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ENZO TRAVERSO
A melancolia de esquerda
Marxismo, História e Memória

tradução _ André Bezamat

preparação _ Ligia Azevedo
revisão _ Silvia Massimini Felix, Fernanda Alvares
edição _ Maria Emilia Bender
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A MELANCOLIA DE ESQUERDA
Marxismo, História e Memória

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27

IITKPLJÇÃO:
Passados assombrados desprovidos de utopias

Na luta secular entre o socialismo e a barbárie, a barbárie

ganha de longe. Entramos no século xxi com bem menos es-
perança do que nossos ancestrais no início do século passado.
Daniel Bensaiddeanne, de guerre lasse (1991)

VIRADA HISTÓRICA

Errl 1967,
reconstruindo a longa trajetória das recorrentes men-
«historia magistra vitae» [história, mestra
ções à sentença de Cícero
da vida], Reinhart Koselleck demonstrou seu esgotamento no fim
do século xvin, quando a idéia moderna de progresso tomou o lu-
gar da antiga visão da história cíclica. O passado deixou de ser visto
como um enorme reserv.atório de onde os seres humanos podiam
ele
resgatar lições morais e políticas. Desde a Revolução Francesa,
teve que ser reinventado, em vez de reconstituído. A mente hu-
mana, observou Koselleck, citando Tocqueville, vagava na escu-
ridão, e as lições da história se tornavam misteriosas e inúteis) O

—
Rmhirc Koselleck. s, Hisloria itin,;istra Vifile: Th e Dissolution of the
Topos 16to the Perspective of a Modernized Historica1 Process» (1967).
Fir6;rc., Par: On tile Sematnics Hisioricai Time. Or.-. de Keith Tribe.
. ,

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41‘
 28
final do século xx, no entanto, parecia ter reabilitado a máxima
de Cícero. A democracia liberal tomou a forma de urna teodiceia
secular que, no epílogo de um século de violência, incorporou
as lições do totalitarismo. De um lado, historiadores apontavam
as inúmeras mudanças ocorridas numa era turbulenta; de outro,
filósofos anunciavam o «fim da história». O hegelismo otimista
de Fukuyama foi criticado a corto e a direito,2 mas o mundo que
emergiu do final da Guerra Fria e do colapso do comunismo era
assustadoramente uniforme. O neoliberalismo assumiu o protago-
nismo; nunca, desde a Reforma, uma única ideologia havia esta-
belecido hegemonia tão completa, de alcance tão global.'
O ano de 1989 representa uma ruptura, um montentum que
encerra uma época e introduz outra. O sucesso internacional da
obra de Eric Hobsbawm, A era dos extremos (1994), reside, antes •
de mais nada, em sua capacidade de inserir dentro de uma pers-
pectiva histórica mais ampla a percepção cada vez mais compar-
Nova York: Columb;,-, 1.1 niversity Press. 2o-42. [Ed. bras.: humo
Coniribruc,io 3 IILIU1U 1. Trad. de Wilma P.
Ma.s: e Carlos A. Pereira. P.io de Janeiro:
2_ Frâncis Fnktiyama. •Thc End of verão
•
r. pp. 3- I Id.. Tin &rd' ei Hisrmy ,n!,/ !h, . FrC2
1992. 1ES. ()/;,,, ("thiN.,, h;1•?,, de-
'_••• Rio cle jat..eiro: Ro;:eo, 1992]. Sobr;- :"
Anderson. The Ends of Hisrorv, .
"‘
, I.., mdres: Verse. 1992). pp. 279 -375: e jo:ep Fontan:i,
fil hiswria (Barcelona:
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1),,, rry Antkrson. Itenev, :às-. New /4! w
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29
tilhada do fim de um ciclo, de uma época e, afinal, clt um sécu-
lo.' Por causa de seu caráter inesperado e disrupcivo, a queda do
Muro de Berlim logo ganhou uma dimensão de evento, de virada
de época que excedia suas causas, escancarando novos cenários,
de súbito projetando o planeta em uma constelação imprevisível.
Como todo grande evento político, alterou a percepção do passa-
do e gerou uma nova imaginação histórica. O colapso do socia-
lismo de Estado promoveu uma onda de entusiasmo e, por pouco
tempo, grandes expectativas de uma possível democracia socialis-
ta. Muito rapidamente, porém, as pessoas foram percebendo que
o que havia de fato ocorrido fora o desaparecimento absoluto de
toda uma representação do século xx. A esquerda — essa imen-
sidão de correntes que incluía várias tendências antistalinistas —
foi se sentindo cada vez mais desconfortável. Christa Wolf, a es-
critora dissidente mais famosa da antiga República Democrática
Alemã, descreveu essa estranha sensação no texto autobiográfico
Stadt der Engel [A cidade dos anjos]: ela se sentia uma órfã espiri-
tual, exilada de um país que já não existia.' Junto à história oficial,
«monumental>, mas já desacreditada, do comunismo, havia uma
Elic Higory [)/ - thr II 5cM 19 / 4 -199/.
Nova York: Vi 995. [Ed. bras.: Ura c.vnenws: /;i ui sjril ,› XX,
cLiceni.a951. 41,,;931
/9. v/. Trad. Marcos Sur:rarrira. São Paulo: Companhiar, d
D_ Cli risca WoIII c¡ /), d,, ou< Freud. Nova York:
and Girou.. 2i.:11o.
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44P,, 37s.' s.—
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 narrativa histórica diferente, criada pela Revolução de Outubro,
na qual outros eventos haviam sido inseridos, da Guerra Civil
Espanhola à Revolução Cubana e a Maio de 68. Segundo essa
visão, o século xx experimentara uma ligação simbiótica entre
barbárie e revolução. Passado o choque de novembro de 1989,
no entanto, essa narrativa desmoronou, varrida pelos escombros
do Muro de Berlim. A dialética do século xx foi enterrada. Em
vez de liberar mais energias revolucionárias, o fim do socialis-
mo de Estado acabou por frear a trajetória histórica do próprio
socialismo. A inteira história do comunismo foi reduzida a sua
dimensão totalitária, que por sua vez parecia ser uma memória
coletiva, passível de ser transmitida. É lógico que tal narrativa não
foi inventada em 1989; ela existia desde 1917, mas agora se tor-
nara uma consciência histórica compartilhada, uma representação
dominante e inconteste do passado. Após ter adentrado o século
xx corno urna promessa de libertação, o comunismo dele saiu
corno um símbolo de alienação e opressão. As imagens da de-
molição do Muro de Berlim, à posteriori, parecem a antítese de
Outubro, de Eisenstein: o filme da revolução fora definitivamente
«rebobinado». Na verdade, quando o socialismo de Estado ruiu, a
esperança no comunismo já havia se extinguido. Em 1939, a su-
perposição do socialismo de Estado e do comunismo gerou urna
narrativa que subsumia a história da revolução na categoria de
totalitarismo.
Reinhart Koselleck definiu como Sattelzeit — «um tempo
suspenso», tempo de passagem — o período entre a crise do
Antigo Regime e a Restauração. Nessa era cataclísmica de tran-
sição, urna nova forma de soberania baseada na ideia de nação
veio à tona e, por um breve momento, acabou com os regimes
dinásticos europeus, em que urna sociedade de estamentos fora
substituída por uma sociedade de indivíduos. Palavras trocaram
de significado, urna nova concepção da história como um «co-
letivo único», incluindo tanto um «conjunto de eventos» quan-
to urna narrativa significativa (um tipo de «ciência histórica»),
enfim ganhou forma.6 O conceito de Sattelzeit nos ajuda a en-
tender as transformações do mundo contemporâneo? Podemos
supor que, uardadas as devidas proporções, os anos que vão cio
final da década de 70 até o Onze de Setembro de 2001 testemu-
nharam uma transição cujo resultado foi urna mudança radical
de nossos paradigmas, de nossa paisagem política e intelectual.
Em outras palavras, a queda do Muro de Berlim simboliza uma
transição na qual velhas e novas formas emergiram juntas. Não
foi o mero reaparecimento -da velha retórica anticomunista. Ao
longo desse quarto de século, mercado e concorrência — os pi-
6_ Reinharr KoselJeck. ,,Einl&rung-. 13RUNNEH, Orco; CON7F..
KosEu.r.ck , IteinbArr (Orgs.). Gruiulkg;VL"..- Fk.,,< ;riscfics
zut .Sp11e Denrcirl,ind. Srurrgalt 1:leu-Com. 1972. p.
v.. v. 1. Ver também Gnbriel Morzkin, ,, On the Norion of Hisrorical
(llis)cooriouiry: Reinhart Kose.lieck's Construcrion o rhe Sarrelzeir em
Contribbrions h> //k ,>1. Gintepis 1 (o. 2. 21))5), pp. 1-15-5N• Sobre a
emergricia de um novo cjmceito hi:róri,>.. cf. Kosefleck. -Geschichce.
Historie-, em Ceschiclairdie Grinullit,ic. Op. civ.. 2.)). 593-717. v. 2.
 4 .9Ts.
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33
32
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speranças. Mas isso não se deu nas chamadas revoluções de

lares do vocabulário neoliberal — se tornaram os fundamentos ee
veludo. Pelo contrário: elas frustraram os sonhos e paralisaram a
«naturais» das sociedades pós-totalitárias. Colonizaram nossa t,
produção cultural. Tão logo foi eleito presidente da República
imaginação e moldaram um novo habitus antropológico, fazen-
Tcheca, um brilhante ensaísta e escritor como Vaclav Havei se
do com que os novos valores de uma emergente «conduta de
tornou a cópia pálida, triste, de um estadista ocidental qualquer.
vida» [Lebensfiihrung], se comparados ao velho ascetismo pro-
Os escritores da Alemanha Oriental eram extremamente cria-
testante de uma burguesia eticamente orientada — conforme a
tivos e perspicazes quando, mesmo sufocados pelo aparato de
clássica descrição feita por Max Weber pareçam um vestígio
controle da Stasi, criavam romances alegóricos que estimulavam
arqueológico.' Essa é a moldura política e epistêmica do novo
a arte de ler nas entrelinhas. Nada comparável a isso surgiu após
século que o fim da Guerra Fria iniciou.
Em 1989, as revoluções de veludo pareciam remontar a a guinada, o Wende. Na Polônia, a virada de 1989 engendrou ,
uma onda nacionalista, e as mortes de Jack Kuron e Kriztof
1789, passando por cima de dois séculos de luta por socialismo.
Kieslowski puseram fim a um período de criação e crítica cultu-
Liberdade e representação política eram seus únicos horizon-
tes, em consonância com um modelo de liberalismo clássico: ral. Em vez de se projetarem no futuro, essas revoluções criaram
sociedades obcecadas pelo passado. Por toda a Europa Central
1789 em oposição a 1793 e a 1917, ou mesmo 1776 em opo-
museus e instituições públicas foram erigidos para resgatar o
sição a 1789 (liberdade contra igualdade)." Historicamente, re-
voluções sempre foram usinas de utopias; elas não só forjavam
1 passado nacional sequestrado pelo comunismo soviético.
Mais recentemente, as revoluções árabes de 2011 logo atin-
novos imaginários e novas ideias, como afloravam expectativas
giram o mesmo impasse. Antes que as guerras civis fratricidas na
Líbia e na Síria as interrompessem, elas depuseram dois ditado-
res odiados na Tunísia e no Egito, porém não souberam como
7_ Para a :Inalisedecria cles•sa mudança hmórica. Pierrc: 1.):,rdor.
Ct...ri,dar, I avftl. ern Thc 11.?). /.1,» 11 .0).0. O )!; n'Ec 1), lidar com a falta deles. Suas memórias eram constituídas de fra-
(.1._011.dreS: Vt'Z'Ss".. 2(1 ; 4), cassos: socialismo, pan-arabismo, terceiro mundismo, além de
S C.S debate. iniciado ix1r Fur- enhiwrib.cinw rht
'ire
fundatnentalismo islâmico (o que não inspirava as gerações mais
(N,wa York: C hrkIt. lJniver:r) Press, 1v81) [Ed.
br.: 12 r4“çsio 1 r;;J. de Luiz N,L:r, c Marcha
novas). Com uma auto-organização admirável, tais revoluções
Paz e Terra. 19N9). Ste'V;.`11 mostraram completa falta de liderança e pareciam desorientadas
Ferid in(x. 171.)- 1989 Cornell
ein termos estratégicos, mas seus limites não estavam em seus

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líderes ou mesmo nas forças sociais: eram limites de nossa épo-
ca. Essas revoluções e movimentos de massas carregam o fardo
dos fracassos das revoluções do século xx, um enorme peso que
paralisou qualquer imaginação utópica.
Essa transformação histórica inevitavelmente afetou o femi-
nismo. Não obstante o feminismo revolucionário ter questiona-
do vários pressupostos do socialismo clássico — em especial sua
identificação implícita do universalismo com uma visão e urna
capacidade de agir (agency) masculina —, tais pressupostos com-
partilhavam a ideia de urna emancipação projetada para o futuro.
O feminismo enfatizava um conceito de revolução calcado na
liberação global que transcendia qualquer luta de classe, visando
urna total reconfiguração das relações entre os gêneros. Ele rede-
finiu o comunismo como uma sociedade de iguais em que não
apenas as classes seriam abolidas, mas também os privilégios de
gênero, de modo que a igualdade implicava o reconhecimento
de diferenças. Seu imaginário utópico anunciava um mundo em
que o parentesco, a divisão sexual de trabalho e a relação públi-
co e privado seriam reconfigurados por completo. No alvorecer
do feminismo, revolução socialista também significava revolução
sexual, fim da alienação corporal e realização de desejos repri-
midos. O socialismo não representava apenas a mudança radi-
cal na estrutura social, mas também a criação de novas maneiras
de viver. As lutas feministas eram muitas vezes experimentadas
como práticas emancipatórias que antecipavam o futuro e' pre-
figuravam uma comunidade libertada. Na sociedade capitalista,
elas reivindicavam reconhecimento das diferenças de gênero e
igualdade de direitos; no ãmbito da esquerda, houve urna crítica
ao paradigma de virilidade que moldou uma concepção militar
de revolução herdada do socialismo do século xix e reforçada
pelos bolcheviques durante a guerra civil russa; entre as mulhe-
res, criou-se uma nova consciência subjetiva. É esse ensemble de
e
xperiências e práticas que faz falta desde o fim da revolução fe-
minista. O colapso comunista foi acompanhado — ou melhor,
precedido — do esgotamento das lutas feministas e dás utopias,
do qual derivou uma peculiar espécie de melancolia. Como a
esquerda, e dentro dela, o feminismo lamentou sua perda, uma
perda que combina o fim do sonho de um futuro liberado e as
experiências já encerradas de urna transformação prática. Na
era pós-Guerra Fria, as democracias liberais e as sociedades de
mercado proclamam a vitória do feminismo com a realização da
igualdade jurídica e a conquista da autodeterminação individual
(a saga da business women). O fim das utopias feministas engen-
drou uma variedade de «políticas de identidade» regressivas e, na
universidade, o recrudescimento do estudo de gênero. Não obs-
tante suas evidentes conquistas acadêmicas, sexo e raça já não são
vistos como marcas de urna opressão histórica (contra a qual o
feminismo havia lutado) e se tornaram categorias atemporais, hi-
postáticas — Rosi Braidotti as define «metafísicas» —,9 adaptadas
c; ,11,1 fli (Ronu-Bari: Ldt.-2rza,
9— Ç:itado por Atm:1 13;-avo. em .1
C W1V
2no), 220.
a um reconhecimento «comoditizado» da alteridade do gênero. 6yico evento que, durante uma sangrenta guerra civil, criou uma
ditadura autoritária logo transformada numa forma de totalitaris-
Como diz Wendy Brown, o gênero se tornou «algo que se pode
mo. Ao mesmo tempo, ao acender uma chama de esperança de
moldar, multiplicar, problematizar, ressignificar, metamorfosear,
ridicularizar, resistir, imitar, regular... mas não emancipar». '° e mancipação, a Revolução Russa mobilizou milhões de homens e
mullieres ao redor do mundo. A trajetória do comunismo soviéti-
co — sua ascensão, seu apogeu ao fim da Segunda Guerra Mundial
e seu declínio — moldou profundamente a história do século xx.
O FIM DAS UTOPIAS
O século xxi, por sua vez, começa com o colapso dessa utopia.'2
François Furet elaborou essa conclusão no final de O pas-
Portanto, o século xxi nasce como um tempo moldado por um
sado de unia ilusão, com uma «resignação» ao capitalismo que
eclipse geral das utopias. Essa é urna diferença profunda em relação
muitós observadores se regozijaram em enfatizar: «A ideia de
aos dois séculos anteriores. Na entrada do século xix, a Revolução
outra sociedade se tornou quase impossível de ser concebida,
Francesa definiu o horizonte de uma nova era em que política,
e hoje ninguém oferece qualquer pista ou consegue formular
cultura e sociedade foram profundamente transformadas. O ano
minimamente um novo conceito. E aqui estamos, condenados
de 1789 criou um novo conceito de revolução — não mais uma
a viver no mundo como ele é»." Embora não compartilhasse a
rotação, conforme seu conceito astronômico original, e sim uma
satisfação do teórico gaulês, o filósofo marxista Frederic Jameson
ruptura e uma inovação radical —" e lançou as bases para o adven-
formulou um diagnóstico semelhante, observando que é mais
to do socialismo, que se desenvolveu com o avanço da sociedade
fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo."
industrial. Ao demolir a ordem dinástica europeia — o «persisten-
te» Antigo Regime —, a Primeira Guerra Mundial inaugurou b
século x.x, mas de seu cataclismo também se originou a Revolução;
Russa. Outubro de 1917 foi logo recebido como um grande e trá- 12_ Marciii Locomotir:•. Rcrohtius and !hl . AlAing aj. the
Modern Nxv Haven: Yale Unk,rrsirv
13_ François Furer. 1//. Passin:2 an Inoswn: Th, Idea ii 0.,nnunnisni in
the Twentitah CumniT. ellicaszo: Úni\ rivoi:C.:hicgo Pres. 1999. p. 502.
Wend) Bro‘vn. .Worr.&-n's Revoluciov, Moulning,
[Ed. bras.: O pu,sado mi/o ihisdo: s::/nv
. P:i ... . : ''' ... . IX &). ti. 2i ii.3p. XX. Trad. d obrw Le31 Frriia. çtc.) Siciliano• 1995.1.
1<!-%Selk:Ck. H kr,+rical (riteriá ot. NINA:21.n Con‘r of 14_ Frederick janiesou. -Future Cr\ 21. 2 i3. p. 70.
'1)(19). Fn;ue. iii op. c pp.


A utopia de um modelo diferente de sociedade é vista como uni O filósofo alemão Ernst Bloch distinguia os quiméricos so-
perigoso desejo de totalitarismo. Resumindo, a virada do século nhos prorneteicos que assombram a imaginação de sociedades
coincidiu com uma transição do «princípio esperança» para o históricas impossibilitadas de realizá-los (as utopias abstratas e
«princípio responsabilidade»» O «princípio esperança» inspirou mpensatórias, como as máquinas voadoras imaginadas duran-
co
as lutas do século passado, de Petrogrado em 1917 a Manágua t o Renascimento) das esperanças antecipatórias que inspiram
e
em 1979, passando por Barcelona em 1936 e Paris e Praga em uma transformação revolucionária do presente (as utopias con-
1968. Também assombrou momentos terríveis e encorajou mo- cretas, como o socialismo do século xx)." Hoje constatamos o
vimentos de resistência ao nazismo. O «princípio responsabili- desaparecimento daqueles e a metamorfose destas. De um lado,
dade» surgiu quando o futuro ficou turvo, quando. nos demos sob diferentes formatos, da ficção científica aos estudos ecoló-
conta de que as revoluções geraram monstros terríveis, quando a gicos, as distopias de um futuro de pesadelo, feito de catástrofe
ecologia nos conscientizou dos perigos que ameaçam o planeta e ambiental, substituíram o sonho de uma humanidade livre —
começamos a pensar que tipo de mundo queremos deixar para as visto como uma perigosa miragem da era do totalitarismo — e
gerações futuras. Com base no mesmo par conceitual elaborado confinaram a imaginação social dentro dos limites estreitos do
por Reinhart Koselleck, poderíamos formular esse diagnóstico presente. De outro, as utopias concretas de urna emancipação
da seguinte maneira: o comunismo não é mais um ponto de coletiva se transformaram em pulsões individuais prisioneiras
interseção entre «um espaço de experiência» e um «horizonte de do mercado. Após ter dispensado «a corrente quente» da eman-
expectativas»." A expectativa desapareceu, enquanto a experiên- cipação coletiva, o neoliberalismo introduziu a «corrente fria»
cia tomou a forma de um monte de ruínas. da razão econômica; as utopias são destruídas por sua privatiza-
ção em um mundo reificado."

1 E;.nr Bioch. Th, Principie :,f1-lo1 ,. NII r Pre. :

17_ Bloch. op. cIr. Ver rambéÉn Rurb Levitas. oEduçared Rope: Ernst
{Ed. ( )p,inrípio1.,perdir.ra. frad. de Néb‹,SchneIder. Rir; da Ja11e:
Bloch em Abstracr and Concrete Snfdief (fl. 2,
ContrapemrsVErIlk-r.I. 2 iflr<]: blansiona:. 1 fir iovh•nuir, Re,pw,..i1H)¡;)••
.W1.1bU'S /'r 1//1 Icclunils):»c,ri.?‹ Chica:L): UnIvers:.ty 1990). pp. I3-2(.
Press. I 9:s5. :Ed. bras.: (..) Trul. de Marilane /8_ Peter Thomp:on. • introducrk,11: Privarization o 1-1:1pe and
The
e Luiz RIt, JariL•iro: Coritrap:Nnw. 2k III! Il. rue Crisis or. Neation In: Titomt,SON. Z.:z.rK. Sia \ oi (Org:.).
11+,• Fiodrc J Uhnpia. 1)11rharn.: 11uke
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 ercado de capitais, urna época de permanente aceleração —
Segundo Koselleck, é o presente que confere significado ao do m
tomando emprestado as palavras de Koselleck — sem urna «es-
passado. Ao mesmo tempo, é o passado que oferece aos atores Há vinte anos, a queda do socialismo real
da história um arsenal de experiências com as quais eles podem trutura p rognóstica».2°
paralisou e censurou a imaginação utópica, e por um momento
formular as próprias expectativas. Em outras palavras, passado e
suscitou novas visões escatológicas do capitalismo como «ho-
futuro interagem, unidos por um liame simbiótico. Em vez de
rizonte insuperável» das sociedades humanas. Essa fase acabou,
dois continentes rigorosamente separados, estão conectados por
mas não surgiram novas utopias. Assim, «presentisrno» se torna
urna relação dinâmica e criativa.. No início do século xxi, essa
um tempo suspenso entre um passado que não se pode superar
dialética do tempo histórico parece estar com os dias contados. As
e um futuro negado, entre um «passado que não quer passar»2'
utopias do século passado sumiram, deixando um presente carre-
e um futuro que não pode ser inventado ou previsto (exceto em
gado de memórias, mas incapaz de se projetar no futuro. Não há
terrnos de catástrofe).
um «horizonte de expectativa» visível. A utopia parece ser urna
Efil tempos recentes, «presentismo» se tornou, longe de um
categoria do passado — um futuro imaginado em um tempo que
diagnóstico histórico, uma espécie de manifesto para alguns
já se foi — porque já não pertence ao presente de nossas socieda-
pensadores de esquerda. Um deles é o historiador da arre (antigo
des assombradas pelo passado. A própria história parece ser uma
situacionista) T. J. Clark, que, alegando certo nietzscheanismo
paisagem de ruínas, um legado vivo de dor e sofrimento.
ou reformismo desiludido, propõe uma política realista que re-
Alguns historiadores, como François Hartog, caracterizam o.
nunciaria a qualquer utopia. «Não haverá futuro», ele asseve-
regime de historicidade que emergiu nos anos 1990 como pre-
ra, «apenas um presente em que a esquerda (sempre aguerrida e
sentismo: um presente diluído e expandido que absorve e dissol- marginalizada, sempre — orgulhosamente — algo do passado) se
ve em si tanto o passado quanto o futuro)» O «preseritismo» tém
esforça para juntar 'o material para a sociedade' que Nietzsche
urna .dupla dimensão. Por um lado, é o passado reificado pOr
pensava haver desaparecido da face da Terra. E isso não é quie-
urna indústria cultural que destrói toda experiência transmitida;
por outro, é o futuro abolido pela era do neoliberalismo: não a
«tirania dos relógios» descrita por Nobert Elias, mas a ditadura Fornaai. TinwSrnkccures ,..
1<c, eLc.',.
1',74, op. cit.. p. ')3.
21_ 1.):2 (ón, rab cu,, h2Ja Enw: olre zhuarur
Iliswrifa.:,ireir akmã (ios; ar:,)s
-2,

42
cismo, mas instruções para a política — urna esquerda que pode
encarar o mundo de frerite».22 Diante de tal assertiva, quase de-
saparece a fronteira entre o reconhecimento da situação objetiva
e a resignação à derrota como destino inexorável da esquerda.
O século xxl engendrou um novo tipo de desilusão. Após o
«desencanto com o mundo» anunciado por Max Weber há mais
de um século, quando ele de-finiu a modernidade como uma
Ng-
*
N272
.
era desumanizada pela razão instrumental, testemunhamos um
novo desencanto trazido pelo fracasso de suas alternativas. Esse
4 impasse histórico resulta de uma dialética paralisada: em vez da
negação da negação — a transcendência socialista do capitalis-
mo conforme a ideia hegeliana (e marxiana) de Aiilizebung
assistimos à intensificação e à extensão do capitalismo por meio
do extermínio de seus inimigos. A esperança blochiana do por-
vir do ser humano — o «ainda não» [noch nicht] — é abandonada
em favor de um eterno presente.23 Como se sabe, o fracasso do
socialismo real não é a única fonte dessa mudança histórica. A
utopia socialista era indissociável da memória dos trabalhado-
res, uma memória que desapareceu ao longo da última década.
A queda do comunismo coincidiu com o fim do fordismo, ou
22_ T. j. Clark. For .1 1 r,1-;: kN., irh no Furure , .
NewLei, Reriew
74 (24.51.2. p. 75. seguido p:12 indkpenszivel crírica cie Susan . Warkift;.
A Reply ro T. J. CLirL. em. Xur 1,1! kel'ieW 74 (21312), pp.
77-12.
23_ 1 bompon, c‘p cir.. p. 15.
43
seja, o modelo do capitalismo industrial que havia dominado o
século xx. A introdução de um trabalho flexível, móvel e instá-
vel, assim como a difusão de modelos individuais de competição
entre assalariados, minou formas tradicionais de sociabilidade
e solidariedade. O advento de novas formas de produção e a
mudança do antigo sistema de grandes fábricas com enorme
concentração de força de trabalho teve importantes consequên-
cias: por um lado, afetou intensamente a esquerda tradicional,
colocando em xeque sua identidade política e social; por outro,
dearticulou o sistema de memória da esquerda, cuja continui-
dade fora irremediavelmente rompida. A esquerda europeia
abandonou o palco e se retirou para os bastidores.
Ao mesmo tempo., a década de 1990 foi marcada pela crise do
tradicional «sistema de partidos». Partidos políticos de massa —
que sempre foram o modelo dominante da vida política após a
Segunda Guerra Mundial e cujo paradigma era justamente os par-
tidos de esquerda (tanto comunistas quanto social-democratas) —
desapareceram ou entraram em declínio. Compreendendo cen-
tenas de milhares, algumas vezes até mesmo milhões de membros
profundamente arraigados nas sociedades civis, eles haviam sido
um vetor fundamental na formação e na transmissão de uma
memória política coletiva. Os novos «partidos-ônibus» que os
substituíram são máquinas eleitorais sem fortes identidades polí-
ticas. Socialmente em frangalhos, a memória de classe desapare-
ceu num contexto onde os trabalhadores haviam perdido qual-
quer visibilidade pública; ela se tornou uma espécie de memória
«marrana», ou seja, uma memória velada (assim como a memória
do Holocausto no pós-Segunda Guerra), e a esquerda europeia
perdeu tanto sua base social quanto sua cultura. Ao fracasso do
socialismo real seguiu-se uma ofensiva ideológica de conserva-
dorismo, não um balanço estratégico da esquerda.
A obsessão pelo passado que vem moldando nosso tempo re-
sulta do eclipse das utopias: é inevitável que um mundo sem
utopias acabe olhando para trás. A emergência da memória no
espaço público das sociedades ocidentais é consequência des-
sa mudança. Entramos no século xxi sem nenhuma revolução,
sem a tomada da Bastillha ou do Palácio de Inverno, mas tive-
mos um choque, um horrendo ersatz no Onze de Setembro,
com os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, disseminan-
do o horror, não a esperança. Desprovido de seu horizonte de
expectativa, o século xxl nos aparece em retrospecto corno uma
período de guerras e genocídios. Uma figura outrora discreta
e modesta agora está sob os holofotes: a vítima?' Na maioria
das vezes de forma anônima e silenciosa, as vítimas invadem o
pódio e dominam nossa visão da história. Graças ã influência é à
qualidade de suas obras literárias, as vítimas dos campos de con-
centração nazistas e dos gulags stalinistas se transformaram nos
grandes ícones deste século de vítimas. Captando esse Zeitgeist,
Tony judt concluiu seu afresco da Europa do pós-guerra com
_ An••_•cze -1-4< C.orn(r.11
Lnivr
um capítulo reservado à memória do continente, ao qual deu
um título emblemático: «A casa dos mortos»."
Essa empada com as vítimas ilumina o século xx com uma
luz nova, introduzindo na história um personagem que, não
obstante sua onipresença, sempre permaneceu nas sombras.
Consequentemente, o passado se assemelha à paisagem con-
templada pelo Anjo da História de I3enjamin: um amontoado
de ruínas que cresce até o céu. Porém, o novo Zeitgeist é o exato
oposto do messianismo judaico-alemão do filósofo: não existe
um «tempo-agora» Vetztzeit] ressoando no passado para realizar
as esperanças dos derrotados e garantir sua redenção.26 A memó-
ria do gulag apagou a da revolução; a memória do Holocausto
suplantou a do antifascismo; a memória da escravidão eclipsou
a do anticolonialismo: a recordação das vítimas parece não po-
der coexistir com a lembrança de suas esperanças, de suas lu-
tas passadas, de suas conquistas e derrotas. Vários observadores
escreveram, antes mesmo da década de 1990, que, mais uma
vez, vivíamos «a meia-noite do século». Segundo o historiador
25_ -Fon)
2005. pp. • c- S,L'
Trad. dz' Robcw
26_ Walter
HowAr:..1:
Harvard Unix r' ;
,Tesi.s; sobr.2 ,
Sérgi Pnti11)12ou:tne.:,
 mexicano Adolfo Gilly, a ofensiva neoliberal tentou «erradicar a
ideia do socialismo da mente e dos sonhos dos seres humanos»."
A virada de 1989 produziu um embate entre história e me-
mória, fundindo dois conceitos que os estudiosos, de Maurice
Halbwachs a Paul Ricoeur e Aleida Assmann, separaram rigo-
rosamente ao longo do século xx. «Memória histórica» existe: é
a memória de um passado que parece encerrado em definitivo e
que já entrou para a história. Em outras palavras, ela resulta do
choque entre memória e história que molda nossa existência, uma
bifurcação entre diferentes temporalidades, o espelho de um pas-
sado que, enquanto continua a viver em nossa mente, já está ar-
quivado. A história escrita do século xx se equilibra entre as duas
temporalidades. Por um lado, seus atores lograram — na condição
de testemunhas — um status de fonte para os historiadores; por
outro, os estudiosos se debruçaram sobre questões que vira e mexe
interrogam as experiências que as testemunhas viveram, desesta-
bilizando o status que lhes foi conferido. Livros corno A era dos
extremos, do marxista Eric Hobsbawm, e O passado de uma ilusão,
do conservador François Furet, são em muitos aspectos antípodas,
mas suas interpretações do século xx são eivadas de recordações
que muitas vezes conferem à obra um tom autobiográfico.
27_ Adolfo Gilly. -Mil Novecit-nriç Ochentav Ntn:-‘-;.• lu: Ei
vianipai.:a. Siete Easdras
Jornada. 2í1,12. p. I Ele se ref-ena imp!iciamente ao nmiance de Vic-,Jr
-Ser::e..lhirilo ia tioe Crain, y
(Lomire,.: 1,X/rjr..•rs aud Readers. I9.42).
Em sua obra póstuma History: The Last Things Before the Last
[História: As penúltimas coisas] (1969), Sigfried Kracauer pro-
pôs a metáfora do exílio para descrever a trajetória do historia-
dor. Para ele, o historiador é, assim como um exilado ou um
«estranho» [Fremde], urna figura extraterritoria1.25 Ele se encon-
tra dividido entre dois mundos: aquele em que vive e aquele
que tenta explorar. Isso porque, apesar de seus esforços para ter
acesso ao universo mental dos atores do passado, suas ferramen-
tas analíticas e categorias hermenêuticas são formuladas em seu
próprio tempo. Esse hiato temporal possibilita tanto armadilhas
— em primeiro lugar, o anacronismo — quanto vantagens, uma
vez que permite uma explicação retrospectiva livre das amarras
culturais, políticas e também psicológicas pertencentes ao con-
texto em que os sujeitos da história agem. É justo desse hiato que
as narrativas e representações históricas do passado se originam.
A metáfora do exílio é sem sombra de dúvida frutífera — o exílio
continua sendo uma das experiências mais fascinantes da história
intelectual moderna porém, hoje é preciso que seja nuançada.
Historiadores do século xx — em especial os historiadores de es-
querda que investigam a história do comunismo e da revolução
— são «exilados» e «testemunhas», uma vez que é profundo seu
_.
Siegfried kracatier. Hiyiory: The 1..,ut 13(fori ihr Lasi. Org.
de Paul Oskar Kri:r.eller. Princeton: Markus Wiener. 1995. pp. Ver
também Georg Sjmmel, ,TI e Stranger-, em Tia - Sacio/Lig), (/ •Geol:,2,Siniatei
(Org. de K. H. Woll-ï. Neva York: Pre.., I 95;. ). pp. 4)2-8.

envolvimento com o objeto de seus estudos. Eles não exploram
um passado remoto e desconhecido, e o desafio está justo em se
distanciar dos eventos recentes de seu passado, uma experiência
que muitos deles viveram e que ainda lhes assombra a vida. Sua
relação empática com os atores do passado corre o permanente
risco de ser perturbada por inesperados momentos de (<transfe-
rência» — no sentido psicanalffico do termo — que extrapolam
os limites do trabalho, despertando experiências e a subjetivida-
de do pesquisador.29 Em outras palavras, vivemos num tempo
que os historiadores escrevem a história da memória, enquanto
as sociedades civis seguem com a memória ainda viva de um
passado histórico. Portanto, a exploração do multiforme planeta
da cultura de esquerda leva a um exercício de crítica melancóli-
ca, num precário equilíbrio entre história e memória.
TRÊS SETORES DA REVOLUÇÃO
Urna visão corrente da esquerda radical das décadas de 1960 e
1970 descrevia a revolução mundial como um processo espraiado
em três «setores» distintos mas correlatos. Um pensador marxista
de então, o economista belga Ernst Mandei, examinou as liga-
ções dialéticas entre os movimentos anticapitalistas do Ocidente,
ErietWintler, “Trauma, Transrerence and Work ing-Through ,.
1, n. 4. 1992. pp. 39-55.
byhir)
rt.
5:44 •
as revoltas antiburocráticas nos países que «na verdade viviam
e
cialismo de fato», e as revoluções anti-imperialistas que se
o so
3° Entre a Revolução Cubana
espalharam n pelo Terceiro Mundo.
(1959) e o fim da guerra no Vietnã (1975), essa visão parecia
ser, mais que um esquema abstrato ou doutrinador, uma descri-
ção objetiva da realidade. O Maio de 68 foi o clímax de uma
onda de movimentos radicais que chacoalhou muitos países na
Europa Ocidental, desde o «outono quente» italiano, em 1969,
até a Revolução dos Cravos em Portugal, em 1974, e o fim do
franquismo na Espanha, em 1975. Na Tchecoslováquia, a pri-
mavera de Praga (1968) criou uma fissura visível no interior do
.poder soviético, ameaçando contagiar outros países «realmente
socialistas». Na América Latina, muitos movimentos de guerri-
lhas se seguiram — a maioria com consequências trágicas — à ex-
periência cubana, porém, até o golpe do general chileno Augusto
Pinochet, em 1973, o socialismo era uma opção para o amanhã,
não se projetava num futuro vago e remoto. Na Ásia, os viet-
congues infligiwri uma derrota histórica ao domínio imperial
americano. Um sentimento de crescente convergência entre es-
sas experiências de revolta, algo como unia sintonia entre os «três
setores da revolução mundial», plasmou a fundo a juventude de
então, transformando a ideia e a prática de revolução. Talvez pela
30 Ernsr Mandei R(1.01wi,,n,uj• Tç>day. Londres: New Leir
T:ad. de Walteusir
Books. 1979.1Ed. bras.: O ripaxismo reroimimr:ino
Dutra. Rio de janeiro: Za'uar,
 50
primeira vez na história tenha surgido urna cultura popular global
que, muito além de ideologias e textos políticos, moldou roman-
ces, músicas, filmes, penteados e roupas. Na Itália, uma canção
do movimento Lotta Continua, escrita em 1971 por Pino Masi,
chamava «L'ora dei fucile» [A hora do fuzil]. Baseada na melodia
de «Eve of Destmction», de P. F. Sloan e Barry Mcguire (1965),
essa famosa canção pacifista conclamava à insurreição e descrevia
um mundo revolucionário que estava «explodindo, de Angola à
Palestina». Após enumerar os países que estavam testemunhando
revoltas — as guerrilhas na América Latina, as greves na Polônia
e as insurreições nos guetos americanos —, a canção finalizava
com uma pergunta retórica: «E então: do que mais você precisa,
companheiro, para entender que já soou a hora do fuzil?».3'
Durantes esses «anos de briga de rua» de verniz utópico, a me-
mória não era um objeto de culto — ela era incorporada a essas
lutas. Auschwitz desempenhou um papel significativo no enga-
jamento anticolonial de muitos ativistas e intelectuais franceses.
Durante a Guerra do Vietnã, os julgamentos de Nuremberg se
converteram em modelo para o Tribunal Russel, que em 1967
reuniu em Estocolmo muitos intelectuais proeminentes —7 de
jean-Paul Sartre a Isaac Deutcher, de Noam Chomslcy a Peter
Weiss — no intuito de denunciar os crimes de guerra ameri-
canos. A comparação entre a violência nazista e o imperialis-
- - - - - - -
1)isponive1 em: <www.rnu,icaemeinoria.comiloracielf-ucik.hrm>.
r,
,;,>
•
'
•
51
ino norte-americano era corriqueira no movimento antiguer-
Mobilizou-se a memória para lutar contra os verdugos do
ra.-'2
presente, não para homenagear as vítimas do passado. Em sua
intervenção, Sartre qualificou as táticas antiguerrilha como um
«genocídio total», e Günther Anders, um filósofo judeu que ha-
via se exilado nos Estados Unidos, propôs que os julgamentos de
Nuremberg fossem transferidos para a Cracóvia, local carregado
de simbolismo?" No Ocidente, assim como no Terceiro Mundo,
memórias de guerra seriam então integradas ao engajamento
político do presente. Bem observou Michael Rothberg, citan-
do Airné Césaire: ocorreu uma espécie de «efeito bumerangue»
(un choc eu retow).34 Na Europa, a luta contra o imperialismo se
alinhou à continuidade dos movimentos de resistência; no Sul, o
32_ Jean-Paul Same: Arlecte Eikkairn-Sartre. Ou Ccoodilc• Snoundry
of lhe Evidewe ditar the Ind.,,tnem the Isnerttatioual r,l'ar Crimes Tribunal.
Boston: BCaCOn. 1968: John DurYer Agsunsi du- Crime of Silente:
Proceedins o; the 1::!sse! Imcrmittonal frar Criwes Ncw;-i York:
Bertrand Russel Peace Foundation. 190.
33_ Ver 131-rhol Moldei]. ,Genozid in Vietnam: 190 als Schtisselereignis
in der Glabalisierung des Holocnusr-diskurse, m I Ieluvende 19(58? Eh;
Jahr O 1!10/Mkr›.!•1 nch I I icher .Persiwklive (Org. de Jens Kastner e Dav1d
Mayer. Viena: Mandelbauni. pp. 83-97.
34_ Michael AlnItidinvion,il Memory: RernembtTim; time
Holocanst m im the of SranFord: Stanford University Press
. 2009. ca p. 3: Anné C:ésaire. Di.:r<iursc Colmialo. Nova York: Monrhl y
Review Pres!,:. f,F d. bras. Discorso .,:ohrc o ioloitiali,,n+O. Trad. Anisio
Garcez Homem. Florianópolis: Lemb Contemporâneas. 197q.
 nazismo era visto — desde o Discurso sobre o colonialismo, de Aimé
Césaire (1950) — como urna forma de imperialismo radical.
Entretanto, aconteceu urna mudança considerável nos anos
1980. A onda revolucionária teve seu epílogo em Manágua, em
julho de 1979, quando também ocorreu a traumática desco-
bem dos campos de extermínio no Camboja. Na Europa, o
Holocausto cristalizara a essência da memória coletiva. O an-
tifascismo havia sido marginalizado em rememorações públicas
e suas vítimas começaram a ocupar o palco de uma nova paisa-
gem da memória. O legado do passado já não seria interpretado
como uma coleção de experiências de lutas, tornando-se mais
um sentimento de dever na defesa dos direitos humanos. De re-
pente, três décadas de Guerra Fria foram removidas da memória
coletiva. Na França, o Maio de 68 acabou sendo mera mudança
cultural, um tipo de carnaval em que, ao disputarem um jogo
revolucionário, os jovens desbancaram o gaullismo para dar es-
paço às modernas formas de liberalismo e individualismo.'" Na
Itália e na Alemanha, os anos 1970 são considerados os anos
de chumbo (anui di piombo), durante os quais a revolta de Urna
geração foi reduzida a uma única dimensão de terrorismo.36 Na
Alemanha, passou a ser trivial comparar a esquerda radical des-
35_ Ver KrimrIn.: .., : 'Cl .igo:l.:II;ver- ot
Chit.:Igo Pr..,“..-:
.30_ Ver I •: •.. , )(-.• Lima. i.., ,:.. : • di /In duccunio, )909-p.,i7y:
memori:i (Nii:io: Foirriiwni. 2(.110).
[Juventude hitlerista]." A repressão dos
sa época à Hitlerjugend
anos de «briga de rua» também foi uma maneira de expiação
perpetrada por uma geração que repudiava sua experiência e
preferia abraçar carreiras públicas ou em outras instituições po-
derosas. Após o naufrágio da revolução mundial, os «três seto-
res» se tornaram campos de três diferentes memórias de vítimas,
três lugares distintos de luto.
TRÊS MEMÓRIAS
-Como disse Dan Diner, observar a comemoração da vitória
de Oito de Maio de 1945 é um instrumento interessante para
explorar a transformação da paisagem da memória no começo
do século xxi." Promulgado feriado nacional em muitos países,
a efeméride não tem o mesmo significado para o Ocidente,
a Europa Oriental e o norte da África. A Europa Ocidental
celebra a rendição incondicional do Terceiro Reich diante das
Forças Aliadas como um evento de libertação, o início de uma
—
131k1: t:rück
37_ Encre -, A KIi!!:?:( 1 Yó.‘,, 1111cri.ef
(Franktiusc: Fi,
38- Dali (;e1trul.„, int,1 II
des 11,docansf. V.w.dz.:1110 2. 1; un Rupreeln... YXI7. Sobrr a co-
Inemoraçõe> do (..)[:-;de NLio de 945. er Rudoli'N.on Sueffi-n
Kudelka ,.., e I : i ;•r tir ki , .11 C • (V, f.11.c lern 113i
1945 (Wictin.,;m: Wal.krein.
era de paz, liberdade, democracia e reconciliação do conti-
nente que se envolvera em tantos conflitos fratricidas. Com
o passar do tempo, os próprios alemães aderiram a essa visão
do passado, abandonando suas antigas percepções, que viam na
derrota do Terceiro Reich uma vergonha nacional, seguida da
privação da s.oberania nacional e, depois, da divisão do país em
dois Estados inimigos. Em 1985,.ao fazer um discurso, Richard
von Weizãcker, antigo presidente da República Federal da
Alemanha, definiu o Oito de Maio como um «dia de libera-
ção»; vinte anos mais tarde, o chanceler Gerhard Schôder par-
ticipou, ao lado de Jacques Chirac, Tony Blair, George Bush e
Vladimir Putin, das homenagens ao desembarque dos Aliados
nas praias da . Normandia em 6 de junho de 1944. A adoção, por
parte da Alemanha, de um «patriotismo constitucional» enrai-
zado fortemente na narrativa ocidental fora ratificada de uma
vez por todas.
Nesse contexto, a memória do Holocausto desempenha o pa-
pel de uma narrativa unificadora. Esse fenômeno mais ou menos
recente — podemos datá-lo no início dos anos 1980— concluiu
um processo de recordação que passou por diferentes etapas.
Primeiro, houve o silêncio dos anos do pós-guerra; depois, a
amnésia dos anos 1960 e 1970 — provocada pelo surgimento
da memória dos judeus e pelo advento de unta nova geração—,
e finalmente a obsessão pela memória dos últimos vinte anos.
Após um longo período de repressão, o Holocausto retornou à
superfície em uma cultura europeia enfim livre do antissemitis-
rno (um de seus traços mais definidores até os anos 1940). Todos
os países da Europa continental estavam envolvidos nessa mu-
danca, não só a França, país que concentra a maior comunidade
judaica fora da Rússia, mas também a Alemanha, onde a inte-
ração com a comunidade judaica dos anos pré-guerra foi rom-
pida radicalmente. De forma um tanto paradoxal, o lugar do
Holocausto em nossas representações da história parece avultar
à medida que o passado se torna cada vez mais remoto. Claro,
essa tendência não é irreversível, e as coisas podem mudar com
inortg do último sobrevivente dos campos de concentração
nazistas. Até agora, no entanto, pode-se dizer que domina a
memória do Ocidente — na Europa e nos Estados Unidos —,
cnii.dç o Holocausto se transformou em algo como uma «religião
çivil» (ou seja, uma crença secular que, segundo Rousseau, ser-
ve para unificar uma comunidade)." O Holocausto permite a
sacralização dos valores fundamentais das democracias liberais
pluralismo, tolerância. e direitos humanos —, cuja defesa se
reveste de uma liturgia secular de recordação.
Seria equivocado confundir memória coletiva e a religião ci-
vil do genocídio dos judeus: a primeira é a presença do passado
_ .
39_ Peter Noviek. Th(
1-lotw;hron
, . -r ELuilo
MiHiii. 1 999. rp. (1. I 9N-9. !..01:›te o
(Pr'1111.-e'r0;.:: 2006).
Gentile,
.!NO dzy, direi-
Sobre A merwi.1 do 1-1.21k,c..,tisto <
tos bunt:tnos. yk., r 1 )atile] L.: riu .001.11unittry
in rins (ftlob:t1.-1.,,t 1-)rt'ss.
 no mundo de hoje; a segunda, uma política de representaçã o,
educação e homenagem. Enraizada na formação de uma cons-
ciência transnacional histórica, a religião civil do Holocaus to
advém dos esforços pedagógicos do Estado. Dentro da União
Europeia, ela tenra criar a ilusão de uma comunidade supra-.
nacional erguida sobre valores éticos; uma aparência virtuosa
que convenientemente esconde o enorme vácuo democrático
de urna instituição fundada, de acordo com os termos de seu
projeto constitucional fracassado, em uma economia de merca-
do «altamente competitiva», na qual a única soberania suprana-
cional efetiva é representada pelo Banco Central.
Assim como toda religião civil, a memória do Holocausto
tem suas ambiguidades. Na Alemanha, a criação de um me-
morial dedicado aos judeus assassinados (Holocaust Maluunal)
no coração de Berlim corroborou urna mudança identirária de
dimensões históricas. Os crimes do nazismo sem dúvida perten-
cem à identidade alemã, do mesmo modo que a Reforma ou a
Aufkbirung [Iluminismo]. A Alemanha já não se crê um corpo
coletivo étnico e se tornou uma comunidade política na qual
o mito do sangue e do solo foi substituído por urna moderna
visão da cidadania. Ao mesmo tempo, ao «dever de lembrar» o
Holocausto seguiu-se uma sistemática destruição dos vestígios
da República Democrática Alemã. A demolição do Palácio da
República (seguida pela reconstrução do Castelo de Hoezollern)
contrasta claramente corri a restauração metódica das antigas si-
nagogas, dos cemitérios judeus e de todos os sítios de memórias
do Terceiro Reich. A memória da RDA (assim como a do anti-
fascismo) precisava ser eliminada.40
Na era das vítimas, o Holocausto se torna o paradigma da
memória ocidental, o pilar sobre o qual a recordação de outras
formas recentes ou mais antigas de violência e crimes deveriam
onstruídas. Surge, assim, a tendência a reduzir a história a
ser c
.um confronto binário entre vítimas e carrascos — um movi-
mento que não concerne apenas a lembranças de genocídios,
mas também a eventos totalmente diferentes, como a Guerra
civil Éspanhcila. Passados trinta anos, depois de uma autoin-
flicrida transição «amnésica» para a democracia, baseada no
chamado pacto do esquecimento (pacto de olvido), os fantasmas
do franquismo estão de volta." O medo de recair na violência
gerou a repressão do passado — urna repressão que não foi im-
posta nem total, mas efetiva —, que acompanhou o advento da
democracia. Hoje, dentro da democracia sólida em que uma
nova geração foi formada, a integração europeia da Espanha
tomou também uma dimensão memorial com algumas con-
sequências paradoxais. Nos anos recentes, historiadores se de-
40_ Peter 1:!.,ichei, lu De writi,w:I . Dit
Aweinandri.:crz Flui Jur *S-Dif,...1,1(ur rol+ 19-i5 Municiu: C. H.
- Beck, 2007: Ré,, Me Ito;;.i ri. Bei Paru: Stock•
41_ Ver. em 'uri lar. Sabtos y de LM
pasado de , werra v dictaatra-. em Álenwria uh 1.7 Gurre,r y
(Org. de Santosijk. Madri: Taurus, 2(1,16). pp.
 bruçaram sobre a violência cia Guerra Civil e reconstituíra m
suas formas, seus métodos e a ideologia da violência entre 1936
e 1939, identificando e quantificando as vítimas de ambos os
lados. Pela primeira vez, a história dos campos de concentra-
ção de Franco foi investigada e descrita com rigor. No debate
público, porém, esse trabalho importante que elucida o passado
não impede que surjam interpretações nas quais a lembrança
das vítimas acaba eclipsando o significado da história. Segundo
essa perspectiva, o conflito entre democracia e fascismo — era
assim que se percebia a Guerra Civil Espanhola na Europa nos
anos 1930 — se torna urna sequência de crimes contra a hu-
manidade. Alguns historiadores chegam a retratá-la como um
«genocídio» total, urna irrupção de violência onde só havia car-
rascos e vítimas."
Na Europa Oriental, por outro lado, o fim da Segunda
Guerra Mundial não foi celebrado como um momento de li-
beração. Na União Soviética — e na Rússia de hoje —, o ani-
versário da rendição alemã foi lembrado como o triunfo da
«Grande Guerra Patriótica». Entretanto, nos países ocupados
pelo Exército Vermelho essa data indica a transição de urna
ocupação estrangeira por outra. O fim do pesadelo nazista coin-
cidiu com o começo da longa noite de hibernação soviética, um
l'resc:.mi.
(Nova Nom< 20 13).
«sequestro» que separou a Europa Central do Ocidente:" sua
ve rdadeira «liberação» só veio em 1989. Isso explica os violentos
confrontos em Tallinn no verão de 2006, quando os estonianos
se estranharam com os russos por causa de um monumento de-
dicado à memória dos soldados cio Exército Vermelho. Para os
russos, era uma homenagem à Guerra Patriótica; para a maioria
dos estonianos, simbolizava décadas de opressão."
Hoje, nos países que ficaram sob a égide soviética, o passado
revisitaçlo quase exclusivamente sob o prisma do nacionalis-
mo. Na Polônia, o Instituto Nacional de Lembrança foi criado
em .1.998, e, postulando uma substancial continuidade entre a
ocupação nazista e a dominação soviética, presta tributo à his-
n,'>riã- do século xx como um longo martírio nacional e urna
noite totalitária. Visão similar de história nacional inspira a
Casa do Terror em Budapeste, um museu dedicado a ilustrar a
,<luta contra os dois sistemas mais cruéis do século xx», que por
sorte terminou com «a vitória das forças da liberdade e da in-
dependência». Em Kiev, em 2006 o Parlamento aprovou uma
lei que definia a coletivização soviética da agricultura, assim
como a carestia de 1930, como «genocídio do povo ucrania-
no». Apresentando-se como representantes de nações-vítimas,
_
- -------
43_ Milan trag,fdie de l'Europe
central,. L, I): _ ,
Tieciana Zimi-zi • Geopolici Cs d. Mem:ir) I
maio 2607.
.r,
 conquistadores otomanos. Por outro lado, a União Europeia
os governos dos países da Europa Central reservam um papel
descobriu as virtudes de um militarismo humanitário ao qual
marginal para a memória do Holocausto, que aparece como
a memória oferecia um formidável pretexto. Bombardear ci-
um concorrente, um obstáculo ao completo reconhecimento
dades servias passou a ser um dever para redimir as vítimas dos
de seus sofrimentos. Esse contraste é paradoxal, uma vez que o
lags, para não repetir erros como o do Acordo de Munique
extermínio dos judeus se deu justo nessa região do continen- au
em setembro de 193S e similares. Segundo Jürgen Habermas, as
te: foi lá que a grande maioria das vítimas viveu, foi lá que os
bombas da Otan foram um sinal providencial do advento de um
nazistas criaram milhares de guetos- e campos de concentração.
Os novos membros da União Europeia com frequência pare- kantiano direito cosmopolita."
No norte da África, a efeméride de 9 de maio de 1945 evoca
cem considerar o Holocausto um objeto de luto diplomático.
outros eventos. Naquele dia, forças coloniais francesas abriram
Exumando uma imagem forjada por Heinrich Heine no intui-
,o contra milhares e milhares de nacionalistas argelinos, que,
to de descrever a conversão dos judeus na Alemanha do século foo-
celebrando a derrota do nazismo nas ruas de Setif, se recusaram
xix, Tony judt apresentou essa condolência tocante como um
a deixar de lado suas bandeiras. Repressões militares se espalha-
«passaporte europeu», ou seja, o preço a se pagar para ter res-
ram por cidades e vilarejos, e o conflito só foi ter fim com mais
peitabilidade e mostrar sensibilidade no que diz respeito aos
argelinos a
direitos humanos." demonstrações de força, que obrigaram os indigènes
se submeter às autoridades .coloniais, ajoelhando-se perante o
Durante os anos 1990, a guerra na Iugoslávia foi um ponto
estandarte francês. O rescaldo do massacre foi de 15 mil ou 40
de interseção entre as memórias do Ocidente e do Oriente. O
mil mortos, conforme se consultem fontes francesas ou arge-
fim da Guerra Fria, dez anos após a morte de Tito, produziu
linas» Setif foi o início de uma onda de violência e repressão
uma explosão de nacionalismos que reativaram a memória da
Segunda Guerra Mundial, com seus inúmeros massacres, e mo- militar nas colônias francesas, em especial em Madagascar, onde
bilizaram os mitos ligados à história dos Bálcãs, feita de domi- uma insurreição foi estancada brutalmente em 1947. EM maio
nação imperial. Na Croácia, os nacionalistas sérvios enfrenta-
— _
ram os fantasmas de Ante Pavelic, e em Kosovo os símbolos dos ,Dir ZA h IN. 29
4()_ Iür,:en Hht, m-fas. - BE'srializir. und 1-1unwn1rãr
.i 1999. -pp. 6-7.
c,,i,mious (Paris: LI
47_ Sobre Sáii, ver Yves tiimor., :14:rss,ures
Découverte. 2k :( )i ), pp. 9-,;5.

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de 2005, quando os representantes das potências ocidentais ce-

lebravam o aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, o
presidente argelino Abdel Aziz Boutlefika pediu oficialmente o
reconhecimento da carnificina de Setif, qualificando-a de «ge-
nocídio» e exigindo reparações da França.
Com isso, celebrar a vitória de 8 de maio de 1945 é condensar
memórias entremeadas. Sob o ponto de vista de um ocidental,
de um oriental ou de urna perspectiva pós-colonial, a história
do século xx assume diferentes aspectos. As narrativas históricas
.entrelaçadas por essa efeméride divergem, mesmo levando em
conta que todas suas reações são ativadas pela existência de uma
vítima do passado, o que no caso é o maior indício da globaliza-
ção das memórias no começo do século xxi. Claro, as memórias
não são monolíticas ou incompatíveis, e seu pluralismo poderia
abrir espaços fecundos de coexistência para além de identida-
des nacionais e culturais fechadas. Até agora, porém, seus focos
distintos — Holocausto, comunismo, colonialismo — ilustram a
tendência em tirar «lições da história» concorrentes, em vez de
complementares. A memória global do início do século xxi es-
boça uma paisagem de sofrimentos fragmentados. Novas espe-
ranças coletivas ainda não surgiram no horizonte. A melancolia
continua no ar como o sentimento dominante de um mundo
que carrega o pesado fardo de seu passado, e segue caminhan-
do sem um norte, sem um futuro discernível. O Ocidente, o
Oriente e o Sul: os antigos «três setores» de revolução mundial
se tornaram três certames de memórias feridas.