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Fato e Direito nos juristas do século XVII

COLÓQUIO TRADIÇÃO E MODERNIDADE (RIO 2008)

Rafael Ruiz
Professor de História da América da UNIFESP
Introdução
O trabalho que apresento neste colóquio 1 traz os resultados obtidos a partir da
análise de duas obras de juristas do século XVII: Arte legal para el estudio de la
Jurisprudencia, escrita pelo espanhol Francisco Bermúdez de Pedraza em 16122, e
Theologia Moralis in quinque libros partita, Editio Sexta, Joan Martius Schonwetteri,
Bambergae, escrita pelo jesuíta alemão Paulo Laymann, publicada em 16773.
Trata-se de uma pesquisa que está apenas começada e que parte da hipótese de
que na América desenhou-se um espaço de adaptação, conveniência e negociação que
permitiu não apenas aplicar o direito da metrópole mas criá-lo a partir dos costumes
locais.
Nesse sentido, o objetivo geral da pesquisa é duplo: por um lado, estabelecer que
a visão jurídica, política e administrativa da Espanha com relação à América, entre os
séculos XVI-XVIII, consistia em considerar que o direito (não a lei) realizava-se e
concretizava-se somente na análise e na decisão de cada caso, tal como este se
apresentava nas circunstâncias concretas, de maneira que a solução justa recaía na
percepção do caso concreto, sem o desejo nem o interesse de estabelecer uma norma
geral, homogênea e universalizante, para todos os outros casos similares. Por outro,
verificar que na prática judiciária decidia-se caso a caso, de acordo com as diferentes
circunstâncias de tempo, lugar e qualidade das pessoas.
Se a minha hipótese for comprovada, teríamos uma outra interpretação
historiográfica para a construção e estruturação das relações políticas, administrativas e
sociais da América: As Audiências e os Cabildos teriam poder jurídico efetivo para
1
A pesquisa financiada pela FAPESP está prevista para ser realizada nos próximos quatro anos, dentro do
Núcleo de estudos ibéricos da Universidade Federal de São Paulo. Seriam analisados mais três juristas
espanhóis e quatro portugueses do século XVII e seriam realizadas pesquisas nas Audiências, Cabildos e
Câmaras das cidades de Rio de Janeiro, São Paulo, Corrientes e Asunción.
2
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Arte legal para el estúdio de la Jurisprudência, Salamanca, 1612, Imprenta
de Antonia Ramírez, Viúda.
3
LAYMANN, P., Theologia Moralis in quinque libros partita, Editio Sexta, Joan Martius Schonwetteri,
Bambergae, 1677.

1
interpretar, adaptar, adequar e recusar as leis metropolitanas, não como forma de
resistência, mas como modo de realizar a justiça de acordo com os próprios princípios
reguladores do Império4. E, inclusive, poderiam, de acordo com esses mesmos princípios,
criar o direito, ou seja, as Audiências e os Cabildos seriam agentes ativos e eficazes, de
acordo com os seus próprios interesses e a sua gama de relações estabelecidas da
construção das bases políticas, econômicas, jurídicas, administrativas e sociais na
América.

Duas Modernidades
Para o entendimento da base teórica que fundamenta este trabalho, parece-me que
poderíamos falar de duas Modernidades e dois tempos de colonização. São dois
momentos de descobrimento e de colonização bastante diferentes.
A primeira Modernidade estaria marcada por uma visão “prudencialista” ou
“probabilística” da vida, dos homens, da sociedade e do Estado, cujo núcleo central seria
a noção de “justa medida”. Uma medida que seria dada na própria natureza e que se
manifestaria numa proporção ou relação conveniente entre os homens, a natureza e as
coisas.
Essa relação conveniente aparecia como carregada de problematicidade, no
sentido de que qualquer decisão tomada nunca daria certeza ou segurança (muito menos
certeza ou segurança jurídicas) e, por isso, entendia-se que, diante dos diferentes casos
jurídicos, podia-se procurar uma opinião provável, embora não fosse essa
necessariamente a mais provável5. Daí a necessidade de se consultar não propriamente as
leis ( ou, pelo menos, não unicamente ) mas, principalmente, as opiniões dos doutores,
juristas e autoridades em Direito6
A segunda Modernidade estaria marcada por uma visão “racionalista”,
“normatizadora” e “iluminista” da vida em sociedade e do Estado, cujo núcleo central
4
Essa afirmação não pretende significar que não tenha havido resistências à ordem estabelecida. O que
quero dizer é que muitas vezes, por falta dessa visão mais abrangente do fenômeno jurídico, tem se
entendido como resistência ou rebeldia ações que, conforme o direito, eram justas e admitidas.
5
Esse probabilismo desenvolve-se, no campo da moral e na Espanha, durante o século XVI ao mesmo
tempo que, no campo jurídico, desenvolve-se o casuísmo jurídico. Cf. TAU ANZOÁTEGUI, Victor,
Casuísmo y sistema. Indagación histórica sobre el espíritu del Derecho indiano, Instituto de
Investigaciones de Historia del Derecho, 1992, p. 60.
6
TAU ANZOÁTEGUI, Victor, Casuísmo y sistema. Indagación histórica sobre el espíritu del derecho
Indiano, Instituto de Investigaciones de Historia del derecho, 1992, p. 58-62.

2
seria a “definição clara e distinta” feita pela Razão. Uma razão que define a priori o ser
das coisas e que, como estruturará Hobbes no seu Leviatã, determinará, por meio da lei,
“fazer ou não fazer uma conduta determinada”7.

A medida e a desmedida na Primeira Modernidade


A época moderna herda do período medieval a visão clássica de “uma ordem
universal (cosmos) abrangendo os homens e as coisas, e fixando uns e outras a um curso
quase tão forçoso e inevitável como a seqüência das estações do ano ou o fluir dos
acontecimentos naturais”8.
Uma das características dessa cosmovisão era que “apesar de se reconhecer que os
membros de cada comunidade podiam estabelecer algumas normas particulares de
organização política, pensava-se que a generalidade das regras de vida em comum (a
‘constituição social’, digamos) estava fixada pela natureza. A sociedade –dizia-se, então-
era como corpo, em que a disposição dos órgãos e as suas funções estavam definidas pela
natureza”9. Nessa sociedade, o papel dos juristas “que, então, eram aqueles que pensavam
a organização política, consistia em identificar a justiça como respeito por estes
eqüilíbrios sociais”10. Esses equilíbrios manifestavam-se na noção de “justa medida”.
A “justa medida” não era aquela que fosse determinada por uma norma ou uma
lei, mas uma relação proporcionada existente entre as coisas, os animais e os homens.
Uma proporção que se encontraria na própria natureza e que caberia ao homem descobrir.
Trata-se da descoberta da “ocasião apropriada, com referência aos objetos apropriados,
para com as pessoas apropriadas, pelo motivo e da maneira conveniente. Nisso consiste o
meio termo e aí radica, precisamente, a virtude”11.
A “justa medida” seria indefinível e não poderia ser conceituada. Ela seria apenas
isso: medida, relação, proporção. A regra mais adequada para medir a medida justa,

7
SKINNER, Q., As Fundações do pensamento político moderno, Companhia das Letras, São
Paulo1996, p. 404.
8
HESPANHA, António Manuel, As estruturas políticas em Portugal na época moderna, in “História de
Portugal”, José TENGARRINHA (org), Edusc-Unesp-Instituto Camões, Bauru-São Paulo.Lisboa, 2001, p.
118.
9
Ibidem.
10
Ibidem.
11
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, II, 1106b, 15, Abril Cultural, São Paulo, 1984.

3
conforme Aristóteles, seria a “regra de Lesbos”, um metro flexível que se adaptava
perfeitamente às irregularidades das pedras da ilha12.
Essa seria a cosmovisão presente na primeira Modernidade. O jurista espanhol
Francisco Bermúdez de Pedraza, na sua obra Arte legal para el estudio de la
Jurisprudencia, escrita em 161213, fazia-se eco da idéia de Aristóteles e advertia que
“todo direito consiste em fato, e qualquer pequena mudança de fato, muda também o
direito”14 e, mais, falando sobre o direito natural, explicava -poderíamos dizer que
paradoxalmente- que “o direito natural, com relação a si mesmo, não é mutável, mas
muda com relação às circunstâncias e acidentes [dos fatos]”15 Daí –deduzia Bermúdez-
que as “circunstâncias” eram a chave para explicar e dirigir o processo de criação e
aplicação do direito.
Na segunda metade do século XVII, em 1677, o teólogo-jurista jesuíta alemão
Paulo Laymann, publicou uma obra16, onde tratava, entre outros assuntos, sobre a lei e os
costumes, e citando a Isidoro de Sevilla, autor do século VII, lembrava que “o costume é
um direito – ius- instituído pelos hábitos, que se tem por lei quando falta a mesma” 17 e
explicava que esse costume podia proceder tanto dos fatos como do direito (duplex est
consuetudo: una facti et altera iuris), e, voltando a Isidoro, Laymann argumentava que o
costume que decorria dos fatos chamava-se assim porque era derivado da prática ou do
uso comum, para concluir que um costume era tido tanto como direito quanto como lei 18
e, mais, Laymann observava que mesmo que esse costume fosse contra a lei, em alguns
casos e algumas vezes e mesmo que a lei o proibisse expressamente, o costume acabava
prevalecendo sobre a lei19.

12
ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, V, 1137b, 30. Esta é também a causa de que nem tudo seja regulado
pela lei, porque sobre algumas coisas é impossível estabelecer uma lei, de maneira que é necessário um
decreto. Porque daquilo que é indefinido, também é indefinida a regra, e como a regra de chumbo usada
nas construções de Lesbos, que não é rígida, mas se adapta à forma da pedra; assim também os decretos
se adaptam aos casos.
13
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Arte legal para el estúdio de la Jurisprudência, Salamanca, 1612,
Imprenta de Antonia Ramírez, Viúda.
14
Idem, p. 134.
15
Idem, p. 19.
16
LAYMANN, P., Theologia Moralis in quinque libros partita, Editio Sexta, Joan Martius Schonwetteri,
Bambergae, 1677.
17
Idem, L.1, tr 4, c 24, n 2.
18
Ibidem.
19
Ibidem. As itálicas e a tradução do texto latino são minhas.

4
Se a minha hipótese estiver certa, estaríamos, no fim do século XVII, perante uma
cosmovisão da sociedade e da política que consideraria que o direito –o justo, ius-
nasceria dos fatos, portanto, das circunstâncias, e se manifestaria socialmente como um
determinado tipo de usos e costumes, sendo suficiente que fossem “razoáveis e úteis ao
bem da República e não vão contra a fé e a Religião”20.

O direito é como o ar, mutável e sempre o mesmo


Francisco Bermúdez de Pedraza era um jurista espanhol do final do XVI e
começo do XVII, considerado por alguns estudiosos como um dos epígonos do “mos
italicus”21. A sua obra Arte legal para estudiar la Jurisprudencia interessa-nos pelo fato
de descrever uma situação concreta, muito mais do que pelas críticas ou pelas sugestões
que o autor realiza para alterar essa situação. De fato, Bermúdez era um jurista
pragmático, que editou o seu livro na cidade universitária de Salamanca, sede do que
poderíamos denominar berço do pensamento jurídico espanhol dos séculos XVI e XVII.
Na sua opinião, embora fosse desejável realizar algum tipo de sistematização nos estudos
do Direito, na prática, percebia que a própria natureza do Direito estava intrinsecamente
vinculada aos fatos e os fatos eram mutáveis. Daí, que qualquer sistematização se
tornasse problemática22.
Tendo consciência da dificuldade de se entender a aparente contradição entre um
direito que deveria ser imutável e uma série de fatos que são, de per si, mutáveis, sugere
uma comparação que, na sua opinião, deverá esclarecer a perplexidade: “o ar, com
relação a si mesmo, é de uma mesma qualidade, mas muda pela variedade das províncias,
porque é mais temperado na França do que na Alemanha e na Espanha, porém, tudo é o
mesmo ar, que não muda com relação à substância, e sim com relação aos acidentes” 23.
Pouco antes, o Pe. José de Acosta, escrevera referindo-se aos indígenas americanos que
“as coisas das Índias não permanecem muito tempo num mesmo ser, e cada dia mudam

20
Ibidem. A exceção estabelecida por Laymann (que os usos e costumes não vão contra a fé e a Religião)
dá conta de por que os costumes religiosos dos indígenas foram proibidos e extirpados, mas dá conta
também de por que os outros usos e costumes foram permitidos e, em alguns casos, assimilados.
21
TAU ANZOÁTEGUI, V., op. cit., p. 262.
22
Ibidem.
23
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Francisco, op. cit., p. 19.

5
de estado”24, por isso era extremamente difícil, se não impossível, dar normas fixas e
duráveis, porque – o exemplo é do Pe. Acosta- a roupa adequada para a criança não é a
mesma que se requer na juventude, e dessa forma era necessário prestar atenção às
diferentes circunstâncias25.
Parece-me que esses dois exemplos –o ar e a roupa- são muito significativos
quando tentamos entender a idéia de direito que perpassa pelos juristas espanhóis do
século XVII. Há uma tradição aristotélico-tomista (que me parece evidente no texto de
Bermúdez de Pedraza) quando, ao referir-se aos termos “mudança” ou “mutabilidade”,
distingue entre uma mudança substancial e outra acidental 26. É precisamente essa
distinção que lhe permite pensar que não existe nenhuma contradição pelo fato de que em
diferentes lugares, cidades ou províncias do extenso Império espanhol possa haver
diferentes direitos, já que, como o ar, sempre será o mesmo direito: “Não é ‘vário y
mudable’ o direito civil porque se observe diversamente numa província ou em outra” 27.
Mais ainda, para Bermúdez, o natural do direito é precisamente que seja variado,
diferente e mutável, porque “a variedade e a mudança é conforme ao direito natural”28.
Nessa altura, parece-me que chegamos ao que considero a questão central sobre a
idéia de direito –e, especificamente, de direito natural- nos juristas espanhóis do século
XVII29.
Bermúdez de Pedraza, no capítulo II do seu livro, um capítulo aparentemente de
pouca transcendência em termos conceituais, onde trata sobre os “sinais para conhecer as
inclinações dos homens”, cita o “Examen de Ingenios”, de Huarte de San Juan 30, para
explicar que, de acordo com esse autor, para ser um bom jurista é preciso possuir boa

24
ACOSTA, José de, De Procuranda indorum salute, C.S.I.C., Madri, 1984, 2 vols, Proemio. Sobre essa
questão, baseio-me no artigo de Anderson Roberti dos Reis, Sobre a elevada arte de estabelecer a norma
na América: José de Acosta e a reflexão ética a respeito da colonização, Tempo Brasileiro, “ Os
significados do excesso”, abril-junho de 2007, 169, pp. 109-123.
25
REIS, Anderson Roberti dos, op. cit., pp. 109-112.
26
Infelizmente, entrar aqui em considerações mais elaboradas sobre a metafísica aristotélico-tomista e sua
recepção pela Segunda Escolástica espanhola, desviar-nos-ia muito do assunto, mas não quero deixar de
registrar esse dado.
27
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Francisco, op. cit., p. 19.
28
Ibidem.
29
Evidentemente, será necessário ainda desenvolver muito mais todo esse Projeto para poder realizar
qualquer tipo de afirmação com um grau maior de certeza. Contudo, parece-me que, de fato, essa é uma das
questões chaves que deve ser analisada
30
Juan Huarte de San Juan escreveu Examen de ingenios para las ciencias em 1575. Durante os séculos
XVI, XVII e XVIII sua obra foi traduzida ao latim, francês, italiano, inglês, alemão e holandês.

6
memória e ser capaz de saber de cor todas as leis 31; porém, no capítulo a seguir, “Sobre as
coisas que se devem prevenir para o estudo da Jurisprudência”, adverte que, na verdade,
o jurisprudente precisa ter mais entendimento do que memória, porque, para ser um bom
jurista, “não basta com saber as leis de memória, mas o seu sentido e a razão delas, e a
razão da razão até chegar na fonte e origem da razão natural” 32. A questão que se deveria
colocar é: de que sentido e de que razão está falando Bermúdez de Pedraza?
A resposta fácil seria afirmar que se trata de uma razão natural que se apresenta
como um ser em si e a priori, uma razão legisladora que se manifestaria aos homens
como uma “tábua de preceitos que, como ‘direito da razão’ inspirava o próprio governo e
a legislação”33. Contudo, essa visão “iusnaturalista” foi cunhada a partir dos juristas e
pensadores alemães, influenciando diretamente os países centro-europeus, principalmente
a partir da primeira cátedra de Direito Natural, em Heidelberg (1660), a cargo de
Puffendorf e, mais tarde, Thomasius. Contudo, essa disciplina, e nesses moldes, teve uma
influência bem mais tardia na Itália, na Espanha e em Portugal, onde começou a
estabelecer-se como cátedra de estudos apenas a partir do final do século XVIII 34. O que
Tau Anzoátegui conclui daí35, e concordo com ele, é que o direito natural teve um longo
processo de elaboração intelectual e de construção semântica, através do qual, passou-se
a entender como algo fixo e imutável, um conjunto de leis e normas racionais prescritas
pela Razão. Uma Razão hipostasiada que teria em si, e as declararia aos homens, as
normas eternas e invariáveis. Mas no século XVI e XVII, e na Espanha, não era assim.
Contudo, e essa seria a resposta que, na minha opinião, Bermúdez de Pedraza
apresenta-nos na sua obra, a razão do direito é ser um parecer natural ou, como afirma no
texto, um ditame natural36, isto é, a razão de ser do direito não consiste no fato de tratar-
se nem da lei divina, nem do instinto humano, nem sequer da lei positiva. Trata-se de ser
um parecer raciocinado, argumentado racionalmente, feito pelos jurisprudentes.

31
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Francisco, op. cit., p. 12.
32
Idem, p. 13.
33
TAU ANZOÁTEGUI, Víctor, op. cit., p. 302.
34
Ibidem.
35
Idem, p. 303.
36
O texto exato é: “la razón de la ley es universal, porque es un dictamen natural, al qual todas las gentes
obedecen y a todos comprehende, Turcos, Tártaros, Abyssinios y Américos, aunque no estén sujetos al
Império” (p. 20).

7
Nesse sentido, Bermúdez é explícito quando afirma que o problema do termo
“direito natural” é ser uma expressão equívoca e ter vários sentidos semânticos e, com
freqüência, “é tomado equivocadamente umas vezes pelo [direito]divino, outras pelo
instinto natural, outras pelo ditame da razão, ao qual, como ao divino, nunca repugna o
direito civil”37. Ou seja, Bermúdez está falando de que para dizer o direito (o que é justo e
adequado numa relação determinada) é preciso ter as condições necessárias para
raciocinar corretamente ou, por outras palavras, que o homem, no caso o jurisprudente,
deve ser, naturalmente, alguém com experiência e não apenas um jovem que conheça
todas as leis sem entender a razão das mesmas ou, o que seria o mesmo, que não consiga
dar os motivos das leis. Por isso dirá que a primeira condição para ser um entendido em
jurisprudência “é a idade, que não deve ser moço o professor de jurisprudência, porque a
teoria dela não pertence à memória, como disse o doutor Huarte, porque não consiste
apenas em saber de cor as leis, mas o seu sentido e a razão das mesmas, e a razão da
razão até chegar à fonte e origem da razão natural. E isto não é ofício da memória, mas
do entendimento, cujo exercício é raciocinar; e, dessa forma, quanto mais capaz de razão
for quem estudar essa faculdade, mais apto será para ela” 38 e é precisamente por isso que,
no entender de Bermúdez, Aristóteles defendia que a Jurisprudência era uma tarefa dos
mais velhos, porque tinham mais possibilidade de raciocinar melhor39.
Essa razão natural não é uma simples opinião de um jurisprudente. Para decidir
conforme à razão natural são necessárias, em toda decisão jurídica, oito condições, que
Bermúdez de Pedraza elenca no capítulo XIII quando trata “dos primeiros rudimentos da
Jurisprudência”. No “Rudimento XI” vai explicando cada uma delas: praemitto:
distinguir termos equívocos e estabelecer relações, scindo: realizar divisões, summo:
reduzir a um sumário, casus: relacionar um caso com a lei, perlego; ler e reler o texto
várias vezes, do causas: buscar a razão de decidir, connoto: encontrar a alma da lei
inferindo da sua razão para casos semelhantes e, por último, obiicio: colocar as leis
contrárias40.

37
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Francisco, op. cit., p. 20.
38
Idem, p. 13. As itálicas são minhas.
39
Idem, p. 14.
40
Idem, p. 104-106.

8
Como se vê, trata-se de uma arte de raciocinar e de argumentar, porque, para o
jurista espanhol, argüir ou argumentar “ é o mesmo que mostrar” 41. O argumento é uma
forma de demonstração utilizada pelos jurisprudentes, onde a partir de uma dúvida
fundamentada sobre o direito dão-se as razões por meio de quatro formas: silogismo,
indução, entimema e exemplo42. Essa razão que se procura é a razão da lei nos casos de
dúvida e “quem argumenta com razão, não argumenta sem lei”43.
Convém prestar atenção para o fato de que para o autor estamos num terreno
incerto e duvidoso, porque “a lei estabelece-se sobre fatos duvidosos porque nos casos
claros não é necessária e a dúvida há de ser formada com razão ou com certa razão,
porque se alguém perguntar se for lícito delinqüir, se lhe poderia responder o que Celso a
Domicio Lebeon ou não te entendo ou é muito néscia a tua questão”44.
Parece-me, portanto, que Francisco Bermúdez de Pedraza não está se referindo a
uma Razão natural hipostasiada, como faria mais tarde a Ilustração, nem sequer a uma
Razão da Natureza, como se a natureza fosse uma inteligência a se capaz de legislar. Para
o jurista espanhol, seguindo a tradição clássica romana 45, a jurisprudência é a arte de
decidir sobre o que é justo numa relação ou conflito de interesses onde os motivos ou as
razões de direito aparecem de forma duvidosa, já que “o principal estudo do jurista há de
ser inquirir a razão de duvidar em que se fundou o legislador porque sem ela, diz Baldo,
não somente não se podem entender os direitos, mas os que tiverem vários
entendimentos, prevalecerá aquele que tiver e tirar maior razão de duvidar”46.
O ditame natural é a decisão, fundamentada em argumentos racionais, que
consegue eliminar a dúvida sobre qual seria o direito a ser aplicado numa relação
determinada. Como o próprio jurista indicara, por razão natural, poderá haver vários
direitos, em vários lugares e dependendo das variadas circunstâncias, porém, todos serão
direito, assim como o ar, que muda conforme o lugar, continuando a ser o mesmo ar.

O direito é como um hábito que nasce dos fatos


41
Idem, p. 108.
42
Ibidem.
43
Ibidem.
44
Idem, p. 109.
45
Sobre este assunto pode consultar-se Michel Villey, Compêndio de Filosofia do Direito, Loyola, São
Paulo, 2002.
46
BERMÚDEZ DE PEDRAZA, Francisco, op. cit., p. 109.

9
Tentei mostrar até agora como, no século XVII, o jurista espanhol Francisco
Bermúdez de Pedraza entendia que, sendo uno e o mesmo o direito, poderia se manifestar
em diferentes formas de direito, de acordo com as circunstâncias de tempo, lugar e
pessoa, precisamente pelo fato de ser um ditame natural da razão argumentada pelos
jurisprudentes. Gostaria agora de analisar como, também no século XVII, o direito é visto
como algo originado a partir dos fatos e não necessariamente a partir da lei. Para tanto,
escolhi a obra Theologia Moralis (1625)47, do jesuíta alemão Paulo Laymann.
Laymann nasceu em 1574 perto de Innsbruck e morreu em 1635. Formou-se em
Jurisprudência e, posteriormente, ingressou na Companhia de Jesus, tornando-se um
renomado moralista e canonista. A sua obra foi editada repetidas vezes e até o final do
século XVIII era usada como livro de texto pelos seminários religiosos.
Quando Laymann trata sobre o costume 48, define-o, de acordo com Isidoro de
Sevilla (no capítulo 2 das suas Etimologias), como “um direito instituído pelos hábitos,
que são tidos como lei, quando esta faltar”. Para Laymann, o costume pode nascer tanto
dos fatos como do direito O costume que nasce dos fatos é chamado precisamente de
costume porque deriva da prática ou do uso comum, enquanto que o costume que nasce
do direito é como que uma outra lei: é um costume inveterado, vivido e guardado como
lei e é precisamente isso –essa longa temporalidade e essa repetição da sua prática- que o
torna direito, porque se diz que foi constituído pelos costumes. Daí Layman deduzirá que
um costume que sempre foi observado e vivido pelo povo é tanto direito quanto lei,
mesmo que esta não esteja escrita.
Contudo, nem todo costume pode ser tido e entendido como direito. Para
Laymann é preciso que o ato seja repetido freqüentemente e de forma tão notória que
todo o povo tenha conhecimento do mesmo. Além disso, é necessário que transcorra um
longo período de tempo (dez anos) para que o costume em questão possa vir a ser direito
e contemplado como se fosse uma lei escrita. Por outro lado, tem de existir o
consentimento tácito por parte do legislador49. E, por último, os atos repetidos pelo povo

47
Esta obra teve uma sexta edição em latim, que pude consultar: Paulo Layman, Theologia Moralis in
quinque libros partita, Bamberg, Joan Martius Schonewetteri, 1677.
48
Theologia Moralis, l. I, tr. 4, c. 24, n. 2.
49
Laymann entende que o legislador ou o Príncipe consentem e aprovam tacitamente um costume quando,
conhecendo-o e podendo-o proibir, toleram-no por um tempo de dez anos. Essa interpretação está
fundamentada na Summa Theologiae de Tomás de Aquino (I-II, q. 97, a. 3, ad 3).

10
ou pela maior parte dele não podem ter sido realizados ou introduzidos à força. Portanto,
não é qualquer fato que tem a capacidade de gerar direito. Deve tratar-se de um fato
imemorial, entendendo-se por “imemorial” 50 um costume do qual não se guarda memória
do seu começo51.
Mais interessante ainda é a opinião do jesuíta sobre a necessidade de a lei ser
aceita pelo povo para que, efetivamente, passe a vigorar 52. Esse entendimento, parece-me,
pode manifestar como, para o jurista do século XVII, é o fato, a vivência social, quem dá
plenitude e vigor à lei e não ao contrário. Toda lei, de acordo com a sua opinião, tem em
si uma condição tácita de que, para ter força de obrigar a ser cumprida, deve ser aceita
pelo povo. Citando Graciano, Laymann adverte que “as leis se estabelecem com a sua
promulgação e se afirmam e comprovam com os costumes daqueles que as utilizam”53.
A conclusão da Laymann, de enorme importância para este artigo, é de que “os
juízes não devem decidir as causas, nem no foro interno, nem no externo, de acordo com
as leis que não tenham sido recebidas 54. Por outras palavras, para o jesuíta, a decisão
judicial não pode apoiar-se apenas na lei. É preciso esperar a que o uso e a praxe social as
legitimem. Entende-se, portanto, parece-me, que o costume é fonte de direito e deve ter-
se em conta à hora de o juiz formular a sua sentença. E, para reforçar esse entendimento,
Laymann adverte que as leis humanas, pelo simples fato de serem leis, nem sempre
obrigam, inclusive no âmbito da consciência55. Não podem, por exemplo, obrigar a
cumprir algo que é “muito difícil ou moralmente impossível” e, ao explicar o que deveria
ser entendido por “impossível”, afirma que seria tudo aquilo que fosse contra a natureza e
contra os costumes humanos56.

Conclusão
Ainda é cedo para tirar conclusões, mais ou menos acertadas, sobre as
conseqüências desse pensamento para a América espanhola. Por enquanto, de acordo com

50
Theologia Moralis, l. I, tr. 4, c. 24, n.7.
51
Sobre esse tema escrevi um artigo junto com Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, A força do
costume, de acordo com a Apologia pro Paulistis (1684), que será publicado em breve.
52
Theologia Moralis, l. I, tr. 4, c. 3, n.1.
53
Ibidem.
54
Theologia Moralis, l. I, tr. 4, c. 3, n. 4.
55
Theologia Moralis, l. I, tr. 4, c. 14, n. 5.
56
Ibidem.

11
os juristas estudados, encontramo-nos com a idéia de que o direito pode ser diferente para
casos e situações diferentes, sem, contudo, perder o seu caráter de direito. Isso porque
esses direitos diferentes seriam decisões obtidas por um trabalho -verdadeira arte- de
argumentação, retórica e raciocínio, por meio do qual os jurisprudentes procurariam
encontrar a razão (o motivo) da dúvida que levou o legislador a determinar uma lei
concreta. E essa dúvida e razão só poderia ser encontrada no caso concreto e não na
abstração racional legislativa que a Ilustração pretenderá com a sua Razão hipostasiada.
Vários direitos heterogêneos e diferentes seriam todos direito ou, para não parecer um
jogo de palavras, seriam todos justos.
Assim, por exemplo, quando em 1554, na Nova Espanha, se recebeu uma Real
Cédula legislando sobre o modo e a forma de tributar os indígenas, foi respondido à
metrópole que isso seria impossível devido “à diversidade que nesse assunto há em cada
província e cacique e povoado”57 ou quando o Marquês de Montesclaros, Vice-Rei do
Peru entregava o cargo ao seu sucessor, em 1615, advertia-o para que cuidasse “da
importância e diversidade das qualidades que cada povoação tem (...) que não podem ser
governadas por uma só regra, embora a Sua Magestade a tenha dado”58.
Por outro lado, o direito é mais costumeiro do que legal. A própria vigência da lei
está submetida à aprovação dos costumes sociais. Se uma determinada localidade ou uma
cidade concreta não recebesse ou aceitasse a lei, seria a lei que não entraria em vigor e
não, como poderia pensar-se, seria a cidade que estaria desobedecendo. Isto, como disse
no começo, me faz pensar na necessidade de continuar a pesquisa, procurando a
confirmação ou não da hipótese, através da investigação nos cabildos e nas câmaras
municipais da América. Talvez, onde a historiografia percebeu “desobediência” ou
“transgressão” possamos encontrar a criação de um direito, uno e vário, como o ar.

57
TAU ANZOÁTEGUI, V., op.cit., p. 321.
58
Idem, p. 322.

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