um enovado
de sensações e reações díspares e contrárias entre si, que acometera a população local, era
“um desarranjo dos actos e das posturas, um atabalhoamento das atitudes, que surpreendeu e
incomodou as gentes”25. Como sentencia o narrador, “a normalidade do quotidiano havia sido
alterada”26, o insólito instalara-se na narrativa.
Nesse caso, os seres de papel – narrador e personagens – percebem a manifestação do
insólito e denunciam-na ao narratário27, chegando, por extensão, ao leitor modelo e,
consequentemente, aos leitores virtuais, que, em dado momento, se compreenderem as regras
do jogo ficcional proposto pelo autor modelo – também construto narrativo – firmarão um
pacto de adesão e se permitirão participar, partilhando, dos eventos insólitos manifestos na
narrativa28.
O narrador registra vários fatos incomuns, inusuais, impróprios, inauditos, inesperados
e, mesmo, extraordinários – fora da ordinariedade – ou sobrenaturais – para além da
naturalidade:
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insistia e contrapunha-se, mas, após cálculos e reflexões, aquele jovem instou o outro a
acreditar que aquilo não era “um caso médico, acredita. É mesmo um fenómeno, em absoluto,
estranho à medicina”35. E, inquirido, chegou a admitir: “Se eu te contasse agora não
acreditavas”36, mas pediu ao colega aceitasse entrar no jogo: “Peço é que te disponhas a vir
comigo sem fazer muitas perguntas. De acordo?”37
Podemos sugerir, sem susto, que, nessa passagem, Mário de Carvalho faz um discurso
metalinguístico, convidando uma personagem – figura de autoridade e aqui apontada como
cumprindo a função de narratário e, portanto, canal de veiculação da mensagem em direção ao
destinatário virtual, qual seja, o leitor –, através do diálogo com outra – também figura de
autoridade –, a assumir o jogo da ficção, em que “o leitor precisa aceitar tacitamente um
acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’”38, pois, como já
advertira Umberto Eco, “quando entramos no bosque da ficção, temos de assinar um acordo
ficcional com o autor e estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala (...)”39. Assim se
fecha competentemente o circuito da narração, cumprindo-se a interlocução desejada –
narrador e persongens > narratário personagem > leitor empírico ou virtual > leitor modelo,
em que se coadunam, coincidentemente, o autor modelo e leitor modelo, dando coesão ao
discurso, produto eficiente das estratégias narrativas adotadas pelo autor – ser da realidade.
Retornando à narrativa ficcional, texto e pretexto desta leitura crítico-interpretativa,
tem-se o diálogo de negociação, acordo, pacto, entre os dois astrônomos, em que “o jovem
cientista, após um momento de pausa, voltasse à carga”40, provocando objeção imediata do
outro: “Nós somos astrônomos, não somos médicos, que podemos fazer? Não passou nenhum
cometa, pois não? Não é epidemia de cometa. Não temos portanto nada a ver com o caso.
Olha, deixa vir aquela equipa médica indiana, especializada e epidemiologia”41. Mas, “o
jovem astrônomo tomou um ar sério de quem faz confidências, olhando o outro bem de
frente”42, e tornou à carga, insistindo: “– Isto não é um caso médico, acredita. É mesmo um
fenômeno, em absoluta, estranho à medicina.”43
O outro acabou por aquiescer, e firmava-se o pacto. “Ao fim de exaustivas
negociações, o jovem cientista arrastou o amigo”44. Foram a um “hospital de Cascais, longe
da área afectada, que estava centralizado todo o serviço de combate à calamidade”45. Lá,
“exibindo o cartão do observatório, conseguiram ser recebidos pelo médico-chefe”46 – outro
recurso à figura de autoridade, imprimindo maior verossimilhança e garantindo coesão e
coerência internas da narrativa. O médico pergunta-lhes: “– Mas em que posso ser-vos útil”47.
Em resposta, “o jovem cientista adiantou que, em sua opinião se tratava de um fenómeno da
natureza, por assim dizer, cósmica”48.
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Agora, estavam perto – “Perto de quê?”58, perguntou o cientista mais velho. – “do
Basilisco”59 – respondeu o cientista mais jovem. E, “à medida que se internavam nos terrenos
do vale, iam-se-lhes deparando animais mortos. Muitos cães, gatos, ratos, uma jerico
pequena... A meio dum terreiro, coberto de detritos, manchado aqui e além de cadáveres, o
carro parou”60. Devia ser ali o local, concluía o jovem astrônomo, instruindo seu colega:
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“Põe a máscara de soldar” (...) “É para não ficares fascinado, meu tonto. O
basilisco anda por aí. Agora é procurar-lhe o rasto neses terrenos, Vê se percevebes
por que eu te fiz confessar. Um homem em pecado pode morrer se vir um basilisco.
É o que dizem os antigos...”61
Não tardou muito a darem com ele. Atrás de um montuto, anéis meio encobertos por
restos de tijolo, as fauces escancaradas, os grandes olhos triangulares a chisparem, o
basilisco fitava-os, imóvel, amarelo, meio serpente, meio dragão, com a cabeça
triangular, cristada, mais avantajada que a duma víbora. Em torno do corpo, ao
compasso do lento enroscar de anéis, saltavam pequenas faíscas. Dos olhos
desprendiam-se chispas ablongas, avermelhadas.62
Em certos aspectos bem semelhante ao ser imaginário da descrição borgiana, ali estava a
manifestação insólita, emersão sobrenatural e extraordinária, irrupção de um fenômeno
incrível, incomum, impróprio, inesperado, inusual, inaudito.... Era preciso pôr-lhe fim e repor
a ordem.
Assim,
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O local era bem aquele, por detrás de um monturo, entre restos de tijolos quebrados
e entulhos vários. Os rastos do animal eram bem visíveis. A manivela de ferro havia
deixado cicatrizes inconfundíveis no chão, dos golpes falhados do jovem astrónomo.
A areia encontra-se revolvida, no local da agonia do basilisco. Bem procuram, em
vão.73
Logo, conclui o jovem astrônomo: “– Para onde terá ele ido? A bem dizer, nada sabemos dos
hábitos destes animais. Nem sabemos se estava morto...”75. Ao que completa o outro, seu
colega mais velho: “– Nem sabemos sequer se eles morrem...”76.
Se, como sentencia, Filipe Furtado, “só o fantástico não propõe qualquer saída para o
debate [entre explicações lógicas e racionais ou explicações de outra ordem distante destas
para os fenômenos insólitos] antes ampliando a indefinição ao fazer-se constantemente eco
dela”77, “enquanto o maravilhoso se decide por um mundo arbitrariamente alucinado, sem
aventar os motivos da sua escolha”78 e “o estranho mantém a incerteza durante um certo
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tempo, acabando por negar a existência de qualquer fenómeno alheio à vigência das leis
naturais”79, “O basilisco”, de Mário de Carvalho, ainda que não seja um exemplar pleno do
gênero fantástico, aponta para seu traço fundamental: a ambiguidade, já que
qualquer narrativa cujo tema dominante se relacione de forma inegável com uma
manifestação meta-empírica nunca totalmente explicada ou aceite reúne já as
condições básicas para ser tomada como fantástica, sobretudo se essa dialética entre
a natureza e o extranatural vier a ser repetida e ampliada inúmeras vezes no decurso
da intriga80,
NOTAS
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GARCÍA, Flavio. De "O tombo da lua", de Mário de Carvalho, a "O homem que engoliu a lua", de Mário de
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______. O homem, a Lua e o Insólito em "O tombo da Lua" e "O Homem que engoliu a Lua", de Mário de
Carvalho In: Anais do V Encontro de Literatura Infantil e Juvenil: leitura e crítica, 2008, Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras, 2008.
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Sardinheiras como paradigma de um novo gênero literário In: Anais do XI Encontro Regional da Associação
Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo: ABRALIC, 2007, v.1.
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Rubião, Mário de Carvalho e Méndez Ferrín In: Anais do X Congresso Internacional ABRALIC, 2006, Rio de
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ABRAPLIP, 2005.
______. Mário de Carvalho e a ancestralidade ibérica In: XVIII Encontro de Professores Brasileiros de
Literatura Portuguesa, 2001, Santa Maria: ABRAPLIP/ Editora Pallotti, 2003. p.165-173.
2
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980. p. 46.
3
Filipe Furtado propõe a denominação “ser de papel” ao se referir ao narratário, equiparando-o à personagem,
em oposição distintiva aos “destinatários reais” (op. cit., p. 76), ou seja, aos leitores efetivos, para os quais se
pode propor a denominação “seres da realidade”, constituindo-se, assim, um binômio: “seres de papel” ≠ “seres
da realidade”.
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4
Umberto Eco desenvolve as categorias distintivas de leitor empírico e de leitor modelo, sendo aquele o leitor
qualquer, no ato de leitura mais costumeiro, que se atém apenas à história, e este, tanto o conjunto de estratégias
narrativas utilizadas pelo autor e, portanto, presente no corpo do texto como elemento narrativo, quanto aquele
outro quando identifica as estratégias e lê não apenas a história, mas ainda o próprio processo de construção
discursiva. Em linhas gerais, Eco apresenta esses postulados em Seis passeios pelos bosques da ficção. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
5
In: CARVALHO, Mário. Contos soltos. Lisboa: Quatro Elementos, 1985. p. 25-32.
Muito poucas narrativas dessa antologia foram, mais tarde, republicadas em outras antologias, mas a maioria
delas, inclusive “O basilisco”, permanece sem edição posterior a 1985, uma vez que o volume, igualmente, não
tornou a ser produzido.
6
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
7
In: CARVALHO, Mário de. Contos da Sétima Esfera. 2 ed. Lisboa: Caminho, 1990. p. 17-30.
8
Conforme Irlemar Chiampi,
realismo maravilhoso propõe um “reconhecimento inquietante”, pois o papel da mitologia, das crenças
religiosas, da magia e tradições populares consiste em trazer de volta o “Heimliche”, o familiar coletivo, oculto e
dissimulado pela repressão da racionalidade. Neste sentido, supera a estrita função estético-lúdica que a leitura
individualizante da ficção fantástica privilegia. (...) o realismo maravilhoso visa tocar a sensibilidade do leitor
como ser da coletividade, como membro de uma (desejável) comunidade sem valores unitários e hierarquizados.
O efeito de encantamento restitui a função comunitária da leitura, ampliando a esfera de contato social e os
horizontes culturais do leitor.
A capacidade do realismo maravilhoso de dizer a nossa atualidade pode ser medida por esse projeto de
comunhão social e cultural, em que o racional e o irracional são recolocados igualitariamente. (O Realismo
Maravilhoso (O realismo Maravilhoso. São Paulo, Perspectiva: 1980. p. 69.)
9
GARCÍA, Flavio. Mário de Carvalho e a ancestralidade ibérica In: XVIII Encontro de Professores Brasileiros
de Literatura Portuguesa, 2001, Santa Maria: ABRAPLIP/ Editora Pallotti, 2003. p.165-173.
10
CARVALHO, Mário. Casos do Beco das Sardinheiras. 6 ed. Lisboa: Caminho, 1991.
11
GARCÍA, Flavio. Impasses de gênero nas literaturas da lusofonia:Casos do beco das sardinheiras, de Mário de
Carvalho, um exemplo In: Anais do XX Encontro de Professores Brasileiros de Literatura Portuguesa, 2005,
Niterói: ABRAPLIP, 2005.
O Insólito Banalizado seria um gênero literário contemporâneo, manifesto no bojo das experiências pós-
modernas,constituído por um conjunto de narrativas curtas marcadas pela presença de eventos insólitos não
ocasionais que funcionam como móveis da narração, narrativas estas que têm como estratégia discursiva
principal a banalização – aceitação – do insólito pelos seres de papel.
12
In: CARVALHO, Mário. A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho e outras histórias. Lisboa: Caminho,
1992. p. 53-68.
Naquela ocasião, apresentamos “O insólito na narrativa de Mário de Carvalho: uma questão de gênero literário’,
que, até o momento, às vésperas da realização do XII Encontro, aguarda publicação.
13
TODOROV, Tzvetan. “A narrativa fantástica”. In: As estruturas narrativas. 4 ed. São Paulo: Perspectiva,
2004. p. 147-166.
14
BORGES, Jorge Luís. “O Basilisco”. In: ______ et GUERRERO, Margarita L. Coppola. O livro dos seres
imaginários. Porto Alegre: Globo, 1981. p. 40-42.
15
BORGES, op.cit., p. 40.
16
Trata-se de admitir, mesmo embrionariamente, seguindo as proposições apresentadas por Todorov, que o
Sobrenatural moderno e o contemporâneo sejam uma atualização do Maravilhoso clássico e do medieval, estes
com forte carga sublime e aqueles com deslocamentos mais nítidos para o grotesco. Tal posicionamento crítico-
teórico ainda merece maior e mais detida atenção, porém não nos furtamos a sugeri-lo para, com isso, marcar um
território apropriado da discussão emergente.
17
BORGES, op. cit., ibidem.
18
Ibidem.
19
Idem, p. 41-42.
20
Trata-se do narrador não personagem, comumente chamado de narrador observador, que relata os
acontecimentos em terceira pessoa, não participando deles (Cf. REIS, Carlos et LOPES, Ana Cristina M.
Dicionário de narratologia. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 265-267.). Este tipo de narrador não é aquele que
Todorov indica como sendo próprio do Fantástico, mas, na grande maioria das narrativas modernas e
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contemporâneas em o insólito se manifesta, verifica-se este tipo de narrador, diferentemente de como se dá nas
narrativas que o estudioso do Fantástico apresenta como paradigmáticas do gênero (TODOROV, op. cit.).
21
CARVALHO, Mário. “O basilisco”. In: Contos soltos. Lisboa: Quatro Elementos, 1985. p. 25.
22
CARVALHO, Mário. Casos do Beco das Sardinheiras. 6 ed. Lisboa: Caminho, 1991.
23
BORGES, op. cit., p. 40.
24
CARVALHO, Mário. “O basilisco”. In: Contos soltos. Lisboa: Quatro Elementos, 1985. p. 25.
25
Ibidem.
26
Ibidem.
27
Filipe Furtado atribui especial importância à função do narratário, chegando a dedicar-lhe uma capítulo
integral: “O narratário: papel e limitações” (op. cit., p. 74-84). Furtado afirma que “o papel do narratário não
pode deixar de constituir uma característica importante do gênero [fantástico]” (p. 75).
28
Para compreender essa proposta de entendimento crítico-teórico-metodológico, vale recorrer a ECO, op. cit.,
que desenvolve os conceitos de “autor modelo”, “leitor modelo”, “leitor empírico” e, ainda narrador, narratário,
personagens.
29
CARVALHO, op. cit., p. 25.
30
Ibidem.
31
Idem, p. 26.
32
Ibidem.
33
Ibidem. O recurso à personagem identificada por sendo um “jovem cientista”, um “astrônomo”, tem especial
importância, pois, como destacam Filipe Furtado (op. cit.) e Umberto Eco (op. cit.), trata-se de imprimir à
narrativa um efeito de “autoridade”, já que “o emprego de figuras geralmente consideradas respeitáveis pela
idade, pela sabedoria ou pelo estatuto social” FURTADO, op. cit., p. 54), reforçam, nas próprias palavras de
Furtado, a plausibilidade da ação e, ainda, daquilo que se encena na narrativa.
34
Ibidem.
35
Idem, p. 27. Essa outra personagem, também astrônomo, reforça o recurso à figura de autoridade, já antes
apontado. Nesse caso, contudo, terá ainda papel mais relevante, uma vez que, como se pode sugerir, trata-se de
uma personagem – ser de papel – que cumpre a função de narratário – também ser de papel –, acumulando em si,
simultaneamente, as funções de personagem e narratário, de maneira análoga aos narradores auto ou
homodiegéticos – aqueles que reúnem em si as funções de personagem (principal ou secundária) e de narrador.
Filipe Furtado desenvolve essa particularidade dos narratários personagens em textos fantásticos, atribuindo-
lhes, inclusive, maior eficiência ao “induzir o destinatário do enunciado à sua aceitação” (FURTADO, op. cit, p.
55) como verossímil.
36
Ibidem.
37
Ibidem.
38
ECO, op. cit., p. 81.
39
Idem, p. 83.
40
CARVALHO, op. cit., p. 27.
41
Ibidem.
42
Ibidem.
43
Ibidem.
44
Ibidem.
45
Ibidem.
46
Ibidem.
47
Ibidem.
48
Ibidem.
49
TODOROV, op. cit.
50
Em conformidade com o que propõe Carlos Reis, opta-se, aqui, pelo emprego de diegese como sinônimo de
história, referenciando o plano da história (REIS et LOPES, op. cit., p. 108).
51
TODOROV (op. cit.) e FURTADO (op. cit.).
52
CARVALHO, op. cit, p. 28.
53
Ibidem.
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54
Ibidem.
55
Idem, p. 29.
56
Ibidem.
57
Idem, p. 29-30.
58
Idem, p. 30.
59
Ibidem.
60
Ibidem.
61
Ibidem.
62
Ibidem.
63
Idem, p. 31.
64
Ibidem. O emprego do adjetivo “verdadeira” para qualificar a condição recomposta da cidade merece, em
outra leitura, alguma atenção, uma vez que a discussão acerca da verdade e do real permeia as questões conceitos
em torno do insólito.
65
Ressalte-se que a opção aqui pelo termo “aventura” tem por objetivo apontar para o imaginário do
Maravilhoso, em que os heróis sempre saíam demandando por aventuras, já que, em se aceitando a existência
efetiva do basilisco e sua ação maléfica sobre a cidade, a narrativa de Mário Carvalho teria aportado no
Sobrenatural, vertente contemporânea, de matiz gótico-grotesca, daquele gênero tão caro à Antiguidade Clássica
– em suas epopeias – e à Idade Média – nas canções de gesta, manifestação medieva do gênero épico, e nos
romances corteses.
66
Ibidem.
67
Ibidem.
68
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980. p. 21.
69
Idem, p. 34.
70
CARVALHO, op. cit., p. 32.
71
Ibidem.
72
Ibidem.
73
Ibidem.
74
Ibidem.
75
Ibidem.
76
Ibidem.
77
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980. p. 40.
78
Ibidem.
79
Ibidem.
80
Idem, p. 42.
81
Percival é um dos cavaleiros arturianos, destacado no ciclo do Graal, tendo mercido, inclusive, um romance
próprio e exclusivo (TROYES, Chrétien de. Percival ou o Romance do Graal. São Paulo: Martins Fontes,
1992.).
82
CARVALHO, Mário. “O basilisco”. In: Contos soltos. Lisboa: Quatro Elementos, 1985. p. 32.
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*
Professora de Literatura Portuguesa nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Letras
da UFRJ (1976-2006). Vice-Presidente do Real Gabinete Português de Leitura (Centro de Estudos) e
Coordenadora-Geral do PPRLB-Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiros, na mesma instituição.
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Só quem não tinha funções oficiais, como era o caso por exemplo do escritor
Jorge Amado, pôde aproveitar a ocasião para dizer diretamente, a Marcelo
Caetano e à sua comitiva, aquelas palavras independentes que infelizmente os
nossos escritores não lhe podiam dizer. Na sessão de candomblé, o autor de
Jubiabá, falando em nome dos organizadores da festa, congratulou-se com a
presença, naquela festa de folclore africano, não só dos representantes
oficiais como dos outros portugueses e insistiu na necessidade de paz e
democracia, tanto para o Brasil como, e principalmente, para Portugal.
Marcelo Caetano, lívido, abandonou a festa antes do fim, seguido pela
comitiva de lacaios que o acompanhava. Mais tarde, o nº 2 do regime fascista
português comentou, indignado, que “não viera ao Brasil para ouvir
propaganda comunista”...
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Uma vez ainda, a juventude paulista fez ouvir a sua voz, dizendo claramente
a Marcelo Caetano – para que este o vá dizer ao seu chefe – que no Brasil a
opinião pública está com os democratas portugueses.
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Como se vê, o sr. Lopes de Almeida, como antes, ainda é hoje um servil
capacho da ditadura portuguesa.
O sr. Salazar precisa compreender que o seu barato regime, conhecido por
“Estado Novo”, já foi desmascarado, há muito, no Brasil. Dois anos depois
que aqui floresceram os primeiros germens maléficos desse regime, o povo
brasileiro, principalmente os paulistas e, com eles, nós, os acadêmicos do
Largo São Francisco, derramamos o nosso sangue nos campos da revolução
constitucionalista de 1932, para demonstrar que a juventude esclarecida e
democrática do País se levantava em armas contra a nova catástrofe
preparada contra a nossa liberdade. Perdemos, mas a nossa luta continuou,
até que em 1945 o ditador caiu, vencido pelas forças democráticas do País.
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(confusão que deve ter passado despercebida, já que não há corrigenda posterior). Na
verdade, essas poucas linhas da página 7, começadas por “O COLÓQUIO E A...”
(assim, em caixa alta) completam aquele supra referido texto de Adolfo Casais
Monteiro (são os três últimos parágrafos), que agora ganha o título mais comedido de
“O Colóquio e a comunidade”iv:
Por toda a parte onde tenho estado, de Porto Alegre a Fortaleza, verifico
este fato impressionante: com exceção de S. Paulo, por toda a parte se
evidencia a carência daquela biblioteca que Portugal deveria ter oferecido a
cada uma das universidades brasileiras, como demonstração mínima de
interesse no tal intercâmbio; mínima e... econômica. Por aí se devia começar,
e com isso o orçamento não se veria em risco de perder aquele celebrado
superavit, tão caro à alma do sr. Oliveira Salazar.
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São homens como Rodrigues Lapa, Casais Monteiro, Vítor Ramos que
representam a cultura portuguesa no Colóquio da Bahia, e não um Marcelo
Caetano, pajem de Salazar e que “concilia” a cultura com a anticultura da
censura e da perseguição a intelectuais.
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Foi em vista disso, sem dúvida, que as vedetas houveram por bem dar elas
próprias o exemplo – e ficar caladas. Aliás, é a isso que precisamente estão
habituadas, pois que é gaguejar as palavras de ordem do Chefe, senão uma
forma de estar calado? Aqui, porém, o silêncio foi mais puro ainda. E viu-se
um norte-americano, ingênuo, depois de ter feito duas perguntas sobre o
problema africano a um delegado luso, exclamar, desorientado: Ele não
responde! – Como se o alto exemplo de Pacheco tivesse sido em vão, pois
não é apenas no conselheiro Acácio que os homens do Estado Novo têm
buscado o seu modelo.
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a análise conjuntural do que para a notícia pura e simples, liam-se longos artigos sobre
os rumos da repressão no caduco Estado Novo e da política externa portuguesa, em
particular os concernentes ao colonialismo em África.
A independência conquistada pelo jornal – o que não era difícil nos tempos
democráticos de Juscelino Kubitschek de Oliveira – permitiram a Sena expor
claramente suas posições e análises políticas, que, por motivos óbvios, era obrigado a
escamotear em sua terra. Em certa medida, o comprometimento de Sena com sua pátria
e seus concidadãos (sem excluir sua vigilante consciência de “cidadão do mundo” e
“testemunha”) beneficiou-se do exílio brasileiro, e da inaugural experiência de liberdade
então vivenciada, para vir à tona e ganhar maior densidade. É como se aqui se tivesse
tornado ainda mais português do que julgava ser, agudizando a relação de amor e ódio
que sempre manteve com sua pátria – sentida como mãe e madrasta indissociavelmente.
Tudo isto se evidencia não só nas 37 colaborações que publicou, assinadas ou
não, no Portugal Democrático, mas também na obra que produziu no exílio brasileiro
(1959-1965), sobretudo na volumosa narrativa ficcional, eivada de conotações políticas,
como, por exemplo, os contos de Os Grão-Capitães, a novela O Físico Prodigioso e o
romance Sinais de Fogo. Aliás, como já procurei demonstrarvi, confrontadas as datas,
não é difícil descobrir elos entre o noticiário do jornal e a contextualização de muito que
Sena aqui escreveu. Ou seja, por vezes, matérias do Portugal Democrático serviram de
mote ao processo de criação de Sena, atestando que “as vivências, experiências ou
observações do autor, e a sua criação em verso ou prosa estão intimamente ligadas”vii.
Enfim, mais uma vez se pode comprovar muitos elos e enorme coerência interna
na obra (e na vida...) de Jorge de Sena. Coerência que o faz abandonar o Brasil pouco
depois do golpe militar que aqui instaurou algo muito próximo ao que já vivera em
Portugal e o fizera partir. Coerência palpável em trechos de auto-análise como esteviii:
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Enfim, um tipo de coerência que certamente não teria agradado aos integrantes
da “comitiva oficial portuguesa” do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-
Brasileiros, ao se cruzarem com Jorge de Sena em Salvador.
REFERÊNCIAS
NOTAS
i
RIBEIRO, 1999, p.20
ii
Jornal da Bahia, 15/16 Ago. 1959, p.4, Caderno 2.
iii
A coleção completa do jornal encontra-se digitalizada na Cátedra Jorge de Sena/UFRJ, graças ao
patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian.
iv
É com este título, e sem os três últimos parágrafos, que o artigo se encontra publicado no livro que
reúne os escritos políticos de Adolfo Casais Monteiro, O País do Absurdo, dado que fornece matéria de
investigação à Crítica Textual. (Ver MONTEIRO, 2007, p.145-7)
v
SENA, 1999, p. 23-4
vi
SANTOS, 2009, p.7-14
vii
SANTOS, 2009, p.7
viii
SENA, 1988, p. 20-22
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[o desafio] era filmar uma história que não se tem por onde pegar. É um filme
sobre uma doença que não existe nem nunca vai existir, numa cidade que não
existe, com personagens que não têm nome nem história. É pura invenção.
(...) A primeira coisa que falam nos manuais de roteiro americanos é sobre a
identificação com o personagem, para grudar o espectador. Essa
possibilidade o filme não tinha. (2008, E, p. 1).
∗
Helena B. C. Pereira é docente de graduação e pós-graduação em Letras na Universidade Presbiteriana
Mackenzie (UPM-SP), instituição na qual exerce, atualmente, a função de Decano (Pró-Reitora) de
Extensão.
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cine organiza la realidad visual. Lo cual no significa que una novela sea sólo
palabras [...], ni tampoco que una simple sucesión de imágenes [...]
constituya una narración cinematográfica. Con sólo imágenes se hace una
película, pero no un relato fílmico; con sólo palabras se escribe un texto, pero
no una novela en el sentido corriente. Pero tanto como el hecho de relatar – y
aún este hecho es muy cambiante, puede ser un mero fluir de escenas sin
progresión dramática – cuentan la palabra, para la novela, la imagen, para el
cine∗. (GIMFERRER, 2000, p. 55)
∗
A substância de um romance não é seu assunto ou seu suporte social, mas sim seu caráter de
organização verbal da realidade em sequências narrativas. Exatamente do mesmo modo que o romance
organiza a realidade verbal, el cinema organiza a realidade visual. Isso não significa que um romance seja
apenas palavras [...], nem, tampouco, que uma simples sucessão de imagens [...] constitua uma narração
cinematográfica. Apenas com imagens faz-se um filme, porém não se faz [necessariamente] um relato
fílmico; apenas com palavras escreve-se um texto, mas não um romance, no sentido corrente do termo.
Todavia, ao lado do fato de relatar – fato que, além disso, pode ser muito variável, pode ser um mero fluir
de cenas sem progressão dramática – contam a palavra, para o romance, e a imagem, para o cinema.
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Num romance, você pode escrever a mesma cena numa frase, num parágrafo,
numa página ou num capítulo, descrevendo o monólogo interior, os
pensamentos, sentimentos e impressões do personagem. Um romance
geralmente acontece na mente do personagem (...). Um roteiro lida com
exterioridades, com detalhes (...). Um roteiro é uma história contada em
imagens. (1995, p. 274)
A situação das ações na mente dos personagens compõe o que Field define como
cenário mental a ser transformado em imagens visuais. Em determinadas narrativas o
processo se dá com relativa facilidade, como sucede, por exemplo, nas narrativas
realistas. Todavia, a tentativa de transformar em exterioridades a prosa de Saramago,
concentrada em cenários mentais mesmo quando narrada em terceira pessoa, e ainda
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quando se apresentam uns aos outros, assim que são internados, o médico diz “A voz é
de pessoa relativamente nova” (idem, p. 52).De sua esposa, sabe-se apenas que é
“empregada de escritório”.
A escassez na caracterização possibilitou um “preenchimento” bastante livre
quando o romance foi adaptado para o filme. Assim, não é português, mas sim japonês,
o primeiro casal que cegou. No caso do velho, não só usa uma venda negra, como ele
também, no filme, é negro. Em nosso entender, a composição multi-étnica com que
foram recriadas as personagens tem por alvo ampliar o significado da obra, em
representações que ultrapassam grupos étnicos, regionais ou mesmo nacionais.
Embora se manifeste em terceira pessoa, o narrador saramaguiano sempre se faz
presente por meio de sua linguagem, fortemente marcada pela ironia, em comentários
pseudofilosóficos, digressões de todo tipo, frases corriqueiras e até provérbios
intencionalmente adulterados. É quase impossível transpor para cenas e diálogos esses
recursos estilísticos, que permanecem apenas no texto literário. Dentre os incontáveis
fragmentos que resistem à conversão em imagens visuais, podem-se destacar extensas
considerações, carregadas de ironia, por exemplo, sobre a consciência moral, quando o
“falso samaritano” decide roubar o carro do primeiro cego. (idem, p. 26), ou ainda o
provérbio desconstruído: “já se sabe, água mole em brasa viva tanto dá até que apaga, a
rima que a ponha outro” (idem, p. 213), paródia de “água mole em pedra dura, tanto
bate até que fura”. Se, no texto escrito, a paródia ao provérbio tem o intuito de
“desautomatizar” a linguagem, tal procedimento é inviável na tela, o que leva à simples
omissão do exercício metalinguístico, sem maiores prejuízos à compreensão da trama.
Em muitos episódios, é possível transposição, porém com intensidade diferente do que a
despertada pela narrativa escrita. Por exemplo, quando o primeiro cego demora a
despertar, afirma o narrador saramaguiano que naquele estado de meia vigília que vai
preparando o despertar, considerou seriamente que não estava bem manter-se numa tal
indecisão, acordo, não acordo, acordo, não acordo (...). No filme, a indecisão é
representada por um mero menear de cabeça.
Cumpre ressaltar ainda uma vez que este estudo comparativo não tem por alvo
comentar a fidelidade do filme em relação ao livro, pois esse é um aspecto definido a
priori, pelo diretor. O que está em pauta é a apreciação do valor estético e ideológico
das duas produções, e ainda a tentativa de identificar, no filme, qualidades que, não
sendo as mesmas do filme, porque se trata de mídias diferentes, sejam equivalentes às
do livro. Boa parte do público espera encontrar no filme uma reprodução fiel do livro,
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Quase todo o primeiro capítulo do romance foi transposto parra os sete minutos
iniciais do filme. Neste, o nervosismo da narrativa se reproduz e se intensifica por meio
de diversos recursos: a rápida alternância de cores intensas, como o verde e o vermelho
do semáforo, o ruído de motores e buzinas, a sobreposição de vozes das personagens, as
ágeis mudanças de posições das câmeras, com a passagem do plano de detalhe do
semáforo para o cruzamento inteiro visto em plongée. Repentinamente, toda essa
agitação é paralisada pela cor branca, que invade todo o espaço da tela e introduz os
créditos do filme. Logo se mostram as diferenças em relação ao livro, como o já
mencionado multiculturalismo, representado pelo casal que protagoniza as cenas
iniciais. Para não haver dúvidas quanto à intencionalidade desse componente, a
caracterização vai ao requinte de apresentar os diálogos entre marido e mulher em
japonês.
O ambiente ruidoso e hostil da metrópole, com muita gente nas ruas, em meio
um tráfego volumoso e impaciente, em nada lembra a cidade de Lisboa. Essas cenas
foram gravadas em três cidades: Montevidéu, Toronto e São Paulo, e não se tentou
camuflar os textos das placas informativas, nem os letreiros dos estabelecimentos
comerciais. Alguns críticos manifestaram estranheza ante tais liberdades na adaptação,
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que, de modo geral, contrastam com o enredo, sendo este, sem dúvida, seguidor fiel do
texto saramaguiano. A descaracterização intencional do universo lusitano, em meu
entender, revela que a intenção do cineasta foi ampliar o alcance da obra literária. O
filme exibe o lado sombrio de indivíduos, que se acentua em momentos traumáticos.
Além disso, indica circunstâncias que determinam mudanças de comportamento
surpreendentes ou mesmo imprevisíveis.
Como se sabe, todas as personagens que entram em contato com o primeiro cego
também perdem a visão: o oftalmologista que o consulta, os pacientes da sala de espera,
o ladrão do automóvel e assim por diante. A doença espalha-se e leva o pânico à
população. Os cegos são confinados em um antigo hospital, ignorando que entre eles se
encontra a “mulher do médico”, única pessoa inexplicavelmente não atingida pelo mal.
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Em uma das cenas mais tensas da narrativa, a mulher do médico chega ao limite
das suas forças e cai, exausta, após ter visto uma matilha de cães devorando um cadáver,
outros cães se aproximaram e farejaram os sacos, mas sem convicção, como se já lhes
tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno
tenha sido habituado a enxugar prantos. (Saramago, 1995, p. 226)
Pouco depois, desaba uma chuva torrencial, que parece lavar toda a sujeira das
ruas e todo o individualismo e agressividade que estavam dentro das pessoas. É uma
cena epifânica que faz contraponto à última cena de intensificação da degradação,
aquela em que cães atacam um cadáver humano. A chuva abundante, que sacia a sede e
purifica as pessoas nas ruas, antecipa uma possível saída, até então não vislumbrada em
momento algum, já que, até este momento, a narrativa marcou-se pelo processo de
deterioração. Daqui para o final, tanto no livro como no filme, os indícios se modificam.
A “mulher do médico” consegue levar o grupo a sua própria casa, onde pode dar
continuidade à recuperação da condição humana de cada um, que também passa, como
no livro, por um banho purificador. No livro, o narrador cria suspense, ao insinuar um
falso desfecho, no último parágrafo, quando o “primeiro cego” recupera a visão. Em
seguida, a mulher do médico foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo.
(...) Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco. Chegou a minha vez,
pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava. (idem, p. 310)
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da experiência humana. Embora o façam cada qual a seu modo, mais conceptual na
literatura e mais perceptual no cinema, isso não deve impedir o reconhecimento de uma
inegável vocação comum: a de suscitar a criação de um outro mundo possível (...).
Neste se recria a densidade da experiência humana, com suas grandezas e com suas
limitações.
REFERÊNCIAS
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Referências fílmicas
Ensaio Sobre a Cegueira. Brasil, 2008. [Blindness (Japan: English title), L'aveuglement
(Canada: French title)]. Direção: Fernando Meirelles. Roteiro: José Saramago
(romance) - Don McKellar (roteiro).
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1
Nascido em 1945, sua obra inclui os livros de poesia: Consequência do lugar (1974), Dos enigmas
(1976), Os dias, pequenos charcos (1981), Segredos, sebes, aluviões (1981), Alguns livros reunidos
(1987 – recolha de poemas de 1974 a 1985, excluindo os livros Os dias, pequenos charcos e Segredos,
sebes, aluviões), Uma luz com um toldo vermelho (1990), A poeira levada pelo vento (1993), Alta noite
em alta fraga (2001) e Consequência do lugar (2202 – recolha de sua poesia, retomando o título de seu
primeiro livro.), quatro livros de estudos de poesia: Os dois crepúsculos (1981), Dylan Thomas (1982),
Um pouco da morte (1989) e Rima pobre (1999), além de uma produção importante de tradução de poesia
principalmente de língua inglesa.
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Além do trabalho poético, Magalhães vai produzir uma obra crítica das mais
importantes e marcantes para a compreensão do cenário português moderno e
contemporâneo, o que leva outro poeta e crítico, Fernando Pinto do Amaral, a afirmar
em seu estudo sobre a modernidade e pós-modernidade na poesia portuguesa mais
recente que “De todos os poetas que este percurso tenta acompanhar, é inegável ser
Joaquim Manuel Magalhães o que mais se tem preocupado em apoiar a sua escrita numa
persistente reflexão sobre o significado da poesia sua contemporânea.” (AMARAL,
1991, p.94)
Sem publicar livro de poesia desde 2002 e fora de circuitos habituais de
divulgação, a escrita desse poeta e crítico ecoa de maneira singular na poesia portuguesa
mais recente e tal singularidade parece se fundamentar principalmente por sua atenção
rigorosa ao mundo exterior ao sujeito lírico, estabelecendo com radicalidade uma visão
crítica que traz à superfície do poema a certeza da desilusão frente a um presente
arruinado social e mentalmente. Sem pudor ou limites, seus textos expõem claramente
seus valores e atacam com veemência, mesmo com certa violência verbal, tudo o que
não lhe satisfaz ou que repudia. “Quem começará, a sério, sem medos políticos, a
educação deste povo contra o seu mau gosto, o seu veneno moral, a passividade com
que quer sempre voltar ao mesmo? [...] Mas enquanto não se mudar esta colectiva
miséria instintual, para quem se anda a falar de livros, para quem se anda a escrevê-
los?” (1981, p. 316)
Se sua crítica é, assim, inegavelmente inteligente e feroz, sua poética não o é
menos, pois aguda e amarga examina o mundo ou a sociedade ou o próprio sujeito sem
complacência. Como o personagem eciano, parece vociferar a cada passo: “corja!” ou,
em diálogo mais próximo, parece refletir as posições de um outro poeta e ensaísta
fundamental no panorama português, Jorge de Sena, que nunca se eximiu de dizer o que
pensava e o que sentia frente à realidade do mundo e da sociedade (das sociedades) em
que viveu.
A poética de Magalhães é, nesse trânsito entre sujeito e mundo, fortemente
visual. Há, em geral, um olhar sem condescendência sobre coisas ou pessoas ou
situações. Fala da vida cotidiana, corrompida, desfigurada, absurda e solitária e, para
isso, o poema estrutura-se a partir de olhares circulantes, intervalares, penetrando entre
brechas do real ou manifestando-se em brechas da escrita, na medida em que o poema
também se organiza na fricção entre estratos de registro de uma pseudo realidade diária
e estratos de lembranças.
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“Bem-vindo à casa a derradeira. / A terra abre-se / na luz a que são cegas as flores / o
luar. / As últimas colinas antes de se ver o rio. / Bem-vindo ao centro, ao ritual, à
sombra. / Entre o que não é real e os sentidos / dizem ser o mundo. / Na claridade
dolorosa./ Os mortos vigiam-me da água, / grades sábias, gaivotas que desaparecem.”
(2001, p. 90)
Essa visualidade vigilante nos lembra, em outro tom, um poeta oriundo de
contexto diverso, frente a realidades outras, embora de mesma língua No comparativo
formal dos poemas, a diferença é grande, mas há algo que os une no tempo que é o
nosso: uma constatação pungente de mundo-mercadoria, em que os sujeitos estão mal-
situados vivendo fragmentariamente, em que o lirismo se manifesta nos restos, nos
interstícios da linguagem e do real. São duas linguagens que mais olham do que narram
ou afirmam e esse olhar se processa em cortes, em ângulos agudos, em fragmentos de
imagens e de sensações, num processamento metonímico do real e da ficção2,. Falamos
do poeta brasileiro Sebastião Uchoa Leite pernambucano de nascimento, mas carioca
por escolha. Estreou em 1960, com Dez sonetos sem matéria, mas somente em 1979
volta a publicar poesia, Antilogia, livro que recebeu o prêmio Jabuti de Poesia de 1980.
Falecido em novembro de 2003, continua sendo um foco de atenção, um lugar poético
de paragem e reflexão para a crítica brasileira de poesia.
Aproximamo-nos dessa poética como o leitor de que fala Joaquim M.
Magalhães: “[...] aquele que só quer ler e partir para o que é dele com essa leitura”
(2001, p.8), atraído por sua contenção verbal, por essa espécie de rigor exalado por uma
poesia que não se deseja confundida com sentimentos ou confissões. Atrai também um
certo humor que tempera a crítica e o amargor – “[...] toneladas de versos / ainda serão
despejados / no wc da (vaga) literatura / ploft! / é preciso apertar o botão da descarga /
que tal essas metáforas? / ‘sua poesia é um fenômeno existencial’ / olha aqui / o
fenômeno existencial” (LEITE, 1988, p. 111) - humor ausente por completo dos versos
portugueses de Magalhães, em que a tensão é permanente e o tom de insatisfação e de
questionamente é muito mais fechado.
2
Miguel Nava também observou esse tipo de processo estudando as poéticas de Joaquim Manuel
Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge: “[...] Creio é que privilegiando assim a metonímia como
mecanismo de apreensão e organização do real (no que se assume a exploração da transparência que o
facto de o ‘pôr em imagens’ lhe atribui) - ainda ninguém fizera da persistência do olhar sobre o
quotidiano o que se me afigura ser uma das traves-mestras da poética destes textos. (2004, p. 193).
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[…]
Quando a sevícia do acordar me enforca
eu vejo inteiros os navios
de encontro ao tapume da janela
e até eles estende-se o cortejo
de condomínios por suborno nas arribas.
Que sempre cerrada seja a luz
e sempre aos meus olhos se iluminem
os navios que dão logro de se poder fugir.
3
Em gíria, também fraga pode significar em flagrante delito.
490
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Na maioria absoluta dos poemas que compõem esse livro, o sujeito em primeira
pessoa enuncia seu lugar de visão logo nos primeiros versos, e em alguns outros
mistura-se a um nós ao longo do texto. O sujeito lírico registra o mundo que o cerca
pelos sentidos diversos, mas é, ao fim, pela visão que o poema se organiza como
4
Dicionário Aurélio eletrônico
5
Idem, ibidem.
491
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meditação interior ou mesmo curta narrativa de fatos diversos. ([...] A tarde abriu no
telhado / um cimo de goivos e o suão desperta / o foco de uma sirene. Chamo os teus
olhos / para mostrar a crueldade do dia. [...]” (2001, p. 23). A partir desse olhar, os
poemas tornam-se espaço de observação da cidade, revelando sua degradação ou falhas
ou brechas, qual um navio com rombos a naufragar. Esse posicionamento do sujeito
lírico ao mesmo tempo contemplativo (porque perscruta o mundo, a realidade urbana, a
vida) e atuante (porque trabalha na escrita, construindo essas máquinas de visão que são
os poemas) reatualiza, no contexto poético português contemporâneo, a idéia de “uma
poética do testemunho”, em confronto direto com a “poética do fingimento” pessoana,
defendida por Jorge de Sena nos idos de 60, o que significa uma compreensão da poesia
como uma espécie de ética irrecusável, para além do trabalho estético. “Mas o poema
fala, fala de si, / apanha o real porque nele está / quem o escreve, que sou eu / que
procuro deixar um sinal / de quanto nos esmagam / a todos os que são nós.”
(MAGALHÃES, 2001, p. 38)
Também nos poemas de Magalhães, a paisagem natural é presença constante,
mas aparece desfigurada pela expansão urbana e especulação comercial com seus
interesses massificadores e populistas. No seu livro de ensaios tão referenciado Os dois
crepúsculos, em sua segunda parte, com textos sobre a sociedade e a cultura portuguesa
em geral, há um artigo intitulado “Sobre praias”, em que o escritor avalia a
transformação da paisagem pela ação deseducada, consumista, alienada do homem
português contemporâneo: “Eu não estou a defender que as praias sejam só para alguns
[...] O que estou é a dar voz ao pavor, talvez pessoal, sem dúvida aumentado pela
mediocridade das situações, de nelas assistir à massificação dos desejos.” (1981, p.
313). Tais preocupações se apresentam igualmente em sua poética, que se constitui
como visão6 autêntica da contemporaneidade em que vive.
6
Jorge Fernandes da Silveira, em resenha a Alta noite em alta fraga, republicada em Verso com verso
(2003, p.31), escreve que esse livro “mantém essa antiquíssima, e, hoje, não mais dita idêntica, chama no
firmamento da poesia portuguesa: o poema como manifestação apurada de uma sensibilidade indignada
por entre a degradação dos sentidos do que engrandece o humano: “Só nos resta esperar então morrer?
(p.81)”.
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(2001, p.78)
[...]
Cada palavra mistura-se com todas.
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(2001, p.60)
494
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REFERÊNCIAS
MAGALHÃES, Joaquim Manuel. Alta noite em alta fraga. Lisboa: Relógio D’Água,
2001.
7
Sobre essa temática na obra de Uchoa, o Doutorando em Letras da UFF, Franklin Dassie, vem
apresentando comunicações e publicando estudos. Vide, por exemplo, DASSIE, Franklin. Uma dupla
cidadania: doença e experiência lírica. In PEDROSA, C. e ALVES, I. (Org.). Subjetividades em devir.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. p.92-98.
8
Cfe. COLLOT, M. La matière-émotion. 2. tirage, Paris: PUF, 2005.
496
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______. Os dois crepúsculos – sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas. Lisboa:
A Regra do Jogo, 1981.
NAVA, Luís Miguel. Ensaios reunidos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Verso com verso. Coimbra: Angelus Novus, 2003.
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DUBIEDADE CASUÍSTA
1
Mestrado e doutorado pela FFLCH/USP. Autor de Literatura e ideologia. São Paulo: Ed. Novo Século,
2003 e O sagrado em José Saramago: Em que crêem os que não crêem? São Paulo: Fonte Editorial,
2009. Atualmente é professor de literatura na UEL – Universidade Estadual de Londrina.
498
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2
Paul Ricoeur, Ideologia e Utopia, pp. 21-32.
3
Apud Paul Ricoeur. Op.cit., p. 243.
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desde meados do século XX, proferindo seus discursos ideológicos até o término da
obra, com a Revolução dos Cravos, em 1974. Tal qual um sujeito atemporal, os mais de
setenta anos de presença no Latifúndio transcorrem como se ele estivesse imune à ação
degradante do tempo, de forma a parecer-lhe natural o dom sobre-humano de resistir aos
efeitos físicos do passar dos anos, sempre com as mesmas práticas e os mesmos
discursos ao longo de todos os períodos históricos alcançados pelo romance. Com esta
característica, o texto de Saramago, diz Cerdeira da Silva, “chama a atenção do leitor
para uma evidência”:
As pessoas não são eternas, mas é eterno o que elas representam; elas são,
portanto, as mesmas enquanto representantes de uma entidade que as
ultrapassa, e que fala por elas.4
4
Teresa C. Cerdeira da Silva, José Saramago entre a História e a ficção: uma saga de portugueses, p.
209.
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5
Renato Cordeiro Gomes. “A alquimia do sangue e do resgate, em Levantado do Chão”, 101-108.
6
Ibid., p. 107.
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que legitima o status quo de exclusão social. Um e o mesmo são os seus ambíguos
discursos ao longo do século, como também inalterada se mantém sua comunhão com o
Latifúndio e o Estado, as outras duas “pessoas” da Trindade do Mal.
A aparição do sacerdote na estrutura narrativa do romance coincide com a
migração de Domingos, Sara e o filho João Mau-Tempo, de Monte Lavre para a
freguesia de São Cristóvão, para a qual chegam em uma noite de intenso temporal. Ao
estabelecerem-se os Mau-Tempo naquelas terras, lá já se encontrava o padre Agamedes.
Da convivência entre o aldeão e o pároco, este primeiro representante da família Mau-
Tempo torna-se sacristão e compadre do eclesiástico. Porém, o relacionamento entre o
desregrado sapateiro e o mundano pároco é marcado por conflitos que culminam em
bebedeiras e brigas que os levam às vias de fato dentro da igreja, enquanto celebravam
uma missa: “uma vergonha, com os santos todos a olhar, e Deus que tudo vê” (LC:31).
O importante para os objetivos deste estudo é que estes fatos ocorreram quando João
Mau-Tempo acabara de nascer, cinco anos antes da implantação da República. Portanto,
pelo menos desde 1905 o padre Agamedes já estava em pleno exercício de suas
atividades eclesiásticas. Sua atuação se estenderá ao longo do século XX, pelo menos
até a invasão do Latifúndio, em 1974, quase setenta anos depois de sua primeira
interferência..
Ainda que o narrador registre algumas alterações físicas que refletem o
envelhecimento gradual do sacerdote (e.g.: “o padre Agamedes, neste meio tempo fez-
se de alto e magro baixo e gordo, LC:267; “Padre Agamedes, está com muito bom
parecer, parece que rejuvenesceu”, LC:359), para ele o tempo não representa a
passagem natural dos anos. Na singela cerimônia matrimonial do casal Gracinda Mau-
Tempo e Manuel Espada, no final dos anos 40 – quase que uma repetição de outras
tantas bodas, como a de Sara e Domingos Mau-Tempo, do início do século –, este
fenômeno se explicita:
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DEMAGOGIA COERCITIVA
7
Eni Puccinelli Orlandi. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, pp. 239-262.
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ao longo de todo o século: “Não vale a pena escrever o resto, já todos conhecemos o
sermão do padre Agamedes” (LC:141).
As funções coercitivas dos discursos de padre Agamedes nos conduzem, mais uma
vez, à figura repressiva da Guarda, já anteriormente abordada, e agora acrescida de uma
patrulha especial, cujo alcance se espalha para além dos limites do Latifúndio,
imprimindo terror por todo o território português: a Polícia Internacional e de Defesa do
Estado (PIDE).
No episódio ocorrido em meio às calamidades promovidas pela II Guerra
Mundial, o Latifúndio se mostra inexorável perante a miséria da população, a ponto de
impedir que os trabalhadores apanhem as laranjas a respeito das quais se decidiu que
deveriam apodrecer no chão, ao invés de aproveitadas pelos camponeses esfaimados.
Novamente deparamo-nos com a prescindibilidade do sagrado a reger a linguagem do
narrador. Ao associar as laranjas com o “fruto proibido” do mito bíblico da primeira
desobediência adâmica, a símile saramaguiana estabelece uma correspondência entre o
Criador, que puniu a criatura recalcitrante, e a Guarda, cujos olhos oniscientes a
enxergar todos os pecados (LC:117) conferem aos membros da Guarda o mesmo
atributo divino da onisciência, utilizado para igualmente oprimir o faltoso e castigar os
infratores.
Por semelhante modo, enquanto os males que afligem intensamente a Europa
neste contexto histórico – guerras, pestes e fomes – são, “para usar a linguagem do
padre Agamedes, os três cavaleiros do apocalipse” (LC:118), a Guarda, por sua vez, é
avaliada como um “quarto cavaleiro/cavalo apocalíptico”, de alcance ainda mais amplo,
pois seu aspecto aterrorizante se desdobra em “três rostos”.
No livro bíblico do Apocalipse, do qual Saramago extrai o fragmento para compor
a imagem dos quatro cavaleiros, descreve-se cada uma das figuras montadas em cavalos
de diferentes cores e trazendo consigo símbolos que obedecem a uma teleologia
profética: o cavaleiro montado no cavalo branco recebe uma coroa, representando a
vitória sobre o mal e, de acordo com as interpretações ortodoxas, é Jesus, o rei vitorioso
que traz a vida8; o segundo e o terceiro cavaleiros, montados em cavalos vermelho e
preto, recebem, respectivamente, uma espada e uma balança, com as quais tiram a paz
da humanidade e a julgam. O quarto cavaleiro, montado em um cavalo amarelo, chama-
8
Cf. Bernard McGin. Apocalipse (ou Revelação), pp.563-582.
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se Morte, e o Inferno o segue: “foi-lhe dada autoridade sobre a quarta parte da terra para
matar à espada, pela fome, pela peste e por meio das feras da terra”.9
A figura tem importância capital para a análise do sagrado na linguagem de
Saramago porque, em Levantado do chão, desdobra-se em três rostos, todos eles
associados à Morte: o latifúndio, a Guarda e, de modo especial, aquele que simboliza o
poder extremo de Morte: a polícia de vigilância e defesa do estado, responsável pela
execução da política de repressão armada contra toda a oposição ao Governo de
Antonio de Oliveira Salazar:
E agora sempre chegou o quarto [cavaleiro], que é o das feras da terra. Mas
este é o de mais assistência e tem três rostos, primeiramente o rosto que o
latifúndio tem, depois a guarda para defender a propriedade no seu geral e o
latifúndio em seu particular, depois o rosto terceiro. (LC:118-119)
9
Livro do Apocalipse, cap. 6, verso 8. (Bíblia Sagrada/NT, p. 266).
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percebem no quarto cavaleiro o rosto da intolerância política contra a sua grei. Segundo
a avaliação crítica do narrador, a Igreja não se dispõe a interpretar a Bíblia por outra
perspectiva que não seja a espiritualização distanciada de tudo aquilo que está
acontecendo no mundo concreto da fome e da tortura que se desenvolvem em Portugal:
Tolo é o padre Agamedes que só porque leu na bíblia cavalos julgou que de
cavalos realmente se tratava, erro primário de que nos Açores foi retirado
Manuel Espada pelo seu prometedor colega de companhia. (LC:119)
506
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Ingratos, vos digo eu agora, que ignorais que o nosso país é a inveja das
outras nações, esta paz, esta ordem, e agora vinde-me cá dizer se é tudo isto
que quereis perder, falais de fartos, é o que é. (LC:121)
10
Pe. Antonio Vieira, Sermões, vol. 1. (Org. e intr. Alcir Pécora). São Paulo, Ed. Hedra, 2000, p. 36.
11
Eni Puccinelli Orlandi. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, pp. 257-258.
507
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vozes, cuja autoridade deve ser, in principis, demovida totalmente: “Amados filhos,
cuidado, sopram ventos de rebelião por estas terras tão felizes, outra vez vos digo que
não deis ouvidos” (LC:140).
Evidencia-se, neste procedimento característico da oratória religiosa, a tentativa de
quantificação da comunidade, aqui delimitada pelo uso de mecanismos gramaticais de
inclusão e exclusão: de um lado, o pronome “nós” indica os membros constituintes do
grupo anteriormente identificado como “amados filhos”, composto pelos que habitam a
“nossa terra”; do outro, o pronome “eles” aponta os articuladores da “rebelião”,
inimigos da população trabalhadora que se imbuem, qual agentes a serviço do Diabo, da
destruição da “felicidade” que a bendita terra lhes proporciona:
12
Eni Puccinelli Orlandi. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso, pp. 257-258.
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Fujais deles como da peste, da fome e da guerra, pois são a pior desgraça que
sobre a nossa santa terra podia cair. [...] Olhai a guarda como vosso anjo da
guarda, não lhes deis rancor. (LC:120)
Olhai que no fim desse caminho que levais está a perdição e o inferno, onde
tudo é choro e ranger de dentes. (LC:160)
E por tudo isto enfim vos recomendo, conjuro e emprazo a que não deis
ouvidos a esses diabos vermelhos.
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a delatar os companheiros da greve: “Deixe lá, diz o padre Agamedes em voz baixa, são
uns pobres brutos, é o que eu me farto de afirmar, ainda no outro dia em casa de dona
Clemência” (LC:161). Em seguida, ele ouve em silêncio o comentário depreciativo
proferido por um homem que passa pelo espaço onde estão “manietados” – este último
um vocábulo utilizado na tradução portuguesa dos Evangelhos para referir-se a Jesus
durante os eventos da crucificação – vinte e dois envolvidos na greve por melhores
salários, e de cujo local exala um agradável perfume de fruta – laranjas ou pêras: “Eu
nem sei se eles têm almas para apreciar estas belezas, senhor padre Agamedes”
(LC:154). Finalmente, em um terceiro momento, num contexto em que padre Agamedes
visita os líderes do movimento grevista na prisão, com o fim de convencê-los a
colaborar com os agentes repressores, para que se confessassem culpados e delatassem
os companheiros de organização. Sem atentar para as torturas físicas e psicológicas a
que eram submetidos os presos – o Dias, o Direito, o Catarino, o Mau-Tempo –, o padre
demonstra a mesma permissiva omissão em face das palavras depreciativas proferidas
pelo tenente contente: “essa escumalha (isto é, a ralé), senhor padre Agamedes, que
Deus me perdoe” (LC:156).
A omissão do padre ao testemunhar o tratamento desumano recebido pelos presos
políticos (“os próprios animais não são assim tratados”, LC:159) caracteriza a
prevaricação de grande parcela da Igreja Católica, diante das atrocidades praticadas pelo
regime totalitário vigente. A avaliação do narrador é explicitada com clareza, por meio
do uso intencional do oxímoro que segue a atitude omissa do padre que se fez
participante do mal contra o qual deveria insurgir-se: “Há um grande silêncio, rumoroso
como todos são no quartel da Guarda” (LC:156).
Este silêncio somente é quebrado no ato de cumplicidade entre o padre e o oficial
tenente Contente, a partir da articulação de um mesmo discurso, ainda que oriundo da
boca de um representante do poder temporal (tenente) e de um representante do poder
espiritual (padre). O uso da expressão irônica “múnus espiritual”, para referir-se ao
papel específico que ele deve exercer diante dos conflitos do mundo concreto, revela
uma dicotomia que lhe permite distanciar-se da esfera real, quando isto lhe convém.
Trata-se de uma maneira prevaricadora de entregar a responsabilidade pelos abusos de
autoridade aos encargos do poder temporal. Desta forma, padre Agamedes reconhece ter
consciência das práticas abusivas do Governo e do Latifúndio, ao mesmo tempo em que
se abstém de envolver-se na denúncia e solução desses assuntos. Para ele, suas funções
511
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estritamente espirituais são a causa de sua omissão perante fatos que prefere fingir
desconhecer, o “salvo-conduto” da alma que justifica a tolerância em favor dos
opressores. Sua intenção, como soer de qualquer peça retórica, é tão-somente convencer
seus interlocutores – um bando de presos desprovidos de qualquer possibilidade de
resistência:
Abre-se a porta desta casa de disciplina, e o que vejo, ó tristes olhos que para
tal haveis nascido, antes fôsseis ceguinhos [...]
Não tem você vergonha, João Mau-Tempo, um homem de barba na cara, um
homem de respeito metido nestas rapaziadas [...]
Estão estes senhores [o senhor agente e o senhor tenente] com tanta
paciência, perdem a noite, coitados, não dormem, e também lá têm as suas
famílias, que é que julga, à espera deles, em vigília, por causa da vossa
teimosia [...]
João Mau-Tempo, é preciso não ter consideração pelas autoridades para se
comportar desta maneira, que é que lhe custava dizer quem preparou a greve
[...] diga-me lá se não está arrependido, a fazer sofrer desta maneira a sua
família. (LC: passim).
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REFERÊNCIAS
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ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa, Editorial Caminho, 1998.
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colonizar e catequizar. Salazar, interessado de perpetuar seu poder, lançou vários planos
de ação em todas as áreas do pensamento português.
Um desses planos, talvez o mais eficaz, foi a propaganda sobre o império que
ganhou grande força no seio da população. Disseminada por vários meios de
comunicação, a propaganda imperial tinha como objetivo principal envolver a
população, de tal modo que se sentisse participante ativa do governo. Em meio a esse
envolvimento popular, avigorou-se de forma abrangente a ideologia imperial, um pouco
enfraquecida desde a Independência do Brasil. Houve um bombardeio de campanhas
que muitas vezes funcionavam como uma lavagem cerebral, exacerbando um
nacionalismo baseado na reverência aos feitos heróicos do passado português Alexandre
(2000): Exposições, Concursos Literários, Semanas Coloniais, só para citar alguns.
Nesse contexto político, verificamos, em Portugal, o incentivo a uma produção
literária, denominada Literatura Colonial, que além de servir como meio de propaganda
da ideologia do regime, seduz uma parte da população atraída por aventuras e exotismo.
Esses textos, pelo que pudemos observar, não fazem parte, infelizmente, dos registros
da História da Literatura Portuguesa, principalmente, na vigência do Modernismo
português, período em que se poderia inseri-los. Somente Fidelino de Figueiredo, em
sua obra História da Literatura Portuguesa, editado no Brasil, pela Companhia
Nacional, dedica página e meia ao assunto. Cabe notar que o autor critica o uso da
literatura colonial como uma das formas de propaganda do regime, porém se mostra
favorável ao colonialismo e a uma produção literária que confirma o dom civilizador de
Portugal.
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nos fala do “distanciamento temporal” insuficiente para se ter isenção a respeito desse
assunto que “remexe, de imediato com sensibilidades, desperta crispações, dúvidas,
fantasmas, sinais de desconforto e de inquietação” Noa, 2002, p.15, entretanto, na
visão do estudioso, mesmo sendo um tema deveras “espinhoso” tanto para ex-
colonizadores, como para ex-colonizados, deve ser estudado para que não se caia numa
“generalizada demissão da memória”, pois, “não deixamos de considerar a existência
de muitas consciências para quem a palavra colonial é apenas uma vaga evocação de
algo que tem um significado difuso, ou mesmo, nenhum significado” Noa, 2002, p.15,
tratando especificamente das gerações pós 25 de Abril.
Salvato Trigo assinala outro motivo para essa lacuna na história literária.
Segundo ele, duas forças se digladiavam no que diz respeito ao colonialismo. Uma
apoiava uma aberta discussão sobre o assunto e outra o restringia, como “tema
reservado a políticos”, temendo assim, a criação de uma “mentalidade colonial, uma
opinião pública capaz de se deixar tocar pelos problemas da nossa história da
colonização” Trigo, sd, p.135. Ainda, de acordo com Trigo, “como já reconhecia, nos
anos 30, José Osório de Oliveira, a literatura colonial era maldita para uns, e bendita
para outros, dedicando-se estes a outorgar-lhes prêmios de valor discutível, e aqueles a
niilizarem as boas obras que ela ia publicando”. Trigo, sd, p.135.
Paulo Braga, no ensaio Grandeza e humilhação da literatura colonial, publicado
na revista Seara Nov, faz severas críticas à literatura colonial e caracteriza-a como “uma
pequena literatura regional”, logo, sem condições de elencar “ um aspecto importante
da Literatura de um povo com projeção em todos continentes”. Ao comentar sobre seus
escritores, afirma que os textos coloniais primam pela “ausência de gramática e talento.
Na literatura colonial portuguesa há, pois, falta de gênio. (...) A literatura portuguesa
caracteriza-se pela ausência de alma e de cérebro” Braga, 1937, p. 304, 305. Refere-se
ainda ao desprovimento estético da literatura colonial ao afirmar que “Essa literatura,
além disto, não existe como arte ou como função social, mas unicamente como
concepção política.” Braga, 1937, p. 304, 305. Na seqüência de seu texto, deprecia
ainda mais a literatura colonial, concluindo assim, o fato de ser uma literatura menor e
por isso não merecedora de citação da afamada Literatura Portuguesa.
Mesmo detentora de apoio e críticas, observamos que esse tipo de literatura
constituiu uma forma de propaganda instituída pelo Estado Novo português. A
Literatura Colonial, um dos procedimentos de difusão da mística imperial, fez com que
milhares de portugueses ficassem curiosos, fascinados, orgulhosos dos feitos
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ultramarinos. Dessa forma, a partir da leitura dessas narrativas, esses leitores passavam
a se identificar de maneira ímpar como leitor/personagem e porque não dizer também
como escritor, numa cumplicidade sem igual. O gosto por esses textos caracterizados
pela relação personagem/natureza, natureza exuberante e cheia de mistérios, exotismo e
superioridade portuguesa envolveu a vida de muitos portugueses durante décadas. De
acordo com Eduardo Lourenço, o lusitanismo aliado à mitologia patriótica-clerical
resultava em
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Será porque a literatura colonial não existe? (...) De mais a mais se tomarmos
a palavra literatura como sendo uma forma de arte, como a resultante dessa
espécie de apelo à criação que enforme as nossas reflexões, conjugando-as ou
enquadrando-as para o pensamento colectivo, a dúvida virará uma certeza.
(...) Logo, que em literatura existe sempre criação, forma e independência, a
menos que se pretenda vender por obra de arte o que não passa de uma
criação mais ou menos perfeita. (...) Ora, se na criação literária existe
essencialmente humanidade, na falada “literatura colonial” esse sentido de
humanidade brilha pela ausência. (...) Que a chamada “literatura colonial”, às
sua tentativas de criação e independência, nada mais lhe resta que abrir as
portas e sumir-se. Trabalho de transição, reflexo de época limitada em tempo
e espaço, tem que forçosamente ser esquecida, mal aproveitada. Abranches,
1949, p.78 e 79)
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Rompi na direcção que me tentava e, quási de repente, dei com uma velha
árvore, varada pelo raio, ainda a arder. Tinha sido esgalhada por um lado e
lambiam-na ainda línguas esguias de lume. Em baixo, no chão, arrumadas ao
tronco, vermelhavam, por entre cinzas leves e quási brancas, tições
afogueados em ninho cinzento de brasas. Senti uma alegria viva e
transbordante. Eu, ou homem que trouxera em mim, obcecadamente, a idéia
de
Ninguém me poderia fazer crer, nesse momento desolado, que a África era,
como eu tinha julgado e vim a verificar depois, hospitaleira, boa generosa, e
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que ainda por lá havia de encontrar sem santa paz, a fisionomia e o coração
da minha terra.. Galvão, sd, p. 16
Albert Memmi, logo nas primeiras páginas de seu livro, Retrato do colonizado
precedido pelo retrato do colonizador, coloca em questão a tese desenvolvida por
vários impérios a respeito dos verdadeiros motivos que os levaram ao moderno
colonialismo. Argumenta que “a missão cultural e moral”, bem como o espírito
aventureiro das viagens coloniais, usados como pretexto durante um grande período,
mostram-se, na realidade, como ofuscamento das intenções econômicas de exploração.
A política colonial portuguesa, nesse sentido, não difere das difundidas em outros
países. Dessa forma, a opção de propaganda adotada pelo governo luso resultará, pelo
menos nos romances coloniais, numa imagem viril do colonizador, muito próxima ao
modelo exposto por Memmi:
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Por esse fragmento, notamos que a hierarquização das relações em nada afeta o
vínculo amistoso entre colonizador e colonizado, ao contrário, é vista naturalmente por
ambas as partes, reforçando ainda mais a tese de Henrique Galvão, que defende uma
colonização baseada no contato sensato com os pretos. Excesso de amizade ou
truculência levariam por terra os interesses coloniais.
Em O velo d’oiro, Rodrigo ruma à África com o sonho do enriquecimento fácil
proporcionado por possíveis minas de ouro. Lá chegando, ele e seu primo Vasco ouvem
o relato de Mandombe, preto guerreiro, exuberante, “digno de confiança”, sobre a
existência de ouro no interior de Angola. Vasco, antes mesmo da chegada de Rodrigo,
já sonha com a possibilidade de riqueza fácil, abandonando assim o cultivo de sua
fazenda, deixada a cargo de sua família. João, de dezenove anos, filho mais velho de
Vasco, única personagem “com os pés no chão”, assume a administração da
propriedade. Para ele, a riqueza só advém do trabalho árduo do campo. Por isso tenta,
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sem sucesso, dissuadir seu pai da idéia de se aventurar à procura de ouro. No decorrer
na narrativa, nosso herói, Rodrigo e seu primo não encontrarão ouro, porém perceberão
que a verdadeira riqueza só será conquistada por meio de muito trabalho. Dourado é
apenas a cor do trigo plantado com muito suor, ao lado de “gentes” como Mandombe,
fiéis e fortes.
Durante a aventura do pai, Vasco e do primo, Rodrigo, João é a prova da tese
defendida pelos romances coloniais: o trabalho e a sensatez são necessários ao
colonizador português, que não se deve levar por aventuras momentâneas, nem por
sonhos com resultados instantâneos. A eficiência da colonização só seria possível, se
conduzida com a seriedade desempenhada por João durante a ausência impensada do
pai. É interessante ressaltar que dos três filhos de Vasco, João é o único português
nascido na Metrópole, daí, quem sabe, o espírito obstinado, descrito por seu padrinho
Álvaro Pais:
Ao que Vasco conclui: “- Aqui é que está o oiro, Rodrigo; foi João quem o
descobriu enquanto nós andávamos como tontos a cata da morte.” Galvão, sd, p.252.
Outro fator importante para a fixação dos portugueses em África, de acordo com
as narrativas, seria a presença da Igreja e sua missão evangelizadora, responsável pela
conversão dessas gentes. Padre Mateus, personagem de O velo d’oiro, sabedor de seus
encargos, revelará, pela experiência de seus quarenta anos em África, que, somente
aqueles “que não têm ambições de riqueza nem de glória, (...) que não esperam
recompensas na terra e que fazem o dom total da sua vida, ao Deus em que crêem e à
Pátria que servem” Galvão, sd, p.144, deveriam ser considerados grandes heróis. E,
ainda, num tom quase confessional, expõe a necessidade de paciência e amor com os da
terra comprovando que “A sua expressão satisfeita e feliz, a sua tranqüilidade
impressionante, o seu olhar puro de criança foram inteiramente ganhos em lonjuras
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Desta forma, podemos observar que a colonização tem como principal agente, o
português desinteressado por grandes riquezas, preocupado apenas em levar sua vidinha
pacata junto de sua família, numa casinha simples, onde amor e paz reinam. Estas
modestas ambições estão intimamente relacionadas à política portuguesa de colonização
dos anos 30 e 40, defensora da família portuguesa católica, pobre (MEDINA 1999), mas
feliz, por ter um caldinho que lhe esquentasse as entranhas. No entanto, a imagem
idílica contradiz os interesses gananciosos dos colonizadores, que ao se deslocarem para
as colônias, procuram somente a riqueza fácil e pouco trabalho.
Por final, destacamos a preocupação do autor em erigir o seu ideal de sociedade
colonial nos romances O velo d’oiro e O sol dos trópicos, demonstrando, assim, a
fantasiosa possibilidade das colônias resolverem os diversos problemas sociais e
econômicos enfrentados por Portugal no século XX. Concebe, ainda uma sociedade
idealizada, onde colonizadores e colonizados viveriam felizes e satisfeitos, seguindo
sempre a remota, porém cada vez mais atualizada superioridade européia.
REFERÊNCIAS
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Universidade Federal de Sergipe, professor-adjunto.
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Sobrecarregados não somente por traumas genésicos como pelas variadas formas de
expressá-los e significá-los, os mitos, saberes e discursos sobre a mestiçagem brasileira
reclamam um olhar crítico sempre atento para os dualismos que os estruturam. Gerando
signos plurifacetados, que podem ser variadamente apropriados e recombinados, nos
imaginários mestiços digladiam-se impulsos de purificação e de transformação, de repe-
tição e de diferença, cujas resultantes sócio-culturais, conforme será discutido neste
ensaio, favorecem menos os equilíbrios “interpenetrativos” defendidos por Gilberto
Freyre4, do que a proliferação daquelas “ambivalências socializadas”5 nas quais, para
Roger Bastide, se condensavam os impasses acerca do lugar do negro na construção
nacional. O que fica em causa, nessa categoria, são os processos psicossociais através
dos quais são “acomodadas”, em molduras interpretativas variáveis, experiências e per-
cepções contraditórias acerca dos problemas, ou diferenças, que compõem a realidade
multicromática e pluricultural em que vivemos, acomodação sempre hesitante entre a
confirmação pragmática e a recusa simbólica dessa realidade. Manobrada como defesa
da integridade de uma “essência” identitária eurocêntrica, ou como suporte para a ma-
nutenção de um certo esquema de poderes e de privilégios “meritocráticos”, a elabora-
ção argumentativa e psíquica dessa recusa, assim como a culturalização da mesma, ex-
primem o papel substantivo que a visão-de-mundo escravagista continua a desempenhar
na reprodução do imaginário social brasileiro. Assim, a alienação racista que perpassa
sujeitos e convívios mistos suscita experiências interpessoais parasitárias ou altamente
conflitivas, marcadas por formas diversas de mistificação mútua e por indeléveis vazios
de sentido. Em seus estudos sobre o preconceito racial no Brasil, Florestan Fernandes
resume a sequência antitética de posturas pela qual se dá a produção cotidiana desses
vazios, ou daquilo que Fernandes denominava de “moral reativa” do branco brasileiro:
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Tão importante quanto o problema moral colocado por essas vacilações são os proble-
mas culturais aos quais elas remetem. Sobretudo nas vertentes institucionais do discurso
identitário brasileiro, observa-se que tais dubeidades tendem a impingir às matrizes ne-
gras um caráter difuso, complementarista, por vezes situado na fronteira entre a marca e
a sequela, entre o que não pode ser negado nem ser positivado. Para além das suas mo-
tivações sócio-econômicas, na lógica oscilante do “preconceito de ter preconceito” é
preciso reconhecer a atualização do confronto histórico entre as dinâmicas assimiladoras
e transfiguradoras que se entrecruzam nas mestiçagens tropicais, dinâmicas étnicas e
éticas que exercem funções ideológicas básicas na definição dos projetos e prioridades
da nação brasileira. A recomposição das performances tortuosas da razão morena, inde-
cisa entre as polaridades tradicionais e a abertura transculturadora, põe em evidência as
expressões micropolíticas de um questionamento identitário de amplitude coletiva,
questionamento cuja indefinição persistente, tantas vezes festejada nos cultos da “cordi-
alidade”, da “geléia geral”, do “vale tudo” e afins, pode ser mais criticamente compre-
endida como resultante daquelas “motivações psicossociais dissociativas”7 que, segundo
Florestan Fernandes, paralisam os processos de mudança nas sociedades do capitalismo
dependente, na medida em que inviabilizam alianças estratégicas entre os grupos sociais
e étnicorraciais que compõem a nação. Nos termos de Homi Bhabha, trata-se de eviden-
ciar sistemas de “crença múltipla e contraditória”8 que, partindo dos pressupostos sim-
bólicos da reificação colonial, se atualizam nas sociedades pós-coloniais como códigos
e linguagens racializadores, exercidos, nas palavras do antropólogo português Miguel
Vale de Almeida, tanto como “um regime de constrangimentos quanto [como] uma prá-
tica de convivialidade e uma estilística da conivência”9.
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Criado até a juventude numa casa que estabelecia mediações diversas entre brancos,
mestiços e negros angolanos, o escritor Pepetela confessa que cedo se deu conta de que
a diversidade de “raças culturais” era um dado fundamental para a reflexão sobre a terra
em que nascera e sobre as relações mantidas entre as variadas gentes que a habitavam14.
Protagonista de uma trajetória histórica que abrange desde estudos universitários na
metrópole até posições de comando na guerrilha anti-colonial, lhe possibilitando conta-
tos próximos com as múltiplas identidades que se conciliavam e se confrontavam na
derradeira crise do império português, na segunda metade do século XX, Pepetela res-
salta que seu trabalho de escrita procura atentar para defasagens cotidianas e instituídas
entre discurso e ação, defasagens que, depois de sua experiência como dirigente no go-
verno angolano — foi vice-ministro da Educação de 1975 a 1982 —, se tornaram cada
vez mais perceptíveis e inquietantes15. Publicada em 1985, Yaka é uma obra recheada de
imagens fortes de tais disjunções. Através do título o autor convoca um significante
fundador da memória cultural angolana, pelo qual se nomeia uma antiga sociedade
guerreira, também conhecida por “jaga”, surgida no século XVI em simultâneo à chega-
da dos europeus, e composta por indivíduos provenientes de variados grupos étnicos
bantos, geralmente incorporados à força. Nesse atribulado processo de emergência iden-
titária, delineia-se aquilo que Pepetela chama de “cazumbi [ou ‘espírito’] antecipado da
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Pena? Era de pena o olhar da estátua? Não. Mas era ambíguo, como todo
olhar de estátua. Era certamente zombeteiro esse olhar ela tivera sempre. Mas
há também uma zombaria humana, que ultrapassa o escárnio e atinge a com-
preensão. Tu falas para mim, Yaka, há oitenta anos que falas para mim, sou
eu que não te entendo. Não é uma questão de língua, há algo mais que blo-
queia a compreensão.18
Incapaz de superar as barreiras que filtram a comunicação com seu alter-ego africano,
Alexandre atinge a velhice aprisionado numa espécie de autismo, que consuma um lon-
go percurso de indefinições, postergações e outras modalidades de recusa em assumir as
consequências políticas dos hibridismos que compunham sua personalidade. Pequeno
comerciante residente em Benguela, espaço exemplar da mestiçagem angolana, Ale-
xandre está situado nas margens sociais do dispositivo que assegura a supremacia bran-
ca nesse território, posição que tanto lhe estimula convívios diretos com representantes
da população negra nativa, quanto lhe dá acesso a uma compreensão imanente dos me-
canismos predatórios que viabilizam a empresa colonial. A compactuação com tais me-
canismos não apaga, entretanto, a percepção acerca dos laços de profunda dependência
que, ao mesmo tempo, entretecem os povos separados pelo racismo. A oscilação entre
essas duas verdades, e a crise de sentido pessoal que ela suscita, registra-se detalhada-
mente numa cena que focaliza a juventude de Alexandre, quando a sua família recém-
formada encontra-se ameaçada pelo acirramento da violência racial:
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— Merda! Não se pode viver sempre com medo. Temos de acabar com eles.
(...) Donana [a esposa] perguntou então a Alexandre:
— Todos, Alexandre?
— Todos! Enquanto houver negros viveremos no medo. Estou-me cagando
se se revoltam porque lhes roubam as terras boas para o café. Estou-me ca-
gando se se revoltam contra o imposto de ter uma cubata ou contra o imposto
de nascimento. Estou-me cagando se acham injusto pagar o ar que respiram.
Estou-me cagando se a terra antes era deles. Não quero é viver mais no medo.
E deixa de me olhar assim, Yaka, também me estou cagando para ti e para o
que penses de mim.
[prossegue Alexandre]
— O problema é que não nos devíamos ter metido no barco, um barco que
não dá para todos e onde havia gente antes. Bom. Agora já estamos, não po-
demos sair. É matar ou morrer. Que sejam os outros a saltar do barco.
— Mas se matam todos, quem vai trabalhar? [pergunta Donana]
Alexandre sentou. Se virou para o centro da sala.
— Pára de me criticar, Yaka, não me chateies. (...) Ela vê tudo. Julgas que
não percebo? E está a falar. E a acusar-me, de quê não sei. Pela primeira vez
compreendo o que ela está a querer dizer.19
Alexandre olhou com inveja para o Tuca, o antigo Mutu-ya-Kevela. Tuca não
gostava de brincadeiras violentas e agora era tenente de guerra preta. De cer-
teza por ter a quarta classe. (...) Tuca estava à civil e não tinha nenhum ar de
militar: o mesmo negro tímido, sempre pronto a se encolher se adivinhava
perigo. (...)
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Também seria capaz de matar o Tuca, o negro amigo dos brancos? De qual-
quer modo, enquanto houver negros viveremos no medo, pensou Alexan-
dre.22
A colaboração prestada por Tuca no trabalho de extermínio dos nativos torna-o uma
arma valiosa da guerra colonialista, mas suas confidências acerca das raízes do conflito
continuam a expor, perante Alexandre, a terrível realidade da escravidão persistente e da
desumanização dos africanos, fatores que alimentam o circuito interminável de brutali-
dade com que o desejo colonial se lança expropriativamente sobre terras férteis e sobre
sujeitos racializados23. Cooptado e conivente, Tuca só obtém de recompensa uma so-
brevivência agreste, cujo balanço final, conforme o faz Alexandre, realça as assimetrias
dinamizadas pela discriminação racial:
Dividida entre benesses precárias e a percepção das muitas tensões derivadas dos meca-
nismos racializantes, da dupla consciência de Alexandre desdobram-se níveis conflituo-
sos de inserção e de rejeição, alimentando um outro tipo de rebeldia que oscila entre
explosões paranóicas e fantasias utópicas. O apagamento radical que deseja para os afri-
canos coexiste com projeções que apontam para outras alianças contra a opressão co-
mum, conforme se condensa na fantasia recorrente com o imperador Maximiliano que,
desde a infância, o assalta nos momentos críticos da guerra racial angolana. Encarnando
um herói ariano, montado num imponente cavalo branco, que conduz tribos negras re-
voltadas contra os exércitos portugueses, a imagem do imperador representa um impul-
so para hibridizações alternativas, voltadas para a realização histórica de uma outra re-
lação interracial que pudesse confrontar os sentidos mistificadores que impossibilitam a
pacificação de Angola: “Alexandre era menino e se lembrava dos alemães a comandar
os cuamatos no Vau de Pembe e mais o imperador Maximiliano e o seu cavalo branco a
galopar na chana do Cunene contra os canhões da cruz de Cristo”25. Essas oscilações,
entretanto, alcançam um ponto disruptor no fim trágico do filho Aquiles, personagem
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que reproduz “tudo o que de mau”26 tinha Alexandre. Orgulhoso de seu caráter violento
e da musculatura cultivada através da ingestão cotidiana de sangue de boi, Aquiles con-
densa uma imagem de poder regida pela alternância típica do dominador escravagista,
entre a indolência, o sensualismo e a brutalidade:
O trabalho chato dele era esse de estar sentado à sombra duma acácia e, de
vez em quando, lembrar de xingar os negros para fazerem a empreitada. Sa-
cudir as moscas que o incomodavam, insectos de merda, sempre a se pega-
rem no suor dele, e pensar na vida. Nesta vida de merda de branco numa terra
de pretos. Não conhecia outra, no entanto. O que valia era a Glória, boa na
cama, o bar, o futebol e as caçadas.27
Entretanto, quando os pastores cuvale29, tentando assegurar a soberania sobre seus reba-
nhos sagrados, reacendem as rebeliões contra o colonialismo, as facetas mais duras do
espírito ambivalente de Aquiles assumem o primeiro plano: “Vamos à caça, mas se en-
contrarmos algum mucubal vou capá-lo. Podem já começar a chamar-me o mata-
cafres”30. No desenrolar dessa caçada, a confrontação entre valores nativos e coloniais
também faz emergir um olhar contrastivo sobre o desejo predatório que mobiliza o co-
lono. O abate impiedoso de seu filho Tyenda pelo bando de Aquiles faz o cuvale Vilon-
da recordar a luta corajosa dos angolanos contra forças irracionais, alegoria que contra-
põe às hierarquias e aos métodos do poder racializante os seus vieses bestializados:
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A onça perseguia o vitelo que conseguiu chegar à manada. Vilonda viu a on-
ça correr na anhara quase sem capim e depois estacar à sua frente, a uns dez
metros. O animal se agachou e fitou-o. (...) Se abraçou à fera, rolaram no
chão com o ímpeto do salto da onça. Vilonda conseguiu evitar que os dentes
dela lhe entrassem no pescoço e, abraçando-a com a mão esquerda, puxou do
punhal com a direita. Sentiu no corpo colado ao dela as convulsões que
acompanhavam as punhaladas, uma a uma, na coluna vertebral do bicho. Até
que ela se imobilizou e muito tempo ficou deitado abraçado à onça morta, a
sentir o cheiro dela de carne comida, o sangue dos dois se confundindo na
terra seca e quente. (...)
A cena de quinze anos atrás veio com os homens armados que apareceram lá
embaixo do lado direito.31
Folheou o caderno. A última frase escrita anos atrás: “No segredo da adaga
cuvale está a mensagem duma cultura para outra; não forçosamente antago-
nismo, por ser uma arma; mas mensagem duma diferença nascida no passado
dos homens que a fizeram e usaram”. Hoje não percebia completamente o
sentido do que escreveu.34
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Se os pais vão, ela também tem de ir. Se ficasse, tinha de trabalhar para ga-
nhar a vida. (...) Vê a Chucha a trabalhar?
— Até posso trabalhar — disse ela. — Mas lá, não aqui.
— Claro. Lá, entre os iguais. Lá não é vergonha trabalhar!38
A crise independentista faz com que as projeções da igualdade a partir dos ideais mesti-
çadores sobrecarreguem-se de contradições. Nessa ocasião, o neto Xandinho, outrora
zeloso funcionário colonial diretamente envolvido em crimes contra os nativos angola-
nos, empenha-se numa reconciliação da família com Chico, procurando exibir uma pos-
tura integrativa que lhe sirva de álibi perante o advento de um governo negro. Por outro
lado, atormentado por pesadelos referentes ao assassinato do chefe tribal Moma, Xandi-
nho explicita, através do olhar diegético da estátua Yaka, o valor oportunista que atribui
à evocação da mestiçagem: “ele só ouvia as vozes gargalhares dos cazumbis e precisava
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convencer de que o Moma não foi ele (...) foi o mulato Guilherme que deu as coronha-
das, eu estava de lado, que eles acreditassem porque sempre fora bom angolano”39. Di-
vidindo sentidos entre o que proclama e o que sonha, a questão para Xandinho centrava-
se em acusar o sistema colonial, que teria obrigado a ele e a outros colonos “a fazer ac-
tos que humanamente lhes repugnavam”40. Moralmente flexível para o auto-julgamento,
parece-lhe fácil desumanizar um outro que, tal como ele entende a postura dos militan-
tes do MPLA, se contraponha diretamente aos poderes coloniais: tomado pela paranóia
de que a vitória deste movimento no processo independentista levaria a um massacre
dos brancos, Xandinho reprojeta os estereótipos que definem os limites da identificação
e da possibilidade de composição de uma comunidade: “E os piores são esses brancos
deles, como esse Bombó, no Leste comia criancinhas brancas todos os dias”41. Para o
avô Alexandre, o novo tipo de aliança nacional que emerge gera significações ambí-
guas, entrelaçando aspirações antigas com as desilusões da velhice: “lembrou da ima-
gem do Imperador Maximiliano (...). Seria louro esse tal Bombó e teria um cavalo bran-
co? Evidente que não, disparate! Realmente devo estar a ficar gagá, volto à infância”42.
Incapaz de decidir-se entre as identificações que hibridizam seu ego, será pela voz juve-
nil e engajada de Joel que alguns enigmas básicos da vida de Alexandre enfim se des-
lindam: “A estátua representa um colono avô. (...) Ridicularizados. Veja o nariz. Burros
e ambiciosos”43. Este derradeiro espelhamento, entretanto, não se limita a inverter, pela
denúncia da prepotência colonial, as hierarquias culturais instituídas: ainda pela voz de
Joel, Alexandre capta enfim a mensagem da estátua Yaka na qual se traduz um caminho
histórico alternativo a exclusões e massacres para a construção da nacionalidade ango-
lana:
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REFERÊNCIAS
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Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
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FREYRE, Gilberto. Novo mundo nos trópicos. Tradução de Olívio Montenegro (cap. I a
IV, VI e VIII) e de Luiz de Miranda Corrêa (cap. V, VII, IX e X). Prefácio de Wilson
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GILROY, Paul. O Atlântico negro. Modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel
Moreira e Patrícia Farias (Prefácio à edição brasileira). 1.ed. São Paulo: Editora 34; Rio
de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
LABAN, Michel. Angola. Encontro com escritores. v.2. Porto: Fundação Eng. António
de Almeida, s./d.
NOTAS
1
ALENCASTRO, 2000, p. 353.
2
Conferir a pesquisa Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), promovida pela Unicef no Brasil, na
qual se indica que um adolescente negro tem três vezes mais chances de morrer assassinado do que um
branco. Mais informações disponíveis em http://www.unicef.org.br/.
3
Informa o Dicionário Houaiss que a palavra “heteronomia”, na filosofia de Kant, significa “sujeição da
vontade humana a impulsos passionais, inclinações afetivas ou quaisquer outras determinações que não
pertençam ao âmbito da legislação estabelecida pela consciência moral de maneira livre e autônoma”.
Distendida conceitualmente, nos âmbitos da psicanálise e do marxismo, para designar formas articuladas
de partição do ego e de controle ideológico (cf. CASTORIADIS, 1982, p. 123), a heteronomia especifica
regimes de verdade regulados pela restrição ou denegação da autonomia dos sujeitos, situações cuja pro-
dução micropolítica interessa a este artigo explorar e discutir.
4
Conferir FREYRE, 2000, p. 172.
5
Conferir BASTIDE, 1970, p. 65-108.
6
FERNANDES, 1972, p. 24.
7
FERNANDES, 1981, p.117.
8
BHABHA, 1998, p.174.
9
ALMEIDA, 2000, p. 232.
10
ANDRADE, 1997, p. 34.
11
Conferir BITTENCOURT, 1999.
12
Nascimento que, do ponto de vista das codificações oficiais do Estado autoridades coloniaiscolonial
português, mostrava-se claramente atento às mais sutis gradações de cor: “Minha mãe e eu éramos bran-
cos de segunda, por termos nascido em Angola. Mesmo no meu primeiro bilhete de identidade vinha: raça
— branco de segunda.” (PEPETELA, 1985, p. 36).
13
Conferir “País, que não se pensava dividido, está sendo dividido”. Entrevista a José Meirelles Passos.
In: O Globo, 31/05/2009. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=63797>.
14
Conferirl LABAN, s./d., p. 813.
540
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15
Idem, p. 800-806.
16
PEPETELA, 1985, p. 14.
17
Em sua acepção fundadora, elaborada por W.E.B. DuBois, a noção de double counsciousness refere-se
aos dilemas identitários dos negros norte-americanos, sobretudo no que dizia respeito ao pertencimento
destes à nação estadusinense. A perspectiva com que trabalho neste artigo, porém, retoma esse operador
de leitura na sua dimensão mais generalista, investindo no seu valor descritivo e interpretativo capaz de
pôr em evidência o que Gilroy denomina de “tempero etnopsiquiátrico específico da vida social colonial e
semicolonial”. Dimensão proposta pelo trabalho teórico realizado por outro importante filósofo afro-
americano, Richard Wright, que reformula as idéias de DuBois de acordo com uma episteme nietzschea-
na, tendo em vista produzir uma nova teoria da modernidade e dos sujeitos modernos. Conferir GILROY,
1999, 304-328.
18
PEPETELA, 1985, p. 370.
19
Idem, p. 137-138.
20
Idem, p. 68.
21
Idem, ibidem.
22
Idem, p. 143-144.
23
“Muitos abusos. As boas matas de café foram todas apanhadas pelos colonos. Qualquer pretexto servia.
Expulsavam a população para as terras piores. E faziam escravos. Digo-te, havia escravos nas roças. (...)
O Sô Agripino, conheces? Não imagina o que ele fazia aos trabalhadores. O chicote funcionava todo o
dia, por tudo e por nada. E mandava crucificar gente. Cru-ci-fi-car!” (Idem, p. 157-158).
24
Idem, p. 258.
25
Idem, p. 108.
26
Idem, p. 234.
27
Idem, p. 68.
28
Idem, p. 187-188.
29
Grupo étnico angolano, também designado por “mucubais”.
30
Idem, p. 217.
31
Idem., p. 227.
32
BALIBAR, 1991, p.92. Tradução minha.
33
“Teoricamente, o racismo é uma filosofia da história, melhor ainda, uma historiosofia, que converte a
história em função de um ‘segredo’ escondido e revelado aos homens sobre sua natureza, seu nascimento.
É uma filosofia que faz visível a causa invisível, do destino das sociedades e dos povos, cujo desconheci-
mento é expoente de uma degeneração ou do poder histórico do mal”. (Idem, p.89)
34
PEPETELA, 1985, p. 278.
35
Idem, p. 248.
36
Idem, p. 310.
37
Idem, p. 377.
38
Idem, p. 379.
39
Idem, p. 359.
40
Idem, ibidem.
41
Idem, p. 338. Explicitando o caráter reflexivo das projeções paranóicas de Xandinho, Isabel Castro
Henriques indica as correlações ideológicas que convertem a desumanização dos africanos numa máscara
para as arbitrariedades do poder colonial: “A promoção do africano a antropófago marca o imaginário
europeu do século XIX e sobretudo do século XX colonial: a África é povoada por ‘pretos primitivos e
antropófagos’. A acção civilizadora europeia torna-se indispensável. A violência colonial encontra a sua
mais veemente legitimação na antropofagia africana”. (HENRIQUES, 2004, p. 241)
42
PEPETELA, 1985, p. 338.
43
Idem, p. 387.
44
Idem, p. 388.
45
BHABHA, 1998, p. 123.
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∗
Professor Adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa (Sub-áreas: Literatura Portuguesa e Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa) do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar).
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Não resta dúvida, portanto, que, a partir de 74, várias tendências começaram a
surgir e se consolidar no cenário português, instaurando um profícuo momento de
produção artística sobre os rumos da literatura e da própria nação, a que Eduardo
Lourenço muito pertinentemente designou de “vontade de dizer ‘tudo’”2. Chama-nos a
atenção de que, nos diversos levantamentos e mapeamentos da ficção contemporânea, a
crítica literária apresente uma estranha reticência em relação a determinados tópicos
temáticos que flagrantemente vem se apresentando.
Sobre o tema que aqui abordaremos, a questão homoerótica na literatura
portuguesa contemporânea, também Mario César Lugarinho, ao tratar da obra do poeta
Al Berto, já havia chamado a atenção para este afastamento tangencial da crítica
portuguesa. Observa ele que esta, “sempre acadêmica, não ousa identificar a questão
problematizante da diferença sexual, preferindo anotar em todos os efeitos estilísticos e
formais que a mestria da língua lhes possibilita.”3
Tal constatação do ensaísta brasileiro ganha contornos incontestáveis quando
nos deparamos com a fortuna crítica pós-74 em Portugal. Basta olhar, por exemplo, os
artigos e ensaios produzidos nos últimos 25 anos, nas mais diversas trajetórias
levantadas (10, 20, 25, 30 e, agora, 35 anos, depois da revolução dos capitães de abril),
e perceber a sistemática ausência, quando muito uma tangencial superficialidade, no
tratamento de uma ficção de temática homoerótica4.
Num breve olhar sobre os diversos balanços e inquéritos a partir das faixas
temporais pós-74, não encontramos qualquer menção a nomes ligados à ficção de
temática homoerótica, o que já, no mínimo, um dado que desperta estranhamento no
leitor. Podem ser consultados, neste sentido, os textos de Maria Alzira Seixo5 e Carlos
Reis6, sem falar no já clássico e canônico livro de António José Saraiva e Óscar Lopes,
História da Literatura Portuguesa. Não quero, aqui, depositar qualquer mácula nas
abordagens dos críticos mencionados, até porque, todos eles possuem um
credenciamento inconteste nas abordagens efetuadas. Mas, não podemos deixar de
sublinhar o quase e total silenciamento da crítica em relação aos ficcionistas que se
debruçam sobre tal tema e que nada ficam a dever a quaisquer outros escritores
contemporâneos, incluindo aqueles mencionados pelos ensaístas acima citados.
Já adianto, aqui, que o meu objeto de estudo, a ficção de Guilherme de Melo,
enquadra-se dentro deste duplo cenário: o da narrativa de ficção desenvolta e
consolidada no pós-74 e o de mais absoluto silêncio por parte da crítica especializada.
Dirão alguns que, em termos políticos, o autor em questão, em razão do seu trânsito do
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Por mais vibrante e enfática que a imagem do armário seja para muitas
opressões modernas, ela dá conta de uma homofobia que outras opressões
não sustentam. O racismo, por exemplo, assenta num estigma que é apenas
visível em casos excepcionais (casos que, não sendo raros nem irrelevantes,
esboçam o âmago da experiência racial, em vez de o colorir); o mesmo é
válido para as opressões baseadas no género, idade, tamanho ou deficiência
física.15
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ou sociais, pode também construir o seu espaço de reclusão e exclusão, isto sem falar na
própria implicação da “identidade erótica da pessoa que assiste à revelação.”16 Logo,
não se trata de um espaço de fácil concepção, percepção ou compreensão. Pelo
contrário, é exatamente a complexidade de sua construção que o constitui como uma
rica fonte de representações metafóricas e de significados subjacentes.
Interessante observar que, na trama criada por Guilherme de Melo, em O que
houver de morrer, tais implicações comparecem de forma muito sensível. A ação gira
em torno do jovem João Carlos Vidigueira, que recebe a notícia da morte do pai pelo
jornal, em véspera de Natal. Passados os primeiros momentos dos pêsames, o rapaz é
chamado ao escritório do pai para recolher os pertences deste, onde se depara com uma
pequena chave, com uma letra A gravada. Sua estranheza é perceptível, já que todos os
membros da família não têm seus nomes iniciados pela letra em questão. Além disto, a
curiosidade aumenta, depois do relato da irmã, Clara, de que o pai possivelmente
possuiria uma amante ou uma família, já que ela ouvira furtivamente um diálogo
comprometedor do pai, numa madrugada, quando havia se levantado sem ser percebida.
Motivado, portanto, pela irmã, sem deixar que a mãe, Maria Irene, tomasse
conhecimento, João Carlos vai para o escritório do pai tentar descobrir pistas que
confirmassem a desconfiança dos filhos. Pois é neste espaço, para além “da aparência
gelada e inerte que o gabinete lhe oferecia”17, que o protagonista sente a presença
constante do espírito do pai, “um palpitar subtil por sob o metal e a madeira, no papel,
nos cortinados, no próprio tapete onde os passos se lhe abafavam”18. Aliás, presença
persistente, sentida em vários momentos da trama, ora na tentativa de conseguir uma
vaga de emprego no banco, ora na sua relação com as pessoas a sua volta, gerando uma
espécie de interrogação no filho, Emílio Vidigueira, mesmo morto, parecia ainda ditar
os rumos dos seus herdeiros.
Mas este ainda não seria o grande embate da trama, envolvendo pai morto e
filho vivo. Um dos pontos-chave da narrativa reside no momento da revelação dos
segredos que aquela chave propiciaria. Guardada, não gratuitamente, dentro d`“o
armário metálico encostado à parede fronteira”19, estava a caixa, com fotos que
revelavam não apenas uma outra vida do pai, mas também uma outra identidade que os
filhos, a família e os amigos mal suspeitavam. Emílio Vidigueira era homossexual e
mantinha um caso de quase três anos com um rapaz bem mais novo, Alcino.
Constatação “até então insuspeita e demasiado íntima, demasiado pessoal, para que lhe
assistisse o direito de a devassar.”20
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A partir daí, num misto de revolta e curiosidade, o jovem João Carlos inicia uma
viagem pelos guetos e pelas zonas de Lisboa, conhecidos pela sua freqüência
homossexual, numa busca obcecada pelo namorado do pai, acreditando encontrar nele
as respostas necessárias para entender esse outro Emílio, que ele relutantemente tentava
reconstruir. Ora, numa literatura de tradição marinheira, como é a portuguesa, neste
sentido, João Carlos comparece no elenco dos personagens viajantes, como um outro
barão assinalado, com direito, inclusive, à sua Ilha dos Amores.
Interessante observar que, se as fotos e as cartas reveladoras da
homossexualidade do pai encontram-se devidamente guardadas dentro de um “armário
metálico”21, outros são também deflagrados a partir das revelações efetuadas. O que, de
certa forma, estabelece um diálogo com a Epistemologia de Sedgwick, já que “o próprio
acto de sair do armário não implica o fim da relação com o armário, nem o fim da
relação tumultuosa com o armário de terceiros.”22 Deste modo, o filho mantém em
segredo o que descobre, acobertando o que encontrara no armário do pai, não contando
nem à irmã e nem à mãe. Constrói, assim, uma espécie de aliança entre ele e a memória
do pai morto, uma ligação fundamentada numa espécie de pacto do segredo, que bem
pode ser entendida como um outro armário, já que o próprio filho se fecharia e também
excluiria os amigos e os familiares, diante da “barreira que ele próprio ferozmente se
apressara a começar a levantar.”23 Colocados também numa outra redoma, num outro
armário, o protagonista acaba por construir dois compartimentos, “entre ele, o pai e o
segredo que os unia – e mãe e a irmã do outro lado”24. Por outro lado, esta solidariedade
entre João e Emílio sugere aquela sintonia homossociável25, em que as barreiras
masculinistas garantiriam, pelo menos momentaneamente, a harmonia, o vínculo e a
estabilização de uma heteronormatividade26. Guardando consigo o segredo pai, o filho
não macularia a imagem (heterossexual) deixada por aquele ao longo de sua trajetória.
No entanto, como bem nos lembra Emerson Inácio, “as relações baseadas na
‘camaradagem’ e na cumplicidade masculinas podem, também, abrir sentidos capazes
de, partindo da homossociabilidade, estabelecerem um horizonte possível para o
homoerotismo, mostrando-se assim uma continuidade entre um conceito e outro.”27
Logo, a partir da revelação do segredo de Emílio Vidigueira, do vínculo homossociável
estabelecido entre o filho e da memória resguardada do pai, João Carlos não só se
depara com uma identidade desconhecida daquele, como também começa uma aventura
em busca de Alcino, incorrendo num gradativo confronto com a sua própria identidade.
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PAES, José Paulo. O lugar do outro: ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
REIS, Carlos. A ficção portuguesa entre a Revolução e o fim de século. Scripta. Revista
do Programa de Pós-Graduação em Letras e do CESPUC. Belo Horizonte: Editora
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SEDGWICK, Eve Kosofsky. Between men: English Literature and Male Homosocial
Desire. New York: Columbia University Press, 1985.
NOTAS
1
Seixo, 1986, p. 48;
2
Lourenço, 1994, p. 299;
3
Lugarinho, 2001, p. 857;
4
Utilizo, aqui, o termo homoerotismo, de acordo com a conceituaçao de Jurandir Freire Costa, que o
define como “a possibilidade que têm certos sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou se
relacionar fisicamente de diversas maneiras com outros do mesmo sexo biológico” (2002, p. 22), ou seja,
o homoerotismo pode ser entendido como “uma possibilidade a mais que têm os indivíduos de se realizar
afetiva e sexualmente” (Ibidem, p. 73).
5
Seixo, 1986, p. 48-65 e 2001, p. 21-44;
6
Reis, 2004, p. 15-45;
7
Apesar do olhar reticente do autor sobre a política portuguesa em África, manifesto nas páginas de seu
romance autobriográfico A sombra dos dias, não falta quem afirme, como faz Fátima Mendonça, que
Guilherme de Melo, no cenário das décadas de 1960 e 1970, é um legítimo representante da “propaganda
colonial-fascista” (2002, p. 61).
8
Sobre o romance Um rio sem pontes, a par das qualidades textuais, Fernando Mendonça afirma que o
texto em questão “não apresenta qualquer novidade em matéria de narratologia, não faz concessões a
discursos obscuros, nem chega sequer a instaurar qualquer horizonte de expectativas”, talvez, por isso,
“poder-se-á achar esquisito que se afirme que é um romance ‘bem escrito’” (1997, p. 281).
9
Apud Gusmão, 2002, p. 72;
10
Melo, 1982, p. 16;
11
Melo, 1982, p. 12;
12
Segdwick, 2003, p. 8;
13
A metáfora do armário e suas aplicações no contexto social português são também empregadas por
Guilherme de Melo, no seu ensaio Gayvota (2002). Neste, pontua o autor que, “cada vez em maior
número, os gays (e também já as lésbicas, ainda quem mais timidamente) estão a ‘sair do armário’ e a
aparecer à luz do dia (mais da noite que do dia, convenhamos). De cabeça erguida. Com determinação e
coragem.” (2002, p. 169). São estes que, segundo o autor, estão a dar “uma maravilhosa lição de coragem
aos dúbios, aos hesitantes, aos que preferem viver atrás do biombo ou sob o resguardo da máscara,
encolhidos no fundo do armário como ratos medrosos.” (Ibidem, p. 172).
14
Segdwick, 2003, p. 11;
15
Segdwick, 2003, p. 16;
16
Segdwick, 2003, p. 23;
17
Melo, 1989, p. 43;
18
Ibidem;
19
Ibidem, p. 44;
20
Ibidem;
21
Ibidem, p. 42;
22
Segdwick, 2003, p. 24;
23
Melo, 1989, p. 54-55;
24
Ibidem;
25
O termo utilizado remete ao conceito de “homossociabilidade” definido por Eve K. Sedgwick como
“relações sociais entre pessoas do mesmo sexo” (1985, p. 1), que, quando aplicadas aos homens, vêm
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revestidas de um teor regulador, hierarquizador e excludente, posto que aqueles que não fazem parte deste
círculo de relações são colocados num espaço de afastamento marginal.
26
Utilizo, aqui, no sentido empregado por Lauren Berlant e Michael Warner: “Por heteronormatividade
entendemos aquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que não apenas fazem
com que a heterossexualidade pareça coerente – ou seja, organizada como sexualidade – mas também que
seja privilegiada. Sua coerência é sempre provisional e seu privilégio pode adotar várias formas (que às
vezes são contraditórias): passa desapercebida como linguagem básica sobre aspectos sociais e pessoais; é
percebida como um estado natural; também se projeta como um objetivo ideal ou moral.” (2002, p. 230).
27
Inácio, 2002, p. 68;
28
Melo, 1989, p. 109;
29
Ibidem, p. 201;
30
Ibidem, p. 200;
31
Ibidem, p. 159;
32
Ibidem, p. 168;
33
Ibidem, p. 211;
34
GAY, 2000, p. 176;
35
Ibidem, p. 177;
36
Lourenço, 1994, p. 299;
37
Calvão, 2008, p. 23;
38
Melo, 1989, p. 67;
39
Ibidem, p. 193;
40
Segdwick, 2003, p. 24;
41
Melo, 1989, p. 157;
42
Segdwick, 2003, p. 28;
43
É de Emerson da Cruz Inácio (2004) a instigante proposta de se pensar na urgência e emergência de um
discurso gay na literatura portuguesa contemporânea, a partir de sua produção poética, tomando como
ponto de partida a obra de Al Berto, entre outros poetas do século XX.
44
Bosi, 2002, p. 120;
45
Em seu artigo “Narrativa e Resistência”, Alfredo Bosi aponta duas formas de aproximação entre o
elemento estético (o texto narrativo) e a motivação ética (a resistência): a resistência manifesta-se
enquanto tema em determinados textos, sobretudo em uma certa literatura dos anos de 1930 a 1950, ou,
então, enquanto processo subjacente ao exercício de criação, independentemente da época ou do local de
produção textual. Maiores detalhes, conferir o referido artigo, inserido na bibliografia;
46
Bosi, 2002, p. 229;
47
Tal proposta encontra-se no ensaio “Da literatura como interpretação de Portugal”, inserido na obra O
labirinto da saudade;
48
Lourenço, 1991, p. 118.
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1
Bakhtin, 1997, p.04.
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aparentados com eles, como os de racional e irracional.” 2 Tal disposição teórica exige
que cada coisa seja pensada a partir dela e fora dela, mantendo um diálogo negativo em
relação à identificação plena.
Os ensinamentos teóricos de Adorno e Bakhtin oportunizam uma percepção do
estético e do político hoje, equilibrando-se nas falhas e vantagens de suas
argumentações. Polifonia e dialética negativa são categorias que dão uma resposta
plausível às relações entre arte e sociedade.
O uso do termo negativo visa ao questionamento das relações ideológicas e
materiais dominantes celebradas euforicamente pelo poder político e econômico através
das formas culturais hegemônicas. A contestação narrativa ancora-se na expressão
negativa que resiste à consagração afirmativa da lógica mercantil. De outro modo, a
categoria polifonia expande as figuras em jogo, acentuando-as, todavia, através do
conflito e da revolta.
A polifonia combate a uniformidade ideológica e histórica. no seu encalço, o
termo “negação” estabelece um corte crítico ao possível caráter positivo da polifonia. a
fetichização da multiculturalidade é contraditada pela razão dialética negativa. como
destaca adorno, “el pensamiento no necesita atener-se exclusivamente a su propia
legalidad, sino que puede pensar contra sí mismo sin renunciar a su propia identidad.”3
O romance polifônico negativo de Abelaira, Lobo Antunes e Lídia Jorge
constitui-se das linguagens e discursos ambientais do mundo. Suas personagens se
caracterizam pelo híbridismo das práticas institucionais e discursivas relacionadas com
a família, a classe, o gênero, a geração, a profissão, a religião e a nacionalidade,
categorias partilhadas em conflito. O desenvolvimento ideológico do romance
polifônico dos três autores é gerado por uma luta aberta pela hegemonia entre os vários
pontos de vista, orientações e valores verbais disponíveis.
A pluralidade da escrita ficcional viabiliza o conceito polifonia negativa que
reflete as tensões e limites das experiências políticas dos sujeitos em ação. Personagens
e narradores são afetados pela exterioridade social cuja estrutura material limita a
autonomia subjetiva, desmitificando seu potencial transformador.
A “retórica da ficção” impõe um tensionamento quase infinito. Mediados pela
recepção condicionada temporalmente, os mecanismos discursivos do gênero
romanesco informam uma totalização em contínua atividade auto-reflexiva acerca da
2
Adorno, 1993, p.63.
3
Adorno, 1975, p.144.
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4
Robert Stam alerta: “o aparelho de televisão é amiúde metaforizado como lareira eletrônica. No estúdio,
um clima pré-fabricado de discreta infomalidade promove a impressão de que todos pertencemos a uma
comunidade harmoniosa, suficientemente à vontade para brincar e fazer piadas.” Segundo o autor,
também, nesse caso, entretanto, muita premeditação gélida faz parte da fabricação do calor humano, já
que sabemos que a alegria da equipe de notícias é uma construção fomentada pelos consultores de
noticiários, preocupados em aumentar os índices de audiência.”(STAM, Robert. Mikhail Bakhtin e a
crítica cultural de esquerda. In: KAPLAN, Ann. (org.) O mal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1993, p.163.)
559
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5
Jameson, 1997, p.194.
6
Jameson, 1997, p.194.
7
Adorno, 2009, p. 22-23
560
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derrotadas que compõem o estatuto ideológico e moral desses romances, são necessárias
como afrontamento ao juízo de valores oficiais. Essa visão irônica e catastrófica é o
alento positivo da ficção de Augusto Abelaira, António Lobo Antunes e Lídia Jorge
que, presos à tradição crítica do romance, relembram e reinventam um Portugal
múltiplo, dividido entre as sombras semi-defuntas da ditadura salazarista e a comicidade
patética de uma revolução traída, alcançando um tempo presente assolado pela pobreza,
corrupção e ganância econômica irrefreável em que as paisagens urbanas recebem os
influxos de um pós-colonialismo despedaçado pela crise do capital globalizado. Nos
autores referidos, um Portugal pequeno e impotente frente ao reordenamento mundial
das nações – referendado na formação de blocos econômicos e políticos - é inventado
sob os efeitos do riso paródico que, distante de seu capricho efêmero e superficial,
questiona as relações discursivas e materiais de poder das sociedades nacionais e
globais.
As fisiologias do estado autoritário e democrático, do multiculturalismo e do
sistema de produção de mercadorias são devastadas pela escrita irônico-melancólica das
obras que recusam o heroísmo e as promessas fáceis de felicidade, anunciando em seus
anseios reflexivos um real balizado pela loucura, pobreza e desesperança. As narrativas
de Abelaira, Lobo Antunes e Lídia Jorge, guardadas as diferenças, rememoram um
território português opressivo, apático, marcado pela discriminação social, racial e
cultural, não vislumbrando saídas políticas para crise ideológica e identitária.
Na obra de Augusto Abelaira, auto-reflexividade paródica, levada ao extremo,
impõe limites à interpretação, insinuando, através das manobras do jogo intertextual, a
incompetência do leitor e a sofisticação do discurso narrativo. O romance abelairiano
caracteriza-se pela tentativa de desmitificação absoluta de qualquer teoria e estratégia
narrativa, enredando-se em sucessivos paradoxos. Predomina a ilusão real do espetáculo
auto-reflexivo que, através da ironia e da melancolia crítica, simula e dissimula o
cálculo histórico, científico e filosófico, sinalizando para o fato de que onde há a
possibilidade de certeza política e epistemológica, está o engano.
No romance antuniano, a evocação grotesca, paródica, sombria da História de
Portugal alcança distintas vozes sociais, todas posicionadas para empreender um
concerto dissonante de agonias e ilusões. Violência, corrupção e impotência
caracterizam o caráter e as ações das personagens, destinadas a repetir, infinitamente,
uma trajetória de enganos e maldades. A paisagem narrativa é enfatizada pela fraqueza
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moral e frustração coletiva. A infiltração subjacente de uma voz narrativa, marcada pela
morbidez e ironia, anuncia derrotas e fracassos, fruto da esperteza e inocência.
A rememoração narrativa é uma das estratégias do romance antuniano.
Ignorância e prepotência marcam as reminiscências do passado familiar e político.
Iguais resultados preenchem o presente, afastando qualquer chance de conciliação e
solução identitária. A História – passada, presente e futura, pessoal e coletiva – é um
amontoado de fragmentos traumatizados pela violência, pela opressão, dando seqüência
às imagens de um país em ruína permanente. As personagens são como mônadas sem
janelas que, cegas para projetos coletivos solidários, refugiam-se numa memória
danificada, ruminando sobre os efeitos do autoritarismo e da guerra.
O romance jorgeano caracteriza-se pela contradição, paixão e desencanto.
Ameaçadas pela dissolução identitária e política, as personagens de Lídia Jorge vivem
sob o impacto das transformações históricas e espaciais que as contagiam trágica e
ironicamente. A sabedoria instintiva afeta as narradoras femininas. Um cotidiano de
mudanças e dificuldades é vivido alegre e tristemente pelas mulheres. A busca de
afirmação identitária é uma das cenas centrais do romance jorgeano, mostrando a difícil
travessia do corpo masculino e feminino diante das feridas deixadas pela história
recente do país, bem como pela expansão vertiginosa do capital globalizado.
A prática da escrita das narradoras jorgeanas procura contornar as dificuldades
materiais e espirituais vividas. Balizado pela elaboração de diários, cadernos, relatos,
rascunhos, etc., o viver feminino alcança um grau de reflexão maduro, colocando em
questão sua natureza e função no mundo, percebendo que a luta pela sobrevivência
individual depende do conhecimento e combate ao modelo material de organização
social vigente.
As obras dos três autores informam uma polifonia negativa. Os jogos irônicos,
as contradições insolúveis e a desilusão são as concessões oferecidas por tais romances
cujas retóricas não encontram confiabilidade na conciliação social. O caráter literário da
polifonia é negativo, pois dominam sua cena a ironia, o grotesco e a melancolia crítica.
Um pacto em torno da recusa às formas culturais hegemônicas do sistema econômico é
sugerido pelos mecanismos estratégicos textuais utilizados. Embora haja representações
distintas acerca dos sujeitos e da história, predomina, nos romances, uma identidade
narrativa que acusa a ganância econômica e a brutalidade política como fenômenos
imorais presentes na sociedade. Resistentes a oferecer alternativas de felicidade social,
os romances embriagam-se da reflexividade crítica sistemática, desautorizando qualquer
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REFERÊNCIAS
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Às raparigas tristesi
Por que ler agora Mário de Sá-Carneiro? Que enredos podem entreabrir-se entre
o leitor e esse discurso que nele toma vida, reinventando, reevocando algo que já se
soubera há muito perdido. É porque permanece viva que sua poesia pode ser lida; de
resto, como qualquer outra obra de arte eventualmente sacada da reserva técnica dos
museus de nossa sensibilidade. Como este ritual poético –– acreditamos que haja
funções ritualísticas quando, por exemplo, o eu lírico convida-nos, em um baile em que
não deixa de haver algo de sinistro, a dançar a valsa da autocomiseração, a encenação
da pantomima, ou do cul-de-sac hipnótico de sua lanterna mágica –– se atualiza e age?
O que permite que tal se dê, o que nos evoca? Como perturba-nos
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plasmando, a seu modo, os embates ideológicos e políticos a que o discurso do sexo está
sujeito. Associada a esta análise, como um seu complemento necessário, abordaremos
certos aspectos que vieram a constituir a sociedade burguesa tal como esta veio a se
consolidar durante o III Império em França. Isso se explica pela representatividade deste
modelo para a Europa ocidental.
Com o idealismo inglês, temos as primeiras manifestações de crítica, denúncia e
resistência à era industrial. Sua limitação forçada, caráter filisteu e estreiteza de limites
passam a ser agora evidenciados. A arte pré-rafaelita, Keats e Turner oficiam um culto
da beleza sentida como nostalgia. A arte, para os eleitos excluídos, está longe de ser um
divertimento para a multidão, torna-se o culto de poucos iniciados.iii
Podia-se reagir, dentro das diversas tendências da arte de então, ao materialismo
imperante através de uma concepção mística da arte. Neste campo, mais precisamente
no que se refira ao momento da gênese e gestação da arte, ao seu acalentar, ao
necessário cercar-se de atmosfera propícia, a fim de que o que venha possa eclodir,
busca-se aproximar a expressão artística à sondagem das profundezas do inconsciente e,
como uma sua decorrência, ao conhecimento intuitivo dos povos “primitivos”. Como a
arte poderia realizar isso a não ser lançando mão das propriedades mágicas da música (a
quem ela, certamente já se recorda de haver servido mais de uma vez...)iv
A esse programa podemos dizer que reage Mário de Sá-Carneiro. “Partida”,
poema que abre o livro Dispersão e que por isso, assume função emblemática, expressa
uma profissão de fé que tem a investigação do eu recôndito e abissal como escopo:
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Desse modo parece que Mário de Sá-Carneiro tende mais para a sensibilidade
nevrótica obcecada com o mal que se manifesta na vida, no mundo e no homem.
A poética de Mário de Sá-Carneiro foi também forjada pela atmosfera
bruxuleante, entorpecida e drogada dos cafés e da boêmia. Há uma profusão de
diversão, alheamento e alienação, disposta de modo difuso e em visão periférica na
ambientação de muitos de seus poemas. O verde opaco, leitoso do absinto converte-se
nele em seus equivalentes: álcool (genérico), éter e morfina. Há que se ressaltar, porém
que, na passagem da era dos cafés à democratização da vida cultural, o eu lírico
mostrar-se-ia reticente, até refratário, diante deste mundo barulhento demais e colorido.
Permaneceria ele distante, hierático e implacável, olhando de soslaio para o povo
barulhento à sua volta. Preferiria realizar ele outra profusão de cores, alegóricas e
espectrais. Seu próprio fazer artístico será alvo de ironia, sabe ele que a arte não pode
mais ser tomada “a sério”. Isso porque há que se reservar um lugar para o jogo, a
experimentação e a livre invenção. A verdade do positivismo e a sisudez da ciência
precisa ser combatida ao menos na altitude inútil da torre de marfim do poema.
O pessimismo de fim de século com seu respectivo décor, com seu aspecto algo
pecaminoso, luxuriante, mórbido e sadomasoquista parece também altamente produtivo
no lirismo de Mário de Sá-Carneiro. Canta-se um mundo prestes a desaparecer. O eu
lírico empalidece, busca uma espécie de aconchego idílico e maternal, produz
incessantemente fantasias refinadas. Quanto ao tempo, a atmosfera que lhe seria
condizente por força haveria de ser uma estação cristalizada em permanente outono.
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disso, sabe que seu discurso, no que tange à sexualidade filia-se à revolta e à
transgressão. Outro ponto importante que pudemos associar à análise de Foucault diz
respeito à intensidade de repressão ao sexo de que a sociedade burguesa e industrial foi
capaz. Ao mundo do trabalho e do lucro, o sexo é visto como gasto inútil, prática que
deve ser, portanto, proibida. Nossa hipótese de leitura da lírica de Mário de Sá-Carneiro
tem esta repressão como pano de fundo e cenário para a dramatização lírica por ele
realizada.
Helena Barbas, antes de examinar o poema “Salomé” de Mário de Sá-Carneiro
examina diversas outras representações literárias deste mesmo episódio bíblico. Ao
analisar o fragmento Herodiade de Mallarmé evidencia esta contribuição à constituição
da personagem:
Convalescença afectuosa
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REFERÊNCIAS
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NOTAS
i
Cruz e Souza., 1961, p. 237. Dedicatória do pema “Surdinas”, de O livro derradeiro.
ii
Sá-Carneiro, 1946, p. 110.
iii
Michaud, 1966. p.203-204
iv
Michaud, 1966. p. 206-207.
v
Sá-Carneiro, 1946, p. 51.
vi
Sá-Carneiro, 1946, p. 102.
vii
Sá-Carneiro, 1946, p. 137.
viii
Sá-Carneiro, 1946, p. 135
ix
Girardot, 1983, p. 125,126 e 134.
x
Benjamin, 1989, p. 112 e 121.
xi
Sá-Carneiro, 1946, p. 113.
xii
Foucault, 1988, p. 9-18.
xiii
Barbas, 1992 p. 42,43 e 47. Ao final da citação, modificamos o texto da autora.
xiv
Sá-Carneiro, 1946, p. 115.
xv
Sá-Carneiro, 1946, p. 111.
571
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1
CLÁUDIO, 2008, p. 92. Todas as citações serão dessa edição, indicadas apenas pelos números das
páginas.
2
Os três livros publicados pelo grupo de pesquisa são: As máscaras de Perséfone: figurações da morte
nas literaturas portuguesa e brasileira contemporâneas (Rio de Janeiro: Bruxedo; Belo Horizonte: PUC
Minas, 2006, 378 p.); De Orfeu e de Perséfone: morte e literatura (São Paulo: Ateliê Editorial; Belo
Horizonte: PUC Minas, 2008, 447 p.); A escrita da finitude: de Orfeu e de Perséfone (Belo Horizonte:
Veredas & Cenários, 2009, 328 p.),
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capa e folha de rosto: na capa o volume se indica como novela, entre parênteses; na
folha de rosto lemos “Romance” (sem parênteses), numa duplicidade que se confirma
pela estrutura da narrativa: se o senhor Soares é como o “herói” que garante a unidade
da novela, por estar sempre presente na imaginação do narrador e nas várias partes em
que se desenvolve a narrativa, o texto assemelha-se a um romance por constituir-se
como um complexo testemunho que desvela negatividades e incompletudes, tanto das
personagens quanto da sociedade em que elas estão inseridas.
Ainda: a voz narrativa que se apresenta na primeira página da novela/romance
indica-se como a de António da Silva Felício; mas no final do texto (p. 91), o leitor
toma conhecimento de que essa personagem contactou um profissional “mais ou menos
respeitado”, desconhecido para ele, a quem chega por intermédio do amigo de um
amigo, para que escrevesse o relato de seu convívio com o senhor Soares. Assim fala o
narrador:
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Não há quem se interesse por precisar de onde ele vem, nem para onde vai, e
se de repente trocam o olhar cansado dele pelo indiferente olhar que levam,
fazem-no como se se cruzassem com uma ausência, ou com um homem que
por ser todos os homens atravessasse a existência como homem nenhum.
(48).
Essa estranheza do senhor Soares, que aponta para a consciência do desamparo do ser
humano, na sua impossibilidade de ser em plenitude ou na sua fatal incompletude,
aparece também em suas contradições: neurastênico e sério com o trabalho, ele não
admite liberdades ao Sérgio, que é metido a bem vestido e a fazer estardalhaço no
escritório; entretanto, o narrador afirma tê-lo visto assinar o nome às avessas e ao invés,
brincar com a caneta e com as imagens fixadas no mata-borrão, bem como fugir da
mosca varejeira sem se despedir e “sem se virar para o espelho como se o espelho
pudesse assassiná-lo.” (p. 20). Essas atitudes estranhas e mesmo contraditórias, que
oscilam entre a severidade e o jogo, incluem brincadeiras com papel almaço, como
mostra o barquinho com o nome António que oferece (afetuosamente ?) ao fascinado
rapaz.
Ainda: quando este lhe vai levar o Livro do Razão, em casa, observa os seus pés
descalços, “encafuados nuns chinelos”, com a grande “unha dura e encardida como não
se admitia, nem mesmo a um limpa-chaminés”. António conclui então que aquela unha
devia ser <<um sinal de Deus, é dali com toda a certeza que lhe nasce a sabedoria.>> (p.
77). Mais tarde, entretanto, tem muitas vezes vontade de rir desse pensamento,
mostrando que também as suas percepções oscilam entre perspectivas sérias e
humorísticas.
Surpreendente, sempre, o senhor Soares acorda o distraído rapaz de suas
reflexões, nessa tarde, com uma pergunta que este julga incongruentemente “surgida
dos abismos da sua alma, e que [me] (o) atingiria como se tivesse sido formulada por
um cadáver: <<Tens lume?>>. Mais tarde o visitado lhe ofereceria uma moeda,
dizendo com palavras “articuladas quase em surdina, às quais o rapaz “supõe” ter
corado: <<Deixa ficar cá o livro, e aceita isto para beberes um copito à minha saúde.>>
(p. 79). E depois de explicar a sua demora, o senhor Soares repete a oferta do moeda,
acrescentando: “Porque eu, se pudesse, até que gostaria muito de ir contigo, António.>>
(p. 81) Por que não poderia? Por estar doente, ocupado, ou por ser inexistente? E por
que teria corado o rapaz? Suporia haver alguma duplicidade naquela oferta?
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(...) a descoberta de que o senhor Soares fixara o nome do pobre caixeiro que
eu era obrigou-me a fugir dali apressadamente, aflito como se um fantasma
me perseguisse, ou como se houvesse cometido um crime de morte. (p.80)
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ser.” (p. 33) Haveria aí uma referência às mulheres de que fala Ricardo Reis (Lídia,
Neera)?
É como se o senhor Soares fosse como a potência de que fala Giorgio Agamben
e funcionasse, no caso, para impulsionar a capacidade onírica e os desejos de António,
que passa até a querer registrar num escrito o que ele chama de o seu “convívio com o
senhor Soares” (p. 91)3. Com isso ele poderia dividir com leitores o enigma permanente
dessa figura estranha que seria como a promessa adiada de que fala Blanchot a
propósito da literatura: processo, pressentimento, preparação para algo que nunca se
completa, por ser um discurso sempre em enunciação (BLANCHOT, 2001, p. 73-94).
Trata-se de enigma que entretanto fornece elementos para uma reflexão sobre o
papel do autor e o do leitor na criação – elaborações de “verdades do desassossego”
típicas da literatura e também do mesquinho quotidiano salazarista da década de 30,
com seus pequenos e malogrados desejos e seus sonhos vistos como de impossível
realização4. Ao ler Boa noite, senhor Soares, o leitor assiste ao levantamento do
universo pequenino dos acontecimentos do dia-a-dia daquele tempo: a vida minúscula
dos empregados de escritório, desdobrada entre o tédio e o domingo passado nas
“hortas”; o rancor da velha doente; a prepotência masculina; a existência parasitária e
gaiata do Serafim (que supostamente enriquecera no Brasil mas de lá voltara como
partira); a alegria ingênua e popular do Alfama; a fatuidade e vanglória do Sérgio,
acabado a pedir esmolas nas ruas, segundo António; o Moreira das comezainas de final
de semana; as freguesas, na sua economia de contenção, a comprar meio quilo de
toucinho (se não for muito salgado (p. 74); os sonhos exóticos e hiperbólicos dos
adolescentes (manifestos nas viagens oníricas de Antonio); o batalhar épico de formiga
laboriosa e infeliz de Florinda, explorada pelo marido, pelo cunhado e pela sogra, o que
se repete depois, com variações, na mulher do narrador e em seu trabalho sem ajuda.
Com esta é diferente, porém, o que indica alguma mudança naquela sociedade, pois ela
ao menos reclama: tem o poder do discurso e com ele o de ditar regras na casa (o
marido pode dormir nu mas não pode usar o penico etc).
3
O estudo que Giorgio Agamben intitula “Bartleby – escrita da potência” reflete sobre a personagem de
Melville, vista como a potência perfeita, pois se trata do escriba que não escreve; o mesmo parece ocorrer
com António da Silva Felício, o personagem de Boa noite, senhor Soares que, estimulado por essa
personagem estranha, não escreve, mas transmite a outro o impulso para a escrita.
4
Interessante observar que, se apenas uma personagem de Boa noite, senhor Soares viaja
(significativamente para o Brasil, onde haveria árvores cujos frutos seriam patacas de ouro), outras
personagens (como o Gomes, cunhado de António) viajam através de sua coleção de selos, ou a partir de
folhetos de propaganda de viagens, laboriosamente reunidos, organizados e “viajados” por António.
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5
Na realidade, podemos encontrar em Boa noite, senhor Soares, além do semi-heterônimo Bernardo
Soares e de Vicente Guedes, companheiro do senhor Soares na noite lisboeta (p. 42), o Fernando Pessoa
do “sino da minha aldeia” (“uma aldeia onde ele nunca vivera” (p. 82)), o do “mar português” (p. 57), o
que observa o jardim da Estrela e pensa em columbinas, pierrots e arlequins (p. 56), e também os
heterônimos, às vezes nomeados, às vezes indicados por versos ou por características das respectivas
“biografias”: Ricardo Reis seria o médico que visita o senhor Soares e com quem António o vê, algumas
vezes, inclusive na horta (p. 57); seria também o “sábio como constava dos mistérios deste mundo” (p.
43), ou o que escreve e conta sílabas (p. 57); alguns companheiros do senhor Soares se parecem com
Álvaro de Campos (como o sujeito de andar esquisito que António vê no cais e que chama a atenção dos
moços, na rua), ou o que faz ver na Mimi, sobrinha de António, a pequena dos chocolates, da “Tabacaria”
(p. 364 de F.P.), entre outros.
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certamente menos precisa do que aquela que o Poeta praticava no escritório do patrão
Vasques, como diz Leyla Perrone-Moisés6.
Acentua-se, assim, o caráter ficcionalmente literário da personagem do livro de
Mário Cláudio, aquele para quem “A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de
sermos”, o que se parece indicar pelo olhar sorridente que o narrador António lhe
surpreende dirigir à rapariga do calendário, e que encontramos três vezes, com
diferenças, como que recriando o soneto de Cesário Verde “Naquele picnic de
burguesas”. À página 19 encontramos:
Soares, quando a “lambisgóia” do segundo andar do prédio passa por ele, afogueada,
A ambigüidade do texto se reforça com essas citações: haveria nelas apenas uma
explícita referência a Cesário Verde, ou indicariam elas uma faceta diferente do senhor
Soares, aquele que era sempre sério e distante de mulheres, provocando sorrisos
retrete? Ou, ainda: não estariam assim misturadas as duas personagens – António e o
senhor Soares –, mais uma vez retirando ao texto as certezas da “sordidez de sermos”,
6
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego, por Bernardo Soares. Sel. e intr. de Leyla Perrone-Moisés.
3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 15.
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Poderíamos concluir então (sem chegar realmente a uma conclusão), que Boa
noite, senhor Soares, assim como o Livro do desassossego, de Bernardo Soares, nada
história, a ação e o tempo nada são no livro, e lido o livro, o leitor fica com nada.
Silva, Boa noite, senhor Soares pode ser visto como uma maneira de dar forma ao
mundo. Especialmente se lembrarmos que, com toda a sua fluidez e nebulosidade, mas
especialmente com a sua simpatia voltada para o caixeirinho António, o senhor Soares
Poderíamos entender que a obra de Mário Cláudio de que aqui nos ocupamos
estaria dizendo que é o uso da linguagem que confere identidade ao ser (“A arte livra-
inscrevendo uma presença (ou um sujeito) que é travessia, retomada e processo. Tecido,
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REFERÊNCIAS
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Trad. Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2001.
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FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Angst e sentimento (do) trágico na moderna poesia de língua
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Trad. Erix Nepomuceno e Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, p. 9-
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PESSOA, Fernando. Livro do desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. (Recolha e
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“A experiência ensinou-me
também que o Luar Libidinal pode
perder a memória e lembrar-se”
* Professora Titular de Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG. Escritora, autora de diversos
livros de ensaio, na linha de pesquisa Literatura e Psicanálise, além de romances, livros de contos e de
literatura infanto-juvenil. Estudiosa da obra de Maria Gabriela Llansol desde 1992, membro do Espaço
Llansol, com vários artigos e dois livros publicados sobre a obra da escritora portuguesa.
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com tudo o que o prefixo “ex” comporta do fora, do exterior: “É um exterior – disse, e
senti uma ameaça, pois todas as coisas sem memória são criadas de pureza pura.”5
Cabe-nos aqui, então, pensar na modalidade de leitura que é exigida por um
texto que se situa fora do mundo, fora da representação e fora da literatura. O que
significa ler no campo do exterior? Ou, em outras palavras: qual é a tarefa do legente, se
ele próprio se situa, tanto quanto o texto llansoliano, na comunidade dos existentes-não-
reais?6 Ou, ainda: em que real se entra, quando se entra na dimensão dos existentes-não-
reais?
Essas questões, que a própria Llansol formulou por diversas vezes e de diversas
maneiras em seu texto, serão desdobradas, aqui, no contexto da leitura – ou, mais
propriamente, da legência – em suas articulações com a memória e com o que já
denominamos, em trabalhos anteriores, de “escrita da desmemória”7.
Em O Livro das Comunidades, obra que inicia propriamente a textualidade
llansoliana, podemos destacar estas palavras de A.Borges, figura da obra de Llansol que
toma lugar, na perigrafia dos livros, como comentador. No prefácio desse livro,
intitulado “Eu leio assim este texto”, A. Borges escreve:
Aqui, por uma troca de letras – o “c”, em lugar do “s”, sugerindo a passagem de
“um corpo sem memórias” a “um corpo com cem memórias de paisagem” –,
verificamos uma condensação que nos indica que a ausência de memória aponta menos
para o esquecimento que para uma abertura em direção ao inumerável da paisagem: cem
memórias.
E sabemos que a paisagem, em Llansol, é uma figura bastante complexa, como
se lê em “A boa nova anunciada à natureza”:
A boa nova anunciada à natureza é o escândalo que a minha época não aceita.
O Ser existe como beleza, mas nós perdêmo-lo e percorremos toda uma
órbita excêntrica para o voltar a encontrar. A Boa Nova dirige-se à Terra no
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Percorria o quarto.
Tomava o mundo desconhecido por um conjunto de instrumentos. Tudo era
chávena. Em seguida, tudo era vestido. Falava-me como se eu fosse um eco
imperfeito da sua boca. Onde ela dizia “vestido”, eu dizia-lhe, por exemplo,
caso não fosse verdade, “cama", onde, aliás, tinha sua mão pousada.
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Acontece que, a um dado momento, a citação propõe uma mudança radical, que
substitui o “homem” por alguém que saiba ler: “— Sim —, digo-te, pousando as mãos
nos teus joelhos: — Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e saiba ler.” (p.
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Pouco antes desse momento, o “pênis ereto” começa a desaparecer da cena e a
desmemória vai ocupando o texto, enquanto, paulatinamente, a paisagem de uma
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ausência – sem memória, mas com cem memórias – vai, em sua nudez, realizando o
sexo de ler :
Que sexo é esse, ainda mais complexo que o do homem e o da mulher? É o sexo
que propõe a leitura – a legência – na passividade fecunda e desejante de quem dá o que
não tem, como no mito grego de Poros e Penia:
O que é muito bonito nesse mito é a maneira pela qual Aporia engendra
Amor com Poros. No momento em que isso se deu, era Aporia quem velava,
quem tinha os olhos bem abertos. Contam-nos que ela viera para os festejos
do nascimento de Afrodite, e, como qualquer Aporia que se preze, nessa
época hierárquica, permaneceu nos degraus, próximo da porta. Por ser
Aporia, isto é, por nada ter a oferecer, não entrou na sala do festim. Mas a
felicidade das festas é que justamente acontecem coisas ali que invertem a
ordem comum. Poros adormece. Adormece porque estava embriagado, e é
isso o que permite a Aporia fazer-se emprenhar por ele, e ter esse filhote que
se chama o Amor, cuja data de concepção vai coincidir, portanto, com a data
do nascimento de Afrodite. É por isso mesmo, nos explicam, que o amor terá
sempre alguma relação obscura com o belo, aquilo que se vai tratar, com
efeito, no desenvolvimento de Diotima. Isso está ligado ao fato de que
Afrodite é uma deusa bela.
Aí estão as coisas ditas claramente: é o masculino que é desejável, é o
feminino que é ativo. Pelo menos, é assim que se passam as coisas no
momento do nascimento do Amor.14
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Nessa direção, talvez pudéssemos admitir, afinal, que a leitura, como observa
Blanchot, situa-se “aquém ou além da compreensão”, o que não impede que ela seja
justamente a operação capaz de explicar o texto. Ou, como assinala Mandil,
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— Desejo encontrar alguém que me ame com bondade, e que saiba ler.
—Alguém que queria ressuscitar para ti?
— Sim, alguém que tenha para comigo essa memória.
E assim Témia ressuscita como a rapariga desmemoriada que, com seu jogo da
liberdade da alma, pode propor a leitura como explanare — desdobrada, espalhada,
infinita —, em que nada se produz, mas em que “tudo é realizado”. Nessa dimensão da
liberdade da alma, a leitura é sempre “alma crescendo”: legência. Por isso, ler “é nunca
chegar ao final de um livro, respeitando-lhe a sequência coercitiva das palavras, e das
frases”,18 mas a leitura é capaz de ser afetada de maneiras bastante diversas e, assim, é
capaz de promover a metamorfose:
Essa leitura em liberdade pede um leitor ligeiro, cujo gesto anuncia “a felicidade
e a inocência da leitura, que é, talvez, com efeito, uma dança com um parceiro invisível
num espaço separado, uma dança alegre, desvairada”, segundo assinala Blanchot.19
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Aí, nessa desmemória do mundo, “tudo é tão ligeiro que cairá sem se ver”.22 Aí,
fora da representação, fora da literatura e fora da luz comum, seremos legentes. E então
talvez possamos “deixar espaços entre as palavras para evitar que a última se agarre à
próxima” (p.80) que vamos escrever, para que elas, as palavras, possam enfim repousar,
ressoar, ressuscitar. E só então talvez possamos dizer, como a rapariga desmemoriada,
ao fim do livro: “Inunda-me a felicidade excepcional”. (p.97)
REFERÊNCIAS
LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho. 2 ed. Lisboa: relógio D´Água, 1998.
LLANSOL, Maria Gabriela. O Livro das Comunidades. 2 ed. Lisboa: Relógio D´Água,
1999.
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LLANSOL, Maria Gabriela. Amigo e amiga: curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio
& Alvim, 2006.
NOTAS
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INTRODUÇÃO
1
Profa. Dra. em Literatura Portuguesa pela USP e Profa. Associada Nível II da Universidade Federal do
Maranhão.
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Embora tenha nascido em Portugal, José Mateus Vieira da Graça emigrou ainda
criança com toda a família para Angola e conheceu de perto a vida nos musseques, pois
lá morou durante a infância e a adolescência. O pseudônimo “Luandino” advém de seu
grande amor por Luanda, como ressalta Rita Chaves: “...o pseudônimo, utilizado
inicialmente para assinar os desenhos editados num dos jornais, ficaria definitivamente
incorporado a sua figura e a sua personalidade. Na vida do cidadão e no itinerário do
escritor, a imagem de Luanda é dos signos mais fortes.” (CHAVES, 2005, p. 21).
Assim, nos musseques de Luanda, Luandino vai buscar inspiração para escrever
suas estórias recheadas de personagens significativos, como os negros, os pobres, os
brancos, imigrantes da metrópole ou de outras colônias e introduzir a marca popular que
irá caracterizar a sua produção. Patrícia Simões de Oliveira Rosa afirma que “sua
vivência faz com que sua produção literária testemunhe um conhecimento vivido no
universo desse bairro periférico”.(ROSA, s/d).
Em “Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”, os musseques constituem o espaço por
excelência dessa estória, centrada na miséria e na fome que assolam o bairro e,
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sobretudo, atingem diretamente a velha Xíxi, outrora Dona Cecília de Bastos Ferreira,
moradora “nos Coqueiros em casa de pequeno sobrado, com discípulas de costura e
comidas, com negócio de quitanda de panos,...” (VIEIRA, 2006, p. 20) e seu neto Zeca
Santos, rapaz apaixonado por Delfina, mas “eternamente” desempregado e faminto.
Resta-lhes a companhia um do outro no enfrentamento da nova condição a que foram
submetidos.
Procurando resistir teluricamente à estrutura vigente, Vavó Xíxi reconstrói sua
trajetória e leva consigo o neto, ainda que impotente diante do poder que promove a
exclusão social. Utópica, a narrativa de Luandino, “embora propositiva, ‘concreta’,
vincula-se a um imaginário, estabelecido a partir de um modelo de organização justo,
harmonizado e sem classes”. (MARTIN, 2004, p. 189).
Em contraposição ao slogan da “unidade”, sustentado pela ditadura colonial,
Luandino procurará justificar, nas três estórias de Luuanda, a busca pela independência
que seria travada com armas. Escrita enquanto estava preso, entre 1961 e 1962,
Luuanda registra a índole revolucionária que servirá de mote para o movimento
angolano de libertação da metrópole portuguesa.
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após dois meses de estiagem. A princípio duvidosos diante da incerteza da chuva tão
esperada, os moradores zombam das nuvens e dos pingos que caem espaçadamente,
ainda que Vavó Xíxi preconize o que haverá de vir. A paisagem que se descortina em
seguida revela a força da opressão simbolicamente suscitada e a capacidade de resistir a
seu domínio:
O musseque, nessa hora, parecia era uma sanzala no meio da lagoa, as ruas
de chuva, as cubatas invadidas por essa água vermelha e suja correndo
caminho do alcatrão que leva na Baixa ou ficando, teimosa, em cacimbas de
nascer mosquitos e barulhos de rãs. Tinha mesmo cubatas caídas, e as
pessoas, para escapar morrer, estavam na rua com as imbambas que
salvaram. Só que os capins, aqueles que conseguiam espreitar no meio das
lagoas, mostravam já as cabeças das folhas lavadas e brilhavam uma cor mais
bonita para o céu ainda sem azul nem sol.” (VIEIRA, 2006, p. 12-13).
E essa dor foi tão grande, o roer na barriga a atacar outra vez, a fazer fugir as
coisas boas na frente dos olhos dele, que tudo começou a girar à roda, a
cabeça leve, o estômago a doer, na boca um cuspo amargo e azedo, toda a
barriga pedia-lhe para vomitar, deitar fora as bananas e o vinho que lhes
azedara, e, nessa hora, sentiu medo. Levantou os olhos grandes, de animal
assustado, para Delfina, e as mãos procuraram o corpo da namorada para
agarrar sua última defesa, seu último esconderijo contra esse ataque assim de
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todas as coisas desse dia, desses dias atrasados, contra esse receio de vomitar
logo ali. (VIEIRA, 2006, p. 36-37)
Com um peso grande a agarrar-lhe no coração, uma tristeza que enchia todo o
corpo e esses barulhos da vida lá fora faziam mais grande, Zeca voltou dentro
e dobrou as calças muito bem, para aguentar os vincos. Depois, nada mais
que ele podia fazer já, encostou a cabeça no ombro baixo de vavó Xíxi
Hengele e desatou a chorar um choro de grandes soluços... (VIEIRA, 2006, p.
43).
CONCLUSÃO
O sentimento de topofilia parece não existir em “Vavó Xíxi e seu neto Zeca
Santos”, dado o espaço do conflito que se estabelece nos musseques entre o poder
colonial e excludente e a tentativa de resistência do angolano oprimido. Vimos que
Vavó Xíxi, e sobretudo Zeca Santos, parecem representar essa figura do habitante de
Luanda desprovido de qualquer condição de subsistência, desvalido e entregue à própria
sorte.
No exercício constante de sobrevivência, insere-se a força da oralidade de que se
vale Luandino para se impor sobre a opressão da colônia, como forma de sobrepor a
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REFERÊNCIAS
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ROSA, Patrícia Simões de Oliveira. João Guimarães Rosa e Luandino Vieira: a palavra
em liberdade. Disponível em: <
http://www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/patricia_rosa.pdf>. Acesso em:
10/08/2009.
TUAN. Yi-fu. Paisagens do medo. Trad. de Lívia de Oliveira. São Paulo: Editora
UNESP, 2005.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda: estórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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Quando Fernando Pessoa imortalizou a máxima poética na qual nos alerta para o
fato de que “navegar é preciso”, certamente desejou refletir nela também o peso de
tantos séculos de “obsessão ultramarina”, fixada que está a navegação no imaginário
lusitano como a matéria de que essa vida foi feita, como diz outro belo poema (este que
nos serve de epígrafe), o qual evoca uma vez mais os “barcos e barcos que largavam”
da terra lusitana - ainda que rumo à descoberta de suas próprias desventuras. Se, como
*
Professor Adjunto – FCL/UNESP – Araraquara – SP. A apresentação deste trabalho contou com o apoio
financeiro da FUNDUNESP – Fundação para o Desenvolvimento da UNESP (Processo 00655/09 – DFP).
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quer Eduardo Lourenço1, Portugal precisou dar a volta ao mundo para tomar a medida
da sua maravilhosa imperfeição, não é de espantar que o retorno à casa possa se dar,
numa ficção que queira submeter esse passado ao olhar duro da necessária revisão
crítica de uma história que ainda imobiliza, de modo disfórico – estado que Antonio
Lobo Antunes leva à máxima potência em As Naus, romance de 1988 que, entre todos
os que compõem a vasta obra do autor, é dos que mais tem merecido a atenção da
crítica. Este dado parece-nos interessante e, em certa medida, até surpreendente,
principalmente porque As Naus é um romance difícil, que desafia a atenção e a
compreensão do leitor por constituir-se como uma narrativa estruturada de modo
bastante complexo, na medida em que “joga” ambiguamente com o tempo, o espaço e
os personagens que a sustentam, projetando, com isso, sentidos também ambíguos,
duais, sobre o fato histórico que põe em foco: a “saga” dos retornados a Portugal no
processo de descolonização que se seguiu ao fim da ditadura salazarista.
Esta complexidade pode ser vista, primeiramente, ao se constatar que o romance
estende ao máximo possível a ausência de limites entre fato e ficção em sua efabulação:
Lobo Antunes põe a conviver, numa Lisboa recém-saída dos anos da ditadura, homens
que retornavam das colônias africanas2, obrigados a deixar lá o muito ou o pouco que
tivessem, para serem acolhidos (?) numa cidade que não tinha como dar conta daquela
enorme massa populacional que vinha sem ter onde morar, onde trabalhar, como
sobreviver, caracterizando talvez um dos momentos mais críticos do Portugal pós-
revolucionário – este, o dado que finca o pé do romance numa recente realidade de fato
e que é figurativizado, na narrativa, em diversos momentos, como neste que
transcrevemos, em que os retornados, alojados provisoriamente num hotel cinco estrelas
de Lisboa – fato corriqueiro, então - ouvem o discurso de recepção de um dos “tenentes
de Abril”:
[...] damas e cavalheiros, informou com pompa, senhoras e senhores, que se
encontravam no Hotel Ritz por pura benevolência paternal das autoridades
revolucionárias preocupadas em zelar pelo conforto e tranqüilidade dos seus
filhos até o Estado democrático, nascido, com a ajuda da parteira mão
castrense, do ventre putrefacto do totalitarismo fascista que durante tantos
decênios nos garroteou e oprimiu, conseguir casas ou pré-fabricados ou
apartamentos nos bairros econômicos para as vítimas da ditadura felizmente
extinta, e que em nome, camaradas, da luta de classes e da construção do
socialismo dirigida pela vanguarda política do exército, passariam a ser
punidos com a forca, a decepação da mão esquerda, a extracção de vísceras
pelas costas ou o degredo em Macau, os intoleráveis abusos de assar
sardinhas nos lavatórios, engasgar os ralos com tornozelos de faisão, cozinhar
refogados e fritos nas cerâmicas dos chuveiros, vender as torneiras,
concebidas por arquitectos franceses, nos antiquários caquéticos da Rua de
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São Bento, assim como servir-se das cortinas estampadas do hotel para blusas
e adornos, tenho dito, de barregã de moiro3.
Talvez seja até desnecessário ressaltar a evidente ironia que permeia este
fragmento, principalmente ao explicitar a gritante distância que há entre o luxo e a
“artificialidade” do ambiente que esses retornados provisoriamente ocupam, e a sua
própria “penúria existencial”, já que muitos deles voltavam – assim como os
personagens que ocupam o proscênio, nesse capítulo do livro - já velhos, doentes,
gretados do sol africano, famintos, depois de terem enfrentado meses de viagem de
navio, e com a “roupa do corpo” – o que havia feito muitas das mulheres trabalharem na
“transformação” das cortinas das suítes em saias e blusas para o jantar que o hotel
oferecia (fato que motiva o aviso, entretanto inútil, do orador). Mas há ainda uma não
disfarçada ironia também no tratamento do próprio “ato revolucionário”, favorecida –
esta ironia – pela alternância não marcada entre a fala do narrador, que apenas registra
“objetivamente” a do orador, e a deste último, em discurso indireto livre, com evidentes
intromissões da oralidade que de fato caracteriza a cena narrada (já que ele está falando
aos retornados) e com a dissonância que sua fala estabelece entre o entusiasmo pela
liberdade enfim estabelecida, em moldes socialistas – como o discurso insiste em
explicitar - e a desmedida dos castigos anunciados a qualquer ato “contra o patrimônio”
do luxuoso hotel (a que se opõem, finalmente, os “pré-fabricados nos bairros
econômicos” que o tenente anuncia como destino final dos retornados).
Essas dualidades, percebidas tanto no que diz respeito à estruturação da narrativa
como no que se refere ao tratamento do tema em questão – a revolução e suas
conseqüências mais imediatas -, e tão fortemente apreendidas num pequeno fragmento
do romance, ampliam-se ao extremo quando nos damos conta de que estes retornados
“são” ninguém menos que Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Manuel de Sousa de
Sepúlveda, Diogo Cão, Francisco Xavier (o “apóstolo das Índias”) e tantos outros
nomes célebres ligados às viagens ultramarinas, “constelação” que irá completar-se com
as presenças de reis, como D. Manuel ou o onipresente D. Sebastião – sem esquecermo-
nos, evidentemente, do “homem de nome Luís a quem faltava a vista esquerda”4,
agarrado noite e dia ao caixão do pai morto, já em decomposição, que, em sua viagem
de regresso, joga bisca no navio com o Gama aposentado e com Cervantes.
Todos esses antigos heróis têm seu contorno épico, cristalizado pela história e
pela tradição literária de que Os Lusíadas são o ponto culminante, desmantelado não só
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instalando uma outra temporalidade que, em nosso entendimento, parece ser aparentada
daquilo que é definido por Elizabeth Wesseling8 como ficção ucrônica. Nela, o tempo é
constantemente anulado, já que não há um “olhar” sobre ele que possa ser caracterizado
como determinado e previsível. Parece-nos, no entanto, que não se trata exatamente de
uma espécie de “não-tempo”, ou de um tempo não definível, já que de fato, no romance
em estudo, esses personagens situam-se numa temporalidade determinada; trata-se,
pensamos, de uma sofisticada estratégia narrativa que tem por intento reafirmar as
ambigüidades referidas, que se projetam na construção do sentido do texto, já que essa
mescla incontrolável de temporalidades distintas chama a atenção não só para o fato
recente da descolonização, com todas as “trapalhadas” que ela acabou por deixar como
rastro, e que está de fato figurativizada no romance, mas também para o passado mais
distante, em que habitaram aqueles “nomes célebres” e que, afinal, deu início ao
processo de construção do Império que “agora” findava. Ou seja, trata-se de uma
revisão crítica de todo um processo histórico: o que resultou das navegações foi, enfim,
o fiasco da empresa colonial ultramarina, representado em seu momento final de
“queda”. Era a “natureza atlântica”9 de Portugal que então se via perdida, representada
num tempo “outro”, postulado por uma “costura” que ata indissoluvelmente as duas
pontas desse imaginário atlântico, amalgamando-as.
É a “visão do todo” que esse procedimento favorece, e que inclui tanto o
processo histórico como o mito da vocação imperial e ultramarina, o que nos parece
motivar a ficção de Lobo Antunes, ainda que, e paradoxalmente, ela se construa,
narrativamente, de modo fragmentário e disfórico, numa espécie de “épica às avessas”
que passa também pela ampliação daquelas dualidades já indicadas para outros
elementos constitutivos do romance, como a sua própria estrutura geral e,
principalmente, como o modo de narrar, que conjuga, como já apontamos
rapidamente, uma voz pretensamente neutra no registro dos acontecimentos e uma
focalização intradiegética, centrada nos diversos personagens, de modo alternado e
indiscriminado (ou seja, nem sempre se dá a voz ao mesmo personagem, que pode,
então, dizer ou “ser dito” sem que haja uma motivação aparente para esta seleção de
foco). Isto dá ao romance uma aparência de caoticidade que só se ameniza se
considerarmos a sua referida estrutura geral, já que cada capítulo “pertence”,
prioritariamente, a um personagem ou a um pequeno grupo de personagens que, em
meio à desventura que é, para eles, buscarem situar-se nesse outro Portugal que agora
encontram, vão desfiando memórias passadas, as quais são responsáveis pelo
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[...] eu reduzido aos meus cálculos de ilhas e aos meus diários inúteis num
reyno onde os marinheiros se coçam, desempregados, nas mesas de bilhar,
nos cinemas pornográficos e nas esplanadas dos cafés, à espera que o Infante
escreva de Sagres e os mande à cata de arquipélagos inexistentes à deriva na
desmedida do mar. Afastávamos a medo os reposteiros da sala e ele logo
Descubram-me os Açores, e a gente descobria-os, Encontrem-me a Madeira,
e a gente, que remédio, encontrava-a, Encalhem-me no Brasil e tragam-mo cá
antes que um veneziano idiota o leve para Itália, e a gente trouxe-lhe ao
Algarbe, onde ceava no meio de uma roda de physicos e bispos, esse monstro
esquisito de carnavais, papagaios e cangaço, de tal jeito que ao vê-lo, assim
estupidamente enorme, arrastado por dezassete galés e mil e quatrocentos
pares de bois, isto sem contar as mulas e os escravos mouros, se apartou dos
seus e nos perguntou baixinho, ca hera homem avisado e de bõo
entendimento, Para que quero eu tal coisa se já tenho chatices que me
sobram?, de modo que nos ordenou que o puséssemos, durante a hora da
sesta, onde o tínhamos achado, sem conservar um papagaio sequer [...]10
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criação literária, seja ela inspirada pelas Tágides de Camões ou pelas ninfas de esgoto
de Lobo Antunes – porque, afinal, o canto, apesar da história, sobrevive.
REFERÊNCIAS
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Trad. Teresa Louro Perez Lisboa: Ed. 70,
1985.
ROCHA, Helenice Maria Reis. Utopia e distopia em Lobo Antunes. In: DUARTE,
Lélia Parreira et al. (org.) Encontros Prodigiosos. Anais do XVII Encontro de
Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa. Belo Horizonte:
FALE/UFMG e PUC Minas, 2001. p. 391-395. v. 1.
NOTAS
1
Lourenço, 1999, p.152.
2
“Os chamados ‘retornados’, amontoados no aeroporto de Lisboa, em 1974, foram só o símbolo de um
vasto problema social que se desenvolveria por causa da revolução. Ex-combatentes, ex-residentes,
pessoas que perderam trabalho e fazendas, teres e haveres, rendas e esperanças no continente negro, agora
retornavam. Algumas foram ao Brasil. Muitas a Portugal. Assinalaram mudanças mentais que ainda estão
por se revelar plenamente ao historiador” (Secco, 2004, 234).
3
Lobo Antunes, 1988, p. 61-2.
4
Lobo Antunes, 1988, p. 19.
5
Lembramos que, para Linda Hutcheon, esse procedimento, característico do texto paródico, de ressituar
uma situação ou um personagem dentro de um novo texto, por ela denominado de transcontextualização,
tem como efeito promover uma ressignificação do “texto revisitado”: ele é sempre deslocado para uma
nova “moldura” textual e esse processo tem inegáveis conseqüências: “Não há integração num novo
contexto que possa evitar a alteração do sentido e, talvez, até do valor”. (Hutcheon, 1985, p. 19). Em As
naus, essa transconstextualização atinge também os registros lingüísticos que caracterizam e sustentam o
“discurso oficial”, como veremos mais adiante.
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6
Lobo Antunes, 1988, p. 31-2.
7
Marinho, 1999, p. 293.
8
Wesseling, 1991.
9
Secco, 2004, p. 210.
10
Lobo Antunes, 1988, p. 68-9.
11
Maria de Fátima Marinho (1999, p. 295) considera que “O uso voluntário e não sistemático de alguns
arcaísmos na grafia traduz esse desejo de acentuar a presença do passado no presente, a mútua interacção
de ambos [...].”
12
Lobo Antunes, 1988, p. 65-6.
13
Wesseling, 1991, p. 83
14
“Um narratário desconhecedor dos códigos a que o livro constantemente alude perderia definitivamente
o efeito irónico e paródico e não alcançaria esse saboroso desfazer de um saber habitualmente
incontestado” (Marinho, 1999, p. 294).
15
Rocha, 2001.
16
Marinho, 1999, p. 38.
17
“I choose to restrict the phenomenon of self-reflexivity in historical fiction to the explicit commentaries
upon the search for the past as carried out by historian-like characters, and to the type of multiple
focalization which reveals the subjectivity of every interpretation of the past by juxtaposing diverging
views on the same object without discriminating between ‘true’ or ‘false’ versions” (Wesseling, 1991, p.
83)
18
Rocha, 2001, p. 393.
19
Marinho, 2006, p. 19.
20
Lobo Antunes, 1988, p. 191.
21
Marinho, 1999, p. 251.
22
Lobo Antunes, 1988, p. 247.
23
Camões, 1980, p. 185.
611
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1.
Em estudo anterior, discuti a representação dos primeiros reis da Dinastia de
Avis n´Os Lusíadas, centrando-me em particular na caracterização do segundo desses
reis, o Eloquente Dom Duarte (MUNIZ, 2005). À altura, demonstrei de que modo a
concepção que tem Camões da História de Portugal, toda ela centrada numa perspectiva
cruzadística – na qual Portugal seria a nação cristã escolhida não só para expandir, mas
também para defender a fé e o reino de Deus na terra –, fez com que o curto reinado de
D. Duarte fosse descrito como “desditoso”, marcado apenas pelos trágicos
acontecimentos da frustrada tomada de Tânger, que, como se sabe, resultou na prisão e
na morte do irmão do monarca, D. Fernando, por isso cognominado de o Santo.
Esta visão negativa do governo de D. Duarte resultou de opções claras do poeta
na seleção do material historiográfico que o orientou na redação da epopéia. Camões
poderia ter privilegiado, entre outros documentos, partes da Crônica de D. João I, de
Fernão Lopes, em que se trata das boas relações que a Ínclita Geração, como
denominou o próprio Camões os filhos de D. João I, tinha com seus pais1; ou, ainda, a
Chronica d´El-Rei D. Duarte, de Rui de Pina (1440?-1522?). Nesta, o poeta encontraria
um rei muito distinto do “destitoso” que retratou em sua epopéia. Pina não deixa de
tratar das infelizes conseqüências da derrota em Tânger, com a morte do irmão do
monarca, mas também não deixa de ressaltar todo o cuidado que teve D. Duarte na
preparação material e no planejamento da estratégia bélica a ser tomada durante a
expedição. Também não se furta o cronista de apontar, ao que a historiografia até hoje
não concedeu o devido destaque, a responsabilidade do infante D. Henrique, irmão do
1
Cf. cap. CXLVIII, da 2ª parte do Crônica de D. João I, de Fernão Lopes, denominado “Que maneira
tinha em guoardar a obediemcia a seu padre estes ifamtes”. LOPES, 1990, 2 vol., p. 322-324. Ou, ainda
dentro do mesmo teor, o famoso cap. 98 do Leal conselheiro, de D. Duarte, cujo título é “Da pratica que
tiinhamos com El Rei meu Senhor e Padre cuja alma Deos haja” (DUARTE, 1998, p. 349-361;
reproduzido também, com pequenas alterações, em DUARTE, 1982, p 100-113).
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Bem sei que, para tão grande feito, esta gente é assás pouca: mas parece que
Deus ordena e ha por bem que nos assi como aqui aportamos, tomemos por
seu serviço este trabalho, para mais accrescentamento em nossas honras, e
ante elle maiores merecimentos; e por tanto havei por certo que, ainda que
menos gente tivesse, eu não estaria n’esta cidade pela maneira que me
aconselhaes, nem leixaria de proseguir o feito para que venho (PINA, 1901,
p. 97).
2
Cf., em particular, o longo cap. 21 desta obra, cujo título deixa claro seu assunto: “Conselho especial
que el rey nosso senhor deu ao ifante dom anrrique quando se partio com a armada que foy sobre Tanjer”
(DUARTE, 1982, p. 121-134).
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Camões, como dissemos, seguiu-lhe os passos, para, agora sim, infelicidade da memória
de D. Duarte.
2.
Em síntese, foi isto o que busquei demonstrar no estudo referido. Neste que
agora se apresenta, o propósito é, de certa forma, semelhante, ou seja, desejo discutir
ainda as opções históricas feitas por Camões no delineamento de outra figura central da
história portuguesa, particularmente da história da dinastia avisina: o Condestável
Nun’Álvares Pereira.
A crítica dedicada a Os Lusíadas não tem deixado de observar e chamar atenção
para o enorme destaque dado ao Condestável nas estâncias dedicadas ao reinado do
Mestre de Avis, D. João I. Como se sabe, o fundador da segunda dinastia de reis
portugueses recebe do poeta a mesma deferência concedida ao “fundador da pátria”, D.
Afonso Henriques. Em termos concretos, se o reinado deste ocupa aproximadamente 50
oitavas da epopéia, no canto III, D. João I é agraciado com quantidade similar de
oitavas, no canto IV, não faltando os detalhes da intervenção divina no anúncio da
escolha do novo monarca, feita pela “menina de Évora” (IV, 3)3, da justificativa das
ações políticas e bélicas do rei contra a rainha regente e o amante desta etc.
Da mesma forma, assim como D. Afonso Henriques teve a Batalha de Ourique
(III, 42-54) como símbolo bélico de suas conquistas e de sua legitimação como rei de
um novo reino, inclusive com a intervenção divina – lembremo-nos do “Milagre de
Ourique”, descrito no canto III, 45 –; também D. João I teve uma batalha para tomar
como símbolo de seu poder e do favorecimento dos céus a seu reinado: a Batalha de
Aljubarrota. Todavia, Camões fez com que o Mestre de Avis tivesse de dividir glórias e
honras desta conquista fundamental para a legitimação do poder real da nova dinastia
com o Condestável Nun’Álvares Pereira, tornando-o uma das figuras heróicas mais
emblemáticas de toda a epopéia.
O futuro cronista do reinado joanino, Fernão Lopes, ressalta o importante papel
do Condestável, como general da Batalha, na decisiva vitória de Aljubarrota. Este
destaque será confirmado, posteriormente, pela historiografia dedicada ao reinado
3
Utilizamos, para citações, a seguinte edição: CAMÒES, Luís de. Os Lusíadas. Leitura, prefácio e notas
de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Apresentação de Aníbal Pinto de Castro. 4 ed. Lisboa: Ministério dos
Negócios Estrangeiros/ Instituto Camões, 2000. Ao longo do texto, serão indicados apenas os cantos, as
estrofes e os versos, aqueles em números romanos, estes últimos, em arábicos.
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avisino. Todavia, o que, creio, merece também maior atenção é o como Camões,
orientado pela perspectiva de engrandecimento dos heróis nacionais, não matiza as
ações de Nun’Álvares Pereira, nem os significados nem as conseqüências delas. Não há
nenhuma relativização das atitudes, algumas vezes imprudentes, outras perigosas,
outras, ainda, desafiadoras do poder real ou do conselho do reino por parte do
Condestável, porque movidas por seu temperamento tempestivo. Embora este
temperamento independente e por vezes irascível do herói fique algumas vezes
sugerido, não há, por parte do poeta, nenhuma avaliação negativa deste. Ao contrário,
tudo parece justificado pelo fim a que se visa, e que, ao final, realmente se conquista: a
vitória na batalha.
Vejamos como isto se dá na epopéia. Situada a problemática questão da
substituição dinástica, com a rainha regente, D. Leonor, ao lado do Conde de Andeiro,
seu amante, defendo a coroa a favor de sua filha, D. Beatriz, legítima herdeira do trono,
mas casada com D. João I, rei de Castela, tendo ainda como opositores outros
candidatos à coroa, como os filhos de Inês de Castro com D. Pedro I e o próprio Mestre
de Avis, também filho bastardo deste; e descrevendo o poeta os acontecimentos
imediatamente anteriores a deflagração da revolução – o assassinado do Conde de
Andeiro, pelo Mestre de Avis, e a expulsão da rainha para terras castelhanas –, inicia-se
a descrição das forças castelhanas que o rei castelhano envia a Portugal para fazer valer
o direito de sua esposa e, consequentemente, seu e de seu herdeiro. Como prevê a
retórica de descrição de uma batalha, para encarecer a futura vitória portuguesa, Camões
descreve as forças castelhanas com uma dimensão absolutamente desproporcional em
relação às portuguesas, ínfimas perto da magnitude de Castela (IV, 8-11). Frente à
ameaça concreta, o Mestre de Avis, como cabe a rei sábio e prudente, reúne seu
conselho para, após ouvi-lo, decidir o que fazer.
Como já demonstrou José Maria Rodrigues (1979), neste episódio, a fonte básica
de Camões para construção desse episódio é a Crônica de D. João I, de Fernão Lopes.
O poeta segue-lhe de perto os acontecimentos e o discutido no conselho de Abrantes.
Todavia, um pequeno afastamento em relação ao que diz o cronista interessa-nos muito
para o que pretendemos demonstrar. Tratando das discussões ocorridas durante o
conselho, afirma Camões:
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Em desusada e má deslealdade,
Podendo o temor mais, gelado, inerte,
Que a própria e natural fidelidade.
Negam o Rei e a Pátria e, se convém,
Negarão (como Pedro) o Deus que têm (IV, 13).
a crônica [de Fernão Lopes] não autoriza tal afirmativa, pelo que respeita à
deslealdade [...], [pois] os portugueses que, por medo ou ambição, haviam
incorrido em desusada e má deslealdade, não tomaram parte no conselho
celebrado em Abrantes. Esses vinham na companhia do rei de Castela ou
mantinham voz por ele nas terras que lhes estavam sujeitas (RODRIGUES,
1979, p. 264-265. Grifo do autor).
4
Cf. cap. XXIX, da 2ª parte do Crônica de D. João I, de Fernão Lopes, denominado “Do comsselho que
elrei teve com os seus sobre o poer da batalha e das rezões que hy forão faladas”. LOPES, 1990, 2 vol., p.
65-68
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617
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a reprovação deste em relação às ações de seus parentes, Camões faz o herói dizer um
longo discurso – um dos maiores individualmente dentro d’Os Lusíadas –, no qual será
realçada a fraqueza dos súditos que serviram àquele “fraco Rei”, D. Fernando, em
oposição à ação quase que individual do Pereira – repare-se no duplo “eu só” (IV, 18, 8;
19, 1) com que o herói refere-se à resistência que impingirá aos castelhanos em nome do
novo e valoroso rei, D. João I.
Atente-se também para a estratégia do poeta em caracterizar o Condestável
como essencialmente guerreiro, com a “espada”, mas sem a “pena”: “Com palavras
mais duras que elegantes,/ A mão na espada, irado e não facundo” (IV, 14, 7. Grifos
meus). O artifício não se sustentará linguisticamente, pois Camões não se afasta da
koiné clássica na escrita de sua epopéia, mesmo quando as personagens não lhe estão à
altura em termos sociais, como o caso do marinheiro Veloso no episódio dos “Doze de
Inglaterra” (VI, 39-69). Contudo, a estratégia do poeta em afirmar o Pereira como “não
facundo” tem, a nosso ver, a função de reforçar os aspectos bélicos de sua constituição e
também a argumentação de seu discurso.
Marcado pela anáfora do advérbio “Como?” (IV, 15, 1 e 3; 16, 1), que, em
função interrogativa, exprime o pasmo e a indignação do herói frente à dita covardia dos
conselheiros, o discurso do Pereira organiza-se histórica e cronologicamente em relação
ao reino que urge defender. Inicia-se lembrando a relação íntima da gente portuguesa
com o “pátrio Marte”, passando pelos reis fundadores da identidade portuguesa
(“grande Henriques” e “Dinis e seu filho [Afonso IV]”), pelo fraco D. Fernando, móbil
da crise, e chegando a D. João I, o “Rei novo”. O breve passeio histórico serve como
lembrança dos esforços de toda ordem assumidos pelos lusitanos, representados pelos
grandes governantes do reino, que os espelhavam, na construção da liberdade pátria e na
manutenção desta. Porém, se com o débil D. Fernando a fraqueza se instalou no espírito
dos portugueses, sabe-se que “[...] é certo que co Rei se muda o povo” (IV, 17, 8),
portanto, tendo um “Rei novo”, bravo, guerreiro, forte e valoroso, é momento também
da mudança alcançar a todos e animá-los à batalha.
Tendo refrescado a memória dos ouvintes, mas contando que a lembrança não
terá a força de demovê-los da covardia, nas duas últimas estâncias de seu discurso
Nun’Álvares Pereira demarca claramente a distância entre ele e os outros conselheiros,
ainda caracterizados como medrosos, receosos. Disto resulta a centralização das futuras
ações (“Que eu só resistirei ao jugo alheio”, IV, 18, 8), que podem ser, no máximo,
estendidas a seus subordinados (“Eu só, com meus vassalos e com esta [espada]” IV,
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19, 1). Assim, o longo discurso do Condestável corrobora a configuração do herói leal,
virtuoso, destemido e forte, que tanta importância teve na conquista de Aljubarrota e na
afirmação e legitimação do poder da nova dinastia.
Na continuação do relato deste episódio central do reinado de D. João I, segue-se
a descrição da batalha propriamente dita, em quase três dezenas de estâncias (IV, 20-
47), nas quais o Pereira é referido aproximadamente dez vezes (“verdadeiro/ Açoute de
soberbos Castelhanos”, 24, 1-2; “o grande Pereira”, 30, 5; “fero Nuno”, 31, 8; “o
fortíssimo lião”, 34, 4; entre outros). Neste ponto, se confrontadas as figuras do rei e do
Condestável, este último assume nitidamente o protagonismo da ação. Na conclusão do
episódio, confirmada a vitória portuguesa sobre as hostes castelhanas, enquanto D. João
I comemora juntos aos seus súditos, com ofertas e romarias, dando graças “[...] a quem
lhe deu a vitória” (IV, 45, 4), o herói camoniano, numa atitude altiva e afirmadora de
uma determinação incansável, como cabe, afinal, ao herói, parte imediatamente para
uma nova conquista, já em terras castelhanas, agora amigas:
3.
Como se pôde ver, apesar do ligeiro afastamento da Crônica de João I, fonte
básica para o episódio da batalha de Aljubarrota, caracterizando os conselheiros e
vassalos do rei como “covardes” e “desleais”, para com isto realçar, por contraste, a
lealdade, coragem e determinação de Nun’Álvares Pereira, como acima demonstrei, até
aqui a narrativa camoniana mantém-se alinhada com o principal relato conhecido do
episódio bélico. Todavia, há, como venho sugerindo, certa condescendência do poeta
para com o Condestável, muito semelhante à que ele teve com o Infante D. Henrique, o
Navegador, no relato do episódio da frustrada conquista de Tânger. Lá como aqui,
Camões não relativiza a persona do herói, construindo-a de forma rígida, sem a
flexibilidade, por exemplo, que Fernão Lopes terá com uma figura tão humanamente
complexa como D. Pedro I ou mesmo para com o próprio Condestável.
Permitindo-me certo exercício de “possibilismo”, para o que espero
compreensão, pergunto-me se esta condescendência manter-se-ía se o resultado da
batalha não fosse tão favorável a Portugal e, consequentemente, ao Condestável. Como
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Assy quue vistas taes cousas e cuidando mui bẽ todo, meuu comsselho não
hee nẽ será salvo poerlhe [ao rei de Castela] batalha e atemdelo no campo e
tomar tão gramde honrra e boa vemtura como nos Deus traz a maõ; esta foy
sempre minha tenção e assy o dise a El Rey meu senhor que aqui esta,
quamdo lhe em Guiomarãis primeiramente veio recado quue El Rey de
Castela queria entrar no Reino. E neste acordo ficamos emtaõ e sempre lhe
tal desejo semtii, mas se (ho) vos aguora mudais de seu proposito boõ e vos
ele quer seguir vomtade, pode fazer o quue sua mercê for, mas nunqua me
emtemdo mudar do meu; e daquy em diamte fazey como quiserdes, caa euu
não cuido em vos ela mais de falar (LOPES, 1990, 2 vol., p. 68).
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Oliveira Marques, “[...] pela primeira vez na história portuguesa, um grande senhor
laico via distribuído o seu patrimônio – o mais vasto até então acumulado – por todas as
comarcas do País, em desafio ao rei por onde quer que este passasse” (MARQUES,
1987, p. 84).
Este “desafio”, como se sabe, se concretizou numa ameaça ao poder do monarca
quando o Condestável decidiu por criar vassalos próprios, ressuscitando uma estrutura
de poder feudal, e por se opor fortemente aos planos de centralização do poder
implementados por D. João I (Cf. Lopes, 1990, 2º vol, cap. CLII e CLIII). Ameaças de
partida para terras castelhanas e “anos de contenda latentes”, como nos diz Oliveira
Marques (1987, p. 539), só foram solucionadas quando se acertou o casamento da filha
única de Nun’Álvares Pereira, D. Beatriz, com o filho bastardo do monarca, D. Afonso,
o que possibilitou, pela cessão de dotes, com que um novo condado se constituísse, o de
Barcelos, o que permitiu a D. João I, com o surgimento de um novo grande senhor, mais
alinhado a seus propósitos, dividir para governar (MARQUES, 1987, p. 536-540).
4.
Para finalizar, gostaria de ressaltar que minhas considerações não visam a
questionar o valor histórico e a importância real da figura do Condestável Nun’Álvares
Pereira. Minhas preocupações são de ordem literária e não de ordem histórica. Tomo a
figura desta personagem central do início da dinastia avisina, em realidade, para, mais
uma vez, discutir o uso que Camões faz, na construção de seu relato épico, de figuras da
história portuguesa. Orientado por uma perspectiva de engrandecimento dos heróis
nacionais, e pela compreensão da história de Portugal como nação predestinada a ser
baluarte da cristandade, como podemos identificar em várias passagens d’Os Lusíadas,
nosso poeta deu ao material cronístico/histórico de que se serviu uma utilidade muito
própria, qual seja, a de contribuir para a construção de heróis nacionais irretocáveis.
Tratando-se de homens, como quaisquer outros, nem sempre lhe foi possível alcançar o
nível da perfeição, a não ser por meio de um manejo muito cuidadoso do material em
que se apoio, filtrando informações, reordenando fatos, omitindo dados, iluminando
mais que o devido alguns acontecimentos e personagens, entre outras estratégias,
sempre visando ao fim que se propusera, cantar a glória da história de seu país.
Nada há a se reprovar neste comportamento ou nesta estratégia camoniana, pois
afinal não era seu propósito escrever história, mas sim cantar épicamente a história de
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Portugal, em outras palavras, Camões não pretendia escrever história, mas sim
literatura. Portanto, todo e qualquer afastamento do material histórico consultado era
perfeitamente compreensível e, inclusive, recomendado por algumas das leis da epopéia
como gênero literário. A questão é que seu poema encontrou, no já longo e venturoso
futuro que lhe coube, horizontes de leituras que vagarosamente foram concedendo-lhe
um peso de verdade histórica, que, em realidade, ele não possui e nem provavelmente
pretendesse possuir, a não ser dentro do espaço retórico de afirmação do valor da obra.
Neste sentido é que pensei essas considerações: demonstrar o modo particular como
Camões usou o material histórico de que dispunha e relembrar os cuidados que temos
de ter ao tomar sua obra como documento literário em seu diálogo com a História.
Esperando ter demonstrado isto, aqui termino.
REFERÊNCIAS
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa
Pimpão. Apresentação de Aníbal Pinto de Castro. 4 ed. Lisboa: Ministério dos Negócios
Estrangeiros/ Instituto Camões, 2000.
DUARTE (Dom). Leal conselheiro. Edição crítica, introd. e notas de Maria Helena
Lopes de Castro. Prefácio de Afonso Botelho. Lisboa: IN/CM, 1998
DUARTE (Dom). Livro dos conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Eedição
diplom. e transcr. de João José Alves Dias. Lisboa: Estampa, 1982.
MATOS, Maria Vitalina Leal de. Tópicos para a leitura de Os Lusíadas. Lisboa:
Verbo, 2003.
MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Quem viu sempre um estado deleitoso? Ficção e
história n’Os Lusíadas. Revista Camoniana, Bauru-SP, 2005, v. 18, p. 107-123.
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1 HISTÓRIA E FICÇÃO
1
Se se consideram algumas formas de literatura, directamente sensíveis aos acontecimentos externos, é
interessante questionar como é que o autor, receptivo ao mundo que o rodeia, enfrenta a realidade e como
pôde reagir à descoberta da extensão da crueldade nazi. O filósofo alemão, Theodor W. Adorno, esboça
uma forma de resposta, quando afirma no seu ensaio Prismas: «Ecrire un poème après Auschwitz est
barbare, et ce fait affecte même la connaissance qui explique pourquoi il est devenu impossible d'écrire
aujourd'hui des poèmes» (Ed. 2003, p. 26). Esta visão de uma escrita poética, que se torna um acto
'bárbaro', joga com a discrepância aparente entre o que é próprio da literatura e o que deve ser inerente à
história.
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passado. E que, por isso, não podendo reconstituí-lo, somos tentados – sou-o eu, pelo
menos – a corrigi-lo»2.
A esta difícil interligação, promoveu há pouco o Departamento de Literaturas
Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa um encontro científico
dedicado à História Romanceada ou Ficção Documentada (26 de Maio de 2008). Das
várias intervenções, que contribuem para o enriquecimento da reflexão entre História e
Romance, menciono a de T. Amado que, justamente, vem relembrar como a
reconstituição do passado raramente está desintegrada de actos narrativos3. Como
qualificar então a univocidade e a diferenciação de uma história, que percorre grande
parte das literaturas ocidentais, baseada em factos não directamente testemunhados?
Como considerar o retorno cíclico a um mesmo texto-arquetípico e a atracção por um
mesmo evento, que se impõe como sustentáculo laudatório à edificação de uma
memória colectiva? Como feitos resultantes de acções consistentes e constatadas? Como
formas de não-ficção? Ou como formas de uma auctoritas scripturale destinada à
construção de uma memória elitista, que crê na legitimidade de uma herança inerente a
um grupo?
Se estas situações comportam tais interrogativas, parece-me que vale a pena
voltar a examinar a versão quinhentista de uma narrativa, que se integra em um motivo
recorrente, vulgarizado pela Lenda de Gaia, que editei em 2004, em este congresso que
tanto interpela a memória, como examina os trânsitos e as convergências4.
2
Em uma publicação no Jornal de Letras [6 de Março de 1990], J. Saramago evocava o seu diálogo com
a História, mencionando o trabalho de Max Gallo (1932-). Esta personalidade política francesa,
historiador e membro da Academia Francesa, considera os seus romances tanto no plano da «politique-
fiction», como nos «romans-Histoire». A relação com a História, a concepção do mundo, a representação
ficcional da história e o diálogo entre passado e presente, os temas históricos e a reelaboração do
imaginário cultural são alguns dos indícios de reflexão sugeridos por C. Reis a propósito da intervenção
de J. Saramago (Reis 1995, p. 500-503).
3
O ensaio de T. Amado concentra-se na análise de formas da ficção e da história que caracterizam vários
momentos da literatura portuguesa. O estabelecimento de limites entre Ficção e História é
particularmente típico na literatura portuguesa que, curiosamente, parece rejeitar a história e a ficção
puras. Considera T. Amado que «talvez se possa aproximar esse gosto da impureza de um tipo de
sensibilidade que descrê do realismo – quer dizer, da capacidade de observar, apreender e descrever a
realidade, e ao mesmo tempo desconfia ou se desinteressa de construções mentais que não sejam
condicionadas por marcos de espaço e de tempo suficientemente ancorados na história (Amado 2009, p.
53).
4
Em 2004, ao publicar a edição diplomática do texto, delineei um enquadramento que mencionava já
alguns dos aspectos, que me parecem poder orientar a consideração textual desta versão (Ramos 2004).
Também na apresentação em Paris, em outro trabalho sobre este texto, tentei evidenciar o perfil cultural
que teria proporcionado a reutilização da narrativa neste período (Ramos 2008).
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5
Livro Velho de Linhagens é designação que corresponde a um ms. original perdido, datável dos finais do
séc. XIII (1282-1290 ou 1286-1290), quer dizer dos fins do reinado de Afonso III, ou do princípio do de
D. Denis, publicado nos PMH por A. Herculano. O Livro Velho está incompleto. Perderam-se cerca de
dois terços da obra, mas o conteúdo do que falta, conhece-se pelo prefácio. A parte que se conservou diz
respeito a duas famílias importantes, a família de Sousa e a família da Maia. O Livro de Linhagens do
Conde D. Pedro conserva-se em numerosos manuscritos, sendo o exemplar da Torre do Tombo um dos
mais antigos, datável dos finais do séc. XV, princípios do séc. XVI. Deste Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro, que deve ter sido organizado provavelmente por volta de 1340 e 1344, entrevê-se uma
refundição entre 1360-1365 e uma outra já cerca de 1380-1383. Cf. a edição crítica e respectivas
introduções destes Livros por J. M. Piel e J. Mattoso (1980). É ainda J. Mattoso quem se ocupa da
transmissão textual dos livros de linhagens (Mattoso 1999) e L. Krus quem melhor explicita a concepção
ideológica do estabelecimento escrito destas linhas de parentesco medievais (Krus 1994). Nas referências,
adopto as siglas LV para o Livro Velho de Linhagens, LL para o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e
HR para a Hestorja dell Rej Ramiro de lleom.
6
O motivo narrativo da Mulher de Salomão é bem conhecido. O rei Salomão casa com uma mulher pagã
contra a sua vontade e contra a própria opinião dos conselheiros. Pouco depois, a esposa deixa-se raptar
por um rei pagão, fingindo-se morta, após ter ingerido uma poção mágica que a leva a um sono profundo.
Salomão, que a ama, procura recuperá-la. Ao tomar conhecimento do lugar onde se encontra a 'traidora',
dirige-se, acompanhado por uma armada de fiéis, que se escondem em uma floresta próxima para poder
intervir, se necessário. Salomão disfarça-se, entra no castelo do rival e dá-se a conhecer à mulher, que
volta a atraiçoá-lo mais uma vez com o amante. Após denúncia, Salomão é condenado à forca. Como
última benevolência, implora permissão para tocar no seu corno. O rei pagão acede ao desejo e ao som
emitido pelo instrumento, a armada de Salomão virá socorrê-lo, libertando-o e atacando o castelo do
inimigo. O soberano pagão e a mulher serão assim condenados a uma morte violenta. No plano literário,
este motivo foi estudado sobretudo por G. Paris (1877; 1880), principalmente nas suas reflexões sobre
Cligès de Chrétien de Troyes (1902; 1912). Nas versões portuguesas, o rei Ramiro II de León, que viveu
por volta do século X, apaixona-se, tendo ouvido falar na beleza e bondade de uma moura, irmã de
Alboazer Alboçadam, senhor das terras de Gaia até Santarém. Alboazer, contrariado, rapta a Rainha,
mulher do rei Ramiro. Leva-a para o palácio em Gaia. Quando rei Ramiro toma conhecimento, promete
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vingar-se. Junta de novo as suas tropas e vai tentar recuperar a mulher. Ao chegar perto do palácio
esconde as tropas e disfarçando-se de mendigo, consegue enviar um recado à Rainha para poder entrar no
palácio. A Rainha exprime o seu contentamento por estar com o mouro, denunciando a presença do
marido. Ramiro é condenado à morte, mas como último gesto solicita o seu corno para poder tocar. As
tropas vêm libertá-lo, vencendo, naturalmente, os árabes. Resgatada, a Rainha no trajecto de regresso não
deixa de chorar pelo senhor de Gaia, morto pelo rei Ramiro. Não apreciando esta afronta, manda deitar a
Rainha ao mar, com uma mó ao pescoço. Quando o rei Ramiro regressa a Léon casa com a bela moura
Artiga que é baptizada.
7
A Crónica de la Población de Ávila descreve a cidade desde a sua fundação por Raymond de
Bourgogne no final do século X até aos primeiros anos do reinado de Afonso X. Trata-se de uma obra
anónima, cuja data de composição é desconhecida, embora seja possível localizá-la entre Dezembro de
1255 e Outubro de 1256. O autor deve ser um cavaleiro urbano, que põe em evidência as ameaças
leonesas e as invasões muçulmanas. No fundo, uma obra erigida por serranos ao seu próprio prestígio
[Ed. Hernandez Segura, 1966, p. 7-14; p. 27-29]. Sobre os estudos acerca da crónica, ver agora a
compilação de M. Abeledo (2009). O Fragmento de la Crónica Aragonesa (copiado durante o período de
Joan II de Aragão, 1458-1479), corresponde a uma parcela textual sobre a história de Aragão, que se
encontra em Barcelona na Biblioteca de Catalunya [Ms. 353, fl. 28r-fl. 33r]. O texto foi publicado por R.
Foulché-Delbosc e A. Haggerty Krappe (1930). Alguns anos mais tarde, o fragmento foi ainda editado e
estudado por M. Riquer (1944; 1945). Ver agora os estudos de F. López Rajadel, em particular o de 2008.
8
Cligès, ou a Fausse morte, é um romance cortês de Chrétien de Troyes, redigido à volta de 1176. Esta
obra em versos octossílabos conta como Cligès, filho de Alexandre e de Soredamor, neto de Alexandre de
Constantinopla sobrinho de Gauvain, apaixona-se pela tia Fénice, mulher de Alis, que passará por morta,
após o boivre, que lhe permite manter a sua paixão por Cligès (Ed. W. Foerster 1884).
9
Canção de gesta da primeira metade do século XIV, correspondente ao segundo ciclo da primeira
cruzada, foi provavelmente escrita em Valenciennes. O Bâtard de Bouillon parece ter sido composto para
contar o desfecho da Cruzada, e para dignificar a história da família de Bouillon-Boulogne na Terra
Santa. Conta as numerosas vitórias de Baudoin, pai do Bâtard, a viagem a Féerie e a vida do filho
ilegítimo (Ed. R. F. Cook, 1972).
10
Breve canção de gesta anónima dos finais do século XIII, provavelmente de um autor picardo que põe
em cena a inocência perseguida. Élie de Saint-Gilles é recuperado aos sarracenos por seu pai, pelo
imperador Louis e por Aimeri de Narbonne. Não poderá casar com Rosamonde, filha do sarraceno
Macabre, porque foi seu padrinho, quando se converteu ao cristianismo. O imperador dá-lhe em
casamento sua irmã Avise, com os feudos de Orléans e Bourges (Ed. G. Raynaud 1879).
11
É sobretudo o motivo da morta viva, que é acolhido por G. Bocaccio. Recorde-se, em particular, a
novela X da 'seconda giornata', Paganino da Monaco ruba la moglie a messer Ricciardo da Chinzica, il
quale, sappiendo dove ella è, va e diventa amico di Paganino. Raddomandagliele, ed egli, dove ella
voglia, gliele concede. Ella non vuol con lui tornare, e, morto messer Ricciardo, moglie di Paganin
diviene (Ed. Branca 1992).
12
Na novela Vannino da Perugia e la Montanina, Gentile Sermini retoma o motivo. Sermini, novelista do
século XV, relata a história de Andreoccio de Perugia e a aventura de Montanina oprimida pelos ciúmes
do marido Andreoccio. A mulher tem um amante, Vannino, com quem tem relações durante a ausência do
marido. Um dia, Andreoccio regressa subitamente e Montanina é forçada a esconder o amante em um
«cassone», bebendo um somnífero para obter uma morte aparente. Montanina ditará um testamento
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estranho em que impõe que o «cassone» seja colocado no túmulo da família onde será sepultada.
Montatina fará sair o amante e assim se transfere para Milão com toda a alegria com novo nome,
Pellegrina (Ed. G. Vettori 1968).
13
Romeo and Juliet é uma tragédia escrita entre 1591 e 1595, nos primórdios da carreira literária de
William Shakespeare, sobre dois adolescentes cuja morte acaba por unir as famílias, que viviam em
conflito. Romeo and Juliet pertence à tradição de romances trágicos que remonta à antiguidade desde
Píramo e Tisbe, desenvolvido já por Ovídio nas Metamorfoses. Inspira-se em um conto de Itália de
Masuccio de Salerne, traduzido em versos como a Tragédia História de Romeu e Julieta por Arthur
Brooke em 1562, e retomado em prosa com o Palácio do Prazer por William Painter em 1582.
14
Mencione-se, a título de exemplo, Ramiro I das Astúrias (c. 790-850 e rei da Galiza de 842 a 850);
Ramiro II de León (rei de Leão de 930 a 951 e rei portucalense de 925 a 931); Ramiro III de León (961-
984, rei de Leão de 966-985); Ramiro, filho de Fruela II, rei das Astúrias entre 910 a 925 e rei de León de
924 a 925; Ramiro I de Aragão (1035-1063); Ramiro II de Aragão o Monge (1084-1157 rei de Aragão
entre 1134-1137). Não será surpreendente por esta razão que alguns dos episódios ligados a um ou outro
rei se tenham ‘misturado’ na transmissão textual.
15
Os reis das Astúrias teriam sido os primeiros a lutar contra os mouros. Demarcando-se o rei Palaio, que
venceu numerosas batalhas contando com a ajuda dos cristãos, refugiados nas montanhas. O rei Afonso, o
Católico, também ‘guerreou com mouros e fez muitas batalhas com eles e vence-os. Dos reis das Astúrias
sobressai ainda o rei Ramiro, ‘este houve muitas batalhas com Mouros e conquereo grandes terras’ (LL, II
/ 1, p. 104, 105, 106, 109).
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Uma trasladação textual, relativa aos reis das origens, que no século XVI, não
pôde estar afastada de uma preocupação referente a uma fabulosa génese do reino. De
um ponto de vista histórico, tem sido essencialmente J. Mattoso quem, em variados
estudos e em diferentes tipos de investigação, analisou a relevância desta história16. A
ilação primordial das suas reflexões tem demonstrado o forte vínculo entre a biografia
do rei Ramiro e a atmosfera senhorial em que o relato terá sido redigido.
O antepassado rei Ramiro não seria, afinal, mais do que o iniciador da linhagem
– herói fundador – da importantíssima família da Maia no norte de Portugal 17. A
glorificação épica não mais faria do que enaltecer a origem de uma família, a ilustre
Casa da Maia com o excepcional predecessor Ramiro II de Leão (900-951)18.
É a esta linhagem que, por intermédio do seu representante por descendência
feminina, Martim Gil de Riba de Vizela (1235? -1295), filho de Gil Martins de Riba de
Vizela (c. 1210) e de Maria Eanes da Maia (c. 1220), é atribuída a execução do Livro
Velho de Linhagens, sem que se possa realmente avaliar em que consistiu a intervenção,
ou a iniciativa do impulsionador do projecto. J. Mattoso considera plausível que tenha
sido redigido em português por um monge ou clérigo do Mosteiro de Santo Tirso para
exaltar os antecessores do conde Martim Gil de Riba de Vizela (família da Maia)
durante os anos 80 do séc. XIII (entre 1286 e 1290)19. No ambiente medieval, não será
por conseguinte surpreendente que este Livro viesse elogiar as qualidades da família que
procurava celebrar, atribuindo-lhe uma ascendência extraordinária20.
16
Além do estudo dedicado às Narrativas dos livros de linhagens (1983), inserido agora nas Obras
completas, publicadas pelo Círculo dos Editores (2001), pode também consultar-se o volume referente a
D. Afonso Henriques na mesma editora (2006).
17
A importância no séc. XIII da família da Maia (LV 2C 9; LL 16C 4-7 e LD6 E 6) é amplamente
estudada por J. Mattoso, «A família da Maia no século XIII» (1979). O significado desta linhagem nos
primórdios de Portugal é documentado com o quadro genealógico da família da Maia incluído no
Dicionário de História de Portugal (Mattoso 1993). Sobre Martim Gil de Riba de Vizela e a sua
intervenção na perenidade da memória da família da Maia, ver, além dos estudos mencionados, as
entradas «Livros de Linhagens» e «Cortes Senhoriais» no Dicionário de Literatura Medieval Galega e
Portuguesa (Lanciani-Tavani [Coord.] 1993).
18
A heroicidade e os factos históricos do reinado deste rei são estudados por J. Rodríguez (1972). O
período português de Ramiro foi analisado por E. Sáez (1945) no seu ensaio «Ramiro II, rey de ‘Portugal’
de 926 a 930», Com o estudo de R. Pinto de Azevedo (1973), é examinada com documentos do séc. XI a
campanha do poderoso Almançor à Galiza (assédio ao castelo da Maia e as devastações do território de
Entre Douro e Ave).
19
Além da introdução à edição do LV (Piel-Mattoso, 1980, p. 12-14), J. Mattoso defende esta tese no seu
artigo «O mosteiro de Santo Tirso e a Cultura Medieval Portuguesa» (1977/1982). Admite que possa ter
sido um clérigo letrado da sua corte, talvez Estêvão Anes da Gaia, ou um monge do Mosteiro de Santo
Tirso, mosteiro do padroado e da protecção da família da Maia. Ver também o ensaio sobre os de Riba de
Vizela de A. Rei (2001).
20
Os tipos de sucessão na nobreza medieval portuguesa (estrutura de parentesco vertical e o sistema que
contemplava todos os herdeiros, mesmo secundogénitos ou mulheres) são estudados por B. Vasconcelos e
Sousa (2007).
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A compreensão destes conflitos e a necessidade peremptória de um documento que fixasse e
delimitasse espaços é analisada com base justamente na concepção linhagística que espelha a extensão
social e a dimensão desta nobreza (Krus, 1994, p. 58, n. 6, 59-70, 92, 117, 170, 182, 189, 262, 289, 325).
O projecto procurava enumerar os feitos das cinco primeiras famílias que ‘andaram a la guerra a filhar o
reyno de Portugal' (Souza, Bragança, Maia, Baião e Gasconha ou Ribadouro), consideradas responsáveis
pela independência do reino de Portugal, colocando-se deste modo acima do próprio rei.
22
São elas as responsáveis pelo irromper da historiografia medieval (fonte quase exclusiva das narrativas
breves) e são elas também que permitiram o desenvolvimento dos movimentos literários deste período
(pense-se na poesia trovadoresca ou nas traduções da «matéria da Bretanha» (Oliveira, 1993; Castro,
1993).
631
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Pode citar-se a referência a Mieres, próximo de Oviedo, no reino cristão das Astúrias, que é o cenário
do rapto da rainha asturiana (mulher do rei Ramiro II) por um soberano muçulmano; o Douro cuberto de
uma parte a da outra d’arvores; a terra da Maia; Santo Tirso; Afurada (foz do Douro) e Âncora (foz do
Minho) como cenário de destruição e punição com a morte da rainha; Pena de Cid em Monte Córdova
próximo de Santo Tirso; Lafões, lugar para onde se tinha deslocado o rei mouro quando Ramiro II vem
libertar a esposa cativa em Gaia, etc. L. Krus no capítulo «Do Minho senhorial aos campos do Alentejo»
esclarece esta insistência na escolha toponímica como uma forma concreta que procura justificar um
direito à propriedade (Krus 1994, p. 313-334).
24
Algumas monografias têm tido, independentemente, a preocupação explicativa da história de Gaia
(Vila Nova de Gaia), através da preservação dos espaços de memória pela toponímia (Rua do Rei Ramiro,
Fonte do Rei Ramiro, Escadas do Castelo, etc.). Destes ensaios, poderia referir o extenso trabalho de A.
de Matos com a inserção dos poemas de João Vaz e de D. Bernarda Ferreira Lacerda (1933); C. Valle
sobre o Castelo de Gaia e a lenda do Rei Ramiro e M. Magalhães também sobre a mesma lenda (1999).
As eventuais relações com o romanceiro são, por último, examinadas por J. Paredes no seu ensaio «La
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leyenda de Gaia» (1995, p. 113-123). Embora dê especial importância à tradição oral (questão mais
controversa em este tipo de motivo com fortíssima tradição literária), pode também consultar-se o ensaio
«Que estranha forma de contar» de H. M. Milhanas Machado (2006).
25
Manuel Abeledo, a quem muito agradeço, sugere-me uma plausível identificação para Alvacova com
um antigo topónimo em Ávila, onde terá decorrido o castigo. Regista-se, de facto, uma isolada ocorrência
"Alba Cova" no Libro de la montería de Alfonso XI, com registo separado, (segundo a edição de
Gutierrez de la Vega, 1887, II, p. 126). Nas Anotaciones al Libro de la monteria del rey Alfonso XI,
Valverde assinala que se trata da Dehesa de Albacoa, a 4km a NNW de Cebreros, na província de Ávila:
«Las Ferrerías de Zebreros, que son del otro cabo del río, es buen monte de puerco en ivierno. Et es la
vocería desde la Nava del Tesorero á Valdemelendo ayuso fasta el Alba Cova. Et es el armada só la
Fuente de Valsordo» (Valverde 2009, p. 595-596).
26
No ms., nota-se espaço com raspagem, ilegível no microfilme e não conjecturado em qualquer uma das
edições.
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vin[ieron] con mucha gent sobre hun lugar clamado Argent…Enesta forma fue tomado
Argent e a pocos dias Visiedo27. E, «…con grant goyo vinose ad Alfanbra: antes que
plegas al lugar, supo de cómo los cristianos de Buenya auian tomado ad Argent» (Ed.
Riquer, 1945, p. 247)28.
Contudo, no âmbito português, no LV, após a libertação da rainha, o ambiente é
descrito pelo júbilo da vitória e pelo resgaste: «… E dom Ramiro deitou-se a dormir no
regaço da rainha, e a rainha filhou-se a chorar e as lagrimas dela caeram a dom Ramiro
pelo rostro, e El espertou-se e disse-lhe porque chorava. E ela disse-lhe: "Choro por o
mui bom mouro que mataste". E então o filho que andava i na nave ouvio aquela
palavra que sa madre dissera, e disse ao padre: "Padre, não levemos connosco mais o
demo". Entom o rei Ramiro filhou uma mó que trazia na nave e ligou-lha na garganta e
anchorou-a no mar. E des aquela hora chamaram i Foz d'Ancora» (Ed. Mattoso 1983, p.
59-60). Diversamente das outras duas versões peninsulares (morte pelo fogo), aqui será
a morte por afogamento. A água – enquanto elemento primordial pode dizer-se –
comparece em oposição ao fogo que, por sua vez, manifestaria a majestade e a força
divina purificadora29. A foz focaliza o lugar do castigo, mas a morte foi facilitada com
uma mó (pedra grande dura, circular, com que se tritura o grão no moinho), que não
pode estar dissociada de um sinal evocativo ao adultério.
A figura da mó – moa –, atada na garganta não é alternativa rara à execução.
Recorde-se a ocorrência por exemplo, nos Miragres de Santiago: «Et mãdoulle oder
27
Visiedo, a poucos quilómetros de Teruel, na comunidade de Aragão.
28
Em Argent, localidade próxima também de Teruel, encontra-se a «cueva del Monje Ramiro». Ramiro II
de Aragão, apelidado de Monge (1084-1157), rei de Aragão entre 1134 e 1137. Desde muito jovem
dedicou a sua vida à Igreja, primeiro como monge no mosteiro francês de São Ponce de Tomeras, depois
como abade de São Pedro o Velho Huesca e, por último, como bispo de Roda-Barbastro. Seu irmão, o rei
Afonso I, fez herdeiras dos seus reinos as Ordens Militares, mas os nobres aragoneses, reunidos em Jaca
reconheceram Ramiro como rei. Por sua vez, os navarros elegeram Garcia o Restaurador. Nesse
momento, Ramiro era bispo de Roda-Barbastro, mas teve de ocupar o trono. Apesar de não ter
experiência política, obteve sucesso várias revoltas durante o seu reinado entre 1134 a 1137, sendo
sucedido por Petronila de Aragão como rainha, que reinou entre 1137 e 1162, ano em que abdica a favor
do seu filho Afonso II, primeiro rei da Coroa de Aragão. Casou no dia 13 de Novembro de 1135 na
catedral de Jaca com Inês de Poitou, uma nobre viúva francesa. Deste casamento nasceu a herdeira,
Petronila a 11 de Agosto de 1136. No final desse mesmo ano, o rei e a sua esposa separaram-se. Inês
retirou-se então ao mosteiro de Santa Maria de Fontevrault, onde morreu no ano de 1159. Prometeu a sua
filha Petronila a Ramón Berenguer IV, conde de Barcelona.
29
O fogo é símbolo da transcendência e da purificação. Deus apareceu a Moisés na moita que ardia, mas
não se queimava e manifestou-se como fogo no Sinai. O fogo purifica e limpa o impuro. Por isso, a ira
divina é representada pelo fogo que pune os maus. Jesus compara a punição definitiva dos maus com o
fogo que não se apaga, mas também a virtude renovadora do Espírito Santo é um baptismo através do
fogo.
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hũa m[oa] na gargãta et deitalo no rrio do Tibre»30. Mas poderíamos recordar,
sobretudo, a metáfora sexual da mó, presente na tradição latina e na poesia provençal.
Em âmbito galego-português, a difícil cantiga de Johan Servando poderia sugerir
também esta hipótese. Na terceira estrofe da cantiga Don Domingo Caorinha [V 1030]
nos vv. 26-31, ocorre Don Domingo, non podedes [....................] que con a pissa
tragedes [....................] mais como moa fodedes [....................] e sobides e decedes,
[que] brand' i [vossos] colhões (Lapa 227)31.
Poder-se-á assim considerar que, além da imagem da mó, atada «na garganta»,
que também pode recordar a transgressão à regra de fidelidade conjugal, está em causa
outra topografia. Não nos encontramos na serra em um espaço agreste como na Serra de
Palomera, que é mencionada no fragmento aragonês, nem no centro da Península como
na serra de Ávila. Primam as fronteiras fluviais que, como se sabe, delimitam o
adiantamento da Reconquista. Embora na versão de Ávila não se encontre uma menção
explícita a um rio (por exemplo, o rio Adaja, afluente na margem esquerda do rio
Douro, ou o rio Arevalillo32), a fronteira na versão aragonesa, é sublinhada pelo rio
«clamado Aragon»33 (Ed. Riquer 1945, p. 243), assim como nos relatos portugueses, a
fronteira é marcada pelo rio Douro: «ca entonce Douro era cuberto de uma parte e da
outra d'arvores» (LV, Mattoso 1983, p. 51); «…que ora chamam Sam Johane da Foz.
30
No ms., comparece a forma <mao>, corrigida por J. L. Pensado, para moa, apoiado no original latino
mole (Ed. Pensado, 1958, p. 56-57, n. 8).
31
As «fadigas do amor», o moinho, a mó são, como sabemos, elementos fortemente conotados com o
acto sexual. A metáfora sexual está documentada em Marcabruno com Moliners ditz al moli, «Qi ben lia
ben desli» na canção Dirai vos e mon latin (Ed. Gaunt, Harvey e Paterson, 2000 [XVII]. Já os textos
latinos o mostravam como em Ausónio com o moleiro e aquele que tem relações sexuais: Molitor —
Fututor: Scmivir uxo rcm duxisti, Zoï'le, moecham. / О qaantus Get quxstus utrimque domi! / Quum dabit
uxori molitor tuus, et tibi adulter, / Quantum deprensi damna pudoris emunt [Ausónio Epigr. LXXXVIII]
(Glossarium eroticum linguae Latinae, sive Theogoniae, legum et morum de Pierre Pierrugues, Parisiis,
apud Aug. -Fr. et Pr. Dondey-Dupre, bibliopolas, 1826. 1826: 325). Non omnem molitor, quae fluit
undam videt [O moleiro não vê toda água que passa por seu moinho], como refere Robert Burton (1577-
1640) na The Anatomy of Melancholy [1621], Teddington, Middlesex, Echo Library, 2007, vol. II, p. 236.
No entanto, E. Gonçalves, a quem agradeço a opinião, sugere-me que a interpretação em Joan Lobeira
não deve ser aquela que mais facilmente nos aproximaria de <moa>. Propõe-nos a atenta estudiosa a
seguinte reflexão: a lição ms. de V (testemunho único) é: mays p[er] cõmo afodedes, que poderia ser lida
«mais per como a fodedes», remetendo para «a Marinha» (ms.: amar mha) entendendo-o ‘mas pelo modo
como a fodedes’. O contexto e a lição do ms. indicam que o “a” representa o pronome complemento e se
refere a Marinha. No entanto, em este tipo de cantiga, a coincidência fonética neste contexto não deixa de
nos colocar em uma plausível e interessantíssimo ambiguidade.
32
O principal elemento fluvial é o rio Adaja, afluente do Douro, que articula a drenagem deste território,
por um lado pelo Vale de Amblés e por outro pelo norte da Serra de Ávila, alimentando o sector oriental
da vertente norte através dos seus afluentes, o Arevavillo e o Berlanas. Além do rio Adaja, o elemento
fluvial mais importante é o rio Almar, termo municipal de San Juan do Olmo. Podemos ainda mencionar
na hidrografia desta região, o Zamprón, o Trabancos e o Zapardiel.
33
O rio Aragão é um rio do norte de Espanha, um dos principais afluentes do Ebro.
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Aquele logar, de ũa parte e da outra, era a ribeira cuberta d'arvores…» (LL, Mattoso
1983, p. 52).
Nas versões portuguesas, o quadro geográfico altera-se. O castigo variará da
fogueira ao mar, mas a exemplaridade da punição será igualmente perceptível. O
afogamento poderá representar uma imagem de regressão ao líquido inerente à
concepção, ao líquido amniótico e à perda dos limites estruturados pela consciência.
Considerado como um dos símbolos de operação alquímica que revela a solutio
derradeira, que costuma ser retratada pela imagem da morte por submersão.
A vítima carece de regeneração e o matar por afundamento denota que a
transgressão e o pecado precisam de ser dissolvidos pela água34. A história da mulher do
rei Ramiro constituiu um leitmotif, que utiliza os mesmos recursos para enaltecer em um
primeiro momento a ascendência da família da Maia (LV) com um castigo que deve
servir de lição e, em outro momento mais tardio, o mesmo episódio, já na Hestorja dell
Rej Ramiro de lleom, no século XVI, vai exaltar a exemplaridade de outra família, a
família Pereira (HR)35.
4 A PROFICIÊNCIA DA ONOMÁSTICA
34
Opinião expressa mais de uma vez por M. Eliade (1998). Recorde-se também o Livro de Génesis [38,
24]: «E aconteceu que, quase três meses depois, avisaram Judá, dizendo: Tamar, tua nora, adulterou, e eis
que está grávida do adultério. Então disse Judá: tirai-a fora para que seja queimada». Mas também podem
recordar-se mitos celtas como o do poeta Aed Mac Ainin (poeta apanhado em flagrante adultério com a
rainha do Ulster, e que o rei Conchobar condena em vão ao afogamento). Adapto da edição La Bible.
Ancien Testament da Bibl. La Péiade, 1956, p. 131. Cf. também o ensaio de F. Lourenço Olivieri, «Os
Celtas e os Cultos das Águas. Crenças e Rituais», disponível em
www.brathair.com/revista/numeros/06.02.2006/culto_agua.pdf.
35
A família Pereira está, como se sabe, ligada à vitória na Batalha do Salado. É na narrativa desta batalha
onde fica mais clara a intervenção de um refundidor de LL, tendo sido, possivelmente, redigida por
alguém com maior sensibilidade literária, à volta de 1380 e 1383, ampliando as narrativas referentes a
esta família, ao incluir ainda a biografia do prior Álvaro Gonçalves Pereira. O refundidor procurava,
através da narrativa da Batalha do Salado, exaltar a memória do prior do Hospital, Álvaro Gonçalves
Pereira, que desempenha na narrativa um papel preponderante, amplificando através de narrativas
heróicas a ascendência da linhagem Pereira (Saraiva 1971).
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narrativa, mas também para traduzir intencionalmente um acto objectivo onde o nome
de lugar adquire maior pertinência. Os lugares são reais. O acentuar a geografia
circunscreve limites, obtidos pela Reconquista e ao mesmo tempo define espaços
identitários. A cadeia minuciosa de mais de um elemento toponímico traduzirá a
necessidade de impor pela nomeação a pertinência de um nome de lugar associado ao
nome de uma família. A memória do espaço, portanto. Em um tempo, que procura
remontar aos direitos da Reconquista, o nome do lugar e o nome da família, mais não
fazem do que estabelecer uma relação entre o senhor e a posse da terra. E quem diz
posse, está a dizer poder. A percepção do espaço claramente nomeado e a autoridade da
propriedade36.
O texto, que é reproduzido neste códice quinhentista, caracteriza-se, em primeiro
lugar, por uma manifesta redução lexical no que diz respeito à toponímia e ao nome dos
intervenientes (rei mouro, nome da rainha, nome da donzela, etc.), se tivermos presente
as versões dos Livros de Linhagens, que são muito mais ricas na nomeação tanto
toponímica como antroponímica. Em HR, as denominações são mais escassas: Rey
Dom Ramiro, Leom, Valença do Minho, molher, Gaia, Porto, Douro, Rainha sua
molher, moça, Romeiro, filha del Rey mouro, Dona Soutinha, Mosteiro de S. Tirso,
Ponte Dona Coutinha, Ponte de Aragoncinha, Rio Ave, com a nomeação da Quinta de
Pereira37.
36
As figuras tutelares são associadas a um conjunto de espaços que procuram activar a memória da
Reconquista. O lendário conquistador Ramiro, que se apossará do castelo de Gaia, vence o chefe islâmico
que possuía «toda a terra des Gaia ataa Santarém» [LL 21 A 17]. A escolha dos topónimos não é casual.
Assim, se procurava reivindicar para os senhores da Maia e, através deles, para toda a nobreza do Entre
Douro e Minho, a procedência da reconquista fidalga do Entre Douro e Tejo sobre a reconquista régia do
território. O LL considerava a Estremadura portuguesa como um território formado a partir da expansão
senhorial nortenha nele assinalando uma paisagem semelhante à que evocara para o norte do Douro (Krus
1994, p. 326-327).
37
No LV, nota-se logo de início a menção aos filhos d'algo d'Amaia, e além das referências ao rei dom
Ramiro, ao rei dom Ordonho e ao rei Abencadão, registam-se Salvaterra, Mier, Astúrias, Gaia, Sanhoane
d'Afurada, Douro, Alfão, Ortiga, foz d'Ancora, dona Aldara, Alboazar, vila de Leom, Portugal, Santiago,
Mouquim, Cornelham, Monte Cordova, Pena de Cide, São Romão. São Martinho de Mouros, Aveoso,
Gondomar Todea, Marnel de Riba de Vouga (rio Marnel, rio Vouga). No LL, as designações são ainda
mais significativas: rei em Leom, rei Ramiro, rei dom Afonso, o Católico, rei Rodrigo, Alboazar
Alboçadam, Gaia, Santarem, rainha dona Aldora, rei de Marrocos, Aaman, Minhor, Leom, Artiga, ifante
dom Hordonho, Sam Johane de Furado, que ora chamam Sam Johane da Foz, Alafoões, Perona, natural
de França, dom Hordonho, Foz d'Ancora, Castela, Leom, rainha Alda, moesteiro de Sam Juliam, Aboazer
Ramirez, ... chamarom por sobrenome Cide Aboazar, Sam Romão, Crasto d'Aveoso, Crasto de Gondomar
e de Todea, Antre Doiro e Minho e d'Aalem dos Montes, Bragança, Doiro, Lamego, Sam Martinho de
Mouros, Coimbra, Artiga Ramirez. Notem-se nas designações, que se conservaram até hoje como
Afurada, Monte Córdova, Mouquim, Gondomar, entre outros. A localização de todas estas referências
pode ser observada no mapa elaborado por L. Krus na distribuição toponímica dos livros de linhagens, o
que demonstra a minúcia voluntária na especificação dos lugares reavidos (Krus 1994, p. 48-55).
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38
Vila Praia de Âncora (Âncora vila e Âncora praia) no vale do rio Âncora pertence ao concelho de
Caminha no Minho e comparece já na documentação do séc. X. Nomeada inicialmente como Gontinhães
/ Santa Maria de Gontinhães / Santa Marinha de Gontinhães, nome de provável proveniência germânica,
só em 1924 foi adoptada a designação em Vila Praia de Âncora em substituição do procedente
Gontinhães (Guia de Portugal, Entre Douro e Minho, II - Minho, 1996, p. 1042-1047; A. Costa,
Diccionario Chorographico, 1938, vol. VI, p. 1288-1289). A localização em HR reporta-se à numeração
das linhas na edição diplomática (Ramos 2004).
39
No LV, Artiga é o nome da donzela que Ramiro encontra na fonte. No LL, Artiga é o nome da moura,
irmã de Alboazar Albocadon, raptada por Ramiro: «…bautizou-a e pos-lhe nome Artiga, que queria tanto
dizer naquel tempo, como castigada e ensinada e comprida de todolos bes» (Mattoso 1983, p. 51, 53). De
facto, se contamos com uma base latina ORTUM, estamos perante o sentido de 'pessoa afortunada'.
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chamarom Cide Aboazar, porque naquel tempo fez muitas lides com Mouros…»
(Mattoso 1983, p. 61). Em HR, a descendência é também posta em evidência com a
conversão da moura – tornou-a cristã –, sobressaindo a elucidação quanto aos novos
protagonistas em relação aos textos precedentes: «(...) e dormío com ella / e fez hum
filho que foi comde //da maia (…)». Mas aqui a filiação particulariza-se, anunciando
que, depois, « (...) cassou com hũa domzella / que auia nome Dona ssoutinha e (...) sua
madre fez a põte / que chamom de dona coutinha e depoís / mudarõ o nome a esta
pomte e poserõ / lhe nome a pomte d araguomçinha no / Rio d ave» (Ramos 2004, p.
834-835)40. Assim vão surgir nesta versão elementos toponímicos, completamente
desconhecidos das versões anteriores. Em primeiro lugar, araguomçinha – forma que é
ignorada em qualquer outro texto –, deve ser resultante de Aragonsa, que é nome que
comparece justamente em outro fragmento de uma crónica aragonesa, copiado na
segunda metade, ou já no último quartel do séc. XIV [ms. 245 da Biblioteca de
Catalunya]41.
No entanto, este tipo de recurso a uma pertinência toponímica não é exclusivo
das versões portuguesas, nem das mais antigas, transmitidas pelo Livro Velho e pelo
Livro do Conde D. Pedro, nem por esta localizada no século XVI. Se olharmos para a
circulação textual ibérica desta narrativa, vamos notar que o episódio, que comparece na
versão aragonesa, datável do século XV (copiado entre 1458 – 1500), Leyenda de la
enterrada viva (Ms. 353 Biblioteca Central de la Deputación de Barcelona), não é avaro
na nomeação42. De acordo com a opinião de Martín de Riquer (1945), a concepção do
compilador era provavelmente a de formar uma miscelânea sobre a história e os foros de
Teruel (Visiedo, Argent, Albarracín, Alfambra, Bueña)43. Mencionar Teruel, deve levar-
nos à conhecida lenda dos Amantes de Teruel. A lenda dos Amantes de Teruel
40
A ponte de araguomçinha corresponde à Ponte de Lagoncinha na margem esquerda do rio Ave. Foi
também referida com o nome primitivo de Ponte Velha e «assim é designada na demarcação do couto
concedido pelo Conde D. Henrique, em 1097, a Soeiro Mendes da Maia». A denominação de Lagoncinha
«é tida como lembrança de uma tal Dona Gontinha, que teria contribuído com grandes somas para a sua
conservação ou reconstrução» (Guia de Portugal, Entre Douro e Minho I. Douro Litoral, 1994, p. 643-
644). Datável talvez do séc. XI, parece estar o seu nome associado a Gontina / Gontinha, que se encontra
em várias monografias sobre a região. No entanto, Soutinha ou Soutinho são também topónimos que se
registam no norte de Portugal.
41
Para a documentação relativa a esta ocorrência, consulte-se a este propósito o estudo de G. Avenoza-M.
Raíndo sobre este fragmento (1993, p. 37-84).
42
Não se trata efectivamente de uma «enterrada viva», pois o castigo será efectuado também pelo fogo,
como na versão da Crónica de la Poplación de Ávila.
43
Teruel, cidade de Aragão, na zona centro-oriental de Espanha, é capital de província e capital do
mudéjar. Sobre a importância de Teruel e da história dos Amantes, ver os estudos de López Rajadel
(1997; 2008).
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procederia de uma antiga tradição – amor contrariado –, que remonta também ao tempo
da Reconquista em Albarracín44.
A fragmentária crónica aragonesa do tempo de Juan II de Aragão (1458-1479)
conserva uma interessante versão do motivo Mulher de Salomão, precedida de uma
breve consideração sobre as qualidades magnânimas do cavaleiro45. Os protagonistas, o
conde D. Rodrigo de Alfambra, sua mulher e o rei mouro de Camañas, preenchem o
relato com o mesmo tipo de focalização (rapto, adultério, castigo, etc.)46.
Encontrar este mesmo episódio (presença toponímica, a imagem da mulher, a
retomada cristã de Camañas, etc.), em um fragmento aragonês, permite-nos adicionar
mais um indício que pode sustentar a circulação textual entre Aragão e o ocidente.
Podíamos evocar a importante transmissão da cronística primitiva, marcada pelas
redacções navarro-aragonesas (Crónicas navarras, Crónica Najerense, Liber Regum,
Livro de las Generaciones), como também poderíamos pensar em eventuais influências
devidas ao séquito que acompanhou a rainha Isabel (1271-1336), mulher de D. Denis,
filha de Pedro III de Aragão (1239-1285)47.
Vencidos os inimigos, o conde e seus vassalos procederão ao castigo supremo
(«Al rey e ala reyna lanzaron los enla foguera questa en Palomera en hun cerro clamado
44
Albarracín é uma povoação espanhola da província de Teruel na comunidade de Aragão. Nos primeiros
anos do século XIII, vivem na cidade Juan Diego de Marcilla e Isabel de Segura que se amam
profundamente. O apaixonado partirá em guerra e ao regressar a Teruel, após cinco anos, reencontra
Isabel que é esposa de um irmão do senhor de Albarracín. Juan Diego aproxima-se, pede-lhe um beijo que
lhe é negado. Juan Diego morre de dor. No dia seguinte, durante o funeral do jovem em San Pedro,
Isabel, aproxima-se do féretro, quer dar-lhe um beijo, mas morre repentinamente. Em 1555, descobriram-
se as múmias enterradas na capela de San Cosme e San Damián. Junto a elas, o notário Yagüe de Salas
descrevia o sucedido. Juan de Ávalos esculpirá as estátuas dos amantes cujas mãos se juntam na
simbologia do amor eterno. O Mausoleo de los Amantes, as esculturas de Ávalos, o mural realizado por
Jorge Gay Un amor nuevo, assim como o quadro de Muñoz Degraín no Prado e diversos textos musicais,
literários, cinematográficos foram suscitados por estes famosos amantes. Desde 1997, celebra-se em
Teruel, como memória da tradição, a festividade das bodas de Isabel de Segura.
45
Juan II de Trastámara, apelidado o Grande (Medina del Campo, Castilla, 29 de Junho de 1397-
Barcelona, 20 de Janeiro de 1479). Duque de Peñafiel, rei de Navarra (1425-1479) e rei de Aragão, de
Sardenha e de Sicilia (1458-1479), filho de Fernando I de Antequera e de Leonor Urraca de Castilla,
Condessa de Alburquerque.
46
Alfambra é uma localidade da província de Teruel, situada em Teruel em Aragão e Camañas é um
município de Espanha também na província de Teruel em Aragão. O episódio decorre nesta região com o
primeiro senhor de Alfambra, o conde D. Rodrigo.
47
A Crónica najerense (Chronica Naierensis) assim designada por ter sido composta no mosteiro
beneditino de Santa María la Real de Nájera, é uma crónica do último quartel do século XII, escrita em
latim, que narra a história universal, a Hispania visigoda e a história contemporânea dos reinos de Leão e
Castela. O Liber Regum, redigido entre 1194 e 1209 em Navarra em aragonês é uma crónica medieval
anónima, que costuma ser considerada como a mais antiga história de Espanha escrita em romance. O
texto contempla a história da Hispania desde a Génese até aos reinos fundados nos finais do século XII;
Libro de las generaciones, derivado do Liber Regum é transmitido por um manuscrito quatrocentista
copiada por Martin Larraya. A confecção da linhagística portuguesa serve-se destas fontes e será
ampliado no Libro de las Generaciones de Martín de Larraya (Cintra [1951] 1983, p. XCVIII-CX).
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[…]». Mas não basta a condenação à morte pela fogueira. O cronista deter-se-á, mais
uma vez, em uma óptica própria à Reconquista, na minúcia da designação dos espaços
recuperados pelo conde, como já vimos com a serra de Palomera, Bueña, Marcilla,
Argent, Visiedo, Alfambra, etc. (Ed. Riquer 1945, p. 247).
Não é, portanto, só a punição exemplar que conta. A distinção do feito será
assinalada pelo enunciado de um espaço, que está na posse dos cristãos, em uma clara
demonstração de reapropriação de terras, de elementos ordenadores nos sistemas de
toponímia e antroponímia sob o peso do valor de uma fixação escrita ao serviço do
poder. No fundo, em qualquer uma das versões, o que se procurava não era mais do que
a concretização do velho «tempo dos Godos», que dava origem a uma sociedade
senhorial, com terras conquistadas, com toponímia apropriada e legitimada por
episódios exemplares em concorrência com o «tempo dos Mouros», vigorosos, mas
perdedores (Krus 1986-1987).
48
O estudo das possíveis fontes do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro foi basicamente renovado
pelas análises de L. F. Lindley Cintra, D. Catalán Menéndez Pidal e J. Mattoso. Destas fontes é, neste
contexto, significativo assinalar a proveniência navarra do Liber Regum, genealogia de várias casas reais
desde o início do mundo, escrita por um monge navarro de Fitero à volta de 1200 que o Conde D. Pedro
deve ter utilizado em uma terceira versão, correspondente ao também navarro Libro de las Generaciones
(Cintra, 1950, Menéndez Pidal, 1962; J. Mattoso, 1981).
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49
R. Menéndez Pidal nas Crónicas Generales de España, 1918, p. 87-92. O texto, dado a conhecer por R.
Menéndez Pidal, encontra-se editado em Crónica de los Estados Peninsulares. Texto del siglo XIV, ed.
por Antonio Ubieto Arteta (1955).
50
A Crónica de San Juan de la Peña é uma história geral dos reinos e condados da Coroa de Aragão,
datável entre entre 1369 e 1372, trasladada de um texto em latim, por sua vez anterior a 1359, ed. por C.
Orcástegui Gros (1986).
51
Petronilha de Aragão (Huesca 1136- Barcelona 1173) foi rainha de Aragão entre 1157 e 1164 e
condessa de Barcelona entre 1162 e 1164. Filha de Ramiro II de Aragão (1084-1157) e de Inês de Poitou
era neta de Guilherme IX da Aquitânia. Ao ficar noiva de Raimundo Berenguer IV, conde de Barcelona,
seu pai Ramiro retirou-se para o mosteiro de San Pedro el Viejo de Huesca, conservando para si o título
de rei. O nome Perona não deixará também de evocar Peyronelle, a amiga pastora de Marion no Jeu
Robin e Marion de Adam de la Halle [ms. daVallière [Paris BN fr. 25566] (Ed. Coussemaker [1872]
1982).
52
Cronica de San Juan de la Peña. Versión aragonesa (Ed. C. Orcástegui Gros, 1986).
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com seu marido fundarom o moesteiro de Sam Nicolao, a que ora chamam Santo Tisso
de Riba d’Ave» [LL 21A2, p. 211]53.
Como vimos anteriormente, o mosteiro de S. Tirso e a família da Maia, por sua
vez descendente do rei Ramiro, estão aliados à própria confecção do Livro Velho, mas é
proeminente notar que esta circunstância continua ainda ser causa de dignidade para o
redactor de uma versão copiada já no séc. XVI54. No entanto, a grande inovação deste
texto não é, neste momento, só a família da Maia como nos Livros de Linhagens, mas a
referência explícita a outra família: «(...) foi comde // da maia e cassou com hũa
domzella / que auia nome Dona ssoutinha de grande / estamdo e ouue della hum filho
quue / foy lleuado a hũa quimta de pereira / e daqui sse leuamtou a llinhagem dos /
llimdos pereiras (...)» [HR 162-168]. Os Pereiras não compareciam, deste modo, na
estruturação da narrativa do Rei Ramiro nos Livros de Linhagens, embora estejam
familiar e geograficamente não muito afastados da família da Maia55.
É um carácter providencialista que os Pereiras tentaram transmitir à sua
linhagem nomeadamente conhecida através do processo de refundição do Livro de
Linhagens do Conde D. Pedro. É assim que filiam a família aos da Maia, uma das
famílias que o Livro Velho de Linhagens dos finais do séc. XIII, considerava fundadora
da nobreza portuguesa e artífice da formação do reino (Krus-Vasconcelos e Sousa 1993,
p. 112). Esta nova versão do séc.XVI vem sublinhar a intenção que procurava um
autêntico reconhecimento.
A veracidade importa pouco. É necessária apenas uma coerência que oculte a
recriação textual de uma transgressão passada transformada em júbilo. O genealogista,
independentemente do recurso que possa fazer a documentos, adequará a sua narrativa
ao novo interesse – a família Pereira –. Aqui, não se tratará de uma ficção, que procura
53
A devoção a S. Tirso encontra-se presente em toda a Espanha, particularmente na província de León. É
patrono de Villafranca del Bierzo e de outras localidades leonesas. Na primera metade do século III, em
Apollonia, na Frígia (Ásia Menor), Décio, perseguidor de cristãos, ordenara que fosse degolado um
cristão, Leucio. Tirso (nome grego Thyrsus ‘contemplador’), atleta de circo confrontou-se com o
governador exortando-o a que não castigasse o inocente, em nome dos deuses pagãos que adorava. Com
sua audácia, terá assim suportado muitas torturas, sendo finalmente condenado a ser cortado em dois no
século III.
54
A importância do mosteiro de S. Tirso (fundado em 978) e a lenda do rei Ramiro associada à família da
Maia são analisadas por J. Mattoso e L. Krus nos estudos já citados.
55
Nome de raiz toponímica, tirado da quinta e couto de Palmeira. Os estudos de J. Mattoso, dedicados à
nobreza, facultam informações sobre esta família, que é integrada também em LL (LL 21G 10, 11, 12, p.
237 ss). A família Pereira possui igualmente bens nas margens do Rio Ave. A associação à família da
Maia é feita através do casamento da filha de Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, com D. Rodrigo
Froyaz de Trastamar, que dará origem aos Pereiras. Os nexos entre esta família e o Conde D. Pedro são
também conhecidos (Mattoso, p. 180-182; p. 50). Um esquema genealógico da família, assim como a
história da ascensão social dos Pereira, é apresentado nos estudos de M, Soares da Cunha dedicados à
linhagem, ao parentesco e ao poder. da Casa de Bragança (1990 [p. 19-23]; 2000).
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reconstruir uma história, mas de uma construção, que se apropria de uma memória que
deve ser preservada para evitar o esquecimento. Mas para acautelar o olvido, é urgente
voltar a apoderar-se daquele passado como base legítima para reconfigurar o presente.
Uma historiografia metódica de «factos notáveis» para a edificação mítica de um
passado providencial que revaloriza o presente pela persuasão e pela autenticidade de
uma nova família. A reminiscência do velho acontecimento vai adquirir um carácter
sagrado, concedendo ao passado uma dimensão mais fundacional. A reprodução da
memória do episódio fundador, adoptado para a criação da linhagem da Casa da Maia
vai testemunhar a génese de uma outra Casa, a Casa dos Pereiras.
Uma nova Casa, uma nova família que carecia agora de uma memória que lhe
validasse um glorioso presente, legitimamente herdado de um tempo pretérito,
reutilizando-o em uma forma de acontecimento comemorativo, privilégio da génese de
um herói. A enfatização é essencial, porque é imprescindível inscrever na memória
colectiva os valores genealógicos familiares e o que conta são esses apreços que não
poderão fazer mais do que levar à estatura de um «predestinado», aquele que é
reservado e dotado para grandes feitos. Não só porque já os efectivou, mas pela herança
do seu legado familiar. A dimensão ritual e simbólica vai indirectamente caracterizar
uma família notabilizada por seus feitos guerreiros, coragem, tenacidade, abnegação,
magnanimidade. Quem poderiam ser estes Pereiras? Não já D. Frei Álvaro Gonçalves
Pereira, prior da Ordem do Hospital e a sua interferência na refundição dos Livros de
Linhagens, mas sim seu filho56. O novo herói Pereira só pode identificar-se com Nuno
de Santa Maria, ou simplesmente, Nuno Álvares Pereira, o futuro Santo Condestável57.
56
O estudo e as hipóteses de A. J. Saraiva sobre as refundições de LL do Conde D. Pedro, especificam
que a primeira modificação é datável entre 1360-1365 e pode ter sido feita por alguém, talvez um clérigo,
que teria estado ao serviço do prior da Ordem do Hospital Frei Álvaro Gonçalves Pereira. A segunda
intervenção, realizada entre 1380 e 1383, é concretizada por um redactor que conferiu maior consideração
às narrativas do que à actualização genealógica, alterando sobretudo o desenvolvido título XXI, com o
intuito de celebrizar a família de Pereira. São-lhe devidas, segundo ainda Saraiva, várias das narrativas
mais extensas do Livro, sobretudo as referentes aos ascendentes dos Pereiras e à batalha do Salado,
inserida justamente na biografia de Álvaro Gonçalves Pereira. A. J. Saraiva considerava que esta
sequência de textos devia ser posterior à morte do Prior D. Álvaro (morte datável dos finais de 1379 ou
princípio de 1380), mas precederia os acontecimentos que vão solenizar seu filho D. Nuno Álvares
Pereira que não chega efectivamente a ser mencionado em LL (Saraiva 1971).
57
D. Nuno Álvares Pereira, também conhecido como o Santo Condestável, Beato Nuno de Santa Maria,
ou simplesmente Nuno Álvares (24 de Junho de 1360 – 1 de Novembro de 1431) foi um general
português do século XIV que desempenhou um papel fundamental na crise de 1383-1385, onde Portugal
lutou pela independência contra Castela. Nuno Álvares Pereira foi também conde de Arraiolos, de
Barcelos e de Ourém. Legitimado por D. Pedro I, torna-se condestável do reino, chefe militar e é
apontado como modelo de virtudes cívicas e morais, exemplo de príncipes e senhores (guerras com
Castela, vida de herói, defesa da Pátria). Cf. Cunha, 1990, p. 93-97; 127-159.
Nuno Álvares Pereira nasceu na vila de Cernache do Bonjardim , concelho da Sertã. Filho de Álvaro
Gonçalves Pereira e de Iria Gonçalves do Carvalhal, casou com Leonor de Alvim em 1377 em Vila Nova
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da Rainha, na Azambuja. Quando D. Fernando de Portugal morreu em 1383, sem herdeiros a não ser a
princesa Beatriz casada com o rei João I de Castela, D. Nuno foi um dos primeiros nobres a apoiar as
pretensões de D. João, Mestre de Avis à coroa portugesa. Apesar de ser filho ilegítimo de Pedro I de
Portugal, João afigurava-se como escolha preferível à perda de independência para os castelhanos. Depois
da primeira vitória de Álvares Pereira frente aos castelhanos na batalha dos Atoleiros em Abril de 1384,
João de Avis nomeia-o Condestável de Portugal e Conde de Ourém. Mas o génio militar de Nuno
Álvares Pereira revelar-se-á decisivo na Batalha de Aljubarrota (6 de Abril de 1385). Recorde-se neste
ambiente de louvor a um herói com a Coronica do Condestabre de purtugal Nuno aluarez Pereyra
principiador da casa q[ue] agora he do duque de Bragãça sem mudar da antiguidade de suas palauras
nem stillo. E deste Condestabre procedem agora o Emperador e em todolos reynos de xpãos de Europa
ou os reys ou rainhas delles ou ambos. Lixboa, Germã Galharde, 6 de Noue[m]bro 1526. Ed. crítica da
Coronica do Condestabre (Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra. (Calado 1991; Amado 1994). A Casa
de Bragança tem, na realidade, a sua origem em 1401 com o casamento do infante D. Afonso, filho
bastardo de D. João I com a filha única do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, iniciando-se com este
matrimónio o importante ducado (Cunha 2000).
58
D. João I de Portugal (1358-1443), rei de Portugal, inauguradora da nova dinastia. Filho ilegítimo do
rei D. Pedro I, Mestre da Ordem de Avis, foi aclamado rei na sequência da crise de 1383-1385 que
ameaçava a independência de Portugal. Com o apoio do Condestável do reino Nuno Álvares Pereira e
aliados ingleses na Batalha de Aljubarrota contra Castela que pretendia invadir o país.
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E Camões, pouco tempo depois, não poderia ser indiferente a este movimento
heróico, que se edificava, sublimado pela ascendência legendária de Pereira:
59
Repare-se na dimensão que assumira a sua personalidade. Não só a Crónica anónima, Chronica do
Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira (data não posterior a 1440), mas também Fernão
Lopes na Crónica de D. Fernando não deixava de o descrever como o notavell e maravilhoso
companheiro e como bom cavalgante, torneador, justador e lançador (Ed. Macchi, 2004, cap. CXXI,
CXXII, CXXIII, CXXXVII, CXXXVIII, CLI, CLXVI). O espaço, que ocupará em Os Lusíadas, onde o
forte Nuno será mencionado mais de uma dezena de vezes, delimita-se logo no I canto na estância 12 (Por
estes vos darei um Nuno fero / que fez ao Rei e ao Reino um tal serviço), para assumir maior importância
no canto IV (estâncias 14-19 com o discurso de Nuno Álvares Pereira e com a Batalha de Aljubarrota
(estâncias 28-44). A filha Beatriz Pereira de Alvim, será a mulher de D. Afonso filho filho natural de D.
João I e de Inês Pires será o primeiro Duque de Bragança, dando origem à famosa Casa de Bragança que
recuperá a independência de Portugal no século XVII, três séculos mais tarde com a restauração de 1640
e com o rei D. João IV, 8° Duque de Bragança. Após a beatificação, foi canonizado foi canonizado pelo
Papa Bento XVI em 26 de Abril de 2009. Mas poderá ainda evocar-se o que vai perdurar no século XVII
com o poema de Rodrigues Lobo assim intitulado: O Condestabre de Portugal. D. Nunalvres Pereira./
De Francisco Rodrigues Lobo. Em Lisboa, por Pedro Crasbeeck, 16010 [i.é 1610]; O Condestabre de
Portugal. D. Nunalvres Pereira. / De Francisco Rodrigues Lobo, Em Lisboa: por Jorge Rodrigues, 1627;
Condestabre de Portugal D. Nunoalvres Pereira / de Francisco Rodrigues Lobo. Fielmente copiada pela
primeira ediçam feita em Lisboa em 1610 e pela segunda tambem de Lisboa em 1627 com todas as
outavas que lhe furtaram na terceira ediçam de Lisboa em 1723 por Bento Joze da Souza Farinha, 1785.
Não deixa de ser muito interessante reparar na dedicatória deste poema ao «Dvque Dom Theodosio», VII Duque de Bragança
(1568-1583-1630).
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REFERÊNCIAS
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São tantas vozes de amor! Ouço silenciosa, inquieta, vendo imagens imaginárias
de um tempo longínquo. Amor derramado entre poetas e musas – imagem a escorrer
pelo presente. Uma Cena se busca, a da Origem, mas a Gênese é a do Amor. Ana Luísa
Amaral, poeta, professora da Universidade do Porto, delineia, em A Génese do Amor,
seu livro de 2005 e o décimo de sua produção poética, topografias adensadas pelo som,
ritmo, imagem. Mostra uma relação amorosa com a poesia, com a escrita, derramando o
amor tema, quase indizível, em construções poéticas que espacializam tempos e
entreabrem diálogos com a tradição literária. Mira a poeta a produção de um grande
poema – a gênese do amor - isomórfico a originais camonianos, dantescos e
petrarquianos. Um poema, no entanto, autônomo, original, feito de fragmentos –
fragmentos amorosos.
Mas o que é topografia ou o que são topografias? Pergunta-se para melhor se
aproximar do que a poeta mira ou tem em mira. Insiste Ana Luísa Amaral, com poema
feito prólogo, intitulado “Topografias em quase dicionário”, para introduzir dados
prévios elucidativos sobre a gênese. Um programa, um modo de olhar, um mapa
sedutor, a indiciar a palavra como corpo. Poema que topografa, num percurso
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Professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP.
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(...)
Colo nelas o selo deste mar
e sonho que são estas as palavras.
Nesta manhã de sol,
olho-as assim,
sabendo-as de algum tempo,
quase templos sagrados em que pinto
o dia a cores,
que nem herdadas de mil gerações (p. 14)
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De ti tardei a tradição e
o tempo
Essa me é feita
de paragens outras,
de cabos que passei,
mas que são meus
De ti herdei talvez
artes de amar,
mas numa língua outra:
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(...)
Corre, brando e sereno,
amor, amado,
que eu saberei saber
quando me queres
- Se soubesses do fio
- Seria só olhar.
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diálogo entre Natércia e Camões” (p. 37). Fala e desejo vão se esvaindo e
transformando-se em eco. Não se perde, no entanto, a exaltação do amor, uma vez que o
par amoroso se une em única voz, como se nota em construções espelhadas na voz dos
atino e temperança / de bem querer // Ou fui eu que sonhei / esse momento “ (p. 37), ao
Ou fui eu
que ao sonhar esse momento
(...)
E o que via de ti,
amor, amado,
era a mim própria,
paralela em amor,
- E eu nele assim,
cativo (pp. 37-38).
Olhar sedutor atrai a ambos, Amada e Amado, tornando-os cativos. Convém observar,
ainda, que neste poema é explícita a intelectualização do amor, reafirmada pela palavra
“pensamento”, que assim aparece pela primeira vez. Se podemos dizer que fala e desejo
se esvaiem, é porque dão lugar a essa razão que potencializa o poema em imagens seja
dos amantes que se espelham, seja das próprias palavras em espelhamento, seja das
vozes em reversibilidade. Isto não significa dizer ausência de sentimento, há na
construção dos versos uma tênue fronteira entre sensibilidade e razão que condensa a
tópica do amor em refinadas construções que revelam a pele da palavra, feita assim para
se poder sentir a rota dos dedos quase mágicos dos poetas no corpo da poesia.
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Talvez, seja por isso que, rumando para o final, quatro outros poemas,
intitulados: “Camões fala outra vez a Natércia” (p. 47), “Natércia responde a Camões”
(p. 49), “Fala Camões mais uma vez” (p. 51) e “Fala Natércia, no final” (p. 53)”, vão
operar falas e respostas, distanciando-se dos diálogos, cruzamentos diretos das falas e,
portanto, “tocar de corpos” (p. 53), para debaterem-se com a impossibilidade do amor,
cabendo à voz feminina cravar a sua última fala em perguntas: “De nada foi então / esse
sossego, / esse tocar de corpos / brando e leve? // O que um dia me foi / devo esquecê-
lo, / ou fingir que era Inverno / nessa noite?” (p. 53). Cabe, ainda, ao feminino expressar
a consciência do ser e do fingir nesta trajetória, cuja permanência só é possível se se
“Grava em palavra” (p. 53), se se “imprime a fogo / em verso,” (p. 53). Esvai-se a fala,
ademais, os dois últimos poemas, afora o epílogo, denominados “Última Meditação de
Camões (I) e (II) (p. 55 e 57), são réplicas de si mesmos, nos quais o sujeito lírico se vê
analisando o próprio poetar. Neste sentido, declara Camões na Meditação (I): “Não
gravarei / nem escreverei a fogo / o que quero lembrar, / porque preciso (...) Assim eu
sou agora, / assim me sinto // E não engenho mais // Pela palavra, / que me seja a
lembrança / o meu desejo“ (pp. 55-56). A Meditaçao (II), de modo concentrado e
conciso, revela equivalência entre palavra e musa: “Nasceste-me sem musa” (p. 57)
afirma Camões para reafirmar logo a seguir nos versos: “Foste, palavra minha, / o
mantimento / que trouxe de jornada, / e alimentaste a gênese de tudo” (p. 57). Camões
finaliza o poema, dirigindo-se à palavra, equação precisa e condensada de seu poetar,
como dão a conhecer os versos: “Dá-me outra vez, / em papel brando, / o mundo: // Eu:
queimando por versos / um segundo, / tu, por um som, / ardendo eternidade” (p. 58).
Ana Luísa Amaral capta o método poético camoniano e o singulariza no seu poetar.
O último poema “A Gênese do Amor” (p. 59), ao retomar o título do livro, não
dispõe um fim, mas um recomeço, já proposto pelo desejo e meditação de Camões:
“Dá-me outra vez, / em papel brando, / o mundo:” (p. 58). Esforço de definição na
indefinição, o poema, mais uma vez, busca expressar o inapreensível, o enexprimível. O
sujeito poético, na tentativa de apreender sentidos para A Génese do Amor e
simultaneamente reter o momento genesíaco, coloca-o em equivalência nos versos:
“Talvez um intervalo cósmico / a povoar, sem querer a vida: / talvez quasar que a
inundou de luz,” (p. 59). Entretanto, declara logo a seguir: “Quasar é pouco, porque a
palavra rasa / o que a pele descobriu. E a pele / também não chega: / pequeno meteoro
em implosão” (p. 60). Quasar, palavra, pele, inexprimem o todo, o que vai dentro do
“sentirpensar”, do “pensarsentir”. Insiste, ainda, o eu poético em traduzir esta gênese em
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outros versos, mais ambíguos porém: “Estátua em lume, talvez, / (...) e uma visão,
talvez,” (p. 60). O que sobra, portanto, é sempre um recomeçar incerto, indeterminado.
Os quasares remetem ao espaço infinito de muita luz, ao recomeço, tal como a palavra
poética, quase-signo, e a pele sensível, rota infinda. Enfim, possibilidades que se
renovam sempre na matéria densa da poesia.
Os poemas que compõem prólogo e epílogo, além de se espelharem como nos
versos: “Talvez só este / abismo. / Interrompo no mapa / o precipício?” (pp. 14-15), e
em “Talvez um intervalo cósmico / (...) talvez quasar (...) / Estátua em lume, talvez”
(pp. 59-60), tratam “precipício” e “exaltação da musa” em suspenso, a fim de que nesse
poetar vozes de musas e poetas se encontrem para uma encenação nova do amor.
Encenação que se faz descobrindo a escrita em palimpsesto na tradição, mostrando-a
como escritura poética em permanente transformação e carregada de sutileza e afeição.
Essa escrita apresenta-se como espaço híbrido, múltiplo, um entre-lugar que acolhe em
verso a vida, suas “paisagens de dentro” (p. 11), e “a reteve, suspensa, / pelo espaço – “
(p. 59), declara o sujeito lírico com extremo amor ao verso.
A Génese do Amor de Ana Luísa Amaral tensiona, assim, o entreter de tempos
passados no presente, porque se desfaz a estabilidade de tempos fixos. Busca-se, outra
vez, de forma amorosa e lúdica, apreender o “amor” como um “cantar em processo”,
cujos tempos se metamorfoseiam em espaços. Espacialidade poética que parece
confirmar o que diz Blanchot: “nunca existe como uma coisa, mas sempre ‘se escapa e
se dissemina’” 1, não se separa da temporização. Recorda também o léxico de Derrida:
intervalização, distanciamento, ou melhor, nas próprias palavras do autor: “esse
intervalo constituindo-se, dividindo-se dinamicamente, é aquilo a que podemos chamar
espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização)”. ² Em
A Génese do Amor, o espaço se apresenta aberto a significações, com um arranjo
particular, no qual a linguagem se reinventa poética, revelando relações com o campo
do imaginário, evidenciando um tempo-espaço revivido, rememorado da paisagem
literária.
Essa “matéria insensata” (p. 46) dá origem a imagens - “no traço dos teus
dedos” (p. 15) -, que iluminam a topografia do amor, rota no corpo da poesia. A poeta
recolhe fragmentos de discursos amorosos de outros, dentre eles: Camões, Dante,
Petrarca, e inventa os seus para singularizar sua “rota” e desenhar sua imagem de A
Génese do Amor.
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O poema “Diálogo entre Natércia e Laura” (p. 45) pode exemplificar o argumento
barthesiano quando Natércia afirma: “ – De ti herdei / a feroz tradição / de ser cantada,
// de não ser voz, / mas antes coisa amada / não amadora / a transformar-se em coisa”. A
segunda figura AMOR INEXPRIMÍVEL, o argumento não é outro senão Escrever, que
Barthes assim expressa:
Os versos do poema “Diálogo entre Camões e Natércia” (p. 33) bem traduzem o
argumento barthesiano: “E se além de mil almas / eu tivera, / teceria por ti / perfeitas
rimas”.
Não tenho dúvida de que a escritura de Ana Luísa Amaral cede lugar ao desejo,
e A Génese do Amor exprime amorosamente sua criação. Ainda, de que a poeta sabe,
como os poetas e musas da tradição, que para escrever o amor é preciso “engenho” e
“brando pensar”; e mais, sabe que a linguagem é, como diz Barthes: “ao mesmo tempo
demais e demasiadamente pouca, excessiva e pobre. (...) que a escritura não compensa
nada, não sublima nada, que ela está precisamente aí onde você não está – é o começo
da escrita”. 5 Desconfio que por isso escreve o eu poético de A Génese do Amor: “Não
interessa onde estou, / não me faz falta um mapa / de viagem” (p. 9). Ao poeta faz falta
o poetar: suspender o “precipício”, dar realidade ao inexprimível, inventar imagens,
deixar falar o amor.
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NOTAS
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INTRODUÇÃO
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objecto mais amplo, uma evidência que justifica a importância desta disciplina na reflexão
posterior do primeiro investigador.
O sucesso internacional deste manual de Theory of Literature foi inquestionável.
Foi medido pelo próprio Wellek, no «Prefácio à terceira edição americana», que assina
sozinho, pelas suas traduções, em oito idiomas, «espanhol, italiano, japonês, coreano,
alemão, português, hebraico e gujarati, nessa ordem». Um registo que tanto confirma o
destino cosmopolita da obra como o avanço da sistematização teórico-literária para fora
das fronteiras europeias4, mesmo que estas continuassem a ser o fulcro das atenções do
investigador, que, pela mesma época, republica um ensaio sobre o estado da investigação
no seu continente de origem, «A revolta contra o positivismo na erudição europeia
recente»5, no qual reconhece como traços distintivos dos «estudos literários tradicionais»
de então: o cientismo do século XIX, que chegou a defender a transposição dos métodos
das «ciências naturais» para o estudo da literatura, privilegiando a origem e a causalidade;
a erudição passadista, dedicada ao historicismo, à recolha de fontes e pormenores factuais
insignificantes. Duas sobrevivências de um equívoco «positivismo» e de um ideal de
«ciência» impróprio:
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sendo de lembrar, no contexto francês, a polémica obra Critique et verité (1966), na qual
Roland Barthes traz à baila a ausência da verdade positiva na crítica afeita ao positivismo,
que era caracterizada pelo verosímil crítico: «Aristóteles estabeleceu a técnica da fala
fingida a partir da existência de um certo verosímil, depositado no espírito dos homens pela
tradição, pelos Sábios, pela maioria, pela opinião pública, etc. O verosímil é aquilo que,
numa obra ou num discurso, não contradiz qualquer destas autoridades. [...] Numa palavra,
existe o verosímil crítico. [...] Quais são então as regras do verosímil crítico em 1965?»10.
A resposta a esta questão arrola as seguintes regras: a objectividade, confundida com a
crença no sentido legítimo da obra literária; o gosto, consubstanciado num conjunto das
interdições morais e estéticas; a clareza ou a exigência de «um idioma sagrado»,
estabelecendo «uma relação fácil com uma média de todos os leitores possíveis»; a
assimbolia ou a incapacidade para «perceber ou manejar símbolos, isto é, coexistências de
sentidos»11.
A preocupação da A.C.L.A. com os «modelos» disciplinares da Literatura
Comparada perpassa os seus relatórios de 1965, 1975 e 199312, de modo que o terceiro
Report on Professional Standards, conhecido como «Bernheimer Report, 1993.
Comparative Literature at the Turn of Century»13, descreve a forte alteração da matriz
disciplinar da Literatura Comparada sob a influência dos Estudos Culturais /Étnicos/de
Género/Semióticos. Adoptando um procedimento comparativo face aos relatórios
anteriores, este relatório reconhece-lhes o mérito de definirem «no essencial a concepção»
dominante da disciplina nos Estados Unidos, após a IIº Guerra mundial, especialmente nos
anos 50-70, quando se impusera a necessidade de defender a hegemonia e a unidade da
cultura europeia - uma questão de ordem ideológica, política e económica, mas com
reflexos nos conteúdos e objectivos da Literatura Comparada, a qual, acentuando a sua
abertura internacional, buscava: identificar motivos e temas; ampliar o conhecimento dos
modos e géneros do discurso; valorizar o estudo das línguas para reforçar as identidades
nacionais; produzir uma elite intelectual capaz de ler as obras canonizadas nas línguas
originais, ainda que o texto de 1965 admitisse o uso minoritário de traduções de obras em
línguas pouco conhecidas. Neste tempo do pós-guerra e da chamada Guerra Fria, o
eurocentrismo elitista e erudito era o traço dominante da disciplina:
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Encontram-se nesta síntese as linhas de força que reconhecemos hoje serem as dos
actuais Estudos Culturais e outros, ante cuja proliferação se situa a Literatura Comparada -
uma disciplina que, a manter esta designação, não pode perder de vista o objectivo de
conhecer o espaço da Literatura, em suas dimensões artística e metacrítica, colaborando
assim, de modo produtivo com uma Teoria que não se estagne nem se amedronte ante a
rede de conexões multi- e interculturais, ante a plurilegilibilidade do seu objecto de
conhecimento, inevitavelmente processual já que modelizado por forças enunciativas em
interacção.
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«The point I’m trying to make is that scholars studying the culture to which they
belong (national, ethnic, or gender cultures) are not necessarily subjective, just
scholars studying cultures to which they do not belong are not necessarily
objective. Since I believe that theories are not instruments to understand
something that lies outside the theory but, on the contrary, that theories are
instruments to construct knowledge and understanding (...) For, if we approach
knowledge and understanding from the point of view of a constructivist
epistemology and hermeneutics, the audience being addressed and research’s
agenda are as relevant to the construction of the object or subject being studies as
are the subject or object being constructed. Thus the locus of enunciation is as
much a part of knowledge and understanding as it is the construction of the
image of «real» resulting from a disciplinary discourse (...) Consequently, the
«true» (...) will be transact in the respective communities of interpretation as
much for its correspondence to what is taken for «real» as for the authorizing
locus of enunciation constructed in the very act of describing an object or a
subject»30.
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integram-no. E isto exige não somente a mudança desta e daquela matriz disciplinar até
então partilhada consensualmente pela respectiva comunidade de especialista41, mas
também uma profunda transformação do sujeito teórico. Trata-se de um outro regime do
fazer teórico, mas que não elimina os resquícios do «positivismo», com os quais chega a
interagir de modo produtivo; trata-se ainda de um outro universalismo, que alguns autores,
para evitarem o problema dos universais, preferem designar como glocalização
(globalização + localização)42.
Neste ponto, uma pausa para observarmos que as questões pós-coloniais,
multiculturais, étnicas e as diferenças de géneros sexuais, comprometidas com as
conquistas desconstrutoras da «Teoria», deram lugar a formulações que extrapolam
diferentes fronteiras disciplinares e campos do saber, motivo por que parece mais
adequado tratar a alteração do regime de racionalidade subjacente a tais formulações não
como mudança restrita de matriz disciplinar (envolve uma teoria ou conjunto de teorias)
ou mesmo de paradigma científico (envolve pressuposições subjacentes às teorias), mas
antes como uma alteração epistemológica de metaparadigma cultural: pela sua
profundidade e extensão, esta mudança atinge as raízes das chamadas Ciências Humanas e
das Ciências Sociais, embora não só, ao comprometer as razões que apartaram estes dois
ramos e conduziram à institucionalização tradicional do campo pluridisciplinar dos
Estudos Literários.
Observemos, ainda, que as matrizes disciplinares tradicionais da Teoria da
Literatura e da Literatura Comparada foram construídas no eixo de três falácias
epistemológicas, que o actual metaparadigma cultural procura superar:
a) o ocultamento máximo do sujeito teórico e respectivas coordenadas enunciativas
em nome de uma suposta «objectividade»;
b) a elisão da origem geocultural dos argumentos hegemónicos, os quais,
frequentemente elevados a «ocidentais», acabaram por ser autoprojectados para o resto do
mundo como «universais»;
c) a não-relevância da heterogeneidade intrínseca às culturas enquanto
polissistemas43, o que alicerçava um entendimento predominantemente monológico das
questões literárias nacionais e não plurilógico.
Uma tríade de argumentos que cumpre reequacionar no processo da construção do
conhecimento glocalizado, no cerne da tensão e da interacção entre o global e o local, entre
o homogéneo e o heterogéneo, de modo a receber os legados de uma pluralidade de
tradições culturais. Uma tarefa que tem implicações hermenêuticas e epistemológicas, visto
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vidas, sempre que as palavras se deslocam dos seus lugares semânticos habituais, ao nível
da chamada «linguagem ordinária», para conquistarem espaços anteriormente, por vezes,
nem adivinhados, ensinando-nos uma dança produtiva de interpretações que nos obriga a
novos passos, como também nos casos de gíria.
O domínio da lusofonia é um lugar de lugares, onde têm assento os silêncios, a
debilitação ou a perda de vozes. Envolve, apesar disso, convergências, memórias, trânsitos,
divergências, tangências, partilhas, intersecções, versões. É um lugar onde a herança do
tempo de descobertas marítimas e conquistas de territórios foi distribuída de modo
heterogéneo entre as pessoas que hoje utilizam a língua portuguesa, ou por extensão a
galega, ora como língua materna, como ocorre com muitos de nós, ora como língua
segunda ou mesmo terceira. Uma diáspora da riqueza linguística que será frutuosa se, na
condição de partícipes em condição plurilógica (mais que dialógica), nos propusermos a
consolidar uma «comunidade imaginária» transnacional49, respeitando a sua intersecção
com outras, a do europeísmo, a da africanidade, a da americanidade, a da asiaticidade, a de
cada uma das nacionalidades e localidades, todas em complexo e por vezes subtil processo
de mutação e, simultaneamente, em intercâmbios vários.
Como afirma Onésimo Almeida, na conferência «Línguas pátrias de uma língua
expatriada», em que apresenta o posicionamento de vários escritores sobre a lusofonia,
«não haverá a saramaguiana jangada de pedra deslocada para o Atlântico Sul», mas «vários
desvios» que «aconteceram, acontecem e continuarão a acontecer»50.
Neste novo metaparadigma cultural, os investigadores lusófonos têm a
oportunidade de interagir de modo original com outras teorizações com o foco, por
exemplo, na Pós-colonialidade e na Teoria crítica feminista, pelo que é importante que
sejam organizados projectos internacionais que visem à recolha e análise do material
específico da lusofonia, uma tarefa em que a Literatura Comparada poderá oferecer um
grande contributo para a construção de uma Teoria da Literatura que logre ultrapassar a sua
circunscrição eurocêntrica tradicional, revendo criticamente, por exemplo, a sistematização
tradicional dos géneros literários, os modos de recepção das obras até então canonizadas, a
aplicabilidade dos estilos de época aos actuais polissistemas literários nacionais, com a
atenção reforçada sobre a contribuição dos discursos criativos metaficcionais, os quais
frequentemente antecipam perspectivas importantes face às informações fornecidas pelos
manuais escolares, que, salvo excepção, servem à sistematização do conhecimento sempre
a posteriori ao momento da emergência deste. A questão está na redinamização da tradição
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NOTAS
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1
A supremacia do paradigma textualista sobre o historicista impôs-se na Europa Ocidental a partir dos
estudos de Estilística e, nomeadamente, da antologia de textos dos formalistas russos, Théorie de la
Littérature, organizada e traduzida pelo investigador búlgaro Tzvetan Todorov em 1965.
2
O conceito de Literatura como arte da palavra – fora do seu exagerado alargamento no âmbito do
paradigma historicista proveniente do século XIX, onde se confundia com erudição – estreitou-se com o
paradigma textualista, que privilegiava as obras poético-ficcionais como produtos acabados, contudo, o
paradigma culturalista complexifica a delimitação da Literatura ao conceber estas obras como produções
dinâmicas do autor e dos receptores, o que leva à revisão das funções dos metadiscursos na construção do
espaço cultural, onde se integram como elementos comunicacionais interactivos. (Registe-se que o
ordenamento dos paradigmas literários apresenta variantes: E. Prado Coelho reconhecera o filológico,
maioritário, preso à delimitação de um sentido textual único e à intenção do autor nas duas vertentes, a
historicista e a formalista; o comunicacional, comprometido com a noção de verdade intersubjectiva nas três
vertentes, a erótica, a tecnocrática, a histórica ligada à estética da recepção; o metapsicológico, baseado na
falta de coincidência entre verdade e sentido nas vertentes psicanalítica e na metafísica – Id., 1982: 15-16).
3
Segundo Van Tieghem (1921, pp. 254-260), os estudos de Literatura Comparada deveriam incidir sobre
duas ou três literaturas, enquanto que os de Literatura Geral deveriam focar fenómenos que transcendessem
as fronteiras nacionais, como os movimentos literários. A identidade da Literatura Comparada envolve ainda,
uso da expressão «literatura mundial» e da palavra «Weltiteratur» (cf. Prawer, 1973, in Bassnett et alii,
1998:21-35).
4
Na vocação internacional da Teoria da Literatura/ Literatura Comparada está implicada a realidade dos
«trânsitos» geográficos, viagens, diásporas e exílios, por exemplo: René Wellek (1903-1995), deslocado para
os Estados Unidos durante a IIª Guerra Mundial, nasceu em Viena e viveu também em Praga, embora seja de
família de origem checa; Erich Auerbach, de naturalidade alemã, exilou-se na Turquia e nos Estados Unidos;
Edward W. Said nasceu em Jerusalém, na Palestina (anteriormente à formação de Israel), viveu no Egipto e
também nos Estados Unidos.
5
Wellek, 1946, in 1963, pp. 223-243.
6
Id., 1946, in 1963, p. 224).
7
Proferida no IIº Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (A.I.L.C./ I.A.C.L.), em
Chapel Hill.
8
Wellek, 1958, in 1963, pp.244-255.
9
In Machsey – Donato, orgs, 1970, pp.247-264; cf. Derrida, 1967. O filósofo francês de origem argelina
proferiu esta conferência no Congresso The Lenguages of Criticism and the Sciences of Man, realizado pelo
Humanities Center/ The Johns Hopkins University.
10
Barthes, 1966, pp.14-16 (Esta obra integra-se na polémica, com Picard, 1965).
11
Id., op.cit., pp.16-40.
12
Trata-se de documentos elaborados por comissões identificadas pelos nomes dos respectivos secretários,
respectivamente Harry Levin, Thomas Greene e Charles Bernheimer.
13
Embora identificado pelo sobrenome do secretário da comissão, «O Relatório Bernheimer, 1993. Literatura
Comparada na transição do século» foi submetido à associação por dez membros. Além de Charles
Bernheim: Jonathan Arac, Marianne Hirsch, Ann Rosalind Jones, Ronald Judy, Arnold Krupat, Dominique
La Capra, Sylvia Molloy, Steve Nichols, Sara Suleri. O texto encontra-se disponível, em inglês, na internet,
mas pode ser encontrado em português, na trad. de Mª. Helena Serôdio, na abertura da excelente colectânea
organizada por Helena Buescu, João Ferreira Duarte e Manuel Gusmão, 2001, pp. 17-36, que citaremos.
14
Bernheimer et alii, 1993, p. 18.
15
Id, op.cit, p.20, itálicos nossos. O verdadeiro busílis está no problema da identificação da Literatura, que é
acima de tudo manifestação estética, embora não circunscrita à alta de elite. O prazer do texto, ler-escrever-
interpretar, tem os seus graus e os seus modos de concretização. Variavelmente modulada, a Literatura
justifica-se ora pelo próprio discurso que lemos com estremecimento interior, mas cuja tessitura cabe ao
autor; ora deriva das diferentes formas de ler e valorizar, o que é mais da índole ou da responsabilidade deste
ou daquele receptor e das comunidades históricas a que estes pertencem; ora a literatura é também produzida
pela convergência de forças institucionais, desde a tradição literária e a escola ao comércio editorial e à
política; ora implica tudo isto. A identificação do que seja Literatura não se sujeita a consensos absolutos,
nem a evidências do género de 2 e 2 são 4, embora o conhecimento crítico e teórico possa tratar este objecto
de estudo em termos de probabilidade cultural localizável histórica, geográfica e socialmente.
16
Eagleton, 1983, pp.1-17.
17
Id., op.cit., p.232.Recorde-se o dito anteriormente, na p.213 - «A ‘literatura’, conforme observou Roland
Barthes, ‘é aquilo que é ensinado’». Este contexto permite-nos inferir que a Literatura padecera de doença
metafísica e formalista.
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18
Estas correntes distribuem-se pelos seguintes capítulos (Id., op.cit., pp. 59-232): «Fenomenologia,
Hermenêutica e Teoria da Recepção», «Estruturalismo e Semiótica», «Pós-estruturalismo» [inclui a
Desconstrução], «Psicanálise», «Conclusão: Crítica política»
19
«By “theory” we mean a special project in literary criticism: the attempt to govern interpretations of
particular texts by appealing to an account of interpretation in general»; «Our thesis has been that no one can
reach outside practice, that theory should stop trying, and that the theorical enterprise should therefore come
to the end» (Knapp - Michaels, in W.J.T. Mitchell, org., 1985: 11 e 30. Na mesma obra, afirma-se que a
«theory is not consequential even when the practitioner is himself a theorist» (Fish, «Consequences», p.124).
20
Asiáticos, Africanos, Latino-Americanos, etc. Ver Spivak, 2003.
21
Miner, 1990.
22
Rorty, 1982
23
Jacques Derrida, Michel Foucault, Luce Irigaray, Jacques Lacan, Louis Althusser, Gayatri Spivak, etc.
24
Foucault, 1976.
25
«‘Il n’y a pas de hors-texte’ (Derrida,1967b) – ‘There is no outside-of-texte’: when you are getting
outside signs and text, to ‘reality itself’, what you find is more text, more signs, chains of supplements»,
Culler, op.cit., p.12.
26
Uma questão sobre a qual incidiu a nossa tese de doutoramento, 1995, e que desenvolvemos em
trabalhos posteriores.
27
Culler, 1997, p.4 -5, itálicos nossos.
28
Cf. Kuhn, 1962, 1969, 1974.
29
Culler, 1997, p.5. Cf. .Barthes, 1968; Foucault, 1969; Buescu, 1998.
30
Mignolo, 1991: 234-235.
31
É esta a postura de Aguiar e Silva no conhecido manual, Teoria da Literatura (1967), que, a partir da sua
4ª. edição (1981), surge profundamente reescrito e com uma tonalidade prefacial bem demarcada pela
retórica da racionalidade: «Um livro científico-didáctico que não se renove, com o espírito de rigor que deve
caracterizar a docência e a investigação universitárias, é um livro condenado a morte breve.[...] Na última
década, a Teoria da Literatura, em particular no seu interface com outras disciplinas, conheceu profundas
modificações. [...] A racionalidade científica, todavia, se é incoadunável com o fixismo teorético, é
incompatível também com qualquer espécie de cepticismo ou relativismo gnoseológicos que impliquem a
corrosão dos próprios fundamentos dessa racionalidade e gerem a confusão anarquizante de conceitos,
métodos, etc.»
32
de Man,1971.
33
No caso de Aguiar e Silva, por exemplo, que fora deputado no regime político anterior à revolução de Abril
de 1974 em Portugal, «o espírito de rigor» não o impediu de omitir (1981ss) a teorização marxista sobre a
Literatura, cuja importância no século XX não pode deixar de ser abordada com distanciamento ideológico,
por quem diz pôr o conhecimento objectivo acima das razões pessoais.
34
Pozuelo Yvancos - Aradra Sánchez, 2000: 17.
35
Even-Zohar, 1979, 1990, 2004.
36
Bouvoir, I, (1949), 1976, p.20.
37
A Nova História/ teoria da ego-história (Nora, 1987) tem despertado interesse pela análise da relação entre
a biografia do sujeito e a sua obra científica, inclusive dando lugar a uma «historiografia autobiográfica»
(Jauss, 1989). Estas propostas que foram comentadas por Heidrun K. Olinto, no ensaio «Historiografia
(literária) à flor da pele» (2005, pp.140-154), onde também comenta o caso de Paul de Man, a estratégia de
ocultamento do seu passado nazista, a troca de identidade, a desconstrução e o seu projecto de fundação de
novos Estudos Literários.
38
Esta corrente ganha visibilidade a partir de 1978, ano da publicação de Orientalism, de Edward Said. Este
marco, porém, não nega a importância de representantes anteriores, a exemplo do psicanalista antilhano
Franz Fanon, cujo livro, Les damnés de la terre, 1961, foi apoiado pelo intenso prefácio de Jean-Paul Sartre,
ao tempo da guerra da Argélia (1952-1962).
39
Benveniste, 1966; Lacan, 1966; Barthes, 1968; Buescu, 1998.
40
Sousa Santos, 1987.
41
Kuhn, 1962 e 1969.
42
Featherstone - Lash - Robertson, orgs., 1995, especialmente Robertson, pp.25-44.
43
Itamar Even-Zohar, «Polysistem Theory», Poetics Today, 1, 1-2, 1979: 287-310; «Polysistem Studies», ed
rev. Poetics Today, 11, 1, 1990: 6-26; “Polysistem Theory (revised)”, in Papers in Culture Research, 2004,
in http://www.tau.ac.il/~itamarez/works/books/ez-cr2004.pdf
44
Mignolo, 1991, p. 235.
45
Cito dois exemplos, o do autor de um conhecido e muito peculiar manual de Teoria da Literatura e o da
autora de uma vasta reflexão sobre diferentes ramos do conhecimento teórico na actualidade: a) «En épocas
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de pensamiento fragmentario y debilitado parece atrevido e insólito proponer una teoría global de una rama
del saber.[...] Me parece que, hoy como siempre, permanecen intactas las razones que hacen de los objetos
estéticos, de las obras de arte, mensajes, testimonios y desafíos útiles para el conocimiento del hombre [...]»
(García Berrio, 1988: 9);
b) «Não é que se justifique a preocupação de uniformização de linguagens, de modo a eleger-se uma
perspectiva hegemónica dos estudos literários ou uma orientação teorética que ignore completamente as
outras teorias, mas há que dar uma perspectiva ao mesmo tempo plural e coerente, de modo a que os alunos
construam o seu próprio saber conscientes dessa pluralidade e dos caminhos que se lhes oferecem» (Goulart,
2000: 1).
46
In Couto, 2009:183-198.
47
O polissistema multicultural da lusofonia é constituído por Portugal, pela região de Macau e pelos países
por ele colonizados - Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Timor-
Leste; pela Galiza e por pessoas e comunidades esparsas pelo mundo que se servem do português e do galego
como língua nativa ou como língua de afecto por descendência ou especialização.
48
Lyotard, 1979.
49
Aplica-se à formação de comunidades transnacionais, como a lusofonia, a noção de «comunidade
imaginária», usualmente referida ao nacionalismo (cf. Anderson, 1991).
50
Almeida, 2005, p.37.
51
A substancial e original tese de Costa Lima, Estruturalismo e Teoria da Literatura, por exemplo, já
havia sido publicada comercialmente desde 1973.
52
Lotman (1970), dentre outros.
53
«Prefácio» (1981), in Teoria da Literatura, 8ª ed., 1990.
54
Lopes, 1994: 476.
688
IV COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LUSO-BRASILEIROS
(1959) E ESTRATÉGIAS DE INTERLOCUÇÃO E DE SILENCIAMENTOS, NA
CONSTRUÇÃO DE ALTERIDADES E RELAÇÕES CULTURAIS
*
Professora Associada de Literaturas Portuguesa, Africanas e Comparadas da Universidade Federal da
Bahia, coordenadora do XXII Congresso Internacional ABRAPLIP 2009.
forma ostensiva com a loquacidade esperada de um evento intitulado “colóquio”. O
silêncio acerca do evento e da série homônima levada a efeito entre 1950 e 1967 parece
continuar fornecendo-lhe o traço mais evidente. Tentativas de coleta de informações não
raro esbarraram na ausência de publicações a respeito, assim como em declarações de
esquecimento, não obstante objetivarem tese de doutoramento avessa a clichês e
imaginários colonialistas1
Transcorridos 50 anos, um fato novo discursivo atualiza a questão e torna-se em
oportunidade de retomar as relações culturais entre Portugal e Brasil em meados do
século XX, sob o prisma dos intelectuais envolvidos. Na qualidade de pronunciamento
de participante privilegiado, há muito esperado, a entrevista de Eduardo Lourenço a Rui
Moreira Leite recentemente publicada2 reitera a dinâmica do congresso e expõe as
pressões da ordem, não do “acaso”, mas do “perigo”, que pairavam sobre determinados
coloquistas. Considerando-se o intervalo de quase dez anos de concedida, porquanto
feita em 2000, rompe a custo o renitente e compreensível silêncio, para afirmar atitude
de então articulada a circunstâncias do momento, bem como a um modo pessoal de ser e
agir. Instado a falar da sua experiência no Brasil e em especial na Bahia, nos anos 50 do
século passado, Lourenço informa sobre a sua partida de Salvador:
Envio-lhe junto dois recortes que aqui tinha de parte e uma cópia da palestra
para a Emissora, que ontem gravei. A palestra sai nos Emissores de Lisboa,
Porto e Coimbra, de modo que, pràticamente, toda a gente a ouve. Foi coisa
feita à pressa, como de costume, mas em que procuro dar uma opinião
sincera do IV Colóquio. Se achar bem, mostre-a ao Reitor. Nesta palestra não
dou conta, evidentemente, das sombras!11
ADENDO
C
inco anos de vida no Brasil deram-me uma certeza: o intercâmbio
cultural luso-brasileiro não pode ser coisa de governos, pela razão
evidente de que entre uma democracia e uma ditadura as trocas são
impossíveis; porque esta só quer saber de prolongar dêste lado do
Atlântico a mentira em que se baseia, lá, todo o edifício. Ora, sucede
que a cultura não pode alimentar essa mentira. Se o govêrno português
cuidasse sèriamente de difundir a cultura nacional, estaria difundindo aquilo mesmo que por
todos os meios procura abafar, pois cultura e ditadura são termos antitéticos. De modo que o
govêrno português só tem real interêsse no intercâmbio de... títulos universitários, salamaleques
acadêmicos, e de discursos. E, a título de exemplo:
Por tôda a parte onde tenho estado, de Pôrto Alegre a Fortaleza, verifico êste facto
impressionante: com excepção de S. Paulo, por toda a parte se evidencia carência daquela
biblioteca que Portugel [sic] deveria ter oferecido a cada uma das universidades brasileiras,
como demonstração mínima de interêsse no tal intercâmbio; mínima e... econômica. Por aí se
devia começar, e com isso o orçamento não se veria em risco de perder aquêle celebrado
superavit, tão claro [sic] à alma do sr. Oliveira Salazar.
E contudo, até essa excelente biblioteca oferecida por excepção, à Universidade de S.
Paulo, tem um codicilo suspeito: vem com ela o “presente” de um professor que, por períodos
de dois anos, creio, a Universidade de Coimbra renova. Parece que o último teve de ser
recambiado antes da data prevista, de tal maneira o seu reacionarismo lhe criou um ambiente
impróprio aos fins supostamente desinteressados da sua escolha. Ora o que se deseja são
bibliotecas... sem condições, é a cultura sem mestre, porque o mestre, se escolhido por qualquer
entidade portuguesa, mesmo universitária, fica justificadamente suspeito de ter sido escolhido,
não pela sua competência, mas pelas garantias políticas que ofereça.
Há quem se escandalize pelo fato de haver no Brasil intelectuais portugueses que não se
restringem às respectivas “especialidades”, e que, sendo professôres não se limitam a ensinar,
sendo poetas não se limitam a fazer versos, sendo pintores não se limitam a pintar... etc. É que
êsses intelectuais são também “especialistas” de outra coisa, se me permitem a ironia: têm a
especialidade de serem cidadãos conscientes. Não lhes parece que cumpra a um intelectual ou
artista portugues [sic] ignorar os problemas dos portugueses, pelo fato [sic] de se encontrar no
Brasil. E, pelo contrário, essa condição os obriga precisamente a defender o melhor da
dignidade nacional não calando o que a sua consciência lhes aponta como irresponsabilidade ou
traição por parte dos detentores do poder, ou dos detentores de funções culturais que pelo seu
silêncio e aquiescência se tornam afinal políticamente responsáveis e com aqueles solidários.
O problema é, efetivamente, êste: aqui no Brasil, onde os intelectuais e professores
portuguêses são recebidos de braços abertos, não se espera dêles que sejam enviados da ditadura
mas representantes da cultura portuguesa. E como podem homens que abdicaram daquela
liberdade essencial à autêntica cultura, representar a do seu país? Os que pactuaram com esse
regime ditatorial tornaram-se coniventes no crime contra a cultura – e só podem ser, aqui,
pálidas sombras, de cabeça vergada ao pêso da sua traição, fugindo à conversa leal, fingindo
ignorar o preço por que pagaram as suas cátedras.
É muito cômodo dizer que se é “alheio” à política. Mas com [sic] pode um professor ser
alheio à demissão dos seus colegas de ontem, cujo valor intelectual não ignora? Como pode êle
ser indiferente à censura, supressão dos mais elementares direitos, às prisões sem outra
justificação que a arbitrariedade do poder? Como pode êle admitir que seja da polícia política a
última palavra no concurso para uma cátedra? Êsse alheamento com que julga poder justificar-
se, chama-se cobardia, e o seu resultado é que êle se torna tão político como o poder que lhe
impõe o silêncio.
É porisso que pomos em dúvida a contribuição que possam dar a qualquer espécie de
autêntico intercâmbio cultural luso-brasileiro indivíduos ou instituições que não são livres de
debater os problemas da cultura, pois esta se encontra agrilhoada a um sistema de govêrno que
pretende fazer dela expressão do seu reacionarismo, tutelando-o e dirigindo-a. Em vista do que,
a palavra caberá em última análise ao mêdo, e não à opinião.
O que pode interessar à cultura brasileira é a colaboração desinteressada de intelectuais
portugueses, universitários ou não, que possam debater problemas comuns – e que queiram
“dar”, sabendo “receber”. O Brasil não precisa de lições, mas quer uma cooperação que todavia
só pode ser benéfica para ambas as culturas se as Universidades e os intelectuais portugueses
vierem aqui em seu próprio nome, representando uma cultura e não um govêrno.
Não é para admirar que aumente o número de professôres portugueses em
Universidades e outras Escolas do Brasil, sabendo-se quantos, em Portugal, se acham impedidos
de exercer a sua atividade em estabelecimentos de ensino. Êsse é talvez o maior serviço
prestado pelo Brasil à cultura portuguesa, pois vem permitindo que não se estiolem vocações em
Portugal desviadas do seu curso normal. O Brasil não pergunta aos professôres quais as suas
opiniões políticas, e só quer saber da qualidade da colaboração que lhe podem trazer êsses
professôres, seja qual for a sua nacionalidade. É exatamente uma lição que proponho à
meditação dos representantes oficiais portugueses que, no próximo Colóquio, terão
oportunidade para aprender alguma coisa sôbre a maneira como no Brasil se promove a cultura
e se orienta a educação.
É de lamentar que no Brasil se duvide da isenção de representantes da cultura
portuguesa que o são ao mesmo tempo dum govêrno que deu provas em demasia de não
respeitar nem a liberdade do ensino, nem a liberdade da cultura. Mas a dúvida é infelizmente
justificada. Pergunta-se compreensivelmente, como pode haver diálogo entre um povo livre e
um povo de bôca tapada. Os mais otimistas acham, com encantadora igenuidade [sic], que,
sendo a cultura desinteressada, êsse problema está fora de questão. Mas isto é o mesmo que
supor a tal separação entre um povo e a sua cultura. Admitir que uma ditadura não prejudica a
“alta” cultural [sic] equivale a considerar esta última um puro bizantinismo; supor a sua isenção
é descrer da sua realidade, é ver na cultura um devaneio sem consequências nem implicações...
É, sobretudo, cômoda hipocrisia de que [sic] vê alguma vantagem em fechar os olhos à
evidência...18
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Indicações. In: ANDRADE, Carlos Drummond de.
Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. p.168-170.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana L. L. Reis, Gláucia
R. Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
MONTEIRO, Adolfo Casais. Carta a Ribeiro Couto. Rio de Janeiro, 27.5.1960. Rio de
Janeiro: Arquivo-Museu de Literatura; Fundação Casa de Rui Barbosa.
PIMPÃO, Álvaro da Costa. Carta a Hélio Simões, Coimbra, 10 set. 1959. Arquivo
Hélio Simões - Série Correspondência, doc. 1421, pasta 035. Salvador: Instituto de
Letras/UFBA. AHS-CA, 1959a.
PIMPÃO, Álvaro da Costa. Carta a Hélio Simões, Coimbra, 13 out. 1959. Arquivo
Hélio Simões - Série Correspondência, doc. 1449, pasta 035. Salvador: Instituto de
Letras/UFBA. AHS-CA, 1959b.
NOTAS
1 O MITO NA LITERATURA
É curioso pensar que o mito bíblico da degola de São João Batista tenha tido
tanta repercussão, tantas apropriações e passado por diversas transformações ao longo
do tempo.
Refiro-me ao mito de Salomé, cujo nome, na Bíblia não é achado em parte
alguma.
A respeito de Salomé, diz John L. McKenzie(1) que era filha de Henedes Filipe e
de Herodíades, filha de Aristóbulo, mas que seu nome não é mencionado nos
Evangelhos. Sua dança, porém, comprometeu Herodes Antipas na terrível promessa que
lhe fizera de apresentar-lhe a cabeça do profeta bíblico.
Na Bíblia, tanto Mateus como Marcos fazem referência a uma dançarina, filha
de Herodíades e enteada de Herodes, a quem é atribuída a morte de João Batista, mas
sem nomeá-la. Este, estando preso por ordem de Herodes, por recriminar o seu
casamento com a mulher do próprio irmão, Felipe, é degolado a seu mando para
satisfazer o desejo de sua enteada que, instigada por Herodíades, pede sua cabeça num
prato, para em seguida entregá-la à mãe.
Assim está em Mateus 14, 6-11:
*
Professora Adjunta de Literatura Portuguesa da Universidade Católica do Salvador (UCSAL).
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O rei entristeceu-se, mas como havia jurado diante dos convidados, ordenou
que lha dessem; e mandou decapitar João na prisão. A cabeça foi trazida num
prato e dada à moça, que a entregou à sua mãe(2)
Ora, por essas passagens percebem-se, pelo menos, três coisas a serem
focalizadas: o crime de degola de um inocente, a frouxidão de Herodes e a vingança e
crueldade de Herodíades.
Em nenhum momento, as escrituras dão relevância à figura da enteada de
Herodes a qual nem nominada é, parecendo dar ênfase à figura de sua mãe cujos desejos
de vingança são evidentes.
Nos fragmentos de textos coptas dos Evangelhos Apócrifos(5), também não há
menção ao nome da filha de Herodíades, acrescentando-se apenas que era uma jovem
bonita e com grande poder de sedução.
A jovem tinha nas mãos uma rosa fresca e um lírio vermelho que exalavam
agradável perfume. Trajava vestido de grande valor, trazia uma leve túnica de
baile adornada de flores e uma faixa de púrpura, envolvia-lhe a cintura. Usou
de todos os artifícios de sedução e cantou hinos harmoniosos.
Vendo-a a bailar e saltar de mil maneiras graciosas, o rei ficou cada vez mais
encantado. Aqueles que estavam recostados a seu lado pediam-lhe que desse
à jovem alguma recompensa digna de uma rainha.
701
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Acredita-se que esse trecho dos Fragmentos tenha sido a matriz que sofreria
diversas transformações ao longo dos tempos.
Semelhante aos trechos citados anteriormente, ela pede a cabeça de João Batista
por ordem de sua mãe, a qual lhe ordena que a traga numa bandeja.
O nome Salomé aparece pela primeira vez em “História dos Hebreus” da obra
Antiguidades Judaicas de Flavio Josefo, historiador judeu que teria vivido no primeiro
século de nossa era.
Nesse livro, há um registro da árvore genealógica de Herodes, no qual é citada
Salomé como filha de Herodíades com Herodes Felipe, Tetrarca da Itureia e de
Traconítide; Herodes era filho de Herodes o Grande e de Mariana. Herodíades, porém,
não respeitou as leis judaicas, abandonando seu primeiro marido para desposar Herodes,
seu cunhado, que usurpou o trono de Tetrarca da Galileia.
Há, pois, um registro histórico da existência de Salomé.
Há também algumas lendas que falam de Salomé como uma lenda cristã e de
sua morte como punição pela decapitação de João Batista. Segundo essa lenda,
enquanto Salomé atravessava um rio gelado, este se rompeu, ela caiu na água, o gelo se
fechou, decapitando-a.
O mito de Salomé como mulher sensual começou a vigorar, porém, no final do
século XIX, com o movimento decadentista, que absorveu os excessos pessimistas
ideológicos e artísticos desse período.
Por explorarem temas chocantes, por levarem uma vida de dissipação, de
prazeres refinados, de sensações mórbidas, doentias, enfim, por criarem um mundo
artificial, os escritores desse período foram chamados de Decadentes. A par dessas
características mórbidas, os Decadentes cultuavam um mundo mergulhado em
perfumes, essências raras, flores exóticas, música, dança.
Por volta de 1886, Jean Moreas propõe a denominação de Simbolistas para os
escritores daquela época, em lugar de Decadentes.
O fascínio que a figura de Salomé despertou então, nos escultores, pintores,
músicos, etc., é difícil de explicar. Mesmo porque a representação de Salomé, desde os
mais remotos tempos, não tinha essa carga de sensualidade e luxúria expressa no final
do século XIX.
Eleita musa da estética decadentista, foi imortalizada por vários autores entre
pensadores, poetas, dramaturgos, como sejam, Oscar Wilde, Mallarmé, Flaubert,
Eugenio de Castro, Menotti Del Picchia, Carlos Saura, etc. E por que Salomé, se as
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Ainda lembrando Wilde na sua peça, Eugênio de Castro aproveita para exibir o
seu gosto pelo luxo e pela ostentação e o seu amor ao exotismo oriental. Envolta numa
atmosfera de perfumes, flores, música, aparece Salomé dançando, anestesiada pelo
perfume inebriante e pela música. Traz em cada mão uma açucena.
No conto “Herodíades” da obra de Flaubert intitulada Três contos, ainda que a
personagem principal seja Herodíades, aparece a cena da dança de Salomé, embora o
autor veja, na figura da filha, a projeção da mãe:
No alto do estrado, ela tirou o véu. Era Herodíades, como outrora, em sua
plena juventude. Depois, ela começou a dançar. Seus pés passavam um na
frente do outro ao ritmo da flauta e de um par de crótalos. Seus braços roliços
chamavam alguém que não cessava de fugir. Ela o perseguia, mais leve que
uma borboleta, como uma Psiquê curiosa, como uma alma aventureira, e
sempre pronta a partir voando.
[...]
Quanto aos trajes, Eugênio de Castro, porém, apresenta-a envolta numa túnica
transparente a qual deixa entrever seu corpo que, ao invés de alvo, como o do conto de
Flaubert, é moreno:
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REFERÊNCIAS
NOTAS
(1) MacKenzie, 1999.
(2) Bíblia Sagrada, 1995, p. 1.301.
(3) Id., ibid., p. 1.329.
(4) Id., loc. cit.
(5) Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos, 101, p. 165.
(6) Flavio Josefo, 1956.
(7) Nota referente a História Eclesiástica, I, 40.
(8) Oscar Wilde, 1961.
(9) Eugênio de Castro, 1896.
(10) Flaubert, 1974, p. 132-133.
(11) Menotti Del Picchia, 1974, n.p.
(12) Huysmans, 1987, n.p.
(13) Carlos Saura, 2002.
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Quadros
ANEXOS
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1. DA RETÓRICA MEDIEVAL
1
Uma versão deste estudo, apresentado no Congresso da ABRAPLIP, foi publicada em livro impresso
(Maleval, 2010, p. 293-360).
2
A Rhetorica de Aristóteles mantinha estreitos vínculos com a filosofia e a dialética ou lógica. Embora
circulasse em muitas cópias no medievo, teria sido considerada sobretudo um livro de “filosofia moral”
(Murphy, 1986, p. 142). Já no século XV, as obras de Quintiliano e do Cícero maduro, como De oratore,
se destacariam no ensino da arte do discurso eloquente ou do bem dizer.
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Cristo3, que a ordenara aos seus apóstolos e lhes dera exemplos de adequação dos
discursos aos ouvintes, utilizando-se constantemente de analogias e metáforas entre o
mundo terreno e o divino, de parábolas para alcançar os menos instruídos. Baseada na
verdade incontestável das Escrituras, na sua exegese, a prédica cristã consistia na
evangelização (anúncio) e na exposição da doutrina (ensino). O apóstolo Paulo,
inclusive, destacava a necessidade de clareza para a eficácia do discurso: “se vossa
linguagem não se exprime em palavras inteligíveis, como se há de compreender o que
dizeis?” (Coríntios I, 14, 9), Bem como a conduta exemplar do pregador, na epístola ao
seu discípulo Timóteo (II, 4, 12): “Sê para os fiéis um modelo na palavra, na conduta,
na caridade, na fé, na pureza”.
A segunda fase da oratória cristã aconteceria quase cinco centúrias adiante, vazio
de séculos possivelmente decorrente da ferrenha perseguição aos primeiros cristãos.
Dar-se-ia através de Santo Agostinho, que, principalmente através do livro IV de A
doutrina cristã, concluída em 426, defendeu a importância da eloqüência para a
conversão das almas, num período que combatia as lições dos antigos, os sofistas e o
paganismo. Assumindo uma posição teológica e ética, canalizou a lição dos clássicos –
notadamente Cícero e Platão – para o ensino das virtudes cristãs através da prédica
clerical, apoiada na Graça e na fé, na pedagogia do amor ao próximo, na retidão do
pregador, na capacidade de evocação dos ouvintes e nas Escrituras como base de
conhecimento e fonte de provas incontestáveis. Colocando em primeiro lugar a
sabedoria, no entanto demonstrou que as qualidades retóricas do discurso – como
clareza, concisão, elegância, adequação do estilo à matéria – tornam mais agradável e
eficiente o aprendizado e a conversão do auditório.
Outros tratados de menor expressão surgiriam posteriormente, separados por
períodos consideráveis de tempo, o que poderia explicar-se pela preocupação maior com
as invasões bárbaras, que tornavam secundária para a Igreja a preocupação
metadiscursiva4. Já no século XI, Guibert de Nogent (1053-1124) elaborou um pequeno
3
“Cristo estableció un modelo para los predicadores cristianos de vários modos y, aún más importante,
confirmo y reforzó la práctica judia del uso de las Escrituras como prueba; distinguia escrupulosamente
entre parábolas y discurso ‘direto’, entre evangelización (anuncio) y enseñanza (exposición de la
doctrina), y hacia constantes comparaciones de lo terreno y lo divino, mediante analogías y metáforas.
Estos rasgos aparecen en la predicación cristiana hasta el dia de hoy, pero tuvieron especial relevância en
el período medieval” (Murphy, 1986, p. 282).
4
São eles: Cura pastoralis de São Gregório Magno (591) e De institutione clericorum, de Rábano Mauro
(819), que cita e/ou trancreve muito de Santo Agostinho e São Gregório. Destacando-se na Idade Média
Central a já citada De arte praedicatoria, de Alain de Lille (1199?), antecedida por Liber quo ordine
sermo fieri deveat, de Guibert de Nogent (cerca de 1084), chegamos ao século XIII, quando já se encontra
plenamente desenvolvida a teoria sobre a predicação ‘temática’ (Murphy, 1986).a primeira metade deste
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século até à Reforma, surgiriam mais de 300 tratados, notabilizando-se autores como Tomás de Salisbury,
Ricardo de Thetford e Alexandre de Ashby, que sistematizaram a forma de pregação baseada em divisões
e amplificações. E em 1322, Roberto de Basevorn reuniria, em Forma praedicandi, as contribuições
dessa terceira fase da oratória cristã.
Registre-se ainda que, para o desenvolvimento da prédica medieval, foram muito importantes a
tradução da Bíblia para o latim, supervisionada por São Jerônimo no século IV, bem como as exegeses
que sobre a Vulgata vieram a lume. E ainda a liturgia cristã, que contemplava a leitura bíblica seguida de
comentários em cultos regulares, pelo menos dominicais.
Outra obra fundamental para esse desenvolvimento foi, sem dúvida, Etimologias, de Santo Isidoro
de Sevilha que, embora referindo-se de forma sucinta à retórica, forneceria elementos importantíssimos
para a técnica da amplificação, através do saber enciclopédico que apresenta sobre as instituições e os
seres, a partir de procedimentos lingüísticos.
5
Observemos que Isidoro de Sevilha distingue sobretudo os três primeiros. Da mesma forma Hugo de
São Vitor, que compara os sentidos da Escritura Sagrada a um edifício, em que a história seria o
fundamento, a alegoria os muros, a tropologia a ornamentação.
6
“Praedicatio est, manifesta et publica instructio morum et fidei, informationi hominum deserviens, ex
rationum semita, et auctoritatum fonte proveniens” ( P. L., t. 210, col. 111; Apud Davy, 1931, p. 3).
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7
“Debet captare benevolentiam auditorium a propria persona per humilitatem... debet etiam promittere se
pauca dicturum et utilia; nec se trahi ad hoc nisi amore auditorum, neque etiam se loqui, quod majoris sit
scientiae aut prudentiae vel melioris vitae...” (Davy, 1931, p. 32).
8
“...debet accedere ad auctoritatis propositse expositionem, et totam inflectere ad auditorum
instructionem; nec auctoritatem nimis obscuram vel difficilem proponat, ne auditores eam fastidiant, et ita
minus attende audiant... poteri etiam ex ocasione interserere dicta gentilium, sicut et Paulus apostolus
aliquando in epistolis suis philosophorum auctoritates interserit” (P. L,. t. 210, col. 113-114; apud Davy,
1931, p. 32).
9
“Non debet habere verba scurrilia, vel puerilia vel rhythmorum melodias et consonantias, metrorum,
quae potius fiunt ad aures demulcendas quam ad animum instruendum, quae praedicatio theatralis est et
mimica, et ideo omnifarie contemnanda...” (P. L., t. 210, col. 112; apud Davy, 1931, p. 33).
10
Considera nove tipos: advogados ou oratores, doutores, outros prelados, príncipes, soldados, enclausurados,
casados, viúvos e virgens. Isto porque diversos podem ser os assunto tratados no sermão, desde que direcionados para
o ensino da religião e da moral. E sublinha que o tema deveria ser interpretado de forma adequada às circunstâncias e
ao auditório (Davy, 1931, p. 33).
11
Omite completamente dados sobre como organizar um sermão (a dispositio), sobre o estilo (a elocutio),
e pouco se refere à pronuntiatio e à memoria. Destaca, sim, que as Escrituras fornecem idéias e provas
apodíticas, sendo, pois, dupla fonte da inventio. Emprega analogias e outras comparações mais que
formas silogísticas – enfim, conclui Murphy (1986, p. 315), baseia-se muito mais na experiência que na
retórica clássica.
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2. DO BOANERGE CALISTINO
12
“Sin embargo, a pesar del gran interes y de los estrechos lazos que unieron a este papa con Santiago y
su Iglesia, és más que improbable que haya sido él el artífice del Códice o de los textos que se le
atribuyen. Las dos cartas que el Calixtino pone como salidas de su pluma son a todas luces falsas, y la
atribución a Calixto II de múltiples textos obedece a la intención de aumentar la autoridade de la obra,
poniéndola bajo la responsabilidad de alguien cuya reputación de favorecedor de Compostela era
sobradamente conocida” (Temperán Villaverde, 1997, p. 31).
13
No final do século XII completar-se-ia a cisão entre Roma e Constantinopla (Le Goff, Schmitt, 2002, p.
135), cuja “incompreensão mútua” já se acentuava no século IX, “devido às rivalidades pela dominação
espiritual e política das populações ainda pagãs, ou em vias de conversão...” (Le Goff, Schmitt, 2002, p.
132) – este século IX, aliás, é o mesmo da inventio ou descoberta do túmulo jacobeu.
14
Compõe-se de cinco livros: o primeiro e mais extenso (ocupa mais da metade do Códice) com sermões,
missas, cânticos e outras costumeiras do ofício litúrgico; o segundo, com vinte e duas narrativas de
milagres de São Tiago, considerados autênticos pela Igreja; o terceiro, com narrativas da trasladação do
corpo do Apóstolo da Palestina à Galiza; o quarto, também chamado de Pseudo Turpim (porque falsa
seria a sua atribuição ao arcebispo de Reims), com narrativas das incursões de Carlos Magno na Espanha,
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martirizado (no ano 44, na Judéia) e um dos mais diletos discípulos de Jesus Cristo,
junto com o irmão João e Simão Pedro: apenas aos três o Mestre nomearia – aos irmãos
chamou de Boanerges e a Simão de Pedro; e apenas diante deles se transfigurou no
monte Tabor, obrou o milagre da ressurreição da filha de Jairo e permitiu que lhe
presenciassem a agonia no Getsêmani ao se aproximar o momento da Paixão.
Um desses sermões (Líber, Livro I, capítulo XV, p. 68-182) tem a autoria
atribuída, não sem questionamentos15, devido aos anacronismos que apresenta16, a São
Máximo, bispo de Turim (até cerca de 461), e ao papa São Leão I (440-461) – portanto,
a respeitáveis autoridades eclesiastas do século V (Moralejo, 1998, p.168). Através
desse recurso retórico – da auctoritas – já se objetivaria conquistar o ouvinte, ou leitor,
a receber com respeito e atenção a prédica, que tem por escopo o enaltecimento das
virtudes e do prestígio do Apóstolo junto a Jesus Cristo, bem como a exemplaridade de
sua coragem e fé inabaláveis diante dos obstinados judeus e da crueldade de Herodes.
Deixando de lado maiores considerações sobre a divisão do tema e seu
desenvolvimento, a que já procedemos em estudo anterior (MALEVAL, 2009),
passamos à insistência com que o sermão investe na exegese do nome que foi dado pelo
Senhor a Tiago e ao seu irmão João: Boanerges, que significa “filhos do trovão”.
No âmbito da amplificatio própria dos sermões e dos discursos epidíticos em
geral, parte-se da caracterização física do trovão para chegar-se ao sentido figurado da
sua atribuição aos irmãos Zebedeus: “O trovão fere as nuvens, emite relâmpagos, faz
tremer a terra e a rega com a chuva. Isto, em sentido figurado, foi concedido pelo
Senhor a S. Tiago e a S. João em maior abundância que aos demais” (Liber, 1998, p.
176; traduzimos).
Sendo Tiago mais velho que João, o Evangelista, naturalmente começara “a
trovejar primeiro”; e, “pleno do Espírito Santo, feriu as nuvens judaicas com a sua
prédica. Enfrentou a malícia dos judeus, a dureza de seu coração, a inveja” (Liber, 1998,
p. 176; traduzimos). A sua prédica, assim relacionada ao trovão, consistiria em
para defesa do Santo Sepulcro, liberação dos seus caminhos e combate aos muçulmanos; o quinto, um
Guia medieval do peregrino. Ainda apresenta um Apêndice, com cânticos, milagres, cartas, etc.
15
É autor de panegíricos sobre os apóstolos e mártires, homilias e sermões, que aparecem nos códices e
primeiras edições ao lado de obras de São Leão e de São Pedro Crisólogo.
16
Mas nem entre os textos de São Máximo nem nos de São Leão este sermão se registra. E apresenta
referências anacrônicas, que podem ser consideradas interpolações do editor, a fatos posteriores ao século
V. A saber: uma citação de S. Beda, o Venerável, que viveu de 672 a 735; a universalização do culto a S.
Tiago e da peregrinação ao seu túmulo (sendo que a revelatio do túmulo ter-se-ia dado apenas no século
IX, ao bispo Teodomiro, de Iria Flavia; e o apogeu da peregrinatio ocorreria séculos adiante, no XII); os
assaltos e enganos de que eram vítimas os peregrinos nas hospedarias (documentados no códice inclusive
em milagres que teriam ocorrido em séculos posteriores).
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demonstrar ser Jesus o prometido pela lei e pelos profetas, bem como em patentizar os
benefícios que lhe eram devidos e ameaçar com os tormentos eternos aos que não
aceitassem o Messias.
No processo metalingüístico que nele se estabelece, apresentam-se as seguintes
analogias: trovejar = ameaçar, relampejar = operar milagres, derramar chuva = alegrar e
confortar os fiéis. E se insiste nos objetivos da prédica: explicar as Sagradas Escrituras,
exaltar a Jesus Cristo, confundir-lhe os opositores – vencê-los com arrazoados
contundentes, envergonhá-los com o testemunho de autoridades, atordoá-los “com o
poder dos milagres”17.
O alcance dessa prédica é exemplificado com a conversão do poderoso mago
Hermógenes, que, segundo a narratio, teria sido contratado pelos judeus para prejudicar
o Apóstolo. E, no episódio da perseguição e martírio de Tiago Maior por Herodes
Agripa18, é corroborada a idéia da sua superioridade sobre os demais apóstolos, por ser
o primeiro dentre eles a alcançar a coroa do martírio19. Destaca-se, então, que “com
mais ardor e valentia pregava a Cristo e confundia aos judeus com o testemunho da Lei
e dos Profetas” (Liber, 1998, p. 179; traduzimos).
Ao concluir a prédica, a exortatio recomenda a imitação do patrono, inclusive
novamente através da metáfora do trovão: “Imitemos, pois, a S. Tiago, e com sua
imitação e auxílio façamo-nos filhos do trovão”, rompendo as nuvens dos pecados com
a prédica livre da adulação servil, enfrentando os valores terrenos com o exemplo da sua
santidade, regando com chuva os corações dos humildes para que lhes cresçam as
virtudes (Liber, 1998, p. 181-182; traduzimos). O sermão seria, portanto, dirigido a
clérigos, já que incentiva a prédica e imitação das qualidades de Tiago – a coragem, a
piedade, a caridade.
Lembramos que a conduta do orador foi sempre motivo de preocupação dos
teóricos da oratória. Por exemplo, já ensinava Aristóteles ser “absolutamente necessário
17
“Assim S. Tiago trovejava com as ameaças e assim escasseava a densa massa dos pecados.
Relampejava com milagres, e assim iluminava a mente dos simples; derramava chuva benéfica quando
regozijava e confortava os corações dos humildes. Explicava os oráculos dos profetas, os mistérios das
Sagradas Escrituras, exaltava por todos os meios a Cristo. Os escribas e fariseus eram confundidos, os
quais mais destruíam a lei que as expunham. Confundia os saduceus, que negavam a ressurreição com
argumentos enganosos. Confundia sobretudo, com razões contundentes, aos que crucificaram a Cristo, os
quais não sabiam o que fazer, nem que partido tomar. Vencia-os com razões, envergonhava-os com os
testemunhos de autoridade, confundia-os com o poder dos milagres” (Liber, 1998, p. 177; traduzimos).
18
Herodes Agripa se apresenta bem diferenciado, no sermão, do Tetrarca Herodes, seu avô, algoz de João
Batista, sendo no entanto assemelhados em crueldade e ambição.
19
Foi degolado onze anos após a Paixão de Jesus, no terceiro ano do Império de Cláudio, estando
próxima a solenidade da Páscoa. Essa informação aparece atribuída, corretamente, a Beda em Atos do
Apóstolos (Cf Moralejo, 1998, p. 179).
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No final do mesmo século XII em que o Codex Calixtinus fora composto para
divulgar a exemplaridade de Tiago, outra “voz de trovão” surgiu para, do seio do
franciscanismo no século XIII, espalhar a doutrina cristã: o português Santo Antônio.
Santo António nasceu em Lisboa, em 1991 ou 199220, de família nobre ou
abastada, recebendo no batismo o nome de Fernando Martins. Sua formação deu-se no
lisboeta convento de S. Vicente de Fora (a partir de 1209) e posteriormente no de Santa
Cruz de Coimbra, onde teria entrado em 1210 ou 1211 e se ordenado entre 1218 e 1220.
Ainda em 1220 teria passado à Ordem dos Frades Menores, desejoso de partir
para Marrocos em missão evangelizadora. Mas, por motivo de doença, foi obrigado a
retornar, sendo então a sua embarcação levada por ventos contrários à Sicília, onde
aporta em 122121.
Na impossibilidade de nos determos por ora na sua Vida, salientamos que a
revelação da sua eloqüência ímpar dar-se-ia durante uma cerimônia de ordenação de
dominicanos e franciscanos na cidade de Forli, em 24 de setembro de 1222, ao ser
instado a pregar diante da recusa dos demais. A partir de então predicou de forma
20
Dados biográficos baseados em Sousa Costa e Vergilio Gamboso (apud Sobral 2000, p. 320-323).
21
Ainda neste ano participaria do capítulo geral da Ordem em Assis, presidido pelo próprio São
Francisco, após o qual é enviado como sacerdote para o eremitério de Monte Paulo.
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admirável, em Rimini contra os cátaros, no sul da França e de novo na Itália; isto a par
do exercício de outras funções de prestígio docentes e administrativas22. Dedicou-se nos
últimos anos da sua vida à redação dos sermões e à pregação, vindo a falecer em 13 de
junho de 1231, no mosteiro de Cella. O sepultamento em Pádua apenas aconteceria em
17 de junho, após grave contenda entre os que reivindicavam o seu corpo: as clarissas
de Cella, os cidadão de Capo di Ponte e os frades de Santa Maria. Durante o enterro,
registrou-se a ocorrência de tantos milagres que a sua canonização foi levada a cabo no
ano seguinte, em 30 de maio de 123223. Um dado pelo menos curioso é que, ao se
efetivar a primeira exumação do corpo, em 8 de abril de 1263, presidida pelo então
geral da Ordem, S. Boaventura, a sua língua fora encontrada incorrupta. Isto serviria
para destacar a sua qualidade e serviço maior: a prédica.
Cristina Sobral (2000, p. 331) comenta minuciosamente o contexto de produção
de um Flos Sanctorum do século XV, na verdade uma refundição da Vita Prima ou
Assidua feita por Paulo de Portalegre, que teria sido concluído em 1488 (Sobral, 2000,
p. 346). Essa refundição teria servido de base ao Flos Sanctorum de 1513, do qual a
pesquisadora procedeu à edição crítica da parte relativa aos santos ‘extravagantes’ (isto
é, não constantes em legendas anteriores), dentre os quais se inclui Santo António.
Para o escopo de nossas reflexões, importa observar que, do cotejo estabelecido
por Sobral entre a obra de Portalegre e a primeira legenda antoniana, a Vita Prima ou
Assidua de 1232, resulta a constatação da “modificação do retrato do santo” (Sobral,
2000, p. 350). Esta afeta diretamente à concepção da oratória sacra, investindo o autor
do século XV no seu lado providencial, de Graça divina concedida, num visível
combate à vaidade, ao orgulho, à arrogância dos intelectuais24. Assim, deixa de lado as
informações sobre a formação erudita do jovem Fernando e nos apresenta um santo
apenas dotado de “instrução rudimentar, virtuoso e inclinado ao martírio” (Sobral, 2000,
p. 352).
22
Foi o primeiro leitor franciscano de Teologia, de 1223 a 1224 em Bolonha, ensinando também em
Montpellier e Toulouse ao redor de 1225; foi ainda custódio no Limousin por volta de 1226, quando
inclusive fundou conventos em Brive; ministro provincial do norte da Itália, de 1227 a 1230; mestre de
Teologia na escola franciscana em Pádua, chegou a ser. recebido pelo Papa em Roma no ano de 1230.
23
Cultuado primeiramente na Itália e em seguida também em Portugal, logo após a canonização, neste
seu país de origem firmar-se-lhe a devoção sobretudo com a Dinastia de Avis, quando aumentou
consideravelmente o prestígio franciscano na corte. No âmbito popular, o seu culto parece ter-se
contaminado pelas festas pagãs solsticiais, integrando-se ao seu ciclo; daí, sobretudo, a sua invocação
como santo casamenteiro e das coisas perdidas (Rema, 2000, p. LVI).
24
Que, aliás, é uma tônica da sua época, como se pode constatar em obras coevas como o Orto do
Esposo.
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Mas basta um olhar sobre o Prólogo geral dos sermões de Santo António para
percebermos o quanto de ciência possuía sobre a arte de pregar – evidentemente que
uma ciência respaldada no ‘Livro da Verdade’, a Bíblia, na qual destaca estar “a
plenitude de ciência” (António, 2000, vol. I, p. 6).
Nesse Prólogo, na esteira dos que, como Santo Agostinho e Guibert de Nogent,
se debruçaram sobre a técnica de exegese da Bíblia, fundamental para arte da prédica,
compara, a partir do Gênesis 2, 11-12, a Sagrada Escritura à terra, “que primeiramente
produz a erva, depois a espiga e, finalmente, o grão maduro na espiga” (António, 2000,
v. I, p .5). Esclarece, a seguir, os vários sentidos – alegórico, topológico e anagógico –
que devem ser buscados nas lições bíblicas: “a erva constitui a alegoria, que edifica a
fé”; “na espiga, chamada assim de spiculus (ponta), entende-se a moralidade, que
informa os costumes e com a sua doçura transpassa e fere o ânimo”25; e, no grão
maduro, “figura-se a anagogia, que trata da plenitude do gozo e da felicidade angélica”
(António, 2000, v. I, p. 5).
Comparando os seus sermões a uma quadriga de quatro rodas, sendo as rodas a
matéria que os sustentam, esclarece serem estas “os Evangelhos dos domingos, factos
históricos do Velho Testamento, tais quais se lêem na Igreja, os intróitos e as Epístolas
da missa dominical” (António, 2000, p. 7-8).
25
Observa Rema (2000, p. LIV) que, como Guibert de Nogent (PL 156, 25-26), Santo António “privilegia
a regra da moralidade” sobre as demais; não se atém ao sentido histórico ou literal, talvez por ser o mais
óbvio.
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26
Como bem observa Rema (2000, p. LX), retiradas “das Glossas, de Santo Isidoro de Sevilha, do léxico
de Pápias, de Solino, de Aristóteles, etc”.
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para que a palavra de Deus, com dano das suas almas, não lhes merecesse
desprezo e enfado, no princípio de cada Evangelho pusemos um Prólogo
correspondente ao mesmo Evangelho, e inserimos no mesmo trabalho uma
exposição moral sobre a natureza de coisas e de animais e etimologias de
vocábulos. Também os inícios de todas as sentenças escriturísticas citadas
nesta obra, a partir das quais pessoa competente pode tratar o tema do
sermão, os compilamos numa tábua. E no princípio do livro anotamos os
lugares em que se podem encontrar e aquilo que convém a cada discurso
(António, 2000, p. 8-9).
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Vós, diz Cristo, senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra;
e chama-lhe(s) sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O
efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta
como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou
qual pode ser a causa desta corrupção? (Vieira, 1978, p. 17)
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aos maranhenses. Daí decidir-se, como Santo António, a “já que os homens se não
aproveitam, pregar aos peixes” (Vieira, 1978, p. 20).
Abrimos um parêntese para lembrar que também no Sermão da Sexagésima
Vieira assumira uma posição claramente metadiscursiva com relação à prédica; e o fez
de forma mais completa, já que analisa detidamente todos os elementos da arte de
pregar – o pregador, a mensagem e o auditório. Partindo da parábola evangélica do
semeador – sendo este a metáfora correspondente ao pregador, a semente à palavra de
Deus e o solo ao auditório –, destacara então o papel fundamental do orador para o
alcance da finalidade da prédica. E, numa evidente crítica aos dominicanos seus coevos,
atribui ao semeador a maior culpa da ineficácia dos sermões, sobretudo pela falta de
clareza, pelos barroquismos dos seus discursos.
No Sermão aos peixes, levará em conta sobretudo o auditório. Aqui, como vimos,
a crítica se dirige aos maranhenses, sobretudo aos colonos que, por motivo da
escravização do gentio, detestavam os jesuítas, que a combatiam.
Retoma, na segunda das cinco partes em que se divide o sermão, a metáfora do sal
relacionada ao pegador e à prédica. Então, estabelece, como o seu paradigma Santo
António e a tradição parenética de que foi um dos expoentes, que duas são as
propriedades do sermão: “louvar o bem para o conservar e repreender o mal para
preservar dele” (Vieira, 1978, p. 21). Esta a divisão que estrutura a sua pregação:
louvará primeiramente as virtudes dos “peixes”, todas possuídas por Santo António, e
posteriormente repreender-lhes-á as faltas, ausentes no taumaturgo exemplar. Estas
seções, de louvação e repreensão, serão por sua vez subdivididas cada uma em
características gerais e particulares dos “peixes”, cada subdivisão correspondendo a um
capítulo27.
27
A seção das louvações por sua vez se subdividirá em: geral (capítulo 2) – onde tratará das virtudes
comuns a todos os “peixes”; e particular (capítulo 3) – onde tratará das virtudes específicas de alguns
peixes, como o peixe grande de entranhas curativas do episódio bíblico de Tobias e, no âmbito da história
natural, a pequena mas poderosa rêmora, comparada à língua de Santo António, capaz como esse
peixinho de travar o leme das naus – no caso, o livre arbítrio contra a soberbia, a vingança, a cobiça e a
sensualidade, vícios alegorizados por Vieira em naus (Vieira, 1978, p. 31). E ainda, o torpedo e o quatro-
olhos, capazes de melhor atingir e defender-se dos opositores.
A seção das repreensões também se subdividirá de forma análoga, do geral (capítulo 4) ao
particular (capítulo 5). Aqui nos deteremos, por se tornar mais explícita a crítica do jesuíta ao
maranhenses.
Continuando a camuflar a sua invectiva através da alegoria, passa a conceituar cada um dos
espécimes que escolheu para simbolizar as faltas dos seus adversários: o roncador, o pegador, o voador e
o polvo. Através do roncador, que possui esse nome por roncar de forma semelhante a um porco, critica a
arrogância relacionada ao saber e ao poder, opondo os que a praticam a Santo António, que “tendo tanto
saber (...) e tanto poder (...), ninguém houve jamais que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais
brasonar disso. E porque tanto calou, por isso deu tamanho brado” (Vieira, 1978, p. 49). Por meio dos
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REFERÊNCIAS
AGOSTINHO (Sto.). A doutrina cristã. Trad. Ir. Nair de Assis Oliveira, csa. São Paulo:
Paulus, 2002.
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. de António Pinto de Carvalho. Rio
de Janeiro; Ed. Ouro, [s.d.]
pegadores, ataca aos astutos, “os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores" (Vieira,
1978, p. 50) e que com estes perecem – ao contrário de Santo António, que somente a Deus apegou-se.
Com os voadores condena os ambiciosos, inclusive lançando mão da sentença “Quem quer mais do que
lhe convém, perde o que quer e o que tem” (Vieira, 1978, p. 54). O modelo a ser seguido é sempre Santo
António que, diferentemente de Ícaro, possuindo asas de sabedoria “natural e sobrenatural”, “encolheu-as
para descer” (Vieira, 1978, p. 55). Finalmente o polvo alegoriza os dissimulados, os falsos, os hipócritas e
traidores – ao contrário de santo António, “o mais puro exemplar da candura, da sinceridade e da verdade,
onde nunca houve dolo, fingimento ou engano” (Vieira, 1978, p. 58).
28
Consola os peixes e desconsola os homens: aqueles não ofendem a Deus por palavras, lembranças,
entendimento ou vontade. Cumprem a missão para a qual foram criados: servir aos homens. Ao passo que
os homens não cumprem a que lhes compete: servir a Deus. Isto após ter defendido que os peixes não
foram escolhidos para sacrifício ao Senhor por não poderem chegar vivos a ele, ao passo que os homens,
desrespeitosamente, vão mortos pelos pecados ao seu culto.
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FERRO RUIBAL, Xesús (Dir.). Dicionário dos nomes galegos. Vigo: Ir Indo ed.,
[1996].
ISIDORO de Sevilha (Sto.). Etimologías. Trad. José Oroz Reta y Manuel-A Marcos
Casquero. Introd. de Manuel C. Diaz y Diaz. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
2004.
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negro da noite e anuncia estrondosamente a sua passagem, mas a velha não a vê, não
percebe a sua aproximação; acabou de ser informada da morte do seu filho que há anos
partira para o Brasil.
Configurando um ser monstruoso, a descrição do trem é feita com elementos que
ecoam o apocalipse. Seus olhos de peixes, próprios aos grandes sáurios, aproximam-no
em força à imagem do Leviatã que, na Bíblia, aparece como crocodilo ou, como nos
dizem os capítulos 40 e 41 do Livro de Jó, o rei de todos os animais ferozes. No diálogo
entre Deus e Jó, é visível a força destrutiva do monstro: “... quem alguma vez o
enfrentou e se salvou? (...) a quem o ataca, não adiante espada... Ele tem o ferro na
conta da palha e o bronze como se fora pau podre. Das narinas escapa uma fumaça
como a de uma caldeira que cozinha e que ferve / O seu hálito acende os carvões”
(Bíblia, 1993, pp. 584-585).
Na descrição do trem, é enfatizada essa mesma força feita de ferro e fogo. A
locomotiva, “jogo de válvulas, bruscos vômitos de fumaradas”, rasteja, anela-se como
uma serpente e atrai a vítima indefesa, já dominada pela atração hipnótica exercida pelo
olhar do monstro, pois a mãe, ao saber da morte do filho, deixa de perceber o mundo a
sua volta, apenas avança para a linha do trem, sem ouvir os ruídos da máquina.
O trem é visto ao longe pelo penacho de fumo que a labareda doura, é um cavalo
danado que avança, em carreira furiosa, como “um hausto de relâmpago que atravessa a
noite” - ferros se chocam, fosforejam, zumbem, fumando, bramindo, “ululando da
goela de um subterrâneo profundo”. São imagens ruidosas, de fogo e força, atuando na
noite escura. Também quanto à estrutura física, a descrição insiste na lembrança do
Leviatã, encontrada no Livro de Jó:
O seu dorso é formado por uma fileira de escudos / Fixados por um selo de
rocha duríssima / Um está unido ao outro e um sopro não passa entre eles (...)
uma couraça de dupla malha, onde ninguém nunca penetrou. E da sua boca
saem chamas / e dela saltam centelhas de fogo. (Bíblia, 1993, p.585)
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natureza e com as formas de produção familiar. Mas o seu texto é melhor apreendido, a
partir de um olhar sobre a vida portuguesa do período.
O comboio de Lisboa, personagem indiscutivelmente poderoso, corresponde no
processo da evolução da economia portuguesa, à força maior contra a falta de
transportes, que os políticos, há muito, denunciavam como principal causa da falta de
desenvolvimento econômico. Até os meados do século XIX, a única estrada
macadamizada era a que fazia a ligação Lisboa-Coimbra, construída antes das invasões
francesas. Essa estrada garantia que a viagem se realizasse em três dias e o transporte
era feito numa diligência de quatro lugares que, em 1804, deixou de funcionar porque a
viagem era bastante dispendiosa e não havia tantos passageiros suficientemente
abonados para arcar com as despesas,
Na segunda metade do século XIX, propaga-se em Portugal uma ideologia oficial
de progresso identificada com o desenvolvimento material, mas as condições de vida, de
cultura e o nível de consciência do trabalhador rural não evoluíram. A produção
industrial não obteve dinamismo suficiente para fazer frente à mecanização européia. A
falta de crescimento da produção nacional determinou a dependência do capital
bancário interno ou externo.
Os rails, os fourgons, ou o plaid, termos que Fialho de Almeida incorpora em seu
texto, assim como todos os termos estrangeiros que entraram em Portugal nesse período
(carpete, purê, bebê, bife, pudim, clube, toillete, etc) ou, ainda, as novidades ligadas à
ciência, à filosofia ou ao pensamento são significativos de um desenvolvimento que
esteve alheio aos reais problemas de ordem econômica. Um desenvolvimento que nada
oferece à melhoria de vida do camponês promove o seu desenraizamento.
O conto de Fialho de Almeida está atento a questões sociais que decorrem da
lentidão com que se desenvolveu a capitalização industrial em Portugal. Em 1840,
existiam somente quatro máquinas a vapor, destinadas à indústria, contra milhares em
toda a Europa. A produção portuguesa só encontrava mercado na província ou nas
colônias, porque seus resultados não se comparavam em qualidade aos dos produtos
importados dos países industrializados.
Principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, a literatura nos
oferece inúmeras leituras da sociedade da época e da ideologia oficial sintonizada com a
noção de progresso, enquanto melhoramentos materiais. Nesse contexto, os autores, em
menor ou maior grau, viam a literatura como instrumento de reforma social e a ambição
documental do Realismo não deixou de impor as suas normas.
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E os mais novos, quinze anos, dezesseis, dezoito anos, todos alegres daquela
primeira migração às sementeiras lá de baixo, esses não param examinando
tudo pelos cantos, espantados, deslumbrados, fulvos e bonitos como
bezerrinhos de mama; e ei-los estacam diante dos relógios, dos aparelhos do
telégrafo, a sala do restaurante cheia de flores... (Almeida, s/d, p. 90)
cara ressequida e cor de cera, que desde viúva perdeu o riso, emurchecendo e
mirrando na solidão de um casebre, com a esperança porém no dia em que o
rapaz, tornado do Brasil, lhe fizesse passar sem fome os derradeiros poentes
da velhice. (Almeida, s/d, p.89)
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volta, garantindo um possível retorno dos filhos, que se vêem obrigados a deixar a
terra.
Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, diz que, em cada um de nós, existe
uma casa onírica. Todo lugar verdadeiramente habitado traz a noção de casa como
sendo um espaço vital, sujeito à dialética da vida; canto do mundo, no qual nos
enraizamos. A imaginação constrói as paredes e o indivíduo reconforta-se com a
sensação de proteção; “.vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade através do
pensamento e do sonho” (Bachelard, s/d, p.23). Assim, o refúgio traz o benefício, não
só pela sua existência presente, mas pela evocação de um passado imemorial, posto que
é síntese da memória e da imaginação. Lembrança e imagem alimentam o “sonhador do
lar” e a casa, mais que paisagem, é um estado de alma. Mesmo reproduzida em seu
aspecto exterior, fala de uma intimidade”.
Em O Filho, as referências ao lar apontam para uma identidade cuja firmeza é
dada pela intimidade com a natureza. São as lembranças da terra natal, onde “perfilam-
se as colunatas do pinhal, em gradações difusas, delicadas como um desenho a carvão
sobre que alguém tivesse sacudido um lenço de assoar.” e a memória das tradições
“fados chorosos, melodias locais duma tristeza penetrante”(Almeida, s/d, p. 92), que
sustentam essa idéia de casa, enquanto raiz e refúgio.
Na narrativa de Fialho de Almeida, a terra de nascimento ganha um tom
idealizado, mas é também o local de pobreza e privações e deverá, por isso mesmo, ser
abandonado. A idealização é expressada pela relação de simpatia, estabelecida entre os
humanos e os elementos da natureza e pela apresentação de relações humanas afetuosas;
enquanto a ameaça de perda é indicada pela dispersão, inerente ao movimento
migratório, que por sua vez foi causado pela miséria.
É interessante perceber que a linguagem também atua para fornecer identidade.
No linguajar característico dos montanheses: “as palavras crepitam, cascalham os xx e
a pronúncia beirã veste de graças uma língua cortada de termos antiquados fina e
poética” (Almeida, s/d, p.91).
Ao lado da intimidade nostálgica, que une os rapazes na estação, o narrador
introduz, logo no início do conto, a miséria dos jovens trabalhadores, amontoados na
sala de espera da terceira classe, com suas roupas de saragoças, a tasquinhar um horrível
pão de milho. Mais evidente ainda é a condição paupérrima da velha mãe, acocorada no
chão da sala de espera, “descalça de pé e perna como em geral andam as mulheres
pobres da Bairrada” (p.88), carregando num saquinho de estopa o farnel que esperava
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partilhar com o filho. Veio a pé, caminhando por entre os pinhais, até chegar à estação,
onde foi advertida pelo guarda para que se desviasse dos trilhos. Assustada, a velha
tentava explicar que era de fora e, titubeante entre as tantas novidades, saía a perguntar
ingenuamente às pessoas se tinham visto, por ali, um rapazote sem barba nenhuma,
com uma cicatriz que lhe ficou de um carbúnculo, “seu filho!”, que deveria chegar no
comboio de Lisboa.
Somente um pobre tarimbeiro montanhês, talvez por que a pobre mulher o fazia
recordar-se de sua mãe, ouviu pacientemente a história da ausência, das saudades e da
doença do filho, que voltava para casa, sem fortuna nenhuma.
Como já foi dito, o conto traz como pano de fundo a situação de Portugal do
século XIX, momento em que o campo representava o principal estaleiro do trabalho
português (ainda em 1900, 61 % da população trabalhava na agricultura), As reformas
agrárias, com vistas ao crescimento econômico, tiraram dos camponeses as
“comedorias”, a parte do salário paga em azeite, toucinho, farinha - alimentos
indispensáveis ao aldeão e o salário que recebiam não era suficiente para comprar o
necessário à subsistência.
Nesse contexto, a construção das vias férreas foi vista como solução para o
desenvolvimento da economia portuguesa. Sobre essa questão, é pertinente a ordenação
de idéias estabelecida por Saraiva:
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quase toda para o Rio de Janeiro, sendo sua grande maioria constituída por camponeses
e gente sem profissão. Parte ficava na cidade e o restante ia para o interior substituir a
mão-de-obra escrava. O número de emigrantes que conseguiu regressar à sua pátria foi
pequeno - a grande massa partiu pobre e morreu pobre, O Brasil era, dizia-se, o
cemitério dos portugueses” (Saraiva, s/d,p. 319).
O filho imaginado por Fialho de Almeida também não conseguiu voltar à sua
terra. Suas cartas à saudosa mãe exibiam lamentos e não esperanças. O filho queixava-
se, falava de doenças, tristezas, saudades de Vacariça e pedia orações. A sua morte,
quando já estava a caminho de casa, somada à morte da mãe traduzem o fim de uma
estrutura familiar. Em termos produtivos, essa estrutura entrava em descompasso com a
política agrária adotada por Portugal cuja principal promessa era inserir o país no
desenvolvimento europeu.
Muitos textos ficcionais trazem essa imagem do retorno impossível, que está
presente no conto de Fialho de Almeida. Pedro Ivo, com a narrativa A Doida de
Tagilde, publicada em 1874, conta a história de uma moça que enlouquece ao saber
que o noivo havia morrido no Brasil, local para onde o rapaz emigrou, na esperança de
conseguir o dinheiro necessário para o casamento. Embora já tivesse chegado à aldeia a
notícia da morte do emigrado, sua noiva recusou-se a aceitar tal fato e continuou a
esperar, indefinidamente, pelo impossível regresso do rapaz. Separou-os o Brasil, o país
“dos sonhos ambiciosos desses que vão colher areias de ouro em rios de lágrimas” (Ivo,
s/d, p. 86), lugar onde Francisco foi buscar o “futuro”, cobrado de antemão pelo pai da
moça que exigia que o pretendente tivesse mais que “fortes braços para o trabalho”. Ali,
na aldeia, a possibilidade de ganho era relativa à força do trabalho, nem mais nem
menos, de forma que Francisco não tinha como rebater o argumento usado pelo pai de
Maria para impedir o casamento: “Não olhe para os braços, homem! ... São bons... bem
sei... mas braços quebra-os uma doença... e depois?” (Ivo, s/d, p. 71). O velho exigia,
em troca do seu consentimento, uma garantia, que assegurasse o sustento da filha, caso
“faltassem os braços” do marido.
O Brasil aparece como salvação, única forma de ganhar mais do que a justa
medida do sustento. Em dois anos de trabalho poderia juntar o suficiente para comprar a
sonhada “casinha”, um campo para plantar e ainda para juntar a reserva de dinheiro, na
verdade um “seguro” maior que os braços, fortes e saudáveis, do jovem carpinteiro. Foi
com essa justificativa que Francisco conseguiu convencer sua noiva a deixá-lo partir
para o Brasil, mas a viagem foi sem volta. As duas primeiras cartas trouxeram consolo e
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(p. 92). Ela é a imagem da pobreza, não possui absolutamente nada, seu único bem é a
memória que traz do filho, por isso não pôde compreender por que o soldado, com
quem conversava, lhe disse que depois de dez anos o rapaz haveria de estar muito
mudado. “Mudado. O filho dela mudado!”. Não lhe parecia possível que a lembrança
que guardava como um bem, a garantir conforto e alento durante os dez anos de espera,
tivesse outra feição.
Finalmente a espera da velha chega ao fim, as luzes acendem-se na estação, “as
cornetas dos guarda-agulhas” anunciam a chegada dos comboios e num instante a
estação fica repleta de gente - passageiros, o homem da água, o homem dos pastéis,
revisores, malas e mercadorias, em constante movimento fazem “reverdecer” o coração
amargurado da velha, que, inquieta, procura em todas as faces, a imagem do rapazote;
confunde o seu vulto na multidão; corre enganada ao encontro de uns e outros; repassa
todas as fisionomias procurando a do filho, até que encontra Clemente, de quem recebe
a notícia: “ O seu José, tia Rosa, o seu José... morreu na viagem.”.
A promessa de um futuro esgota-se naquele momento. A extrema perda e a dor
levada ao ápice traduzem-se em apatia absoluta, por isso tia Rosa não percebe o trem
que “chama-a a si subitamente”. A parte final da narrativa acentua a insignificância da
pobre mulher, em função do choque de forças absolutamente desiguais. Pequenina e
trêmula, ela foi subjugada pela maquinaria fumegante e, nem ao menos, pôde ser
enterrada no cemitério, porque o Cura da Pampilhosa alegou que ela tinha morrido sem
confissão.
Depois do fatal encontro com a velha, o trem continuou a “correr em desfilada”; a
poderosa e soberba máquina seguiu seu curso, simbolizando a força do progresso cujo
avanço não poderia mais ser freado.
Nesse confronto desigual, entre o trem e a aldeã, é possível ver pelo menos uma das
contradições embutidas no forte apelo ao progresso. Na década de 40, a ferrovia foi uma
resposta entusiasmada à falta de condições favoráveis para a circulação de mercadorias,
o que significava, na visão de muitos, a maior causa da pobreza no campo. No período,
os meios de transporte estiveram no centro de discussões realizadas por portugueses
que detinham notoriedade.
Garrett e Herculano, conscientes das contradições inclusas na proposta de
regeneração do país, levantavam objeções à empolgação progressista pela qual a
burguesia citadina se deixava levar. Garret demonstra seu juízo de valor em Viagens na
minha terra:
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REFERÊNCIAS
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Bíblia, S. Paulo: Edições Loyola / Editora Santuário, 1993.
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SERRÃO, Joel. Temas Oitocentistas – Para a História de Portugal no século passado,
Ensaios, Livros Horizonte, 1980.
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Terra sonâmbula, de Mia Couto, é uma dessas obras que nos impõe a tortura e
espécie de tormento, referendados por certa inquietação: se por um lado lê-la é a
possibilidade de convivência com um rico texto, talvez um dos mais instigantes da pós-
modernidade literária de sabor lusitano, por outro coloca-nos diante da dúvida: por que
caminho seguir? O que privilegiar? O que poderia ser mais interessante, em termos de
discussão científico-literária? O mérito de um texto sobremaneira bem construído e de
riqueza insofismável, que acaba por estabelecer e impor : se a escolha incidir no ponto
de vista do significante, sobressaem - as marcas da oralidade, tão incisivas na literatura
africana; a linguagem poética, eivada de elementos míticos, um léxico, absolutamente,
novista; enquanto do ponto de vista do significado, não há como desprezar o clamor da
guerra civil moçambicana, recriada e representada em fortes imagens literárias e nem,
tampouco, desconhecer a pluralidade de narrativas, que sinalizam uma estrutura que
perturba pela inventiva e desafiam a competência de apreensão dos observadores mais
atentos do processo de criação de literária, de caráter épico... Afora este destaques
haverá sempre muito mais a instigar o espírito e a competência de quem se propõe ler o
artista.
Neste trabalho, a proposta não constitui precisamente uma novidade, em se
tratando de Mia Couto, mas se justifica pelo destaque concedido às referências à
memória e às sugestões relacionadas com o imaginário social, em momentos
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situação inicial cria um impacto no leitor, e à medida que o texto se desdobra conclui-se
que as tintas não poderiam ser outras, para dar conta de realidade tão cruel. Trata-se de
uma cena dantesca. Enquanto o velho e o menino se dispõem a enterrar aqueles corpos
indigentes, descobrem um outro corpo à beira da estrada. Pela aparência, a morte fora
recente e o inusitado, que vai se transformar em elemento desencadear da narrativa:
junto do corpo há uma mala e nela são encontrados os cadernos que contam a história
do morto em questão, ou seja, de Kindzu. Neste ponto, inicia-se o processo narrativo,
em que assistimos a duas narrativas que se desdobram, paralelamente: a já referida
viagem de Tuahir e Muidinga, que ocupa onze capítulos e o percurso empreendido por
Kindzu, em busca dos naparamas e, simultaneamente, o de Gaspar, filho de Farida.
Terra Sonâmbula funciona como espécie de metonímia, em que as histórias
vividas ou contadas por seus personagens são índices das desventuras do povo
moçambicano, castigado por prolongadas guerras e tormentas, não só impostas pelos
conquistadores, mas também pela própria natureza, que não poupa e ora assola-o com
fortes enchentes ou ora o subjuga a longos períodos de seca.
Conforme já ficou explícito, as histórias individuais dos protagonistas, reunidos
pela pena do escritor em um mesmo eixo narrativo, têm uma particularidade, ainda que
não apresentem indícios de uma experiência comum, vivida anteriormente, acabam por
se entrecruzar, pois que convergem para situações assemelhadas, dentre elas a
referência a um longo período de 11 anos de guerra colonial, que põe em xeque as
aspirações revolucionárias de um grupo, resultando na identificação de uma “nação”
que além de desconhecer a própria terra, vaga, sem rumo, sem saber o que a espera.
Destaque-se, ainda, que a situação é de perdas, em vários níveis e sentidos:
perde-se a identidade; a esperança de paz, que possa ser divisada, mesmo como se fosse
uma luz no “fundo do túnel”; mas , dentre estas perdas, uma das mais caras, sem
dúvida, é aquela com marcas de absoluta ausência de solidariedade, enfim, as armas não
foram disparadas por inimigos, mas pelas mãos dos próprios irmãos. Uma guerra entre
irmãos resulta mais dolorosa porque não se justifica. Mata-se o inimigo para defender-
se e assegurar a liberdade, e o irmão?
Questões desta natureza ratificam que Mia Couto nos põe frente a frente a um
texto de profundidade indiscutível e de características mais que instigantes. A cada
passo há uma novidade que tanto nos surpreende quanto à expressão formal e quanto
nos remete à necessidade de ir além do absolutamente palpável, do ponto de vista do
significado.
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um sentido para a vida em meio a tanta destruição, como refere o texto: “‘ As paredes,
cheias de buracos de balas, semelhavam a pele de um leproso.”(6)
Para finalizar, as incursões acerca de elementos do imaginário, presentes em
Terra sonâmbula, lembramos um texto sobre imaginário social, de Bronislaw Bacskow,
em que ele refere “O imaginário enquanto receptáculo da imaginação, captadora de
imagens é um dos modos pelos quais a consciência apreende a vida e a elabora. Ele,
ainda, considera que o imaginário comporta os símbolos , rituais e mitos , que, em
grande medida, garantem o entendimento entre as pessoas de um mesmo grupo e entre
grupos.”(7), sendo que As utopias de hoje podem transformar-se em realizações de
amanhã.
O texto, ainda, nos possibilite uma pluralidade de interpretações, a partir do final
que nos oferece o autor, marcado por uma interessante polifonia: nele valoriza-se
histórias, História, lendas, raças... tudo isto concomitante a uma comovente paródia da
guerra civil, em Moçambique
Poderíamos dizer que encerraríamos estes comentários com certa sensação de
impotência, ante os últimos pensamentos de Bacskow. Enfim, o texto não nos permitiu
vislumbrar no destino dos nossos personagens, em particular, qualquer possibilidade
palpável de utopias realizadas.
Mas, o autor deixa uma abertura interessante :no último capítulo do livro, sem
sombra de dúvida, um magnífico encerramento de narrativa, um desfecho aberto:.
No sonho de Kindzu, refletida numa visão cuja descrição finaliza o romance, a
paz também é resgatada, e com ela a possibilidade das pessoas recuperarem a sua
identidade e consequente humanidade. Kindzu, finalmente um naparama, salva seu
irmão Junhito, ameaçado pelas personagens que representam a corrupção, a violência, a
extorsão, enfim, os “fazedores de guerra”. Kindzu deseja se “apagar, perder voz,
desexistir”. O sonho é revelador, confuso... é presságio do fim. E o final é
surpreendente, oferece ao leitor a hipótese de Muidinga ser Gaspar, e que no momento
de sua morte Kindzu finalmente iria ao encontro do pequeno, quando é acertado, não se
sabe por quem. Um final suspenso, ou melhor, uma interpretação para cada leitor.
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REFERÊNCIAS
Nsang O’Khan Kabwasa. «O eterno retorno» nº12, ano 10. Brasil: Correio da Unesco.
SARTRE, Jean-Paul. O imaginário. Rio de Janeiro: Ática, 1996.
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. Mia Couto e a "incurável doença de sonhar".
In: Letras em laço. Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.
SEPÚLVEDA, Maria do Carmo & SALGADO, Maria Teresa (Org.). Letras em Laços.
Rio de Janeiro: Atlântica, 2000.
NOTAS
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O poema "Apontamento", da autoria do heterónimo Álvaro de Campos, é um poema sem data, mas que
foi publicado em vida por Fernando Pessoa, mais precisamente no n.º 20 da revista Presença, em 1929.
6
Cf. Platão. Apologia, 38a
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Dessa forma, materializada em “louça”, vemos nos dois textos uma alegoria7 da
fragilidade e efemeridade que a vida nos propõe. Aqui determinamos o cerne do nosso
estudo, em cujo título estendemos ao “que já estava escrito”, apontando para questões
filosóficas acerca da finitude e da fragmentação do ser, cuja continuidade reflexiva é
ilustrada na epígrafe: “[...] existe um encontro secreto, marcado entre as gerações
precedentes e a nossa”, usada por Benjamin em suas Teses para definição do conceito
de História, e que aqui nos apropriamos para enfatizar o moto continuum, o eterno
retorno, os movimentos temporais e espaciais que nas obras nos conduzem ao
ontológico: a existência que precede a essência expressa numa figurativa louça que se
estilhaça.
Com absurda lucidez, os dois textos revelam um “eu” que está à espreita,
conformado na consciência de um narrador que se desdobra em duas instâncias
narrativas (crônica e poema), quando ambos revelam o que veem dentro e fora de si, e
7
Etimologicamente, a alegoria consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta
outra(...) Podemos considerar alegoria toda concretização, por meio de imagens, figuras e de pessoas, de
idéias ou entidades abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce, dissimulação ou revestimento
do aspecto moral, real ou ficional. (MOISÉS, 1895, p. 15)
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que têm absoluta consciência do nada que os espera. Se a psicanálise freudiana revelou
que a personalidade tem um duplo, o consciente e o inconsciente, estes são vistos aqui
sem adentrar tal ciência, mas apenas com um olhar de relance sobre um narrador que se
desdobra e um “eu lírico” que viaja por si mesmo, em digressões temporais e espaciais.
Nas duas obras estudadas, a alegoria simbolizada pelo objeto - prato, louça -,
reforça a representação do passado, do que se foi, do tempo perdido, ou mesmo da
saudade de um “eu” que fora o que não sabe ao certo se o quisera. Um “eu” guardado e
resumido em pires ou em caco, mas que reside na consciência do narrador, sabedor de
que há um tu que também está à espreita.
A crônica “Minuete do senhor de meia idade” apresenta um resgate da vida, em
flash-backs. Uma constante simetria entre a vida que é e a vida que foi, a vida em mão
dupla, as reminiscências do passado e a consciência da morte, - a louça partida. A
existência é marcada temporalmente: “O único pires completo sou eu de bicicleta a
voltar para casa/ mas não me lembro da casa”[...] “o único pires completo é ter
cinquenta anos e tanta coisa quebrada à volta” (p. 86). Cruzam-se existência e essência.
O deslocamento do foco narrativo permite-nos captar uma realidade em camadas
forjadas pela representação espácio-temporal. Maria Alzira Barahona8 (1968, p. 13),
numa reflexão acerca do romance contemporâneo, há de nos permitir aqui o empréstimo
do que para nós também conforma o gênero crônica:
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se toda uma história de vida que passa a ter sentido em si mesma a partir de uma
ressignificação de seus conteúdos, tanto os imediatamente aparentes quanto os
mediatamente pensados.
Apontando para os três pilares ontológicos postulados por Sartre, “o ser em-si”,
“o ser para-si” e o “ser para-o-outro”9, detectamos nos dois textos um enfrentamento do
“eu” como conseqüência das escolhas feitas por esse mesmo “eu”. Ambos intoduzem
um “tu” que aparentemente os desresponsabiliza pelos seus atos. O narrador
“antuniano” anuncia a sua “angústia” por meio da intrusão desse “tu” que, pelo simples
fato de existir, revela ao narrador a sua existência, por ter-se (o narrador) como
espelhar. E esse narrador ensimesmado parece não ter a percepção das suas escolhas, da
liberdade que a todos é dada. O processo de responsabilidade advindo das escolhas faz
com que o “eu” lance ao “outro” o “si que deixo”:
Em “Minuete do senhor de meia idade” Lobo Antunes nos apresenta uma crônica
jorrada sob fluxo de consciência, cujo percurso são os dias passados, dias perdidos, dias
presentes, e onde se lê memória e reflexão. O narrador nos conta a história da qual
participa enquanto personagem, narrativa marcada pela sua proximidade com o mundo
narrado em primeira pessoa, o que revela fatos e situações que um narrador de fora não
poderia conhecer. Ao mesmo tempo essa mesma proximidade faz com que a narrativa
seja parcial, impregnada pelo ponto de vista do narrador.
9
Sartre distingue, em L’Être ET Le Néant, três níveis de existência que balizam seu “itinerário
ontológico”: o em-si, o para-si e o para-outrem. Existir, para Sartre, é ter consciência dessa “existência”,
de um ser “existente”. Sem consciência, não há existência propriamente dita. O “para-si” designa ao
mesmo tempo a consciência de si, a consciência pura e a consciência de alguma coisa. (...) “O para-si” se
opõe ao “em-si” como o homem às coisas, o ser aos objetos, a reflexão à materialidade. Existir “em-si”,
para o homem, é viver privado de consciência, sem interioridade (...), como puro objeto. O “para-si” é um
sujeito; o “em-si” não o é. Desta elaboração inicial, tem-se a expansão desta consciência em-si-para-si
para a exterioridade de si mesma, no encontro com o outro. Alcança-se o momento em que surge a
terceira categoria: para-outrem. É nela que se estabelecem as possibilidades infinitas de uma compreensão
de que todos os atos humanos, embora individualmente dados como fatos, são, na verdade, atos de toda a
humanidade. HUISMAN, Denis. História do existencialismo. Bauru/SP: EDUSC, 2001, p.129 e 130).
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10
A existência humana se confunde para Sartre com a liberdade: “Estou condenado a ser livre”. Essa
liberdade é total, sem limite, sem condição (...). O engajamento ao qual Sartre se apegava tanto, a escolha
que se impõe a todo momento em nossa vida fazem da liberdade o próprio critério da existência”.
HUISMAN, Denis. História do existencialismo. Bauru/SP: EDUSC, 2001
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forma de liberdade. Essa reflexão nos aponta ao que vemos nos textos, por tratarem de
rememorações do que não foi feito, saudade do não vivido, exemplos de escolhas e não
escolhas: “Não escolher é, na realidade, escolher não escolher” (COX, p. 90).
Seria, a priori, redutor, sujeitar o homem às suas vontades e escolhas, em
detrimento do factível, do enfrentamento do outro, do mundo que cerca esse ser-em-si,
vendo o factível também como o imponderável, o inexorável. Para Sartre, em O
Existencialismo é um humanismo (1970), a facticidade é o coeficiente da adversidade
das coisas, ou seja, os extravios, embaraços, obstáculos. Em “Minuete a um senhor de
meia-idade” o narrador/protagonista nos apresenta relevante número de situações que
sugerem o embate entre o factível e o para-si, o que gerou escolhas e transcendência dos
obstáculos. Em “Apontamento”, entretanto, o eu-poético fez “barulho na queda como
um vaso que se partia”, e questiona a sua existência: “O que era eu um vaso vazio?”
Heterônimo engenheiro que emerge sensacionista, futurista e interseccionista,
Álvaro de Campos é a ficção que nos exemplifica o “ser lançado no mundo sem que o
tivesse escolhido”, conceito disposto por Heidegger acerca do homem, numa de suas
teses que viriam a constituir o existencialismo. Se toda consciência é consciência de
alguma coisa, o poeta nos apresenta o seu “eu à espreita” sob forma de deuses que o
observam, num encontro entre o fenômeno e a consciência, a louça e a sua vida, a sua
obra e um caco: “E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou
ali”.
A imagem alegórica dos cacos nos remete à falta de unidade, ao não
reconhecimento em si de uma essência do ser-em-si. Aqueles, os cacos, apesar de
conscientes de si mesmos, categoria do para-si, não mostram a consciência de um
conjunto, categoria do para-o-outro, noções que circunscrevem a dimensão do humano.
Para expressar o sem-sentido de sua existência, o poeta finaliza o poema registrando a
indiferença dos deuses mediante o caco no tapete, uma pobre representação de uma
obra, de uma alma, de uma vida.
A circunscrição do existencialismo a partir da visada da fragmentação do ser,
inicialmente citado, nos apresenta o processo de multiplicação do eu que narra, na
crônica “Minuete do senhor de meia-idade”, cujo narrador se desdobra não somente no
tempo e no espaço, como também enquanto louça partida, assim como no pessoano
Apontamento, quando o eu-lírico se despedaça como um vaso que cai das mãos da
criada, porém sendo observado por deuses. O minuete, enquanto dança executada em
compasso três por quatro, permite o movimento do senhor de meia idade que perpassa
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Segundo livro de crônicas. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão).
São Paulo: ática, 1985. Série Princípios. (p. 25-70)
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Professora Associada da Universidade Federal de Alagoas.
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utopia”. Por isso, a Casa não se apresenta, no romance de Pepetela, como o lugar de
repouso, de proteção, de devaneio, na acepção bachelardiana (BACHELARD, 1988, p.
35-36), mas o lugar fomentador do desejo de transformação, onde o sonho de liberdade
começa a tomar vulto, pro-jetado num futuro como possibilidade de realização, de
acordo com a utopia concreta proposta por Ernst Bloch, em oposição à utopia abstrata
de More e Campanella.
O segundo capítulo, “A Chana”, evoca um outro tempo, 1972, e um outro
espaço: o tempo de guerra no espaço angolano. Nesse capítulo, são reproduzidas, entre
outros assuntos, a fome e a miséria que tomavam conta do território e do povo que,
assim como os guerrilheiros, já não acreditava nas boas intenções dos governantes. Por
isso, entre o dilema de avançar para a zona de combate ou recuar, o guerrilheiro
solitário Mundial faz da chana o seu confessionário de indagações e reflexões distópicas
sobre si mesmo e a guerra da qual participa:
Aqui estou eu, perdido, a sofrer da fome e do frio, sabendo apenas que a
salvação está no Leste. Para quê? Uns tantos no exterior utilizam o meu
sacrifício e o de tantos outros para chegarem aos países amigos e receberem
dinheiro. Desse dinheiro, metade vai para os seus bolsos e dos parentes e
amigos. A outra metade serve para aguentar a guerra. Esta parte destinada à
guerra é o capital investido para apresentarem êxitos aos amigos e
receberem mais, não é por estarem interessados em libertar o povo. Já fui
parvo, já acreditei na boa fé de toda a gente. Agora já não me levam. Foi a
última vez que vim combater. (PEPETELA, 2000, p. 161-162)
Nas suas reminiscências, recorda o que um dia lhe dissera o Sábio: “(...) O
povo esperava tudo de nós, prometemos-lhe o paraíso na terra, a liberdade, a vida
tranquila do amanhã. Falamos sempre no amanhã. (...) Um amanhã que nunca vem, um
hoje eterno. Tão eterno que o povo esquece o passado e diz ontem era melhor que hoje”
(PEPETELA, 2000, p. 141).
O espaço geográfico da chana, caracteristicamente angolano, passa
ficcionalmente a apresentar-se como o lugar do desencanto daquela geração, cujo sonho
utópico de conquista de um “bom lugar” havia germinado em terras portuguesas.
No terceiro capítulo, “O Polvo”, o personagem central é Aníbal, o Sábio, uma
espécie de alter ego do autor. O ano é o de 1982, quando a independência política do
país já havia sido alcançada. O espaço, a região de Benguela, centrado, sobretudo, na
praia da Caotinha. Após a queda do voo utópico que o motivara a lutar pela
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Apesar disso, Sara vai ter um papel fundamental no desenrolar da intriga: é ela
que, com a cumplicidade de uma amiga, ajuda o Sábio na sua fuga para o estrangeiro, a
fim de evitar a obrigatoriedade do serviço militar que o levaria a lutar ao lado das forças
colonialistas contra os seus compatriotas.
A ideologia marxista que alimentava o sonho da geração enfocada na obra de
Pepetela, para a qual a independência do país se constituía o ponto mais alto da
esperança de construção do Homem Novo e, finalmente, a derrocada desse sonho
encontraram eco na obra de Leonel Cosme, quando, passada a euforia do primeiro
momento de ver Angola independente, o desânimo começou a apossar-se de Nestor,
diante do rumo que tomava o país recém constituído, em que “O Povo e a Revolução
eram assumidos, por cada grupo ou por cada um, segundo os seus próprios interesses:
fosse pela conquista de um abastecimento de géneros, fosse pela tomada de um lugar
que gerasse privilégio”. (COSME, 2007, p. 382). A desilusão de se ver excluído de um
sistema político no qual acreditara e para cuja edificação contribuíra, era, afinal, o
mesmo sentimento experimentado por Sábio, da Geração da utopia, quando viu cair por
terra a possibilidade de implantação da sua “república idealizada”.
– Não era isto que eu queria: ver uma cidade como que ocupada por gente
que se imagina cercada de inimigos. Ou de selvagens antropófagos, à espera
de atacar uma presa distraída. E a culpa é de Portugal, que não soube preparar
o futuro. Posso apostar que meio milhão de portugueses fugidos de África,
que tiveram de pagar o preço da falta de sentido das realidades dos governos
do País, nunca lhes perdoarão. (COSME, 2007, p. 451).
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palavra de ordem, naquele momento era fugir, ou “bazar”, na gíria angolana, para o
mais longe possível dos conflitos armados. E é em Luanda que os seus corações se
enchem de esperança ao ouvir o discurso do Presidente da recém constituída república
democrática angolana, no dia 11 de novembro: “Mais uma vez deixamos aqui expresso
que a nossa luta não foi nem será contra o povo português. Pelo contrário, a partir de
agora, podemos cimentar ligações fraternas entre os dois povos, que têm em comum
laços históricos, linguísticos e o mesmo objetivo: a liberdade”. (COSME, 2007, p. 264).
A terceira e a quarta partes do romance acompanham os personagens na sua
“volta para casa”. Passados os primeiros momentos da concretização da utopia
libertária, Luanda transformou-se num espaço distópico, que Nestor, acompanhado dos
amigos, se decide a abandonar, para tentar retomar, no planalto huilano, na Sá da
Bandeira daquele tempo, as suas atividades na rádio e na universidade, que lhe dariam,
provavelmente, o estatuto de cidadão angolano.
Mas, e não obstante o discurso do presidente Neto, que alertava o povo: “Todo
o branco não quer dizer português. E muito menos quer dizer reacionário (...) Portanto
branco não é necessariamente português e português não é necessariamente
reacionário”, buscando, assim, instalar um novo tempo, em Angola, pautado pela
intenção de promover uma política de relação harmoniosa entre portugueses e
angolanos, a realidade começava a apresentar outros viés. E desabou forte e
inesperadamente sobre Nestor, através do conselho de um amigo, que, de partida para a
União Soviética, o aconselhou: “E vê se falas menos, amigo... Há sempre alguém para
lembrar que és português, pensando que ser português é ser reacionário...” (COSME,
2007, p. 447).
Então, o sonho da tão almejada “sociedade justa, sem diferenças, sem
privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos” – cito o
romance de Pepetela – caiu por terra. Face a essa nova sociedade nascente, constituída
por “gente que se imagina cercada de inimigos, ou de selvagens antropófagos à espera
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de atacar uma presa distraída”, Nestor decidiu, ele também, partir: “Resolvi escrever a
Firmino, dizendo que eu próprio penso regressar a Portugal, no final deste ano. O jornal
fechou, a rádio perdeu o interesse, a luta pela independência de Angola está feita, e não
me sinto bastante motivado para dar aulas no liceu...” (COSME, 2007, p. 324).
Entretanto, e apesar da sua anunciada determinação, Nestor, numa espécie de esperança
messiânica, “ainda esperou algum tempo por um milagre que lhe repusesse o
entusiasmo e a confiança no destino imediato de Angola e justificasse uma revisão da
atitude assumida” (COSME, 2007, p. 457), apontando para um Bonnum Futurum, assim
traduzido pelo contínuo Feliciano, do ex-Rádio Clube e ex-Rádio Popular, a título de
conforto: “Amanhã talvez vai ser melhor”(COSME, 2007, p. 459).
Não foi! E ao protagonista não restou outro caminho senão, como o Sábio, ir
em busca também da sua “Pasárgada 2”, onde pudesse, um dia, criar um jornal dedicado
exclusivamente a assuntos africanos e, assim, manter viva a recordação de uma Angola
em que fora “o homem mais feliz do mundo!” (COSME, 2007, p. 475).
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Professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra / Centro de Literatura Portuguesa.
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2. É com essa realidade contraditória que se depara o leitor dos romances que
vamos revisitar. Começo por Nome de Guerra, cuja história se reporta ainda aos loucos
anos 20. Antunes é o protagonista do romance, um rapaz provinciano recém-chegado à
capital; deixou noiva dedicada na terra e vem expressamente a Lisboa fazer a sua
iniciação viril9. A aprendizagem do “estreante” decorre num club nocturno pouco
recomendável, cujo ambiente debochado lhe provoca sentimentos desencontrados. As
raparigas que prestam serviços no clube chocam-no pela indignidade a que se sujeitam,
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mas também o intimidam pela desinibição, em particular Judite, a que lhe é destinada,
livre e rebelde como nunca imaginara uma mulher. Antunes, educado à antiga
portuguesa, acostumara-se a manter uma distância respeitosa das meninas; o embaraço
paralisa-o quando se vê, sem preâmbulos, perante a imagem concreta dum corpo
feminino: «A realidade, por ironia, tinha posto uma mulher nua nos braços da sua
educação» (p.68). A descoberta é tão poderosa que bastaram poucos dias absorventes
passados num quarto alugado para que Judite anulasse a imagem da noiva virginal,
esquecida para sempre.
Judite não é uma prostituta vulgar, nem Antunes a trata como tal. Formam uma
espécie de casal em união livre, de que ela assume naturalmente o papel principal. À
vaga proposta de casamento do companheiro, ela responde sem romantismo: «Isso é que
era uma bofetada que eu dava em muita gente» (p. 112). Independente e cínica, está em
guerra com o mundo, o que a “masculinizou”. Isto mesmo conclui o rapaz, assim que
começa a conhecê-la: «Esta mulher não será de ninguém. É uma mulher que se entrega
aos seus inimigos para ir mais depressa na sua vingança» (p. 113); e quando tenta
domesticá-la, Judite faz-lhe ver o seu entendimento pragmático das relações homem-
mulher: «Ó filho, tu não percebes nada da vida! (...) Sou eu que tenho a culpa de que
haja alguém que precise de dar-me dinheiro? Ou que tenha a mania de gostar de mim?
(...) A ti não te peço nada, quero só a tua companhia. Sinto-me bem ao pé de ti.» (p.
133).
A indiferença moral de Judite não é tão consistente como à primeira vista possa
parecer. A ideia do casamento cedo fica esquecida, mas a força das convenções
burguesas está de tal modo impregnada nos costumes que até a própria prostituta a
interiorizou. Assim, em última instância chega a propor ao companheiro que vivam
exteriormente “como os outros”, retirando proveito mútuo da encenação: ela ensinava-o
a socializar-se, ele fornecia-lhe em troca o elemento respeitável: nas suas palavras,
«uma mulher vale mais por acompanhar um homem do que por ser livre» (p. 136).
Para além do amoralismo, outro aspecto inusitado merece realce no romance: a
quase total ausência de retórica amorosa. Tal como a linguagem inovadora da narração,
os diálogos entre os dois amantes são secos e directos, sem recurso aos rodeios
convencionais. Na verdade não há neles sequer sentimentalidade, o que constitui uma
ruptura com a tradição literária e cultural10: da mesma maneira que se amam também se
separam, sem complexos e sem dor, quando Antunes se apercebe de que nunca
passariam de instrumentos um do outro. O encontro gratificante constitui afinal ponto
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de passagem mas não de chegada; serve para demonstrar a tese deste singular romance
de formação, a saber: o conhecimento da vida não deve tornar o indivíduo refém do
amor.
Para a generalidade das mulheres modernas, a liberdade individual reside
algures entre a afronta e o compromisso social. Judite é um caso-limite, porque a sua
independência advém do estatuto de outsider. Note-se porém que a marginalidade moral
não representa já uma condenação, como sucedia às “mulheres perdidas” do romance
oitocentista: pode constituir mesmo uma opção de autonomia, como nos dizem outros
romances desta época. Um caso exemplar pode ver-se em Depoimento, de José
Marmelo e Silva (1939), onde encontramos uma moça de cabaret que recusou
conscientemente o grilhão familiar: ganhando poder sobre si, é seguramente mais feliz
na marginalidade do que irmã virtuosa que ficou em casa, à espera do noivo que nunca
vem.
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ocorre que a recusa do corpo possa ser sentida como uma forma de defesa (de
libertação?) – em relação, ao assédio, à dominação, ao desprezo, enfim, aos regimes de
poder sexista instituídos. Falta-lhe capacidade para entender o que elas tentam a seu
modo, também equívoco, exprimir.
O realismo desassombrado de Sedução, a densidade psicológica e certa inovação
ao nível técnico surpreenderam os leitores coevos, pouco habituados a análises tão
desestabilizadoras da moral sexual através dos modelos literários vigentes. Isso mesmo
realçou Arnaldo Saraiva, ao recordar a recepção auspiciosa da obra e a sua novidade,
comparando-a justamente a Nome de Guerra12. Ambos os textos têm o mérito de trazer
a lume retratos consistentes de vivências alternativas, até então muito mitificadas pela
literatura, ora representadas em chave moralista, ora simplesmente evitadas por pudor
burguês. São retratos realistas, no sentido em que não escamoteiam a ambiguidade
moral. Mas a verdade sociológica de Judite e Noémia reside sobretudo nas suas facetas
contraditórias – a coragem de afrontar os costumes e o desejo simultâneo de os respeitar
– uma fingindo de senhora ao lado de Antunes, outra arvorando-se em guardiã da
pureza, «senhora do maior respeito e distinção». Eram estes os papéis em que
imaginariamente se reviam, projectando em si próprias um olhar convencional.
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REFERÊNCIAS
BARREIRA, Cecília. História das Nossas Avós (Retrato da Burguesa em Lisboa 1890-
1930). Lisboa: Colibri, 1992.
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LAMAS, Maria. Para Além do Amor. 2 ed. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003.
NOTAS
1
Maria Lamas, Para Além do Amor, 1935. Joaquim Paço d’Arcos, Ana Paula, 1938. Almada Negreiros,
Nome de Guerra, 1938. José Marmelo e Silva, Sedução, 1938. Note-se que o texto de Almada, escrito em
1825, foi deixado inédito durante vários anos.
2
Saraiva & Lopes, 1996, pp. 994, 1029, 1031, 1041.
3
Almada Maria Lamas nasceram em 1893; J. Paço d’Arcos em 1908; Marmelo e Silva 1911.
4
Sobre a evolução dos costumes cf. Barreira, 1992, p. 109 ss.; Guinote, 1997, pp. 120-134.
5
Excerto de um diálogo entre marido e mulher, colhido numa crónica moderna: «Ela: Nós temos o direito
e ser livres como os homens. O monopólio masculino acabou com as aias de cauda e com a valsa a dois
tempos. Ele: Acabou? Ela: Decididamente. Desapareceram todas as diferenças entre nós e vocês. (...) Já
usamos cuecas. (...) Já andamos a cavalo. (...) Já frequentamos os clubs.» Guimarães, s.d., p. 44.
6
Cf. França, 1992, cap. IV – “Lisboa dia e noite”.
7
Cf. Guinote, 1997, pp. 248-51.
8
Um cronista da época descreve em termos pitorescos estas leituras: «A literatura de amor é toda
aparentemente complicada por uma série de endróminas a que deram o nome de geral de psicologia. As
mulheres são todas casadas e descaradas. Os homens todos cínicos. Onde havia prados verdes e boninas
silvestres e meninas que desfolhavam malmequeres, há hoje abat-jours cor de rosa e five o’clock tea e
senhoras que flirtam». Brun, 1931, p. 13.
9
Nas palavras marialvistas do tio, o objectivo é fazer dele um homem, para “ficar pronto a funcionar”
(ed. cit., p. 43).
10
Na introdução ao romance de Almada, Alçada Baptista realça esta visão inovadora na nossa literatura:
«uma proposta nova que desloca o problema amoroso da relação homem-mulher para a relação da pessoa
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consigo própria», rejeitando todos os modelos que a sociedade lhe oferece como normais (“Nome de
Guerra ou um outro amor em Portugal”, ed. cit., p. 15).
11
Cf. Coelho, 1984, pp. 185-95.
12
Cf. Arnaldo Saraiva, “Sedução de Marmelo e Silva: sua importância na modernidade”, prefácio da
edição cit., p. 14-15.
13
Entre 1930 e 1935 registaram-se 862 divórcios (a taxa mais elevada desde a República); entre 1935 e
1939 o número decresceu para 849. Cf. Guinote, 1997, p. 238 e ss.
14
Cf. Introdução de Eugénia Vasques à edição citada, p. 15 e ss.
15
O debate ideológico do texto, com a respectiva lição moral, é exposto neste longo diálogo de ruptura
(pp. 222-9).
16
«Não sabia que força a impelia; era a mulher dele e pertencia-lhe, devia-se-lhe entregar (...). E,
contudo, era superior a si aquela nova e invencível repugnância...» (p. 208). O episódio passa-se durante
uma visita ao forte militar onde o marido estava encarcerado por desfalque.
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segundo, o próprio viés mágico tende a escamotear, ocupando, tal recurso literário que,
aliás, se acha um tanto mais ousadamente praticado em Cemitério de pianos, de José
Luís Peixoto, e em Ontem não te vi em Babilônia, de António Lobo Antunes.
Bizarra é também a incidência de uma temática que percorre pelo menos 4 dos 6
romances aqui apresentados, o que pode ser visto quase como uma tendência deste tipo
de publicação no Brasil do ano 2008. Refiro-me à preocupação em narrar uma saga
familiar, observada tanto no citado romance de José Luís Peixoto quanto no de Lobo
Antunes, para além dos de Pepetela e de Miguel Sousa Tavares.
Dito isto, vou procurar comentar com vocês cada uma dessas obras, começando
pelos títulos portugueses, os mais numerosos, a ver se vamos vislumbrando as razões
editoriais brasileiras levadas a efeito para a eleição deste elenco. E enceto
aleatoriamente por Cemitério de pianos, de José Luís Peixoto, publicado pela Record.
Aqui, a metáfora do cemitério de pianos, chão de onde se recolhe uma e outra
peça para recompor outros tantos instrumentos que dêem continuidade à composição
iniciada, à melodia que não pode cessar - dá o tom a este romance. Temos, então, uma
narrativa de diferentes vozes de diversas naturezas: a de um defunto-narrador
(semelhante ao nosso Brás Cubas) que conta a sua história para acolher o filho que há
de nascer e morrer; uma outra narrativa que é a do filho que conta a sua própria
maratona na medida em que a disputa, percorrendo-a em busca da vitória que,
entretanto, desemboca na morte; e a derradeira, que é a do filho deste corredor que,
retomando o facho narrativo do pai e do avô, prossegue a dinastia de tais narradores em
situação-limite, dando, pois, continuidade a esta geração - a esta música.
Simultâneos espaços, tempos desincronizados e embaralhados vão compondo
fragmentariamente esta gesta familiar onde o Tempo parece se assentar como a
personagem principal, tratado tanto como mero fluir, como abstração individual quanto
como dimensão de todo relativa. Os limites romanescos de Cemitério de pianos incluem
o leitor como interlocutor do narrador no desenvolvimento da história, passagens de
nível ficcional de personagem, que entra em estado de diálogo com o narrador-defunto,
a ponto de corrigi-lo, bem como outros sinais que definem variedades de uso da
metaficção.
Aprender a rezar na era da técnica, de Gonçalo M. Tavares, publicado pela Cia.
das Letras, se vale de uma narrativa pseudo-infantilizada, erguida por meio de
especulações que roçam puros sofismas, e de uma estrutura linear semelhante à da
ficção científica - para contar a ascensão e o fulminante declínio de um político de perfil
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Professora Associada da Universidade Federal Fluminense-RJ. E-mail: maluciao@hotmail.com
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Llansol foi beguina no país que mais abrigou beguinários, a Bélgica, quando
para lá se retirou com Augusto para livrar-se da ditadura que recrutava soldados para a
guerra colonial. Naquele ambiente realizou um trabalho pedagógico que não está
descrito na sua obra ficcional, mas que se encontra em outros documentos a serem
pesquisados no vasto espólio inédito do Espaço Llansol, em Sintra, à espera de
pesquisadores.
Do perfil originário de tal identidade beguina, podemos destacar algumas
características que nos interessam na abordagem de Llansol: a condição feminina, o
pertencimento a uma irmandade, a prática da contemplação, o cultivo de uma certa
espiritualidade, a ajuda ao próximo, o exercício intelectual, a entrega de si a uma
missão.
É em Causa amante (1ª ed.1984) que mais nítida se apresenta a figuração das
beguinas em Llansol, mas elas surgem antes, no começo da obra, com Ana de Peñalosa
n´O livro das comunidades (1ª ed. 1977), quando já percebemos a beguinagem como
resistência ao assujeitamento do eu e à banalização dos valores que detectamos na
contemporaneidade. Passados mais de vinte anos, esta tópica permanece em sua obra
de uma forma ou de outra, como vemos em o Ardente texto Joshua (1998), livro que vai
além da revisão biográfica, heróica e literária de Teresa Martin (de Lisieux) para afirmar
“o percurso de um corpo como súmula da sua potência de agir”2. Lembremos ainda que
no Diário 4, Inquérito às Quatro Confidências, a escritora, tornada figura, atua como
uma espécie de beguina que ajuda o seu amigo Virgílio Ferreira a morrer. Ao longo da
vida, Llansol se inspirou em muitas beguinas que se notabilizaram pela sua erudição
como poetisas e escritoras, a exemplo de Marguerite Porète, de origem francesa, autora
de um tratado de espiritualidade escrito em vernáculo, cujas idéias lhe custaram o
sacrifício da fogueira pela Inquisição, em 1310; de Hadewijch de Antuérpia, a quem se
atribui a fundação da língua flamenga escrita, e que é tomada como figura em várias
obras de Llansol; de Christine de Pisan, poetisa e filósofa de origem italiana, que
criticou a misoginia no meio literário da época e defendeu o papel vital das mulheres na
sociedade. Llansol admira ainda mulheres que, não sendo beguinas, a elas se assemelha,
como Catarina de Sena, Teresa de Ávila e Teresa Martin [Lisieux], todas canonizadas
pela Igreja.
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3. TECELAGEM E ESCRITA
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eu ando a contar o mal-estar profundo dos seres humanos, dos animais e das
plantas, ando à procura de um final feliz. Ando a ver se o fulgor que, por
vezes, há nas coisas, é melhor guia do que as crenças que temos sobre elas,
ou do que os pensamentos que, a propósito delas, nos ocorrem.10
Para Silvina Rodrigues Lopes, “não se trata de fazer mundos, mas de habitar,
viver o discurso e a sua dinâmica como uma espécie de encantamento”11, o que não
exclui, segundo Manuel Gusmão, alguma esperança em torno do mundo-texto
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sorrateira, de paraíso, da qual Llansol duvida, para depois acolhê-la: “Do paraíso,
talvez./ - Talvez?/ - Depende do olhar. É a arte do há entre.”20
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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que, se o egoísmo da posse envaidece o vencedor e enraivece o vencido, “não faz de uns
e de outros gente realizada”22. Joaquim sabe das dificuldades para alterar este estado de
coisas, mas quando decide viver uma existência fora do país, da cidade e do sistema, ele
intui que, junto a Maria Gabriela, mas por meios distintos, procurava algo na mesma
direção, reconhecendo que talvez a escrita de Llansol tenha encontrado a passagem: “E
mais uma vez o texto teria aberto caminho à vida social dos homens”23.
Olhar o mundo nesta perspectiva significa aliar-se a todos os fracassados que
clamam por uma felicidade aqui na terra? Sabemos que na infância esta alegria foi
possível e a perdemos para sempre. Não teria sido obra do capitalismo este
escalonamento perverso da vida humana, em que a infância é o tempo do jogo mas
também da formação para o trabalho, a vida adulta é o tempo da produtividade mas
ainda do sacrifício e a velhice é o tempo recompensador, mas igualmente ocioso, de
uma existência árida? Com o objetivo de maximizar lucros, desta e doutras maneiras o
capitalismo barrou a emergência de formas de vida vibratogêneas que, como diz a
palavra, possam fazer vibrar a existência humana em uníssono com a natureza. Este é o
segredo do artista, rotulado como um ser especial e distinto da massa comum dos
viventes os quais, à serviço do dos Príncipes, lhes rende homenagem e prêmios sob a
ação de uma outra estratégia de barragem do fulgor.
Quando as beguinas costuram o pano, também costuram a alma, forrando o
tecido com as sombras do desconhecido. Vida e arte estão imbricadas, leitura e escrita
estão associadas em relações imagéticas produzidas pelo desejo de intensidade. Como
Espinosa, Llansol não acredita no ser ou nas coisas, mas nas relações de afecção que
produzem e transformam ambos, em torno de uma espiritualidade a que o filósofo deu
o nome de sanctitas – “não a santidade dos santos, mas, como a define Llansol em O
jogo da Liberdade da Alma com as próprias palavras do filósofo, “a alegria que nasce
em nós da alegria que o outro sente”24. Desta crença emerge uma estética e uma ética
que funda e sustenta seu projeto literário desde O livro das comunidades e se ratifica
nas palavras ditas em Paris em 1988: “Criámos, assim, um espaço para a evolução do
possível e, sobretudo, para a emergência do imprevisível. Esse o ponto de encontro
desejado da consciência livre com o dom poético”25.
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REFERÊNCIAS
JOAQUIM, Augusto. Posfácio. In: LLANSOL, Maria Gabriela. Causa Amante. Lisboa:
Relógio d’Água, 1996.
________. Inquérito às quatro confidências. Diário III. Lisboa: Relógio d´Água, 1996b.
SANTOS, Maria Etelvina. Como uma pedra-pássaro que voa; Llansol e o improvável
da leitura. Lisboa: Mariposa Azual, 2008.
SEIXOS, Maria Alzira. A palavra do romance. Lisboa: Livros Horizonte, 1986, p. 21-
27 e p. 28-33.
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NOTAS
1
“É uma distorção ver as beguinas como um braço de vanguarda do feminismo do século 20. Elas faziam
parte de um movimento religioso, não secular. Todavia, por séculos elas conseguiram viver
independentemente do presunçoso controle masculino. O legado delas merece respeito e ainda pode ser
sentido nas comunidades incomuns que desenvolveram, mesmo que elas mesmas tenham praticamente
desaparecido.” (Woodward, 2008.)
2
Llansol, contra capa, 1998.
3
Barthes, 1977, p. 83.
4
Llansol, 1996a, .61.
5
Barthes, 2004, p. 40.
6
Llansol, 1977, p. 15.
7
Barrento, 2008, p. 330.
8
Barrento, 2008, p. 332.
9
Barrento, 2008, p. 332-3.
10
Llansol, 1994b, p. 5.
11
Lopes, 2003, p. 191.
12
Gusmão, apud Santos, 2008, p.22.
13
Barrento, 2008, p. 124.
14
Barrento, 2008, p. 124.
15
Llansol, 2002, p. .
16
Barrento, 2008, p. 10.
17
Barrento, 2008, p. 9.
18
Llansol, 1987, p. 22.
19
Llansol, 2000, 185.
20
Llansol, 1996b, p. 44.
21
Joaquim, 1996a, p. 202.
22
Joaquim, 1996a, p. 202.
23
Joaquim, 1996a, p. 203.
24
Barrento, 2008, p. 23.
25
Llansol, 1994b, p. 92.
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O que se partiu hoje, para uma terra galega que ignoro, não foi, para mim, o
moço do escritório: foi uma parte vital, porque visual e humana, da
substância da minha vida. Fui hoje diminuído. Já não sou bem o mesmo. O
moço do escritório foi-se embora. [...] Tudo que foi, se o vimos quando era, é
*
UFRJ (Professora aposentada) CNPq (Pesquisadora com pesquisa sediada na UEFS). Doutora
colaboradora dos programas de pós-graduação da UFRJ e da UEFS.
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de nós que foi tirado quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora.
[...] Não tenho alma para trabalhar senão porque posso com uma inércia
activa ser escravo de mim. O moço do escritório foi-se embora.[...] Hoje a
tragédia é visível pela falta, sensível por não merecer que se sinta. Meu
Deus, meu Deus, o moço do escritório foi-se embora.”3
Assim, de forma sucinta e muito clara, antecipando Barthes, propõe que ler um
texto é reconhecer o plural de que ele é feito, “é encontrar sentidos, [...] os nomes
chamam os nomes, [...] é uma nomeação em potência, uma aproximação incansável, um
trabalho metonímico”5. Antecipa também o modo contemporâneo de avaliar a
textualidade, sugerindo, de um lado, a violência e o seqüestro que existem na
interpretação, porque cada leitor submete a leitura a seu desejo, ao conjunto de valores
que organizam a sua percepção e, de outro, o apagamento da origem que contorna as
angústias ou desassossegos da posteridade, mediante parricídio simbólico. Nessa
violência consiste a desleitura, única forma realmente produtiva de ler, porque descrê de
significações originárias ou estáveis.
O Livro do desassossego é originalíssimo trabalho de desleitura, trabalho de
interpretação, onde se articulam a posterioridade, o esquecimento, a violência, a
angústia diante do já escrito, seja o já escrito pelo próprio Fernando Pessoa e seus
heterônimos, seja o já escrito pelo semi-heterônimo Bernardo Soares na luta com as
palavras com que vai tecendo o seu desassossego, seja o já escrito pelos escritores que
lhe antecederam. Esta onipresente angústia da escrita sempre suscita dúvida e hesitação,
àquele que manifestara o desejo de possuir “A sensibilidade de Mallarmé dentro do
estilo de Vieira”, que queria “sonhar como Verlaine no corpo de Horácio, ser Homero
ao luar”6. Todos os estudiosos que procuraram fazer a leitura dos fragmentos do livro de
Bernardo Soares fizeram obras de desleitura, uma vez que é possível entrar por várias
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Desse modo, faz uma alusão ao pacto biográfico dos romances de sua autoria, Amadeu,
Guilhermina e Rosa, que constituem a Trilogia da Mão. E como se tal não bastasse, o
autor encarregado de escrever e publicar as memórias de António esclarece ao
memorialista as características de seu personalíssimo estilo que compreende o uso de
um vocabulário raro, e, por vezes, um elegantíssimo excesso ornamental. Assim se
explica: “Eu utilizo palavras que o senhor é capaz de ignorar, recuso-me a aplicar umas
quantas daquelas que o senhor usa, cometo umas elegâncias que alguns julgam
excessiva, mas de que há quem goste”.11 Tais recursos retóricos pertencem ao efetivo
autor de Boa noite, senhor Soares. Duplicado assim, Mário Cláudio chega a brincar
com os críticos e com os procedimentos de sua própria escrita romanesca singularizada
pelo requinte vocabular e sintático, extremo bom gosto e elegâncias ornamentais que
desagradam a uns, talvez pouco sensíveis, mas que a muitos outros gratificam.
Representação do autor dentro de sua escrita é também a cena em que Soares
observa o revés do mata-borrão que acabara de utilizar, para detectar as marcas que lá
ficaram registradas. É sua assinatura invertida que aí vê, entre os números com que
fixara a contabilidade do armazém. A cena comprova que, embora de modo transverso,
o autor figura sempre em sua obra, a ela se aplica e nela se implica. O mesmo mata-
borrão será observado pelo caixeiro curioso, que desejava descobrir o que mantivera
Soares por tanto tempo entretido com ele. O olhar solerte de António é também uma
bela metáfora do saber do leitor, que é o que espreita o avesso das palavras, revelando-
as para sempre impuras, invertidas, outras sempre.
Os processos de narração, recepção e reescrita se representam em Boa noite,
Senhor Soares, para ilustrar que uma obra, mesmo que fosse a cópia fiel de outra,
habitaria uma terceira e diferente margem, porque seria sempre muito diversa do livro
de que se originou, lição que o Pierre Menard, de Borges12, tão claramente
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exemplificara ao copiar o nono capítulo de Dom Quixote sobre a verdade, porque outra
é a hora, outra é a vez, outra a mão que escreve, outro o coração que sente, mas lição
que o autor que figura no texto de Mário Cláudio também parece conhecer, quando
alerta que aquilo que ele há de contar, vai distinguir-se bastante do que o próprio
António contaria, porque “nenhum de nós narra um qualquer enredo de maneira igual,
nem o senhor, nem eu, nem seja quem for que tente decifrar o que nós redigimos”13,
pois inesgotável é o poder de renovação de cada obra, jardim de veredas sempre
duplicadas, de muitos sentidos possíveis.
Os personagens que compunham a gama de trabalhadores do armazém de tecidos
onde Soares trabalhava são atualizados com características similares às que possuíam no
original. Do jovem aprendiz de caixeiro, António, fornece-se também uma vida
familiar, propiciando o surgimento de novos personagens. Soares figura como uma
sombra solitária, “vivência do Absurdo e da Perdição da existência humana em busca de
si mesma”14, que quase não come, mas se consola com aguardente e cigarros e que
guarda muita ternura no olhar envidraçado. É uma figura misteriosa, sempre de terno
preto, figura evanescente que não se deixa capturar, mas que desperta curiosidade. No
Livro do Desassossego, dizia sentir inveja “daqueles de quem se pode escrever uma
biografia, ou que podem escrever a própria”, mas dizia também que a autobiografia que
escrevia era “sem factos”, e sua história, “sem vida”15. Feito de sensações e sonhos,
magro, tímido e apagado fantasma que não se imagina protagonista, é assim que
esfumado migra para as páginas de Mário Cláudio, como ficção intervalar, regida por
silêncios e descaminhos. Se o texto matriz compreende Soares como um ser de pura
sensação, atribuir-lhe ação seria incoerente. Por isso o romance se ocupa do núcleo
familiar de António e dos empregados do armazém, embora, sobre todos paire a
fantasmática figura do poeta da Rua dos Douradores.
Inúmeros são os fragmentos de Bernardo Soares que se dedicam ao tempo:
muita chuva ou sufocante calor, nas paisagens reais da Lisboa da Baixa Pombalina, ou
nas paisagens irreais de puro sonho. A atmosfera da cidade elucida-lhe o estado
psíquico. Tal como na origem, o romance contemporâneo se passa sob um mau-tempo
que se reflete nas personagens. Moreira, apelidado de Barômetro, preocupa-se com o
tempo chuvoso que poderia atrapalhar seu programa gastronômico dos fins-de-semana.
Quando não chove, o calor é sufocante e o ar pesa, obrigando os habitantes da cidade a
buscarem alívio nas merendas ao ar livre.
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Vive-se numa grande monotonia, dias e noites que não trazem o amanhã. Tudo é
igual, e tédio é o seu nome. Mesmo sob a falsa diferença de coisas e idéias, perene é a
identidade de tudo, a desesperança de tudo. Uma correlação metonímica enlaça
personagens, tempo e lugar. Tudo e todos refletem o mau-tempo que é literal, mas
também metafórico. O romance se passa no tempo em que o país estava sob governo
ditatorial, sob um mau-tempo. Além da onipresente angústia e prisioneira rotina, os
personagens em posição de mando, como o patrão, no trabalho, e o cunhado de
António, em casa, duplicam o poder ditatorial. No armazém, Vasques se identifica pelos
verbos berrar, mandar, determinar, assegurando com sua fala seu lugar de poder:
“Pronto, já mandei, agora toca a trabalhar!”16. O patrão Vasques, quando aparece, é
enfrentado por Soares, que, embora nada diga, parece censurar-lhe. No Livro do
Desassossego, está a justificativa para o olhar de censura de Soares: o patrão fizera uma
transação comercial que arruinara outro comerciante, o que condiz com um uso
inadequado do poder. O espaço doméstico também reduplica a lei ditatorial. Em casa de
Antônio, Florinda é a vítima inocente de uma estrutura ditatorial, sofrendo os maus-
tratos do marido e da sogra. O abuso do poder se constata nos espaços fechados do
trabalho e da casa que refletem a clausura política e a angústia por ela gerada, afinal,
como o sabia Bernardo Soares, “Somos todos escravos de circunstâncias externas”17.
Os espaços fechados contrastam com o espaço aberto, as ruas da Baixa
Pombalina, ou os reduplicam. Das sacadas os empregados do armazém olham a rua,
com sua ululante população em permanente trânsito. Torna-se possível, então, uma
história da vida privada, a partir de que as relações humanas, em situações familiares ou
trabalhistas, são observadas e inquiridas. De igual modo, é possível ilustrar certo ar do
tempo, através das músicas executadas por uns personagens, das orações rezadas por
outros, das piadas com que uns procuram ludibriar a rotina dos dias, do falatório de
vizinhos e suas veladas insinuações, da maledicência e injúria de outros tantos, da
prosápia compensatória de outros, dos pregões matutinos, das falas preguiçosas que se
misturam com o chilreio dos pardais, do hábito domingueiro das merendas nas hortas,
do cheiro dos refogados que exala pelas escadas, das marcantes diferenças nas questões
de gênero, que denunciam uma sociedade cujos varões seguiram o exemplo de
Marialva, reproduzindo-lhe o comportamento machista. Numa profusão sinestésica de
sons, de cheiros e de cores, é captada a mentalidade da época, pela pena de um escritor
hábil na criação de tempos e lugares, mediante suas atmosferas, explicitando, com fina e
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popular do bairro, recolhe os despojos dos dias carentes de perspectivas. São todos eles
homines sacri, os banidos do sistema, mas de que o sistema carece para se legitimar.
É interessante notar que, mesmo em situações aparentemente democráticas, a
questão ideológica do poder e da hierarquia se patenteia, na distribuição de lugares. No
armazém, os empregados que têm nome e sobrenome, com exceção de Antônio da Silva
Felício, são os que ficam na frente, que têm gabinetes e escrivaninha particular. Os que
não têm sobrenome são os que militam em ofícios subalternos, ficam no fundo do
armazém. Esta mesma distribuição hierárquica se reproduz na festa de aniversário de
Maria do Patrocínio, quando os caixeiros e o moço de fretes merendam fora da casa, no
jardim das traseiras, e os funcionários mais graduados foram convidados ao jantar de
cerimônia, transcorrido no interior da luxuosa mansão. Todo esse universo em
contraste é figuração da doença social.
A insalubridade do tempo se configura na ratazana que os caixeiros encontram
no armazém e que, segundo eles, “semelhante bicharada aparecia frequentemente nos
prédios da Rua dos Douradores”18 e na doença que não poupa nem crianças, nem
jovens, nem velhos. A família de António é uma família doente. A menina é mal
desenvolvida no andar e na fala, em conseqüência de um “garrotilho” que apanhara ao
lhe nascerem os dentes. A velha Celeste é entrevada e apresenta indícios de loucura
senil, e a jovem Florinda é tísica, doença que lhe causa a morte prematura. Ao lado
dessas doenças físicas, a família é moralmente insana pela prepotência do Gomes,
maldade de Celeste, e carência de hombridade de Serafim. A depurada escrita de Mário
Cláudio inverte o significado dos nomes próprios, Celeste e Serafim. A terrível mulher é
verdadeiramente infernal. Serafim, quando chega todo de branco empunhando um
bandolim, aparenta ser um anjo, mas sua aparência é a sua fantasia, disfarce para fazer
jus a seu nome, porém, tal como o da mãe, seu comportamento é infernal. Impiedosa,
enlouquecida e borrachona é a madrinha de José, que o explora, cobrando-lhe “uma
fortuna por um cubículo interior, e por uma lasca de bacalhau mal demolhado”19, doente
ela também. A família do sócio capitalista é insana: o senhor Camacho é “doente, talvez
em consequência do que sofrera na Grande Guerra onde fora gaseado”20, dona Marília,
sua mulher, tornou-se estéril depois do parto da única filha que, por sua vez, era obesa e
inativa. E o senhor Soares às vezes se mostra neurastênico. Com semelhante encenação
da doença do tempo e de todos, Mário Cláudio interpreta o fragmento em que Bernardo
Soares lucidamente declarava: “Na esfera baixa da política, como no íntimo recinto das
almas – o mesmo mal”21.
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sonho, como um barco de papel dobrado em bicos”28. E em mais um, num momento de
hesitação entre a quimera e a realidade, declara ter começado “a fazer barcos de papel
com a mentira que [lhe] haviam dado”29.
Cito agora um trecho de Boa Noite, senhor Soares, narrado por António: o
caixeirinho:
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é este intervalo que há entre mim e mim?”33, tal questionamento que é com pequenas
variações sempre reiterado é uma das causas do desassossego confessional de Bernardo
Soares. Embora com ele simpatizem, seus colegas consideram-no diferente, “raramente
se referiam a ele, e quando o faziam, era para se rirem um bocado, trocando olhares
entre si”34, calando qualquer possível comentário ofensivo, porque o poeta, ajudante de
guarda-livros, inspirava-lhes respeito. Apesar de os colegas declararem “que o senhor
Soares se não distinguia de qualquer outro sujeito, [...] a verdade é que ele dera sempre
mostras de ser um bocadinho esquisito”35, pensava António. A freqüentadora da
mercearia, aparentando condoer-se da situação solitária de António, estranha-lhe o
comportamento, pois ele, que era de poucas conversas, mostrava-se solícito com
meninos, supondo que talvez fosse porque ele não tivera filhos. Já o merceeiro estranha-
lhe o celibato, pois não era comum um homem solteiro da idade dele. No diálogo que se
trava entre ambos o silêncio parece ser mais eloquente que a tagarelice. Há certa
maledicência na conversa que António involuntariamente acaba por escutar. Bernardo
Soares reconhecia que entre ele e os outros havia uma zona intervalar de desconforto. É
como se todos o olhassem “com uma desconfiança de quem não sabe explicar”36, como
um dia o olhara o homem com quem cruzara sob a Arcada, personagem secundário da
cena citadina do Livro do Desassossego. É essa mesma imponderável ausência de
explicação que o discurso insinuado dos personagens secundários de Boa noite, senhor
Soares expõe para justificar a clausura imposta a Soares, simétrica à própria clausura
que ele concedeu a si mesmo.
No Livro do desassossego, o poeta auxiliar de guarda-livros demonstra desejar
“emoções de chita, ou de seda, ou de brocado!”37 , enfim, emoções descritíveis
mediante referenciais do universo feminino, talvez uma “clave drag” para a sinfonia da
heteronímia38. Em Boa noite, Senhor Soares, no jogo de seqüestro da cena original, o
poeta já não deseja ter tais emoções, mas, quando não estava aborrecido, apreciava falar
sobre sedas e brocados exóticos com os colegas, olhando-os com uma ternura que os
assustava. Fora do ambiente de trabalho, é visto na companhia de outros homens, (que
podem ser identificados aos heterônimos e ao semi-heterônimo,Vicente Guedes,
primeiro a que Pessoa atribuiu a autoria do Livro do Desassossego). No entanto todas
essas marcas se tornam ambíguas se confrontadas com o olhar que Soares lançava à
rapariga do calendário. Não há nenhuma clareza quanto ao comportamento amoroso do
personagem, apenas sombras possíveis, possíveis sentidos para sua individualidade
esgarçada, fluida e amorfa. Há, porém, nas páginas da ficção pessoana, passagens em
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que Bernardo Soares pensa o amor, subvertendo as convenções totalizantes, como, por
exemplo, aquela em que assegura que o onanista é o verdadeiro amante, pois todo amor
é narcísico, o que explicaria, na novela contemporânea, Soares sair em companhia das
outras máscaras de Pessoa, outros de si, o que também explicaria os olhares trocados, e
os sintomáticos risos dos caixeiros, quando Soares se demorava no banheiro; outra é
aquela em que reconhece que a repressão ilumina a erótica.
Num dos fragmentos sobre a linguagem, questiona a melhor maneira de falar
sobre uma jovem que apresenta modos masculinos e se decide que a mais apropriada
designação será “ ‘Aquela rapaz’, violando a mais elementar das regras da gramática,
que manda que haja concordância de gênero, como de número, entre a voz substantiva e
a adjectiva”39. Deslendo tal fragmento, numa, quem sabe, deliberada operação de
marketing “camp”, a capa da edição portuguesa da novela exibe, num face a face com
Soares, o rosto adolescente e ambíguo de António, a quem se poderia chamar de “aquela
rapaz”. A novela contemporânea insinua, aproveitando-se de tudo isso, uma
possibilidade outra de distribuição dos modelos comportamentais, na cena quotidiana, e
discute a questão das identidades fora da hierarquização e dicotomia habituais, mas
sempre de maneira sutil, sempre de forma vaga, sempre concordando com as brumas do
Livro do Desassossego, com sua forma intermitente de dizer e desdizer, mostrar e
esconder, revelar e fingir.
Talvez porque Soares fosse poeta, talvez porque fosse diferente dos demais,
talvez por ser um enigma mais nebuloso que seus próprios devaneios, António, desde
que o viu pela primeira vez, sentiu uma grande curiosidade que progressivamente
aumentava, verdadeira concupiscência de saber, desejo de decifração do mistério
daquele homem invulgar. Cognição, sexualidade e transgressão sempre caminharam
juntas. Uma variada gama de sentimentos lhe roubam o sossego. Compadece-se da
condição solitária de Soares, observa suas reações às pequeninas coisas do armazém: a
discussão com um colega, o jogar da caneta sobre a escrivaninha, as saídas antes da
hora. Espreita as manias de Soares, como aquela de utilizar o mesmo tinteiro velho.
Sempre que sai, depara-se com o poeta. Ora observa-o sentado na calçada da Rua dos
Douradores, ora não deixa de pensar que o vira em companhia de Ricardo Reis, num
domingo em que merendava com seus familiares. Volta a observá-lo, andando na
calçada do Combro, e encara-o, corando. Sonha com ele, em cena de Spilberg,
“pedalando com esforço, em cima de uma enorme bicicleta”40, em meio às estrelas do
céu. Não tem coragem de responder ao cumprimento de “Boa noite” que o poeta dirigia
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O silêncio que por segundos se estabelecera entre nós foi então interrompido
pelas badaladas do sino próximo da Igreja de São Nicolau, batendo a finados,
e um arrepio de medo, ou de surpresa, percorreu-me o corpo inteiro. O senhor
Soares abriu os braços magríssimos, um pouco trémulos, em consequência
talvez, calculei eu, do excesso de café e tabaco e aguardente que consumia, e
caí neles como se me despenhasse na salvação. Senti o soluço que lhe pôs a
estremecer o peito, e ouvi-o murmurar baixinho, e junto à orelha, “Até
sempre António.” Não atino em precisar se ele se soltou, ou se me desprendi
eu do abraço. Mas ainda hoje escuto essa voz muito firme, a minha, ou a do
homem que em mim nascera, articular apesar das lágrimas que me contraíam
a garganta, “Boa noite, senhor Soares”51.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2002.
BARTHES, Roland. “Escrever a leitura”. In: O rumor da língua. Lisboa: Edições 70,
1987 (b), p.27-29.
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BORGES, Jorge Luís. “Pierre Menard, autor do Quixote”. In: Ficções. São Paulo: Abril,
1972, p.47-58.
CLÁUDIO, Mário. Boa Noite, Senhor Soares. Lisboa: Dom Quixote, 2008.
CLÁUDIO, Mário. Boa Noite, Senhor Soares. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
PESSANHA, José Américo Motta. “Platão: as várias faces do amor”. In: CARDOSO,
Sérgio et al. Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras,1989, p.77-103.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. ( Organização de Richard Zenith) São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NOTAS
1
Pessoa, 2006, fragmento 90, p.118.
2
Pessoa, 2006, fragmento 7, p. 46.
3
Pessoa, 2006, fragmento 279, p.276.
4
Pessoa, 2006, fragmento 148, p.164-165.
5
Barthes, 1970, p.16.
6
Pessoa, 2006, fragmento 131, p.151.
7
Pessoa, 2006, fragmento 262, p.263.
8
Cláudio, 2008, p. 91; Cláudio,2009, p.97.
9
Lourenço, 1986, p.19.
10
Cláudio, 2008, p. 91; Cláudio,2009, p.97.
11
Cláudio, 2008, p. 92; Cláudio,2009, p.97.
12
Borges, 1972, p.56.
13
Cláudio, 2008, p. 92; Cláudio,2009, p.97.
14
Lourenço, 1986, p.18.
15
Pessoa, 2006, fragmento 12, p.50.
16
Cláudio, 2008, p.12; Cláudio,2009, p.22.
17
Pessoa, 2006, fragmento 33, p.65.
18
Cláudio, 2008, p.11; Cláudio,2009, p.21.
19
Cláudio, 2008, p.17; Cláudio,2009, p.26.
20
Cláudio, 2008, p.20-21; Cláudio,2009, p.30.
21
Pessoa, 2006, fragmento53, p.83.
22
Verde, 1995, p.116.
23
Cláudio, 2008, p.60; Cláudio,2009, p.66.
24
Pessoa, 2006, fragmento 130, p.151.
25
Pessoa, 2006, fragmento 9, p.49.
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26
Pessoa, 2006, fragmento 65, p.96.
27
Pessoa, 2006, fragmento 80, p.109.
28
Pessoa, 2006, fragmento 110, p.136.
29
Pessoa, 2006, fragmento 155, p.172.
30
Cláudio, 2008, p.19-20; Cláudio,2009, p.29.
31
Pessoa, 2006, fragmento 116, p.140.
32
Cláudio, 2008, p.15; Cláudio,2009, p.25.
33
Pessoa, 2006, fragmento 213, p.221.
34
Cláudio, 2008, p.13; Cláudio,2009, p.23.
35
Cláudio, 2008, p.18; Cláudio,2009, p.28.
36
Pessoa, 2006, fragmento 51, p.82.
37
Pessoa, 2006, fragmento 135, p.154
38
Pitta, 2003, p.16.
39
Pessoa, 2006, fragmento 84, p.113.
40
Cláudio, 2008, p.46; Cláudio,2009, p.53.
41
Barthes, 1987 (a), p.24.
42
Cláudio, 2008, p.69; Cláudio,2009, p.75.
43
Pessoa, 2006, fragmento 142, p. 159.
44
Cláudio, 2008, p.61; Cláudio,2009, p.67.
45
Barthes, 1987 (a), p.100.
46
Cláudio, 2008, p.89; Cláudio,2009, p.95.
47
Barthes, 1987 (a), p. 72.
48
Barthes, 2006, p.15.
49
Barthes, 1987(b), p.28.
Pessanha, 1989, p.77.
50
51
Cláudio 2008, p. 89; Cláudio 2009 p.95.
52
Barthes, 1987 (a), p. 21.
53
Pessoa, 2006, fragmento 24, p.57.
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INTRODUÇÃO
1
Profa. Dra. do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa,
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo.
2
Profa. Dra. Maria Auxiliadora F. Baseio. Coordenadora do curso de Letras das Universidades Integradas Torricceli.
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É, também, por meio dessa rota que se afirma nossa busca de trabalhar com a
literatura comparada. Refletir sobre a viagem e suas relações com a literatura pode
propiciar ao crítico comparativista a experiência do outro, vivência que o transforma
também em viajante, ao atravessar espaços e tempos desconhecidos, buscando novos
roteiros para propor sempre novos percursos pelo universo das letras.
Distanciados da concepção etnocêntrica de fontes e influências, ou de débitos e
filiações, que marcaram as trocas simbólicas tradicionais e unilaterais, orientamos nossa
pesquisa pela via do diálogo, como forma de intercambiar textos e culturas e, ao mesmo
tempo, redescobri-los.
Irmanar experiências, por meio da língua e das linguagens, é nossa tentativa
neste tempo de novas navegações. Importa-nos, mapeados por essa realidade de
fronteiras múltiplas, encontrar enlaçamentos de solidariedade, conforme ensina
Benjamin Abdala Junior (ABDALA JR., 2003. p. 83).
Nosso exercício, assim, pretende fazer travessias, ler nas fronteiras, na
expectativa de podermos compreender culturas cujos processos históricos podem se
aproximar em termos de imaginário. Mais do que prender o conhecimento em territórios
seguros, ousamos tangenciar limites, obviamente em uma travessia incerta, correndo
risco de ilusão e erro. Mesmo assim e exatamente por isso, optamos por essa aventura,
dividindo esperanças com Edgar Morin (2003):
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Cumpre lembrar, a arte é filha de seu tempo, cada época de uma civilização
configura sua estética particular. Assim, quando o artista não tem como fazer escutar a
voz, confia "ao olho a tarefa de sugerir ao ouvido a realidade sonora" (ZUMTHOR,
1993, p. 125). Como não há arte sem voz, o texto escrito será apenas uma
"oportunidade do gesto vocal" (ZUMTHOR, 1993, p. 55). Dessa maneira, a escrita
carrega a experiência e a transmuta. A matéria narrável torna-se artefato. A imagem
fixa-se. Entretanto, a arte do verbo - a literatura - não deixa de registrar a vida humana.
O livro de literatura, mesmo como mercadoria, ainda se configura como espaço
de criação, permite a re-atualização da memória da humanidade, da imaginação criadora
e da vida vivida, tornando possível entrever, no livro literário, um espaço seminal em
que linguagens se acasalam e tornam capazes de gerar um novo espaço de encontro,
agora do autor e do leitor.
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A Nau Catrineta que tem muito que contar é o livro com texto verbal de autoria de
Antonio Torrado, o convite a rememorar a tradição oral e a experiência aparece na voz
do narrador, logo nos primeiros versos:
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das referências apreendidas. Dar a ver constitui poder definidor da imagem, e dar a ver,
com efeito, não é imitar o já visto, aquilo que nos leva ao encontro das aparências e as
transforma segundo um pensamento específico. Desse modo, pode-se entender que há
uma malha de dados e de referências ligados para a nossa múltipla apreensão do real.
Pode-se pensar em relações analógicas de elementos, fatores de intuição, espaços do
imaginário, conhecimento e cultura.
As imagens presentes no livro são de autoria de Paula Soares. Apresentam
registro realista e acompanham, em complemento, as artimanhas do verbal. Em uma
perspectiva ligada à linguagem do cinema, traz alternância de planos fixos e
deslocamento de câmera - o que vai garantir as impressões de imobilidade, distância,
seqüências temporais e espaciais. Os movimentos de aproximação e distanciamento de
câmera imprimem movimento para traduzir os pontos de vista, permitindo ao narrador
compartilhar com o leitor o foco narrativo.
Verifica-se como o movimento da câmera, deslocando-se para dentro do livro e
da nau, captura a presença do "renegado" - que vai ganhando aqui um valor enfático -
detentor do poder. Ressalta-se a presença, a ameaça - motivo para prova, e para o ato
heróico.
Como leitores observadores, testemunhamos, também, o seu destronamento -
subversão provocada pelas expressões verbais carregadas de comicidade e pela figura
hiperbólica que ganha (no centro da página - como uma praça pública) sentido
carnavalesco.
O entremear de elementos históricos com elementos sociais e filosóficos, na
clarificação da personalidade do herói, faz eclodir na mente do leitor “convicções e
pontos de vista acerca do mundo” (BAKHTIN, 1999, p.13), além disso, o tempo
folclórico, integrado no seu curso de vida, carrega tradições – mitos, ritos, costumes de
fácil entendimento, uma vez que estão embrenhados nas fissuras do humano.
Observa-se, nesta versão, por meio do trânsito e do diálogo das linguagens,
configuradas na produção da cultura livresca, a migração dos conteúdos míticos
presentes nas narrativas épicas da tradição oral: partida do herói, travessia (marcada por
provas, dificuldades, morte), retorno – percurso iniciatório metaforizado pela própria
navegação.
Similar à própria vida, a navegação é um eterno estar em busca, lembrem-se as
várias navegações realizadas pelos Argonautas para conseguir as ilhas ou o Velocino de
Ouro. Pressupõe o encontro simbólico de um Centro, ponto máximo da iniciação, lugar
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dando a ela uma coreografia que a ambienta em cenário de Brasil, encarnando, agora,
cifragens desse imaginário em corpos, vozes e gestos de nosso povo.
Pela mediação de processos tecnológicos, na produção, construção e recepção da
obra, esse espetáculo, de coreografia poética, - em um suporte próprio da cultura
midiática - faz reverberar o diálogo intertextual e intersemiótico que ora tece novas
relações entre o oral e o escrito, entre o popular e o erudito.
A um olhar atento também torna possível verificar como formas, um dia
impositivas, podem ser vistas como igualitárias e culturalmente relevantes.
O espetáculo divide-se em vários momentos pontuados pelo ritmo, iluminação,
enquadramento de câmera e que entram numa sintaxe capaz de marcar poeticamente o
enredo e seus principais focos dramáticos. Podemos salientar, por exemplo:
- a imagem do mar associada ao instrumento de percussão redondo, elementos
que sugerem o imaginário das grandes navegações (o mar e o mundo a ser conquistado).
- a anunciação da história em que o narrador estabelece diálogo com o ouvinte-
espectador Nesta cena, o recorte e movimento cinematográfico imprimem à imagem do
mar realismo e veracidade; ao mesmo tempo a cenografia, própria do teatro, movimenta
a nau, em sua navegação em mar de tecido. Essa montagem conceitual resulta em
relações que se estabelecem entre o real, o imaginário e sua representação.
- com ritmo mais acelerado, a nau no mar de tecido introduz a narração
propriamente dita: apresenta a chegança – dança folclórica, cujos passos e compassos
recuperam o movimento de ir e vir das embarcações no mar. O narrador empresta sua
voz às personagens.
- o momento que atinge maior grau de tensão e dramaticidade - com
ressonâncias icônicas de terror e gestos retorcidos, perfaz-se a cena do diabo – a tentar e
pedir pela alma do capitão-general - e a cena do gesto heróico de recusa.
- novamente, a imagem do mar em sintonia com o instrumento de sopro,
recupera a calmaria.
A encenação do romance conclui-se com o conjunto harmônico da voz em canto,
da dança folclórica, de uma panorâmica dos músicos, a nau, mar de tecido, palco,
grande platéia e aplausos.
O fluxo sonoro e a constelação de imagens em permanente movimento encurtam
a distância entre o passado e o presente, entre o vivido e o sonhado.
Nota-se, nesta versão em vídeo, a migração dos conteúdos míticos presentes
nas narrativas épicas da tradição oral: partida do herói, travessia (marcada por provas,
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pela fome, pela morte), retorno – percurso iniciatório. Recuperados, via memória,
discursos heterogêneos entremeados desvelam suas fontes, oferecem ao leitor a
oportunidade de participar da aventura mítica como herói-enunciador em função de sua
experiência ativa construída no contato com obras do cânone e na vivência dos
cantadores do nordeste brasileiro.
V. NAU CATARINETA
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A obra está organizada por dois campos ou arranjos narrativos distintos e que
entram em processos de alternância, de superposição e encaixes. O fandango, registro e
apresentação do espetáculo e a narrativa que traz o poema romanceado da nau catarineta
com seus personagens, seu enredo dramático e de forte inspiração religiosa. Como
moldura, encontra-se um terceiro, que, apesar da ludicidade, embrenha um complexo
drama humano vivenciado por amantes cujo fado é a separação motivada pelo trabalho
no mar. De fato, uma experiência tematizada em diferentes expressões textuais,
difundida em provérbios populares (“em cada porto um amor”) e legitimada por um
contexto sociocultural.
O processo de alternância e justaposição de um arranjo e outro, engendrado pelo
verbal e visual, promove a fusão de tempo e espaço. Essa estrutura, operando por
coordenação e encaixe, resulta na confluência da história na performance, da
performance na história. Além disso, como já comentado, é requerida a presença do
ouvinte, mas também é essencial um olhar curioso, atento que acompanhe e capte cada
índice de informação dos eventos que ora são simultâneos, ora recebem planificação e
movimento no espaço da página, nada ocorre se o leitor não notar.
Portanto, a competência lúdica, a informação cultural, a reflexão e a crítica
tornam-se essenciais para se participar do jogo das representações, que se monta em
jogo de espelhos, com reflexos prismáticos de um imaginário (novo) compartilhado.
As personagens, os figurantes - o leitor, o autor - multiplicam-se na ocupação do
espaço livro – agora palco – da narrativa coreográfica que enreda memória e tradição.
Reencenando-as, deixa-as reviver em todos nós e com múltiplas testemunhas.
As personagens da versão canônica estão agora refuncionalizadas, subvertem-se
posições hierárquicas em vozes e culturas entremeadas. Os conteúdos míticos das
narrativas épicas - partida do herói, travessia, retorno – percurso iniciatório - estão aqui
presentes.
Os recursos de construção da narrativa e os recursos de metalinguagem, que
entram na composição da obra, ensinam ao leitor a astúcia do navegar-existir,
desvelando, agora, pelo conhecido e desconhecido, meandros das representações da
história permeadas pelo imaginário e seus acertos com o real.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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recriação, tendo-se a cada acesso um novo texto; leituras autorizadas pela tradição, que
se engendram, por isso mesmo, em processos contínuos de transculturação.3
Nas três obras analisadas, o espaço de fronteira preenche-se da plurivalência da
voz viajeira, por meio da qual a experiência humana se refaz. Ademais, a nau catarineta,
compreendida simbolicamente como barco-existência, é metáfora da vida humana –
condição de existir, independente de tempo e lugar.
Nesta época de novas navegações em nível interplanetário, começamos a nos
deslocar por paisagens híbridas, desterritorializadas, que estão sendo colonizadas por
um capitalismo perverso e cuja extensão pode abarcar e moldar culturas sob a égide de
um modelo hegemônico. No entanto, isto não pode nos cegar. Como intelectuais das
letras, devemos aguçar nosso olhar para rotas de sensibilidade e inteligibilidade,
exploradas pelo artista. Essas garantem tessituras mais criativas e responsáveis para o
desenvolvimento do imaginário: território de múltiplas sínteses e tendências.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CUNHA, Maria Zilda. Linhas e entrelinhas, recepção ativa: uma forma de diálogo.
São Paulo: Casemiro, 2001.
ELIADE, Mircea. Mito do eterno retorno. Trad. José Antônio Ceschin. São Paulo:
Mercuryo, 1992.
MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEUAX, Daniel-Henri. Da literatura comparada à
teoria da literatura. Portugal: Edições 70, 1988.
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Editora Casemiro, 2003.
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SARAMAGO, José. A jangada de pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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ed. Portugal: Civilização, 1992.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro e
Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Professora Doutora Associada da Universidade Federal de Goiás.
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e da ironia como recursos estilísticos, o que, por fim, é por onde a genialidade do
escritor mais uma vez se realiza.
No penúltimo conto, após sua queda do penhasco na fuga pela vida, o
“Centauro” tem suas porções cavalo e homem cindidas, assim como as partes força e
sensibilidade respectivas. Na sequência que notamos haver no livro, percebe-se que a
partir dessa cisão é que pode haver o reencontro do homem com ele mesmo no referido
conto “Desforra”, em que o discurso mítico está presente nas simbologias referentes aos
processos iniciáticos, que são frequentemente associados a cruzar uma ponte, subir ou
descer uma montanha ou uma ladeira ou escada, percorrer uma estrada ou atravessar
fronteiras, ir para a outra margem. Nesse conto de Objecto quase, de Saramago, mais
precisamente às páginas 133 e 134, alguns desses símbolos iniciáticos compõem o
desfecho da narrativa, como “atravessou o olival”, subiu “a ladeira”i e “nadou para a
outra margem”ii, reforçando a idéia de recomeço, que é preparado pelos símbolos de
metamorfose, como a cigarra, a rã, a água. Tal processo desencadeia-se da seguinte
forma. O rapaz assombrado com a cena da castração, “voltou para dentro” e bebeu,
“deixando que a água lhe corresse pelos cantos da boca, pelo pescoço, até aos pelos do
peito, que se tornaram mais escuros”. A água, símbolo de renovação, banha-lhe por
dentro e por fora. O processo de transformação vai se instalando. Primeiro, a castração
do porco e a ciência da conseqüente impossibilidade de continuidade da vida plena que
o ato sugere; depois da empatia, a busca do jovem por outro destino diferente do que o
porco tivera. O narrador vai recorrendo aos símbolos da metamorfose que se processará
paulatinamente. No momento da castração, a cigarra - cuja característica é a de durante
a seca ficar na terra alimentando-se de raiz, mas à época da chuva, após cantar, atrair a
fêmea e acasalar-se, morrer, deixando seus descendentes - “roía o silêncio”, enquanto os
dois homens e a mulher que castraram o porco “Ficaram todos calados”. Silêncio e som
propiciam um profundo encontro do jovem consigo mesmo, conduzem-no então à
comunhão com a Natureza, pois faz empatia agora com a cigarra e sai “sob a torreira do
sol”, enquanto a “mesma cigarra rangia, em tom mais surdo” e, como símbolo dessa
integração, se misturam no “lodo que se insinua entre os dedos dos pés e irrompe para
cima”iii. O jovem, de modo individualizado, toma consciência de si mesmo e do mundo
e se descobre uno, em comunhão com a Natureza que é descrita como se tudo fosse uma
só matéria.
O rapaz olha, observa e sente o chamado da vida e, cruzando o rio, passa para a
fase adulta, dando seguimento à vida ao dirigir-se convicto à moça, ato de continuidade
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impossibilitado ao porco pela castração, que por fim refere-se mesmo à castração do ser
humano. Acentuando a idéia do cíclico que está por todos os contos, “Desforra” fecha o
livro e ao mesmo tempo anuncia a esperança nas novas vidas, no eterno recomeço que
possibilita novas versões do viver, quando talvez carunchos não tenham de roer até
fazer cair da “Cadeira” ditadores ciosos pelo poder.
Já os títulos dos contos de Objetos turbulentos remetem diretamente a objetos
que envolvem pessoas no dia-a-dia, como “Espelho”, “Cachimbo”, “Cadeira”,
“Manuscrito perdido”, “Vestido de fustão”, “Caderno de endereços”, “Cantilever”,
“Luneta”, “Tapete florido”, “Pasta de couro de búfalo” e “Cinzeiro”. Neles, as
personagens são captadas a viver num determinado momento sob o domínio de um
objeto: ora é um espelho encontrado nas ruínas de uma casa e que passa a desestruturar
a vida de um casal; ora é uma cadeira que faz aflorar o individualismo de seu dono; ou
uma luneta do adolescente que penetra a intimidade dos vizinhos; um diabólico tapete
florido; uma palavra, cantilever; um caderno de endereços; um cachimbo a propiciar a
penetração noutros círculos; uma pasta de couro, um cinzeiro.
As personagens comuns, todas de boa índole, em sua maioria vivendo num
ambiente familiar normal, como nas cidades pequenas, é que, de repente, buscam
obcecadamente por algo que está fora, como um objeto de que passam a necessitar e que
as dominará e as conscientizará sobre sua fuga para o material para não ter de enfrentar
a difícil arte de viver em sociedade. Assim, de uma situação pacata na cidadezinha
interiorana passa-se a uma de dominação do ser pelos bens materiais.
Marca de Veiga, os contos não têm um final definitivo, digamos, apenas chegam
ao fim. O núcleo de todos é a dependência do homem pelos objetos que ele mesmo cria
e dos quais não pode mais se separar, não parecendo interessar ao escritor incumbir-se
de criar um desfecho para a problemática do consumismo que reiteradamente aborda.
Os narradores de Veiga contam pelo prazer de contar, nesse ambiente de cidade
interiorana, e estão próximos do que narram, introduzindo até ditos e crenças populares
que vão sendo naturalizandos na tessitura do texto.
Segundo Maria Zaira Turchi, em seu artigo “As fronteiras do conto de José J.
Veiga”, a obra desse autor “possui um centro ideológico, uma visão crítica sobre a
sociedade e suas formas de organização política e social, que aparece nas construções
alegóricas”iv. Tal “centro ideológico” está presente também nesse último livro de Veiga,
publicado um ano antes de seu falecimento, em 1998. Nele percebemos suas temáticas
recorrentes, como o progresso, a máquina e a tecnologia se expandindo para as
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importante em uma reunião para discutir uma ação social, a cadeira “desmanchou-se, e
ele viu-se sentado no chão. Passado o susto (felizmente S.E. Reverendíssima não se
machucou)”viii. Os amigos resolveram doar-lhe uma nova cadeira no lugar daquela
irreverente, que trazia uma placa com os dizeres: “A D. Sereno Argenta, seus amigos e
admiradores. Cantagalo, 7.7.42. Per non cadere”ix. Essa nova cadeira, que já contava
agora com 40 anos, mas 20 de uso, foi o motivo da obsessão de Delduque. Assim como
a Sucena de “Tapete florido”, Delduque não conseguia mais separar-se do objeto e
começou a sentir preocupações com os menos favorecidos, a sentir-se culpado pelo seu
conforto enquanto muitos não tinham o que comer. Num sonho, crê que D. Sereno o
liberta do dever de cuidar sozinho dos sofrimentos da humanidade. O poder da cadeira
seduz seus donos posteriores, mas não sabiam eles que o poder tem duas faces,
pressupõe também responsabilidade, deveres.
Como não se compara aqui neste trabalho a qualidade estilística dos dois
autores, mas sim o possível diálogo entre os dois livros, saliente-se que pode ser
inferida uma alusão ao conto de Saramago, pois a cadeira se desmancha de velha,
levando D. Sereno ao chão, mas o narrador esclarece que o bispo não se machucou, ao
contrário da personagem do conto de Saramago que se machuca ao cair da cadeira que
igualmente se desmancha, também por estar velha demais e por obra dos cupins. No
lugar do ditador, Veiga alude a um bondoso bispo, de nome com iniciais S A, o
contrário de A S, Antonio Salazar. Contrariamente também, Veiga cria uma personagem
com poder que usa de modo bondoso, para favorecer os que desvalidos, que usa seu
poder para amenizar os sofrimentos da humanidade. Como o ser humano deseja sem
conhecer se a posse será para bem ou para mal, não sabia Delduque que a cadeira o
levaria a ter, também, o dever para com os pobres que o antigo dono dela tinha. De tal
modo que o desejo do objeto, sem que pudesse prevê-lo, lhe traz mais preocupações que
prazer, até que muda e resolve compartilhar a si e a seus bens com os demais.
As epígrafes dos dois livros também chamam para o diálogo. A de Veiga: “Que
assim, assim e assim quites, velhos papéis, a incômoda presença do inacabado”x, de
autoria de um suposto Álvaro Delduque Álvares, remete, diferentemente das epígrafes
de seus livros ambientados no rural, a algo que pode ser e estar em qualquer tempo e
lugar, que é a sensação do inacabado, do quase, do que se deixa por fazer, e o escritor,
assim juntando seus velhos papéis, transforma-os de objetos quase em objetos
turbulentos de contos, e quita seu compromisso com o que iniciou, vencendo a
incapacidade de domar o tempo em função das coisas todas que envolve o viver.
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Embora cada e todos os contos remetam à relação do ser humano com os objetos, e isso
lhe confira unidade, no livro não se consegue perceber o aclamado Veiga iniciante de
Cavalinhos de platimplanto, de 1959, ou mesmo o dos tantos outros livros
subseqüentes. Neste, a idéia da epígrafe se mantém quase como uma advertência ao
leitor de que são textos reunidos “assim, assim e assim”, e, de fato, não se encontra
nesse livro o melhor do estilo de Veiga, embora sua peculiar crítica social e política se
mantenham presentes. Já na epígrafe de Saramago: “Se o homem é formado pelas
circunstâncias, é necessário formar as circunstâncias humanamente”, de K. Marx e F.
Engels, de A Sagrada família, percebe-se a ideologia não só dos autores da frase, mas
também do próprio escritor, que, anticapitalista como Veiga, nos contos vai
progressivamente chamando a atenção para os bens de consumo que orbitam ao redor
das personagens à espreita de que elas os desejem, consumam e novamente desejem
outros bens num ciclo sem fim. Veiga, leitor de Saramago, em cada conto vai redimindo
o homem ao formar as “circunstâncias humanamente”, já Saramago o faz a cada conto
sucessivamente. Ao fim do livro de Saramago, o conto “Desforra” parece oferecer
humanamente essas circunstâncias, pois há um clamor pela vida, mas sem as coisas, já
que o jovem rapaz atende aos apelos da vida despido, numa (re)integração com a
Natureza, simbolizando a reumanização dos seres, num novo começo, como Adão e Eva
no paraíso.
O enfrentamento dos dois objetos, quase e ou turbulentos, permite sondar a
recepção de Saramago também entre os escritores brasileiros, mais especificamente do
autor goiano José J. Veiga. Para além dos diálogos textuais, os dois escritores
estabelecem diálogos ideológicos, pois a obra de Veiga desde a primeira produção que
se deu em 1959, com Cavalinhos de Platimplanto, trata sob diversificadas maneiras do
avanço do progresso e da tecnologia sobre as cidades pequenas, interioranas ou,
aproximando a lente, dos objetos que, sejam eles materiais ou símbolos de poder, vão
imperando sobre os homens até levá-los à cegueira sobre si mesmos, temática percebida
também como objeto de sondagem de Saramago.
REFERÊNCIAS
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SARAMAGO, José. Objecto quase. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
VEIGA, José J. Objetos turbulentos: contos para ler à luz do dia. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
NOTAS
i
SARAMAGO, 1994, p. 133.
ii
SARAMAGO, 1994, p. 134.
iii
SARAMAGO, 1994, p. 133.
iv
TURCHI, 2003, p. 102.
v
LISPECTOR, 1975, p. 36.
vi
VEIGA, 1997, p. 110.
vii
VEIGA, 1997, p. 111.
viii
VEIGA, 1997, p. 32.
ix
VEIGA, 1997, p. 32.
x
VEIGA, 1997, p. 8.
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Este estudo, que ora apresentamos, é parte integrante de nossa tese de doutorado
defendida em 2007, cujo objetivo era o de investigar sobre uma poética da narrativa de
Miguel Torga por meio de seus romances O Senhor Ventura, Vindima e A Criação do
Mundo, obras consideradas romances a partir do que propõem Bakhtin (1993) e Lukács
(2000), uma vez que se trata de narrativas que, basicamente, tematizam a história de
uma busca, em que o sujeito e o mundo são apresentados em sua dimensão complexa e
contraditória; outro aspecto a ser lembrado no que diz respeito a considerá-las romances
é o caráter aberto da forma romanesca, que prevê um sistema não definido, podendo
incorporar outros gêneros.
Ao longo de nossos estudos sobre as obras referidas, observamos seu caráter
eclético, oscilando e incorporando formas variadas: ora traços de dramaticidade, ora de
crônica e ensaio. Por outro lado, embora em diferentes aspectos, os romances
mostraram-se vinculados a formas romanescas tradicionais a partir da análise de seus
cronotopos, que realizamos tendo em vista os estudos de Bakhtin (1993) sobre as
formas de tempo e de cronotopo no romance, ensaio que integra o livro Questões de
literatura e estética: a teoria do romance. É por meio das características dos cronotopos
que Bakhtin apresenta e evolução do gênero romance em seu ensaio. Assim, ao
abordarmos as narrativas, buscamos apontar seus pontos de contato bem como suas
diferenças em relação às descrições oferecidas pelo teórico.
Em O Senhor Ventura, por exemplo, foi possível entrever o cronotopo do
romance de aventuras e de aventuras e costumes em que, por meio do percurso, da
viagem, realizado pela personagem projetam-se suas vivências e as transformações
sofridas; nessa medida, tempo e espaço, ou ainda, vivências e percurso, ficam fundidos
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Professora titular da disciplina de Literaturas de Língua Portuguesa: Portuguesa e Brasileira, do Curso
de Letras do Uni-FACEF – Centro Universitário de Franca.
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uma vez que, por meio desse entrecruzamento, o tempo se torna visível e o espaço
investido de significados; já em Vindima, pôde-se vislumbrar o cronotopo do romance
idílico, descrito por Bakhtin como a construção de uma narrativa em que tempo e
espaço se implicam mutuamente, uma vez que os fatos só poderiam ocorrer numa
relação estreita com o lugar, compondo por consequência um ritmo cíclico, identificável
ao tempo mítico em que as histórias giram em torno de situações da realidade básica da
vida e são ligadas à natureza. Tudo isso, no romance de Torga, combina-se com a
representação da realidade social dos trabalhadores do campo em contraponto à classe
dominante que os explora.
No que diz respeito a A Criação do mundo, encontramos o que Bakhtin descreve
como o cronotopo do “caminho da vida” de que trata no capítulo “Biografia e
autobiografia antigas”. Nesse capítulo o ensaísta esclarece que tem em vista o romance
biográfico, que, embora não tenha sido criado na antiguidade, é possível vislumbrar por
meio dele o desenvolvimento dos registros biográficos que existiram nesse tempo como
uma série de formas biográficas e autobiográficas notáveis que exerceram influência no
desenvolvimento desses gêneros, mas também no do romance europeu.
Essas formas ligavam-se a dois propósitos basicamente: o da busca do
conhecimento, nomeado cronotopo do “caminho da vida”, ou das formas retóricas
baseadas no enkomion, cujo cronotopo é o da ágora. Nesse tempo, a abordagem
particular de si e de seu interior ainda não existiam, a unidade do homem e sua
autoconsciência eram puramente públicas.
A integridade perdida, no âmbito da antiguidade, bem como a fragmentação
moderna correspondem às idéias sobre o surgimento do romance em relação à epopéia
que Lukács (2000) apresenta. Assim, pode-se perceber que o processo de evolução e
transformação das formas autobiográficas se atrela à história do romance, constrói-se
em sintonia mútua com as transformações da maneira de se ver o mundo, o homem, a
sociedade historicamente, o que atesta a autobiografia estar relacionada e ter influência
sobre o romance, como afirma Bakhtin (1993).
Na obra A Criação do mundo, existe a expressão da consciência privada do
indivíduo inadaptado e distanciado (compulsoriamente) de algo que busca
incansavelmente: a integridade/integração que se manifesta por meio de uma
consciência de si nos espaços fechados, mas também na “ágora”, ou seja, no Torga tudo
é individual (parte-se dele), mas há o coletivo: o destino das nações, do povo, a
constante ação solidária e fraterna manifesta na atitude insubmissa, combativa e tenaz.
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Para Lukács (2000), o romance é a busca dessa totalidade perdida, pelo desejo
de reconstituí-la; no entanto, essa busca é falhada à partida, porque as cisões e
contradições inerentes ao mundo moderno não mais permitem esse universo íntegro,
“integrado” que tanto Lukács quanto Bakhtin reconhecem nas civilizações antigas. Essa
aspiração à totalidade é sempre tematizada, então, nos romances e, de fato, nos
romances de Torga.
Na Criação, manifesta-se o sonho da possibilidade da totalização demonstrada
na busca do ideal de uma sociedade justa e livre, essencialmente democrática, o que
representa a luta por valores perdidos (e irremediavelmente perdidos), daí o isolamento,
a decepção com os semelhantes, a incomunicabilidade - essa a modernidade manifesta
na obra que realiza a essência do romance enquanto gênero.
Tais fatores levam a pensar que a base do cronotopo na Criação seria aquele
que Bakthin chama de “platônico” ou seja, o do “caminho do indivíduo que busca o
verdadeiro conhecimento”, mas com uma importante diferença, marcada por uma
mudança de ênfase que, agora, está na busca – e não no encontro - , na “descoberta” ou
na revelação, já que a cisão entre o homem e o mundo inviabiliza o mito o saber
revelado. A busca agora é a sós, é solitária e é primordialmente interior, subjetiva, de
autoconhecimento. Na narrativa de Torga, manifesta-se a impossibilidade do encontro,
do apaziguamento deixando ainda mais enfatizada a importância da busca de, pela
escrita, organizar o caos em cosmos, fazendo nascer dela – a escrita- a única
possibilidade de plenitude e de escapar da morte certa. É o “falhanço existencial” que o
romance, como gênero, tematiza que está plenamente representado na Criação e no
Senhor Ventura, principalmente. As obras literárias e o próprio texto, que congrega
tempo (criação) e mundo (espaço).
Conforme foi dito, o estudo em torno dessa obra de Torga compunha o objetivo
mais amplo de tentar chegar a uma poética de sua narrativa e, nesse contexto, nossa
abordagem sobre A criação do mundo incluiu não só seu caráter autobiográfico como
também seu tangenciamento com o romance de formação, contribuindo para revelar a
construção, por meio da obra, de uma “imagem de si”, de uma identidade de autor que
se manifesta em todas as obras.
A ideia de buscar por uma poética da narrativa de Miguel Torga surgiu ao longo
da pesquisa de mestrado quando trabalhamos com o livro de contos Bichos em
contraponto às narrativas da tradição da fábula esópica. Ao iniciar a investigação sobre
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o autor e ampliar o campo de leitura, vários elementos começaram a apontar para o fato
de que ele preocupava-se em construir mais que um pseudônimo.
Lembramos aqui as palavras de Eduardo Lourenço (1994), em artigo intitulado
“Um nome para uma obra”, apresentado no I Congresso Internacional sobre Miguel
Torga:
Esta vontade de identificação ou assimilação totêmica – se o termo é lícito
fora da referência ao reino animal - com uma planta, e nela, com a natureza
no seu aspecto quase mineral, foi integrada na leitura e exegese da sua obra
como sua imagem de ressonância mítica. Assim o que quis o próprio autor e
assim o impôs aos leitores, não como simples pseudônimo, mas como
“nome”, ao mesmo tempo simbólico e natural.i
A esse nome o poeta, somou o nome do arcanjo “Miguel” que, para Lourenço
(1991), representa a inscrição do autor numa genealogia também mitificante, mas, nesse
caso, cultural, demonstrando “reverência perante três Miguéis da sua nunca desmedida
devoção: Miguel Ângelo, Miguel de Cervantes e Miguel Unamuno”ii. O crítico enfatiza
que a vinculação a esses “Miguéis” é reveladora não só da admiração pelos artistas, mas
de sua identificação com eles, em sua atitude humanista, independente e inconformada.
Por meio do novo nome, o poeta realiza uma “auto-mitificação que se cumpre na
invenção de si como Miguel Torga”iii.
Nas Actas, além desse artigo de Eduardo Lourenço, outros dois abordam a
questão do telurismo marcado pelo nome “Miguel Torga” na construção de suas
análises e reflexões. Um deles, de Luciana S. Picchio, que, ao voltar-se para a análise
das obras do poeta a partir de relações temáticas estabelecidas dialeticamente, mostra e
explica o significado das metáforas fluviais que marcam o contraponto ao tropismo da
terra.
No outro artigo, Maria Fernanda Angius destaca o sentimento do sagrado na
obra de Torga. Para isso, parte do nome do poeta buscando evidenciar essa relação já na
criação da identidade poética. A autora entende o sentido de “Miguel” como “entidade
de ordem superior na hierarquia celestial” e, ao nome “Torga”, atribui o significado já
conhecido. A autora entende que a escolha do nome teve por intenção “a de ser
identificado como mensageiro da lírica da serra, a sua tão celebrada serra do Marão.”iv.
Para ela, a metáfora criada ultrapassou essa intenção tornando-se a imagem de uma voz
que agrega o místico e o social, é a manifestação da “voz poética que ecoa a
solidariedade cósmica entre Criador-Poeta-Terra.”v
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Para Eduardo Lourenço (1994), o nome escolhido pelo poeta não se limita à
condição de pseudônimo, mas trata-se da construção de uma “identidade mítica,
totêmica” por meio dele:
Interessa-nos, sobretudo, o fato de que, também para Lourenço (1994), por meio
do nome, estabelece-se uma profunda relação de compromisso entre a identidade
construída e a produção literária:
Nesse sentido, também entendemos o nome escolhido pelo autor como uma
espécie de princípio organizador da obra, de que emanam a temática do humanismo
telúrico e a austeridade da expressão, de modo que tudo passe a convergir para a idéia
da “fidelidade de raiz” manifesta na postura solidária que adota em relação às
vicissitudes humanas na busca de justiça social, de justificação existencial.
É em torno dessa temática que giram as histórias dos romances de Torga: a
busca do Sr. Ventura – como emblema do destino português – de aventuras e riqueza
em terra estrangeira, mas que descobre, no caminho inverso, no retorno, sua
justificação; na configuração do universo idílico da vindima, cenário de dramas
humanos em face das diferenças sociais; na construção da narrativa autobiográfica em
que se evidencia o percurso de construção de uma personalidade poética, em que se
conta a história da constituição de uma voz vinculada à terra e comprometida com ela.
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Assim como cria um universo ficcional por meio de sua obra em prosa,
entendemos que a personalidade “Miguel Torga” seja uma criação, parte desse universo,
parte da criação, mais que um nome de autor, ou um pseudônimo.
Acreditamos que, para explicar a idéia de que Miguel Torga consiste numa
imagem autoral criada - e, ainda para citar Márcio Seligmann Silva (2007), uma
“autoficcionalização” -, é necessário considerar sua evidente preocupação em compor
uma escrita autobiográfica.
Quando terminamos a redação da tese, deparamo-nos com o termo “autoficção”
até então desconhecido. Naquele momento não foi possível, por questões de tempo, ou
melhor, dos prazos a cumprir, investigar mais de perto a fonte, a origem desse conceito,
o que tem sido agora nossa meta, por meio de um projeto de pesquisa para 2010 a partir
dos estudos em curso sobre a teoria em torno da autobiografia e da autoficção, tendo em
vista agora as propostas de Serge Doubrovsky (1988): Autobiografiques: de Corneille à
Sartre, e o estudo de Diana Klinger (2007): Escritas de si, escritas do outro: o retorno
do autor e a virada etnográfica, em torno do assunto.
As categorias de autor-criador ou de autor-implícito utilizadas na tese não se
mostraram suficientemente abrangentes para explicar o que ocorre na narrativa de
Torga, uma vez que a construção “autofictícia” do autor extrapola os limites da obra
individualmente (romance, conto, poesia...), adquirindo uma dimensão mais ampla: a da
obra no sentido da sua produção como um todo.
Embora não fosse nosso objetivo dar conta da totalidade, ou investigar a poética
de todo o conjunto da obra de Torga, a análise dos romances pôde revelar a existência
de um projeto literário, de um projeto estético que se corporifica nas obras ficcionais,
obras estas que se encontram ligadas por um fio condutor, uma estrutura anteriormente
estabelecida, regida pela escrita da narrativa autobiográfica e pela diarística.
A presença, no Diário, do prefácio à tradução espanhola da Criação do mundo,
bem como o comentário sobre a ficção presentes nessas obras levou-nos a entender que,
anteriormente ao que Booth (1980) considera como narrador e autor-implícito,
individualizados nas obras, existe uma terceira instância, um entre-lugar, parecido com
esse “lugar tangente cronotópico” de Bakhtin em que encontramos a voz “Miguel
Torga”. Há referências mútuas entre as obras, mas regidas pelos textos autobiográficos,
como neste exemplo:
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E no Diário, ainda:
A identidade da voz que pudemos observar nos fragmentos acima nos leva à
idéia de que Diários, A Criação do mundo, os prefácios às várias obras (e as referidas
partes do Sr. Ventura) são os lugares eleitos para a manifestação, em primeira pessoa,
de uma voz “autoficcional” que conta, comenta, descreve, cria imagens por meio da
escrita literária.
No prefácio de A criação do mundo Miguel Torga diz que “cada um cria o
mundo a sua medida”: eis aí o mito do gênesis atrelado à configuração da identidade
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que tenta organizar um “cosmos” por meio do verbo criador, da palavra criadora do
poeta, arquiteto de sua própria imagem, no espelho das palavras.
REFERÊNCIAS
LOURENÇO, E. Um nome para uma obra. In: Aqui, neste lugar e nesta hora: Actas do
primeiro congresso internacional sobre Miguel Torga. Porto: Universidade Fernando
Pessoa, 1994.
PICCHIO, L. S. Entre Douro e Mondego: a metáfora fluvial em Miguel Torga. In: Aqui,
neste lugar e nesta hora: Actas do primeiro congresso internacional sobre Miguel
Torga. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 1994, p. 413-419.
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NOTAS
i
Lourenço, 1994, p. 277.
ii
Lourenço, 1994, p. 278.
iii
Lourenço, 1994, p. 281.
iv
Angius, 1994, p. 36
v
Angius, 1994, p. 36.
vi
Lourenço, 1994, p. 280.
vii
Lourenço, 1994, p. 281-282.
viii
Torga, 1999, p. 1576.
ix
Torga, 1993, p. 7.
x
Torga, 1993, p. 11.
xi
Torga, 1999, p. 1765.
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1. INTRODUÇÃO
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Faço registrar que o meu conhecimento da obra de Antônio Quadros, no âmbito acadêmico da Faculdade
de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, deveu-se a Prof.ª Dra. Gilda Santos (UFRJ), feito
através do meu orientador de doutorado Prof. Dr. José Clécio Basílio Quesado (UFRJ). Aos dois ilustres
mestres meus sinceros agradecimentos.
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Em nota à 2ª edição, João Pedro Grabato Dias, parente do autor de As Quybyrycas, Frei João Grabato,
informa sobre a 1ª edição que foi feita em 1972, “em condições especialíssimas e sob pressão do
ambiente político da sociedade lourenço-marquina [Moçambique] de então.” (1991, p.11). Ou seja, a
obra foi publicada “nas barbas de alguns alguéns” (idem, p.11), ou seja, debaixo da censura do regime
colonialista português.
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2. A ESTRUTURA DE AS QUYBYRYCAS
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Havia entre os seus amigos ao tempo que voltara da Índia e publicara já o seu
famoso poema que eu cheguei a copiar no meu cancioneiro e tão aclamado
foi pelos mais dedicados amantes das Musas que então viviam nas Espanhas,
como tão denegrido por outros que viram no poema liberdades e
atrevimentos impróprios de tão nobre poesia, gente mui diversa em nobreza
da que se honrava com protegê-lo como o Senhor D. Rui Dias da Câmara que
lhe pedira os salmos postos em vulgar, e mui distante da piedade que ele
mesmo todo largava de si como suor de arrependimento por seus anos
perdidos quando, desque aportara a Lisboa, ele se fizera muito dos frades de
São Domingos, para lhe deixarem passar o poema por limpo e santo, e não
suspeitarem dele Camões até que Deus fosse servido chamá-lo à Sua Divina
Presença por morte dizia ele que não de pena ou penúria, nem de pátria em
competição de doença com as suas partes baixas também marcadas pelos
erros e o mau exercício das faculdades viris, mas de puro fazer-se o que não
era, por amor mais de seu poema que de sua vida ou salvação. Era gente dada
a opiniões mui suspeitas contra a nossa Santa Fé Católica e outros vícios e
pecados que não são de dizer, e que ele tinha por companha sua em uma
taberna que havia ao fundo da rua em que morava e o visitei muitas vezes, ali
levado por nossa antiga amizade e pela muita e rendida admiração que o seu
génio criara em mim, logo de aquando o conhecera em outros tempos mais
felizes mas de menos ou nenhuma fama sua como a que fruia agora. Nunca
porém me achegava quando o via rindo ou falando e ouvindo dizeduras
indignas de homem bem nascido e cumpridor dos deveres de bom católico e
fiel súbdito dos reis de Portugal que ele cantara com tão discreto primor.
3
Cf. SENA, Jorge de. A estrutura de ‘Os Lusíadas’ e outros estudos camonianos e de poesia peninsular
do século XVI. 2. ed. Lisboa, Edições 70, 1980. Ver também o artigo de José Clécio Basílio Quesado:
Jorge em outra cena no reino da ironia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2003, p. 5, quando ele diz que o prefácio
de As Quybyrycas “incluiria até mesmo uma auto-ironia, uma chacota direcionada também ao próprio
prefaciante”.
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Ca n cio ne ir o
e m q ue uaõ o b r a d o s mi l ho r e s p o e
ta s d e me u t e mp o , ai nd a nã o e mp r e
sa s e tr e s lad ad as d e p ap ei s d a
Letr a d o s me s mo s q ue a s co m
p o ser aõ co me s sad o na i n
d ia a 1 5 d e j a ne ir o d e
1 5 5 7 , e acb ad o e m l x. ª
em 1589
p er Lui s fr a nco Co r r ea c o mp a
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n he ir o e m o e st ad o d a í n d ia
e mu i t o a mi g o de L ui s de
Ca mo en s
( ap ud H UE, 2 0 0 2 , p .8 , g r i fo no sso )
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4
O alvará real de D.Sebastião, que permite a impressão de Os Lusíadas, concede uma licença especial
para que possa imprimir “se o dito Luís de Camões tiver acrescentados mais alguns Cantos, também se
imprimirão”. Cf. BERARDINELLI, Cleonice. Estudos camonianos. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira: Cátedra Padre António Vieira, Instituto Camões, 2000, p. 16.
5
As citações de Os Lusíadas são feitas apenas pelo n° do(s) canto(s) em algarismos romanos, seguidos do
da(s) estrofe(s), em arábicos e as de As Quybyrycas os cantos em algarismos arábicos e as estrofes em
romanos.
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E vó s, T ág id e s mi n h a s, p o is cr i ad o
T end e s e m mi m u m no v o e n ge n ho ar d e nt e,
Se se mp r e e m v er so h u m ild e ce leb r a .
Fo i d e mi m vo sso r io al egr e me n te,
Dai - me a go r a u m so m al to e s ub l i mad o ,
U m e st ilo gr a nd í lo q uo e co r r e nt e,
P o r q ue d e vo ss a s á g ua s , Feb o o r d e ne
Q ue não te n h a m i n v ej a à s d e Hip o er e n e.
Da i - me u ma f úr ia gr a nd e e so no r o sa,
E não d e a gr e s te a v e na o u fr a uta r ud a,
Ma s d e t ub a ca no r a e b eli co s a,
Q ue o p ei to ac e nd e e a co r ao ge s to mu d a ;
Da i - me i g ua l ca n to ao s fe ito s d a fa mo sa
Ge n te vo s sa, q u e a Mar te t a nto aj ud a;
Q ue se e sp al h e e se ca n te no u n i ver so ,
Se tão s ub li me p r e ço c ab e e m v er so .
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Ca n ta nd o - vo s a a ur a e a vi zi n h a
e mp r e sa e m q ue e mp e n h ai s o ma l ha v id o
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e mp e n har ei ca nt ar ma i s d o q u e a mi n h a
co n sc iê n cia d e j á vo s t er me nt id o .
De ste mp er e i o ut r o r a a l i r a a si n ha
ca nta nd o o l u so s ur d o e end ur ec id o .
Ma s ho j e ca n tar ei o er r o r d o Ho me m.
Q ue o s f u t ur o s , d o er r o r a l ição to me m. ( 1 , XX V )
E a vó s se n ho r d a l u si ta na ca sa
O nd e o o ur o d e l ei é l ei ago r a
Mai s d o q u e o b e m s ab e r o u me nt al b r a sa;
E m Vó s sa úd o o ar d o r , ma i s q ue n ão fo r a
p o r sab ê -lo d e nad a e o nad a a as a
P o ss í ve l, ne st e no sso b o ta fo r a .
Eis - me no s r es to s, ve l ho , e e m r e ste lo
Ma s p o r a mo r d e mi m sa b er ei sê - lo . ( 1 , I V )
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p o r q ue s ão s u sc et í ve is d e r e ve lar fa ce ta s d i v e r sa s a ép o ca s
d i fer e n te s, p o r ser e m s u f ici e nt e me n te r ica s p a r a t a nto [ co mo
ta mb é m] p o d e te r sid o es cr i ta, p o r e xe mp l o , e m te mp o s
co n t ur b ad o s, q ua nd o se r ia p er i go so a fir mar d ecla r ad a me n te
cer t as id éi a s, o u to r ná - la s d e ma s iad o e v i d en te s n u ma
es tr ut ur a. ( QU AD R OS /G R AB AT O, p . 4 4 8 /4 9 ) .
Ainda com relação aos croquis, eles são esquemas que visam a
demonstrar ironicamente o rigor de formalização de cada Canto,
elaborados como se fossem organogramas em que cada estrofe está
inserida na outra através de setas, de palavras indecifráveis, de
correções, etc. Os croquis funcionam no sentido desta ilusão de que a
6
Ver nota 3.
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Ao s f u t ur o s h u ma n o s d e st a gr e i
cr ia nd o e mp r e s a e so n h o o nd e não h á
ma i s q ue so n h ar cr iá - lo , ex o r tar ei
a ap r e nd er a acab ar o q u e é e e stá .
No s j o go s d o i n fi n ito é f áci l l ei
a q ue i n ic ia o j o go e o j o go d á.
P er se v er ar no i nt u ito al é m d o d ad o
me l ho r d es tr i nça o ab e g ão d o gad o .
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q ue at é e le s cr eer a m s er as s i m.
Se f izé s se i s o j u s to e m vo s so s i so
eu o fi z no utr o ta n to , e aq u i vi m.
Rep o u sa i vo s so s o s so s n es te p a s so
q ue aq ui co me ça d e o utr o s o e mb ar a ço . ( 1 , I X - X )
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A mo d er n id ad e vi ve u n u m es tad o d e p er ma n en te g u er r a à
tr ad i ção , le g it i mad a p elo a ns eio d e co l et i vi zar o d e st i no
h u ma no n u m p l a no al to e no vo , q ue s ub s ti t uí s se a ve l ha o r d e m
r e ma ne sc e nte , j á es f al f a d a, p o r u ma no va e me l ho r . E la d e v ia,
p o r ta nto , p ur i f icar - se d aq u ele s q ue a mea ça v a m vo lt ar s u a
in tr í ns eca ir r e v er ê nc ia co n tr a o s se u s p r ó p r io s p r i nc íp io s.
U ma d as ma is i nq u iet a n te s “i mp ur e za s” n a ver s ão mo d er n a d a
p ur e za e r a o s revo lu c io n á rio s, q u e o e sp ír ito mo d e r no t i n ha
tud o p ar a ge r ar : o s r e vo lu cio n ár io s er a m, a f i na l, n ad a mai s d o
q ue o s e n t us ia st as d a mo d e r nid ad e, o s ma i s f iéi s e n tr e o s
cr e nt es d a mo d er na r ev el ação , a ns io so s p o r ex tr a ir d a
me n s a ge m a s liçõ e s m ai s r ad ic ai s e e s te nd er o e s fo r ço d e
co lo ca r e m o r d e m a lé m d a fr o n te ir a d o q ue o me ca n is mo d e
co lo ca r e m o r d e m p o d i a s u st e nt ar . A p ó s - mo d er n id ad e, p o r
o ut r o lad o , vi v e u m es tad o d e p er ma n e nt e p r es são p ar a se
d esp o j ar d e to d a i nt er fe r ên ci a co le ti va no d e s ti no i nd i v id ua l,
p ar a d e sr e g ula me n t ar e p r i vat iz ar . T e nd e, p o i s, a fo r t ale cer - se
co n tr a aq ue le s q ue – se g ui n d o s ua s i n tr í n s eca s te nd ê n ci as ao
d esco mp r o mi s so , à i nd i f er e nça e li v r e co mp eti ç ão – a mea ça m
ex ib ir o p o te nc ia l s u i cid a d a es tr a té gi a, ao est e nd er s ua
i mp le me nt ação ao úl ti mo gr a u d a ló gi ca. A mai s o d io sa
i mp ur ez a d a v er s ão p ó s - mo d er n a d a p ur eza não s ão o s
r evo l uc io nár io s , ma s a q ue le s q u e o u d e sr e sp e ita m a l ei, o u
fa ze m a le i co m s ua s p r ó p r ia s mão s – a s sa lta nt e s, ga t u no s,
lad r õ e s d e car r o e f ur ta d o r es d e lo j a, a s si m co mo se u s a lt er
eg o s – o s gr up o s d e p u ni ção s u már ia e o s t er r o r i s ta s.
No va me n te, el es não s ão mai s d o q ue e n t u si as ta s d a p ó s -
mo d e r nid ad e, ap r e nd iz es vo r a ze s e d e vo to s cr e n te s d a
r ev el ação p ó s - mo d er n a, áv id o s p o r l e var a s r e cei ta s d e v id a
s u ger id a s p o r aq u ela l i ção até s ua co nc l us ão r ad ica l. ( 1 9 9 8 ,
p .2 6 )
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Muito embora a paródia moderna e pós-moderna ofereça uma versão muito mais
limitada e controlada desta ativação do passado, dando-lhe um contexto novo e, muitas
vezes irônico, o leitor tem de participar do esforço para decifrar os sentidos, a partir de
linguagem comum a ambos: escritor/leitor. Exige-se, de fato, do leitor conhecimentos e
memória cultural e não somente a sua abertura ao “jogo textual” entre o texto de fundo,
o parodiado e o parodiador. Talvez seja verdade que todos os textos vanguardistas
tenham sido, nas palavras de Laurent Jemy, citadas por Linda Hutcheon, “assombrados
por memórias culturais, cujo peso tirânico tiveram de derrubar, incorporando-as e
invertendo-as.” (1989, p. 16).
Freqüentemente, a paródia é definida nos dicionários afamados como imitação
ridicularizadora, conforme definição do dicionário do Aurélio Buarque de Holanda
(2000): 1.Imitação cômica de uma composição literária. 2.P. ext. Imitação burlesca.
3.Teatr. Comédia satírica ou farsa em que se ridiculariza uma obra trágica ou dramática;
arremedo. No discorrer de nosso trabalho, tem-se tornado claro, pelas estrofes figuradas
até o momento, que o “alvo” de As Quybyrycas, em algumas passagens de sua narrativa
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Só q ue ( e e s ta ver d ad e d igo - a j á)
não via e nt ão , no e mp ar ed ad o go sto
d e mu i ler o s a nt i go s , to d o s a má
maq u i nar ia d es s e a n ti go r o s to .
Es se v íc io d e i xei -o e u p o r lá
ne s se o u tr o c a nto o nd e p is ei o mo s to
d a mu i ta i niq u id ad e b e m cal ad a
so b o s p e so s d a cr uz e d a e sp ad a.
Ali e xt r e me i o a mo r o so o f ício
d e p ô r no ver so e n x uto o r eto c ad o .
E al i ver ei s na s le tr a s b en e fí cio
q ue me d a r á o no me p o r lo u v ad o .
Não o e nj eito e u p o r ar t i f ício
( p o r q u e ta l não o er a) e o q u er o ho nr ad o
na me mó r ia d e to d o s, co mo f ei to
d u ma b el eza p er to d o p e r fe ito .
Ma s ho j e o p r o nto e xt r e mo o nd e me v ej o
p o r id ad e c he g ad o , me a clar a
o e nte nd i me n to . E u ns r es to s d o d e sej o
q ue o utr o r a t i ve d e ca n t ar e m r ar a
o b r a d e e n g é nio e va l ho ( o nd e o so b ej o
a mo r q ue a t ud o te n h a f o s se c lar a
e r ud e me n te i mp o sto p o r es cr i to )
me faz ac h ar no V er o o u tr o B o ni to . ( 2 , C C X L a C CX LI I )
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das épicas anteriores de Camões e Pessoa. Não se trata, ainda nas palavras de Linda
Hutcheon,
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passado, o presente e o futuro, como vimos até aqui defendendo, conforme exposto nas
estrofes abaixo:
P en sa i e m Alb uq u er q ue, o to l er a n te
co m ge nt íl ico s c ul to s e co s t u me s
d e tão d i ver sa s cr e nç a, o a ma nt e
d o s e s tr a n ho s sab er es , s ó lid o s c u me s
d e ta n ta h u ma n id ad e. Cr ú, i mp a n te
d e p ur o ze lo e não d e vi s r a n c u me s
co mo o r a v ej o ta n to cap itão
p o r mi sér ia d e e sp ír ito me ão .
So ma nd o o ze lo to n to à tr uc ul ê nc ia
d e q ue m se j ul g a ma i s e sab ed o r
d e q ue m l he e s tá s uj ei to na i n te nd ê n cia
e m q ue fo i e mp o s sad o , f ica o p eo r
b o cad o d e b o cad o d e i n t o ler â n cia
q ue e m c r e sce nd o c uid o ac har p eo r .
De u m Vi ce - Re y s ei e u q ue p o r u m d e n te
ac ho u b e m ar r i s car to d o o Or i e nt e.
No d e sp o j o d e J a fa é co n he cid o
vi r o d e n te d e B ud a, q u e é o D eo s
se n ho r d aq ue la s p ar te s. P o r p ar ecid o
na i nt e nção co m o No s s o , é d o s S e u s.
T r ez ce nto mi l d ucad o é o f er ec id o
p o r o r ei d e P e g ú. E b r ad a ao s Cé u s
o v ice -r e y, o u v id o o i nq ui s id o r
q ue i mo u o d e nte e m no me d o se n ho r .
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Q ua nd o u m d el es e m b o r d o d es c uid ad o
r asp a a p i nt ur a no va d e u ma na u
o v ice -r ei ac ho u q u e er a ir ad o
é d e se u car go a p r i ma c o nd ição .
Est a va b eb e nd o e lo go d er r a mad o
so b r e a r e nd a e se ti m d o b ala nd r a u
o v i n ho co r r e e v i sto ma is p ar ec e
sa n g ue q ue o r o s to t i n ge e e n f ur e ce.
Ma nd a a Do mi n g o s q ue não g uar d e s áb ad o
e à vo l ta d e Ca mb ai a, ao s M al ab ar e s
d o car t az d ~e liç ão . E q ue o vá gad o
d es se s c ãe s o uç a e m Go a. J á no s ar es
d a mo nção v ai Do mi n g o s o nd e o cá g ad o
d a fr o ta mer ca nt il p a ss a e m va gar es
d e d e sca n so i no ce n te se m q u e a ma n h a
lh e s d ~ e i nd ício d a e sp n to s a sa n ha.
Ag o r a o s te m e u m a u m co n fi sca
to d o s o s f ar to s b e ns q ue são tr a n sp o r te.
Ao s b ar co s l u so s so b e o mala r i st a
ag it a nd o o c ar t az ma s s e m ma i s so sr t e
q ue lo go a li d e sp ir e m- n o . E à v i sta
d o s t e nr o s fi l ho s d ão - l h e b r uta mo r t e:
Faz e nd o u m sa co f u nd o d e al v as vel as
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p ar a o ma r f u nd o o d ão co s id o ne la s.
Est e va i vi vo , ma s o v i v o e n ge n ho
d o cap i tão p r es to so , não se p ár a ;
p o r q ue d u m não a gr ad e o es c ur o ce n h o
lo g o o d e go la ne s ta r azã o clar a.
e a ss i m se g u e d a v id a o vi l o r d e n ho
no s t r i st es acab a nd o a v i d a a mar a:
u n s, vão vi vo s ao f u nd n a al v a eç a
o ut r o s ao f u nd o v ão , ma s se m cab e ça. ( 2 , C LX X XV a
C LXX XI X)
Q ue v i n ga nça ha ver á no d ia a v ir
q ue co mo a h i stó r ia e n si n a se mp r e ve m
e m q ue o b ár b ar o alc a nc e e m se u so r r ir
a s e g ur a nç a q ue o r a a g e nt e t e m?
Q ue d e co nt as e aj u ste h ão -d e so fr ir
as i no ce n te s ge r açõ es q u e s e m
cu lp a ma i s d o q u e e s sa, hão -d e na sc er
p ela r o ta tr a çad a ao t e m p o a ha ver ?
Co mo no s o l har ão , no t e mp o , o s f i l ho s
d es te s fi l ho s q ue ao t e m p o o u tr o s s er ão ?
Q ue p e n sa r ão d e nó s e d es te s tr il ho s
q ue u m l ab é u p e r ma ne n t e l he s tr ar ão ?
Ace nd e mo s no ho j e t ai s r as ti l ho s
q ue d o i s d i l ú vio s n ão ap ag ar ão
esq ue cid o s q u e ao f azer a ca ma a s si m
co mo a f il ho s d e it a mo s, não e si m. ( 2 , C LVI I I e C LI X)
( ...)
E a ss i m, u m ap ó s o utr o , d o is mi l mo ur o s
se m mai s es co l h a q ue u m ad e st as mo r t es
ab ai xo v ão d e i xa nd o mi l te so ur o s
a s up er fí cie , l i vr e s d e o ut r o s p o r te s.
Não ser ão e st es j á, e str a n ho s a go ur o s
p r en u n ci a nd o mu d a e m no s sa s so r te s?
Q ue v i n ga nça p er d id a e p u n ição
es te s ho r r o r e s d e sa n g ue p ed ir ão ? ( 2 , C X C)
A o ut ra a sa do g r if o
Af o n so de A lb u qu er qu e
De p é , so b r e o s p a í se s c o nq u is tad o s
De sce o s o l ho s ca n s ad o s
De ver o mu n d o e a i nj u st iça e a so r te.
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Não p e n sa e m v id a o u m o r te,
T ão p o d er o so q ue não q uer o q ua n to
P o d e, q u e o q uer er ta nto
Ca lcar a ma i s d o q ue o s ub mi s so mu n d o
So b o se u p as so f u nd o .
T r ês i mp ér io s d o c hão l he a So r t e ap a n h a.
Cr i o u -o s co mo q u e m d e s d en h a. ( 2 0 0 5 , p . 7 7 )
Ne m d e i xar ão me u s v er s o s e sq ue cid o s
Aq uel es q ue no s Re i no s lá d a Au r o r a
Fiz er a m, só p o r ar ma s t ã o s ub id o s,
Vo s sa b a nd e ir a se mp r e ve n ced o r a :
U m P ac h eco fo r tí s si mo , e o s te mi d o s
Al me id a s, p o r q ue m se m p r e o T ej o cho r a;
Alb uq uer q u e t er r íb il , Ca str o fo r t e,
E o u tr o s e m q ue m p o d er nã o te v e a mo r t e. ( I , 1 4 )
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E o r e y d e T er n a? P o b r e lea lí s si mo
va s sa lo p d e st e s r e yn o s p o r se u q uer er ...
q ua n to ma i s d á, ma is o i nj u s to d í zi mo
co b r a m o s c ap i tãe s, q u e é d e cr er
lh e to me m p o r fr aq ue za o no b il ís s i mo
mo d o d e t a nto d ar . No b r es? É ver
q ue é d e v il ão , tir ar ne st e tr ab al ho
a q ue m no s a g a sal ho u , t o d o o a ga sa l ho .
E so b r e o mi s sa l r o to , p o lo ad r o
p as sa o tr o p e l i ni mi g o d a ca na l ha
d e fid a l go s e v u l go q ue ao q uad r o
d o p er j úr io , aj u sta m a m ur a l ha
o nd e t ud o se p a ss a co mo u m e str tad o
d e a uto x aco u to . Co m fo r çad a r al ha
e j á e m e x tr e mo s, b eij a o r eal b r az ão
gr a v ad o p e lo co lo d e u m ca n hão .
Ma s a s ar ma s d o l u so n ã o p r o te ge m
j á a n i n g ué m d o ul tr a g e d ecid id o .
Ao o c n tr ár i o , j á sa n gr a m o nd e r e g e m
q ue só no s a n g ue v ~ee m o r e gid o .
Ali s e f i na e mb o r a à so mb r a e st ej a m
d a C r uz e d o B r az ão . De sp o i s, d esp id o
na s la ma s o ar r a s ta m p o lo s b o r co s
e p o r ma io r ul tr aj e o d ã o ao s p o r co s.
885
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
E p o r q ue i s to não c he ga à e n sa nd e cid a
sa n ha d e ma tad o ir o e ab j ecção
o esq u ar taj a m n a la ma j á ti n g id a
d o sa n g u e e m q u e r o mp e u o co r aç ão .
Ao s p ar e n ts i mp ed e m a no j id a
e a nt ur al me na g e m q ue d es ij ão
p ar a o ma r a tir a nd o co m o s q ua r to s
p o r q u e o co ma m me d us as e e sp ad a r to s. ( 2 , CX CI a CX C V)
E a o r l a b r a n ca fo i d e il ha e m co n ti n e nt e,
Cl ar eo u, co r r e nd o , at é a o f i m d o mu n d o ,
E v i u - se a t er r a i nt eir a , d e r ep e n te,
S ur gir , r ed o nd a , d o a z ul p r o f u nd o .
Q ue m te sa gr o u cr io u - te p o r t u g uê s.
Do mar e nó s e m ti no s d eu s i na l.
C u mp r i u - se o Mar , e o I mp é r io se d e s fez.
Se n ho r , f al ta c u mp r ir - s e P o r tu g al ! (M en sa g em, 2 0 0 5 , p .7 8 )
886
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Se n ho r , a no i te v eio e a al ma é vi l.
T anta fo i a to r me nt a e a vo n tad e !
Re s ta m- n o s ho j e, no s ilê nc io ho st il,
O mar u n i ver sa l e a sa u d ad e.
Ma s a c ha ma, q ue a vid a e m nó s cr io u,
Se ai nd a h á vid a a i nd a n ão é f i nd a.
O fr io mo r to e m c i nz as a o c ul to u:
A mão d o ve nto p o d e er g uê - la ai nd a.
Dá o so p r o , a ar a ge m - - o u d es gr aça o u â n si a ...,
887
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Co m q u e a c ha ma d o e s f o r ço s e r e mo ça
E o u tr a v ez co nq ui st e mo s a Di s tâ nc ia.. .
Do mar o u o utr a, ma s q u e s ej a no s sa ! ( 2 0 0 5 , p .8 3 )
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Ce s se m d o s áb io Gr e go e d o T r o ia no
As n a ve ga çõ e s gr a nd e s q ue fiz er a m;
Ca le - se d e Ale x a nd r o e d e T r aj ano
A fa ma d a s v itó r ia s q ue ti ver a m;
Q ue e u ca n to o p e ito il u str e Lu si ta no ,
A q ue m Nep t u no e Mar t e o b ed ec er a m:
Ce s se t ud o o q ue a M us a an tí g u a c a nta ,
Q ue o u tr o va lo r ma i s a lt o se al e va nt a. ( I , 3 )
( ...)
E vó s, ó b e m n as cid a se g ur a n ça
Da Lu s ita n a a n tí g ua l ib e r d ad e,
E n ão me no s cer tí s si ma esp e r a nça
De a u me n to d a p eq u e na Cr i s ta nd ad e;
Vó s, ó no vo t e mo r d a M aur a l a nça ,
Mar a v il ha fa tal d a no s sa id ad e,
Dad a ao mu n d o p o r De u s, q ue to d o o ma nd e,
P ar a d o mu n d o a De u s d ar p ar t e gr a nd e;
Vó s, te n r o e no vo r a mo f lo r e sce n te
De u ma ár vo r e d e Cr is to mai s a mad a
Q ue ne n h u ma na sc id a no Oc id e nt e,
Ce sár ea o u Cr i st ia ní s si ma c ha ma d a ;
( Ved e - o no vo sso e sc ud o , q u e p r e se n te
Vo s a mo str a a v itó r ia j á p as sad a,
Na q ua l vo s d e u p o r ar m as, e d e i xo u
As q u e E le p ar a si na Cr uz to mo u)
Vó s, p o d er o so Re i, c uj o alto I mp ér io
O So l, lo go e m n a sce nd o , v ê p r i meir o ;
Vê -o ta mb é m no me io d o He mi s f ér io ,
E q u a nd o d e sc e o d e i xa d er r ad e ir o ;
Vó s, q ue e sp er a mo s j u g o e vi t up ér io
Do to r p e I s mae li ta ca va l eir o ,
Do T ur co o r ie n ta l, e d o Ge nt io ,
Q ue i nd a b eb e o l ico r d o sa n to r io ; ( V, 6 a 8 )
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
feitos, nos exemplos dos antigos heróis portugueses que lhe serão epicamente mostrados
e deles se inspire e reflita sobre os atos futuros:
Mas como o conselho não foi adotado e a batalha de Alcácer Quibir foi a grandeza de
um feito que foi consumado na derrota, a voz de D.Sebastião, em Mensagem, avoca a
loucura como um ato pleno de sanidade pois dela ele assume a transcendência de seu
retorno messiânico:
D.S eba st iã o r ei de Po rt ug a l
Lo u co , si m, lo uco p o r q u e q ui s gr a nd eza
Q ual a So r t e a n ão d á.
Não co ub e e m mi m mi n h a cer tez a;
P o r is so o nd e o ar eal e st á
Fic o u me u se r q ue ho u v e, não o q u e há.
Mi n ha lo uc ur a, o ut r o s q ue me a to me m
Co m o q u e ne la ia.
Se m a lo u c ur a q u e é o h o me m
Mai s q u e a b es ta sad ia,
Cad á ver ad iad o q u e p r o c r ia? ( 2 2 0 5 , p .7 5 -7 6 )
A partir então destes fatos discursivos, estão dadas as condições necessárias para
um salto à insanidade total do megalômano D.Sebastião. A insanidade é tanta que nem
o poeta de As Quybyrycas consegue manter em seus versos uma estabilidade métrica
(furou/mais uma outava...) e desconvencionaliza a epopéia. Tudo isso dito com a
distância crítica necessária para favorecer a inversão irônica da dimensão real e mítica
das épicas de Camões e Pessoa.
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As a r ma s e o s b ar õ e s as si n alad o s,
Q ue d a o cid e nta l p r aia Lu s ita n a,
P o r ma r e s n u nca d e a n te s na v e gad o s,
P as sar a m ai nd a a lé m d a T ap r o b ana,
E m p er i go s e g uer r a s e s fo r çad o s,
Mai s d o q u e p r o me ti a a fo r ça h u ma n a,
E e ntr e ge n te r e mo t a ed i f icar a m
No vo Rei no , q ue ta n to s ub l i ma r a m;
E ta mb é m a s me mó r ia s glo r io sa s
Daq ue le s Re is , q ue fo r a m d il ata nd o
Fé, o I mp ér io , e a s t er r a s vi cio sa s
De Áf r i ca e d e Ás ia a nd ar a m d e v as ta nd o ;
E aq ue le s, q ue p o r o b r a s va ler o sa s
Se v ão d a lei d a mo r te li b er ta nd o ;
Ca n ta nd o esp al ha r ei p o r to d a p a r te ,
Se a ta n to me aj ud ar o e n ge n ho e ar te.
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Ce s se m d o s áb io Gr e go e d o T r o ia no
As n a ve ga çõ e s gr a nd e s q ue fiz er a m;
Ca le - se d e Ale x a nd r o e d e T r aj ano
A fa ma d a s v itó r ia s q ue ti ver a m;
Q ue e u ca n to o p e ito il u str e Lu si ta no ,
A q ue m Nep t u no e Mar t e o b ed ec er a m:
Ce s se t ud o o q ue a M us a an tí g u a c a nta ,
Q ue o u tr o va lo r ma i s a lt o se al e va nt a.
E vó s, T ág id e s mi n h a s, p o is cr i ad o
T end e s e m mi m u m no v o e n ge n ho ar d e nt e,
Se se mp r e e m v er so h u m ild e ce leb r ad o
Fo i d e mi m vo sso r io al egr e me n te,
Dai - me a go r a u m so m al to e s ub l i mad o ,
U m e st ilo gr a nd í lo q uo e co r r e nt e,
P o r q ue d e vo ss as á g ua s, Feb o o r d e ne
Q ue não te n h a m i n v ej a à s d e Hip o er e n e. ( I , 1 a 4 )
892
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Co 'o s s uc es so s d a s g u er r as d o co me ço ,
Q ue, se m s ab ê - la s, se i q ue s ão d e p r eço .
Ol ha i q ue h á t a nto te mp o q u e, ca n ta nd o
O vo s so T ej o e o s vo s so s Lu si ta no s,
A fo r t u n a mo tr az p er e g r i na nd o ,
No vo s tr ab al ho s ve nd o , e n o vo s d a no s:
893
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Ag o r a o ma r , a go r a e xp e r i me n ta nd o
Os p er i go s Ma vó r c io s i n u ma no s,
Q ual C a nac e, q ue à mo r t e s e co nd e n a,
N u ma mã o se mp r e a e sp ad a, e no u tr a a p e n a.
Ag o r a, co m p o b r e za a v o r r ecid a,
P o r ho sp í cio s a l he io s d e gr ad ad o ;
Ag o r a, d a e sp er a nça j á a d q u ir id a ,
De no vo , mai s q u e n u nc a, d er r ib ad o ;
Ag o r a à s co s ta s es cap a n d o a vid a ,
Q ue d u m f io p e nd ia tão d el gad o
Q ue não me no s mi la gr e fo i sal v ar - se
Q ue p ar a o Re i J ud a ico acr e sce n tar - s e.
E ai nd a, N i n fa s mi n h a s, não b a sta v a
Q ue ta ma n h as mi sér ia s me cer ca s se m,
Se não q ue aq u ele s, q ue eu ca n ta nd o a nd a va
T al p r ê mio d e me u s v er s o s me to r na s se m:
A tr o co d o s d e sca n so s q ue e sp er a v a,
Da s cap el as d e lo u r o q u e me ho nr as se m,
T r ab alho s n u n ca u sad o s me i n ve n tar a m,
Co m q u e e m tão d ur o e s tad o me d ei tar a m.
Ved e, N i n fa s, q ue e n ge n ho s d e s e n ho r e s
O vo s so T ej o cr ia va lo r o so s,
Q ue a s si m s ab e m p r eza r co m t ai s fa vo r e s
A q ue m o s f az, ca n ta nd o , g lo r io so s !
Q ue e x e mp lo s a f ut ur o s esc r ito r e s,
P ar a e sp er tar e n g e n ho s cur io so s ,
P ar a p o r e m as co i s as e m me mó r i a,
Q ue me r ec er e m ter et er n a g ló r ia ! ( VI I , 7 9 - 8 2 )
P o is lo go e m ta n to s ma l es é fo r ç ad o ,
Q ue só vo ss o fa vo r me n ão fal eça ,
P r in cip a l me n te aq ui, q u e so u c he gad o
O nd e fe ito s d i ver so s e n gr a nd eça :
Dai - mo vó s só s, q ue e u te n ho j á j u r ad o
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
Ne m c r ei ai s, Ni n f a s, nã o , q u e a f a ma d es s e
A q ue m ao b e m co mu m e d o s e u Re i
An tep u se r s e u p r ó p r io i nt er e s se,
I n i mi go d a d i v i na e h u m an a Le i.
Ne n h u m a mb ic io so , q ue q ui s es se
S ub ir a gr a nd es car go s, ca nta r ei ,
Só p o r p o d e r co m to r p e s ex er c íc io s
Us ar ma i s l ar ga me n te d e se u s v íc io s ;
Ne n h u m q u e us e d e s e u p o d er b a sta n te,
P ar a s er vir a se u d es ej o fe io ,
E q u e, p o r co mp r a zer ao v u l go er r a nte ,
Se mu d a e m mai s f i g ur a s q ue P r o te io .
Ne m, C a me na s, ta mb é m cu id e is q ue c a nto
Q ue m, co m háb ito ho n e s to e gr a ve, v eio ,
P o r co n te n tar ao Rei no o f ício no vo ,
A d e sp ir e r o ub a r o p o b r e p o vo .
Ne m q u e m ac h a q ue é j u sto e q ue é d ir ei to
G uar d ar - s e a lei d o Re i se ve r a me n te,
E n ão a c ha q ue é j us to e b o m r e sp ei to ,
Q ue se p a g ue o s uo r d a ser v il g e nte ;
Ne m q u e m se mp r e , co m p o uco e xp er to p e ito ,
Ra zõ e s ap r e nd e, e c u id a q u e é p r ud e nte ,
P ar a ta x ar , co m mão r ap ace e e sca s sa,
Os tr ab al ho s a l he io s, q u e n ão p a s sa.
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
P o eta c u mp r id o r me c u m p r o as s i m
co mp r a nd o - me e m p o b r e za r i co s d o ns
e mai s cr ué is tr ab al ho s q ue C ai m
co mp r o u no sa n g ue ir mã o q u e d er r a mo u.
E s ab er e i d e to d o s p o r q ue e m mi m
es mi u d e i me n ur as no q u e so u.
O nd e fad o s e d e u se s n ão an d ar a m
vão vo a nd o me u s v er so s e o ac lar a m.
Ad o nd e f u t ur ar es tej a ve d ad o
a ir r a cio n al p r o f et a o u a d iv i n ho
es tar á me u e s tr o e mi n h a mu s a ao lad o
p o r g ala n te me não d iz e r so z i n ho .
Aí es tar e i, b eb id o no p a s sad o
co m r aç ão d e b i sco uto e u m p i nto e m v i n ho .
Dal i vo s t r ar e i no va s e r ela to s
e u ma c r ua liç ão na vo z d o s fa cto s. ( 1 , I a I I I )
E a vó s d o Ol i mp o , a s f a r ta s go r d a s lap a s
q ue j á d o gr e go u se i, r e ne go a go r a.
E vó s T á gid e s mi n h as p o is g a nap a s
vo s t i ve, ei s q u e p o r ve l ha s d ei to fo r a.
Ad a ma s to r , s u mid a e s tá d o s map a s
a d er r o t a a n ti g a q ue o u tr a é a ho r a.
Q ue p ar a e xp li car o er r o r l u so
ma i s q ue u m er r o r d i vi n o ser á d e u so .
7
O exercício de parodiar Camões inicia-se logo após a publicação de Os Lusíadas. Sheila Moura Hue em
seu trabalho de Tese intitulado Camões entre seus contemporâneos. Sobre a recepção da obra camoniana
no século XVI (2002), nos informa da elaboração de uma paródia ao Canto I, da épica camoniana, por um
grupo de estudantes de teologia de Évora, em 1589. Segundo diz a autora, eles “se dedicavam a converter
cada verso de Os Lusíadas não ao divino, como seria de se esperar, mas ao ‘de-vinho’, glorificando os
então célebres beberrões da cidade de Évora, figuras epicamente ébrias, que deviam gozar de muita
popularidade entre os estudantes.” (p. 119). Pelo visto, a “bebedice” ainda repecurte em As Quybyrycas,
somente que cultural e historicamente de outro modo, conforme os versos a seguir exprimem: “Aí estarei,
bebido no passado/com ração de biscouto e um pinto em vinho”.
896
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E a vó s se n ho r d a l u si ta na ca sa
o nd e o o ur o d e le i é le i ago r a
ma i s d o q ue o b e m s ab er o u me nt al b r as a;
e m Vó s sa úd o o ar d o r , ma i s q ue n ão fo r a
p o r sab ê -lo d e nad a e o nad a a as a
p o s sí ve l, n es te no s so b o ta fo r a .
Eis - me no s r es to s, ve l ho , e e m r e ste lo
ma s p o r a mo r d e mi m sa b er ei sê - lo . ( 1 , I V )
Fo r mo sa f il h a mi n h a, nã o te ma i s
P er i go a l g u m no s vo sso s Lu s ita no s,
Ne m q u e ni n g u é m co mi g o p o s sa ma i s,
Q ue e s se s c ho r o so s o l ho s so b er a no s ;
Q ue e u vo s p r o me to , fi l ha, q ue vej a i s
Esq ue cer e m- s e G r e go s e Ro ma n o s ,
P elo s il u s tr e s fe ito s q u e es ta g e nte
Há -d e f aze r na s p ar te s d o Or i e nte .
Q ue se o f ac u nd o Ul i ss e s e sc ap o u
De ser n a O g í gi a i l ha et er no e scr a vo ,
E s e An te no r o s se io s p e ne tr o u
lír ico s e a fo nt e d e T i ma vo ;
E s e o p i ed o so E ne ia s n av e go u
De Ci la e d e C ar íb d is o ma r b r a vo ,
Os vo s so s, mo r es co u sa s ate n ta nd o ,
No vo s mu n d o s ao mu n d o ir ão mo s tr a nd o .
Fo r t ale za s, c id ad es e a lt o s mu r o s,
P o r ele s ver ei s, f il h a, ed i fic ad o s ;
Os T ur co s b e la cí s si mo s e d ur o s ,
Del es s e mp r e v er e is d e s b ar at ad o s.
897
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Os R ei s d a í nd ia, li vr es e s e g ur o s ,
Ver e i s ao Re i p o te nt e so j ug ad o s;
E p o r el e s, d e t ud o e n f i m se n ho r e s,
Ser ão d ad a s n a te r r a lei s mel ho r es.
" E ver ei s o ma r Ro xo , tã o f a mo so ,
T o r nar - se -l h e a ma r e lo , d e e n fi ad o ;
Ver e i s d e Or mu z o Rei n o p o d er o so
D ua s vez e s to ma d o e so j u gad o .
Ali ver e i s o Mo u r o f ur io so
De s ua s me s ma s s et as tr asp a s sad o :
Q ue q ue m vai co nt r a o s vo s so s, cl ar o vej a
Q ue, se r e si st e, co n tr a s i p el ej a.”
Ver e i s a i ne xp u g náb il D io fo r t e,
Q ue d o u s c er co s t er á, d o s vo sso s s e nd o .
Ali s e mo str ar á se u p r eç o e so r te ,
Fei to s d e ar ma s gr a nd í s s i mo s faz e nd o .
I n vej o so ver ei s o gr ão Ma vo r t e
Do p e ito Lu s ita no fer o e ho r r e nd o :
Do Mo ur o al i ver ão q ue a v o z e x tr e ma
Do fa lso Ma h a med e ao Cé u b la s fe ma.
898
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
D ur o fr e io p o r á , e a to d a a t er r a
Q ue c u id ar d e fa zer ao s vo s so s g u er r a. ”
" Nu nc a co m Mar te i ns tr uc to e f u r io so ,
Se v i u fer v er Le u ca te, q ua nd o Au g u sto
Na s c i vi s Act ia s g ue r r a s an i mo so ,
O Cap i tão v e nce u Ro ma no i nj u sto ,
Q ue d o s p o vo s d a Au r o r a, e d o f a mo so
Nil o , e d o B ac tr a C ít ico e r o b us to
A vi tó r i a tr azi a, e p r e sa r ica,
P r eso na E gíp cia l i nd a e ne g o p ud ic a.
Co mo v er ei s o mar f er ve nd o ace so
Co lo s i ncê n d io s d o s vo s so s p e lej a nd o ,
Le va nd o o I d o lo l atr a, e o Mo ur o p r e so ,
De na çõ e s d i f er e n te s t r i u n fa nd o .
E s uj ei ta a r ica Áu r e a Q uer so n eso ,
Até ao lo n g í nq uo C h i na na v e ga nd o ,
E a s i l ha s ma i s r e mo ta s d o Or i e nte ,
Ser - l he -á to d o o Oc ea no o b ed ie n te.
8
Cf. Junito Brandão (1991) em seu dicionário sobre a mitologia grega atribui a Calíope, a partir da época
Alexandrina, como a inspiradora da poesia épica e lírica.
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fato histórico em relação à arte, pois que essa lhe dá a dimensão de eternidade. O não
compreender a importância da arte desmerece o homem, e disso o Poeta acusa o próprio
Vasco da Gama” (BERARDINELLI, 2000, p.19),
As M u sa s a gr ad eç a o no s so G a ma
o M ui to a mo r d a P át r ia , q ue a s o b r i g a
A d ar ao s s e us na lir a n o me e f a ma
De to d a a il u s tr o e b él ic a fad i g a:
Q ue e le, n e m q ue m na e st ir p e se u s e c h a ma,
Ca lío p e não te m p o r tão a mi ga,
Ne m a s f il h a s d o T ej o , q ue d ei x as se m
As te la s d o ur o f i no , e q ue o ca n ta s se m.
Ma s Cat ar i n a r e g e d o utr a ar t e
ma i s a go s to d o ir mão e o p o vo a ns io so
vê d e mo r a ao so co r r o q u e n ão p ar te
a te mp o d e a te me r o i mi go ir o so .
De no vo , o cap itão , e scr avo d e M ar t e
900
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
a ma nd a ao r e i no ap elo s o co r r o so .
E d e sd e o Al g ar ve a no v a, e mb a i xo a lc a nça
o q u e no s p o d er o so s é ta r d an ça.
Ce n to e ci n co e nt a mi l M ul ei aj u n ta
a s it iar d a p r a ça a s c hã s co li n as
e al é m d o ma n t i me n to e ge n te mu n t a
tr az tr ab u co s , b o mb ar d a s, co l ub r i na s.
E r e ne gad o s v ár io s l he s aj u nt a
d e e n ge n ha r ia e sab ed o r es e m mi n a s.
As s i m r e co b r e ao e sp aço mo n te e mo nt e
até q u e co b r e to d o o ho r izo nt e.
( ...)
E d o r me co m u m o l ho q ue m d o i s te n ha
p o is d o s d o u s u m e st ar á se mp r e e m l uz io
vi g ia nd o s e m p a u sa s n es sa es tr a n h a
ma n eir a d e d o r mir d e c ã o ao fr io .
E j á d e fec a se m p ud o r a ve l ha
no ca nto u s ad o se m q u e haj a as so b io .
O ar c ab uze ir o mij a gr o s so a e sp aço s:
não d ei x a o p o sto e d e i x a o s e mb ar aço s.( 1 , LVI a LX XVI )
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REFERÊNCIAS
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
SENA, Jorge de. A estrutura de ‘Os Lusíadas’ e outros estudos camonianos e de poesia
peninsular do século XVI. 2. ed. Lisboa, Edições 70, 1980.
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Miguel Souza Tavares, autor do romance Rio das Flores (lançado no Brasil em
2008), na Nota ao Autor declara que “esse não é um livro de história, mas sim um
romance histórico” (TAVARES, 2008, p. 6052), e a presença, de certo inusitada em um
romance, ainda que “histórico”, da longa bibliografia de consulta demonstra o rigor
histórico com que se pauta a narrativa [embora isso não o impeça de cometer um
equívoco, ao registrar, na página 399, que Olavo Bilac era um “grande poeta
romântico”]. A Nota do Autor parece buscar esclarecer para o leitor – ainda que a
advertência venha ao final da narrativa – os caminhos pelos quais a malha narrativa se
construiu. Aliás, isso justifica o intercurso entre as histórias de Portugal e do Brasil, na
primeira metade do século XX, destacadas na narrativa que abarca o longo período que
se inicia em Valmonte, Portugal, em setembro de 1915 até novembro de 1942, em Rio
das Flores, Vale do Paraíba, no Brasil.
Os fatos registrados na História convergem com o enredo imaginado pelo texto
literário. A Ditadura Nacional portuguesa, em 1926, a Queda da Bolsa de 29 e a crise
européia, a ditadura salazarista, a Segunda Guerra Mundial e a onda de totalitarismo a
grassar na Europa e no Brasil, Getúlio Vargas, Coluna Prestes são alguns dos exemplos
dos inúmeros acontecimentos resgatados pelo romance.
Mas, alheio ao boom contemporâneo do novo modelo do romance marcado pela
presença da metaficção e pelos conceitos bakhtinianos de paródia, carnavalização ou
mesmo do dialogismo, o romance atém-se ao esquema tradicional do romance histórico
proposto por Walter Scott, gênero literário bastante em voga no século XIX (Cf.
ESTEVES, 1998), ainda encontrado em obras de autores portugueses de nossa época
como Agustina Bessa Luís e Mário Cláudio: a ação da narrativa tem como pano de
1
Professora Adjunta I da Universidade Federal da Bahia.
2
Todas as citações relativas ao romance referem-se à edição de 2008, que passará a ser citado a partir de
agora por RF. Cf. referência completa ao final do trabalho.
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fundo o ambiente histórico reconstruído com a presença das figuras históricas aderidas à
mentalidade de seu tempo e a trama fictícia sobre esse pano de fundo.
A abertura do romance Rio das Flores se faz com o registro da entrada ao mundo
masculino de Diogo Ascêncio Cortes Ribera Flores, protagonista da narrativa, aos
quinze anos, que é levado pelo pai à Feira de San Miguel, em Sevilha para conhecer as
touradas e principalmente para, como lhe informa o genitor, Manoel Custódio Flores, no
momento de saída da quinta, sob o olhar envergonhado da mãe: “Já tens idade para te
fazeres homem. Vens conosco também” (RF, p. 11).
A família Flores da Herdade de Valmonte, em Estremoz, possuía 2 mil hectares
de terra, passada de geração a geração pelo lado paterno. A mãe, Maria da Glória, uma
católica que se casou aos 15 anos com Manoel Custódio, um homem rude, arrogante e
autoritário, bem distante dos príncipes presentes nas leituras da adolescência, mas que,
para ela, garantiria para sempre aos filhos proteção ante um “golpe da fortuna ou de
uma volta do rio” (RF, p. 42).
Desse consórcio, nascem os filhos Diogo, considerado pela mãe como “reservado,
senhor da sua solidão e do seu silêncio, reflexivo e quase tão sensível como uma
rapariga” (RF, p. 39) e Pedro, “impetuoso, destemido, irascível muitas vezes, sempre
atento aos trabalhos da herdade”( RF, p. 39). O primeiro amado, o segundo respeitado
pela gente de Valmonte. Diogo, amante da vida citadina, das novidades tecnológicas, se
tornou engenheiro, casa-se em 1927 com a cigana Maria do Amparo, sob os protestos
do irmão Pedro, que diferentemente do irmão, se contentava com a vida agrária,
assumindo a administração da herdade após a morte do pai.
Em 1929, Diogo Flores decide com o amigo Francisco Monteiro criar a Atlântica
Companhia Luso-Brasileira de Representações Ltda, firma de importação-exoirtação de
produtos brasileiros para toda a Europa, mas o nascimento do primeiro filho, Manuel,
trouxe alguma calma a Diogo que adiou seus negócios no Brasil e só voltará a cuidar da
firma, em 1935.
O narrador descreve com pormenores as mudanças por que passava Portugal e os
efeitos econômicos da crise que antecipava a Segunda Guerra Mundial até que entre
1931 e 1932, as produções de Valmonte – cortiça, gado e azeite – passem a não dar
lucro e, posteriormente, acaretar a perda econômica da família Flores.
Associado às questões econômicas, o clima político de Portugal com a ditadura
salazarista e o ambiente familiar monótono, provocado pela ausência de eco aos
devaneios intelectuais de Diogo, seja da parte de Amparo, sua esposa, que não se
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interessava pelas leituras do marido e se ocupava dos assuntos domésticos, seja por
parte do irmão, partidário do regime político português. Nada conseguia provocar em
Diogo a alegria, nem a chegada da segunda filha conseguiu modificar esse sentimento
de angústia pessoal e solidão intelectual.
O vazio existencial do engenheiro parecia buscar “Aquele tão exaltado espírito de
aventura e de coração dos navegadores de outrora” (RF, p. 169) que, segundo ele,
“morreu algures” (idem). “Talvez na Índia, talvez em Alcácer-Quibir, talvez esgotado
no Brasil. Mas aqui não ficou. Os portugueses de hoje não prestam!” (RF, p. 169-170).
As referências históricas aludem ao Quinto Império Cristão e ao desejo de que a
profecia do mito sebastianista pudesse ser uma utopia possível em meio àquele período
de incertezas políticas e econômicas. O mito corresponde a uma espécie de
messianismo, que, baseado nas profecias de Gonçalo Annes, garantiria a Portugal,
através do rei Sebastião, um futuro próspero, baseado num utopia cristã (Cf.MOISÉS,
1987 e RISÉRIO, 1999).
A viagem de Diogo para assumir os negócios no Brasil se traduz na busca de “um
horizonte mais vasto do que esta nossa pequenez lusitana!” (RF, p. 170). Em 1º de abril
de 1936, ele parte para o “desconhecido”, no dirigível alemão Hinderburg em busca de
“terras de liberdade” (RF, p. 258) e de “ilusões possíveis” (RF, p. 258). A viagem
atende ao seu desejo de mudança e sua insatisfação pessoal diante da vida que levava,
mas essas suas afirmações parecem ser ainda mais incisivas.
Quero grifar essas idéias acerca do Brasil, visto que essas afirmações operam com
o imaginário europeu acerca da América, ou, mais precisamente, com o imaginário
português acerca do Brasil (Cf. SOUZA, 1986). O espírito de aventura, a inquietude
pessoal, a busca pela manutenção do poder econômico da família, a curiosidade de “ver
outras coisas, conhecer um novo país, outro continente, um novo mundo” (RF, p. 290),
nas palavras do personagem português, que aos 35 anos, com vida organizada em
Portugal, decide sair de Portugal e embarcar em uma nova experiência. Suas
expectativas diante da viagem parecem acopladas ao imaginário colonial em que a
busca econômica é o dispositivo de que o protagonista necessitava para dar vazão aos
seus desejos pelo desconhecido e pela busca de uma possível aventura, seguindo um
itinerário já bastante descrito pelos seus antepassados. Se, tal como ele dissera, no
Brasil houvera ficado o espírito dos navegadores, era preciso realizar essa busca.
A rede de relações propostas pela linguagem que descreve a antiga colônia
portuguesa como uma espécie de utopia individual de Diogo se reporta aos seus
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antepassados, aos colonizadores que partiram também em uma nave insegura em busca
de novas terras.
A descrição que temos agora do Brasil não é mais a do escrivão da frota ou do
piloto anônimo escrutinando a terra e seus habitantes do primeiro século, não é também
o relato dos primeiros colonizadores ou mesmo os naturalistas entre os séculos XVIII e
XIX a desbravar os sertões, ricos exemplos de interpretações europeocêntricas da terra,
temos diferentemente a presença do imigrante, aquele que, fugindo das guerras na
Europa, sonha com a liberdade em terras novas e passará a ocupar o lugar privilegiado
ante a nova face étnica brasileira com a Abolição da escravatura.
É nesse espaço que Diogo se encontra com o Brasil, onde acabará por se tornar
um habitante dessas terras, ou como ela afirma ao chegar: “Não podendo vir de
caravela, vim de Zeppelin, e, fosse eu dado aos relatos, como Pero Vaz de Caminha,
também escreveria à minha Rainha – porque Rei não tenho – o diário desta viagem e
das minhas descobertas.” (RF, p. 316)
O imaginário colonial parece se acoplar à descrição dos seus antepassados,
repetindo um discurso pautado na descrição da exuberância da natureza. Diogo buscava
espaço, ar, vida, um país novo e jovem, um país novo e jovem, um país onde
três quartas partes do território ainda estavam por desbravar e quase tudo
ainda parecia possível e desconhecido. Caramba, na Amazônia, no Pará, no
Acre, sabia-se que havia centenas de tribos de índios nus pintados de preto e
vermelho com o suco do urucum e do jenipapo e caçando de arco e
flechas...(RF, p. 400)
E, “para quem vinha de terra seca, erva escassa e chuvas imprevisíveis, aquilo era
como uma visão do Paraíso.” (RF, p. 507). A Fazenda Águas Claras, cortada pelo Rio
das Flores, se torna para Diogo o lugar procurado, o pouso para suas inquietações
existenciais. Os nomes das localidades no Vale do Paraíba, São Paulo, se associam ao
nome da família paterna do personagem. O lugar onde ele assume moradia no Brasil
corresponde à extensão da Europa, de Portugal, da sua própria herdade, transferida para
a nova terra.
Ainda que a terra não esteja mais representada como um espaço vazio a ser
ocupado pelos colonizadores, o espaço escolhido pelo imigrante é, contraditoriamente à
imagem construída do engenheiro culto, leitor dos escritores modernistas norte-
americanos, como Scott Fitzgerald em Tender is the night (RF, p. 258), leitor de revistas
inglesas, e ávido por saber que fugia da herdade de tempos em tempos para tomar
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contato com as novidades de Lisboa, o mundo rural, fora da capital carioca. Após a
fixação da residência na fazenda do Vale do Paraíba, pouco freqüentará a capital, como
se esse homem culto precisasse encenar as antigas narrativas, tecer pontos de contato
entre as imagens relatadas e o desejo pessoal de vivenciar a diferença.
Sobre os habitantes da terra, o olhar do narrador assim registra em seu diário de
viagem:
multidões de descendentes de antigos escravos negros e caboclos, cruzados
de índio, preto e branco, construindo arranha-céus em S. Paulo e no Rio,
milhões de brasileiros de todas as cores e raças deambulando de um Estado
para outro, de uma região para outra, em busca de uma nova vida e uma nova
esperança, (...), novos deuses de um novo desporto chamado futebol que
juntava pretos e brancos numa anarquia de talentos misturados, enfim, uma
explosão sociológica incontrolável, incompreensível e impossível de
catalogar, porque no mundo inteiro, nunca tinha existido um país como o
Brasil, uma tamanha orgia de raças e proveniências, de instintos e emoções,
de selvagem e de civilizado, de primitivo e de moderno, de mar e de floresta,
de cidades e de selva, de sons, de música, de cheiros, de cores, de amores.
(RF, p. 401-402)
A longa citação objetiva demarcar o fascínio diante da terra, não mais com os
animais exóticos [muito embora ele leve o papagaio de nome Brasil para seu filho que
ficará tão curioso sobre a terra que virá com o pai, quando este retorna em 1939, e tão
como este se torna “cativado” o termo é do autor – tão preso quanto o pai pelo Rio,
preenche essa lacuna da curiosidade acerca da fauna brasileira, questionando o nome
dos bichos das matas e das aves a Tomaz, feitor da fazenda]. Mas com a explosão de
sentidos, uma certa compensação ante aquela terra descrita como ressequida.
Ainda há na descrição sobre o Brasil a profunda perplexidade estimulada pela
mestiçagem observada na população, assim como o registro de que a terra era produtiva,
os pastos abundantes, o custo de produção era muito menor e o valor de mercado maior,
considerando o período em que Portugal vivia as conseqüências do pós-guerra e a crise
interna da ditadura e das guerras de independência das colônias de África, espaço que
segundo Francisco, sócio de Diogo na companhia luso-brasileira, ainda dava alguma
importância a Portugal.
Fato significativo na economia narrativa é a composição do cenário exótico
nacional aparece agora reatualizado não mais pela figura do índio, mas pelo do corpo da
mulher negra. Benedita é a jovem de 19 anos, que se prostitui no Rio de Janeiro para
conseguir seu sonho de ter um pedaço de terra para sua mãe e filho, Joãozinho. A
entrada da personagem na cena narrativa é bastante significativa, o narrador registra que
Diogo estava entorpecido de tanto ter bebido na mesa de jogo foram: uma batida de
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cachaça, três taças de champagne, meia garrafa de vinho, um cognac e três whiskes.
Estaria o narrador justificando o encontro sexual entre o personagem e a mulata
deslumbrante que lhe aparece a meio metro com um decote farto tal como século antes
Alencar (primeira edição de 1865) justificava o interesse de Martim por Iracema devido
ao licor da jurema?
Vejamos a descrição que nos é oferecida sobre a personagem:
Diogo nunca tinha estado na cama com uma mulher negra nem com uma
brasileira: as duas coisas juntas deram-lhe volta à cabeça. Havia qualquer
coisa em Benedita que lhe fazia lembrar Amparo, nos primeiros tempos do
casamento: o mesmo instinto selvagem, o mesmo prazer de se entregar e
descobrir o outro. Mas Benedita transformara o instinto numa ciência: sabia
exactamente o que fazer, quando, onde, e administrava o seu saber em
investidas sucessivas de sensualidade cujo objectivo sabiamente planeado era
deixá-lo prostrado de prazer e a seguir gozar no prazer dele. A sua pele era
menos macia, mais grossa que a de Amparo, as pernas eram mais compridas
e enroscavam-se nas dele como uma liana na árvore, havia alturas em que ela
parecia partir-se ao meio pelos quadris, e os seus dentes translúcidos
brilhavam na penumbra, enquanto ela sorria sempre e segredava-lhe ao
ouvido coisas que o deixavam entontecido, ou então gemia baixinho, , em
sons e silvos incompreensíveis. Quando voltou a si, Diogo deu consigo a
pensar que tinha a estranha sensação de ter feito amor com uma cobra. E de
estar envenenado. (RF, p. 390)
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despertados por ela atendem a um frame bastante conhecido acerca da mulher negra,
dentro de um modelo euro-falocêntrico, de uma visão estereotipada do europeu em
relação ao Outro.
O retorno ao Brasil em 1939 com a desculpa de que retornava para comprar uma
fazenda de gado era apenas a desculpa familiar para a satisfação do desejo em ver
novamente Benedita. No seu retorno de navio, não mais no Zeppelin, com que veio da
primeira vez, ele opta por retornar seguindo a tradição do navegante, ao sentir o calor
tropical do Sul, começa a desejar pelo reencontro com aquela que representa o próprio
país:
... os primeiros sinais de terra, aves perdidasque volteavam sobre as luzes do
tombadilho, seixos e flores de palmeira à deriva, na espuma das ondas (...) os
sons de música que vinham da direcção de onde ele supunha estar a terra do
Brasil, tudo isso, que mais e mais o aproximava do destino, lhe dizia que o
desejo violento de voltar a ver Benedita, cheirar o dor inebriante de sua pele
escura, morder o sorriso branco dos seus dentes perfeitos, sentir o enlace de
cobra das suas pernas ao redor do corpo, escutar o seu riso de cascata por
desbravar, isso, se calhar mais que tudo o resto, era a vontade que o mantinha
atado ao leme – como o marinheiro do “Mostrengo”, de que falava o poema
de Fernando Pessoa. (RF, p. 505)
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que contradiz a dos antigos colonizadores, Diogo que viera ao Brasil, em abril de 1936,
durante o período da Segunda Guerra Mundial, primeiramente com a intenção de
expandir os negócios, acaba por fixar residência no país. O personagem, apesar de uma
vida estável e de uma fortuna segura no seu país natal, parece seguir a trajetória dos
antigos lusitanos em busca de mais do que riqueza, de mais do que aventura, não
obstante já ser um homem maduro, pertencente a uma tradicional família alentejana,
dono de terras, educado em Lisboa. Indagar sobre o que o faz ficar é o que nos
propusemos a pesquisar: seria a atração por Benedita? Tivera sido envenenado por ela?
Ficara entorpecido pelo país, espaço por ele descrito como de “tamanha orgia de raças e
proveniências, de instintos e emoções, de selvagem e de primitivo e de moderno, de mar
e floresta, de cidades e de selva, de sons, de música, de cheiros, de cores, de amores”
(RF, p. 402). Ou teria sido a “incompreensível alegria”(idem) que contagiou o prudente
Diogo? Ou ficara entorpecido pelo país “de instintos e emoções, selvagem e
primitivo...” (idem)
Sant’Anna (1993, p. 35), ao analisar a poesia brasileira, destaca que ainda hoje
3
Não se pode deixar de registrar que as duas mulheres de Diogo são de classes sócio-econômicas
inferiores a dele. Além disso, são de etnia diversa: a primeira é cigana, a segunda negra. Em certo
momento da narrativa, ele considera que a mulher ideal para ele era Angelina, a namorado do irmão,
artista, culta, viajada, independente, entretanto ele prefere mulheres com as quais realiza uma aparente
“cordialidade” social e erótica. Seriam elas a condição de uma permissividade consentida?
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A literatura brasileira, nas últimas décadas so século XX, produziu inúmeras obras
de releitura crítica do período colonial, como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo
Ribeiro; Meu querido canibal, de Antônio Torres, ou ainda Terra papagalli, de Marcus
Aurélio Pimenta e José Roberto Torero. Nessas obras, encontram-se contra-imagens
(CUNHA, 2006), entretanto o autor lusitano optou por parafrasear os antigos relatos dos
navegantes, em um texto que se institui como mais um romance histórico, com sua
compulsão a ser mais um portador de verdade (SALOMÃO, 1992).
Renovadas aventuras, mas com quadros de referência que se repetem no território
cultural contemporâneo por mais estranho que isso possa parecer. Os trânsitos culturais
entre Portugal e Brasil parecem insistir, ao menos na narrativa aqui estudada, na
tradicional construção discursiva feita de parâmetros europeus, com a permanência de
discursos que já deveria ter virado a página.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. Iracema. 10. ed. São Paulo: Ática, 1979.
DIEGUEZ, Gilda Korff. O negro na Literatura Brasileira. In: Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, n. 80, p. 42-62, jan-mar 1985.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 23. ed. São Paulo: Cultrix, 1987.
RISÉRIO, Antonio. Viva Ubaldo Ribeiro. In: Cadernos da Literatura Brasileira, Rio de
Janeiro, n.7, p. 91-102, mar. 1999.
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TAVARES, Miguel Sousa. Rio das Flores. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira da Universidade Federal do Amazonas.
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Naturalmente ela sabia que não eram verdadeiros os seus irmãos [...] os filhos
de Maria Ema e Custódio Dias. Sabia que seus irmãos também eram seus
primos, que o mesmo sangue que os unia os separava. E tinha conhecimento
de que em todos os documentos de identificação havia uma mentira. [...]
Lembrava-se de momentos [...] relacionados com o encobrimento e a
mentira, como aquele em que Fernandes [...] lhe ensinara a letra W. [...] ‘Faz
dois Vês sobrepostos [...] e agora faz com a tua letra – Walter Glória Dias’
[...] dizia ele [...] deixando-lhe para sempre a letra clandestinaviii.
O interdito abre espaço para que imagine esse pai, para que imagine o que lhe
diria, se conseguisse falar, na noite da chuva de 1963. É no discurso autorizado pelo
silêncio que a narradora encontra a abertura para construir imaginativamente a sua
história sobre Walter e, por conseguinte, definir-se.
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Essa ideia, todavia, parece ser uma espécie de auto-absolvição por ter gerado um
filho em tudo oposto aos outros, laboriosos e obedientes. Tal labor e obediência ao
longo dos anos revelaram-se um profundo rancor contra o patriarca, considerando que
todos os filhos, à exceção de Custódio (o pai designado da narradora), partem em busca
de fortuna e não voltam, nem quando chamados.
Francisco carrega o sobrenome Dias, que lembra Bartolomeu Dias, célebre
navegador português, trazendo à tona a tradição portuguesa de viajantes, de
descobridores. Francisco Dias, todavia, configura-se o oposto dessa tradição: apega-se a
sua casa em Valmares, aquela que era “uma casa de paredes podres, carrasqueiras
bravas, um império de pedras”xvii, uma casa que estava “suficientemente distante do
Atlântico para não se ouvir a rebentação durante a tempestade, mas não tão longe que o
salitre da poeira das ondas não lhe atingisse a fachada"xviii. A casa de Valmares e a
narradora interseccionam-se metaforicamente nesse aspecto: ambas não pertencem a
lugar definido, nem a terra, nem ao mar, isto é, a tradição era negada tanto quanto a
ousadia, temida; ao menos, até certo ponto, como se verá.
Walter Dias ousou desafiar a autoridade paterna, largar a terra e buscar o oceano,
revivendo a tradição portuguesa das navegações: o trotamundos parte para Goa, faz a
Rota do Cabo, conhece metade do mundo, mas volta. Voltava trazendo “um pedaço do
mundo atrás de si, a alma do mundo, o sentido da deslocação através do espaço”xix, em
tudo oposto à família, cujos membros nunca voltaram. Walter, mesmo em suas viagens,
mantinha-se presente na casa pelos emblemáticos desenhos dos pássaros que mandava.
Volta, marca presença na casa paterna, e parte novamente, para conhecer a outra metade
do mundo, voltar para a noite da chuva, e partir definitivamente, deixando – para a filha
– o sonho de deslocamento.
Ao afirmar que Walter presentificava a tradição portuguesa dos desbravadores,
chamamos Eduardo Lourenço para a discussão, com sua leitura do destino mítico do
povo português.
Segundo sua leitura, Portugal está fadado à grandeza. O povo português vive a
melancolia desse prognóstico gorado, já que Portugal construiu um império que de nada
lhe valeu, sobrando apenas a saudade dessa grandeza sonhada. Leiamos aqui Valmares e
seu patriarca: desde o êxodo dos filhos e da decadência paulatina da propriedade,
Francisco antevê o momento em que sua propriedade será próspera novamente. Não
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percebe que seu “império de pedras” desmoronou, pois os tempos são outros. Nesse
sentido, pode-se entender A manta do soldado como uma alegoria das questões
portuguesas, conforme afirma Isabel de Lima, na sequência:
tudo ficou em aberto, esta noite em que de novo ele sobe devagar, erguendo-
se, a partir desta manta, um desfile de imagens extraordinárias [...] desde as
corridas nos carros [...] até à verdadeira noite da chuva [...]. Agora ela sabe
que de novo ele [...] subirá a escada sempre que lho pedir. Não tem que pedir
desculpa de nada, nem de se arrepender de nada, nem de pedir perdão a
ninguém. Nunca teve. Walter pode deambular por este espaço, em paz, até o
fim da vida.xxvi
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Francisco Dias execrava essa neta, como a marca de uma vergonha. Não
percebera que
nunca deveria ter-se enraivecido contra essa neta, tão sua oposta e tão sua
cativa. Ele deveria ter percebido, desde sempre, que ela nunca iria sair por
completo de seu perímetro, e que se pretendia amarrar alguém a Valmares
como refém do que havia perdido [...] essa ficaria bem presa. Ou melhor, está
bem presa. Ao contrário dos outros que foram e não voltaram, essa vai mas
regressa, regressa sempre [...] Está presa do [...] álamo, do cipreste, do
cemitério branco onde os seus antepassados desfizeram os ossos [...]. Ela está
presa ao coração oculto das pedras. Ela nem vai, ela só regressa.xxvii
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REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. Memória e vida: textos escolhidos. Trad. Claudia Berliner. São
Paulo: Martins Fontes, 2006. (Tópicos)
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. 13. ed.
Petrópolis: Vozes, 2004.
LIMA, Isabel Pires de. Palavra e identidade(s) em Lídia Jorge: vinte anos de caminho.
In: Literatura/política/cultura: (1994-2004). MARGATO, Izabel; GOMES, Renato
Cordeiro (orgs.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 57-70
NOTAS
i
BACHELARD, 2002, p. 3
ii
BACHELARD, 2002, p. 3
iii
JORGE, Lídia. A manta do soldado. Rio de Janeiro: Record, 2003.
iv
Abertura, segundo Heidegger (2004), é o modo de revelação da presença, dada pela linguagem
pronunciada: o discurso; a clareira na qual o ser pode se constituir.
v
FIGUEIREDO, 2000, p. 163.
vi
JORGE, 2003, p. 52
vii
JORGE, 2003, p. 72
viii
JORGE, 2003, p. 18-19
ix
BACHELARD, 2002, p. 3
x
Nesta leitura, entenda-se que o nome Walter carrega a suposição de desdobramento, desde os vês
sobrepostos, até a presença do radical alter, remetendo à alteridade.
xi
BERGSON, 2006.
xii
HAUSER, 1995, p. 976.
xiii
LOURENÇO, 1999, p. 89.
xiv
O sujeito sociológico a que a ensaísta se refere diz respeito à noção de identidade proposta por Stuart
Hall (2005, p. 11), segundo a qual o sujeito não é independente – ou autônomo – da complexidade do
mundo moderno, numa espécie de interatividade entre o eu e a sociedade, numa relação dialógica em que
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a identidade individual é formada e alterada pelos apelos culturais exteriores. Opõe-se ao centramento
imutável (em essência, ao menos) do sujeito do Iluminismo.
xv
LIMA, 2005, p. 58.
xvi
JORGE, 2003, p. 58.
xvii
JORGE, 2003, p. 112.
xviii
JORGE, 2003, p. 09.
xix
JORGE, 2003, p. 103.
xx
A articulista aqui mais uma vez recorre a Hall (2005, p. 13) trazendo o conceito do sujeito pós-moderno
cuja identidade é contraditória, pela impossível redução do eu a um todo coerente e unificado, já que a
identidade é definida historicamente a partir de trocas nos sistemas culturais que nos rodeiam.
xxi
LIMA, 2005, p. 57.
xxii
JORGE, 2003, p. 142.
xxiii
JORGE, 2003, p. 141.
xxiv
JORGE, 2003, p. 225.
xxv
A manta identifica Walter. Segundo membros da família, seria sobre essa manta que as mulheres
seduzidas teriam sido possuídas, marcando a licenciosidade da personagem. Entretanto, ela parece ser a
única coisa à qual a personagem dá valor, carregada de um simbolismo de liberdade: Walter nada tem de
material, a não ser a manta que pode carregar consigo.
xxvi
JORGE, 2003, 236.
xxvii
JORGE, 2003, p. 201.
xxviii
HALL, 2003, p. 29.
xxix
JORGE, 2003, p. 237-238.
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1
Professora Doutora Titular de Literatura Portuguesa - UCSal
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“Sob que condições e como um olho pode se ver? Pois bem, quando percebe
sua própria imagem que lhe é devolvida por um espelho. Mas o espelho não
é a única superfície de reflexo para um olho que quer olhar-se a si mesmo.
Afinal quando o olho de alguém se olha no olho de outro alguém , quando
um olho se olha num outro olho que lhe é inteiramente semelhante, o que vê
ele no olho do outro? Vê-se a si mesmo. Portanto, uma identidade de
natureza é a condição para que um indivíduo possa conhecer o que ele é ( ... )
De fato, o olho não se vê no olho. O olho se vê no princípio da visão. Isto
quer dizer que o ato da visão, que permite ao olho apreender-se si mesmo, só
pode efetuar-se em outro ato de visão, aquela que se encontra no olho do
outro”.
De acordo com Platão ver não é enxergar. Enxergar é um ato que vai muito além
do ver. Enxergar é uma leitura de mundo, é um questionamento constante sobre tudo
que acontece no mundo, sobre as possíveis visões de mundo, sobre a própria caminhada
no mundo e finalmente sobre o eu ser sujeito no mundo. Uma personagem feminina da
narrativa, a mais esclarecida diz: “é preciso que cada um reveja o seu modo de ser, olhe
para si mesmo, pois o certo e o errado são apenas modos de entender a nossa relação
com os outros, não a que temos com nós próprios, nessa não há que fiar, perdoem-me a
prelecção moralística. (p. 262) Fica evidente que o escritor enfatiza o “conhece-te a ti
mesmo”. Não adianta apontar as falhas do outro se não lançar um olhar para si próprio.
Aderindo a esta linha de pensamento, a cegueira branca evidenciada por Saramago
dialoga também com a metáfora do olhar trabalhada por Platão e que Michel Foucault
retoma para discutir a questão do sujeito e do não- sujeito. Lembro, para servir de
argumento do que vou apontar, que, no romance “A caverna”, o escritor já estrutura um
trabalho semelhante, quando retoma o mito da caverna de Platão para ressaltar o poder
destrutivo do capitalismo e a impotência do ser humano.
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seu corpo, que poderia satisfazê-lo com a sua própria mulher, sem desrespeitá-la.
Certamente ela não estaria apta para isso, naquele momento, por conta do clima e da
situação criada por outros homens no manicômio. O médico consegue banalizar tudo,
até a situação maior da cegueira branca que os colocou juntos. A mulher dele não. Ela
está ali agora a organizar uma forma de comportamento que possa deter os que querem
se aproveitar da situação para tirar proveito.
Todo o encaminhamento dado por Saramago reflete a cegueira do homem, no
caso o médico, e a lucidez da mulher dele. O escritor não coloca todos os homens e
mulheres na mesma situação, ele elabora níveis de cegueiras; provenientes do medo;
provenientes da falta de solidariedade; provenientes da falta de valores morais;
provenientes da falta de conscientização e até mesmo de conhecimento. Boaventura de
Sousa Santos (2005:246) ao postular uma epistemologia da visão declara que:
Penso que Saramago segue também essa linha postulada por Boaventura de
Sousa Santos, pois a mulher do médico, após todos se reunirem e se ajudarem
mutuamente, lavarem-se e, evidentemente, começarem gradativamente a voltar a
enxergar, faz uma avaliação do ocorrido no manicômio, dizendo para os companheiros
de infortúnio: “o tempo que estivemos internados, descemos todos os degraus da
indignidade, todos, até atingirem a objeção”(p.262). Quando ela diz todos, e repete a
palavra – todos - está se incluindo também. Ela mostra que ninguém escapa, pois o que
não cega também vivencia todos os problemas e dilemas acarretados pelos que cegam.
Ninguém fica impune a violência, ao medo a barbárie. A mulher do médico é a única
que consegue se indignar diante da degradação da sociedade, porque pensa, reflete e é
solidária. Ela é a que reconhece o outro como igual e os conduz, gradativamente, a se
reencontrarem.
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REFERÊNCIAS
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1
Professor de literaturas de língua portuguesa na Universidade Estadual de Montes Claros – Unimontes.
2 Em nossa pesquisa, encontramos apenas o texto de um professor da Universidade Federal de Juiz de
Fora, o qual discute o contexto histórico de nascimento e produção da obra do autor português, sem
aprofundar no estudo estético da sua ficção. Ver RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Alexandre Herculano
(1810-1877): espírito doutrinário e romantismo literário. In Revista Brasileira de Filosofia. São
Paulo:1984, v. 38. n.136, p. 341-374.
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Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me aflige
demasiado. Sem ambicionar para ele a classificação de poema em prosa –
que não o é por certo – também vejo, como todos hão de ver, que não é um
romance histórico, ao menos conforme o criou o modelo e a desesperação de
todos os romancistas, o imortal Scott.i
3
Massaud Moisés (1994, p. 136) afirma que as narrativas de Herculano, pelas recorrentes informações
históricas, impedem que a imaginação se desdobre livremente, de forma que o historiador se sobrepõe ao
ficcionista, pelo uso excessivo de enxertos eruditivos em forma de descrição de usos e de costumes e pela
descrição minuciosa dos acontecimentos. Apesar disso, Moisés considera que, em Eurico, Alexandre
atingiu o ponto mais alto de suas possibilidades como ficcionista por ter deixado mais livres a imaginação
e o impulso lírico. Joaquim Ferreira (s/d., p.770) tem a mesma opinião quanto ao lirismo constante nessa
narrativa. Para Ferreira, Herculano decidiu-se por fazer o melhor uso do romantismo, ao encaminhar
Eurico para atitudes convencionais, ou seja, desiludido amorosamente, entregar-se ao celibato. Em vez da
análise psicológica, como o fizeram Balzac e Stendhal, Herculano preferiu a linguagem empolgante, o
lirismo expressivo transvasado em períodos ondulantes.
4
Neste trabalho, pelo difícil acesso à edição portuguesa, utilizo a 5ª edição brasileira, pela Editora Ática
(1978).
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Com a maça jogada às mãos ambas abalava e rompia as armas mais bem
temperadas, e as puas entrando pelas carnes dos que se lhe punham diante
iam esmigalhar-lhes os ossos. Por onde ele atravessava, nem as fileiras se
uniam, nem os godos achavam adversários. Como a charrua, tirada com
violência em chão batido de planície, deixa após si grossas glebas revolvidas,
assim aquela arma irrestível deixava, ao passar, uma larga cauda de cadáveres
entretecida de moribundos debatendo-se em terra. Os godos, espantados,
perguntavam uns aos outros quem seria aquele temeroso guerreiro; mas entre
eles ninguém havia que pudesse dizê-lo.ii
_Dez anos!... Sabes tu, Hermengarda, o que é passar dez anos amarrado ao
próprio cadáver? Sabes tu o que são mil e mil noites consumidas a espreitar
em horizonte ilimitado a estrela polar da esperança e, quando, no fim, os
olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrela reluzir um
instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada?iii
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mortificação sem resultados benéficos para o seu sofrimento, já que o homem não
morrera, mas estivera amarrado ao seu próprio cadáver. Essa metáfora do corpo híbrido
vivo-morto traduz o conflito de um homem que não saíra de fato do plano material nem
ingressara plenamente no plano espiritual. Em outras palavras, Alexandre Herculano
parecia refletir com os leitores de seu tempo que Portugal não poderia subsistir sob a
égide do sentimentalismo romântico nem tão pouco resistir, na modernidade, sob a
tutela da Igreja. Eurico encena, pois, o impasse da tradição frente às luzes da narrativa e
da civilização modernas.
Em alguns de seus escritos, Machado de Assis demonstrou admiração pelo
escritor português. Muitas de suas narrativas representam sacerdotes e o espaço das
igrejas e seminários, o que bem poderia ser uma herança das leituras que fez de Almeida
Garrett (Frei Luís de Souza) ou das narrativas de Alexandre Herculano. No entanto, é
importante ressaltar o íntimo contato que o escritor brasileiro teve, desde a sua infância,
com os padres e o ambiente sacerdotal.
Raimundo Magalhães Júnior escreveu um interessante estudo sobre a religião na
produção literária machadiana. Esse autor rebate a crítica produzida em torno do
ceticismo e do ateísmo do autor de D. Casmurro. Para ele, Machado de Assis foi
influenciado pela religião de seus pais e pelos ensinamentos dos seus padres-mestres.
No início de sua reflexão, Magalhães Júnior questiona: “Até onde ia o ceticismo de
Machado de Assis? Foi ele um crente ou um incrédulo? Seriam deles as ideias que o
romancista atribuíra a Brás Cubas, que em sonho a si mesmo dizia, através da boca de
Pandora: ‘Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada?’ Era Machado de Assis
um ateu?”iv
O crítico não acreditava no ateísmo atribuído a Machado de Assis, cuja obra, na
sua opinião, está impregnada de sentimento cristão. Para sua argumentação, Magalhães
Júnior refere-se a mais de 30 narrativas machadianas que abordam o tema da religião
cristã, o que seria um índice de sua crença religiosa, apesar das críticas à organização do
sistema religioso católico. Essas narrativas baseiam-se na bíblia como fonte de
referência, principalmente no livro de Eclesiastes. No entanto, à exceção de “Lágrimas
de Xerxes”, na qual aparece o Frei Lourenço, tomado de empréstimo a Shakespeare, não
há, segundo o crítico, outras intertextualidades com a literatura de outras
nacionalidades. A argumentação de Raimundo Magalhães Júnior é a de que Machado
“discordava de padres e de frades, sem incorrer em desprezo pela religião. Não só de
padres e de frades, mas do próprio papa, pois queria ver a Igreja modificada, adiantada,
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com outro espírito que não o de sua época.”v Nesse sentido, o crítico esforça-se em
demonstrar para o seu leitor que a querela de Machado de Assis era contra os clérigos
que se comportavam imoralmente ou como verdadeiros glutões, não sendo dignos de
exemplo para os fieis, mas não era uma crítica à religião em si.
Raymundo Faoro também nos chamou a atenção para a recorrência de temas
religiosos na produção literária de Machado de Assis. No capítulo “Pandora – do
demoníaco ao diabólico”, Faoro discute a representação do bem e do mal na ficção
machadiana, pelo viés filosófico, a fim de demonstrar que esses dois valores coexistem
na própria natureza humana. Numa perspectiva contrária à de Magalhães Júnior, Faoro
comenta algumas narrativas escritas por Machado de Assis na fase dos seus quarenta
anos para refletir que, a partir daí, não há mais Deus no itinerário desse escritor.
Segundo Faoro: “As personagens de Machado de Assis, encontrando o sentimento das
realidades divergentes e inconciliáveis, que inspirava o phatos da tragédia. Na diferença
do universo, apenas ativo por efeito de sua força intrínseca, Deus não só está mudo
senão que se ausentou do destino dos homens.”vi
Apesar dessa constatação, Faoro dedica-se a analisar algumas representações de
sacerdotes na literatura machadiana. Para o crítico, a Igreja do século XIX havia perdido
a sua missão evangelizadora, visto que os padres ficavam confinados nos seminários e
templos, presos ao altar. Ainda assim, poucos eram vistos na perspectiva do apóstolo
Paulo – pregador do evangelho em terras distantes – modelo de missionário de que a
Igreja precisaria. O padre se integrava, pois, ao cortejo dos heróis vencidos e frustrados,
vencido por frustrações amorosas e por frustrações da missão sacerdotal. Talvez aí
resida uma das diferenças singulares nas representações de padres na ficção de
Alexandre Herculano e de Machado de Assis. A sociedade representada em Eurico, o
presbítero e em O Monge de Cister é ainda medieval. Nela, os narradores recuam a um
tempo remoto, quando à Igreja cabia uma função primordial de ordenação familiar,
religiosa e social. Nesse sentido, o sacerdote tinha, ainda, uma missão evangelizadora e
civilizatória, o que compensaria as frustrações amorosas de Eurico e de Vasco,
respectivamente. Mas a sociedade representada na ficção machadiana é a moderna, do
seu tempo, desiludida completamente com a fé e com a missão da Igreja. Portanto, não
haveria compensação para o sacerdote que buscasse refúgio na religião por causa de
uma desilusão amorosa. Referindo-se ao padre Teófilo, do conto “Manuscrito de um
sacristão”, Faoro afirma que ele,
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Para Faoro, Teófilo, Frei Simão e Flávio (“Muitos anos depois) são Euricos sem
o gesto heroico capaz de sublimar o desencanto com a vida terrena. Resta-lhes a própria
loucura ou uma loucura encenada nos púlpitos, para encantar ouvidos profanos.
Na crônica de 1 de agosto de 1876 (In História de 15 dias) Machado comentará
o isolamento do criador de Eurico, motivo de uma charge publicada no jornal “O
mosquito” (número 375, de 22 de julho de 1876). A crônica se elabora com vários
assuntos do dia, como a chegada ao Brasil de cantores líricos, vindos do Rio da Prata5.
Na opinião irônica do narrador, os cantores são mais bem remunerados e reconhecidos
publicamente do que políticos e escritores. Via humor, adverte ao leitor: “Oh! Se tu tens
algum filho, leitor amigo, não o faças político, nem literato, nem estatuário, nem pintor,
nem arquiteto! (...) Cantor, isso sim; isso dá muitos cruzados, dá admiração pública, dá
retratos nas lojas.”viii
5
As companhias líricas estrangeiras chegavam ao Brasil atraídas pelo teatro de Pernambuco. Depois de
um roteiro de apresentações pelo país, seguiam até a corte do Rio de Janeiro pelo rio da Prata.
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6
Desiludido com a vida política, Alexandre Herculano retira-se para uma quinta em Vale de Lobos,
arredores de Santarém, em 1867, comprada com o dinheiro ganho com a publicação dos seus livros. Aí
dedica-se à vida agrícola e à produção de azeite.
7
Referência a Georges Grote (estudioso oitocentista, dedicado à filosofia de Platão e de Aristóteles e da
história da Grécia Antiga) e Augustin Thierry (historiador do século XIX, colaborador de Guizot. Para
Thierry, a história nacional seria propriedade comum a todos os homens de um mesmo país)..
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Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão
assinalar, dei cabida à crônica-poema, lenda ou o que quer que seja do
presbítero godo: dei-lha, também, porque o pensamento dela foi despertado
pela narrativa de certo manuscrito gótico, afumado e gasto do roçar dos
séculos, que outrora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.
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Ficou Simão vivo em corpo e morto moralmente, tão morto que por sua
própria ideia foi dali procurar uma sepultura. Era melhor dar aqui alguns dos
papéis escritos por Simão relativamente ao que sofreu depois da carta; mas há
muitas falhas, e eu não quero corrigir a exposição ingênua e sincera do frade.
A sepultura que Simão escolheu foi um convento. Respondeu ao pai que
agradecia a filha do conselheiro, mas que daquele dia em diante pertencia ao
serviço de Deus.xv
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REFERÊNCIAS
COUTINHO, Afrânio (org.). Machado de Assis - Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova
Aguillar, 2006.
GLEDSON, John. Machado de Assis. Contos – uma antologia. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998.
OLIVA, Osmar Pereira. (org) Machado de Assis e suas múltiplas vozes. Montes Claros:
Editora Unimontes, 2008.
NOTAS
i
Herculano, 1978, p. 9.
ii
Herculano, 1978, p. 48.
iii
Herculano, 1978, p. 108.
iv
Magalhães Júnior, 1971, p. 317.
v
Magalhães Júnior, 1971, p. 319.
vi
Faoro, 1988, p. 392.
vii
Faoro, 1988, p.441.
8
A esse respeito, ver SANDMANN, Marcelo. Aquém-além-mar: presenças portuguesas em Machado de
Assis. Tese de doutorado defendida na UNICAMP em fevereiro de 2004. “O trabalho desenvolve um
amplo estudo das leituras portuguesas de Machado de Assis. A presença de Garrett em Machado de Assis
é amplamente discutida nos capítulos 14 e 15.” In OLIVA (2008, p. 91)
941
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viii
Assis, In Coutinho, 2006, p. 340.
ix
Assis, in Coutinho, 2006, p. 340.
x
Lopes e Saraiva, s/d., p. 766.
xi
Assis, In Coutinho, 2006, p. 903.
xii
Assis, In Coutinho, 2006, p 903.
xiii
Assis, In Gledson, 1998, p. 66.
xiv
Herculano, 1978, p. 10.
xv
Assis, in Gledson, 1998, p. 72.
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1
Professora Doutora de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo
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1. MOVIMENTAÇÃO ERRÁTICA
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O poeta continua seu jogo de imagens. Dos mapas a serem vistos ou traçados
surge a necessidade de encontrar uma “clareira obscura”, penetrar no seu silêncio e
“ficar como um cavalo no campo” ou apenas como “um pintor de cavalos” (Texto 5).
No movimento de oscilação parecer /ser ou o cavalo ou o pintor, interessa a busca do
tempo primitivo, resgatado pelo verso que aponta para o início do desligamento do
mundo da cultura: “Precisava-se de ‘um pintor de cavalos’/ um homem que
abandonasse a família apenas/para ser um obscuríssimo “pintor de cavalos”. A
continuidade desta ruptura radicaliza-se na procura de uma “criatura viva”, depois de
um “selvagem”, e, por fim, de um “bárbaro”. Esta, teoricamente, involução –
homem/criatura/selvagem/bárbaro – ou seja, a cultura preterida pela barbárie, amplia o
caráter indomável do cavalo, do homem primitivo e porque não dizer da poética de
Herberto Helder.
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2. A ESCRITA IMPOSSÍVEL
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A violência da crítica feita à visão dualística pelo “morto veloz” que põe “os
dedos/ sobre ‘a escrita impossível’” (Texto 11), é mitigada pelo uso da voz passiva e
pelo uso da preposição de equivalendo a por para designar o agente da passiva.
Considerando o verso feito apenas pelas palavras postas entre aspas teríamos a seguinte
frase: “tudo eletrocutado luz e trevas”, e, lê-se a força do seu correlato na voz ativa,
“luz e trevas eletrocutam tudo”.
Vale a pena ressaltar que se, num primeiro movimento, as aspas “coruscantes”
podem ser lidas como aquela voz que se contrapõe ao discurso livre, ela também pode
significar o discurso do sujeito poético que no Texto 10 induz o leitor a pensar no seu
afastamento em relação ao que é dito, já que se encontra “na posição de estar
freneticamente suspenso/ das ‘cenas’ nos fundos da ‘noite’, instalado na “ ‘altura’
justa”.
Herberto Helder rompe com o pensamento cartesiano e implode o mecanismo
que faz coincidir a voz com o gênero a que pertence, descartando, inclusive, as
possíveis determinações biográficas. É deste lugar sempre em aberto que se pode
observar a “antropófaga festa” de “‘estar sobre si’” e “ ‘estar em cima dela’”. Aqui, o
movimento entrópico reúne todas as antropofagias: sujeito, imagem, sintaxe, semântica,
tudo se devora ao mesmo tempo produzindo sempre novas imagens, novas construções
gramaticais e novos sentidos.
Neste processo canibalístico nem mesmo o poeta escapa e, quando devorado ou
colocado no espaço de indeterminação, aumenta, na mesma medida, o grau de
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3. O POETA SUICIDA
“A obra exige que o homem que escreve se sacrifique por ela, se torne outro,
se torne não um outro com relação ao vivente que ele era, o escritor com seus
deveres, suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar
vazio e animado onde ressoa o apelo da obra”v.
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REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (trad. Leyla Perrone Moisés). São Paulo :
Martins Fontes, 2005.
HELDER, Herberto. Photomaton&Vox. 4ªed. Lisboa : Assírio & Alvim, 2006.
______________. Poesia Toda. Lisboa : Assírio : Alvim, 1996.
MORAES, Eliane Robert de. O corpo impossível. São Paulo : Iluminuras, 2002.
NOTAS
i
Helder, 2006, p. 12.
ii
Helder, 1996, p.320.
iii
Moraes, 2002, p. 76.
iv
Moraes, 2002, p. 164.
v
Blanchot, 2005, p. 316.
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OS DRAMAS DE D. AFONSO VI
∗
Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Paraná.
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3 obras) as peças que apresentam aquela temática e usa como suporte o levantamento
realizado por Couto Viana relativamente ao Tema da Restauração na dramaturgia
portuguesa, descrição que contraria a observação de Jorge de Faria, segundo quem “o
tema que mais tem sido tratado no teatro, salvante o dos amores trágicos de Pedro e
Inês, é, com certeza, o da Restauração.”3 Ainda que não tenha sido possível, no âmbito
desta pesquisa, averiguar a justeza das afirmações de Faria, de um lado, ou de
Vasconcelos e Couto Viana, de outro, o que se pode dizer, a partir do cenário que se
apresenta, é que se trata inegavelmente de um período importante demais na história de
Portugal a ponto de ser surpreendente a simples hipótese de ter ficado fora do campo de
interesse dos dramaturgos, mais um fator a justificar a atenção dispensada a ele por
Oliveira Martins e D. João da Câmara.
À partida importa observar que se os dois autores estão unidos pelo tema que
desenvolvem em suas obras, separam-nos as circunstâncias em que cada uma delas veio
a público: o D. Afonso VI de D. João da Câmara conhece grande sucesso em sua estreia,
em 1890, enquanto o texto de Oliveira Martins, escrito à volta de 1878, permanece
inédito até 1989. Assim, enquanto é possível conhecer a recepção ao texto de D. João
pela crítica sua contemporânea, o mesmo não acontece com Oliveira Martins, cuja peça
será objeto de atenção em um contexto cultural muito posterior àquele em que foi
escrita. O D. Afonso VI de D. João da Câmara tem um lastro interpretativo que, no caso
de Oliveira Martins, fica restrito às opiniões privadas de Jaime Batalha Reis e Antero de
Quental, os dois amigos que leram o texto e praticamente determinaram o abandono do
projeto.
Alimenta esta diferença o fato de que a atividade teatral de D. João foi em larga
medida orientada pelo gosto do público, em geral desvinculado de qualquer
preocupação com a eventual profundidade crítica e a conseqüente complexidade no
tratamento dos temas abordados4. Nesse sentido, ainda que a justificativa para a escolha
como tema de um momento crucial do passado nacional possa dar-se através da
sobreposição daquele tempo no tempo atual pela via da ameaça de perda da
independência (lembre-se o trauma coletivo provocado pelo ultimatum inglês naquele
mesmo ano de 1890), a modo de uma fantasmagoria a ser superada, o desenvolvimento
que esse tema conhece não chega a constituir um instrumento que possa levar o público
a refletir sobre sua condição enquanto parte ativa de um corpo coletivo com uma
história própria, e o fundo histórico acaba por não passar disso, uma espécie de estrutura
esquematicamente construída onde se desenrola uma série de ações que não mantêm
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com esse fundo uma relação orgânica. O modelo do drama burguês seguido por seu D.
Afonso VI é, de resto, marcado pelo perfil das “platéias burguesas, culturalmente débeis
(…)”, responsável pela “relação da estrita especularidade que a peça de D. João da
Câmara mantém com um código velho de várias décadas”.5 Por esta breve
contextualização já se pode supor que, pela pena de D. João, não será forte o
tensionamento dos possíveis sentidos da história re-encenada como drama romântico.6
Quanto ao que diz respeito ao drama de Oliveira Martins o elemento histórico
não exerce ali o papel de mero pano de fundo, mas constitui o centro a partir do qual se
desenvolve a reflexão proposta pelo autor, o que de forma alguma garante uma leitura
entusiasmada por parte da crítica, muito pelo contrário. Em parte devido à sua
consolidada carreira como historiador, em que sua qualidade de escritor evidenciou-se,
assumiu-se a precariedade de suas duas incursões pela ficção, com o Febo Moniz e este
D. Afonso VI, como se em nada estas obras pudessem contribuir para a investigação das
relações entre historiografia e ficção, que afinal são o centro da tão propalada
especificidade de sua produção historiográfica.
Em sua resenha sobre a peça em questão João Medina parte justamente de uma
observação de Fidelino de Figueiredo acerca da “rara intuição dramática [de Oliveira
Martins], com que vivificava os acontecimentos e os organizava em conflito”7 para, em
seguida, apenas afirmar o fracasso de D. Afonso VI como exercício literário, que se
torna mais agudo graças ao parâmetro usado, que não é outro senão a parcela já
consagrada da obra desse autor. Diz então o crítico que:
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Aqui também o que se desenha é uma imagem sem fissuras: o rei é um infeliz
que não pode governar por si próprio e o conde uma espécie de receptáculo dos valores
tradicionais da nação. A diferença entre as duas resenhas, de resto complementares,
encontra-se nas observações de Oliveira Martins acerca da composição do personagem
Afonso VI.
(…) o rei careceria de alguns golpes do cinzel de Shakespeare para ser como
a natureza numa hora de aberração o fez.
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REFERÊNCIAS
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PINTO, Silva. D. Afonso VI, por D. João da Câmara, Claudina, por Abel Botelho.
Revista illustrada, Lisboa, v. 1, nº 1, p. 8-10, 15/04/1890.
REBELLO, Luiz Francisco. Introdução. In: CÂMARA, D. João da. Os velhos. Meia-
noite. Porto: Livraria Civilização Editora, 1983.
VASCONCELOS, Ana Isabel Teixeira de. O drama histórico português do século XIX
(1836-1856). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
VERNANT, Jean-Pierre e VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga.
São Paulo: Duas Cidades, 1977.
NOTAS
1
Para uma reflexão sobre a importância destas considerações de Garrett na economia de Frei Luís de
Sousa, a obra a propósito da qual se escreve a Memória, veja-se meu artigo (Cardoso, 2007, p. 95-104).
2
Vernant e Vidal-Naquet, 1977, p. 20.
3
Apud Vasconcelos, 2003, p. 383.
4
É importante registar o que diz Luiz Francisco Rebello acerca do sucesso teatral de D. João. Como
observa o crítico, a excelente recepção que sua obra conhece liga-se justamente à modalidade do drama
romântico, histórico ou contemporâneo, sendo que as incursões do dramaturgo pelo teatro de orientação
realista ou simbolista não tiveram reconhecimento imediato do público, que as recebeu com frieza: “se os
seus dramas históricos, embora de quilate literário superior ao da maioria dos seus contemporâneos, as
operetas e algumas comédias (…) ou a melodramática Rosa enjeitada, correspondem, na sua obra, à
transigência com “o que o público quer”, já Os velhos e A triste viuvinha ou O pântano e Meia-noite se
aproximavam, ainda que por diversos caminhos, da “arte redentora” que se “devia dar” ao público”.
(Rebelo, 1983, p. 22-23.)
5
Pimentel, 1994, p. 14.
6
Mais à frente veremos que em sua resenha sobre o drama de D. João da Câmara Oliveira Martins
promove uma valorização da peça em termos bastante interessantes.
7
Apud Medina, 1993, p. 272.
8
Idem, p. 273.
9
Martins, 1890, p. 75.
10
Pinto, 1890, p. 8.
11
Idem, p. 9.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, ibidem.
14
Martins, 1988, Tomo II, p. 142.
15
Idem, p. 121.
16
Idem, ibidem.
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1
Doutora em Literatura Comparada (UERJ, 2000), Professora Adjunta de Literatura Brasileira (UESC)
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Recorro, então, aos versos postos em epígrafe para atenuar o inusitado desta
Apresentação. Em “Mar Português”, poema pertencente à parte homônima de
Mensagem, o olhar do colonizador se desenha, de forma crítica, é verdade, mas as
lágrimas derramadas são de quem viu partirem seus homens valorosos para a empresa
de ultrapassarem limites geográficos e pessoais, tomando posse de terras e sociedades
distantes: “Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/Quantos filhos em vão resaram!/
Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”ii A posse das águas e
das terras que as margeavam no lado oposto ao da Europa foi fonte de dor e de glória. O
tom crítico do poema vem desde a mistura metonímica do sal do mar e do sal da dor da
nação.
O caminho das descobertas trouxe os portugueses ao Brasil. O poema de
Sosígenes Costa tematiza o outro lado da dor portuguesa – as muitas dores brasileiras.
Espécie de resposta a uma interlocução apenas imaginada, Iararana traz uma Bahia
invadida por um “bicho da Oropa” devastador em sua voragem de poder e posse.
Sosígenes Costa revisita a épica clássica, revendo-a em seus mais íntimos
fundamentos, recriando-a. Também Pessoa dialoga com a tradição épica, principalmente
com Camões, mas num processo ainda mais radical de rasura de normas e fronteiras de
gênero e de idéia.
O poeta de Belmonte conta a história dos começos da civilização sul-baiana,
associando-a ao cacau, mas a um cacau mítico, imaginário. Em seu poema, a Bahia –
por metonímia o Brasil – ganha forma, ganha concretude, por meio de um estupro
mágico – Tupã-Cavalo violenta a Iara, a “mãe-d’água da coroa”:
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A grande questão que norteia este estudo, da qual derivam outras não menos
relevantes, é o desejo de entender como a literatura modernista, do primeiro
modernismo, representada por esses dois poemas nacionais – Iararana e Mensagem,
rompendo com os parâmetros de produção e recepção do romantismo, realismo e
parnasianismo, trazendo novas técnicas de representação, marcadas pela fragmentação
do discurso, pela recriação da expressão verbal, relacionaram-se com o público leitor,
“treinado” pela produção recorrente na época para efetuar leituras lineares, leituras
“bem comportadas”. De que maneira os poemas em foco, enquanto obras que dialogam
com o modernismo de nacionalismo radical, que enfocam miticamente a cultura
brasileira e a portuguesa, que trazem a cultura clássica para ser apropriada e relida pelo
olhar novecentista, podem relacionar-se com um possível leitor?
Para ler os poemas, é preciso, então, partilhar do mesmo “repertório” dos
escritores, é preciso conhecer a literatura clássica, a mitologia grega e a latina, a
literatura e a história de Portugal, bem como é preciso conhecer a mitologia indígena
dos grupos da região sul-baiana. Sosígenes Costa e Fernando Pessoa parecem-me
promover mais que uma antropofagização de saberes e poderes, eles viabilizam uma
hibridização cultural, uma apropriação mútua entre cultura clássica ocidental e saberes
“modernos”, mas isso, sempre simbolizando a tensão entre essas forças opostas.
Parto da hipótese de que há, claro, um leitor para os poemas e de que esse leitor
é cooptado exatamente pelo desafio de desvendar o referido hibridismo. Suponho, até
agora, que é um leitor com formação erudita, que partilha o mesmo horizonte de
expectativas do produtor do texto, que tem condições de combinar os vazios e os pontos
de indeterminação lançados pelos poemas – um leitor ideal, em suma.
Essa suposição, longe de responder aos questionamentos propostos, os reforça e
reanima. Faz-se necessário, então, além de estudar os poemas, suas relações com a
estética da época, investigar suas circunstâncias de leitura, abordar as estruturas textuais
que configuram um leitor implícito, suscitador de um leitor ideal, e os leitores possíveis
na época.
O poema de Sosígenes Costa relê os primórdios da história do Brasil: essa
retomada das práticas culturais dos primeiros habitantes da terra, colonizados,
escravizados e aculturados ( o que não deixa de ser um estupro) pelos portugueses, com
o concurso de outros povos europeus, é tema de boa parte da produção literária dos
primeiros modernistas, paulistas em especial. Mensagem revisita a história das
navegações portuguesas, enfatizando criticamente não os ganhos de glória da nação,
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mas as perdas que desvitalizaram a memória do Povo português. Para quem esses
escritores escreviam?
Karl Frederick, em livro sobre o modernismo na Europa, afirma:
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no modernismo, um leitor que interroga, que pensa, que produz múltiplos sentidos para
o lido/ouvido.
Sem querer de forma alguma fechar a questão, apenas propor um caminho de
reflexão, que pode e deve ser discutido, penso que Fernando Pessoa, Sosígenes Costa e
os demais escritores portugueses e brasileiros do primeiro século XX, precisavam
construir simbolicamente um leitor curioso e inquieto como um menino, precisavam
despojar o leitorado dos padrões de gosto e consumo literário arduamente construídos
por todo o século XIX. Mas isso não poderia ser feito com um simples gesto inaugural.
Daí, talvez, construírem poemas híbridos, hibridizantes, poemas cuja linguagem
desordena e desarranja, sem dar nenhuma nova ordem tranqüilizadora. Poemas que
incomodam.
REFERÊNCIAS
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. Uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed.34,
1996. V. 2
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977. p. 82.
NOTAS
i
Paes, 2001. p.400.
ii
Pessoa, 1977. p. 82.
iii
Costa, 2001. p.447
iv
Costa, op. cit., p.437
v
Idem, p.438
vi
Idem, p.438
vii
Pessoa, op. cit, p.79
viii
Idem, p.80
ix
Costa, op. cit., p.443
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x
Pessoa, op. cit., p.82
xi
Frederick, 1988, p.35
xii
Frederick, op. cit., p.40
xiii
Iser, 1996, v.2, p.17
xiv
Jauss, 1979, p.49
xv
Costa, op. cit., p. 437
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(Albano Martins)
∗
Professor Auxiliar na Universidade de Aveiro (Portugal).
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Osório e Jorge Sousa Braga –, todos eles autores de variações poéticas motivadas pela
obra-prima do pintor aragonês.
Não me demoro na irradiante densidade simbólico-modelizante de Os
Fuzilamentos do 3 de Maio (1814), mas anoto, de passagem, que terá sido precisamente
a sua vertente arquetípica de fixação transtemporal dos desastres da guerra e de
diagnóstico disfórico da História como catástrofe que o converteu em realização
emblemática no imaginário plástico da modernidade. Reportando-se, consabidamente,
ao episódio histórico do sangrento massacre dos insurgentes espanhóis perpetrado, em 3
de Maio de 1808, pelas tropas francesas de Napoleão que viria a precipitar a guerra da
independência, o pathos proto-expressionista do quadro de Goya – que, aliás,
constituirá precedente estético inspirador para pintores como Manet ou Picasso –
transmudou-se não só na expressiva simbolização do heroísmo revolucionário, mas
também em alegoria de tonalidade apocalíptica, condenatória da obscena barbárie de
todas as guerras. Por outro lado, dele se deduzia o elogio da abdicação sacrificial da
vida do indivíduo inerme às mãos do tirano, em nome da sua radical entrega a um ideal.
A distribuição pictórica da tela em distintos núcleos figurativos – o pelotão de
fuzilamento, competente e desumana máquina mortífera sem rosto10; os corpos dos
heróis anónimos abandonados no solo; o desamparo do mártir iluminado, cujas mãos
ostentam estigmas, numa subtil intimação da imago Christi11 –, coligada com o efeito
de crescendo cromático e a disposição significante das zonas de penumbra e luz recriam
uma cenografia de violência esperpêntica que reconduz aos monstros produzidos pelo
sono da razão, evocando também a premeditada erosão das convenções neoclássicas de
representação bélica de sentido épico. Tendo desertado os heróis daquela que parece ter
sido «la primera guerra de guerrilla de la historia moderna»12, resta-nos contemplar os
assassinos e os mártires, desemoldurando-os da contingência histórica e tomando-os
como emissários sem tempo de uma mensagem de dignidade resistente que é de todas
as épocas.
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martírio, esteado numa retórica da exemplaridade que tem mais de exortativa do que
elegíaca. Nesta lógica demonstrativa, poeticamente expressa tanto na exaltação
ostensiva da dignidade humana, como numa vigorosa retórica da indignação33, fará
Sena entroncar o breve segmento ecfrástico do poema, num desvio estratégico do olhar
para o quadro de Goya34:
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Verdadeira imago agens, através da pintura de Goya desce a poesia à pólis, relembrando
a vacuidade de qualquer realização estética privada de implicação cívica.
Por isso, o remate deste poema-testamento, «magna carta da fidelidade e da
hombridade»40, de orientação desassombradamente injuntiva, assume uma tonalidade
gnómica-sapiencial, condensando, a um tempo, uma ars vivendi e uma ars poetica:
3. O título do poema de Ana Luísa Amaral, «Um pouco só de Goya: Carta a minha
filha:», incluído em Imagias (2001), anuncia, num sintomático gesto de homenagem
literária, a dívida poética para com a matriz compositiva da «Carta» seniana de que vem
a ser o assumido rifacimento44. Com efeito, dela decalcará a autora não só a postura
afectivo-elocutória da epístola, agora endereçada à filha – e este inédito engenderment
textual não é destituído de significado –, mas também a memória alusiva de alguns
versos-chave de Sena que funcionam como marcadores deste exercício de anamorfose
intertextual45. À rarefacção dos índices ecfrásticos – na realidade, o «pouco só de Goya»
mencionado no título é tangencial ao texto e destina-se, quase sempre, a suportar o jogo
citacional com o texto-fonte seniano – corresponde uma complexa estrutura de
intermediação baseada na entreglosa de textos hetero e homoautorais. Se,
convencionalmente, o procedimento ecfrástico dinamiza uma manobra mimética em
dois tempos, o texto de Ana Luísa Amaral complica, pela interposição do subtexto
seniano, esta especularidade circulante, desenvolvendo uma espécie de ekphrasis em
segundo grau:
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Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.58
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poético, assim instaurando uma «comunicação explosiva ou louca com o que o mundo
não pode revelar»76.
Na abertura do belo monólogo dramático intitulado «Caravaggio, um esboço»,
de Amadeu Baptista, é ao genial pintor italiano que são atribuídas as seguintes palavras:
«Eu sei, há uma diferença indizível entre o que ergo/ na luz das minhas telas e a vida»77.
Também Goya poderia tê-las proferido – ele e os poetas que, com ele, para além dele,
ou contra ele, ergueram a luz das suas palavras.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Luísa. Desconstruindo identidades: ler Novas Cartas Portuguesas à luz
da teoria queer. Cadernos de Literatura Comparada, n.3-4 (Corpo e Identidades), p. 77-
91, 2001a.
AMARAL, Ana Luísa. Poesia Reunida 1990-2005. Vila Nova de Famalicão: Quasi
Edições, 2005.
BRAGA, Jorge Sousa. O poeta nu [poesia reunida]. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
BUCHHOLZ, Elke Linda. Francisco de Goya. Vida e Obra. Hagen: Könemann, 2007.
CARLOS, Luís Adriano. A esplendorosa ressonância de estar vivo. Jorge de Sena 1919-
1978-1998. Colóquio/Letras, n. 147-148, p. 121-131, Jan. 1998.
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GOTTARDI, Ana Maria. Os sonetos de Jorge de Sena: uma releitura da tradição. São
Paulo: Arte & Ciência Editora, 2002.
HILL, Charles A., HELMERS, Marguerite Helmers (eds.). Defining Visual Rhetorics.
Mahwah: Lawrence Erlbaum, 2004.
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MARTELO, Rosa Maria. Anos noventa: Breve roteiro da novíssima poesia portuguesa.
Via Atlântica, n. 3, p. 225-236, Dezembro 1999.
OSÓRIO, António. Amor dos fuzilados. Colóquio/Letras, n. 50, p. 75, Julho 1979.
OSÓRIO, António. Casa das Sementes. poesia escolhida. Lisboa: Assírio & Alvim,
2006.
PIMENTA, Alberto. [recensão a] Jorge de Sousa Braga, Plano para salvar Veneza.
Colóquio/Letras, n. 74, p. 76-77, Julho 1983.
PONTES, Maria de Lourdes Belchior. Jorge de Sena: Ética e Poesia. Jorge de Sena: o
homem que sempre foi. Lisboa: ICALP/Ministério da Educação, 1992, p. 99-105.
RAMALHO, Maria Irene. Coisas Exatas: a propósito de Imagias, de Ana Luísa Amaral.
Scripta, v. 6, n. 12, p. 258-265, 1º sem. 2003.
SENA, Jorge de. Líricas Portuguesas. I Volume. Lisboa: Edições 70, 1984.
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SENA, Jorge de. Maquiavel, Marx e outros estudos. Lisboa: Cotovia, 1991.
NOTAS
1
O conceito de «paragonal energy» é definido por Charles Hill e Marguerite Helmers como «a struggle
for dominance over meaning between verbal and visual discourse». Cf. Hill & Helmers, 2004, p. 3.
2
Descrito, de modo penetrante, por Luís Quintais nos seguintes termos: «Sendo uma representação
verbal de uma representação visual, dir-se-ia que a ekphrasis trabalha esse hiato entre formas de
representação diferenciadas. Celebra a impossibilidade de transporte, mas ironicamente procura uma
consistência, afirmando, afinal, o mistério ou a inquietação ou o desassossego dessa impossibilidade».
Quintais, 2008, p. 95
3
Heffernan, 2003, p. 7.
4
Acolho a tese da natureza modal que Heffernan reivindica para a ekphrasis e subscrevo, portanto, a
justificação avançada pelo autor: «Murray Krieger calls ekphrasis “a classic genre”, but this would put it
on par with epic and tragedy. Since no formal or syntactic features distinguish the literary representation
of visual art from other kinds of literature, and since it can appear within any recognized genre from epic
to lyric, it may be more appropriately termed a mode, like pastoral or elegy. But while those two can be
largely defined by their subject matter, the subject matter of ekphrasis requires us to define it in terms of
representation». Heffernan, 1991, p. 312, nota 5.
5
Como acrescenta Claus Clüver, «Há ainda outra razão porque o Bildgedicht tem atraído atenção
crescente: trata-se de um exemplo da antiga rivalidade, no discurso crítico ocidental, entre a descrição e a
figuração, o poder da palavra e o poder da imagem, do paragone frequentemente disfarçado por
expressões amigáveis como “as Artes Irmãs” e “ut pictura poesis”. A discussão ainda é muito viva e
envolve reconsiderações sobre a distinção entre média e sistemas de signos, incluindo aí a validade de
distinguir entre artes temporais e artes espaciais e de outras oposições binárias, como signos naturais e
signos convencionais». Clüver, 2001, p. 354.
6
Recorro às categorias de ekphrasis preconizadas por Laura Sager: attributive, depictive, interpretive e
dramatic. Como refere a autora, na «depictive ekphrasis images are discussed, described, or reflected on
more extensively in the text or scene, and several details or aspects of images are named and in the film
shown in close-ups, zooms, and with slow camera movement. (…) This type of ekphrasis comes closest
to the widespread definition of ekphrasis as “verbal representation of visual representation” (…). Sager,
2008, p. 47-48. A ekphrasis interpretativa implica uma «verbal reflection on the image, or a visual-verbal
dramatization of it in a mise-en-scène tableau vivant. (…) Often, then, the image may function as
springboard for reflections that go beyond its depicted theme. In the case of poetry, a genre in which this
category abounds, the poet may additionally emulate the picture’s formal construction or aspects of the
painter’s visual style in the structure of the poem». Ibid., p. 50-51. Relativamente à ekphrasis dramática,
refere a autora que «this category is the most visual of all four, and has a high degree of enargeia. In other
words, texts and films have the ability to evoke or produce the actual images alluded to in the minds of
the readers or viewers while at the same time animating and changing them, thereby producing further,
perhaps contrasting images. (…) Literary texts can bring characters from one or more images to life and
make them characters in the story or drama that speak and act for themselves, thus reflecting on and
interpreting the image they come from in the light of their new quotation context». Ibid., p. 56-57.
7
Ribeiro, 2008, p. 149.
8
Sager, 2008, p. 19.
9
Como já salientou Luís Adriano Carlos, a propósito da ekphrasis em Albano Martins, «o objecto
plástico motivador e o objecto poemático motivado, sistemas de base e valor distintos, ligam-se entre si
segundo relações de homologia e interpretância, e funcionam em regime de heteronomia correlativa».
Carlos, 2002, p. 23.
10
Como, a propósito do quadro de Goya, acentua Robert Hughes, «Most of the victims have faces. The
killers do not. This is one of the most often-noted aspects of the Third of May, and rightly so: with this
painting, the modern image of war as anonymous killing is born, and a long tradition of killing as
ennobled spectacle comes to its overdue end». Hughes, 2003, p. 317.
11
Vd., a propósito da interpretação desta figura como arquétipo crístico, a análise proposta por Elke
Buchholz: «No centro do quadro está a próxima vítima. Com os braços erguidos, a sua posição faz
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lembrar Jesus crucificado e, de fato, podem-se ver feridas nas palmas de suas mãos. Através desta alusão,
Goya deixa a moldura histórica e mostra que o cruel assassinato de gente desarmada é uma realidade que
se repete uma e outra vez. Ao mesmo tempo, confere ao condenado uma grande dignidade». Buchholz,
2007, p. 70.
12
Bocola, 1999, p. 76.
13
Segundo Fernando J. B. Martinho, as Metamorfoses senianas inauguram, entre nós, a voga do
Bildgedicht, «muito embora o exemplo de Sena, nesse como noutros aspectos, tivesse levado ainda algum
tempo a dar os seus frutos. (…) logo desde o autor de Metamorfoses, que, a propósito dos textos aí
incluídos, fala de «meditações poéticas», de «meditações aplicadas», muito raramente os poetas citados se
cingem na sua escrita da poesia ecfrástica àquela que seria a sua mais imediata definição, como um
género de poesia que se caracterizaria “por descrever uma obra de arte”, por ser “a descrição poética de
uma obra de arte pictórica ou escultórica”. Eles vão, antes, ao encontro da definição mais ampla de
ekphrasis proposta por Aguiar e Silva, que, para além da descrição, aponta nela também um trabalho de
recriação, comentário e exaltação, sendo, assim, para o referido autor, a poesia ecfrástica aquela que
“descreve, recria, comenta, exalta uma obra de arte (pintura, escultura, etc.)”». Martinho, 1996, p. 258.
14
Refira-se, a título de curiosidade, que do espólio de Jorge de Sena, recentemente doado pela família à
Biblioteca Nacional, consta «um postal com a imagem do quadro de Goya que enviou para a “filhotada
Sena” e onde escrevia “… este quadro (…) serviu para uma poesia que eu escrevi há anos pensando em
vós”. Coutinho, 2009, s. p.
15
Como argumenta Fernanda Conrado, «A ekphrasis moderna afasta-se cada vez mais do modelo
pormenorizadamente descritivo original, tendendo para tomar o referente como uma motivação ou
pretexto para uma meditação sobre um tema, ou para uma crítica social, narrativa, histórica ou
genealógica, homenagem ou enaltecimento de um personagem, etc. Deste modo, para que haja algum
elemento suficientemente seguro de identificação do objecto, o título torna-se, na maior parte das vezes,
se não indispensável, pelo menos recomendável. No ensaio “Ekphrasis and Representation”, James
Heffernan desenvolve a importância do título como processo ekphrástico em si mesmo, aproximando a
sua posição da noção de inset allusion, de Tamar Yacobi: “a picture title is a verbal representation of the
picture”». Conrado, 2001, p. 120-121.
16
Sena, 1988a, p. 158.
17
Sena, 1988a, p. 156.
18
Sena, 1988a, p. 157.
19
Sena, 1988a, p. 159.
20
Magalhães, 1981, p. 59.
21
Sena, 1988a, p. 152.
22
Lourenço, 1998, p. 192.
23
Lourenço, 1998, p. 214. Jorge Fazenda Lourenço advoga que a «assumpção humanista da dignidade e
centralidade da pessoa humana», evidenciada no poema de Sena, «radica, sem dúvida, na conhecida
Oração sobre a Dignidade do Homem, de Pico della Mirandola (De Hominis Dignitate), que Jorge de
Sena pôs em epígrafe no seu conto “Os Amantes” e cita em “Céfalo e Prócris”».
24
Lourenço, 1998, p. 195.
25
Sena, 1988a, p. 123.
26
Como bem lembra Jorge Fazenda Lourenço, «A publicidade do testemunho opõe-se à privacidade da
confissão. Testemunhar é um acto público, e não confidencial». Cf. Lourenço, 1998, p. 118-19. Na
mesma linha, acentua Luís Adriano Carlos que «Uma poética baseada na atitude testemunhal implica
necessariamente a condição intersubjectiva do discurso, a comunidade e a comunhão dos sujeitos no
horizonte da palavra». Carlos, 1999, p. 149.
27
Recorde-se que hístor significa “aquele que viu”, reenviando explicitamente para o estatuto
testemunhal de quem escreve a História.
28
Cf., a este respeito, as seguintes palavras de Jorge Fazenda Lourenço: «O testemunho seniano, sendo
desejo de mundo, será, pois, convocação (citação, apelo, chamamento) e evocação de uma realidade
vivida, mas será também proposição de uma realidade a viver». Lourenço, 1998, p. 181.
29
Gottardi, 2002, p. 192.
30
Sena, 1988a, p. 123.
31
Sena, 1988b, p. 25-26. Em 1977, no «Discurso do Prémio Etna-Taormina», Sena recapitula os
fundamentos da sua teoria da poesia como testemunho, empenhada na construção de «um sentido que não
há, se não formos nós mesmos a criá-lo e a fazê-lo», destacando, para além dos sectarismos de escola ou
flutuações de ideário estético-literário, a sua indeclinável filiação ética e axiológica. E acrescenta: «Quis
sempre que essa poesia fosse o testemunho fiel de mim mesmo neste mundo, e do mundo que me deram
para viver. Mas uma testemunha que cria no mundo aquele sentido que eu disse, e, ao mesmo tempo,
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deseja lembrar aos outros que há uns valores essenciais, muito simples: honra, amor, camaradagem,
lealdade, honestidade, sem os quais a vida não é possível e toda a poesia, por mais sábia que seja, é falsa.
Uma testemunha de que, sem justiça e sem liberdade, as sociedades humanas não dão ao homem a
dignidade que é a sua, e que ao poeta cumpre afirmar. Não uma testemunha passiva: mas activa. Porque é
esse o papel da poesia. Pode ela ser panfleto, ou ser visão mística, ou ser sátira, porque ela pode ser tudo.
Mas tem de ser activa, não só no sentido meramente panfletário, mas no de, herdando tudo o que a
Antiguidade e o passado nos legaram, criarmos a língua do presente e a língua do futuro». Cf. Sena, 2005,
p. 207.
32
Magalhães, 1999, p. 282.
33
Carlos, 1999, p. 159. «O humanismo e o anti-humanismo, ou o optimismo e o pessimismo, são
eticamente polarizados nas posições de dignidade e de indignação. Esta polaridade profunda determina
um fluxo dialéctico de estados de exaltação e estados de indignação, de ode e de sátira, forças
contraditórias que dominam o campo da expressão intersubjectiva e organizam a ordem temática». Cf.
ibid., p. 125.
34
Repare-se como, no prefácio de 1977 à segunda edição de Poesia-I, Jorge de Sena glosa, em clave
crítica, o ethos poético explanado na «Carta»: «Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer
parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hiper-sensíveis, possa ter o direito de
governar a vida privada de alguém. Do mesmo modo, não devemos nunca pactuar com a ideia de que
qualquer reforma vale o preço de uma vida humana». Sena, 1988b, p. 21.
35
Sena, 1988a, p. 123-124.
36
Como, em arguto comentário, assinala José-Augusto França, a propósito do poema-epístola de Sena,
«Aí não existe descrição, porque não pode haver: o horror da crueldade ultrapassa a cena cortada, como
no quadro de Goya ultrapassou, na aparição luminosa do fuzilado, e nas sombras dos soldados, contra o
horizonte negro da Espanha. E através da cena é toda uma história da humanidade que se atravessa num
testamento de esperançada desesperança que vem ao poeta do respeito pelo mundo que depois dele seus
filhos criem (…)». Cf. França, 2001, p. 169.
37
Analisando as palavras de Sena, incluídas no prefácio a Poesia-II, Luís Adriano Carlos salienta que o
«carácter meditativo [de Metamorfoses] arruína o carácter descritivo. Por certo os objectos visuais são
reflectidos na consciência constituinte; porém, essa reflexão é menos uma representação na superfície de
um espelho do que uma refracção contínua, uma mediação mediada pela mediação da linguagem
poética». Carlos, 1999, p. 199.
38
Lourenço, 1998, p. 213.
39
Sena, 1984, p. 282.
40
Pontes, 1992, p. 101.
41
Sena, 1988a, p. 124.
42
Sena, 1991, p. 161.
43
Lourenço, 1998, p. 351.
44
Não é este o único caso de diálogo intertextual explícito com a lírica seniana. Em E muitos os caminhos
(1995), inclui-se um pastiche do célebre poema de Sena «Em Creta, com o Minotauro», de Peregrinatio
ad Loca Infecta, parodicamente rebaptizado «Em Creta, com o Dinossauro». Cf. Amaral, 2005, p. 243-
246.
45
Encontra-se uma curiosa menção ao poema de Sena no Diário de Bordo que Ana Luísa Amaral
escreveu, por ocasião da sua participação, em 2000, no Expresso da Literatura. Recebida por uma família
russa em Kaliningrado, a autora trava conhecimento com um antigo professor que lhe relata as trágicas
circunstâncias da sua vida: «Nascido na Polónia, vira os pais morrerem num bombardeamento nazi, o avô
ser fuzilado, o irmão desaparecer. Ficara, criança de dez anos, perdido no mundo, sobrevivendo graças ao
que lhe davam vizinhos, até que os russos entraram na sua aldeia e o trouxeram para aqui e o internaram
num orfanato. Depois de expulsar os alemães da cidade, as saudades de tudo, o continuar só. Era uma
pessoa alegre, o pai da minha anfitriã. Lembrei-me do poema do Sena, o seu “Carta a meus filhos, sobre
os fuzilamentos de Goya». Amaral, 2001b, p. 11.
46
Amaral, 2005, p. 349.
47
Amaral, 2005, p. 349.
48
Amaral, 2005, p. 350.
49
Amaral, 2005, p. 349.
50
Em 2003, reconhecia, aliás, Ana Luísa Amaral «ter muitos poemas que falam do fazer poético, seja em
termos científicos (por exemplo, os neurónios), domésticos (as tigelas, por exemplo), amorosos (por
exemplo “Coisas de Partir”)», acrescentando que essa inclinação auto-reflexiva em sede poética «não é
consciente; é algo “natural”, que assim me sai». cit. em Machado, 2003, p. 64.
51
Martelo, 1999, p. 231.
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52
Colho a expressão no ensaio de Isabel Allegro de Magalhães intitulado O Tempo das Mulheres. A
dimensão temporal na escrita feminina contemporânea. Lisboa: IN-CM. Já numa recensão a Minha
Senhora de Quê, destacava Paula Morão a «presença ao longo dos poemas das tarefas do quotidiano, do
irrisório e do insignificante que lhe estão ligados», frisando que «isso tem extensão no modo de tratar o
tempo (…)» Cf. Morão, 1994, p. 222. Sobre o «lugar do feminino em literatura», declarava, em entrevista
de 2003, Ana Luísa Amaral: «A questão da existência de um “feminino” e de um “masculino” é, no
mínimo, polémica. Entender o feminino como o lugar da diferença, do deslocamento, é continuar a
insistir numa estrutura dicotómica, em que um dos pólos é sempre menos privilegiado (…). Depois, julgo
que a literatura, ou, no caso mais concreto, a poesia, é, por excelência, o espaço da diferença, da
transgressão». cit. em Machado, 2003, p. 63.
53
Sena, 1978, p. 32.
54
Como sublinhou Rosa Maria Martelo, é detectável, na lírica de Ana Luísa Amaral, «a apropriação
poética de uma periferia temática tradicionalmente subvalorizada como especificamente feminina e, por
isso mesmo, tida como desprovida de pendor generalizante ou arquetípico. Uma interioridade de espaços,
gestos e laços quotidianos e (mais) femininos, embora estreitamente conjugados com a revisitação e
desconstrução irónica dos grandes temas da Modernidade estética, conduz, também neste caso, ao
fragmento narrativo, ao “fait divers”, à exploração da memória e mesmo ao humor». Cf. Martelo, 1999, p.
231. Maria Irene Ramalho relaciona a prevalência deste metaforismo prosaico com o hábito retórico, caro
aos poetas metafísicos ingleses, de associação inusitada de conceitos. Ramalho, 2003, p. 260.
55
Amaral, 2005, p. 349.
56
Amaral, 2005, p. 349.
57
Na penetrante análise que conduz de Novas Cartas Portuguesas à luz da teoria queer, Ana Luísa
Amaral inventaria como um dos seus postulados axiais «a explosão de dicotomias, a defesa de um
miríade de identidades não fixas nem estáveis, antes em constante transformação, a própria questionação
de pontos de referência tidos como seguros». Amaral, 2001a, p. 77.
58
Amaral, 2005, p. 32.
59
Coelho, 2000, p. 399.
60
Amaral, 2005, p. 350.
61
Amaral, 2005, p. 350.
62
A profusão da poesia ecfrástica não causa, afinal, estranheza num autor que, na «Entrevista Apócrifa»,
incluída em Décima Aurora (1982), considera os pintores «os mestres inexcedíveis». Cf. Osório, 2006, p.
7.
63
Osório, 2006, p. 155.
64
Osório, 1979, p. 75.
65
Como nota Gustavo Rubim, «(…) o poder – de morte e aniquilação – é, em geral, a forma do mal em
António Osório». Rubim, 1999, p. 1309.
66
Magalhães, 1989, p. 121.
67
Osório, 2006, p. 155-156.
68
Pinto do Amaral, 1991, p. 64.
69
Gastão, 2008, s.p.
70
Pimenta, 1983, p. 77.
71
Braga, 2007, p. 28.
72
Braga, 2007, p. 31.
73
Braga, 2007, p. 36.
74
Heffernan, 2004, p. 7. Michael Riffaterre salienta o carácter necessariamente ilusório da dupla mimese
ecfrástica, uma vez que a transcriação verbal do referente pictórico é irrevogavelmente condicionada pela
apropriação hermenêutica que dele faz o autor, bem como pelo co-texto literário no qual surgirá
transplantado: «Como el texto ecfrástico representa con palavras una representación plástica, esta mimesis
es doble. Pero también es ilusória, ya sea porque su objeto es imaginário, o bien porque su descripción tan
sólo hace visible una interpretación dictada menos por el objeto real ou ficticio que por su función en un
contexto literario». Cf. Riffaterre, 2000, p. 161.
75
Pitta, 1992, p. 282.
76
Cortez, 2007, p. 229.
77
Baptista, 2007, p. 39.
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A análise das relações entre a Ilha da Madeira e o Brasil durante o século XIX
remete-nos para diversos aspectos da realidade insular madeirense e brasileira, não se
podendo resumir, por isso, à tradicional temática das migrações, que tende a predominar
nos trabalhos de investigação na área das Humanidades. Com a nossa comunicação,
pretendemos destacar esses outros (novos) aspectos, demonstrando a sua relevância para
a compreensão das relações luso-brasileiras, que têm na Madeira a sua pedra-de-toque.
Neste sentido, ocupar-nos-emos da análise de um período-charneira marcado
por uma crise multifacetada, sentida nas duas margens do Atlântico, aproveitando para
reflectir também sobre algumas questões-chave (a adjacência, a mobilidade humana, as
trocas interculturais) que emergiram durante o período investigado e que nos ajudam a
compreender melhor as relações entre a Madeira e o Brasil (do cultural, ao económico,
passando pelo político).
Assim, o nosso ponto de partida situar-se-á em finais de 1807, data da fuga da
Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, acontecimento que contribuiu para a criação de
um novo paradigma relacional entre a Madeira e o Brasil. Apresentaremos, portanto,
uma breve síntese analítica, sobre três temas, sabendo que cada um deles é susceptível
de um desenvolvimento mais aprofundado, mas que não cabe no âmbito deste
Congresso. No fundo, cada um deles seria suficiente para outras tantas comunicações.
As fontes consultadas encontram-se no ANTT (Lisboa), no Arquivo Regional da
Madeira (Funchal) e no National Archives / Public Record Office (Londres).
1
Doutor em História Contemporânea de Portugal (Universidade Madeira), Mestre em História de
Portugal e Licenciado em História (Universidade Lisboa, Faculdade Letras). Professor auxiliar no Centro
de Competências de Artes e Humanidades da Universidade da Madeira (CCAH), coordenador do Centro
de Investigação em Estudos Regionais e Locais (CIERL). A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT)
financiou parte dos custos de participação do autor neste Congresso, através de uma bolsa.
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A pedra-de-toque foi fim do monopólio comercial imposto por Lisboa, algo que
a fuga da Corte e, acima de tudo, a pressão britânica (política e comercial) e as
reivindicações insulares/locais vieram pôr termo6.
A primeira alteração deu-se quase de imediato, pois a partir de então as relações
entre a Madeira e o Brasil passaram a ser as relações entre a Ilha e a Coroa portuguesa.
Ou seja, de interditas, as ligações passaram a ser necessárias, se não mesmo imperiosas,
inclusive na perspectiva da Corte portuguesa, pouco interessada em permitir a natural e
progressiva ascensão da influência britânica na Madeira.
Estas circunstâncias, aparentemente simples, tiveram múltiplas consequências,
impondo, desde logo, a redefinição do paradigma administrativo, que teve repercussões
políticas e institucionais. Numa outra dimensão, é preciso ter consciência das alterações
que se verificaram nos quadros mentais dos coevos, algo que ainda hoje temos alguma
dificuldade em compreender. Na verdade, é-nos, de todo, impossível aferir aquilo que
sentiram e vivenciaram os homens da época, perante tamanha mudança na arquitectura
do Império português.
Isto será relevante, por exemplo, quando se colocar a questão da Adjacência, no
início dos anos Vinte, no âmbito da revolta liberal e da instauração do novo ideal
político, com um forte cariz nacionalista.
Mas esta segunda fase, como já se disse, foi marcada, acima de tudo, pelos
acontecimentos da última semana de Dezembro de 1807, quando a Madeira foi tomada
pelas forças britânicas, deixando de se exercer então sobre ela a soberania portuguesa,
situação que se manteve até Março/Abril de 1808, data em que aquela foi devolvida à
Coroa, embora com o comando militar reservado aos britânicos. Só então se deu inicio à
segunda ocupação, que na sua génese e princípios norteadores foi muito semelhante à
que se concretizara em 1801. Desta vez, porém, com uma duração consideravelmente
superior, uma vez que os britânicos só retiraram passados sete anos, em Outubro de
1814.
Mas estes anos marcaram uma viragem significativa, com repercussões na
História, Cultura e Literatura madeirenses e nas relações da Ilha com o espaço Atlântico
e, em particular, com o Brasil, embora este continue a ser um vasto campo por
investigar, circunstância que, por defeito, leva muitos a concluir que nada existiu e que
nada há para estudar.
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1814)10, a Madeira flutuava no Atlântico - para usar uma expressão coeva -, entre a
Corte e a Regência. E, à semelhança do que sucedia na Baía e em Pernambuco, exigia o
reforço da sua autonomia, fundamentando-a na distância e nas medidas adoptadas por
D. João no Rio.
Também a este respeito se detecta a proximidade e as semelhanças entre a Ilha e
aqueles dois Estados: não retiravam as vantagens de quem estava perto do poder
(recebendo favores e privilégios), mas queixavam-se de ter o ónus de o sustentar. O
mesmo sucedeu quanto à crescente insatisfação dos militares (como sucedeu no Recife)
e à criação de (novos) impostos e/ou saques (no caso da Junta da Fazenda do Funchal),
realizados para satisfazer as crescentes e elevadas necessidades financeiras da Coroa.
Por outro lado, se na região nordestina se começou a fazer sentir a crise nas
produções açucareira e algodoeira, na Madeira, com o fim das guerras napoleónicas,
passou-se o mesmo em relação à produção vinícola. Ou seja, a vários níveis, os factores
de insatisfação eram comuns, associados também à crise nas principais indústrias.
A este quadro, devem ainda juntar-se outros dois factores:
a) as ideias liberais, disseminadas pela Europa e Atlântico, associadas à
emergência do nacionalismo, mas também ao autonomismo;
b) a influência (nos dois lados do Atlântico) da actividade maçónica na definição
das linhas de evolução política a seguir.
Foi por ter consciência de tudo isto que a Coroa portuguesa se apressou a
proibir, por exemplo, os contactos entre o Recife e o Funchal, quando se deu a eclosão
do movimento de revolta em Pernambuco, em Março de 1817. De imediato se enviaram
instruções, com carácter de urgência, para que fossem sequestrados os bens e os navios
dos mercadores estabelecidos naquela praça brasileira que se encontrassem no Funchal
(caso se provassem que estavam ligados à revolta)11.
Não foi por acaso que também por este anos (1817 a 1819), ocorreram na
Madeira vários confrontos entre alguns sectores da população e as autoridades insulares:
os casos das vilas da Ponta do Sol, Calheta e São Vicente são os melhores exemplos.
Daí que, ao mesmo tempo, o poder instalado no Brasil também se tivesse
apressado a estabelecer (em 1818) um sistema de correios marítimos, que garantisse a
rapidez na troca de correspondência entre Lisboa, o Funchal e o Rio. Vejam-se,
portanto, as diferenças em relação à atitude adoptada durante a primeira fase (até 1807).
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Apesar de tudo, durante esta terceira fase, uma das questões proeminentes teve a
ver com a definição da Adjacência política da Madeira, que se começou a colocar com
as crescentes dúvidas em relação a quem tinha legitimidade e autoridade para exercer o
poder sobre a Ilha. Esta foi uma indecisão que, por sua vez, promoveu fortes hesitações,
não só quanto à atitude a adoptar perante a legislação que chegava ao Funchal, emanada
do Rio, como também o que fazer perante as ordens provenientes das autoridades
existentes em Lisboa.
No fundo, o que estava em causa - em definitivo e de uma forma agravada após
os acontecimentos de meados de 1820 no Reino - era saber a quem se devia subordinar
a Ilha e as autoridades nela existentes, no quadro de um profundo nacionalismo que
caracterizava os vintistas, decididos a fazer reverter o Brasil à sua antiga condição de
colónia, mas continuando a admitir que a soberania legítima se mantinha na Coroa de
D. João VI, em particular se este se comprometesse a jurar as Bases da Constituição12.
Eis outro tema que ultrapassa o âmbito restrito desta comunicação, mas que nos
interessa, pelo teor da resposta que chegou do Rio de Janeiro: a Madeira não devia
qualquer sujeição às autoridades do Reino, impondo-se, por isso, que cumprisse a
legislação adoptada no espaço brasileiro, por ser uma colónia, sob a tutela do ministério
da Marinha e dos Domínios Ultramarinos (sediado no Rio)13.
A este respeito, a Coroa só começou a vacilar (anuindo à aproximação da Ilha do
Reino) a partir de Março/Abril de 1820, em parte porque na Corte só então se começou
a ter a noção do rumo que estavam a seguir os assuntos políticos na Península (como
poucos meses depois, em Agosto/Setembro se confirmou). Mas mesmo assim, o que se
procurou defender, no primeiro trimestre de 1820, foi uma espécie de relação dual, algo
que, na essência, estava de acordo com a (nova) monarquia que D. João pretendia
desenvolver: por um lado, uma adjacência política, institucional e militar da Ilha ao
Brasil; por outro, uma adjacência comercial e económica ao Reino, neste caso para que
se cumprisse a legislação de carácter proteccionista a implementar no Reino.
4. 1821-1825: estes foram anos de extrema tensão, nos dois lados do Atlântico e
também, por via disso, no arquipélago da Madeira. Como se sabe, as consequências
políticas imediatas da revolta liberal, o regresso do monarca a Lisboa e a proclamação
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Para terminar podemos ainda referir que, em termos totais (entradas e saídas),
entre 1799 e 1825, temos os seguintes valores registados: 112 navios/viagens a ligar a
Baía à Madeira; 83 em relação ao Rio; 48 a Pernambuco, num total de 291 viagens (202
saídas e 89 entradas). Em termos percentuais, as saídas para o Brasil representaram 1%
do total de saídas em 1807; 10% em 1808; 5% em 1809; 10% em 1813. De uma forma
muito significativa, estes valores desceram para 0,3% em 1821 e 0,6% em 1822.
REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Rodrigues, 1999ª.
2
Rodrigues, 2000.
3
Silbert, 1954 (reed. 1997).
4
ARM-AGC, 197, 22/12/1800.
5
ARM-AGC, 197, 10/1/1803.
998
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6
Rodrigues, 1999b e 2009, pp. 101-152.
7
No âmbito destas medidas, foram aumentados os direitos de todo o algodão que não fosse brasileiro.
Para além dos géneros referidos, também vinham do Brasil muitos outros produtos, entre os quais se
podem destacar: mel, meias solas, vassouras, varas, farinha, arroz, cera, lenha, couros, tábuas, cocos, café
e cachaça. Com alguma frequência, também se encontra o chamado vinho da roda (vinho da Madeira,
embarcado nos porões dos navios, para fazer o percurso no Atlântico durante largos meses, com vista ao
apuramento das suas qualidades).
8
A criação das Juntas do Desembargo do Paço e da Agricultura (ambas em Setembro de 1811) são
exemplos, que se vieram juntar às Juntas da Fazenda (Abril 1775) e Criminal (Novembro 1803).
9
Rodrigues, 2008.
10
Note-se que à época chegou a circular o rumor de que nas negociações de paz em Viena a Inglaterra ia
exigir a entrega da Madeira, de algumas das Ilhas dos Açores e da Ilha de Santa Catarina.
11
ARM-AGC, 200, 26/3/1817 - A chamada revolução pernambucana eclodiu a 6 Março e durou até Maio
de 1817.
12
As Bases da Constituição foram aprovadas a 9 de Março de 1821 e juradas por D. João, a 21 de Julho,
pouco depois de ter desembarcado em Lisboa (a 4).
13
ARM-AGC, 200, 26/8/1815 e 2/10/1817.
999
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1
Este trabalho é parte de um ensaio inédito, O riso no jogo e o jogo do riso na sátira galego-portuguesa,
derivado do estágio de pós-doutorado Non serie juego onde omne non rrye: aspectos da sátira galego-
portuguesa, desenvolvido em 2007, na Unicamp, e subsidiado pelo CNPq.
1000
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2
LAPA, 1995, p. 163.
3
GONÇALVES, 2000, p. 385-386.
1001
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2. Uma das alternativas para apurar certos aspectos da produção trovadoresca, tanto no
campo geral da cultura e da sociedade, como no particular da poesia e das mentalidades,
pode ser a investigação de documentos como o código jurídico organizado por Afonso
X. Nos estudos filológicos, históricos e literários, Carolina Michaëlis de Vasconcelos
(1896) e Ramón Menéndez Pidal (1942) fundamentaram nas leis das Partidas suas
opiniões a respeito da corte trovadoresca peninsular. Em investigações mais recentes,
Jesús Montoya Martínez (1991), Rafael M. Mérida (1993) e Benjamin Liu (2004)
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voltaram às leis afonsinas, procurando observar sua relação com a sátira e a organização
da corte.
Dos códigos jurídicos mais completos desse período, Las siete partidas estão
longe de ser “uma mera seqüência de normas”, sendo ao mesmo tempo um tratado
moral, espelho do tempo, projeto de reforma social, monumento da arte literária, como
observou Alfonso D’Agostino (2001, p. 745). Considerada uma súmula de seu projeto
jurídico, anunciado e preparado nos anteriores Especulo (1255), Fuero real (1255) e
Setenario (1256), as Partidas condensam um ideário de jurisdição que abraça todas as
esferas de um senhorio de rei e de candidato a imperador, o que as torna, segundo
Azucena Palácios Alcaine, “uma magnífica porta para o conhecimento de uma época”
(1991, p. xx).
Em 1991, Aurora Juarez Blanquer e Antonio Rubio Flores publicaram a edição
do manuscrito 12.794 da Biblioteca Nacional de Madrid da “Segunda Partida”, em que
o Sábio discorre detalhadamente sobre três fundamentos do poder terreno ou leigo:
governo e papel do rei, defesa e arte da guerra, e educação como recurso central e
garantia sagrada do governo (BURNS, 2001, v. 2, p. ix). Nessa “Partida” é que
deparamos, no Título IX, informações importantes para a concepção de convívio
cortesão, o fablar en gasaiado, isto é, o gozar alegremente “o passatempo prazenteiro
em companhia”. Em tal ambiente entrariam os trovadores, jograis, menestréis e
soldadeiras, com a finalidade de contar histórias ou apresentar cantigas, tocar a cítola ou
dançar, agradar e receber os dons, caso sua competência seja aprovada, sendo esta
aquilatada por meio da capacidade de os trovadores obedecerem a uma expectativa de
discurso sancionado pela tradição.
O conceito específico que interessa, o jugar de palabra, encontra-se na Lei XXX
do Título IX. Nelas se vislumbram, ao menos teoricamente – ou utopicamente, como
observa Francisco López Estrada (1992) –, as normas de conduta para o entretenimento
do rei e dos que o freqüentam. Para garantir o respeito à convivência em palácio – onde
“convém que não sejam aí ditas palavras senão verdadeiras, perfeitas e adequadas” –,
Afonso X tratou de regularizar as principais circunstâncias sociais e maneiras palacianas
de entretenimento ou gasaiado. Dentre elas, o jugar de palabra, conceito-chave para a
compreensão do que aqui se discute – a cortesia de João Soares Coelho ao final de seu
escárnio contra Picandon. Sobre o “jugar de palabra” diz o rei:
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(…) no jogo devem observar que aquilo que disserem seja apropriadamente
dito, não a respeito do que for defeituoso naquele com quem jogarem, mas a
jogos dele, como no caso do covarde dizer-lhe que é esforçado, jogar com
sua covardia; e isto deve ser dito de maneira que aquele com quem jogarem
não se tenha por ofendido, mas que sinta prazer, e ria do jogo tanto quanto os
outros que o ouvirem. E que aquele que jogar saiba bem fazer rir no lugar
conveniente, porque de outra maneira não seria jogo onde homem não ri; pois
sem falha o jogo se deve fazer com alegria e não com sanha nem com
tristeza. De modo que aquele que sabe se guardar de palavras excessivas e
deselegantes, e usa as que estão nesta lei é chamado palaciano, porque estas
palavras usaram os homens entendidos nos palácios dos reis mais que em
outros lugares (…) (ALFONSO X, 1991, p. 101-102)4.
O ponto difícil e fundamental do trecho está nessa passagem: no jogo devem observar
que aquilo que disserem seja apropriadamente dito, não a respeito da coisa [defeito]
que estiver naquele com quem jogarem, mas a jogos dele, como se ele fosse covarde
dizer-lhe que é esforçado, jogar com sua covardia (“E en el juego deven catar que
aquello que dixieren sea apuestamente dicho, e non sobre aquella cosa que fuere en
aquel lugar a quien jugaren, mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es
esforçado, jugarle de cobardia”): o que significariam precisamente a expressão “a
juegos dello” e o exemplo “commo sy fuere cobarde dezirle que es esforçado, jugarle de
cobardia”? Jesús Montoya Martínez examinou esse trecho da “Segunda Partida”,
primeiramente no artigo “Caracter lúdico de la literatura medieval (A propósito del
‘jugar de palabra’. Partida Segunda, tít. IX, ley XXIX)”, de 1989, e no estudo “Teoria
educativa”, de 1991, mais sintético do que o primeiro, mantendo, no entanto, as mesmas
conclusões iniciais. Eis a paráfrase do autor do trecho:
4
“(…) E en el juego deven catar que aquello que dixieren sea apuestamente dicho, e non sobre aquella
cosa que fuere en aquel lugar a quien jugaren, mas a juegos dello, commo sy fuere cobarde dezirle que es
esforçado, jugarle de cobardia; e esto debe ser dicho de manera que aquel a quien jugaren non se tenga
por denostado, mas quel ayan de plazer, e ayan de rreyr dello tan bien el commo los otros que lo oyeren.
E otrosy el que lo dixiere que lo sepa bien rreyr en el lugar do conveniere, ca de otra guysa non serie
juego onde omne non rrye; ca sin falla el juego con alegria se deve fazer, e non con sanna nin con tristeza.
Onde quien se sabe guardar de palabras sobejanas e desapuestas, e usa destas que dicho avemos en esta
ley, es llamado palaçiano, porque estas palabras usaron los omnes entendidos en los palaçios de los Reyes
mas que en otros lugares (…)” (ALFONSO X, 1991, p. 101-102)
5
“En el juego – de palabra, se entiende – deve catar, que aquello que dixere, que sea apuestamente dicho,
e non sobre aquella cosa que fuere en aquel, con quien jugaren, mas aviessas dello; como si fuera
covarde, decirle que es esforzado, e al esforzado jugarle de covardia” (MONTOYA MARTÍNEZ, 1989,
p. 438).
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Montoya Martínez traduz uma das expressões-chave, “mas a juegos dello” para “mas
aviessas dello”, dando a entender que o exemplo dado pelo Sábio é negativo, ou seja,
ele deduz que não se deve brincar com o covarde, chamando-o, por equívoco, de
valente, nem vice-versa:
Verdade e estética são portanto as exigências para esse jogo. Ao covarde não
se pode jogar de esforçado, nem ao esforçado e valente de covarde, mas
qualquer deles pode ter traços morais que podem ser habilmente deformados.
A chave está em encontrá-los e expressa-los convenientemente6
6
“Verdad y estética son por tanto las exigencias requeridas para este juego. Al cobarde no se le puede
jugar de esforzado, ni al esforzado y valiente de cobarde, pero cualquiera de ellos puede tener unos rasgos
morales que pueden ser hábilmente deformados. La clave está en encontrarlos y expresarlos
convenientemente” (MONTOYA MARTÍNEZ, 1989, p. 438. Itálicos acrescentados).
7
Marta Madero expõe os temas passíveis de injúria: corpo (enfermidade, sexualidade, estética,
integridade, parentesco), religião (judeus e mouros) e comportamento (traição, covardia, avareza etc.).
Como resume Jacques Le Goff, no prefácio ao estudo de Madero: “Respecto del hombre las mayores
injurias son las que lo acusan de sodomía y de traición; respecto de la mujer, las que ponen por delante la
lujuria y la fealdad. Pero más en general, esta sociedad misógina ve en la feminidad ‘la inversión de todo
lo alto, lo bello o lo puro’” (MADERO, 1992, p. 15).
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3. Examinar esse ponto da lei e cotejá-lo com as cantigas é producente, uma vez que
dele se pode depreender um dos traços principais da sátira galego-portuguesa, não
suficientemente desenhada na Arte de trovar. Qual seria o grau de “verdade” das
“acusações” e “denúncias”, já posto em relatividade por Menéndez Pidal a propósito da
cantiga de Afonso X, “Pero da Pont’ á feito gran pecado”, em que o rei acusa Pero da
Ponte de homicida e plagiário? Se não deveria haver, a princípio, ira nem tristeza, no
entretenimento palaciano, e se a maior qualidade de um jugar de palabra estaria na
capacidade de seu autor fazer-se ouvir prazenteiramente, as cantigas escarninhas, então,
poderiam ser lidas como jogos de avessos, além de jogos de equívocos verbais?
8
“os ataques contra trobadores e xograis (exclúo os ataques de tipo político) non podem ser tomados
como proba de sinceridade (imposible en xeral na lírica da Idade Media) senón mais ben como um xogo –
cruel ás veces, isso si – entre colegas ou entre señor e asalariado, frecuentadores dos mesmos circuitos de
actuación” (VENTURA, 1993, p. 535. Itálicos do autor). Diante da ausência de apelido nas apóstrofes a
Lourenço – o que não ocorre com outros jograis –, Ventura indaga se isso não seria uma demonstração da
alta consideração que os trovadores lhe tinham (p. 543).
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Podemos supor que o jogo equívoco prescrito na lei e utilizado pelos trovadores
estaria não apenas no plano retórico da palavra ambígua, mas também no plano da
deformação pelo contrário de uma dada circunstância, de um rasgo moral ou de uma
qualidade de um cortesão. Em outras palavras, o equívoco se manifestaria tanto no
plano do texto (jogo de palavras stricto sensu) como no plano do contexto (situação
posta pelo avesso). No caso da tenção que estudamos, estão ausentes os equívocos
verbais, prevalecendo os equívocos referentes ao contexto.
Se estiver correta a hipótese, na poética fragmentária galego-portuguesa, afirma-
se que a cantiga de escárnio satiriza alguém por meio de equívocos verbais, ao passo
que a de maldizer, por meio de palavras claras. Por outro lado, a Lei XXX do Título IX
da “Partida Segunda” regula uma atividade cortesã que coincide com a natureza do
gênero satírico, considerando o que nele deve prevalecer de equívocos de situação que
propiciem o humor e o divertimento; isso complementaria o alcance da definição da
Arte de trovar. Portanto, creio que não é apenas o recurso retórico da equivocatio, em
sentido estrito, que deve estar em pauta quando investigamos a produção satírica
peninsular medieval; além dos famosos equívocos verbais da “maeta descadeada” (em
“Maria Pérez, a nossa cruzada”, de Pero da Ponte) ou da “midida de Espanha” (em
“Joan Rodríguiz foi osmar a Balteira”, de Afonso X), devemos sondar os equívocos
contextuais ou jogos de avesso como o do mal jogral Picandon e Lourenço, entre outros.
É certo que a sátira ocupava um lugar destacado nos serões palacianos, seja pela
grande produção dos trovadores (388 cantigas de 65 trovadores9), seja pela própria
produção do Sábio (40 cantigas), seja ainda pelo destaque dado ao assunto em suas leis.
Não menos evidente, no entanto, é a natureza desestabilizadora do escárnio e maldizer,
oscilante entre o jogo e o crime, o que requeria certo controle na produção de homens
interessados em divertir uma corte por meio de cantigas que contrabalançassem, talvez
capciosamente, o desejo de jogar/denunciar/divertir/ferir e a adequação palaciana
exigida por lei, sim, mas, antes ainda, e sobretudo, pelos costumes dos homens polidos,
palacianos. Ambas as ações, entretenimento e crime, dependiam da intenção do
escarnecedor e da interpretação do escarnecido. Lembre-se de que a concepção de
diversão cortesã era amparada pela noção de jogo que, segundo Marta Madero, era
9
Entre 1240 e 1300, foram produzidas 568 cantigas de amor por 72 trovadores, e 471 cantigas de amigo
por 79 trovadores (OLIVEIRA, 2001, p. 164).
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Sobre o rex facetus, afirma Jacques Le Goff a propósito de Henrique II: “Par la plaisanterie distillée par
le roi et circulant dans le cercle, la collectivité des participants à la curia royale, Henri II a attaché à la
couronne ce groupe de rieurs et a fait des nobles indisciplinés des courtisans apprivoisés par le rire en
commun suscité par le roi. Mais cette cour rieuse utilize aussi le rire comme une arme pour ruiner la
corrière de tel ou tel puissant ou candidat à la sphère supérieure. Rire d’un membre de la cour peut être
mortel” (LE GOFF, 1997, p. 452).
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pretendeu ser uma recolha e uma súmula do Direito medieval peninsular, eivado de
fueros municipais, senhoriais e régio, como afirma Joseph O’Callaghan (2001, p. xxxi).
Uma afirmação de Jean Marie D’Heur parece sustentar a conjetura que
apresentamos: “As instituições poéticas estão porventura mais próximas das instituições
jurídicas do que cremos”. Tal suspeita certamente não é gratuita.
REFERÊNCIAS
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A eternidade pode ser uma ânsia que no século hiper veloz em que vivemos rima
com variedade e insegurança. Mais fundo, porém, é aquilo que se mostra como desejo
infinito, círculo sem fim, desafio do desconhecido e revelação do encoberto. É a
experiência da liberdade de quem vê porque não enxerga e enxerga o que não vê.
Contraste inaudito de luz e sombras, alma e formas. Conflito permanente de tempos e
espaços. Velhas dualidades barrocas esticadas na corda das eras a ecoar sobre culturas
superpostas e a falar pela manifestação de um “eu” declarado a um “tu”, da mulher que
busca o homem, do encaixe entre um e outro corpo, da viagem que interrompe a ânsia
de andar pela satisfação de permanecer.
A eternidade e o desejo é livro de aprendizado e de sensações. Tradução da fina
sensibilidade da autora, Inês Pedrosa, e de outra jornada, a sua, como escritora
convidada de uma etapa do ciclo “Os Portugueses ao encontro de sua história”,
promoção do Centro Nacional de Cultura. Informa-nos que “do percurso e dos cenários
dessa viagem”, feita pelo “Brasil do padre Antonio Vieira”, em 2005, nasceu-lhe a idéia
do livro. Com ele, converteu em ficção as impressões da caminhada que renderam ainda
o volume No coração do Brasil – seis cartas a Padre Antonio Vieira dentro da série
Diários de viagem.
O título inaugural dessa coleção do Centro de Cultura, em 1991, decorreu de
percurso semelhante. Agustina Bessa-Luís, na época, escreveu Breviário do Brasil para
registrar impressões originadas de um longo deslocamento iniciado no Rio de Janeiro e
prolongado até Manaus, no extremo norte. Depois disso, com base em várias rotas
internacionais e pelas mãos de diversos convidados, a iniciativa já alimentou uma
dezena de títulos. A experiência, como se percebe, reforça e atualiza o duradouro
interesse pela temática de viagem.
∗
Professor do Departamento de Letras Vernáculas, UFSM, Santa Maria, RS.
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1. VIAGEM E FICÇÃO
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2. PRÓPRIO E ALHEIO
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onde Clara tira inspiração e, como uma versão feminina do ancestral Tirésias ou do
contemporâneo Jorge Luis Borges, num acurado diálogo com a tradição, erige, das
trevas do ser, a clareza atual e instigante de sua inquietante busca.
À sugestão dos nomes, Inês Pedrosa fia a intercalação dos tempos e a bem
dosada distribuição dos registros discursivos, seus e alheios, do presente e do passado,
conduzindo com mão firme a caminhada de Clara que, já se viu, é de descoberta, ou,
para avaliá-la adequadamente na perspectiva das séries literárias, de formação. Vieira,
enigma e metáfora dessa trajetória iluminada, às vezes é o par confidente, reflexo de sua
própria busca, a quem a protagonista aprendiz confessa: “vejo-te, Antonio menino, sem
saberes de que terra és. Trouxeram-te de Portugal para os trópicos através de um mar
imenso, e o violentíssimo baloiço do mar desenhou-te a forma da alma”ii. Outras vezes
ganha a constituição do reverenciado orador, torna-se o intransferível exemplo a ser
seguido: “temos que carregar nos contornos do mundo se pretendemos sacudi-lo –
Vieira compreendeu-o como ninguém”iii.
Nessa trajetória do aprendizado de Clara, a autora efetiva o particular interesse
por atualizar a figuração do feminino, que desde o primeiro romance, A instrução dos
amantes, de 1992, transformou-se em uma das linhas de força de suas obras. A
propósito do festejado Fazes-me falta, de 2002, Agustina Bessa-Luís salientava a
expressividade desse traço característico:
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3. FOCALIZAÇÃO DUPLA
Sou daqui, do Brasil – sou deste odor violento a floresta e mar, desta
melancolia urbana excessivamente quente e perigosa, desta língua portuguesa
lenta e lúbrica, deste baile de gerúndios mergulhado nos compassos do
presente. O Brasil é o hoje vertical: todas as misérias do passado e as
esperanças do futuro se aglutinam na experiência do momento presente. Eu
sou desta mestiçagem mais potente do que toda a História, tu és da História,
com princípio, meio e fimvii.
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Não, não vês, como eu não via. Pertencer a um país que de antigo se tornou
velho também não ajuda a ver. Só através dos olhos desse Antônio que veio
do Brasil eu comecei a ver. Nos olhos dele aprendi a ler Vieira, como no seu
corpo aprendi a saborear o desejo infinito, o desejo como experiência da
eternidade. Para essa experiência não tenho palavras. Nem sequer silêncio.
Dessa experiência, sobrou-me o que souviii.
A insistência dos verbos “ver” e “pertencer”, no trecho citado, acusam uma das
chaves principais do “aprendizado” de Clara/Pedrosa ao longo do universo discursivo
de A eternidade e o desejo. Trata-se da tentativa de incorporar a experiência que se
supõe a partir da disposição das palavras. Não por acaso a eleição de Vieira insiste em
sua dupla personalidade de orador tentacular e sujeito de ação vigorosa. Ao seguir seus
passos, Clara justifica suas próprias posições e, já nas fronteiras da ficção, a história de
Pedrosa busca o passado com vistas a lançar renovadas luzes sobre o presente.
EM CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
ABREU, Maria Fernanda. Uma outra linguagem (entrevista). Veja, São Paulo, 17 de
agosto de 2005.
PEDROSA, Inês. No coração do Brasil – seis cartas a Padre Antonio Vieira. Lisboa:
Dom Quixote, 2007.
NOTAS
i
PEDROSA, 2008, p. 49.
ii
Idem, p. 63.
iii
Idem, p. 24.
iv
BESSA-LUÍS, 2002, p. 19.
v
ABREU, 2005.
vi
CUNHA, 2004, p. 49.
vii
PEDROSA, 2008, p. 146.
viii
Idem, p. 26.
ix
VIEIRA, apud PEDROSA, 2008, p. 129.
1020
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1
Professor Adjunto do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB).
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uma necessidade de mediação entre eles cujo delineamento, então, ocupará boa parte do
pensamento filosófico posterior.
Por exemplo, como imediata reação ao aprofundamento da cisão em Kant, o
romantismo alemão apostou na experiência estética como forma de reconciliação
possível entre o sujeito e o mundo circundante – um momento em que ambos
constituiriam uma espécie de sujeito-mundo indivisível, ainda que momentaneamente. É
conhecida também a via hegeliana, pela qual o modo narrativo de apresentação e
conexão dos fenômenos seria uma forma eficiente de mediação, servindo para suprir a
lacuna entre sujeito e objeto, conferindo completude (ou “plenitude”) à insuficiência.
Nada, porém, diminuiu a percepção de que o mundo escapava por entre as
representações do sujeito, forçando a impressão de que “nós não estamos plenamente
aí” – de que o mundo não nos pertence de fato...
Esse estado de coisas motivou a emergência daquilo que Niklas Luhmann, mais
tarde, denominaria de “observador de segunda ordem”: o observador que observa a si
mesmo no ato da observação. Este conceito não pretende se referir a este ou àquele
pensador em particular, mas sim à questão (e à pressão) que se coloca sobre toda uma
época da história do pensamento, levando à elaboração de respostas variadas. A partir
do momento em que a realidade se torna opaca, o observador se percebe responsável
por suas próprias representações; nesse sentido, se aquilo que “é” é aquilo que ele vê,
em última análise a constatação desse atrelamento terá um viés pessimista. Pois mesmo
a ação individual é colocada em questão, uma vez que, se há muito o que pensar ou
sentir, pouco se pode fazer, pouco se pode operar a realidade: se o sujeito não pode sair
de si mesmo, tudo o que ele fizer será inextricavelmente seu, e não pertencente (ou
fidedignamente atinente) “ao mundo”. A ação política, tal como a produção de
conhecimento, parte de um ponto-de-vista, de uma perspectiva contingente, o que
mitiga a sua pretensão à universalidade, justamente no momento (pós-1789) em que as
expectativas político-normativas se tornam radicalmente universais. O que a noção de
“observador de segunda ordem” procura deixar claro, portanto, é o quanto o sujeito
epistemológico e político (e também afetivo, como se verá em Pessoa) se torna cada vez
mais consciente da sua própria finitude.
Aqui alcançamos o nosso tema, pois esse alheamento será constitutivo da
“implosão” da subjetividade ao redor da qual se constrói a obra poética de Fernando
Pessoa. Nela, não ocorre que um mesmo poeta tenha se “dividido” em vários, como se
de variações ou “subdivisões” do mesmo se tratasse. O fato notável é que Caeiro, Reis e
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Campos (aos quais nos limitamos) foram poetas diferentes, sendo isso o que justifica o
nosso interesse em buscar, neles, condicionantes estruturais em comum, um esforço que
doutro modo – se acaso os considerássemos faces diferentes do mesmo – seria
redundante. Da nossa perspectiva, e na seqüência da discussão que viemos
encaminhando, aqueles três heterônimos, colocados numa relação de autonomia
recíproca (que não prevê qualquer possibilidade ou vontade de síntese), dramatizam os
limites do pensamento, da percepção e da ação do sujeito diante de um mundo que não
mais se deixa assimilar. Em Pessoa, a subjetividade deixa de ser o meio cristalino de
abertura para mundo, para se tornar o meio denso de exploração do mundo a partir de si
mesma, em sua cisão com um mundo que, justamente por isso, se torna opaco.
Comecemos por Alberto Caeiro. Podemos, de saída, imaginar o seguinte
desdobramento das premissas que elencamos: num plano epistemológico, a finitude do
sujeito, a sua circunscrição (quase “prisão”) a si mesmo, a limitação da sua capacidade
de tocar diretamente aquilo que o circunda teria como pólo oposto o caráter ilimitado
(ou “infinito”) da natureza, plena em si mesma e indiferente à escala humana de
apreciação. A natureza seria ilimitada, pois, ao passo que aos humanos é possível
encontrar nela somente aquilo que eles nela colocam, a natureza, em si mesma, teria
uma imanência própria, que a nossa visão finita estaria condenada a ignorar. Se esse é
um desdobramento do campo epistemológico inaugurado pelo “observador de segunda
ordem”, por ele se entende como, na poética de Caeiro, tem-se uma imanência e uma
plenitude da natureza que, para ser de fato apreciada, em sua oposição radical aos
padrões de percepção e aos modos de vida “humanos, demasiado humanos” socialmente
reificados, favorecerá duas saídas: em vários momentos, tem-se em Caeiro a denúncia
da incapacidade dos homens em tocar a natureza circundante (por privilegiarem, em seu
agir normalizado, a faculdade do pensamento, tão caracteristicamente humana); noutros,
tem-se a dissolução radical da voz poética na natureza pura.
A primeira alternativa é mais propriamente “crítica”, ao colocar-se visivelmente
contra um estado de coisas cuja insuficiência quer-se deixar manifesta. Nesse sentido,
não se deve procurar nela uma sugestão de equacionamento prático (ou “ético”) do
estrato criticado; ali, o que se tem é o auto-distanciamento da voz poética quanto à
“queda” humana na finitude, em função da sua auto-entrega acrítica ao cogito – pela
sedução do conhecimento, que é tanto mais produtivo quanto mais se afasta (afastando
o Homem) daquilo com que se ocupa: “Creio no mundo como um malmequer/Porque o
vejo./Mas não penso nele/Porque pensar é não compreender.”i O “não pensar” surge,
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nesta primeira alternativa, como uma proposição (ou ação) programática, um gesto de
resistência ou recusa.
A segunda alternativa, que é quase como um desdobramento desta, será, porém,
bem mais radical. Ela evoca, mais uma vez, a denúncia da razão como métron
primordial de interação com o mundo, mas para levar, agora, à dissolução completa do
sujeito cognitivo na natureza. Nessa dissolução o sujeito deixa de ser a “pura mente”,
privilegiada pela modernidade epistemológica, para se tornar “pura sensibilidade”: “os
meus pensamentos são todos sensações./Penso com os olhos e com os ouvidos/E com as
mãos e os pés/E com o nariz e a boca.”ii A finitude está superada aí, porém
tragicamente: ela é superada apenas mediante a própria dissolução do sujeito na
natureza. Se é a nossa condição de “sujeitos” que nos aprisiona, ao deixarmos de sê-lo
ganhamos, em troca, o mundo. A conseqüência ética (quase “etológica”) deste auto-
apagamento está em que, na poética de Alberto Caeiro, tem-se o distanciamento
voluntário do sujeito poético quanto ao comércio humano e à ação intramundana. Não
há “cidade” em seus poemas, o campo é a sua ambiência de eleição, a solidão é o seu
estado preferencial. Não se imagina que os seus “rebanhos” sirvam para o proveito
econômico, que o poeta conviva regularmente com outras pessoas ou mesmo que ele
habite algum lugar específico. No limite, a sua crítica à finitude da razão é uma crítica
radical ao universo humano; que outra conseqüência poderia isso ter senão a
impossibilidade da vivência social, tal como ela se institui regularmente?
Em Ricardo Reis o quadro é composto de maneira diferente. O mundo continua
sendo inalcançável pelo sujeito em seus modos preferenciais de observação (i.e., através
da cognição). Mesmo a percepção (em sua porção meramente sensorial) parece
conhecer limites que ela não tem em Caeiro, uma vez que Reis jamais chegará à
vertigem da dissolução total da mente – o que preserva a percepção como um factum
humano, pelo qual (dada a imposição da sua própria forma àquilo com que se depara) a
exterioridade do mundo é convertida em alteridade. Paralelamente, também a ação tem
a sua finitude reforçada, uma vez que o poeta é consciente quanto ao seu caráter
também auto-confirmador – a sua constrição do livre fluxo da experiência. Por isso se
vê que o lugar do sujeito se mostra, mais uma vez, limitado; ele não é, todavia, anulado,
o que estabelece uma diferença entre Reis e Caeiro. Enquanto neste último tem-se o
auto-distanciamento da ação intramundana através da valorização ética da solidão e do
isolamento na natureza, em Reis o reconhecimento dos limites da percepção, da
observação e da ação é um reconhecimento ativo, uma vez que, dentro dos nossos
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REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. “A morte do autor”, in: O rumor da língua. Lisboa: Edições 70,
1987, pp. 49-53.
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.
LUHMANN, Niklas. Social systems. Stanford: Stanford University Press, 1995.
NOTAS
i
Pessoa, 1965, p. 207.
ii
Pessoa, 1965, p. 212.
iii
Pessoa, 1965, p. 260.
iv
Pessoa, 1965, p. 292.
v
Pessoa, 1965, p. 289.
vi
Pessoa, 1965, p. 406.
vii
Pessoa, 1965, p. 334.
1028
MIGUEL E MIGUÉIS TORGA: UMA RECRIAÇÃO DE SI MESMO1
1
Este trabalho faz parte de um projeto maior que se propõe estudar a obra memorialística de Miguel
Torga intitulada A criação do Mundo, e que foi apresentado como tese de doutoramento na Universidade
de São Paulo (USP)
2
Professor Adjunto da Universidade Estadual do Centro-Oeste Paraná (UNICENTRO)
3
WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Trad de Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p 31.
sentimento, reaparição do feito e do ido...”4, estabelecendo assim, uma relação entre a
memória, a temporalidade e a identidade. A existência de um passado e do seu resgate,
o que para autora, não só junta o que aconteceu em um outro tempo a um eu que ele era,
mas também, explica como esse mesmo eu tornou-se a partir das mudanças sofridas.
Assegura, igualmente, ao memorialista a sua permanência histórica.
O grande questionamento se dá sobre o momento do surgimento da literatura de
cunho intimista, tendo em vista que ela tem como centro o sujeito e assim, faz parte da
sua existência narrar fatos que aconteçam a ele. Todavia, o discurso íntimo manifesta-se
um pouco mais tarde.
Alguns autores localizam o fortalecimento desse discurso na cultura ocidental a
partir do século XVIII, ou seja, do estabelecimento da burguesia, mas são unânimes em
concordar com Lejeune, quando este distingue traços desses textos no século XII,
salientando que as cantigas medievais portuguesas são exemplos claros de textos
confessionais.
Uma primeira definição de autobiografia pode ser encontrada no próprio nome:
biografia de uma pessoa feita por ela própria, traduzindo assim, sua vida em “grafias”
ou “escritas”. Philippe Lejeune5 define textos autobiográficos como sendo relatos
retrospectivos que alguém real faz de sua própria existência. Compreende gêneros como
memórias, biografias, romances pessoais, auto-retratos, etc. Segundo o autor, se
estabelece, nesses textos, um pacto autobiográfico em que a identidade desse autor será
confirmada pelo seu nome no texto, que remete ao nome da capa.
Todavia, admite que haja ambigüidades que não podem ser delimitadas
claramente e, em seu texto Je est un autre6, fala de um eu, cujo relato verdadeiro de sua
vida é relativizado pela possibilidade de uma autobiografia literária, que se situa entre
verdade histórica e ficção. Essa tradução garante ao texto uma ilusão maior de
veracidade, que Pierre Bourdieu7 chama de ilusão retórica. Porém, ao admitir-se a
possibilidade de que a história de uma vida possa ser mesclada pela interpretação e pela
imaginação criadora, evita-se a ilusão retórica, proposta por Bourdieu.
4
BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,
p.22
5
LEJEUNE, Philippe. “Le Pacte autobiographique”. In: Poétique. Paris: Seuil, 1973, p 137-162.
6
________________. Je est un autre.l'autobiographie de la littérature aux médias. Paris: Seuil, 1990.
7
BOURDIEU, Pierre. “L'illusion Biographique”. in.: Actes de la Recherche em Sciences Sociales. Paris:
n. 62/63, juin. 1986, p. 69-72. Paris: n. 63, sep. 1985, p. 259-277.
Todas essas reflexões suscitadas pela autobiografia, fazem pensar com Bonnet8
que mesmo vivendo em um tempo em que foi declarada a morte do autor por Roland
Barthes9, ele evoca esse desprendimento entre quem escreve e o que escreve. Com isso,
é impossível pretender que o tema intimista seja eliminado. Trata-se, pois de um retorno
ao já referido tema, o qual segundo o autor, nunca deixou de estar presente.
Dessa forma, escrever sobre si, vai além da tentativa de não deixar que seu nome
seja esquecido. Há autores que alcançariam permanência histórica pela sua obra, sem a
necessidade de recorrer aos textos intimistas, mas que se debruçam sobre eles, fazendo
mais do que satisfazer a mera curiosidade dos seus leitores. A escrita de si atenua a
solidão, é uma tentativa de reconhecimento, faz o papel de companheiro, de confissão e
acima de tudo é uma forma de lutar contra os próprios medos.
Clara Rocha10, ao citar Morgenthau e Person, assegura que o homem moderno é
um ser desamparado e que faltam lugar, grupo, deus ou tribo com quem ele possa se
identificar, sendo assim, conclui a autora que a escrita do eu pode ser vista como uma
forma de salvação individual.
Em se tratando de textos autobiográficos, um dos aspectos a ser levado em
conta, além da complexidade do gênero é, segundo Eliane Zagury11, a sua participação
em duas linhas contrastantes, ou seja, ao mesmo tempo em que é uma narrativa histórica
é prosa lírica. O escritor se vê, ora puxado para um lado, ora para outro, mas a linha
mestra desse movimento é a memória. E mesmo que opte por um dos lados a tendência
é, segundo a autora, de ser atraiçoado pelo outro.
Monteiro Lobato, em seu livro Memórias de Emília, mostra como a boneca e
dona Benta, conhecidas personagens da literatura brasileira, em uma conversa
aparentemente ingênua, evocam os grandes questionamentos que envolvem o gênero e o
seu conteúdo. As personagens questionam sobre a escrita memorialística, o período de
abrangência que será narrado e o conceito de verdade, pois a idéia é que ninguém
supostamente escreveria algo que não fosse totalmente verdadeiro sobre si, entrando
conseqüentemente nas duas linhas contrastantes sugeridas por Zagury:
8
BONNET. Jean-Claude. Le fantasme de l'écrivain. in. Poétique. Paris: Éditions du Seuil, Le
Biographique. n. 63, sep. 1985, p. 259-277.
9
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
10
ROCHA, Clara. As máscaras de Narciso. Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal.
Coimbra: Almedina, 1992. o que se discute aqui diz respeito também ao homem de fins do século XIX.
11
ZAGURY, Eliane. A escrita do eu. ZAGURY, Eliane. A escrita do eu. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, Brasília: INL, 1982, p. 15.
Tanto Emília falava nas suas memórias que uma vez dona Benta lhe
perguntou:
_Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias?
_Memórias são a história da vida da gente, com tudo que aconteceu desde o
dia do nascimento até o dia da morte.
_Nesse caso, caçoou dona Benta, uma pessoa só pode escrever suas
memórias depois que morre...
_Não porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras
têm que ser estas: E então morri...com reticência. Mas é peta. Escrevo isso,
pisco o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo
pensando que morri. Será a única mentira das minhas memórias. Tudo mais
será verdade pura, da dura – ali na batata, como diz Pedrinho.
_Bem sei, disse a boneca. Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e
sei também que é nas memórias que os homens mais mentem. Quem escreve
memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia
do escrevedor. Ora, para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o
leitor fica vendo que ele era um patife igual aos outros. Logo, tem que mentir
12
com muita manha, para dar idéia de que está falando a verdade pura.
Mesmo sabendo que tanto dona Benta quanto Emília são personagens de ficção,
não se pode negar, inicialmente, o que o próprio nome já traz no cerne de sua definição:
um texto autobiográfico é aquele em que o autor, em vida, escreve sobre si mesmo,
baseando-se em fatos vividos e utilizando-se da memória como arquivo de emoções.
Nos estudos realizados por Lejeune são definidos como relatos retrospectivos e que
estabelecem os mais variados pactos nos quais o nome da personagem coincidirá ou não
com o nome da capa.
Pode-se dizer que através da grande brincadeira que Lobato faz ao atribuir uma
existência, ainda que ficcional a uma boneca, ele proporciona recordações dessa vida
ficcional que merecem ser contadas e lidas.
12
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 3 ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1939.
E também, ao dar voz à personagem, faz uma reflexão sobre questionamentos
mais profundos em relação ao gênero intimista que é o fato de atribuir a idéia do
inacabado que permeia o texto de cunho intimista, pois só a morte poderia dar a
completude necessária. Além disso, a idéia de “verdade pura” como ressalta a boneca,
ao ser questionada sobre o fato de dizer que morreu, sem que isso tenha acontecido, essa
seria, segundo Emília a “única mentira” em suas memórias. Todavia, ela se diz
consciente de que na realidade há “um certo” arranjo por parte do escritor, para que o
“leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor” e também para que ele se destaque
dos outros seres “comuns”.
É o que William Gass13 chama de autocentramento, que consiste não somente no
fato de achar que sua vida tem algo muito interessante que despertará a curiosidade de
alguém, como também no de admitir que o sujeito omite certos trechos “chatos” de sua
existência, os quais julga embaraçosos, e reforça outros em que “tenta ocultar o engodo
atrás da confissão” e há ainda a idéia de que a mentira tem que “ter manha” para dar a
impressão de verdade.
O que Emília chama, inocentemente ou não, de mentira, é definido por Lejeune
como sendo uma ambigüidade que permeará o texto intimista, ou seja, uma narrativa
que é relativizada pela verdade histórica e pela ficção, e que Bourdieu chama de ilusão
retórica, que só é evitada quando se admite tal possibilidade de existência.
Dessa forma, o livro A criação do mundo, apresenta, aparentemente, a história
de uma vida como tantas outras que a literatura ao longo dos tempos revelou, sem
grandes complicações no enredo, uma existência contada com suas alegrias e suas
tristezas. A diferença dos outros seres se dá porque essa vida narrada tem duas
profissões consideradas “sagradas”: uma que interpreta e cura as dores do corpo e a
outra que interpreta e revela as dores da alma, sem que necessariamente sejam curadas,
mas têm, nessa revelação um alívio considerável.
Pensando com Lejeune, tem-se aqui a história de alguém contada por essa
mesma pessoa o que vem a caracterizar o gênero intimista. Contudo, em A criação do
mundo, vê-se o pacto autobiográfico descrito por Lejeune confirmado apenas quando o
próprio autor assina o prefácio, identificando-se e dizendo que escreveu sobre questões
pessoais tiradas do material da sua própria vida. É o que Lejeune chama de pacto zero
13
GASS, William. A arte do self. Folha de São Paulo, 21 agosto 1994, Mais, p.6-4
em que há uma indeterminação ou mesmo ausência de nome na narrativa, como no caso
de Torga.
A escrita de si, da maneira como é estabelecida em A criação do mundo, é além
de um ato narcisístico, no sentido de auto-conhecimento, também, a identificação com
outra figura mitológica: Zeus. Dessa forma, a relação com a Bíblia se dá pelo fato de o
mundo ser criado em seis dias, mas além de criador ele se revolta, aí é que a
aproximação com Zeus se efetiva, tendo em vista que, após se rebelar, este se relaciona
com a memória, perpetuando-se.
Júpiter ou Zeus, embora seja chamado de “o pai dos deuses e dos homens” teve
um começo, após ter se rebelado contra Saturno. Dividiu os domínios paternos com os
irmãos. Da sua união com Mnemósine (Memória) nasceram as musas. É a representação
do poder criador e preservador.
Segundo Schüler, essa união constitui um ato revolucionário, pois sem a
memória ele não era nada e não seria nada, estaria mais próximo das pedras do que dos
homens, sempre idêntico, sem planos.
14
SCHÜLER, D. A fragmentação da memória. In.: Literatura e Memória cultural. 2º Congresso
ABRALIC, Anais, Belo horizonte, 1991,p. 418
Wander Melo Miranda no capítulo que intitula “o texto da memória”, afirma que
a mesma atua como uma espécie de arquivo, dando ao sujeito uma consciência, ainda
que falsa, de plenitude. Para ele:
Nesse caso, ao atuar como eco, arquivo, duplo do eu, a memória impõe ao
sujeito que lembra a consciência (falsa) da sua plenitude e autonomia,
condenando-o a refazer o tecido da sua história sempre com os mesmos fios
de um único e imutável trançado o qual, por não conter os fios que o Outro
15
tece, é irremediavelmente alienante.
15
MIRANDA, Wander M. 1992. op. Cit. p.120
16
TORGA, Miguel. A criação do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.12-13
Cansada de tanta objectividade, a imaginação ia impondo os seus direitos. E
quase sem eu dar conta, quando fui a ver, ao lado desse livro aplicadamente
descoberto, tinha outro ludicamente inventado, onde uma fauna estranha se
17
movia a cumprir com romanesca naturalidade as leis da vida e da morte.
17
ROCHA, 1996. Op. Cit., p.535
18
TORGA, Miguel. 1995, op. Cit. p. 1786.
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei,
E caísse de pé, num desafio.
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
REFERÊNCIAS
GASS, William. A arte do self. Folha de São Paulo, 21 agosto 1994, Mais, p.6-4
LEJEUNE, Philippe. “Le Pacte autobiographique”. In: Poétique. Paris: Seuil, 1973.
LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. 3 ed. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1939.
TORGA, Miguel. A criação do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.12-13
WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Trad de Lya Luft. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p 31.
ZAGURY, Eliane. A escrita do eu. ZAGURY, Eliane. A escrita do eu. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, Brasília: INL, 1982.
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
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de vista que pretende atacar. As personagens assumem uma postura retórica, como se
estivessem a enunciar uma grande verdade, mas o próprio modo como proferem seus
discursos – a entonação, o uso de determinadas palavras, a gesticulação, a emoção
envolvida–, acaba por sinalizar o despropósito do que é dito. A narrativa, assim, apela
para a conivência do seu interlocutor, para a sua capacidade de detectar a
incredibilidade do que está sendo explicitamente defendido pelas personagens e, por
conseguinte, de valorizar a relevância do ponto de vista implicitamente defendido.
Em A costa dos murmúrios, esse recurso é usado na construção de personagens
do comando do exército português atuante em Moçambique, no decorrer da guerra
colonial. No episódio intitulado Os gafanhotos, que abre o romance, os soldados
assistem ao casamento de um dos alferes, no terraço do hotel Stella Maris, enquanto,
embaixo, na costa marítima, acumulam-se corpos envenenados de negros. Em meio ao
cortejo que observa os corpos negros através de binóculos, o major defende: “Por mim,
mataram-se à catanada e foram-se atirando ao mar. Só quem desconhece as matanças
sazonais, não aventa essa hipótese como a mais provável”v. Diante do carregamento dos
corpos em caminhões de lixo, ele ainda insiste: “porque não admitir que os povos
autóctones daquela terra não se quisessem suicidar? E não seria um gesto nobre?
Suicidarem-se colectivamente como as baleias, ao saberem que nunca seriam
autônomos e independentes? Nunca, nunca, até o fim da terra e da bomba nuclear?”vi.
Mas quem oferece a versão definitiva do fato é mesmo o capitão das “imensas
condecorações”. “Como não haveria de saber?”, esclarece o narrador, “Tinha a camisa
de algodão aberta, já transpirando àquela hora, e via-se-lhe sob a camisa uma profunda
cicatriz”. O capitão afirma:
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beberam; e distribuíram”), nas perguntas insistentes (“porque não admitir que os povos
autóctones... não se quisessem suicidar? E não seria um gesto nobre? Suicidarem-se
colectivamente...? Nunca, nunca, até o fim da terra e da bomba nuclear?), na
comparação absurda (suicidaram-se como as baleias), no vocabulário estranho (blacks,
catanada, lerpar2). Esse tom de autoridade entra num evidente contraste com o que é
defendido, pois o mais provável não era que os negros tivessem se suicidado em massa,
nem mesmo que tivessem confundido vinho branco com veneno.
No final do romance, já quando é Eva Lopo quem narra a história, tendo os
soldados retornado da guerrilha, um jornalista pergunta ao General “Mas será que não
se pode já falar em pacificação absoluta?”, ao que ele responde:
2
Segundo o sociólogo Luís Graça, que participou da guerra colonial: “a palavra lerpar era utilizada pelas
nossas tropas, da Guiné a Moçambique, com o mesmo sentido de perda: morrer, ser ferido, perder
qualquer coisa, apanhar um castigo, ser escalado, etc.” Disponível em:
<http://blogueforanada.blogspot.com/2004_05_09_archive.html>. Acesso em: 13 de nov. de 2009.
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faz parte do Planeta, o Além-Mar é Tão Portugal quanto o solo pátrio do Aquém,
estamos pisando solo de Além-Mar, estamos pisando Portugal Eterno!”ix.
Novamente, o exagero com que defendem sua opinião, o tom afetado com que
discursam (do qual são marcas interjeições, exclamações, perguntas retóricas) são
incoerentes com as ideias que estão a defender, incoerência cuja percepção é estimulada
pelos comentários “sacanas” da narradora (“o General não tropeçava numa única sílaba
de tal modo a verdade se impunha e a realidade borbotava” e “as flores ondulavam sob
o seu sopro”, como também fez o narrador de Os gafanhotos, ao se referir à “cicatriz”
do capitão das “imensas condecorações”), que ridicularizam a postura das personagens.
Na fala do General, a violência física e cultural extrema que ele mesmo deixa entender
invalida qualquer possibilidade de “pacificação absoluta”, como tão apaixonadamente
defende.
Desse modo, no palco da guerrilha, os mais altos comandantes portugueses
parecem estar a representar, tentando convencer aos outros e a si mesmos da sua nobre
missão em África e da dignidade de seus feitos. A ironia permanece porque a falácia
não é acusada diretamente pelo narrador, nem as opiniões defendidas são retificadas por
outras personagens. Pressupõe-se, no entanto, que o conteúdo desses enunciados seja
exatamente aquele de que o Emissor discorda. É o “contrato” estabelecido entre
Emissor e Receptor que subverte o discurso oficial vigente sobre a guerra colonial,
restando as performances das personagens desmascaradas em seu preconceito, covardia
e perversidade.
De maneira muito semelhante é construída grande parte das personagens do
romance O vento Assobiando nas gruas. Nessa narrativa, a diegése se estrutura sobre a
representação de dois núcleos familiares: uma família de portugueses, brancos e ricos
(os Leandro) e uma família de cabo-verdianos, negros e pobres (os Mata). A ironia recai
sobre ambos os núcleos familiares, acusando, todavia, diferentes problemáticas.
A velha matriarca da família Leandro morre enquanto seus filhos estão
espalhados pelos mais procurados pontos turísticos da terra. Ao retornarem das férias,
preocupados apenas com as publicações da imprensa local, que davam ênfase ao fato de
a mãe ter morrido só e abandonada, os filhos buscam a todo custo achar um culpado.
Afonso, o advogado da família, chega ao absurdo de pôr a responsabilidade na mãe:
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eu sabia que um dia ela iria tramar qualquer coisa [...] Ela quis que
parecêssemos maus. Maus filhos, péssimos filhos [...] A mãe foi a
responsável. E não foi para me castigar a mim, que a via muito pouco.
Ultimamente eu nem vinha aqui a casa, sequer. Foi para culpar vocês. Ela
quis demonstrar urbi et orbi como vocês a tinham abandonado em pleno mês
de agosto. Más filhas. Percebem? Pode não ter agido com o raciocínio, mas
fê-lo com o instintox.
O tio a repetir aquelas linhas, revoltado, emocionado – “Pois aqui está, aqui
está, esta prosa barroca, toda às curvas e contracurvas, afinal era da autoria
deles... Foram eles que tramaram tudo, desde o início”. O tio relia a passagem
das setas e dos raios, com o alvoroço de quem descobre uma teoria
revolucionária. [...] O tio Rui Ludovici, engenheiro autarca, sentado no sofá
espanhol, a descobrir o cerne da maldade do Mundoxi.
Em outro exemplo, Afonso Leandro está a explicar, ao holandês Van den Berg,
com o qual negociava a venda da Fábrica de Conservas Leandro, a trajetória de sucesso
daquele lugar. A fábrica fora inaugurada por seu avô:
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Os recursos são muito semelhantes aos usados nos exemplos de A costa dos
murmúrios: tom emocionado, vocabulário estranho (por exemplo, bibinhos, urbi et
orbi), interrogações (“percebem?”, “está a ver?”), repetições (“jamais...jamais”), etc;
sem falar nos comentários da narradora (“O tio a descobrir o cerne da maldade do
mundo”, “fazendo oscilar a chama das velas com o ímpeto de suas palavras”).
Isso faz desconfiar do que as personagens estão dizendo e detectar o quando
simulam ou dissimulam a realidade, sempre com o interesse de afastar as
responsabilidades e negar a culpa. Na família Leandro, a única exceção é Milene, a
moça oligofrênica, que vê com a naturalidade e a franqueza dos loucos, cujo ponto de
vista, por isso mesmo, não é considerado capaz de suplantar a opinião do prefeito:
enquanto o tio Rui via ligações medonhas entre os fatos, ela “não conseguia ver
qualquer ligação entre as palavras do padre, dirigidas a favor da avó Regina, naquele
domingo de Agosto, e o horrível desmaio que estava a dar ao tio. E que tudo isso
passasse por bispos e maratonas, ainda muito menos”xiii.
A visão distorcida dos acontecimentos também permanece no núcleo familiar
dos cabo-verdianos. Enquanto esperava para assistir ao show do filho Janina, que seria
transmitido pela televisão instalada no pátio, Felícia Mata abraçava e beijava Dona
Milene Leandro, bradando, aos vizinhos, que também vieram de África, que em sua
família era natural beijarem-se pessoas de todas as cores, conforme a lição de Jamila
Mata. Tal lição “Era muito simples”, fora tirada do escândalo ocorrido com a bisavó
Jamila, enganada pelo francês Normand. Depois de detalhar a história da bisavó, que
salvara a vida do náufrago francês e que fora abandonada grávida pelo mesmo, Felícia
Mata conclui inesperadamente:
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Ainda bem que tinham sofrido a traição do Normand, ainda bem, dizia
Felícia no meio do pátio. A grande lição aprendida resumia-se numa sentença
simples, uma frasesinha que organizava o mundo como nenhuma outra. Nem
na Bíblia se encontrava uma página tão esclarecedora [...] Felícia a recitar
como se a lição de Jamila fosse um salmo – “Em assunto de cama e de pilim,
é assim – branco com branco, preto com preto, pobre com pobre e rico com
rico...” [...] Duvidavam? Então como se explicava o sucesso de Janina? O
sucesso de viverem naquela casa, com água e luz por todos os lados? Os
Mata a serem bem recebidos por toda a gente? – [...] quando se tem a
segurança de que uns dormem para um lado, outros para o outro, sem
incomodar, toda a gente pode ser amiga, abraçar e beijar uns aos outros, sem
problema nenhum. Pode trabalhar junto e até viver junto. Todos irmãosxiv.
Diante da “apoteose do filho na televisão”, que aparece por dois minutos e canta
em inglês, Felícia diz a Ana Mata, sua mãe: isso “era a justiça que chegava com cem
anos de atraso. Era a justiça feita à família Mata que se estendia a todas as outras
famílias iguais. Eram os encarcerados das ilhas pobres do Terceiro Mundo, saindo da
fome e da sede, directamente para a televisão. A sua vida a ser difundida até aos confins
do mundo e das esferas”xv.
Não parece inadequada a lição que Felícia tira de tamanha violência? E mais
inadequada ainda, a maneira como expõe tal lição, aos brados, no meio do pátio, como a
recitar um salmo? Ainda, não parece inconveniente a emoção exagerada da mãe e a
generalização extrema que faz – passando da exposição do filho na mídia à justiça da
história para com os negros –, diante do fato de Janina aparecer no vídeo por tão pouco
tempo e ainda cantar em uma língua que ela não entende?
No caso da família Mata, sugere-se a ingenuidade com que aceita as “migalhas”
da cultura estrangeira e dominante, e o deslumbramento com que absorve justamente as
coisas que negam a sua cultura de origem. Esse modo de entender os fatos da família
cabo-verdiana só é subvertido mesmo pela velha Ana Mata, ironicamente, como Milene,
a que em tese seria a menos lúcida. Ana Mata percebia: aqui “desaparecemos todos, que
não escapa nenhum...”xvi. “O problema era esse – a sua gente tinha-se afogado em
coisas, enquanto a casinha, para além do mar, se destelhava”xvii. “Eram escravos disso
tudo, e por isso escravos dos lugares onde essas coisas todas estavam”xviii.
Enfim, o romance jorgiano costuma representar situações por demais absurdas
(o que dizer de uma festa de casamento no alto de um hotel em plena guerra colonial, de
soldados a dançarem inebriados e a contemplarem o espetáculo da mortandade negra
por meio de binóculos?), comportamentos por demais estranhos, sem que tais condições
sejam combatidas ou revertidas diretamente por outras personagens ou pelo narrador.
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Esse tipo de contradição irônica, sinalizada nos exageros que carregam os discursos das
personagens ou, algumas vezes, pelos próprios comentários irônicos dos narradores,
contribui para gerar um estado de inconformidade no leitor, para incitar o lamento e a
revolta pelo tipo de visão do mundo representado, reclamando a reposição da justiça que
não é feita dentro das páginas. Como afirma a própria Lídia Jorge, um bom livro é
aquele cuja história tem tanta força que nos deixa para sempre atraídos pela sua beleza e
incomodados pela imperfeição do que acontece.
REFERÊNCIAS
CULLER, Jonathan. Structuralist poetics. London: Routledge and Kegan Paul; Ithaca:
Cornell University Press, 1975.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. São Paulo: Alameda, 2006,
FERRAZ, Maria de Lourdes. A ironia romântica. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1987.
JORGE, Lídia. O vento assobiando nas gruas. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
______. A costa dos murmúrios. Lisboa: Dom Quixote, 1988.
NOTAS
i
FERRAZ, 1987, p.20
ii
CULLER, 1975, p. 154.
iii
FERRAZ, 1987, p. 21.
iv
A maneira de classificar o recurso utilizado por Lídia Jorge baseia-se na explicação de Lélia Parreira
Duarte (2006, p. 20-22) para esse tipo de ironia.
v
JORGE, 1988, p. 19.
vi
Idem, p. 20.
vii
Idem, p. 23.
viii
Idem, p. 231.
ix
Idem, 213.
x
JORGE, 2002, p. 134.
xi
Idem, p. 389.
xii
Idem, p. 286.
xiii
Idem, p. 390.
xiv
Idem, p. 230.
xv
Idem, p. 335.
xvi
Idem, p. 346.
xvii
Idem, p. 347.
xviii
Idem, p. 348.
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INTRODUÇÃO
∗
Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Centro Universitário
Augusto Motta (UNISUAM).
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A escritora Inês Pedrosa iniciou sua produção literária com a obra Mais ninguém
tem, publicada em 1991. Integrando a coleção “Primeiras Histórias”, voltada para o
público infanto-juvenil, a narrativa focaliza a busca de uma menina e um menino por,
respectivamente, um par de sapatos azuis e um chapéu de filmes de aventuras. O
confronto entre o socialmente estabelecido e o desafio de ousar o novo conduz a
narrativa.
O texto inicia-se de forma bastante interessante. No primeiro capítulo, o narrador
dirige-se ao leitor como se ambos, narrador e narratário, participassem da cena.
Apresenta a protagonista e, a seguir, introduz a intriga principal:
Esta menina que vem ali do fundo da sala chama-se Margarida. Hão de
reparar que ela tem uns encantadores sapatinhos azuis. Foi uma verdadeira
aventura, conseguir arranjar aqueles sapatinhos! Uma aventura que a
Margarida recordará para sempre.2
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Eco distingue ainda o leitor empírico, aquele que efetivamente lê o texto, do leitor-
modelo, “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas
ainda procura criar.”5. O autor citado desenvolve a idéia de um leitor-modelo de
primeiro e de segundo nível. O primeiro é movido pela intriga, desejoso de conhecer o
desfecho da história. O segundo, é o “que se pergunta que tipo de leitor a história deseja
que ele se torne e que quer descobrir precisamente como o autor-modelo faz para guiar
o leitor.”6.
Na obra de Inês Pedrosa, observa-se o emprego do flashback como estratégia
narrativa. A história começa em ultima res: de antemão, o leitor já sabe que Margarida,
a heroína, atingirá seu intento, importando mais destacar o caminho percorrido. A
estruturação narrativa abre mão do suspense em relação ao fato de a menina conseguir
ou não os sapatinhos ao final da história, interesse apenas do leitor-modelo de primeiro
nível, de que o autor-modelo prescinde. O suspense se instaura por outros caminhos,
principalmente em relação à trajetória desenvolvida pela personagem principal. Há uma
“aventura”, vivida e para sempre recordada por Margarida, a ser descoberta pelo leitor
na leitura das páginas da obra. Além disso, o leitor é ainda enlaçado por um enigma:
“Dentro dos sapatos azuis havia dois segredos. Não há nada mais bonito e importante do
que um segredo. A não ser, evidentemente, dois segredos.”7. A curiosidade se instala,
projetando o leitor à página seguinte, na busca de partilhar, pela leitura, da experiência
vivida pela personagem na história. O autor-modelo vai lançando seus fios.
Os capítulos que se seguem a essa introdução apresentam o conflito que acionará
a ação. De um lado, o mundo usual e rotineiro que impregna a vida das pessoas, em
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Esta última descrição foge à objetividade inicial de apenas formular a cor. Há uma
“aura” de magia e encantamento impregnando os sapatinhos: de um lado, o mistério e a
escuridão – o desconhecido – da noite; de outro, o calor e a vida que marcam a estação
mais quente do ano; unindo as duas imagens, o céu, que, nas noites de verão, permanece
claro por mais tempo. No sexto capítulo, mais um dado: “lindos sapatos azuis, que é a
cor dos meus olhos e da água da piscina da tia Felicidade.”15, afirma a menina,
momento em que o narrador permite uma espécie de solilóquio, aflorando o pensamento
da personagem principal em primeira pessoa.
Do capítulo sete ao doze, há uma grande digressão, cujo objetivo parece ser
clarificar mais ainda o hiato entre o mundo adulto e o infanto-juvenil, através da
intromissão do autor-modelo, que se dirige ao leitor: “Bom, talvez seja melhor explicar
que a piscina”16. Os pais são vistos como cerceadores e “chatos” pela menina, pois lhe
permitem fazer poucas coisas dentre o que ela gostaria. A tia Felicidade é a exceção.
Como o próprio nome assegura, ela é a realização da “festa” para Margarida, efetivando
transgressões – “Até parecia que eram as duas da mesma idade”17. Na companhia da tia,
que não tem filhos, Margarida permanece na piscina até tarde, toma sorvetes, conversa e
passeia com ela, único adulto a não ter medo. Do ponto de vista da menina, focalização
até agora privilegiada pelo narrador, há uma crítica ao imobilismo, à desconfiança e à
inveja dos adultos: “Tudo os assustava: o dinheiro, os amigos, o patrão, o fim do mês,
os amigos dos amigos.”18. Em momento algum se justifica toda a carga de
preocupações, ou mesmo de cuidados, que inunda a vivência dos pais. A focalização,
restritiva, concentra-se na menina, estabelecendo a cumplicidade com um possível leitor
empírico, com uma idade próxima à da protagonista ou vivenciando as mesmas
situações. A identificação é facilitada pelo fato de essa idade não ser claramente
definida. Pelo tamanho, Margarida parece uma criança; pelos conflitos vividos com o
aparato ideológico das personagens adultas, ela aproxima-se dos adolescentes. De certa
forma, a narrativa configura um leitor-modelo, que existe no texto e é por ele
determinado:
uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas
ainda procura criar. Um texto que começa com “Era uma vez” envia um sinal
que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve
ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que
extrapola o sensato e o razoável. 19
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dedicação do menino ao balé, atividade sobre a qual ainda paira o preconceito com
relação à figura masculina; a frase garante, assim, a inserção do balé como atividade
natural ao mundo masculino.
No sótão, estavam os sapatinhos azuis desejados. Haviam sido de Ana – alguém
os deixara à sua porta, já menina crescida, com um bilhete: “Calça-os e dança”30 - , mas
serviriam, anos depois, à filha, Sílvia, que agora não mais precisava deles. A próxima
herdeira era, portanto, Margarida.
Resolvida a procura pelos sapatinhos, “O chapéu é que era mais difícil.”31.
Nicolau não pode ajudar: o seu era de cowboy, bem diferente do que desejava Bruno.
Intervém o pai:
E assim termina a história. Uma certa magia cerca esse desfecho, ainda que só
alcançável graças à persistência e ao empenho das crianças na obtenção do que
desejavam. Se os sapatinhos da cor do céu das noites de Verão já estavam no sótão,
meio que à espera de Margarida, o aparecimento deles naquela família está imerso em
certo mistério, remetendo às profecias das histórias antigas: alguém os deixara ali, com
um bilhete, cujo conteúdo reforça a idéia de alegria, de festa e aventura. O chapéu,
‘sólido’, assinala simbolicamente a necessidade de construir aquilo com que se sonha,
necessidade de se efetivar o desenho que vai na alma. O maravilhoso presente no
desfecho da narrativa remete aos contos de fadas.
Chegando-se ao final da história, recupera-se o início, em que Margarida já é a
portadora dos sapatinhos: “Dentro dos sapatos azuis havia dois segredos. Não há nada
mais bonito e importante do que um segredo. A não ser, evidentemente, dois segredos.
Mas antes de procurar aqueles sapatos da cor do céu das noites de Verão a Margarida
não sabia estas coisas.”33. A história assinala, portanto, uma aprendizagem – pessoal,
intransferível, única, “Mais ninguém tem”. O suspense se instaura por outros caminhos
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As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples,
porque as crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de
usá-las complicadas. Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca
fui capaz de aprender, e tenho pena. Além de ser preciso saber escolher as
palavras, faz falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito
explicada, uma paciência muito grande – e a mim falta-me pelo menos a
paciência, do que peço desculpas.
Se eu tivesse aquelas qualidades todas, poderia contar, com pormenores,
uma linda história que um dia inventei, mas que, assim como a vão ler, é
apenas o resumo de uma história, que em duas palavras se diz... Que me seja
desculpada a vaidade se eu até cheguei a pensar que a minha história seria a
mais linda de todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e
princesas encantadas... Há quanto tempo isso vai!
Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma aldeia. (Agora
vão começar a aparecer algumas palavras difíceis, mas, quem não souber,
deve ir ver no dicionário ou perguntar ao professor.).36
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paradigma que aprisiona a infância em uma visão por vezes infantilizante, que a
debilita.
O autor-modelo manifesta a intenção de escrever a mais linda de todas as
histórias “que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas
encantadas...”. Esse autor-modelo vai conduzindo o leitor-modelo quanto ao texto que
pretende apresentar, também de certa forma evitando frustrá-lo com uma obra aquém do
que poderia escrever. Percebe-se, no texto, a referência a um paradigma que remete à
tradição das narrativas maravilhosas, modelo que pretensamente seria ultrapassado por
essa nova “História para crianças”: “a minha história seria a mais linda de todas as que
se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas...”. A
exclamação a seguir, ambígua, - “Há quanto tempo isso vai!” – pode referir-se ao tempo
do desejo do autor-empírico ou dos contos de fadas, tempo muito passado, passível de
ser superado.
O comentário desse autor encerra a obra, configurando autor e leitor,
cumplicidade novamente restaurada no texto para crianças – e ausente no de crônicas:
Este era o conto que eu queria contar. Tenho muita pena de não saber
escrever histórias para crianças. Mas ao menos ficaram sabendo como a
história seria, e poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais simples
do que as minhas, e talvez mais tarde venham a saber escrever histórias para
crianças...
Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me
lês, mas muito mais bonita?... 37
Ao final, o autor afirma seu querer. Se não escreveu a história que ele queria,
terminou por contar a que queria. É como contador de histórias que se configura esse
autor-modelo, com todo o direito de interagir com seu leitor-modelo, convidando-o a
que se transforme em autor, num claro apelo à intertextualidade, característica da
estética da recepção – estratégia também utilizada pelo autor empírico ao resgatar a
marca da oralidade que está na origem dos contos de fadas. E, afinal, A maior flor do
mundo é também ela uma “História para crianças” recontada e reescrita.
Mas... e a história do conto? E o herói que sai de casa? Passemos, pois, a ela,
idêntica em um e outro texto, cuja narração repousa sobre um narrador que em muito se
aproxima do existente nas narrativas tradicionais. O menino empreende uma viagem,
como os heróis das narrativas maravilhosas. Sai, porém, pelos fundos do quintal,
chegando ao limite do terreno conhecido, carecendo de enfrentar, sem retórica ou
literatura, a grande questão, “ser ou não ser?”, aqui correspondendo a “Vou ou não
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vou?”. Diz-nos o narrador que ele foi. Não segue o rio, caminho já conhecido. Chega à
colina, sobe a encosta e o que vê? “Nem a sorte, nem a morte, nem as tábuas do
destino...”, afiança o narrador, recuperando a fala popular. O que há no topo da colina é
uma flor: “tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este
menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor.”38. O narrador conta a
dificuldade de o menino ir pegar água ao rio tão distante, lançando mão novamente de
“efeito literário” que lhe permite exagerar as dificuldades.
Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de
milagre.
Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia
para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que
todos os tamanhos.
E essa é a moral da história.
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uma obra que lhe narre os feitos, tal como este conto, história contada e registrada, por
escrito, imortalizada por ser literatura. Apenas isso, literatura, independente de seu
adjetivo - portuguesa ou infantil -, e, por isso, definitiva.
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
BRAGA, Teófilo. Contos tradicionais do povo português. 4. ed. Lisboa: Dom Quixote,
1998.
CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Ed. organizada por Emanuel Paulo Ramos. Porto:
Porto, 1974.
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CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil : Teoria – Análise – Didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
______. O conto de fadas: símbolos mitos arquétipos. São Paulo: Difusão Cultural do
Livro, 2003.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. 8ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
______. A maior flor do mundo. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2001.
NOTAS
1
Apenas para citar alguns trabalhos, destacamos:
MICHELLI, Regina Silva. Literatura Infanto-Juvenil: perspectivas no ensino superior. In: SANTOS,
Leonor Werneck dos; MADANÊLO, Cristiane; GENS, Rosa (org.). Encontro de Literatura Infantil e
Juvenil. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008.
______. A Literatura Infanto-Juvenil nas tramas do tempo. CaSePEL Caderno do Seminário Permanente
de Estudos Literários. Rio de Janeiro, v.03, p.6-16, 2007. Disponível em:
http://www.dialogarts.uerj.br/casepel/casepel_3.pdf
2
Pedrosa, 1991, p.9.
3
Coelho, 2000, p.152.
4
Eco, 2004, p.21.
5
Eco, 2004, p.15.
6
Eco, 2004, p.33.
7
Pedrosa,1991, p.9.
8
Pedrosa,1991, p.13.
9
Pedrosa,1991, p.12.
10
Pedrosa,1991, p.12.
11
Pedrosa,1991, p.12.
12
Pedrosa,1991, p.13.
13
Pedrosa,1991, p.9.
14
Pedrosa, p.9-10.
15
Pedrosa,1991, p.15.
16
Pedrosa, 1991, p.16.
17
Pedrosa,1991, p.20.
18
Pedrosa,1991, p.22.
19
Eco, 2004, p.15.
20
Pedrosa,1991, p.24.
21
Pedrosa,1991, p.32.
22
Pedrosa,1991, p.38.
23
Pedrosa,1991, p.38-39.
24
Pedrosa,1991, p.39.
25
Pedrosa,1991, p.41-42.
1061
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26
Pedrosa,1991, p.45.
27
Pedrosa,1991, p.47.
28
Pedrosa,1991, p.16.
29
Pedrosa,1991, p.52.
30
Pedrosa,1991, p.51.
31
Pedrosa,1991, p.52.
32
Pedrosa,1991, p.54-55.
33
Pedrosa,1991, p.9-10.
34
Pedrosa,1991, p.9.
35
Eco, 2004, p.12-13.
36
Saramago, 2001, s.p.
37
Saramago, 2001, s.p.
38
Saramago, 2001, s.p.
39
Camões, 1974, p. 53. Lus.I, 2, vv.5-6.
40
Coelho, 2000, p.109-110; Coelho, 2003, p.113-114; Propp, 2003, p.80-81.
41
Saramago, 2001, s.p.
42
Bauman, 2000, p.85.
43
Bauman, 2000, p.85.
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N’ an laara, an saara.
(Se nos deitarmos, estamos mortos.)ii
i
Professora Doutora / Universidade Federal Fluminense.
ii
KI- ZERBO, (2006), p. 06.
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conseqüente declínio do império colonial português, no qual não há mais ilhas a serem
descobertas.
O desejo manifesto da viagem, da mudança espacial, é representado na firme
decisão do homem que queria um barco. Ancorado à porta do palácio, convence não só
o Rei a lhe dar o objeto pretendido mas também a mulher da limpeza a acompanhá-lo,
pois segundo ela, “as portas que realmente queria já foram abertas”ii.
Os dois seguem na busca pela ilha desconhecida, apesar de todos os
pensamentos em contrário; ligados pelo sonho, o homem e a mulher nomeiam a
caravela que os abrigará a partir de então. Ao final do relato, barco, ilha e narrativa,
ambiguamente nomeados, simbolizam o novo, o lugar possível que una e já não separe.
Retomando o texto de A jangada de pedra, “[p]ara que as coisas existam duas
condições são necessárias, que homem as veja e homem lhes ponha nome”iii. Segundo
Boaventura de Sousa Santos, “estamos numa época em que a contingência parece
sobrepujar a determinação”iv, daí a necessidade de uma linguagem que dê conta dessas
contingências modernas, que retrate os deslocamentos e impossibilidades da vida do
homem moderno, estes novos marinheiros. A ilha, ao ser nomeada se faz ao mar a
procura de si mesma.
Os discursos totalizantes que norteavam a vida no passado, a História, a
filosofia, a religião, discursos hoje revistos ou repensados, são postos à prova por fatos
que envolvem a passagem do século, e do milênio, assim como o homem deseja por à
prova a cartografia existente. Transformações, rupturas, supressão de antigos valores,
surgimento de novos conceitos, a mudança no modo pelo qual se organiza a percepção
humana é condicionada historicamente. Não há mais mares a desbravar em nossa
percepção de um mundo globalizado, mapeado, monitorado e traduzido pelas novas
tecnologias.
Saramago subverte esta percepção ao construir histórias acrônicas e atópicas
que, em sua maioria, podem refletir a vida de qualquer um e de todos nós, homens dos
fins do século. O centro, o ponto de partida ou de chegada para estes homens podem ser
todos e qualquer um afinal, como buscar o centro no mundo caótico e descentrado da
contemporaneidade?
A vida na modernidade perdeu o fio de orientação, perdeu a rota com a falência
dos discursos totalizantes que a “definiam” e norteavam. O sujeito moderno encontra-se
à deriva, náufrago em busca de terra firme, um lugar que o receba e que seja recebido
por ele como seu. A terra prometida não está mais localizável em um único ponto do
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globo, mas pode estar em qualquer um ou em nenhum lugar, depende dos olhos de
quem vê. Os novos viajantes da obra de José Saramago; vivem a buscar um caminho,
uma verdade, uma procura que “transformou-se por sua vez em outra procura que, no
fundo, é sempre a mesma: a procura do outro”v. O eu e o outro, gêmeos modernos que,
separados, buscam se reconhecer para, enfim, conhecerem a si mesmos.
Essa busca envolve deslocamentos, mudanças no ponto a partir do qual se olha,
viagens pelo mar, pela terra, pelo ar ou para dentro de si. Uma península que viaja mar
afora com os habitantes de dois países, pode ser a saída para um povo que não se vê na
Europa; ou um barco-ilha carregando dois tripulantes a sonharem com o desconhecido
num tempo em que se imagina tudo já visto e nomeado, uma opção entre a fixidez que
nos impossibilita ver um futuro, um novo horizonte. É necessário sair da ilha para ver a
ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós”vi
A recorrente viagem, no conjunto da obra do autor, configura-se rota possível
diante dos males que nos atingem neste fim de século. O deslocamento, neste caso, pode
não se fazer nem só por mar que se acabou nem por terra que ainda espera, mas dentro
da cabeça desses homens.
A travessia que se tenciona empreender em busca da ilha desconhecida pode ser
vista como a última utopia do século XX, sem um nome que a distinga ainda, pois, “os
nomes das utopias são sempre semi-cegos porque só vêem por onde se caminha e não
para onde se caminha”vii.
A rota proposta por Saramago, ao retomar o tema das navegações e o princípio
do império colonial, nos leva ao continente africano e seus espaços ficcionais, nos quais
múltiplos caminhos se cruzam, se assemelham e se distanciam. É num cenário de
transição, entre a guerra e a paz, entre as tradições e as inovações da modernidade, entre
a África ancestral e a crescente globalização que as narrativas se desenvolvem,
espelhando a sociedade angolana, tal como esta se apresenta no final do século XX e no
início do século XXI. As obras focalizam a virada do segundo para o terceiro milênio no
espaço discursivo da ficção angolana, suas interpretações e questionamentos,
empreendendo uma revisitação da história e uma re-configuração dos papéis sociais
inseridos na contemporaneidade narrativa. Viagem pelo ar e pela terra, relatos que
somados ao conto nos mostram a não fixidez das subjetividades no espaço das
Literaturas em Língua Portuguesa.
Manuel Rui, em Um anel na areia: estória de amor, aborda o relacionamento
amoroso de um jovem casal luandense. Apesar de narrado em 3a pessoa, o texto traz
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recriada a oralidade dos falares de Luanda para o discurso romanesco, seguindo a trilha
aberta por Luandino, nos anos sessenta. A narrativa privilegia a figura de Marina, que
vivendo as incertezas da juventude ao lado das impossibilidades trazidas com a guerra,
vê-se num conflito entre a modernidade e as tradições seculares africanas, fundamentais
para que a identidade da jovem seja construída no espaço da contemporaneidade.
As conseqüências de um processo de globalização aliadas à continuidade da
guerra civil fazem com que as personagens da narrativa busquem outros espaços, até
mesmo fora do país. O deslocamento, por meio do vôo alegórico na trama textual,
possibilita a conciliação entre o antigo e o novo, une o jovem casal, levando-os a
ultrapassar os obstáculos e a gerar uma nova vida, fruto dessa nova configuração
espaço-temporal.
Nesta travessia, o espaço ganha os ares e atinge a leveza de uma carícia com a
estória de um amor lançada aos ventos. Diante das impossibilidades deixadas pela
colonização e pelas guerras travadas no país, conseqüências de um processo histórico
ainda em curso, o escritor angolano Manuel Rui dá a seus jovens compatriotas, no
romance Um anel na areia: estória de amor, a possibilidade de novos horizontes. À
inércia que assola parte da população de Luanda, contrapõe o deslocamento aéreo como
um novo ponto de partida, um recomeço a partir da elevação do universo ficcional.
Citando Ítalo Calvino,
[c]ada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para
mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se
trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. Quero dizer que
preciso mudar de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob
outra ótica, outra lógica, outros meios de conhecimento e controle.viii
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aéreo, pela leveza de um avião de papel lançado aos ares num gesto de amor. Tendo a
maioria dos caminhos bloqueados, tornou-se imperiosa, para as personagens, a
construção de novas trilhas, de novas rotas.
A narrativa propõe uma viagem aérea. Para Benjamin Abdala Junior, “[a]
ascensão — isto é, a imaginação — pode propiciar a compreensão do enigma,
desvendando-o em suas linhas estruturais, isto é, decifrando e relativizando o que era
considerado indecifrável”xii. O indecifrável, aqui referido, é o caminho encontrado para
essa conciliação, o equilíbrio entre a modernidade e as tradições.
Entretanto, como o pesquisador salienta, “vale a pena sonhar com a
possibilidade do vôo, mas é importante saber descer, mesmo que seja em ilhas,
preservando a inteireza dos gestos que motivaram o vôo”xiii. Calvino alerta que “[a]s
imagens de leveza (...) não devem, em contato com a realidade presente e futura,
dissolver-se como sonhos”xiv e, sim, representar uma atitude perante a realidade, uma
saída nesse labirinto de caminhos minados. Os sonhos aéreos tornam livres todas as
imagens, tornam-nas modificáveis a partir da mudança de ótica, de lógica que as re-
ordene.
Nessa travessia aérea, um novo posicionamento diante da cultura é proposto pela
juventude representada, na narrativa, por Lau, Gui e Marina. Estes jovens desejam
mudar de posição, modificar seu ponto de observação e, paralelamente, modificar o
cenário no qual se inserem. Personagens que almejam não apenas atingir outro espaço,
mas construí-lo, participar efetivamente de sua organização, política, cultural e social,
desejam tal qual o homem e a mulher do conto saramagueano, construir seu barco/ilha,
seu espaço em trânsito permanente.
Esses relatos de viagens a ilhas desconhecidas nos levam, agora, a uma viagem
ao sul do país, a observar os contornos e relevos de uma região marcada pela
mobilidade, ao discurso narrativo de Vou lá visitar pastores: exploração epistolar de
um percurso angolano em território Kuvale (1992-1997), romance do escritor Ruy
Duarte de Carvalho, publicado em 1999.
Vou lá visitar pastores descreve a experiência do antropólogo junto aos pastores
nômades do sul de Angola. Aliando o discurso antropológico ao ficcional, o
autor/narrador se apresenta como testemunha dos fatos narrados e lança sobre eles sua
interpretação. Exemplo de uma ficção contemporânea, mescla a observação
antropológica à imaginação poética do escritor. Um romance-ensaio sobre uma minoria
étnica angolana.
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seja através da ironia, seja através do discurso científico. A fragilidade desse presente
histórico, alicerçado sobre discursos manipulados ao sabor dos ventos, reforça a visão
da história como uma construção contínua e perspectivada. As narrativas atribuem a
outros sujeitos, excluídos ou marginalizados, a aquisição de regras de retórica e a posse
de imagens e textos que falam do passado, dotando-os do poder de contar suas versões
da história.
Destarte, as identificações, retratadas são, também, construções que se
narramxxv, que se formulam e re-configuram a partir dos conflitos vivenciados pelas
personagens. O discurso ficcional propõe uma recomposição estrutural das
identificações sociais, inseridas no processo da globalização e testemunhas do
descompasso do contexto histórico-social das narrativas em relação a ela. Os sujeitos
dessa contemporaneidade encontram-se a meio do caminho. Situados num lugar “entre”,
seja da raça, do tempo, ou das classes sociais, traduzem as expectativas desse momento
de transição. Não desejam uma identificação una e homogênea, mas plural e cambiável.
Vistas assim, as rotas narrativas se cruzam e se assemelham na
Sob cada escrita, na ficção, seja por mar, terra ou ar, há uma ilha a ser
conhecida, onde todos os caminhos são possíveis e permitidos.
Cada obra citada focaliza um ângulo da sociedade e história, funcionando como
fragmentos especulares de um bosque ficcional que reflete e repensa a multiplicidade
cultural da contemporaneidade. A ficção representa um espaço de utopia dos encontros,
das conciliações entre as forças que movem essa sociedade. As narrativas encerram-se
com um aceno de esperança para os novos tempos. A caravela, “uma floresta que
navega”, faz-se enfim ao mar, à terra e ao ar, à procura de si mesma.
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REFERÊNCIAS
NOTAS
i
SARAMAGO, 1998, p. 40.
ii
Idem, ibidem, p. 31.
iii
Idem, 1988, p. 67.
1073
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iv
SANTOS, 1999, p. 37.
v
ARIAS, 2003, p. 54.
vi
SARAMAGO, 1999, p. 41.
vii
SANTOS, op. cit., p. 44.
viii
CALVINO, 1990, p. 19.
ix
Idem, ibidem, p. 41.
x
CANCLINI, 2006, pp. 136-7.
xi
SANTOS, op. cit., p. 146.
xii
ABDALA JR., 2003, p. 15.
xiii
Idem, ibidem, p. 09.
xiv
CALVINO, op. cit., p. 19.
xv
CARVALHO, 2003, p. 221.
xvi
Idem, 1977, p. 55.
xvii
BHABHA, 1998, p. 105.
xviii
CARVALHO, 2000, p. 124.
xix
Idem, ibidem, p. 129.
xx
“Sou o espaço onde estou”. ARNOUD, N. L’ état d’ ébauche. Apud: BACHELARD, 1998, p. 146.
xxi
KI-ZERBO, op. cit., p. 17.
xxii
BHABHA, op. cit., p. 27.
xxiii
SANTOS, op. cit., p. 111.
xxiv
BHABHA, op. cit., p. 223.
xxv
Cf.: CANCLINI, op. cit., p. 129.
xxvi
BAUMAN, 1999, p. 259.
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INTRODUÇÃO
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quanto à forma e aos motivos. Este esforço de evitar o confronto, a comparação pautada
no juízo de valor parece-nos mais adequado.
OS MISCRADORES
1
Lausengirs em língua d’oc ou losengiers, em língua d’oïl, designavam, a princípio, os “aduladores”,
depois os “caluniadores”, maldicentes”, ou seja, aqueles que estavam sempre dispostos a denunciar os
amantes para assim obter benefícios do marido (RIQUER, 1992, p. 94).
2
O termo cousidor aparece numa cantiga de Martin Moxa, A 306, “Ja m’eu quisera con meu mal calar, /
mays que farey con tanto cousidor?” (v. 1-2, II). (PICCHIO, 1968, p. 166). Cousir e mescrar e seus
cognatos aparecem já entre os primeiros trovadores conhecidos: em Pay Soarez de Taveirós encontra-se
mescra, “E ja d’esta mezcra [a]tal / de me guardar non ei poder”, (VALLÍN, 1996, p. 197); Fernan Garcia
Esgaravunha também emprega mescrar, “e Deus confonda min por én / e vos, señor, e eles e quen ten / en
coraçon de me vosco mezcrar”, (BARETTA, 1987. p. 83). Para os significado desses termos, veja-se o
VASCONCELLOS, Glossário do Cancioneiro da Ajuda.
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marido ciumento, o que pretendiam então os miscradores?3 Uma resposta possível para
essa pergunta é dada por de Pay Soarez de Taveirós na cantiga A 36:
3
Sobre o motivo dos miscradores, ver Mercedes Bréa (1992).
4
Também para Tavani, o segredo de amor “está logo destinado, na cantiga d’amor, non xa a salvaguarda-
la intimidade dos amantes de entrometementos alleos e a asegura-la supervivencia do sentimento, senón
máis ben a protexer a un deles do ressentimento do outro” (TAVANI, 1991, p. 121).
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Se o poeta sequer atreve-se a confessar seu amor, é justo que evite o assédio dos
curiosos, para que a revelação não se faça por terceiros. Os miscradores são temidos
porque sua interferência visa a “entubiar las relaciones, normalmente causando el recelo
e incluso la aversión de la senhor ante las fervientes declaraciones de quien la ama
profundamente” (BREA, 1992, p. 176).
Da imposição do segredo deriva o motivo dos miscradores, e dele, por sua vez, o
da pregunta5. Essas cantigas tratam do assédio dos curiosos, que desejam saber quem é
a causadora da coita; em contrapartida, o enamorado esforça-se por negar o nome de
amada.
Martin Soares parece ter sido um dos introdutores do tema da pregunta como
motivo principal da canção de amor entre os trovadores galego-portugueses. Esse tema
alcançou êxito entre os freqüentadores da corte castelhana em meados do século XIII,
que, inclusive, o exploraram com matiz burlesco.
A pregunta surge como tema central na cantiga A 48 / B 160, Muitus me vẽem
preguntar, de Martin Soares:
É o receio de causar algum dano à amada que o leva a esconder sua verdadeira
identidade: “con medo de vus pesar en, / nen quer’a verdade dizer”. Para despistar os
curiosos, o poeta dispõe-se a mentir. E assevera que ela não tem nada a temer, enquanto
ele “non perder o sen”:
5
Mercedes Brea demonstra que o motivo do escondit também pode derivar do tema dos miscradores.
(BREA, 1993. p. 175-187. O escondit ou escondich consiste na defesa do trovador diante das acusações
dos miscradores. Na poesia provençal tem-se apenas um exemplo, Ieu m’escondisc, domna, que mal no
mier, de Bertran de Born. (RIQUER, 1992, p. 53; 7430.
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A eminente perda do sen como conseqüência do amor pela dona é por demais
comum6; porém a resolução de mentir, dizendo o nome de outra dona, como solução
encontrada pelo poeta para despistar os curiosos, é uma ponderação bastante razoável,
que se mostrou fecunda.
Essa é também a determinação de Johan Soarez Somesso, na cantiga A 28 / B
121, Ja foi sazon que eu cuidei:
6
Aparece outra vez no cancioneiro do poeta: “Nostro Senhor, como jazco coytado, / morrend’assy en tal
poder d’Amor / que mi tolheu o sen e, mal pecado, / al mi tolh’el de que mi faz peor: / tolhe-me vos, a
que non sey rogar / pola mha coyta, nen vola mostrar, / assi me tem end’amor obridado.” (PIZZORUSSO,
1963, p. 75).
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Nas duas estrofes seguintes, o trovador reitera essas idéias com pequenas
variações: em uma revela que a intenção dos curiosos era intrigá-los: “Pero punham de
m’apartar, / se poderan de mi saber / por qual dona quer’eu morrer”; noutra, diz que não
revela aos curiosos o nome da amada, com medo de despertar sua sanha.
Também Joan Airas de Santiago aborda tema similar na cantiga B 942 / V 530:
De me preguntar an sabor
muitos, e dizen-mi por én
com’estou eu con mia senhor;
e direi-vos eu que m’aven:
se disser “ben”, mentir-lhis-ei;
tan mal é, que o non direi.
(...)
Mas, pois d’ela ben non ei,
preguntar-m’an e calar-m’ei. (RODRIGUEZ, 1990, p. 57)
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O poeta opta por “alongar-se das gentes”, para não sofrer o assédio dos preguntadores.
E finaliza, em tom irônico, desejando que os curiosos sofram de mal semelhante:
“Mailo que vai tal pregunta fazer, / Deulo leixe moller gran ben querer / e que ar seja
doutre preguntado”.
Esta seleção de textos sobre os temas segredo / pregunta permite perceber entre
eles uma correlação muito estreita. Todos esses trovadores estavam ativos no século
XIII. O mais antigo é o português Johan Soarez Somesso, que deve ter nascido na
segunda metade do século XII, mas ainda atuava no segundo quartel do século XIII
(OLIVEIRA, 1994, 372-373). Os também portugueses Martin Soares, Joan Garcia de
Guilhade e os castelhanos Pero Garcia Burgalês (BLASCO, 1984, p. 3-13) e Pero
d’Armea (OLIVEIRA, 1994, p. 411) estiveram na corte castelhana por volta de meados
do século XIII. Supõe-se que Galisteu Fernandes (OLIVEIRA, 1994, p. 347-348), como
Joan Airas de Santiago (RODRIGUEZ, 1980, p. 17-21), fosse galego e ativo na mesma
época. Sobre Fernan Gonçalvez de Seabra pensa-se que fosse português e atuante na
corte de Afonso III (OLIVEIRA, 1994, p. 341-342). Considerando a hipótese de que
Martin Soares não ultrapassara a década de sessenta, depois de Somesso, ele é o mais
velho dos trovadores que trataram o motivo da pregunta. Desse modo, pode-se aventar a
hipótese de que ele seja um dos introdutores do tema, porém como motivo secundário,
já que aprece somente na quarta estrofe; Martin Soares o desenvolve, mas como tema
central, Pero Garcia Burgalês retoma o motivo em tom de burla e faz referência ao
ensandecer de Martin Soares. Johan Airas de Santiago afasta-se da idéia de intriga,
substituindo os miscradores pelos amigos; por outro lado, a curiosidade recai sobre o
andamento da relação amorosa e não sobre a identidade da dama.
REFERÊNCIAS
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BELTRÁN, Vicenç. A cantiga de amor. Trad. Xela Arias. Vigo: Xerais, 1995.
BLASCO, Pierre (Ed.). Les chansons de Pero Garcia Burgalês; troubadour galicien-
portugais du XIIIe siècle. Paris: Calouste Gulbenkian / Centre Culturel Portugais, 1984.
BREA, Mercedes. El escondit como variante de las cantigas de amor y de amigo. In:
NASCIMENTO, Airas A., RIBEIRO, Cristina Almeida (Ed.). Literatura Medieval.
ACTAS do Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval, 4 (Lisboa,
1991). Lisboa: Cosmos, v. 4, 1993. p. 175-187.
CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Introd., trad. do latim e notas de Claude
Buridant; trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
GARCÍA-SABELL TORMO, Teresa. Léxico francés nos cancioneiros galego-
portugueses: revisão crítica. Vigo: Galaxia, 1991.
PICCHIO, Luciana Stegagno (Ed.). Martin Moya; le poesie. Roma: Ateneo, 1968.
RIQUER, Martín de (Ed.). Los trovadores: historia literaria y textos. 3. ed. Barcelona:
Ariel, 1992. 3 v.
VALLÍN, Gema (Ed.). Las cantigas de Pay Soarez de Taveirós. Madrid: Universidad
de Alcalá de Henares, 1996.
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VILHENA, Maria da Conceição. A amada das cantigas de amor: casada ou solteira? In:
Estudos Portugueses. Homenagem a Luciana Stegagno Picchio. Lisboa, 1991. p. 209-
221.
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(Benedict Anderson)
Todorov define narrativa insólita como aquela que se enquadra em pelo menos
dois de três dos seguintes postulados: o leitor deve considerar o mundo das personagens
como o de pessoas reais e hesitar entre aceitar uma explicação natural e outra da ordem
do sobrenatural para os acontecimentos enunciados. De acordo com o segundo
postulado, tal hesitação pode ser sentida tanto por algumas das personagens quanto
tornar-se tema central da obra. O terceiro diz respeito à necessidade de um
posicionamento do leitor frente ao texto, aceitando ou não as possíveis explicações para
os fatos ali explicitados. Todorov afirma que tais exigências, muito embora tenham
valores diferentes, costumam aparecer em conjunto.
Sendo assim, uma tênue linha de incerteza e de hesitação torna-se o espaço
ocupado na narrativa pelo insólito a fim de produzir seus efeitos. É através do
estranhamento despertado que temos o relato de acontecimentos com que não nos
deparamos cotidianamente e que, semelhantemente, não são explicados pelas leis que
regem o mundo familiar. Essa é a razão por que Ronaldo Lima Lins afirma que a
insolitude caminha ao lado da necessidade de existência de uma norma a ser quebrada
para, a partir da ruptura, viabilizar-se a construção do universo de sua ação. Ocorre,
portanto, a fragmentação de um critério ou de uma lei através da intervenção de um
elemento aparentemente sobrenatural que se confronta com a exatidão de tudo aquilo
que nos rodeia.
1
Doutor em Literatura Portuguesa pela UFRJ, com pós-doutorado pela UERJ. Professor-adjunto dos
cursos de Graduação em Letras e do Mestrado em Letras e Ciências Humanas da Unigranrio.
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daqueles que não se conformavam aos padrões do mundo de então, numa reação em que
a diferença interroga o cânone.
Após algumas escalas e muito desentendimento, o grupo chega ao Egito, um dos
berços da civilização ocidental, fato que nos leva, numa associação com estudos de
Maurice Halbwachs, a perceber a relevância do espaço como elemento de transmissão
de recordações na busca dos “lugares da memória”, ou seja, daqueles dotados de
representação simbólica na construção do conceito de civilização e desenvolvimento.
Esta é a premissa que nos conduz, de igual modo, ao pensamento crítico de Frances
Yates e sua descrição dos antigos sistemas de memorizações que remontam ao tratado
sobre a Arte da Memória, o Ad Herennium, de 86-82 A.C.. Suas considerações trazem à
tona os dois tipos de memória de que os habitantes de Calpe necessitarão em seu
percurso: a natural e a artificial. O primeiro deles, nascido com o pensamento, é
impresso em nossas mentes através de atos praticados cotidianamente, ao passo que o
segundo – grande justificativa da viagem – depende de exercícios para desenvolver-se,
visto que é mais fácil para a mente recordar imagens ou um espaço físico do que fazê-lo
através de signos abstratos que, até então, eram desconhecidos da grande maioria do
grupo (YATES, 1966, p. 17).
Ao reconhecer tal necessidade, a viagem em que percorrerão não apenas o Egito,
mas também países como Quênia, Etiópia, Itália, França e Alemanha, revela como
estátuas, monumentos, ícones e imagens atuam como elementos essenciais às
identidades, à retenção e à transmissão de recordações como elos entre a lembrança e o
esquecimento a que o desaparecimento da humanidade está fadado.
Entretanto, fazendo valer algumas premissas da ficção pós-moderna e sua estrutura
de espelhamento, mesmo que tenham sido entendidos anteriormente como instrumentos
de um poder centralizador, tais monumentos já não mais aprisionam, passando, no plano
enunciativo, a refletir novas relações entre o ontem, o hoje e o amanhã. Por isso,
Pepetela empreende, tal como Linda Hutcheon (1991, p. 85) enuncia,
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submetido à graduação de uma ordem, seja ela qual for. Para Bourdieu, o poder
simbólico surge para impor significações e legitimá-las. Ao afirmarem-se como
instrumentos de excelência à integração social, os símbolos tornam possível a
reprodução – neste caso, a produção – de uma nova ordem. Por sua vez, a construção do
espaço social privilegia as relações em detrimento da visão comercialista que o atrela a
relações econômicas, ignorando as lutas simbólicas e a posição que cada indivíduo
ocupa em diferentes campos. A distribuição, no entanto, de poderes que a escrita de
Pepetela torna audível em seu romance, sejam eles de viés econômico, cultural, social
ou simbólico –, atua eficazmente na constituição de um mundo literalmente novo, posto
que as muitas vozes que compõem este romance fazem com que a polifonia enunciativa
seja uma representação eficaz dos anseios de cada uma das personagens.
Numa outra perspectiva, contudo, vemos que o desaparecimento da humanidade
acaba por acarretar o caos, visto que a falta de recursos à manutenção das cidades e a
interdição à tecnologia faz com que elas se tornem, gradativamente, desertificadas,
regredindo a um patamar anterior à civilização. Se associarmos esta mudança a escritos
de Richard Sennett, veremos que a relação entre construções arquitetônicas e o corpo
social se dá a partir de conceitos como urbs e civitas, ou seja, a cidade de concreto e a
de carne, respectivamente.
Em urbs, Sennett identifica o agrupamento das construções como resultado de
processos migratórios e, em civitas, descreve a vida social, política e imaginária que se
associa à prática da cidadania. A compreensão de como estes elementos interagem é que
nos faz reconhecer em que medida as cidades correspondem a uma subjetividade
coletiva, visto que “a geometria humana seria um indício de como a cidade deveria ser”
(SENNETT, 2003, p. 95). Daí, vem-nos à mente a etimologia da palavra “civilização”,
oriunda de civitas, que se caracteriza por um nível mais complexo na produção de
alimento, da estratificação social, da vida urbana e de formas estatais de controle que
deixam de existir com o desaparecimento do ser humano.
Por isso, ao situar Calpe como locus enunciativo de seu texto, Pepetela resgata um
topônimo evocado frequentemente em sua obra. A primeira menção surge no romance
Muana Puó, escrito em 1969, porém publicado apenas em 1978, através de referências
que a dissociam do conceito estrito de cidade, isto é, em oposição a um kimbo ou a um
vilarejo. A idéia de organização urbana, ou seja, de urbe, despontará apenas no romance
O Cão e os calus, escrito entre 1978 e 1982 e publicado em 1985, ou seja, no pós-
independência. Nesta obra, o narrador segue os rumos do cão a que o título se refere em
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REFERÊNCIAS
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Vozes, 1998.
FREUD, Sigmund. “O Estranho” (1919). In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, s.d.
LINS, Ronaldo Lima. Literatura e violência. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1992.
NORA, Pierre. Entre Memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo:
Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História, PUC, 1993.
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Herberto Helder publicou A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita em
finais de Setembro de 2008.i Com o subtítulo sugeria, o livro retomava o princípio
selectivo que sete anos antes presidira à elaboração de Ou o Poema Contínuo – Súmula,
de resto reiterando as escolhas já então operadas na obra poética, se bem que com a
inclusão de mais alguns (poucos) poemas.ii
Recordando a “Nota” de Ou o Poema Contínuo – Súmula, pode dizer-se que,
nesta segunda súmula, Herberto Helder voltava a seguir o critério da “escusa das partes
[da poesia toda] que não eram punti luminosi poundianos, ou núcleos de energia
assegurando uma continuidade imediatamente sensível”iii. Mas com uma diferença:
enquanto Ou o Poema Contínuo – Súmula incluía um único poema novo, A Faca Não
1
Universidade do Porto. Esta comunicação foi preparada no âmbito do Projecto "Interidentidades" do
Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
Unidade I&D financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, integrada no Programa Operacional
Ciência e Inovação 2010 (POCI 2010), do Quadro Comunitário de Apoio III (POCI 2010-SFA-18-500).
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Corta o Fogo – Súmula & Inédita termina com um largo conjunto de inéditos (cerca de
73 páginas), reunido sob o mesmo título que designa todo o volume, sendo esse poema
inserido entre os novos poemas.
A primeira e única edição de A Faca Não Corta o Fogo esgotou quase de
imediato. No entanto, poucos meses depois a secção inédita surgia reintegrada em
Ofício Cantante,iv a mais recente versão do livro que Herberto Helder começou por
intitular Poesia Toda e depois Ou o Poema Contínuo e que, como se sabe, tem sido
actualizado de edição para edição, com ajustamentos quer no título, quer no conteúdo.
Em Ofício Cantante, o conjunto de inéditos de A Faca Não Corta o Fogo é acrescido de
mais alguns poemas, o que sugere que, na anterior “súmula & inédita”, também a
secção inédita teria sido objecto do critério selectivo que determina as duas súmulas
herbertianas. Nessa medida, parece legítimo supor que só em Ofício Cantante o
conjunto inédito incluído na segunda súmula de Herberto Helder tenha vindo a ser
publicado integralmente, como um livro em paridade com todos aqueles que o
antecedem no volume.
É a esta versão, que se pode supor integral, com cerca de mais dez páginas do
que a anterior, que se reportam as reflexões a seguir. Chamar-lhe-ei livro pelas razões
que ficam ditas, e porque a sua organicidade é inquestionável. Todavia, não julgo
irrelevante o facto de este livro nunca ter tido existência autónoma e agora encerrar um
volume que é acompanhado pela menção “poesia completa” e que retoma o título da
primeira obra de carácter antológico publicada por Herberto Helder, em 1967. Sempre
apresentado como fecho, tanto desta última organização da “poesia toda” como da mais
recente “súmula”, este novo conjunto de poemas tem um sentido meta-reflexivo e, em
certos aspectos, conclusivo. Ao menos por agora, que não sabemos como irá continuar o
“poema reincidente” herbertiano, que continuamente recomeça.v
(Não esquecendo as perguntas que esbocei no início, tentarei agora aproximar-
me delas a partir do modo como A Faca Não Corta o Fogo fala da morte.)
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energia circulante, partilhada com a mesma terra que agora sufocaria este corpo
sobrevivo, deixando-o mudo e separado. E é por isso que porei em confronto o final
deste poema – “que a terra me não côma vivo / o sangue, cortem-no cerce e fresco” – e
os dois primeiros versos do poema cujo incipit é a afirmação que dá título ao livro: “a
faca não corta o fogo / não me corta o sangue escrito” (572).
Do ponto de vista retórico, as duas frases que a faca implícita ou explicitamente
protagoniza são construídas de modo semelhante. Embora uma esteja na forma
afirmativa e outra na negativa – “cortem-me cerce o sangue fresco”, “não me corta o
sangue escrito” –, elas são ritmicamente afins e derivam ambas de uma idêntica
sinédoque, pelo que parecem funcionar em contraponto. E, se as associarmos à epígrafe
do livro, “Não se pode cortar o fogo com uma faca”, esse contraponto tornar-se-á mais
nítido, na medida em que este “provérbio grego” evoca ideias como as de
intangibilidade e inviolabilidade. Nem tudo a faca cortará: ela corta a veia jugular, ou os
pulsos, e matará com mais certeza o corpo destinado a morrer. Mas – e voltemos ao
início do outro dos dois poemas que estou a citar – “a faca não corta o fogo, / não me
corta o sangue escrito, / não corta a água,” o que sugere que há uma condição, e um
sangue, que, tal como o fogo ou a água, a faca (e aqui, em vez de faca poderia dizer
morte) não poderá cortar: o “sangue escrito”, afim do fogo e da água, é impermeável a
essa faca (e repare-se no uso lírico do pronome pessoal em “não me corta o sangue
escrito”, bem como na figuração de autoria implicada pela evocação do acto de escrita).
Neste contexto, é importante ter em conta o quanto é aparente a ruptura temática
introduzida pelo verso seguinte:
Essa “língua dentro da própria língua”, que Herberto Helder também designa
muitas vezes por “idioma”, acentuando a sua autonomia e especificidade relativamente
à língua-mãe, é a poesia – e a língua de uma poesia específica, e feita por um só poeta,
como veremos –, pelo que está semanticamnte ligada à imagem do “sangue escrito” por
uma relação de equivalência. De resto, assim o sugere o modo como esta formulação é
aproximável de uma conhecida reflexão de Paul Valéry, na qual é equacionada uma
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questão que gostaria de destacar. É certo que Herberto Helder deixa muito claro o seu
pouco apreço por este “intelectual francês”,ix mas, em “Situation de Baudelaire”, Valéry
explicita de uma maneira que aqui me interessa a relação entre a construção de uma
língua de segundo grau, pelo apuramento e magnificação da língua de partida, e a
emergência de uma subjectividade outra, por intensificação da experiência subjectiva:
Poderemos, então, distinguir por um lado a faca, a morte, o corpo que a terra
comerá já sem sangue, e por outro o “sangue escrito” que, tal como o fogo ou a água, a
faca não consegue cortar? A argumentação de Valéry mostra que nunca seria possível
separar tão linearmente os dois campos, nem do ponto de vista da subjectividade, nem
do ponto de vista da “língua [criada] dentro da própria língua”. No caso de Herberto
Helder, os poemas de A Faca Não Corta o Fogo desenvolvem uma intensa meditação
em torno de morrer, mas essa meditação nunca separa a vivência do corpo e a da língua,
palavra que, em Herberto Helder, tem muitas vezes um sentido tão linguístico e
abstracto quanto estritamente físico e concreto. Como acontece nestes versos:
(...)
toca-me lábil,
língua,
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com menos favor, menos condição, menos poder que todos os fenómenos da
língua e do mundo, (...)
(588)
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Uma grande parte dos textos de A Faca Não Corta o Fogo, particularmente
aqueles que ocupam o centro do livro, falam da língua, ou de “uma língua por dentro da
própria língua”, falam da génese de um duplo idioma (a poesia, em sentido lato; mas
também esta poesia, herbertiana, única), e falam da relação ambivalente desse duplo
idioma com a língua portuguesa, de onde ele parte. O duplo idioma (a poesia e esta
poesia), a língua criada dentro da própria língua, no sentido proustiano de aí ser uma
“língua estrangeira”, não pode deixar de exercer violência sobre a língua de origem:
Apesar de todas as diferenças de estilo, nestes versos Herberto Helder não anda
longe da perspectiva mallarmeana de que a poesia existe porque há imperfeição nas
línguas, ineficiência, e de que essa imperfeição se emenda no verso.xiv A língua
portuguesa, “acerba e funda”, não sabe (não pode?) caminhar no “erro”, que é o seu uso
libertário, lírico, seu único e rigoroso acerto. O erro, o potencial de erro que a língua
contém mas rejeita, é já, então, o campo de uma outra língua criada “dentro da própria
língua”. É nesse contexto que entendo versos como estes, que exprimem uma profunda
irritação com a língua portuguesa e com todas as línguas: “que se foda a língua, / esta ou
outra, / porque o errado é sempre o certo disso” (576).
*
Houve sempre em Herberto Helder um nexo profundo entre poesia e “erro”. “[O]
erro está no coração do acerto”, lê-se em “(antropofagias)”.xv E um outro texto de
Photomaton & Vox, ao sublinhar a posição matricial de Rimbaud na tradição da poesia
moderna, coloca a ênfase não tanto no exemplo da escrita rimbaldiana quanto no
posterior silêncio de Rimbaud em Harrar. Para Herberto Helder, “[e]ste último
[exemplo] cancelava as iluminações ou as épocas no inferno (tanto faz) como um
«erro»”, substituindo-as pelo silêncio.xvi Donde, o único impulso consequente seria o de
“[l]evar a linguagem à carnificina, liquidar-lhe as referências à realidade, acabar com ela
– e repor então o silêncio”.xvii Embora o texto conclua pela continuação da escrita
(“[p]orque (...) existia uma «força», uma «vontade de expressão», e o mundo estava
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transferida para o plano rítmico e imagético. O texto de Herberto Helder faz emergir as
imagens em relações de grande tensão, num processo que talvez possamos entender
melhor se pensarmos na montagem por colisão eisensteiniana. Nessa outra gramática,
inteiramente semantizada, tudo converge para a sintaxe da imagem, que é conduzida
pelo ritmo e destrói a “sintaxe estrita”.xxi As próprias categorias morfológicas são
objecto de semantização:
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Nas muitas remissões que fazem para o passado da obra, recuando até ao
momento em que o eu se soube chamado “em lírica”, os poemas de A Faca Não Corta o
Fogo expõem um jogo de tensões que, no plano discursivo, faz convergir a língua e a
lírica (isto é, o impulso de uma subjectividade para o “êxtase das línguas”, que é a
poesia) num fulcro gerado pela tensão entre ambas. Esse fulcro é o idioma herbertiano,
que intensifica a língua e a lírica tornando-as indiscerníveis. Um tal idioma é também
uma língua, mas outra, “a português e dentes, / a sangue desmanchado” (577),
inseparável da fisicidade corporal do ritmo e garantia do acerto ontológico dos aparentes
“erros” linguísticos.
Em rigor, este trânsito não é fixável em termos analíticos, pois, semanticamente,
ele contamina uns pelos outros os conceitos que acabo de isolar, num processo
sincrético de magnificação do mundo, das línguas, e de resgate da beleza, palavra que,
em A Faca Não Corta o Fogo, também se regista em línguas que não a portuguesa:
“beltà beauty beauté” (608). Não é possível separar o idioma herbertiano da língua de
onde parte, tal como não é possível separar a subjectividade poética do idioma em que
nasce e, portanto, do ritmo. Porém, talvez só isolando provisoriamente estes conceitos
seja possível dizer o quanto a sua movência e imbricação pode ser determinante.
Um dos poemas do livro repete uma imagem em que as línguas se juntam e se
tocam, com uma fisicidade e uma sensualidade evidentes. Recordo alguns fragmentos:
(...)
toca-me lábil,
língua,
alerta, silvestre, tão como vais morrer,
com menos favor, menos condição, menos poder que todos os fenómenos da
língua e do mundo,
mas se é mister que te salves,
faz então um mistério e não te salves para ninguém,
porque tu és mais surgida,
mais sucessiva,
mais falada em música,
com mais atenção inspirada, digo,
tudo por começar és com mais respiração:
melhor é saliva língua na língua do que revolvê-la em poemas
maiores,
ou falá-la,
(...)
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Neste poema, que apenas por ser muito extenso não transcrevo na íntegra, o
deslizamento semântico da palavra língua ora nos leva a pensar a língua em termos
estritamente físicos, e a estabelecer alguns nexos com a veemência com que a
sexualidade surge nos primeiros poemas do livro, associada a uma imagem da beleza
que culmina na perfeição andrógina (550), ora, sem que percamos este sentido corporal,
nos leva a integrar um sentido linguístico que vai da designação da língua portuguesa,
também referida neste poema, à poesia enquanto “êxtase das línguas” e ao idioma da
poesia de Herberto Helder. Mas o que ressalta é a forma como o idioma herbertiano é
relacionado com a experiência do corpo (sexualidade, voz, respiração). O que me leva a
recordar o início de “(feixe de energia)”:
(...)
tanto louvor da terra movido a custo
na frase fracturada: o acordo entre
ritmo e
iluminação, enquanto mãos intermináveis
lavram as obras, às meadas, ríspidas, rútilas, curtas, compridas, no escuro,
(...)
(587)
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(...)
esses erros, se emendam o certo contemporâneo, quero-os todos,
esveltos, essoutros, exímios:
dor e estilo, quando são canhotos, não os há mais vivos
(587)
(...)
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
(...)
(613)
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(...)
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam
(...) (572-3)
É para o plano semântico que este idioma tranfere este tipo de referências
morfológicas ou sintácticas, pois, sendo elíptico o texto que produz, ele é uma outra
língua, que fractura e une, liga e divide, mas de outra maneira. Por outro lado, este
idioma é extraordinariamente integrativo, no que parece responder à imperfeição que,
segundo Mallarmé, é denunciada pela multiplicidade das línguas: faz convergir
diferentes estádios cronológicos da língua portuguesa, diferentes registos, usa o
vocabulário de muitas tradições poéticas em diferentes tempos, apropria-se de certas
palavras de outras línguas (Alemão, Francês, Italiano, Inglês, o Occitânico dos
trovadores) e, em alguns poemas, mimetiza o léxico e a sintaxe do Português do Brasil.
Por vezes, integra uma ortografia anacrónica ou desviante: grafa com ph a palavra
“epiphânica”, evita escrupulosamente a ambiguidade indesejada, através do uso do
acento em nomes como “sôpro” (567) ou “comêço” (591) e na forma verbal “cômo”
(568), e recorre a uma pontuação interrogativa e exclamativa que faz pensar na do
Espanhol. São pequenos sinais de uma outra gramática, em rigor infixável. Há um
poema que fala de “gramática cantada” (579).
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Mas esta parece ser apenas uma das mortes de A Faca Não Corta o Fogo.
Porque há outra, que assassina de maneira diferente: é lenta, insidiosa, chega devagar,
separa:
(...)
noutro tempo eu cobria-me com todo o ar desdobrado,
havia tanto fogo movido pelo ar dentro,
agora não tenho nada defronte,
não sinto o ritmo,
estou separado, inexpugnável, incógnito, pouco,
ninguém me toca,
não toco
(574)
Essa morte, é no corpo que a vemos chegar, particularmente num dos últimos
poemas do livro, quase antes do fecho, quando ela começa a trabalhar aquele corpo
estrito que vários poemas nos mostram escrevendo (por vezes com a mesa, ou o caderno
portátil, ou a bic cristal preta). Mas é esse corpo e também não é esse corpo, porque, no
livro, sempre o vemos mudado noutro, não estrito mas escrito. Se bem que o poema a
que me refiro vá até “às portas acá da noite avonde”, a verdade é que ele acaba por
fechar com a palavra “redivivo” (617).
Em A Faca Não Corta o Fogo, a condição idiomática da língua desta poesia
acaba por implicá-la nesta ambivalência do corpo:
A sintaxe do Português não contempla este uso transitivo do verbo morrer que,
embora seja intransitivo, tem aqui a língua como complemento directo. É uma
construção “assintáctica”, um acordo semântico, um “nexo estilístico” em que o idioma
desta poesia se dobra si mesmo, pensando a morte. Mas que o faça assim, voltando às
palavras de Camões, talvez diga tudo sobre o que possa ser morrer (e não morrer) a
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REFERÊNCIAS
HELDER, Herberto. Photomaton & Vox, 3ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1985.
___________A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita. Lisboa: Assírio & Alvim,
2008.
BELO, Ruy. Homem de Palavra(s) [1970], Todos os Poemas. Lisboa: Assírio & Alvim,
2000.
NOTAS
i
Helder, Herberto. A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.
1112
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ii
Penso no poema que começa “Lá vai a bicicleta do poeta em direcção / ao símbolo”, de “Cinco canções
lacunares”, e em “Os brancos arquipélagos” (HELDER, 2008, pp. 48-58).
iii
Helder, 2001, p. 5.
iv
Idem, Ofício Cantante, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009 (Janeiro).
v
Cf. Helder, 2001a, p. 197: “Só é seguro que a pergunta, a procura, o poema reincidente, cristalizam
numa grande massa translúcida, um bloco de quartzo. Talvez seja tranquilizador quando olhado defronte,
ali, no chão, do tamanho da casa: parece nascer ininterruptamente”.
vi
As referências de paginação incluídas no corpo do texto reportam-se a Ofício Cantante, ed. cit.
vii
“A escrita é a aventura de conduzir a realidade até ao enigma, e propor-lhe decifrações problemáticas
(enigmáticas)”, escreve Herberto Helder em “(imagem)” (Helder, 1995, p. 145). Cf. ainda as ideias de
mundo como “grande texto enigmático” e de verdade como “reposição permanente dos enigmas”,
explicitadas em “(os modos sem modelos)”, bem como a sua articulação com o entendimento da tradição
literária em relação com o crime e/ou a detecção criminal (idem, p. 136-7).
viii
Alguns dos acidentes narrados em “(o humor em quotidiano negro)”, como o do operário que “caiu
num misturador e ficou literalmente transformado em pasta de papel”, ou o caso daquele que é
esquartejado pela máquina que movimenta, fazem pensar no assassínio perpetrado pela “máquina lírica”
herbertiana. Cf. Helder, 1995, pp. 90 e 101.
ix
Cf. Helder, 2001a, p. 193: “Valéry representa aquilo mesmo que pode servir de insulto contra qualquer
pessoa: você é um intelectual francês!”
x
Cf. “Situation de Baudelaire” (Valéry, 1957, p. 611).
xi
Helder, 1995, p. 138.
xii
Idem, “(guião)”, p. 142.
xiii
Deleuze, 1983, p. 21.
xiv
Cf. o fragmento de “Crise de Vers” que começa “Les langues imparfaites en cela que plusieurs,
manque la suprême (...)” e que termina com a desolada constatação da existência perversa de timbres
sombrios em “jour” e claros em “nuit”: “Le souhait d’un terme de splendeur brillant, ou qu’il s’éteigne,
inverse; quand à des alternatives lumineuses simples – Seulement, sachons n’existerait pas le vers: lui,
philosophiquement rémunère le défaut des langues, complément supérieur” (Mallarmé, 1945, pp. 363-4).
xv
HELDER, 1995, p. 135.
xvi
Cf. “(movimentação errática)” (Idem, p. 132).
xvii
Idem, ibid.
xviii
Idem, p. 134.
xix
Vale a pena recordar a síntese feita por Paul Valéry em “Je disais quelquefois à Stéphane Mallarmé”:
“Il [Mallarmé] conçoit (...), avec une force et une netteté remarquables, que l’art implique et exige une
équivalence et un échange perpétuellement exercé entre la forme et le fond, entre le son et le sens, entre
l’acte et la matière” (Valéry, 1957: 658).
xx
Cf. Helder, 1998, p. 8: “A imagem é um acto pelo qual se transforma a realidade, é uma gramática
profunda no sentido em que se refere que o desejo é profundo, e profunda a morte, e a vida ressurrecta.
Deus é uma gramática profunda”.
xxi
Em “(guião)”, Herberto Helder associa a escrita e a leitura da poesia à “destruição de uma sintaxe
estrita” (cf. Helder, 1995, p.139).
xxii
“(memória, montagem)” (Helder, 1995, p. 150).
xxiii
Destaques meus.
xxiv
Helder, 1995, p. 138.
xxv
Penso na explanação do conceito de “chair”, tal como surge em “L’entrelacs – Le chiasme” (Merleau-
Ponty, 1964, pp. 170-201). Como sublinha Merleau-Ponty, “la chair (...) n’est pas la matière. Elle est
l’enroulement du visible sur le corps voyant, du tangible sur le corps touchant, qui est attesté notamment
quand le corps se voit, se touche en train de se voir e de toucher les choses, de sorte que, simultanément,
comme tangible il descend parmi elles, comme touchant il les domine toutes et tire de lui-même ce
rapport, et même ce double rapport, par déhiscence ou fission de la masse” (p. 189).
xxvi
Cf. “Le mystère dans les lettres” (Mallarmé, 1945, p. 385).
xxvii
Helder, 2001a, p. 193.
xxviii
Queirós, 2008, p. 9.
xxix
Destaque meu.
xxx
“Vate 69” (Belo, 2000, p. 218).
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1
Professora Doutora de Literatura Portuguesa da UFMS – Campo Grande. Bolsista de Produtividade em
Pesquisa – CNPq – Nível 2.
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“[...] um olhar que busca o gozo do espetáculo (em particular do sofrimento), [mas] um
olhar que acolhe a interrogação suscitada por um encontro”iii: o encontro do narrador
com o narratário e com o leitor.
Não entraremos aqui na discussão sobre o conceito de representação ou se é
possível uma tradução linguística do mundo. Interessa-nos é pensar como a escrita,
como as palavras, especialmente a literária, elabora experiências relacionadas à
catástrofe, como o horror, a morte, a dor e o sofrimento. Citando Saul Friedlander,
Seligmann-Silva faz uma pergunta que dará, daqui por diante, o tom deste ensaio: “[...]
como representar algo que vai além de nossa capacidade de imaginar e representar?”.iv
Em tempo: tanto Friedlander quanto Seligmann-Silva referem-se à Shoah, ao
Holocausto. Nossa questão se faz, talvez, mais modesta, porém não menos importante,
visto que pensamos no período pós-ditatorial e pós-descolonização em terras
portuguesas.
Voltemos à pergunta: como representar o que seria irrepresentável,
incognoscível? Seligmann-Silva retoma uma categoria retórica, o sublime, não na sua
visada mais comum, a estilística, porém como definida por Longino. Usaremos aqui a
proposição de Heinrich Lausberg para ler o sublime:
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Silva, a fim de chegar, junto com ele, à proposição do que a teoria freudiana do trauma
pode indicar um caminho para se pensar a fala, a escrita da realidade/da catástrofe.
A partir daqui, seguiremos as proposições freudianas expostas no item (C) A
Analogia da Nota Preambular II de Moisés e o Monoteísmo, nota esta escrita em
Londres, em junho de 1938, e também o tópico O Trauma, de Teresa Pinheiro, inscrito
no livro Ferenczi: do gesto à palavra (1995). Ainda, a partir daqui, entreteceremos
nossas percepções teóricas com trechos da obra de Lobo Antunes, O meu nome é Legião
(2007).
Segundo a leitura de Teresa Pinheiro,
Partindo dessa assertiva, podemos perceber que os efeitos dos traumas podem
ser positivos e/ou negativos. Aqui as palavras de Freud nos parecem mais adequadas: os
efeitos do trauma são positivos quando o trauma é recordado, experimentando-se uma
repetição, uma representação da experiência traumática. Por quê? Ao nos confrontarmos
com essa experiência, não somente a própria, mas reconhecendo-na em situações
análogas, passamos ao estágio de compreensão de nossa formação psíquica e histórica.
Quando negativos, os efeitos do trauma devem anular a possibilidade de recordar, de
experienciar, mesmo que analogamente ao traumaticamente vivido. Freud chama esses
efeitos de “reações defensivas”, que podem desembocar em “inibições” e/ou “fobias”. ix
Em uma narrativa que mescla o relato policial – o suposto vivido – com
intervenções pessoais impressivas do agente que acompanha o caso de oito suspeitos,
com idades entre 12 e 19 anos, munidos de espingardas de canos serrados e pistolas do
Exército, que assaltam e matam em uma madrugada lisboeta, a dúvida e a incerteza
aparentemente conduzem O meu nome é Legião. Dizemos aparentemente, porque
percebemos não somente a construção da memória do passado do agente, às portas da
aposentadoria, mas também a relação traumática dessa memória individual com uma
memória coletiva, marcada pelo sofrimento e pela dor, que é a memória dos tempos
coloniais na África. O que sustenta essa relação é uma vontade ética dos envolvidos
(várias vozes misturam-se na obra de Lobo Antunes) de compreender a si mesmos como
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sujeitos da história e das escolhas que fizeram para si mesmos. Em tempo: as vozes dos
8 suspeitos não são apresentadas e isso aparece veladamente logo no início da narrativa:
[...] isso sucede porque as reações e alterações do ego provocadas pela defesa
se mostram agora um estorvo no lidar com novas tarefas da vida, de maneira
que graves conflitos surgem entre as exigências do mundo externo real e o
ego, que busca manter a organização a que penosamente chegou em sua luta
defensiva.xi
[...] insistem que me pareço com a minha mãe e argumento que não,
comparando com o retrato / (não me lembro em pormenor das feições) /
talvez as orelhas e o contorno do queixo, a expressão nem sonhar, de acordo
com a minha mãe de resto eu o meu pai por uma pena/ - já não me bastou um
tenho que aturar outroxii
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[...] moro num segundo andar sem elevador que me obriga a conquistar os
patamares com sapatos cada vez mais pesados, [...] penso nas colegas da
telefonista, no meu ajudante, no meu chefe, nos miúdos pretos e afinal no
hamster a pedalar a sua roda que a minha prima me depositou na cozinha [-
Para te fazer compainha].xiii
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Meu nome é Legião. 2. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2007.
FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. Trad. Maria Aparecida Moraes Rego. Rio
de Janeiro: Imago, 1997.
PINHEIRO, Teresa. Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro: Zahar; Ed. da UFRJ,
1995.
NOTAS
i
Seligmann-Silva, 2000, p. 73-98.
ii
Seligmann-Silva, 2000, p. 74.
iii
Gagnebin, 2000, p. 106.
iv
Seligmann-Silva, 2000, p. 79.
v
Relacionamos o ornatus não à beleza da expressão linguística, porém à sua capacidade e intenção
criadora no âmbito das artes.
vi
Lausberg, 1993, p. 139. Negrito nosso.
1119
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vii
Seligmann-Silva, 2000, p. 83.
viii
Pinheiro, 1995, p. 65.
ix
Freud, 1997, p. 68.
x
Antunes, 2007, p. 13-14. Negrito nosso.
xi
Freud, 1997, p. 69.
xii
Antunes, 2007, p. 19.
xiii
Antunes, 2007, 31-32.
xiv
Antunes, 2007, p. 19.
xv
Seligmann-Silva, 2000, p. 94.
xvi
Carvalho, 2000, p. 237.
xvii
Antunes, 2007, p. 14.
1120
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1
Professora Doutora – Universidade de São Paulo
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há como negar que o quadro social brasileiro apresenta mudanças substantivas e, dessa
maneira, possibilita que se vislumbrem algumas mudanças.
É nesse contexto que se situa a questão do ensino da chamada literatura afro-
brasileira e das literaturas africanas de língua portuguesa, sem esquecer, por outro lado,
a formação de professores que atuarão nas redes de ensino particular e oficial, já que o
ensino sistemático de História e de Cultura Afro-Brasileira e Africana, na Educação
Básica, nos termos da Lei 10.639/03, liga-se aos componentes curriculares de Educação
Artística, Literatura e História do Brasil.
A introdução de obras e autores africanos e afro-brasileiros na escola inaugura o
conhecimento de novos textos e contextos e, dessa forma, remete a uma plurivocidade
discursiva com relatos que buscam diálogo com outros relatos, constituindo um espaço
de debate, de confronto, além de quebrar a hegemonia dos códigos dominantes do
cânone estabelecido.
Como afirma Benjamin Abdala Jr.:i
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narrativos em que se configura a oralidade angolana por meio de uma língua portuguesa
impregnada do quimbundo. Como sabemos, por meio da ruptura com a língua
portuguesa padrão, o autor procurou criar uma linguagem literária a partir dos processos
e das estruturas lingüísticas bantas da região de Luanda; é uma escrita que emerge das
falas populares, não se limitando a ser uma recriação artificial e vazia de sentido.
Como nos lembra Antonio Candido ao examinar o regionalismo brasileiro, a
abordagem literária do homem posto à margem pode ter um sentido humanizador ou um
sentido reificador. Luandino humaniza suas personagens ao construir uma fala angolana
“estilizada e convincente, mas ao mesmo tempo literária, esteticamente válida”ii: as
vozes do musseque surgem na sua escrita, evocando o plurilinguismo de noção
bakhtiniana. Assim entendido, o plurilinguismo significa vozes sociais que se
respondem mutua e dialeticamente, em permanente tensão no interior do texto.
A opção pelo plurilinguismo para representar a diversidade, as perspectivas
múltiplas e as diferentes falas sociais é fator de criação e escolha consciente, funcional e
estética do artista, demonstrando a ética pretendida. Essa escolha transforma a narrativa
no locus do desenvolvimento e do convívio mútuo de várias línguas nacionais, de várias
“falas”.
Esse dialogismo plurilíngue que se estabelece, ainda segundo Bakhtin,
demonstra a artificialidade da barreira entre texto e contexto, entre “dentro” e “fora”,
pois o que existe, na verdade, é a permeabilidade imanente entre os dois.
O texto é, portanto, o “campo de batalha” das relações sociais de poder,
representado pelo reconhecimento de que as várias vozes representam posições
socioideológicas diferentes, cuja relação conflitiva existe no próprio cerne da mudança
da linguagem.
É o que ocorre, por exemplo, nos três contos do livro Luuanda, em que o tom
oralizado plurilíngue e de ruptura prende o leitor que se deixa seduzir pelas falas que se
articulam em tensão dialética na vida textualizada de pessoas e circunstâncias próprias
daquele universo popular.
Nessa polifonia se dá voz aos marginalizados, aos oprimidos, aos periféricos e,
por isso, é o que a diferencia do discurso monológico, que é o discurso autoritário,
univocal e que tem por objetivo calar a voz do outro.
Nessa instância, outro exemplo substantivo a ser considerado no âmbito escolar
é o romance Mayombe, de Pepetela. Entre as variadas possibilidades de análise,
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Em Pasárgada eu saberia
onde é que Deus tinha depositado
o meu destino
E na hora em que tudo morre...
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Gritarei
Berrarei
Matarei
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Orgulho Negro
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Como afirma Zilá Berndv, essa poesia também é marcada por uma busca
identitária contínua, “que não é apenas individual ou nacional, mas solidária com todos
os negros da América...”, como vemos em:
Quem ta gemendo?
Quem ta gemendo
Negro ou carro de boi?
Carro de Boi geme quando quer.
Negro, não.
Negro geme porque apanha.
Apanha pra não gemer...
Geme na minh´alma,
A alma do Congo,
Do Níger da Guiné,
De toda a África enfim...
A alma da América...
A alma Universal...
Quem ta gemendo
Negro ou carro de boi?
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Que lentamente
vai sorrateiramente
Restituindo e dividindo
A colheita com todos!
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REFERÊNCIAS
ABDALA, JR, Benjamin. Literatura, história e política. São Paulo: Ed. Ática, 1989.
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NOTAS
i
Abdala Jr., 2003, p. 37.
ii
Candido, 2002, p. 92.
iii
Ferreira, 1987, p. 33.
iv
Santilli, 2003, p. 151.
v
Bernd, 1992, p. 46.
vi
Souza, 2006, p. 114.
vii
Abdala Jr., 1989, p. 22.
1132
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RE-LUZIR LUIZA
Esse lume reluz na poesia de Luiza ao longo de praticamente toda a sua obra.
Pensemos nos lírios de “Balada Apócrifa”, na sua estréia em Poesia 61, que são lírios
do campo, de pedra, de água, do tempo e finalmente do corpo; pensemos na magnólia
1
Professor Adjunto do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
1133
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do poema homônimo, no livro de 1967, O seu a seu tempo, misto de palavra, flor, puro
som, aroma, “magnífico relâmpago” e nome próprio; pensemos nos diversos sítios de
Sítios sitiados, de 1973; pensemos ainda nos recantos, que são dezanove, mas que vêm
de antes e se estendem para depois da sua publicação em 1969. É exatamente diante
dessas luminescências que pesquiso onde é possível encontrar as contra-assinaturas de
Luiza, seus outros nomes, seus nomes literários. Com que nomes ela assina sua
presença-ausência.
Para os fins aqui pretendidos, leio o “traço a lume” do quarteto como uma
atualização “final” (porque póstuma) do “traço de alarme” do poema de abertura do
livro Terra imóvel, de 1964, intitulado justamente “O poema”, bem como também o leio
como uma atualização dos lírios, da magnólia, dos sítios e dos recantos espalhados pela
sua obra. Escolha aparentemente arbitrária da contra-assinatura de Luiza (como
“alarme” e “a lume”), mas só aparentemente. Leiamos “O poema”:
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
Esta pequena peça parece escrita como uma aposta que mescla voluntariamente
a percepção do que é corpo e do que é texto e torna a metáfora de “corpo textual” menor
diante do comprometimento do sujeito no poema. Nele, corpo e poema se plasmam
como o mesmo gesto; “duelo”, “dedo” e “agulha” são análogos entre si e análogos no
embate (duelo), na escrita (dedo) e na costura (agulha). A proximidade etimológica para
“agudíssimo” e “agulha” só reforça ainda mais a intensidade dessas palavras. No centro
discursivo e visual do poema (a segunda das três estrofes), a assunção da natureza
agonística dos atos de dizer e viver (“falo / com uma agulha de sangue / a coser-me todo
o corpo / à garganta”). “Falo”: seu duplo valor semântico a produzir uma tensão de
gêneros (sexuais) e modos (verbais), em que o ato discursivo está decididamente
confundido ao universo de poder masculino: é o “falo” que costura “todo o corpo” do
1134
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sujeito “à garganta // e a esta terra imóvel”; é o falo que faz de todo ato discursivo um
ato de subjetivação.
Mas constituir-se pelo próprio sangue é o que Nietzsche cobrava e Luiza
experimenta como característica forte. O sangue feminino (“agulha de sangue”?)
aparece na “Invocação” dos seus Dezanove recantos, a sustentar o corpo político do
Estado: “Eléctrico motor louco, louco navegante, máquina / arborizada / a lançar faíscas
pelo mundo / e sangue e seios e cílios sustentando o corpo!”iv. Sangue derramado por
Inês e seus órfãos. Inês: nome próprio que se desmaterializou da história pela morte
para se rematerializar como “traço de alarme” em Luiza (dedo a sangrar, como que
duela, segurando a agulha da escrita).
Mas em “O poema”, situando-se como diferença entre atos de lutar, escrever e
costurar, o sujeito é fundamentalmente o traço: “minha sombra / é um traço de alarme”.
Por um lado, ao invés de ser a fonte e origem de cada um dos atos, ao invés de ser o
sujeito pleno da intenção e da vontade, o sujeito “Luiza Neto Jorge” tem seu corpo
costurado à “terra imóvel”, corpo sujeitado pela história, corpo histórico, portanto. Por
outro lado, no entanto, seu também é o corpo da diferença, o corpo diferente, pois o
acontecimento que sujeita (e subjetiviza) o corpo feminino é o mesmo que produz a
presença em progresso da sua subjetividade, quando (se) escreve sombra. O “traço de
alarme” da assombrosa escrita de Luiza atravessa sua poesia acenando para todos os
seus leitores desde, pelo menos, esse segundo livro Terra imóvel (1964) até o póstumo
A lume (1989). E é desse último que re-lemos: “Vi num traço a lume oposto / ao
ponteiro das horas / a cauda de um fóssil / varrer o céu”.
***
Podemos avançar nossa leitura de que Luiza intitulou seu último livro com a
contra-assinatura do um outro nome próprio, nome literário contra-assinado “a lume”. O
nome “Luiza” é “traço a lume” e “traço de alarme”, pois com eles forma alguns dos
traços pelos quais se produz como sujeito da enunciação junto ao campo do poder e da
lógica da representação política e poética que teimam em se perpetuar como validações
da verdade e do sujeito universal – Razões de Estado. O nome “Luiza” reluz no “lume”
do “alarme” do nosso tempo – cada vez mais. Mas podia não ser assim, caso Luiza não
voltasse atrás no desejo de expiar seu “corpo escasso” sem o lume do seu nome, mas
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como “Fractura” (título cogitado para o livro póstumo em substituição a A lume, mas
que foi retirado e devolvido apenas ao poema que trata muito exatamente da morte):
frutífero implanta-se
no seio do nosso corpo escasso.
Membro em viço, irmão braço vem
por dentro semear-nos.v
1136
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(...)viii
O flerte com a “morte”. É isso o que sempre ronda a mão que escreve, pois a
escrita traz, no seu limite, a morte de quem a inscreve. Isso vale de forma ainda mais
categórica para a assinatura, pois o nome grafado sobreviverá ao gesto de quem o
grafou, de quem se assinou, prescindindo da sua presença ali como testemunha do
próprio gesto (“atrás do meu gesto / a mão sozinha os dedos conspirando”). Daí o flerte
com a “morte”. A morte só existe no corpo, é nele – pelo corpo morto, pelo cadáver –
que identificamos sua presença. Estranha presença. Pois que presente é o corpo morto,
presente-ausente, corpus, derradeira inscrição, ápice-fim da potência da vida. Se na
morte todo sentido cessa, a disseminação dos sentidos atuante na escrita também flerta
com a morte, brinca nas suas franjas, mas busca não cair em suas armadilhas.
Ao se brincar de vida e morte do sujeito, sobretudo quando o corpo experimenta
os controles advindos da ordem institucional dos discursos, o jogo se torna sério (na
verdade, nunca deixa de ser um jogo a sério), e escrever é um gesto que ganha espessura
política. Encontramos aí o nome de Luiza Neto Jorge, encontramos aí seu “traço de
alarme”, seu “traço a lume”. Como “órfã de Inês”, segundo Jorge da Silveiraix, no jogo a
sério da sociedade, ela sabe que deve se recriar, se reinventar, se reescrever. Enfim, se
re-nomear para se tornar outra, para existir sempre diferente. E ela sabe que isso é jogar
com a “morte”, com a possibilidade da “morte” e também com a sua impossibilidade,
ou, por outra via, com o poder de viver, com o poder viver. Escrever lhe fornece,
portanto, também chaves para esse poder viver. É em busca dessa “outra mão”, poema
de O seu a seu tempo (1967), que Luiza escreve:
(...)
1137
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A força que o gesto (manual) de escrever imprime sobre a vida é o que lhe dá
sentido, é o que inventa o sujeito e lhe dá um nome. Mesmo quando “a verdade surge: /
que não há mão por baixo”, a mão deve continuar a “actuar” para produzir sentido;
mesmo quando a morte chega e o corpo morre, ele permanece nas inscrições e nas
marcas que imprimiu sobre o mundo: assinatura, “mão de cintura nova”. Por isso
descordo um pouco da percepção poética de que em A lume lemos uma Luiza com a
saúde prejudicada pela doença. A mão que escreve sempre flerta com a morte para
afirmar a vida. Finalmente, então, se debruça sobre o corpo para além do próprio corpo,
o corpo na “mão” e nos “dedos” “salientes do corpo até a morte”, na assinatura do nome
próprio, não o nome de herança, não o nome de família, não o nome dado pelos pais,
mas o nome que se grafa pela força do próprio punho e da própria vontade sobre o
mundo. Esse nome, Luiza o assina não no final, mas no começo, à maneira de título: A
lume. Antes disso, porém, já o havia feito de outra forma, em “SO-NETO JORGE,
Luiza”.
A forma de referência bibliográfica dada ao título ajuda a ressaltar seus
sobrenomes de extração e herança masculina. Indecidível assinatura, pois que transgride
ao mesmo tempo em que reforça a lei e a interdição, tal como Georges Bataille pensa o
erotismo: “derrubar uma barreira é em si algo sedutor; o ato proibido ganha um sentido
que não possuía”xi. É a norma e o limite que proporcionam o sentido da transgressão, da
criação e da mudança. Ao assinar o poema sob a forma de referência bibliográfica justo
ao seu título, Luiza coloca-se sujeita à lei dos homens (e dos livros), mas ao mesmo
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tempo coloca-se em diferença – não sozinha, mas solitária (“SO”) – e também coloca-se
dentro da política desse jogo
(...)xii
Corpo liso porque erótico, corpo da escrita que – sabe – será transformado em
livro, mas que é traço com a força da própria mão, deixando marcada sua ausência-
presença, seu grafismo, seu corpo não sozinho, mas só.
REFERÊNCIAS
NOTAS
i
Derrida, 1991, p. 31.
ii
Jorge, 1989, p. 53.
iii
Jorge, 1973, p. 47.
iv
Jorge, 1973, p. 210-1.
v
Jorge, 1989, p. 13.
vi
Derrida, 1991, p. 47.
vii
Jorge, 1973, p. 190.
viii
Jorge, 1973, p. 79.
ix
Silveira, 1986, p. 164.
x
Jorge, 1973, p. 168-9.
xi
Bataille, 2004, p. 175.
xii
Jorge, 1973, p. 255.
1139
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1.
As duas edições que hoje devem necessariamente ser ponto de partida para
qualquer volume da correspondência familiar de Almeida Garrett são: a de Teófilo
Braga, de 1904, Cartas íntimas, volume XXVIII das Obras completas de Almeida
Garrett (Lisboa: Empreza da História de Portugal); e a de Segismundo Spina, de 1961,
Cartas apologéticas e históricas (Coimbra: Coimbra Editora).
O volume de Teófilo Braga é majoritariamente composto de cartas a amigos.
Mas inclui como lote mais importante um conjunto de 32 cartas à filha, que são as
mesmas cujos originais se encontram hoje em Coimbra na sala Ferreira Lima. Não traz
cartas ao irmão mais velho Alexandre José, que vivia no Porto.
O volume da Spina reúne 27 cartas: 12 cartas de Garrett a Alexandre e 15 cartas
de Alexandre ao irmão João Batista.
Também Gomes de Amorim transcreve documentação de procedência variada,
inclusive trechos de cartas trocadas entre os irmãos, em Garrett – Memórias biográficas
(1º volume de 1881, 2º e 3º volumes de 1884).
O trabalho que vimos desenvolvendo, de edição da Correspondência familiar,
de Almeida Garrett, sob a supervisão geral de Ofélia Paiva Monteiro, abarca vários
estágios e deve concluir-se em 2010, para edição pela Imprensa Nacional – Casa da
Moeda.
Detenho-me aqui inicialmente em aspectos sumários atinentes à procedência e à
natureza dos materiais. A seguir, avanço ao objetivo mais específico deste trabalho:
análise do conteúdo do conjunto mais valioso (as cartas ao irmão). Não me deterei nos
critérios para fixação e anotações ao texto.
1
Professor Adjunto (UERJ) e Bolsista de Produtividade em Pesquisa (CNPq).
1140
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2.
Um volume de correspondência quase nunca é completo. O trabalho das
gerações de perquisadores pode, no entanto, ampliar, através de novos textos, em novas
edições, um determinado conjunto de cartas.
O objetivo de se editar a correspondência de um escritor não é traçar o quadro
inteiro de uma vida, embora não esteja excluída a hipótese de colaborar de algum modo
à crítica biográfica. Também não está inteiramente fora dos nossos propósitos a hipótese
de se demonstrar (e disto tirar benefícios) maior ou menor grau de literariedade que o
epistolário possa conter. Sabemos que os documentos que temos diante dos olhos não
são literatura, o que não significa que o literário esteja dali completamente excluído.
Os objetivos maiores que ensejam a publicação de um volume de
correspondência de um escritor estão no âmbito da crítica genética, da historiografia
literária e da história social (nas esferas pública e privada) de uma época. A
correspondência de um escritor pode trazer-nos esclarecimentos valiosos acerca dos
procedimentos e da gênese de uma obra, do mundo literário de outrora (redes de
relações entre artistas e intelectuais), dos posicionamentos mais íntimos de um artista
face aos dilemas maiores de sua época.
A correspondência pode esclarecer o processo de preparação da obra literária.
Muitas vezes numa carta temos a notícia do início do processo criador, das dúvidas do
escritor a respeito deste ou daquele caminho que se apresentam num dado momento
como opções dentro do processo de criação de uma obra. A um amigo, a um familiar
mais próximo um escritor por vezes declara sem rebuços suas motivações mais íntimas
ao escrever um livro, seus temores ao publicá-lo, suas impressões acerca da acolhida
por parte do público e da crítica.
Com a correspondência aproximamo-nos mais do autor e assim podem ganhar
novos relevos e contornos personagens e situações da ficção, bem como esclarecem-se
tantas vezes posicionamentos políticos, que não precisam ou por vezes não podem se
apresentar cruamente em obra de criação. O conhecimento de uma correspondência
pode não mudar o perfil do escritor, mas pode trazer luz a aspectos que até então tinham
permanecido à sombra, ou duvidosos, ou reforçar algo que já sabíamos, colaborando
para o conhecimento do tempo histórico em que o homem e a obra se inserem.
1141
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3.
Spina reuniu 27 cartas trocadas entre os irmãos Alexandre e João Batista.
Trabalhou sobre cópias (da mão de Ferreira Lima), que ainda hoje podem ser
consultadas (Universidade de Coimbra, Faculdade de Letras, Sala Ferreira Lima).
Na introdução ao volume Cartas apologéticas e históricas, podemos ler:
1142
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4.
A correspondência que temos entre os irmãos João Batista e Alexandre José
começa em 1821, ano em que Garrett chega a Lisboa. Já aqui temos um dos temas
fundamentais da obra garrettiana, a ligação com o século das Luzes, que se manifesta no
apelo ao irmão para que busque se ilustrar: “Tu... tu ainda não entraste nas verdadeiras
ideias, nem no mechanismo das actuaes cousas. Toma o meu concelho: tratta de te
illuminar, de te fazer gente, e não terás receios sobre a tua futura sorte.”ii
Em carta de 1822, Garrett seguirá:
Uma cousa em que te falei à [sic] tempos eis aí o teu grande crime – Que
cousa é essa? Será dizer-te eu que devias iluminar-te, falou-te mais alguém
nisso? Como te falou? que respondeste tu? – Sempre assim te conheci, e
sempre assim hás-de ser, inimigo do Português claro, e limpo. – Quando te
eu disse que devias iluminar-te, disse-to porque sou teu amigo; respondeste-
me tanta parvice, e desconcerto, que assentei não te falar mais nisso. Eu
queria dizer-te que entrasses na Maçonaria, ordem augusta, e santa que conta
no seu seio as primeiras pessoas do mundo por suas luzes dignidades e
virtudes, Papas Bispos reis [E]iiitc que contou em seu seio (…)iv virtuoso
(…)v e mil outros varões distintos, e bem conhecidos dum cabo do mundo ao
outro, e que eu te enumeraria se o sagrado vínculo de um terrível juramento
mo não vedasse. Mas nada me veda que eu te diga que tanto tem a
Maçonaria com a Religião como um ovo com um espeto. Assim católicos,
protestantes, Muçulmanos, Judeus, de todas essas religiões há maçons,
porque não é outro o fim da maçonaria senão unir os homens todos, fazer
que onde quer que chegue um homem ache irmãos seus, que o reconheçam
por tal, que o amparem que o socorram, que o agasalhem. Este é o fim
primário; e a grande virtude da caridade é a base sagrada da augusta ordem
Maçónica. Além disso ela se tem empregado na santa causa da liberdade e
dum canto do mundo ao outro, desde os confins da península até ás
extremidades da Ásia vai fazendo redobrados esforços por libertar os
homens, e fazê-los felizes. – Que tem isto de comum com a Religião? –
Nada, nada, palavra de honra que é cousa mais sagrada que há para mim, e
para todo o bom maçom. – Mas deixemos isso; não queres ser
verdadeiramente homem, não o sejas, tua perda.vi
O tema da maçonaria que não aparece na obra de Garrett, senão sob a forma de
um apelo ao esclarecimento, tem aqui expressão clara. Mais: Garrett mostra ao irmão
um preconceito da época, que era julgar a maçonaria uma ordem avessa à religião, mais
especificamente ao Cristianismo. O miguelismo colaborou bastante para que sob o
rótulo de “pedreiro livre” ficassem todos aqueles que pugnavam por uma sociedade
mais democrática. Ao instar o irmão a que se ilustrasse, Garrett mostra-nos até onde ia a
sua crença nas Luzes, o quanto se lutava dentro das fileiras cristãs por uma religião mais
afeita aos moldes liberais. No apelo de Garrett, vemos um Cristianismo dividido. Mas
vemos também um liberalismo divido.
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que os quero pela minha saída do Ministério. Em Portugal é lugar onde não
pode parar muito tempo um homem de bem e amante de seu país – seja o
sistema de governo qual for, e seja rei quem for. – Disto agora, mais que
nunca me convenci. Desgraçado reino votado às facções e à próxima
dissolução!xi
Em finais de 1853 morre a rainha D. Maria II. Garrett não se reconcilia com os
regeneradores, até morrer num final de tarde de sábado, 9 de dezembro de 1854.
1145
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5.
Abordei aqui a trajetória política de Garrett, através das cartas ao irmão. As
circunstâncias citadas guardam enormes relações com a obra, como sabemos.
Há também nesta correspondência farto material para um estudo da esfera mais
íntima da vida no Portugal da primeira metade do Oitocentos: as aflições e os enormes
padecimentos provenientes dos tíbios avanços da medicina até então; o silêncio que
pairava sobre a separação de qualquer casal; as circunstâncias que envolvem a vergonha
e as dificuldades de legitimação de uma filha chamada à época “natural”; as distâncias
consideradas enormes – e efetivamente o eram – que terminavam por separar os
membros de uma mesma família; os inícios de uma maior liberdade na vida familiar que
já começava a dar aos filhos alguma livre escolha (mas não demais) no amor. Tudo isto
está na correspondência, e está também (reflitam) na obra de Garrett.
No volume que preparo pretendo deter-me em cada um destes pontos.
Agora finalizo com o título de Visconde que Garrett recebe em 1851. Já à época
causou espanto e indignação. A. P. Lopes de Mendonça, em folhetim de 7 de agosto de
1852, faz os leitores d’ A Revolução de Setembro lembrarem-se do que escrevera
Garrett em Viagens na minha terra: “Há muitos que não sabem que o sr. Visconde d’
Almeida Garrett escreveu o capítulo contra os barões nas Viagens [na] minha terra, e
que aceitou o título de visconde, isto é, barão e meio, como se nunca tivesse pegado em
pena na sua vida (…).xii
Gomes de Amorim afirma, em Garrett – Memórias Biográficas, que teria sido
por causa da filha que João Batista aceitou. Amorim foi escolhido pelo próprio Garrett
para escrever-lhe a biografia. Amigo, secretário particular, prepara ao longo de décadas
os três volumes monumentais que termina por publicar entre 1881 e 1884. Seu relato,
suas análises, seu testemunho trazem sempre muita verdade, mas não sem certa dose de
suspeita. Ficou, portanto, a dúvida. Mas de que serve interrogarmo-nos relativamente a
esta dúvida? Serve sim e muito, porque decorrem disto ilações infundadas (agora
vemos) e argumentos que servem a hipóteses que venho combatendo. Uma delas tenta
sustentar a hipótese do Garrett “dândi”, alheio ao que se passava na esfera social, já ao
fim da vida cético. Outra fala do Garrett “conservador”, que voltou as costas aos
setembristas. Para ambas, serve muito bem a carapuça do homem que se deixou vencer,
que teria capitulado como o Carlos de Viagens na minha terra, no baronato. O título de
Visconde seria uma espécie de suicídio moral.
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(…) não aceito por ora parabéns do título de Visconde com que Sua
Majestade se dignou agraciar-me em 2 vidas (sem os quais o não teria
aceito) enquanto não ultimar as diligências necessárias para se verificar
desde já em minha filha a 2ª. Com a cláusula de ser comunicado ao marido
com que se casar.xiv
Sendo um escrito íntimo, a carta tem muita verdade. Não foi escrita para ser
publicada. Tem, portanto, poucas máscaras (embora também comporte a mentira e a
dissimulação). Muito dificilmente estaria aqui – covenhamos – mentindo João Batista
ao irmão Alexandre, com quem se correspondeu durante toda a vida, de quem estava
afastado desde a juventude.
Maria Adelaide afinal não teve o título de Viscondessa, afirma Amorim. Mas as
diligências de Garrett parecem ter mesmo sido neste sentido, embora sem sucesso.
Próximo e distante, este irmão, de quem fora nos anos 20 quase inimigo, com
quem se vai reconciliando ao longo da vida, está longe de ser um miguelista estúpido e
fanático. Pelo contrário, sua correspondência ao irmão João Batista, que integra o
espólio Garrett da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (ao todo 54 cartas, 39
inéditas), mostra-nos um homem de razoável cultura, defensor de uma religião severa e
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apartada, após a vitória liberal, dos assuntos políticos. Bate-se contra as perseguições
aos católicos e não poupa os liberais (chamados à época de “devoristas”) que agem sem
moderação: “prometeram ser Titos”, registra, “têm sido Neros” completa; são “algozes”
a “devorar o apoucado alimento, que trabalhos de um ano inteiro arrancaram à terra para
um ano inteiro nos alimentar e a nossos filhos (…)”; “são tiranos, que, pregando a
liberdade, fazem cruenta guerra a nossos corpos para escravizar até as nossos almas”xv.
Este conjunto maior (correspondência entre os irmãos João Batista e Alexandre
José) traz – como espero ter demonstrado em seus pontos capitais – novos documentos,
importantes para avaliações mais precisas da obra de Garrett, mas também para uma
maior compreensão da história social e das idéias do Oitocentos. Os documentos que
aparecem agora não mudam substancialmente o que já sabíamos sobre o autor, antes
comprovam e reforçam as teses fundamentais expressas em suas obras: suas ligações
com o século das Luzes; seu romantismo bafejado de classicismo; seu empenho por
uma literatura que não descurasse do aspecto formativo e civilizacional com o qual
pretendia forjar novos leitores e um novo país, sem rupturas violentas, que talvez
pusessem a perder o trabalho de uma geração. É um modo bastante particular de ver a
sociedade e a história, do qual se pode discordar evidentemente. Mas que isto não sirva
de argumento para desqualificar um modo de pensar.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
i
Neto de Alexandre José da Silva de Almeida Garrett.
ii
Espólio Garrett. Biblioteca Nacional Portuguesa. Cota N8/8. Carta de Lisboa, 11 de out. de 1821.
iii
O manuscrito apresenta um buraco nesta parte do texto.
iv
Palavra riscada por outra mão.
v
Palavras riscadas por um terceiro.
vi
Espólio Garrett. Biblioteca Nacional Portuguesa. Cota N8/10. Carta de Lisboa, 20 de jun. de 1822.
vii
Carta 39, Espólio Garrett, BNP.
viii
Carta 39, Espólio Garrett, BNP.
ix
Carta 41. Espólio Garrett, BNP.
x
Carta 45. Espólio Garrett, BNP.
xi
Carta 65, Espólio Garrett, BNP.
xii
A. P. Lopes de Mendonça, A Revolução de Setembro, 7 de agosto de 1852.
xiii
Carta 57, Espólio Garrett, BNP.
xiv
Carta 63, Espólio Garrett, BNP.
xv
Carta de 2 de fevereiro de 1839. Ver GARRETT, Almeida. Cartas apologéticas e históricas.
Introdução e notas por Segismundo Spina. Coimbra: Coimbra Editora, 1961.
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1
Pós-Doutora (Universidades de Lisboa e Coimbra). Professora Doutora de Literaturas Africanas de
Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; Membro da Comissão
de Pós-Graduação do programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa.
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Imagens que reconheço mas que a câmara não captou como eu vi,
como vejo ainda. Outro olhar. (...) Eu, a mulher, questionando os
papéis que a sociedade me impõe
(Sara Almeida)
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1. Cenas:
Entre porcos e balaios pode muito bem ser a síntese da nossa vidinha na
busca difícil da cachupa diária, a luta secular ‘dessa outra gente aí, fraca e
miúda’ no dizer de Saramago.
O Dr. Baltasar dizia com muita graça e fruto do seu agudo sentido de
observação que Caixa Económica de pobre em Cabo Verde é o porco. Mas
como? (...) nas fomes que assolaram o Arquipélago no passado houve gente
que sobreviveu a comer lagartixas (Ibidem, p.163-4).
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2. Retratos:
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canta uma morna. Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de
algum bicho em vez de uma garganta humana, por muito desafinada que
fosse. Era de uma mulher, reconheci com mais cuidado. Aliás, eram as
vozes de duas mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a
desarmonia, o desleixo transparecido e o despudor agridem os ouvidos. (...)
Vêm-se aproximando. E estão bêbadas. (...) Sinto raiva. Agora posso vê-las
no arco iluminado pelo candeeiro. Parecem-me jovens. (...) A noite não tinha
mais magia. Acho que nem estrelas. (...) vou pensando, enquanto desço as escadas.
E os passos falam vergonha, humilhação e revolta. E pena (SALÚSTIO,
1994, p. 46-7. Grifos meus).
Toda ela era energia pura, os pés descalços não paravam quietos, com os
braços roliços abraçava o próprio busto num visível esforço para se conter.
Irradiava dela uma chama que na época eu não soube compreender mas agora
não me surpreende que se mantivesse acesa e nítida nas minhas lembranças
de muitos anos atrás.(...)
Minha mãe, meio desconfiada de tanta alegria de viver, resmungava contra o
conteúdo duvidoso de algumas músicas de sua preferência. Até que um dia
ela não apareceu no trabalho e mandou uma prima avisar de que estava
passando mal por causa da gravidez. (...) o homem que arranjou levou-a para
Santo Antão e pô-la a trabalhar na estrada onde apanhou uma tuberculose.
(...) Acabou morrendo, deixando o primeiro filho pois o segundo se fora por
conta de uma diarreia ao sol e ao vento das estradas do Porto Novo. A minha
mãe tomou conta do garoto e criou. É um dos meus irmãos adoptivos. Vive
na Suécia, dedica-se à música nas horas livres, um gosto que certamente
apanhou quando boiava no útero materno (BETTENCOURT, 1994, p. 34-
36).
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• PONTO FINAL
REFERÊNCIAS
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∗
Professor Adjunto IV da Universidade Federal de São João del-Rei
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Mas não era um jardim, era um quintal selvagem, que assim se amava ou
odiava, sem meio termo, porque não se podia competir com ele. Estava lá e
cercava-nos, e ou se era parte dele, ou não se era.Amélia não era. Ou não
queria ser. Por isso não desistia de o domesticar. Quero isto varrido, dizia ela
à Lóia. Nenhuma casca de fruta podia ser abandonada, nenhum caroço ditado
ao chão. Isso é lá no “Caniço”, insistia, sempre que queria repudiar qualquer
coisa. Aqui não.
E logo ali a casa se dividia em duas, a Casa Branca e a Casa Preta. A Casa
Branca era a de Amélia, a Casa Preta a de Lóia. O quintal era em redor da
Casa Preta. Eu pertencia à Casa Preta e ao quintal.2
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A visão e os sentimentos que Gita nutria por Lóia e suas filhas, o sentimento de
irmandade, eram idealizados, porque a menina convivia com a negra no espaço de sua
própria casa, que apesar de pobre era infinitamente melhor do que as dos negros, bem
como o bairro era melhor e mais perto de outros recursos da cidade. Quando já é adulta
pode perceber de forma mais crítica o que os portugueses representam para a África.
Gita observa que nas missas as pessoas procuravam demonstra seu poder e que as
pessoas gostavam de humilhar os outros:
Era isso o que lhes importava, esse espetáculo era a missa. Apesar do ar
compuncto, concentrado e quase humilde que punham na altura da confissão
e comunhão. Mas era tudo impostura e fingimento, iam lá não para se
sentiram iguais aos outros, mas para afirmarem a sua posição de privilégio, e
saíam de lá para continuarem a viver da mesma forma, para que haviam de
mudar alguma coisa se tudo estava tão bem organizado assim, eles reinando e
os outros servindo, agora e para sempre amén./.../
Uma parte do que olhemos é oferecida aos espíritos, porque não somos donos
da natureza, mas apenas seus habitantes. Oferecemos sementes, ou farinha,
para mostrar que conhecemos os limites e sabemos que a natureza é maior
que nós.
Isso, entre outras coisas, eu aprendi com África: a pequenez do ser humano,
diante da vastidão do que não é humano.4
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(Um mundo que fica para trás. Rios, muchambas, savanas, palmares, os
grandes espaços, os largos horizontes, e uma árvore que crescia nos sonhos e
chegava ao céu – que sabem eles disso, que podem eles compreender? A
prima de África, que viveu outras coisas e vem de lugares onde se fala uma
língua mestiçada, em que a gramática rebenta porque o pensamento acontece
de outro modo e tem de ser livre e de acontecer,
Os dois mundos não são totalmente conhecidos por Gita, as contradições são
mais fortes do que o simples encantamento com a África da infância e o Portugal de seu
futuro.
Nesse sentido não há na narrativa um processo completo de transculturação de
Gita, pois não é na África que o sonho de independência ocorrerá e, provavelmente,
nem em Portugal. O sonho de mudança de vida, deixando para trás o casamento infeliz
do seu pai e o amor não correspondido faz com que a personagem sinta-se dividida
entre ficar em Moçambique ou ir para Portugal. A indecisão é descrita de forma lenta e
dolorosa para Gita, uma vez que a dor e a incerteza são momentos fundamentais e ao
mesmo tempo difíceis para a jovem. Ao fim ela se decide pela Metrópole, o que
demonstra a predominância do pensamento etnocêntrico - sempre será melhor na
Europa. Assim como na África, Portugal também terá muitos lados para alguém como
ela. Zita metaforiza a nova cartografia dos migrantes de época pós-colonial do século
XX; aqueles que nasceram em um lugar e possuem uma identidade multifacetada,
participando com sua voz de várias configurações discursivas das memórias individuais
e de um povo.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
1
Gersão, 1997, p. 21.
2
Gersão, 1997, p.11.
3
Gersão, 1997, p. 196.
4
Gersão, 1997, p. 206-207.
5
Sousa, 1999, p. 63-64.
6
Gersão, 1997, p. 237.
7
Gersão, 1997, p. 180.
8
Gersão, 1997, p.238.
9
Gersão, 1997, p. 238.
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1
Doutora em Teoria da Literatura, UFPE, 2007. Professora da UFRN.
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da memória afro-descendente, quem conta não amplia o que viveu, muito menos recria
o que testemunhou, inventa o que não viveu, concretiza o que imaginou. Narrar sobre a
escravidão é recontar o passado, pelo que ele tem de venenoso. Contar sobre esse tempo
é ficcionalizar o mundo como arte, como possibilidade de sentido para os povos
extemporâneos de ontem e amanhãs. Arte, nesse sentido, como elo de politização contra
a barbárie.
A memória da voz faz o escritor flutuar em volta do imaginário da linguagem.
Busca, em verdade, a voz da superfície. Cada imagem recolhida pela memória fabulária
reconhece como rota as raízes culturais de um povo. Como toda grade da narração
histórica, para se contar, exige-se uma ‘sabença’ de saber inventar verdades na boa arte
de ficcionalizar a realidade. Narrar é uma chave para se abrir as figuras ‘identitárias’ de
um povo. Quando um escritor escreve a memória do tempo da escravidão, traz sempre
às margens aquilo que foi apagado nos livros da história oficial. Nesse sentido, a
memória faz lembrar o que esquecemos, pois traz à deriva a necessidade de não
esquecer. Revigora a missão catártica de lembrar. Lembrar traz à tona o remorso de
amar em um contexto cultural machista.
Paulina Chizianei sinaliza-nos, nas páginas iniciais de Niketche, o que estaria
por trás da trama que, em primeira pessoa, profetiza sobre a condição do amor em
Moçambique. Na África, falar de amor tem uma relação de proximidade com a cultura.
Falar de amor tem um elo importante com o mistério que cobre escutar o ser humano.
Não é tão simples, ouvir o contar. Resgata-se sempre a cura de quem escuta. O roteiro
de escrever pela mão de um tambor exige de que conta o en-canto dessa marcação
sensual do lado espiritual afro, que é o ritual. Em cada ritual, o contar chama o poder de
curar interior. O verso chama os cantos. Todo poema é uma oração.
O maior luxo do nosso tempo é que, “os seres sensíveis adoram valores
frágeis”. Só nos tornamos pessoas apaixonantes quando nos mostramos em nossa mais
que humana fragilidade, demasiadamente humana. Como não lembrar aqui os textos
imagéticos sensuais de Paulina Chiziane!
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Amor. Tão pequena, esta palavra. Palavra bela, preciosa. Sentimento forte e
inacessível. Quatro letras apenas, gerando todos os sentimentos do mundo.
As mulheres falam de amor. Os homens falam de amor. Amor que vai, amor
que vem, que foge que se esconde, que se procura, que se encontra, que se
preza, que se despreza, que causa ódios e acende guerras sem fim. No amor,
as mulheres são um exército derrotado, é preciso chorar. Depor as armas e
aceitar a solidão. Escrever poemas e cantar ao vento para espantar as mágoas.
O amor é fugaz como a gota de água na palma da mão.iv
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Rami, casada com Tony por quase vinte anos, descobre que o marido vive relações
extra-conjugais com mais quatro mulheres. No desenrolar do enredo, Rami vai à
procura dessas mulheres e encontra em cada uma delas a mais humana condição: o ser
vulnerável. A vulnerabilidade, como nos faz lembrar Ortega y Gassetxiv: é o retrato mais
sublime do ser homem, porque, somente quando nos mostramos vulneráveis, é que
somos dignos de paixão ou de compaixão. Como diz o narrador, em primeira pessoa,
de Niketche:
Por isso, afirmo e reafirmo, mulher como eu, na sua vida, não há nenhuma.
Mesmo assim, sou a mulher mais infeliz do mundo. Desde que ele subiu de
posto para comandante da polícia e o dinheiro começou a encher as
algibeiras, a infelicidade entrou nesta casa. Os antigos namoricos eram como
chuva miúda caindo sobre os guarda-chuvas, não me atingiam. Agora danço
a solo num palco deserto. Estou a perdê-lo. Ele passa a vida a fazer
companhia às mulheres mais lindas de Maputo, que chovem aos pés como. xv
A minha casa é dos lugares mais agradáveis deste mundo. Cheia de espaços
abertos. Relva farta, fresca. Flores em todas as épocas do ano. Mas esta casa
é melhor ainda. Foi construída com o dinheiro do meu marido, por isso, é
minha. Esta mulher imita-me e tenta ser mais perfeita do que eu. Fico com
raiva e toco a campainha.xvi
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como repensa Bhabha,xvii “tais como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do
tempo e efetivam seus horizontes apenas nos olhos da mente”. A memória, no contexto
de Chiziane, funda sentido para a história coletiva africana ao instalar valores para o que
há de mais sagrado: a lembrança mítica. Os mitos e ritos tornam vivo o lugar em que a
memória foi apagada.
Bhabha xix abre seus estudos justificando essa questão primordial de que são os
mitos, as fantasias e experiências de diferentes grupos espalhados em diferentes lugares
que vão reconduzindo a pintura imagética de uma nação. Segundo Bhabhaxx, a imagem
de uma nação se concretiza em sua forma de expressão, sua narração.
Em Niketche2, a narração vai sendo recortada pela dança da memória e pelos
traços da cultura corporal do lugar, como se o lugar fosse a largura da cintura de um
corpo africano. O corpo da dança africana vem sendo no livro de Chiziane observado
pelo olhar crítico. Descrente de tudo que toca os olhos do colonizador. Uma crítica que
se volta para enxergar as consequências da imagem eurocêntrica ontem e hoje no
continente africano: “Sou uma mulher derrotada, tenho as asas quebradas. Derrotadas?
Não. Nunca combati. Depus as armas muito antes de as empunhar. Sempre me entreguei
nas mãos da vida. Do destino. Nunca mexi nenhum dedo para que as coisas corressem
de acordo com meus desejos. Mas será que algum dia tive desejo?” xxi
2
Niketche é um ritual, uma dança que acontece na parte norte de Moçambique. Ritual de amor e e
erotismo desempenhada pelas moças moçambicanas do norte durante a cerimônia de iniciação. Lugar
oposto de onde reside Rami que irá atravessar a fronteira do norte à procura de encontrar a si mesmo.
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Teu é filho no ventre. Teu é filho nos braços na hora da mamada. Mesmo o
dinheiro que temos no banco só o tocamos por pouco tempo. O beijo é um
simples toque e o abraço dura apenas um minuto. O sol é teu, lá no alto. O
mar é teu. A noite, as estrelas. Cada ser nasce só, no seu dia, na sua hora, e
vem ao mundo de mãos vazias. Penso naquilo que tenho. Nada,
absolutamente nada. Tenho um amor não correspondido. Tenho a dor e a
saudade de um marido sempre ausente. A ansiedade. Ter é efemeridade,
eterna ilusão de possuir o inatingível.xxii
Sem querer aqui concluir até mesmo porque todo discurso crítico é imparcial e
inacabado, há em Chiziane uma memória do corpo que fala, uma memória africana que
não se cala, que nasce da necessidade de dizer e que não encontra quem a detenha, nem
mesmo a memória do que veio colonizar. A partir do relato da narrativa, as personagens
femininas aproveitam para recuperar a identidade que se perdeu tempo afora e que
agora mais do que nunca está em reconstrução. A importância desta narrativa é
importante para restaurar o que se encontra ameaçado de desaparecer. Falar não é
apenas uma forma de relembrar. Fala-se para não esquecer. Falar muitas vezes é uma
maneira de aquecer o passado. Falar é preciso para se Ser, para contar o que não pode
ser verbalizado; para desatar os nós das raízes entrelaçadas de encruzilhadas culturais.
“O diálogo entre o passado e o presente, entre o velho e o novo é o que proporciona
expressão formal a uma crença na mudança dentro da continuidade.”xxiii Falar sobre o
amor exige coragem para contar a memória da história da mulher africana, mergulhada
na dor e no sentimento que, por sua vez, movimenta o véu não apenas da África, mas de
toda condição humana. A cada época o amor muda de língua, descortina horizontes até
então imaginados.
REFERÊNCIAS
DÍDIMO, Horácio. Amor palavra que muda de cor. São Paulo: Paulinas, 1984 (Livro
de Poemas).
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GIDDENS, A. Viver numa Sociedade Pós-Tradicional. In: BECK, U., GIDDENS, A.,
LASH S., Modernização reflexiva. Oeiras: Celta, 2000.
NOTAS
i
Chiziane, 2004.
ii
Chiziane, Idem, p. 42
iii
Dídimo, 1984.
iv
Chiziane, 2004, p. 42
v
Gidens, 2000
vi
Chiziane, 2004, p. 38
vii
Fanon, 1983, p.17
viii
Chiziane, 2004, p. 31
ix
Comte-Sponville, 2006, p.103
x
Heidegger, 2002
xi
Comte-Sponville, 2006, p.49
xii
Spinosa, 2007.
xiii
Comte-Sponville, 2006, p.49.
xiv
Ortega y Gasset,1973.
xv
Chiziane, 2004, p. 14.
xvi
Chiziane, idem, p. 20.
xvii
Bhabha, 2003.
xviii
Chiziane, 2004, p. 16.
xix
Bhabha, 2003.
xx
Bhabha, idem.
xxi
Chiziane, 2004, p. 18.
xxii
Chiziane, iem, p. 25.
xxiii
Hutcheon, 1991, p. 55.
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*
Professora do CEFET / RJ, onde ministra a disciplina Literaturas Africanas na pós-graduação em
Educação e Relações Etnicorraciais.
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guerras civis. O emergir da ancestralidade e das tradições locais surge como algo
fundamental à construção de uma identidade moçambicana, numa proposta que se faz a
partir dos valores da terra.
Circunstâncias históricas – algumas das quais significativamente marcadas pelo
viés do maravilhoso – prenunciam a chegada de um novo tempo, de sonho e de
reconstrução Em Moçambique, teria havido uma chuva, surgida após um longo período
de seca, coincidindo com o fim da guerra e assinalando, em termos simbólicos, o nascer
de um novo tempo. O vislumbre do sonho propiciado por esse novo período é analisado
por Mia Couto, ao explicar o contexto de surgimento de seu livro Estórias
Abensonhadas. Ao pensar a gênese da obra, o autor relaciona o retorno da chuva à
perspectiva de reconstrução do país:
Além disso, o neologismo acaba por servir a outro propósito: sendo Mia Couto,
segundo suas próprias palavras, um ser de fronteira – branco, filho de portugueses, e
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Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno
concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na
correnteza. O barquinho cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir
mais sozinho que um tronco desabandonado. 6
Mais uma vez os neologismos, traço peculiar da escrita coutiana, surgem ligados
à caracterização do avô. Desbengalado, que poderia sugerir a intensificação de uma
suposta desorientação, é aqui revestido de uma conotação positiva, uma vez que tal
termo é seguido da informação de que era ele quem guiava o menino. Sua magreza é
admirável, visto ser ele musculíneo e marcado pela vontade de viver.
Os extremos parecem se tocar, e a sabedoria do velho é apontada pelo neto como
capaz de reconduzi-lo novamente à infância, num estado de permanente abertura à
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Ainda que não entenda, a princípio, o real sentido da travessia rio abaixo
empreendida pelo avô, o menino acolhe as instruções daquele, como o modo correto de
recolher a água nas mãos:
- Sempre em favor da água, nunca esqueça!
Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente
pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem. 11
(...) Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se
exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a
fronteira entre água e terra. (...)
Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.
12
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Essa fronteira mal definida entre vida e morte presente nesse romance,
muito ligada à concepção africana da morte como entrada na
comunidade dos ancestrais, pode ser considerada uma constante na
ficção do escritor moçambicano. 13
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esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é
que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos
visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E
assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos
para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado
pelos panos. 18
Como que a vislumbrar um novo futuro, escrito com base no respeito à herança
ancestral, o menino passa a enxergar os panos, bem no momento em que o avô morre,
numa cena repleta de lirismo:
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REFERÊNCIAS
FONSECA, Maria Nazareth Soares & CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto:
espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. A magia das letras africanas: ensaios escolhidos
sobre as Literaturas de Angola, Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro:
ABE Fraph / Barroso Produções Editoriais, 2003.
________. O ar, as águas e os sonhos no universo poético de Mia Couto. Gragoatá. n.5.
Niterói: UFF, 1998, p. 159-169.
NOTAS
1
VENÂNCIO, 1992, p. 62.
2
Entrevista ao Jornal Mil Folhas, publicada em 28/09/02.
3
COUTO apud SECCO, 2002, p. 264.
4
FONSECA & CURY, 2008, p. 36.
5
HALL, 2006, p. 61.
6
COUTO, 2008, p. 13.
7
Ibidem, p. 13.
8
BOSI, 2003, p. 74.
9
COUTO, 2008, p. 13. Grifos nossos.
10
Entrevista de Mia Couto ao Jornal Mil Folhas, publicada em 28/09/02.
11
COUTO, 2008, p.14.
12
Ibidem, p. 14.
13
FONSECA & CURY, 2008, p. 32.
14
COUTO, 2008, p. 15.
15
BENJAMIN, 1985, p. 210.
16
Ibidem, p.210.
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17
COUTO, 2008, p. 15.
18
Ibidem, p. 16.
19
SECCO, 1998, p. 161.
20
COUTO, 2008, p. 17.
21
Apud MOELLWALD, p. 4.
22
COUTO, 2008, p. 17.
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Peço permissão para iniciar esta comunicação com um “relato de caso”, com um
fragmento de experiência. Recentemente, encontrei-me afastada por uma semana das
minhas atividades de docência no Departamento de Letras da Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP/MG), em virtude de suspeita da gripe que tem nos afligido. Dos três
cursos que ministro nessa instituição, particularmente, um doía-me por ter de
interrompê-lo. Trata-se do Seminário de Literatura Portuguesa, cujo programa privilegia
a obra de Maria Gabriela Llansol. Então, para não interromper as aulas, pedi a uma
aluna que guiasse a leitura já programada, ou seja, um dos diários da escritora intitulado
Finita. O tom da leitura havia sido definido nos primeiros dias de aula, quando contei
aos alunos sobre uma livraria muito especial que tive o privilégio de conhecer em
Lisboa, na companhia de Maria Gabriela Llansol e seu marido, Augusto Joaquim, por
ocasião de meu primeiro contato com a escritora, mediado pela generosidade da Profa.
Lucia Castello Branco, a quem devo a orientação de mestrado e doutorado sobre e sob
“a pulsão da escrita”1 llansoliana. Portanto, o nome dessa livraria, propus, haveria de
inspirar a metodologia de nosso curso. Chamava-se “Ler devagar”. Sendo assim, ao fim
do dia, a aluna responsável por guiar a leitura, telefonou-me para dar notícias. Disse-me,
feliz, que, sim, tudo havia corrido bem, mas que, entremeando a leitura, alguns alunos
manifestaram angústia, outros desconforto, por se sentirem “perdidos”. Outros ainda
diziam “é belo, mas, realmente, estamos perdidos”. Quanto a mim, reclusa, decidi
enviar-lhes uma pequena carta que aqui transcrevo a seguir:
*********
∗
Psicanalista. Doutora em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG. Professora
Substituta no Departamento de Letras da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP.
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O texto, lugar que viaja,3 nos ensina Llansol e, com Ruben Dario, já sabemos
que não se sabe: “no se sabe adónde va”/“no se sabe adónde irá”. Afinal, as imagens
são fugazes e a fidelidade à indeterminação, só ela, “nos indica el más allá”, deixando,
en la noche, su huella. Pois não foi sempre essa a responsabilidade última do poeta,
indicar o mais além?
Resta-nos seguir seu rastro, os vestígios de sua passagem. Daí o sentido da
perdição, a errância do sentido, o erro do finito − a infinitude contida na finitude do
texto −, a nau perdida da história que o texto de Maria Gabriela Llansol descobre,
acolhe e fulgura.
O resto, poderíamos pensar com a escritora, é a impostura da língua: a
inexorável impostura da língua. Mas também poderíamos pensar, com ela, em A
restante vida: os restos da história, da memória e da desmemoria; a vida para além da
vida, aquilo que a autora nomeou “o vivo”.
O desconforto dos alunos, então, indica a necessidade, instaurada por esse texto,
de um novo pacto de leitura (“pacto de inconforto”, nos diz Llansol), para o qual não há
paradigma, e sobre o qual o texto de Lucia Castello Branco vem, há muito, lançando a
sua luz. Também poderíamos tomar as palavras do Prof. João Barrento, a propósito de
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uma análise do pequeno livro de MGL, Amar um cão, e dizer: “Estamos apenas
nascendo para este Texto. O nosso pensamento, tal como o do cão Jade, é ainda ‘um
pensamento de leite’, o lugar a partir do qual fazemos perguntas é ‘um berço’”.4
Então, desde esse lugar, tentaremos aqui fazer um trajeto, um trajeto sempre
errante: partimos da idéia de “figurações da memória” para chegar à de “fulgurações da
memória”. E a pergunta que fazemos é: haveria nesse trajeto uma direção, uma direção
da cura da história da Tradição, da tradição melancólica do romance?
Partimos da idéia de figura, pois ela nos levará ao cerne do procedimento
llansoliano. Podemos supor, com Blanchot, que a textualidade llansoliana situa-se,
situa-nos e coloca em estado de desastre (queda do astro) categorias fundamentais para
a estruturação romanesca, isto é, espaço/tempo/personagem/enredo, etc. É, justamente, a
noção de figura, tal qual a concebe o projeto textual llansoliano, aquela que
possibilitaria essa operação. O desastre, sim, mas também “a ressurreição dos corpos”,
diria Maria Gabriela Llansol.5 É necessário, portanto, vislumbrar tal noção e, quem
sabe, sondar aí a presença e implicação da e na elaboração pessoana em torno de seus
heterônimos, também denominados, por ele mesmo, de figuras. Lemos em “Gênese e
justificação da heteronímia” de Fernando Pessoa:
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De qualquer modo, tal interrogação não deixa de ter uma resposta na criação do
mundo figural llansoliano. A figura resulta daquilo que podemos considerar como uma
travessia da representação, projeto, sim, da modernidade, mas que abre aqui
possibilidades absolutamente novas. Sendo assim, em lugar de personagens, típicos da
representação dita realista e suas variantes, a figura passa a ser concebida, não mais
como persona, reconstituição ou representação de um Eu imaginário referencial, mas
avança. Trata-se agora de “nós construtivos” do texto, exterioridade configurada em
módulos, contornos, delineamentos, que mapeiam poalhas de luz possíveis à feitura do
verbo, imagens fugazes, soletradas. Trata-se da ousadia, da lucidez ou da loucura de
experimentar as possibilidades da língua, enquanto fora da escrita representativa.
Articulada a dimensão da língua, desdobrada em suas possibilidades i-lógicas,
vemos surgir o mundo como o desconhecido que nos acompanha,10 porque, com Pessoa
e Llansol, já não sabemos o que seja realidade, a não ser a inexorabilidade da impostura,
da impostura da língua, repetimos. Por isso, ela nos diz: “Não ligues excessivamente
ao sentido. A maior parte das vezes é impostura da língua.”
O que está em causa aqui, parece, é o mundo, ou seja, a relação entre as palavras
e as coisas, a referencialidade, a arbitrariedade do signo e as consequências de um
determinado pacto social, em que a ideologia só pode circular às custas de um
semblante natural, tal qual nos ensina Louis Althusser. A realidade? Que mundo é esse
em que proliferam reality shows, depois de um século não sabendo o que seja realidade?
Em um texto intitulado “A literatura e o direito à morte”, Maurice Blanchot11
elabora a formulação, segundo a qual a palavra é a morte da coisa. Sim, nos diz ele, o
mundo, que é o mundo da linguagem, funda-se numa hecatombe inicial: a coisa,
enquanto coisa, há de morrer para que a palavra viva. Por outro lado, Maria Gabriela
Llansol parece tratar da mesma questão quando, em um discurso intitulado “Para que o
romance não morra”,12 ela constata: “nós somos criados longe, à distância de nós
mesmos”. Pois, podemos pensar, essa distância não é outra que aquela instaurada pela
própria linguagem. Além do mais, essa distância, do objeto para sempre perdido, não é
outra senão aquela que instaura a possibilidade melancólica: o crônico labor, a inefável
tarefa, um luto que não se dá. E ainda, podemos, a partir disso, perguntar: como pensar
a obra llansoliana, aquela que busca alcançar as fontes da alegria, no seio de uma
cultura que forja sua letra numa lápide, escrevendo “saudade”. Saudade, palavra
intraduzível, umbigo do impossível: o objeto para sempre perdido. Além do mais, a
letra portuguesa insere-se, a partir daí, numa tradição maior, na tradição melancólica do
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indica que, para ler o texto llansoliano, há que se “psicotizar” um pouco. Eis o preço da
palavra livre, eis o peso da palavra que voa.
A essa palavra livre, cada vez mais livre, à medida que a escritora foi ousando
sair da escrita representativa, e encontrando-se sem normas, sobretudo mentais,
corresponderia (em seu processo de reificação) uma rarefação referencial. Não é sem
consciência, portanto, que Llansol aponta para uma “psicotização”.
Ainda, é possível acrescentar que alguns manuais psiquiátricos, ao descrever o
fenômeno da reificação, localizam-no abundantemente em casos de autismo. Por outro
lado, o mundo figural llansoliano, ao sair da escrita representativa, acaba realmente por
construir um mundo auto-referencial. Começamos a lidar com categorias próprias,
idiossincráticas, figuras do “Espaço Edênico”, que são os nós construtivos desse texto:
não há leitor, mas legentes; não há leitura, mas sexo de ler; não há escritor, mas um
corp’a’screver; não há personagens, nem ficção, mas existentes-não-reais e reais-não-
existentes; não há enredo, mas cenas fulgor. Estamos, portanto, agora, sob o luar
libidinal e as cópias da noite, porque este é o jardim que o pensamento permite, onde
transita Temia, a rapariga que temia a impostura da língua, onde transita Aossê
(anagrama de Pessoa), onde transita Comuns (anagrama de Camões), onde transita San
Juan de La Cruz, Ana de Peñalosa, Teresa de Lisieux, Nietzsche, Hadewijch d’Anvers,
Mestre Eckhart, Spinosa e tantos outros transfigurados pelo Espaço Llansol. Sim, é
outro mundo. E nele, talvez agora, encontremos a chave-de-ler nas mãos de uma
rapariga desmemoriada ou no ramo (anagrama de amor) decepado de Prunus Triloba,
árvore, que florirá.
Ramo, anagrama de amor; Trela, anagrama de letra (cf. Amar um cão): à
manipulação das letras em sua concretude, tão corrente no processo de reificação −
textual llansoliano, neste caso − corresponde uma operação de fulguração. Essa
operação poderia ser chamada de uma “prática da letra”, e poderíamos conceber nela, ao
lado da fulguração, um princípio de mutabilidade, deslocamento da fixidez histórica
para um devir constante. Pensemos em Dom Sebastião transfigurado em Dom, a dádiva
e o dom de Dom Arbusto (cf. Causa Amante).
Propusemos, no início deste texto, percorrer, mesmo que de maneira errante, um
trajeto: de “figurações da memória” a “fulgurações da memória”. Dissemos que
vislumbrávamos nesse trajeto uma direção que, apesar de temerária, afirmava uma cura
da história da Tradição, da tradição melancólica do romance. No entanto, no lugar da
cura, curiosamente, chegamos na loucura: a psicotização, o autismo. Entendemos que a
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que, chegado a esse ponto, o escrever tem uma visibilidade sem fim que, por
isso, a nova linguagem é fácil, e se reproduz por si mesma, contendo em si o
próprio princípio de existir
que é querer continuar a viver sem que o grau da vida degenere, antes
aumente constantemente a vontade de dizer, explícita, a impossibilidade de
dizer, ou de indizível
que este caminho dá vontade de chorar ou de rir,
sendo clara a alternativa de sair desse mal19
Sair desse mal, sair da melancolia, poder dizer «O texto é a alegria que me espera
na linguagem». Ou, ainda, escutemos Llansol em seu Jogo da liberdade da alma:
Quando, já morta, atravesso a rua [...], vejo o nu reflectido no rio que dela
corre. A comunicabilidade das artes (que palavra estranha!), mesmo a de
textualizar, ou seja, a de tornar o amor infinito, seria apenas uma melancólica
constatação da noite. Se essa certeza me acompanha, a sensação, no entanto,
de ter escrito uma coisa firme sobre o conhecimento e o seu amor não me
abandona.20
Então, num tom de pujança ímpar, poderemos, enfim, ofertar (al Quijote, a San
Juan de la Cruz, a Camões, a Fernando Pessoa, a Dom Sebastião, a Ruben Dario) a
nossa prece profana de cada dia:
REFERÊNCIAS
BARRENTO, João. (orgs.) O que é uma figura? Diálogos sobre a obra de Maria
Gabriela Llansol na Casa da Saudação. Lisboa: Mariposa Azual, 2009.
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BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
BRANCO, Lucia Castello; ANDRADE, Vania Baeta. (orgs.) Livro de asas: para Maria
Gabriela Llansol. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
BLANCHOT, Maurice. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio
D’Água, 1984.
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução & melancolia. São Paulo: Edusp,
2002.
LLANSOL, Maria Gabriela. Na casa de julho e agosto. 2. ed. Lisboa: Relógio D`Água,
2003.
LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. 2. ed. Lisboa: Relógio d’água,
1999.
LLANSOL, Maria Gabriela. Causa amante. 2. ed. Lisboa: Relógio d’água, 1996.
LLANSOL, Maria Gabriela. Contos do mal errante. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim,
2004.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Edições Rolim, 1990.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um falcão no punho. 2. ed. Lisboa: Relógio d’água, 1998.
LLANSOL, Maria Gabriela. Amar um cão. Colares: Colares, 1990.
LLANSOL, Maria Gabriela. Ardente texto Joshua. Lisboa: Relógio d’água, 1998.
LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama poesia? Lisboa: Relógio d’água, 2000.
LLANSOL, Maria Gabriela. Causa amante. 2. ed. Lisboa: Relógio d’água, 1996.
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NOTAS
1
O termo é de Maria Gabriela Llansol e se encontra em Na casa de julho e agosto. Cf. nossa tese de
doutorado A pulsão da escrita em Maria Gabriela Llansol e Thérèse de Lisieux. UFMG, 2006.
2
Llansol, 1990, p. 112-113.
3
Llansol, 1998, p. 135.
4
Branco; Andrade, 2007, p. 19.
5
Cf. Quarta capa de Ardente texto Joshua.
6
Cf. Gênese e justificação da heteronímia. In: Pessoa, 1995, pp.77-102.
7
Llansol, 1998, p.130.
8
Barrento, 2009, p.121.
9
Blanchot, 1984, p.205.
10
Essa idéia aparece reiteradamente em O Senhor de Herbais. Cf. , por exemplo, na p.38.
11
Cf. A literatura e o direto à morte. In: Blanchot, 1997.
12
Llansol, 1994, pp. 116-123.
13
Lages, 2002, p. 135-136.
14
Cf. Fernandez, 1979.
15
Cf. Llansol, 2002.
16
Lages, 2002, p. 135.
17
Llansol, 2000, p. 215.
18
Cf. Barthes, 1990.
19
Llansol, 2003, p. 11-12.
20
Llansol, 2003, p. 9.
21
Llansol, 1998, p. 146-147.
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Professora doutora da Universidade de São Paulo.
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Havia somente
As aves de rapina
de garras afiadas
As aves marítimas
de vôo largo
As aves canoras
assobiando inéditas melodias
E a vegetação
Cujas sementes vieram presas
Nas asas dos pássaros
Ao serem arrastadas para cá
Pela fúria dos temporais.
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E se persignou
Receoso ainda e surpreso
Pensando n’El-Rei
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pioneira, os romances escritos por Castro Soromenho, Óscar Ribas, José Luandino
Vieira e Pepetela, por exemplo, colaboraram de forma decisiva para a consolidação do
gênero romanesco no país. Colocar essa história em relevo é uma forma de favorecer
uma percepção mais plural, dinâmica e crítica da história da literatura.
Já no âmbito dos estudos sobre a poesia romântica, é possível estabelecer
paralelos entre a produção empenhada de escritores comprometidos coma Abolição,
como Castro Alves e Luis Gama, por exemplo, e a produção poética contemporânea
configurada como “afrodescendente”. Nesse sentido, importa enfatizar que condição
subalterna dos negros no Brasil não foi substancialmente alterada com o fim da
escravidão. Por isso, no campo de literatura, a sua luta por emancipação e por um Brasil
sem preconceito racial tem sido contínua.
O início da publicação dos Cadernos Negros, em 1978, é um interessante
exemplo dessa luta. Trata-se de uma publicação literária que, desde o seu primeiro
número, divulga contos e poemas que tematizam a vida, a tradição e a cultura dos
negros brasileiros. Propor aos alunos a reflexão sobre contos e poemas publicados nos
Cadernos Negros pode ser uma excelente oportunidade de reflexão sobre o preconceito
e a condição dos afrodescendentes na atualidade.
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(...) E foi poesia que me deu o prosador João Guimarães Rosa. Quando o li
pela primeira vez experimentei uma sensação que já tinha sentido quando
escutava os contadores de histórias da infância. Perante o texto eu não
simplesmente lia: eu ouvia vozes da infância. Os livros de Rosa me atiravam
para fora da escrita como se, de repente, eu me tivesse convertido num
analfabeto seletivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um
outro ato que não é “ler”, mas que pede um verbo que ainda não tem nome.
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma
poesia que me fazia sair do mundo, que me fazia inexistir. Aquela era uma
linguagem em estado de transe, que entrava em transe como os médiuns das
cerimônias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda
que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem.
(...)
Para se chegar àquela relação com a escrita é preciso ser-se escritor. Contudo,
é essencial, ao mesmo tempo, ser-se um não escritor, mergulhar no lado da
oralidade e escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema
único de pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em cada
um dos mundos: o do texto e o do verbo. Não se trata apenas de visitar o
mundo da oralidade. É preciso deixar-se invadir e dissolver pelo universo das
falas, das lendas, dos provérbios. (...)”
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REFERÊNCIAS
___________. Literatura, história e política. São Paulo: Cotia, SP: Ateliê, 2007.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989.
GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde. Literatura em chão de cultura. Cotia, SP:
Ateliê, 2008.
MACÊDO, Tania. Angola e Brasil: estudos comparados. São Paulo: Arte e Ciência,
2002.
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Mesas de Comunicação
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O paralelismo entre os dois planos não é apenas temático, mas terá sua expressão plástica
justamente na composição de infinitas dobras que, ao mesmo tempo, unem e segregam os dois
planos, mas sobretudo tornam seus limites indiscerníveis: a sobreposição das cenas se torna,
assim, sobreimpressão.
Na pintura barroca, as dobras se configuram constantemente na representação dos
tecidos das vestimentas e outros materiais maleáveis, dos quatro elementos, mas sobretudo na
própria disposição dos objetos representados. Deleuze chega a afirmar que as naturezas-
mortas do Barroco têm como principal objeto as dobras, em lugar do referencial figurativo. O
Barroco “projeta mil dobras de vestes que tendem a reunir seus respectivos portadores, a
transbordar suas atitudes e a ultrapassar suas contradições corporais (...)” (DELEUZE, 2007,
p. 202). Tanto nessa reunião das personagens da pintura barroca, quanto no transbordamento
de seus respectivos contornos, é muito significativo o papel da dobra enquanto elemento de
coesão por indiscernir os limites entre os elementos que compõem o quadro e,
conseqüentemente, os dois mundos da tradição platônica, espiritualizando a matéria e, ao
mesmo tempo, dando imanência a elementos que foram tradicionalmente são figurados de
maneira transcendente.
Muitas são as imagens utilizadas por Deleuze para ilustrar o conceito de dobra. Entre
elas há as dobras dos tecidos, do leque, do labirinto, ou mesmo formas esponjosas ou
cavernosas. O que nelas constantemente se ressalta é o seu poder de condensação. Contudo,
na argumentação de Deleuze, a imagem que dá conta do conceito para além de suas
manifestações plásticas é a linha de curvatura variável. Ela é representada por um fio onde
cada ponto constitui uma dobra e que, ao estender-se livremente, dobrando-se, pode compor
uma superfície, tal como um labirinto, ou um fio que compõe um tecido. Procuraremos
demonstrar que é a partir da noção de dobra, enquanto fio do texto, que Maria Gabriela
Llansol caracteriza sua técnica de escrita e a visão de mundo que ela expressa.
A autora em seus textos desenvolve, entre outros, três conceitos fundamentais para a
caracterização de sua escrita: a textualidade que define sua escrita em oposição narratividade,
i.e. os gêneros da efabulação tradicional; a sobreimpressão, que é propriamente a técnica da
sua escrita enquanto representação do mundo; e as cenas fulgor, que são seu produto. Nos
ateremos aqui à sobreimpressão. A autora define-a de uma maneira curiosa, num texto
intitulado O Extremo Ocidental do Brabante (LLANSOL, 1994, p.124-34). Nele, Llansol
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narra duas situações de vida que se lhe impuseram de maneira, segundo ela, embaraçante,
exigindo-lhe uma mutação de olhar – e conseqüentemente de linguagem – que deram origem
à sobreimpressão: maneira pela qual a autora habita o mundo e técnica de escrita que passa a
caracterizar sua obra a partir de O Livro das Comunidades. A primeira situação remete à sua
concepção do devir como simultaneidade, segundo a qual o tempo, ao invés de se suceder, se
acumularia, carregando o presente com as possibilidades inconclusas do passado. Llansol
conta que, numa visita ao béguinage de Bruges, “de súbito, [teve] a sensação estranha de que
vários níveis de realidade ali aprofundavam a sua raiz, coexistindo sem nenhuma intervenção
do tempo” (LLANSOL, 1994, p.126). O segundo caso narra uma experiência da autora como
educadora. Por essa época, Llansol trabalhava numa escola alternativa e então se depara com
o desafio de conduzir ao convívio e à fala uma menina com problemas de comunicação e que
suspeitava-se que fosse autista. São as duas situações em que era preciso fazer falar, fazer
com que a dobra atravessasse e unisse estes “vários níveis de realidade”, que a linguagem (e o
corpo, conseqüentemente) percorresse tanto as dobras da alma como as da história.
O que, tanto num caso como no outro, o que eu procurava sem o saber, era o logos, a
que mais tarde chamei de cena fulgor – o logos do lugar; da paisagem; da relação; a
fonte oculta da vibração e da alegria, em que uma cena – uma morada de imagens -,
dobrando o espaço e
reunindo diversos tempos,
procura manifestar-se.
(...)
Aprendi que o real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena
fulgor se enrola e levanta (LLANSOL, 1994, p.128).
Nota-se, então, que a técnica de sobreimpressão visa a reunir diversos planos, tal como na
mundivisão barroca; ela constitui, sobretudo, uma linguagem que percebe o real através de
dobras. São as dobras do tempo que percorrem o espaço num efeito de condensação,
lembrando as dobras de um leque ou de fio enrolado em novelo. Esta noção da percepção do
tempo enquanto uma realidade confirma-se no diário Finita: “Perscrutar e receber certas
dobras quase gastas e apagadas de acontecimentos históricos.” (Llansol, 1987, p. 29) Note-
se ainda, na citação anterior, que o real é visto como um fio que tem seu nó desatado enquanto
a cena se enrola, quando o verbo usual é em português é desenrolar. Esse enrolar remete ao
fio que, ao executar dobras, se condensa: a linha de curvatura variável.
Há, ainda, um trecho particularmente interessante do diário Um Falcão no Punho,
onde a sua concepção de escrita nos parece associada ao conceito de dobra, que merece aqui
alguns comentários.
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Não é porque as palavras estão deitadas por ordem no dicionário que imaginamos o
texto liso, e sem relevo. Nós sentimos que as palavras têm normalmente a forma de
esponja embebida ou, se se quiser, o relevo de pequenas rochas pontiagudas e
reentrâncias ali deixadas pela erosão (LLANSOL, 1998, p.135).
Já na primeira frase, somos remetidos à linha de curvatura variável, pois é a dobra que encurta
a distância entre os pontos, em seu característico processo de condensação, como vimos em
relação a imagem do leque ou do labirinto; além disso, fica claro que essa condensação se
confunde com a operação de coesão entre os planos que a dobra exerce. Em seguida, o
próprio pensamento é concebido enquanto dobra, em sua relação com a linguagem: “porque
falamos, pensamos em novelo”. O jogo de palavras entre novelo e novela, alude ainda a
oposição entre narratividade e textualidade. A “picada rápida” sugere o efeito de identificação
recorrente na narrativa tradicional, enquanto que o “emaranhado no estômago ou no coração”
remete ao efeito de estranhamento característico da escrita da autora que, como vemos aqui, é
uma vertigem causada pelas dobras, tanto na linguagem como no pensamento, análoga ao que
se percebe com freqüência nas artes plásticas do Barroco. No último parágrafo, através da
menção ao texto liso, a autora contesta uma ordenação artificial do texto, tal como no
dicionário, no sentido de uma ausência de dobras. Ainda, as imagens da esponja e da rocha
com reentrâncias são as mesmas utilizadas por Deleuze para ilustrar as dobras da matéria.
É nesse sentido que acreditamos que o conceito de dobra seja uma componente
importante tanto da visão de mundo da autora quanto da concepção de sua escrita,
configurando um recurso estético que visa a sobreimprimir diversos níveis de realidade, de
maneira análoga ao processo que caracteriza o Barroco.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Giles. A dobra: Leibniz e o Barroco. 4ª. ed. Campinas: Papirus, 2007.
LLANSOL, Maria Gabriela. Finita. 1ª. ed. Lisboa: Rolim, 1987.
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 1. 1ª. ed. Lisboa: Rolim, 1994.
LLANSOL, Maria Gabriela. Lisboaleipzig 2. 1ª. ed. Lisboa: Rolim, 1999.
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LLANSOL, Maria Gabriela. Um beijo dado mais tarde. 2ª. ed. Lisboa: Rolim, 1991.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no Punho. 2ª. ed. Lisboa: Relógio D’água, 1998.
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Pense em homens encerrados numa caverna, dotada de uma abertura que permite a
entrada de luz em toda a extensão da parede maior. Encerrados nela desde a
infância, acorrentados por grilhões nas pernas e no pescoço que os obrigam a ficar
imóveis, podem olhar para a frente, porquanto, as correntes no pescoço os impedem
de virar a cabeça. Atrás e por sobre eles, brilha a certa distância uma chama. Entre
esta e os prisioneiros delineia-se uma estrada em aclive, ao longo da qual existe um
pequeno muro [...] (Platão, 2005, p. 225).
1
Aluna do curso de graduação em Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), sob orientação do
Professor Otávio Rios. Integra o Programa de Apoio à Iniciação Científica da Universidade do Estado do
Amazonas para o período 2009/2010. Para contato, escrever para adrianaguiarodrigues@gmail.com.
2
Professor Assistente de Literatura Portuguesa da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e Doutorando
em Literaturas Portuguesas e Africanas no Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian/Cátedra Jorge de Sena para
Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros. Para contato, otaviorios@gmail.com.
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desamparo perante o mundo. Os decadentistas, que não viam as benesses do tão alardeado
progresso, recuperam a sensibilidade e a angústia diante de um mundo que não atende às suas
necessidades, atirando, assim, o homem de seu tempo à marginalidade, condição inspiradora
do artista ou, ao menos, motivadora de um novo conceito estético-literário.
O decadentismo desponta nas duas últimas décadas do século XIX e segue até as duas
primeiras do XX, aproximadamente, e caracteriza-se por uma busca de inovação estética e
literária, assinalada pelo gosto excêntrico e pela sensibilidade levada ao extremo. O ideal
decadentista advém do conceito de decadência como atitude existencial, pautada na filosofia
de Nietzsche e Schopenhauer. A decadência no campo filosófico, portanto, excede o
decadentismo como proposta estética, sobretudo pelo “sentimento de fatalidade e crise, ou
seja, a consciência de estar no fim de um processo vital inevitável e na presença da dissolução
de uma civilização” (Hauser, 1998, p. 914-915). Uma crise de valores que parece levar à crise
existencial, criando um desconforto com o mundo e sujeitando o artista à criação de estéticas
desconcertantes.
Eduardo Lourenço ao abordar o aspecto expressionista na cultura portuguesa, procura
caracterizá-lo fora dos limites europeus e afirma que “‘o expressionismo’, em todos os seus
matizes, tal como floriu na [...] Europa e fora dela, teria de ser, em Portugal, qualquer coisa de
mais estranho ainda do que já é na sua originária manifestação” (2001, p. 24). É com esse
espírito que o grupo de jovens escritores autoproclamados Nefelibatas, promove uma
renovação literária na cultura portuguesa, cujo eco haveria de se prolongar e atuar como
substrato do modernismo, já tão próximo, ao virar a esquina do século.
Raul Brandão, António Patrício, Cesário Verde e Fialho de Almeida estão entre os nomes
que mais se destacam em pensar e firmar o decadentismo como proposta estética, que lançará
o germe em prol de uma escrita excêntrica, indisciplinada, grotesca, “cuja atmosfera brumosa
envolverá vozes catastróficas e salmos de morte” (Valentim, 2004, p. 34), que escandalizará o
bom senso burguês, acostumado à tradição narrativa dos oitocentos.
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vão surgindo [...] como espectros, imagens grotescas, cadavéricas. São mais nomes
caricaturais, obsoletos, disformes até, que retratam a mediocridade de um mundo
sórdido e confuso, de ambições mesquinhas, de desejos torpes, de invejas e ódios
recalcados (Valentim, 2004, p. 44).
O rei abrange, em si mesmo, toda a alma da cidade, feita de sombras, ambições, poder
e fantasias soterradas. No lado oposto dessa paisagem, “sobressaindo a visão brandoniana de
um cenário corroído, carcomido pela degenerescência e decadência humana (Valentim, 2004,
p. 43), surgem os pobres, autênticos heróis decadentes. Condenados a padecer no nevoeiro da
cidade negra, os mendigos de ”O mistério da árvore”, embora banidos do progresso e
herdeiros da catástrofe, são também livres para fenecer diante da desconstrução do sonho de
uma sociedade igualitária e re-viver num momento histórico não linear, não positivista, que
surgiria posterior ao tempo do Rei. Um tempo de primavera global para os mendigos, tempo
de sonho:
ela envolta na palha dos cabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram
pobres. E assim, apenas vestidos, vieram enlaçados pela Primavera, cobrindo a terra
erma, que calcavam, de vida e de amor. Eram pobres e felizes (Brandão, 1985).
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progresso. Para os pobres amantes, o esplendor da vida é a própria morte. Raul Brandão,
perseguindo esse ideal, declara a morte como herança dos pobres, dos loucos, dos que ainda
amam, dos que ainda esperam: “era dor estreme e sonho estreme” (Brandão, 1985), quanto
maior a dor advinda da miséria humana, maior o sonho de superá-la. Como afirma Eduardo
Lourenço,
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acontece apenas que em Raul Brandão [...] coexistem duas visões numa amálgama
irredutível, num único movimento de escrita que a do interior continuamente as
suspende, pois não visa mais do que glosar a presença substancial da morte, mar
que nos banha e onde tudo banha, sonhando-a, mastigando-a, cansando-a, até que a
sua sombra, de uma maneira incompreensível, se dilua e nos conceda a ilusão de
sermos imortais nela e por causa dela (2001, p. 33).
Em tempos que a morte avança sobre a vida, Raul Brandão, com seus matizes
decadentistas, concebe um caminho para subverter a própria morte, dissolvendo-a na terra
seca e transformando-a em sopros de esperança, antes que tudo desfaleça. Brandão, ao que
nos parece quando lemos “O mistério da árvore”, assim constrói a dialética da vida-morta e da
morte-vida: vida que fenece de um lado, vida que renasce de outro; sombras que se avultam
depressa, luzes que se encorpam para um porvir.
Os prisioneiros da caverna de Platão, embora conseguissem ver as luzes que
chamejavam na parte exterior, não a alcançaram. Para os pobres do conto brandoniano as
luzes estão logo em frente, não no progresso, essa quimera, mas sob a terra úmida de seus
próprios corpos, como na cena final de Émile Zola em Germinal.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Raul. “O mistério da árvore”. In: MOISÉS, Massaud (org.). O conto português.
São Paulo: Cultrix, 1985.
GAMA, Manuel. “A trilogia vida-morte-Deus em Raul Brandão”. In: COLÓQUIO AO
ENCONTRO DE RAUL BRANDÃO, 1999, Porto. Actas. Porto: Lello Editores, p. 15-26,
2000.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. Tradução Marcos Santarrita. 2.
ed. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
LOURENÇO, Eduardo. “Cultura portuguesa e expressionismo”. In: A nau de Ícaro e imagem
e miragem da lusofonia. São Paulo: Companhia das Letras. pp. 23-36, 2001.
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Ensaio sobre a cegueira, lançado em 1995, pelo escritor português José Saramago,
difere-se dos romances históricos, como Levantados do chão (1980), que consagrou o autor
Nobel de literatura, e dos demais nesta mesma esteia como Memorial do Convento (1982), O
ano da morte de Ricardo Reis (1984), e História do cerco de Lisboa (1989), primeiro por não
haver nenhum contexto histórico específico envolto à trama, depois por não haver definição,
nem de tempo, nem de espaço, de onde se sucedem os eventos. Os personagens imersos nesta
atmosfera quase onírica não possuem nomes, apenas alcunhas. Este vazio de espaço, tempo e
nomes é propositado na obra tanto para que o foco recaia nos fatos ou no enredo (mythos),
como para que esta atinja um cunho universalizante. Assim como em A jangada de Pedra
(1986), o enredo é entrelaçado em torno do elemento insólito – com a diferença de que não há
um contexto político externo que o subjaz; Ensaio sobre a cegueira vem todo imerso nesta
órbita.
O enredo inicia com um personagem que, ao parar no sinal de trânsito, descobre-se
subitamente cego. Este primeiro personagem passa a ser reconhecido como “o primeiro
cego”. Em curto espaço de tempo, naquelas redondezas vão ocorrendo outros casos
semelhantes, sendo que todos estes possuíram alguma rede de contato com o primeiro
indivíduo, ao que advém a constatação de ser o “mal” contagioso. Assim, ultrapassa os
limítrofes da cidade até tornar-se um desastre universal. Porém, curiosamente uma mulher
conhecida por “a mulher do oftalmologista” é a única que não é afetada.
*
Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-graduação do Departamento de Letras e Artes da
Universidade Federal de Viçosa (UFV).
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De pronto, o que chama a atenção, além do fato de uma “cegueira repentina”, é o fato
de que a mesma, contrariando a patologia conhecida, é branca. Uma “treva branca” além de
constituir semanticamente uma antítese, nunca fora relatada. Entretanto, as descrições
fornecidas por todos que são acometidos pela nova cegueira são símiles: parecem que estão
imersos em “um mar de leite”, um “nevoeiro”, uma “brancura luminosa”:
O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no
meio de um nevoeiro, é como se estivesse caído num mar de leite, Mas a cegueira
não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra. (SARAMAGO,
2008:13)1
O contraste entre claro e obscuro é dado a todo tempo na obra e traz metaforicamente
inúmeros significados. O branco que caracteriza a cegueira é compreendido nos estudos de
ótica como o que aglomera todas as cores, gerando a luminosidade. O inverso ocorre com o
preto, que é aquele desprendido de todas elas.
Segundo princípios básicos de óptica, podemos dizer, grosso modo, que o preto e o
branco não são exatamente cores. A luz branca seria a mistura de todas as cores que
formam o arco-íris, enquanto o preto seria a ausência total de luminosidade; ou, em
outras palavras, o branco seria a reflexão total da luz, e o preto, a retenção total.
(CALBUCCI, 1999: 85)
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O Mito propõe uma analogia entre os olhos do corpo e os olhos do espírito quando
passam da obscuridade à luz: assim como os primeiros ficam ofuscados pela
luminosidade do Sol, assim também o espírito sofre um ofuscamento no primeiro
contato com a luz da idéia do Bem que ilumina o mundo das ideias. (CHAUÍ,
2000:1)
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numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só
as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente
invisíveis. (p.16)
O que é devorado para o “primeiro cego” não é apenas o colorido das coisas, mas a
significação recorrente dada a elas pelo mundo palpável. Agora, estas diluem-se junto ao
logos social e passam a um processo de re-significação.
Fica evidente, portanto, o processo pelo qual os indivíduos são sobrepujados quando
assolados pela cegueira. A cegueira os leva a uma forma traumática de contato com a physis,
o que implica a desconstrução do logos ou do aparente. Este embate fará com que percam
parte na construção da civilização, já que esta é toda assentada no logos. Dessa forma, a
cegueira sendo branca se configura como local privilegiado do “mundo inteligível” e como
despreendimento do “mundo sensível”.
Além do elemento insólito de uma “cegueira branca”, outro fator inverossímel é o fato
de apenas a mulher do médico oftalmologista não ser afetada. Conforme vimos, este momento
de ofuscamento é também momento de apreensão da verdadeira realidade e da idéia do Bem.
Na obra, a temática do egocentrismo aflora como elemento comum e que salta mais
rapidamente como desestabilizador das relações humanas. E a única persona que enxerga
prontamente o quão prejudicial a si é o negar o Outro ou sobrepôr-se a ele, é a mulher do
médico. Por isso, ela não precisa passar pelo processo da cegueira, pois está apta a verificar as
coisas conforme Saramago salienta em sua epígrafe: “Se podes olhar, vê. Se podes ver,
repara.”.
Sendo assim, “a mulher do médico” como aquela que já compreende a idéia do Bem,
se torna sábia no comportamento social e capaz de agir em prol do coletivo. Seu olhar de
alteridade é o que funciona como antídoto e o que irá permitir que ela continue enxergando,
para ser duplamente a visão daquelas pessoas ao seu redor. Desde o momento em que seu
marido fica cego, ela demonstra-se altruísta, não age com receios de contaminar-se, mas antes
pensa na condição alheia, desprovida do sentido da visão. Durante a quarentena que irão
vivenciar, ela continua dando provas destas preocupações, efetuando um papel para além de
auxílio nas coisas práticas, mas em uma função quase que messiânica, como no mito aquele
primeiro homem que se liberta da caverna e possui a tarefa de voltar para anunciar a Boa
Nova aos demais e, assim, libertá-los. Ela é quem poderá intervir nos processos mentais de
compreensão dos fatos daqueles indivíduos aprisionados em suas concepções.
Na obra, todos os demais irão passar pelo momento de iluminação, e de acordo com
que isso ocorre, as autoridades os isolam do restante da população para evitar contaminações.
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Desta forma, ela, como sobrevivente ao processo, para cuidar do marido, precisa fingir estar
cega para ser também posta em quarentena. Existe, portanto, aparentemente, um movimento
no livro que é inverso ao da obra do filósofo: o autor parte do momento da anagnorisis, do
ofuscamento, para depois encerrar estes indivíduos como em uma “nova caverna” e
posteriormente libertá-los. Porém, nem tudo na obra do escritor é tão simples.
De fato, existem dois, e não um movimento, sendo desenrolados na obra: um primeiro
ao qual chamamos de físico ou externo, que se dá no nível raso e aparente da narrativa (no
mythos propriamente dito) e um segundo ao qual chamamos metafórico ou interno, que se dá
em um nível mais profundo, abstrato e cognoscível. Uma Teoria das Ideias sendo desarrolada
dentro da Teoria das Ideias.
Ao contrário do mito, o enredo do livro não se inicia na caverna como elemento físico
ou geográfico, mas com uma sociedade que, agrilhoada às suas convenções e vaidades
ostentatórias, não possui relacionamentos verdadeiros, principalmente no que obriga a seus
indivíduos a abrirem mão de sua individualidade em prol da alteridade. Desta forma, o
movimento exteriorizado no livro logo de inicio é a cegueira dos cidadãos, pois, quando
perdem o contato direto com o mundo sensível, que, de acordo com Platão, é o vinculado ao
aparente e motivo de engodo, é que passam a entrar em contato com o mundo inteligido, mais
complexo e menos accessível: o da essência.
Parte-se no plano externo (ou físico) do real para a caverna, ao marginalizarem os
cegos, colocando-os em quarentena em um manicômio abandonado, presos sob as guardas
militares em condições subumanas; enquanto no plano metafórico o movimento que
aparentemente é inverso e às avessas ao mito platônico, torna-se símile por retirar os cegos do
mundo aparente para o da essência. A diferença consiste no fato de que o inteligível no mito
se dá fora da caverna e na obra, dentro. O processo caminha em ambos os casos na mesma
direção, a do esclarecimento.
O local escolhido para ser a caverna de Saramago é por si só, irônico, pois coloca em
xeque a sanidade dos cegos, menções por vezes feitas pelo próprio narrador no momento em
que um incêndio assola o local, obrigando-os a saírem em busca de sobrevivência: “(...) o
fogo que de repente alastrou fará de tudo isto cinzas. O portão está aberto de par em par, os
loucos saem”. (p.210)
A sanidade é relativizada de acordo com a ordem do mundo, ver a essência, falar a
linguagem que adentra a origem das coisas é estar como louco perante a ótica social. Michael
Foucault, em A ordem do discurso, salienta que a sociedade impôs um regime de verdade em
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que aqueles que não o seguem são excluídos como loucos, pois se “expressam
absurdamente”:
Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo
discurso não pode circular como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja nula
e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar
na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato (...) pode ocorrer também,
em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras estranhos
poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar
com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber.
(FOUCAULT, 2008:10, 11)
No momento em que deixam o manicômio, tudo o que antes era sinal de opressão é
desfeito, o teto da ala esquerda cai e descobre-se que os policiais não estão mais por lá para
temerem-lhe as balas. O fogo, símbolo recorrente na literatura3, é sinal de purificação e de
renovação. Serve também para “apagamento da memória”4 traumatizante: barbárie destruída,
bárbaros mortos, repressão desfeita.
Este momento também pode ser visto como um mito civilizador, levando a
interpretação de que apenas aqueles que conseguem livrar-se da morte dentro ao caos
instaurado é que são os prontos para a nova etapa que irá ser seguida lá fora. Muitos morrem
ao longo da quarentena por não conseguirem lidar com a “clareza” das coisas. A morte é o
único momento que podem se livrar da luz e adentrar as trevas:
(...) na morte a cegueira é igual para todos [...] Orientados pela mulher do médico,
arrastaram os cadáveres para o patamar exterior e ali os deixaram ficar à lua, sob a
alvura leitosa do astro, brancos por fora, negros enfim por dentro. (p.204, 205)
Torna-se, portanto, metáfora daqueles que não conseguem lidar com o mundo
inteligível, aqueles aos quais a verdade foi insuportável. É o que ocorre: com o ladrão, sempre
em busca de argumentos que amenizassem sua culpa; com os da camarata esquerda, que
impuseram uma nova ótica capitalista e desonesta em proveito próprio; com a cega das
insônias, que, como aqueles que possuem algum pesar na consciência, não consegue dormir.
O mesmo ocorre fora do manicômio com a velha do primeiro andar, que morre segurando as
chaves da rapariga de óculos escuros, da qual cobrou para que as entregassem.
Apesar de estes indivíduos já se encontrarem em processo mental de embate com a
essência de todas as coisas, a demora ou, nos casos acima, a inapetência de responder aos
estímulos pode ser explicada pela própria assertiva de Platão em seu mito:
Meu caro Glauco, este quadro – continuei – deve agora aplicar-se a tudo quando
dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da
prisão, e à luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo
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Agarrou desta vez na candeia e foi à cozinha, voltou com o garrafão, a luz entrava
por ele, fazia cintilar a jóia que tinha dentro. Colocou-o sobre a mesa, foi buscar os
copos, os melhores que tinham, de cristal finíssimo, depois, lentamente, como se
estivesse a oficiar um rito, encheu-os. No fim, disse, Bebamos. As mãos cegas
procuraram e encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. Bebamos, repetiu a
mulher do médico. No centro da mesa a candeia era como um sol rodeado de astros
brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos olhos escuros e o velho
da venda preta estavam a chorar. (p.264)
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REFERÊNCIAS
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NOTAS
1
Todas as citações da obra passarão a serem feitas pela edição: SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008; sendo, portanto, citado apenas o número da página.
2
O termo physis aqui está sendo empregado além do sentido de natureza como gênese (origem), essência de
tudo, vinculado, pois, ao conceito ideal de verdade apreendido no mundo inteligível; enquanto logos é
empregado na acepção de discurso racional, ou seja, uma representação da matéria inteligida, vinculado, pois,
ao mundo sensível, da aparência, da fala e dos gestos, por exemplo. Sobre a Teoria das Ideias aconselha-se a
leitura de Fédon, do próprio Platão, onde ele a formula.
3
Como em O Ateneu de Raul Pompéia, por exemplo, em que o internato é incendiado e destruído junto com a
vaidade ostentatória de Aristarco, seu diretor, ou em O cortiço, de Aluisio Azevedo, em que o fogo que destrói e
purifica o local de suas mazelas, serve para o ideal de João Romão do surgimento de um espaço mais nobre e
aburguesado em contraponto à ambientação de antes.
4
Sobre processos de amnésia social e relações de memória verificar: HUYSSEN, Andreas. Passados presentes:
mídia, política e amnésia. In: Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000 e BURKE, Peter. História como memória social. In: Variedades de história cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
5
A obra utilizada como referência de A República será a 9ª edição da tradução de Maria Helena da Rocha
Pereira, vinculada à Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa e datada de 1993.
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1 PREÂMBULO
*
Este trabalho está vinculado ao nosso projeto de doutorado, intitulado “O discurso tático: os ardis da palavra
cerceada”, que tem como objetivo geral identificar os processos de significação do discurso narrativo,
especificamente os recursos utilizados para a disseminação de sentidos encobertos, na ficção portuguesa da
década de 60.
**
Doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria, RS (UFSM);
Professora de Literatura do Curso de Letras – Português e Literaturas – a Distância da UFSM.
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Por ora uma promessa só: saltou a lebre e arranquei sobre ela. Via-a que salta, vou-
lhe no encalço. Tremo é se penso no avanço dela sobre o galgo. Que hesitou até que,
decidido enfim a perseguir, terá de engolir distâncias esgotantes antes do gozo
inigualável, o de abocanhar. (p. 111)3;
ou ainda o trecho em que o narrador, depois de relatar um episódio de sua vida, diz: “Escrevo
isso inquieto. [...] Não dei ainda o último esticão em direcção ao ar.” (p. 122).
Não é por acaso que o primeiro escrito do narrador-protagonista, ainda em criança,
contava a história de um homem que dava pulos, como também não é por acaso que esse
sucesso tenha preocupado a família como um evento talvez subversivo:
Um dia peguei em uma caneta, em um tinteiro e em uma folha de papel [...] e escrevi
[...]:
U omãi qe dava pulus era 1 omãi qe dava pulus grãdes. El pulo tantu qe saiu pêlo
tôpu.
[...] Dois dias mais tarde reuniu-se o III ConselhodeFamíliaporcausadoPequeno. [...]
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A partir desse evento, o meu futuro seria outro. Por determinação do Conselho, um
Professor de Cultura Mental velaria pela minha inteligência, a qual, segundo o
consenso familiar, corria o grave risco de se interessas por coisas inquietantes. (p.
48)
Num outro contexto, o escolar, o gosto do narrador por um “perigoso objecto” – uma
caneta de tinta permanente – provoca da mesma forma o alarme do “Professor de Hábitos
Suíços”, que perguntara ao aluno qual era o objeto pessoal de que mais gostava. Ao ouvir a
resposta, o professor pareceu espantar-se, “visto que alargou as sobrancelhas num gesto de
meditação tão horizontal quanto vertical” (p. 70), e imediatamente mandou buscar o objeto
para ser destruído. É justamente nesse passo que o menino se rebela, armando um estratagema
para declinar da ordem, o que acaba por levá-lo a “Julgamento”.
Aqui é importante observar as diferentes instâncias de poder e de cerceamento que se
vão colocando ao longo da narrativa. Desde a organização familiar até a colegial, em todos os
círculos sociais (inclusive no âmbito religioso) se reproduz a mesma estrutura repressora do
Estado. No contexto familiar, temos os Conselhos (cujas determinações são devidamente
registradas em ata!), que deliberam acerca da educação do menino e reprimem as “más”
inclinações à medida que se manifestam, tomando para tanto as devidas providências. É assim
que a criança é submetida, por exemplo, à tutela de um “Professor de Cultura Mental”, diante
do que o menino acaba por se revoltar (pela primeira vez abertamente), atirando pela janela
todo o material de trabalho:
Ao nono dia do ensinamento realizei o projecto que pesava, havia tempos, no meu
pensamento: pegando nos papéis, livros e alfaias outras que repousavam sobre a
chamada Mesa de Trabalho [...], arremecei o todo pela janela aberta. [...]
Como meu avô era o único membro da Família que se encontrava em casa quando
da minha rebelião, a ele se dirigiu o Professor, exigindo satisfações.
“Detesto a juventude, e ainda para mais quando é porca” declarou ele (avô) ao outro
ele (o Professor).“[...] Pessoalmente, divido os habitantes do mundo em duas
classes: a dos que leram romances franceses antigos e a dos que não leram [...]. Se
eu fosse Deus, fulminaria a segunda [...].
“Senhor”, exclamou, trêmulo de ira, o Professor. “Pessoalmente [...] odeio todos os
romances, ainda mais os franceses, e especialmente – muito especialmente – os
antigos, pois os considero ruins árvores cujo nefasto fruto é a revolta [...] (p. 49-50)
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a espreitar pelas frinchas das portas durante a noite; ou quando tentou impressionar a tia
encarregada de sua instrução “Moral” coçando-se “virilmente” entre as pernas. No colégio,
suas atitudes não foram menos revoltosas, veja-se o episódio que envolve o Professor de
Hábitos Suíços e o Julgamento a que deu azo. Delineia-se aí um temperamento rebelde diante
de uma estrutura repressora, repleta de órgãos reguladores, à qual se torna necessário opor
resistência – e é em função disso que nasce no colégio o “CSAE (Comitê Secreto de Arreda
Estuporação)”, encabeçado por alunos que, em reuniões clandestinas, pretendem articular-se
contra a “insuportabilidade do Colégio”.
O que se verifica em âmbito nacional (uma situação de repressão contra a qual alguns
grupos se insurgem, clandestinamente), reproduz-se em menor escala no Colégio. O Colégio
representa assim, miniaturalmente, a estrutura repressora do Estado e as manifestações
subversivas que daí sobrevêm. Note-se, entretanto, que em nenhum momento há qualquer
referência explícita a esse dado histórico-político, que só pode ser recuperado com atenção a
datas e a alguns índices esparsos, e isso apenas a partir do segundo painel do romance. No
primeiro painel, o que temos é essa representação miniatural e algumas marcas muito sutis,
que apenas na relação com outros elementos da narrativa podem ser lidas como referências
implícitas à censura ou ao processo de silenciamento. Vejamos.
No segundo fragmento do primeiro painel, o narrador fala da rua onde se situava a
casa em que fora habitar: “Pela poeirenta rua deslizavam carros, volumes, carteiros e toda
sorte de animais. Como um rio, o barulho do que na rua decorria se raspava de encontro aos
muros da que, agora, era a minha casa” (p. 45). Na seqüência, o narrador diz que, ao cair da
noite, quando “a rua se tornava numa tira preta colada aos vidros”, ele se dirigia à casa de
banho e ali se sentava “para ouvir pingar as torneiras, pois tinha medo do silêncio” (p. 46).
Esses dois fragmentos, lidos em contraste, revelam uma curiosa oposição entre rua e silêncio.
Observemos de que modo essa oposição se estabelece.
A rua é “como um rio”; essa similitude é reforçada por termos que remetem ao fluir
das águas (“deslizavam”, “decorria”); a rua é barulhenta e por ela passam, entre outras coisas,
“carteiros” (elementos que medeiam a comunicação). Ao cair da noite (veja-se que se trata de
uma imagem descendente, de coisa que cai, com peso), a rua, antes clara e barulhenta, torna-
se uma tira preta e silenciosa (é sensível a claridade ruidosa da primeira imagem, assim como
o silêncio noturno da segunda). Aqui podemos recorrer ao valor simbólico da imagem do
“rio”, assim como da “noite”. O fluir das águas do rio é normalmente associado ao fluir da
vida, podendo simbolizar possibilidades incessantes de renovação. A relação rio/rua–vida é
reforçada por imagens de movimento e pela própria presença de seres vivos nesse contexto. Já
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a imagem da noite pode ser associada à morte, ao pesadelo, à angústia, ao caos. Esse sentido é
reiterado pela cor preta que a rua adquire à noite, cor que assume geralmente um valor
negativo, sendo associada às trevas e à morte. A rua noturna não tem vida4, é silenciosa, e
esse aspecto tenebroso da rua imersa na escuridão e no silêncio emerge na fala do narrador
quando ele afirma que “tinha medo do silêncio”. Assim, torna-se significativa a busca pelas
torneiras que pingam, quebrando o silêncio. O pingar das torneiras retoma metaforicamente o
fluxo da rua/rio (vida, movimento) e nesse sentido oferece um lenitivo para o medo do
menino diante do silêncio (morte, estagnação). Por uma via indireta, aqui se coloca em
relação o silêncio da noite com o contexto ditatorial, em que a palavra é cerceada; e o
movimento da rua com as possibilidades de mudança sugeridas pela imagem do rio.
Na segunda parte do romance, o medo do silêncio transmuta-se na impotência do
dizer. A sensação de impotência pode ser “lida” como um efeito desse mesmo contexto de
repressão vislumbrado no painel inicial. O primeiro capítulo do segundo painel, que se chama
justamente “O impotente”, diz dessa dificuldade que o narrador encontra para escrever a sua
história. Essa difícil relação do narrador com a escrita perpassa todo o romance, que pode
mesmo ser compreendido como um relato do aprendizado da e pela escrita. Mas voltemos à
dimensão revolucionária do ato de escrever e observemos como, através dele, o narrador nos
põe em contato com as mais variadas formas de revolta.
No segundo painel, as referências à situação histórico-política podem ser identificadas
por vias menos sinuosas; há que se observar, todavia, que a maioria das indicações se ligam
ao contexto sócio-cultural de um modo muito geral. As reflexões sobre o contexto histórico,
recorrentes no romance, limitam-se à crítica de costumes e de comportamento social coletivo,
não havendo menção explícita à política, embora haja referências indiretas ou implícitas. Já as
questões relacionadas à sexualidade, por sua vez, adquirem maior proeminência nesse painel,
em que são narrados vários eventos ligados ao “desenvolvimento” sexual do narrador, como
também de outras personagens.
Independente de se tratar da busca pelo prazer/afirmação individual ou ainda da busca
pela comunhão com o outro, o sexo, no romance, assume um caráter libertário, guardando,
portanto, uma dimensão revolucionária. Vejamos um episódio relatado no terceiro capítulo do
segundo painel. O capítulo intitula-se “Sanctus”, palavra latina que significa “santo, inocente,
casto, venerável, sagrado, inviolável, intacto”, mas que pode também significar, como
particípio do verbo “sancire”5, “ordenado” ou “confirmado”. De fato, o capítulo trata dos
preparativos para a celebração chamada “Crisma” ou “Confirmação”, um dos sete
sacramentos instituídos pela Igreja Católica que, junto com o Batismo e a Eucaristia,
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O derradeiro desvio se dá quando o protagonista celebra o que foi, para ele, a sua
“confirmação”: uma arrebatada relação sexual com uma desconhecida num canavial.
Encontrara a menina num ônibus e ela o requisitara mediante um gesto sem palavras, ao que
ele acedera, desembarcando atrás dela e seguindo-a até o canavial:
Fui assim ungido. De óleos santos, num contexto que não tive tempo para
aprofundar: Lisboa-aos-saltos; brutal, talvez infecciosa e hereditariamente carregada.
Mas livre e solta como um coelho corre o mato ao cair da tarde. (p. 120)
[...] Porque foi já há muito tempo que, ao cair da tarde, Lisboa autêntica me
acometeu, num rebolão. Que desflorando-me inaugurou um longo e lento adeus às
alcatifas. (p. 122)
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Tomás, que manifestava, segundo o narrador, uma “despenteação mental” crônica, uma
espécie de “loucura” cuja primeira etapa era a “Virtude”, resumida “num grande NÃO
lançado aos verbos 1) beber 2) jogar 3) e fornicar” (p. 141). O “programa ascencional” de
Tomás cai por terra numa ocasião em que, estando em instrução militar de campo, ingere
inadvertidamente uma bebida alcoólica, que lhe revira os sentidos. Na seqüência, avista uma
prostituta que acompanhava a tropa e com ela quebra seus votos de Virtude, para nunca mais
professá-los.
Depois: ah, que o Tomás largou a rigidez exterior, largou. Facto que não logrou
limpar-lhe os bastidores, complexos-culpa de enovelamentos infindáveis. Contudo,
no explorar variado que efectuaria em selvas do sexo e da piela aos gritos, outras
zonas foram borbulhando até explodirem à tona do comportar-se. Crescer dá uns
enormes pulos. (p. 144)
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A relação sexual só é justificável, num adulto, se for uma maneira de estar imenso
com alguém. De estar tanto com alguém que se está com toda a restante gente como
poucas outras vezes. [...]
De cada vez que eu e o Puto estamos dans l’amour sinto-me fazendo o ponta da
situação dos meus contemporâneos. Ou rezando por eles. Quer dizer: em relação por
assim dizer directa com a força invisível que sustenta o homem em progresso.
No momento da relação física – mesmo que tome a forma de um sorriso trocado
num café – ultrapassamo-nos. (p. 247)
Do ponto de vista masculino, essa relação é vista não apenas como comunhão, mas
também como retorno às origens, como indica esta fala do narrador: “Nascido nu dum sexo de
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mulher, raro é o homem que se encontrará antes que, de novo assim vulnerável, descubra
pistas de subir além do ponto de partida” (p. 111). É como se, nesse retorno, o sujeito se
encontrasse novamente despido, podendo apenas desse modo reconhecer-se livre, sobretudo
das convenções, para, a partir daí, seguir um caminho independente.
A busca por uma identidade, ou pela independência, é o que nos permite estabelecer
uma ponte entre o plano sexual e o plano intelectual, pois a necessidade de retorno (e de ir
além a partir daí) se aplica tanto com relação à descoberta do próprio ser, como também com
relação à descoberta da escrita própria. O estabelecimento dessa ponte entre um polo e outro
(o sexo e a escrita) nos é facultado pelo próprio texto, em que o narrador freqüentemente se
utiliza de metáforas sexuais para se referir à escrita. Ao falar do “retorno” ao qual nos
referimos anteriormente, o narrador afirma que ele é necessário para que se possa,
Veja-se que mulher e tradição (literária) estão postos no mesmo nível, ou no mesmo
lugar inicial. Assim como o homem deve retornar ao seu início – a mulher – para descobrir-se
verdadeiramente homem, também para encontrar o “tom próprio” no campo da escrita é
necessário voltar às origens, ou seja, à tradição. É Zana quem explicita no romance esse
processo necessário à descoberta e ultrapassagem de si, ao afirmar que não pode haver
“criação literária madura sem a preexistência de uma tradição alimentadora” – é preciso,
portanto, efetuar o “mergulho na tradição e logo de seguida regressar à superfície vivo” (p.
250). É justamente esse preceito que o narrador-protagonista parece tentar seguir a fim de
encontrar o tão buscado “tom próprio”.
Chegado à escrita, ali mergulhando, perdendo-se e reencontrando, o narrador enceta o
que podemos considerar a forma mais sutil de revolta, e ainda aqui se verifica o magistério de
Zana, que é quem primeiro afirma o “lugar de vanguarda da luta pela lucidez que só a prosa
ocupa” (p. 246). Nesse sentido, a escrita dá continuidade ao processo iniciado pelo narrador a
partir de sua “confirmação” – lembremos de suas palavras ao dizer que toda aquela
experiência humana “se desdobrava num sentido de abrir os olhos” (num universo que era de
cegos – frise-se bem).
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As palavras transcritas acima são de Zana. Ao se propor escrever, a personagem registra num
caderno suas reflexões sobre a condição sócio-política portuguesa e as possíveis formas de
resistência ou de atuação sobre essa realidade. A política, do mesmo modo como no restante
da narrativa, não é referida diretamente, mas a alusão ao contexto ditatorial está implícita
tanto nas palavras de Zana quanto nas do narrador, que também acusa “Horrores de
prisioneiro sem escapatória à mão, mas precisando de sair de Portugal-prisão para
reencontrar-se” (p. 107). A “escapatória” virá pela escrita, que aos poucos o narrador passa a
dominar, a partir de um “exílio temporário”. A situação de repressão e a condição de
“exilados” em que são colocados aqueles que não compactuam com o sistema é apontada
também por Zana: “Sinto que pertenço a um país que me não quer. [...] Ora eu e os meus
contemporâneos portugueses somos cucos nascidos em ninho de pintarroxo. Ficaremos ou
não” (p. 255).
O discurso das personagens torna patente a inadaptação de uma fatia da sociedade que
não abona o sistema e, o que é mais grave, age contra ele, abalando-o pelas bases que,
segundo acreditam, repousam no comportamento social submisso e conservador, contra o qual
o narrador se insurge:
O tempo. Ele me pesava, duro. Queria mover-me em suas correntes para furtar
minha futuração àquele estuário, onde via borbulhar a escória toda, repimpada de
velhice antecipada: tanto fazia que ostentasse gravatas acertadas como gonorréia
crônica, o padrão era envolvente. E eu tinha de escolher. O quê?
[...] Mas, em pleno meio de jogos, vinha o relâmpago azeviche: como e para quê
está o meu ir? [...] E arre, rodeado como estava de resignações alheias – doridas
umas, outras de sorrisinho sonso. Pelo que parecia condenado a não ter qualquer
espécie de irmãos (desconhecedor que era, ainda para mais, de letras vivas e outras
artes afiadas). (p. 200)
Como aparece indicado na fala do narrador, furtar-se a essa situação não constitui
tarefa fácil, pois o padrão é “envolvente”. No entanto, a modificação desse padrão é condição
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indispensável para o decorrer da vida, identificada aqui com o movimento, com a alteração no
estado das coisas, em oposição à estagnação, à persistência de antigos valores, identificados
com a morte. Por isso, a percepção de que a força da inércia pode paralisar os movimentos na
direção da mudança leva à comiseração do narrador ao lembrar-se dos veteranos:
Os veteranos: pus-me a pau por causa deles, está visto. [...] E mais resmungo
réquiens lembrando a moribundação de vários companheiros. Vi: grandes mecos da
melhor extracção humana rapidamente sorvidos; contaminação de quem, em vez de
fazer vida, deixa que o tempo a esboroe com vagares dum oceano lamentável
devorando o litoral.
[...] Éramos muito novos e tínhamos as algibeiras cheias de possível [...]. Os
veteranos topavam essa distância. Abraços galhofeiros disfarçavam com dificuldade
a baba expectante do vampiro recebendo berço com recheio. Eles eram sádicos da
Espanha: vengam más caballos sempre que o toiro estripa um. Caballo sim, talvez.
Mas devagar. Assim dei chuva ao solo meu, que dela precisava para esguichar o
tenro verde das revoluções completas, casuísticas. (p. 145-146)
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No item anterior tentamos uma aproximação – que, acreditamos, nos é facultada pelo
próprio romance – entre sexualidade, política e escrita. Certamente essa aproximação não é
arbitrária, pois até mesmo as palavras do narrador e da algumas personagens apontam para
essa ligação, bem como para a dimensão revolucionária desses três campos, conforme
esperamos ter demonstrado em nossos apontamentos anteriores. Há, no entanto, um elemento
que reforça no romance essa ligação: as imagens aquáticas que pululam na narrativa e que são
usadas indistintamente com referência àqueles três campos.
Começando pelas imagens da rua como um “rio”, da existência como um “nadar”, do
processo de escrita como um “mergulho”, chegamos enfim à imagem de Portugal como uma
“jangada”:
O meu saber o mundo desde o começar: situação de naufrágio. Foi como se nascesse
a bordo de jangada onde pessoas inseguras andassem reinando ao estamos-num-
paquete. Vi água entrando como em passador, e lá-vai-d’eu, nadar até trepar noutra
jangada. Quando esta segunda geringonça naufragou, foi nova natação até que entrei
numa terceira. Já estou (momento actual) de novo a dar aos braços e à pernas; que a
jangada III se está sumindo na profundidade das loucuras antiquíssimas. (p. 113-
114)
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Por sob o que sucede numa dada ordem, outra existe. Jonas forcejando por jogar-se
fora da baleia Branca tem de ser o captar receitas estratégicas, decifração do mapa
que nos diz como, por baixo das falsas ruas, as verdadeiras se entrelaçam. Descobrir
os modos aguentadores no actuar segundo as catacumbas fingindo alinhar à
superfície. É isto a salvação. Só quem perseverar até o fim de si verá o sol no meio
da noite. (p. 112)
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É-me apontado. Agonística por sobre a Terra superficial caso queira beber das mil
nascentes nas cavernas ocultas do eu-mesmo: ali e só ali encontrarei o ponto de
contacto, comprimento de onde sintonizando as notícias claras do que seja o
universo, alfabetização paciente a tintas de ser eu.
Cá em cima viverei ainda uns quantos tempos, estilo cristão da clandestinidade em
Roma. Tal como eles continuam, romas mil em que a primeira jurídica Babel se
desdobrou. Enterrado enquanto ao sol oficial, redescoberto sempre que penetrando no
eterno ventre de Erda, a nova luminosidade. (p. 112)
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland et. al. Análise estrutural da narrativa. 3. ed. Trad. Maria Zélia Barbosa
Pinto. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.
BRAGANÇA, Nuno. A noite e o riso. 3. ed. Lisboa: Moraes, 1977.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Efhraim Ferreira Alves. Rio de
Janeiro: Vozes, 1994.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e
Silva, Raul de Sá Barbosa, Ângela Melim e Lúcia Melim. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.
Doutrina Católica. Disponível em: http://br.geocities.com/worth_2001/index.htm. Consulta
em: 08 dez. 2008).
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa.
2. ed.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
1249
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NOTAS
1
Acepções registradas no Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa, 2ª edição, de 1986.
2
Neste ensaio, tomamos o termo “índice” num sentido bastante amplo, que ultrapassa em muito seu sentido
próprio (signo que mantém relação causal ou de contigüidade com o referente). Consideraremos um “índice”
tudo aquilo que possa indicar, na narrativa, algo não desenvolvido ou não explicitado, abarcando sob esse
conceito, de modo um tanto arbitrário, tanto os elementos indiciais propriamente ditos, como também elementos
metafóricos ou simbólicos. Essa concepção de “índice” encontra suporte no conceito adotado por Roland
Barthes, para quem “os índices, pela natureza de certa forma vertical de suas relações, são unidades
verdadeiramente semânticas, pois, contrariamente às “funções” propriamente ditas, eles remetem a um
significado, não a uma operação; a sanção dos índices é ‘mais alta’, por vezes mesmo virtual, fora do sintagma
explícito”. Esse tipo de sanção, que Barthes chama “paradigmática”, implica, segundo o autor, “relata metafóricos”. Cf.
BARTHES, Análise estrutural da narrativa, 1973, p. 31, 32.
3
Todas as citações sem referência a partir daqui serão do romance. BRAGANÇA, Nuno. A noite e o riso. 3. ed.
Lisboa: Moraes, 1977.
4
Esse caráter sinistro da rua sob a noite é revertido no segundo painel, em que é introduzido no espaço noturno
um elemento transgressor: o riso. A dimensão revolucionária do riso é significativa no romance; veja-se a
propósito a oposição marcada no título da obra entre “noite” e “riso”. Contudo, não desenvolveremos esse
aspecto neste ensaio.
5
Sancio, -is, -ivi, -ire: estabelecer, decretar, ordenar, ratificar, confirmar.
6
As informações sobre o sacramento da Confirmação foram recolhidas no site Doutrina Católica. Disponível
em: http://br.geocities.com/worth_2001/index.htm. Acesso em 08 dez. 2008.
7
Um ponto a ser considerado (que, no entanto, não desenvolveremos neste ensaio) é o papel indispensável da
mulher no processo de afirmação da masculinidade: o homem só atinge verdadeiramente essa identidade a partir
do momento em que logra estabelecer contato físico com o sexo oposto – antes de possuir a mulher, o homem
não se torna “homem”. Nesse sentido, o estigma da falta do falo é revertido, pois é o homem quem depende da
mulher para assumir a identidade que apenas ela pode lhe conceder, enquanto a mulher já nasce “mulher”. Veja-
se, a propósito, a definição de “virgem” que traz o Dicionário Aurélio: “1. Mulher (especialmente mulher
jovem) que nunca teve relações sexuais, através da vagina, com homem; donzela. 2. Mulher solteira; moça”.
Como se pode ver, o dicionário refere apenas a “mulher” virgem e, em nenhum momento, o homem, o que
aponta para a ideia de que virgindade e masculinidade são incompatíveis. Parece, portanto, não ser possível ser
“homem” e “virgem”. Essa concepção, difundida pelo senso comum e registrada até mesmo pelo dicionário, é
expressa na literatura em tantos exemplos que nem vale a pena enumerá-los.
8
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva, Raul de Sá
Barbosa, Ângela Melim e Lúcia Melim. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
9
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Trad. Efhraim Ferreira Alves. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
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1
Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Feira de Santana.
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Produzida num tempo de mudança ideológica acelerada, essa escrita final preservou-se
atenta aos elementos da realidade circundante.
Para a leitura dos contos A Aia e O Tesouro, tomamos como elemento condutor
a idéia de que esses textos exibem explicitamente o diálogo com as narrativas
tradicionais, ligadas à oralidade e formuladas com intenção exemplar. Longe de anular
o teor crítico, essa aproximação às fontes longínquas da tradição oral trabalha a serviço
de uma ironia ainda mais arguta e refinada.
As duas narrativas exigem do leitor abandono de toda ingenuidade e suprema
atenção para com as artimanhas textuais. Em A Aia e O Tesouro percebe-se claramente
que o autor se utiliza do teor moralizante próprio às fábulas para construir uma espécie
de contra-exemplo e tecer severas críticas a um ideário que inclui submissão e corrosão.
Extensiva à situação política do país, envolvido em disputas colonialistas, a crítica
presente em O Tesouro, alcança especialmente a família, vista como célula primeira da
sociedade.
Em A Aia, através de uma estrutura fabular que na superfície glorifica a
servidão, manifesta-se obliquamente a ironia. Expondo um fato absurdo, uma mãe que
sacrifica seu próprio filho para que o futuro rei sobreviva, Eça obriga o leitor a refletir
sobre as assimetrias sociais.
Publicado pelo jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 03 de abril de
1893, A Aia trazia como título original Tema para versos, recebendo esse segundo nome
de Luís de Magalhães, na ocasião da publicação do volume Contos de Eça de Queirós,
por ele organizado em 1902. O título pensado por Eça dá um norte à leitura do conto.
Além disso, no sentido de situar o deslocamento entre a forma literária e a matéria nela
tratada, o autor introduz a narrativa com um pequeno prólogo de aproximadamente três
parágrafos (omitido em muitas das edições) que, de igual maneira, nos direciona. O
tema é para versos, todavia, o leitor está diante de um texto narrativo1:
A História que eu, há dias, desejava contar para que algum poeta, amigo dos
temas fecundos e estimuladores do pensamento, a compusesse em versos
ricos (e que não contei por me ter demorado a construir diante dela um
pórtico de considerações gerais) sucedeu na Índia. A Índia, terra das
pedrarias, das galas e dos céus suntuosos, sugere logo a um artista largos
desenvolvimentos decorativos.
Mas a minha história necessita ser apresentada com toda a simplicidade na
sua nudez moral, sem paisagens, arquiteturas ou trajes que a materializem.
O poeta, que, por ela se passar na Índia, a orne de palmeiras, elefantes, e
baiadeiras, corre a um desastre certo. Sem épocas, sem nomes, sem
localizações que possam verificar num mapa, abstrata e como acontecida no
país das almas, esta história de uma alma, que se dirige só a alma, deve vir
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envolta em tão pouca literatura, como aquelas que o Povo em sua singeleza
genial, torna profundas – vivas e imoventes, afirmando apenas, com
magnífica indiferença pelas épocas, pelas nações e pelos costumes.
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REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Queirós, 1997, p.1525.
2
Gonçalves e Monteiro, 2001, p.20.
3
Duarte, 2006, p.19.
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TRAVESSIAS
A literatura tem influência relativa. Philip Roth dizia que uma ditadura
aprisiona seus opositores em campos de concentração e uma democracia os
prende a uma tela de TV. A imaginação pode ser um convite à passividade e
à alienação. Vem daí a responsabilidade do escritor, de fazer uso da
imaginação e da linguagem de forma a não alienar, de forma a discorrer sobre
sua visão política. A literatura tem exigências enormes de tempo, de
concentração… Se um romance pode conscientizar seus leitores? Depende do
escritor. Não acho que Balzac tenha conscientizado seus leitores sobre a
necessidade de uma revolução burguesa na França, mas acho que Soljenitsin
alertou seus leitores sobre os horrores do estalinismo. Em tempos de ditadura,
a literatura ganha outra leitura, que tem a ver com o momento político, e isto
pode ser ruim. A literatura latino-americana sofre de uma praga, a “literatura
platanera”, a literatura de fundo populista…2
1
Professora substituta de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
Rio de Janeiro (IFRJ).
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narrativas ainda abrigam o encantamento da relação divina com a palavra, não mais
falada, mas escrita como se fosse falada. Nas palavras do próprio autor:
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investigar o incidente. Ao narrador, cujo nome não se revela na narrativa, não cabe
somente a tradução simultânea das falas dos personagens, na verdade, o que ele traduz
para o italiano são os modos de ser e de pensar daquele lugar, porque a cultura africana
envolve um modo particular de ver e de estar no mundo. O estrangeiro tenta usar
métodos avançados, fazendo suas investigações através de uma lógica cartesiana, no
entanto, o tempo todo, fica desconcertado com os acontecimento que vão se sucedendo,
pois, além do mistério das explosões sem causa aparente, depara-se com outros fatos
como o sumiço das letras dos seus relatórios, o desaparecimento das suas gravações e a
existência de Temporina, uma personagem cujo rosto é de velha, mas o corpo é jovem.
Sendo assim, é possível afirmar que o livro problematiza o resultado do encontro
entre a tradição e a modernidade. Para Hampâté Ba, não adianta querer “penetrar a
história da África e o espírito dos africanos” sem se apoiar na tradição oral, que é um
conjunto de conhecimentos de toda espécie. A palavra falada é “agente mágico por
excelência” e “grande vetor de forças etéreas”.13
É neste encontro conflituoso e tenso que está assentada a ideia de nação que a
literatura de Mia Couto pretende traduzir. O próprio escritor considera-se um tradutor
da memória e da história em Moçambique, lugar que está numa situação de viagem, de
busca, de reorganização social e política, de construção da identidade, de reinvenção da
sua cultura. Segundo ele, o seu papel como escritor é ser um “tradutor de silêncios”, que
expressa através da literatura aquilo “que não está dito” e “que não pode ser palavra”.
Ele diz que isto não resulta de um mérito seu, mas nasce da sua condição de participar
como cidadão de uma nação que está se inventando. Para ele, “esta condição histórica
14
proporciona a ausência de um retrato. É essa ausência que o escritor busca traduzir.”
No nosso entender, o narrador do livro pode ser entendido como representação deste
escritor que é um tradutor do universo construído a partir deste encontro. Numa
entrevista concedida em 2003, Mia Couto diz o seguinte:
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Exortação aos crocodilos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
COUTO, Mia. Entrevista com Mia Couto. In: MARQUÊA,Vera. Via Atlântica. São
Paulo: USP. N.º 8. p. 205-217. DEZ/2005a.
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005b.
1264
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FUENTES, Luis Carlos. O dândi pessimista: entrevista com Luis Carlos Fuentes. O
Globo, Segundo Caderno, p. 1. 17 de julho de 2009.
HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (org). História geral
da África,volume 1- metodologia e pré-história na África. São Paulo: Ática, 1982. p.
181-218
NOTAS
1
COUTO, 1998
2
FUENTES, 2009, p. 1
3
LUSTOSA, 2009, p. 3
4
COUTO, 1998
5
COUTO, 2007
6
HALL, 2003, p. 108
7
MAXWELL, 1999
8
HALL, 2000, p. 47-48
9
HALL, 2000, p. 51
10
HALL, 2000, p. 62
11
COUTO, 2005a, p. 9
12
HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 183
13
HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 182
14
COUTO, 2005b, 209
15
COUTO, 2005b, 208
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efeito, encontraríamos nesses rincões, conforme ainda a expressão de Eliade, uma verdadeira
“imago mundi”, um umbigo do mundo.
Há muita semelhança entre esses espaços e aqueles onde os povos arcaicos
reatualizavam os mitos cosmogônicos. Nesses lugares privilegiados, o homem mítico
acessava o tempo das origens, o tempo da criação do mundo e o reinseria, através do rito, no
instante do agora. Conforme Georges Gusdorf:
O lugar consagrado, tal como ele se nos oferece e não somente para o primitivo, [...]
constitui pois uma espécie de promoção figurativa de uma parte do universo
chamada a valer pelo todo. Uma certa porção de espaço, recortada na realidade
humana, faz função do espaço inteiro para o serviço dos deuses. (1980, p.69)
Digamos que, de maneira semelhante, o eu lírico dos poemas de Sophia trava contato
com esse mesmo lugar das origens, região adâmica onde o homem revigora o existir, restaura
o olhar primevo, o olhar auroral das origens. Ainda conforme o autor de Mito e metafísica,
“O lugar consagrado é, pois, por excelência, o do encontro entre o homem e o divino” (p.70).
Para Sophia, assim, os espaços imersos em seus poemas são o cenário de um encontro
fecundo com o sagrado e também com aquilo que Heidegger chamou de “a verdade do ser”,
nossa essência humana mais fecunda.
De acordo ainda com Gusdorf, “O primitivo não se sente situado num horizonte
estritamente geográfico. O lugar do seu presente é sempre indivisamente um posto
ontológico”. Semelhantemente, o espaço na poesia de Sophia também será um “lugar
ontológico”, dimensão física onde as verdades da condição humana encontram expressão.
Outra característica da geografia de Sophia está na revelação de um “tu” errático, de
uma segunda pessoa em trânsito. Nos espaços da poesia da autora, alguém indeterminado,
além da voz lírica, foge por caminhos tortuosos, por diretrizes sem rumo certo. Delinear essa
presença torna-se quase impossível, visto ser uma segunda pessoa de realidade inescrutável.
Poderia ser o amado, ou até mesmo um ser fantástico, fantasmal. Há, portanto, nesse “tu”,
certo ar de mistério, que lhe acaba conferindo um aspecto sacro, de ser intangível.
Dessa maneira, quando esse “tu” se revela ao eu lírico, os espaços tornam-se
transitórios, receptáculos de um rito de passagem, em que uma presença muito estimada
perde-se, esvai-se, sem justificativa, causando assombro na voz poética. Dentre os espaços
que marcará essa falta, estão o caminho, a passagem, a estrada. Esses lugares onde a
transitoriedade é marcante ganham imensa importância para Sophia; eles tornam-se metáfora
da própria efemeridade do destino humano, destino esse em permanente fuga.
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Como se pode notar nesse poema, o forasteiro exalta o esplendor das coisas, a
plenitude do que existe.
Nesse sentido, aqui podemos encontrar uma característica importante em toda a obra
da autora. Sophia, conforme uma perspectiva heideggeriana, empreenderá a busca da
dimensão infinita dos seres e dos objetos imersos no tempo e no espaço. De acordo com o
filósofo de Ser e tempo, cabe ao poeta desvelar, na concretude do que existe, a “verdade do
ser”. Em sua obra, Heidegger fez importante crítica ao imperialismo do pensamento técnico e
racional na sociedade capitalista. Tal pensamento empreenderia o desocultamento dos objetos,
dos entes, tornando o mundo mero repasto de cálculos, de porcentagens, de mensurações.
Brüsseke e Sell (2006) apontam, em relevante ensaio, essa questão abordada pelo filósofo
alemão:
[...] o pensamento técnico reduz a composição do Ser aos poucos elementos úteis no
processo econômico, funcionaliza o presente do Ser, calcula custos e benefícios em
termos que violam a sua estrutura filigrana e misteriosa.
(p.109)
Nesse sentido, para Heidegger, “a coisa é mais que mero fato; ela sempre aponta para
algo inacabado e infinito” (Brüseke, 2006, p.109). Dessa maneira, as coisas e os seres estão
além de sua mera factualidade, eles têm algo de inescrutável, de profundamente sacro. O autor
de Ser e tempo, dessa forma, valoriza “a experiência das profundezas e da plenitude da
existência” (Brüseke, 2006, p.106). Viver de acordo com essa perspectiva é viver
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poeticamente. Ao poeta cabe ser o guardião da casa do Ser. Eis o valor instituído por Sophia
ao ato da escrita: instaurar, conforme famosa expressão de Walter Benjamin, a aura nas coisas
e nos seres.
Continuando nossa breve análise, temos, na poesia da autora, além do caminhar, outro
movimento corpóreo de importante significação. Referimo-nos à dança.
Na escrita da autora de Cristo cigano, a dança semeia movimentos de suavidade, de
encantamento pelos espaços, delimitando o âmago não só do corpo do bailarino, mas também
do próprio lugar. O eixo corporal alinha-se a um eixo espacial, o eixo do próprio cosmos,
onde toda a natureza encontra sua plenitude. Carne e espaço, assim, tornam-se uníssonos,
indiscerníveis, formando um amálgama perfeito. Dessa forma, a dança passa a ser uma ação
de pesquisa da dimensão do corpo e do espaço.
Essa característica da dança na poesia de Sophia se difere de outras posturas físicas
encontradas na literatura, em que o corpo se acha deslocado no mundo, como se o homem não
encontrasse o seu devido lugar. Um exemplo típico desse estranhamento do corpo em relação
ao espaço pode ser notado nos romances de Kafka, em que as personagens, persecutórias,
vivem fugindo de algozes, seres estranhos e às vezes indiscerníveis.
A dança, como se sabe, desempenhou importante papel na formação do pensamento
filosófico e das artes. Paul Valéry comparou o ritmo da poesia à dança. Nas artes plásticas,
Degas utilizou-se de suas famosas bailarinas como tema pictórico recorrente, pelo qual
intentou imprimir certo ritmo à natureza estática da tela. E, claro, não podemos nos esquecer
da seguinte afirmação de Nietzsche: “só sou capaz de acreditar em um Deus que dança”.
É flagrante, aqui, a relação de Nietzsche com a cultura grega, principalmente com a
tradição do deus Dionísio, deus da dança e da embriaguês. Cabe também ressaltar o quanto a
cultura grega foi preponderante na formação poética de Sophia e o quanto o culto dionisíaco
perpassa sua obra. A poeta chegou a escrever poemas sobre o deus Dionísio, em que ela o
descreve, narrando sua história mítica.
Podemos encontrar essa celebração da dança, dos movimentos do corpo, no poema
“Divaga entre a folhagem” (p.129), do livro Dia do mar:
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riquezas do real. E indo além, a autora enuncia no texto: “um novo mundo nos pede novas
palavras”. Esse mergulho apaixonado é também um mergulho na palavra, em um existir
atento à vida e ao mundo em redor:
O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre duas pedras erguidas numa
relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem
com as coisas é medido – quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente.
Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o
silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é solene mas também
inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande
rascasso vermelho passa em frente de mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a
luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido
e acordado. Sem dúvida um mundo novo nos pede novas palavras, porém é tão
grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na
superfície das águas lisas como um chão. (ANDRESEN, 1999, p. 107)
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centrais de suas indagações. Tal poesia torna-se expressão das ausências, dos mortos a
povoarem os sonhos e os delírios do eu lírico. Assim, a figura mítica de Orfeu será exaltada
por Sophia, como um “mitema” desse assombro do viver.
Com efeito, Sophia insere sua obra naquele tipo de escrita pela e na morte. Sua lírica,
conforme idéias de Eugênio Drumond, não versa apenas “sobre a morte, mas,
especificamente, sobre o estar a morrer, infinitamente, no texto”. Retomando o pensamento de
Maurice Blanchot, afirma ainda Drumond:
Há, na lírica da poeta, aquele não deixar os mortos morrerem, de que nos fala a
filósofa espanhola Maria Zambrano: “Levei [...] os meus mortos sobre mim, sentindo o seu
peso, esse torpor de seu novo estado; retive-os enquanto não podiam partir” (p.143),
“Sumiam-se em mim quando ficavam sem corpo. E padecia eu as suas dores indizíveis, as que
não tinham tido nome” (p.142). Há, nesse monólogo poético de Zambrano, à maneira
nietzschiana, uma verdadeira compaixão pelos mortos e, mais além, uma compaixão irrestrita
pelos condenados a serem humanos e, portanto, mortais. Tal compaixão irriga também a lírica
de Sophia e a faz poeta atenta ao fluxo do tempo, à impermanência do existir.
Todo esse escrever pela e para a morte encontra na descida ao centro da terra o
movimento arquetípico daqueles que desafiam o perecimento da vida. Emblemático, no
poema “Eurydice”, o eu lírico assume a própria voz de Orfeu e canta a perda da amada, do
viver humano em geral:
I
Este é o traço que traço em redor de teu corpo amado e perdido
Para que cercada sejas minha
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II
As paredes são brancas e suam de terror
A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo é como eu fechado e interior
Não sei por onde o vento possa entrar
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(2001, p.60)
Eis a grande magia dessa lírica, tornar o prosaico, o banal, em fato irrevelado, em
acontecimento margeado por um grande mistério, o mistério que no fundo é o da nossa
existência. Percorrer os espaços líricos de Sophia é simplesmente, portanto, nos debatermos
nas velhas e caducas questões metafísicas: O que estou fazendo aqui? Por que vivo aqui? Para
onde vou?
REFERÊNCIAS
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Quando comecei a refletir sobre o que seria uma abordagem minimamente aceitável
à obra do poeta Luis Maffei, Conclui que tinha essencialmente dois caminhos a seguir. Um
deles seria fingir que não conheço pessoalmente o poeta. Neste caso forjaria um
distanciamento falso para parecer que conheço mais a obra que seu autor, embora, devo
admitir, ambos sejam para mim um claro enigma. O caminho outro, e será este que
seguirei, seria pura e simplesmente admitir que minha leitura é a leitura de alguém ligado
ao autor também por laços de afeto e de amizade. Sendo assim minha leitura também
convive com o convívio entre mim e o poeta e isso não pode ser deixado de lado. Aliás, é
exatamente esta coexistência que me torna íntimo do registro de seu nome na carteira de
identidade que é Luis Cláudio Sant’Anna Maffei nascido em Brasília em 1974. E Graças
essa a mesma fraterna coexistência tenho acesso ao fato de que Luis Cláudio Sant’ Anna,
agora somente Luís maffei, registra, em sua memória, jogos de futebol ocorridos em
épocas em que sequer o poeta em questão tinha nascido. Tal registro, não raro chega ao
requinte de guardar datas, escalações de times e placares das partidas.
Bem... Essa capacidade natural para o registro acaba manifestando-se em outras
frentes de construção intelectual como a poesia e a publicação de antologias de poetas
portugueses. Esta capacidade para o registro, inclusive, manifestou-se certa altura através
da construção de melodias para poemas africanos em língua portuguesa assim como para
poemas portugueses contemporâneos. Tal realização deu-se em parceria com Marcelo
Gargalhone(o Marcelo citado no poema “Nelinho” que se verá mais logo) co-autor das
melodias que serviram de moldura para a idéia de registrar em disco a filiação lusófona,
que sempre foi um questão de grande importância para Luís Maffei.
1
Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
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A poesia militante de Brecht, então, serve aqui para a fusão entre a poesia e a
reflexão sobre o que pode ser um leitor crítico, uma reflexão consubstanciada a partir da
sentença “o pior analfabeto é o analfabeto poético’ que substituí a famosa “o pior
analfabeto é o analfabeto político”. Então, desse poema-paródia emergem o poeta e o
crítico que instalados no mesmo corpo estimulam uma visão crítica sobre o barateamento
do texto. Estas reflexões de Luis maffei, que são também um apanhado crônico( significado
“um apanhado do cronista” e também significando “apanhado radical, mais profundo,
recorrente”) vem a desembocar em Telefunken seu segundo livro. Neste obra poética é
visível a instauração do já mencionado gosto por registros mensurável através das
referencias encontradas no livro como: a quadros que comovem o poeta, a um ou outro
acontecimento feliz entre os pares e amigos, mas. sobretudo, das referências nada
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Há livros cujos títulos são pistas falsas (o que muitas vezes se reflete em erros de
catalogação muito divertidos), mas normalmente, o título de um livro funciona
como um micro-texto que antecipa ou sintetiza determinados traços da obra a que
diz respeito, e, sob esta perspectiva, o título do segundo livro de poemas de Luis
Maffei, Telefunken, provoca uma certa estranheza no leitor. Primeiro por recorrer
a uma palavra alemã, que significa “difusão à distância”, para nomear um livro de
um autor brasileiro. Depois, porque essa palavra é uma marca de rádios e
televisores – ou era, porque os televisores Telefunken já desapareceram do
mercado.(MARTELO, 2009, p.2009)
Pois justamente este título muito bem justificado por Rosa Maria Martelo, é
desconcertante ao nomear com a marca de um fracasso capitalista uma obra com aspirações
poéticas. Mais desconcertante ainda, se levarmos em consideração que o televisor antigo
aparece como notícia rápida num poema dedicado ao jogador ou ainda a um gol do jogador,
Nelinho, lateral direto da seleção brasileira 3º lugar na copa de 1978. Telefunken nem ao
menos nomeia uma poema, é tão somente uma palavra que figura entre tantas no poema
“Nelinho”. Mas a ironia se configura maior porque justamente através deste aparelho
extinto se vê um lance de futebol de beleza rara uma beleza assinalada claramente pelo
poema “Nelinho”. E se configura maior ainda diante da percepção de que a extinta marca
de tv assinala um momento eterno, tão eterno que ainda hoje pode ser revisto, agora, graças
a Internet num portal chamado Youtube.
Atacado por essas sugestões decidi olhar para outro poema em que uma palavra
estrangeira também figura como menção a um eletrodoméstico: ipod(uma espécie de
mistura de diminuto superrádio e arquivo eletrônico). Trata-se do poema “Maffei no
inferno”. Passeando por “Nelinho” e por Maffei no inferno atirei-me a outra idéia que, por
sua vez está embutida no título que confiro a este meu texto; a idéia de que parto de um
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lugar para outro e que esta partida é justamente uma regressão. Uma regressão que como
num processo de hipnose atravessa os ataques do tempo para abrir chaves. O Ipod – que,
para gente da geração como a minha que viu rádios ocupavam toda uma mesa, é de fato um
pequeno milagre tecnológico e uma chave, no caso do poema em questão, de leitura porque
sendo um eletrodoméstico muito menor em relação aos antigos rádios a ponto de caber no
bolso é também um eletrodoméstico com maior número possível de informações que a
possibilidades dos antigos gravadores. Isso indica a sede de nosso tempo por facilidades
tecnológicas e informação. Por outro lado por sua vez a extinta marca de tv Telefunken em
preto e branco à sua época era também um milagre tecnológico porque permitia a difusão à
distancia de imagens. Esses dados deixam entrever a rapidez com que se descarta “tais
milagres”. Por sua vez os poemas em que tais eletrodomésticos aparecem anotam
circunstancias permantestes: como um gol que sempre vem à memória de um futebolista
apaixonado no caso de “Nelinho”, que logo citarei, ou como um recorte cotidiano que se
faz metonímia de uma miséria maior e crônica. Posto isto, cito “Nelinho:
Foi
(sei de ouvir dizer mas posso bem aquelas
sombras aquele dia)
num televisor Telefunken que Marcelo viu
sozinho
o jogo de terceiro lugar Mundial de
1978, Brasil 2 Italia, e Marcelo
como eu pensa
até hoje como poucas criaturas trazem
curva como o chute do Nelinho.
Não havia sol, final tampouco
Havia, e Marcelo
Aos dez anos e pouco
Alcança o princípio de uma doméstica
Tragédia, dele,
Nossa: a terra é sempre
Outra, a do herói, e o branco e negro do
Telvisor Telefunken segue
Apenas
Com a idêntica criança de dez anos,
Com as sombras de uma tarde o mais
Escura, com um dia que
De errado
Não termina. ( MAFFEI,2008, p.15)
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É uma cena um
Enfretamento:
Como duelar com um
Cubículo de transporte que me leva a
(o mês só começa e sei que vou
morrer, mas não ainda)
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E aqui faço um pequeno corte abrupto na citação para comentar algumas coisas que
me vem a partir deste turbilhão de imagens que o poeta decidiu que reuniria num poema e o
chamaria de “Espectro” . Os negros tão folclorizados por Bandeira ,Mario de Andrade entre
outros aparecem aqui neste texto de Luis Maffei em evidente descompasso com tal
folclorização. Na verdade estão de branco, são negros, mas são fantasmas. Este poema a
partir duma referência à capoeira acaba por denunciar o “espectro” em que foi convertida
uma cultura. Ernesto Sabato em O Escritor e seus fantasmas diz em linhas gerais que só é
possível haver cultura popular se ela parte de tribos indígenas ou africanas, porque para
Ernesto Sábato o que se chama de cultura popular hoje em dia é tão somente a cultura de
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massa para as massas. A capoeira, citada no poema “Espectro”, aparece como um modismo
urbano, ou seja , justamente um terrível espectro do que foi enquanto manifesto cultural.
Volto ao poema agora a partir de outro ponto
Criação do barulho
Do tumulto visto por uma Janela sem
Timidez nem
Compostura
Onde suburbanos brancos e
Negro usam alguns
Corpos em pequenos
malabarismo e roupa branca.
(MAFFEI, 2008 p.36)
REFERÊNCIAS
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MAFFEI, Luis. A ferida altivez do demiurgo In: Portugal 0 – 1 Manuel de Freitas 11-31.
Rio de janeiro: Oficina Raquel, 2008.
MARTELO, Rosa Maria. Medir o corpo. Revista Relâmpago, 209-212. Lisboa: 2009.
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[...] Observe o jogo de luz e sombra. A luz sobre o homem de camisa branca,
com os braços levantados, nos dá a certeza da morte iminente, que já
aconteceu aos companheiros tombados no chão. Note como os homens
prestes a morrer têm feições diferentes entre si, pois foram retratados em sua
individualidade. Já dos soldados que atiram, não conseguimos ver o rosto:
Goya representa neles a violência sem rosto. Assim o tema da repressão
1
Mestranda em Literatura Portuguesa, UFRJ.
2
Refiro-me ao Padre António Vieira, séc. XVII.
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3
Proença, 2006, p.127.
4
Termo que, em Portugal, significa enquanto.
5
Termo latino que designa coração.
6
Jorge, 1973, p.163.
7
Idem.
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Importa pouco que o artista tente possuir o céu ou a noite, contanto que todos
os dias sejam profundos. Não em direção ao céu que ele tateia, mas em
direção a um sagrado anterior e sem salvação, em direção ao eterno Saturno.8
O período anterior citado é aquele que antecede ao Cristianismo, onde o sagrado era
representado por um Deus (deuses), como Baco, que causa(m) medo e angústia. A ideia
vigente de sagrado como plenitude e pureza é trazida com a religião do Pai. Malraux,
em Saturne afirma que “a ligação que une o atroz ao sagrado é forte para uma raça que
há dois mil anos venera um torturado.”9 É no espaço do interdito, do claustro, da
dicotomia entre os pólos opostos que a violência é instaurada. O interdito, segundo
Georges Bataille, no livro Lascaux ou la naissance de l´art, em sentido linear, tornaria
inacessível o sagrado; já que é pela sua presença que se configura o sagrado. Não há,
afinal, sagrado sem pecado – o que é uma blasfêmia para o Cristianismo. O mundo
renascentista pertence ao espectro do sagrado, do excesso; o barroco é a transgressão, é
profano; é a fé, a força que sobrevém à clausura. O belo bonito não é sagrado, está na
ordem da fé cristã, dentro dos dogmas assinalados. É o sagrado que eleva, renova. Nessa
perspectiva, é o profano que promove a dessacralização para, assim, enfim, ser
encontrado o lugar sagrado. Nas artes, o mal se neutraliza com a possibilidade de
reflexão do sagrado; o profano, então, é sacralizado. Segundo Malraux:
8
Malraux, 2006, p. 93-94.
9
Malraux, 2006, 156-157.
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[...] um mundo que nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é
nossa, que nos é cedida para guardarmos respeitosamente em memória do
sangue que nos corre nas veias, da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.14
10
Sena, 1988, apud. Santos, 2006, p.165.
11
Jorge, 1973, p.163.
12
Vieira, 1997, p.66.
13
Jorge, 1973, p.163.
14
Sena, 1988 apud. Santos, 2006, p. 199.
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REFERÊNCIAS
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1
Graduanda em Letras Vernáculas pela Universidade Federal da Bahia, bolsista PIBIC/CNPq, Iniciação
Científica, sob a orientação da Prof.ª Drª. Maria de Fátima Maia Ribeiro (Professora Associada 1 da
Universidade Federal da Bahia).
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Pode parecer, entretanto, que o tradutor deve, apesar ou talvez por causa de
seu juramento de fidelidade, ser considerado não um cônjuge cônscio de seu
dever, mas um bígamo fiel, com lealdades divididas entre uma língua nativa e
uma estrangeira. Cada uma deve acomodar as exigências da outra sem que as
duas jamais tenham a oportunidade de se encontrar. Dessa forma, quem é
bígamo é necessariamente duas vezes infiel, mas de tal maneira que ele ou
ela deve levar ao limite máximo a própria capacidade de fidelidade. Mas, no
campo da tradução, é precisamente hoje que, de forma bastante paradoxal, no
momento em que as críticas a esse tipo de aliança dupla estão sendo
severamente explicitadas, a própria noção de fidelidade está sendo posta em
questão. (OTTONI, 2005a, p.30).
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superadas quando o texto for traduzido para alguma língua tradicional africana.
Segundo ele,
A “frase correta” que deve ser também “a frase mais bela” de Abranches, lembra
um recente texto de Manuel Rui, por ocasião da popularização de Obama durante sua
candidatura à presidência dos Estados Unidos, onde fala sobre “[o] infinitamente bom e
infinitamente belo” (Manuel Rui, 2008, p.l). O jogo de palavras usado por ambos
autores correta/bela e bom/belo podem ser associados ás questões nacionais, no caso de
Abranches ao remeter ao desejo de um livro em línguas tradicionais africanas, que
sigam sua própria gramática, ou a Manuel Rui que remete as suas paisagens naturais, a
“sua realidade e utopia”, o desejo e reafirmação daquilo que lhe é próprio.
Derrida, no texto, Carta a um amigo japonês, afirma:
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Ela [a ponte] não liga simplesmente duas margens que já estão lá. As
margens emergem como margens apenas no momento em que a ponte
atravessa o rio. A ponte intencionalmente faz com que elas permaneçam
opostas uma à outra. A ponte destaca um lado do outro. Nem as margens se
esticam ao longo do rio como tiras indiferentes de fronteira de terra seca.
Com as margens, a ponte traz até o rio as duas extensões da paisagem que
ficam atrás de si. Tornam mutuamente vizinhos o rio, a margem e a terra.
(Apud OTTONI, 2005a, p.34).
Bárbara Johnson faz uma leitura desse texto de Heidegger sobre a ponte como
uma possível analogia à tradução. Nessa perspectiva, a tradução assim como a ponte,
liga duas margens, duas línguas, duas culturas, ao mesmo tempo, que as mantêm
opostas, no entanto, essas forças não necessariamente são opostas, conflitantes, mas sim
diferentes. Ao mesmo tempo em que a ponte não mistura as margens, é somente através
dela que a aproximação do “rio”, “das margens” e da “terra” é possível. Esta perspectiva
se aproxima muito da perspectiva do migrante latino-americano proposta por Cornejo
Polar.
Para Polar,
O discurso do migrante normalmente justapõe línguas ou socioletos diversos,
sem operar nenhuma síntese que não seja a formalizada externamente, por
aparecer em um só ato de enunciação. Assim, sublinho a dinâmica centrífuga
do discurso migrante e sua reinvidicação da múltipla vigência do aqui e do lá,
do agora e do ontem, quase como um ato simbólico que, no próprio instante
em que afirma a rotundidade de uma fronteira, está burlando-a e mesmo
escarnecendo-a, mediante a fluidez de uma fala que se emite de qualquer dos
seus dois lados e sempre de maneira eventual, transitória repetindo a
condição viajeira do sujeito que a diz. (POLAR, 2000, p.133).
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O fato de que essa oposição ou essa diferença não possa ser radical ou
absoluta não a impede de funcionar e até mesmo, sob certos limites, bastante
amplos, de ser indispensável. Por exemplo, nenhuma tradução seria possível
sem ela. E foi, efetivamente, no horizonte de uma traduzibilidade
absolutamente pura, transparente e unívoca, que se constituiu o tema de um
significado transcendental. Nos limites em que ela é possível, em que ela, ao
menos, parece possível, a tradução pratica a diferença entre significado e
significante. Mas, se essa diferença não é nunca pura, tampouco o é a
tradução, e seria necessário substituir a noção de tradução pela de
transformação: uma transformação regulada de uma língua por outra, de um
texto por outro. Não se tratou, nem, na verdade, nunca se tratou de alguma
espécie de língua a outra, ou no interior de uma única e mesma língua, de
significados puros que o instrumento – ou o “veiculo” – significante deixaria
virgem e intocada. (OTTONI, 2005a, p.61).
Manuel Rui coloca essas peculiaridades do português angolano como resultado desse
jogo de inversão do desaperfeiçoamento para o aperfeiçoamento da língua, dessa
apropriação e transformação da língua portuguesa, antes do colonizador, para mais uma
língua africana. Essa postura política na qual o autor posiciona-se, vemos também
marcada, de maneiras diferentes, nos livros da Coleção Biblioteca de Literatura
Angolana, em especial no que confere a traduções, seja através do glossário tradicional,
seja pela tradução simultânea, as duas línguas lado a lado, ou ainda da intraduzibilidade,
de um “não-glossário”.
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REFERÊNCIAS
OTTONI, Paulo (org.). Tradução; a prática da diferença. 2 ed. rev. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP; 2005a, 174p.
RUI, Manuel. Obama e um acto de cultura universal. 2008. (texto cedido pelo autor).
SANTOS, Arnaldo. A casa velha das margens. Luanda, Angola: Edições Maianga;
2004, 405p. (Coleção Biblioteca de Literatura Angolana).
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1 INTRODUÇÃO
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Mestrando em Teoria da Literatura – Universidade Federal de Pernambuco - Bolsista de produtividade
CNPq.
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(...) — A verdade é o que o quale parece opaco, indizível, como a vida nada
inspira ao homem que não é escritor. O sensível, pelo contrário, como a vida,
é um tesouro sempre cheio de coisas a dizer para aquele que é filósofo (isto é,
um escritor). E assim como cada um acha verdadeiro e se reencontra em si
aquilo que o escrito diz da vida e dos sentimentos, (...) com efeito, o sensível
nada oferece que possa ser dito se não é escritor ou filósofo, porém isso não
em virtude dele ser um Em-si inefável, mas porque não se sabe o que dizer.1
(O visível e o invisível, p.228)
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(...) O Lucrécio e a Luzia - são nomes horríveis, não é? mas foi ela que mos
impôs. E eu não disse nada, quase nada, tudo é tão indiferente. Também isso
vinha ao encontro de uma ideia que não sei bem, deixa-me pensar. O feio, o
horrível. Onde é que estão? Porque são uma invenção nossa, a Natureza está-
se perfeitamente nas tintas. Ou é imensamente generosa como Deus e na
generosidade cabe tudo. Ou é estúpida como o que simplesmente existe e não
tem estética nenhuma ou a estupidez de a acompanhar. A estética do que
existe é só existir”.
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teoria de que a luz visível seria composta de pequenas partículas. E devemos lembrar
que photo, em grego quer dizer luz. E a Luzia, fotógrafa, não por coincidência relembra
outra figura histórica, como nos diz o próprio Daniel: “Luzia. Fora uma santa mártir a
quem arrancaram os olhos e que nas estampas os mostrava num prato como como dois
ovos estrelados.”
Lucrécio ao contrário do seu homônimo latino não busca uma vida hedonista:
busca uma explicação absoluta para o Universo, e vendo a impossibilidade disso, acaba
fazendo o mesmo que o poeta de De rerum natura: suicida-se. Sua irmã, Luz, não fica
cega como a bisavó, nem como a própria mãe, que de tanto estudar em claro suas
dissertações e teses acaba desenvolvendo com a velhice uma inevitável catarata que não
lhe permite ver muita coisa. Ela parece enxergar de modo diverso da sua homônima
mais distante, a Lúcia, ou Luzia, de Siracusa, que passa pelo martírio de ter os olhos
arrancados por ser pura. Luz destila um ódio extremo por todas as convenções da
sociedade (é uma mulher de vários amantes, chama a sua atividade jornalística de seu
lado puta e todas as suas exposições individuais têm como tema a miséria humana, o
feio, o grotesco).
Daniel centra na consciência da relatividade dos juizos de valor a compreensão
do mundo, ainda que ele mesmo precise largar aos poucos suas próprias prevenções. Em
um longo solilóquio ele considera essa visibilidade do horror, que muitas vezes é
desconsiderada por quem o despreza, como parte da Natureza, colocando-o também
como belo ([...]“Tudo é belo, tudo rebenta de verdade pelas costuras! Glória à Natureza!
Merda para os que lhe desprezam a merda! Viva a merda!”p. 80,81). Seu pensamento
se constrói à medida em que as percepções do seu mundo penetram cada vez mais no
seu Eu, e ele então compreende que a convencionalidade da beleza cede à construção
sensitiva da razão, que demonstra que:
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REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Filosofia do sensível como literatura, texto de maio de 1960. Não que Merleau-Ponty, com tais palavras,
negligencie a capacidade do leitor. Para ele, se assim podemos compreender, a recepção do sensível é que
vai operar na recepção da obra. Assim, teremos o leitor como co-produtor da obra literária, posto que é
capaz de sentir e capaz de dizer sobre depois.
2
Capítulo 1 da Introdução: Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos — A “sensação”
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Penosa é a lida
a quem dá a si próprio
o pão de cada dia.
(João José Cochofel)
A sedução exercida por um texto que narra as aventuras vividas por personagens
alentejanos na luta pela sobrevivência e na busca por seus sonhos levou-nos a eleger
como objeto de estudo deste artigo o romance O Trigo e o Joio†, de Fernando Namora,
publicado em 1954. Inserido cronologicamente no início do período que se
convencionou chamar de segunda fase do Neo-Realismo português, o romance tem, a
nosso ver, um apelo de ordem estética que ultrapassa as preocupações políticas e
ideológicas de orientação marcadamente marxista, presentes nas obras desse movimento
literário, especialmente nas da sua primeira fase.
Através da literatura neo-realista, conhecemos de maneira mais efetiva o drama
do português comum, mais frequentemente o do português que vive no campo. E se
grande parte das obras focalizou uma gente sem nome e construiu heróis coletivos,
houve, como bem disse Fernando Mendonça, “quem, logo de início, soubesse
transformar o perfil colectivo dos heróis em perfis individuais, ricos de desgraça ou de
fortuna, de miséria ou de ousadia, de humildade ou de astúcia. E entre esses (...) está
Fernando Namora”1. A grande força da obra deste escritor, talvez esteja na humanidade
que soube dar a seus personagens. Criaturas que, embora vivam tragédias comuns à sua
classe, são dadas a conhecer ao leitor por meio de suas aflições individuais e de seus
desejos mais íntimos; elas são de fato o ponto estrutural das narrativas que
protagonizam.
*
Professora da rede pública de ensino do Estado do Rio de Janeiro; Mestra em Literatura Portuguesa pela
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Este artigo é produto de nossa
Pesquisa de Dissertação de Mestrado, Uma História de Pequenos Heróis: uma leitura de O Trigo e o
Joio, de Fernando Namora, defendida em agosto de 2008.
†
A edição por nós utilizada é: Lisboa: Europa-América, 1972. Para as citações do texto utilizaremos a
abreviação TJ, seguida do número da página.
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/.../ pertencia a uma família de genealogia incerta: a mãe dera à vila filhos de
vária origem, um com sangue de lavrador, outros de malteses e ganhões e
parece que até um sardinheiro ambulante teria colaborado nessa fecundidade.
/.../ O Barbaças, nos últimos tempos, abrigava-se com dois irmãos num velho
casebre da Misericórdia, embora cada um deles fosse independente e livre,
valendo-se dos méritos pessoais para resolver encrencas e problemas
incómodos, como o almoço diário e um par de calças pelo S. Miguel.6
‡
Neste artigo, observamos nos personagens de O Trigo e o Joio as características que os aproximam da
figura do pícaro saído da novela picaresca espanhola do século XVI, considerando que ele seria o grande
ancestral dos heróis marginais recriados pela forma romanesca.
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é apresentado como um sujeito vadio que se aproveita de sua existência “em fardos de
família”7 e da “bondade” alheia para continuar levando uma vida de ócio, no fundo ele é
uma espécie de fantoche manipulado por uma classe que necessita dos miseráveis e
marginais para mostrar sua face “caridosa”. Para Antonio Candido, o pícaro está
submetido “a uma espécie de causalidade externa, de motivação que vem das
circunstâncias”; isso faz do personagem “um títere, esvaziado de lastro psicológico e
caracterizado apenas pelos solavancos do enredo”8. O passado de Barbaças, que nos
chega através de flashback, define um sujeito em conformidade com esse perfil
picaresco já que se deixava levar pela inércia e pelo oportunismo, sem talvez apreender
na totalidade a utilidade que sua marginalização possuía. Sua miséria servia para que os
mais ricos, como a “religiosíssima” D. Quitéria e os lavradores Cortes e Maldonado,
pudessem exibir toda sua “humanidade” e “generosidade”. Já a sua condição de vadio
exercia certa sedução sobre os moradores da vila, pois ele era livre para escolher entre o
mundo da ordem, onde trabalhava como um homem comum; e o mundo da desordem,
onde ficava “saborosamente espreguiçado sobre os dias”9. O lugar de eleição ocupado
por Barbaças na vila, a nosso ver, está relacionado com o que Eduardo Lourenço
chamou de “colectiva existência pícara que por necessidade” os portugueses
inventaram, pois “/.../ durante séculos estiveram inseridos numa estrutura em que não só
o privilégio não tinha relação com o mundo do trabalho mas era a consagração do
afastamento dele”10.
Para Charles Aubrum, o personagem saído da novela picaresca é um ser móvel,
sua peregrinação converte-se em descobrimento de si mesmo e também do mundo.
Embora Barbaças não peregrine por muitos lugares – seu maior deslocamento é da vila
para a courela de Loas –, passa por um período de grandes descobertas que transformam
sua existência vadia. A partir da união com a família do pequeno lavrador, Barbaças
vive experiências que até então desconhecia. Ele não apreciava muito a ideia de
trabalhar em troca apenas de boa conversa e comida, as únicas coisas que de fato o
esperto Loas tinha para oferecer ao novo sócio; no entanto, pela primeira vez, sentia-se
como membro de uma família. Isso trouxe-lhe a consciência de que aquela
independência dos tempos de vadio na vila, na verdade, “isolava-o do mundo”11. O
biscateiro preguiçoso começou a dar lugar a um homem envolvido sinceramente com o
sonho da terra, pois descobriu que era capaz de sentir e receber afeto, um sentimento até
então desconhecido.
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toda sua crueldade, coloca o ratinho de estimação de Barbaças na mira do corvo que
costumava exibir como símbolo de seu poderio. Nesta cena, em que o corvo devora o
ratinho, a luta de classes apresenta-se de forma alegórica e Barbaças, agora já
consciente de que existem “forças inamovíveis”14, tem novo gesto heróico, matando o
corvo e rompendo, pelo menos simbolicamente, “as teias da inconsciência e da
opressão”15.
Outro personagem que apresenta alguns traços do herói da novela picaresca é
Vieirinha. O personagem é um aventureiro que saiu pela África e pelo Brasil atrás do
sonho da fortuna e teve que lutar com recursos próprios pela sobrevivência: “Ele,
Vieirinha, com um alicate e uns arames, conduziu um velho Ford de um extremo a
outro do Amazonas”16. Sem conquistar fortuna, voltou a Portugal para tomar posse da
herança deixada por um tio-avô cônego; a herança estava reduzida a uma casa, por isso
o andarilho precisava recorrer a pequenas atividades que lhe permitissem o próprio
sustento. Muito astuto, Vieirinha não hesitava em usar a boa lábia para enganar os
menos espertos caso vislumbrasse a chance de desfrutar de boa bebida e da companhia
de uma mulher.
É Vieirinha quem, desajeitadamente, acaba com o projeto de uma courela
próspera quando lança sobre a burra a suspeita de uma doença. Acreditando que o
animal pudesse estar contaminado pela lepra, Loas e Joana passaram a temer que toda a
família também contraísse a doença (principalmente a menina Alice, que não
desgrudava do animal), abrindo espaço para que a angústia e o medo levassem Joana a
matar a burra, num ato de fatal desespero. A revelação feita por Vieirinha foi de
motivação romanesca com o propósito de manter o leitor em suspense sobre o destino
dos personagens até o final da história. Além disso, foi necessária à própria economia
narrativa, pois o livro não poderia acabar bem, já que ainda não era o momento da
revolução, sendo o final em suspenso uma alegoria do tempo referencialmente histórico.
As trapaças de Vieirinha são, na sua maioria, resultado de uma existência
solitária, de uma filosofia de vida egoísta adquirida durante suas andanças repletas de
infortúnios. Vieirinha não consegue uma transformação como a conquistada por
Barbaças, até porque é pouco afeito ao trabalho pesado e incapaz de envolver-se
afetivamente a sério com alguém. No entanto, algumas de suas reações podem ser
vistas como marcas de humanidade que o inscrevem como um pequeno herói, digno
igualmente do registro da ficção. Deste modo, ao demonstrar amizade por Loas, ao
reconhecer o brio de Barbaças, ao assumir a autoria do roubo do dinheiro do compadre,
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/.../ Não havia pequeno seareiro que não se tivesse visto obrigado a vender as
mulas. Anos danados de seca, Primaveras de alforra, empréstimos para o
adubo, e a terrível competição da camionagem nos fretes feitos pelos carros
de parelha. /.../ o coureleiro chegava ao fim da vida e a sua herança era
apenas a fé infatigável em grandes dias para a campina.18
Outro ponto que aproxima Loas do herói da novela picaresca é a sua inadaptação
à realidade, ao tempo presente. Assim como o pícaro descreve o mundo tal como crê
que foi e será, porque quanto ao presente se sente totalmente inadaptado; Loas também
precisa fugir para um tempo ausente de relógios que lhe permite a manutenção do
sonho. Sempre que consegue realizar um objetivo – como a aquisição da burra, por
exemplo – e todos esperam que ele se aquiete, começa a planejar outras coisas. O
pequeno lavrador tem medo de que sua vida seja tomada pela desistência que facilmente
se transforma em conformação e tédio, que só podem ser vencidos pelo seu desejo de
sonhar: “/.../ Precisava de planear coisas novas e extraordinárias. /.../ Agora, que tinha a
burra, seria capaz de lutar por uma courela fertilizada, mas eram-lhe necessárias fugas
para outras miragens”.19
Os personagens de O Trigo e o Joio, tal como o pícaro “que luta
desesperadamente pela sobrevivência sem poder escolher os meios e os ofícios e sem
contar senão com seus próprios recursos”20, vivem abandonados à própria sorte e tentam
sozinhos libertarem-se de uma realidade que os sufoca e os aprisiona. Segundo Maria
Theresa Abelha Alves, o herói picaresco transita “entre o lícito e o ilícito”21; do mesmo
modo, consideramos que Loas, Barbaças e Vieirinha utilizam-se de mecanismos do
mundo da desordem para sobreviver a uma ordem que lhes quer negar esse direito. Os
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personagens de Fernando Namora vivem num contexto de ordem que privilegia poucos,
por isso, para esta ordem, eles são o sinal da desordem. O processo de rebelião fica
estabelecido porque eles adotam a marginalidade a que foram condenados e a
transformam numa ordem igualitária e coletiva, mantida pelo sonho que une a todos.
REFERÊNCIAS
SARAIVA, Antonio José. Fernão Mendes Pinto e o Romance Picaresco. In ___. Para
a História da Cultura em Portugal. Lisboa: Europa-América, p. 117-136, 1972.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago – Entre a História e a Ficção:
Uma Saga de Portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
NOTAS
1
Mendonça, 1978.
2
Amado, 1972, p. 13-14. {Grifos nossos}
3
Silva, 1989, p. 266.
4
TJ, p. 43.
5
Saraiva, 1972, p. 124.
6
TJ, p. 23-24.
7
TJ, p. 24.
8
Candido, 1993, p. 23.
9
TJ, p. 24.
1310
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10
Lourenço, 2007, p. 129-130.
11
TJ, p. 64.
12
David-Peyre, 1977, p. 52.
13
TJ, p. 143.
14
TJ, p. 180.
15
TJ, p. 181.
16
TJ, p. 35.
17
TJ, p. 256.
18
TJ, p. 38.
19
TJ, p. 232-233.
20
Saraiva, 1972, p. 124.
21
Alves, 1983, p. 175.
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1
Aluna de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa da Universidade de São Paulo e bolsista da CAPES.
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Charles Grandet viu-se, assim, cercado dos mais afetuosos e ternos cuidados.
Seu coração dolorido sentiu intensamente a doçura dessa suave amizade,
dessa encantadora simpatia que aquelas duas almas, sempre constrangidas,
souberam empregar, logo que se sentiram um momento livres, o terreno dos
sofrimentos, sua esfera natural.vi
2
Com efeito, outros pares de personagens poderiam ser aqui analisados a fim de completar nossa
argumentação, tais como Félix Grandet e João Antunes da Mota e Eugénie Grandet e Augusta, mas, dada
a brevidade deste estudo, somente um par será analisado: Charles Grandet e Guilherme do Amaral.
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com o abandono e diz não entender porque ela não aceita seu dinheiro em troca do amor
que ela anseia:
Porque não aceita ela os meios amplos, que lhe dou? Porque não vive rica de
ouro, se lhe furtam as riquezas do coração? Porque não há de ela, com o
dinheiro de seu primeiro amante, resistir às seduções de um segundo? O
dinheiro reabilita, e anistia todos os crimes.xi
3
O filósofo Rousseau, em seu ensaio “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre
os homens.” (Cf. ROUSSEAU, 1999), expressa essa teoria e enumera alguns dos vícios impostos pelas
sociedades: “A extrema desigualdade entre os homens; o excesso de ociosidade de uns; o excesso de
trabalho de outros; a facilidade de irritar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade; os alimentos
muito rebuscados dos ricos, que nutrem com sucos abrasadores e que determinam tantas indigestões; a má
alimentação dos pobres, que freqüentemente lhes falta [...] – são, todos, indícios funestos de que a maioria
de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira
simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza.” (1999, p .61)
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REFERÊNCIAS
CASTRO, Aníbal Pinto de. Balzac em Portugal. Coimbra: Coimbra Editora, 1960.
HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou,
1973, volume II.
PEREIRA, Silva. apud CASTRO, Aníbal Pinto de. Balzac em Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 1960.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Rousseau. São Paulo: Nova Cultura, 1999, volume II.
NOTAS
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Especialista em Literatura Comparada e Linguística pela Universidade Federal de Viçosa
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contrário das ninfas camonianas, belas e envoltas em véus e grinalda, as ninfas que Diogo
Cão encontra são “altas e gordas”, e vestem ligas vermelhas. O espaço onde ocorre o
encontro do navegador com uma delas é um quarto de prostituta, não a bela Ilha dos
Amores. A graciosidade das ninfas camonianas é substituída pela ação firme da prostituta
que escolhe o navegador dentre os demais turistas e tempos depois o procura por toda a
Lisboa. Talvez por uma nova decisão no concílio dos deuses, depois de doze anos, sete
meses e nove dias, devidamente marcados no romance, a ninfa resgata Diogo Cão do
delírio em que ele vive.
A construção da personagem Camões estabelece uma intertextualidade mais
complexa do que a dos demais, num jogo intertextual de referências ao autor e à obra.
Aquele que narrou as conquistas é, no romance, personagem dessa história, também
retornado da colônia, e autor de uma epopeia escrita ao longo do enredo. Identificado como
um homem de nome Luís, o poeta também retorna da África, trazendo consigo o corpo do
pai, que lá morrera, e vaga pelas ruas de Lisboa, encontrando-se mais tarde com outros
retornados. Posteriormente, decide livrar-se do caixão e transfere o corpo do pai, já líquido,
para uma embalagem, a qual passa a carregar embaixo do braço, enquanto o caixão é
jogado no Tejo, rumo a uma “epopeia inverossímil”.
Enquanto não encontra uma maneira de sepultar o pai, o poeta se põe a escrever a
primeira oitava heróica do poema. Neste momento, o homem de nome Luís se irrita com
Garcia Horta, por ser interrompido na escrita de sua epopeia e, ainda mais, pelo
desinteresse diante de seu poema:
(...) e quando eu quis responder, danado por estragarem a minha epopeia, que
todos nós temos as nossas chatices, que caneco, a minha, por exemplo, é não
conseguir desembaraçar-me do meu pai que aqui trago, os ossos, ou que sobrava
dos ossos (...)”. (ANTUNES, 2000, p. 157).
Nesse trecho, observa-se que o pai torna-se, para Camões, uma “chatice” da qual
ele não consegue se livrar enquanto escreve o poema. Dessa maneira, é desafiado o valor
do patriarcalismo épico. Em seu desdobramento, neste romance, o mito épico sacralizado
pelo texto camoniano também é problematizado pelo romance contemporâneo. Entretanto,
ainda que sob um viés paródico, as figuras míticas do império estão presentes no romance,
a memória da nação não se pode “desembaraçar-se” delas.
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(...) porque é que pelo simples desejo de ver o mar aceitei mudar-me para
Lixboa e casar com um maluco de telefonias e sementes, quando o mar é apenas
a celha desta água toda com naus que tornam de África carregadas de colonos
sem fortuna, de malucos que vendem as cinzas do pai como aquele cretino ali
especado que nem maneiras tem, lambuza-se de gordura a comer, declama nos
intervalos frases que não se entendem escritas num bloco de facturas, o mar,
caneco, a porcaria do mar e esta cidade com odor de pia e de cadiça, Deixe estar,
pai, deixe estar, gritava ela para o velho, surda a um diálogo húngaro no rádio,
este verão o mais tardar vamos à serra. (ANTUNES, 2000 , p. 162)
A fala de Alzira pode ser tomada como uma resposta ao Velho do Restelo, quando
da partida das naus, pois ela mostra, numa fala exaltada, ao seu pai, um “velho”, o que se
tornou o mar para Portugal: “apenas uma celha desta água toda com naus que retornam de
África carregadas de colonos sem fortuna”. Dentre esses colonos, está o próprio Camões, o
homem que vende as cinzas do próprio pai, ou seja, as cinzas da tradição épica, imperial.
N’Os Lusíadas, o Velho do Restelo pergunta sobre as histórias que trarão os navegantes de
viagens tão perigosas. A esse questionamento Camões já responde ao escrever o próprio
texto que abriga sua voz de alerta: uma exaltação à superação dos perigos do mar; Lobo
Antunes, porém, responde à voz de Alzira com as histórias fracassadas dos retornados das
colônias no século XX.
Outro herói da navegação que retorna à Portugal pelas naus de Lobo Antunes é
Vasco da Gama. Apesar da situação de miséria, assim como os outros navegadores, Vasco
da Gama é poupado de críticas mais severas. Sem alteração no nome, como a maioria dos
heróis, no romance, ele chega a “Vila Franca de Xira”, para se empregar “no comércio de
solas” e, em companhia do rei D. Manuel, é multado por infringir uma regra de trânsito.
Sua participação no romance é marcada pela saudade. Como os outros retornados, Gama se
espanta ao verificar a decadência do país, principalmente por ter chegado num momento em
que as águas paradas do Tejo inundavam a cidade. Às memórias da infância na cidade, se
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(...) é importante notar que nenhum dos atributos respeitantes a estas personagens
aparece achincalhado, como acontece com a maior parte das outras personagens, e
que a banalização da sua presença, através dos efeitos da incongruência temporal,
repõe o mito que representam, em anulação do binarismo respeito/irrisão, na sua
dimensão de memória e património. (SEIXO, 2002, p. 182)
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REFERÊNCIAS
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SANT’ANNA, Affonso Romano. Paródia, paráfrase e cia. 7ed. São Paulo: Ática, 2004.
SEIXO, Maria Alzira. “A naus.” In: Os romances de Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote,
2002. p. 167-194.
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Doutorando em Literatura Portuguesa pela PUC-Rio.
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os porquês do estado de decadência de Portugal, nessa “pátria a ser feita e não apenas já
feita”1.
Nosso estudo tem por objetivo pensar os aspectos da autognose presentes na obra
garrettiana, buscando mostrar como o autor de Camões antecipa, no século XIX, a revisão
de valores nos campos social, político, cultural e, principalmente, histórico de uma
sociedade portuguesa arraigada em sua débil grandeza de outrora.
Eduardo Lourenço, em seu estudo “Da Literatura como interpretação de Portugal”,
presente em seu importante livro O labirinto da saudade, diz que “é sob a pluma de Garrett
que pela primeira vez, e a fundo, Portugal se interroga, ou melhor, que Portugal se
converte em permanente interpelação para todos nós”. A obra garrettiana Camões é vista
pelo ensaísta como iniciadora no que tange ao processo da autognose em Portugal2:
Para o jovem poeta Almeida Garrett, o Camões que ele canta é a imagem de
Portugal doente, sofredor, de novo acorrentado depois de ter ressurgido
miraculosamente sob a forma de Portugal-Liberdade. Mas Camões é, sobretudo,
um duplo de Garrett, também ele poeta do verdadeiro amor da pátria, doravante
inseparável da nova religião da Liberdade, cujo o culto o tinha levado ao exílio.3
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Qual será o meio mais apto de obviar aos males presentes, prevenir os futuros, e
evitar os próximos? [...]
Não é o povo em massa, não é a Nação em tumulto, sem ordem, sem lei que deve
levantar a voz, bradar pelos seus foros. Os inconvenientes, os funestos efeitos
deste meio são patentes ao homem menos versado na história das nações. Não é
pois a nação inteira; mas aqueles de seus membros, que por suas virtudes, por
suas letras, por seu valor, e por sua posição na sociedade poderem sem perigo
dela, sem perverter a ordem aclamar a Liberdade, que o devem fazer. O esforço, e
a constância devem animar seus braços, excitar suas vozes; a prudência dirigir
suas ações, e a política, e a virtude alumiar todas as suas tentativas.5
Que perspectiva para a raça humana! Que esperanças! Liberdade sem sangue,
igualdade sem desavenças, religião sem fanatismo, monarquia sem despotismo,
nobreza sem oligarquia, governo popular sem demagogos!6
Ainda mal! Que para tão grotesco sistema faltaram homens, ou antes falharam os
homens nos meios e modos de sua aplicação. Não foi erro deste ou daquele, como
a inveja, a intriga, os partidos cegamente proclamaram: mas erro comum, geral,
em que todos pecaram, para que todos concorreram com sua quota de faltas; as
quais todas procederam de uma só e única origem, “o errado método de se
estabelecer aquele sistema”.7
Tal “erro” fundamenta-se em alguns pontos que para Garrett foram de suma
importância para o insucesso da revolução: a presença dos militares, que apoiaram a
revolução, mas que “perderam a disciplina”8, e a indiferença e passividade do povo, que,
em sua maioria, devido ao estado de miséria que se encontrava, após as guerras contra
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França e Espanha, via na figura de Dom Miguel um rei forte, que o poderia salvar de suas
mazelas sociais:
Inocente foi esse erro em muitos, direi na maior parte, porque o engano geral o
supunha o mais acertado meio. Quero falar das revoluções militares, que em
verdade foram a única e valente causa da pouca duração e estabilidade do sistema
[...]. Certo é que sem o auxílio da força armada era impossível qualquer revolução
[...]. Mas fazer-se do que só devia ser auxílio, agente único e exclusivo, eis aí o
grande, o máximo, o capital erro das revoluções peninsulares de 1820. Todos os
homens ilustrados, todos os cidadãos aplaudiram a adotaram de coração e alma os
princípios [...] do sistema proclamado: mas a massa geral, o corpo da nação, que
nunca se decide sem ver, tocar, palpar per si mesma, - ficou impassível e pela
maior parte indiferente.9
Garrett finda seu comentário acerca da revolução de 1820 constatando sua ineficácia
para a nação portuguesa. Tudo continua como antes. Portugal ainda era o mesmo país
tirano, tendo, como diferença, somente os homens:
[...] em Portugal [...] a revolução deixou as coisas como as achou, e não mudou
senão homens. Se a antiga aristocracia histórica pesava sobre a nação, a nova
aristocracia da revolução pesava dobrado. O patronato, a concussão, o peculato
era o mesmo. Os tribunais julgavam inquisitoriamente como d’antes. Os tributos
pouco se aliviaram, o comércio sofria com os mesmos estorvos, as indústrias as
mesmas peias, a agricultura as mesmas opressões. Com insignificantes exceções,
o povo nem era mais livre nem mais feliz. – Como havia ele de pugnar por um
sistema que nem conhecia nem sentia?10
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Apesar do título, Viagens na minha terra não deve ser considerada uma literatura de
viagens. A viagem realizada pelo narrador, de Garrett (?), revela seu profundo pensamento
crítico a respeito de Portugal. Viagens... apresenta um caráter inclassificável, transgredindo
e surpreendendo “expectativas viciadas no consumo de narrativas estereotipadas”16 . As
viagens do narrador não são apenas geográficas, mas viagens pela História e pela Sociedade
portuguesas, apresentando o que se pode chamar de discurso ideológico. Segundo Carlos
Reis,
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[...]
o discurso de Viagens constrói-se pela calculada articulação de diversos discursos
que vêm convergir no enunciado da obra: o discurso político-doutrinário do
Liberalismo, o discurso cultural do Romantismo, o discurso argumentativo e
persuasivo da oratória parlamentar, o discurso ensaístico [...]17
E através deste discurso ideológico Garrett tece sua narrativa. Vê-se nas reflexões
do narrador durante suas viagens um símbolo do progresso social, adquirindo, assim,
contornos de uma viagem de caráter simbólico, “coisa séria, grave, pensada como um livro
novo da feira de Leipzig; não das tais brochurinhas dos boulevards de Paris”18:
Ora nesta minha viagem Tejo arriba está simbolizada a marcha do nosso
progresso social: espero que o leitor entendesse agora. Tomarei cuidado de lho
lembrar de vez em quando, porque receio muito que se esqueça.19
Dizia um secretário de Estado, meu amigo, que, para se repartir com igualdade o
melhoramento de ruas por toda a Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a
mudar de rua e bairro todos os três meses. Quando se fizer a lei de
responsabilidade ministerial, para as calendas gregas, eu hei de propor que cada
ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez
cada ano, como a desobriga.20
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Esta, aquela antiga selva, temida quase religiosamente como um bosque druídico!
E eu que, em pequeno, nunca ouvia contar história de Pedro de Mala-Artes que
logo, em imaginação, lhe não pusesse a cena aqui perto!... Eu que esperava topar
a cada passo com a cova do Capitão Roldão e da dama Leonarda!... Oh! que
ainda me faltava perder mais esta ilusão...
[...] digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sítios medonhos
desta espessura? Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?...21
há sempre uma tensão entre forças antagónicas, mais: toda e qualquer revolução
tende a emburguesar-se, a cristalizar, vindo, na sua trajectória, a segregar forças
conservadoras que têm de ser vencidas por um impulso progressivo.22
Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste
século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada,
moral e socialmente falando.25
Mesmo com o tom depreciativo no que diz respeito aos frades, nota-se que eles
ainda seriam preferíveis aos barões, que retratam a nova classe social, formada pelos
novos-ricos, detentora do poder econômico e em ascensão social e política, e que acabam
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O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram.
É muito mais poético o frade que o barão.
O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha.
O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova.
Menos na graça...
Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação.26
A paralisia que acomete Portugal é tão ferrenha que Garrett chega a profetizar o fim
do país. Com a permanência dos barões na sociedade portuguesa, o que restaria ao
decadente Império português seria a sua morte, esperando somente o derradeiro suspiro do
espírito:
Uma nação grande ainda poderá ir vivendo e esperar por melhor tempo, apesar
desta paralisia que lhe pasma a vida da alma na mais nobre parte de seu corpo.
Mas uma nação pequena, é impossível; há de morrer.
Mais dez anos de barões e de regime da matéria, e infalivelmente nos foge deste
corpo agonizante de Portugal o derradeiro suspiro do espírito.
Creio isto firmemente.30
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REFERÊNCIAS
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LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
REIS, Carlos. Introdução à Leitura das Viagens na Minha Terra. Coimbra: Liv. Almedina,
3ª ed., 1991.
SARAIVA, António José & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto:
Porto Editora, s/d.
NOTAS
1
Lourenço, 1988, p. 82.
2
Cf. Lourenço, 1988, p. 84.
3
Lourenço, 1999, pp. 82-59.
4
Garrett, 1821, p. 4.
5
Ibidem, p. 28.
6
Garrett, 1830, pp. 64-65.
7
Ibidem, p. 67
8
Ibidem, p.69.
9
Ibidem, pp. 65-66.
10
Ibidem, pp. 73-74.
11
Cf. Lourenço, 1994, p. 29.
12
Lourenço, 1988, p. 82.
13
Padilha, 2005, pp. 8-9.
14
Reis, 1991, p. 60.
15
Lourenço, 1988, p. 80.
16
Reis, 1991, p, 47.
17
Ibidem, p. 90.
18
Garrett, 2003, p. 18.
19
Ibidem, p. 19.
20
Ibidem, p. 22.
21
Ibidem, pp. 33-34.
22
Coelho, 1977, p. 79.
23
Reis, 1991, p. 93.
24
Ibidem, p, 92.
25
Garrett, 2003, p. 78.
26
Ibidem, p. 79.
27
Ibidem, p. 80.
28
Ibidem, p. 80.
29
Ibidem, p. 81.
30
Ibidem, p. 82.
1336
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31
Ibidem, p. 222.
32
Ibidem, p. 222.
33
Ibidem, p. 248.
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1 INTRODUÇÃO
Aos escolher duas narrativas angolanas para este texto uma delas Quem me dera ser
onda de Manuel Rui (1941), publicada em 1982, e Bom dia camaradas, de Ondjaki (1977),
publicada em 2000, pretendo abordar dois pontos de convergência: o discurso utilizado
pelos protagonistas através da palavra “camarada” e o espaço como disseminador do
discurso político-ideológico.
Ao entrar por espaços diversos de Luanda, a forma de tratamento “camarada”
provoca um choque lingüístico que desconstrói, desmonta e desarruma zonas de fricção,
isto é, de formação do enredo.
Essa “zona de fricção” está na oralidade, já que a estratégia textual das narrativas
toma a forma de um mujimbo, que é como a comunicação circula extraoficialmente,
criando novas tensões, ou seja, uma estrutura interna que o teor do discurso marxista-
leninista, como um corpo externo e estranho tenta invadir.
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É desta nota que parto, como indicação da recepção da obra e também para
exemplificar como o discurso político e sua evocação de autoridade através do “Camarada
Presidente”, no contexto do monopartidarismo, coloca QMDSO como uma novela , antes
mesmo da existência de um público-leitor; a partir dessa nota, já se entrevê o discurso
ideológico - e por isso político - como um intruso, mas também como uma voz em
paratexto que lhe dá baliza e sustentação.
Chamo a atenção para um certo horizonte de recepção da obra através da crítica
especializada que coloca QMDSO muitas vezes como paródia da Revolução dos Bichos
de Orwell, como carnavalização nas vias de Bakhtin ou como literatura para crianças ou
ainda como uma fina ironia às falhas do sistema político que já se faziam presentes em
meados de 80. Tais análises são válidas, se também pudermos pensá-la como estória sobre
crianças e se fosse aqui classificar, diria que a novela fica como “gênero fronteiriço entre
o conto e o romance, onde só há superfícies, ou como livros breves e poderosos e poderosos
porque breves”, como já pontuou o escritor português Lobo Antunes.
No entanto, prefiro pensar assim como Glissant, que o gênero está sintonizado
com o sistema da literatura, com a conjuntura social e com os valores de uma cultura que
tanto acolhem, modificam ou rejeitam o perfil dos gêneros em busca de um deciframento
do real, ou seja, o pensamento poético tem resultados que se valem das estratégias da
oralidade. E se percebo, tanto QMDSO quanto BDC, em sintonia com o sistema literário
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angolano; penso que abordá-las como narrativa de tensão tendo o mujimbo como estratégia
discursiva, pode nos fazer ler as obras de um ponto de vista diferente do até então
referenciado, contribuindo “para assegurar que o seu corpo de tradição oral se mantenha”3.
2. O MUJIMBO
Retomemos como exemplo QMDSO. Nas inúmeras vezes em que uma personagem
é evocada pela forma de tratamento: “camarada” o espaço fica marcado pela quantidade, já
que é evocada publicamente, isto é,
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3 O CAMARADA
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Mujimbo é uma palavra chokwé que significa mensagem. (...) A nossa malta da
primeira guerra de libertação, na frente leste, principalmente o pessoal de origem
urbana, deslumbrou-se com o vocábulo. Mujimbo passou a ser notícia. Contaram-
me. Um camarada ia de uma base a outra e, mal chegava, chovia a pergunta:
quais os mujimbos que você traz? Ele narrava. E passavam mensagens, notícias,
intrigas, tudo. Dependia da pessoa. Que até podia produzir mentiras. A palavra
foi-se deturpando até que mujimbo passou a coincidir com a novidade ainda não
oficial ou até o boato.7
Como vimos, o mujimbo constitui e irriga a materialidade da voz, das vozes que
circulam embaralhando, trocando e instalando a divergência. Com isso, o sentido do
discurso político ( do poder, do MPLA) é “macaqueado” pela estratégia discursiva, pela
força das vozes das crianças.
A presença de tal estratégia indica - dentro da literatura angolana dos últimos trinta
anos - a existência do que Glissant chama de “a passagem da escrita à oralidade, e não
mais da oralidade à escrita ”8;já que é preciso atravessar o discurso oficial pautado nos
manifestos políticos escritos para ir à oralidade, é preciso usar estratégias da oralidade
como o mujimbo, para que a tensão narrativa mostre o narrador/autor em sintonia com
essa sua comunidade e perceber que para defendê-la dentro da realidade é preciso pôr a
mostra o que já está lá; para isso, precisa organizar-se do escrito para oral, com “força
9
centrífuga de um discurso que é elíptico e não-linear” .
4 O MAPA
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organizam-se em rotas de fuga. Cito a seguir um trecho em que um dos alunos traça um
mapa:
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5 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
FENTRESS, J & WICKMAN, C. Memória social. Trad. Telma Costa. Lisboa: Teorema,
1992.
MARX, K./ ENGELS, F. [et al.] O manifesto comunista 150 anos depois.. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1998.
PADILHA, L. Jogo de cabra cega. In.: Revista Gragaotá: Niterói,n 1, p.97-110, 2 sem
1996.
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NOTAS
1
Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/FFLCH/USP/Bolsista Capes.
2
RUI, 1982.
3
FENTRESS,1992, p.102
4
ORLANDI, 2004, p.61.
5
RUI, 1989,p. 92-5.
6
CARVALHO, 2002,p.63.
7
RUI,1989,p.92
8
GLISSANT,2005,p. 159.
9
CABAÇO, 2008.
10
ONDJAKI, 2000, p.44-45.
11
LOTMAN, 1978, p. 363.
12
LOTMAN, p.273.
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O século XIX “assistiu”, de fato, emergir uma intensa busca pela subjetividade,
conforme aponta Peter Gay, em O Coração Desvelado. O historiador chega a defini-lo
como o século da intensa preocupação com o “eu”. Na busca do autocontrole, já tão
difundido no século das luzes, a exploração da própria consciência tornava-se um
exercício fundamental, e os burgueses se deliciavam e principalmente se angustiavam
com isto.
Outro fator preponderante para que isto ocorresse foi à separação entre o espaço
público e o espaço privado, cada um com funções, regras e rituais próprios. A solidão
do lar era um verdadeiro convite à introspecção. E a “escrita de si” tornou-se uma
prática habitual. Uma nova visão do amor surge diretamente relacionada com esta
possibilidade de estar só. Ele passa a ter um papel preponderante na realização pessoal,
felicidade estaria diretamente ligada ao êxito amoroso.
Mas falar de si mesmo pode se mostrar uma tarefa ambígua, na qual a diferença
entre revelar e ocultar é a própria vontade. Sendo assim, o século XIX foi marcado por
“uma curiosidade que impulsiona o homem a conhecer e revelar, mas ao mesmo tempo
tem o pudor que o faz esconder e denegar” 1. “A vida secreta do eu” tornou-se assunto
principal em todas as áreas do conhecimento humano, sobretudo, na literatura.
Os missivistas do século XIX procuraram empregar uma linguagem mais
próxima da oralidade, mais espontânea e menos baseadas em fórmulas. Porém nem
todas as cartas desta época eram iguais “as diferenças de costumes, o gênero e o status
social dividiam os redatores de cartas e de diários em vários grupos.” 2. Os mais
letrados, em geral, tinham um melhor êxito, pois possuíam um vocabulário mais rico e
melhores modelos. Já quanto ao conteúdo, “inevitavelmente, os homens registravam
uma experiência distinta da das mulheres: podiam escrever sobre o seu trabalho, a
i
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ.
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também passa ter destaque na literatura da época. O romance, gênero burguês por
excelência, ao retratar os costumes, os anseios e os conflitos vividos por essa classe
social, não poderia deixar de abordar também o uso cotidiano das cartas.
Logo, as cartas se fazem presentes em muitos romances desde o final do século
XVIII, como A Nova Heloisa, de Rousseau e Os Sofrimentos do Jovem Werther, de
Goethe, que obtiveram sucesso imediato e fulminante. Na literatura portuguesa discurso
epistolar também foi bastante utilizado, com em Eurico, o Presbítero, de Herculano; em
Viagens de Minha Terra, de Almeida Garrett; em O Primo Basílio de Eça de Queirós.
Contudo Camilo Castelo Branco talvez seja o escritor oitocentista que mais
explorou esse recurso em suas obras. São inúmeros os exemplos de romances que
abarcam não só as epístolas como também o relato de fatos históricos e biográficos, que
são utilizados com o propósito de conferir veracidade e autenticidade aos casos que
conta. Ainda que o narrador camiliano freqüentemente os apresente e discuta como
fatos ficcionais, levando o leitor a transitar entre histórico e o romanesco.
Em Amor de Perdição: Memórias d’uma Família, talvez a obra mais famosa do
escritor, essa tensão pode ser notada logo no título. Visto que o sintagma “Amor de
Perdição” estaria diretamente ligado ao enredo trágico-amoroso de romance. Já
Memórias d’uma Família evocaria eventos efetivamente ocorridos na história familiar
do autor. O que é evidenciado desde a introdução até a passagem final do texto: “Da
família de Simão Botelho vive ainda, em Vila Real de Trás-os-Montes, a senhora D.
Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele. A última pessoa falecida, há
vinte e seis anos, foi Manuel Botelho, pai do autor deste livro.” 8
Em confluência com este universo memorialista o romance contém uma
variedade de testemunhos, notas e documentos datados precisamente. Conta ainda com
uma longa carta de Ritinha, duas de D. Rita Preciosa e uma de Domingos Botelho e é
claro com a correspondência apaixonada de Simão e Tereza.
Cada personagem ao escrever sobre os fatos evidencia as suas opiniões e
sentimentos. Por isso é possível afirmar que Amor de Perdição seria uma obra
polifônica, seguindo o conceito de Bakhtin, uma vez que várias vozes e perspectivas se
cruzam e se interpenetram, formando uma estrutura narrativa complexa. Sem contar
com os diálogos e as intromissões do narrador, que interpela o leitor e emite sem
pudores opiniões sobre os mais diferentes assuntos. Ele avalia as atitudes e sentimentos
dos personagens, e discute até mesmo o fazer literário. Algo muito próximo do narrador
de Viagens na minha terra.
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Aliás, Amor de Perdição, que por muitos ainda é considerado somente como
uma novela passional, apresentaria além desta estrutura complexa uma aguçada reflexão
sobre a sociedade portuguesa da época, a começar pelo fato de a relação amorosa de
Teresa e Simão ser ameaçada por questões sócio-econômicas. Como também sobre a
condição humana, uma vez que pouco a pouco se percebe também a existência de
imperativos pessoais, como o orgulho e o descontrole de Simão, que igualmente
impossibilitariam essa mesma relação.
As cartas trocadas pelo casal apaixonado abarcam boa parte do discurso lírico-
sentimental da obra, natural em relacionamento onde prevalece à distância. “Simão e
Teresa escrevem cartas um ao outro para que não se rompa o fio da paixão que os uniu.”
É através do discurso epistolar que a relação amorosa se constrói (superando limitações)
e a diegese evolui. Vale salientar que é após a leitura de uma das cartas que Simão
decide enfrentar Baltazar Coutinho e acaba por matá-lo.
Porém repetidas vezes elas também refletem as observações feitas pelo narrador,
que freqüentemente relativiza o discurso sentimental. Como a descrição de Teresa como
uma mulher varonil e astuciosa, que mente e dissimula se necessário for para solucionar
os impasses que lhe aparecem: “Tereza adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na
estrada real da vida, e que os melhore fins se atingem por atalhos onde não cabem a
franqueza e a sinceridade”. 9
O que igualmente se comprova em passagens das missivas, onde, por exemplo,
ela omite fatos ou tenta convencer Simão a não partir para o degredo e esperar pela
morte de Tadeu Albuquerque para que possam finalmente se unir: “em dez anos terá
morrido meu pai e eu serei a tua esposa”. 10
Evidenciando que mesmo em uma sociedade baseada em um modelo familiar
rígido, no qual a mulher devia obediência ao seu pai e depois ao seu marido, poderiam
ocorrer casos de insubmissão. Teresa, longe de ser uma mocinha ingênua, desejava
antes de tudo ser livre. Transgride a autoridade paterna, já que ele queria vê-la casada
com o primo, vai para o convento, sonhando com o dia em que não só possa não só
escolher o seu marido como também desfrutar de sua herança: “ela esperava que seu
velho pai falecesse para, ela senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande
patrimônio.” 11
Além da hipocrisia familiar, também é possível destacar na obra a existência dos
maus religiosos, pois a realidade do convento de Viseu era muito diferente do que a
jovem fidalga esperava. Como ela afirma em um trecho de uma carta a Simão: “Não
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“Não posso ser o que tu querias que eu fosse. A minha paixão não se
conforma com a desgraça. Eras a minha vida: tinha a certeza de que as
contrariedades me não privavam de ti. Só o receio de perder-te me mata. O
que me resta do passado é a coragem de ir buscar uma morte digna de mim e
de ti. Se tens força para uma agonia lenta, eu não posso com ela.” 13
“Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um
inferno. Não hei-de dar barata a vida, não. Ficarás sem mim, Teresa; mas não
haverá aí um infame que te persiga depois da minha morte.” 14
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REFERÊNCIAS
GAY, Peter. O coração desvelado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NOTAS
1
NAZAR, 2007, p.17.
2
GAY, 1995, p.338.
3
GAY, 1995, p.338.
4
PERROT, 2009, p. 169.
5
GAY, 1995, p.345.
6
PERROT, 2009, p.169.
7
PERROT, 2009, p.169.
8
CASTELO BRANCO, 2006, p.299.
9
CASTELO BRANCO, 2006, p.123.
10
CASTELO BRANCO, 2006, p.278.
11
CASTELO BRANCO, 2006, p.109.
12
CASTELO BRANCO, 2006, p.184.
13
CASTELO BRANCO, 2006, p.196.
14
CASTELO BRANCO, 2006, p.196.
15
CASTELO BRANCO, 2006, p.218.
16
CASTELO BRANCO, 2006, p.273.
17
CASTELO BRANCO, 2006, p.207.
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1 O LEITOR DE MACHADO
Pedro e Paula é a história de dois gêmeos que não se opõem, não competem,
mas buscam, tragicamente, uma fusão, um estar-dentro-do-outro, [...] Pedro e
Paula é, antes de tudo, uma historia de amor em abismos que se repete, em
certo sentido, outras historias bem menos resolvidos como as de Pedro, Paulo
e Flora; Capitu, Bentinho e Escobar. IV
1
Licenciada em Letras com Inglês pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2007) e especialista
em Estudos Literários, pela mesma instituição. (2009).
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1353
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narrador apenas no último capítulo, intitulado Pois é..., quando este trava um diálogo
direto com Paula.
“A presença em pano de fundo espectral de Machado de Assis ultrapassava
a alusão aos gêmeos, e reiteramos essa proposta ao acentuar que é também numa certa
VII
escrita irônicos” . A ironia surge quando o narrador inicialmente exime-se de
qualquer erro que venha a ocorrer na narrativa, alegando que somente conheceu os
gêmeos quando estes eram adultos e toda a trama já havia acontecido. Afirma ainda que
tudo o que aconteceu é oriundo do que lhe foi narrado. Percebe-se que o narrador tenta
justificar-se diante do leitor, uma estratégia usada para alcançar a confiança2.
Entretanto, em alguns momentos ele se trai chegando a se contradizer, então brinca com
o leitor tentando amenizar seus erros- o que remete a lembrança de Brás Cubas, quando
este ameaça seu leitor com um piparote.
Um exemplo destas contradições acontece, quando, após relatar a infância e
juventude dos gêmeos, o narrador justifica os possíveis lapsos ao afirmar que não esteve
presente nesta fase porque não os conhecia. Em contra partida, começa a narrar à fase
adulta, quando já eram amigos e o narrador se mostrava como um espectador do que
estava acontecendo, intencionando ter credibilidade, ele escreve:
Bom, vamos dar uma volta a isto. Porque a partir de agora posso deixar de
ser o cauteloso inventor de probabilidades para me tornar no confiante
cronista de incertezas, pois foi quando finalmente conheci os gêmeos. Ou,
mais propriamente, que vou dizer que conheci um rapaz e uma rapariga que
depois me disseram que eram gêmeos mas não pareciam nada e passaram a
ser os que me davam jeito para o livro. VIII
2
Lembremos que, os escritores do século XIX, escreviam seus textos, sempre narrando de maneira que
não parecessem frutos de sua imaginação e sim casos verídicos. José de Alencar escreve seus dois
primeiros folhetins Cinco Minutos e A viuvinha em forma de cartas destinadas a D*, narrando fatos que
lhe avia acontecido e que lhes haviam sidos narrados, respectivamente. O mesmo ocorre com os romances
Diva e Lucíola, do mesmo escritos, destinados a Senhora A.G.M. Encontramos este mesmo artifício em
Machado de Assis, que atribui a autoria do romance Esaú e Jacó ao último dos sete manuscritos
encontrados na secretária do Conselheiro Aires. Os seis primeiros foram publicados sob o título Memorial
de Aires.
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Um exemplo disso é a mãe dos gêmeos que havia aparecido na história por
necessidade do narrador em justificar a origem dos personagens. Ana faz parte do
primeiro triangulo amoroso, junto a Gabriel e José, ela guarda consigo o segredo da
paternidade de sua filha, Paula, que não é desvendado pelo narrador. Ana é a cúmplice
de sua filha, em uma carta enviada a Pedro ela afirma que
3
Na carta enviada à sua mãe, Pedro demonstra que perdeu o controle sobre sua irmã, que até então era
submissa a ele, uma espécie de segunda mãe, no corpo de uma mulher que era o seu objeto de desejo. É o
início da libertação de Paula, ela já não segue mais os padrões sociais e tem vida própria. O leitor percebe
o desespero dele, ao instigar os pais a trazê-la de volta a “realidade”, a submissão. Na resposta da mãe,
fica implícito que, Paula era o padrão de mulher para seu irmão, dando pistas do possível incesto que
ocorreria posteriormente.
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ela [Paula] devesse ter ficado à espera da pomba, como a Virgem Maria!
Escandalizo-te? Sim, bem sei que te escandalizo. Mas tu, bem sabes tu, o
quase médico, que tens uma mãe frustrada, e neurótica, e que teu pai diz que
é louca, e que se casou virgem, e que nunca deveria ter casado, virgem ou
rasgada. XVII
— Sabes o que é que eu não consigo mesmo perdoar-te, Pedro? É que afinal
tu és irremediavelmente, irrecuperavelmente menor. Apenas um pobre-
diabo...
E então... Bom, o resto foi rápido e brutal.
Pedro avançou para a irmã de punho erguido, empurrou-a, ela caiu, ele caiu
sobre ela, rasgou-lhe a camiseta, comprimiu-lhe os seios, bateu-lhe várias
vezes com a nuca no chão, hesitou por um brevíssimo momento quando a
percebeu atordoada, levantou-lhe a saia sobre o ventre, quebrou o elástico das
calcinhas de seda, baixou-as até conseguir desembaraçá-la dos pés, abriu a
braguilha, tirou das calças o pênis erecto, afastou-lhe as coxas com ambas as
mãos, penetrou-a num orgasmo imediato, que esfriou rapidamente, viscoso,
em parte derramado sobre a vagina contraída. XXI
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REFERÊNCIAS
FERREIRA, Nadiajda. Mas que ironia! In: Conhecimento prático Língua Portuguesa.
nº. 17, p. 08-11, São Paulo: Record, 2009.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. Em passeio com ‘Pedro e Paula’: Casablanca,
Lisboa, Londres, Paris, Johanesburgo, o mundo... . Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
Disponível em <http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via03/via03_21.pdf
>. Acesso em 01 de maio de 2009.
NOTAS
I
Macedo, 1999, p.11.
II
Oliva, 2003, p.177.
III
Silva, 1997, p.274.
IV
Oliva, 2003, p.177-78.
V
Idem
VI
Ferreira, 2009, p.09.
VII
Silva, 1997, p.27.
VIII
Macedo, 1999, p. 139.
IX
Idem, p. 171.
X
Lopes, 2008.
XI
Macedo, 1999, p. 58.
XII
Silva, 1997, p.275.
XIII
Macedo, 1999, p. 69.
XIV
Idem, p. 172.
XV
Ibidem, p. 53.
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XVI
Ibidem.
XVII
Ibidem, p. 70.
XVIII
Ibidem, p. 55.
XIX
Ibidem, p. 54
XX
Lopes, 2008, p.274.
XXI
Macedo, 1999, p. 209 – 210.
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INTRODUÇÃO
1
Professora de Teoria da Literatura da Universidade Presidente Antônio Carlos.
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CRÓNICA FEMININA
Ao fim de uns anos, as crônicas ganham a cor sépia e reveladora dos diários,
mostram muito mais do que uma perspectiva individual acerca do mundo:
são um estendal de sonhos e inquietações, prazeres, ódios e amores de
estimação. Temas como aborto, a discriminação, o abuso sobre crianças, a
violência sobre as mulheres, a educação e a justiça atravessam os meus dias
com uma constância recorrente. (Crónica Feminina, 2005:13-14).
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Inês Pedrosa tem feito, nalguns dos seus textos, a ponte entre o labor da
jornalista (que é, profissionalmente, a sua origem) e o trabalho de ficcionista.
A crónica é aqui e de novo o elo entre dois campos que modernamente (e
sobretudo pós-modernamente) se intersectam, às vezes sem visível linha de
demarcação: o campo da representação ficcional e o campo da referência ao
real circundante, tangível e empiricamente conhecido. (REIS, Carlos, JL,
outubro 2005, p. 19).
Para ela, ”um cronista é, antes de mais nada, alguém que tem lata-coisa visceral,
barulhenta, infantil,brincalhona - de se atirar para os braços do seu próprio tempo e
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exibir o seu encontro erótico com ele. Romance às vezes feliz,às vezes malfadado, em
certos momentos atinge uma imprevista sintonia entre alma e pele”. (PEDROSA,
2005:15)
Suas crônicas são também diários de viagem, sua forma de relacionar-se com
alguns países, de lançar sobre eles um outro olhar, que embora subjetivo, são
provocativos para o leitor:
Escrevendo sobre livros, reflete sobre o poder transformador da palavra: ”sei que
há livros que nos viram do avesso, alterando-nos o curso da existência e a temperatura
do sangue” (PEDROSA,2005:16); em outro momento, a consciência da palavra poder
pode ser revista quando se trata de política:
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“Porque é que as mulheres são tão más umas com as outras?” onde convoca as
mulheres para se unirem em torno dos mesmos valores e parem de se vetar umas às
outras,até “Assunto de mulheres”, crônica que fala do aborto e do caso da parteira da
Maia,presa por prática de aborto ilegal, assunto que a cronista repetirá muitas vezes em
outras Crônicas e que receberá a solidariedade pública.
Neste percurso do feminino, escreve ora sobre Maria Lamas, “Maria Lamas,
lembram-se?” e traz à memória aquela que considera uma mulher de verdade, ora sobre
outras mulheres como Agustina Bessa- Luís e Sophia De Mello Breyner Andresen “As
escolhas de Sophia” ou “Gostar de Agustina” e explica sua preferência: ”Com Sophia
aprendi a ler e a morrer. Com Agustina aprendi a viver e a escrever”
(PEDROSA:2005,395).
Desafiando “a brancura muda da página”, como diz a cronista sobre seu trabalho,
Inês tem refletida, na escrita de suas crônicas, uma linha combativa, pontuando os mais
diversos fatos e possibilitando ao leitor atento a compreensão da lição barthesiana que a
cronista alude em uma de suas crônicas:
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
PEDROSA, Inês. Vinte mulheres para o século XX. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2000.
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UMA INSÓLITA MEMÓRIA: A INSERÇÃO DO INSÓLITO EM “DO DEUS
MEMÓRIA E NOTÍCIA”, DE MÁRIO DE CARVALHO
Ainda que o narrador não tenha revelado de que cidade e de que datas está
falando, nem mesmo tenha citado nomes de personagens historicamente
conhecidas, as informações contidas em seu relato garantem-lhe o germe do
“real” (realia).
Quem és tu?
(...)
– Eu sou o Meu sinal, mas este é um sinal Meu – disse o Deus; e logo a Lua, que
percorria longe o céu, veio descendo, cresceu sobre todas as cabeças, mostrando
ao perto suas montanhas e vales, iluminando a noite e escondendo o firmamento.
O mar, então, revolveu-se, bramiu, grandes bátegas de água galgaram o porto,
arrastando navios e muralhas, e muitos homens e mulheres pereceram afogados
no torvelinho.
A luz da torre advinda da figura do deus foi se desvanecendo até sumir para sempre,
e a narrativa termina com as seguintes palavras: “Do Deus da torre, o verdadeiro, não
houve nem mais memória, nem mais notícia” (Carvalho, 1990, p.30). Uma nova verdade é
construída, uma nova história é contada. É a versão que dos fatos que prevalece. No
entanto,
Tal perspectiva evoca a discussão acerca do que pode ser considerado verdadeiro ou
não diante da escrita histórica. Ora, “articular historicamente o passado não significa
conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como
ela relampeja no momento de um perigo” (Benjamin, 1994, p. 224). Saber que as crônicas
de Ghard possuem diferentes versões pode ser lido como uma atitude de desconfiança
frente aos fatos. Se a história é antes de tudo um olhar apropriador, não se pode confiar
totalmente nesse discurso – lembrando que discurso “não é um conjunto de textos, é uma
prática” (Orlandi, 1998, p.12). Sendo discurso uma prática que emerge do sujeito, perceber
o passado é um exercício de edição contínuo e Sarténides acaba por incorpora essa função
sendo reflexo do papel do narrador e/ou autor de qualquer texto, histórico ou não.
Pensando em ficção como “ato ou efeito de fingir” (Houaiss, 2001), os escribas são
mais poderosos do que o deus, já que conseguem fazem com que o fingimento se torne uma
verdade indiscutível. Um deus nada é sem fé e só sua presença não foi o suficiente para
preservar sua memória. Esses narradores da verdade acabam por ratificar a ficcionalidade
da narração histórica, já que esta “realiza uma encenação do passado” (Sieczkowski, 2002,
p. 73). Não se pode então pensar na narração histórica como simples representação do
“real” e na ficção como o “falso”, “fantasioso”, pois:
Se a obra de ficção institui uma realidade que necessita ser desacreditada para se
tornar autentica, e a realidade referencial da Pós-Modernidade é em si um arremedo, nada
mais natural que se busque no passado uma ilusão de real, mesmo que esse real seja a
negação da “verdadeira verdade” ou da “verdade verdadeira”. É a partir da desobrigação de
se venerar o passado nitidamente superado que se pode erguer uma nação sem, no entanto,
esquecer que em alguma parte se encontram as memórias prontas para serem revividas
perdidas no mar sem fim.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política I: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: Cia. das Letras: 1987
CARVALHO, Mário de. Contos da sétima esfera. Lisboa: Editorial Caminho, 1990.
ORLANDI, Eni Puccinelli (org). A leitura e os leitores. São Paulo: Pontes, 1998.
(...) O nosso mote, como a nossa vida, todo se encerrava naqueles dous belos
versos: A galope, a galope, ó fantasia! Plantemos uma tenda em cada estrela!
(...) Com um intenso poder de idealização revestíamos todos os entes, os mais
triviais, de beleza ou de grandeza, de poesia ou de terror, no desejo
inconsciente de que a realidade correspondesse ao nosso sonho3
Por outro lado, ao mesmo tempo em que a fantasia estava ao alcance de todos, as
revoluções e os abalos por elas provocados também já se mostravam presentes em
Coimbra, tanto que, em algumas ocasiões, a Universidade será descrita por Eça de
*
Doutorando em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (USP).
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forma negativa, pelo fato da estagnação educacional da Instituição, regida ainda por
uma ciência escolástica:
(...) Por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral até
Chelas, se erguia ela, com as suas formas diferentes de comprimir, escurecer
as almas (...) era para nós uma madrasta amarga, carrancuda, rabugenta, de
quem todo o espírito digno se desejava libertar, rapidamente desde que lhe
tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à <<sebenta>>,
esse grau que o Estado tornava a chave das carreiras4
Como já dissemos, uma das revoltas contra a universidade era justamente por ela
ainda alimentar resquícios de uma educação escolástica e isso, de acordo com o próprio
Eça, ajudava a aumentar a aversão de todos contra a religião.
Nesse sentido, ao nosso ver, a fase de estudos em Coimbra, é muito importante
para compreendermos a maneira como Eça de Queirós lidará com os temas religiosos
ou com as críticas voltadas à Instituição religiosa ao longo de toda sua produção, pois,
nas memórias do autor sobre tal período e nas biografias que se detém sobre esta fase da
vida de Eça, encontramos informações importantes acerca da forma como ele e outros
colegas pensavam a Religião de um modo geral.
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E era por nos sentirmos envolvidos numa opressão teocrática, que, além de
pendermos para o jacobinismo, tendíamos, por puro acinte de rebeldia, para o
ateísmo. De sorte que a Universidade, ultraconservadora e ultracatólica, era
não só uma escola de revolução política, mas uma escola de impiedade
moral7.
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Segundo MÓNICA12 no terceiro ano que vivia em Coimbra, por volta de 1863,
Eça saiu da casa da família Dória, onde residia desde o início da graduação, e foi morar
em uma república. Essa mudança representou uma liberdade domiciliar que Eça não
conhecia. Os amigos podiam visitá-lo e com isso sua vida social ficou mais agitada. A
mudança foi decisiva em termos religiosos, pois se na casa da família Dória a vaga
religiosidade ainda era mantida, morando sozinho sua postura não tardou a mudar
devido às novas teorias que aprendia e aos novos condiscípulos conquistados:
Um outro amigo que parece ter sido decisivo nesta fase de contestação religiosa
fora Antero de Quental. Como já mencionamos, foi durante o curso universitário que
Eça conheceu aquele por quem manteria uma devoção desde a juventude até a morte:
“(...) também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a
escutar, num enlêvo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida”15.
É no texto dedicado ao autor das Odes Modernas que será narrado o episódio em
que Antero intimou Deus, tirando do bolso um relógio e deu sete minutos ao Todo
Poderoso para que o fulminasse com um raio16. Eça diz duvidar da autenticidade deste
relato, contudo, de alguma forma o acontecimento ou a fantasia marcaram Eça, ele não
hesitou em impingir a mesma ação ao poeta Damião de A capital17.
Embora a atitude de contestação mística pareça veemente, Mónica esclarece
ainda que isto não impedia Eça de “continuar a ser supersticioso, pose que manterá
durante anos, porque, como verificou, causava efeito. Usava bentinhos ao pescoço e
dizia temer Satanás.”18. Contudo, a atitude de Eça e seus amigos parecia mais pose do
que propriamente convicção. A relação com o sobrenatural consistia em críticas e
indagações, com insistentes desafios lançados a Deus:
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Outras das ocupações espirituais a que nos entregávamos, era interpelar Deus.
Não o deixávamos sossegar no seu adormecido infinito. Às horas mais
inconvenientes, às três, quatro da madrugada, sobre a Ponte Velha, no Penedo
da Saudade, berrávamos por Ele, só pelo prazer transcendente de atirar um
pouco do nosso ser para as alturas, quando não fosse senão em berros19.
Era um teólogo de costumes quietos, que lia Balmes e sofria do fígado. Pois
corria pelo cenáculo que este padre sombrio, todas as noites, colocava uma
Bíblia aberta sobre os seios nus da sua amante, e à luz de uma tocha se
repastava das amarguras do Eclesiastes! E todos nós acreditávamos com
inveja nesta Bíblia, nestes seios, nesta tocha... Assim era essa geração20.
Coimbra vivia então numa grande actividade, ou antes num grande tumulto
mental. Pelos Caminhos de Ferro, que tinham aberto a Península, rompiam
cada dia, descendo da França e da Alemanha (através da França), torrentes de
coisas novas, idéias, sistemas, estéticas, formas, sentimentos, interesses
humanitários... Cada manhã trazia a sua revelação, como um sol que fosse
novo. Era Michelet que surgia, e Hegel e Vico, e Proudhon; e Hugo, tornado
profeta e justiceiro dos reis; e Balzac, com o seu mundo perverso e lânguido;
e Goethe, vasto como universo; e Poe, e Heine, e creio que já Darwin, e
quantos outros!21
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REFERÊNCIAS
MÓNICA, Maria Filomena. Eça de Queirós. 4ª ed. Lisboa: Quetzal Editores, 2001.
NOTAS
1
SARAIVA, 1950, p. 33.
1380
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2
Doravante AQ nas referências de citações.
3
AQ, p. 262.
4
AQ, p. 264.
5
AQ, p. 264.
6
AQ, p. 266.
7
AQ, p. 264.
8
MÓNICA, 2001, p. 268.
9
Cf. NERY, 2005.
10
MÓNICA, 2001, p. 21.
11
AQ, p. 261.
12
MÓNICA, 2001, p. 21.
13
Impossível não remetermos àquela passagem de Os Maias na qual Eça ilustra a requintada educação
inglesa de Carlos da Maia em detrimento da praticada em Portugal. O protagonista fora criado com
muitos banhos frios e brincadeiras ao ar-livre. A passagem parece querer indicar uma concepção de que
tudo que é moderno é antimístico. (Ver: QUEIRÓS, Eça de. Os Maias. Porto: Lello e Irmãos, 1950).
14
MÓNICA, 2001, p. 22.
15
AQ, p. 258.
16
Cf. AQ, p. 265.
17
Interessante lembrar que Damião, durante a narrativa de Artur Corvelo, possui atitudes muito parecidas
com as de Antero de Quental. (Ver: QUEIRÓS, Eça de. A capital. Porto: Lello e Irmãos, 1955).
18
MÓNICA, 2001, p. 21.
19
AQ, p. 262.
20
AQ, p. 263.
21
AQ, p. 260.
22
NERY, 2005.
23
BUENO, 2000; CARVALHO, 1995.
1381
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linguagem, as quais somente se dão a conhecer quando tornadas cada uma delas um
outro: obra.
A tarefa de Ricardo Reis é a tarefa de escrever versos. Nos versos, cujas
pronúncias proferem a inexorabilidade do destino, não há escolha tampouco vontade e
compreende-se que Reis, portanto, deve atender igualmente àquilo que pronunciam,
àquilo de que os versos são enunciados e exemplo. Nesse sentido, é razoável supor que
Ricardo Reis é a tarefa que lhe cabe, não se antepõe aos versos tampouco está para além
deles. Seu destino é o destino absoluto dos versos. Se assim é, Reis abandona-se no
terreno da poesia, deixando que os versos assumam-se como a própria tarefa e
encerrem-se como solução desta. Há um gesto de abandono de Ricardo Reis, que
consiste em atirar-se ao destino, morrendo enquanto poeta, podendo assim ser salvo na
sua sobrevida dos versos, na tarefa em que está sua própria solução.
Abandonar-se dessa maneira demonstra íntegra submissão ao traço de
indiferença da linguagem. Pode-se inclusive afirmar que a indiferença da linguagem é a
permissão para que a obra poética assinada por Ricardo Reis sustente-se no estado
precedente da linguagem, já que se se procura um poeta acha-se um verso. Assim, a
escrita de um verso deve ser tal qual a escrita do nome, em que nome e verso conjugam-
se pela indiferença. E nesse sentido, assinar e escrever versos são gestos dotados de
igual envergadura.
Sendo assim, pode-se supor que Ricardo Reis é autorizado a assumir um
ato de nomeação. Nomear os versos com seu nome é como restitui-lhes algo que nunca
perderam, a dignidade de ser, pois enquanto nome aos versos interdita-se a
possibilidade de lançar-lhes sugestões do que são, uma vez que o verbo ser, precedido
do nome, ganha absoluta intransitividade, tornando também intransitivo aquilo que lhe
cerca. Sendo nomeados, os versos repousam na indiferença do nome Ricardo Reis, o
que garante a interdição do ímpeto de criar-lhes predicativos que não sejam também
nomes: os versos são Ricardo Reis; Ricardo Reis é verso. Os versos ganham a
propriedade do nome, modo com que se mantêm inacessíveis à compreensão que intenta
decodificá-los, uma vez que são acolhidos como dados primordiais da linguagem.
Sob a propriedade do nome, os versos asseveram sua autonomia,
garantem a possibilidade de conservarem-se nos domínios da linguagem antecedente,
onde se portam como instâncias que lidam pela indiferença ao que se lhes apresenta
como alheio. Assim, a tarefa é cumprida tanto mais seja preservada a condição
precedente da linguagem no poema – pela estranheza inalienável em que vida e poema
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conjugam-se. Nos lugares onde se procura encontrar o consolo Ricardo Reis oferece
rigidez. A solução que diz respeito ao poema não desfaz o mistério abraçado pela arte.
O poema como solução apenas pode atestar um saber não sobre a vida, tampouco sobre
a arte, mas um saber da arte, enigma sob cifras, versos.
Assim, Ricardo Reis coloca-se em absoluta submissão, oferece uma saída
que não advém da solução como resposta, mas da solução como cumprimento do
desígnio que lhe pesa sobre os ombros. Desse modo, o poema não almeja liberdade,
pois já seria ela uma concessão. A determinação do poema é a realização da tarefa a
cujo cumprimento nada é concedido a não ser a atribuição do dever, ou da dívida, de
que tudo seja posto sob a indiferença do nome poema, cuja assinatura é Ricardo Reis.
Então, Ricardo Reis deve ser nome em constante indiferença ao nome
poema. Assim ganha uma disposição criadora evocando tudo pela pronúncia Ricardo
Reis. Ao fazê-lo, toma a inexpressividade do nome como possibilidade de tudo ser pela
primeira vez nomeado pelo poema. A inexpressividade do nome não indica ausência de
expressão, mas a qualidade do inexpressivo que qualquer nome carrega em si uma vez
que é dado primordial da linguagem. Tal qualidade assalta a particularidade de um
nome, encerrando-o na indiferença com todos os nomes. A autonomia do poema talvez
esteja nesta pista: sob a propriedade do nome poema acentua-se a propriedade do nome
Ricardo Reis, a partir do qual cada coisa, nomeada pelo poema, ganha singularidade.
Ricardo Reis, consubstanciado da indiferença, é assinatura que assinala a
autoridade do nome que, enquanto dado primordial da linguagem, não aponta para
nenhum dado externo à obra poética. Ricardo Reis é assinatura que não marca, portanto,
uma presença, tampouco ausência, mas a resistência de algum tipo estranho de
sobrevida que respira enquanto tudo vai morrendo. Pela indiferença do nome, Ricardo
Reis compartilha deste denso e escasso ar, inscrevendo-se pela ação da indiferença
maior da linguagem: nomear. Ao encarnar-se de tal disposição criadora dispõe versos
sob a mesma condição mítica de seu nome – elemento este que, pertencente a tal esfera
precedente, governa soberano no reino de imposições da própria linguagem.
Nome criado pela indiferença e que, portanto, coloca-se em indiferença
frente aos versos, Ricardo Reis só é compreendido como instância criadora ao passo que
também é verso. Anunciar que Ricardo Reis é verso é comprometer-se com a ideia de
que seu nome é a assinatura de uma linguagem poética que se ampara na instância que
lhe dá o solo sobre o qual os versos podem arquitetar-se. Dessa forma, diz-se que os
versos são abandonados uma vez que sobre eles não se imprime a marca de um sujeito,
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uma assinatura que assuma autoria tampouco propriedade particular. O trabalho poético
assinado por Ricardo Reis afiança, assim, a afirmação de que “Sem sujeito: há talvez
poema, e talvez ele se deixe, mas nunca o escrevo. Um poema, nunca o assino. O eu
apenas existe em função da vinda desse desejo: aprender de cor.”1
Acredita-se que o projeto artístico pessoano – assinaturas heteronímicas –
demonstra-se, desde já, como um enunciado geral de uma concepção de trabalho de arte
que admite a antecedência da linguagem, a partir da qual as assinaturas assinalam
questões que se erguem como sugestões sobre o que seja a atividade artística. Nesse
sentido, as assinaturas dos heterônimos – cujos gestos configuram movimentos de
despersonalização – comparecem como elementos que problematizam, inclusive, a ideia
de assinatura como marca de autoria capaz de conferir autenticidade ou qualidade à
obra. Põe-se em discussão o fato de as emoções e sentimentos pessoais do artista,
sujeito empírico, estabelecerem um vínculo causal com a obra.
Uma vez que o gesto artístico é alçado pela impessoalidade, garantida nos
movimentos de despersonalização, suspende-se tanto a ideia de sujeito genial (de base
romântica) como a da anulação do “eu”, própria ao clássico. O que subjaz às assinaturas
é, portanto, uma concepção da linguagem que garante sua condição primordial,
promulgada nas obras poéticas segundo o próprio gesto de assinar. Cada assinatura
encerra não só um estilo ou uma personalidade distinta da de Fernando Pessoa, mas uma
índole criativa que, no universo em que se constitui, submete-se à indiferença da
linguagem.
Sempre alheia, a linguagem garante autonomia ao trabalho de arte que a concebe
como força produtora, como instância a partir da qual versos são elaborados na medida
em que são acolhidos, no ato criativo, como dados pré-existentes, resguardados na
antecedência de tal instância. Ricardo Reis, assinatura da indiferença, oferece o campo
em que os versos assentam-se atendendo à ideia de que a autoria é do poema, não da
assinatura:
Mas é a obra alguma vez acessível em si? Para se tal conseguir, seria preciso
retirar a obra de todas as relações com aquilo que é outro que não ela, a fim
de a deixar repousar por si própria em si mesma. Mas é isso que visa já o
mais autêntico intento do artista. Através dele, a obra deve ser libertada para
o puro estar-em-si-mesma. Justamente, na grande arte, e só ela está aqui em
questão, o artista permanece algo de indiferente em relação à obra, quase
como um acesso para o surgimento da obra, acesso que a si próprio se anula
na criação.2
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como assinatura da indiferença, realiza sua tarefa não copiando os modelos da natureza,
mas imitando a indiferença desta mediante seus processos de criação, tomando a
indiferença como tarefa e solução, como possibilidade de a poesia criar algo que possa
ser tal e qual natureza. Assim, tais indicações sugerem que Ricardo Reis encarrega-se de
ser linguagem enquanto natureza, lidando consigo, assim como a natureza, pela
indiferença ao que é e ao que faz.
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caráter disciplinado. Isso refere-se, principalmente, ao fato de que Reis assevera que
“deve haver, no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por onde se note que
existiu Homero.”8 É por se submeter a regras rigorosas na sua execução, dado o espírito
clássico com que se ergue, que Reis vigia uma liberdade tal de ser como é, e se torna
urgente reconhecer, neste rigor, que poesia Ricardo Reis “é uma arte que admite um
princípio de autoridade, determinando a partir dele suas possibilidades de livre
expressão”.9
Os versos, neste andamento, preservam sua autoridade de expressão,
corroborando sua autonomia, seu movimento livre, dado por um princípio formal
rigoroso ditado por eles mesmos – Ricardo Reis –, pela poesia de que são todo e parte
indiferentemente. Os modelos gregos não perderam sua substância de autoridade e
tampouco se tornaram meras normas. A liberdade dos versos existe na ilusão da
liberdade, ditada por uma disciplina que não se inspira nas regras do estilo clássico, mas
na disciplina do próprio espírito clássico: na lucidez, na sobriedade e na concisão
corolárias à arte clássica.
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apresentação”13. Ricardo Reis é ato poético que, submetido à tarefa de criação, não se
atrela a um criador, pois diz respeito a um gesto de fundação, cujas origens mantêm-se
veladas no estado antecedente da linguagem. Os versos emergem como sob uma
imposição de nascimento, uma necessidade que se inscreve na finalidade sem fim da
arte. Assim, é possível pensar que a linguagem ali não é dado apropriado, mas instância
que apropria, que submete meios e fins do trabalho de arte ao aperfeiçoamento não mais
da natureza, mas da própria arte.
A poesia Ricardo Reis responde, então, como linguagem que é capaz de ser
natureza; cria e, sendo indiferente ao que cria, é a possibilidade de a poesia ser algo em
que habita uma finalidade sem fim, um imperativo de nascimento, uma sugestão de
mundo. É por admitir-se sob o imperativo de sua tarefa que a poesia é a única história
que o homem não conta; ou só conta ao passo em que é contado por ela. O poema
assinado por Reis respira pela palavra morte, destino dos versos enquanto pronúncia
derradeira. Enquanto linguagem que respira sua precedência, Reis faz de si mesmo uma
natureza que se torna, pela indiferença, um fragmento de uma história intemporal, e por
isso somente pode dar acesso a uma pré e pós-história, que “não é a história humana, e
sim história da natureza: destino. Sujeita ao destino, a vida humana é efêmera, porque é
a vida do homem criado, do homem como criatura, como ser natural.”14
Se qualquer elemento criado pela natureza nasce sob um imperativo absoluto –
cujo escopo deve ser discutido em termos –, então a necessidade do nascimento de um
poema não se baseia em argumentos, pois diz respeito a uma situação de
inevitabilidade, constituindo-se como um “gesto de existência”15 que, em si, não toma a
indiferença nem como sua causa tampouco como seu resultado. Ricardo Reis, verso
imperativo da linguagem, atribui, assim, um valor de naturalidade ao gesto poético,
como se o poema devesse estar ali como uma árvore, ou um rio que passa. O que faz
Reis refere-se, então, à simulação de uma operação própria à arte, em que o fim deve ser
imanente aos meios:
A Natureza nos apresenta uma finalidade dispersa. Ela é uma demonologia,
repleta de forças supranaturais, das quais nenhuma é sobrenatural.
(...) Ao tentar pensar a Natureza segundo uma finalidade, só se dispõe de
conceitos vagos. Para dar sentido verdadeiro à finalidade, é preciso voltar ao
homem. Mas já não se deve tomar o homem como fenômeno, é preciso tomá-
lo como número. O verdadeiro país da finalidade é o homem interior: (...)
como “meta final” da Natureza, na medida em que ele não é Natureza mas
pura liberdade sem raízes.
(...) A finalidade só subsiste diante do pensamento pela decisão do homem de
ser livre e moral. O homem é antiphysis e arruína a Natureza opondo-se a
ela.16
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Neste processo, ao criar versos lidando pela mesma indiferença com que se
comporta a natureza ao criar, Reis pode recordar os limites da arte. A arte, por mais que
imite a natureza, não pode gerar a vida, não pode alcançar tal nível de perfeição – algo
que já haviam intuído os gregos. Entretanto, ao imitar tal indiferença, Ricardo Reis
aperfeiçoa a linguagem que o gera, tornando-se “verso-assinatura” do poema, natureza
que gera versos pela indiferença de que se constitui.
Reis cria um poema à semelhança de um animal uma vez que transforma os
aspectos referentes aos meios de composição de um ser vivente na natureza em feições
particulares da arte. O poema constitui-se e comporta-se estranha e alheiamente a um
ser vivente, transformando a indiferença em um dado de aperfeiçoamento da arte, já que
a arte, ao reconhecer seus limites em relação à natureza, passa a aperfeiçoar a si mesma,
fazendo de si um dado que se mantém em indiferença absoluta à vida.
A vida que habita na arte poética chamada Ricardo Reis é, pois, a ideia de vida
que corresponde à beleza da indiferença com que os versos pronunciam que “Só nós – ó
tempo, ó alma, ó vida, ó morte! – / Mortalmente compramos / Ter mais vida que a
vida.”17 Conservando-se no ditado de uma vida que não tem, o poema é concebido
como “uma forma de crítica, porque fazer arte é confessar que a vida ou não presta, ou
não chega”18. Reis, assim, é a indiferença à vida, compondo-se no andamento do
anúncio em que cada verso respira numa proximidade radical com a morte. Infere-se,
assim, que poema e vida não se ajustam, pois o poema, se reconhecido enquanto ditado
da vida, prolonga-se para além da escassa duração da vida ditada, perpetuando a tarefa
de pronunciá-lo de cor. Nesse ambiente precedente, o poema consome a vida
lentamente, ditando-a, vivendo uma vida que não tem, mas sabido de que “Tudo que
cessa é morte, e a morte é nossa / Se é para nós que cessa.”19
REFERÊNCIAS
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________________. Poesia / [poesias de] Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
NOTAS
1
Derrida, 2003, p. 10.
2
Heidegger, 2008, p. 31.
3
Pessoa, 2000, p. 75.
4
Idem, 1999, p. 253.
5
Ibid., p. 230.
6
Ibid., p. 255.
7
Idem, 2000, p.130-131.
8
Idem, 1999, p. 147.
9
Argan, 1999, p. 15.
10
Pessoa, 2000, p. 18.
11
Idem, 1999, p. 180.
12
Idem, 2000, p. 128.
13
Lacoue-Labarthe, 2000, p. 171.
14
Benjamin, 1984, p. 35.
15
Lacoue-Labarthe, 2000, p. 290.
16
Merleau-Ponty, 2006, p. 39-40.
17
Pessoa, 2000, p. 89.
18
Ibid., p. 239.
19
Ibid., p. 113.
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1
Pós-Graduada em Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
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Loures, intitulado Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho. Este encontra-se em sua 9ª
edição e premia escritores portugueses por suas obras de ficção ou poesias inéditas.
Maria Amália Vaz de Carvalho escreveu em um período de transformações em
Portugal e no Brasil. Sua obra é vasta e versátil: contos, crônicas, críticas literárias,
poesias, biografias, etc. Apesar de participar de um grupo seleto de escritoras influentes
do século XIX, o conjunto de seus escritos encontra-se desgastado e sua obra, em parte,
permanece desconhecida. Podemos atribuir alguns fatores: primeiramente por não haver
novas edições, apenas as que datam do século XIX, início do século XX, ou textos
inéditos, à espera, em periódicos desta mesma época, armazenados em bibliotecas; e,
em segundo lugar, pelo fato de que muitas das suas opiniões talvez constituíssem –
ainda e a despeito de toda a cautela que usa ao apresentá-las – uma afronta ao machismo
da época. Por isso, nosso primeiro objetivo tem sido o resgate de seus trabalhos,
principalmente os que atravessaram o Atlântico, tão importantes sob vários aspectos,
sobretudo para o entendimento da posição das mulheres na sociedade daquele tempo.
Primeiramente pesquisei sua biografia. Passei a conhecer a autora e sua obra, em
textos publicados em livro, encontrados quase todos no Real Gabinete Português de
Leitura do Rio de Janeiro.
Após esta fase, interessei-me por seus trabalhos publicados em jornais. Comecei
uma verdadeira “caça ao tesouro” pelos periódicos da Biblioteca Nacional (também no
Rio de Janeiro). Iniciei a busca pelo ano de 1878, quando informações em sua biografia
levaram-me a crer que era seu ano inaugural na imprensa carioca e fui até 1890. Antes
de 1878 e também depois, a autora já colabora em diversos periódicos da Europa, mais
especificamente em Portugal e na França. Entre eles: Jornal do Commercio, Lisboa;
Comércio do Porto, Porto; Correio da Manhã, Lisboa, Revista Moderna, Paris, etc.
De 1878 a 1890, encontrei textos da autora no Jornal do Commercio do Rio de
Janeiro (mais precisamente de 1878 a 1881), todavia acreditamos que nos anos
subsequentes haja mais textos, pois na publicação Páginas Escolhidas4, 1920, há
referência de um artigo escrito para o jornal que data de 19015, além das várias
referências encontradas em livros que afirmam que a autora colaborou bastante tempo
para a imprensa brasileira.
Também, nesta pesquisa, foram encontrados textos no periódico O Paiz, no ano
de 1885. Acredito ainda que ela tenha dado outras contribuições à imprensa brasileira,
em outros estados. No site da Universidade Federal do Rio Grande temos disponível um
texto que fez parte do VII Seminário de Pesquisa Qualitativa: fazendo metodologia,
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No século XIX a mulher ainda era vista como um ser incapaz, dominada pela
emoção e desprovida de qualquer intelectualidade, como observa Irene Vaquinhas em
seu “Senhoras e Mulheres”na Sociedade Portuguesa do Século XIX (2000)13:
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a maternidade, para que a mulher pudesse se instruir foi bem sucedida e contribuiu para
que a defesa da educação feminina pudesse continuar sem tantos preconceitos.
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REFERÊNCIAS
CARVALHO, Maria Amália Vaz de. Cartas a Luíza – Moral, Educação e Costumes.
Porto: Barros & Filha Editores, 1886.
SILVA, Amaro Carvalho da. Esboço da Vida e Obra de Maria Amália Vaz de
Carvalho. Edição Escola Secundária Maria Amália Vaz de Carvalho. Execução Gráfica,
Câmara Municipal de Lisboa, Imprensa Municipal, 1997.
NOTAS
2. O periódico em questão é o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, que já existia desde 1827, e que
foi o primeiro a abrir as portas para os trabalhos da autora no Brasil. Temos esta informação por já termos
feito uma pesquisa sobre a autora e seus trabalhos no citado jornal para monografia de conclusão do curso
de especialização em Literatura Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2008.
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está em jogo onde os poetas escrevem, mas porque escrevem e que lugar sua poesia
pratica. A poética de Daniel Faria parece evidenciar que falar de Deus apenas seria
possível, ou resultaria melhor, no interior dos poemas. Por sua vez, Ruy Belo afirma:
“não é que no mais fundo não creiamos// mas não lutamos já firmes e a pé”, ou seja, o
catolicismo, em sua essência, nitidamente se terá perdido, e a poesia poderia ser o
refúgio de um discurso mais capaz de dar conta de uma “complicação”, de um “desvio”,
do humano, enfim. E assim, o homem, ainda que viva uma vida regrada e focada em
obter a salvação, não tem como barganhar com Deus, ou pedir contas ou um julgamento
justo. A poesia prova a impossibilidade do homem ter certezas.
Daniel Faria e Ruy Belo não se julgam merecedores de uma possível salvação,
não fazem por onde alcançá-la e, se o fazem, fazem sem essa pretensão, o que os
dignificaria no Juízo Final caso se cumprisse a promessa de Cristo: “bem-aventurados
os que choram porque serão consolados”. Os valores buscados então pela poesia seriam
distintos dos buscados pela Igreja Católica, e aos poetas, o único meio de lutar por seus
valores seria através da poesia. Dessa forma, a linguagem poética faz-se instrumento da
busca de um Deus, não necessariamente católico apostólico romano, mas anterior à
corrupção e ao poder da Igreja. O mesmo Jesus que proclamou às multidões as bem-
aventuranças não lhes disse “bem-aventurados os que me seguem” e muito menos
“bem-aventurados os católicos”. Se os católicos professam que a salvação se dará
mediante o julgamento prometido pelo Cristo, não cabe aos homens julgar, e dessa
maneira o poder da Igreja passa a ser um juízo de valor incoerente de acordo com os
ensinamentos de um Deus que não vê raça, etnia ou classe social. Se Deus fez o mundo
para todos sem exceção, e até mesmo, aos nossos poetas cabe a possibilidade da vida
eterna. No entanto, isso está além da poesia, mesmo porque o poder que Cristo passou a
seus discípulos de perdoarem os pecados em Seu Nome, segundo as Suas leis, passou a
ser moeda de troca e, dessa maneira, perdeu seu fundamento.
Embora haja uma procura por esse Deus salvador, e não uma busca por salvação,
as poéticas de Ruy Belo e Daniel Faria não são poéticas de pregação, nem de pureza. O
Deus que elas buscam é o seu Deus, que não necessariamente será o Deus “correto”,
imposto pela Igreja Católica, e os poetas não anseiam convencer ninguém de que o seja.
Para eles, o problema se torna mais complexo, ao passo que se pensa a poesia sendo
feita através da língua e a língua não é pura. Segundo Luis Quintais, “Todas as línguas
do mundo se sujaram”, e uma língua suja não pode ter a pretensão de trazer a salvação
de Deus. Por isso, fica claro que a poesia não salva, pois a língua é corrompida. Talvez
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não exista língua ou linguagem que não o seja. E mais, só se pode fazer uso da poesia
para falar de Deus porque a poesia é feita por homens e não provém de Deus, ou seja, já
é corrompida em sua natureza. Convém lembrar sobretudo que dentro da linguagem, e
da poesia de Ruy Belo e Daniel Faria, Deus é uma construção.
Os verdadeiros valores para a poesia então, segundo esse estudo, são reconhecer-
se incapaz de ser digna de falar de Deus de forma não corrompida por sua humanidade.
Essas poéticas configuram a necessidade de se achar um caminho para falar de Deus. As
poéticas de Ruy Belo e Daniel Faria lembram ao homem a sua condição pequena:
“Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.// Da indigência. E da fadiga.// Da tua
sombra a minha sombra// E da tua casa// E do céu chão” (Daniel Faria), e é isso o que as
deixa mais próximas ao projeto de Deus. Se o único caminho é Deus, usar a poesia
passa a ser único caminho possível para falar de Deus, e isto configura uma eterna busca
por um Deus que, por conseqüência e não por objetivo primeiro, salva. Para ilustrar e
concluir, nas palavras de Octavio Paz “(...) a poesia (...) é a mais revolucionária das
revoluções e, simultaneamente, a mais conservadora das revelações, porque não
consiste senão em restabelecer a palavra original”. E, de acordo com Marcos Aparecido
Lopes, vemos que “É ainda Octavio Paz quem afirma que à poesia compete criar um
novo sagrado de índole beligerante e, portanto, diferente do sagrado institucionalizado
pelas religiões”. Daniel Faria e Ruy Belo seriam porta-bandeiras desse propósito.
Podemos crer que há assuntos inacabados, com necessidade da continuação: a
poesia e o Deus. Nem Daniel Faria, nem Ruy Belo os esgotam, mas ilustram um
caminho diferente ao da tradição para sua compreensão. Esses poetas mostram-nos uma
alternativa, não instituem uma nova religião, mas um novo sagrado, um novo Deus para
si mesmos. E dessa forma um novo modo de ler poesia e de falar de Deus.
REFERÊNCIAS
BELO, Ruy. Todos os Poemas I. Colecção: Obras de Ruy Belo. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2004.
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__________. Todos os Poemas II. Colecção: Obras de Ruy Belo. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2004.
_________ .Todos os Poemas III. Colecção: Obras de Ruy Belo. Lisboa: Assírio &
Alvim, 2004.
SERRA, Pedro. Um nome para isto: Leituras da poesia de Ruy Belo. Coimbra: Ângelus
Novus, 2003.
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Doutoranda USP.
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REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
NOTAS
i
SARAMAGO, 2004, p.60-61
ii
SARAMAGO, 2004, p.75
iii
SARAMAGO, 2004, p.173
iv
SARAMAGO, 2004, p.217
v
SARAMAGO, 2004, p.330
vi
SARAMAGO, 2004, p.348
vii
SARAMAGO, 2004, p.73
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Trabalho decorrente da pesquisa de dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura (UFRJ). Professor
auxiliar substituto na FFP/UERJ.
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Durante seu governo, Herculano, como confessa mais tarde, evita periódicos
políticos, mas mantém uma intensa produção literária e historiográfica. Seu retorno às
trincheiras políticas só acontece em fevereiro de 1850, quando é o primeiro de uma série
de sessenta intelectuais e políticos que assinam um protesto contra uma lei de imprensa,
apelidada de “lei das rolhas”, protesto esse elaborado em sua casa na Ajuda.
Apesar de não se considerar democrata, pelo peso republicano que essa palavra
detinha na época, e longe de ser comunista, pensamento ilusório e injusto em sua
opinião por ser ele um defensor do direito à propriedade, pode-se perceber por seus
escritos, que defendeu o povo no que achava que deveria fazê-lo: lutando pela instrução,
pela educação através da arte e da imprensa, pela liberdade de pensamento, direito à
propriedade, e, mais do que tudo, contra a extorsão e corrupção dos governos e dos
capitalistas que depredavam o país, vendiam a nação, e seguiam as ilusões do progresso.
Assim, como avaliar o aparente silêncio durante o governo cabralista? Se não
poderia falar claramente, suas críticas ao liberalismo e sua consciência social deveriam
estar presentes em sua obra literária e em seus estudos históricos. É o que se percebe na
leitura do romance Eurico, o Presbítero.
Isso é possível porque Herculano vê analogias entre o séc. XIX e a Idade Média.
Entretanto, observando-se os momentos escolhidos para compor sua obra ficcional,
nota-se que são períodos de crise e transformação social. Assim, ele é capaz de apontar
sua visão de como a situação oitocentista pode ser modificada.
Além das semelhanças políticas vistas por Herculano, podemos perceber em
Eurico, o Presbítero questões morais e sociais que eram comuns na sociedade burguesa
do século XIX, inclusive críticas à ditadura cabralista. Assim, a temática histórica do
romance funciona como pano de fundo para uma crítica ao liberalismo. Nesse romance
estão presentes, entre outros temas: a questão do casamento como contrato social,
colocando poder e riquezas acima do amor; a corrupção como forma de enriquecimento
e busca de poder, tanto da parte de nobres quanto da parte da igreja; o totalitarismo das
altas classes episcopais numa sociedade decaída, além da ganância e depravação moral
de um bispo; a indignidade da nobreza torpe que só esbanja e se diverte em bailes e
jogos da corte; a nova aristocracia burguesa dos barões; e a relação entre o patriotismo e
a decadência da nação. Há ainda a discussão sobre os problemas que acompanham a
luta liberal, como a guerra civil, que assolara Portugal no início do século. Além disso, a
sociedade urbana apresentada, a de Carteia, cidade que apresenta semelhanças a Lisboa,
é formada por aldeões com pensamentos mesquinhos e fechados, com a rigidez dos
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antiultramontano, por associar aos dogmas da igreja e ao poder do clero uma afronta à
liberdade. Apesar disso, a tradição do país e de certo catolicismo ilustrado deveria ser
mantida, ou se perderia a identidade nacional. O evangelho deveria ser seguido como
elemento civilizador, pois, segundo a opinião que pauta o romance, a humanidade seria
mais justa, igualitária e feliz, com menos problemas sociais, se seguisse os
ensinamentos cristãos.
Apesar de, aos olhos de hoje, parecer um retrocesso, essa busca por valores
cristãos perdidos é uma reação à modernidade capitalista. Uma era que se volta para a
mitologia greco-romana no Renascimento e que defende o culto à ciência como forma
de desenvolvimento, culminando no Iluminismo do século XVIII, acaba por afastar as
pessoas de Deus, ou da ideia de um ser divino que serviria como salvação. Herculano,
assim com Garrett e outros românticos cristãos, utiliza a religião como contraponto aos
valores capitalistas (LÖWY & SAYRE, 1993). A revalorização da religião e dos
ensinamentos do evangelho poderia, segundo esse pensamento, restaurar o que a
humanidade perdeu com o avanço do capitalismo, principalmente as relações pessoais
baseadas no sentimento e não no valor de troca.
A perversão moral, a perda de valores humanos e a valorização do luxo e da
riqueza, tal como acontece no capitalismo, e que Herculano vê no liberalismo, seriam as
causas dos problemas político-sociais que levaram o império visigodo à ruína. O que
havia de mais democrático no reino godo, que eram os concílios do clero, apresentado
no romance como o mais iluminado da Europa na época, funcionavam como uma
espécie de parlamento, que agia contra a perversão moral e a ruína do reino. É a defesa
do liberalismo frente ao perigo de retorno ao Antigo Regime.
Se o cristianismo é a luz que deve iluminar a sociedade, como para os godos
primitivos “o Evangelho assemelhava-se ao sol que rompe de além das serras e que
ilumina, aquece e alegra” (HERCULANO, Eurico, p. 32). Por outro lado, Abdulaziz
dizia ao xeque Abdala que “o amor da embriaguez nunca os [cristãos] deixará ver a luz
que mana das páginas divinas do Alcorão” (HERCULANO, Eurico, p. 181). Mesmo
assim, nem o evangelho nem o alcorão impediram que atrocidades fossem cometidas e
que os dois povos se entregassem à barbárie da guerra. Não basta ser cristão, é preciso
sê-lo sem a mácula da perversão reificante do Capitalismo. Quando a vontade de
acumulação de poder e dinheiro sobrepõem-se à fé, “o sol passa envolto na sua glória,
indiferente às angústias daqueles que, em seu ridículo orgulho, se chamavam monarcas
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religião, sentimento e memória. É em seu presbitério em Carteia que Eurico vai compor
sua poesia mais religiosa, vai reavivar seu amor pela pátria, que acaba por reavivar seu
amor por Hermengarda, e é onde ele vai pesquisar e escrever sobre o passado dos godos
valorosos, além de pensar na nação e seu destino. Até mesmo suas vestes ficam mais
leves e mais puras, como se tivesse chegado realmente mais próximo do ideal. Ele anda
de branco sobre os abismos. É na luta contra os bárbaros que Eurico deixa de lado sua
brancura civilizacional para se tornar o mais bárbaro, o cavaleiro negro. Essa mudança
de cor reflete a mudança no espírito do jovem presbítero e nas suas ações. O padre que
deveria orar pela salvação das almas está em campo de batalha matando mais do que
qualquer outro cavaleiro.
Enquanto Eurico fica balançando entre a civilização e a barbárie, entre guerreiro
matador e presbítero poeta, Hermengarda não se deixa influenciar pelo mal da
sociedade. Ela é sempre apresentada como pura e angelical, como se não fosse desse
mundo, mas algo divino que está acima dos homens. A donzela de branco, para não ser
tratada como despojo de guerra pelos árabes e como objeto sexual num harém, aceita o
martírio pelo qual passam as freiras do Mosteiro da Virgem Dolorosa.
Eurico, vestido de negro, é quem salva a donzela de branco. Seu esforço, apesar
da impossibilidade da consumação de seu amor, é sua tentativa de buscar mais uma vez
o ideal do que deveria ser a civilização, prestes a cair no abismo para sempre, tal como
Hermengarda em Covadonga. A busca por recuperar Hermengarda assemelha-se assim
à busca pelos valores perdidos da civilização.
Se o evangelho prega a liberdade e a fraternidade, como diz Eurico, os
representantes da igreja deveriam agir de acordo com essas ideias. Contudo, o clero
português é predominantemente ultramontano, defendendo a manutenção do poder
absoluto, tanto dos reis quanto do papa. Para Herculano, o clero deveria ser também
liberal e não lutar por poder e riquezas. Os dois exemplos estão no romance. Eurico,
enquanto presbítero, não distingue senhor de servo, rico de pobre, tratando todos da
mesma forma. A madre superiora do Convento da Virgem Dolorosa dispõe-se a
entregar todas as riquezas do mosteiro aos árabes para salvar a vida dos godos
refugiados ali e mantê-los livres. Por outro lado, um dos principais traidores da pátria é
o bispo Opas, que se vende aos mouros em busca de mais ouro e poder, como o clero
ultramontano atacado por Herculano. O clero, para ele, deveria ser como o dos godos
primitivos, iluminado e liberal, reunindo-se em concílios que “eram verdadeiros
parlamentos” segundo o narrador.
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esmagado por pesados tributos, pelas lutas dos bandos civis, e com um governo que o
prostituía, após ter sofrido com lutas civis pelo controle do governo. Qualquer
semelhança com o Portugal daquela época não é mera coincidência. Aliás, a guerra civil
é retomada e comentada várias vezes, como algo que marcara a vida daquela nação. O
poder conquistado por golpes e com o uso do exército, em vez de aprovado no
parlamento, era o retrato tanto de Portugal na primeira metade do oitocentos quanto do
império da Espanha quando os mouros resolveram invadi-la. Eurico termina uma
meditação dizendo “hoje, a espada substituiu o conselho dos prelados, dos nobres e dos
homens livres: a coroa é uma conquista, a lei vontade do desonrado vencedor de pelejas
domésticas, liberdade palavra mentida.” (HERCULANO, Eurico, p. 34). Essa é a
melhor definição para uma sociedade com instituições liberais, como constituição,
divisão de poderes e parlamento, mas que vive sob a tirania de um poder centralizador e
opressor, como Portugal durante o Cabralismo. Afinal, na obra de Herculano há várias
críticas diretas ou indiretas à ditadura de Costa Cabral como nas “Cartas sobre a
História de Portugal”, publicadas no mesmo período que Eurico.
Teriam os portugueses percebido suas críticas? Afinal, as referências a Portugal
não passam de analogias. Nada é explícito. Analisando os paratextos de sua ficção
histórica, nota-se que Herculano tenta evitar e até mesmo rebater a crítica a certos
anacronismos que os leitores viam em sua obra literária. Que anacronismos eram esses?
Justamente o que ligava o período do entrecho ao século XIX. Seria possível essa
percepção no Eurico, o Presbítero?
A primeira recepção desse romance aponta que sim. Contudo, teriam sido
percebidas todas as críticas de Herculano e seu projeto social? A maior crítica da época,
a de António Feliciano de Castilho, publicada na Revista Universal Lisbonense em 8 de
agosto de 1844, preocupa-se com a forma como Herculano trata a religião como
praticada em Portugal. Para Castilho, em Eurico, Herculano estaria criticando a forma
antiliberal do catolicismo português. Ora, e está mesmo! A diferença é que Castilho
imagina que o romance possa insuflar o povo a uma revolução religiosa, o que não é,
obviamente, o desejo de Herculano. Outros intelectuais da época, como Mendes Leal,
António Pedro Lopes de Mendonça e Carlos Bento da Silva, também viram na obra de
Herculano relações com as transformações sociais e políticas em Portugal e seu acordo
social. Acreditamos que reações mais explícitas a certos pontos não teriam sido
publicadas para não comprometer Herculano e os próprios críticos, uma vez que as
críticas analisadas são do mesmo período.
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REFERÊNCIA
DAVID, Sérgio Nazar. ““Ao Conservatório Real” e Frei Luís de Sousa no conjunto da
obra madura de Garrett (1843-1854)”. In: NEVES, Lúcia Maria; OLIVEIRA, Paulo
Motta; DAVID, Sérgio Nazar; FERREIRA, Tânia Maria (Orgs.) Literatura, história e
política em Portugal (1820-1856), Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007.
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_____. Lendas e Narrativas (2Vols). Edição revista por Vitorino Nemésio e anotada por
António C. Lucas. Amadora: Bertrand, 1970.
_____. “Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?”.
in: Opúsculos. Tomo IX – Literatura (Tomo I). Amadora: Bertrand, s.d.
LOWY, Michael & SAYRE, Robert. Romantismo e Política. Trad. Eloísa de Araújo
Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
MARTINS, Oliveira. Portugal Contemporâneo, vol. II. Porto: Lello & Irmão, 1981.
Revista Universal Lisbonense: jornal dos interesses physicos, moraes e litterarios por
uma sociedade estudiosa, Tomo 3º. Lisboa: Imprensa da Gazeta dos Tribunais, 1844;
Revista Universal Lisbonense: jornal dos interesses physicos, moraes e litterarios por
uma sociedade estudiosa, Tomo 4º. Lisboa: Imprensa da Gazeta dos Tribunais, 1845.
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1
Doutorando do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH (Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas) da USP, na área de Literatura Portuguesa;
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mundo globalizado sem abrir mão da tão cara e rica tradição cultural, mais
especificamente a literária (que nos interessa, neste congresso, mais de perto), que deu
ao mundo Camões, Vieira, Eça e Fernando Pessoa? Finalmente: pode Portugal, por
meio da navegação mais recente, a virtual, espalhar-se pelo globo e cometer, mais uma
vez, mas de outra forma, outros périplos além do africano?
Se investigarmos a obra de António Variações, perceberemos, primeiramente,
que era fundamental para Portugal, no final dos anos 70, após a Revolução dos Cravos,
receber influxos que lhe faltaram ao longo dos anos de Salazar. A valorização e a
propaganda do Portugal rural, humilde e religioso, além de implicarem, do ponto de
vista econômico e educacional, atraso acentuado, também fizeram, em alguma medida,
que a nação fosse adversa a mudanças comportamentais experimentadas por países
vizinhos. Enquanto, em certa medida, o mundo revia valores e comportamentos,
Portugal permanecia como que à margem, estático – os portugueses estavam
“orgulhosamente sós”, na expressão do próprio Salazar (Torgal, 2001, p.399) – corroído
por anos de propaganda, de censura, de perseguições políticas e de horrores das batalhas
da África.
“Toma o comprimido”, primeira canção de António Variações apresentada no
programa de TV Passeio dos Alegres, em 1981, pode ser entendida como tentativa
dessa oxigenação necessária da cultura portuguesa. Em primeiro lugar, pelo gênero:
trata-se, sem dúvida alguma, de uma canção de rock, iniciada por um solo de guitarra
bastante acelerado e marcante. Ficam de lado o ensimesmamento da nação, as imagens
do português das aldeias e as canções folclóricas das freguesias distantes; ganham
atenção a guitarra, o baixo e a bateria da banda, além dos versos e da performance, para
dizer o mínimo, espalhafatosa de António Variações, que pode ser encontrada em
vídeos disponíveis na internet.
“Hey, cara”: língua inglesa e gíria num só verso abrem a canção, em que os
males das grandes cidades do mundo moderno são cantados de forma irônica, quase à
moda de um jingle de propaganda, como sugere a forma verbal imperativa do título e do
refrão, “Toma o comprimido”. Nos primeiros versos, depois de constatar que um tu, a
quem se dirige, parece doente, o eu que canta sugere: “Faça cara de contente / Você vai
ficar igual / Toma já um melhoral / Porque é bom e não faz mal / Além disso é legal /
Toma já um melhoral / É o melhor e é legal”. De tão simples, os versos, sem a melodia,
só podem ser entendidos como irônicos; quando cantados e acompanhados pelo arranjo
musical acelerado, ganham, como já foi dito, a entoação de propaganda – e fica a
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suspeita de que haverá, no plano da letra, a crítica do sujeito que canta às panacéias da
indústria farmacêutica.
É, de fato, o que se pode constatar nos versos seguintes. Logo depois de sugerir
que o tu “tome o comprimido”, o eu afirma que sabe que fazê-lo é nocivo, mas sugere
que se esqueça “isso pelo bem que faça”.
O xeque-mate à onipotência dos medicamentos – que dadas as devidas
proporções e diferenças, lembra o Emplasto Brás Cubas de Machado de Assis – segue
com os remédios emagrecedores: “Você está muito pesada / Não diga que está inchada /
Não há roupa que lhe sirva / Não há cinta que lhe valha / Já perdeu de todo a linha / Está
a tempo de voltar à fina / É um milagre da medicina / Que é o avanço da aspirina”. Mais
uma vez, a mera leitura dos versos, sem acompanhamento da melodia e dos arranjos,
prejudica a compreensão: a entoação rumo ao agudo no verso “Já perdeu de todo a
linha” mimetiza na canção, de forma geral, a expectativa e a aflição dos que sofrem
devido à obesidade.
Faz-se necessária, neste momento, uma breve interrupção de ordem teórica.
Como os ouvintes já puderam perceber na breve análise anterior, a compreensão de
canções só será pertinente se ao menos dois elementos que a compõem forem
analisados: a letra e a melodia que, juntas, constituem o que se chama tradicionalmente
de canção. No Brasil, os estudos a respeito dos sentidos assumidos pelos percursos
melódicos em combinação com os versos da letra ganharam força, nos últimos anos,
especificamente com as contribuições do professor e compositor Luiz Tatit, do
Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, e um dos idealizadores das
experimentações cancionais do Grupo Rumo, da chamada Vanguarda Paulistana, na
década de 80. A partir dos estudos da semiótica discursiva e tensiva, na tradição de
Hjelmslev, Greimas e, mais recentemente, Claude Zilberberg, Tatit formulou o modelo
que servirá de referência, em nossa pesquisa futura, para a compreensão das canções de
António Variações.
Há, contudo, um desafio ainda maior a enfrentar, além da análise das próprias
canções: a percepção de que, nas diferentes culturas dos países de língua portuguesa,
desenvolvem-se dicções específicas dos intérpretes e que elas, por sua vez, acabam por
delinear a cultura cancional da nação – é o que se pode depreender da leitura das obras
O Cancionista – Composição de canções no Brasil (2002) e O Século da Canção
(2004), do mesmo Tatit. No primeiro desses dois textos fundamentais para todos que
pretendem analisar canções – e é esse o nosso caso –, Tatit investiga peças
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agudo e para a aflição, mais uma vez: “Mas a mistura da drogaria / E tens a cura para
mais um dia”. De certa forma, essa mesma disposição dialética de renovação do
passado sem sua aniquilação completa pode ser observada em canções concluídas pela
banda Humanos, como “Muda de Vida” – em que se ouve “Muda de vida se tu não
vives satisfeito / Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar / Muda de vida, não
deves viver contrafeito / Muda de vida se há vida em ti a latejar”.
Os versos de “Toma o comprimido” sintetizam o que poderíamos de chamar de
Poética de António Variações (na falta de um termo mais adequado, que aluda à
associação letra e melodia): a recuperação do passado e da tradição sem que eles sejam
vistos como traumas, e que sejam aceitos sem recusa. Em outras palavras, é preciso
observá-los não como grilhões, e é preciso reconstruí-los, se necessário, com os
remédios ou contribuições da atualidade, num processo dialético que guarda em si uma
proposta de renovação da canção e da cultura portuguesas.
O comprimido do refrão assume, assim, novo valor semântico: embora seja
disfórico na medida em que vicia e aliena, na medida em que é visto como solução para
tudo, é também eufórico porque serve de catalisador para a libertação do sujeito – e fica,
para um outro texto de maior fôlego, a investigação dos diferentes “comprimidos” que é
possível consumir. Não haverá no texto uma alusão implícita, mas quase direta, ao
consumo de drogas ilícitas, vistas como meio de expansão da consciência e de
reconhecimento da própria identidade? Se houver, certamente estamos diante de mais
um momento, para dizer o mínimo, curioso da cultura portuguesa recém saída do
período salazarista.
Mas insistamos nos diálogos de Variações com a tradição da cultura portuguesa.
A opção pelo gênero rock, a letra irônica e sugestiva, as entoações que asseveram esses
efeitos de sentido, porque transitam pelo jingle de propaganda, são apenas uma faceta
da obra do compositor, que declarou com clareza, a respeito do nome artístico:
“Variações é uma palavra que sugere elasticidade, liberdade. E é exactamente isso que
eu sou e que faço no campo da música. Aquilo que canto é heterogéneo. Não quero
enveredar por um estilo. Não sou limitado. Tenho a preocupação de fazer coisas de
vários estilos”. A oitiva de “Povo que lavas no rio” – gravada no primeiro single de
Variações, em 1982 –, fado imortalizado na interpretação de Amália Rodrigues, diz
muito a respeito da postura do compositor frente à tradição da canção portuguesa. Esse
fado ganhou dimensão política ao longo do regime salazarista depois de proibida a
radifusão de outra canção, o “Fado de Peniche”, considerado um hino aos presos
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REFERÊNCIAS
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FERREIRA, Jerusa Pires. Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas. 2a ed. São
Paulo: Hucitec, 1993.
PASTA JR, José Antônio. “Cordel, intelectuais e o Divino Espírito Santo”, in Cultura
brasileira: temas e situações. BOSI, Alfredo (org.). São Paulo: Ática, 1992.
TINHORÃO, José Ramos. Fado, dança do Brasil, cantar de Lisboa: o fim de um mito.
Lisboa: Caminho, 1994.
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INTRODUÇÃO
1
Acadêmica do Curso de Letras da UFMS, bolsista de Iniciação Científica CNPq – PIBIC 2008/09.
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O relato, dividido entre a mãe e os três filhos (Carlos, o mestiço; Rui, o epilético;
e Clarisse, a libertina), deixa clara a impossibilidade de felicidade e o sentimento de
“[...] uma solidão insuperável, como se a memória constituísse um peso terrível do qual
jamais se está livre”v, apesar da descolonização.
Lobo Antunes reencena os horrores da guerra, a fim de aproximar seu leitor à
sua essência, levando-o a refletir a respeito da morte, do medo e de sua própria natureza,
proprícia a se comprazer diante da violência e da dor alheia, uma vez que o "[...] 'amor à
maldade', o amor à crueldade, é tão natural aos seres humanos como a solidariedade"vi:
1. A COMUNICAÇÃO INTERROMPIDA
Como representar a catástrofe? “A arte não consegue sair de tal impasse com
facilidade. Talvez não seja mesmo possível sair”ix. A representação para Bernardo
Carvalho, em A Comunicação interrompida: Estão Apenas Ensaiando, quanto mais
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ostensiva e direta menos dá conta do horror que pretende representar. Segundo ele, há
uma impossibilidade de se traduzir o horror, a agonia, a dor e o medo de um trauma
coletivo (ou individual) e, por isso, a tentativa desse tipo de representação pode levar à
banalização:
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percurso a dor, a solidão, o medo e a culpa, e seus filhos não o sabem, bem como não
sabem que a mãe, durante quinze anos enviou cartas a eles, escondidas por Carlos, o
irmão mais velho:
Os envelopes que guardava numa gaveta sem os mostrar a ninguém, sem os
abrir, os ler, dúzias e dúzias de envelopes sujos, cobertos de carimbos e selos,
falando-me do que não queria ouvir, a fazenda, Angola, a vida dela, o
empregado dos Correios entregava-mos no patamar e uma extensão de
girassóis murmurava campos foraxii.
[...] o meu próprio filho de que continuo a ter medo mesmo longe daqui, em
Lisboa, não responde às cartas, não pergunta por mim, sozinha na fazenda,
sem dinheiro, com dez ou quinze patetas meio mortos, eu que apesar de ser
nova, ter forças
(estas rugas são do ácido que corrói o estanho não são minhas que ainda
agora há minutos tinha o cabelo preto e regressei a casa do jantar dos belgas)
preciso de uma palavra de amizade, de consolo, que me faça imaginar que
colhem o algodão, o vendem, o dinheiro cresce no banco, amanhã ao
levantar-me em lugar das lavras desertas encontro os tratores a trabalharem e
duas centenas de contratados no campo, tudo o que peço, e Deus sabe que
não peço muito, é uma palavra de esperança de tempos a tempos num pedaço
de papel mesmo que ambos tenhamos a certeza que a esperança acabou tão
depressa como o dinheiro e o crédito, que a próxima vez que descer à senzala
nem uma só alma mesmo inválida encontro, apenas eu, a Maria da Boa Morte
e a chuva nos quartos, eu a fingir que mando e ela que obedece, há alturas em
que me sento ao pé do telefone na certeza que vão ligar da Ajuda, que irei
ouvi-los, conversar com eles, mentir-lhes, dizer que os americanos ou os
franceses me compraram as colheitas inteiras, mudo de roupa, perfumo-me,
ponho os brincos de pérola para conversar com eles, seguro o auscultador e
nada, nem
- Mãe
nem
- Olá mãe
nem
- Lembramo-nos da senhora como tem passado mãe?
no aparelho, um silêncio tão grande como o silêncio da terra, o silêncio dos
girassóis no cacimbo [...]xiii.
Carlos, Rui e Clarisse não se encontram num estado muito diferente da mãe.
Mesmo em Lisboa, longe dos desastres da guerra, as personagens também vivem
separadas umas das outras e sem comunicação entre si, num ambiente de pobreza, dor e
solidão. Leiamos um trecho do romance em que Carlos está à espera de seus irmãos
(que não irão chegar e não o avisaram sobre isso) em seu apartamento, para
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[...] a Lena que salvei da miséria da Cuca a ver em mim um centenário que os
bicos-de-papagaio saca-rolham
- Adormeceste Carlos?
como se alguma vez pudesse adormecer com os meus irmãos a chegarem de
táxi a todo o momento, os faróis acesos nos caixilhos, as portas a estalarem,
os três toques rápidos da Clarisse, lembro-me sempre dos três toques, o
reboliço no vestíbulo, eu carregando no botão do comando que tira o som do
televisor e a saltar na poltrona [...]xiv.
Hoje não saio de casa. Trago a cadeira do Rui para diante da televisão e fico
o tempo inteiro a comer pipocas, a beber Coca-Cola e a mudar de canal,
esporte, desenhos animados, um ventríloquo a conversar com um pato,
noticiários italianos holandeses belgas espanhóis marroquinos, as luzes do
Estoril desfocadas pela chuva, os barcos a escorrerem das vidraças, o
cochicho apressado do Luís Felipe ao telefone a tapar a boca com os
dedinhos por causa da mulher, dos filhos, dos netos
- Tenho de desligar querida recebeste meu presente não recebeste bom Natal
bom Natal
[...]
fico o tempo todo a mudar de canal até o comprimido de dormir fazer efeito,
nunca faz efeito na cabeça primeiro [...]xv.
[...] o voo dos pássaros, asas de feltro, gritos, o mar lá embaixo, o Mussulo,
os coqueiros, descíamos à praia, os meus pais e eu, o meu pai de terno creme
e panamá, a minha mãe de sombrinha aberta cor-de-rosa, eu com um chapéu
de palha que se atava sob o queixo, trazíamos o almoço num cesto tapado por
um guardanapo que se estendia na areia com as marmitas em cima, uma
garrafa de suco para a minha mãe e para mim, uma garrafa de vinho para o
meu pai, a minha mãe nunca tirava as luvas nem se descalçava, sentada num
banquinho a soprar com o e que os calores que o meu pai soprava com o
jornal, os pássaros sobre nós eram os pássaros das fossas da Corimba, de asas
poeirentas de sarja, mas não tinha medo por ser dia, os tropas, mesmo o dos
botins de verniz, não iam fazer-me mal, não havia um só quarto às escuras na
casa de Malanje, erguiam as metralhadoras, fixavam-me com a mira,
desapareciam atrás das armas, o modo como as bocas se cerrara, e eu a trotar
na areia na direção dos meus pais, de chapéu de palha a escorregar para a
nuca, feliz, sem precisar de perguntar-lhes se gostavam de mimxvi.
2
A impossibilidade do Natal, bem como a impossibilidade da comunicação com Isilda, explicita uma
impossibilidade das relações familiares, fragmentadas como a linguagem do romance.
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[...] faça o que fizer, em matéria de literatura, nada se compara aos caminhos
tortuosos e sinistros da realidade, quando se trata, por exemplo, do que houve
em Auchwitz, [e, por isso], [...] a retratação do horror, para respnder ao
horror, fracassa assim, pela base, já que sua intenção é representar em
qualidade e extensão o que se passa na realidadexviii.
2. O ESPAÇO E O TEMPO
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Numa leitura comparativa, podemos observar que Lobo Antunes trata do trauma
nas mentes caóticas daqueles que sentiram e viveram o horror não só em O Esplendor
de Portugal, mas também em outras narrativas, como em A Ordem Natural das Coisas:
[...] as vozes que me perseguiam por todo lado como os olhos dos retratos e
os gritos da minha irmã no sótão,
Que mal fiz eu a Deus para ter um neto tão estúpido, senhores?,
A minha própria voz, sufocada de espuma, durante a barba da manha,
Que mal fiz eu a Deus para ser tão estúpido, senhores?,
Sem contar a voz efeminada, cheia de pálpebras, dos pastorinhos de
porcelana, no mármore de lareira, a voz de aparelho de radio desligado, os
milhões de vozes que se sobrepunham, combatiam, cruzavam, e dilaceravam
o telefone, a voz da cozinheira, a voz de primas idosas amortalhadas nas
caixas de bolacha Maria da infância, era domingo as cegonhas tombavam
sobre a mata, e tornei a lembrar-me dos brometos enquanto o dono da
garagem resmungava Topa as pernas daquela, topa as pernas daquela,
lembrei-me do civil da pistola e dos brometos quando os candeeiros da rua se
iluminaram contra o perfil das casas, e dali a nada, acompanhado pelo
empregado da capelista que garantia tratar pelo primeiro nome os patrões de
todos os estabelecimentos da Baixa, tomava o elétrico dos Restauradores à
procura de uma farmácia de serviçoxxvi.
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pelo menos cinco ou dez ou doze dias ainda, nesta cadeira de doente por
medo de me deitar porque na cama se acaba o que na cama se começou e eu
não posso, eu não desejo, eu não suporto acabar, e se pedia Não quero mais
cobalto deixem-me morrer em paz não era de morrer que vos falava era de
agosto contigo e os meus netos no Algarve, longas tardes, um livro no
terraço, o teu sorriso, era possuir de novo os dentes que me faltam, e não me
parecer com as tias do meu pai [...]xxvii
A experiência traumática é, para Freud aquela que não pode ser totalmente
assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas
e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos,
mas da resistência da compreensão dos mesmos. A linguagem tenta cercar e
dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua recepção.
Daí Freud destacar a repetição constante, alucinatória, por parte do
“traumatizado”, da cena violenta: a história do trauma é a historia de um
trauma violento, mas também de um desencontro com o real. (Em grego, vale
lembrar, “trauma” significa ferida.) A incapacidade de simbolizar o choque –
o acasi que surge com a face da morte e do inimaginável - determina a
repetição e a constante “posterioridade”, ou seja, a volta après-coup da
cenaxxix.
Não, não proteste, não me censure, palavra de honra que faço os possíveis e
contudo, é assim mesmo, a memória tem o seu mecanismo próprio, o seu
ritmo, as suas leis, os seus caprichos havemos de dar com o sujeito, quando
menos se espere, num sítio qualquer do passado, talvez no posto da Pide em
que me colocaram a procurar comunistas nas monções, mas aí só havia o
inspetor e meia dúzia de mulatos que o temporal resolvera não levar, talvez
na Póvoa de Varzim onde passei a agente de segunda classe a carimbar
relatórios e a ouvir a chuva e todavia não consta, nunca lá esbarrei com
ninguém com essa cara, nem no cinema, nem no Casino em que as roletas
giravam refletidas nas estalactites dos lustres, como não o vejo no hotelzinho
da Ericeira para onde me mandara, com um par de colegas, a fim de vigiar à
socapa, mascarado de caixeiro viajante, um mecânico albino que participara
na greve da marinha Grande, um infeliz refugiado atrás de latas de óleo e de
cones de pneus para se proteger do sol, um hotelzinho vazio, senhor,
encarrapitado nas fragas, habitado porduas velhotas, um miúdo e um corvo
com vaidades de marujo a arrastar o peito no soalho e a grasnar desde manha
Ó Almerinda, minha puta, vira essa merda a estibordo, numa zanga de dor de
dentes sem cura. Quando foi isso, pergunta-me você? Ora deve ter sucedido,
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não, sei perfeitamente, espere, por volta de mil novecentos e quarenta e nove,
mil novecentos e cinqüenta, se não estou em erro, mil novecentos e cinqüenta
sim, tinha eu acabado de passar por uma dificuldadezinha [...]xxx.
[...] Não é verdade, não pode ser verdade que isto esteja a acontecer: continuo
na casa da fazenda com o meu marido e os meus filhos, os bailundos pregam
espantalhos para afastar os pássaros do arroz, a minha mãe no quarto do
primeiro andar chama a Josélia aos gritos, não trago um pano do Congo
amarrado à cintura trago um vestido, nunca morei em palhota nenhuma
sobretudo na Chiquita, a aldeia onde passávamos de visita ao meu padrinho, o
comércio deserto, as colunas do chefe de posto reduzidas a vigas de metal,
duas ou três árvores, um círculo de cubatas que a poeira do jipe dissolvia no
susto das galinha, nunca andei descalça com bichos nos dedos, seja onde for
preciso do meu travesseiro para conseguir dormir e portanto não é verdade,
não pode ser verdade que isto esteja a acontecer, a Josélia que herdei da
minha mãe bebia às ocultas o álcool das feridas, mostrava-lhe o frasco vazio
[...]xxxii.
[...] eu a Josélia a Maria da Boa Morte a fugirmos das picadas, dos fios de
tropeçar, dos bandoleiros com catanas e pistolas e das minas dos trilhos, no
momento a seguir ao primeiro rio em que começamos a sentir-lhes o cheiro, a
respiração açodada, uma agitaçãozinha nos arbustos, a Josélia à procura de
um ramo tombado e a ameaçar as sombras com ele [...]xxxiii.
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humana, uma vez que estamos sempre inseridos no futuro ou voltados para o passado.
Nossa mente, conduzida pela memória, é fragmentada, desconexa e repleta de
irregularidades, silêncios e repetições alucinatórias dos fatos.
3. A COMICIDADE
O que foi que aconteceu aqui? No começo, nos rimos dos arenques,
dos lápis, dos meteoros; mas aos poucos, à medida que a atmosfera se
torna cada vez mais tensa, riso se converteu em sorriso angustiado e,
finalmente, desapareceu de todoxxxiv.
[...] a imitação de homens inferiores; não quanto a toda espécie de vícios, mas
só quanto aquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo
defeito, torpeza anódina e inocente, que bem o demonstra, por exemplo, a
máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dorxxxvi.
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[...] imagens do repugnante também podem seduzir. Todos sabem que não é a
mera curiosidade que faz o trâsito de uma estrada ficar mais lento na
passagem pelo local onde houve um acidente horrível. Para muitos, é também
o desejo de ver algo horripilante. Chamar tal desejo de "órbido" sugere uma
aberração rara, mas a atração por essas imagens não é rara e constitui uma
fonte permanente de tormento interiorxlii
Susan Sontag faz uma interessante observação em Diante da dor dos outros ao
expôr a ideia de que o gosto inerente ao ser humano pelo horror é algo pensado desde a
Grécia Antiga, por Platão, Sócrates e Aristóteles. Leiamos um trecho da Poética, de
Aristóteles, no qual podemos encontrar tal assertiva:
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Ao pintar Rui tal como o faz, Lobo Antunes vale-se de um "humor negro" para
nos propor uma reflexão a respeito de nossa própria natureza humana. Ao rirmos de sua
personagem caricaturada, reconhecemo-nos nela e rimos de nós mesmos, pois, bem
como Rui, comprazemo-nos diante da dor alheia, porque o “[...] ’amor à maldade’, o
amor à crueldade, é tão natural aos seres humanos como a solidariedade”xlv. E “[...] se
hoje temos a [falsa] impressão de sermos ‘civilizados’, talvez seja apenas porque o
cinema coloca à nossa disposição inúmeras cenas splater, que não perturbam a
consciência do espectador, pois lhe são apresentadas como fictícias”xlvi.
CONCLUSÕES
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Devia ter desconfiado que Angola acabou para mim quando mataram as
pessoas duas fazendas a norte da nossa, o homem de pescoço para baixo nos
degraus, isto é, pregado aos degraus por um varão de reposteiro que lhe
atravessava a barriga, a mulher nua de bruços na desordem da cozinha, muito
mais nua do que se estivesse viva, sem mãos, sem língua, sem peito, sem
cabelo, retalhada pela faca de trinchar com um gargalo de cerveja a espreitar-
lhe as pernas, a cabeça do filho mais velho fitando-nos de um ramo, o corpo
que a serra mecânica decepara em fatias espalmado no canteiro, o filho mais
novo nos fundos
(onde tomávamos chá à tarde com eles, a comermos bolinhos secos e a
refrescarmo-nos com leques de ráfia)
misturando as tripas com as tripas do cão, dedadas de sangue nas paredes, os
tarecos tombados, as molduras em pedaços, as cortinas das janelas abertas
varrendo o silencio e o cheiro das vísceras, uma grita de gansos por cima da
cantina, dos tratores e dos campos de girassol incendiados, em que os
capatazes enrolados no chão mastigavam os próprios narizes e as próprias
orelhas com cachos de besouros zunindo nas chagas [...]li.
Valendo-se dos vários elementos estéticos que compõem sua obra, como a
comicidade, a espacialização do tempo e a temporalização do espaço, Antunes procura
fazer surgir um efeito de horror sobre seu público, para que possa tratar de maneira
adequada da natureza ambígua humana, propícia tanto à solidariedade quanto à
maldade, à sordidez e à maldade. Trata-se de uma arte poética voltada para o grotesco,
num estilo de prosa pesada, que propõe-nos a reflexão sobre uma força que há no
homem que o impele à autodestruição,
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Cabe a nós aprendermos a ler esse teor testemunhal: assim como aprendemos
que os sobreviventes necessitam de um interlocutor para seus testemunhos. A
literatura de uma era de catástrofes desenvolveu também a nossa
sensibilidade para reler reescrever sua história, do ponto de vista do
testemunholii.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. A Ordem natural das Coisas. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
_______. O Esplendor de Portugal. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Trad.
Myriam Ávila, Eliana L. L. Reis, Gláucia R. Gonçalves. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária. Uma Introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São
Paulo:Beca, 1999.
ECO, Umberto. História da Feiúra. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GULLAR, Ferreira. A poesia surge do espanto. Revista Bravo!, São Paulo, Editora
Abril, n.139, p.56. Entrevista concedida a Amando Antenore.
LINS, Ronaldo lima. Violência e Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SARLO, Beatriz. Cultura da memória e Guinada Subjetiva. Trad. Rosa Freire d'Aguiar.
São Paulo: Companhia das Letras, Belo Horizonte: UFMG, 2007.
1453
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SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. 2 ed. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
NOTAS
i
CHABRUN, 1974, p.1975.
ii
ANTUNES, 1998, p.200-201.
iii
ANTUNES, 1998, pp. 25-26.
iv
ANTUNES, 1998, p. 262.
v
CYTRYNOWICZ, 1999, p. 53
vi
SONTAG, 2005, p.82
vii
ANTUNES, 1996, p. 145-146
viii
LINS, 1990, p.34
ix
LINS, 1990, p.34
x
CARVALHO, 2000, p.238
xi
LINS, 1990, p.36
xii
ANTUNES, 1998, pp. 9-10
xiii
ANTUNES, 1998, pp.58-59
xiv
ANTUNES, 1998, p.70
xv
ANTUNES, 1998, p.304
xvi
ANTUNES, 1998, p.381
xvii
CARVALHO, 2000, p.241
xviii
LINS, 1990, p. 33
xix
NASSAR, 1989, p. 71
xx
WEINHART, 2004, p.24
xxi
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 95
xxii
BERGMANN apud SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 69
xxiii
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 71
xxiv
ANTUNES, 1998, pp. 65-66
xxv
ANTUNES, 1998, p. 48
xxvi
ANTUNES, 1996, p. 135
xxvii
ANTUNES, 1996, p.255
xxviii
FINLEYapud WEINHART, 2004, p.30
xxix
SELIGMANN-SILVA, 1999, p.43
xxx
ANTUNES, 1996, p.27
xxxi
BHABHA, 2005
xxxii
ANTUNES, 1998, p.169
xxxiii
ANTUNES, 1998, p. 226
xxxiv
KAYSER, 1986, p. 13
xxxv
ECO, 2007, p.152
xxxvi
ARISTÓTELES, 1966, p.73
xxxvii
ECO, 2007, p. 135
xxxviii
ECO, 2007, p.132
1454
Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP ISBN: 978-85-60667-69-7
xxxix
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 65
xl
KAYSER, 1986, p.31
xli
ANTUNES, 1998, pp. 162-163
xlii
SONTAG, 2005, p.80
xliii
CONRAD, 2001, p.104
xliv
ARISTÓTELES, 1966, p. 71
xlv
SONTAG, 2005, p.82
xlvi
ECO, 2005, p. 220
xlvii
GULLAR, 2009, p.139
xlviii
ANTUNES, 1998, p.325
xlix
CULLER, 1999, p.33
l
ANTUNES, 1998, p.43
li
ANTUNES, 1998, p.193
lii
SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 77
1455
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1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará e bolsista
CAPES-Reuni.
2
Figueiredo apud Oliveira Filho, 2009, p.174
3
Feldman, 2007, p. 7
4
Oliveira Filho, 2009, p. 186
1456
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5
Pontes apud Moreira, 2006
6
Pontes apud Moreira, 2006.
7
Pontes, apud Moreira, 2006
8
Williams, 1979, p.125
9
Pontes apud Moreira, 2006
1457
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Expressão usada para explicar que as culturas não andam cada qual por um
caminho, sem contato com as outras. Ou seja, não percorrem veredas que vão
numa única direção. São rumos convergentes, São caminhos que se
encontram, se fecundam, se multiplicam, proliferam. A hibridação cultural
se nutre do conceito de hibridismo comum à mitologia. Que é um ser
híbrido? É aquele composto de materiais de natureza diversa.12
10
Le Goff, 1983, p.71
11
Pontes apud Moreira, 2006.
12
Pontes apud Moreira, 2006.
13
Ferreira, 1995, p. 31
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Quando o Diabo se torna uma personagem cômica, os atos maldosos podem ser
transformados em vantagens para a felicidade dos humanos. Exemplos do que
afirmamos são encontrados nos carnavais de Bakhtin (1993) e nos contos do tipo
“demônio logrado”, herdados pela cultura popular brasileira e reunidos por Câmara
Cascudo (2000) em seu livro Contos tradicionais do Brasil, cujas raízes se encontram
na cultura popular portuguesa. Tal temática ainda hoje é encontrada em inúmeros
folhetos de cordel nordestinos, como: O velho que enganou o Diabo, de Zé Catele, João
Soldado: o valente praça que botou o Diabo num saco, de Antônio Teodoro dos Santos,
Peleja de Manoel Riachão com o Diabo, de Leandro Gomes de Barros, A mulher que
botou o Diabo na garrafa, de J. Borges, A chegada de Lampião no inferno, de José
Pacheco etc. Desta forma, percebemos que Antonio José da Silva (2006) utilizou as
fontes consideradas eruditas e, principalmente, as populares na composição dessa
“novela diabólica”14.
A concepção do riso como gesto próprio do Demônio é oriunda do
medievo e tem seu apogeu na Alta Idade Média. Esse é o período de referência para
estabelecer a relação entre a mentalidade medieval e a encontrada nas Obras do
Diabinho da mão furada, por ser verificada nessa novela uma literatura de traços
fortemente medievais. Podemos dizer que a era medieval foi o período áureo vivido pela
Igreja Católica, pois nele exercia um grande poder político, econômico e social, e regia
os preceitos que deviam ser seguidos pelos cristãos, além de manter severa vigilância
sobre o comportamento social, apoiada na força da Inquisição.
Segundo Minois (2003), “o riso não é natural do cristianismo, religião séria por
excelência. Suas origens, seus dogmas, sua história o provam”15. De fato, não se
encontra nenhum registro, na Bíblia Sagrada, de que Jesus tenha rido alguma vez. O
riso se tornou questão teológica e sobre ela se interessaram os mestres da Igreja e seus
seguidores, como exemplifica Le Goff:
Vê-se, portanto, que em torno do riso travou-se um grande debate, que vai
longe, porque, se Jesus não riu uma única vez em sua vida humana, ele que é
o grande modelo humano, [...] o riso torna-se estranho ao homem, ou pelo
menos ao homem cristão. Inversamente, se é dito que o riso é o próprio do
homem, é certo que, ao rir, o homem estará exprimindo melhor sua
natureza.16
14
Oliveira Filho, 2009, p. 171
15
Minois, 2003, p.111
16
Le Goff apud Alberti, 1999, p. 69
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Se Jesus é o filho de Deus e nunca riu, o riso é um ato demoníaco, pois afasta o
homem da imagem e semelhança divina, aproximando-o do anjo decaído, representante
do Mal. De acordo com Le Goff (2008), “Se o riso é próprio do homem, é próprio do
homem decaído e pecador: o próprio riso é um pecado”17. A mentalidade dominante no
período medieval é de que “o riso pode nos fazer esquecer o medo constante que
devemos ter do inferno”18.
Na Idade Média, “o medo, o riso, o sagrado e o profano estão intimamente
mesclados”19. Sendo assim, a temática popular do demônio logrado, assim classificada
por Câmara Cascudo (2003), é remanescente do período medieval, e nos foi legada
pelos colonizadores lusitanos, que trouxeram o imaginário cristão do medievo, em sua
bagagem cultural, para o Brasil do século XVI.
No que diz respeito às Obras do Diabinho da mão furada, Satanás se apresenta
como um personagem ambíguo, ou seja, ele não é totalmente mau. No seu primeiro
encontro com o soldado André Peralta, o Diabinho, a priori, mostra-se um personagem
mau e perverso, negando abrigo ao soldado, destelhando todo o casebre, restando para
Peralta o canto da chaminé, até que este o convence a deixá-lo ficar por uma noite,
conforme o trecho destacado:
O soldado, vendo-se naquele aperto, não teve outro remédio mais que meter-
se no canto da chaminé; e tornando-se às boas com o dono da casa, que até o
Diabo se obriga de lisonjas, pelo que tem de enganador lhe disse:
- Senhor Barrabás, Astarat, Belial, Asmodeu, Leviatã ou Berzebu, ou
qualquer príncipe infernal que Vossa Diabrura seja, não é política de grandes
sujeitos usarem rigores com os humildes. [...] Sirva-se Vossa Diabrura de
tornar a telhar a casa, por que me repare a chuva; que em rompendo a luz do
dia, a despejarei logo20.
17
Le Goff, 2008, p. 287
18
Minois, 2003, p. 126
19
Minois, 2003, p. 140
20
Silva, 2006, p. 55-56
21
Münster apud Delumeau, 2009, p. 375
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confessa: “- Não sei que secreta causa me obriga a respeitar-te e fazer-te bem; assim não
hei de largar até te pôr em porto seguro”22. E para firmar o pacto, Peralta faz uma
imposição: “- Pois já que assim é [...] e te resolves a acompanhar-me, há de ser com
condição que me não hás de impedir as boas obras que fizer”23, o que o Diabinho
concorda sem hesitar. Segundo Robert Muchembled (2001), referindo-se à literatura que
atravessa toda a Idade Média:
22
Silva, 2006, p. 68
23
Silva, 2006, p. 68
24
Muchembled, 2001, p. 25
25
Cascudo, 1983, p. 324-325
26
Cascudo, 1983, p. 118
27
Pereira, 2006, p 35
1461
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28
Silva, 2006, p. 96
29
Muchembled, 2001, p. 30
30
Pereira, 2006, p. 45
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REFERÊNCIAS
CHACON, Valmireh. A Grande Ibéria. São Paulo: Editora UNESP; Brasília: Paralelo
15, 2005.
DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LE GOFF, Jacques. Uma longa Idade Média. RJ: Civilização Brasileira, 2008.
31
Segundo Chacon (2005), uma herança transmitida da Antiga Ibéria (Portugal, Espanha de diversos
reinos e etnias) à Nova Ibéria (a de Portugal, a do Brasil e a de Espanha, os demais países da América
Latina, de Língua Hispânica).
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MACEDO, José Rivair. Riso ritual, cultos pagãos e moral cristã na alta Idade Média.
Boletim do Centro do Pensamento Antigo. Campinas-SP, v.2, n.4,p 87- 110, 1997.
OLIVEIRA FILHO, Odil. Uma novela diabólica: as obras do Diabinho da mão furada,
de Antônio José da Silva. SIMÕES JR., Álvaro S. MARTINS, Gilberto F. (org.).
Literatura imprensa e sociedade. 1. ed. São Paulo: Poïesis editora, 2009. v.1. p. 171-
186.
SILVA, Antônio José da. Obras do Diabinho da mão furada. São Paulo: Oficina do
livro Rubens Borba de Moraes, 2006.
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INTRODUÇÃO
O retorno de Camões da Índia, sem nada nas mãos além de seu poema maior, Os
Lusíadas, e a esgotante luta por sua publicação é o enredo escolhido por José Saramago
(1922) para a elaboração da peça Que Farei com Este Livro?, publicada em 1980. Uma
percepção inicial do título da peça já insinua as indagações que podem perpassar a
trama: o que se faz com a arte na sociedade ou o que o sujeito individual faz com a obra
que produz. Neste sentido, Saramago se propõe a lançar perguntas sobre a recepção da
literatura na sociedade na época de Camões, com o claro objetivo de trazê-las à tona
também na atualidade. Questiona-se também, qual a relação das instâncias
legitimadoras com o poder, ou seja, de que forma atuam condicionando a trajetória e
determinando a fortuna crítica da obra literária.
As questões lançadas pela presente peça são questões bastante recorrentes no
período em que se convencionalizou chamar de pós-modernismo, marcado pelo desejo
de obscurecer quaisquer noções totalizantes e negar a existência de uma Verdade,
optando por reconhecer a existência de “verdades”. Nessa perspectiva, quando Foucault
pede para que se olhe as coisas de maneira diferente, entrando no nível do discurso,
percebemos como as duas visões estão interligadas. Ao admitir que o discurso histórico
é um construto humano, inevitavelmente o aproximamos do discurso ficcional, tornando
bastante fluidas as fronteiras entre ambos. Além disso, “a metaficção historiográfica
também tem a necessidade foucaultiana de desmascarar as continuidades que são
admitidas como pressupostos na tradição narrativa ocidental, e o faz usando e depois
abusando dessas mesmas continuidades”.i
Linda Hutcheon, em sua Poética do pós-modernismo (1991), denominou
metaficção historiográfica as conseqüências deste desejo de enfrentar o “pesadelo da
história” na ficção. Segundo ela, nas metaficções historiográficas, a história é
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Outra questão a ser levantada diz respeito à leitura da obra literária. Todas as
dificuldades de publicação se dão porque todos sabem dos perigos da leitura. Não se
sabe seu alcance, quais os pontos que ela irá tocar. No caso de Os Lusíadas, conforme
percebemos, ela poderia ser usada por interesses bem opostos, e servir-lhe a todos
embora nunca tivesse sido sua intenção.
Também a recepção da arte, da obra literária é necessariamente condicionada
pelo momento histórico. Ela está inserida em uma sociedade, e esta organiza os
discursos, poe-lhes uma ordem da qual a literatura não emerge isenta, por ser também
discurso. Mas o que uma sociedade vilipendiada em seus valores pode fazer com a arte?
É essa a grande indagação da obra, expressa já em seu título. Se conseguir ser
publicada, a obra dirá apenas o que o autor quis dizer? Quais as implicações que a
própria condição da leitura traz quando a sociedade é inquisitorial e a censura
predomina? São questões que tentaremos pensar de acordo com o que é exposto na
peça de Saramago.
1. O DISCURSO E A ARTE
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Foucault; “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições
que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder”.viii
Nessa perspectiva, o desejo maior da corte portuguesa não é pela obra de Camões, por
sua excelência e qualidades literárias, o desejo maior é pelo discurso em si, ou seja, se a
balança pender para um lado, se alguma parte puder ser finalmente, vencedora, a obra
pode publicar-se como é, já que o discurso já foi ganho, já foi instaurado. A luta,
portanto, é para apoderar-se do discurso e manipulá-lo de acordo com certos interesses.
Camões só consegue fazer a sua obra chegar a corte através da interferência de
Francisca de Aragão, Diogo de Couto e Damião de Góis, que, por terem conhecidos na
corte, utilizaram tais amizades como influencias para que a obra fosse bem
recomendada perante a censura inquisitorial, pois, como se sabe, as obras nesse período
passavam por cuidadoso exame, tinham que ser aprovadas pelo Santo Ofício para que
não chegasse a público nenhum livro que fosse contra a “santa fé”. Nesse sentido, o
frade deixa claro a Camões que se a obra não viesse tão bem recomendada, ela
certamente não passaria com igual facilidade por sua revisão.
Depois do parecer positivo do Santo Ofício, não tem Camões a batalha ganha.
Ainda falta o dinheiro para imprimir a obra, dinheiro que ele não tem idéia de como
poderá obter. Segundo suas palavras: se eu fosse esmolar pelas ruas e praças, talvez me
dessem dinheiro para comer. Mas não mo daria se eu dissesse que o destinava a pagar
ao livreiro que me imprimisse o livro.”ix Essa fala demonstra, uma vez mais, a
indiferença que a arte sofria no período. Além disso, expõe-se na peça que publicar um
livro é um negócio como todos os outros, ainda que Camões questione-o, a resposta que
obtém é que imprimir o livro “é como ir comprar sardinhas à Ribeira. Dinheiro nesta
mão, pescado na outra”.x
Tem-se, portanto, relações bastante complexas entre a arte, no caso específico, a
literatura e a recepção dela em sociedade. Primeiro, ela é discurso e tem de ser posta em
ordem, em um período como o de Camões, onde existia inquisição e a censura era
declarada, e que todas as obras passavam por supervisão isso é bastante visível. O mais
difícil é enxergar essa ordem em contextos nos quais não se sabe exatamente quem dita
o poder, ou se sabe, mas não se pode admitir que a arte sucumba a eles.
Depois que Camões conseguiu o parecer do Santo ofício e a obra pode ser
publicada, ele ainda precisa de dinheiro para imprimi-la. A postura de Camões é
bastante clara, ele valoriza a arte e não a vê como um negócio, mas exatamente por
saber o seu valor, sabe que precisa ser recompensando pelo livro que escreveu, e além
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Além disso, o escritor afirma que as pessoas escrevem com a intenção de atingir
o público de sua época, o que nos confirma que Saramago não buscou simplesmente
reconstituir um período histórico, mas procurou buscar lá o que ainda hoje nos afeta.
Os efeitos de verossimilhança que cria são visíveis: uma linguagem arcaizante,
personagens que realmente foram contemporâneos de Camões, fatos que são realmente
aceitos pela história, mas, acima de tudo isso, sobrepõe-se a dimensão humana que dá a
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Camões para que este possa ser encarnado em um personagem teatral e possuir voz
perante a sociedade de hoje. Sabemos que não é decerto o mesmo Camões que viveu
naqueles tempos distantes, e que foi ignorado pelo seu tempo. Não é somente aquele
poeta maior de Portugal, que não tinha quase nem o que comer. Não, esse Camões é
outro, este representa aquele e todos os outros, (escritores ou não), que são limitados
pelo poder. Quando Saramago diz: “A mim o que me preocupa é a questão do poder,
não a relação que o escritor ou o intelectual ou o artista tenha ou o obriguem a ter com o
poder.” (REIS, 1998, P. 38), está declarando que sua crítica vai além de uma questão
que envolva a arte e o poder: o que o preocupa é o poder em todas as suas dimensões.
CONCLUSÃO
Encontramos na peça de Saramago Que farei com este livro? uma inquietação
do escritor com problemas de seu tempo. Retoma a história para denunciar que o que
está “errado” agora já estava “errado” antes e continuará assim caso não repensemos o
mundo. Nesse sentido, sua obra se envolve em um projeto literário, ou seja, cada livro
existe por algum motivo e faz parte de um projeto maior; para simplificar, diz-nos
Saramago:
Não creio que haja nem venha a haver nenhum livro meu (embora isso
também não fosse nenhuma vergonha, evidentemente) do qual as pessoas
digam: "Mas por que é que ele escreveu isto?" Não é que eu ache que os
livros que escrevi são livros que não existiam (todo o livro que se escreve é
porque não existia antes, já sabemos). Não: o que há ali são livros que eu,
como cidadão, como pessoa que sou, diante do tempo, diante da morte, diante
do amor, diante da ideia de um Deus existente ou não, diante de coisas que
são fundamentais (e que continuarão a ser fundamentais), procuro colocar ali
o conjunto de dúvidas, de inquietações, de interrogações que me
acompanham e que podem ser de carácter tão imediatamente político (é o
caso d' A Jangada de Pedra) como podem ser interrogações de outro tipo.xiv
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discursos passam por essa “organização” e são controlados pelo poder, nesse sentido,
Foucault expôs seus medos em relação aos poderes e perigos dos discursos:
Nesta perspectiva, a peça Que farei com este livro? não só discute todas essas
questões, como nos remete à reflexão das questões já apontadas nos dias atuais. Ao
longo deste trabalho, buscou-se demonstrar que não basta buscar-se respostas, pois nem
sempre elas são fáceis e simples , e pior ainda: respondê-las não muda muita coisa, é só
um primeiro passo em muitos que devem ser dados para que se tenha consciência de
que há poderes que condicionam não só a arte, mas a vida. Como neste trabalho não nos
cabe mais digressões, fiquemos com definitivamente com a literatura. Quando Camões
negocia com a medíocre corte de Lisboa e a implacável inquisição para tentar publicar a
obra maior em língua portuguesa, ele negocia com o poder, poder este que não é justo,
não é humano e não é totalmente racional (pois antes da racionalidade, é movido por
interesses como o lucro por exemplo), mas detém em suas mãos o controle de um país.
Depois de contornados os obstáculos eis a obra em mãos de Camões e de Portugal, para
ser lida pelo público. Mas aí se demonstra a circularidade de todo o jogo: ao ser lida e
reconstituída por cada leitor, a mensagem poética terá de atravessar todo o caminho
novamente, já que a maioria dos leitores pensa conforme a sua época lhes permitiu
pensar, ou conforme é conveniente pensar. Por isso Camões pergunta, “Que fareis com
este livro?”; No teatro de Saramago, os versos começam a ser recitados cada vez em
menor tom até que nada mais se escute. Se voltarmos a epígrafe da obra, leremos os
versos de Camões, lá colocados com toda a consciência de um escritor que sabe
exatamente onde quer chegar, eis-los: “Canção, neste desterro viverás, voz nua e
descoberta, até que o tempo em eco te converta”.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
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Este trabalho pretende demonstrar que Sem nome é um romance que trabalha a
(im) possibilidade da linguagem, e promove a construção do texto ficcional através de
um pacto de leitura que incita ao jogo, ao engano, às trapaças e artimanhas de um
narrador irônico, ácido e muitas vezes perverso. Percebemos nessa obra um texto que
perfaz ironias duras à sociedade de maneira geral, que trabalha fatos históricos e
narrativas ficcionais, mas sempre com a preocupação de deixar falar a linguagem, e de
deixar a seu leitor – atento, que lê nas entrelinhas, que desconfia – o benefício da
dúvida. E acreditamos que, por ser um trabalho feito através da consciência autoral e da
valorização de seu leitor, há nele a certeza da insuficiência da linguagem, permitindo
que a obra permaneça aberta, inacabada, por vir, como entendemos que sejam também
as leituras possíveis ou impossíveis para ela.
O narrador de Sem nome coloca a verdade em xeque desde o início do romance
quando fala da questão da verdade se adaptar à verossimilhança, ou quando fala sobre a
personagem José Viana, que era capaz de fazer “manobras fictícias com destinos reais.”
(MACEDO, 2006, p.16). E a todo o momento o narrador nos chama atenção para a
relativização da verdade, a apropriação que pode ser feita desta, ajustadas sua aparência
às intenções. Cada lado tem sua verdade e simulação, seu jogo e verossimilhança. A arte
a imitar a vida e a vida a ser recriada pela arte. Sem nome se mostra como um romance
de espelhos e de espectros, que reflete uma realidade através de simulações, utilizando-
se de um jogo de sombras, no qual certos fatos se mantêm sem explicação, desde o
simples fato de todos os documentos de Júlia terem a data alterada, até o paradeiro ou
mesmo a existência de Marta. A personagem José Viana está acostumada ao jogo das
aparências, e desde o início da obra, em que isso é evidenciado pelo narrador, ele
encontra-se diante do espelho. Mas mesmo diante do espelho, a verdade não aparece,
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Cláudia Patrícia de Oscar é Professora de Português Instrumental das Faculdades Kennedy, Mestre em
Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas.
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pois para ele “os espelhos é que padeciam de rugas e de cinzas, não era ele, essa é que
era a verdade” (MACEDO, 2006, p. 12). Pelo menos a verdade criada ou intencionada.
A personagem Júlia é a própria representação do jogo no texto, pois encena para
conseguir o que almeja. Portanto, a construção dessa personagem nos parece também
um forte elemento da ironia na obra, pois é caracterizado pela simulação da realidade.
Podemos imaginar que esse elemento está diretamente associado à questão da busca de
identidade, pois esta personagem, na ausência de si mesma, vive a preocupação de
simular que é alguém, não se satisfaz com o que realmente é e contenta-se em brincar de
ser Marta Bernardo. Como diz a Duarte: “Nunca me importei de não ser eu”
(MACEDO, 2006, p.161). Mas isso não seria mais um jogo do autor, para demonstrar
que para compor a narrativa é necessário despir-se de si próprio e tentar apropriar-se
(ainda que momentaneamente) de outras identidades? Deixar falar a linguagem e a
identidade de uma cultura? Acreditamos que a construção da personagem Júlia e seu
duplo (Marta) é uma comparação ao “ato de fingir” (ISER, 2002) com que se constroi a
literatura. Júlia, aquela que “era e não podia ser” como a ficção, que apresenta fatos
reais como um jogo de repetições, tendo como efeito o imaginário. Isso parece
demonstrar como é ilusória a questão da identidade, pois o que acreditamos ser a real
intenção do autor na criação dessa busca na personagem Júlia é demonstrar como é o
processo de criação de uma obra, em que o autor parece ter consciência de que a obra
não é sua, mas uma construção da própria linguagem e da cultura. Além de tudo, o
próprio autor/narrador de Sem nome, dando voz à personagem Carlos Ventura, ironiza o
uso do duplo no texto de Júlia e ao fazer isso, além de explicitar a intertextualidade
presente no livro, perfaz uma ironia sutil em relação à sua própria escrita, já que há no
livro o duplo Júlia/Marta.
E nesse jogo de mostrar e esconder articulado pelo narrador e compartilhado
com o leitor, outro artifício utilizado em Sem nome é o título dado aos capítulos do
livro. Títulos que sugerem, que ironizam, que negam e às vezes pedem para ser
negados, que geram e devem gerar desconfiança.
Um título sobre o qual é interessante refletir é o referente ao capítulo cinco,
“Capelas imperfeitas”. Esse título, além de referir-se a um monumento existente em
Portugal, “Capelas imperfeitas ou inacabadas”, do Mosteiro da Batalha, refere-se
também a um termo usado por Carlos Ventura ao se referir à produção textual,
comparando os textos às Capelas imperfeitas, ou inacabadas, que os leitores devem
completar. Nesse capítulo, através dos comentários sobre as crônicas de Carlos Ventura,
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o narrador de Sem nome perfaz duras críticas aos governantes, à sociedade em geral e
especificamente aos norte-americanos, denominando seu comportamento na luta contra
o terrorismo de “espírito de cruzada antiislâmica” (MACEDO, 2006, p.66). Não deixa
também de mostrar o lado obscuro das esquerdas ocidentais; fala ao mesmo tempo,
sobre as torturas no Iraque, aproveita para comparar às torturas sofridas pelos
portugueses ao jugo dos militares ao 25 de Abril; e ao comentar sobre os pedófilos da
Casa Pia, aproveita para questionar o decoro da justiça portuguesa. Dessa forma, o
narrador vai provocando reflexões em seu leitor, sem, no entanto, tomar partido direto
sobre os temas comentados. Podemos afirmar ainda que o narrador promove um
desnudamento da ficção ao explicitar as intenções de Carlos Ventura ao escrever suas
crônicas, como nos seguintes comentários: “Noutra crónica, fez a defesa irónica dos
pedófilos da Casa Pia (...)” (MACEDO, 2006, p.66); “(...) concluiu lastimando
ironicamente (...)” (MACEDO, 2006, p.67); “(...) concluiu sem ironia.” (MACEDO,
2006, p.67); além de mencionar assim, várias vezes, não por acaso, a palavra ironia,
como sugestão do seu trabalho irônico sob a máscara de um narrador trapaceiro. Até
esse ponto, podemos dizer que o capítulo acaba por negar seu título, já que além de
explicitar sua ficcionalidade, ainda esclarece todos os mal entendidos do episódio do
aeroporto, ao apresentar de forma explícita a personagem Júlia, com toda a sua história
passada e presente. Entretanto, nos é possível afirmar ainda que esse título e a referência
explícita a ele no texto, através da fala de Carlos Ventura, nos remetem para o próprio
inacabamento da obra, já que “inacabadas” é também um dos nomes atribuídos ao
monumento citado, e quando Carlos Ventura diz a Júlia que só deve construir capelas
imperfeitas, ele está falando exatamente sobre a questão do inacabado, ou seja, que o
escritor deve deixar seu texto aberto a outras (re) leituras.
No título do capítulo 10, “Factos e ficções”, além de usar conscientemente o
nome de dois elementos que compõem o texto ficcional, o autor também promove o
desnudamento de seu texto – o que, segundo Iser (2002) é o que faz a diferença entre o
texto literário e os demais – através das investidas de um narrador articuloso, que
denuncia as artimanhas das personagens da obra e que exibe ao leitor todo o trabalho de
construção da ficcionalidade na obra. Uma característica interessante desse capítulo é o
jogo paradoxal feito justamente com palavras que remetem a estratégias ficcionais:
credibilidade / ficção, veracidade / perspectivas, fatos / narrativas, implausibilidades /
plausibilidade, autor / personagem, sonhos / vida real, verdade / mentira, “ficções
verdadeiras e verdades fictícias” (MACEDO, 2006, p.164), além da citação de outras
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também relacionadas ao fazer literário e aos jogos de enganos propícios a este, como
jogos, faz-de-conta, imaginar, imaginado, espelho, ironia e inventar, entre outras. O
narrador começa por desvelar artimanhas da personagem Júlia: “’Nunca me importei de
não ser eu’, tinha dito ao Duarte. Mentira. Sempre se tinha importado. Daí os jogos de
faz-de-conta.” (MACEDO, 2006, p.161).
Esse jogo de faz-de-conta, esse fingir nas palavras e nas atitudes, esse mostrar-se
e esconder-se, faz parte do enredo narrativo, que se tece de ilusões e enganos, que
enreda seu leitor e o leva a perder-se em labirintos de palavras ou a cair em alçapões
dessa narrativa construída em abismo.
Também a personagem Júlia, por sua vez, fala sobre seu projeto de criação
literária, e em sua fala escancara-se a ficcionalidade da obra. Ela fala sobre as pesquisas,
as escolhas, as comprovações; a forma como uniu fatos possíveis e imaginação, dando
credibilidade a sua ficção “Na transformação de implausibilidades em narrativas
plausíveis.” (MACEDO, 2006, p.164). E realmente, ao criar um desfecho para a história
de Marta, Júlia busca tornar possível a sua ficção, mesmo sabendo não tratar-se da
verdade. Mas comprova, através da reação de José Viana, que tudo foi mais verdadeiro
através de sua criação do que talvez se a verdadeira história viesse à tona.
Por isso podemos afirmar que Sem nome é uma trama que se tece de enganos.
Afinal, é através dos enganos sofridos por Júlia no aeroporto que tem início a ação na
história. É uma narrativa em que todos enganam: autor, narrador e personagens; em que
as máscaras se desdobram e se multiplicam, podendo haver sempre outra brincadeira,
uma ironia e uma crítica bem elaborada por detrás da máscara ou da falta de
verossimilhança.
Mas acreditamos que a ironia que prevalece em Sem nome é aquela que deixa
algo por dizer, que se cala para incitar em seu leitor o desvelamento dos enigmas; é
aquela que mantém a ambiguidade, as múltiplas (im) possibilidades de atualização por
parte do leitor; aquela através da qual o autor se mostra, escondendo-se, e fala através
de pequenos murmúrios que sugerem sem dizer; é aquela que se manifesta no agir das
personagens e que oculta um narrador irônico, mascarado para se rir melhor de um
leitor ingênuo. A ironia pode se mostrar às vezes contundente, às vezes satírica, às vezes
sutil – e quanto mais sutil, mais cruel – tudo são apenas formas de trabalhar esse jogo de
um autor que ao escrever se analisa e se critica, chamando o leitor para um pacto de
leitura em que ambos rirão juntos, pois através de um narrador trapaceiro, deixa clara a
consciência da representação, “(...) o fingir que se dá a conhecer pelo desnudamento.”
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(ISER, 2002, p.971). No entanto, como tudo é jogo, nem sempre a intenção é revelar-se,
pois há coisas que necessitam permanecer veladas. Através das artimanhas de um
narrador encoberto, o texto vai se tecendo também de enigmas e mistérios, de
prenúncios e véus, de narrativas que se encaixam e se refletem, em uma tessitura
abismal, que reflete a (im)possibilidade da linguagem, o vazio, o indizível, aquilo que
só se realiza no inacabado.
REFERÊNCIAS
CERDEIRA, Teresa Cristina. O preço da eternidade. In: Carlos Reis. (Org.). Figuras da
ficção. 1 ed. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2006, v. 1, p. 115-128.
SANTOS, Luis Alberto; OLIVEIRA, Silvana Pessôa de. Sujeito, tempo e espaço
ficcionais: Introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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INTRODUÇÃO
Em uma das acepções denotativa da palavra virgem temos esta como Donzela,
mulher que não teve relação sexual. Foram esses aspectos que aplicados a Maria
passaram a personalizá-la, sendo a palavra usada em maiúscula. É inerente à Igreja
Católica o cultivo ao ideal da virgem cristã ou consagrada.
A Virgem Maria recebeu na anunciação do Anjo Gabriel o verbo de Deus no
coração e no corpo. Ela trouxe ao mundo a Vida, é conhecida e honrada como a
verdadeira mãe de Deus e do Redentor. Enriquecida com o privilégio da Imaculada
Conceição, foi repleta de graça divina durante toda a sua vida, sendo por fim elevada de
corpo e alma à gloria do céu. A seu respeito, encontramos referências nos evangelhos
de Mateus e Lucas.
Alguns dados da história da Igreja Católica foram importantes para a instauração
e manutenção do culto a Maria: o culto começou a se difundir no século IV; o Concílio
de Éfeso em 431 declarou a maternidade divina de Maria; sob o pontificado de Pio IX
foi declarado o dogma da Imaculada Conceição em 1854; ao Ano Santo de 1950 o Papa
Pio XII declarou a verdade dogmática da assunção da Virgem Maria ao céui.
Por todo esse caráter dogmático que envolve sua imagem, Maria é saudada
também como membro eminente e de todo singular da Igreja, como seu tipo e modelo
excelente na fé e caridade. A Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, honra-a com
afeto de piedade filial como mãe amantíssima.
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Aluna da Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual de Feira de Santana.
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1.
Quando o assunto é a biografia dos autores da poesia lírica galego-portuguesa, é
quase uma regra a ausência de informações. Uma das exceções é, sem dúvida, D.
Afonso X, o sábio. Não nos falta dados acerca da vida do rei de Leão e Castela. Nascido
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Dom Afonso foi esse “mestre de obras” no seu campo, além de autor de
numerosas peças literárias e musicais, marcadas pelo selo de sua cultura e
personalidade, no que diz respeito à realização plena das Cantigas de Santa
Maria, Dom Afonso X é, pois, o seu autor incontestável, de pleno direito
(2007, p. 20).
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2.
A representação da mulher no imaginário cristão tem suas bases fincadas no
Gênesis. No capítulo três deste livro bíblico, o destino de todas as mulheres é traçado e,
por conseguinte, de toda a humanidade. Ao ser tentada pela serpente, a mulher
desobedece às ordens de Javé Deus comendo o fruto proibido e oferecendo-o ao marido
que faz o mesmo.
Assim é legado à humanidade o pecado original. Aos responsáveis pela Queda,
resta o castigo de Javé. Para a mulher, cito o versículo 16, cap. 3,: “Vou fazê-la sofrer
muito em sua gravidez: entre dores você dará a luz aos seus filhos; a paixão vai arrastar
você para o marido, e ele a dominará (Gn, 3:16). Ao homem coube a tarefa de
alimentar-se com o suor do próprio rosto.
É perceptível no versículo acima transcrito que Javé foi especialmente severo
com a mulher. Conforme Chiara Frugoni no Gênesis:
A humanidade, além de expulsa do Paraíso, perde sua imortalidade. Mas a mulher, além
de mortal, torna-se dominada pelo marido. Ao ser banida do Éden ela recebe deste um
nome: Eva, a mãe de todos os vivos (Gn, 3:20).
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É essa imagem da mulher inimiga que contribui para desprestígio feminino que
foi intensificado no período medieval. A cultura cristã ocidental associava a figura
feminina a Eva, mulher tentada pela serpente no Paraíso e responsável pela “queda” da
humanidade.
Esta situação só começou a mudar no século XI, quando a Igreja Católica
institucionalizou o casamento, processo que foi iniciado no século IX, na França, como
uma forma de estabelecer o controle sacerdotal sobre a cerimôniaviii. A partir de então, o
papel a ser exercido pela mulher foi o de boa mãe e esposa, o que culminou no século
seguinte num grande impulso ao culto mariano.
A figura de Maria emerge em oposição ao modelo da mulher pecadora, a Ave
passa a ser o modelo a ser seguido. O antagonismo existente entre Eva e Ave pode ser
resumido na cantiga de louvor de numero 60. O refrão proposto por D. Afonso diz que
“Entre Av’ e Eva / gran departiment’ á.” (p. 204). São sobre estas diferenças que trata o
louvor do rei.
Nesta cantiga, o poeta estabelece dicotomias entre as ações de Eva e Ave para
nos mostrar o quão grandiosa é a figura da Virgem redentora. Coube a Eva: “nos tolleu /
o Parays’ e Deus”; “nos foi deitar / do dem’ em as prijon”; “nos fez perder / amor de
Deus e bem”.
O papel da Ave, por sua vez, foi de nos restituir à graça divina perdida com
pecado original. Enquanto Eva nos afastava de Deus e do Paraíso e nos jogou nos
braços do Diabo, Ave nos aproximou de Deus e nos tirou do domínio do Inimigo. Na
última estrofe temos:
Se o céu nos foi desterrado, Maria, intercessora dos homens, mostra todo o seu
poder e explode as portas que outrora estavam fechadas. Isso ela faz simplesmente por
se Ave, palavra de apenas três letras que consegue sintetizar todo o bem que a Virgem
Maria, redentora da humanidade, representa.
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3.
Quando, na Idade Média, a figura da Virgem Maria com seu manto protetor
torna-se um dos temas centrais do Cristianismo, juntamente com seu filho, ela passa a
ser aquela que irá estabelecer uma relação afetiva entre os homens e o Espírito Santo.
A imagem do Deus crucificado é entranhada no imaginário cristão medieval
acompanhada por aquela que o trouxe ao mundo dos mortais, a sua mãe, Maria. As
lágrimas da “Vigem-Mãe” ao ver a morte de seu filho torna-a, ainda mais, mãe de todos
os cristãos. É com esta “mãe da misericórdia” que todos os homens podem contar nos
momentos de angústia, desespero, sofrimento e provações. Foi com esta Advogada que
contou um pobre romeiro tentado quando partia rumo ao caminho de Santiago. Trata-se
do romeiro da cantiga 26, assim intitulada:
Como o que objetivamos é analisar as Cantigas de Santa Maria que tem por
tema o embate da Virgem intercessora contra o Diabo, bem como este último usa de
suas artimanhas para levar o homem ao pecado, passemos ao estudo da referida cantiga.
Os refrões das cantigas costumam trazer uma verdade geral relativo ao poder da
Virgem, assim temos na cantiga 26: “Non é gran cousa se sabe | bom joyzo dar / a
Madre do que o mundo | tod’ á de joigar” (p. 125). Na seqüência desse refrão, temos
uma espécie de exórdio onde o tema estabelecido anteriormente é expandido, ou
melhor, o que vai ser cantado é definido:
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O pecado cometido é desse modo descrito: “pero desto fez maldade / que ant’
albergar foi molher sen bondade, / sen con ela casar” (p. 125). A mulher, dita sem
bondade, é a devassa filha de Eva, a personificação da tentação pela carne. Ela, neste
momento, representa o mesmo papel que Eva no Antigo Testamento, o de instrumentum
diaboli, isto é, um instrumento que causa a perdição do gênero humano.
Conforme Mario Pilosu (1995), “O motif da tentação da carne personificada por
uma representante do sexo feminino aparece desde as primeiras páginas do Gênesis” ix.
A mulher é tida como um instrumento diabólico e, sendo o Diabo o pai da luxúria, o
romeiro ao passar a noite com a mulher mais que não resistir aos impulsos, ele não
resistiu aos apelos do Diabo.
O Diabo, por sua vez, é uma criação medieval que juntamente com o
fortalecimento do Cristo crucificado e do culto mariano ganhou autonomia e poder.
Antes Yahvé não possuía grandes adversários, pois, como diz Le Goff, este Deus que
“vem da Bíblia não é, de fato, nem bom nem mau. É todo-poderoso, é justo, mas pode
ser terrível. Pode ser um Deus de cólera, um Deus de vingança” x.
É por este caráter vingativo que Javé não necessitava de um grande opositor.
Maior que o medo de qualquer ameaça do Diabo, era o temor que se sentia da ira divina.
Quando Jesus Cristo se torna o Deus encarnado cujo ato essencial para a salvação do
homem foi a sua Paixão e morte na cruz, Diabo tem sua imagem fortalecida no
imaginário medieval.
A demonologia é sistematizada e com ela Deus passa a ter em Satã e sua corte
excelentes adversários. O grande opositor, Satã, tem, conforme Carlos Roberto
Nogueira (2002), por missão combater a religião; é o inimigo implacável de Jesus e seus
discípulos. Em suma, ele encarna todos os obstáculos à possibilidade da vida eterna no
Paraíso. O Diabo passa a ser símbolo da desobediência e pai desta, o que, de certo
modo, aumenta a responsabilidade do homem quanto ao uso de seu livre arbítrio, isto é,
cabe a cada indivíduo a escolha entre o Bem (Deus) e o Mal (Diabo).
Foi devido ao mal uso de seu livre que o romeiro luxurioso pecou. Mas, o
agravamento de seu pecado deu-se por ele ter, na manhã seguinte, se posto “camỹo, / e
non sse mãefestou o mesqỹo” (p. 124), ou seja, ele pôs-se a percorrer o caminho de
Santiago sem ao menos confessar ou fazer penitência.
Aproveitando-se desse duplo deslize do romeiro “o demo mui festỹo / se le foi
mostrar mais branco que um armỹo, / pólo tost’ enganar” (p. 124). Muito rapidamente,
o Diabo disfarçou-se de Santiagoxi pronto para enganá-lo:
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Logo, a única salvação para a este peregrino é a castração do órgão que o lançou
em poder inimigo. Feita a castração é necessário degolar-se. Persuadido, o pobre
homem atende prontamente o que lhe pede o falso santo. Os seus companheiros de
romaria ao encontrá-lo morto o abandona por medo de serem acusados de matá-lo:
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Quem comete suicídio não pode entrar no reino de Deus e contra este fato
Santiago não tinha argumentos. Diante disso, só restou-lhe solicitar que a alma fosse
julgada pela Virgem.
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Nestes que são os últimos versos da cantiga, temos uma espécie de desfecho do
milagre narrado. O peregrino adquiriu o direito de voltar a viver para servir a Deus. No
entanto, por incorrer no pecado da Luxúria, não mais poderá recuperar o membro que
lhe fora amputado. O que a princípio pode parecer um castigo da Virgem, nada mais é
que uma ajuda para que esse mortal não mais peque, afinal, ele já demonstrou não saber
usar de forma correta o seu livre arbítrio.
Assim, Afonso X representa a misericórdia de Santa Maria, bem como, a sua
soberania ante ao Diabo. A Virgem intercessora sempre está a postos para advogar por
aqueles que a ela dedicam culto.
CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS
FRUGONI, Chiara. A mulher nas imagens, a mulher imaginada. In: DUBY, Georges;
PERROT, Michelle. Historia das Mulheres: a Idade Média. CIDADE: Edições
Afrontamento, 1993.
LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio: aspectos culturais
e literários. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2007.
LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média: conversas com Jean-Luc Pouthier. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F.. O Diabo no imaginário cristão. Bauru: UDUSC, 2002.
PILOSU, Mário. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. São Paulo: Editorial
Estampa, 1995.
NOTAS
i
Consoante Hugo Schlesinger (1995).
ii
SCHLESINGER, 1995, p. 2640.
iii
CHEVALIER, 2006, p. 962.
iv
DALARUM, 1993, p. 40.
v
Utilizaremos neste estudo a edição de 1989 feita por Walter Mettmann das Cantigas de Santa Maria,
assim, só faremos referência, no corpo do trabalho, a páginas.
vi
A cada nove cantiga de milagre temos uma cantiga de louvor.
vii
FRUGONI, 1993, p. 461.
viii
RICHARDS, 1993, p. 35.
ix
PILOSU, 1995, p. 29.
x
LE GOFF, 2007, p. 29.
xi
A partir dos versos “mais branco que um armỹo” e “Semelhança fillou de Santiago” inferimos que o
diabo se disfarça de Santiago”. Isso fica mais evidente ao observarmos a iluminura da cantiga em que o
falso Santiago não apresenta a auréola encontrada no verdadeiro.
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xii
Para Ângela Leão a figura de São Pedro é sempre associada a São Tiago nos Evangelhos. Além de
irmãos, são apresentados como os dois maiores apóstolos de Cristo, o que talvez justifique a presença
desta igreja na cantiga.
xiii
A respeito do Juízo Final foram consultados os livros bíblicos de Hebreus 9, 27: “E dado que os
homens morrem uma só vez e depois disso vem o julgamento” e Apocalipse 20, 12: “Vi então os mortos,
grandes e pequenos, em pé diante do trono. E foram abertos livros. Foi também aberto outro livro, o livro
da vida. Então os mortos foram julgados de acordo com sua conduta, conforme estava escrito nos livros”.
xiv
Segundo Casagrande; Vecchio, os pecados são divididos em modalidades: pecados mortais e pecados
veniais. “Os primeiros são os que arrastam à danação eterna, os segundos não condenam à morte, mas a
uma pena de expiação” (2002, p. 346).
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Mestranda em Letras: Linguagens e Representações pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC;
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB; dekachaves@hotmail.com
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locais por onde passa, faz com que o leitor vá descobrindo as belezas portuguesas e o
seu encanto, transmitindo opiniões e variadas leituras acerca dos monumentos,
paisagens, quadros e outros.
A narrativa é resultado da descoberta de novos caminhos, como uma experiência
de viajantes. Desse modo, Saramago fala de dentro de Portugal, para a própria Portugal,
com o intuito de apresentar esses novos olhares, e, principalmente, manifestar seu
reconhecimento e legitimação desse lugar que é seu; que ele sabe exatamente os
detalhes, os lugares: "Não sei por onde vou, só sei que não vou por ai".
Viagem a Portugal é uma história de trocas de viagens, onde o leitor pode
compartilhar de observações diversas, a partir de diversos pontos de vista diferentes.
Nessa troca, existe um pouco da viagem real, que apresenta o modo como os lugares são
vistos e descritos, bem como a viagem ficcional (IANNI, 2000), que faz com que a
representação dos elementos sublinhe uma nova perspectiva, que se mostra como uma
interação do lugar da viagem, com a possibilidade da expectativa da viagem.
Nesta narrativa, Saramago se utiliza do registro para materializar um desejo de
legitimação e de pertencimento à nação. É através desses registross que ele apresenta
uma nova Portugal, diferente de tudo o que se havia visto e ouvido até então. Ele dá
nome às coisas; traz uma valoração para o que não se prestava atenção; fala da comida,
da pintura, da chuva, do custo de um passeio nas ruas de Serpa, enfim, descreve lugares,
pessoas e dessa forma, vai tecendo um discurso de legitimação que vai sendo percebido
e, por sua vez, vai enriquecendo as cotas identitárias que o constroem em si mesmo. É a
experiência da viagem e o olhar sobre seu próprio espaço, que faz com que a “viagem”
não acabe.
O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi
visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão,
ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía,
ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que
aqui não estava. (SARAMAGO, 2003, p. 387)
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João Ubaldo Ribeiro nasceu na Ilha de Itaparica, na Bahia, mas atualmente mora
na cidade do Rio de Janeiro. Sua trajetória literária é marcada pelo consenso em relação
a uma bem-sucedida carreira, que o coloca na linha de frente do imaginário literário
nacional, representando o cânone contemporâneo, inclusive no que talvez seja o signo
maior desta representação que é a Academia Brasileira de Letras.
Em algumas de suas crônicas, pode ser percebido um registro freqüente e
insistente, de um sentimento que se posta na contramão do senso comum a esta
trajetória, sobretudo ao notarmos que, longe de uma insatisfação presente em seus
textos ou depoimentos, o que se vê é uma sutil presença da saudade sem um sentido
propriamente negativo, mas sim uma convivência com o lugar deixado, no caso a Ilha
de Itaparica, na Bahia - Brasil.
Esses registros deixam patente o desejo por, ao invés de dispersar, trazer pra
perto ou retornar à sua terra de origem, como que buscando uma legitimação necessária
para coroar a trajetória canônica. É o sentimento de nunca ter saído dessa terra mãe.
Há um movimento, explícito na obra de João Ubaldo Ribeiro que revela uma
postura não-canônica ao não aceitar o deslocamento como fatalidade, pois a todo o
momento João Ubaldo sublinha seu pertencimento à terra natal, seja no convívio,
através de suas estadias freqüentes ou mesmo em seus registros jornalísticos que
ressaltam esse lugar que nunca o deixou. Desse modo, a Ilha de Itaparica alimenta e
legitima um sentimento materializado em suas crônicas.
Na crônica Itaparica e a questão amazônica, João Ubaldo inicia o texto com
uma fala que pode ser traduzida em legitimação:
Bem verdade que eu não estou lá, no centro dos acontecimentos, mas procuro
permanecer sempre bem informado sobre o que se passa na Ilha, porque lá
sempre nos encontramos na vanguarda do pensamento nacional, desde o
tempo em que a moda era a antropofagia... (RIBEIRO, 2008, Caderno 2, p. 2)
O fato de o escritor declarar em seu texto que não está na Ilha, mas permanece
informado sobre o que se passa por lá pode ser interpretado como uma forma de se
manter ligado à sua terra de origem. O fato de estar fora dela acaba fazendo com que ele
demonstre um interesse por reforçar o seu pertencimento, dando sempre relevância ao
que se passa por lá, principalmente, a forma como a Ilha de Itaparica é afetada ou
simplesmente, como reage, diante dos acontecimentos do mundo.
Um outro exemplo pode ser visto na crônica Breve notícia sobre Zecamunista,
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que conta a história de José Carlos, um comunista morador da Ilha de Itaparica que
reclama seus direitos militantes em comparação aos enormes abusos envolvente
dinheiro e política. Uma forma divertida de denunciar a sociedade local e nacional, mas
que também deixa evidenciada a postura legitimatória de João Ubaldo, ao declarar que
tem orgulho em saber que sua coluna no jornal é chamada de “A voz da Ilha”:
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novo sentido; sentido este que se apresenta como um caminho percorrido pelo sujeito,
quando ao se deslocar de sua terra-mãe, tende a estabelecer uma busca voluntária ou
involuntária pelo retorno, ou seja, pela inversão dessa diáspora.
Mesmo quando sua atitude não é radical, como uma volta repentina, esse sujeito
mantém a exaltação a essa terra, seja através de registros, canções, visitas freqüentes ou
mesmo relatos fragmentados que provocam uma junção e uma intersecção desse lugar
comum com o incomum hora apresentado. (CANCLINI, 2000)
Mesmo que a identidade do sujeito diaspórico seja marcada por traços
característicos do seu lugar de origem, este encontra em outros lugares a razão do desejo
de uma legitimação, como uma busca por realização individual. Esses outros lugares,
notado a partir da alteridade (BHABHA, 2008), representa seu próprio reflexo, ou seja,
aquilo que de fato é vivido do lado de fora e a inversão dessa saída que objetiva um
regresso. Ver de fora (no sentido de um outro olhar ou não) do seu lugar aquilo que não
se via de dentro, faz com que o sujeito, inexplicavelmente, se coloque numa condição
de legitimador desse lugar.
No momento em que parte dessa terra-mãe, o sujeito da diáspora deixa para trás
a história, a vivência, as pessoas e mais uma série de coisas que o ajudaram a formar sua
identidade e construir sua cultura. Junto a essa partida também, segue uma infinidade de
saberes que, somados as novas culturas o tornarão alguém diferente, carregado de várias
crenças, experiências, uma multiculturalidade que pode ser interpretada conforme o
desenvolvimento de suas ações (GEERTZ, 1989).
Já de fora de sua terra de origem esse sujeito passa a indicar essa terra-mãe, seja
citando, cantando exaltando, elogiando, freqüentando, enfim, ele age como se estivesse
reforçando um desejo de retornar, ou tão somente, de não se deixar perder, legitimando
esse seu pertencimento e orgulho sobre esse lugar.
A escolha pela comparação em Saramago e João Ubaldo, parte então dessa
semelhança na apropriação de linguagem usada por esses autores, sendo que o primeiro
dá voz a um pertencimento, usando literalmente a própria nação (Portugal), enquanto
que o segundo, usa uma representação menor de nação, mas que no final se caracteriza
na mesma representação, pois, Portugal, para Saramago, está em todas as apisagens por
onde passa, ao passo que o Brasil de João Ubaldo, está em todas as Bahias do Brasil e,
principalmente, na Ilha de Itaparica.
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REFERÊNCIAS
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Tradução Trad. Fanny Wrobel. Rio de
Janeiro: LTC Editora, 1989.
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foram produzidos. Sendo assim, ocupando os vácuos que foram deixados pela História,
uma imagem permitiria pensar aspectos da trajetória e do destino de um povo; a
Literatura poderia mostrar o que foi silenciado.
1. VIAGENS ALÉM-MAR
4
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Cultrix, 1972.
5
RIOS, Otávio. Os viajantes descobrem o paraíso. In: O Amazonas deságua no Tejo: ensaios literários.
Manaus: UEA edições, 2009.
1499
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6
Ensaio presente no livro O Avesso do Bordado (2000).
7
Lembremos dos versos do Fado Tropical, de Chico Buarque de Holanda: “Ai, esta terra ainda vai
cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal!”.
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2. VIAGENS AQUÉM-MAR
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mesmo ao assinalar irônica e sutilmente o fim da épica dos mares em nome de uma terra
por reconhecer” (2000b, p. 160). Podemos, então, identificar no pensamento de Garrett
a ressignificação do papel exercido pela população, que passou a ser ideal de igualdade,
homens identificados pela idéia de pátria e de nação.
Para Otávio Rios (2009) a narrativa garrettiana
11
O Labirinto da Saudade: Psicanálise mítica do destino português, 1988.
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Em Portugal e na Espanha, ouro e prata eram usados como adorno nas igrejas e,
uma vez que a religiosidade era (e ainda o é) marca da cultura ibérica, a história de
Portugal e da Igreja Católica são indissociáveis, como foi afirmado por Eduardo
Lourenço no ensaio “Portugal como cultura”12. A religiosidade estava incutida de tal
forma que só era aceito e incorporado à cultura o que ia ao encontro dos dogmas da
igreja. Tal era a dimensão das crenças, que a própria história da conquista da
independência portuguesa assumiu um caráter de irrealidade, sonho e misticismo, como
na vingança divina que recaiu sobre Afonso Henriques em Badajoz, por este ter
aprisionado sua própria mãe, D. Teresa. A ironia garrettiana transformou o antigo
esplendor das igrejas em degradados edifícios:
12
Mitologia da Saudade seguido de Portugal como destino, 1999.
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Uma viagem no interior da terra portuguesa, como a que foi empreendida pelo
narrador-protagonista da obra de Garrett, constituiu-se como experiência que
possibilitou o aprendizado e a “paragem”, assim como o sentimento de permanência na
própria terra, contra o “colossal fenômeno de expatriação” (LOURENÇO, 2001, p. 45).
As Viagens de Garrett procuraram resgatar o passado glorioso ilustrando o presente
decadente, em que a morte de Joaninha, a cegueira da avó Francisca e a perda dos
valores de Carlos são a representação simbólica mais expressiva.
Há um relatório técnico, feito por Eça de Queirós, enquanto desempenhou a
função de Embaixador em Havana (Cuba), sobre a migração de chineses e asiáticos para
a pequena ilha da América Central. Eça, em sua visão particularmente negativa,
apresentou o fenômeno da emigração quarenta e sete anos depois das Viagens como fato
inevitável: “nós emigramos, pelo mesmo motivo que o grego emigra – a necessidade de
procurar longe o pão que a pátria não dá” (s/d. p. 236). O romântico Garrett expôs a
decadência do país sem abdicar de oferecer uma solução para o futuro: a preservação do
passado e dos monumentos históricos como forma de eternizá-lo, sem que a
mentalidade e as ações do povo sejam motivadas com base no que já foi vivido, isto é,
Garrett posiciona-se contra a estagnação do Estado e a inércia intelectual, mas também
não é favorável à modernidade que mergulha no esquecimento a referência simbólica do
povo português: o legado das viagens marítimas. Quando os olhos de Portugal estavam
voltados para o passado e para o mar, o autor das Viagens procurou desviar os olhos
portugueses, atraindo-os para o presente e para o próprio chão, em uma narrativa
13
LOURENÇO, Eduardo. A nau de Ícaro. 2001, p. 49.
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colaborou para deixar latente, subjazendo uma nova história nacional, pautada, por sua
vez, na popular, a micro-história, renovando a memória coletiva por meio da literatura.
Assim, a narrativa de Garrett não se esgota no relato de uma viagem pela terra, mas pela
cultura, pela história e pela memória portuguesas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio
Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 222-232. (Obras
escolhidas; v.1).
14
CAMÕES, Os Lusíadas, I, 1, 1972.
15
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 16.
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CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Introdução, fixação do texto e notas por Vítor
Ramos. 2. ed. Rio de Janeiro: Cultrix, 1972.
_________. Partes da minha terra: romances em eco no avesso das viagens portuguesas.
In: O Avesso do Bordado. Lisboa: Editorial Caminho, 2000b. p. 157-167.
FREITAS, Gustavo de. 900 textos e documentos de história. Lisboa: Plátano, 1977.
QUEIRÓS, Eça de. LI. In: Uma campanha alegre: de As Farpas. Lisboa: Edição Livros
do Brasil, s/d. p. 234-240.
1507
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1
Mestranda em Letras __ Estudos Literários, na Universidade Federal de Viçosa __ Minas Gerais __
Brasil.
1508
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2
MARAVALL, 1997, p. 130.
1509
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3
CÂNDIDO, 2006
1510
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4
ELIOT, 1989, 37-48.
1511
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5
FRIEDRICH, 1991
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produzida nessa terra, portanto brasileira, se torna célula dessa máquina poderosa que
expandia a exploração mercantilista dos povos via mares muitas vezes dantes navegados.
E como todo movimento dialético, a massificação das mentes, na época, já um ensaio de
globalização no seu aspecto mais cruel, fez gerar dela própria a eterna busca do
atendimento à plena condição de homem.
Nesse Teatro dos Vícios, descrito por Emanuel Araújo6, a cultura do carnaval
consistiu na última forma de resistência plausível da arte do sátiro baiano. O carnaval
nos moldes rabelaisianos, sob o olhar dos estudos de Bakhtin7, se metamorfoseia dessa
arte exterior e paralela à oficialidade do Estado e da Igreja. Contrariamente à formação
do poeta, muito mais voltada para os clássicos de pena erudita, a concepção “dualista do
mundo”, do medievo culto popular existente no riso rabelaisiano insere-se acertadamente
no ato criacional desse artista do recôncavo. Perdidas as expectativas de convivência
hipócrita entre cargos e batinas de força, a veia cômica do poeta voltou-se para a melhor
forma de representação da sua realidade. Representa-la como parte dela, no limite; vida e
arte. É a própria arte nos limites da vida, já que aquela é ilimitada. Homem e poesia
criam e fazem parta da festa. Nas palavras de Bakhtin: “O carnaval é a segunda vida do
povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. Existe todo o tempo e não
apenas em dias ditados pelo Estado ou pela Igreja”. É o cotidiano. É o povo por si
mesmo, puro, sem estamentos nem altares. Seu maior personagem é o bobo. O poeta do
recôncavo para sobreviver à vida estrangulada pelo feudo tardio buscou nos modelos
medievais de cultura popular a encarnação do bufão, só que por essas paragens usou da
viola de cabaça. A força do dizer do povo e __ povo também se constitui de letrados __
está de novo no seu lugar: a praça pública, as ruas da Bahia e paralelamente borra a
paisagem estática da mentalidade local. Assim poeta e poesia são um e são ouvidos, e
bebem junto ao povo, e se expressam nas vozes do povo e nas formas dos clássicos. O
frágil limite entre a vida e a arte, tão caros aos povos primitivos medievais, em suas
manifestações populares, é vivido intensamente por Gregório de Matos e, agindo assim,
tornou-se célula popular e até quando foi possível, protegeu-se do corpo místico do
Estado, inserindo-se no corpo misto da canalha, dito aqui como o povo menos
considerado. Dessa forma, Bahia e Gregório de Matos foram quase um só, uma
assinatura, já que essa não lhe daria um nome nem o impregnaria de nobreza, mas
renovaria uma forma de arte contrária à perpetuação. Empregando a paródia
6
ARAÚJO, 1997
7
BAKHTIN, 2002
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carnavalesca que não apenas nega, mas ressuscita e renova conceitos, assim como o riso
que é ambivalente em seu escárnio, o poeta baiano faz suscitar o riso que diverte, mas
que promove a crítica. É um riso-poder. Segundo Bakhtin,
essa é uma das diferenças essenciais que separam o riso festivo popular do riso
puramente satírico da época moderna. O autor satírico que apenas emprega o
humor negativo, coloca-se fora do objeto aludido e opõe-se a ele; isso destrói
a integridade do aspecto cômico do mundo, e então o risível [negativo] torna-
se um fenômeno particular. Ao contrário, o riso popular ambivalente expressa
uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os
que riem É império do humano; efêmero, burlando a divindade eterna, que não
desaparece, mas perde a hierarquia. [BAKHTIN, 2008, 11].
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misticismo religioso e das correntes do Estado político, faz ecoar o riso insólito da
desesperança ou da esperança humana, em sua ambivalência. Também ele leva ao sério e
à reflexão dos fatos históricos do Barroco transmutados em poesia, e que por serem
históricos, estão impregnados da emoção transformada do homem. É pura força vital;
poesia: pequena - grande potência.
REFERÊNCIAS
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INTRODUÇÃO
1
Especialização em Estudos Literários – Universidade Estadual de Feira de Santana.
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Para comprovar isso, o estudioso tece comentários sobre o conjunto das cantigas
de amigo de trovadores como Martin Codax, Johan Nunes Camanês e Fernan Velho,
cujos cancioneiros, se vistos no conjunto, fazem emergir, para além dos significados
individuais de cada texto, um significado global. Por nossa vez, fomos instigados a
testarmos tal procedimento de leitura e, ao observarmos as cantigas de Martin de Ginzo,
deparamo-nos claramente com o que é defendido por Tavani: se vistas no conjunto, as
08 cantigas deste trovador formam uma unidade discursiva em torno da narrativa de um
envolvimento amoroso.
Supõe-se ter vivido Martin de Ginzo nos meados do século XIII. Seu sobrenome
pode remeter tanto à Galiza quanto à região do Minho português, por conta de o
topônimo Ginzo ser comum às duas regiões. Daí a dúvida quanto à sua verdadeira
origem, da qual confessam os estudiosos quase nada saberem ao certo, a não ser por
deduções e cruzamento de informações intra e intertextuais. Assim, Lanciani e Tavani,
por exemplo, chegam à conclusão que o trovador deve ter participado da Reconquista,
por conta de uma das suas cantigas mencionar textualmente as palavras ferido e
fossado: “As expressões no ferido e no fossado da 1ª cantiga fazem supor que
participou na Reconquista e que viveu no reinado de Fernando III ou no de Afonso X” 4.
O que é unânime, no entanto, entre os estudiosos é que Martin de Ginzo foi um jogral,
portanto um artista de menor prestígio social, se comparado a alguns outros poetas
medievais.
Oito cantigas formam o corpus do autor, inscritas na Lírica Profana Galego-
Portuguesa5 sob o número 93, todas de amigo e com emprego abundante de estruturas
paralelísticas.6 Com exceção de uma (93.6), na verdade um fragmento, todas
apresentam refrão, diga-se de passagem, recurso característico deste gênero textual.
Além disso, podemos notar ainda certa sofisticação estrutural nas cantigas, com metade
delas (93,1.; 93,3.; 93,5.; 93,8.) fazendo uso do leixa-prén, por exemplo. Uma delas
(93.1) foge ao que se espera da voz lírica que se faz entoar no poema, visto que ouvimos
uma voz que não é nenhuma das que normalmente se fazem ser ouvidas em uma cantiga
de amigo: uma 3ª pessoa, que não é a mãe, a amiga, a natureza ou o namorado é quem
fala sobre a rapariga apaixonada a qual se manifesta apenas no terceiro e último verso
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de cada estrofe, para declarar que está morrendo, garbosa, de amores: “louçana,
d’amores moir’eu”. Para a nossa análise, mister se faz que transgridamos a ordem na
qual as cantigas figuram na fonte de onde foram retiradas, a fim de que consigamos
obter uma seqüência na qual elas tracem o percurso da rapariga apaixonada, indo da
sua euforia à sua desilusão amorosa.
No que tange ao conteúdo, sete delas se enquadram como cantares de romaria,
pois fazem referência ao santuário de Santa Cecília. Como sabemos, este não é um
subgênero (bem como as albas, barcarolas, cantigas de bailar...) que figurasse nos
tratados poéticos medievais nem nos cancioneiros, mas foi assim concebido (como os
demais) posteriormente à sua produção, pelos estudiosos que se debruçaram sobre a
análise da poética medieval. Encontramos em Lanciani e Tavani um leque de
observações, partir das coincidências que encerram, as quais resultam, por assim dizer,
nas características que compõem as cantigas ditas “de romaria”:
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rusticae)”9. E, mais adiante, o reforço de que muitas das manifestações líricas populares
devem às romarias as suas origens e sustentação:
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que as prohibições visavam a parte tomada pelo sexo feminino nos folguedos
públicos 13.
Quando se retirou com seu esposo para o quarto nupcial, ela lhe contou sua
promessa [de conservar-se virgem] e disse que um anjo a protegia o tempo
todo. Valeriano, temendo que fosse um estratagema em virtude de ela amar
outro homem, exigiu-lhe que o permitisse ver esse anjo para dar-lhe crédito.
Cecília lhe disse que se ele cresse e se batizasse, veria o anjo e recomendou-
lhe que procurasse o papa Urbano, na terceira milha da Via Ápia. Ali
Valeriano foi instruído e batizado. Quando voltou para casa, encontrou o anjo
ao lado de Cecília, tal como ela lhe havia prometido16.
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tenha sido Cecília. De qualquer forma, vale também levantar hipóteses sobre o porquê
da escolha pelo autor por este santuário: tal escolha ter-se-ia dado de forma aleatória e,
no lugar desse santuário, poderia estar um outro qualquer? Ou teria sido por motivo(s)
específico(s) a presença do santuário nos cantigas de Martin de Ginzo? Tendo-se em
vista a representação de Cecília no contexto medieval, é possível consideramos a
hipótese de tal escolha não ter sido feita de forma casual ou inocente. Feitas estas
considerações, passamos agora a análise das cantigas.
[...] a mãe exerce uma função que é mais de controlo (sic) dos
comportamentos morais e das práticas religiosas que de verdadeira instrução.
É sobretudo sua específica missão vigiar a conduta das filhas, que devem ser
mantidas longe da freqüência de companhias inadequadas e da participação
em festas ou danças. Relativamente às filhas, elas próprias sob custódia do
marido, reproduzem a mesma atitude repressiva: preservar o corpo feminino
de qualquer contacto que ataque o valor fundamental: a castidade. O controlo
da sexualidade das filhas surge de facto como âmbito privilegiado da
pedagogia materna, o único do qual a mãe, seja como for, é responsável,
independentemente até da sua própria moralidade 19·.
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Nota-se nesta cantiga que a rapariga está muito ansiosa pelo encontro e ela prevê
no amigo a mesma ansiedade. Os versos que constituem o refrão explicitam tal
ansiedade através do uso da hipérbole: os dois amantes estão morrendo de vontade de se
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encontrarem. Por outro lado, a filha se compromete com a mãe de servi-la sempre, caso
ela proporcione-lhe a felicidade de facilitar-lhe o que tanto deseja: ir ao santuário. Essa
ida se afasta da intenção religiosa de “fazer oraçon”, “chorar muit’ de olhos e de
coraçon” e “quiemar candeas”. Embora ela afirme a intenção da prática da todas essas
ações religiosas, o santuário (“en Santa Cecília”), delineia-se como um local específico
de concretização do encontro entre os apaixonados. A rapariga de lá, muito alegre (“mui
leda”), viria, e, por isso mesmo mais disposta a servir à mãe, porque teria atendido ao
chamado do seu amigo e do seu coração.
Na cantiga 93,8., Treides ai, mia madr’ en romaria, a obstinação da filha
continua e, visto que ela não conseguira da mãe a permissão para ir ao santuário
sozinha, agora convida-a a irem juntas: “E treides migo, madre, de grado,/ ca meu
amigu’ é por mi coitado.” É lá no santuário que se encontra ainda o seu amigo, que por
ela “é coitado”; aliás fica explícito que é por conta desse fato que ela quer ir: Ca meu
amigu’ é por mi coitado,/ e, pois, eu non farei seu mandado? Se ele á por ela coitado,
como não atender ao seu chamado?
Fica implícita a posição irredutível da mãe em não permitir que a filha atenda ao
pedido do amigo. Na cantiga 93,5., fica subtendido que a vigilância materna é severa e,
à medida que os cuidados com a guarda da filha se intensificam, esta torna-se mais
obstinada no seu propósito: “Ca me guardades a noit’ e o dia;/ morrer-vos ei con
aquesta perfia/ por meu amigo.” Por outro lado, ela reforça, como o fez na cantiga
anterior, que, se o contrário ocorrer, ou seja, se a mãe a deixar ir, ela ficará muito
feliz: “e, se quiserdes, irei mui de grado/ com meu amigo.” Esta cantiga faz uso do
leixa-prén, bem como de paralelismos, para reforçar a idéia central e, depois de
(re)afirmar, nos dois primeiros versos de cada estrofe, que a mãe não permite o
encontro, o amigo aparece sempre como o alvo para o qual as ações se voltam. Assim,
a rapariga é guardada noite e dia do seu amigo, não é permitida atender ao chamado do
seu amigo, morrerá com aquela teimosia (“perfia”, “cuidado”) por seu amigo, escaparia
e iria de grado também com seu amigo. O que se nota é o amigo como o motivador das
ações femininas e o centro de suas atenções. O envolvimento tornou-se tão obsessivo, a
ponto de qualquer coisa a namorada fazer: ela fugiria com ele, caso tivesse uma
oportunidade (“e, se me leixassedes ir, guarria/ com meu amigo”) tanto quanto
novamente reitera a possibilidade até da morte, se continuar privada do seu amor:
“Morrer-vos ei com aqueste cuidado”.
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acompanhada por esta atmosfera de decepção da namorada. Aliás, a partir deste ponto, a
sanha será uma emoção da rapariga, que percebe terem sido em vão seus esforços e
dedicação ao amado. O desejo tão premente, aliado ao poder de persuasão tão posto em
prática para convencer a mãe a consentir o encontro, foi inútil, já que o amigo se
mostrou insensível e tornou-se um traidor. A dor e a fúria da rapariga levam-na agora a
pedir auxilio espiritual não só a Santa Cecília, mas também a Nosso Senhor.
Indo nessa direção, a cantiga 93,6. (na verdade, um fragmento) comprova a
traição:
Nunca eu vi melhor ermida, nem mais santa:
o que se de mi tant’ enfinge e mi canta
disseron-mi que a sa coita sempr’ avanta:
por Deus [dê] a vós grado;
e dizen-mi que é coitado
por mi o [meu] perjurado
A moça agora está satisfeita, porque sabe que o seu traidor sofre. Ela reconhece
os poderes da santa, ao enunciar que nunca vira “melhor ermida, nem mais santa”, ou
seja, os pedidos a Santa Cecília foram atendidos, pois tudo foi esclarecido e o namorado
traidor está resgatando a sua leviandade com o sofrimento: “disseron-mi que a sa coita
sempr’ avanta”. Ao que parece, havia a intenção do namorado de continuar no jogo
duplo da sedução e traição com relação à namorada, já que no segundo verso, ao se
referir a ele, a moça diz: “o que se de mi tant’ enfinge e mi canta”. Ambos sofrem, mas
a moça demonstra encarar os fatos de forma amadurecida, sem maior dramaticidade,
embora seu discurso seja perpassado por um certo tom de vingança saciada, deixando
entrever a lógica de que o sofrimento a ela impingido por ele retorna ao emissor. Pela
leitura do primeiro verso (“Nunca eu vi melhor ermida nem mais santa”), Santa Cecília
parece ter ajudado as coisas a se esclarecerem e a se ajustarem.
Chegamos ao desfecho da narrativa, no qual se percebe o estado de sofrimento e
de desilusão da rapariga. Como já dissemos, algumas irregularidades com relação às
demais, a cantiga 93,1 apresenta: a primeira delas é que, mesmo em se tratando de uma
cantiga de amigo, ela foge à adoção de um eu-lírico feminino: uma terceira pessoa fala,
nos dísticos, sobre a atitude tomada pela moça na tentativa de fugir à sua tristeza. Ela,
por sua vez, só se manifesta no último verso de cada estrofe (refrão), ao enunciar que
está a morrer de amores:
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CONCLUSÃO
No que respeita às cantigas de amigo, dos textos desse gênero emerge a visão
que o masculino tinha sobre o feminino durante a Idade Média. Durante um período em
que a mulher sempre fora relegada a uma posição de inferioridade, que não tivera voz
nem vez, os poetas trovadores a fazem falar através do canal de voz masculino. Num
discurso simples, “as cantigas de amigo objetivam reconstruir, de forma permanente, a
imagem feminina e o seu perfil inserido no quadro lírico do cotidiano medieval,
podendo-se distinguir mais um estrato de civilização, de cultura e de ambiente” 20.
A leitura dos textos de Ginzo comprova o nível de organicidade da poética
medieval galego-portuguesa, dando mostras suficientes da dimensão de articulação do
projeto maior trovadoresco. Ginzo dá provas de sua competência poética através dos
recursos formais e retóricos empregados em suas cantigas e da observância das
convenções estabelecidas nos tratados poéticos.
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REFERÊNCIAS
DOMINGO, Josep M. Santa Cecília: história e martírio. São Paulo: Paulinas, 2004.
LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de Literatura Português: época medieval. 10 ed. rev.
Coimbra: Coimbra Ed., 1996.
VECCHIO, Silvana. A boa esposa. In: DUBY, Georges e PERROT, Michele (dir.)
História das mulheres no ocidente: a Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1989, p.
140-165.
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NOTAS
1
Lapa, 1966, p.149.
2
Idem, p.156.
3
Tavani, 2002, p. 152.
4
Lanciani e Tavani, 1993, p. 436-437.
5
Brea, 1996.
6
A referida fonte traz análise completa da estrutura das cantigas. Daí limitarmo-nos apenas a alguns
comentários de parte dos elementos estruturais, daqueles, que, de certa forma, entendemos subsidiar a
análise dos conteúdos.
7
Lanciani e Tavani, 1993, p.141.
8
Repetiremos a grafia original adotada pela autora.
9
Vasconcelos, 1990, p. 848.
10
Idem, p. 861.
11
Idem, p. 862.
12
Idem, p. 849.
13
Idem, p. 895.
14
Vecchio, 1990, p.156.
15
Foi consultado o texto “Pequena história de Santa Cecília". Disponível em
http://www.ordemdesantacecilia.org/historia_de_santa_cecilia . Acesso em 02/08/2008.
16
Domingo, 2004, p. 9-10.
17
Cecília fora encerrada em um caldarium para que morresse sufoca por vapores quentes, enquanto
Roma vivenciava festejos populares e, após uma noite, ela continuaria orando e cantando, ilesa. Este fato
teria aumentado a fúria dos seus algozes, os quais ordenaram que, no mesmo local, ela fosse degolada.
Para surpresa de todos, os três golpes fatais (a Lei não permitia mais que essa quantidade) que lhe teriam
sido desferidos não a mataram imediatamente e, só após três dias, testemunhando grande paz, é que teria
morrido, após entregar a um padre da sua confiança os pobres de quem cuidava. (Cf. Domingo, 2004, p.
11)
18
Os monges cecilianos, no Brasil congregados em Caçapava do Sul, RS, por e-mail, nos forneceram
estes dados; são eles os responsáveis pelo site citado na nota 14.
19
Vecchio, 1990, p. 167.
20
Cortez, 2005, p. 249.
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INTRODUÇÃO
1
Mestranda em Literatura Portuguesa e outros campos do saber da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), Bolsista CNPq.
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“Os conflitos do trabalho são ainda raros e geralmente liquidados através das
vias legais. As aspirações mais prementes do mundo do trabalho (instruções,
socorros, etc.) são facilmente diferidas pelas classes dominantes, que fazem
coincidir as necessidades de desenvolvimento do sistema com a conservação em
bom estado (estado utilizável), da força do trabalho”.2
2
Fonseca, [s.d], p. 22.
1533
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2
J. F. de Almeida Policarpo, 1992, p. 340.
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A tese de Michelle Perrot se coaduna com o que Peter Gay escreveu em O Século de
Schnitzler, sobre a divisão dos sexos no século XIX. Analisa Peter Gay: “A doutrina da
separação das esferas do século XIX dividia claramente os sexos e ditava o território
adequado para o trabalho das mulheres de classe média: a família”. 5
3
Fonseca, [s.d], p. 24 -5.
4
Perrot, 1998, p. 9.
5
Gay, 2002, p. 219.
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Qualquer que fosse a ideologia dominante na era vitoriana, a separação das esferas
não seria jamais integral. As mulheres do século XIX, excluídas de uma ativa participação
na sociedade, de garantirem dignamente sua própria sobrevivência, de não poderem
assumir cargos públicos e de não terem acesso ao nível superior, eram submissas aos
maridos. Tinham a função de gerenciar seu lar, supervisionar os empregados, assumir o
papel principal na criação dos filhos, manter-se dentro do orçamento doméstico, serem
colaboradoras do marido e boas anfitriãs. “Ordem e limpeza, devem existir na casa em toda
a parte e em todos os momentos: essa é a precondição para uma dona de casa competente.
Em poucas palavras, esse era o trabalho das mulheres – responsável, variado, árduo e
jamais terminado”.6
Sem dúvida, em muitos lares vitorianos havia empregadas domésticas para fazer o
trabalho mais pesado. A “empregada” neste âmbito merece compaixão, pois sua vida é
muito solitária. Levanta sempre muito cedo e está sempre a limpar e a organizar. O nível
médio de escolaridade dessa classe, geralmente baixo, não favorecia a grande massa de
trabalhadoras de serviços domésticos.
O crescimento das forças econômicas e sociais proporcionou empregos para as
mulheres mais instruídas, mais respeitáveis. Além de muitas exercerem as funções de
professora, governanta e até mesmo escritora, o surgimento das invenções tecnológicas, no
século XIX, de novas empresas, novos bancos, novas indústrias e instituições
governamentais proporcionou a necessidade de funcionárias alfabetizadas e educadas,
engajando assim muitas pequeno-burguesas no mercado de trabalho, mesmo sendo estes
empregos, ainda, de nível baixo.
Após a metade do século, o surgimento de grandes lojas dificultou a sobrevivência
de pequenos comércios especializados, geralmente de comerciantes que cuidavam de seus
negócios em parceria com a esposa. Evidentemente, essas mulheres acabavam fazendo
parte da grande massa de trabalhadoras em serviços domésticos.
No romance Os Maias, encontramos governantas, preceptora, ama, empregadas, ou
seja, personagens femininas que representam o “pessoal doméstico” e que desempenham
funções variadas e de grande responsabilidade. Mas para os críticos do século XIX estas
personagens não despertam curiosidades e não criam polêmicas. É evidente que a primazia
6
Gay, 2002, p. 220.
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de Eça de Queirós é expor as mulheres, na maioria das vezes, como adúlteras. Esse papel
desempenhado pela figura feminina procura desvelar toda a hipocrisia e a moral decadente
do século XIX por meio de uma análise psicológica que visa criticar para corrigir a
sociedade decadente da época.Voltado para este prisma, Eça condiciona as personagens
femininas d”Os Maias, em sua maioria, a representarem a luxúria, a perdição. As mulheres
da alta sociedade são criticadas através das adúlteras Maria Monforte e a condessa de
Gouvarinho.
Maria Monforte, uma das personagens principais, era filha única de um rico
comerciante. No entanto, apesar da fortuna do pai, não era aceita entre as famílias lisboetas
conservadoras devido à origem desta riqueza, proveniente do tráfico negreiro. Casa-se com
Pedro da Maia. Em seguida apaixona-se por um príncipe e foge abandonando o marido e o
filho. Assim nasce a intriga principal do romance. A condessa de Gouvarinho mantém um
caso com Carlos Eduardo e não se preocupava com os padrões impostos pela sociedade.
Raquel Cohen não resiste aos encantos de João da Ega e faz-se sua amante. Maria Eduarda
não era casada, mas apresenta-se com o nome de Castro Gomes. Aos olhos da sociedade
lisboeta e de Carlos da Maia, Castro Gomes é seu marido.
Quando falamos nas mulheres criadas por Eça de Queirós em seus romances,
surgem personagens femininamente belas, porém esfumaçadas. Personagens como a
condessa de Gouvarinho e Maria Eduarda são vistas predominantemente por um olhar
masculino, ou seja, pelos olhos de Carlos. Obviamente Eça cria uma presença masculina
avassaladora em Os Maias. Assim, o ponto de vista masculino é dominante na obra.
Identificamos intimamente Carlos da Maia. Já Maria Eduarda... pouco se percebe do seu
interior, pois os fatos não são vistos a partir de sua perspectiva. A conhecemos
exclusivamente de fora, quase exclusivamente a partir de suas ações e palavras.
Notamos que Os Maias é um romance eminentemente masculino e que as
personagens femininas são vistas de forma bastante negativa.
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Não há consenso com relação à época em que Eça de Queirós escreve e publica Os
Maias. É um momento em que os ilustres da literatura se dividem em duas correntes:
conservadora e liberal.
O romance citado, na opinião dos críticos, ocupa o lugar de obra mais importante
entre as criações do grande romancista português, por constituir, de forma resumida, um
apanhado do modo de vida, em Portugal, no século XIX.
Do subtítulo Episódios da Vida Romântica, despontam diversos episódios da
sociedade romântica da época da Regeneração. Muitos são os cenários onde passeiam
personagens esvaziadas de traços individuais, para retratarem melhor as qualidades, os
defeitos e as mentalidades de certos grupos profissionais, sociais e culturais.
O grupo profissional e social analisado nesta pesquisa – “pessoal doméstico” – tem
também importância no conjunto do romance. Vejamos...
Como patriarca da família, Afonso da Maia constituía para todos um valor de
referência. Por amor a sua esposa deixou seu filho, Pedro da Maia, crescer e ser educado
segundo cânones tradicionais portugueses. Porém, a educação de seu neto, Carlos da Maia,
foi totalmente diferente. Educado à maneira inglesa, com normas rígidas, intensas
atividades físicas, sem o tradicionalismo da cartilha católica, Carlos torna-se um belo
homem, física e intelectualmente. O responsável por esta educação típica do sistema inglês
é o preceptor Mr. Brown.
Brown, partidário de uma educação que concede primazia ao desenvolvimento e
equilíbrio físicos, ensinara Carlos da Maia a remar e a fazer exercícios de trapézio, numa
predominância de atividades de educação física. Sobre o assunto, discorre o mordomo
Teixeira:
“Deixava-o correr, cair, trepar às árvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como
um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só as certas horas e de
certas coisas... E às vezes a criancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita,
muita dureza”.8
8
Queirós, 2003, p 40.
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deve-se começar por lá. É a base; é a basezinha”. Brown, sempre energético e possante,
replica ao abade que “não! Latim mais tarde! Primeiro músculos, músculos!”.9
Afonso da Maia aprova esta orientação de Brown profundamente: “O latim era um
luxo de erudito. Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma criança numa língua
morta. O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte.
Toda a educação sensata consiste nisto: criar a saúde, a força e os seus hábitos, desenvolver
exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física, tal qual como se não
tivesse alma. A alma vem depois. A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande”.10
De fato, Carlos cresce atlético, são, belo, magnífico, mas isso não quer dizer que
esta criação foi em tudo eficaz, prova disto é que se torna um diletante e mais adiante, ao
tomar conhecimento do terrível desfecho de sua história amorosa com Maria Eduarda, vê-
se assombrado com a morte do avô e torna-se um fracassado da vida. Assim, jovem, bonito,
inteligente, cobiçado e culto, com tudo para se tornar um vencedor, Carlos é destinado, tal
como seu pai, a fracassar.
Através de Brown, Eça traz para Portugal algo que ele achava que a Inglaterra e a
França tinham de bom, uma educação rígida, fora dos padrões portugueses, porém, agora
vemos, nem tão eficaz assim.
Teixeira, o mordomo de Afonso, empregado tão antigo da casa que já era tratado
familiarmente, sempre muito acolhedor para com os convidados do Ramalhete, servia D.
Afonso com apreço e cuidava dos escudeiros com rigor, mas não aprovava o modelo de
educação inglesa do preceptor Brown. A propósito afirmava:
“Coitadinho dele, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Não tinha a
criança cinco anos já dormia num quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs,
zás, para dentro duma tina de água fria, às vezes a gear lá fora.. E outras
barbaridades”.11
Outra que também não aprovava a educação ministrada por Brown é a governanta
Gertrudes, administradora do Ramalhete. Recebera o menino dos braços da ama na noite
em que seu pai, Pedro da Maia, suicidou-se. Terna, amável e familiar, tratava Carlos por “o
menino”, praticamente como filho. Tanto Gertrudes, como Teixeira recebiam
9
Qúeirós, 2003, p. 43.
10
Queirós, 2003, p 43.
11
Queirós, 2003, p. 40.
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“Mas a existência neste meio rico não era agora tão alegre: O Teixeira primeiro,
a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurises, ambos no entrudo.
Agora, as férias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a
quinta o seu íntimo, o grande João da Ega, a quem Afonso da Maia se afeiçoara
muito... ”. 14
12
Queirós, 2003, p.35.
13
Queirós, 2003, p. 37.
14
Queirós, 2003, p. 64.
15
Queirós, 2003, p. 66.
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“A senhora levara o seu escrúpulo a ponto de que, desde que viera para os
Olivais, nunca mais gastara um centil das quantias que lhe mandava o sr. Castro
Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas, entregara-lhas
nessa tarde... Não se lembrava ele de ter a encontrado uma manhã à porta do
Montepio? Pois bem! Fora lá, com uma amiga francesa, empenhar uma pulseira
de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas jóias; tinha já outras no
prego”.18
Sem dúvida, era comum no século XIX, as Madames possuírem criadas de quarto
para fazer o trabalho mais pesado. Maria Monforte tinha a arlesiana - sua criada francesa -,
uma bela moça que via no amante italiano Tancredo uma “pintura de Nosso Senhor Jesus
Cristo”: “A arlesiana, criada francesa de quarto de Maria Monforte, a cada momento
aparecia lá a levar toalhas de rendas, um açucareiro que ninguém reclamara, ou algum vaso
com flores para alegrar a alcova...”.19
16
Queirós, 2003, p. 95.
17
Queirós, 2003, p. 238.
18
Queirós, 2003, p. 335.
19
Queirós, 2003, p. 28.
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Miss Sara, a governanta de Maria Eduarda e preceptora inglesa de sua filha Rosa,
era natural de York. Ostenta uma aparência correta e aos olhos da patroa era rapariga muito
séria, porém Rosa não lhe tinha afeição:
A preceptora por transparecer uma obsessão compulsiva pela ordem, sempre grave,
astuta, metódica, puritana laboriosa, sugere uma forte repressão sexual, expressa na
comoção face às atenções de Carlos, deixando subtendida uma forte carência afetiva.
Encena-se, nos jardins da “Toca”, sob as ramagens, entre as relvas, no chão, um ato
sexual entre a preceptora e um trabalhador qualquer. Carlos a surpreendeu rugindo, estirada
na relva, sujando brutalmente o poético retiro dos seus amores... e treme de indignação.
Não queria mais a presença desta “impura fêmea” junto de Rosa;
“Bem lavada, toda correta, com os seus bondós puritanos, aceitava um qualquer,
rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaíra, meses, com aquelas
suas duas existências, tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa,
corando sempre, com a Bíblia no cesto da costura: à noite a pequena adormecida,
todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra, xale
aos ombros, e lá ia para a relva, com qualquer!” 21
20
Queirós, 2003, p. 308.
21
Queirós, 2003, p. 313.
22
Queirós, 1928, p. 180.
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CONCLUSÃO
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a história, erram, erram muito: o Portugal liberal, apesar dos pesares, já ia longe do velho
Portugal de D. João VI.
REFERÊNCIAS
DAVID, Sérgio Nazar. O Século de Silvestre da Silva. Vol. 2. Estudos queirosianos. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2007.
DUBY, Georges: Michelle Perrot. Imagens da Mulher. Sob direção de Georges Duby.
Edições Afrontamento, ed. 435.
EÇA DE QUEIRÓS, José Maria. Obras Completas. Porto: Lello & Irmãos, 1951.
PERROT, Michelle. Mulheres públicas. Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1998.
QUEIRÓS, Eça de. Correspondência. 3ª ed. Porto: Lello & Irmão – Editores. Livraria
Chardron, 1928.
REIS, Carlos. O essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 2000.
__________. Introdução à leitura d’Os Maias. 5ª ed. / 83º reimpressão. Coimbra, 1994.
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Aristóteles nos legou a máxima: “O homem é o único animal que ri.” E Millor
Fernandes completou: “ ... e rindo mostra o animal que ele é...”. Millor nos faz rir ao
sintonizar a nossa inteligência pura, restituindo-nos à ancestralidade. Como salienta
Henry Bérgson, o riso funciona como um lubrificante social.
11
Mestranda em Literatura Portuguesa, pela universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ.
2
BRAGA, Teófilo. História do Teatro Português. In SANTOS, s/d, p. 56.
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narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o
que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade”3
3
ARISTÓTELES, 1984, p. 23.
4
COSTA LIMA, Luiz, 1973, p. 37.
5
MENDES LEAL, José da Silva. Pedro (prólogo). in SANTOS, s/d, p. 62.
6
SANTOS, s/d, p. 37.
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Nos primeiros anos de fazer literário, redigiu oito peças, partindo, ao final desse
período, para a produção de contos, poesias, ensaios e crítica e ocupando por fim um
lugar de destaque como romancista, com o pseudônimo de Júlio Dinis.
O principal mote é o peso que o dinheiro pode ter sobre o juízo que se faz do
outro. Dois rapazes de mesma idade e homônimos vão, no mesmo dia, à casa de uma
rica viúva, portando cartas de apresentação de seus genitores. As referidas cartas, mais
7
GARRETT, 1974, p. 4.
8
MENDES LEAL, José da Silva. Pedro. In SANTOS, s/d, p. 81.
1548
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9
GOMES COELHO, 1975, p. 191.
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desinteressadamente ao amor que João de Souza (o pintor) lhe devota. Ambos compõem
um par exemplar, voltado para a consecução de objetivos comuns, ligados por uma
relação afetuosa, sem chegar à falta de razoabilidade das paixões violentas.
De todo o modo, Luísa não se furta a observar acidamente o traje “à moda dos
aldeões em dias de festa” de seu futuro sogro: “(à parte) Pois este homem será o
comendador Sousa e Melo? Parece impossível! Não me fazia muita conta ter um sogro
tão fora de moda, mas estou que ele volta para a sua toca. 11
Um homem do povo: José de Souza, o trolha, é o responsável pelas falas mais
hilariantes. O autor utiliza-se de sua voz para introduzir novidades formais, como o falar
coloquial. Atua enquanto signatário da alma portuguesa, dada a sua rusticidade, assim
como a sua postura ingênua diante das classes mais elevadas e intermédias. Sua
profunda sinceridade é virtude que adquire caráter cômico, por ser completamente
inadequada, no círculo social de D. Margarida.
Entre esses extremos, a nobreza e/ou a burguesia abastada e o povo, circulam
representantes das classes médias, todos integrando o convescote de D. Maria:
Um elegante: sabe agir e transitar em meio aos círculos sociais de mais altos
estratos. No texto, presta-se à caricatura enquanto subserviente (Diogo Campos)
corrompido que é por aquela sociedade de aparências. “Tosse, passa a mão pelo cabelo,
faz uma cortesia acompanhada de um olhar lânguido às damas.”12
Um ex-advogado pretensamente culto e sua filha tola. O deslumbramento
afrancesado de Miguel Tavares, contrastando com a ignorância ingênua de sua filha
Emília, desvela a manutenção das aparências como passaporte para transitar num estrato
superior.
Um rico proprietário: José Paulo, pretendente à mão de D. Margarida, não
mede esforços para alcançar o seu intento, que é por a mão na herança da viúva Daí o
apoio aparentemente desinteressado que ele oferece a João de Sousa.
10
SANTOS, s/d, pp. 75-76.
11
GOMES COELHO, 1975, p. 249.
12
GOMES COELHO, 1975, p. 199.
1550
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Um cético: É Pedro Vilena quem tem as falas mais lúcidas e se diverte com o
comportamento cortesão dos convivas de D. Margarida.
Cabe sinalizar, por fim, a ausência de expressão dos criados que, assim como as
crianças, no século XIX, ficavam relegados ao ostracismo.
Uma situação prosaica, a troca de cartas entre os portadores, cria o cenário
propício à comicidade de situação. No primeiro ato, os episódios se passam nos jardins
da casa de D. Margarida. No segundo ato, o desenrolar das situações ocorre na sala de
estar da casa, recentemente adquirida, de João de Sousa. Em ambas as situações, os
espaços eram os destinados à representação. Os demais espaços, referentes à intimidade
dos seus moradores não são sequer mencionados.
Nas cenas iniciais da comédia de dois atos, o autor apresenta os protagonistas,
cada qual lendo e comentando junto ao público as cartas remetidas por seus pais, a
serem entregues à D. Margarida. O primeiro João, filho de um trolha que, em tempos
idos trabalhara para a viúva, busca a proteção de um mecenas. O segundo, filho de um
amigo do finado coronel, pretende casar-se com a sobrinha da dona da casa. Por
distração, enfiam as respectivas cartas nos casacos de um e de outro, o que determina o
tratamento que passam a receber dos demais. O primeiro, tido como rico, é tratado por
todos regiamente. O segundo, bem apessoado e cioso das normas de etiqueta que regem
13
GOMES COELHO, 1975, p. 210.
14
LEPECKI, 1979, p. 22.
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aquela sociedade, recebe um tratamento compatível com o seu baixo estrato social,
conforme o entendimento de D. Margarida e convidados. A falta de compreensão por
parte dos personagens sobre o equívoco, que só o público entende, oportuniza cenas que
acentuam a comicidade de situação
15
GOMES COELHO, 1975, pp. 221-222.
1552
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DIOGO CAMPOS – (...) Mulher feiticeira qu’outrora amei/ Por quem ainda
nutro custosa paixão.
PEDRO VILHENA (a Miguel Tavares) – Paixão custosa! Entendo, custa-lhe
muito a nutrir; também não admira: está tudo tão caro.
MIGUEL TAVARES (a Pedro Vilhena) – Chitom!
DIOGO CAMPOS (olha-os despeitado e prossegue) – Oh! Não me
desprezes, ingrata, não vês/ O amor que se encerra no meu coração?
PEDRO VILHENA – Ela como há-de ver se ele está lá metido? 17
16
GOMES COELHO, 1975, p. 200.
17
GOMES COELHO, 1975, pp. 200-201.
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Custoso e caro pertencem ao mesmo campo semântico. Júlio Dinis jogava com o
sentido das palavras espirituosamente. Brincava com o verso seguinte: “não vês (...) o
que se encerra (...)”, desconstruindo o clima romântico)
O parco entendimento de José de Sousa do que seja consagrado, oportuniza situações
cômicas, assim como figurar como o único personagem que se utiliza de expressões
coloquiais para marcar a sua condição de “homem do povo”
Júlio Dinis fez rir, ao apresentar o lado caricato desse círculo social tão seleto,
que se ocupa em tecer comentários desairosos, sempre à boca pequena. Ironizava a
burguesia recém-chegada aos círculos de poder, assim como o aldeão inculto,
introduzindo, com o seu discurso leve, novas práticas sociais. Tratvaa-se de uma
sociedade ainda provinciana, mas que via com espanto as mudanças se sucederem cada
vez mais rapidamente.
A “terapia do riso” tem o poder de expurgar do meio social os comportamentos
indesejáveis, ao reduzi-los à sua mesquinhez. Só o riso coletivo é capaz de operar essa
transformação, porque a sociedade adequa cada cidadão às suas normas e o faz agir em
conformidade com o que dele se espera. Fato é que o que pode ser mal-visto, em
determinado meio, pode passar despercebido em outro, bastando remontar aos códigos
estabelecidos.
Ao situar os expectadores no tempo e espaço em que viviam, Júlio Dinis retratou
também o consumo do ócio pelas classes mais abastadas, enquanto distinção de classe.
Assim como D. Margarida não se furtava a oferecer jantares e soirés ao seu grupo
seleto, assegurando a sua diferença em relação aos demais, do mesmo modo deveria
agir o recém-incluído João de Souza, ainda que por obra de um mal-entendido, para
marcar a sua meteórica ascensão, de forma ostentatória. O piano assente no palco,
18
GOMES COELHO, , 1975, pp. 221-222.
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REFERÊNCIAS
ALMEIDA GARRETT, João Baptista de. Frei Luis de Souza. Publicação Europa
América, Maia, Porto, Portugal, 1974.
GOMES COELHO, Joaquim Guilherme. “As Duas Cartas”. in Teatro Inédito de Júlio
Dinis. Porto: Livraria Civilização Editora, 1975.
19
DEMARCY, , 1988, pp. 32-33
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SANTOS, Maria de Lourdes Lima dos. Para uma sociologia da cultura burguesa em
Portugal, no século XIX. Lisboa, Ed. Presença/Instituto de Ciências, s/d.
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INTRODUÇÃO
A vida urbana foi, e ainda é, vista como um privilégio oriundo do progresso que
veio para abrir caminho frente às dificuldades do contexto rural e primitivo,
preponderante num tempo passado. Nessa perspectiva, viver na cidade pressupõe
usufruir de uma vida de facilidades, acessibilidade e possibilidades. Partindo dessa
concepção, vê-se que a cidade sempre foi considerada como o lugar da civilização, da
organização, do progresso. O lugar da luz; e assim, dos “eletros”, do saber, do melhor,
do moderno.
Tem-se uma concepção mental sobre a estrutura concreta de cidade, compatível
com um esquema básico e funcional, que se supõe poder ser preenchido por todas as
cidades. Cidade é um espaço habitacional cujo “modelo padrão” comporta: prédios,
repartições públicas e privadas, escolas e tantos outros aparelhos ideológicos do Estado,
indústrias, comércio, serviços, grupos sociais organizados, políticas públicas, e assim
por diante.
A concepção de cidade enquanto um lugar que pode proporcionar uma forma de
vida “singular e cômoda” não se mantém. O espaço urbano, onde tudo tem seu lugar,
função, tempo e modo, numa “harmonia” capaz de ceder espaço à monotonia e ao tédio,
também se distancia da realidade. A imagem de uma comunidade urbana tranqüila,
1
Graduada em Letras Espanhol/Português pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC
Pós-graduanda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa – ECLIP/ UESC
Atua no grupo de pesquisa Cartografias contemporâneas: memória e cidade na ficção - DLA/UESC;
pesquisa principalmente a partir dos temas: estudos culturais, cidade, memória, identidade e ficção
contemporânea. Orientada pelo professor doutor do DLA/UESC, Claudio do Carmo Gonçalves.
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A obra Ensaio sobre a cegueira narra a história de uma cidade fictícia não
identificada, cujos habitantes foram vitimados por uma epidemia chamada cegueira
branca. À medida que o indivíduo adquiria a doença, era tirado do convívio social, para
não contagiar os demais. Ainda que o governo tenha tomado a providência de
“separar” os enfermos dentre os demais, aos poucos toda população foi acometida pela
referida cegueira, exceto uma mulher, a propósito, a mulher do médico oftalmologista.
Diante de tal situação a cidade passa por uma desolação total: cegos e cães esfomeados
vagueiam pelas vias públicas em busca de alimento e de sobrevivência. A cidade onde
outrora fluía vida através do brilho incandescente de suas luzes, do movimento frenético
dos carros e do vai e vem dos seus transeuntes, passa a viver um caos.
A descrição inicial da obra, tanto do cenário quanto das ações, deixa claro que
Saramago configura a cidade como algo que precisa ser compreendido além do aspecto
físico e estrutural. Ele propõe uma leitura de cidade enquanto movimento:
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compreendida pelo homem que o conduzia porque este também tinha na memória,
registros sobre a cidade.
É perceptível que cidade ficcional e cidade real se misturam e se tornam
indissociáveis. A cidade de Saramago é a cidade do sujeito pós-moderno. Embora ela
esteja cega, a imagem não é turva, é clara, branca, leitosa, demasiadamente brilhante. O
conhecimento, o progresso, o ultra-avançado, o capitalismo, a competitividade que lhe é
inerente e tudo o mais que o constitui tem ofuscado os olhos da sociedade com sua
perversa “luminosidade”, e sem que possam caminhar com independência frente a
tantas “luzes” diante de si, os cidadãos são engavetados em camaratas segregatórias.
Entende-se por camaratas segregatórias, nesse texto, bem como em Ensaio sobre
a cegueira, os espaços geográficos ou ideológicos que destinam-se ao armazenamento
dos homens considerados à margem dos padrões sociais pré-estabelecidos, aceitáveis
pelo regimento do sistema capitalista. Os que não se “encaixam” nesses parâmetros por
motivos diversos têm à sua espera, “as camaratas” como abrigo. Em Saramago, as
camaratas, descritas como pequenos quartos de um manicômio que dispunham de uma
cama, foram os lugares reservados aos que sofriam da cegueira branca.
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presencia quando ainda está em um hotel, no Rio de Janeiro. Enquanto fala sobre o
ocorrido, dá sinais concretos e sensitivos do construto citadino na contemporaneidade.
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Isso, nas ruas, nas praças, lanchonetes, farmácias, guichês, dentre tantos outros lugares
simbólicos que falam da constituição da cidade.
Sujeito e cidade estão imbricados nesse processo constitutivo, configurando uma
via de mão dupla, na qual o sujeito é constituído pela cidade e a cidade é constituída
pelo sujeito, logo, a memória da cidade perpassa pela memória do sujeito citadino, do
mesmo modo, em que a memória do sujeito é nutrida pela memória da cidade.
O desapego a toda e qualquer forma de fixidez, de passado e de memória é bem
justificado pela inquietude e pela pressa do sujeito urbano; aspectos que também são
representados em Hotel Atlântico:
Uma contagem regressiva estava em curso, eu precisava ir. Sabia que dentro
de mim eu represava um desespero porque daqui há pouco eu precisa ir.
Recorrer a alguém seria o mesmo que ficar, e eu precisava ir. Ali, parado à
porta do hotel eu sentia uma vertigem. Uma névoa na vista, me faltava o
ar...Mas eu precisava ir” (NOLL, 2004, pp.13,19) [grifo nosso]
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia da Letras, 1995.
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Em The Empire Writes Back, Bill Ashcroft diz que ”mais de um três quartos das
pessoas que vivem no mundo hoje tem suas vidas moldadas pela experiência do
colonialismo”1. Tal afirmação ilustra a teoria benjaminiana de relações entre
experiência e modo de produção com vistas à inegável influência que a segunda exerce
sobre a primeira. Isto posto, o pós-colonialismo se coloca como fértil chave de leitura
para a análise das relações entre literatura e sociedade das jovens nações de Angola e
Moçambique.
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A dúvida da personagem nos ilustra uma mudança nos paradigmas daquilo que
deve ser contado. O escritor, a procura de um romance para escrever, decide por não
contar a história do herói nacional e vai perpetuar em sua narrativa as histórias dos
desencontros amorosos da moçambicana Carla Motau. Em sua preferência pelo pessoal,
intimista e subjetivo Nelson Saúte ultrapassa a fronteira da literatura que busca a
formação de uma consciência nacional e caminha pelas movediças fronteiras das
identidades culturais ao preferir a mulher ao mito. O mesmo se processa nos outros
contos do livro nos quais, através das mortes e dos doces funerais, somos introduzidos
às pacatas e duras rotinas de moçambicanos como vovó Mafaduco, a Menida dos
Prazos, Gracioza e tantas outras. Histórias moldadas pela experiência da guerra civil que
transforma a morte na experiência dominante, aglutinadora na qual todos se reconhecem
em torno da qual tudo gira. As personagens de Nelson Saúte constituem assim um
mosaico de diferentes indivíduos em suas facetas mais subjetivas: mulheres estéreis,
apaixonadas e doces ao lado de homens calados, espertos, dedicados. O universo de O
rios dos bons sinais traz, na simplicidade das personagens, a despretensão das grandes
narrativas e o maravilhoso do trivial.
O que encontramos nas obras de ambos autores evidencia, portanto, o processo
de formação identitária em marcha nas literaturas de Angola e Moçambique na medida
em que somos brindados com personagens múltiplos e únicos em suas especificidades,
carentes de voz na sua subjetividade e de representação em sua relação com o mundo
que os cerca, mundo no qual os desafios giram agora em torno de um “eu”e um “outro”
da mesma nação.
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REFERÊNCIAS
ASHCROFT, Bill et all (org.) The Empire writes back: theory and practice in post-
colonial literatures. London/New York: Routledge, 1989.
ASHCROFT, Bill et all (org.) The Post-Colonial Studies Reader. London/New York:
Routledge, 2006.
NOTAS
1
ASHCROFT, 2005, p. 1
2
HALL, 2003, p.95-123
3
ASHCROFT, 2005, p. 2
4
EAGLETON, 1998, p.7
5
EAGLETON, 2005, p. 25
6
ASHCROFT, 2006, p. 116
7
ANDERSON, 1983, p. 15
8
CHAVES, 1999, p. 30
9
HALL, 2006, p.59
10
HALL, 2006, p.12-13
11
MELO, 1998, p.46
12
MELO, 1999, p.82-83
13
SAÚTE, 2008, p.95
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*
Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade de São
Paulo (USP) e bolsista FAPESP. E-mail: erica.antunes@gmail.com
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patrilinear que a relegou a uma condição ainda pior, a de duplamente colonizada, pois,
conforme afirma Thomas Bonnici, a ideologia subjacente consistia “na junção das
noções metrópole e patriarcalismo, que estavam empenhadas em impor a civilização
européia ao resto do mundo” (2005, p. 229).
Consideradas, portanto, pelo discurso estereotipado, fracas, sensíveis, delicadas
e inadequadas para o trabalho porque “incapazes de entender certos assuntos, de tomar
decisões sérias” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 30), as mulheres foram equiparadas às
crianças e, sob um falso manto protetor, mantidas longe da esfera pública, agora um
privilégio masculino. Conseqüentemente, o seu papel econômico se tornou irrelevante e
as tarefas domésticas passaram a ser vistas como um não-trabalho, reforçando a
condição de subalternidade e provocando o apagamento feminino do meio social: elas
não teriam direito a salário e a qualquer vantagem laborativa (férias, descanso semanal,
aposentadoria) e sua atuação, limitada ao âmbito familiar, seria quase sempre isolada,
desprovida da cooperação do marido ou dos filhos, o que as levaria, na dicção de Maria
Lúcia Rocha-Coutinho, “a ser e a viver para os outros e não para si mesmas” (1994, p.
33), negando-se como pessoas e cidadãs.
Trata-se de uma “naturalização” da desigualdade entre os gêneros, fruto da
hegemonia patriarcalista que se ampara na maternidade para justificar o lugar da mulher
como reprodutora e não (mais) como produtora na sociedade. Essa teoria biológica,
recusada no século XX, entre outros, por Simone de Beauvoir na conhecida assertiva de
que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (1980, p. 9), deu origem à referida
dicotomia dos espaços em público ou masculino e privado ou feminino, cujos reflexos
perduram até a atualidade e podem ser comprovados pelo número de mulheres que
ocupam, por exemplo, cargos de relevância nos atuais governos angolano,
moçambicano e são-tomense, correspondente a, na melhor das hipóteses, 35,9% do total
de membros2.
Entregue às funções domésticas e à criação dos filhos, a mulher ficou exposta a
um discurso determinado a inferiorizá-la e a afastá-la dos centros de poder que,
marcados pela racionalidade, inteligência e eficácia, seriam contrários à afetividade e à
intimidade tradutora do suposto mundo feminino. Esse processo de outremização (cf.
SPIVAK, 1985; 1994)3, visando o esvaziamento social da mulher, determinou também
a adoção, pela ordem do patriarcado, de um suposto valor universal (ou “essência
feminina”) que a obrigou a se manter confinada, silenciada e sempre à margem da
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História, nitidamente dominada pelo setor público e, portanto, pelos homens, que
tinham – e, de certa forma, continuam tendo – a hegemonia.
Os primeiros poemas de Alda Lara, ao que tudo indica, foram escritos em 1948,
ano em que, ingressando na Faculdade de Medicina de Lisboa, já tinha planos de
retornar a Angola para “realizar uma vasta acção social” e “organizar postos de
Assistência gratuitos, cursos de puericultura e informação sanitária para as mulheres
indígenas” (ERVEDOSA, 1974, p. 68). Essa preocupação social, se por um lado é
louvável, pelo outro se mostra perpassada por alguns equívocos ideológicos, como os
constantes de sua palestra intitulada “Os colonizadores do século XX”, que, publicada
no primeiro número da Mensagem, em 1951, e com o propósito de dar as boas-vindas
aos novos estudantes, imagina-os de volta a Angola, após a conclusão dos estudos,
casados com moças da metrópole que seriam suas “auxiliares” na promoção de uma
“maior civilização” dos “criados negros” (LARA, 1996, p. 8). Para Alda, portanto, o
fato colonial é não só incontornável como quase oportuno, de modo que não é de se
espantar que, no mesmo texto, ela afirme que o papel das “raparigas africanas embora
sendo importante não é primordial como o vosso”, cabendo àquelas a tarefa de
acompanhar seus maridos, pois “em casos de domínio alguém tem que ser dominador, e
as raparigas, neste caso, são quem se submete” (LARA, 1996, p. 8).
Nesse momento histórico – ou talvez por causa dele –, marcado pelo início da
preocupação nacionalista que, alguns anos depois, em 1961, faria eclodir o processo de
luta pela independência angolana, Alda Lara parece acatar a idéia da subalternidade
feminina, vendo como características próprias ou naturais da mulher a gerência e/ou
execução dos afazeres domésticos, a criação e educação dos filhos e até mesmo a
satisfação das vontades do marido, iluminando, portanto, a teoria biológica que Simone
de Beauvoir, em O segundo sexo, combatia furiosamente nessa mesma época. Mas antes
de refutarmos por completo o pensamento de Alda Lara, devemos considerar as
conjunturas sócio-econômicas e políticas que norteavam a vida em Angola nos anos 40
e 50, como, por exemplo, o alto índice de analfabetismo da população (estimado em
mais de 95%)4 e a submissão dos colonizados ao trabalho forçado – o chamado
“contrato” – para atender as necessidades da metrópole, sem falar nas precárias
condições de moradia, saúde e alimentação. Todos esses aspectos, somados à
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imposição, por parte dos colonizadores, de uma cultura eurocêntrica regida pelo
patriarcado, se não justificam, pelo menos suavizam as palavras da autora na referida
palestra de boas-vindas dedicada aos estudantes africanos que chegavam a Lisboa.
Assim, herdeira de seu tempo, Alda Lara revela, em sua produção poética, o
gosto pela forma fixa, metrificada e rimada, que aparece com alguma freqüência ao
longo de sua obra, sempre tematicamente imersa no cotidiano, valorizando “os papéis
informais, as improvisações, a resistência das mulheres” e apreendendo o sujeito
poético “como parte do mundo” (DIAS, 1994, p. 374), daí também a preferência pelo
emprego da primeira pessoa do singular.
Presente na única obra de Alda Lara, Poemas, publicada post mortem em 1966,
o poema “Voz na encruzilhada” (LARA, s.d., p. 47-49), datado de 1952, é composto em
redondilha maior com rimas não regulares e apresenta um sujeito poético que,
acompanhado de dois amigos, chega a uma “encruzilhada” e se vê obrigado a escolher o
seu rumo.
Não é novidade que a “encruzilhada” seja o lugar onde se cruzam estradas ou
caminhos e, portanto, analogamente considerado uma espécie de centro do mundo que
leva à reflexão e à pausa, logo seguido pelo rompimento da zona de conforto e pela
necessidade de uma tomada de decisão. É por isso que, no poema, o sujeito poético se
vê, a todo instante, forçado a escolher entre dois amigos – um que tinha bom vinho e
seguia para o Norte e outro que levava bom pão e ia para o Sul –, situação contraposta à
união representada pelo “caminho/ muito direito e relvado”, cuja metáfora maior é a
medalha dada pela “Mãe”, “uma só para os três”. Os signos “medalha” e “Mãe” chegam
a se confundir pela metonímia se considerados sob o prisma da união, caracterizando-se,
tanto uma quanto a outra, indissolúveis, “uma só para os três”. Em tal sentido, essa
“Mãe”, grafada com a maiúscula alegorizante, assume um valor absoluto, transcendente,
pois a figura materna é associada à fecundidade da terra, sendo concebida como a
“mátria por oposição à pátria colonial” (ABDALA JUNIOR, 2003, p. 227). Os verbos,
no poema, oscilam entre o pretérito perfeito e o imperfeito, o que revela o interstício
entre a ação e a indeterminação reforçado pelas anáforas, pelo emprego de reticências,
pelos travessões indicativos do discurso direto e pela existência de um fio narrativo
organizado em redondilhas maiores.
Além disso, levando em conta que o sujeito poético é feminino (“liberta”,
“guiada”), o título “Voz na encruzilhada” se torna bastante significativo, à medida que
representa o rompimento da tradição, fruto do patriarcado e do fato colonial, para
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instaurar um novo tempo, delineado pela construção de um sujeito cuja pertença é social
– ele deixa de ser objeto para se tornar parte do mundo – e que se torna capaz de
sustentar uma vontade própria, mesmo que esta chegue à beira de uma letargia e se
apresente como uma não-ação (“não disse nada”).
Nesse sentido, Eni Puccinelli Orlandi afirma que “o silêncio não é o vazio, ou o
sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma instância significativa. Isso nos leva à
compreensão do ‘vazio’ da linguagem como um horizonte e não como falta” (2007, p.
68). Em outras palavras, precisamos atentar para o fato de que não agir é também uma
espécie de ação, ou, melhor explicando, constitui uma ação por omissão, de modo que o
caráter volitivo continua presente mesmo quando o sujeito poético se mantém “só na
Encruzilhada”, já que neste caso a escolha é a permanência.
De qualquer forma, trata-se de uma “liberdade adiada”5, pois, ao focalizar um
espaço público (“estrada” ocupada por “soldados”) e se valer de signos como o “pão”, o
“vinho” e a “medalha” (que pode ser associada à hóstia), a mulher, neste poema,
embora já rasure o discurso católico, europeu e masculino, ainda não assume o tom
cotidiano que caracteriza o universo feminino, mantendo-se “liberta” e, paradoxalmente,
“guiada”.
Outro aspecto a ser observado é que a chegada à “Encruzilhada” – escrita
também com a maiúscula alegorizante – deu-se “pela boca da noite”, mais um símbolo
de passagem que pode ser tomado como positivo ou negativo, conforme seja visto como
a preparação para o dia (a reconstrução da própria vida) ou como a fermentação do vir a
ser (as trevas e, por via de conseqüência, a morte).
Ao contrário do sujeito poético, os dois amigos já tinham uma noção do caminho
a seguir, mas só o fizeram quando “vieram os soldados/ de ambos os lados da estrada”,
o que de alguma forma reitera a inércia do sujeito poético na tomada de decisões.
Quanto aos soldados, podemos pensá-los como militares ou como seguidores de uma
causa – quem sabe um prelúdio dos partidos políticos que se formariam em Angola
alguns anos depois –, já com um posicionamento notório. Com a partida dos amigos,
um para o Norte e outro para o Sul, o sujeito poético, permanecendo “só na
Encruzilhada”, acabou por adotar a si mesmo como um terceiro e próprio lado, o de
guardião da amizade, de modo que ficaram sob os seus cuidados o “cantil do vinho”, o
“saco de pão” e a “medalha/ que não podia partir/ e era uma só para os três”. No
entanto, porque desprovido de partidários, esse ponto de interseção é bastante frágil e,
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assim, alvo certo de ataques, inclusive dos próprios amigos, que, ao seguirem para o
Norte ou para o Sul, filiaram-se a duas correntes ideológicas antagônicas.
Nessa senda, o tiroteio noturno que, advindo “de ambos os lados da estrada”,
deu cabo do sujeito poético logo que “a manhã rompeu”, pode ser tomado em seus dois
aspectos: o primeiro como a morte física propriamente dita – neste caso, o
transcendental se apropria do poema, guiando-o até o seu desfecho – e o segundo como
a morte simbólica da amizade e, sem dúvida, da memória, materializada pela “bala”
traiçoeira que “prostrou” o sujeito poético, pelo “cantil do vinho/ todo partido e
tombado” e pelo “saco do pão branquinho (...) do outro lado, caído”, enquanto a
“medalha inteira,/ - única inteira para os três” jazia “tombada” sobre seu peito.
Felizmente, e contrariando as expectativas, os dois versos finais da
antepenúltima e as duas últimas estrofes resgatam a esperança da manutenção da
unidade – quiçá tocantes à igualdade, à nacionalidade e à identidade – em
concomitância ao resgate do sujeito poético pelos amigos: “Vieram ambos [o do Norte e
o do Sul] à estrada”. Se a morte física se configura, a simbólica não, pois os laços
afetivos e a memória são preservados pelo gestual dos amigos que se reúnem na
tentativa de salvar o sujeito poético. Este, por sua vez, embora fisicamente não mais
sentisse nada “porque já tinha partido”, “andava agora feliz/ pelos caminhos sem dono,/
pelas estradas sem fim” graças à amizade comprovada e resistente às diversidades
ideológicas de cada um.
A imagem da encruzilhada, neste poema, conduz a um encontro com os
“outros”, sejam eles exteriores, como os dois amigos do sujeito poético, ou interiores,
como a decisão de não tomar partido e, com isso, descobrir uma terceira via chamada
autoconhecimento. Tal posição caracteriza, como afirmamos há pouco, uma rasura ao
discurso masculino que preludia a assunção de uma liberdade no universo feminino, já
que “para falar, o sujeito tem necessidade de silêncio, um silêncio que é fundamento
necessário ao sentido e que ele reinstaura falando” (ORLANDI, 2007, p. 69). Assim,
embora o sujeito poético tenha se mantido em silêncio ao longo de todo o poema, não
há dúvida acerca da iminência de sua voz, como comprova o título “Voz na
encruzilhada”. Trata-se de uma voz que fala pela via do silêncio.
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Nascida em 1926, esta poeta moçambicana herdou do pai, ainda em tenra idade,
já que foi alfabetizada entre os quatro e cinco anos, o gosto pela leitura. Aos oito anos,
com a morte do pai, um alto funcionário público, a família teve de se adaptar à nova
realidade financeira, mudando-se de residência e transferindo-se os filhos para a escola
pública. Noémia de Sousa, assim, começou a enxergar e a experimentar na pele as
injustiças sociais, resultando daí a sua “tomada de consciência”.
Alguns anos depois, a poeta concluiu o curso comercial na Escola Técnica e,
trabalhando no jornal O brado africano, dirigiu uma página feminina, embora a
transformasse numa “página para toda a gente” (LABAN, 1998, p. 283) por discordar
do termo. Noémia participou também da Associação Africana e, por suas atividades
nela, foi perseguida pela PIDE, o que consistiu num dos motivos – o outro era a vontade
de conhecer a família – para sua ida a Lisboa, no final de 1951, onde conheceu, entre
outros, Alda Espírito Santo, com quem apresentou trabalhos sobre música e dança no
Centro de Estudos Africanos.
Essa preocupação com as injustiças sociais daria lugar a uma poesia de contorno
social e voltada para a dura vivência dos moçambicanos no período da pré-
independência. Na década de 1950, a preocupação acerca do papel da mulher na
sociedade também já era uma característica da produção literária de Noémia de Sousa,
como podemos observar no poema “Apelo” (2001, p. 95), que, datado de 21 de maio de
1951, apresenta as agruras das mulheres que saíam do subúrbio para a cidade a fim de
vender carvão e, para tanto, apregoavam em ronga: “Macala”.
O poema é construído a partir de uma seqüência narrativa marcada pelo
prosaísmo e pelo emprego de travessões enunciadores da venda do carvão pela “irmã do
mato”, cuja voz “cansada” é estrangulada e fuzilada por alguém que o sujeito poético
não determina, mas que insinua estar ligado à repetitiva labuta diária e, principalmente,
à situação vivenciada pela população durante a vigência do período colonial. Nesse
sentido, Noémia de Sousa, mais uma vez, dá vazão aos papéis informais
desempenhados por sujeitos que, em conseqüência de sua condição social, até então
estavam emudecidos, de modo que, assim agindo, provoca a demolição do “pensamento
normativo, metafísico, fundante” (DIAS, 1998, p. 252).
Em “Macala”, uma dose de humanitarismo permeia o olhar do sujeito poético,
que, notando a ausência da mulher que vendia carvão, entrevê nas flores roxas da
seringueira “um mau presságio”: onde estaria ela, “com seus filhos eternos/ (um nas
costas, outro no ventre)”? Na época em que foi escrito o poema, a taxa de fertilidade era
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muito superior à atual, que corresponde a 5,3 filhos por mulher. Do pensamento acerca
do sumiço da mulher parte o pedido à “África, minha mãe-terra” para que não abandone
aquela “irmã heróica” e, portanto, merecedora de ser perpetuada “no monumento
glorioso dos teus [da mãe África] braços”.
Assim, a denúncia da situação da mulher que vendia carvão para sobreviver
determina o seu status perante o sujeito poético; este, por sua vez, admira-a pela força e
pela persistência da voz que, mesmo cansada e reduzida a um “sussurro rouco,/
desesperado e trágico”, nunca se rendeu aos desmandos da situação colonial, ou seja,
mesmo estrangulada ou fuzilada, jamais seria silenciada, posto ter seu lugar garantido
na memória africana ou, mais especificamente, moçambicana.
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silenciados ou inferiorizados pelo sistema colonial, como podemos ver no poema “Pela
vez primeira” (1978, p. 141).
O fundo histórico deste poema está atrelado às manobras políticas do governador
Carlos Gorgulho, que, em 1947, desejoso de atrair a mão-de-obra local para laborar nas
roças sob o regime do contrato, aumentou o imposto individual e proibiu a produção e o
comércio do vinho de palma, retirando das sanguês – mulheres trajadas de acordo com a
tradição – a sua base econômica. Em entrevista a Michel Laban, a poeta explica:
REFERÊNCIAS
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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Trad. Sérgio Milliet.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
LABAN, Michel. Encontro com Noémia de Sousa. In: Moçambique. Encontro com
escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1998, v. 1, p. 243-346.
__________. Encontro com Alda Espírito Santo. In: São Tomé e Príncipe. Encontro
com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2002, v. 1, p. 61-104.
MOURÃO, Fernando. “Memória dos anos cinqüenta”. In: Mensagem. Lisboa: Editora
ACEI, 1997, p. 125.
ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira
nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
SANTO, Alda Espírito. É nosso o solo sagrado da terra. Lisboa: Ulmeiro, 1978.
SPIVAK, Gayatri. “The Rani of Simur”. In BARKER, Francis (ed.). Europe and its
Others. Vol. 1. Proceedings of the Essex Conference on the Sociology of Literature.
Colchester: University of Essex Press, 1985.
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NOTAS:
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Escolhi o poema Trova do vento que passa, do poeta português Manuel Alegre,
para abrir esse trabalho, considerando a sua referência a um período muito particular da
história de Portugal: a ditadura salazarista. Os versos “Pergunto à gente que passa/por
que vai de olhos no chão” parecem aludir à atmosfera particular e sombria que o regime
de Salazar impôs à sociedade portuguesa na primeira metade do século XX. Em meio à
obscuridade fascista, num país onde o silêncio imperava, o Neo-Realismo surgiu como
1
Mestrando em Estudos Literários – PUC/RJ
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um movimento artístico que buscou fazer uma literatura consciente e que reagisse à
atmosfera sufocante que pairava sobre Portugal.
O Neo-realismo português encontrou os seus temas principais na dinâmica
histórica e social da luta de classes, exigindo à arte e aos artistas um compromisso e
uma militância que eram o oposto da teoria da “arte pela arte”. O artista deveria ser
uma força ativa, considerando o homem como um ser social, afastando-se,
consequentemente, do subjetivismo. A identidade do movimento neo-realista se
encontra na tensão entre as concepções artísticas e ideológicas, que Rosa Maria Martelo
sintetiza como um movimento que “passa fundamentalmente pela discussão do papel
social do artista e dos modos de expressar, em arte, uma nova posição ideológica”.3 Não
se pretende aqui discutir a polêmica gerada em torno da arte neo-realista, como a de que
havia uma negação da esfera estética e uma subjugação do fenômeno artístico e literário
a propósitos políticos e ideológicos que mergulharam muitos dos neo-realistas num mar
de equívocos, pois o que nos interessa aqui é estabelecer a relação entre a poesia de
Carlos de Oliveira e o mundo, entre a voz do poeta - que é coletiva e portadora de uma
eficácia simbólica de conscientização do povo para modificar a obscura realidade - e
seus destinatários.
Carlos de Oliveira foi um escritor profundamente comprometido com a
consciência e a luta de classes, combinando a preocupação de uma intervenção social
com uma reflexão sobre a escrita no processo de sua produção. Com sua obra,
pretendeu arrancar a sociedade portuguesa do seu estado de sono, de sua inércia moral
para um questionamento, para um repensar da história de Portugal, que se fazia
fundamental na primeira metade do século XX. Dessa forma, pretendemos analisar o
posicionamento crítico e político do intelectual e escritor português Carlos de Oliveira e
a sua articulação dentro do movimento neo-realista português, movimento artístico e
cultural indissoluvelmente ligado à luta pela liberdade e à democracia e contra a
ditadura fascista em Portugal. Escolhemos, para tanto, alguns poemas publicados nos
livros Turismo (1942), Mãe Pobre (1945) e Colheita Perdida (1948), de maneira que
possamos examinar o modo como o escritor Carlos de Oliveira pôs sua palavra à
disposição da luta social, em prol de um projeto histórico que acreditava na
transformação social de um país cerceado e dominado pela ditadura salazarista. Nesse
contexto, a poesia de Carlos de Oliveira funciona como um instrumento de denúncia a
serviço de um projeto político libertário.
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1587
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I
Terra
sem uma gota
de céu.
II
Tão pequenas
a infância, a terra.
Com tão pouco
mistério.
Chamo às estrelas
rosas.
E a terra, a infância,
crescem,
no seu jardim
aéreo.
III
Transmutação
do sol em oiro.
Cai em gotas,
das folhas,
a manhã deslumbrada.
IV
Chamo
a cada ramo
de árvore
uma asa.
E as árvores voam.
É o outro lado
da magia.
V
E a nuvem
no céu há tantas horas,
água suspensa
porque eu quis,
desmorona-se e cai.
VI
Céu
sem uma gota
de terra.7
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1
Tosca e rude poesia,
meus versos plebeus
são corações fechados,
trágico peso de palavras
como um descer da noite
aos descampados.
Ó noite ocidental,
que outra voz nos consente
a solidão?
Cingidos de desprezo,
somos os humilhados
cristos desta paixão.
2
Olhos do povo que cismais chorando,
olhos turvos de outrora,
chegai-vos ao calor que irá secando
o coração – da chuva que em nós chora.
3
Quem soprou na Gândara
a última chama?
Se quiseres, ó morte,
abro-te os lençóis
e dou-te a minha cama.
Caminheiro cansado
sem nenhum bordão,
onde houver um sonho
para ser sonhado
está meu coração.
4
Canta na noite, sentimento da terra
ou morreste, flor estranha?
Há tanto que chove e nós sem lenha,
sem paz e sem guerra.
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se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.
Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.
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REFERÊNCIAS
GUSMÃO, Manuel de. A poesia de Carlos de Oliveira. Lisboa: Seara Nova, 1981.
OLIVEIRA, Carlos de. “Infância”. Turismo. In: Trabalho Poético. Lisboa: Caminho,
1992.
PITA, António Pedro. “A árvore e o espelho”. In: Encontro Neo-realista. Vila Franca
de Xira: Museu do Neo-realismo/Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1997.
1592
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NOTAS
1
ALEGRE, 1998, p.17.
2
MARTELO, 1998, p.83.
3
Idem, p.96.
4
Idem, p.201.
5
GUSMÃO, 1981, p.27.
6
OLIVEIRA, 1992, p.17-22.
7
MARTELO, 1998, p.201.
8
Idem, p.208.
9
Idem, p. 212.
10
Idem, p.226.
11
GUSMÃO, 1981, p.30.
12
MARTELO, 1998, p.231.
1593
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INTRODUÇÃO
*
Mestrando em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas. São José do Rio Preto – SP – Brasil. Orientadora: Profª. Drª. Sônia
Helena de Oliveira Raymundo Piteri. Bolsista FAPESP.
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“história do crime” propriamente dita; o que temos é o seu resultado, ou seja, não
encontramos imediatamente narrado os acontecimentos que levaram à morte do Major
Dantas Castro, mas nos é apresentado o seu corpo. Nesse sentido há que se notar que o
romance cardoseano usa um procedimento semelhante ao de um Van Dine, por
exemplo. Vejamos como se inicia a obra de Cardoso Pires2:
CADÁVER DE UM DESCONHECIDO
encontrado na Praia do Mastro em 3-4-1960:
Odell Margaret
Rua Setenta e Um, 184, Oeste. Assassinato. Estrangulada por volta das vinte
e três horas. Apartamento saqueado. Jóias roubadas. Corpo descoberto por
Amy Gibson, camareira.
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O Paris de cabo era ali amarrado à Casa da Vereda, ele que não pensasse
escapar. Ali. Paris-sur-Tage, estúpida de graça. E mais uma vez era
impressionante a clareza com que expunha, sentia-se nele a tal felicidade
dramática de que falava Mena há bocado.
(Felicidade dramática, ela disse isso? Elias aperta o olho amolecido neste
embalar do conto de Mena.6
A dúvida do detetive não recai mais sobre uma ação, ou sobre as circunstâncias
que levaram a ela. No fragmento acima, o que está em jogo é a própria narrativa: a
pergunta não é acerca da veracidade de um acontecimento, mas sobre o que foi contado
e como foi. Note-se como o cerne do questionamento passa do nível fenomenológico
para o representativo e como o foco deixa de ser a verdade dos acontecimentos e passa a
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ser a da narração. Essa mudança parece inserir uma profunda descrença na noção de
“verdade” na narrativa cardoseana, pois, o que se questiona são as fontes, os
depoimentos, dos quais tanto o detetive quanto o narrador se utilizam. Tal contestação
torna-se ainda mais relevante se levarmos em conta que se trata de um momento no qual
o narrador invade a subjetividade de Elias, revelando seus pensamentos, pois, fica
patente que o próprio detetive vê todos os depoimentos e provas como narrativas. A
postura do próprio narrador parece apontar para o mesmo sentido ao se referir às
declarações de Mena como “conto”, termo utilizado, principalmente, para textos
ficcionais ou “enganosos”.
No que se refere ao terceiro modo de desestabilização da noção de “verdade”,
que, segundo afirmamos, consiste numa imerção do relato do narrador/autor no mar de
dúvidas e desconfianças que a sua própria narrativa constrói, podemos percebê-lo no
fragmento abaixo:
Elias espalma a mão para apreciar a unha gigante. Roda-a à contraluz como
se fosse um diamante, mira-a e admira-a e vai memorando que só as
intelectuais ou as camponesas é que deixam crescer assim os pêlos dos
sovacos em liberdade, não era a primeira vez que observava isso. Mas na
jovem dos pavões havia uma indiferença humilhadora nesse à-vontade com
que punha à vista aquelas emanações secretas do corpo. Haveria?7
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conhecedor de toda a verdade sobre o que narra. Constrói-se, desse modo, uma obra que
parece desconfiar de si mesma e da autoridade do narrador.
Nesse sentido, Balada da Praia dos Cães afasta-se consideravelmente dos
romances policiais clássicos em que a narração se apresenta como uma verdade
incontestável devido aos dotes superiores de um detetive espetacular. Poder-se-á dizer
que esse é um dos elementos que o relato de Cardoso Pires se distingue do romance
enigma, pois neste nota-se um teor autoritário, uma vez que se apresenta como um
discurso autorizado por um ser superior que lhe empresta um valor de verdade. Essa
diferença se explicita em alguns procedimentos narrativos adotados na obra cardoseana,
tais como o recurso à focalização interna, à variação de pontos de vista e ao jogo com
diversas vozes que contribuem para uma
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companheiro tem realmente acesso a todos os dados que o detetive, ele não tem,
contudo, acesso à sua mente, aos seus pensamentos e, portanto, não tem o mesmo
conhecimento que este. Trata-se, aqui, não de uma diferença de informações, mas de
uma diferença de interpretações e que é fundamental para a construção da intriga no
romance policial.
Por meio desses recursos narrativos, segundo Colmeiro13, instaura-se a ilusão de
que leitor e detetive compartilham as mesmas informações, o que, de fato, não acontece,
pois o leitor não segue a narrativa do detetive, mas a do narrador e “su investigación por
definición no puede ser igual a la del investigador ya que la perspectiva del investigador
y la que el narrador ofrece al lector nunca coinciden plenamente en la novela policiaca”.
Instigado por esse engodo, o leitor do romance policial insere-se num jogo em
que tenta desvendar, antes do detetive, o enigma, o crime presente na história. Pode-se
dizer que esse é outro elemento que Balada da Praia dos Cães subverte, pois no início
dessa narrativa já se revela qual é a resolução do detetive: “E estes são os três suspeitos,
os que mataram e levaram o segredo com eles.”14. Note-se como, numa frase, Mena,
Fontenova e Barroca passam de suspeitos a criminosos. Temos, portanto, uma
antecipação dos resultados da detecção de Elias, mas que não redunda em um
desinteresse por parte do leitor, porque, no romance, a “história oficial” é apenas uma
das muitas versões possíveis.
De maneira semelhante ao que ocorre no gênero policial, o leitor do romance de
Cardoso Pires é inserido numa narrativa que exige dele uma postura ativa, mas, ao
contrário daquele, o leitor deste não busca desvendar o crime antes do detetive, mas
reconstruir os passos que levaram Elias a criar essa narrativa. Desse modo, poder-se-á
dizer que, enquanto os romances policiais tradicionais se estruturam em torno da
resolução do crime, a obra cardoseana tem sua base num desdobramento vertiginoso do
processo de investigação que se converte numa espiral de investigações. Isso porque,
para além da detecção promovida pelo detetive, tem-se a que é realizada pelo leitor, e
mais, encontramos ainda a construção de um romance que pode ser lido como uma
pesquisa dos limites do gênero policial. Sob uma outra perspectiva, visualiza-se,
também, uma investigação da própria sociedade portuguesa da década de 60 e, por
extensão, das sociedades do terror como um todo.
Essa investigação, segundo nos parece, tem como um de seus elementos
fundamentais a focalização do personagem Elias Santana, pois é a partir da perquirição
da investigação do detetive que se revela o Estado Português durante o salazarismo.
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Nesse sentido, ganha relevo a “excessiva recolha de detalhes [...] [que] revela
diretamente o tipo de preocupação dos agentes de polícia: isto é, a insegurança e o medo
de perder o controle dos fatos”15. Essa é a imagem que vai se desenhando no desenrolar
do texto, a de polícias (PIDE e PJ) que se caracterizam por uma constante vigilância,
que não respeitam os direitos individuais, uma polícia violenta e corrupta. Nos termos
de Piteri16, paulatinamente “as arbitrariedades desse organismo repressivo [a Pide] do
governo salazarista: violação de correspondência, serviço de escuta, rede de
informantes, métodos de tortura, infiltração de agentes entre presos políticos.”
A constante referência aos quadros com o retrato de Salazar que permeiam a
narrativa é outro aspecto sintomático da construção de um Portugal sobre constante
vigilância, pois, segundo Pereira17, “representa sua [de Salazar] onipresença e a
onipotência dos que em seu nome exercem o poder hipertrofiado dos regimes de
exceção que, entretanto, se pretende velado sob uma aparência de paz e normalidade”.
Em termos de relação com o romance policial deve-se destacar ainda um
deslocamento da noção de observação, característica prototípica do detetive clássico,
para a de vigilância. Num caso, temos um método de investigação, em outro, um meio
de controle. Controle da vida do indivíduo, mas também dos discursos por um regime
que, segundo Margato18, impôs, por mais de quatro décadas a sua versão homogênea
dos fatos. Nesse sentido cabe repetir que o próprio romance coloca-se em tensão com o
discurso oficial, pois percebe-se uma oposição evidente entre um discurso autoritário (o
do Estado) e um plural (a narrativa). Pluralidade que se evidencia até pelo fato de incluir
o unívoco, ou seja, no romance há espaço também para o discurso autoritário.
Constrói-se, desse modo, uma imagem de uma sociedade oprimida, com medo.
Essa imagem surge principalmente por meio da construção de um “Portugal em
miniatura” na Casa da Vereda, mas também pelo desnudamento das arbitrariedades do
governo salazarista, em especial, em relação à violência e à quebra dos direitos
individuais; destaca-se também a presença de uma mentalidade marialva, machista,
ainda fortemente atuante na sociedade portuguesa, um dos elementos que favorecem a
explicação de uma certa “passividade” em relação a esse regime ditatorial.
Ressalta-se, assim, como quer Petrov19, como os conflitos que se instauram no
texto estão interligados com o “contexto político e social existente em Portugal nos anos
60”. Não é de se estranhar, portanto, que o próprio motivo do crime esteja relacionado
com uma questão social. Esse é, inclusive, um dos aspectos do romance policial clássico
subvertido por Balada da Praia dos Cães, pois, segundo Cabral20, naquelas narrativas
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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PETROV, P. O realismo na ficção de José Cardoso Pires e Rubem Braga. 1996, 427f.
Tese (Doutorado em Literatura Comparada Portugal e Brasil) – Faculdade de Letras,
Universidade de Lisboa, Lisboa.
NOTAS
1
Piteri, 2001, p.2.
2
Pires, 2000, p.5.
3
Van Dine apud Todorov, 1970, p.96.
4
Pires, 2000, p. 46.
5
Pires, 2000, p.191.
6
Pires, 2000, p. 123.
7
Pires, 2000, p.117.
8
Petrov, 1996, p. 383-384.
9
Figueiredo, 2002.
10
Martin Cerezo, 2005.
11
Martin Cerezo, 2005.
12
Tacca, 1983, p.68.
13
Colmeiro, 1994, p.76-77.
14
Pires, 2000, p. 13.
15
Margato, 2007, p.164.
16
Piteri, 2001, p.10.
17
Pereira, 2005, p.259.
18
Margato, 2007, p.165.
19
Petrov, 1996, p.299.
20
Cabral, 1999, p.229.
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1 O “EXOTA”
1
Graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista, campus São José do Rio Preto
(UNESP/IBILCE)
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Franchetti, Gustavo Rubim e Daniel Pires, ajudam a redefinir o foco da análise dos
textos de Pessanha: de uma superficial análise biográfica, baseada numa espécie de
misticismo personalista, parte-se para uma lucidez interpretativa capaz de evidenciar as
complexas estruturas dos principais temas de Camilo Pessanha, tanto em sua (quase
desconhecida) prosa quanto em sua poesia.
É preciso ingressar num suposto ethos do exotismo para entendê-lo como forma
de enfrentamento dos problemas culturais, com o respaldo de uma “arqueogenealogia”
(à maneira de Foucault) do orientalismo de Pessanha. Gustavo Rubim propõe, em seu
artigo Pessanha – Exota um cotejo com outros ensaios e autores. Citando o romancista
e sinólogo francês Victor Segalen, Rubim ressalta a alteridade como exigência dessa
ótica que constitui o que o francês denomina “estética do diverso”, que pode ser
traduzida na máxima “à sentir vivement la Chine, je n’ai jamais éprouvé le désir d’être
chinois”: “para sentir vivamente a China, nunca experimentei o desejo de ser chinês” 2.
Por esta via, tem-se que o outro é a medida segundo a qual será erigida uma postura
crítica, o que implica dizer que o estrangeiro indelevelmente o será, e tal “disfarce”
engendra um olhar atento ao que se passa nesta terra para sempre estranha. A descoberta
reside, pois, na estranheza; da mesma forma, os padrões de comparação são
estabelecidos conforme a vivência na terra natal. O exotismo se alimenta desse impasse
de “estar não estando”, paradoxalmente exigindo do sujeito uma identidade que lhe é
negada àquele momento e que subsiste somente no plano da memória.
A prosa de Camilo Pessanha nunca se refere à China de modo romanesco, e
jamais prova, ao contrário de patrícios como Wenceslau de Morais, o desejo de ser
oriental. Em certos trechos suas impressões deixam mesmo entrever uma atitude de
distanciamento hostil. Com efeito, Portugal nunca deixa de ser o ponto fundamental ao
qual o autor sempre retorna:
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2 OS TEXTOS CHINESES
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Apesar de ter escrito severas críticas a certos usos da arte chinesa, Camilo
Pessanha foi, bem à moda oriental, um disciplinado aprendiz dos costumes de Macau,
seu rincão. Parece-nos válido supor que os pólos da repulsa e do encantamento se
punham de modo intenso na vida cotidiana deste “sino-português” nas ruas sujas da
colônia, e dessa dúplice via surgiram fascínio e desprezo, do mesmo modo como é
postulado o ensinamento secular do convívio entre opostos manifesto no yin-yang. A
escrita de temas chineses em Camilo Pessanha é constituída dessa dialética, e é tornada
limítrofe a partir da vigência desse providencial exílio, desse necessário desdobramento
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Á GUISA DE CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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NOTAS
1
Franchetti, 2008, p. 10
2
Ségalen, apud Rubim, n/d.
3
Pessanha, 1988, p. 183.
4
Ségalen, apud Rubim, n/d.
5
Pessanha, 1988, pp. 121-149.
6
O já mencionado “Livro das Transformações”, de Confúcio.
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Mestranda em Letras/Estudos de Literatura Portuguesa da PUC-Rio e bolsista do
CNPq
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Hoje, mais do que nunca quer Portugal marcar o lugar a que tem direito no
mundo, engrandecer-se e prestigiar-se, manter ciosamente as suas
independência e soberania fundamentais e cooperar internacionalmente para
a consolidação da paz universal, servindo-se para tanto do seu espírito
empreendedor, do seu gênio colonizador e da sua bondade natural que só
injustiças e violências podem alterar.v
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Se uma grande parte dos portugueses ali pudesse ir, com a maior ou menor
permanência, o amor à terra colonial, a admiração pelas suas grandes
riquezas e naturais encantos de paisagem, bem diferente da que temos visto
aqui, o desejo que nos fica de ver desenvolvidas todas essas riquezas que ali
nos chamam, para lhes darmos o nosso esforço, fazendo sempre mais e
melhor, e enfim o respeito que se impõe pela nossa soberania, era bem
melhor sentida pela Nação e teríamos na Metrópole o ambiente de justificado
e consciente entusiasmo por tudo aquilo que é nosso e nos dá razão de
existência no meio das grandes nações civilizadas.vii
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dormi todus dia todus noite com cozinhêru Gidja... Tôdo gênti fala fala...
Num está bem... xi.
-- Sô Raú, eu gosta munto sô Quêró... Us muié trata dos hómi... Faz seus
coisa... Sô Quêró é mê hómi. Us coração preto us coração branco todos é
tudo ínguá... Todos... xii
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-- É um branco.
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presenteou sua amada Tiquinha com um livro como Pedra do Feitiço e que nos deixa,
assim, uma outra pista a seguir:
Para Tiquinha querida, como prova que nunca esqueço o dia 21, que foi para
mim tão feliz que ao recordá-lo me sinto feliz de novo, e sempre radiante
pela melhor decisão da nossa vida!!! Com todo o amor do sempre e todo seu,
Luiz
REFERÊNCIAS
APPIAH, Kwame Anthony. Pendendo para o nativismo. Na casa de meu pai: A África
na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
COSTA, Ferreira da. Pedra do Feitiço: reportagens africanas vividas e escritas por
Ferreira da Costa. 7ª ed. Porto: Edição Livraria Educação Nacional, 1945.
FANON, Franz. O negro e a linguagem. In: Pele negra máscaras brancas. (Trad.
Renato da Silveira). Salvador: EDUFBA, 2008.
GALVÃO, Henrique. O velo d’oiro (novela colonial). Lisboa: Parceria António Maria
Pereira, 1931.
NOA, Francisco. Império, mito e miopia: Moçambique como invenção literária. Lisboa:
Editorial Caminho, 2006.
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NOTAS
i
Noa, 2006, p.389.
ii
Hamilton, 1980, p.163-164.
iii
Ribeiro, 2004, p.137.
iv
Matos, 2009.
v
Matos, 2009.
vi
Rego, 1945, p.3.
vii
Rego, 1945, p.3.
viii
Fanon, 2008, p. 45.
ix
Hamilton, 1980, p.154.
x
Costa, 1945, p.99.
xi
Costa, 1945, p.100.
xii
Costa, 1945, p.171.
xiii
Fanon, 2008, p.45.
xiv
Ribeiro, 2004, p.139.
xv
Galvão, 1931, p.30.
xvi
Galvão, 1931, p.112.
xvii
Galvão, 1931, p.186.
xviii
Noa, 2006, p.376.
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A ESTÓRIA
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CONFLITO DE IDENTIDADE
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ALTERIDADE
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As Mulheres do meu pai é uma narrativa com uma linguagem simples, clara e
com muitos diálogos, é uma escrita detalhada de paisagens, personagens e ambientes. A
leitura da obra possibilita um passeio pela literatura e países diversos como Brasil,
Portugal e Angola. Culturas e trânsitos de pessoas são marcantes e vivas através da
passagem dos personagens pelos três continentes: africano, europeu e americano.
A referência a clássicos da literatura brasileira é clara, o autor cita inclusive o
lugar em que Tomaz Antonio Gonzaga faleceu (a pequena ilha mágica em
Moçambique). Aspectos da literatura brasileira estão presentes como estilos, formas e
descrição de personagens. O autor deixa fatos explícitos e implícitos sobre a
aproximação com a literatura do Brasil.
A apropriação e recriação de personagens da literatura universal também estão
presentes na obra, o autor faz alusão e descrição de forma interessante e similar aos
clássicos, observe essa passagem:
Versão atual dos personagens criado por Cervantes na paisagem africana. Uma
verdadeira intertextualidade, alusão, ou mesmo, parodia textual e revelação de
conhecimento da literatura ocidental.
A música também percorre o romance e parece mesmo uma trilha sonora do
documentário sobre mulheres. Nas regiões africanas, o leitor encontra músicos e sons
que parecem ecoar apenas ao ler a obra. O autor, inclusive, compara a banda de músicos
encontrada em solo africano com a banda do Brasil de Carlinhos Brown. A música não
poderia faltar e momentos marcantes de encontros com sons e ritmos africanos foram
importantes para compreensão e mergulho na cultura africana.
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Li alguns dos livros que eles guardam no escritório, isso a que alguns
chamam literatura angolana: A vitória é certa camarada!, A poesia é uma
arma, Sábado vermelho. Panfletos políticos, escritos, o mais das vezes, com
os pés. (AGUALUSA, 2007, p. 41).
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
AGUALUSA, José Eduardo. As mulheres do meu pai. Rio de Janeiro: Língua Geral,
2007.
ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras de Solidariedade. In: De vôos e ilhas:
literatura e comunitarismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
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Ao fazermos uma breve viagem pela literatura, observamos que esta sempre foi
permeada pela visão, pelo olhar do escritor. Desde o Antigo Testamento, repleto de
descrições da criação do mundo, entre outras descrições, passando pela Ilíada e
Odisséia, de Homero, por Os Lusíadas, de Luís de Camões, A Divina Comédia, de
Dante Alighieri, seria infinita a lista de obras com descrições tão minuciosas que, ao
serem lidas, transformam-se em imagens, aproximando o leitor da história e conferindo
à mesma um impressionante realismo, e, ao mesmo tempo, transferindo a esse leitor as
sensações do autor naquele momento. É a partir dessa relação entre subjetividade e
representação imagética que nos propomos a investigar a questão da visualidade na
poesia de exílio de dois poetas do século XX: Jorge de Sena e Rui Knopfli. O primeiro,
Português de nascimento, mas desde muito cedo, um cidadão do mundo, quer como
oficial da Marinha Mercante portuguesa, sua primeira profissão, ainda jovem, e que
marcaria sua vida e ressurgiria em sua obra, quer mais tarde, como intelectual, figura de
resistência ao regime político, exilado por quase trinta anos no Brasil e nos Estados
Unidos da América até sua morte, nesse último país. Sena tem sua estréia no quadro
literário português na década de 40, através dos Cadernos de Poesia, para os quais
colaborava, primeiro, como poeta iniciante, e, mais tarde, como um dos membros do seu
corpo editorial.
Já o segundo poeta surge no cenário literário a partir da segunda metade da
década de 1950, quando, preconizando uma inevitável Guerra Colonial que se iniciaria
de fato em 1961 entre as então colônias portuguesas em África e Portugal, emergiu em
Moçambique um grupo de intelectuais e escritores com participação ativa no
movimento pró-independência daquele lugar. Ao redor da revista literária Msaho,
fundada pelo poeta e ensaísta Virgílio de Lemos, reuniam-se nomes que figuram na
1
Aluna do curso de Doutorado em Literatura Comparada da Universidade Federal Fluminense e bolsista
CNPq.
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história e na literatura do país, como José Craveirinha, Noémia de Souza, Rui Guerra e
Rui Nogar.
Moçambicano de ascendência portuguesa, durante sua vida Knopfli conheceu os
dois lados do sectarismo e do preconceito étnico-social próprios de uma sociedade
colonialista. Primeiro, por fazer parte de um extrato branco e de origem europeia, fato
que sozinho já lhe conferia status. Mais tarde, durante décadas de trabalho poético, seria
então ele, muitas vezes, o alvo de um tipo de “preconceito às avessas”, ao ver sua poesia
muitas vezes mal interpretada e rotulada como europeísta e alienante. E, dessa forma,
ao buscar a afirmação de uma africanidade, se não era, a princípio, um exilado, de
acordo com o significado etimológico da palavra, foi sempre, em seu país, um
deslocado, tendo sido sua poesia, por esse motivo, ao mesmo tempo lugar e fruto desse
exílio pessoal e político.
Talvez não sejam tão aparentes as semelhanças que nos fazem propor uma
análise comparativa da obra poética desses dois autores. Mas, em comum, ambos têm o
fato de, por motivos diversos, haverem vivenciado a experiência do exílio. Desse modo,
indagamo-nos até que ponto a poesia feita sob a vivência do exílio e a partir dela, traz
em si características comuns, criando, assim, uma espécie de “poética de exílio”. E,
além disso, como cada poeta, em seu tempo e através da sua mundividência particular
demonstra visualmente essa experiência.
Iniciemos então, pela poesia knopfliana, que, a fim de que haja uma melhor
compreensão de suas tensões internas, devemos contextualizá-la na Moçambique das
décadas de 50 a 70, momento em que a então colônia passava pelo processo de
afirmação de sua identidade. Naquele instante, o parâmetro comparativo da escrita de
Rui Knopfli era o também poeta José Craveirinha, até hoje considerado o maior nome
da poesia moçambicana, além da poetisa Noémia de Souza. Em comum, os dois
paradigmas da poesia do autor têm uma obra cuja voz é a de um Eu coletivo negro até
então marginalizada, e que traz em sua estrutura elementos de nítida recusa da cultura
europeia, como a escassez de referências à literatura portuguesa e europeia, e ênfase na
sonoridade sincopada do verso, remetendo-o a uma tradição oral que se pretendia
resgatar como símbolo da cultura africana, além da ausência de adjetivos em oposição
ao uso exacerbado de verbos de ação que apontam para uma poesia que se quer
denunciadora, como podemos observar no exemplo abaixo, de José Craveirinha:
Se me visses morrer
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por tantos séculos abafada do negro. Para tanto, a quebra com todo e qualquer
paradigma colonizador era quase obrigatória. Knopfli tornava-se, nesse momento, o
corpo de delito da literatura moçambicana.
Consciente de sua incapacidade em retratar, pela poesia, os dilemas do negro
moçambicano, o escritor optou, então, por uma poesia que, sem abrir mão do cânone
literário europeu, afirmasse a seu modo a africanidade. A africanidade, para ele, não
estava ligada à raça, mas às experiências de vida.
Exemplo do pensamento de Knopfli sobre a questão do papel dos poetas negros
na literatura moçambicana da época, no trecho abaixo, o poeta reconhece a importância
de Craveirinha e dos escritores negros na luta por melhores condições e pelo
reconhecimento da identidade moçambicana.
[...] Eu não posso assumir dores que não sinto. Eu posso reconhecer uma
injustiça social larguíssima ou uma injustiça mais que social, que é a injustiça
da situação colonial, que não direi que era criminosa, mas que era anómala –
que é uma coisa de que eu me apercebi muito cedo, na adolescência, como é
que é possível a existência das colónias, como é que há povos que têm
dependências e que governam outros povos – mas eu não posso vir falar do
ponto de vista dos injustiçados. Só do meu ponto de vista.
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Ainda de acordo com Collot, a paisagem seria uma configuração do lugar, o espaço
percebido pelo sujeito, sendo, assim, uma construção subjetiva da realidade, como
afirma no trecho abaixo:
Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
européias
e europeu me chamam.
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Já em seu primeiro livro, O País dos Outros, 1959, onde se insere o poema
acima citado, podemos observar a tensão acerca da sua nacionalidade que irá permear
toda a poética knopfliana. Aí, o país dos outros é não somente aquele do colonizador,
uma vez que Moçambique não pertencia politicamente, de fato, ao africano, habitante
original da terra, e sim, ao dominador português, mas é também o país que o poeta quer
como seu, ainda que o mesmo lhe seja negado. Senso de deslocamento que será uma
constante na obra de Rui Knopfli.
Contudo, o mesmo autor que busca uma identificação com a África em seus
poemas, segue uma tradição romântico-europeia de exaltação nacionalista através dessa
mesma contraposição de valores. A mesma estratégia pode ser observada em “Canção
do Exílio”, de Gonçalves Dias, exemplo de poesia romântica da literatura brasileira.
Dessa forma, Knopfli insere-se, na mesma tradição literária europeia do poeta brasileiro.
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o que nos reporta novamente à questão dos valores ideológico-sociais desejados naquele
momento.
Podemos notar que, ao imprimir valores éticos e morais à paisagem africana e,
como paradigma à europeia, o escritor promove uma reelaboração do espaço e da
paisagem pelo seu imaginário e pela sua escritura. Assim, ao mesmo tempo em que o
poeta reconstroi uma imagem do mundo, constroi uma imagem do próprio eu,
evidenciando seu ponto de vista particular.
Outra estratégia discursiva é observada em Lenda, de A Ilha de Próspero (1972),
como forma de ratificação de uma africanidade, o que vem afirmar novamente a
existência de um hibridismo cultural e de um senso de deslocamento do poeta.
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Na hora
da aurora,
gemem ventos
fluem surdos rios.
Cerra os olhos,
Cala na garganta
a voz,
acorda audível
o pensamento:
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[...]
mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só ou várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.
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REFERÊNCIAS
MONTEIRO, Fátima. O País dos Outros: A poesia de Rui Knopfli. Lisboa: IN–CM,
2003.
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Este texto tem como fim o estudo do uso de composições latinas antigas em
língua vulgar portuguesa compostas na corte de Avis no século XV. Para tanto, nossas
análises baseiam-se em fontes quatrocentistas tais como: cartas, prólogos de traduções e
as próprias obras traduzidas, principalmente os textos morais de Cícero, autor latino do
século I a. C. tido por modelo de eloquência e virtude. Tivemos o cuidado de observar
os costumes retóricos de escrita verossímeis ao tempo da composição dos textos
analisados. Nesse sentido, os conceitos e a teoria mobilizados provêm daquelas
doutrinas retóricas antigas que possuem longa duração nos costumes letrados ocidentais.
Os livros dos séculos XV e XVI são normalmente acompanhados por prólogos
ou dedicatórias, textos introdutórios que noticiam, em geral, as motivações do livro, o
modo de execução, seus valores de uso e principalmente o proveito do que vai escrito
para o notável que mereceu a dedicatória. No caso das traduções dos textos latinos
antigos, que no século XV chamavam-se “textos tornados em linguagem”, as
dedicatórias e os prólogos destes textos trazem também juízos acerca do modo como se
operou a passagem da língua latina para o vulgar, os resultados alcançados e também
considerações sobre a língua, as personagens e os costumes antigos. i
Seguindo os costumes retóricos do tempo, encontramos comumente no proêmio
dos textos introdutórios tópicas como a humilitas retórica e o encômio dirigido ao
destinatário da obra. Em ambos os casos o fim é o mesmo: a captatio benevolentiae do
leitor e o decoro com as obrigações de nobreza do letrado para com o fidalgo seu
superior. A humilitas retórica denota obediência e humildade decorosa, normalmente
pelo argumento da pouca eloquência na composição do texto e o reconhecimento da
inaptidão para lidar com matérias tão elevadas. O epílogo também varia entre uma
reafirmação do encômio inicial, a ilustração do principal ensinamento da obra e a
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do DLCV – FFLCH – USP. É
bolsita FAPESP.
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Nesta passagem Lucena apresenta pelo menos dois pressupostos para a validade
da obra moral que apresenta: a doutrina tomasiana da luz da graça e a imortalidade da
alma. Trata-se dos dois fundamentos para qualquer doutrina coerente e teleológica que
justifique o amor pelas virtudes e pela retidão moral. O primeiro, da luz da graça, é um
princípio que inclui o homem como criação divina portadora do entendimento dado por
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Deus, e o segundo princípio teológico alude à imortalidade da alma criada por Deus.
Nos seus comentários, o letrado corrobora a doutrina encontrada no livro de Cícero e a
confirma com a alusão a autoridades muito familiares ao leitor cristão quatrocentista,
tais como Sêneca e São Jerônimo. Lucena refere-se aos lamentos de Sêneca por não
reter mais na velhice duzentos pares de versos, como costumava fazer na juventude.
Para Jerônimo, os mancebos suportam bem todas as coisas na memória já que possuem
abundância e agudeza para delas cuidarem, enquanto os velhos necessitam de maiores
maestrias para conservar a memória e reter a virtude da temperança. Ora, embora os
velhos tenham tantos danos naturais, Lucena preconiza a virtude da fortaleza, como se
ensina no De Senectute, exortando o leitor por meio de uma alegoria também
proveniente da invenção ciceroniana. Desse modo, assim como os marinheiros devem
ter mais indústria ao navegar um navio velho e quebrantado, os velhos, tomados por
enfermidades e mal dispostos pela fraqueza devem continuar com trabalho até o
derradeiro dia da vida.
Este proêmio ressalta os fraquejamentos da velhice e argumenta em favor dos
benefícios da virtude para que esta fase da vida seja excelente. Mais, Lucena relata a D.
Pedro, o destinatário e primeiro interessado na tradução do texto ciceroniano, a
motivação que o instigou à tarefa de apresentar Cícero em língua portuguesa:
muito alto [e] excellente Princepe, depois que estes passados trasladei por
vosso mandamento hu livro de Paulo Vergério, que falla dos liberais estudos
e virtuosas manhas dos mancebos, o qual enderecey a Elrey nosso senhor,
porque em elle podesse conservar as boas ensinanças que pertencem à sua
idade, porque estava ocioso eu muito desejava occuparme em algũa couza,
que a vossa Senhoria fosse, vos trasladey de latim em lingoagem este
tractado de Tullio, que falla das artes e dos officios que aos velhos
pertencem.
Lucena nos fala de duas obras: o livro de Paulo Vergério, endereçado ao jovem
D. Afonso V, sucessor de D. Duarte em 1448; e o de Cícero, dirigido ao Infante D.
Pedro, o irmão mais velho de D. Duarte e regente durante a menoridade de D. Afonso.
Ao que tudo indica, estas traduções de Lucena foram publicadas no período de regência
de D. Pedro, ou seja, entre 1433 e 1448. Além disso, tanto o Infante quanto D. Afonso
V, os destinatários primordiais dos textos de Lucena, representam o poder máximo da
monarquia portuguesa. Como dissemos, ambos os textos pertencem ao gênero daqueles
livros endereçados à educação do monarca. Ao que parece, a atividade letrada de
Lucena está concentrada na composição de obras deste cartáter e adequá-las aos leituras
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que tem em vista, no caso, um príncipe jovem a quem dirige-se o livro de Paulo Vegério
e um Infante mais velho, a quem é conveniente a leitura do livro e Cícero sbre a velhice.
Ao Infante, Lucena aconselha uma das principais atividade que contribuem para a
excelência do príncipe: trata-se do princípio do otium cum dignitate:
Vos tresladey de latim em lingoagem este tractado de Tulio, que falla das
artes e dos ofícios que aos velhos pertencem, sabendo que em similhaveis
livros, quando a occupação das couzas publicas vos da algú vagar, de grado
estudais, no qual tratado, senhor, achareis muitas virtuosas ensinanças para
s[o]portardes ledamente os padecimentos da velhice.
Como quer que eu veja certo que entendeis o latim mui cumpridamente, e
que as obras de Tulio [v]os são assim familiares, que não haveis mister glosa
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E em isto não tirei letra, de letra, que seria trasladar, nem sentença de letra,
que seria glosar, mas tirey sentença de sentença, que he bem e
proveitosamente interpretar, segundo pello processo do livro cumpridamente
ver poderá a vossa muy inclita Senhoria.
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que aparece na língua de saída. Esta vulgarização das sentenças pela interpretação
certamente resultava em textos com poucos cuidados elocutivos, ou seja, com a
predominância das matérias em detrimento da eloqüência, aspecto referido nas escusas
dos prólogos. O primordial no fim de tudo era a interpretação da sentença para o
proveito do leitor e não a sua plena realização elocutiva em língua vulgar.
Num outro prólogo quatrocentista, que acompanha a tradução da Vida de
Alexandre de Quinto Cúrcio numa tradução francesa, há noções muito semelhantes às
da carta de Vasco Fernandes de Lucena:
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disponíveis nas obras dos historiadores antigos disponíveis e em outras obras de Cícero.
Nesse sentido, ressalta o costume antigo de mudar o nome de acordo com os feitos
célebres, tais como Tito de Athenas ou Atico, a quem se dirige o texto de Cícero, que
assim foi chamado pelo domínio das letras gregas. Também Metelo Crético e Cipião
Africano que foram assim chamados não por nascimento, mas, conforme o costume
antigo de acrescentar aos nomes os feitos bélicos. Em seguida, já caminhando para o
epílogo, Lucena ressalta o ensinamento mais proeminente do texto de Cícero, dando ao
leitor um resumo da doutrina central do De Senectute:
Desse modo, alcança-se a captatio dos leitores pela afirmação da validade dos
ensinamentos antigos, em nada divergentes com a doutrina cristã e legitimados pela
longa duração da autoridade ciceroniana. Por fim, o letrado ilustra o principal
ensinamento do Cato Maior por meio de metáforas ciceronianas trazidas no próprio
Tratado da Velhice vii e que são familiares às imagens dos leitores palacianos do século
XV:
Assim como os marinheyros dezejão chegar ao termo de seu caminho, tanto
que podessem não tornarião atraz, e como os cavalleiros que cobiçam
amansar alguns fortes e furiosos cavallos maliciosos, depois que os podem
enfrear, e lhes fazem soportar as esporas, folgão por que assim sogigaram,
posto que sejão mais fracos e mais quebrantados do que antes erão.
Nesta passagem final evidencia-se o uso do tratado moral como fonte de conduta
para o leitor que se educa pelo esforço e pelo domínio de si, princípio fundamental da
filosofia moral latina antiga. Este domínio de si é evidenciado por palavras como
“amansar”, “enfrear”, “suportar” e “sogigaram” (sujeitaram) que conduzem o homem à
excelência moral. Estamos diante também de uma interpretação quatrocentista da
filosofia de inspiração platônica e estóica, fontes declaradas dos textos de Cícero que
preconizam o alcance do bem pelo conhecimento de si e das razões da existência
humana.
No Prólogo que fez o D.or Vasco Fernandez de Lucena a El Rey Dom Afonso o
5º sobre o Livro de Paulo Vergerio que lhe tornou de latim em lingoagem por mandado
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do Infante D. Pedro, Regedor que foi destes reinos,viii Lucena aconselha ao monarca a
leitura e o aprendizado das virtudes tratadas no livro então vulgarizado:
Muito alto e poderoso Principe, a vossa senhoria que queirais este livro leer a
meude e acostumar a virtuosas manhas do que lhe falla, em guiza que
cumpridamente sigais vossos antecessores, e a vossos sucessores sejais muito
caro de todas as virtudes, e exemplo.
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Não limey as palavras, nem colorey alguas sentenças, as quais eu sube tornar
com aquella dulcura de eloquencia que em latim hiam escritas, conhecendo
que mais principalmente olhareis as boas ensinanças de que lhe falla, que a
formosa ordenança das palavras.
Além de soar mais uma vez como artifício de modéstia retórica, chamamos a
atenção para o uso dos termos: “não limey” e “nem colorey” que dizem respeito
diretamente à elocução do texto e são metáforas que nos remetem aos versos 285 a 290
da Epistola ad Pisones de Horácio. Contudo, mesmo em face de todas estas dificuldades
elocutivas, Lucena declara que soube “tornar em linguagem” com “aquella dulcura de
eloquencia que em latim hiam escritas”. No entanto, certamente por modéstia retórica e
decoro, o letrado adverte D. Afonso V a se prender, não à eloqüência da “formosa”
ordenança das frases, mas às “boas ensinanças” de que fala. No epílogo do texto, o
letrado retoma esta advertência inicial, dizendo que “os cavalleiros mais considerão a
fermosura e bondade dos cavallos, que os esmaltes dos freyos e as pinturas dos
guarnecimentos”.
Além dos prólogos de obras morais, há também um texto vulgarizado por
Lucena que chegou ao nosso tempo. Trata-se da Oração que fez o Deão de Vergy e do
prólogo que a acompanha. Em meados do século XV, no reinado de D. Afonso V, após
os percalços da batalha de Alfarrobeira, ocorrida entre o monarca português e seu tutor,
D. Pedro de Coimbra, esteve em Portugal o deão de Vergy, embaixador do Duque
Felipe de Borgonha. O deão pronunciou um discurso, “em estilo Romaõ”, defendendo a
memória do infante D. Pedro e pedindo pelos direitos dos descendentes do duque de
Coimbra. Vasco Fernandes de Lucena traduziu este texto e importa-nos destacar, no
prólogo desta obra, a diversidade de referências antigas e modernas, cristãs e pagãs
destacadas pelo letrado na oração que foi proferida na corte de D. Afonso V.
No epílogo, de acordo com os preceitos do discurso epidítico, Lucena lembra o
entusiasmo de ler a oração do deão que lhe trouxe à memória as muitas qualidades do
regente de Coimbra, injustiçado do mesmo modo como fora Sêneca por Nero, Sócrates,
“homem pouco menos que divinal” que também pereceu condenado, Zeno e Marco
Régulo. Epiditicamente, para justificar o infortúnio de D. Pedro, o letrado compara a
sorte do Infante com a de notáveis figuras da história antiga e lembra que “pera padecer
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muitos malles, como nenio falla, nascidos somos (sic).” Este sentimento é ilustrado por
ditos antigos, tais como aquele no qual a deusa Minerva, “desejando de galadoar o
serviço de dous cavaleiros seus devotos, mandou que dormissem, e nom acordassem,
pollos leyyar das miseryas da presente vida, e viverem no outro segre para sempre
bemaventurados.” Lucena, junto ao encômio de D. Pedro, apresenta uma noção da vida
como um vale de lágrimas e vulnerável às vicissitudes da fatalidade.
Na elocução, o dircurso do Deão de Vergy imita a oratória ciceroniana como
observamos na passagem em que Lucena compara o texto proferido ao que Cícero fez
“defendendo a Seisto Roscio”. Ademais, a vulgarização de Lucena apresenta uma
grande variedade de citações, dentre as quais destacamos: as Digestas ou código
justiniano e as glosas de Bartolo, x livros bíblicos como o “levitico”, o “deuteronomy”,
o Eclesiastes, citações de “oracio”, Virgílio, o Górgias de Sócrates, Julio Cesar, Túlio,
Diógenes, Orígenes, Plutarco, São Gregório, Aristóteles, Homero, Cipião, Ulisses,
Enéias e outros. O que nos importa ressaltar na tradução de Lucena é o numeroso e
diversificado universo de autores antigos trazidos como autoridades ou modelos a serem
seguidos nas letras a na vida. Mais, há uma comunhão indistinta de autores pagãos
greco-latinos e cristão, de fato, os primeiros são cristianizados e não poderiam deixar de
ser dados os determinantes do tempo. Ademais, a enumeração destes autores evidencia a
quantidade e qualidade dos textos divulgados nas letras portuguesas no final do século
XV, esmaecendo aquelas classificações idealistas que consideram a chamada “Idade
Média” de iletrada e o chamado “renascimento” como retomada dos textos greco-
latinos. O que observamos no confronto dos textos, na leitura dos prólogos e cartas, na
quantidade das traduções e nas menções encontradas nas obras é a continuidade, em
longua duração, de muitos autores gregos e latinos, tanto da filosofia moral, quanto da
retórica como da história. Nomes como Platão, Tito Lívio, Heródoto, Cícero, Virgílio,
Ovídio, Sêneca, Plutarco, Xenofonte e tantos outros jamais permaneceram no
esquecimento total e foram lidos, refundidos e imitados ao longo dos séculos. No caso
da corte portuguesa de Avis, encontramos uma incidência maior de autores como
Cícero, Sêneca e Ovídio, que tiveram obras traduzidas para a língua vernácula
portuguesa e são mencionados em textos de cartas, prólogos e em cancioneiros.
Passemos agora ao estudo da dedicatória de D. Pedro de Coimbra a D. Duarte da
tradução que fez do De officiis de Cícero.
Atribui-se a D. Pedro de Coimbra a vulgarização de duas obras antigas: o Livro
dos ofícios de Cícero, vulgarizado integralmente pelo Infante e a participação,
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Na dedicatória do Livro dos ofícios, D. Pedro relata que, lendo aos seus amigos
trechos do De Officiis de Cícero em português, foi instigado a vulgarizar esta obra.
Assim, apesar das conhecidas dificuldades em realizar a tarefa, o Infante argumenta em
favor da passagem de textos antigos para o vulgar, sobretudo, porque em Portugal o
português é “mais geral” e desse modo seria mais proveitoso “aos portugueses
amadores de virtude que nom som ou ao diante nom forem latinados”. E assim, D.
Pedro deprecia a elocução de seu texto face à “abastança” de Cícero, mas ressalta a
“ensinança” que contém o tratado ciceroniano.
Uma passagem notável do texto de D. Pedro e que evidencia o caráter ético da
obra é a distinção que o letrado faz dos tipos de livros que tratam de filosofia moral. Ele
os divide em dois tipos: de um lado aqueles que “trautam que cousa som as virtudes,
quanto, por que, como devem seer prezadas e como vêem hũas das outras”; por outro
lado, aqueles livros que dizem “como em cada virtude nos devemos aver e que maneira
em cada hũa obra devemos de leer pera guardar ou cobrar estado virtuoso.” O Livro dos
ofícios, para D. Pedro, insere-se no segundo tipo como obra da “philosophia moral”, útil
porque o “conhecimento da perfeiçom das virtudes traz desejo de seerem avidas”,
portanto, ele ensina a “quem nom souber como as poderá cobrar”:
“E por esto, Senhor, a mym parece que dos livros que vi de philosaphia, este
avantejadamente enssyna a cobrar o que os outros fazem amar e desejar. E
quem bem o estudar e husar de ssua enssynança, entendo que será fora da
pena e doesto que disse” xiii
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Para Piel, este trecho revela uma “nova técnica da tradução com que o tradutor
xvii
procurava imitar em português a concisão do período latino”. Assim, a formulação
“parte troncada” refere-se às alusões do texto latino que escapavam ao letrado
quatrocentista, “pausa curta” diz respeito à concisão da língua latina e por decorrência
ao ritmo destas passagens; por outro lado, as “pausas compridas” seriam aqueles trechos
que se assemelham sintaticamente à frase vernácula e por isso “de rrazoar he mais chã
maneira”.
O Infante salienta a diversidade de leitores de sua obra, mas observa que o modo
como a compôs em língua vulgar é suficientemente satisfatório para atender a todos os
“desvayrados” leitores, divididos entre “simprez, que chaaõ fallam” e “engenhoso e
sotil, que filham prazer em nouas maneyras de curto fallar”:
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E tall deferença he em elle feita porque, ainda que principalmente o livro aos
príncipes seja aderençado, a outros muytos da geeral doutrina. E porque antre
muytos ha desvayramento, assy de entenderes como de vontades,
desvayradamente foy a obra composta, pera o engenhoso e sotill achar
delectaçom a seu entendimento, e ao simprez porem nom minguasse a tal
clareza per que aprender podesse as cousas que elle conuem. E também
aquelles que filham prazer em nouas maneyras de curto fallar achassem hi
alguũ comprimento, do que em esto quer o seu deseio. E os que chaaõ fallam
e querem ouuyr achassem scriptura segundo seu geyto. xviii.
A obra tem como fim a educação do monarca e dos súditos reais e preconiza-
lhes o aprendizado conveniente da geral doutrina das benfeitorias. Após as
considerações éticas do livro, D. Pedro passa aos cuidados elocutivos na composição
em língua romance. O letrado ilustra as palavras “ladinhas”, chamadas hoje de
xix
latinismos, pela metáfora de “campos de difícil acesso”. O leitor, ao “strar” estes
terrenos, pode usufruir de prazer decorrente do obstáculo anterior. Desse modo, o
infante concebe às “palavras alatinadas” um valor educativo que exige, por um lado,
esforço de compreensão e, por outro, repúdio da preguiça e da presunção para enfrentar
(transpor) os empecilhos:
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do texto ciceroniano. Sem discutir se foi bem sucedido ou não, o fato é que suas
soluções dão um caráter bem específico à prosa do Livro dos ofícios e aproximam o
texto antigo das noções inerentes ao universo cavaleiresco e cristão do leitor
quatrocentista.
Apesar do vacilante uso de latinismos e dos “lugares escuros” que vulgarizou de
modo, por vezes, incompreensível ao nosso tempo, o texto de D. Pedro forneceu
soluções satisfatórias para a passagem do latim ao vulgar. Disto resultou uma série de
alterações, formalmente visíveis na arquitetura da frase e em certa medida nos sentidos
obtidos. Obras como o Livro dos ofícios e a Virtuosa benfeitoria, provenientes do latim
antigo, resultaram numa prosa que adotou o verbo no fim de frase, a ampla utilização de
orações infinitivas, o ensaio da subordinação na busca de uma hierarquia mais precisa
que aquela obtida com a coordenação. Neste balbuciar da prosa tratadística em língua
vernácula, de um lado está o Leal conselheiro de D. Duarte, que por vezes se perde nas
suas considerações lógicas e, de outro, o Livro dos ofícios e Livro da virtuosa
benfeitoria, que por “parafrasearem” o De Beneficiis de Sêneca e o De Officiis
ciceroniano nas suas configurações, têm uma “exposição muito mais fácil, apresentando
uma estrutura periodal muito mais sólida e eurítmica”. xxii
No conjunto de textos que observamos, a estratégia encontrada diante das
dificuldades impostas pelo confronto entre o vernáculo e o latim antigo é a valorização
da sentença na busca de maneiras compassadas para a elocução da sabedoria antiga.
Nesse sentido, Jorge Alves Osório afirma que as traduções quatrocentistas colocam em
evidência “o conhecimento da “sentença” por parte do tradutor”, com uma nítida
preocupação de que o “conteúdo veiculado pela tradução seja suficientemente crível e
xxiii
válido para superar as dificuldades e limites lingüísticos da língua vulgar”. Osório
interpreta as vulgarizações do século XV como “uma clara intencionalidade pragmática
que teria como possível propósito a formação de uma classe política, recentemente
xxiv
ascendida ao poder”. Assim, ao referir-se à atuação intelectual de D. Pedro, Osório
declara que a obra do Infante coaduna-se ao “novo contexto moral e cultural”
diretamente relacionado a uma nova concepção “de monarca e de homem da nobreza”
divulgada nos meios palacianos quatrocentistas, mais ligada ao modelo do cortesão
letrado. xxv
Em todo caso, fica evidente que a principal característica das vulgarizações
quatrocentistas é instituir um modelo ético fundado nas auctoritates antigas. Mais,
oferecer textos que apresentem modelos de conduta ética excelentes ao monarcas e seus
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REFERÊNCIAS
D. PEDRO DE AVIS. Livro dos Ofícios. Edição de Joseph Piel. Coimbra: Por Ordem
da Universidade, 1948.
LUCENA, Vasco Fernanades de. Prólogo do D.or Vasco Fernandez de Lucena sobre o
Livro da Velhice de Tulio, que tornou de latim em lingoagem para o Senhor Infante
Dom Pedro. In: Apêndices. Livro dos Ofícios. Edição de Joseph Piel. Coimbra: Por
Ordem da Universidade, 1948.
_____________ Prólogo que fez o D.or Vasco Fernandez de Lucena a El Rey Dom
Afonso o 5º sobre o Livro de Paulo Vergerio que lhe tornou de latim em lingoagem por
mandado do Infante D. Pedro, Regedor que foi destes reinos. Edição de Joseph Piel.
Coimbra: Por Ordem da Universidade, 1948.
MANN, Nicolas. Orígenes del humanismo. In: KRAYE, Jill (editor). Introducción al
humanismo renascentista. Edição espanhola de Carlos Clavería. Tradução de Lluís
Cabré. Cambridge: University Press, 1998.
OSÓRIO, Jorge Alves. Cícero traduzido para o português no século XVI: Damião de
Góis e o Livro da velhice. Separata de Humanitas, vols. XXXVII-XXXVIII, 1986.
RUI DE PINA. Crônica do Senhor Rey D. Affonso V. In: Crônicas de Rui de Pina.
Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida. Lello editores, Porto, 1977
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NOTAS
i
BOSSUAT, 1946, p. 213.
ii
LUCENA, in PIEL, 1948. p. XLIII-XLVI.
iii
LUCENA, in PIEL, 1948, p. XLIII.
iv
PIEL, 1948, p. 25, nota 2.
v
VASQUE DE LUCENE apud BOSSUAT, 1946, p. 210.
vi
PIMPÃO, 1959, pp. 67-68.
vii
GÓIS, Damião. Catão Maior ou da velhice. Fac-símile: Veneza; Estevão de Sabbio, 1538. Edição da
Biblioteca Nacional de Lisboa, 2003, fl. 11. Catão refuta o argumento de que os velhos não são
convenientes ao governo da república e os compara ao piloto de uma nau, que numa adversidade, é tão
importante na condução da nau, quieto na popa, quanto os outros que correm para evitar a destruição do
barco: “Porque os grandes feitos nam soomente se fazem com forças, e destreza do corpo, mais ainda com
conselho, e authoridade, e juizo, das quaes cousas velhice nõ tam soomentes nunqua he priuada, mas
antes muim abondosamente acompanhada, e ornada.”
viii
LUCENA, in PIEL, 1948, p. XLVII.
ix
MANN, in KRAYE, 1998, p. 19.
x
Estes textos fazem parte da tradição portuguesa desde, pelo menos, o início do século XV no reinado de
D. João I. Oliveira Martins, em sua obra Os filhos de D. João I, informa acerca dos textos jurídicos em
Portugal no reinado de D. João I de Avis: “E no decurso de do seu longo reinado de quasi meio século,
transforma os costumes, as leis e até a chronologia, a este povo que recebia agonizante, e que entrega à
história reconstituido pela introdução de idéias morais novas, e das novas leis que no seu tempo se
restauravam na Itália, fazendo outra vez reviver o império das noções abstratas do direito antigo sobre que
ia assentar soberana a monarquia. É de 1426 a carta régia em que D. João I remete à câmara de Lisboa
dois livros com as leis do código Justiniano, a glosa e as conclusões de Bartholo para por ellas se fazerem
livrar os feitos e dar as sentenças”. OLIVEIRA MARTINS. Os filhos de D. João I, op. cit., p. 16.
xi
Joaquim de Carvalho defende que esta obra aproxima-se do Thesaurus exemplorum, uma espécie de
compilação de textos com larga fortuna na tradição latina ulterior e apresenta os elementos típicos do
exemplum tais como o relato ou descrição, a doutrinação moral e a aplicação na vida do homem. Cf.
PIEL, ed. do Livro dos ofícios, op. cit., p. XXI. Já Álvaro da Costa Pimpão associa a Virtuosa benfeitoria
aos manuales, florilegia ou deflorationes, compilações nas quais se reuniam a substância dos
ensinamentos excelentes, já que aquela obra traz texto e máximas de Aristóteles, Platão, Epimênides e
Galeno com o eixo no livro de Sêneca.
xii
“Foy Pryncype de grande conselho, prudente, e de viva memória, e foy bem latinado, e assaz mystico
em ciências e doutrina de letras, e dado muyto ao estudo, elle tirou de latym em linguajem o Regimento
dos Pryncipes que Frei Gil Correado compos, e assy tirou o lyvro dos Offycios de Tullio, e Vegecio de Re
Militari, e compôs o livro que se diz da Virtuosa Benfeytoria com huma confysam a qualquer Cristaõ
muy proveytosa”. RUI DE PINA. Crônica do Senhor Rey D. Affonso V in Crônicas de Rui de Pina.
Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida. Lello editores, Porto, 1977, p. 754.
xiii
D. PEDRO DE COIMBRA, 1948, p. 4.
xiv
PIEL, 1948, p. XXII.
xv
PIEL, 1948, p. XXII-XXIII.
xvi
D. PEDRO DE AVIS, 1981, p. 530.
xvii
PIEL, 1948, p. XXIII.
xviii
D. PEDRO DE AVIS, 1981, p. 530.
xix
Joseph Piel esclarece que “strar”significa “escolher sítios planos”. O dicionário de Candido Figueiredo
registra-o como “estender, alastrar (palha ou mato) nos currais de gado, sobre o estrume já calcado”. Cf.
PIEL. Introdução. In: Livro dos ofícios, op. cit., nota 1, p. XXIX.
xx
D. PEDRO DE AVIS, 1981, p. 534.
xxi
PIEL, 1948, p XXXIII.
xxii
SARAIVA; LOPES, 1996, p. 116.
xxiii
OSÓRIO, 1986, p. 224.
xxiv
OSÓRIO, 1995, p. 725.
xxv
OSÓRIO, 1986, p. 212.
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1
Doutorando em Estudos Literários pela UFJF.
2
Doutoranda em Estudos Literários pela UFJF.
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Antônio de Oliveira Salazar. Não é preciso, pois, ratificar que Natália exercera grande
resistência literária e intelectual à repressão político-intelectual salazarista.
Como acreditar no fim de uma ditadura de quase meio século? Do fim do
salazarismo, ao início do marcelismo, fora difícil conceber a Revolução “pós-
ditadores”. E compreende-se porque Natália Correia haveria de ter tamanho ceticistmo
nos acontecimentos.
A poeta começara a escrever um diário na noite da Revolução dos Cravos
convencendo-se, pouco a pouco, de que deveria viver e relatar a “festa”. Publicado em
1978, o diário fora intitulado Não percas a rosa, com subtítulo Diário e algo mais, com
término em 15 de janeiro de 1978.
O diário não foi regradamente escrito durante todos os dias dos quase quatro
anos de sua escrita, mas conta com a vivência datada dos dias escolhidos por Natália
para serem contados, além de lembranças que, naquele momento da escrita diarística,
vêm à memória da poeta.
No interessante prefácio do diário, Natália Correia declara a sua estranheza em:
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Nos primeiros dias após a Revolução, Natália escreve sobre suas comemorações
diárias com amigos: iam para o bar da poeta denominado Botequim, entoavam poemas
censurados e cantavam hinos de liberdade. Mas esse estado letárgico durara pouco nas
páginas do diário da poeta. Dia a dia Natália ia percebendo que havia muito mais por
detrás da Revolução cujas armas foram os cravos. O tom de sua escrita desloca-se
pouco a pouco para uma espécie de relato ensaístico - o que não dispensou nas páginas
do diário as referências a poetas portugueses e a poemas dela mesma. Seu ensaio
diarístico (ou diário ensaístico) e poético toma uma forma harmonicamente heterogênea.
Vale a pena lembrar Jacques Derrida, em Gêneses, genealogias, gêneros e o
gênio, a propósito da escrita de Hélène Cixous. Para Derrida, a obra de Cixous
compreende esta família lexical dos nomes em “g”: “tão generosamente a mil e uma
metamorfoses, metempsicoses e metonímias anagramáticas de que o nome fictício de
Gregor, numa das mais recentes ficções ditas ficticiamente autobiográficas, Manhattan
(...)” (DERRIDA, 2005, p. 14). Esse livro de Cixous, de acordo com o filósofo, transita
entre a memória e a ficção, entre o sonho e a realidade, como um arquivo que
compreenderia histórias “anteriores a qualquer literatura, a toda a obra literária assinada
Hélène Cixous.” (DERRIDA, 2005, p. 15); pois para Derrida, a narrativa de Cixous
segue o fluxo natural do pensamento e está muito próxima do sonho, afinal, a artista
escreveria sempre ao acordar. O trânsito entre o sonho e a realidade na escrita de Cixous
comprova que, como arquivo vivo, ele é essencialmente resistente à classificação de
saberes legitimados, embora simule alguma possibilidade de arquivamento: “O arquivo
não se deixa levar, parece resistir, dá trabalho, fomenta uma revolução contra o próprio
poder ao qual simula se entregar, emprestar-se e mesmo doar-se.” (DERRIDA, 2005, p.
15)
Tal como Derrida considera a escrita de Cixous, Natália Correia escreve ao
acordar. Esse despertar ganha um sentido ambíguo, pois a poeta portuguesa desperta de
um sono cultural por que passou seu país durante os anos da censura. As páginas do
diário desenvolvem-se a partir de uma espécie de catarse, ao estar a poeta escrevendo
muito próxima dos acontecimentos. Dessa forma, o diário de Correia transita entre o
estado onírico que a Revolução engendrou e, ao mesmo tempo, a realidade que o
cotidiano obscuro emanava: “ ‘as nossas armas são as flores’. O mundo inteiro não
cessa de se assombrar com esta ‘revolução das flores’. Disparos de pétalas em vez de
tiros. Efusão de perfume em vez de sangue. ‘uma revolução surrealista’ (...).”
(CORREIA, 2003, p. 29). A metáfora dos cravos tornara-se, para Natália: “A farsa de se
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engolir uma revolução que fechou os olhos a um totalitarismo moribundo para engordar
outro” (CORREIA, 2003, p. 62), pois haveria rumores de que o PCP também poderia
estar aliado ao socialismo soviético. Dessa forma, a desconfiança sobre os ideais
partidários, associada à descrença às Instituições traz às páginas do diário de Natália
questionamentos sobre o cotidiano revolucionário, como conseqüência do trauma da
ditadura.
Entre a crítica social, a poesia, o diário e o ensaio, eis Não percas a rosa cujo
subtítulo anuncia que haverá naquelas páginas “algo mais”. Diário não se restringe
apenas ao campo dos subgêneros da literatura no livro de Natália Correia, mas como
arquivo de uma época cujo dom, no sentido derridiano, inclina-se a uma espécie de
discurso heterogêneo, que possibilita a hospitalidade incondicional.
Para esclarecer esse ponto, vale à pena citar Derrida, a propósito do gênio na
escrita de Cixous, escritora que, de acordo com o filósofo argelino, renúncia à gênese
permitindo seu texto “se deixar acariciar por um gênio da língua que não volta a si de
sua surpresa absoluta, de um contato inesperado que a afeta e que rompe com a filiação
genética que ela respeita, cultiva e, entretanto, enriquece enquanto a trai.” (DERRIDA,
2005, p. 25). Renunciar a gênese consiste em liquidar alguma possibilidade de
classificação ou de demarcar alguma fronteira. O dom da hospitalidade incondicional,
para Derrida, não distingue origem e aceita a convivência poética e harmônica das
diferenças genéticas. Por isso compreende-se por que Derrida reconhece tal
hospitalidade em Cixous, observação jamais reconhecida no conflito entre o estrangeiro
e seu hospedeiro. Derrida considera que Cixous sabe colocar em paridade harmônica
todos os gêneros, independentemente de suas gêneses, dispensando classificação de
fronteiras e fazendo acontecer a negociação entre o familiar e a alteridade. Segundo
Derrida, a genialidade seria essencialmente heterogênea e, por isso, traria o “dom” de
reconhecer, aceitar, respeitar e combinar as diferenças.
A escrita de Natália Correia está próxima da noção derridiana de gênio, pois seu
texto dispensa uma classificação homogênea: transita entre a realidade e a ficção sem
jamais sabermos até que ponto a escrita de si, aliada ao cotidiano relatado pode
esconder por detrás da subjetividade poética o que está desperto e lúcido, ou o que está
na letargia do signo poético. Segundo Derrida, o elemento poético é essencial secreto na
medida em que institui e desinstitui fronteiras e “re-vela-se” como segredo: “É o lugar
secreto onde ela (a poesia) se institui como a possibilidade mesma do segredo, o lugar
de sua gênese ou de sua genealogia própria.” (DERRIDA, 2005, p. 22).
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da revolução que se explica a intensidade subjectiva com que os fui arquivando neste
diário.” (CORREIA, 2003, p. 08) A poeta é a única capaz de arquivar-se, deixando aos
seus arcontes a dificuldade de perceber alguma fronteira entre uma escrita letárgica e, ao
mesmo tempo, desperta.
Cabe refletir a propósito do diário de Natália Correia sobre o trânsito que sua
escrita realiza entre a linguagem poética e ao mesmo tempo ensaística. Vimos que o
diário de Natália Correia é dotado da subjetividade da escrita de si, abrindo seu texto à
dificuldade de se estabelecer a distinção entre elementos de uma realidade possível ou
imaginária, uma vez que falar de si implica também em recalcar-se ou camuflar-se sob
outras identidades.
Outra tensão verificada no diário está nos limites entre a poesia e a prosa. Para
refletir acerca de tal empresa, vale a pena lembrar o livro Da poesia à prosa, de A.
Berardinelli.
O autor discute que durante a modernidade as fronteiras da poesia se
restringiram notavelmente, fazendo com que esse gênero se destacasse cada vez mais
dos outros, “o que levou à definição formalista jakobsoniana de uma função poética da
linguagem distinta de todas as demais funções.” (BERARDINELLI, 2007, p. 175)
Tentar definir as fronteiras da poesia pode se tornar um trabalho ontológico, para tomar
as palavras de Berardinelli; afinal, o que incita o trabalho fértil com a linguagem não é
exatamente as possibilidades de cruzamento que permite fundar as tensões? A
determinação de elementos que conferem literariedade ao texto poético separou cada
vez mais a poesia das demais funções lingüísticas: emotiva, conativa, referencial,
metalingüística e fática. Como corolário deste processo, de acordo com Berardinellli, “a
literariedade (...) teria como traço distintivo a ‘não referencialidade’, o não se referir à
realidade extra-lingüística, mas somente à organização dos signos lingüísticos.”
(BERARDINELLI, 2007, p. 14) Se se distingue a linguagem poética da língua comum
pode-se subtrair a comunicabilidade da poesia; já se sabe, principalmente depois do
modernismo brasileiro, que essa máxima não pode ser verdadeira. Se um poema deve
essencialmente obedecer às definições formalistas, equivocou-se Bandeira quando
chamou “poema” a notícia tirada do jornal? No que diz respeito aos modernistas, em
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especial brasileiros, a discussão sobre o gênero lírico deve ganhar solo novo, destacado
das definições formalistas que concentraram a lírica no trabalho elaborado de
linguagem.
Em se tratando do diário de Natália Correia, as fronteiras entre a poesia e a prosa
são indeterminadas, devido principalmente ao lirismo que se torna evidente em seu
diário, sobretudo, a subjetividade inscrita em sua prosa, como seu diálogo com Camões,
Fernando Pessoa, Almada Negreiros, a escolha do vocabulário e das metáforas: à função
poética não se subtrai a função emotiva, tampouco a referencialidade ou a
comunicabilidade de seu texto. Poesia é a matéria-prima de sua prosa, cuja linguagem
está dotada de significado metafórico.
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Apesar de Natália Correia ter notabilizado-se inicialmente como poeta, sua obra
não se restringe apenas à poesia, como também oferece gêneros variados. A poeta é
autora de romances, peças de teatro e ensaios. É comum encontrarmos seu diário na
prateleira de ensaios, uma vez que dificilmente se faz uma seção dedicada
especialmente ao gênero diário. Mas “generalizar” Não percas a rosa seria privar a
obra de sua Oni-potência-outra, para citar mais uma vez Derrida.
Segundo o filósofo, a Literatura como Oni-potência-outra institui e desinstitui o
lugar dos gêneros e “re-vela-se” como segredo. Para Derrida, esta Oni-potência-outra
da Literatura causaria um efeito suplementar na obra, “seja da ficção autobiográfica,
seja ainda do sonho ou da imaginação (...)” (DERRIDA, 2005, p. 19). No diário de
Natália, esse efeito suplementar não se restringe apenas à verdade ficcional ou aos
gêneros, como abordei nos primeiros tópicos deste trabalho. Outro instigante aspecto,
não só do diário como também de outras obras artísticas da poeta, deve ser levado em
conta: Natália Correia escreve entre a tradição e a vanguarda portuguesas.
O poema “Língua Mater Dolorosa” faz referência direta à tradição literária
portuguesa. A língua lusíada é reverenciada na primeira estrofe como “a leda a bem
talhada” dos travadores e de Camões:
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A alegre euforia que se deu no país poucos dias após o 25 de abril transfigurava-
se ao longo dos dias de junho de 1974 em constantes manifestações populares de
inconformismo com as novas medidas do governo Spínola. Camões é invocado como
herança – e esperança – da boa e velha identidade portuguesa “de uma alma única”,
como apontou Correia. Para a poeta, somente o “verdadeiro unificante” é capaz de
ajustar “os elementos dispersos da minha identidade.” (CORREIA, 2003, p. 9) O
episódio da “Ilha dos amores”, do “Canto IX” dos Lusíadas, também é lembrado por
Natália. A poeta conserva a concepção camoniana de que a Ilha simbolizaria a
humanização portuguesa: “Próxima, a Ilha dos Amores é um seio de ouro como um
mamilo verdejante de eucaliptos e pinheiros.” (CORREIA, 2003, p. 65) O elemento
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Vale à pena registrar que a correspondência que faço de Natália Correia com o
cânone literário português não fica apenas em Camões. O modernista português Almada
Negreiros também é lembrado como um “querido Mestre unanimista” (CORREIA,
2003, p. 50). A revolução portuguesa de 1915, que foi vivida e relatada por Negreiros
através do poema “A cena do ódio”, é comparada com a Revolução dos Cravos por
Natália Correia. O diário corresponde-se com este poema, como também o poema de
Negreiros corresponde-se com “Song of Myself”, de Whitman e com o sensacionismo
de Álvaro de Campos. Cria-se uma teia intertextual: quando Natália encarna Negreiros,
fatalmente recebe o avatar do poeta estadunidense e do heterônimo de Pessoa.
O diário de Natália inscreve-se, pois, numa “biblioteca universal” - para citar
mais uma vez Derrida – cuja grandiosidade marca esta oni-potência-outra só
apre(e)ndida pelos gênios. A genialidade de Correia não só resgata a grande tradição
literária portuguesa, como também vai da modernidade às novas vanguardas sem
pretensão de romper com uma ou outra estética. A poeta experiencia cada uma como se
todas fossem parte de sua biblioteca de e da linguagem. Apropriando-me das palavras
de Derrida, a ambigüidade das preposições grifadas compreende: uma salvação
pertencente à literatura e, ao mesmo tempo, realizada pela literatura, seja essa executora
direta da ação, ou discurso performativo, revolucionário em sua essência. “A alegoria da
Biblioteca absoluta, ao mesmo tempo túmulo e monumento conservatório (...) saudação
à Literatura e salvação da Literatura.” (DERRIDA, 2005, p. 16, grifo dele). Reparemos
que esta Literatura com inicial maiúscula corresponde também a uma macro-
compreensão do conceito, que como alegoria, consiste senão na mediação entre o
particular e o universal. A literatura de Natália Correia seria “uma biblioteca particular”
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(DERRIDA, 2005, p. 17) que “institui o teatro, delimita um recinto teatral próprio a dar
lugar.” (DERRIDA, 2005, p. 17).
Vale à pena inserir no debate os estudos de Hamburguer cujo livro A verdade da
poesia revela uma compreensão bastante lúcida acerca da lírica moderna, à luz de
releituras críticas de Hugo Friedrich. O ponto que gostaria de relevar no livro de
Hamburguer é o momento em que ele contrasta os conceitos de arquétipo e fenótipo na
poesia moderna. Para o crítico alemão, o arquétipo estaria ligado à imaginação
conservadora, que freqüentemente recorre a normas preestabelecidas: “a imaginação é
conservadora quando recorre a normas e arquétipos.” (HAMBURGUER, 2007, p. 375).
O fenótipo far-se-ia presente na capacidade do escritor alinhar a sua experiência
individual à sua herança literária. Lembrando que em termos biológicos as
características determinadas por fatores hereditários e sociais são o fenótipo, resultante
da fórmula genótipo + meio. Na literatura de Natália Correia os arquétipos se anulam: a
poeta não segue nenhuma escola - apesar de várias vezes atribuírem-lhe o arquétipo
surrealista -, sua escrita pode ser em decassílabos, como também em versos livres;
Natália não se prende a regras nem elege esse ou outro poeta de uma só escola. A poesia
de Natália Correia é fenotípica à medida em que tem seus traços individuais marcados
pela conveniência que lhe cabe. Seus temas podem ser metalingüísticos, sociais ou
amorosos, navegando por gêneros diversos.
Como Hamburguer mostra em seu livro, a “verdade da poesia” é adaptável às
condições de criação e às necessidades que cabem a cada autor no momento de sua
produção. Estabelecer uma verdade ao gênero é o mesmo que matar a criação com sua
possibilidade de oni-potência-outra, como também nos fala Derrida. O segredo, que
Derrida considerou ser reservado ao gênio, na literatura de Natália Correia está nesse
tipo de escritor que “constrói os enigmas” de sua tradição. No diário de Natália Correia,
retornar o cânone literário não implicou numa ruptura com o presente, mas em seu
compromisso com a grande biblioteca em construção que é a sua obra.
REFERÊNCIAS
CORREIA, Natália. Não percas a rosa: diário e algo mais (25 de abril de 1974 – 20
de dezembro de 1975). 2. ed. Lisboa: Notícias editorial, 2003.
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_____. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I. Lisboa: 1993, Círculo de Leitores.
_____. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias II. Lisboa: 1993, Círculo de Leitores.
_____. Mal do arquivo - uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
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i
Aluno do programa de mestrado da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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acentual do poema oscila junto com a consciência, quebrando o ritmo. Após os dois
versos que tratam da consciência, voltando ao ritmo inicial, a descrição continua: “Em
torno de tudo há uma aura / que é claramente postiça”. Ora, postiça pode ser uma unha,
cílios podem postiços, agora uma aura... estamos diante duma banalização irônica do
elevado que é comumente operada por Britto, uma “aura postiça”, colocada depois,
artificialmente, está em torno de tudo, de todas as coisas. Que aura é essa? Quem a
colocou em torno de tudo?
Na última estrofe do poema, uma afirmação sobre o mundo: ele precisa de um
calço. Com um calço o mundo, talvez, não fique mais fora de esquadro, como descrevia
o primeiro verso. A cristaleira que oscila em falso também encontraria uma solução com
um calço. Ora, uma fina fatia de cortiça é algo postiço, algo posto depois (algo como a
aura postiça?) e que estabiliza, enquadra, faz cessar a oscilação. Tanto o mundo como a
consciência encontrariam estabilização se calçados por algo que não fazia parte deles. O
mundo, então, se em estado natural (sem nada que seja postiço), oscila em falso, fica
fora de esquadro: só um calço o estabilizará. Será possível encontrar esse calço? Uma
aura postiça pode resolver tal questão? Podemos confiar na cortiça?
Outra aparição da relação do sujeito com o mundo pode ser encontrada no quinto
poema da série Gramaticais:
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quer dizer coisa alguma, não significa, é concreto, independe dos artefatos, das
construções que se possa fazer. Dada essa gramática da relação entre o fabricado (o
artefato) e o mundo, deixa-se claro que se trata de um jogo e que ele continua: seco,
duro, inseguro. Dado esse lembrete quanto à condição de jogo, o poeta anuncia que
chega a vez do leitor, o último verso volta todas as luzes para ele: “Pronto. – Agora é a
sua vez.”. O leitor, está com a concretude de um soneto diante de si. Só o que ele
construir, só a sua interpretação (postiça ao soneto) é que fará sentido.
Saltando agora para o poema Epílogo, encontraremos, mais uma vez, o mundo e
sua rebeldia contra a significação.
EPÍLOGO
O mundo não permite conclusões a seu respeito. Refuta sentidos que lhe queiram
impor. O livro clama por paz, por elementos como índices, prefácios ou rodapés que
dêem oportunidade para ele se situar, se pacificar, mas o mundo é uma selva oscilante,
segue sempre arquitetando contingências. Voltamos ao primeiro poema aqui abordado:
“O mundo está fora de esquadro” e precisaria de uma “fina fatia de cortiça” da qual não
se tem notícia. O jogo continua e o mundo segue impossibilitando conclusões
irrefutáveis. Só o fim do expediente na biblioteca, nesse mundo que oferece os mais
variados tipos de resposta (de calço) ao enigma do mundo é que faz dissipar (e não
resolver) as dúvidas. Quando o expediente do dia seguinte começar e se voltar a pensar
nesse mundo e buscar ordem (sentido/significação), se chegará, inevitavelmente, a uma
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ânsia como a do livro por uma paz (conclusão irrefutável) que a selva-mundo insistirá
em não conceder.
Configurado esse mundo, o que faz Britto? Dispondo da linguagem como
instrumento (ainda que um instrumento um tanto arisco), enfrenta o mundo-enigma
como muita auto-ironia, demolindo qualquer seriedade do assuntoii, veja-se o poema
“Sonetilho de Verão”, do livro Trovar Claroiii:
SONETILHO DE VERÃO
ii
Devo esta expressão “demolir a seridade do assunto” a uma resenha de Marcos Siscar sobre o livro
Tarde.
iii
Este poema aparece traduzido para o inglês em Tarde (2007)
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signo, está inscrita desde sempre na língua, que é filha da falta e do desejo, e não da plenitude e
da unidade, amantes do êxtase e do silêncio”5.
Ora, encontramos exposto, neste trecho, o descompasso entre linguagem (o
instrumento da nossa consciência) e mundo, descompasso esse que vimos ilustrado no
primeiro poema de Britto aqui tratado. Além disso, temos uma menção ao desejo que
também aparece no “Sonetilho de verão” que acabei de citar. A linguagem é
considerada filha do desejo e da faltaiv. Ora, com uma filiação destas, não era mesmo de
se esperar que ela fosse a ferramenta ideal para fazer o mundo deixar de oscilar.
Lembremos, então, que a cortiça não seria o material que melhor cumpriria a função de
calço para alguma coisa, mas sim para fazer cessar ruídos. Isolando ruídos pode até ser
que se venha a acreditar que a cristaleira parou de oscilar, enquanto o que de fato
aconteceu foi que só ruído cessou. Transpondo essa imagem para relação da linguagem
com o mundo, posso dizer que a ferramenta “linguagem” pode até dar impressão de
abarcar o mundo enquanto que a distância entre palavra e mundo, como nota Bosi, é
inerente ao signo, logo, o que se tem é apenas uma ilusãov.
Pensando agora em Caeiro, poderemos ver um posicionamento algo diferente no
jogo de significação diante desse mundo-enigma. Caeiro tem a resposta. Representa a
figura do guru. Em vez de buscar um calço para o mundo, Caeiro faz uma operação que,
pelo menos discursivamente, dispensa artifícios. Comecemos pelo fato de que também
Caeiro nota que a linguagem é um problema. A linguagem está em descompasso com a
Natureza, com o mundo:
É que para falar dela [da Natureza] preciso usar da linguagem dos homens
Que dá personalidade às cousas,
E impõe nome às cousas,
Mas as cousas não tem nome nem personalidade:
Existem, (...)6
iv
O terceiro poema da série “Três peças circenses”, do livro Trovar Claro, pode contribuir para esta
leitura.
v
Fingir que entende o mundo. Instrumento para isso? A linguagem.
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Caeiro reconhece uma função para o uso dessa linguagem falsa. É possível,
através dessa linguagem falsa, mostrar a homens falsos a “existência verdadeiramente
real” de elementos da natureza. Caeiro reconhece isso como um sacrifício de si mesmo.
Ao usar dessa linguagem faz algo com que não concorda, contra-senso que está na base
da poética de Caeiro. Ele não liga para essa oscilação já que ela é natural. Caeiro é
como o corpo do “Sonetilho de Verão” de Britto que, diante de um mundo sem
conserto, não está nem aí.
No primeiro poema de O guardador de rebanhos Caeiro expõe que quer que
aqueles que o lêem pensem que ele é “qualquer cousa natural” e exemplifica com uma
árvore. No poema XLVI, reforçando essa ambição sua, ele diz que sua busca consiste
em:
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.8
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Ora uma coisa, ora outra. Caeiro, aqui, reconhece que se contradiz. Como fazia
também no poema XXXI, entre outros. A contradição é aceita, sem restrições. Sendo
natural, não há problema nenhum, o objetivo é justamente integração com um mundo
que se apresenta novo, rebelde a significações, contraditório. É como se Caeiro
incorporasse a rebeldia do mundo a sua poesia, a sua linguagem, que é rebelde em
relação a pretensões de coerência.
Eduardo Lourenço diz qual a tarefa de Caeiro nas seguintes linhas:
Mas o que ele [Caeiro] é, do que vive em cada poema é da distância (infinita)
que separa consciência e mundo, olhar e coisa vista. Caeiro nasce para a
anular, mas é no espaço que separa olhar e realidade, consciência e sensação
que o seu verbo (a sua voz) irônica e gravemente se articula.10
Entre nossos sentidos que captam o mundo e o próprio mundo está a linguagem,
entre nossa consciência e nossas sensações, também a linguagem. Entre a linguagem e
cada um desses pólos, também uma falta, como é característico do signo (vide citação
de Alfredo Bosi). Tal falta faz oscilar. O enquadramento (o fim da oscilação) nunca
acontecerá? Caeiro nasce para enquadrar, para anular a distância e o que ele faz? Cria
uma linguagem que oscila tanto quanto o mundo, contradizendo-se sem escrúpulos e
impondo isso muitas vezes com uma irredutível dicção infantil e tautológica. Mundo e
linguagem se irmanam em Caeiro quando este cria uma linguagem impositivamente
oscilante, incorporando-se ao movimento natural do mundo, esse “arquiteto de
contingências irrefutáveis” que encontramos em Britto.
Lendo um pouco mais os poemas de Caeiro, eu posso vir a pensar algo oposto a
isso, mas não haveria espaço que bastasse. A significação tem que parar, pelo menos
provisoriamente e não importando que seja de forma arbitrária.
Concluindo provisoriamente, então, digo que Britto é um poeta cientista
popperiano. Cada poema seu é uma versão do mundo, refutável sempre, mas por ora,
enquanto não refutada, serve de verdade provisória. A dúvida sempre estará presente
enquanto se estiver investigando o mundo e Britto convive com isso. O poema
“Epílogo” mostrava isso, as dúvidas só se dissipam quando cessa o trabalho de
conhecer/investigar o mundo dentro da biblioteca. O trabalho de investigação pressupõe
dúvidas. Caeiro, diante do mesmo mundo, busca, menos que entender esse mundo como
um cientista, senti-lo e ser capaz de integrar-se ao seu movimento. Essa vontade de
integração pode ser vista no poema “Sonetilho de Verão” de Britto em que, diante do
mundo sem conserto, o corpo não vê problema algum (ele aceita como o faz Caeiro)
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enquanto dois outros elementos que compõe o sujeito não conseguem tal indiferença: a
alma se escalavra e a razão desatina. Diante desse impasse, Britto é irônico. “Amanhã
deve dar praia”. O impasse existe, mas não há poema-piada (artifício) que não possa
facilitar o trato com ele. Caeiro, também com uma ironia, mas que se disfarça pelo tom
grave, busca a integração tendo como meta a integração do animal (corpo), mas
deixando espaço para consciência e os pensamentos que trazem tristeza e se mostram,
comumente, quando se está doente.
São duas maneiras de encarar os impasses com que a relação entre mundo,
consciência, sensação e razão nos interpela.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo Companhia das Letras, 2000.
BRITTO, Paulo Henriques. Trovar Claro. São Paulo Companhia das Letras, 1997.
NOTAS
1
Britto, 2007, p.27.
2
Idem, p. 43.
3
Ibidem, p. 89.
4
Britto, 1997, p. 81.
5
Bosi, 2000, p. 76
6
Pessoa, 2006, p. 218.
7
Idem, p. 220.
8
Ibidem, p. 226.
9
Idem.
10
Lourenço, p. 36, 1981.
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1. APRESENTAÇÂO
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2. A SAÍDA
O poema “A Saída” parece nos oferecer a proposta real de uma irrealidade total:
visto que o tom narrativo desse poema em prosa (de Películas, seu livro de estréia de
1979), o prende a um encadeamento dos fatos, a uma certa lógica de eventos, ao mesmo
tempo que, irrealmente, afirma clara, porém dissonantemente, a composição do corpo
(aqui representado pelo sangue, a pele) em movimento. Um movimento de separação
concreto do corpo é feito pelo sangue e pela pele: não sabe-se ao certo se o sangue
persegue ao corpo ou ao coração, mas deles está, certamente dissociado: “consta que o
sangue o perseguisse senão muito raramente”. E a pele que desaparece; através dos
poços refletidos no espelho que traz a memória.
Diferentemente de como costumamos pensar o movimento da pele e do sangue
(convencionalmente, o sangue que corre e a pele que se regenera), aqui esses gestos do
corpo, bem como a transfiguração de suas funções convencionais parecem se dirigir a
um fora, a um em torno: havia no corpo uma saída, e por ela podia-se ir aonde se
quisesse. Colocar-se ou estar fora de sí, pressupõe, no valor pejorativo da expressão, a
perda do controle, uma via de acesso à uma certa loucura... Sugiro que, em Luis Miguel
Nava, a saída de sí seja o projeto de estabelecer no espaço limitado do poema, da
escrita, a tentativa de uma nova visão do corpo e sobre o corpo, a personificação dos
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orgãos: dar-lhes voz, vida, movimento. O corpo que funciona como uma grande
máquina-orquestra, onde a função de cada orgão se define mas corre sempre o risco de
vazar, numa tentativa de apropriação dos gestos que, uma vez, foram executados por um
sujeito (em sí e plenamente consciente de suas movimentações). Mas não aqui nessa
poética. A poética naviana estabelece, delineia o sujeito fora de sí... não caminhando
para algum descontrole, mas por uma reconfiguração dos limites de corpo, pele; bem
como uma reconfiguração da imaginação/ criação desse corpo, pele. Dessa forma, esta
poética está em perfeita aproximação com a teoria da subjetividade lírica tal como
pensada por Collot: “A meu ver, uma das vias mais fecundas de uma tal interpretação da
subjetividade lírica (...) não considera mais o sujeito em termos de substância, de
interioridade e de identidade, mas em sua relação constitutiva com um fora que,
especialmente em sua visão existencial, o altera, colocando a acentuação (...) em seu ser
no mundo e para o outro”. (REF)
3. DICOTOMIA E PARADOXO
Tive hoje, olhando o céu pela janela do meu quarto, a sensação de que ele se
me entranhava até à infância. Nunca supus que em mim houvesse uma
profundidade capaz de absorver uma tão extensa superfície azul, a qual
vertiginosamente refluia por mim dentro, iluminando espaços de cuja
existência eu nem sequer desconfiava. O certo é que, ao atingir maior
profundidade, a cor se lhe alterou profundamente, embora a natureza dessa
mutação não fosse propriamente te ordem física. Foi como se ao chegar a
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esse ponto, tendo a bomba da memória começado a trabalhar, a luz que sobre
ele este mecanismo vomitava lhe alterasse a própria consistência e
fuiosamente arrancasse ao coração da terra aquele que, a um ritmo idêntico,
eu sentia acelerar-se me entre os ossos.
Mas se esse conhecimento se dá com o corpo, uma vez sujeito que se lança para
fora de sí, em busca de uma dissolução dos limites e fronteiras do corpo, fronteiras do
corpo com o mundo, fronteias do mundo do corpo... isso não se dá sem um paradoxo: a
intenção de aniquilamento das fronteiras é um projeto poético, e, como tal, limitado ao
espaço da linguagem e da escrita.
O poema é um dado concreto, a linguagem é o acontecimento que reduz a
palavra por palavra (sobre isso me questiono, não é uma inferência). Resta somente essa
poética das ilimitações como um projeto, intenção poética... E, talvez não haja
problema, porque na criação, “o real é um vidro pintado sob o sol berrante” ... O que
importa é a escrita: “começou a escrever então (nos diz o verso). Como se a espinha do
próprio ato de escrever ficasse à mostra, a mão foi emergindo aos poucos do papel.”
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Mestranda em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Filosofia Letras e
Ciências Humanas)
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Na poesia de Sophia Andresen essa característica pode se revelar tanto pela via das
imagens que o texto evoca, quanto por elementos rítmicos que convergem na capacidade do
texto poético de plasmar momentos e sensações regidos pela brevidade e pela instabilidade.
Ao encontro dessa leitura, No poema, publicado em Mar Novo (1958), traz à margem esse
registro do efêmero.
A primeira estrofe deste texto poético composto por dois quartetos já remonta à
leitura da poesia como um fenômeno que não representa, mas apresenta um objeto, num
contexto em que as imagens poéticas oferecem o exato momento de percepção no qual o
real é transposto para as malhas do texto:
Nesse contexto, convém observar que o real evocado no poema não se limita a
elementos materiais do universo circundante do sujeito poético - quadro, muro, flor, copo -,
mas, principalmente, ao que é da ordem do imaterial: a brisa, a visão do brilho da madeira e
a sensação da “fria e virgem liquidez da água”. E é justamente essa capacidade de ir além
da mera descrição ou representação que confere ao poeta aptidão para transferir o
contingente e o fugidio “Para o mundo do poema limpo e rigoroso”.
A capacidade do poema de resguardar o transitório - “O gesto claro da mão tocando
a mesa” - é rechaçada na segunda estância logo nos dois primeiros versos, que já
prenunciam a perpetuação dessas cristalizações: “Preservar de decadência morte e ruína / O
instante real de aparição e de surpresa”.
Num contexto em que as imagens plasmadas no poema ressuscitam a perspectiva
baudelaireana da modernidade como “o transitório, o efêmero, o contingente” (p. 26, 2002),
convém atentar também para um outro aspecto do texto: a supressão dos sinais gráficos de
pontuação. Nota-se que em nenhum momento eles entram em cena. Nem mesmo a vírgula,
indicada para uma pausa ligeira, é aplicada para listar elementos: “Transferir o quadro o
muro a brisa/ A flor o copo o brilho da madeira [...] Preservar de decadência morte e ruína”.
Essa característica se articula com a perspectiva do poema como a escritura de um espaço
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[...] o sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria
geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a
literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio
país tem uma existência simultânea e constitui uma ordem simultânea.
(ELIOT, 1989, p.39)
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muito conhecida de Sophia: “Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa,
um círculo onde o pássaro do real fica preso.”
Entretanto, mais que trazer à margem a herança da civilização grega em sua obra, a
autora, nesse poema, também aponta para a modernidade pulsante dentro do mito. Orfeu,
que também era poeta, foi buscar sua amada no Hades, mundo dos mortos. Ocorre que esse
mesmo espaço surge, na modernidade, como uma metáfora do estado ideal do autor, no
qual tudo pode ser visto com mais clarividência, constituindo o espaço da escrita do
outsider.
A perspectiva defendida por Michel Foucault (2002, p.80) de que o ofício do poeta
consiste no ato de “apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias aos
discursos” também é uma preocupação da poética de Sophia Andresen. Em uma de suas
artes poéticas, a autora descreve uma situação que vai também ao encontro do ponto de
vista de Eliot, fundado na idéia de que o autor deve estar fora do mundo e de si mesmo em
seu ofício: “A evolução de um artista é um contínuo auto-sacrifício, uma contínua extinção
da personalidade”. (1989, p.42)
A passagem que segue revela justamente como se dá esse distanciamento da escrita
em Sophia:
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles
momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito mais tarde, que
não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a
despersonalização.
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que sustenta a postura do autor como alguém que observa de fora. Eis que, como dizia
Bachelard, “O poeta fala no limiar do ser”. (2008, p.2)
Pois a poesia é a própria existência das coisas em si, como realidade inteira,
independente daquele que a conhece. [...] Se o poeta procura tanto a solidão, não
é só para fugir ao rumor e à agitação, mas também para ver as coisas, quando elas
estão sozinhas.
[...]
A emoção que sentimos ao entrar numa casa deserta ou num jardim abandonado é
a emoção de ver que as coisas sem nós existem, na sua própria realidade, em si. É
com esse em si que o poeta quer entrar em relação.
[...]
Essa relação com a realidade é essencialmente encontro e não conhecimento.
(ANDRESEN, 1960, p. 53)
Para Sophia, a finalidade do poeta é a união com essa Poesia imanente que permeia
o real. No entanto, tal encontro nunca é total, e a lacuna que impede a união entre o poeta e
a Poesia é preenchida pelo poema, que surge como um medianeiro:
O poema vem como um intermediário, é ele que torna possível que a poesia não
se quebre contra os seus próprios limites. Podemos dizer por isso que o poema é
liberdade. [...]
Não podendo fundir-se com o mar e com o vento, o poeta cria um poema onde as
palavras são simultaneamente palavras, mar, vento. Não podendo atingir a união
absoluta com a Realidade, o poeta faz o poema onde seu ser e a Realidade estão
indissoluvelmente unidos. Por isso o poema é o selo da aliança do homem com as
coisas. (ANDRESEN, 1960, p. 54)
Mas é nas Artes Poéticas que as vicissitudes do fazer literário de Sophia aparecem
com mais força para revelar uma criação que transcende estéticas e teorias. Fruto de uma
consciência arguta do real, de uma fidelidade que se projeta além do controle de quem cria,
o fazer poético, para Sophia, traduz-se como uma “intransigência sem lacuna”, numa
obstinação pelo real que somente a poesia é capaz de estabelecer:
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crescer do mar, nem o mudar das luas.“ Nesses versos, a figura da cidade como espaço de
cerceamento é tão incisiva que chega ao ponto de privar o eu poético da própria vida que
segue além das muralhas. E é justamente a consciência dessa separação que amplia a cisão
íntima do indivíduo. O sujeito poético que habita a cidade vive o paradoxo de uma
existência inerte e insípida em meio à vida frenética, barulhenta e agitada da cidade.
Ainda sobre este poema é interessante observar alguns aspectos na disposição das
rimas, que começam e se encerram alternadamente, nos quatro versos iniciais e nos quatro
últimos. Além disso, um aspecto que chama atenção é a relação paradoxal que se
estabelece entre os pares iniciais.
Nos versos em questão, a aproximação sonora está justamente nos termos que são
da ordem de universos antagônicos. O substantivo “ruas” (cidade) estabelece uma rima rica
com o adjetivo “nuas” (praias). O mesmo se dá na rima pobre entre o adjetivo “gasta”
(cidade) e “vastas” (planícies).
Num contexto em que uma mesma imagem poética é regida pela pluralidade,
convém chamar atenção para sua capacidade de reunir significados opostos:
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Cidades e ciladas
Mas também
O pasmo de tão grande arquitetura
As sedas os perfumes a doçura
Das vozes e dos gestos
Os grandes pátios da noite e sua flor
De pânico e sossego
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Tal interpretação tem continuidade, por sua vez, na figura da medusa. Recorrente na
criação poética de Sophia, a admiração pelos celenterados2 aparece aqui na figura desse ser
tentacular, que no poema pode ser lido como o terror íntimo que permeia o inconsciente,
uma ameaça que paira sobre o indivíduo (CEIA, 1996, p.78).
A imagem desse elemento se revela plural na medida em que permite duas leituras.
Uma baseada na forma e composição do animal, um ser gelatinoso, pegajoso e tentacular,
que se prende às redes do pensamento do marinheiro. A outra está ligada à figura
mitológica, uma das górgonas: “Cada uma das três irmãs (Esteno, Euríale e Medusa), com
serpentes no lugar de cabelos, cujo olhar petrificava todos aqueles que as encaravam.”
(HOUAISS, 2001).
Aprofundando essa linha de raciocínio com um olhar restrito à figura da medusa,
convém retomar a sua simbologia, que remete às deformações monstruosas da psique,
segundo as quais, a górgona refletiria a culpa pessoal de um eu que fica petrificado de
horror ao se defrontar consigo mesmo (CHEVALIER, 2007, p. 476). E é nesse contexto
que as imagens poéticas suscitadas em Marinheiro sem mar apontam para o desconcerto do
indivíduo que experimenta a sensação de estar exilado no mundo.
Na outra ponta, o ritmo segue sinalizando a mesma instabilidade sugerida pelas
imagens. A começar pela disposição das estrofes. A princípio, é possível perceber no
poema uma certa regularidade, por meio da alternância entre quadras e tercetos até a quinta
estrofe. A partir dessa, entra em cena um ritmo variável e imprevisível. Às formas
predominantes no início do poema intercalam-se quintetos, sextilhas, sétimas, dísticos e até
composições de um verso apenas. Tal seqüência remonta justamente à condição incerta do
marinheiro.
A mesma característica imprevisível da distribuição estrófica pode ser identificada
na contagem das sílabas. Os versos presentes nas três primeiras estâncias são marcados pela
predominância de decassílabos. No entanto, essa estabilidade inicial é quebrada aos poucos,
até que o fluxo de decassílabos ceda espaço a versos dos mais diversos tamanhos, como
acontece na sétima estrofe, que traz a seguinte seqüência: hendecassílabo, pentassílabo,
heptassílabo, hexassílabo, eneassílabo, heptassílabo e, finalizando a estrofe, novamente o
hendecassílabo.
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CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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__________. Poemas Escolhidos. Seleção de Vilma Arêas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Coleção Tópicos. São Paulo: Martins Fontes,
2008.
CEIA, Carlos. Iniciação aos Mistérios da Poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. 1ª
edição. Lisboa: Vega, 1996.
CUNHA, António Manuel dos Santos. Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos Gregos e
Encontro com o Real. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2004.
HOUAISS, Antônio. Novo dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva,
2006.
SILVEIRA, Jorge Fernandes. “Casas na poesia de Fernando Pessoa”. In: Escrever a Casa
Portuguesa, Org. Jorge Fernandes da Silveira. BH: Ed. UFMG, 1999.
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_________________
NOTAS
1
Animais invertebrados aquáticos, geralmente marinhos com tentáculos e corpo em forma de pólipo ou
medusa. (HOUAISS, 2001, p.1880)
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1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia.
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Ali é o lugar, como o ninho de uma grande ave que levantou vôo. O grito de
Blimunda, terceiro, e sempre o mesmo nome, não foi agudo, apenas uma
explosão sufocada, como se as tripas lhe estivessem sendo arrancadas por
gigantesca mão, Baltasar, e ao dizê-lo compreendeu que desde o princípio
soubera que viria encontrar deserto este lugar.4
As tentações a que será submetida essa heroína serão muitas: a fome, as noites
insones, a ameaça dos humanos, o frio, os caminhos de pedras e a longa caminhada que
a espera. Blimunda é a imagem do andarilho e do andrógino a caminhar em busca de
sua outra metade. Aí se somam a miséria e a inquietação:
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pessoas com quem se relaciona estão sempre aquém de seus propósitos, sempre atrás de
sua inquietação. Nada e ninguém a possui. O casamento com Otávio não foi capaz de
completar essa lacuna, pelo contrário, apenas intensificou, fazendo-a buscar um
complemento em outra relação, também fadada ao fracasso. A idéia delineada na
epígrafe do livro (“Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração
da vida” Joyce) define desde logo a sina da personagem: sozinha, abandonada,
padecendo do suplício de Tântalo, embora feliz.
Outra marca muito evidente na personalidade da protagonista de Perto do
coração selvagem é a transgressão, ou, pelo menos, a tentativa de subversão dos valores
que sustentavam a sociedade em que vive. Ressonância de Antígona em seu projeto
subversivo, a heroína clariceana traz internalizada a transgressão das normas sociais e,
calcada nessa posição, direciona sua trajetória de natureza individual e narcísica.
Quando rouba um livro e flagrada pela tia, por exemplo, a personagem evidencia esse
princípio ético individual que a direciona:
- Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum.
- Deus me ajude, quando faz mal, Joana?
- Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste.
[...]
Joana olhou-a com curiosidade:
- Mas se eu estou dizendo que posso tudo, que... - Eram inúteis as
explicações. - Sim, prometo. Em nome de meu pai.8
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seu corpo d’água. Mas ansiosa e infeliz como se apesar de tudo restassem terras ainda
não molhadas, áridas e sedentas”.11
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tanto José Saramago quanto Clarice Lispector souberam dar forma aos desejos
humanos em suas narrativas de modo muito peculiar, revelando os meandros que
engendram as buscas e os anseios de cada indivíduo. Se um priorizou o viés historicista
para representar essas vontades escravizadas por um poder controlador, o outro
procurou evidenciar, por um viés intimista, a inquietude motivada pela vontade. Ambos,
portanto, apontam para os anseios e as vontades insatisfeitas que habitam cada ser
humano e faz dele um eterno desejante, um eterno descontente. Pelo olhar de Blimunda
o mundo humano é mostrado em sua pequenez. Pelo olhar de Joana, o mundo que
sustenta essa realidade humana é desmascarado em sua precariedade. Se a primeira
evidenciou o término de um ciclo, a outra aponta para o eterno recomeçar, para novas
dimensões, perenes recomeços, onde todo sujeito se inscreve e se constrói.
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REFERÊNCIAS
NOTAS
1
Saramago, 1983, p. 137.
2
Ibid., p. 182.
3
Ibid., p. 332.
4
Ibid., p. 340.
5
Ibid., p. 353.
6
Ibid., p. 357.
7
Lispector, 1980, p. 166.
8
Ibid., p. 45.
9
Candido, 1977, p. 130.
10
Lispector, 1980, p. 62.
11
Ibid., p. 91.
12
Ibid., p. 10.
1703
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1
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora
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(...) aproveitamos o acaso de haver aqui ainda uns olhos lúcidos, os últimos
que restam, se um dia eles se apagarem, não quero nem pensar, então o fio
nos une a essa humanidade partir-se-á, será como se estivéssemos a afastar-
nos uns dos outros no espaço, para sempre, e tão cegos eles como nós,”
(SARAMAGO,1995, p. 290)
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manicômio vivenciam um estado de civilidade perturbado pela fome e pelo medo, que
são apontados como elementos causadores do caos e da barbárie, como vemos em: “Se
não nos organizarmos a sério, mandarão a fome e o medo, já é uma vergonha que não
tenhamos ido com eles enterrar os mortos,” (SARAMAGO, 1995, p. 96)
Viver impulsionado pelo medo e pela fome desencadeia uma série de ações de
luta pela sobrevivência, estimulando o uso da força física em detrimento das ações
habituais do homem civilizado e racional. O romance sugere esse embate ao mostrar a
aproximação do leite e do sangue, que metaforicamente antecederá todo o conflito
humano gerado dentro do manicômio e, posteriormente, por toda a cidade.
O sangue derramado anuncia apenas uma das inúmeras mortes que ocorrerão
durante a cegueira. Interessante ver que mesmo a brancura do leite expressa momentos
de sofrimento e dor, bem diferente da simbologia usual que alude à paz e à
tranqüilidade.
A comida constitui, pois, um objeto de disputa e levará a conflitos violentos,
sendo utilizada como objeto de troca, para obter vantagens, primeiramente, financeiras
e, depois de se esgotarem os bens materiais, favores sexuais. A luta pela comida isolará
cada vez mais os homens, que apresentará duas soluções distintas, ou se organizar em
pequenos grupos ou viver sozinhos.
Eles dizem que isso acabou a partir de hoje quem quiser comer terá de pagar.
Os protestos saltaram de todos os lados na camarata, Não pode ser, Tirarem-
nos a nossa comida, Cambada de gatunos, Uma vergonha, cegos contra
cegos, nunca esperei ter de viver para ver uma coisa destas, (SARAMAGO,
1995, p. 138)
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No entanto, esse recurso narrativo não deve ser confundido com os antigos
métodos naturalistas de escrita, que utilizavam os animais no intuito de depreciar as
atitudes humanas. Saramago, portanto, não utiliza a idéia do “tornar-se animal” para
julgar seus personagens, mas especialmente para referendar questões acerca dos limites
do entendimento da palavra homem, rompendo com estruturas simplistas que o reduzem
ao cultural.
1. OS PROJETOS CIVILIZATÓRIOS
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2. AMOR, HOSPITALIDADE
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Afinal, e não foi só naquela rua nem só naquele prédio que o maravilhoso
caso se produziu, rivalizando com os mais nobres exemplos históricos de
amor ao próximo, tanto da espécie religiosa como da profana, os caluniados e
os insultados brancosos desceram a ajudar os vencidos da facção adversária,
cada um decidiu por sua conta e a sós com a sua consciência, não se deu fé de
qualquer convocatória vinda de cima nem de palavra de ordem que fosse
preciso aprender de cor, mas a verdade é que todos desceram a dar a ajuda
que as suas forças permitiam, e então tinham sido eles quem havia dito,
cuidado com o piano, cuidado com o serviço de chá, cuidado com a salva de
prata, cuidado com o retrato, cuidado com o avô. (SARAMAGO, 2004, p.
166)
(...) o que em contrapartida a tudo isto vos trago aqui é nada mais e nada
menos que uma proposta de retirada múltipla, um conjunto de acções que
alguns talvez considerem absurdas, mas que tenho a certeza nos levarão à
vitória total e ao regresso à normalidade democrática, a saber, e por ordem de
importância, a retirada imediata do governo para outra cidade, que passará a
ser a nova capital do país, a retirada de todas as forças do exército que ainda
ali se encontram, a retirada de todas as forças policiais, com esta acção
radical a cidade insurgente ficará entregue a si mesma, terá todo o tempo de
que precisar para compreender o que custa ser segregada da sacrossanta
unidade nacional (...) (SARAMAGO, 2004, p. 75)
Contudo, nem o governo nem a polícia fazem falta à cidade que passa a
vivenciar uma organização alternativa, sempre baseando-se no ideal de solidariedade.
Esse tipo de organização passa os olhos da “sacrossanta unidade nacional” como
exemplo de anarquia. No entanto, as pessoas começam a seguir uma lógica peculiar,
escassa entre os homens, a de respeito e amor ao próximo. Como exemplo de
solidariedade, temos:
Ao ministro do interior, que havia sido o da ideia, não lhe assentou nada bem
que os empregados dos serviços de recolha do lixo tivessem espontaneamente
regressado ao trabalho, atitude que, na compreensão de ministro, mais do que
uma demonstração de solidariedade com as admiráveis mulheres que tinham
feito da limpeza da rua uma questão de honra, (...) (SARAMAGO, 2004, p.
105)
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entrevista que “não existe cultura, nem vínculo social, sem um princípio de
hospitalidade” (DERRIDA, 2004, p. 249). Esse conceito é bastante interessante para
pensar o contexto das relações humanas, revendo projetos civilizatórios que partiam
sempre da imposição pela força e pela violência. A hospitalidade engendra uma situação
de negociação e solidariedade, como uma responsabilidade individual e social.
Tradicionalmente, a relação hóspede e hospedeiro se constrói com muitas
fronteiras que separam o familiar do estrangeiro, o privado do público, o eu do outro,
cisão que se fortalece de acordo com o rigor das leis do hospedeiro ou com os abusos do
hóspede. Contudo, quando não se atinge um estado intermediário, em que as duas partes
acordem e se auto-beneficiem, não se caracteriza a hospitalidade derridiana. Nas
palavras do teórico:
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e outra que tem um modelo alternativo de organização, sem líderes e sem uso da
violência “(...) comentaram com estranheza a ausência absoluta de conflitos entre as
pessoas (...)” (SARAMAGO, 2004, p. 70) e “Parecia que a polícia, afinal, não fazia
nenhuma falta à segurança da cidade, que a própria população, espontaneamente ou de
maneira mais ou menos organizada, tinha tomado à sua conta as tarefas da vigilância.”
(SARAMAGO, 2004, p. 113) . O segundo exemplo não significa a inexistência de leis e
normas, mas uma rearticulação mais flexível das mesmas, de modo a atender aos
anseios dos indivíduos. O princípio norteador desse modelo organizacional é a boa
convivência e o respeito à diversidade.
É interessante observar que mesmo os opositores ao movimento da brancura, ou
seja, os que não votaram em branco, são obrigados a retornar à cidade, pois o próprio
governo os abandona e nega-lhes o apoio prometido por alianças políticas, e são
recebidos de forma receptiva.
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REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras: 1995.
_____________. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras: 2004.
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INTRODUÇÃO
1
Docente de Língua Portuguesa e Literatura na UTFPR/CP. Doutoranda em Letras na UEL.
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populares, que, em muitos momentos entram em choque com as novas tendências tanto
políticas como religiosas, buscando-se, por meio do caos que se instaura, retomar a
ordem, numa mescla entre tradição e modernidade, tendo o sincretismo como um dos
fios condutores. Segundo Serra2:
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Que lhe punha ainda mais intrigado foi Ti Lucas lhe ter dito, depois, que
naquela longa viagem tinha também a companhia de certas almas! Que essas
almas de outro mundo eram como se fossem passageiros que tinham
embarcado em Malange, que seguiam todos os passos de os vivos viandantes.
Que essas vadias almas viajavam só com eles, sem destino certo. Ih?! Podia
ser? Manecas, as mareantes fúrias bravas, começava então a compreender
que um velho papagaio não precisa que lhe digam onde deve pôr os seus
ovos. 6
Mãe, Materno Mar é dividido em três partes: terra, fogo e água, elementos
fundamentais para a vida que tem grande importância para o equilíbrio cósmico. O
quarto elemento, o ar, está subentendido em toda a história, na imaginação, na busca
pela liberdade, nas lembranças, no sobrenatural, mas também nos maus agouros,
presságios e outros ares aziagos.
Os elementos terra, fogo e água também podem representar vida, morte,
redenção e purificação. A terra, que do pó o homem nasce e ao pó deve retornar, faz
uma referência à fecundidade, fertilidade, nascimento, mas também enterro, morte,
finitude. O fogo, além de destruição, pode também representar purificação, redenção,
sexualidade e renascimento, pois após a destruição de algo, outro se constrói, por
exemplo, da queima ficam os gases, que dão origem a algum outro elemento: são as
metamorfoses, as transformações para o equilíbrio do ecossistema. Segundo Durand7,
“O fogo pode ser purificador ou ao contrário sexualmente valorizado, e a história das
religiões confirma as verificações do psicanalista dos elementos [...] O fogo é chama
purificadora, mas também centro genital do lar patriarcal.
A água pode representar o início da vida, pois já no ventre da mãe o feto convive
com esse elemento e para crescer e sobreviver também fora do útero, o bebê precisa de
uma grande quantidade de água nas células, assim como em toda sua vida. A água
também é um importante elemento para a cultura banto. O próprio título da obra Mãe,
Materno Mar faz alusão ao início da vida por meio da água e esta relacionada à
maternidade.
-Que eu sinto, meu filho, é que tudo é possível. Às vezes é melhor acreditar
que duvidar. A água está entre a terra e o fogo. Ela tanto pode significar
nascimento como morte. Ela é muito traiçoeira e oportunista porque não tem
forma própria. Como não tem casa própria, anda por aí a vaguear, a vaguear.
Tudo é possível. É possível que aconteça qualquer coisa dentro de pouco
tempo.8
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manter a calma dos fiéis, mas o profeta Simon se diz o único capaz de protegê-los:
revela-se o SALVADOR, realizando alguns feitos que deixaram até os outros pastores
surpresos, como por exemplo, impedir que a enxurrada chegasse perto do comboio.
Esse episódio remete o leitor à figura bíblica de Moisés, pois o Profeta desvia a
enxurrada com seu bastão para que não atingisse o comboio, como Moisés abre as
águas do mar Vermelho para salvar seus discípulos. Segundo Durand9, “... a água, além
de bebida, foi o primeiro espelho dormente e sombrio.”
Nesse episódio, o profeta se recorda do momento em que lhe foi dado este
poder: entre batuques viu a imagem de uma santa negra saindo do lago em sua direção,
entregou-lhe um bastão e lhe disse que seria um grande homem.
É! É! É! Mas como uma santa se ele nos seus mais de vinte anos de
catecismo nunca lhe tinha visto o rosto estampado nos muitos santinhos que
ele distribuía aos crentes? Uma santa preta? Santa preta só podia ser bruxa,
que ele se lembrou do que sempre tinha ouvido dizer. Mas agora tinha as
dúvidas nenhumas, era uma santa preta,luminosa, aureolada num arco de
azulada luz com laivos prateados, o Kinzwanu naquele pego central estava
profusamente iluminado a tal ponto que Lukau conseguia ainda de ver as
copas das árvores do outro lado da margem.11
A santa que revelou a Lukau seu destino de profeta é chamada por ele de “A
senhora das Águas”. O profeta, sempre invocando Nzambi, uma divindade que não tem
forma nem altar próprio, Deus Supremo, Criador nos Candomblés de Nação Angola
também conhecido como Kalunga ou Sukula, invocado apenas em situações extremas,
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CONCLUSÃO
Literatura, arte, ciência, religião enfim, práticas simbólicas são expressões do ser
humano em que consciência, inconsciente coletivo, imaginário e criação fundem-se para
enfrentar o desconhecido, para descobrir e se defender da angústia original: o medo do
tempo e da morte. Mãe, Materno Mar, põe, a todo momento, em xeque, a oposição
vida/morte, todo o caos instaurado no comboio devido às avarias, traz implicitamente
uma ordem natural, permeada pelo sagrado e pela ancestralidade, em que os desejos são
imbuídos pelas crenças e pela memória cultural, e as diferenças se diluem por meio das
dificuldades enfrentadas coletivamente. O mar representando a esfera do sobrenatural,
do sagrado, do religioso, toda raiz do povo angolano nos espíritos de seus antepassados,
na ancestralidade, que consequentemente, como a mãe, traz paz, acalenta e de quem
jamais se desliga. Mesmo com a necessária modernização, permanecem as raízes,
mantem-se as tradições, as maternais águas nunca secam.
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REFERÊNCIAS
CARDOSO, Boaventura. Mãe, Materno Mar. Porto: Campo das Letras, 2001.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
NOTAS
1
Serra, 1995, p. 197-198.
2
Bastide, 1973, p.182.
3
Bergson, 1990.
4
Jung, 1990.
5
Durand, 1997, p.39.
6
Cardoso, 2001, p. 222-3.
7
Durand, 1997, p. 174.
8
Cardoso, 2001, p. 222.
9
Durand, 1997, p. 95.
10
Cardoso, 2001, p. 239.
11
Cardoso, 2201, p. 239.
12
Cardoso, 2001, p. 240-241.
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Eugênio Bucci, em seu ensaio “O olhar mutilado”, faz um estudo acerca das
implicações que uma guerra possui partindo do princípio de que todo o desenvolvimento
dela não visa tão somente à destruição física do alvo escolhido. Uma guerra é um
espetáculo: o maior efeito de uma guerra não virá com a destruição de civis ou de zonas
aleatórias, mas sim quando os símbolos, a honra e a história de um povo forem destruídos.
Bucci começa seu ensaio fazendo uma análise do evento de 11 de setembro de 2001, no
qual houve um atentado terrorista ao World Trade Center, nos Estados Unidos da América.
Uma guerra não ocorre ao acaso: ela acontece porque há um embate entre duas ideologias,
ocorre porque há a invasão dos limites do que um e o outro consideram como verdade. Ao
destruir as torres gêmeas, destruía-se uma memória, portanto, uma imagem. Ele afirma que
é “na imagem e pela imagem que as verdades do nosso tempo são feitas e desfeitas. [...]”3 e,
quando se fere a imagem se fere a verdade. A destruição das torres feriu não somente aos
que estavam no local no momento do atentado, mas a todos que, de alguma forma,
acompanharam as imagens do desmoronamento de um símbolo da civilização ocidental.
I
Mestrando em Estudos Literários da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Minas Gerais.
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As imagens que construímos e que atribuímos significado durante nossa vida são as
que justificam uma ideologia escolhida ou herdada por nós através da influência dos
discursos que nos cercam. Este trabalho tem o intuito de discutir um pouco acerca das
verdades que nos são internalizadas e como elas podem ser desconstruídas, tendo como
corpus o romance A costa dos murmúrios, de Lídia Jorge. Para tanto, aproveita-se aqui o
evidente diálogo que essa obra faz com a matéria histórica; fazendo refletir, portanto, sobre
os liames entre os discursos histórico e fictício. Esse romance foi escolhido para ser
analisado porque, além de ser uma obra que contempla esse diálogo entre duas áreas do
saber, é um romance que possui uma voz narrativa feminina que lança seu olhar sobre a
guerra pós-colonial em Moçambique.
Atualmente possuímos outros tipos de colonização – que englobam a dependência
de nações desde os aspectos econômicos, passando pelos políticos e até mesmo culturais.
Portugal, dentre os impérios colonizadores, foi o último país a obter de fato suas colônias
emancipadas no sentido geográfico do termo. Quando se percebeu que o império construído
e ostentado por ele já não mais existia – que os símbolos considerados como baluartes de
uma era de esplendor eram passíveis de falibilidade; que as verdades antes nunca
contestadas eram agora contestáveis –, as imagens deveriam ser reconstruídas. As verdades
do olhar imperialista sobre a colônia já não faziam mais efeito, pois as referências do
discurso patriarcal do dominador haviam desaparecido. Mais do que o mutilado de guerra,
“[...] o mutilado do olhar tenta acionar um ícone, carregado de sentido imaginário, e se dá
conta de que esse ícone já não existe – e seu sentido imaginário virou poeira negra, fumaça,
carnificina.”4.
Após a Revolução dos Cravos de 1974, Portugal encontrou-se em uma época onde
novos sentidos deveriam ser refeitos para sua constituição identitária enquanto nação. O
país acabara de passar por um regime totalitário, num contexto de guerra, censura e
repressão. Alguns anos após a Revolução, produções acadêmicas e literárias começaram a
surgir com um olhar crítico sobre a situação sociopolítico-econômica de então5. O romance
português contemporâneo, apesar de não constituir um movimento como no caso dos
modernistas, surge então como um romance que irá repensar o quadro histórico, linguístico
e narrativo de Portugal. Se antes, a aproximação do real visava uma imagem mais
verossímil possível do que era tido como “realidade”; o romance contemporâneo
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império em ruínas. Edward Carr levanta alguns aspectos sobre o papel do historiador em
seu texto “O historiador e seus fatos”, tais como a questão da seleção – usada para tornar
um fato necessariamente interessante e importante – e afirma que
Quando um escritor mostra sua visão da sociedade, estaria ele também fazendo
História? De algum modo sim, pois o que ele produz se torna um documento-monumento
importante para a compreensão de determinada época ou fato. E a História e a Literatura de
fato estiveram sempre unidas, apesar das tentativas de classificação ou segregação das duas
disciplinas (principalmente com o advento do positivismo no século XIX). Mas apesar de
possuírem o mesmo objetivo – o de verbalizar o mundo –, as funções do historiador e do
artista se dariam de formas diferentes e, inclusive, já eram discutidas desde a Antiguidade.
Aristóteles já dizia em sua Poética, por exemplo, que o historiador deveria narrar
acontecimentos e o poeta fatos os quais poderiam acontecer. Nos dois ofícios, as histórias
deveriam ser contadas de diferentes maneiras, haja vista que cada um teria uma forma
diferente de conceber a realidade.
Mas, apesar de se ter a noção de que o historiador estaria mais preso a vestígios e
comprovações enquanto o romancista estaria mais livre para criar os fatos (não deixando de
ser verossímeis, contudo); às vezes é difícil colocar limites entre as disciplinas, pois elas
possuem muitos pontos em comum. A começar pelo objeto de estudo: a narrativa. A
narrativa é um discurso construído a partir da memória, ou melhor, do que se seleciona da
memória. A memória por si só não existe, ela precisa ser lembrada, construída – e o papel
do historiador e do romancista seria esse: o de lembrar. E só é possível lembrar ao se
selecionar os fatos pertinentes a um determinado objetivo e, assim, construir a imagem
verbal da realidade10. Um fato não existe até que ele seja criado11, portanto, a memória
somente se constitui como tal enquanto representação12. O historiador e o romancista,
então, trabalham com representação, pois trabalham com a linguagem.
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sons, percepções, enfim: olhares. E foi a partir do começo do relato de Eva Lopo, quando
ela reconhece sua posição enquanto instância criadora dos fatos e diz “Não, não é pouco o
cheiro e o som”15 que foi extraído o título e a motivação para a feitura deste trabalho.
O romance é dividido basicamente em duas partes: a primeira, chamada Os
Gafanhotos, é um relato (onde ficamos sabendo posteriormente que foi feito por um
jornalista) de Eva quando jovem (Evita), sobre sua festa de casamento no terraço do hotel
Stella Maris – onde esta parte da narrativa se concentra. Em um determinado ponto da
noite, alguns convidados da festa descobrem que negros africanos estavam sendo mortos e
entulhados na costa devido a um envenenamento em massa por álcool metílico. Os
convidados, do alto do hotel, passam então a serem observadores do evento, usando
binóculos e fazendo asserções a respeito do ocorrido. Já a segunda parte do romance é
dividida em nove capítulos e corresponde ao relato de Eva Lopo já madura. Ela revisita os
fatos, símbolos e pessoas que foram citados em Os Gafanhotos, mostrando novas facetas
sobre as coisas e não mais escondendo elementos que poderiam ser prejudiciais à
divulgação da história oficial. Seria uma espécie de sua versão tardia do que deveria ter
sido mostrado desde o princípio, pois em Os Gafanhotos, “[...] o que se pretende clarificar
clarifica, e o que pretendeu esconder ficou imerso.”16 Nessa parte do romance, Eva constrói
e desconstrói a história, refletindo e se posicionando enquanto um sujeito que, apesar de
estar talvez marginalizado por sua condição feminina, era também partícipe indireto dos
crimes justificados pela superioridade de classe naquele contexto.
Eva tece e destece a narrativa fazendo com que a história da vida das personagens se
interpole (ou se confunda) com a história oficial, ou até mesmo com a história da colônia;
se tornando, assim, paralelas. Ou seja, à medida que a história “real” evolui, a história das
personagens também evolui; mas não como duas histórias paralelas em linhas retas, mas
sim, em curvas, como as ondas do mar; ondas que ora se aproximam, ora se afastam.
Um exemplo de como as histórias coletiva e individual se confundem é quando Eva
trata das várias guerras. Não somente a guerra de fato (a batalha dos portugueses com os
africanos), mas também as guerras individuais, que cada pessoa tinha que enfrentar no seu
dia-a-dia. A guerra das mulheres (“[...] As próprias mulheres ficavam com sua guerra, que
era a gravidez, a amamentação, algum pequeno emprego pelas horas da fresca. [...]”17); a
banalização do que era a guerra de fato como instrumento de tolerância e justificação à
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[...] Aproximei-me imenso dos seus dentes e fiquei a ver moverem-se os lábios
que gritavam daquele modo para o capitão, os dentes que ora apareciam ora
desapareciam sob a cobertura dos lábios, e fascinava-me não reconhecer um
único som do noivo, como se dele, ele mesmo, só houvesse de facto o corpo
como uma concha fechada e a alma tivesse desaparecido. [...]21
Assim como a “concha fechada”, Eva transita pelos pequenos momentos da história
tentando desvendar, ou melhor, desvelar (e por que não preencher) as lacunas que o
discurso da História deixou. O título da obra remete justamente a isso: são através dos sons
que não são ouvidos ou dos murmúrios, é que a história poderá ser feita.
Mas apesar de Eva tentar resgatar e modificar a história oficial, ela não está
destituída de culpa, pois ela também se posiciona como colonizadora, como por exemplo
quando ela vai ao escritório do jornal Hinterland para denunciar que o envenenamento
possa não ter sido acidental, mas sim planejado pelos generais da guerra. Ela tenta se
colocar na posição de transgressora, mas deixa escapar valores internalizados que a
colocam do lado de Portugal enquanto colonizador: “[...] Todas as pessoas civilizadas, entre
a polícia e a informação, preferem a informação. Foi por isso que eu, que sou civilizada,
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preferi um jornal à polícia. “Ouviu?” – disse Evita.”22 Ao afirmar “eu, que sou civilizada”,
Evita deixa transparecer a ideia de “eu, que sou colonizadora, de alguma forma”. Isso só
vem a retificar as ideias estereotipadas que os colonizadores possuem em relação aos
colonizados, como a do Comandante da Região Aérea, que diz ““África é amarela, minha
senhora””23, mostrando que África não possuía liberdade, riquezas e identidade próprias,
mas sim que pertenciam a Portugal (o amarelo aqui não simbolizando somente o ouro, mas
possivelmente também os campos amarelos de Portugal e toda noção de grandiosidade
épica civilizatória relacionada às nações mais favorecidas):
“As pessoas têm de África ideias loucas. As pessoas pensam, minha senhora, que
África é uma floresta virgem, impenetrável, onde um leão come um preto, um
preto come um rato assado, o rato come as colheitas verdes, e tudo é verde e
preto. Mas é falso, minha senhora, África, como terá oportunidade de ver, é
amarela. Amarela-clara, da cor do whisky!”24
[...] Vim enganada parar naquela costa – o que me chamou, ou me empurrou, quis
que sofresse a desilusão sobre todas as coisas daquela costa. Porque não salta
uma perna da mesa de forma a mostrar essa desilusão? Bato na mesa que salta,
assento um baque no coração da mesa como na cara da culpa. Não me importo
que a mão inche. Naquele momento não é o metanol espalhado que me importa,
mas a mesa que não obedece e não salta quanto eu quero.25
Isso reitera o que a própria Lídia Jorge disse em entrevista concedida a Álvaro
Cardoso GomesII: “[...] A Eva é cruel e não está sozinha. [...] ela de fato não fez a guerra,
mas participou desse momento histórico em que a guerra foi feita. [...]”26. Como partícipe
desse evento, Eva se distancia e se aproxima da história, ora focando em pontos específicos
e tratando dos motivos que levaram a pequenos fatos ocorrerem (como as mulheres
dançando no salão, ou o bolo partido na mesa da festa), ora focando pontos maiores, que
II
Ao fazer um esboço de panorama da literatura portuguesa, Álvaro Cardoso Gomes, em seu estudo A voz
intinerante, entrevista os cinco autores analisados por ele em sua pesquisa: José Saramago, António Lobo
Antunes, Teolinda Gersão, Almeida Faria e Lídia Jorge.
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levam a uma nova visão sobre a guerra, e que atinge a todos os que se encontram lá naquele
local (os envenenamentos, a ida dos homens para Mueda). A união desses dois pontos de
vista é o que constituirá a imagem verbal da realidade da guerra que Lídia Jorge quis passar
em seu romance.
Ao se apagar as torres gêmeas em 11 de setembro, quis-se, na verdade, apagar a
memória. As nações, como já dito anteriormente, se sustentam através da imagem, de
símbolos; e quando estes são destruídos, é a memória e história de um povo que está sendo
apagada. Com Portugal não foi diferente. Em A costa dos murmúrios, o hotel Stella Maris
representa a relação entre o colonizador e a colônia. O hotel era o espaço onde as decisões
ocorriam, era um espaço de abrigo para os portugueses. Era um forte. Nem tão forte assim.
Eva mostra que o hotel não passava de uma ruína, e que precisaria muito mais do que uma
versão idealizada dos fatos para que ele continuasse a ser um ponto seguro de referência:
“[...] é impossível suster uma ruína só com a vontade.”27 Eva, ao comparar seu relato com
Os Gafanhotos, chega à conclusão de que talvez este último seja mesmo a versão
publicável, pois a sua própria versão dos fatos acaba por se tornar uma versão
desencantada, traumatizada, da realidade:
[...] a memória é uma fraude para iludir o olvido cor de pó. Porque insiste em
agitar a matéria real de que são feitos os heróis? Prefiro o seu relato onde a
harmonia rescende do que é necessariamente passageiro – disse Eva Lopo.28
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afinal, o ser humano, como sujeito complexo, pode enxergar a realidade de diversas
maneiras. Se a visão do dominador desencantado leva o dominado confiante a uma inversão
de papéis, ou as vozes perdidas se acham em busca de um porto seguro, com certeza a
História e a Literatura têm muito ainda a nos oferecer nesse mar que separa nossos anseios.
A necessidade de criar uma nova História, com uma nova visão, tornando cada um
de nós participantes dela mesma, fez com que as linhas das duas disciplinas, que andavam
separadas, se aproximassem, fazendo assim com que não somente o autor das obras
pensasse por nós, mas que cada ser humano, à sua maneira, reescrevesse a sua própria
História.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
1
Jorge, 2004, p. 99.
2
Bucci, 2004, p. 243.
3
Bucci, 2004, p. 228.
4
Bucci, 2004, p. 230.
5
Gomes, 1993.
6
Gomes, 1993, p. 84.
7
Carr, 2002, p. 48.
8
Hutcheon, 1991, p. 45.
9
Carr, 2002, p. 44.
10
Duby, 1989.
11
Carr, 2002.
12
Burke, 2000.
13
Lukács, 1968, p. 62.
14
Jorge, 2004, p. 42.
15
Jorge, 2004, p. 42.
16
Jorge, 2004, p. 41.
17
Jorge, 2004, p. 79.
18
Jorge, 2004, p. 80.
19
Jorge, 2004, p. 81.
20
Jorge, 2004, p. 87, meus grifos.
21
Jorge, 2004, p. 56.
22
Jorge, 2004, p. 134, meus grifos.
23
Jorge, 2004, p. 9.
24
Jorge, 2004, p. 9-10.
25
Jorge, 2004, p. 135.
26
Gomes, 1993, p. 156.
27
Jorge, 2004, p. 116.
28
Jorge, 2004, p. 78.
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É com este texto que o romance abre já de início um eixo paralelo com os
moldes da composição épica ocidental onde Proposição Invocação e Dedicatória
antecedem a narração propriamente dita. Aqui têm-se uma Proposição-Dedicatória: É
dedicatória quando dedica-se aos ousados guerrilheiros africanos que, por meio de seus
atos heróicos, foram os responsáveis por abrir na floresta obscura uma nação. É
proposição na medida em que define sua proposta ao longo da narrativa: contar a
história de Ogun, o prometeu africano. Já na proposta de Mayombe abre-se de cara um
duplo mitológico em seus desdobramentos mitológicos ocidentais e africanos: Prometeu
e Ogun, em suas respectivas culturas, representam o Fogo e o Ferro, sendo que
Prometeu foi castigado pelos deuses por seu ato de rebeldia ao entregar aos homens um
segredo que até então pertencia somente aos imortais: o fogo. Ogun, por sua vez, no
Panteão Yorubá é o orixá responsável por representear o homem com o segredo do
ferro. De acordo com a região e época atribui-se também ao mito de Ogun o fogo e por
vezes ele é referenciado como o dono das matas, embora tradicionalmente a mata seja
da guarda de Oxossi e o fogo seja atributo máximo de Xangô. Na definição de Laura
Padilha: "Hefestos (...)se harmoniza com Ogum e/ou
Xangô, uma moeda de dupla face da cultura angolana".
O fogo dado ao homem lhe serviu tanto na forja do progresso, favorecendo
ferreiros e todos aqueles que se utilizam de ferro e fogo como caçadores e guerreiros
quanto persiste como símbolo de iluminação interior, ritual de aprendizagem.
Curiosamente, a guerra é praticada durante o dia, quando o fogo é meio de luta e a
iluminação é praticada a noite, quando o fogo é passado de" voz em voz" em uma
batalha dialógica que pretende discutir os rumos do futuro e iluminar também a clareira
que se abria em plena escuridão da mata.
Pepetela é um dos autores que se propuseram a discutir em sua sobre sobre os
movimentos de ascensão e queda dos sonhos libertários, projetando-os num oscilamento
dialética de acordo com as circunstâncias que os levavam a escrever: Ora o sonho
diurno, ora o sonho crepuscular: Utopia e Distopia.
O portador do sonho diurno é o herói solar, condutor da utopia de aproximação
do Sol. Quer ascender pela visão do futuro orientando-se pela visão do passado de um
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ângulo maior, voa em direção ao Sol, como o mito de Ícaro, tendo de uma perspectiva
aérea uma visão mais ampla do labirinto que se desenhava nas matas do Mayombe-
Angola. Assim é o Comandante Sem-Medo, rumando inquieto ao seu ponto de ascensão
á frente da tropa que abria a floresta. É nessa linha que em "De Vôos e Ilhas; Literaturas
e Comunitarismos" Benjamin Abdala aponta como lugares do sonho diurno (que ora
entendemos como sendo a "utopia"): o desejo de transformação, uma figuração onde
fulgura o futuro e uma potencialidade subjetiva, ainda com Benjamin, a distância do
Mayombe é permitida pela elevação, mais do que pelo afastamento; movido de
juventude Ícaro rompe com o ideal de equilíbrio clássico com seu
desejo de elevação, o seu impulsor desejo de conquista do infinito.
Assim é o Comandante Sem-Medo, herói de tragédia portanto fora de seu tempo,
um visionário que do alto de seu vôo vê desenrolarem-se estranhos novelos nas matas
do Mayombe. É fundamental ainda para este estudo, a definição de herói-mítico do
mesmo " Vôos e Ilhas" como sendo um "paradigma da humanidade inteira" em seu
"impulso de transformação". Sem-Medo é o arquétipo entre os arquétipos ( Teoria, o
professor;Pagu Aktira, o enfermeiro,etc). Arquétipos guerreiros que, presos em seu
labirinto, vislumbram um céu possível e aspiram - heróis solares que são- um vôo ao
Sol. As narrativas orais são povoadas por personagens arquetípicas por excelência,
Prometeu, Ogun, Ícaro, Xangô, são algumas das figurações do Comandante .
Em "A Geração da Utopia" (1992) surge um novo tipo de herói: o herói
crepuscular, que volta de seu vôo, na figura do Sábio. Com o olhar orientado para o
passado e sem vislumbrar futuro algum, o sábio se vê enfrentando um velho medo
passado: o polvo aparece como figuração de uma sufocante opressão da qual é preciso
não fugir. Em seu sonho crepuscular ele contempla ruínas, têm uma certa "elevação
dada pela experiência do vôo (...)no momento da queda", outra pontual definição de "De
Vôos e Ilhas." Na balança ideológica Mayombe é o movimento de ascensão e A
Geração da Utopia é o movimento de queda.
Uma das várias leituras que se pode ter da guerra nas literaturas africanas é que o
projeto utópico orientou seus gritos de libertação e o movimento de oscilação entre
ascensão e queda alternam-se conforme a posição que se toma diante desta utopia. O
destino final desta utopia não se conhece porquê "(...)só os ciclos são eternos", como
Pepetela finaliza "A Geração da Utopia".
O destino de Sem-Medo é, como não poderia deixar de ser, trágico. Morre no
Mayombe, mas o vôo ao Sol continua.
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REFERÊNCIAS
MACEDO, Tânia. Luanda, história e literatura. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
NOTAS
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Iniciação científica sob orientação de Tania Macedo e subsidiada com Bolsa PIBIC/CNPQ
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Doutorando em Literatura Comparada – Faculdade de Letras da UFMG.
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além do pendor narrativo, ressaltam o corpo e o desejo como alguns dos temas centrais
de suas obras. Joaquim Manuel Magalhães afirma que esses escritores têm
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com o social e já não visa apenas a uma denúncia dessa situação, pois está marcada por
um esgotamento das militâncias. Mas não deixa de ser, ao mesmo tempo, um
posicionamento ideológico por meio do recurso que tem para tal: a palavra poética.
Pois, essa escrita é marcada “pelo excesso, um desvio em relação ao trabalho poético
tradicional regulado pela veracidade emotiva do sentido, por lamuriosos apelos da
consciência, encerram-se a si mesmos”,7 esclarece Manuel Frias Martins.
Ainda pertinente ao contexto, Joaquim Manuel Magalhães assegura que pouca
atenção era dirigida à poesia, pois,
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dizer-se que essa influência de Pessoa se altera, ou mesmo reduz, com a geração de
60”.11
Mas Pessoa, para os poetas dos anos setenta, diferentemente de Helder, não está
no lugar de uma escrita que se tenha de superar ou confrontar. Para eles, Pessoa, “pela
primeira vez, é lido como um clássico, estando suficientemente longe do presente para
já não ter, nele, mais do que o estatuto de uma voz (uma das vozes...) fundadoras da
contemporaneidade”.12
Portanto, o diálogo intenso com a obra de Fernando Pessoa, principalmente com
Álvaro de Campos, ressurge, por exemplo, em Al Berto, como se pode constatar no
poema “O mito da sereia em plástico português”,13 através do qual são revisitados os
poemas “Ode marítima” e “Opiário”; ou nas Três cartas da memória das Índias (1985),
as quais, segundo Edgard Pereira, “evidenciam o tema das Índias por descobrir, a
atração pelo longe e a ânsia de partir”.14 Mais evidente ainda, percebe-se a incorporação
de Pessoa na narrativa “O menino Fernando descobre a arca do Sr. Pessoa”:
O que sabemos é que foi dar a uma clareira de espelhos no fundo do mar,
onde se encontrava uma arca.
Abriu-a, e por entre inúmeros papéis escritos (que ele viria a escrever)
encontrou uma fotografia. Era um retrato seu, numa idade que não suspeitava
ainda vir a ter. Retrato amarelecido que alguém lhe haveria de tirar: com
chapéu, óculos arredondados, e toda a melancolia de um país no olhar.15
Eu nunca tomei uma bica consigo. Nos seculares passeios do nosso adro é
difícil tal prestidigitação. É verdade que tenho um certo susto das suas
palavras. Deve ser o único português de quem diria tal coisa (...). Só quando
me despedi de si consegui perceber que podia tentar com as palavras sons e
sentidos, que fossem meus (...). A poesia portuguesa que lhe seguiu só era
interessante quando não estava colada a si. Nenhum poeta português do pós-
guerra precisou tanto de se ver fugido (...). A maior homenagem que lhe
quero prestar é esta: só consegui juntar verso para o ar livre quando soube, de
certeza certa, que você não estava lá. Esse obscuro lugar, como você diria,
tem percentagem de luta contra si.16
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com Helder se estabelece através de algumas das principais temáticas de suas obras,
como se verifica no estudo de Rosa Maria Martelo: “Corpo, velocidade e dissolução da
identidade (de Herberto Helder a Al Berto)”.17 Porém, a maneira como esses temas são
retratados por estes autores é diferenciada. Nesse sentido, Al Berto está contra Helder.
Para Al Berto, em linhas gerais, enquanto o corpo – sem nome e errante – está
subordinado a si mesmo, mas na velocidade estonteante das grandes cidades, a escrita é
o único lugar possível no qual ainda se pode continuar a viver sob uma conseqüente
desaceleração da identidade:
Para Helder, segundo Rosa Maria Martelo, “escrever com o corpo significa
adquirir uma velocidade situável num plano puramente discursivo, e o processo de
dissolução da identidade deve, por conseguinte, ser considerado nesse mesmo plano”.19
Essa concepção é recorrente na obra de Herberto Helder, como se pode constatar nesta
passagem de um poema sem título:
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à poesia; dialogam com Fernando Pessoa e, de perto, com Herberto Helder; construíram
uma poética fortemente marcada pelo corpo e o desejo. Hoje se percebe o quão
importante foi essa geração, pois os poetas abriram novos espaços para a literatura
portuguesa – a exploração no campo da sexualidade entre iguais, por exemplo –, com
um novo impulso ideológico. Não o da ordem burocrática, mas o da desordem.
REFERÊNCIAS
AMARAL. Sob o signo do capricórnio. In: Al Quimias: Al Berto – as imagens como desejo
de poesia. Sines: Centro Cultural Emmerico Nunes, 2001, p. 49.
MARTELO, Rosa Maria. Em parte incerta. Porto: Campo das Letras Editores, 2004.
PEREIRA, Edgard. Portugal: poetas do fim do milênio. Rio de Janeiro: Ed. Sette
Letras, 1999.
SILVEIRA, Jorge Fernandes. Portugal – maio de poesia 61. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 1986.
NOTAS
1
Coelho, 1988, 128.
2
Magalhães, 1981, p. 258.
3
Publicação coletiva de 1976, que agrupou, dentro de um pacote de papel alinhavado por um barbante,
poemas “amassados” de alguns dos principais poetas da geração de 1970. Seguem os nomes dos
integrantes desse grupo, com os respectivos anos da publicação de seus primeiros livros: António Franco
Alexandre (1969), João Miguel Fernandes Jorge (1971), Joaquim Manuel Magalhães (1974) e Hélder
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Moura Pereira – este último o único estreante em literatura. Para maior aprofundamento sobre esse grupo,
pode-se consultar a obra Portugal: poetas do fim do milênio, de Edgard Pereira, 1999.
4
Magalhães, 1981, p. 272-273.
5
Amaral, 2001, p. 49.
6
Júdice, 1997, p. 92.
7
Martins, 1986, p. 119.
8
Magalhães, 1981, p. 260.
9
Coelho, 1988, p. 128. (Grifos do autor).
10
Poesia 61 surge em Maio de 1961, em Faro, mas desenvolve-se em Lisboa. Entre os autores, o único
inédito em livro era Gastão Cruz. Os outros integrantes eram Casimiro de Brito, Maria Teresa Horta,
Luiza Neto Jorge e Fiama Hasse Pais Brandão. O livro Portugal: maio de poesia, de Jorge Fernandes da
Silveira, 1986, constitui referência sobre esse grupo.
11
Coelho, 1988, p. 117.
12
Júdice, 1997, p. 92.
13
Al Berto, 2000a, p. 83-87.
14
Pereira, 1999, p. 133.
15
Al Berto, 2000b, p. 123.
16
Magalhães apud Coelho, 1988, p. 128.
17
Martelo, 2004, p. 185-199.
18
Al Berto. O medo, p. 26.
19
Martelo. Em parte incerta, p. 193.
20
Helder, 2001, p. 14-18.
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AUTOBIOGRAFIA IMPOSSÍVEL
1
Doutorando em Literatura Comparada pela UFMG.
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distribui ao longo dos fragmentos que compõem o volume e que apontam, de modo sutil
mas indubitável, para dados bastante conhecidos de sua vida civil. É certo que o poeta
nasceu na Ilha da Madeira; é sabido que, quando jovem, viajou boa parte da Europa,
vivendo de expedientes aqui e acolá; é também conhecido o acidente de carro que
sofreu na África, durante sua estada naquele continente. Esses e outros dados vão
aparecer disseminados em Photomaton & Vox, ora transfigurados, ditos indiretamente,
ora declarados abertamente, quase numa perspectiva confessional.
É uma ilha em forma de cão sentado, com a cabeça inclinada para perscrutar
o enigma da água. O cão tem as orelhas fitas porque, ao mesmo tempo que
cheira o mar, recebe notícias do vento. O cão está sentado no atlântico.
(HELDER, 1979, p. 15)
Referindo-se desse modo a sua ilha natal, o autor está próximo do enigmático e
da desreferencialização. Só por nuances é que reconhecemos (ou pensamos reconhecer)
o objeto a que esse trecho se liga. Em outra passagem do livro, no entanto, o tom é
outro. A linguagem é ainda metafórica, mas as referências ao percurso biográfico do
autor (às suas viagens, especificamente) tornam-se mais explícitas, uma vez que até o
título do fragmento em que esse trecho se encontra recebe o nome de “ramificações
autobiográficas”:
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2. JE EST UN AUTRE
Começo com uma frase de Rimbaud (“Eu é outro.”), mas talvez devesse
começar com Roland Barthes: “No campo do sujeito não há referente.” (BARTHES,
2003, p. 69) Não sei qual delas é a mais adequada, mas ambas descrevem uma das
nuances da representação do “eu” empreendida por Herberto Helder em Photomaton &
Vox. Vendo-se como outro, referindo-se a si mesmo muitas vezes na terceira pessoa, o
autor se coloca como espectador da própria vida, distante dela o suficiente para olhá-la
com ironia e não se entregar às facilidades estéticas das escritas do “eu” que se detém na
análise exaustiva de uma consciência una, íntegra. Helder não crê na plenitude e na
integridade da noção tradicional de sujeito. Assim como Rimbaud nas suas Iluminações,
assim como Barthes no caoticamente lúcido Roland Barthes por Roland Barthes, ele
trata de destruir os limites do eu, da consciência e da linguagem através do recurso à
multiplicidade: vendo-se como muitos, às vezes protagonista dos eventos de sua própria
vida, às vezes mero observador aturdido desses mesmos eventos, o poeta subverte a
noção romântica de literatura como expressão (de um eu, de uma personalidade, de uma
consciência de si). Temos agora o eu-ficção, o eu-espectador, ou, se quisermos, o não-
eu:
Até quando pode a memória, e quanto pode, sou o actor e o espectador
cúmplice de uma vida perturbada, dramática e irónica. O pouco que percebo
dessa massa teatral caótica pode inscrever-se na pauta de uma interpretação
menor. Não compreendo nada. (HELDER, 1979, p. 12)
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Falo, evidentemente, da
realidade. Quero dizer: da
poesia.
Herberto Helder
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tom próximo do ensaístico, sobre as propriedades da escrita – mas antes valeria dizer –
da sua própria prática escritural:
Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria
vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabado, sempre
em vias de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um
processo, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.
(DELEUZE, 2006, p. 11)
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outros corpos, outros textos. Escrever a vida, como numa autobiografia, não parece ser
o centro de Photomaton & Vox, apesar de todas as conexões possíveis do livro com esse
gênero; representar uma determinada realidade, ou mesmo elaborar um extenso ensaio
sobre a natureza e as funções da literatura também não o são (ainda que o livro
perambule pelo terreno da ensaística em diversos momentos); o que parece, finalmente,
adequado para descrever o projeto criativo do texto de Herberto Helder seja a noção de
vida escrita: mais do que dizer sobre algo, os fragmentos de Photomaton & Vox
carregam a neutralidade, a corporeidade e o permanente estado de metamorfose que
caracterizam a Vida.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés.
São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.
De Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2006; p. 11-16.
HELDER, Herberto. Photomaton & Vox. Lisboa: Assírio & Alvim, 1979.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. Trad. Jovita Maria G. Noronha & Maria
Inês C. Guedes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
RIMBAUD, Arthur. Prosa poética. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
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*
Doutoranda em Estudos Literários de Literatura Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro-PUC-RIO.
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pelo engenho do próprio escrever entre-linhas.” (Rodrigues, 1980, p.76.) Essa estratégia
de poder de censura tornou-se extremamente sofisticada na fábula, pois o contador de
história relata como o Imperador criou uma rede complexa para “desempestar o Império
e as consciências queimando o termo grosseiro e a frase manhosa, e ia conseguindo.”
(Pires, 1999a, p.72.) Mas o Imperador
Não se dava por satisfeito. Queria melhor, cismava num remédio infalível
que não podia dizer. Reunido no gabinete com alguns mágicos sem
passaporte, ligou lâmpadas e megalâmpadas, instalou labirintos, olhos
eletrônicos, cabelos de platina, deu instruções secretas a computadores de
inconcebível crueldade – e ao ver a máquina a funcionar, esfregou as mãos:
agora sim, a música ia ser outra. (Pires, 1999a, p. 55.)
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torturar palavras”, com a finalidade de censurar qualquer discurso que comprometa sua
ordem e, ao mesmo tempo, criar um discurso claro, convertendo as “ideias comuns”
para todos, e que fosse capaz de limpar os venenos que “pingavam de certeza [...] nas
entrelinhas.” (Pires, 1999a, p.51.)
Essa técnica de controle, sob a forma de “olhos electrónicos”, centralizada numa
torre, onde “Penetrar no gabinete era impossível” (Pires, 1999a, p.58.), e cuja intenção é
ordenar e organizar o Reino, lembra a ideia do panoptikon, isto é, “que o olho veja, sem
ser visto – aí está o maior ardil do Panóptico.” (Bentham, 2000, p. 78.)
O Imperador pode com um olhar confiscar a “visão” dos mexilhões, porque todos
os escritos passam por seu computador e pelo crivo da censura, posto que sua posição
permite o acesso a quase todos os locais do Reino. Portanto, se o olhar do Imperador
procura um controle, semelhante ao olhar panóptico, idealizado por Geremy Bentham,
no qual todos virtualmente são continuamente vigiados, na fábula, esse processo está
metaforicamente representado pelos “olhos eletrónicos” de um computador, maneira
que o Imperador criou para controlar a escrita da oposição.
O Mestre é que não se dava por satisfeito. Queria melhor, cismava num
remédio infalível que não podia dizer. Reunidos no gabinete com alguns
mágicos sem passaportes, ligou as lâmpadas e megalâmpadas, instalou
labirintos, olhos electónicos, cabelos de platina, deu instruções secretas a
computadores de inconcebível crueldade – e ao ver a máquina a funcionar,
esfregou as mãos: agora sim, a música ia ser outra.
[...]
No quadro de alarme começavam a tiritar sinais, saltavam luzinhas de pisca-
pisca, e os computadores entravam em acção. Matraqueavam códigos,
despejavam registros, à medida que a agonia de sons ia crescendo arrastada
pelos zumbidos da corrente, pzz... pzzzz... Tinha caído uma palavra na teia,
uma das tais. Pires, (1999a, p. 53-54.).
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Deus criou o som, o homem fez a palavra. Depois, tal como a fez, aprendeu a
destruí-la ou a corrompê-la e senão vejamos. Temos esta fita gravada, repara.
Agora, cortando um pedaço escolhido – assim – e colando-o noutro ponto –
acolá – podemos, é relativamente fácil, transformar a verdade da voz, até.
Confundi-la. Montagem, chama-se a esta operação que, como vês, é facílima.
Mas há processos menos simples e muito eficazes, Ritinha. Se há. (Pires,
1999a, p.53-54.)
Como podemos observar, o Imperador instala em sua torre um segredo que guarda
a sete chaves, a “câmara de torturar palavras”, um olho que tudo pode ver, mas nem
todos podem vê-lo. Desse modo, o Imperador consegue vigiar o Reino e impor o
silêncio com seu “código-espia” (Pires, 1999a, p.58.) e sua “máquina infernal.” (Pires,
1999a, p.58.)
A partir dessa transfiguração, podemos afirmar que cabe ao Imperador “se ver
livre das palavras que o incomodavam?” (Pires, 1999a, p.55.), criando para isso uma
máquina cuja função é a de limpar os significados da palavra, a “câmara de torturar
palavras”; e ao contador de estórias cabe analisar e interpretar as ações do Imperador, a
fim de iluminar as zonas obscurecidas pela “História”, desse modo tornando seu
discurso uma marca de poder, pois o narrador se posiciona e revela a função dessa
“câmara de torturar palavras”.
É evidente que essa prática está metaforicamente representada nos mecanismos
com os quais a máquina de depuração lingüística se torna a espiã do Dinossauro
Excelentíssimo. Em outras palavras, em virtude dessa prática, observamos a dupla face
da ditadura: a primeira se refere à disseminação de um discurso marcado pelo “efeito de
verdade”, isto é, significando as “verdades” que o Dinossauro cria, escamoteando a
realidade do Reino; a segunda é relativa ao ato de censurar, quando elimina na máquina
de tortura os vocábulos “manhosos”, o contradiscurso. Portanto, é no Reino dos
Mexilhões, que a câmara de torturar palavras vai construir, conforme depuração e
manipulação, as “ficções do poder constituído”, “onde verbos e substantivos, cedilha e
restante população dos dicionários sofreriam tratamento de último grau” (Pires, 1999a,
p.56.)
Observarmos que esse processo dá ênfase às classes gramáticas essenciais para
nomear, configurar e propagar ideias. Mas, não satisfeito, o Imperador quer alterar a
própria sintaxe ou construção lógica da experiência. Pretende, assim, “trocar” o
pensamento lógico que se articula dentro da linguagem, na tentativa de “re-construir” a
maneira de entender e significar as “ideias.” (Lourenço, 1982, p. 30-31.)
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deixando passar uma vírgula, um ponto de exclamação, sinais que parecem inofensivos,
mas que, dependendo de quem os utiliza, ganham vida. De suas reflexões acerca da
pontuação, o Imperador conclui intuindo o risco iminente de um ponto a solto.
A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugar diferentes dos que elas
ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas,
arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em
que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não há
nenhum meio de pensar sobre a pureza sem ter a imagem da “ordem”, sem
atribuir às coisas seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorre serem
aqueles lugares que elas não preencheriam “naturalmente”, por sua livre
vontade. (Bauman, 1998, p.14.)
Isto ocorre porque, ao tentar “moldar” o Reino, o Imperador age como “um
visionário utópico. Ele desejava um mundo imóvel, a hipnose total” (Enzensberger,
1988, p. 142.), mas para atingir esse objetivo precisa aguçar os punhais, para organizar,
adequar e controlar de perto as transformações que deseja promover. A censura será sua
bússola, porque com esse instrumento o Dinossauro Excelentíssimo fará girar a
engrenagem de seu reino, cuja ordem assegura a regularidade e a estabilidade, em que
as probabilidades possam ser controladas desde que sigam uma hierarquia rigorosa;
mundo onde as coisas não ocorrem por acaso.
Esse é o ideal de mundo projetado por ditadores que desejam manter o controle
sobre todas as situações de um Estado totalitário, ainda que esse controle seja, em
última instância virtual. Como já analisamos anteriormente, o Imperador controla o
significado das palavras, e esse controle lembra um processo “químico” de limpeza no
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distribuiu hífens, [...] e à gota de mel, que era o ponto de exclamação, retirou-
a aqui e ali para não tornar gulosa a frase. Isto, entre outros exemplos. (Pires,
1999a, 97.)
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É o que ocorre com a palavra “ordem” que, de tão cuidada, acaba escapando e
“sujando” todo o processo de limpeza que o Imperador criou. Esse fato está associado
ao fim da autoridade do Imperador que, surdo e “cego”, enrosca-se na própria fita do
computador, sendo traído pelo próprio invento. Esse episódio nos faz lembrar a ideia de
“resistência” ao poder, que ocorre dentro do próprio território em que ele se exerce.
Percebemos o desespero do Imperador ao ver toda a sua “estratégia” ser “traída”,
desarticulada.
Cardoso Pires, com “os sapatos apertados”, descobriu nova dança, fez da fábula
uma confabulação, um murmúrio de “denúncia” a meia palavra para um novo leitor
“obrigando-o a ler com atenção, forçando-o a ler nas entrelinhas, [...] a esforçar-se por
apreender aquilo que ele quis dizer, mas não pôde dizer à vontade.” (Pires, 1999b, p.
165.)
O autor nos revela o enigma ao inverter a ordem das palavras, acaba por inverter
toda a “história”. Talvez seja esse o espaço da Literatura que joga com as palavras,
como o poder também o faz; mas a palavra transgressora ressoa plural, adquire
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REFERÊNCIAS
FEDRO. Fábulas. [trad. Antônio I. de M. Neves] Campinas, SP: Ed. Átomo; edições
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PORTELA, Arthur. Cardoso Pires por Cardoso Pires. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1991.
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Crítica e ficção. Essas duas palavras evocadas no título deste trabalho parecem
sintetizar a trajetória de um dos grandes estudiosos das artes portuguesas: José-Augusto
França. Nascido em 1922, na cidade de Tomar, o historiador de arte e também
romancista conta com uma vasta produção tanto no campo ensaístico – destacando-se
aqui obras como A Arte e a Sociedade em Portugal no Século XIX (1966), A Arte em
Portugal no Século XX (1974), Almada Negreiros, o Português sem Mestre (1974), O
Romantismo em Portugal (1975), A arte portuguesa de oitocentos (1979), A
reconstrução de Lisboa e a arquitetura pombalina (1981), Os Anos 20 em Portugal
(1992), entre outras –, como no campo ficcional, em que são exemplos ilustrativos a
novela O facadas (escrita em 1942, mas publicada apenas em 2000), o livro de contos
Despedida Breve (1958), e os romances Natureza Morta (1949), Buridan (2002), Regra
de três (2003), e A bela Angevina (2005).
Seu nome é frequentemente associado ao surrealismo português, movimento do
qual participou ativamente exercendo atividades sobretudo ligadas à crítica, no período
em que integrou o Grupo Surrealista de Lisboa, fundado em outubro de 1947. Contudo,
é no ano de 1949 que sua ligação com o surrealismo se acentua em virtude não apenas
da realização da I Exposição Coletiva do grupo, mas também da publicação de seu
Balanço das actividades Surrealistas em Portugal. Data do mesmo ano a publicação de
Natureza Morta, romance escrito pouco tempo depois de sua viagem para Angola, e
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Departamento de Letras - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
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que, embora seja alvo de poucas análises críticas, estas nem sempre revelam uma
unanimidade em relação à sua classificação como romance surrealista.
Se a classificação deste romance é capaz de suscitar questionamentos, a
afirmação de que 1949 é um ano significativo da atuação de José-Augusto França como
crítico e como romancista revela-se como uma certeza. Assim, foi com o propósito de
investigar as contibuições por ele dadas ao mundo das artes no ano de 1949 que este
trabalho foi desenvolvido, tomando-se como como eixo norteador para as discussões
nele levantadas os seguintes fatos: 1) a atuação do escritor no Grupo Surrealista de
Lisboa; 2) a importância do Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal; 3) a
escrita de Natureza Morta.
Ao longo deste trabalho, pretende-se então analisar as relações de José-Augusto
França com o surrealismo, e buscar pistas que possibilitem elucidar se Natureza Morta,
tendo sido escrito em 1949 (época da vida de França tão marcada pelo surrealismo),
pode ou não ser considerado um romance surrealista. Espera-se, com esta pesquisa,
trazer uma contribuição não apenas para os estudos sobre o surrealismo português
(ainda tão escassos), mas também sobre a produção crítica e ficcional de José-Augusto
França.
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Ainda de acordo com Tchen, foi por meio de seus ensaios e de suas atividades
ligadas à crítica que José-Augusto França agiu dentro do Grupo, o que torna possível
afirmar que sua participação esteve “menos ligada a uma certa loucura no soltar da
imaginação, [...] e mais à ética surrealista, à partilha constante das posições de grupo, a
um companheirismo sempre presente em acções políticas e de protesto e, naturalmente,
a uma escrita sempre atenta ao surrealismo” (2001, p. 98, grifo do autor).
Dentre as atividades desenvolvidas pelo Grupo Surrealista de Lisboa, destaca-se
a exposição coletiva em janeiro de 1949, evento no qual foram expostos principalmente
trabalhos de pintura, e que foi sublinhado “pela publicação de um catálogo, contendo
algumas declarações, e de três ‘cadernos surrealistas’ – Balanço das actividades
surrealistas em Portugal, de José-Augusto França, Proto-poema da Serra de Arga, de
António Pedro e A ampola miraculosa, de Alexandre O’Neill” (SENA, 1988, p. 223).
Sobre essa exposição, José Augusto França escreveria em 1991:
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Desse modo, sem fazer referência direta ao Estado Novo, ou mesmo à “Política
de Espírito” de António Ferro, José-Augusto França culpabiliza o contexto de limitação
cultural e de cerceamento de novas expressões vivenciado em Portugal desde a década
de 1920 (momento em que o surrealismo já manifestava grande força na França) pela
defasagem entre o surrealismo português e o francês. Contudo, ele também reconhece
que essa situação não foi um impedimento para que outras formas de expressão
surgissem, ainda que tardiamente, e apesar de sua incompreensão.
No que tange ao surrealismo, França expõe que o movimento era vez ou outra
descrito como “uma Arte, ou um Pensamento, ou uma Moral (ou qualquer outra coisa)
retrógrada, decadente, ‘burguesa’ e, sobretudo, ultrapassada” (1949, p. 4), e que esse
tipo de afirmação nada mais era do que uma consequência da
O surrealismo, tal como concebido por Breton, era uma forma de declaração do
“anticonformismo absoluto” (2001, p. 63, grifo do autor), um vício novo capaz de
incitar à revolta. Recusando o niilismo dadaísta, o movimento buscava a libertação do
homem por meio da arte e da poesia. Mas, como aponta José-Augusto França (1949),
esse posicionamento era incompreendido por certos segmentos da crítica portuguesa,
que simplesmente menosprezavam aquela nova forma de expressão, rotulando-a com
adjetivos inadequados.
Adiante, em seu Balanço, ao comentar a respeito do afastamento de escritores
como Marcelino Vespeira, Fernando Azevedo, Moniz Pereira, Mário Cesariny de
Vasconcelos, António Rodrigues e Alexandre O’Neill do neo-realismo, o crítico
argumenta que esse fato, antes de ter sido provocado por um rompimento com os
princípios filosófico-morais desse movimento, foi uma consequência da percepção de
que a estética por ele teorizada, ao reivindicar a obrigação da arte de documentar a
realidade social, não conduzia “aos fins propostos de total expressão humana, [...] mas,
pelo contrário, [...] exigindo uma imagem condicionada imediatamente por uma
necessidade social – mal interpreta e acaba por negar o processo psicológico dialético
do acto de criação” (FRANÇA, 1949, p. 6-7, grifo do autor).
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O surrealismo revela-se, assim, como uma opção para aqueles artistas que, em
conformidade com os ideais divulgados no manifesto de Breton, desejavam se
aproximar de uma espécie de realidade absoluta, onde sonho e realidade se fundiriam. A
esse respeito, José-Augusto França esclarece, em entrevista dada ao jornal português
Diário de notícias, em 2004, que:
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refere-se à publicação dos três Cadernos Surrealistas, dos quais o seu Balanço das
actividades surrealistas em Portugal constitui um dos exemplares.
Como fechamento de seu caderno, o crítico então lança a seguinte questão: “que
se deve entender por organizar um movimento surrealista?” (FRANÇA, 1949, p. 14),
entendendo-se aqui “movimento” como um termo que, “além de englobar o sentido
surrealista de ‘Grupo’, por si própria já, por definição, anuncia a irradiação daqueles que
deturparem uma efectiva marcha surrealista, em favor de qualquer mística ou, por outro
lado, de qualquer mitologia – casos que sempre poderão acontecer” (FRANÇA, 1949, p.
15). E, como resposta, argumenta que:
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crítico destaca Natureza Morta, e o define como um romance que se radicou “na
tendência surrealista, predominante em poesia” (1984, p. 63).
Já Eduardo Lourenço, no prefácio à terceira edição do romance, afirma que a
obra:
[...] nada deve a qualquer inspiração surrealista, como uma leitura aberrante
da época 2 o deixou supor. Natureza Morta é um livro grave, de um
confessionalismo pudico, de rara fundura entre nós, sob a máscara distante de
uma ficção na aparência, a mais conforme aos cânones de um realismo sem
problemas. (1982, p. 9-10).
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em Angola quando lá esteve em 1945. Sabe-se que o exótico e o mundo dito “primitivo”
eram alvo dos interesses dos surrealistas franceses na década de 1920, já que esses
atendiam ao pressuposto de que era “na negação do que existia enquanto arte e
discursos consagrados no Ocidente que se encontrava o motor da procura por outros
mundos, mundos estes que pareciam escapar do discurso racionalizante do Ocidente e à
representação objetivante do real” (LAGROU, 2008, p. 224, grifo do autor).
A fala proferida por Mário Cesariny com Daniel Filipe na 1ª Exposição
Surrealista em Luanda, em 1953, evidencia a existência de semelhante interesse por
parte dos surrealistas portugueses em relação à África:
Júlia foi isso tudo – meu duplo, diz o Eduardo Lourenço, que lá sabe, com
ciência de prefaciador, e porque não? Não a conheci em África, mas conheci
o marido que a receberia tal e qual, se a história lhes acontecesse, ou ela
existisse – como certamente algures existiu. Uma história imaginada que é
tão lisboeta como angolana, entre a Morais-Soares da minha infância e uma
plantação de açúcar junto do Quanza. Dois sonhos, dela e do marido? Vários
sonhos, afinal – nunca sonhados, na sua essencial frustração. Os que iam, os
que não voltavam, o cancro de um, a indiferença de outros – este fundo rural
do português filhando em terra alheia, à míngua de própria, cuja saudade se
esvai e esquece, com o tempo imperdoável. E eu via-os chegar ao escritório
da Companhia, nhurros, de olhar assustado, passando por uma pensão
miserável antes de partirem para o mato. (1982, p. 211)
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Chaumont, mas o das “areias [...] extremamente movediças, das entranhas do ser”
(PONGE, 1999, p. 60).
O que se valoriza, portanto, no romance de Aragon, não é a realidade
externamente observada, mas a captada a partir da eliminação das barreiras entre
interior e exterior, sonho e vigília, razão e intuição. Já em Natureza Morta, o que se
destaca é sobretudo a denúncia feita à colonização portuguesa na África, por meio da
exposição das adversidades lá encontradas. Assim, diferentemente do que se veiculava
pelo Estado Novo, o desejo de ter uma condição de vida melhor do que a que se tinha
em Portugal revela-se na obra como uma ilusão. Em Angola todos eram oprimidos,
brancos e negros. Todavia, uns bem mais que outros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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LOURENÇO, Eduardo. Prefácio in: Natureza Morta. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.
SENA, Jorge de. Estudos de Literatura Portuguesa III. Lisboa: Edições 70, 1988.
1780
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Organizado por Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes, D`este viver
aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra revela uma coletânea de textos do,
posteriormente, escritor português António Lobo Antunes, e nos é apresentado sem
qualquer percurso ou nuances de ficção. É ele, ali, personagem real, presente em suas
palavras penetrantes, que funcionam como agulhas que costuram sentimentos que lhes
são tão íntimos e sucessivos, os quais, são expostos num gesto que emendam duas faces
antagônicas: o amor e a guerra. Tratam-se de cartas que podem ter sido escritas sem
qualquer preocupação literária, onde as formas, o estilo, ou a mais exata utilização da
palavra e frase não estavam propositalmente presentes nos artifícios do escritor,
entretanto, é inegável que linhas, traços, perfis da sua escrita permeiam em cada carta,
formando um fio condutor que interliga, de uma maneira ou outra, toda a sua obra.
Muito se tem dito e muito se dirá, certamente, da obra de António Lobo
Antunes, estudos e críticas garantidos pela sua ininterrupta evolução, quando cada novo
lançamento é aguardado com a expectativa de um novo labirinto do ser a ser trilhado.
Discursos que se encontram, que se assemelham, dados que se repetem em meio a
dados consecutivamente novos, e nada é velho quando se trata da sua obra carregada
dos referenciados labirintos, pois são caminhos que podem até ser repetidos, mas
sempre apresentam novas perspectivas de leituras, um novo olhar, uma nova imersão na
profundidade do ser. Instantes que se fragmentam e que se completam, entrelinhas que
emitem discursos objetivos e plurais ao mesmo tempo. D`este viver aqui neste papel
descripto é tudo isso, carta a carta, como o são os demais livros, livro a livro.
Cartas da guerra foram escritas durante o período da Guerra Colonial
Portuguesa, para a então esposa do remetente, quando, aos 28 anos, ele foi convocado
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Doutorando em Estudos Portugueses, especialidade de Literatura Comparada, pela Universidade Nova
de Lisboa. 2009.
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para combater, no Leste de Angola, na fase final daquele marco da história de Portugal,
e, assim, casado em agosto de 1970, partiu em 6 de Janeiro de 1971 rumo à guerra na
África. São cartas que tiveram três momentos de interrupções, marcados por três
períodos bem próximos e curtos, e por acontecimentos determinantes. O primeiro se
deu nas suas férias em Lisboa, durante 35 dias em Setembro de 1971; o seguinte, entre
Abril e Julho de 1972, com a chegada da família a Marimba, até que a sua esposa
adoece com hepatite e é hospitalizada em Luanda; e o último período se dá entre
Agosto de 1972 e Janeiro de 1973, com o regresso da família a Marimba. Dados que
nos são apresentados no Prefácio do livro, datado em Lisboa, Março de 2005, pelas
filhas do escritor, organizadoras do livro e que realizam a publicação pela “vontade
expressa” (Antunes, 2005, p.10) da destinatária das cartas.
A primeira das cartas é datada em 7 de Janeiro de 1971, dia seguinte da sua
partida, durante uma breve parada em Madeira, quando ele já registra o grau de sua
saudade, o seu estado físico e a situação da viagem em si. Numa escrita bem sucinta
naquela carta, Lobo Antunes é categórico ao demonstrar as raízes fortes do que viria a
ser a sua escrita literária. Em poucas palavras, exatas, percebe-se um universo
composto por cenas, paisagens, o corpo e a alma transfigurados em texto, memória. Um
breve espaço de tempo, intervalo durante o percurso da viagem, mas, já naquela sua
carta, o tempo é desafiado, e ele compõe imagens e sentimentos interior e
exteriorizados, numa transcrição emotiva, sensível, informativa, material que em algum
momento resultam em roteiro para os seus romances.
Lobo Antunes declara a sua saudade, o ter dormido um pouco e o não estar
enjoado; a comida ótima, a imagem construída entre a orquestra que toca e o preço do
tabaco americano, que é o mesmo que o Sagres; a orelha que melhora, referência à
extração de um quisto; as próximas paradas por Luanda, Luso, Gago Coutinho; o
incentivo ao estudo da esposa, a coragem, a paciência. Já no final, juntamente com o
verbo no pretérito poderia conotar um estado de segundo plano para a mulher tão
amada, mas, a credibilidade e a intensidade das cartas seguintes reforçam
incessantemente e garantem uma leitura e interpretação de um desejo quase sem limite,
e uma declaração de um amor quase obsessivo, marcado, desde a primeira carta, pelo
“Lembra-te de mim”, “Mil beijos”, “Beijos, beijos e beijos.” Marcas de despedidas e
que se juntam a declarações possessivas como “Meu querido amor”, “Minha jóia
querida”, “Meu amor querido”, “Minha jóia adorada”, “Minha querida jóia linda”,
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“Minha jóia preciosa e querida”, “Minha alma amada”, que se repetem nas quase 300
cartas que compõem o livro.
Cartas da guerra é um campo vasto para reflexões comoventes e ternas, quando
são revelados sentimentos íntimos, desejos de um homem, emoções que são
contrastadas por dramáticos cenários doloridos e sangrentos da guerra. Entretanto, tais
cenários não ocupam mais espaço do que a paixão, embora estejam ali, presentes, a
guerra vivenciada e sentida numa paisagem ininterrupta, viva, as quais, muitas vezes
ficam em entrelinhas. São fatos adiados para serem contados posteriormente; são
censuras, são textos interceptados, e, assim, não é exatamente a guerra o que o escritor
mais destaca naqueles instantes, mas sim o amor e o desejo. E está ali uma visão
valorosa a respeito da guerra, boletins contundentes, perspectivas e previsões incertas:
“Não sei o que será o meu futuro por aqui, mas para Abril devo partir para regiões mais
inóspitas, talvez Ninda ou o Chiúme, onde nunca se dorme descansado […] e os
sobressaltos são constantes.”, (Carta datada em 9.3.71), e o corpo, o físico e sentimental
inclinam-se para o lado da imensa paixão pela destinatária.
Deste viver aqui neste papel descripto são declarações contextualizadas que
revelam o cotidiano de um relacionamento íntimo, um mundo pessoal. Ao ultrapassar a
via unilateral do remetente e destinatário, alcançam o interesse de uma coletividade,
quando tais declarações, compreendidas por sentimentos e informações, ultrapassam as
duas partes de interesse inicial, ponte de relação e de edificação de um mundo, e
tornam-se uma leitura que leva o homem a compreender uma parte da história, de um
povo, de uma nação. São cartas, em sua origem mais exata, mas são cartas que podem
significar abordagens diversas. Entretanto, como destacam as prefaciadoras, “qualquer
que seja a abordagem, literária biográfica, documento de guerra ou história de amor,
sabemos que é extraordinária em todos esses aspectos” (Antunes, 2005, p. 11). O
lamento de um amor separado, fisicamente, mas que era intensificado pelos mais
íntimos desejos e sentimentos. A juventude fervilhando de desejos que se acumulavam
dentro de um corpo e de um amor que, semelhantemente, eram aquecidos pelas
esperanças de um reencontro para bem em breve, urgente. A fantasia, a imaginação
elaborada, tudo para amenizar a inquietante saudade física e o emocional, como
apresentado na carta de 17-1-71: “Olha gostava que tirasses retratos e me mandasses,
como se nos tivéssemos conhecidos por correspondências, sim? Faz de conta que eu
sou um africanista com boas intenções.” Faz de conta!
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A Rua Filipa de Vilhena 15 6º Dto deixa de ser um lugar comum para ser um
lugar de memória. Ainda como apontado por Ricoeur, “a transição da memória corporal
para a memória dos lugares é assegurada por atos tão importantes como orientar-se,
deslocar-se, e, acima de tudo, habitar.” (2007, p. 57). Aquilo que entra para a história
natural de um amor é marcado por forte representação e, da mesma maneira, o é o
lugar, como destacado pelo autor, deixando espaços que podem despertar curiosidades
àquele que desconhece o que tais imagens levaram a destinatária a se recordar e
vivenciar. De um lado, o acontecido; e de outro, o lugar. Ao afirmar que o ato de
lembrar de nossas viagens e de ter visitado lugares memoráveis se dá na superfície
habitável da terra, Ricoeur enfatiza que as “coisas” (2007, p. 57) lembradas são
intrinsecamente associadas a lugares. Em seus estudos a respeito da obra de Proust,
Walter Benjamim (1985) declara que o ato de rememoração é, em primeiro lugar,
visual. Dessa maneira, o processo de rememoração está associado à visualização de
pessoas, lugares e objetos. São as fotografias e as cartas recebidas, os lugares
relembrados, presentes nas cartas aqui referenciadas: “Cá chegaram os primeiros
retratos da mãe e da filha. Num deles parece ao canto a tua santa velhota, telefonando
com ar preocupado.” (Chiúme, 6.7.71).
Cartas da Guerra não são textos autobiográficos, se em sua mais genuína
expressão, enquanto gênero, não foram escritas com o propósito de tornar célebre a
individualidade do seu autor, mas, de certa maneira, o são, tornam-se, em seus
percursos e resultados, quando celebra a vida de um homem de amor e de guerra. Ao
descrever, relatar, narrar os seus próprios sentimentos, suas emoções, há um
documentar das suas próprias experiências do estar distante, da separação, do vivenciar
um passado e um presente. Ao escrever as suas cartas entre dois espaços tão
antagônicos, o autor apresenta intensas reflexões sobre a vida e interliga instantes do
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REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. D`este viver aqui neste papel descripto - Cartas da Guerra.
ANTUNES, Maria José Lobo, ANTUNES, Joana Lobo (Org.). Lisboa: Dom Quixote,
2005.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidos. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
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Estudante do 7º semestre do curso de Letras Vernáculas da UFBA. Atua nas linhas de pesquisas de
Literatura Comparada e Documentos da Memória Cultural de literatura portuguesa, africana e brasileira.
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REFERÊNCIAS
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LE GOOF, Jacques. História e Memória. In: Memória; tradução Bernardo Leitão [et al]
– 5ª ed. - Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.p-419-477.
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O Cristianismo teve inicio na Palestina, com uma pequena seita judaica. A nova
religião ganhou, ao longo dos séculos, um caráter universal. Para os homens e mulheres
da Idade Média o Cristianismo era uma religião de salvação. Como afirma Baschet
(2006, p. 20), a Idade Média era “marcada por uma sociedade guerreira, que vivia sua
existência terrena em uma lógica de salvação e combate de luta entre virtudes e vícios,
alma e corpo”. Sendo assim, a oposição entre o bem e o mal era essencial, no
Cristianismo medieval. Os pecados e as virtudes constituiam categorias fundamentais
para ordenar a leitura do mundo, no presente, passado e futuro.
Le Goff (2002, p. 22), resume a vida medieval nas seguintes palavras: “[a] vida
aqui em baixo é um combate, um combate pela salvação, por uma vida eterna. Pois,
herdeiro do Pecado Original, o homem está arriscado a se deixar tentar, a cometer o
mal. Confrontam-se nele o vício e a virtude, pondo em jogo seu destino eterno”.
Acredita-se que o enorme sucesso da moral dos vícios e virtudes se liga ao fato de que
ela oferece um discurso globalizante sobre o mundo, ou, mais exatamente, um discurso
sobre a ordem da sociedade conforme os critérios clericais. Ao mesmo tempo, a
dualidade moral era a justificativa fundamental da intervenção da Igreja na sociedade,
que visava a libertar os homens do pecado, protegê-los do mal e a mantê-los no correto
caminho que levava à salvação.
Nessa época, a imagem ideal da pessoa humana representava um equilíbrio do
corpo e da alma. O objetivo primordial da Igreja era afastar a sociedade do que ela
considerava pecado, vício, transformando-a em uma sociedade cheia de “virtudes”,
principalmente no que se relacionava ao sexo. Para isso a Igreja, como hoje, possuía
dogmas a serem seguidos. Segundo Baschet (2006, p. 420), “definir a imagem ideal da
1
Professora substituta da Universidade Federal da Bahia.
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pessoa humana como uma articulação hierárquica e dinâmica entre corpo e alma
constitui uma poderosa ferramenta de representação social, em um mundo em que o
clero, distinto justamente pelo seu caráter espiritual, assume uma posição dominante”.
Portanto, Igreja como modelo social hegemônico, institucional2, ideológica e litúrgica
pode, então, ser definida como uma articulação do corpo espiritual e carnal que ordena o
mundo material para fins materiais e celestes. (BASCHET, 2006, p.422)
A Igreja passou por grandes reformas nos séculos XI e XII, que, segundo
Baschet (2006, p. 421), lhe “conferem seu mais extremo rigor, definem o estatuto dos
clérigos pela sua rejeição ao parentesco carnal e sua renúncia proclamada a toda
sexualidade. Cabendo aos laicos a tarefa de reproduzir corporalmente a sociedade, eles
se consagram à sua reprodução espiritual, através da administração dos sacramentos”.
Pode-se deduzir que a imposição do celibato do Clero, no século XI, constituiu
uma garantia à preservação dos bens eclesiásticos que eram patrimônio da Igreja, pois
excluía quaisquer direitos legais e eventuais herdeiros dos sacerdotes. Em uma
sociedade em que a terra se afirmava como a base de riqueza, o fato de a Igreja
converter-se na maior proprietária de terras (graças às diversas doações e às esmolas dos
fiéis, às isenções de impostos) ajudava a entender melhor a preponderância que assumiu
na sociedade medieval, da qual se tornou dirigente, não só nos assuntos espirituais, mas
também nas questões temporais.
No entanto, a influência da Igreja, como afirma Aquini, Denize e Oscar (2003, p.
512),
[...] não se limitou a regulamentar os bens e a vida das comunidades
eclesiásticas: sua jurisdição também incidiu sobre os demais componentes da
sociedade, os quais se subordinaram aos preceitos canônicos relativos à
organização da família, graças à regulamentação do casamento, envolvendo
dotes, heranças, direitos de deveres dos conjugues e anulação do matrimonio
devido a incesto, bigamia etc.
2
Instituição encarnada no solo de suas imensas possessões, engajada plenamente na organização da
sociedade dos homens e dotada de uma materialidade ornamentada, cuja riqueza salta aos olhos de todos,
mas que, entretanto, só encontra legitimidade pelo principio espiritual e em nome do qual ela governa as
almas e os corpos. (BASCHET, 2006, p. 422).
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tornando-a, ao mesmo tempo, mais universal em sua aplicação e muito mais íntima em
seus efeitos sobre a vida privada do cristão”.
Para o presente estudo se optou partir da documentação poética, mais
especificamente das Cantigas d’escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais
galego-portugueses, editadas criticamente por Manuel Rodrigues Lapa, em sua 2º
edição de 19703.
Vale enfocar que as primeiras manifestações literárias da poesia escrita em
língua portuguesa podem conter uma idéia de aspectos do comportamento social da
época, do cotidiano da sociedade medieval peninsular, entre outras questões, buscando
compreender melhor o complexo jogo dialético existente entre língua e sociedade.
Os textos escarninhos medievais ficaram, por muito tempo, esquecidos diante de
outros cuja temática amorosa ou épica não desafiava as normas sociais, sempre
consagradoras de uma sintaxe dos valores, costumes e práticas. Desse modo, as cantigas
de escárnio e maldizer apresentam-se como fontes importantes para o exame do
imaginário acerca das sexualidades dos religiosos. Vale ressaltar que não se quer
fomentar a angústia estéril da crítica tradicional acerca de tais textos, se seriam
ficcionais ou reais. Segundo Sodré (2007, p.141), “[...] o jogo entre o ficcional e o
histórico ganha dimensões hoje dificilmente apreensíveis”.
A poesia trovadoresca galego-portuguesa constitui, sem dúvida, um dos
fenômenos culturais mais ricos e originais da história da Península. Entre 1200 e 1350,
desenvolveu-se na Península Ibérica, a lírica trovadoresca, um movimento poético-
musical representado pelas mais diversas classes: reis, grandes senhores, clérigos,
pequena nobreza, (os trovadores) e pessoas de camada inferior (jograis). Esses últimos
exerciam essa atividade também como profissão. Enquanto os trovadores tocavam e
cantavam sem interesse financeiro, os jograis juntavam ao interesse de mostrar seu
talento o de ganhar daí algum beneficio financeiro (ALVAR; BELTRÁN, 1984).
Os Cancioneiros mostram que a cultura poético-musical não era própria de uma
classe. Ao lado de reis, príncipes e de grandes senhores que se denominavam
“trovadores”, surge o modelo profissional denominado “jogral”. Esses eram autores de
uma série de textos líricos de caráter moralista, satírico, burlesco, paródico e que
exercitavam sua atividade quase que exclusivamente em ambiente cortês. Os trovadores
3
Vale ressaltar que há uma 3ª edição das Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais
galego-portugueses, datada de 1995. É uma ed. Ilustrada que reproduz a 2ª, e acrescenta o prefácio da 1ª.
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Elza Gonçalves e Ana M. Ramos (1985, p. 24) afirmam que a distinção entre escárnio e maldizer vai
estar confiada a um recurso retórico presente nas cantigas de escárnio: o equívoco. Lopes (1994, p. 97)
diz que o equívoco é estabelecido por formas distintas – através do jogo de palavras, dando um duplo
sentido à interpretação, e através do jogo de sintaxe e o ritmo de toda a cantiga.
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determinar o tipo de uma ou outra cantiga satírica. O próprio Rodrigues Lapa (1965a p.
x)5 afirma:
5
Ressalta-se que se recorreu ao prefácio da 1ª edição de Lapa de 1965.
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6
Segundo Pereiro (1992, p. 63), “esta é a cantiga que inicia o ciclo dos escárnios de amor formado por
este poema e os dous que o seguen. O motor da cantiga é o desengano e o desexo de vinganza do trovador
perante a traizón da dama, que culminará co descobrimento da sua personalidade na cantiga VI”.
Ressaltamos que a cantiga VI é indicada em Lapa sob o número (L 136). Lopes (2002, p. 28) vai dizer
que o “tom das cantigas vai-se tornando progressivamente mais escárnio. [...] nesta primeira, são ainda
utilizadas muitas expressões próprias do amor cortês. Mas trata-se já, de qualquer forma, como anunciam
os primeiros versos, de uma cantiga de despedida”. Lopes ainda acrescenta que a abadessa referenciada
nas três cantigas é provavelmente uma prima do trovador.
7
Vale dizer que a cantiga Com vossa graça, mia senhor, não foi publicada na 1ª edição de Lapa pelo seu
tom mais cortês; porém pertence efetivamente a este ciclo de maledicências e nos revela um dado
importante: o rival do trovador era um cavaleiro vilão.
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outro ele diz que são escárnios. Essas variações de gênero atribuídas pelos estudiosos da
área só fazem confirmar a dificuldade de se estabelecer normativamente se uma cantiga
é de escárnio ou maldizer. Segundo Pereiro (1992, p. 31), estamos diante de um ‘gênero
duvidoso’, porém
non podemos deixar de asumir esta dupla denominanacion pois, ante um tipo
de texto que por veces permiten a ocultación e o disfarce, só a consideración
dos contextos nos permitirá dilucidar em grande medida o(s) significado(s)
querido(s) pólo seu desenvolvimento e caracterización.8
8
Não podemos deixar de assumir esta dupla denominação, pois estamos diante de textos que as vezes
permitem a ocultação e o disfarce, e somente a consideração do contexto nos permitirá elucidar grande
parte do significado ou significados pelo desenvolvimento e caracterização. (Tradução livre)
9
Abadessa – ‘prelada maior das religiosas’.
10
Cinta – ‘faixa para apertar na cintura, em redor do corpo’. Vale dizer que a lexia “cinta” pode
apresentar-se no contexto das cantigas com outra conotação maliciosa, sugerindo o sentido de “grávida”.
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amor fezesse, / [...] / tan muito me despaguei / d’ela, poi-la cinta achei. Segundo Lapa
(1970) ao que parece, a expressão “cinta achei”v.14, dentro desse contexto de traição,
que aparece em toda a cantiga, significa que o trovador encontrou sua “dona” grávida. O
trovador encerra a cantiga dizendo que, dali em diante, será mais feliz, pois encontrou
melhor “senhor” a quem irá servir.
A profundidade do amor tratado nas duas cantigas confunde-se com as próprias
contradições presentes nos jogos de palavras: amor/desamor, dona/senhor, trair/servir,
salva/castidade/pura. Segundo Mongelli (2009, p. 193), o trovador Talamancos “faz
uso de vários elementos da retórica cortês e subverte-os, para chegar ao extremo do
grave crime de traição”.
A última cantiga desse ciclo de escárnio amoroso Quand’ eu passei per Dormãa
(L 136) será a chave para todo esse jogo oculto nas cantigas anteriores. Como afirma
Pereiro (1992), essa cantiga representa o ato final do prévio escárnio de amor: a
identificação da “senhor” traidora das cantigas anteriores, a abadessa do Mosteiro de
Dormãa .
Em toda a cantiga acontece um jogo de perguntas e respostas bem claras. O
11
trovador passa pelo Mosteiro de Dormãa e pergunta por sua coirmãa , a salva e
palaciana. Recebe, porém, como resposta que, nesse lugar em que procura, não há
nenhuma mulher pura, lá se encontra apenas a abadessa. Portanto, a abadessa é tida
indiretamente como “devassa” (não salva), “indelicada” (não pa[a]çãa), “libidinosa”
(nunca amou castidade). Observe-se o dialogo:
11
Coirmãa – ‘primos’.
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CONCLUSÃO
12
“O poeta visa a denegrir a imagem de uma parenta próxima (sua coirmãa), aparentemente, por despeito,
em razão de ter sido preterido por outro. O despeito natural é reforçado pelo fato de o ‘outro’ ser alguém
de estrato social inferior – um vilão” (SOUZA, 2003)
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REFERÊNCIAS
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medievais. 19. ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 2003.
BROWN, Peter. Oriente e Ocidente: a carne. In: ARIÉS, Philippe; DUBY, Georges
(Dir.). História da vida privada I: do Império Romano ao ano mil. Tradução Hildegard
Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas d’escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais
galego-portugueses. 3. ed. Coimbra: Galaxia, 1995.
LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas d’escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais
galego-portugueses. 2. ed. Coimbra: Galaxia, 1970.
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RIQUER, Martín. Los trovadores: historia literária y textos. 3. ed. Barcelona: Ariel,
1992. 3v.
SHOLBERG, K. R.. La sátira galego-portuguesa em los siglos XIII y XIV. In: ______.
Sátira y invectiva em La España medieval. Madrid: Gredos, 1975. P. 50-137.
SODRÉ, Paulo Roberto. Uns com otros contra natura, e costũbre natura: sobre a
sodomia na sátira galego-portuguesa. Signum, revista da associação brasileira de
estudos medievais, São Paulo, n. 9, p. 121-150, 2007.
SOUZA, Risonete Batista de. Os fremosus cantares do trovador Martins Soares. 170 f.
Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP, São Paulo, 2003.
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*
Agradeço à Professora de Literatura Hispanoamericana da Universidade Federal Fluminense, Viviana
Gelado, que não só me apresentou, durante a Graduação, a escrita de Roberto Arlt, mas também foi de
grande incentivo e colaboração, quando confirmei a vontade de escrever o trabalho comparativo que aqui
se apresenta.
**
Mestrando em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense e Bolsista CNPq, sob
orientação do Professor Dr. Silvio Renato Jorge.
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, a leitura adquire uma figuração específica. Gostaríamos de propor uma reflexão acerca
daquele estágio da criação que, sendo aparentemente anterior ao da escrita, deixa nela
suas marcas e faz do intertexto a consequência de uma afirmação, a princípio, óbvia: a
de que todo escritor que se afirme como tal é antes um bom leitor.
Portokyoto, publicado em Portugal no ano de 2001, e El juguete rabioso, novela
argentina publicada em 1926, dão conta de narrar a aventura da construção de um
sujeito leitor. Mais especificamente, ambos traçam as trajetórias de personagens que, ao
perceberem o caráter, no mínimo, deslocado de suas identidades, demarcam o espaço da
leitura como mediador do processo de aprendizagem, processo este implicado na
própria narração das memórias, seja de um viajante, seja de um protagonista
inicialmente adolescente. Como se vê, tal mediação permite não apenas repisar as
questões teóricas referentes à relação entre os textos e a memória literária que evocam,
mas nos interessa, também, na medida em que possibilita analisar a dimensão simbólica
que os atos de leitura podem exercer na negociação das identidades de cada
protagonista. Dito de maneira mais clara, temos como hipótese de trabalho a
possibilidade de assinalar de que maneira cada autor esboça a categoria leitor como uma
espécie de paradigma mais seguro de identidade, estabelecendo-o ora como um modo
de estar e ordenar as coisas em um mundo de valores cambiantes – como parece ser o
deste novo século; ora como meio de transgredir a própria ordem burguesa, que dá
suporte ao processo de modernização vivenciado na Argentina de inícios do século XX.
A relação entre leitura e construção de identidade se adensa nas duas narrativas à
medida que percebemos o jogo de emascaramento textual implicado no traço biográfico
que preside sua produção. Tal afirmativa, como quase todas as que se referem ao campo
complexo das “escritas íntimas” – das autobiografias aos blogs, passando pelas
memórias e os diários –, solicita alguns esclarecimentos, já que esse tipo de escrita
parece embaralhar os papéis estabelecidos entre autor, narrador e protagonista. Cabe
assegurar então que, em primeira instância, nos interessa pouco analisar a pertinência da
relação de identidade entre estas três categorias, relação a partir da qual se firma, no
dizer de Philippe Lejeune, o pacto autobiográficoii. Embora possamos ser seduzidos a
reconhecer marcas de um referente externo – ou melhor, perceber os narradores como
duplos de Roberto Arlt e Pedro Paixão, os indivíduos –, importa-nos, sim, sinalizar o
biográfico como estratégia através da qual se tenta assegurar a identidade entre narrador
e protagonista.
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Sacando los volúmenes los hojeábamos, y Enrique que era algo sabedor de
precios, decia: “No vale nada” o “vale”.
(...)
– ¿Y esto?
– ¿Cómo se llama?
– Charles Baudelaire. Su vida.
–Parece una bibliografia. No vale nada
Al azar, entreabría el volúmen.
– Són versos.
– ¿Qué dicen?
–Leí en voz alta:
Sob a égide do poeta maldito e do ladrão vitorioso, e armado até por certo
darwinismoix, o narrador faz do assalto, como já apontou Ricardo Pigliax, uma metáfora
possível para seu desejo obstinado de ler – e de ler apesar de sua condição de excluído –
, na medida em que o roubo configura a própria transgressão da ordem por meio da
qual, quase paradoxalmente, o personagem força sua inserção na ordem da alta cultura.
No plano do enunciado, é a leitura que abre o horizonte de Silvio Astier à possibilidade
– ou ao menos à tentativa – de romper com as demandas do trabalho, visto por ele
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Embora não se possa afirmar uma elaboração intencional por parte do autor
português, cremos que há elementos suficientes para sinalizar os papéis proustianos
como um dos palimpsestos em que se desenha e confunde, grafia sobre grafia, a escrita
de Pedro Paixão. Quando, ao observar um bolinho mergulhar em chocolate, o
protagonista inicia uma contagem precária do tempo, parece-nos, no mínimo,
enriquecedor recordar da experiência que possibilita ao narrador de Proust buscar o
tempo perdido, abandonar-se à torrente da memória. Recordemos o episódio capital:
O tempo perdido em Portokyoto articula uma viagem interior cuja materialidade nos
permite conceber uma outra geografia, um mapa de espaços de leitura que, no conjunto,
reforçam as temáticas fundamentais do romance. Cabe lembrar que, devido ao recorte
deste ensaio, não pudemos abordar aqui tópicos como a identidade portuguesa, figurada
em Camilo Castelo Branco, ou a tensão entre a beleza e a morte, presente nas
entrelinhas do diálogo com Yukio Mishima. Vale dizer ainda, para finalizar, que talvez
seja inevitável imaginar que o retrato de leitor que nos dois textos analisados se desenha
seja o modo com que Roberto Arlt e Pedro Paixão constroem a ficção de si mesmos.
Como aponta Lejeune, não se trata de ter como objeto “o ser-em-si do passado (se é que
tal coisa existe), mas o ser-para-si, que se manifesta no presente da enunciação.”xx Os
nomes de Baudelaire, Proust, de certa forma, são pinçados do imaginário na tentativa de
compreender vida e arte como formas inseparáveis de existir no mundo. Na outra ponta
do fio, a biografia de nossos personagens talvez não seja outra senão a que dá conta da
invenção do leitor, já que citar, já nos ensinava Compagnon, a seu modo, é o elo entre a
leitura e a escritura.
1810
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REFERÊNCIAS
FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PIGLIA, Ricardo. Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria. In: Los libros. n.
29. Marzo-Abril de 1973, pp. 22-27.
PRIETO, Adolfo. Silvio Astier, lector de folletines. In: Revista de Letras. Facultad de
Humanidades y Artes, UNR, Año 1, n. 1, Agosto de 1987, pp. 51-57.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. (Em busca do tempo perdido, vol. 1) São
Paulo: Globo, 2006.
NOTAS
i
PROUST, 2006, p. 118.
ii
LEJEUNE, 2008.
iii
FONSECA, 1989, p. 164.
iv
PRIETO, 1987, p. 51.
v
ARLT, 2007, pp. 20-21.
vi
ARLT, 2007, p. 22.
vii
Na edição de Las flores del mal (tradução de Antonio Martínez Sarrión. Buenos Aires: Hyspamérica,
1982, p. 40), lê-se o seguinte fragmento: “Te adoro como adoro la bóveda nocturna / !Oh vaso de tristeza!
!Oh mi gran taciturna! [...] Me dispongo al ataque y acometo el asalto / Como tras un cadáver un coro de
gusanos [...]”. É provável que as diferenças capitais entre a versão transcrita por Arlt e o poema traduzido
em 1982 se devam à diferença de tradução da versão que circulava nos anos vinte, à qual o autor
argentino teve acesso. Esta é uma das conclusões a que chega Fernando Sorrentino. Ver “Seis
curiosidades sobre El juguete rabioso”, e especificamente “La mulata blanca y los gitanos necrófagos”
http://www.ucm.es/info/especulo/numero34/juguete.html. Acessado em 29/11/2009.
viii
ARLT, 2007, pp. 45-46.
ix
ARLT, 2007, p. 35.
x
PIGLIA, 1973, p. 24.
xi
ARLT, 2007, p. 56.
xii
COMPAGNON, 2007.
xiii
ARLT, 1997, p. 100.
xiv
A referência ao escritor Camilo Castelo Branco não será aprofundada neste ensaio, mas ela já aparece
como um dos componentes que nos ajudam a reforçar a hipótese de que há uma estreita ligação entre
leitura e identidade, dado o impasse vivido pelo protagonista em se encaixar em modelos de identidade
nacional mais tradicionais. É importante perceber, nesse sentido, que as citações ao autor de Amor de
Perdição aparecem apenas quando o personagem passa por Portugal e especificamente pela cidade do
Porto, figurando, por meio da leitura, uma tentativa de responder ao problema que a identificação como
português impõe ao narrador-viajante.
xv
PAIXÃO, 2001, p. 108.
xvi
PAIXÃO, 2001, p. 87.
1811
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xvii
PAIXÃO, 2001, p. 153.
xviii
PAIXÃO, 2001, pp. 203-204.
xix
PROUST, 2006, p. 74.
xx
LEJEUNE, 2008, p. 40.
1812
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1
Mestranda do Programa de Pós-graduação de Literatura e Diversidade Cultural da Universidade
Estadual de Feira de Santana e bolsista Capes.
2
Nasceu em Salamanca (1469-1530) e estudou na universidade da mesma cidade de nascimento, tendo
aulas do próprio Antonio Nebrija. Viveu entre Espanha e Itália, trabalhando a serviço da corte pontifícia e
recebendo favores da mesma. Ordena-se sacerdote, tardiamente, e os últimos anos de sua vida
transcorrem em Leão (PRIEGO, 1991, p. 11-15).
3
Nasceu também em Salamanca (1474 - 1542) e estudou sob a tutela dos seus tios, clérigos influentes na
vida eclesiástica e universitária da cidade. Bacharel em artes e ordenado sacerdote, prestou seus serviços
de músico e organizador de festas e espetáculos religiosos na catedral. Ocupou em 1522 a cátedra de
música da Universidade, que desempenhou até 1542, conforme Miguel Priego (PRIEGO, 2004, p. 29).
4
Seguindo o Dicionário de Termos Literários de Massaud Moisés, a palavra auto vem do latim actus e
seu significado está para ação, realização, execução, ato. E ele acrescenta que “vinculado aos mistérios e
moralidades, e talvez deles proveniente, o auto designa toda peça breve, de tema religioso ou profano,
encenada durante a Idade Média: equivaleria a um ato que integrasse espetáculo maior e completo; daí o
apelativo que recebeu: auto” (MOISÉS, 1997, p. 45). Carolina Michaëlis em sua reconhecida Notas
Vicentinas ainda esclarece que tudo indica que Gil Vicente apropriou a denominação Auto como título de
dramas da obra Auto del Repelón de Juan del Encina, mas, também, das Éclogas III e VI do dramaturgo
espanhol Lucas Fernández, contemporâneo de Encina e Vicente (VASCONCELOS, 1922, p. 378) .
1813
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(junho de 1502), o Auto Pastoril Castelhano (Natal, entre 1502 e 1509) e o Auto dos
Reis Magos (Janeiro, entre 1503 e 1510). Não se tem é claro a pretensão de destacar
todos os aspectos do cômico de linguagem, nem tampouco discriminar os encontrados
nas peças em sua totalidade. Serão apontados aqui aqueles elementos que consideramos
de maior relevância para este estudo.
Como ponto de partida, é importante entender que o castelhano rústico é
usualmente designado de saiaguês que ao ser chamado dessa maneira sugere-se ser
inspirado da região de Sayago, perto de Salamanca, Zamora e Ledesma, contudo, como
Teyssier (2005) afirma, “não se pretendeu caracterizar a origem dialetal precisa desta
‘língua pastoril’: Sayago sugeria uma aproximação com a palavra sayo, e sayo é, como
se sabe, o traje tradicional dos pastores” (p. 32).
Além disso, é possível afirmar que esta língua rústica castelhana parece ter como
primeiro texto As Coplas de Mingo Revulgo, obra satírica contra Henrique IV de
Castela, composta provavelmente antes de 1464. Contudo, o fato fundamental na
formação do saiaguês foi o uso deste estilo rústico castelhano na boca dos pastores de
Natal que se localiza no antigo texto espanhol, Vita Christi, de Fray Íñigo de Mendonza,
que data muito provavelmente de 1482. Este mesmo modo de falar se apresenta ainda
na cena pastoril da peça Écloga en la cual se introducen tres pastores, de Francisco de
Madrid, composta em 1495. Os três textos por ora citados foram analisados pelo
estudioso, Paul Teyssier (op. cit.), em sua célebre tese A Língua de Gil Vicente. Ele
certifica que estes “nos permitem fazer uma idéia do que seria este fundo castelhano do
saiaguês” (p. 34-42).
Em todo caso, o que mais nos interessa é que esta tradição literária do texto
rústico espanhol foi aperfeiçoada em Lucas Fernández e, principalmente, em Juan del
Encina e, mais tarde, empregada por Gil Vicente. O modo de falar em questão se
apresenta na obra vicentina principalmente nas suas primeiras peças, Auto da Visitação
(junho de 1502), o Auto Pastoril Castelhano (Natal, entre 1502 e 1509) e o Auto dos
Reis Magos (Janeiro, entre 1503 e 1510). Depois destes, Vicente utilizará este artifício
lingüístico no Auto da Fé (1510), em algumas passagens do Auto dos Quatro Tempos
(data desconhecida, mas, certamente, escrito antes do fim do reinado de D. Manuel) e,
bastante tempo depois, no Triunfo do Inverno (1529) e na Comédia do Viúvo (posterior
a 1521) (Ibid, p. 31-32).
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É certo que Juan del Encina é referência fundamental no que diz respeito sobre o
estudo deste dialeto porque estilizou a língua dos pastores como recurso para
particularizá-los. É por isso que Teyssier (2005) admite que o dramaturgo espanhol
foi [...] quem fez que o “estilo pastoril” operasse a transformação decisiva
que lhe confere, por longos anos, os seus traços característicos. Essa
transformação consistiu fundamentalmente em leonizar a língua dos pastores,
introduzindo nela numerosos traços dialetais tomados aos falares regionais de
Salamanca, de onde Encina era originário [...] (p. 42).
Não sabemos exatamente os motivos que fizeram com que Encina estilizasse tal
dialeto como a língua dramática dos pastores. Francisco Ruiz Ramón (2000) supõe
algumas das intenções. Para ele, talvez seja por uma personalização realista (em um
tempo e um espaço concretos), comicidade por contraste (contraste entre a linguagem
do público cortesão que assistia às representações na sala do palácio), originalidade e
liberdade expressivas de linguagem (linguagem de expressões fortes, não travadas por
tradição literária alguma) (p. 35).
A captação deste dialeto por Gil Vicente mostra que as potencialidades do falar
rústico, no aspecto artístico, são imensas e que merece atenção e apreço. A
representação de uma linguagem típica pastoril no contexto cortesão dá lugar a um
mundo de contrastes entre o rústico e o civilizado e, por sua vez, acende o cômico.
Assim, pode-se afirmar que o saiaguês utilizou-se de recursos e procedimentos que
favoreceu a comicidade nos autos.
O fenômeno de produção da comicidade não tem um arcabouço teórico
exatamente consensual e muito menos solucionado e esgotado. Contudo, daremos aqui
uma atenção especial à teoria do filósofo francês Henri Bergson, explorada no seu
conhecidíssimo livro O riso (1987), por nos dar uma idéia mais abrangedora do que
representa a manifestação do cômico, visto que seus pressupostos se desenvolvem a
partir das situações, das palavras e caracteres que se tornam cômicos porque se mostram
em cada um deles uma certa mecanicidade ruidosa. Dentre estes procedimentos, nos
interessa aqui a presença do cômico na linguagem mais especificamente no dialeto
rústico saiaguês.
Se pensar que um dos objetivos da representação vicentina era entreter a nobreza
desocupada, certamente só vem confirmar que muitos dos procedimentos estilísticos
usados por Vicente eram cômicos. Bernardes (2006) afirma que na obra vicentina “é
naturalmente possível distribuir as ocorrências seguindo a tipologia de H. Bergson que
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